Fotos: Pedro Kirilos, Riotur

Cidade do (à esq.) e (à dir.) menino desfila na Sapucaí em escola mirim da Inocentes da Caprichosos

PATRIMÔNIO HISTÓRICO exuberante, do Cristo Redentor e do Carnaval, o se firma como capital desse gênero musical, Rio, capital do samba atraindo turistas de dentro e de fora do país, durante o ano inteiro. “A cidade vive um clima de samba Com muita frequência, a força de listas, mas não há dúvida sobre onde como há muito não se via. E não é um gênero musical pode acabar im‑ ele decidiu morar: no Rio de Janeiro. só na música, no teatro, em espetá‑ pregnando a identidade de um lu‑ Em processo semelhante a tantas ou‑ culos como Sassaricando – e o Rio gar, um povo ou um país. Basta ou‑ tras capitais musicais, o Rio se con‑ inventou a marchinha, na literatura vir um fado de Amália Rodrigues ou solidou como o principal destino com biografias de Vinicius de Mo‑ Dulce Pontes e já estaremos pensan‑ para quem deseja ver, ouvir, cantar raes, Gonzaguinha e outros”, conta do em Portugal; um tango cantado e dançar samba. Terra de , José Augusto Kamel, que coordena por Carlos Gardel ou nos acordes de , Paulo da , Zé Kéti, o Laboratório de Engenharia do Astor Piazzola, e Buenos Aires apa‑ , Bete Carvalho, Entretenimento na Universidade recerá frente aos nossos olhos; sem e tantos outros, o Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). esquecer jamais do calor de Nova samba se reinventa com novas influ‑ A peça Sassaricando (2007) teve Orleans na voz de seus mestres que ências, compositores e intérpretes, roteiro assinado pelo jornalista e tocam o coração de amantes do jazz se mantém vivo e conquistando ad‑ pesquisador musical Sérgio Ca‑ em todo planeta. Pois este é o espaço miradores em todas as classes sociais. bral e pela historiadora Rosa Maria que o samba do Rio de Janeiro quer “Nenhuma manifestação cultural, Araújo, posteriormente virou CD ocupar no imaginário de seus habi‑ hoje, reflete tão bem o espírito des‑ e DVD. O musical incluiu mais de tantes e dos milhares de turistas que ta cidade quanto o samba”, conta o cem composições de Noel Rosa, visitam a cidade. jornalista Luiz Fernando Vianna, Lamartine Babo, Braguinha e ou‑ Se o samba nasceu ali, isto ainda é no livro Geografia carioca do samba tros. No texto de apresentação do motivo de discussões entre especia‑ (2004). Além das praias, da paisagem DVD, Cabral explica que poucas

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7_Cultura_34.indd 56 1/19/11 4:35 PM Wallace Teixeira, Riotur Pedro Kirilos, Riotur

Bloco das Carmelitas (à esq.) e Simpatia é Quase Amor (à dir.): blocos arrastam multidões pelas ruas cariocas gratuitamente

manifestações refletem com tanta de 1930 e 1940, já era um reduto Argentina, cuja marca musical é o exatidão a criatividade do composi‑ da boemia carioca. “Os resultados tango. O ritmo nasceu como uma tor do Rio e o espírito carioca quan‑ mais claros dessa nova onda foram mistura das músicas dos imigrantes to as marchinhas. “São músicas a redescoberta da Lapa pela cidade; italianos e espanhóis que chegaram que, ao mesmo tempo em que nos o aparecimento de uma classe média à Argentina no final do século XIX remetem a carnavais inesquecíveis, interessada em cantar, tocar e escu‑ com a dos descendentes dos con‑ conservam o frescor e encantam tar samba; e a oportunidade de valo‑ quistadores espanhóis que já habi‑ crianças de todas as idades. Em ou‑ rização de compositores do passado tavam os pampas. tras palavras, são eternas”, escreve. e de sambistas que mantêm essa tra‑ Assim como o samba e o jazz, o tan‑ dição”, conta Luiz Fernando Vianna go também era, em seu início, a ex‑ Samba de mesa Para Kamel, além da no livro citado acima. pressão musical das populações mais efervescência do Carnaval, existe pobres que moravam nos subúrbios hoje um forte movimento do sam‑ Identidade por meio da música No de Buenos Aires. A dança era típica ba de mesa nos bares cariocas. “Na século XIX, da fusão dos spirituals dos bordéis e tinha letras obscenas e Lapa são incontáveis os estabeleci‑ cantados pelos escravos com a músi‑ violentas. Em artigo publicado na re‑ mentos com programação sema‑ ca europeia trazida pelos imigrantes vista Mana (1997), do Museu Nacio‑ nal intensa”, conta. Ao se tornar a para os Estados Unidos, nasce o jazz, nal, Rio de Janeiro, Eduardo Archet‑ principal atração das diversas casas gênero musical que tem como mar‑ ti, professor de antropologia social de show e bares que se instalaram na ca a improvisação. Nova Orleans é da Universidade de Oslo, Noruega, Lapa a partir dos anos 1990, o sam‑ considerada o berço do gênero. Foi explica que a globalização do tango ba também foi um dos responsáveis a partir dali, pelo talento de músi‑ serviu para inventar uma “tradição”, pela revitalização do bairro. A inten‑ cos como Buddy Bolden e Louis um espelho no qual os argentinos sa movimentação cultural e noturna Armstrong, que o jazz se difundiu podiam se identificar, precisamente que caracteriza a Lapa, atualmente, para outras cidades norte‑america‑ porque ali os “outros” começaram a acabou por recuperar uma tradição nas. Fenômeno semelhante acon‑ vê‑los. “A narrativa, a dança e a músi‑ antiga do bairro que, nas décadas teceu em Buenos Aires, capital da ca, que formavam as diferentes faces

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7_Cultura_34.indd 57 1/19/11 4:35 PM Riotur o tango virou febre, se rede hoteleira e os serviços ligados espalhando para o res‑ ao turismo mesmo nos meses fora da to do mundo, atraindo alta temporada. turistas para a capital A Cidade do Samba fica no bairro portenha e tornando da Gamboa, área portuária da ci‑ mundialmente conheci‑ dade. O local foi escolhido por ser dos nomes como Carlos próximo do centro da cidade, faci‑ Gardel e Astor Piazzolla. litando o deslocamento das alego‑ No mesmo sentido, Ka‑ rias até o Sambódromo. Possui 14 mel, da UFRJ, acredita galpões para montagem dos carros que o desenvolvimento alegóricos e confecção de fantasias. de um gênero musical Sua construção foi parte de um pro‑ é determinado, entre grama de revitalização da região. outros fatores, por uma Como em outras cidades, a área por‑ Sob os Arcos da Lapa, o samba tem presença marcante demanda social em rela‑ tuária carioca vivia um processo de na programação semanal dos inúmeros bares cionar formas de entre‑ degradação desde a década de 1960, tenimento como expres‑ provocada pela obsolescência do do tango, tornaram‑se um elemen‑ são da identidade de um povo, nação porto e o esvaziamento dos bairros to‑chave na criação de um produto ou etnia. “Os interesses econômicos vizinhos. “Pensando na indústria do cultural argentino 'típico'”, disse o mantêm essa oferta musical geran‑ entretenimento, a Cidade do Samba antropólogo. Levado para a cosmo‑ do investimentos que, por sua vez, pode alavancar toda a estrutura que polita Paris do início do século XX, criam outros produtos”, afirma. In‑ comporta o Carnaval e o samba, de‑ vestidores podem vir do setor priva‑ senvolvendo novos meios e aprimo‑ do, como no caso do bairro da Lapa, rando novas linguagens, como a da ou do poder público cujos esforços televisão”, acredita Kamel. Escolas de samba atualmente também buscam forta‑ fazendo escola lecer a imagem do Rio de Janeiro Além do turista Há muito samba no Diariamente no Barracão 1 da Ci‑ como capital do samba. Rio de Janeiro fora da Marquês de dade do Samba 160 aprendizes, a Sapucaí, onde reinam as grandes es‑ maior parte deles de comunidades Carnaval o ano inteiro Destaca‑se, colas. Durante o Carnaval boa par‑ de baixa renda, participam de ofici‑ nesse sentido, a criação da Cidade te dos bairros da cidade é tomada nas profissionalizantes com temas do Samba, complexo com 92 mil por blocos de rua que desfilam em ligados à indústria do carnaval e ao metros quadrados que concentra as cortejos animados pelas ruas, onde setor administrativo das fábricas atividades de preparação do Carna‑ qualquer um pode participar. Desde de alegorias. A escola foi organiza‑ val carioca, além de abrigar desfiles e 2009, o governo local, por meio de da pela Liga Independente das Es‑ shows ao longo do ano. O programa sua área de cultura, passou a apoiar colas de Samba do Rio de Janeiro, de visitação tem ingressos a preços esses grupos com o lançamento de Liesa, com apoio do Ministério do populares (R$ 5 a entrada inteira). editais. Segundo José Emílio Ron‑ Turismo. São 21 cursos com dura‑ Segundo a Secretaria da Cultura da deau, assessor da Secretaria de Cul‑ ção média de quatro meses. Aulas cidade do Rio, foram investidos R$ tura, o objetivo é fomentar o samba de escultura (em isopor, espuma, 65 milhões, financiados pela prefei‑ popular fluminense. O primeiro gesso e resina), adereços, maquia‑ tura. O lugar, inaugurado em 2005, edital contemplou 112 agremiações gem, corte e costura e figurinos tornou‑se um novo ícone do samba, com R$ 600 mil. Para 2011 a previ‑ estão entre as oficinas oferecidas. contribuindo para o fluxo perma‑ são é conceder R$ 800 mil, montan‑ nente de turistas, movimentando a te que é distribuído entre: blocos de

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7_Cultura_34.indd 58 1/19/11 4:35 PM enredo e de embalo, afoxés, ranchos, visitante na exposição permanente”, escolas de samba mirins, escolas do explica a consultora. “Esses estudos HISTÓRIA interior e bandas. “Os editais são im‑ ainda estão em andamento, mas é portantes para preservar e estimular certo que se procurará fazer uso de o carnaval de rua, do subúrbio e do toda a tecnologia que estimula o Atlas do interior do estado. Eles contemplam visitante de museu do século XXI à comércio escolas de samba do terceiro e quar‑ interatividade, sem, no entanto, ferir to grupos e escolas de samba mirins, os valores tradicionais e sempre com transatlântico agremiações que não fazem parte da a preocupação em se valorizar o pas‑ Liesa, a liga das escolas de samba que sado e o modo de criação peculiar ao de escravos se apresentam no Sambódromo”, samba”, afirma ela. O novo prédio, detalha Rondeau. com projeto arrojado do arquiteto No dia 4 de agosto de 1816 o navio norte‑americano Diller Scofidio, re‑ Pastora de Lima deixou o porto do MIS em Copacabana A preocupação ceberá ainda todo o acervo do atual Rio de Janeiro. O destino do capitão com a preservação e divulgação do Museu . A previsão Manoel José Dias e sua tripulação era gênero que já é marca da cidade está, é de que o museu seja inaugurado em Moçambique, na África. O motivo também, no novo Museu da Ima‑ 2012, podendo, assim, ser visitado da viagem: comprar escravos. Em gem e do Som (MIS), que está sen‑ pelos turistas que vêm para o Rio terras africanas embarcaram 404 es‑ do construído na Av. Atlântica, em assistir a Copa do Mundo de 2014. cravos, mas chegaram ao Brasil, 290. Copacabana. “Embora seja mun‑ Morreram durante a travessia do dialmente conhecida como a capital A voz do morro, sim senhor! “O Rio Atlântico 114 homens, mulheres e do samba, não há na cidade do Rio de Janeiro tem um potencial para crianças. Desde a saída do Rio de Ja‑ de Janeiro um espaço de memória se firmar como uma cultura dife‑ neiro, até o retorno do Pastora, em 16 dedicado a este gênero musical nem renciada porque o samba que se faz de janeiro de 1817, na Bahia, foram ao Carnaval carioca”, explica Rachel aqui é único, não é igual ao de lugar 165 dias de viagem. Os dados acima Valença, consultora do projeto orça‑ nenhum”, defende Kamel. “Todos se referem a uma dentre as mais de 35 do em R$ 70 milhões, a serem divi‑ esses investimentos devem forta‑ didos entre o governo do estado e a lecer os elos históricos desse gêne‑ Divulgação Fundação . “A in‑ ro musical e potencializar o samba tenção é estabelecer no MIS um es‑ produzido nas comunidades flumi‑ paço de visitação e um espaço de pes‑ nenses, escolas de samba, pelos pa‑ quisa para especialistas, aqueles que godeiros e sambistas dos botequins, desejam consultar livros, gravações, criando oportunidades e amplian‑ documentos etc”, conta Rachel. do o leque de novos produtos para Segundo ela, todo o acervo do MIS o público”, finaliza o pesquisador. já foi examinado para determinar, Era o que já sabia o sambista Zé Ke‑ nas diversas mídias, os documentos ti (1921‑1999) quando escreveu na pertinentes ao tema: gravações de letra de A voz do morro: “Eu sou o música em discos (78 rpm e LP), em samba, sou natural aqui do Rio de fitas (de rolo e cassete), gravações de Janeiro, sou eu que levo a alegria pa‑ preciosos depoimentos, documen‑ ra milhões de corações brasileiros”. tos, fotografias, filmes. “A partir daí, E, ao que parece, essa alegria quer iniciaram‑se os estudos para a cria‑ contagiar o resto do mundo. ção da museografia, ou seja, da for‑ Atlas traz mapas inéditos sobre comércio ma como o tema será apresentado ao Patrícia Mariuzzo de escravos na América

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