PARADIDÁTICO: PRAGA DA LEITURA ? UMA PROPOSTA PARA O NONO ANO Gláuci Helena Mora Dias1

CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS

Em relação à forma como a escola trata as experiências de leitura das pessoas, eu diria que a instituição de ensino é um aparelho de recontextualização. A escola desloca textos de seus “lugares naturais”, da produção e do consumo, e os põe em um território diferente. A escola “escolariza” tudo que toca. Literatura, na escola, não se mantém literatura. Os preceitos escolares submetem tudo à sua dinâmica.2 (Larossa, 2007) A escola, enquanto instituição pública, é um território de especialistas em “ensinar mundo longe do mundo”: o espaço privilegiado de aprendizagem sistematizada que requer certo afastamento do real benefício de uma re-organização burocrática, temporal e metodológica supostamente favorável à aprendizagem. (Colello, 2007)

NO ENTANTO...

M.C. Escher

A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo: interrogar, escutar, responder, concordar etc. Neste diálogo o homem participa todo e com toda a sua vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, com o corpo todo, com as suas ações. Ele se põe todo na palavra, e esta palavra entra no tecido dialógico da existência humana, no simpósio universal. Bakhtin

Quando a escola ignora a natureza dos discursos, da multiplicidade de “dizeres”, apaga a ligação que existe entre linguagem e vida e, ao fazer isso, ignora a leitura e a escrita como ações culturais, articuladas a valores e saberes socialmente dados, como ato de posicionamento político diante do mundo, como manifestação de vida na e pela linguagem. Sabe-se que muitos alunos ficam relegados à solidão e ao abandono em muitas práticas pedagógicas. A falta de interlocução, de um espaço dialógico, para produção de sentido aos saberes escolares, acaba por transformar a leitura e a escrita em um objeto fechado, sem vida, sem significado para o aluno.

1 Mestranda pela FEUSP, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização e Letramento (GEAL), professora dos cursos de Letras e Pedagogia do Uirapuru Superior. 2 Jorge Larossa no 16 COLE, http://www.alb.com.br/index.asp, acesso em junho/2007. Nesse sentido, podemos dizer que a interação verbal, permeada pela utilização da leitura e da escrita, mediadas pelo professor, como meio para se comunicar com o outro e com o mundo, é alijada do ensino de língua materna. Textos são destituídos de seu sentido original, que é determinado justamente pela necessidade de interação verbal e as práticas de leitura escolar acabam por transformar todo gênero de texto em texto escolar, ou "didático", tendo como única finalidade o plano da funcionalidade. Quando Bakhtin (2006) afirma que o centro de gravidade da língua não reside na conformidade à norma da forma utilizada, mas na nova significação que essa forma adquire no contexto, é aqui que o fazer pedagógico deve cuidar para buscar nas produções textuais de seus alunos marcas deixadas, para a compreensão e respeito de aspectos fundamentais do processo de sua escrita. Do contrário, o “querer-dizer” do aluno será suplantado pelos “quereres-escolares” – aqui, então, o aprendiz se afastará de sua condição de sujeito que produz textos e será inserido muito mais na condição de um sujeito que produz “língua”. A linguagem deve ser tomada como atividade discursiva, para que a língua seja tomada como prática viva. Em uma prática viva de linguagem, os alunos esperam ser “lidos”, ao contrário do que acontece quando a linguagem na escola é uma prática artificial e os textos são corrigidos apenas. Nesta lógica artificial, a escola elimina a atitude responsiva - ativa do aluno, já que ele pouco pode esperar de resposta efetiva dos professores. A leitura e a produção textual ficam coisificadas (Bakhtin, 2006), ou seja, as práticas pedagógicas conteudistas separaram a palavra do diálogo e, assim, os alunos nada esperam da palavra, não aprendem a capturar os fios dialógicos que tecem seus discursos implícitos. Na construção dos significados, a linguagem é complexa, não-linear, múltipla, com várias nuanças. Por isso, no processo de ensino, a mediação entre a escrita e a construção de significados é uma tentativa de captar um pouco de nós, um pouco da nossa linguagem, é mediar para a vida. Kramer (2000:102) se propôs a estudar o que liam e escreviam os professores, entrevistou e ouviu depoimentos de muitos colegas, que, quando jovens, jogaram fora, queimaram, rasgaram textos que escreveram. Muitos desses professores relataram histórias de desprazer, imposição, obrigatoriedade, de vontade de não ler. A partir disso, a autora trouxe alguns questionamentos importantes, que nos auxiliaram a conduzir e refletir, à luz de Bakhtin (2003 e 2006), Geraldi (1993, 1984), Possenti (1994, 1996), Colello (2007), Ribeiro (2003), Barthes (1988,2004, 2006), PCN’s de Língua Portuguesa, sobre uma possível proposta significativa de leitura do “paradidático” e de escrita pós-paradidático, realizada no nono ano de uma rede de ensino particular:

A escola produz não-leitores ? perguntei em outro momento. A leitura na escola se fecha na leitura da escola, onde notas, “provas de livros”, fichas e apostilas com resumos de histórias ocupam o tempo e o espaço que poderiam ser destinados a simplesmente ler e desfrutar o livro? A aversão pelos textos literários, pela literatura, é ensinada na escola? terá sido a própria escola que ensinou a temer a folha em branco e a tremer diante dela? Afinal, na escola a gente escreve para ser lido ou para ser corrigido? Será que temos tido a possibilidade de ler e de escrever e de aprender com essas práticas? será que temos entendido que a escrita desempenha um papel central na constituição do sujeito?

Apesar das contribuições expressivas no campo da leitura e da escrita (, Emília Ferreiro, Roger Chartier, Jorge Larossa, Certeau, Magda Soares, Ângela Kleiman, e muitos outros) tanto no âmbito teórico como no âmbito das propostas pedagógicas na educação infantil, no ensino fundamental, na educação de jovens e adultos, no ensino superior, infelizmente, muitas instituições escolares têm uma concepção educativa solidificada em compreensões distorcidas da realidade, longe da tentativa da condução do aluno a uma humanização das relações sócio-afetivas e culturais na sociedade capitalista, que resgate o reencontro do homem com sua própria liberdade.

A MEDIAÇÃO

A sala de aula é o palco do professor. É onde ele tem a oportunidade de apresentar ao aluno a experiência leitora e a experiência escritora como ato, prática e forma, engendrando, nas palavras de Kramer (2000), uma “reflexão sentida” de um coração informado sobre aspectos fundamentais da vida humana. A leitura deve provocar a ação de pensar e sentir criticamente as coisas da vida e da morte, os afetos e suas dificuldades, os medos, sabores e dissabores, que permitem conhecer questões relativas ao mundo social. Uma mediação conteudista, artificial e tarefeira conduz a uma das pragas da leitura, refletidas por Possenti (1994:31) que vão ao encontro do que seja didatizar o paradidático:

Praga mesmo é a resposta certa, a leitura única, a leitura baseada na autoridade, não no trabalho interpretativo. Se isso é danoso na formação científica, imagine-se na literatura, que, mais que outro campo, não quer dar uma resposta. O que significa tal passagem de tal poema? Dificilmente se pode fazer uma pergunta mais idiota do que esta. O que não significa que o poema não signifique nada. Pelo contrário: ele significa muito, muitas coisas, às vezes ele significa mais pelo que é do que pelo significa. O que não se tem é o direito de exigir uma única resposta, uma única leitura. Praga praguenta: a leitura única, uniforme, para todos da mesma série no mesmo ano no mesmo país. O lugar por excelência dessa praga é a ficha de leitura. Se eu tivesse poder, rogava uma praga a seus inventores, divulgadores e usuários. Pior ou tão grave quanto esta última praga é seu avesso: qualquer leitura serve, o que gabarita o ignorante, num país de analfabetos, a defender o que diz escorado em afirmações modernosas do tipo “mas esta é minha leitura”. Com isso sente-se isento do esforço de aprender e comparar e completar sua enciclopédia, seus critérios de leitura.

Didatizar o “paradidático”, portanto, é o professor fazer da leitura momento de prova, de questionários, de interpretação única e “autorizada” pelo manual de respostas, exercícios de metalinguagem com o texto: circule na página tal dois adjetivos, duas orações subordinadas... No entanto, o professor mediador, que ancora a leitura e a escrita, contextualizando-as, marcando os recursos lingüísticos utilizados pelo autor, fazendo intertextos com os diversos gêneros do discurso, se utilizando das múltiplas linguagens, proporciona ao aprendiz atividades lingüísticas como momentos de imersão libertadora na e pela linguagem. Do contrário, recursos lingüísticos podem ser um dos entraves mais significativos para a amplitude do pensamento crítico e transformador, já que, quando a linguagem é concebida pelo seu sistema lingüístico de estrutura abstrata, coloca os indivíduos numa posição passiva, submissa e resignada, não possibilitando a ruptura dos padrões ideológicos.

O PARADIDÁTICO

A palavra “paradidático” traz em seu bojo um estigma de escolarização do livro, ou seja, a marca pejorativa dessa palavra está intrinsecamente relacionada às práticas pedagógicas, que não produzem leitores e se fecham na leitura da escola com atividades tarefeiras, artificiais e não-significativas de linguagem. Isso justifica o uso de aspas, ao usarmos a palavra paradidático. Os espaços escolares poderiam privilegiar vivências significativas com essa leitura sugerida (ou “imposta”?) pelo professor, fazendo uso da oportunidade de trabalho com as múltiplas linguagens e com múltiplos olhares. No entanto, a prática de leitura no banco escolar está submetida aos objetivos pedagógicos adotados pelo professor. Logo, a metodologia de ensino desenvolvida pelo docente estará submetida à sua concepção de leitura e de escrita. Da mesma forma, desenvolverá todos os trabalhos com a linguagem, principalmente em relação ao ensino de gramática. No contexto da escola tipicamente tradicional, a didatização do livro paradidático não oportuniza dialogia e responsividade, assim como aprendizes- sujeitos se constituírem e adquirirem autoria. Tal atividade pedagógica não concebe o homem um ser social, que, no processo de evolução sócio-histórico de produção e reprodução, se utiliza da linguagem como ferramenta de mediação, compreensão do mundo e também de construção e reconstrução deste mundo. Além disso, os dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF), além de outros estudos sobre a realidade educacional (Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e o Exame Nacional de Cursos), podem comprovar que a didatização das práticas do ler e do escrever na escola estão “produzindo” leitores e escritores não proficientes, incapazes de atividade significativa, social e eficaz de linguagem. Como exemplo mais específico, para essa comprovção, temos a pesquisa divulgada pelo Instituto Paulo Montenegro, com dados levantados pelo Indicador de Alfabetismo Funcional INAF - 2005, que mostra que a escolaridade do brasileiro aumentou nos últimos anos, mas que apenas 26 % da população brasileira consegue ler, compreender e interpretar criticamente usando a língua escrita. Dessa forma, os alunos que fazem parte dessa escola tradicional e terefeira estão se tornando vítimas de uma prática lingüística artificial, que é tida como um recurso derivado da estrutura alienante, que limita a liberdade e dissimula a realidade, determinando aos sujeitos o caminho que deve ser seguido. No entanto, além da responsabilidade da prática pedagógica, não podemos desconsiderar a responsabilidade social (diferença social, má distribuição de renda, falta de recursos materiais e humanos nas escolas, falta de acesso à cultura e à informação, falta de bibliotecas, de acesso à internet e à informática, fome, falta de condições reais de inserção na sociedade urbano-industrial e falta de emprego) que não deve ser mascarada pelo discurso alarmante da mídia sobre os resultados negativos das habilidades leitoras e escritoras da população brasileira. Assim, nossa preocupação, em relação ao “paradidático”, era extirpar seu estigma da nossa proposta pedagógica, por meio de uma metodologia de trabalho:

Ler e escrever são trabalhos. A escola é um lugar de trabalho. Ler e escrever são trabalhos essenciais no processo de aprendizagem. Mas não são exercícios. Se não passarem de exercícios eventuais, apenas para avaliação, certamente sua contribuição para o domínio da escrita será praticamente nula. (Possenti,1996:49)

Com base no princípio de que a comunicação verbal não pode ser compreendida e trabalhada fora de sua ligação com uma situação concreta, numa perspectiva de totalidade, integrada à vida humana, criamos uma situação pedagógica em duas salas do nono ano de uma escola particular, com alunos de 13 e 14 anos para trabalharmos o livro paradidádito adotado pelo professor: O grande mentecapto, de Fernando Sabino. Para que pudéssemos fugir do paradidatismo, os textos (o paradidático, poemas, músicas, filme, fotografias, telas) selecionados e trazidos para vivência em sala de aula pelo professor, contemplaram as definições de Bakhtin (2003:261) dos gêneros discursivos orais e escritos primários (simples, da comunicação cotidiana: diálogos cotidianos, cartas, etc.) e dos gêneros discursivos secundários (da comunicação produzida a partir de códigos culturais elaborados, como a escrita: romance, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, etc.), e seguiram o pressuposto desse mesmo autor, que ressalta os diversos campos da atividade humana estarem ligados ao uso da linguagem, compreendendo o caráter e as formas desse uso multiformes nos campos da atividade humana. Tendo em vista todos os pressupostos teóricos expostos e encarando a importância da leitura do paradidático (já que deve existir este ritual: leitura do paradidático para prova!) como ação significativa de linguagem, é que se desenvolveu uma metodologia de leitura para o nono ano de um colégio particular, sem desconsiderar a complexidade dos processos do ler e do escrever, do contexto e da singularidade dos alunos e do colégio. Buscaram-se alternativas e respostas, que fugissem de jogar a culpa em professores, alunos e escolas, e assumissem uma metodologia de compromisso com as ações leitora e escritora.

DA TEORIA À PRÁTICA PEDAGÓGICA As aulas com os alunos adolescentes dos nonos anos eram espaços de leituras significativas, onde era trazida a escrita de fora para dentro da escola, sem ignorar a natureza dos discursos. Eram sempre tentativas (e muitas conquistas significativas) de vivenciar a linguagem, de ter nas leituras oportunidade de diálogos talvez jamais realizados e/ou realizáveis. Eram âmbitos de convite: convite a conhecer o mundo, convite a visitar lugares, convite a conhecer pessoas e coisas diferentes, convite a descobrir sentimentos fecundos de auto-conhecimento, (re)conhecimento de mundos: internos e externos. No entanto, alguns alunos se dispersavam, ou pelo texto ser menos significativo para estes, ou pela linguagem não atrair, ou por considerar aquele momento da leitura monótona, enfim pela complexidade da sala de aula, onde há dimensões lingüísticas, emocionais, cognitivas, socioeconômicas e culturais que interferem na dinâmica em sala de aula. Segundo Barthes (2004) um texto pode elaborar um espaço de puro prazer e criar caminhos para a arte do diálogo, no qual o desejo é o ponto de partida para que o leitor desfrute do que lhe é oferecido pelo autor. Esse pressuposto nos orientou para que os alunos, sempre que possível, fossem capturados pelos fios do prazer, do desejo, ou seja, do sentir-se com o corpo perturbado. Fugindo de ressaltar tendências genéricas sobre o ler e escrever dos alunos do nono ano, buscou-se analisar a singularidade de cada aluno e observar sua leitura e sua escrita pós a metodologia desenvolvida. O objetivo da metodologia desenvolvida foi uma proposta de ensino de leitura e de escrita, que estava longe de treinar o aluno nas técnicas de escritura: o uso adequado das convenções da escrita (ortografia, concordância, acentuação, etc.) e longe de didatizar os textos para provas e exercícios mecânicos de interpretação. O objetivo principal foi permitir ao aluno ter na sua produção e na sua leitura, todas as emoções do corpo presentes, mescladas, enroladas: o fascínio, a vacância, a dor, a volúpia... (Barthes, 1988). A leitura deveria produzir um corpo perturbado, mas não fragmentado. Os textos, portanto, eram lidos e trabalhados na íntegra, já que o trabalho com trechos de livros, “pedaços de poemas” tornam-se pedaços de vida, sensações e vivências fragmentadas. As múltiplas linguagens foram recursos importantes para dialogar com o paradidático (agora despido do sentido pejorativo e assumido como literatura de qualidade) sugerido aos alunos do nono ano: O Grande Mentecapto, de Fernando Sabino. Durante um mês, fizemos leitura compartilhada em sala e espaçamos momentos de intertextualidade e interdiscursividade da obra lida com outros textos – as múltiplas linguagens:

ƒ verbais (poemas, músicas – cantadas ao acompanhamento do violão pelos próprios alunos em sala , textos informativos, filme baseado no livro O grande Mentecapto); ƒ não-verbais (telas e fotografias). Os momentos de leitura do livro e dos textos trazidos pelo professor, foram mediados para compreensão dos diálogos dos autores, para momento de atividade de produção de sentidos, momentos de ouvir as contrapalavras do aluno-leitor e fornecer contrapalavras que outros leitores deram aos mesmos textos vivenciados (Geraldi, 1993), sempre sem a preocupação de cobrar na prova a leitura “exigida”. O professor proporcionou o encuentro3 entre cada objeto-de-conhecimento e o aluno, lançando-o ao mundo da linguagem, fazendo-o desfrutar dos textos verbais e não- verbais, para que sentisse necessidade e fosse capaz de escrever/registrar sua experiência leitora. Assim foram nossos muitos momentos: momentos de recompor a caminhada interpretativa dos alunos-leitores e momentos de autoria (na fala e na escrita de pequenos textos: indagações, interpretações, opiniões, intertextualidades). Dessa forma, o trabalho com as múltiplas linguagens foram fundamentais, para que nossa caminhada interpretativa pudesse se transformar em textos com autoria, dialogia e engajamento proficiente com a linguagem. Nossos momentos conduziam a refletir, pensar e sentir como a personagem Geraldo Viramundo, que era dotado de um sentimento do mundo e de um ideal de proteção dos fracos e dos humilhados, de consertar “Los tuertos” de que a vida está cheia, um D. Quixote mineiro, cujas aventuras e desventuras lhe advêm da sua honestidade, do seu ideal, de seu senso da liberdade e da justiça. Por isso, como D. Quixote, sofre, apanha, é ridicularizado e morre defendendo um ideal de justiça e liberdade, ao se fazer o chefe duma revolta de presos, de loucos, de mendigos e de prostitutas. Concomitante, dialogamos com os mesmos sentimentos do poeta Vinícius de Moraes, em a Rosa de Hiroxima; com os mesmos sentimentos de Sebastião Salgado ao fazer a arte fotográfica do livro Êxodos, marcados na apresentação escrita, dotada de um lirismo engajado: cada fotografia tinha sua história, que era marcada pelo autor. Eram fotografias e histórias de descaso, desumanidade, atrocidade, apego religioso. De Pablo Picasso, apreciamos e exploramos sua tela Guernica, que nos fez perceber a realidade: a arte, nas palavras de Picasso, é uma mentira que nos faz perceber e sentir a realidade. Cândido Portinari, com Família de Retirantes dialogou com os retirantes de Sebastião Salgado: fotografia de refugiados de guerra, do livro Êxodos. Kevin Carter, com sua fotografia, ilustrou mais as condições desumanas de vida. Os fios dialógicos das obras marcavam atitudes e pretensões engajadas, analisamos os discursos dos autores suas entrevistas sobre a produção artística analisada. Olhamos por trás dos olhos. Para que esses fios dialógicos pudessem ser significativos e portadores de sentido, de acordo com Kleiman e Moraes (1999) era fundamental que o aluno se engajasse cognitivamente para mobilizar seus conhecimentos e fazer sentido. Esse engajamento, segundo as autoras, depende da relevância do assunto e da reelaboração do conhecimento que se consegue fazer, por isso foi necessário orientar o aluno nas leituras e jamais abandoná-lo ao sabor de interpretações

3 Termo utilizado por A.L.Quintás, apud Perissé, 2004. individuais, tantas vezes cega pela ausência de mecanismos de revisão de idéias e de recriação de sentidos. Portanto, analisamos:

ƒ contextualização dos textos verbais e não-verbais; ƒ ativação do conhecimento prévio; ƒ construção dos mapas textuais; ƒ leitura individual com objetivo pré-definido; ƒ verificação de hipóteses de leitura; ƒ situação de comunicação (quem escreveu? Para quem? Para quê? Onde? Como isso se manifesta?); ƒ tipo de texto (Gênero).

Fomos criando em sala de aula um clima de responsividade e dialogia, na qual educador e educandos falavam, escutavam, liam e escreviam. Exercitávamos nosso potencial criativo e transformador, conscientes do lugar onde estávamos e dos horizontes que podíamos vislumbrar. Os textos lidos e explorados, portanto, foram criando oportunidade de experiência de vida, já que formamos um todo significativo, concretizando nossas leituras com as experiências cotidianas. Foi permitido ao aluno sair de um estado de estagnação e ser capturado pelos fios dialógicos, que tecem um processo permanente de aprender a aprender e de conhecer o conhecimento, navegando de portos de passagem pelo mundo lingüístico. (Geraldi, 1993) Seguindo as orientações de Geraldi (1993), reconstruímos a caminhada interpretativa do leitor, observando as “pistas” fornecidas pelos textos, para descobrirmos o porquê daqueles sentidos terem sido construídos, sempre analisando as variáveis sociais, culturais e lingüísticas que tinham sido acionadas pelo aluno para sua interpretação, para suas contrapalavras. Após a merecida atenção às contrapalavras do aluno, logo eram trazidas as contrapalavras que outros leitores (outros alunos e professor, crítica literária) deram aos mesmos textos.

O RESULTADO

Para muitos alunos, nossas aulas eram “matança de aulas”. Nunca se davam conta que estávamos em uma aula de língua materna, uma aula de Português. Talvez esse clima “informal”, longe da prática tradicional de aula de Português e de “paradidático”, tenha motivado muitas leituras e produções escritas vivas e sentidas. Todas as produções textuais (sessenta e duas – duas salas de aula do nono ano) foram muito significativas, pois mostravam resultados diferentes de outras produções escritas. O resultado do trabalho foi levado à Mostra, realizada naquele ano no colégio, por mim e pela professora de artes Graça Girardi4. Os alunos fizeram uma performance :

4 Professora do Colégio Uirapuru e mestranda pela UNISO (2007). ƒ encenação de um capítulo do livro; ƒ cenas projetadas no telão da bomba de Hiroxima e poema A -Rosa de Hiroxima, de Vinicius de Morais, cantada no ritmo de , do grupo Secos e Molhados e tocada no violão pelos alunos. As imagens da bomba projetadas foram transformadas em árvores, flores pelos alunos no palco. ƒ poemas de Drummond declamados: Hipótese, José e Congresso Internacional do Medo.

A produção textual foi escolhida por ser um exemplo significativo de uma aluna-autora, que, apesar de fazer sempre todas as leituras e propostas de produção textual, trazia em suas produções uma escrita “escolarizada”, fechada em um molde de redação, desligada de sua vida, de seu conhecimento das melodias (poesias) cantavas e tocavas no seu violão. Sua escrita tinha um rigor formal e uma preocupação excessiva com as sintaxes de exceção5. Após as práticas leitora e escritora desenvolvidas em aula, sua escrita foi sentida, foi de libertação e de autoria. Muito do que dialogamos e apreciamos: passagens do livro e características da personagem Geraldo Viramundo, telas, fotografias e depoimentos dos fotógrafos, encontramos na sua produção escritora. É possível enxergarmos as fotografias de Kevin Carter e de Sebastião Salgado ilustradas em seu texto:

1. Kevin Carter6

2. Sebastião Salgado7

5 “Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção”, trecho do poema Poética, de , cujo lirismo clama por autoria sentida, viva e de libertação. 6 http://farias.wordpress.com/2007/03/18/foto-de-kevin-carter-em-1993/, acesso em junho/2007. 7 http://www.cuervoblanco.com/GALERIA/salgado.html , acesso em junho/2007. Pela pontuação organizada pela aluna, sentimos o cansaço e a reflexão de Geraldo Viramundo (personagem do livro O Grande mentecapto), que marcam os últimos capítulos do livro, em que Geraldo já estava cansado fisicamente e emocionalmente da vida desigual, desumana, descabida em sociedade e peregrina pelas cidades mineiras sem se dar conta de seus percursos e percalços. Sua peregrinação é uma metáfora da via sacra de Cristo, pois Geraldo sempre protegeu os desprotegidos e sempre tentou fazer justiça. Lutou por igualdades, humanidade e morreu injustiçado. A produção textual dessa aluna, cuja proposta era um monólogo interior, assumindo a personagem de Geraldo Viramundo, está repleta de sensibilidade, literatura e dialogia:

UM ÚLTIMO OLHAR

Já era hora de sair de mais uma cidade... Mas eu queria ir além das fronteiras que me limitavam... Andei, sempre seguindo em frente. Acabei passando por cidades pelas quais eu já havia passado, vi pessoas que já conhecia... Já andava há dias, talvez meses... Sempre parando em alguns lugares para me restabelecer... Durante minha caminhada fui notando a mudança no cenário. 0 clima foi ficando mais quente e seco; já não havia mais aquele ar de cidade grande... As ruas eram de terra; eram poucas as casas, e as poucas ainda eram distantes umas das outras...O lugar era meio deserto, sem vida. Mas foi em meio aquela vastidão seca e morta que eu pude ver uma família. Diferente das famílias que eu estava acostumado a ver... Aqueles ali eram muito magros, bem morenos, talvez castigados pelo sol daquele lugar. As poucas roupas que usavam eram rasgadas e os pés estavam descalços. A mãe tinha algo nos braços, talvez um bebê, pelo tamanho... Eu estava longe demais deles para enxergar algo com muitos detalhes... Não quis me aproximar... Eles podiam estar longe de mim, mas mesmo assim o sofrimento era nítido ... Eu não queria me envolver, era tudo muito triste. Continuei observando, até que algo me chamou a atenção ... Uma das crianças foi deixada para trás, a família foi seguindo em frente. Permaneci atento para ver o que estava acontecendo. A criança sozinha caiu no chão, provavelmente suas perninhas já não suportavam o peso do corpo, corpo o qual ficou encolhido naquele chão de terra, ao longe chegava parecer uma pedra... De repente, um pássaro preto e grande pousou próximo à criança. Ficou à espera...À espera do quê, meu Deus ?! Prefiro nem pensar... Eu não podia ver aquilo e não me mexer. Eu precisava fazer alguma coisa. Corri até aquela criança ... Peguei-a no colo ...Meu Deus! Aquele corpinho era tão pequeno, tão magro, tão frágil !! Aquele ser tão pequeno em meus braços virou seu rostinho sofrido, procurando com as olhos tristes e sem vida o meu olhar envolto em lágrimas. Foram poucos os segundos que nos olhamos, foi um último olhar... até que aquela criança deu um último suspiro e fechou os olhos num misto de dor e alívio. Aluna do nono ano

CONCLUSÃO A vida humana ou é um encontro ou não é nada . Martin Buber8

Concebermos o ensino da leitura e da escrita como uma experiência educativa (Kramerin:Zaccur, 2000:119), uma experiência de vida com nossos alunos é trazer a escrita e a leitura de fora da escola, deixando-a assumir uma dimensão infinita. É oportunidade de constituir um ser humano social, um indivíduo, dando-lhe oportunidade de diálogos, sem medo de registrar na escrita suas experiências leitoras e cometer um “erro” grave. Para muitos, o texto formal ou a literatura clássica servem de ameaça, como se os textos dissessem “só os bons leitores conseguem uma leitura “ideal” e assim é a escrita formal que amedronta. Nesse sentido, a literatura é capaz de resgatar esse leitor e escritor medroso da linguagem. Só no sonho, na ficção ou no verso nos permitimos o risco, a contravenção do estabelecido. Intertextos, poesia e arte exercitam no leitor o aprendizado da liberdade, mas, para que essa arte possa servir de proposta de libertação e integração do ser com os outros e consigo mesmo, é preciso que a sensibilidade e a fruição sejam desenvolvidas, para que o leitor não se feche diante do mundo. O homem insensível não capta o mundo na sua universalidade, mas apenas de modo unilateral e superficial. Dessa forma, ele terá uma visão restrita e individualista, solidificando nele uma compreensão distorcida da realidade. O espaço escolar é complexo, no entanto, ao professor fica a mediação, o propiciar o encuentro do aluno com a leitura e com a escrita: com a linguagem, articulando em sala de aula uma linguagem dialógica da arte e da realidade, despindo-na de qualquer traição que distorça a vida do seu percurso real, trazendo ao aluno um contra-discurso9 ao discurso imposto pela sociedade urbano-industrial. É uma constante: aprender a desaprender, tirar as vestes que a sociedade nos impõe como padrão de ensino, de felicidade, de sujeito e de vida, embora seja complexo lançarmos nossos olhos além dos limites da convenção social e desnudar a alma. E assim, deixo versos que muito conduzem o meu percurso pedagógico:

Deste modo ou Daquele Modo (XLVI)

Procuro despir-me do que aprendi Procuro esquecer o modo de lembrar que me ensinaram, E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, Mas um animal humano que a natureza produziu.

8 Citado por PERISSÉ, Gabriel. Filosofia, ética e literatura:uma proposta pedagógica. São Paulo: Manole, p.23, 2004. 9 O mundo atual é movido pelo discurso; nosso trabalho é oferecer o “contra-discurso”, diz in SANTOS, Milton. (2000). Território e sociedade: entrevista com Milton Santos. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, p.127. E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem, Mas como quem sente a Natureza, e mais nada. E assim escrevo, ora bem, ora mal, Ora acertando com o que quero dizer, ora errando, Caindo aqui, levantando-me acolá, Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.

Ainda assim, sou alguém. Sou o descobridor da Natureza. Sou o Argonauta das sensações verdadeiras. Trago ao Universo um novo Universo Porque trago ao Universo ele próprio. Alberto Caeiro10

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal.São Paulo: Martins Fontes, 2003 ______.Marxismo e filosofia da lingagem. São Paulo: Editora Hucitec, 2006. BARTHES, Roland. O rumor da língua.Tradução Mario Laranjeira, São Paulo:Editora Brasiliense, 1988. ______. A aula.Tradução Leyla Perrone – Moisés.São Paulo: Cultrix, 2004. ______. O prazer do texto.Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2006. COLELLO, Silvia. A escola que (não) ensina a escrever.Paz e Terra:São Paulo, 2007. ______. A Pedagogia da Exclusão no Ensino da Língua Escrita. http://www.hottopos.com/videtur23/silvia.htm acesso em junho,2007. GERALDI, J. W. (org.) O texto na sala de aula – leitura e produção.Cascavel: Assoeste, 1984. ______. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993. KLEIMAN, Angela e MORAES, Silvia. Leitura e interdisciplinaridade: tecendo redes nos projetos de escola. Campinas: Mercado de Letras, 1999. KRAMER, S. Leitura e escrita como experiência – notas sobre seu papel na formação.In ZACCUR, E. A magia da linguagem. , 2000. PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa, Brasília, Secretaria de Educação Fundamental, 1997. PERISSÉ, Gabriel. Filosofia, ética e literatura:uma proposta pedagógica. São Paulo: Manole, 2004. POSSENTI, S. . Pragas da leitura. Leitura, escola e sociedade. São Paulo, FDE, Série Idéias n.13, páginas 27-33, 1994. ______.Por que (não) ensinar gramática na escola.Campinas, SP: ALB: Mercado de Letras, 1996. RIBEIRO, Vera Masagão (org.) Letramento no Brasil: reflexões a partir do INAF. São Paulo: Global, 2003 SABINO, Fernando. O Grande Mentecapto.Record – Rio de Janeiro, 1979. SANTOS, Milton. (2000). Território e sociedade: entrevista com Milton Santos. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, p.127.

10 O Guardador de rebanhos, de Alberto Caeiro.