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DROGADIÇÃO, SOFRIMENTO E : DIMENSÕES DE ESTILO EM VALE TUDO E EM VERDADES SECRETAS 1

Drug addiction, suffering and soap operas: style dimensions in Vale Tudo and Verdades Secretas

Drogadición, sufrimiento y telenovela: dimensiones de estilo en Vale Tudo y Verdades Secretas

Mariana Almeida 2, 3

RESUMO Utilizando o melodrama como uma de suas principais bases de construção narrativa, a telenovela atua como espaço privilegiado de problematizações sociais do país (HAMBURGER, 2011) e de sujeitos em situação de sofrimento (LAGE, 2017), a partir de valores morais, do apelo realista e da experiência visual e sonora que atuam como aliados no processo. Nesse contexto, a drogadição, com suas consequências internas e externas aos sujeitos viciados, tem sido tema frequente dessas narrativas. Partindo das possibilidades analíticas do estilo televisivo, constituído por aspectos materiais e imateriais que englobam condições e possibilidades diversas no texto televisivo (ROCHA, 2016), propomos um ensaio analítico sobre os modos de construção estilística do sofrimento associado às experiências de drogadição de duas personagens: Helena, de Vale Tudo (1988), e Larissa, de Verdades Secretas (2015). Compreendemos que, com a leitura nuançada dessas produções, as peculiaridades de estratégias comunicativas do sofrimento de dependentes químicos na ficção televisiva brasileira tornam-se mais evidentes e

1 Este trabalho é resultado de pesquisa realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). 2 Doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCom-UFMG). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia (PPGCLC-Unama). Graduada em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] . 3 Endereço de contatos do(s) autor(es) (por correspondência): Universidade Federal do Pará, Instituto de Letras e Comunicação. Av. Augusto Correa, 01, Guamá. CEP: 66075-110. Belém, PA – Brasil.

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acompanham mudanças e/ou permanências formais, sensíveis, sociais e morais ocorridas ao longo dos quase 30 anos que separam as personagens.

PALAVRAS-CHAVE : Telenovela, drogadição, sofrimento, estilo televisivo.

ABSTRACT Using the melodrama as one of its main bases of narrative construction, the soap opera acts as a privileged space of social problematizations of the country (HAMBURGER, 2011) and of subjects in a situation of suffering (LAGE, 2017), based on moral values, the appeal realistic and visual and sound experience that act as allies in the process. In this context, drug addiction, with its internal and external consequences to the addicted subjects, has been a frequent theme of these narratives. Based on the analytical possibilities of the television style, constituted by material and immaterial aspects that encompass different conditions and possibilities in the television text (ROCHA, 2016), we propose an analytical essay on the ways of stylistic construction of suffering associated with the experiences of drug addiction of two characters: Helena, from Vale Tudo (1988), and Larissa, from Verdades Secretas (2015). We understand that, with the nuanced reading of these productions, the peculiarities of communicative strategies of the suffering of chemical dependents in Brazilian television fiction become more evident and accompany changes and / or formal, sensitive, social and moral changes that occurred during the almost 30 years that separate the characters.

KEYWORDS : Soap opera; drug addiction; suffering; television style.

RESUMEN La telenovela actúa como espacio privilegiado de problematizaciones sociales del país (HAMBURGER, 2011) y de sujetos en situación de sufrimiento (LAGE, 2017), a partir de valores morales, de la apelación realista y de la experiencia visual y sonora que actúan como aliados en el proceso. En ese contexto, la drogadicción, con sus consecuencias internas y externas a los sujetos viciados, ha sido tema frecuente de esas narrativas. A partir de las posibilidades analíticas del estilo televisivo, constituido por aspectos materiales e inmateriales que engloban condiciones y posibilidades diversas en el texto televisivo (ROCHA, 2016), proponemos un ensayo analítico sobre los modos de

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construcción estilística del sufrimiento asociado a las experiencias de drogadicción de dos personajes: Helena, de Vale Tudo (1988), y Larissa, de Verdades Secretas (2015). Comprendemos que, con la lectura nunciada de esas producciones, las peculiaridades de estrategias comunicativas del sufrimiento de dependientes químicos en la ficción televisiva brasileña se vuelven más evidentes y acompañan cambios y / o permanencias formales, sensibles, sociales y morales que se producen a lo largo de los casi 30 años que separan a los personajes.

PALABRAS CLAVE : Telenovela; drogadicción; sufrimiento; estilo televisivo.

Recebido em: 15.11.2018. Aceito em: 16.12.2018. Publicado em: 16.01.2019.

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Introdução necessidade de livrar-se daquela vida

marginal. Com a pele e os cabelos ressecados, Essa é uma das tantas cenas de lábios machucados, dentes apodrecidos, sofrimento causado pela dependência roupas sujas, o corpo esquálido, Larissa é química e experienciado por Larissa, expulsa de uma loja e, ao sair, depara-se personagem interpretada por Grazi com um espelho: desde que passou a Massafera na telenovela Verdades morar na rua, em meio à Cracolândia , Secretas (2015). Neste trabalho, nos aquela era a primeira vez que ela propomos a analisar a construção enfrentava sua própria imagem devastada estilística do sofrimento por drogadição pelo crack . A personagem, que sustentava em , elegendo dois objetos uma elevada autoestima e um orgulho empíricos pertencentes a duas pela sua beleza e profissão, choca-se com temporalidades distintas da televisão: o que vê diante de si. Em primeiro plano, Helena Roitman, personagem alcoólatra chora com desespero tocando em sua de Vale Tudo (1988) e a própria Larissa, pele e em seu cabelo. Na trilha que viciada em crack. A partir delas, buscamos acompanha a cena, o som de violinos compreender a construção estilística do passa a compor com o piano a sofrimento associado às experiências de complementação da dramaticidade da drogadição e como isso está situação da personagem. Larissa sai da intrinsecamente relacionado ao papel loja consternada, em slow motion anda social, moral e cultural ocupado pela abatida pelo o que viu. Cortes suaves telenovela e ao perfil melodramático que com fades em branco mostram as ela carrega em sua narrativa. expressões aflitas de Larissa que inicia, a Para tanto, discutimos sobre a relação partir de então, um processo de entre telenovela e melodrama, sobre retomada de consciência de si e da como ambos atuam na abordagem de problemas sociais. Em seguida, partimos

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para a compreensão da retórica do e personagem, dando ênfase à vida sofrimento do sujeito em telenovelas e o cotidiana orientada pela família e aos diálogo que estabelece com a valores burgueses dominantes drogadição. Para o ensaio analítico dos (HAMBURGER, 2007). Principalmente a objetos, utilizamos as possibilidades partir do final da década de 1960, as metodológicas do estilo televisivo, no novelas passaram a exagerar na relação que fornecem de base para a observação íntima com o mundo exterior, com crítica do composto imagem/texto/som. constantes referências à temporalidade Acreditamos que esse movimento nos contemporânea, atuando assim como permite uma leitura mais nuançada das mediadoras da vida pública e privada dos peculiaridades da linguagem televisiva telespectadores. referentes às construções do sofrimento Ao discutir sobre o apelo realista que associado ao consumo excessivo de compõe essas narrativas audiovisuais, drogas, tornando mais evidentes as Feldman (2008) destaca o papel que elas possíveis mudanças e/ou permanências têm no “reengajamento” e “reintegração” formais, sensíveis, sociais e morais dos sujeitos à realidade, em que quanto ocorridas ao longo dos quase 30 anos mais a vida cotidiana é “roteirizada, que separam as personagens. ficcionalizada e virtualizada”, mais há o anseio pela experiência do real e o Telenovela, Melodrama e a Abordagem choque capaz de provocar (JAGUARIBE, de Problemas Sociais do País 2007 apud FELDMAN, 2008), sendo Constituindo-se como espaço crescente o valor agregado ao tipo privilegiado de abordagem e cruzamento realista-naturalista. Nesse ponto, a autora de temáticas ancoradas no real destaca a atuação da Rede Globo que (HAMBURGER, 2011), a telenovela foi tem incorporado e desenvolvido os cada responsável por diluir os limites entre vez mais intensos e eficazes efeitos de público e privado, real e ficcional, pessoa real, “como forma de legitimar,

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ancorando na realidade, a construção cidades. Ao melodrama, no entanto, não fictícia e melodramática do conteúdo era permitida a utilização de diálogos e encenado” (FELDMAN, 2008, p. 64). Para canções. Por isso, o gênero constrói sua Hamburger (2007), a televisão no Brasil dramaticidade a partir do excess de traz à tona temáticas que estão em pauta gestos, expressões corporais, efeitos ou que precisam estar em pauta nos visuais e sonoros, sem espaço para ambientes públicos e privados. A sutilezas e/ou ambiguidades. Uma telenovela é o produto mais linguagem de fácil construção e representativo desse quadro, possuindo apreensão para uma ampla diversidade certa capacidade de abrir caminhos para de público. No período da Revolução a transformação social. (MOTTER, 2002; Francesa, o melodrama permitiu às BACCEGA, 2003). Em sua construção classes populares encenar suas emoções, histórica, o melodrama sempre esteve paixões e moralidades. “Antes de ser um presente como gênero componente meio de propaganda, o melodrama será o dessas narrativas. Para entender essa espelho de uma consciência coletiva” relação, faz-se necessário buscar na (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 164). Por ter origem e no desenvolvimento do sua origem em uma encenação não- melodrama aa razões que a permitem, a falada, o melodrama é caracterizado, constituem e a tornam presente até hoje. também, pela fisionomia peculiar dos Durante a ascensão da Era Moderna, personagens, que possibilita a tradução nos anos de 1700, o melodrama passa a da moral de valores e contra-valores ser encenado nos teatros europeus éticos a partir da aparência (MARTÍN- (XAVIER, 2003), com influência direta da BARBERO, 2009). literatura, em um momento em que o O melodrama fala aos olhos. É um teatro deixa de ser uma exclusividade das gênero encenado para fazer rir e chorar, classes privilegiadas e ocupa espaços para veicular o pranto “inspirando a públicos e populares nas grandes piedade e o temor necessários para atuar

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como catarse legítima de tais emoções” A Drogadição e o Sofrimento Fictício (OROZ, 1999). Para Xavier (2003), por ser Televisionado flexível e capaz de adaptar-se Desde o final da década de 1980, as rapidamente ao contexto histórico e telenovelas brasileiras vêm dividindo o social vigentes, o “melodrama formaliza espaço dedicado aos conflitos amorosos um imaginário que busca sempre dar e outros temas, como vingança e dramas corpo à moral, torná-la visível, quando entre pais e filhos, com questões e esta parece ter perdido os seus alicerces problemas referentes à dependência (2000, p. 85), perseguindo a virtude e química. Um quadro que acompanha a valorizando razões sentimentais, própria evolução dessa problemática no principalmente às relacionadas à família. país e no mundo. Desde a década de Devido à habilidade de cativar 1960, o alcoolismo é abordado como públicos a partir de narrativas e dramas doença e, consequentemente, incluído no morais, com apelos visuais e sonoros, e debate social, legislativo e de saúde de adaptar-se facilmente aos objetos pública. Com relação às drogas ilícitas, as modernos, o melodrama encontra em legislações que proíbem o uso só produtos como cinema e televisão começaram a surgir na segunda metade ambientes propícios para sua do século XX, incluindo o crack , que permanência, evolução e popularização. chegou aos centros urbanos do Brasil na Especialmente a telenovela – com década de 1990 e atualmente é um dos influência direta dos folhetins, do teatro, principais problemas sociais das das radionovelas - adota o gênero metrópoles brasileiras (LOPES, 2016). melodramático como expressão maior na As consequências geradas pela forma de contar essas histórias fictícias, dependência química, pelo consumo de costumeiramente pautadas no real, como álcool e drogas ilícitas, como o crack , tem é o caso da dependência química. sido tema frequente de discussão pública e privada no país. Nesse contexto, as

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telenovelas vêm incorporando a temática faixa das 21h, dedicada aos dramas e às suas tramas, ampliando a visibilidade conflitos sociais e morais mais densos. A da questão e possibilitando mais debates exceção é de Verdades Secretas , exibida e possíveis soluções. Ainda que o na faixa das 23h. alcoolismo tenha surgido pela primeira vez em telenovela no início da década de 1980, foi em 1988 com a personagem Helena Roitman (Renata Sorrah), de Vale Tudo , que o tema se tornou popular na teledramaturgia brasileira. Já o crack só foi abordado uma única vez em telenovelas, com a personagem Larissa (), de Verdades Secretas (2015). Abaixo, sistematizamos em um quadro os personagens adictos de telenovelas brasileiras, desde a década de 1980 até o ano de 2017 4. Por ele podemos observar que, especificamente em telenovelas da Rede Globo – maior produtora do gênero –, a temática da dependência química aparece, prioritariamente, em novelas exibidas na

4 Não há registros de acesso público sobre o histórico de abordagem da dependência química em telenovelas brasileiras. O quadro que demonstramos neste capítulo foi construído a partir de matérias e conteúdos publicados na internet, referenciadas na bibliografia.

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Quadro 1 : Personagens dependentes químicos em telenovelas brasileiras

Apesar das diferenças de gêneros e laços afetivos que foram perdidos ou tipos de abordagem, o que todos esses prejudicados. A mensagem é sempre a de personagens têm em comum é o valorização de uma vida saudável, da sofrimento intenso causado pelo vício, importância de procurar ajuda e da atingindo consequências limites de possibilidade de iniciar uma nova vida degradação física, moral e/ou social. Seja sem álcool e drogas, plenamente feliz, por via dos Alcoólicos Anônimos – o mais conforme os valores morais presentes na comum -, clínicas de reabilitação, igreja, sociedade. família, Narcóticos Anônimos etc., todos O sofrimento de vítimas, que neste ensejam a recuperação de uma vida física trabalho concentra-se mais e socialmente saudável, reconstruindo especificamente nas narrativas

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melodramáticas telenovelísticas que do sofrimento, num tipo de abordam a drogadição, não é algo reconhecimento de certa forma recente, mas sim uma construção pedagógico do padecimento do outro e relacional atravessada por séculos na da finitude humana (BIONDI, 2011), um história. Conforme dissemos modo fértil de tentar convocar, engajar e anteriormente, o melodrama passa a ser integrar o público, inspirando a piedade e encenado em praças públicas durante a o apelo compassivo diante dos dramas Revolução Francesa, época em que a físicos, morais e sociais vividos pelos questão social das classes populares, suas personagens e possibilitando aos misérias e anseios, emerge e empenha espectadores o prazer aliviador de seu papel revolucionário em torno da testemunhar um sofrimento que poderia construção de uma política da piedade, ser com eles, mas não é. Ou é, mas “quando os homens começaram a naquele instante está suspenso ou duvidar que a pobreza fosse inerente à atenuado pela experiência à distância, condição humana” (ARENDT, 1988). A pela contemplação dos outros partir de então, a exibição do sofrimento desafortunados pelo olhar daqueles que dos pobres, doentes, miseráveis, da não experimentam ou compartilham violência das guerras, dos trabalhadores diretamente o sofrimento e que podem das fábricas, passa a ser parte e pauta das ser, portanto, ao menos naquele discussões e espaços públicos modernos, momento, considerados como pessoas de tornados visíveis para um público sorte (BOLTANSKI, 2004). “Isto é, o caráter indistinto (BIONDI, 2011, p. 93). lacrimogêneo associado ao melodrama é Ao comunicar suas necessidades - baseado em uma piedade que busca das mais básicas às mais abstratas -, seus gerar prazer através da contemplação do desejos, angústias, revoltas diante das sofrimento dos protagonistas.” (APREA, injustiças e suas buscas por uma vida feliz, o melodrama encontra na retórica

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2011, tradução nossa) 5. Um prazer catártica. Esses seres sofredores, dignos potencializado pelas construções de de pena e compaixão, são alçados ao linguagem e imagem, articuladas a partir palco da exemplaridade, com os de recursos tecnológicos disponíveis, e acontecimentos de suas vidas colocados que produzem significados sobre o sob o holofote para tornarem-se sofrimento capazes de propor modos representativos de uma condição comum específicos de envolvimento da audiência partilhada por muitos e, portanto, com os sofredores. (CHOULIARAKI, 2008; merecedoras de atenção (VAZ e RONY, LAGE, 2016). 2011). Na corrente de estudos sobre os Nas narrativas ficcionais televisivas, a modos de sofrimento midiatizados, o do relação entre efeitos visuais e sonoros tipo melodramático e televisionado reforça a intensidade das emoções vividas reserva especial atenção, com o pelo sofredor e afeta o telespectador ao “desenvolvimento de regimes de imagens ponto de fazê-lo entrar em um regime de e textualidades ancorados no espetáculo credulidade ainda maior diante de uma da dor e do sofrimento do outro obra ficcional. Para Xavier (2003), se na vulnerável” (LAGE, 2017). Não à toa, essas trama a vítima é capaz de emocionar, “é vítimas sofredoras que compõem as porque sua condição ganha corpo e narrativas televisivas ganham significativa visibilidade por meio da performance que notoriedade - que desencadeia em oferece um modelo de sofrimento, (...) legitimidade. Trilhas sonoras, planos, que dramatiza seu percurso de aflições e ritmos, cores, figurinos, textos e o próprio expressões truncadas até o ponto encadeamento narrativo da trajetória do catártico em que finalmente é capaz de sofredor atuam nesse apelo à emoção ‘dizer tudo’” (XAVIER, 2003, p. 96). E esse ‘dizer tudo’ do qual o autor fala nos 5 No texto original diz: “Es decir, que el carácter lacrimógeno que se asocia con el melodrama se remete ao momentum do verdadeiro basa en un patetismo que busca generar placer a través de la contemplación del sufrimiento de los sofrimento, de acordo com Arendt (1963), protagonistas” (APREA, 2011)

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em que se explode em fúria, em que já fundamental para atingir e comover o não se é mais capaz de resistir e “cuja público a partir das intenções previstas força devastadora é superior e mais pelos criadores. Quando tratamos sobre duradoura do que o frenesi arrebatado da linguagens que se utilizam do composto mera frustração” (ARENDT, 1988, p. 88). imagem/texto/som para estabelecer O limite desse sofrimento, explosão conexões sensíveis com o público, onde catártica dos corpos e da trajetória os regimes de visibilidade e dizibilidade sofredora vivida nas telenovelas vigentes fornecem as bases do que será selecionadas para este trabalho, é, mostrado ou não, são as construções portanto, o critério de escolha dos formais e criativas componentes do eventos narrativos, e das cenas que os estilo que possibilitam afetar os compõem, experenciados pelas espectadores, torná-los parte da história personagens e analisados aqui a partir do que está sendo contada, testemunhar estilo televisivo. Como veremos a seguir, com seus próprios sentidos a trajetória é ele que, a partir dos esquemas e dos personagens e seus conflitos. O recursos dos quais dispõe, torna esse estilo seria, portanto, “(…) a porta de sofrimento por drogadição, e o auge que entrada para penetrarmos e nos atinge, algo mais composto, intenso, movermos na trama, no tema, no melodramático. sentimento – e tudo mais que é importante para nós” (BORDWELL, 2008, Estilo Televisivo e o Sofrimento por p. 58). Drogadição: um ensaio analítico No que se refere à televisão, estudar Estilo constitui-se como um conjunto estilo é compreender os aspectos de procedimentos estéticos e técnicas formais desses textos, seus esquemas e utilizados de forma sistemática e recursos de som e de imagem que significativa. Nas linguagens artísticas e desempenham funções e produzem midiáticas, o estilo é recurso sentidos, sendo a estrutura desse texto

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televisivo, a sua superfície, “a rede que analítica/funcional, a histórica e a mantém juntos seus significantes e estética. A primeira é utilizada como através do qual os seus significados são base para todo o processo. “Para discutir comunicados” (BUTLER, 2010), estilo, deve-se primeiro ser capaz de construindo as estratégias de apelos descrevê-lo”, argumenta o autor. Exige necessários para convocar e engajar a do pesquisador a desconstrução dos audiência. De acordo com Rocha (2016), elementos componentes da o estilo na televisão foi construído a materialidade televisiva (PEREIRA, 2015). partir de aspectos materiais e imateriais, A funcional diz respeito a como esses a partir não só das condições e elementos desconstruídos possibilidades técnicas, mas também descritivamente operam no texto sociais, históricas, econômicas e televisivo. Já a dimensão estética culturais. O texto televisivo, sendo parte apresentada pelo autor carrega em sua do regime de visualidade construção uma série de divergências contemporânea que não separa a visão históricas e conceituais que tensionam o (sentido fisiológico) dos modos de ver valor estético da televisão. Para Butler, a (construção social), é composto por televisão ainda não tem propriedades técnicas e culturais “que “sistematicamente definidas as normas conformam e são conformadas por um técnicas de avaliação do meio” (BUTLER, certo modo de tornar visíveis os 2010). Mas há um conjunto de pesquisas fenômenos que representa” (ROCHA, e autores que vem buscando a 2016, p. 183). construção de uma análise estética da No estudo dos processos criativos e televisão a partir, por exemplo, do sentir das materialidades e formalidades em comum, dos apelos e experiências televisivas, Butler (2010) apresenta sensíveis proporcionados por essas quatro dimensões possíveis de análise construções. Por último, a dimensão do texto: a descritiva, a histórica exige do investigador um recuo

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nos programas televisivos a fim de primeiro gole. Helena enfrenta o desafio identificar marcas de estilo de permanecer sóbria, mesmo diante dos historicamente construídas e problemas pessoais e profissionais que transformações de padrões ao longo dos enfrenta. Ajudada principalmente por sua anos (PEREIRA, 2015). tia, seu irmão e pelo mordomo da casa, Helena é infantilizada, descrita a todo Helena, Larissa e suas trajetórias de tempo como uma mulher frágil, sensível e 6 dependência ao álcool e ao crack que necessita de cuidados para a Helena (Renata Sorrah), de Vale Tudo preservação de sua integridade física e (1988) - telenovela escrita por Gilberto mental. Em uma armação feita pela Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, própria mãe sem seu consentimento, exibida na extinta faixa horária das 20h - Helena casa-se com Ivan (Antônio é a primeira personagem dependente Fagundes). química em telenovelas da Rede Globo. Nosso segundo objeto de análise é Uma mulher rica, sofisticada, artista, Larissa (Grazi Massafera), de Verdades divorciada, filha da vilã Odete Roitman. Secretas (2015), telenovela escrita por Por conta do alcoolismo e de um , sendo a primeira com acidente fatal que protagoniza ao estar dramaturgia original para a recém sob efeito da bebida, Helena é internada inaugurada faixa horária das 23h, na Rede em uma clínica. Sua trajetória na Globo. Modelo profissional e prostituta telenovela inicia depois dos seis meses de luxo na agência para a qual trabalha, em que passou internada, quando volta à Larissa é consumidora regular de cocaína. mansão de sua família para continuar o Mais velha que as outras modelos, além processo de recuperação, de ter um temperamento difícil e comprometendo-se a não ingerir o comportamentos eticamente questionáveis, a personagem passa a 6 Todos os direitos autorais das imagens reproduzidas neste trabalho são reservados à ganhar mais dinheiro atuando como Rede Globo de Televisão.

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garota de programa do que como mas não é correspondida. Ele ainda é modelo. Essa decadência profissional, apaixonado pela ex e casa com Helena incompreendida pela personagem que se pelo impulso de uma desilusão amorosa julga muito bonita e talentosa, – e por armação de Odete Roitman. Em impulsiona Larissa mais rápido às drogas. certo momento da trama, Ivan decide O vício em crack surge por influência de então pedir a separação à Helena e ela seu novo namorado, Roy (Flávio Tolezani), não recebe bem o pedido. Volta a beber ex modelo e ex usuário da droga. descontroladamente, o que desencadeia Para o ensaio analítico realizado a a cena que escolhemos para a análise, seguir, selecionamos cenas que quando Helena, após ficar embriagada compõem dois eventos narrativos em um bar de hotel, faz escândalo, briga emblemáticos para as duas personagens: com o garçom até que uma ambulância é quando Helena volta a beber depois de chamada e a leva internada em uma meses sóbria, em meados de Vale Tudo , e camisa de força. quando Larissa implora por ajuda na Cracolândia após ser estuprada, ao final de Verdades Secretas. São situações- limite do sofrimento causado pela drogadição, quando o corpo já não é capaz de resistir.

Helena volta a beber, faz escândalo em bar e é novamente internada Quadro 2 : Bêbada, Helena faz escândalo em bar Depois de muito tempo solteira e de hotel. Fonte : Canal Viva enfrentando a solidão, Helena casa-se com Ivan (Antônio Fagundes), por quem O que nos diz sobre construção se declara profundamente apaixonada, estilística do sofrimento essa cena de

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pouco mais de três minutos? Realizada personagem é construída como mulher quase inteiramente com diálogo (a briga, incapaz de controlar sozinha seus os gritos e gestos excessivos) entre próprios impulsos destrutivos, algo Helena e o funcionário que tenta impedi- potencializado quando está sob efeito de la de beber mais, a cena é composta de bebida alcóolica. plano e contraplano entre os dois Finalmente, os funcionários personagens, cortes secos, montagem conseguem interromper a fúria acelerada, movimentos de câmera um alcoolizada de Helena e, chorando muito, tanto desequilibrados, acompanhando a ela se joga nos braços deles, machucada, movimentação cambaleante da sem mais nenhuma força de resistência. O personagem e o clima de tensão que enquadramento passa a ser o de primeiro compõe o momento. Os planos médios plano, focado no rosto da personagem começam a dar mais espaço aos planos (plano 4) e mostrado em três ângulos gerais e conjuntos quando ela, diferentes: de onde quer que se olhe, confrontada e ainda mais irritada com o naquele ambiente, será possível observar garçom, pega os objetos que vê pela o estado deplorável dela. É o centro das frente e os joga com força contra as atenções, o exemplo do que pode ocorrer paredes (planos 2 e 3). Os efeitos sonoros ao ser humano que se entrega ao vício, dos vidros sendo quebrados, do espaço ao álcool. sendo desconfigurado, reforçam a Nesse instante de dor, a trilha tensa e agressividade e o tom destrutivo da cena, metalizada dá lugar à música refletindo o próprio estado da instrumental dramática, triste, com personagem, um sofrimento acordes de violino. Antes da música materializado tanto interna quanto tomar conta de todo o áudio, é possível externamente, de um autocontrole frágil ouvir Helena desabafar aos prantos: “eu de Helena estilhaçada pela dor de uma não aguento mais!”, o que é reforçado possível nova perda pessoal. A pela sua postura e pela dramaticidade do

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composto imagem/texto/som. Ela está apenas uma câmera fixa ou na mão. Em um cenário delimitado, interno, com telenovelas, com ritmo de produção, pouca possibilidade de profundidade de montagem e edição mais acelerados pelo campo e, portanto, o foco é ainda mais pouco tempo que há para a exibição e intenso no seu sofrimento. As atuações pela própria extensão da obra (Vale Tudo são feitas de excesso nos tons de voz, nos contou com mais de 200 capítulos), é gestos, nas falas, na caracterização física. comum o uso de pelo menos três Ao precisar ser contida por outros, Helena câmeras, de diferentes ângulos, demonstra sua falta de autonomia e registrando tudo o que é gravado para controle de si, a necessidade de ser depois fornecer material suficiente para cuidada, amparada e vigiada a todo uma composição melodramática instante porque seu corpo, suas atitudes, característica do meio televisivo (BUTLER, sua relação consigo já estão sob domínio 2010), principalmente em relação à época do álcool e dos efeitos que ele causa. O de produção dessa telenovela. Padrão uso do primeiro plano junto à fala “eu que, com relação à Larissa, já é possível não aguento mais!” nos mostra que a verificar reelaborações, até pela própria personagem, ainda que tenha voltado a especificidade de Verdades Secretas , com beber recentemente, está no limite de seu apenas 64 capítulos e exibida em faixa sofrimento e não se vê mais hábil a horária mais propícia a experimentações. suportar essa dor: do abandono de si, do abandono do outro, da solidão, Após sofrer estupro coletivo, Larissa depressão e dependência. implora por ajuda No aspecto mais formal, a cena foi Já muito debilitada – física, construída com a utilização de mais de psicológica, social e moralmente -, Larissa uma câmera, o que difere da sequência simula um desfile de moda em meio à de Larissa, conforme veremos a seguir, Cracolândia , mostrando talento e beleza em que a maior parte foi gravada com que ainda acredita ter, gabando-se diante

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dos viciados pela profissão e fama de modelo, mas ignorada e menosprezada por todos. Ela é logo interpelada por um dos moradores dali que lhe promete fornecer pedra de crack de qualidade. Larissa o acompanha para um local mais afastado e enquanto os dois caminham, outros homens começam a segui-los até Quadro 3: Larissa implora por ajuda após ser estuprada um beco em que a personagem sofre Fonte : plataforma Globo Play estupro coletivo. Depois do trauma, Larissa entra em desespero e, mesmo Após ser estuprada, Larissa volta para hesitante, decide aceitar a ajuda dos onde estava antes, cambaleante pelo missionários voluntários da Cracolândia meio da rua da Cracolândia (plano 1). Os para sair dali, curar-se do vício, retomar a tons mais escuros, acinzentados, com vida segura e feliz. Diferentemente da sombras e luzes difusas indiretas sequência do evento narrativo de Helena, continuam em cena, potencializando a dividida em blocos ao longo do capítulo, atmosfera do ambiente, mas nesta parte a de Larissa é mostrada completa, sem final da sequência as imagens tornam-se divisão, por cerca de 9 minutos. Para mais nítidas, visíveis, compreensíveis. A nossa análise, selecionamos a parte final situação física e psicológica deplorável da da sequência. personagem é exibida mais corporificada, materializada, palpável. Em movimento de travelling , ângulo de contra-plongée, ritmo de slow motion e com uma trilha sonora de tons agudos e dramáticos, com certo clima de suspense, Larissa caminha em estado de choque, machucada,

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tentando equilibrar-se a cada passo, atordoada, olhando freneticamente de buscando na multidão de viciados um lado a outro, suspirando alto, quase alguém que pudesse lhe ajudar. Mas sufocando. Ao virar-se, grita implorando todos parecem estar indiferentes à ela. A por ajuda. Os tons de violino da música situação aparenta ser, afinal, comum aos tornam-se acelerados, intensos. Em plano que vivem ali. A ex modelo é só mais uma médio e slow motion , Larissa joga-se no e ninguém parece querer se dispor ajudá- chão, estendendo os braços e gritando la. por socorro (plano 3). A personagem Quando corta para o primeiro plano, finaliza neste instante seu processo de é possível enxergar o rosto ainda mais retomada de consciência de si, iniciado machucado, sangrando, debilitado de ao ser confrontada com sua imagem no Larissa. Após a indiferença e recusa de espelho conforme descrevemos no início Roy em ajudá-la, ela se levanta e a trilha deste trabalho. Os missionários que acompanha seus passos agora é uma voluntários correm para acudi-la, instrumental dramática orquestrada, com tentando levantá-la e tirá-la dali (plano 4), violinos e violoncelos. Uma câmera na com a promessa de garantir à Larissa uma mão gira em torno de Larissa, que está vida longe das drogas, digna e de acordo em primeiro plano enquanto olha, com a moral cristã. atônita, para as outras pessoas à sua A construção estilística do sofrimento volta, para onde o enquadramento não de Larissa traz efeitos visuais e sonoros capta (plano 2). Um missionário surge lhe peculiares. Há um esforço de transferir a oferecendo ajuda (é o primeiro a realidade da personagem à composição demonstrar compaixão com Larissa televisual, com elementos estéticos naquele momento), ela recusa e inseridos na telenovela para marcar a enquanto ele vai embora a trilha torna-se trajetória de Larissa, as inserções dela nos ainda mais audível, potencializando o capítulos, com distintas técnicas de drama do momento. Larissa é mostrada iluminação, saturação das imagens,

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ritmos de cortes, de takes, si, a corporalidade repulsiva e a relação movimentações de câmera, constituição extrema com a droga” (RUI, 2014 apud de cenário e ambientação, adotando a LAGE, 2017). As duas personagens atuam partir de certo momento uma narrativa como exemplares do sofrimento, paralela às outras de Verdades Secretas . demonstram que qualquer pessoa pode Mesmo apresentando semelhanças tornar-se dependente e vítima das com Helena, a construção estilística e drogas, ainda que ambas sejam mulheres narrativa do sofrimento de Larissa traz brancas e de classe media ou alta, outras peculiaridades condizentes com o colocadas nessa situação como algo tipo de abordagem de dependência contingente e mantendo invisibilizada química e com as especificidades uma diversidade de sujeitos que são ou televisivas contemporâneas, com podem ser acometidos com a drogadição. estratégias que antes eram menos Considerações finais possíveis e/ou viáveis. A trama de Larissa Pelo o que expomos até aqui, a comunica outros modos de abordagem construção estilística, e melodramática, da drogadição, assim como Helena em do sofrimento por drogadição em sua respectiva temporalidade televisiva. telenovela mantém semelhanças e As duas personagens, ainda que apresenta algumas diferenças ao longo apresentem diferenças marcantes, das décadas que separam as duas carregam aspectos comuns na exploração personagens. Semelhanças no tipo de do sofrimento, na abordagem da abordagem, a partir de uma dimensão drogadição, na base melodramática, na moralizante e de um discurso retórica moral vigente sobre as drogas. proibicionista, potencializados por Tanto Larissa quanto Helena recursos estilísticos, que nos diz quanto o evidenciam - em suas trajetórias, álcool e o crack podem ser prejudiciais à comportamentos e aparência -, aspectos autonomia, à integridade física, comuns da drogadição: “o abandono de psicológica, que afeta a si e aos outros;

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com o sofrimento dos adictos construído daquele ambiente de sofrimento -, o de forma estigmatizada, com a ausência melodrama nas telenovelas, quando de debates mais profundos sobre associado às experiências de drogadição, consumo, prazer, circulação e adquire contornos distintos que revelam dependência. As diferenças, ao menos as a capacidade que a televisão tem de mais aparentes, podem ser percebidas reelaborar, ressignificar, reconstruir nos recursos do composto sentidos e adaptar-se às transformações imagem/texto/som que acompanham a tecnológicas, culturais, sociais e própria evolução da linguagem televisiva, econômicas da sociedade e do próprio das possibilidades técnicas, criativas, de dispositivo midiático. influência e incorporação de outras Apesar de chegarmos aqui ao ponto linguagens audiovisuais. final deste trabalho, nossa pesquisa abre Ao abordar o sofrimento por diversos caminhos que possibilitam novos drogadição, as telenovelas saem dos seus olhares, novas análises e discussões. eixos estilísticos e narrativos, apresentam Seguindo a própria característica da outras formas e outras lógicas de ficção televisiva, este artigo é uma obra produzir e comunicar sentidos das passível de gerar outros capítulos, histórias contadas, onde o sofrimento enredos e trajetórias de pesquisa exige um grau maior de experimentação abrangendo aspectos que neste espaço das linguagens, dos estilos, intensificando não foram aprofundados, mas as emoções da vítima sofredora e reivindicam olhares críticos de análises fazendo o público adentrar em um posteriores, a exemplo de questões de regime de credulidade ainda maior. gênero, de produção da vítima, de Desde Helena até Larissa - com as elementos narrativos etc. estratégias estilísticas de efeitos visuais e sonoros ainda mais marcantes, capazes Referências APREA, Gustavo. La representación del de colocar o telespectador dentro sufrimiento : desde el melodrama clásico

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