Leia nesta edição

PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa

» Entrevistas PÁGINA 05 | Waldecy Tenório: “Meu Deus e meu confl ito”. Teologia e literatura PÁGINA 09 | Afonso Soares: O poder teológico da literatura PÁGINA 12 | Robert Alter: Um mergulho na narrativa bíblica PÁGINA 14 | Rafael Camorlinga Alcaraz: A fé poética dos crentes literários PÁGINA 17 | Georg Langenhorst: “Quase todas as grandes obras da literatura mundial têm dimensão religiosa” PÁGINA 20 | Maria Clara Bingemer: A literatura como um campo fértil de diálogo com a teologia PÁGINA 22 | José Augusto Mourão: Literatura e teologia em Adélia Prado PÁGINA 24 | Philippe Sollers: “A grande literatura teológica encontra-se principalmente na poesia” PÁGINA 25 | Paulo Soethe: Teologia e literatura: a cena alemã

B. Destaques da semana

» Brasil em Foco PÁGINA 28 |Sérgio Miranda: Reforma tributária e o aumento da desigualdade social » Memória PÁGINA 31 | José Carlos Barcellos » Nanotecnologias PÁGINA 35 | Edmilson Lopes Jr.: A inserção das nanotecnologias na vida humana: como será o futuro? » Entrevista da Semana PÁGINA 38 | Andrea Vicentini: Compartilhando o conhecimento: a volta dos clássicos » Invenção PÁGINA 41 | Adriana Zapparoli » Análise de Conjuntura PÁGINA 43 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista

» Agenda de Eventos PÁGINA 46| Jorge Durán: Da preocupação individual ao interesse social » Perfi l Popular PÁGINA 48| Maria de Lurdes Dutra Vargas » IHU Repórter PÁGINA 50| Marcos Paulo Guerin SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 3 4 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 “Meu Deus e meu confl ito”. Teologia e literatura

Para o professor Waldecy Tenório, o sagrado e o profano se encon- tram na literatura, sendo a poesia a última forma de êxtase

o falar sobre a ligação entre teologia e literatura, o professor Waldecy Tenório, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), considera profundas as relações entre essas duas áreas. “Dessas que se dão nas camadas subterrâneas do texto. E os teólogos e os críti- cos, mais do que nunca, estão descobrindo isso”, afi rmou, em entrevista Aconcedida por e-mail para a IHU On-Line. Para ele, “não seria possível desconhe- cer o encontro entre a fé e o ceticismo no interior da literatura”. Tenório é graduado em Letras Clássicas com doutorado em Filosofi a pela Uni- versidade de São Paulo. É autor de A bailadora andaluza: a explosão do sagrado na poesia de João Cabral (São Paulo: Ateliê Editorial, 1996) e de ensaios publicados na grande imprensa e em revistas acadêmicas nacionais e internacionais sobre as relações entre literatura e teologia. Atualmente, atua como professor associado da PUC-SP e é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP.

IHU On-Line - Como foram no passa- os textos fundantes de outras grandes dizer que a letra é sempre roubada e do e como se desenham hoje as rela- tradições religiosas, como, por exem- o Deus bíblico transmigra para a lite- ções entre literatura e teologia? plo, o Bhagavad-Gita.2 Mas se, por uma ratura profana, se esconde na poesia, Waldecy Tenório - Se fi zéssemos essa questão de método, permanecermos na se disfarça no romance e, por vezes, pergunta ao evangelista João, ele cer- trilha judaico-cristã, vamos encontrar, dá as caras no cinema. Por que já se tamente diria que no princípio era o a seguir, esse monumental biografe- pôde dizer que o Ulysses de Joyce4 é Verbo, e não estaria dizendo pouco. ma, as Confi ssões de Santo Agostinho, um romance teológico? Porque o Deus Quer dizer, essa relação entre litera- a empresa editorial de São Jerônimo, bíblico é esperto, deixa rastros, e isso tura e teologia já aparece na origem, a escola de Hugo de San Victor, Dan- de propósito, para não o esquecermos, ou na aurora do mundo, como se fos- te, São João da Cruz, Teresa d’Ávila, para fi carmos sempre no seu encalço, se uma culpa ou um pecado original. Sóror Juana Inês... E depois — não dá nessa agonia que vitimou desde os an- Na antigüidade grega, encontramos a para lembrar tudo — Derrida3 vem nos tigos profetas até uma Simone de Be- doutrina do entusiasmo, que associa a auvoir:5 “onde está ele?”. O fato é que inspiração poética à profecia ou mes- o sagrado e o profano se encontram 2 Bhagavad Gita (A Canção do Senhor): um tex- mo à possessão por um Deus. No mun- to religioso hindu. Faz parte do épico Maha- na literatura, sendo a poesia a última do judaico, não se concebe a escrita a bharata, embora seja de composição mais re- forma de êxtase ou, como diz Murilo não ser dentro de uma ligação muito cente que o todo deste livro. Na versão que o Mendes,6 a transubstanciação do leigo inclui, o Mahabharata é datado no Século IV forte com o divino. O profeta Ezequiel a.C. (Nota da IHU On-Line) engoliu “goela abaixo” o rolo de um 3 Jacques Derrida (1930-2004): fi lósofo fran- 4 James Joyce (1882-1941): escritor irlandês livro e ainda teve de antecipar o pra- cês, criador do método chamado desconstru- expatriado. É amplamente considerado um dos ção. Seu trabalho é associado, com freqüência, autores de maior relevância do século XX. Suas 1 zer do texto de Roland Barthes, di- ao pós-estruturalismo e ao pós-modernismo. obras mais conhecidas são o volume de contos zendo, meio sem graça, que o livro lhe Entre as principais infl uências de Derrida en- Dublinenses (1914) e os romances Retrato do ar- era doce como o mel. É claro que não contram-se Sigmund Freud e Martin Heidegger. tista quando jovem (1916), Ulysses (1922) e Fin- Entre sua extensa produção, fi guram os livros negans wake (1939). (Nota da IHU On-Line) podemos esquecer os poemas que são Gramatologia (São Paulo: Perspectiva, 1973), 5 Simone de Beauvoir (1908-1986): escritora, fi - L’Ethique du don, (1992), Demeure, Maurice lósofa existencialista e feminista francesa. Ligou- Blanchot (1998), Voiles avec Hélène Cixous se pessoal e intelectualmente ao fi lósofo francês 1 Roland Barthes (1915-1980): escritor, soci- (1998) e Donner la mort (1999). Dedicamos a Jean-Paul Sartre. (Nota da IHU On-Line) ólogo, crítico literário, semiólogo e fi lósofo Derrida a editoria Memória da IHU On-Line edi- 6 Murilo Mendes (1901-1975): um dos mais im- francês. (Nota da IHU On-Line) ção 119, de 18-10-2004. (Nota da IHU On-Line) portantes poetas brasileiros, nasceu em Juiz SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 5 no sagrado. Então, resumindo: foram sitário da verdade. O crítico literário, e são relações profundas, essas que se por sua vez, é envolvido pelo que já dão nas camadas subterrâneas do tex- se chamou de o “demônio da teoria”, to. E os teólogos e os críticos, mais do “Essa relação entre e esse demônio sempre se disfarça no que nunca, estão descobrindo isso. interior da ideologia da época: o ra- literatura e teologia já cionalismo, o positivismo, o ateísmo... IHU On-Line - São relações pacífi cas E aí, quando os demônios põem as gar- ou literatura e teologia são “irmãs aparece na origem, ou na ras de fora, acontece uma pororoca: inimigas”? Por quê? o encontro do dogmatismo religioso Waldecy Tenório - Pacífi cas nunca fo- aurora do mundo, como com o dogmatismo laico, e então en- ram, nunca serão, e é bom que assim tram em cena as famosas hermenêu- seja. Elas poderiam subscrever, jun- se fosse uma culpa ou um ticas redutoras. Para piorar as coisas, tas, aquele famoso verso de Petrarca,7 os teólogos têm um vício muito antigo que começa assim: “Pace no trovo” pecado original” e insuportável: estão sempre procu- (não tenho paz), e termina dizendo rando uma ancilla, na pior das hipó- que “non ho da far guerra” (não posso teses, um sacristão alfabetizado para fazer a guerra). As duas têm a mesma um verso que soa como a encruzilhada ser portador de uma “mensagem”. A idade, nasceram na mesma época, a do eu lírico desesperado: “Meu Deus literatura, que segundo Barthes, desa- poesia era a alma dos ritos religiosos. e meu confl ito”. Ora, esse confl ito é fi a o Pai Político e o Pai Religioso, não Com o tempo, a teologia foi se trans- muito rico, não pode ser jogado fora aceita esse papel. E o que acontece? formando numa senhora sisuda, mui- nem por uma “literatura edifi cante” Platão expulsa os poetas da República, to respeitável, uma velhinha que não nem por uma “religiosidade melosa” o Papa os ameaça com a excomunhão, tira nunca o véu da cabeça, enquanto do tipo new age. Por isso é bom que e o secretário-geral do Partido diz que a outra parece mais jovem, irreve- as comadres continuem assim, descon- são reacionários porque não adotam as rente, a louca da casa, de reputação fi a ndo uma da outra. “posições corretas” do Grande Irmão. às vezes duvidosa, e é claro que isso Quando se encontram, teólogos e crí- acabou por criar um certo confl ito ou IHU On-Line - Há um certo distancia- ticos literários só podem fi car mesmo uma certa desconfi ança entre as duas. mento entre teólogos e críticos lite- meio ressabiados e distantes, no míni- Mas acredito que a principal razão rários. O que acontece? Dogmatismo, mo, sem jeito. Diálogo? De um lado, disso é que uma tem ciúme da outra positivismo, ateísmo ou desconheci- um risinho amarelo — fi losófi co —, do porque ambas são apaixonadas pelo mento mútuo? outro, um risinho amarelo - teologal. ser humano. O ciúme as faz viver de Waldecy Tenório - É tudo isso mes- E fi ca nisso. pé atrás, às vezes nem se olham, de mo que se reúne na pergunta, esse 8 forma que, parodiando Bernard Shaw, coquetel Molotov, cujo ingrediente IHU On-Line - Quando se fala em lite- quando elas se beijam é porque não mais forte é justamente o dogmatis- ratura e teologia, a Igreja é sempre podem se morder. Essa tensão foi cap- mo. Isso é uma doença que vem de lembrada. Essa lembrança se dá em 9 tada por Drummond quando escreve longe e contra ela não existe vacina. termos positivos ou negativos. Por de Fora, Minas Gerais. Publicou seu primeiro De um lado, o dogmatismo teológico. quê? livro, Poemas, em 1930, ano em que também Disse antes que, na origem, há cum- Waldecy Tenório - Essa pergunta é estréia o poeta Carlos Drummond de Andrade. um convite para um pequeno passeio Recebeu, em 1972, o prêmio internacional plicidade entre literatura e teologia. de poesia Etna-Taormina. Nesse ano, veio ao Só como exemplo, lembremos os po- pela história da intolerância religiosa. Brasil pela última vez. Ao lado de seus livros, etas teólogos de Platão e os cantos lí- Os que gostam de erudição poderão Murilo Mendes também publicou muito na im- começar pelo brado retumbante de prensa, em especial artigos sobre artes plás- ricos em louvor da divindade. Começa 10 ticas, tendo ainda escrito muitos textos para assim essa história, e vai indo muito Tertuliano: “O que há entre Atenas catálogos de exposições de arte. (Nota da IHU bem, até que a teologia se converte e Jerusalém?”. Mas não precisamos On-Line) ir tão longe porque o dogmatismo e 7 Francesco Petrarca (1304-1374): importante em doutrina e se começa a falar em intelectual, poeta e humanista italiano, famo- Verdade, assim, com maiúscula. Ora, o fanatismo são venenos que chegam so, principalmente, devido ao seu Romanceiro. diante de alguém que fala desse jeito, até os nossos dias. Não é raro se ouvir É considerado o inventor do soneto, tipo de po- um inacreditável “Não vi e não gostei” ema composto de 14 versos. Pesquisador e fi ló- o outro é sempre suspeito e passível logo, divulgador e escritor, é tido como o “pai de condenação. É assim que o teólogo vindo do interior de alguma sacristia do Humanismo”. Mas esse grande latinista deve vai se transformando num comissário, ou, se dormirmos no ponto, de alguma sua fama principalmente a seus poemas, redigi- repartição pública, para ensinar como dos em língua italiana. (Nota da IHU On-Line) guardião de uma doutrina, único depo- 8 George Bernard Shaw (1856-1950): crítico é que o romance ou o teatro devem literário socialista, e uma das principais fi guras poeta brasileiro, nascido em Minas Gerais. tratar de algum tema. Saramago11 é século XX. Shaw foi um pensador livre, um de- Além de poesia, produziu livros infantis, con- fensor dos direitos das mulheres e um advogado tos e crônicas. Conferir a revista IHU On-Line da igualdade de renda. Em 1925, ao receber o número 32, de 20-08-2007, intitulada Carlos 10 Tertuliano (155-222): um dos mais impor- prêmio Nobel de literatura, aceitou a honra, mas Drummond de Andrade: o poeta e escritor que tantes escritores eclesiásticos da Antiguidade. recusou o dinheiro. (Nota da IHU On-Line) detinha o sentimento do mundo. (Nota da IHU (Nota da IHU On-Line) 9 Carlos Drummond de Andrade (1902-1987): On-Line) 11 José Saramago (1922), escritor português, 6 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 um exemplo, sofreu isso recentemen- te. Quem não se horroriza, pois, só de pensar naqueles “leitores terríveis” de que nos fala Octavio Paz?12 O arcebispo “A educação deve entrar no cenário da cultura que perseguia Sóror Juana Inês13 era um deles. Tudo isso contribui para re- como um antídoto para o esquecimento do ser, forçar o lado negativo da Igreja, quan- do se trata de pensar a relação entre e aí o diálogo entre literatura e teologia é literatura e teologia. Mas precisamos ver também o outro lado; o mal não de uma enorme pertinência” reina assim absoluto. É muito signifi - cativa a história de Walter Miller14 so- bre os monges que decoravam os livros a fi m de preservá-los para o dia em Lá pelas tantas o escritor lembrou-se literatura alemã em geral. E o que que os homens tivessem a nostalgia da de perguntar: “O senhor sabe que O ele diz nesse livro? Paulo Soethe,20 cultura, o que evidentemente nos faz poder e a glória estão no Índex dos que escreve o prefácio, resume bem lembrar os monges e os livros na Idade livros proibidos?”. O papa arregalou a questão, dizendo que Kuschel afas- Média. De modo que nem tudo é obs- os olhos: “Quem fez isso?”. “O carde- ta-se da arrogância de quem manipula curantismo. Podemos lembrar a esse al tal”, disse o escritor. Paulo VI ba- a poesia e a fi cção com fi ns religiosos respeito um célebre encontro entre lançou a cabeça e fez um gesto como e também da obtusidade de quem eli- 15 16 Graham Greene e o Papa Paulo VI. quem diz: “esqueça o cardeal tal”. de, nos textos, os elementos ligados Nobel de Literatura em 1998. É conhecido por à religião e à fé. A frase de Kuschel, utilizar-se de frases e períodos compridos, IHU On-Line - Karl-Josef Kuschel insi- portanto, soa como uma advertência usando a pontuação de uma maneira não-con- nua que Deus é um péssimo princípio contra essas duas posições sectárias vencional (aparentemente incorreta aos olhos da maioria). Entre suas obras, destacam-se: Os estilístico. Vindo de um teólogo cató- e signifi ca a abertura de um caminho poemas possíveis (1966), Provavelmente ale- lico, o que isso signifi ca? por onde teólogos e críticos literários gria (1970), Deste mundo e do outro (1971), Waldecy Tenório - Frank Kermode, possam dialogar. E isso melhora muito Levantando do chão (1980), A jangada de pe- dra (1986), A caverna (2001), O homem dupli- um dos mais importantes críticos lite- a situação da Igreja diante dos críticos cado (2002) e Ensaio sobre a lucidez (2004). rários da atualidade, conclui um dos literários, que, por sua vez, também (Nota da IHU On-Line) seus ensaios dizendo que os teólogos precisam jogar fora a armadura dos 12 Octavio Paz (1914-1998): escritor e diplo- mata mexicano, vencedor do Prêmio Nobel de estão interessados numa espécie de seus dogmatismos. Além disso, quando Literatura de 1990. (Nota da IHU On-Line) acordo como o que foi feito entre a se fala na aproximação entre literatu- 13 Sóror Juana Inés de la Cruz (1648-1695): psicanálise e a fi cção. Em outras pa- ra e teologia não se pode fi car preso à religiosa católica, poetisa e dramaturga nova- espanhola. Foi a última dos grandes escritores lavras, eles estão interessados numa tradição cristã ou católica. É preciso do Século de Ouro. (Nota da IHU On-Line) aproximação entre a teologia e a crí- pensar mais longe, ir em busca da pris- 14 Walter Michael Miller (1923 -1996): escritor tica literária. Uma prova disso talvez ca theologia, para colocar aí a relação norte-americano de fi cção científi ca, famoso pela mais importante obra de fi cção-científi ca seja justamente o livro Os escritores imemorial do homem com o divino, em do pós-guerra, o livro A canticle for Leibowitz, e as escrituras,17 no qual Kuschel18 co- suas múltiplas formas e na expressão 1959. (Nota da IHU On-Line) loca a frase que está no centro des- própria de cada tradição. 15 Graham Greene (1904-1991): escritor bri- tânico. Começou a escrever desde muito novo sa pergunta: Deus como um péssimo para jornais e revistas universitárias. Em 1926, princípio estilístico. Para avaliarmos IHU On-Line - Há lugar na universi- mudou-se para Londres, tendo trabalhado no o sentido dessa expressão, precisamos dade para o diálogo entre literatura The Times e outros jornais. Durante a Guer- ra, trabalhou para o serviço de informações lembrar que Kuschel fala como um re- e teologia? Podemos dizer que exis- do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e foi nomado teólogo católico e um grande te uma pesquisa signifi cativa, nessa destacado para a África Ocidental, que viria conhecedor da literatura, de que dão área, na América Latina e no Brasil? a servir-lhe de cenário para The heart of the 19 matter. Viajou como jornalista por vários prova seus estudos sobre Kafka e a Waldecy Tenório - Não faz muito, Um- países, incluindo o México onde se deslocara berto Eco21 nos contou a história de um para estudar as perseguições religiosas que 17 Kuschel, Karl-Josef. Os escritores e as es- aí tinham lugar, escrevendo depois O Poder crituras (São Paulo: Loyola, 1999). (Nota da e condenado por um crime que ele mesmo ig- e a Glória (1940). É autor de vários romances IHU On-Line) nora. (Nota da IHU On-Line) bem conhecidos e traduzidos em muitíssimas 18 Karl-Josef Kuschel: teólogo católico ale- 20 Paulo Soethe: coordenador do PPG em línguas: Brighton fock (1938), The third man mão que exigiu um diálogo mais intenso en- Letras da Universidade Federal do Paraná (1949), O fi m da aventura (1951), O americano tre cristãos, judeus e muçulmanos. Sobre ele, (UFPR). Confi ra nesta edição dois artigos de tranqüilo (1955), O nosso homem em Havana confi ra um artigo de autoria de Paulo Soethe, sua autoria. (Nota da IHU On-Line) (1958) e The human factor (1978), entre ou- publicado na IHU On-Line número 249, de 03- 21 Umberto Eco (1932): autor italiano mun- tros. (Nota da IHU On-Line) 03-2008. (Nota do IHU On-Line) dialmente reputado por diversos ensaios uni- 16 Paulo VI (1897-1978): Giovanni Battista 19 Franz Kafka (1883-1924): escritor tcheco, versitários sobre semiótica, estética medieval, Montini foi papa da Igreja Católica entre 1963 de língua alemã. De suas obras, destacamos: A comunicação de massa, lingüística e fi losofi a, e 1978. Chefi ou a Igreja Católica durante a metamorfose (1916), que narra o caso de um dentre os quais destacam-se Apocalípticos e maior parte do Concílio Vaticano II e foi decisi- homem que acorda transformado num gigan- integrados, A estrutura ausente e Kant e o vo na colocação em prática das suas decisões. tesco inseto, e O processo (1925), cujo enredo ornitorrinco. Tornou-se famoso pelos seus ro- (Nota da IHU On-Line) conta a história de um certo Josef K., julgado mances, sobretudo O nome da rosa, adaptado SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 7 poesia de João Cabral de Melo Neto? Como caracterizar o sagrado em seus “Deus e o diabo são personagens obrigatórios, embora poemas? Waldecy Tenório - João Cabral24 é um às vezes clandestinos, escondidos sob mil disfarces” caso exemplar na poesia moderna bra- sileira. Os ensaios que escreveu, entre os quais podemos lembrar, “Conside- rações sobre o poeta dormindo”, “A inspiração e o trabalho de arte”, bem estudante que, em plena aula, per- isso pulsa no romance e na poesia. E como seu estudo sobre Joan Miró,25 guntou: “professor, na época da inter- depois, lembrando Tillich,22 Deus está podem ser incluídos naquela grande net, o senhor ainda serve para alguma pressuposto na própria situação de dú- tradição dos poetas críticos estudados coisa?”. Claro que uma pergunta como vida em relação a ele. Então, não há por Leyla Perrone-Moisés. Basta dizer essa é um desafi o: onde está, afi nal, a como escapar. A literatura oscila, en- que a sua “angústia da infl uência” essência do ato pedagógico? Por outras tão, entre o ceticismo e a fé, e daí o tem um nome, por si, emblemático: palavras, de que se trata? Armazenar desespero e a angústia dos escritores, Paul Valéry.26 Ora, se os surrealistas informações? Desenvolver habilidades céticos ou crentes. Uns acreditam, ou- queriam que o poema fosse a derro- para fazer alguma coisa? Responder tros não, muitos se desesperam. E há ta do intelecto, Valéry pensa diferen- às necessidades do mercado? Se for só aqueles sempre marcados por uma pro- te. Sua obsessão é o ostinato rigore isso, realmente o professor, não digo funda nostalgia. Não há dúvida de que de Da Vinci e, portanto, para ele, o que seja dispensável, mas sua função a fé e o ceticismo são as duas faces de poema deve ser “a festa do intelec- estaria mesmo tão diminuída que a uma mesma moeda, duelam no fundo to”. Valéry escreve sob o domínio do pergunta daquele estudante não seria obscuro do texto como no fundo obscu- claro, do exato, do racional. Seguindo um disparate completo. Acontece, po- ro da vida. Lembro de Sartre23 falando nessa trilha, nosso poeta abandona o rém, que o ato pedagógico tem a ver de Deus. É surpreendente e muito bo- momento romântico no qual, segundo com outras águas, com a correnteza nito: “como não conseguiu enraizar-se Pristley, vivíamos batendo palmas para principal do rio que fertiliza a condição no meu coração, Deus vegetou em mim a sombra da lua e toma outro rumo, humana e deve fertilizar a escola. Ou algum tempo e depois morreu. Hoje, vai celebrar o sol. Estamos em pleno seja, a educação deve entrar no cená- quando me falam dele, como o homem Iluminismo, como mostra o poema “A rio da cultura como um antídoto para que encontra uma antiga namorada e cana e o século XVIII”, no qual “a cana o esquecimento do ser, e aí o diálogo sente uma profunda nostalgia, eu pen- é pura enciclopedista / no geométri- entre literatura e teologia é de uma so: há cinqüenta anos, sem aquele mal- co, no ser de dia / na incapacidade enorme pertinência. E, felizmente, entendido que nos separou, poderia ter de dar sombras / mal-assombradas, tem produzido trabalhos de boa quali- havido alguma coisa entre nós...”. coisas medonhas”. Aqui o sobrenatu- dade, em diversos países e no Brasil. ral não tem vez, tanto mais que João Desse diálogo, pode brotar a resposta IHU On-Line - Fazendo um exercício Cabral é ateu e, diz ele, nasceu sem que Shakespeare está esperando de nós de leitura teopoética, como aparece transcendência. No entanto, como em há mais de três séculos: a resposta para a relação entre crença e ceticismo na certa canção da MPB, o inesperado a questão do ser ou não ser. faz uma surpresa e o leitor, se estiver 22 Paul Tillich (1886-1965): teólogo alemão, atento, é testemunha de uma mudan- IHU On-Line - Além da crença, o di- que viveu quase toda a sua vida nos EUA. Foi ça. A conhecida frase de Adorno,27 se- álogo entre literatura e teologia te- um dos maiores teólogos protestantes do sécu- lo XX. É autor de uma importante obra. Entre matiza também a questão do ceticis- os livros traduzidos em português, pode ser 24 João Cabral de Melo Neto (1920-1999): mo? consultado Coragem de ser (6. ed. Editora Paz poeta e diplomata brasileiro. Pertencia a uma Waldecy Tenório - Claro, não seria e Terra, 2001) e Amor, poder e justiça (Edi- das mais tradicionais famílias do Pernambuco, tora Cristã Novo Século, 2004). (Nota da IHU sendo irmão do historiador Evaldo Cabral de possível desconhecer o encontro en- On-Line) Mello e primo do poeta Manuel Bandeira e do tre a fé e o ceticismo no interior da 23 Jean-Paul Sartre (1905-1980): fi lósofo exis- sociólogo Gilberto Freyre. (Nota da IHU On- literatura. A literatura traz em si todos tencialista francês. Escreveu obras teóricas, Line) romances, peças teatrais e contos. Seu primei- 25 Joan Miró (1893-1983): importante escul- os sentimentos humanos: amor, ódio, ro romance é A náusea (1938), e seu principal tor e pintor surrealista catalão. (Nota da IHU alegria, tristeza, angústia, desespe- trabalho fi losófi co é O ser e o nada (1943). On-Line) ro, esperança, dúvida, fé... Deus e o Sartre defi ne o existencialismo, em seu ensaio 26 Paul Valéry (1871-1945): fi lósofo, escritor e O existencialismo é um humanismo, como a poeta francês da escola simbolista. Seus escri- diabo são personagens obrigatórios, doutrina na qual, para o homem, “a existên- tos incluem interesses em matemática, fi loso- embora às vezes clandestinos, escon- cia precede a essência”. Na Crítica da razão fi a e música. Sua obra poética foi infl uenciada didos sob mil disfarces. O Bem e o dialética (1964), Sartre apresenta suas teorias por Stéphane Mallarmé e infl uenciou Jean-Paul políticas e sociológicas. Aplicou suas teorias Sartre. Seu primeiro livro é Introduction à la Mal, o mistério que todos somos, tudo psicanalíticas nas biografi as Baudelaire (1947) méthode de Léonard de Vinci (1895) e Discours e Saint Genet (1953). As palavras (1963) é a en l’honneur de Goethe (1932). (Nota da IHU para o cinema. A ilha do dia anterior, Baudo- primeira parte de sua autobiografi a. Em 1964, On-Line) lino e A misteriosa chama da Rainha Loana são foi escolhido para o prêmio Nobel de literatu- 27 Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969): outras de suas obras. (Nota da IHU On-Line) ra, que recusou. (Nota da IHU On-Line) sociólogo, fi lósofo, musicólogo e compositor, 8 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 “A literatura oscila, então, entre o ceticismo e a fé, e daí o desespero e a O poder teológico da literatura angústia dos escritores, O presidente da Soter, Afonso Soares, acredita que a teologia céticos ou crentes” da revelação tem muito a aprender se adotasse um diálogo mais estreito com a literatura em geral e com a literatura gundo a qual “o mundo totalmente ilu- bíblica em particular minado brilha sob a luz de uma terrível desventura”, encontra sua tradução num verso que diz “Dá-se que hoje dói na vida POR GRAZIELA WOLFART tanta luz”. Resumindo: a poesia de João Cabral acaba por descobrir que o racio- nalismo nos desumanizou. No mundo da técnica sem o suplemento de alma que Bergson28 reclamava e no mundo da ci- IVULGAÇÃO

ência sem consciência que Morin denun- D ciou, “o esquadro disfarça o eclipse/ que os homens não querem ver”. O eclipse é a crise do homem e então o poeta re- voluciona a sua astronomia dizendo que “nova espécie de sol / eu, sem contar, descobria”. A nova espécie de sol é o ser humano e então, da fase marcada pela astronomia, sua obra passa para uma fase marcada pela antropologia. Não é mais o racional nem o econômico, é o humano que conta. Ora, Rahner nos ensi- nou que da antropologia para a teologia é um passo. Ao descobrir o homem, João Cabral descobre a sua própria transcen- dência. E o extraordinário é que se trata de uma mulher. A bailadora andaluza re- voluciona a astronomia do poeta quando faz a conexão com o sagrado, aquele sa- grado que explode nem que seja na vida ara o professor Dr. Afonso Maria Ligorio Soares, o ponto de inter- severina. Por isso, deixe agora que eu lhe secção entre teologia e literatura é que ambas “são aproximações diga, quem aconselha o retirante a pular possíveis das reivindicações humanas, das explicações humanas e para dentro da vida? Pode ser Seu José, da condição humana”. Na entrevista que concedeu por e-mail à mas também pode ser São José mestre IHU On-Line, o presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da carpina. Por que não? RelPigião (Soter) considera que o maior avanço nesse tema é assumir a tríplice possibilidade de aproximação entre a crítica literária, os estudos dos antigos defi niu o perfi l do pensamento alemão das úl- textos sagrados e a teologia/ciência da religião, sem pretender suprimi-las ou timas décadas. Adorno fi cou conhecido no mun- do intelectual, em todos os países, em especial confundi-las. Afonso Maria Ligorio Soares é chefe do Departamento de Teolo- pelo seu clássico Dialética do Iluminismo, escri- gia e Ciências da Religião da PUC-SP e pesquisador do Programa de Pós-Gra- to junto com Max Horkheimer, primeiro diretor do Instituto de Pesquisa Social, que deu origem duação em Ciências da Religião da mesma instituição. É mestre em Teologia ao movimento de idéias em fi losofi a e sociologia Fundamental, pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), e doutor em que conhecemos hoje como Escola de Frankfurt. (Nota da IHU On-Line) Ciências da Religião, pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), com 28 Henri-Louis Bergson (1859-1941): escritor e pós-doutorado em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Ja- fi l ósofo francês. Herdeiro de um pensamento ro- neiro (PUC-Rio). Atualmente, prepara tese de Livre-Docência em Ciências da mântico, propugna, sobretudo, a ação. Ataca a lógica como uma infl uência nefasta que deve ser Religião. É autor de, entre outros, Interfaces da revelação: pressupostos para vencida, o que o classifi ca como irracionalista. uma teologia do sincretismo religioso (São Paulo: Paulinas, 2003). Sobre ele, confi ra a revista IHU On-Line número 237, de 24-09-2007. (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 9 IHU On-Line - Como o senhor carac- o mais fundo possível em nossa arden- C) os elementos religiosos, proposi- teriza a relação entre a teologia e a te busca de completude, de respostas, ções teológicas presentes na obra lite- literatura? Qual é a contribuição que justamente na “morada do ser” (Hei- rária como simples aspectos da cultu- uma área pode dar à outra? Quais os degger). ra e da linguagem de um povo (neste maiores avanços dessa discussão en- Há um jogo interessante entre a caso, o poeta/romancista serve-se de quanto tema de pesquisa acadêmica literatura que se interessa pelo teolo- elementos religiosos em sua obra ape- e quais os principais “entraves” e gal como matéria-prima do discurso e nas porque estão presentes na cultura desafi os? o teológico (teologia) que se interessa e na linguagem; não quer, em princí- Afonso Soares - Vou alargar a resposta pela literatura como “linguagem de pio, questioná-los ou defendê-los a para a área de Ciência da Religião que, empréstimo” (expressão usada por H. priori). embora distinta, possui evidentes afi - Lima Vaz3). O ponto de intersecção é Enfi m, há ricas possibilidades de nidades com a Teologia. Vivemos uma que ambas, literatura e teologia, são diálogo entre a crítica literária, os es- época muito rica de reconhecimento aproximações possíveis das reivindica- tudos dos antigos textos sagrados e a das múltiplas possibilidades de diálo- ções humanas, das explicações huma- teologia/ciência da religião. Mas como go interdisciplinar na busca de uma nas e da condição humana (fi losofi a, você pergunta por entraves e avanços, aproximação, o mais fi dedigna possí- arte, literatura). creio que o maior avanço é assumir vel, à realidade humana. Nesse senti- Concordo com um dos especialis- essa tríplice possibilidade de aproxi- do, não está isolada a Ciência da Re- tas nesse diálogo literatura-teologia, mação, sem pretender suprimi-las ou ligião quando, na tentativa de melhor José Carlos Barcellos4 (infelizmente, confundi-las. O entrave está justa- (re)conhecer o fenômeno religioso, recém falecido em fevereiro passado), mente no contrário: não perceber essa abraça-o de vários ângulos (antropo- quando distingue as três abordagens distinção ou reivindicar a legitimidade logia, história, geografi a, psicologia, possíveis da mútua relação teologia- de um olhar (o do teólogo sistemático, história, física, teologia) e, dentre literatura: por exemplo) em prejuízo de outro (o eles, a crítica literária. A) a leitura teológica de uma obra do crítico literário, no caso). Por sua vez, do lado da própria litera- literária (é o que faz, por exemplo, tura vem-se construindo uma interessan- Antonio Manzatto quando lê os roman- IHU On-Line - Qual é a importância te refl exão que lê a obra de arte como ces de ); literária de textos com linguagem po- expressão de uma busca de sentido que, B) a percepção do próprio texto li- ética escritos por místicos cristãos, comumente, se explicita na indagação terário como portador de uma refl exão como São João da Cruz ou Santa Tere- fi l osófi ca, além de se crer respondida teológica (por exemplo: Adélia Prado e, sa de Ávila? E o que o senhor pensa da nas mais variadas religiões. Essa apro- cada vez mais, o próprio Rubem Alves) qualidade literária dos textos de ora- ximação às vezes tem sido chamada de dores sacros, como Antônio Vieira? “teopoética” (K.J. Kuschel, Rubem Al- 3 Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921 Afonso Soares - Há que se ver caso a 1 2 – 2002): fi lósofo e padre jesuíta, autor de im- ves , Salma Ferraz etc.). portante obra fi losófi ca. A IHU On-Line nú- caso. Os exemplos citados — São João A perspectiva que temos privilegia- mero 19, de 27 de maio de 2002, dedicou sua da Cruz,5 Santa Teresa de Ávila6 e Antô- do aqui no Programa de Pós-Gradua- matéria de capa à vida e à obra de Lima Vaz. Sobre ele também pode ser consultado na IHU 5 João de Yepes ou São João da Cruz (1542- ção em Ciências da Religião da PUC-SP On-Line nº 140, de 9 de maio de 2005, um 1591): Ingressou na Ordem dos Carmelitas aos entende que uma aproximação compe- artigo em que comenta a obra de Teilhard de 21 anos de idade, em 1563, quando recebe o tente da Literatura na forma de crítica Chardin. Celebrando a memória do Padre Vaz, nome de Frei João de São Matias, em Medina a edição 142, de 23 de maio de 2005, publicou del Campo. Em setembro de 1567, encontra-se literária ajuda ao cientista da religião a editoria Memória. Confi ra, ainda os seguintes com Santa Teresa de Jesus, que lhe fala sobre numa melhor compreensão de seu ob- materiais, publicados pela IHU On-Line: uma o projeto de estender a Reforma da Ordem jeto de pesquisa (seja a religião, ou o entrevista intitulada “Vaz e a fi losofi a da na- Carmelita também aos padres. Aceitou o desa- tureza”, com Armando Lopes de Oliveira, na fi o e trocou o nome para João da Cruz. No dia sagrado ou seus termos equivalentes). edição 187, de 03-07-06; a entrevista “Vaz: 28 de novembro de 1568, juntamente com Frei Por isso, nossa abordagem enfati- intérprete de uma civilização arreligiosa”, Antônio de Jesús Heredia, inicia a Reforma. za o “poder teológico da literatura”, com Marcelo Fernandes de Aquino, na edição No dia 25 de janeiro de 1675 foi beatifi cado 186, de 26-06-06; os artigos “O comunitarismo por Clemente X. Foi canonizado em 27 de de- a saber, a capacidade que só a arte e cristão e a refundação de uma ética transcen- zembro de 1726 e declarado Doutor da Igreja o texto literário possuem de nos levar dental”, na edição 185, de 19-06-06, e “Um em 1926 por Pio XI. Em 1952 foi proclamado diálogo cristão com o marxismo crítico. A con- “Patrono dos Poetas Espanhóis”. Sua festa é tribuição de Henrique de Lima Vaz”, na edição comemorada no dia 14 de dezembro. (Nota da 1Rubem Alves (1933): psicanalista, educador, 189, de 31-07-06, ambos de autoria do Prof. IHU On-Line) teólogo e escritor brasileiro, autor de livros e Dr. Juarez Guimarães. Inspirada no pensamen- 6 Teresa de Ávila (1515-1582): freira carme- artigos sobre temas religiosos, educacionais e to de Lima Vaz, a IHU On-Line edição 197, lita espanhola nascida em Ávila, Castela, fa- existenciais, além de uma série de livros infan- de 25-09-2006 trouxe como tema de capa A mosa reformadora da ordem das Carmelitas. tis. (Nota da IHU On-Line) política em tempos de niilismo ético. Nessa Canonizada por Gregório XV (1622), é feste- 2 Salma Ferraz de Azevedo de Oliveira: dou- edição, confi ra especialmente as entrevistas jada na Espanha em 27 de agosto, e no resto tora em Letras pela Universidade Estadual com Juarez Guimarães, intitulada “Crise de do mundo em 15 de outubro. Foi a primeira Paulista Júlio de Mesquita Filho, é professora fundamentos éticos do espaço público”, e com mulher a receber o título de doutora da igreja, na Universidade Federal de Santa Catarina e Marcelo Perine, “Padre Vaz e o diálogo com a por decreto de Paulo VI (1970). Sobre Teresa, atua na Pós-Graduação, orientando projetos modernidade”. (Nota da IHU On-Line) confi ra Teresa – A santa apaixonada (Rio de de pesquisa na área de Teopoética e estudos 4 Confi ra, nesta edição, um depoimento de Janeiro: Objetiva, 2005), de autoria de Rosa comparados entre Teologia e Literatura. (Nota Paulo Soethe sobre José Carlos Barcellos. Amanda Strausz; Obras completas (São Paulo: da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) Loyola, 1995); Santa Teresa de Jesus – “Livro 10 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 IHU On-Line - Quem o senhor cita como grandes nomes da literatura de “São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila e Antônio língua portuguesa em relação com a teologia? Vieira são uma feliz síntese entre experiência mística Afonso Soares - Eu diria apenas o se- guinte: se são grandes nomes da lite- e qualidade literária dos textos dela decorrentes” ratura em língua portuguesa [e gran- des não são necessariamente os mais famosos ou mais badalados na mídia], então já estão em relação com a te- ologia. Porque a boa teologia vai se nio Vieira7 — são, evidentemente, uma “exemplo magnífi co das grandes pos- deixar provocar pelo que escreveram feliz síntese entre experiência mística sibilidades da narrativa”. Basta acom- ou estão escrevendo. Explicitar essa e qualidade literária dos textos dela panharmos o que têm escrito Northrop relação e tirar dela algumas conseqü- decorrentes. Mas o casamento não é Frye9 (O código dos códigos. São Pau- ências é tarefa de nós outros, do lado automático. Pode haver santos anal- lo: Boitempo), Harold Bloom10 (Jesus e de cá. Há nomes para todos os gostos e fabetos ou ruins de poesia convivendo Javé. : Objetiva), e Jack pressupostos (porque a teologia é das com artistas da palavra que repudiam Miles11 (Deus, uma biografi a. São Pau- raras ciências que põe a público seus qualquer insinuação de leitura místi- lo: Companhia das Letras). pressupostos): de Antonio Vieira a Sa- ca de seu talento literário. Para mim, Também concordo com Alter quan- ramago e Lobo Antunes12, sem esque- está justamente aí o fascínio dessa do este afi rma que os estudos da Bíblia cer Mia Couto13 e os africanos; entre aproximação; ela não é óbvia. E, mui- como literatura precisam ir além da nós, Machado de Assis14 a Guimarães tas vezes, estará onde não imaginarí- análise das estruturas formais e inves- Rosa,15 de Cruz e Sousa16 a Adélia Pra- amos que estivesse. Por isso, tendo a tir numa compreensão mais profunda preferir uma abordagem que enfatize dos valores, da perspectiva moral con- 12 António Lobo Antunes (1942): considerado um dos mais importantes autores da literatura o “poder teológico da literatura” (por tida num tipo particular de narrativa. portuguesa do século XX, vive em Lisboa, dedi- ser mais imprevisível) antes de inves- Essa volta à Bíblia como texto literário cando-se exclusivamente à escrita. Recebeu, tigar o poder literário da teologia, talvez seja uma das últimas chances em 2007 o Prêmio Camões, mais importante galardão literário de língua portuguesa. (Nota embora também seja importante essa de aggiornamento e conversão para da IHU On-Line) perspectiva de estudo. a teologia cristã. Ler a Bíblia sempre 13 (1955): um dos escritores mo- incomodou os teólogos (escolásticos, çambicanos mais conhecidos no estrangeiro. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line - Qual é a sua opinião so- acadêmicos, liberacionistas etc.) por- 14 Joaquim Maria Machado de Assis (1839- bre a Bíblia enquanto obra literária? que tira nosso chão conceitual, es- 1908): escritor brasileiro, considerado o pai do Afonso Soares - Compartilho da desco- tremece a precisão das formulações realismo no Brasil, escreveu obras importantes 8 como Memórias póstumas de Brás Cubas (Rio berta confessada por Robert Alter em dogmáticas, nos joga na cara que fa- de Janeiro: Ediouro, 1995), Dom Casmurro A arte da narrativa bíblica (recente- zer teologia (como diz Rubem Alves) (Erechim: Edelbra, 1997), Quincas Borba (15. mente publicado no Brasil pela Com- não é falar sobre o mistério, mas estar ed. São Paulo: Atica, 1998) e vários livros de contos, entre eles a obra-prima O alienista panhia das Letras): a Bíblia tem muito diante dele. Creio que a teologia da (32. ed. São Paulo: Ática, 1999), que discute a ensinar a quem quer que se interes- revelação (teologia fundamental) te- a loucura. Também escreveu poesia e foi um se por narrativa. Sua arte, diz Alter, ria muito a aprender se adotasse com ativo crítico literário, além de ser um dos cria- dores da crônica no país. Foi o fundador da “parece simples, mas é maravilhosa- carinho um diálogo mais estreito com Academia Brasileira de Letras. Confi ra a entre- mente complexa” e bem por isso é um a literatura em geral e com a literatu- vista especial realizada pela IHU On-Line com ra bíblica em particular. Maílde Trípoli, em 20-04-2007, no site www. da vida” (4. ed. São Paulo: Ed. Paulus, 1983). .br/ihu, intitulada O negro na obra de (Nota da IHU On-Line) Machado de Assis. (Nota da IHU On-Line) 7 Antônio Vieira (1608-1697): Padre jesuíta, di- 15 João Guimarães Rosa (1908-1967): es- plomata e escritor português. Veio para o Brasil 9 Herman Northrop Frye (1912-1991): crítico critor, médico e diplomata brasileiro. Entre em 1915 e logo começou seus estudos no Colé- literário canadense, um dos mais célebres do suas obras, citamos: Sagarana, Corpo de bai- gio dos Jesuítas. Mais tarde, ingressou na Com- século XX. Seu livro O código dos códigos (The le, Grande sertão: veredas, considerada uma panhia de Jesus. Foi um grande orador sacro. great code, no original) examinou como as ce- das principais obras da literatura brasileira, Desenvolveu expressiva atividade missionária nas e imagens da Bíblia são a base de toda a Primeiras estórias (1962), Tutaméia (1967). A entre os indígenas do Brasil procurando com- literatura ocidental. (Nota da IHU On-Line) edição 178 da IHU On-Line, de 2 de maio de bater a sua escravidão pelos senhores de en- 10 Harold Bloom (1930): professor e crítico 2006, dedicou ao autor a matéria de capa, sob genho. Entre suas obras estão: Sermões, com- literário norte-americano, conhecido como o título “Sertão é do tamanho do mundo”. 50 posto por 16 volumes que foram escritos entre humanista porque sempre defendeu os poetas anos da obra de João Guimarães Rosa. De 25 1699 e 1748; História do futuro (1718); Cartas românticos do século XIX. (Nota da IHU On- de abril a 25 de maio de 2006 o IHU promoveu (1735-1746), em três volumes; Defesa perante Line) o Seminário Guimarães Rosa: 50 anos de Gran- o tribunal do Santo Ofício (1957), composto por 11 Jack Miles (1942) autor americano e vence- de Sertão: Veredas. O IHU promove, de 30 de dois volumes e Arte de furtar, escrito em 1744, dor do Prêmio Pulitzer e do MacArthur Fello- setembro a 3 de outubro deste ano o Seminá- porém, de autoria duvidosa. Sobre Antônio Viei- wship. Seu trabalho sobre religião, política e rio Nacional de Literatura e Cultura Brasilei- ra, confi ra a IHU On-Line número 244, de 19- cultura tem sido publicado em inúmeras pu- ra: Machado e Rosa. Mais informações no sítio 11-2007. (Nota da IHU On-Line) blicações, incluindo The New York Times, The WWW.unisinos.br/ihu (Nota da IHU On-Line) 8 Confi ra, nesta edição, uma entrevista exclu- Boston Globe, The Washington Post, e The Los 16 João da Cruz e Sousa (1861-1898): poeta siva com Robert Alter. (Nota da IHU On-Line) Angeles Times. (Nota da IHU On-Line) brasileiro, alcunhado Dante Negro e Cisne Ne- SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 11 do, sem esquecer os que desagradam os críticos porque populares (como Jorge Amado).

IHU On-Line - Falando sobre o ensi- no-religioso como disciplina escolar, Um mergulho na narrativa bíblica qual seria o papel do recurso da lite- ratura na discussão simbólico-religio- Para o especialista na narrativa dos textos bíblicos Robert Al- sa em sala de aula? Afonso Soares - Eis uma discussão que ter, a erudição levantou graves questões sobre a confi abilidade não pode mais ser adiada. Estamos no da Bíblia como relato histórico começo de uma salutar aproximação entre Ensino Religioso e Ciência da POR GRAZIELA WOLFART Religião, que deveria paulatinamente ir afastando o fantasma dos modelos catequético e teológico para o ensino DIVULGAÇÃO obert Alter, autor de A arte religioso nas escolas (sobretudo nas pú- blicas). Muitos ainda não entenderam na narrativa bíblica, cons- isso. Há pressões no Congresso Nacional tata: “a Bíblia nos dá muitas (de evangélicos e católicos ultraconser- representações penetrantes vadores) para fazer regredir a Lei que da natureza humana, da fa- dispõe sobre o Ensino Religioso para o Rmília, do domínio da política e muito modelo catequético (cada um vai à es- mais, o que ainda é relevante para cola e aprende a religião dos pais ou a nossas vidas individuais e coletivas”. do professor). O recurso à literatura, se E, sobre a atualidade da Bíblia, ele é bem informado dos resultados já atin- enfático: “os insights da literatura e gidos nessa nova aproximação entre li- de outras artes permanecem frescos teratura e teologia, seria uma estraté- e relevantes, mesmo depois de dois gia muito bem-vinda de sensibilização milênios e meio”. Em entrevista con- de crianças e jovens para o sentimento religioso, a espiritualidade, os valores, cedida por e-mail à IHU On-Line, ele a cidadania e o respeito pelo outro em fala sobre as características que marcam os textos e os diálogos da Bíblia sua diversidade. Sagrada e ressalta a importância das convenções literárias dos textos antigos para compreendermos mais nitidamente o que se passa neles. Um dos princi- IHU On-Line - Qual é a contribuição pais críticos literários americanos, Robert Alter é professor da Universidade da literatura para a teologia do diálo- Berkeley, nos EUA. Entre seus livros publicados em português, citamos Anjos go inter-religioso? necessários: tradição e modernidade em Kafka, Benjamin e Scholem (Rio de Afonso Soares - De forma semelhan- Janeiro: Imago, 1992), Em espelho crítico (São Paulo: Perspectiva, 1998), e, te, os resultados do diálogo entre crí- claro, A arte da narrativa bíblica (São Paulo: Companhia das Letras, 2007). tica literária e refl exão teológica são Confi ra a entrevista. preciosos para a descoberta de pontos comuns entre as religiões no que diz respeito à espiritualidade, aos valores e à disposição de aprender de quem é diferente. A área de mística compa- IHU On-Line - Em que sentido podemos comparar as narrativas bíblicas 17 rada tem feito avanços importantes com os grandes clássicos da literatura? nessa direção no cotejo dos textos Robert Alter - As narrativas bíblicas me parecem plenamente comparáveis sagrados de diferentes tradições es- aos grandes clássicos da literatura, antigos e modernos. Elas refl etem um pirituais. Uma literatura comparada senso insidioso de estrutura narrativa e de uso e sofi sticados estilos de pro- possui potencial para uma bela contri- sa. Elas nos dão vigorosas representações de caráter, freqüentemente com buição nessa direção. grande profundidade psicológica. Como Erich Auerbach1 argumentou muito tempo atrás, os personagens bíblicos desenvolvem-se no tempo, diferente dos personagens homéricos que são imutáveis, e isso os torna mais próximos gro. Foi um dos precursores do simbolismo no dos personagens na grande tradição realística do romance. Brasil. (Nota da IHU On-Line) 17 Sobre o tema “Mística comparada”, confi ra uma entrevista com Faustino Teixeira, publi- 1 Erich Auerbach (1892-1957): fi lólogo alemão e estudioso de literatura comparada assim cada na 133ª edição da IHU On-Line, de 21 de como crítico de literatura. Seu trabalho mais conhecido é Mimesis, uma história da represen- março de 2005. (Nota da IHU On-Line) tação na literatura ocidental dos tempos antigos até os modernos. (Nota da IHU On-Line) 12 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 IHU On-Line - Quais elementos artís- ticos e narrativos são mais comuns nos livros bíblicos? Em que medida eles enriquecem os textos no senti- “A Bíblia é, além de tudo, uma antologia histórica de do literário? Robert Alter - Se eu tivesse que esco- escritos hebreus abrangendo quase 900 anos” lher um único elemento artístico que é manifestado de diferentes maneiras através da Bíblia, seria o uso da repeti- ção com signifi cante diferença. Isso se vê na poesia, na qual o verso é cons- truído sobre um princípio que parece está acontecendo nas histórias — quais confi rmam o que encontramos na Bíblia. com sinonimidade entre duas metades são as implicações de uma inserção Mas isso não compromete a autoridade paralelas do verso, mas onde, na ver- particular de diálogo, da recorrência da Bíblia como coleção de trabalhos li- dade, o desenvolvimento quase sem- de um tema, de um paralelo entre dois terários. As narrativas, para usar uma pre toma lugar — aumento, intensifi - episódios etc. distinção proposta por Hans Frei,2 são cação, focalização, concretização do “como-história” em vez de rigorosamen- material, da primeira metade do verso IHU On-Line - Na sua opinião, por que te históricas, e isso deve ser sufi ciente na segunda. Nas narrativas, o tempo os textos da Bíblia são escritos em para nós, leitores. A Bíblia é, além de todo frases e sentenças inteiras são prosa, e não em verso? Qual a razão tudo, uma antologia histórica de escri- repetidas, quer por diferentes perso- de ter tantos diálogos nos relatos? tos hebreus abrangendo quase 900 anos nagens, quer por um personagem ou Robert Alter - A prosa é, para começar, e que, portanto, refl ete os pontos de por um narrador. Mas, na vasta maioria o sinal do literário em contraposição vista e agendas de muitos escritores di- dos casos, existem pequenas mudan- à composição oral — uma signifi cativa ferentes que freqüentemente discordam ças abruptas da repetição literal: itens mudança no mundo antigo. A poesia é entre si. A heterogeneidade acrescenta são substituídos ou apagados, novos literalmente memorável, prestando- interesse a ela, na minha opinião. itens adicionados, a ordem dos termos se à memorização, considerando que a mudada. E essas mudanças abruptas prosa tem uma fl exibilidade e nuance IHU On-Line - Como entender a atu- do literal são quase sempre pontos em que é um pouco diferente. Eu também alidade da Bíblia? O que explica o in- que um novo sentido é revelado. No assino embaixo da explicação proposta teresse do leitor contemporâneo em nível do argumento (mote), geralmen- por estudiosos de que os escritores he- revisitar textos da cultura ocidental te parece como se a mesma história breus quiseram diferenciar seu traba- de tantos séculos atrás? estivesse sendo contada sobre per- lho dos épicos poéticos amarrados em Robert Alter - Acredito que a grande sonagens diferentes, mas um exame mitologia pagã das culturas vizinhas. O literatura jamais fi ca datada. Édipo Rei cuidadoso mostra que elementos do diálogo é extremamente proeminente ainda é um persuasivo drama sobre o argumento compartilhado são modifi - nessas narrativas em prosa. Por isso, em fútil esforço humano para escapar da cados para mostrar-nos algo específi co parte, foi uma cultura que sublinhou necessidade do destino, mesmo que a respeito do personagem cuja história a importância da linguagem e como o não partilhemos as idéias de Sófocles a está sendo narrada. uso e a manipulação da linguagem têm respeito de oráculos e deuses. A Bíblia conseqüências práticas. É também nos dá muitas representações pene- IHU On-Line - Como a compreensão uma tradição narrativa que destaca a trantes da natureza humana, a família, da composição literária da Bíblia fa- interação de fi guras individualizadas o domínio da política e muito mais (eu cilita na interpretação do sentido dos falando entre si e respondendo umas relatos bíblicos? às outras. Em Homero, existem gran- 2 Hans Wilhelm Frei (1922-1988): teólogo co- Robert Alter - Qualquer escritor lite- des, comoventes discursos (falas), mas nhecido por sua obra na área de hermenêutica rário trabalha com um conjunto com- são falas, e não exibem o notável dar e bíblica, especifi camente na interpretação da narrativa. Dois de seus livros são fundamentais plexo de convenções e técnicas que receber do diálogo que se encontra na para se compreender a nova ênfase dada pela são compreendidas geralmente pelos Bíblia hebraica. teologia à narrativa: The eclipse of biblical leitores porque são automáticos na narrative (“O eclipse da narrativa bíblica”), de 1974, uma análise da hermenêutica bíblica cultura. O problema com a Bíblia é IHU On-Line - Qual é o grau de con- nos séculos XVIII e XIX, e The identity of Je- que, ao longo dos séculos, conforme fi a bilidade da Bíblia enquanto relato sus Christ (“A identidade de Jesus Cristo”), de seus textos são lidos estritamente em histórico? Enquanto texto literário, 1975, em que sugere que a teologia deve ser construída a partir da natureza narrativa dos termos teológicos, perdemos as cha- o senhor considera-a uma obra coesa evangelhos. Junto de outros teólogos como ves para essas convenções. Na tenta- ou contraditória? George Lindbek e David Kelsey, tomou parte tiva de recuperar os princípios artísti- Robert Alter - A erudição levantou do movimento conhecido como Escola de Yale, também chamado de pós-liberalismo ou teolo- cos com os quais os antigos escritores graves questões sobre a confi abilidade gia narrativa (dependendo da ênfase de quem hebreus compuseram seus trabalhos, da Bíblia como relato histórico, e os re- classifi ca), cujo foco está no caráter herme- podemos ver mais plenamente o que gistros arqueológicos muitas vezes não nêutico (e narrativo) da vida e da prática das comunidades cristãs. (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 13 mencionaria as histórias de Jacó e José e seus irmãos e a de Davi como exemplos especialmente poderosos), que ainda são relevantes para nossas vidas indivi- duais e coletivas. Se você já teve um ir- A fé poética dos crentes literários mão, a comovente história da alienação de José e seus irmãos e então, após vá- rios anos de separação, o grande ápice Na opinião do doutor em Literatura Rafael Camorlinga Alcaraz, de revelação, “Eu sou seu irmão José”, literatura e teologia podem colaborar em pé de igualdade, tocou você. Faria clamor semelhante embora com incumbências e objetivos específi cos para a poesia bíblica — os Salmos, Jó, os Profetas. No que concerne à tecnologia, novos desenvolvimentos devem fazer dos velhos obsoletos, mas os insights da ntre os escritores, assim como entre outros profi ssionais, literatura e de outras artes permanecem há crenças de todo tipo. O que eles têm em comum, frescos e relevantes, mesmo depois de entre si e com os leitores, é a fé poética que os torna dois milênios e meio. ‘crentes literários’.” A refl exão é do mexicano Rafael Camorlinga Alcaraz, que reside no Brasil desde 1985. Li- IHU On-Line - Qual é a especifi cidade cenciado“E e mestre em Teologia pela Universidade Lateranense, de Roma, e do Gênesis enquanto obra literária? licenciado em Lingüística pela UFPR e UFSC, é também doutor em Literatura Robert Alter - Não estou certo de que pela UFSC e pela UNAM, do México. Atualmente, é professor na graduação e seja possível reduzir o Gênesis a um na pós-graduação da UFSC, nas disciplinas de língua espanhola e literatura único sentido específi co. É organizado latino-americana e na área de literatura comparada, tendo como linha de em dois grandes painéis de diferentes pesquisa a Teopoética – Literatura e teologia. Na entrevista que concedeu tamanhos — primeiro, a História Primiti- va e, então, as Narrativas Patriarcais. A por e-mail para a IHU On-Line, Camorlinga afi rma: “ainda que a preocupa- conexão temática entre elas poderia ser ção mor da teologia seja com o verum (verdadeiro), ela não pode abrir mão o padrão do reverso da primogenitura, do pulchrum (belo), sob pena de tornar-se ‘feia’; nem a literatura, voltada uma idéia que tem amplas implicações para a estética, pode desdenhar da ética, pois se tornaria apenas ‘cosméti- teológicas e históricas para a antiga Isra- ca’”. el. Quando o moribundo Jacó, abenço- ando seus dois netos, cruza suas mãos, a IHU On-Line – Como o senhor descreve a relação entre literatura e teolo- despeito dos protestos de José, colocan- gia no passado e nos dias atuais? do a mão direita na cabeça do mais novo Rafael Camorlinga Alcaraz - Num passado remoto, na antiguidade, ine- e a esquerda na do mais velho, temos xistia a preocupação por separar mythos e logos (mito–discurso racional). A um tipo de ideograma sumarizado do Li- mitologia explicava tudo, apelando para Deus ou para deuses. Porém, para vro do Gênesis. dizer o “indizível” e nomear o “inominável”, as narrações tiveram que assu- mir formas, às vezes, altamente literárias. São emblemáticos a este respeito IHU On-Line - O senhor se diz um ar- os textos bíblicos, do Gênese ao Apocalipse, passando pelos Evangelhos que queólogo literário. Qual é a principal compendiam os ditos e feitos de Jesus Cristo, poeta por excelência (Paulo 1 riqueza em relacionar teologia e lite- Leminski). ratura? Durante o longo período medieval predominou, inconteste, a teologia. Robert Alter - Como indiquei em minha A própria fi losofi a não era mais que ancilla (serva) daquela. A linguagem resposta à terceira questão, cobrir as cunhada então era precisa e objetiva, longe da ambigüidade e subjetividade convenções literárias dos textos antigos próprias do discurso literário. nos habilita a enxergar mais nitidamen- No entanto, como o ser humano “não vive só de pão”, mas também de te o que se passa neles. Esses escritores fi c ções, surgiram os hinos litúrgicos, a poesia mística e os escritos hagiográ- foram, claro, impelidos por motivos re- fi c os que combinaram o arroubamento místico com a inspiração poética. ligiosos urgentes — não estou certo se o A reação contra a Idade Média, ensejada pelo Iluminismo, acarretou a termo abstrato “teologia” se aplica rigo- desconfi ança perante os escritos teológicos e inaugurou o que viria a cha- rosamente a eles —, mas eles escolheram mar-se “secularização”. Aproximamo-nos, assim, da época atual em que as depositar sua visão religiosa na maior ciências teológica e literária, ambas humanas, podem colaborar em pé de parte em artística narrativa e forte po- igualdade, embora com incumbências e objetivos específi cos. esia. Então, se você vê mais claramente 1 Paulo Leminski (1944-1989): natural de Curitiba, foi escritor, poeta, tradutor e professor de como a narrativa e a poesia funcionam, história e redação. Também foi letrista e músico, tendo uma de suas composições, “Verdura”, você também chegará a uma profunda gravada pelo cantor . Dentre as suas obras, destacam-se: Caprichos e relaxos compreensão das nuances e complexi- (São Paulo, Brasiliense, 1983) e Distraídos venceremos (São Paulo, Brasiliense, 1987). (Nota dade de suas visões religiosas. da IHU On-Line)

14 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 salvação eterna do cristão, pois “fora “Tendo ambas como denominador comum o ser da Igreja não há salvação” (extra Ec- clesiam nulla salus), a autoridade in- humano e utilizando-se do mesmo instrumento, cumbida de tamanha responsabilidade não pode falhar: é infalível. Daí a in- isto é, a linguagem, para atingi-lo, as interferências transigência e a intolerância em ques- tões que ela julga essenciais. tornam-se inevitáveis. Daí a possibilidade de Estudiosos do fenômeno literário, a exemplo de Alceu Amoroso Lima,4 Oc- cooperação ou o risco de confl ito, ‘a relação tensa tavio Paz e Northrop Frye,5 associam a inspiração literária, sobretudo a poéti- entre teologia e literatura’” ca, ao impulso religioso. Mas esse im- pulso criador, segundo Paz, ultrapassa os limites impostos pelas igrejas. Estas, IHU On-Line – O senhor considera que mente, cabe assinalar as exigências aliás, não têm direito de administrar ou essa relação entre literatura e teolo- dos respectivos cânones e a fé que eles de fi scalizar as criações do espírito, que gia pode ser considerada pacífi ca? alicerçam: fé teológica e fé poética. “sopra onde quer” (João 3, 8): dentro, Rafael Camorlinga Alcaraz - Remeten- Enquanto a primeira prima pela exa- fora ou até contra a instituição. do à questão anterior, o movimento tidão e exige acatamento onímodo, a laicista e a conseqüente secularização segunda pede apenas a “suspensão da IHU On-Line – Qual é a sua opinião delimitaram os campos. Estes são teo- descrença”, sem mais injunções que a sobre a insinuação de Karl-Joseph ricamente estanques, mas, na prática, perda da fruição estética. Kuschel, um teólogo católico, de que fi c am permeáveis às incursões recí- Em suma, não é de se estranhar Deus é um péssimo princípio estilís- procas. Ainda que a preocupação-mor que a tensão detectada entre teologia tico? da teologia seja com o verum (verda- e literatura se refl ita nos respectivos Rafael Camorlinga Alcaraz - Ao que deiro), ela não pode abrir mão do pul- expoentes. Felizmente, as tentativas tudo indica, a questão visa a indagar chrum (belo), sob pena de tornar-se bem-sucedidas em prol do encontro se a literatura pode ser reduzida ao “feia”; nem a literatura, voltada para “dialógico” são freqüentes. Temos R. papel de meio para atingir determina- 2 a estética, pode desdenhar da ética, Guardini, do campo teológico. Já do do objetivo ou bandeira para lutar em pois se tornaria apenas “cosmética”. lado oposto, basta lembrar Jorge Luis prol de uma causa. A resposta do críti- 3 Tendo ambas como denominador Borges, que detonou os limites entre co alemão é contundente: não. E se a comum o ser humano e utilizando-se teologia e literatura ao afi rmar: “todo causa for divina? Idem. A obra a servi- do mesmo instrumento, isto é, a lin- homem culto é teólogo, e para isso ço da religião facilmente pode acabar guagem, para atingi-lo, as interfe- não é necessária a fé”. engrossando o volume de escritos apo- rências tornam-se inevitáveis. Daí a logéticos ou parenéticos, de escasso possibilidade de cooperação ou o ris- IHU On-Line – Qual é o lugar da Igreja ou nenhum valor literário. Nesse sen- co de confl ito, “a relação tensa entre nessa complexa relação entre litera- tido, aponta G. Benn, o primeiro dos teologia e literatura” preconizada por tura e teologia? autores citado por Kuschel: “quando Kuschel. Rafael Camorlinga Alcaraz - Falar da a gente se torna religioso, abranda a Igreja (católica) quando o assunto en- expressão... Dá-se o afrouxamento do IHU On-Line – Como entender um volve a teologia, é compreensível. Ela estilo”. Análogo ponto de vista é man- certo distanciamento que acontece se considera a legítima herdeira da re- tido também por outros escritores: entre teólogos e críticos literários? velação bíblica, acrescida e interpre- Rafael Camorlinga Alcaraz - O distan- tada pela Tradição e pelo Magistério. 4 Alceu Amoroso Lima (1893-1983): Nascido no Rio de Janeiro, foi crítico literário, profes- ciamento, e até desconfi ança recípro- É a Igreja que, mediante o Papa e os sor, escritor e líder católico brasileiro. Quando ca, entre os estudiosos da teologia e Bispos, administra o depositum fi dei passou a se tornar crítico, adotou o pseudô- da literatura pode considerar-se como (depósito da fé). E, uma vez que está nimo de Tristão de Ataíde, para distinguir a sua atividade industrial da literária. Publicou resultado do relacionamento entre as em jogo nada mais nada menos que a dezenas de livros sobre os temas mais varia- respectivas áreas do saber. O de se dos, dentre os quais destacam-se Idade, sexo considerar “dono da verdade”, seja 2 Romano Guardini (1885-1968): nascido em e tempo (Rio de Janeiro: Agir, 1938) e O gigan- Verona, na Itália, foi sacerdote, escritor, e tismo econômico (Rio de Janeiro: Agir, 1962). em nome da revelação sobrenatural, teólogo católico-romano. Teve forte infl uên- (Nota da IHU On-Line) seja em virtude da inspiração artís- cia na teologia católica-romana no século XX. 5 Herman Northrop Frye (1912-1991): Foi tica, pode conduzir a um isolamento (Nota da IHU On-Line) um dos mais célebres críticos literários cana- 3 Jorge Luis Borges (1899-1986): foi escritor, denses do século XX. Chegou a proeminência empobrecedor. poeta, tradutor e ensaísta argentino, mundial- internacional quando ainda era estudante, na É possível, no entanto, haver uma mente conhecido por seus contos e histórias Universidade de Toronto. Se ocupou da crítica sincera preocupação com a pureza te- curtas. Sua obra se destaca por abordar temáti- social e cultural e, com isso, recebeu 39 títu- cas como a fi losofi a e seus desdobramentos ma- los honorários. Anatomia da crítica (São Paulo: ológica, por uma parte, e artística, por temáticos, como metafísica, mitologia e teolo- Editora Cultrix, 1973) é um dos mais importan- outra. Além do que foi dito anterior- gia. Sobre ele, confi ra a IHU On-Line número tes trabalhos da crítixa literária de sua época. 193, de 28-08-2006. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 15 “não se faz boa literatura com bons “Não é raro constatar que americana de Literatura e Teologia). sentimentos” (André Gide).6 A teologia não tem o status de dis- Entretanto, se a discussão remete a descrença ou ciplina nas universidades públicas bra- ao debate em torno à literatura enga- sileiras. Na UFSC, ela entra no bojo jada, a resposta pode assumir diversos agnosticismo assumidos dos estudos fi losófi cos e literários do matizes. Surge, de um lado, “a arte curso de Pós-Graduação. Além disso, pela arte”, tendo como resultado obras teoricamente pelos a partir de 2006, funciona nela o Nu- alheias aos avatares da Humanidade; é tel (Núcleo de teologia e literatura), o caso da literatura fantástica. No ou- escritores são negados voltado para a pesquisa da produção tro extremo, está a “literatura enga- literária na vertente metafísica. jada”, geralmente comprometida com pelo que eles expressam as questões sociais. Precisamos admi- IHU On-Line – Para o senhor, a rela- tir que ambas as tendências produzem ‘literariamente’” ção entre literatura e teologia dá lu- obras-primas. Contra os defensores gar também à questão do ceticismo? ferrenhos do “fundamentalismo esté- Rafael Camorlinga Alcaraz – Geralmen- tico”, costuma aduzir-se a difi culdade te, os temas abordados pelos estudos de se equilibrar “em cima do muro”. No que se refere à América Lati- teo-literários lidam com a crença e seu Afi nal, o que é que realmente interes- na, constata-se que ainda não há um reverso: a descrença ou a “anti-crença”. sa? “Nada disso é importante”, res- “verdadeiro diálogo entre literatura e As obras que se ocupam destes temas são ponde Sartre. E acrescenta: “O mundo teologia” (A. Magalhães). “Matéria-pri- as que atraem o interesse de estudiosos pode passar sem literatura. Mas pode ma”? A abundante produção literária e leitores em geral. Já se olharmos para passar ainda melhor sem o homem”. tratando assuntos direta ou indireta- o credo dos escritores poderemos nos mente relacionados com a religião. deparar com algumas surpresas. Não é IHU On-Line – Como aparece na aca- O interesse das instituições religiosas raro constatar que a descrença ou ag- demia o diálogo entre literatura e nesse “garimpo” literário é ainda pou- nosticismo assumidos teoricamente pe- teologia, principalmente na América co expressivo. los escritores são negados pelo que eles Latina e no Brasil? Como eventos signifi cativos, podemos expressam “literariamente”. Bipolarida- Rafael Camorlinga Alcaraz - Entre citar o encontro regional promovido pelo des desse tipo constatam-se em escrito- 10 as vozes que inauguraram o diálogo, Celam (Consejo Episcopal Latinoameri- res como Rulfo e Borges. A indiferença abrangendo a literatura ocidental, es- cano) no fi m do século passado: “Agoni- religiosa ou o ceticismo professado por tão R. Guardini, antes mencionado, e za Dios? – La problemática de Dios en la eles contrasta com o que dizem e fazem Ch. Möller. Ambos são teólogos e ho- novela latinoamericana” e “Diálogos en- os personagens dos seus escritos. Nada mens da Igreja, mas com sólidos conhe- tre literatura, estética y teología”, tema demais se lembramos que, com alguma cimentos e rara sensibilidade perante o de “Terceras Jornadas”, celebradas na freqüência, o autor torna-se marionete universo literário. Como interlocutores UCA (Universidade Católica Argentina), de seus personagens. do mundo laico temos, entre outros, os em 2007. Não é incomum que os escritores autores que abordam a Bíblia “como No Brasil, cabe assinalar os escritos: se assumam como gnósticos ou agnós- literatura”; merece especial destaque “Literatura e Espiritualidade”, de José ticos, portanto, aproximando-se ao 11 o crítico N. Frye. Cabe também men- C. Barcellos;8 “Teologia e Literatura”, ceticismo. Segundo Harold Bloom, “a cionar Deus, um delírio, de Richard Da- de Antonio Manzatto;9 e “Deus no espe- religião da literatura, na prática, é o 7 wkins. É um livro assaz polêmico, mas lho das palavras”, de Antonio Magalhães. gnosticismo”, defi nido como “conheci- contribuirá certamente para o diálogo, Como evento de importância está o “Pri- mento que libera a mente criativa dos e até mesmo o debate, ao confrontar a meiro Colóquio Latino-americano de Li- ditames da teologia, do historicismo e religião com a ciência. teratura e Teologia”, celebrado no Rio de qualquer divindade que se antepo- de Janeiro em abril de 2007, com a par- nha àquilo que existe de mais criativo 6 André Paul Guillaume Gide (1869-1951): Foi no eu”. Em suma, entre os escritores, um escritor francês e vencedor do Prêmio No- ticipação de representantes de outras bel de Literatura, em 1947. Foi o fundador da nações de América do Sul. Na ocasião assim como entre outros profi ssionais, Editora Gallimard e da revista Novelle Revue foi fundada a Alalite (Associação Latino- há crenças de todo tipo. O que eles Française. Entre suas obras mais importantes têm em comum, entre si e com os estão: Os frutos da terra (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982), Córidon (Rio de Janeiro: 8 José Carlos Barcellos: doutor em Letras pela leitores, é a fé poética que os torna Nova Fronteira. 1985) e A sinfonia pastoral USP e em Teologia pela PUC-Rio. É professor “crentes literários”. (Rio de Janeiro: Francisco Alvez. 1985). (Nota da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da IHU On-Line) da Universidade Federal Fluminense. Confi ra, 10 Juan Rulfo (1917-1986): escritor mexicano nesta edição, um depoimento de Paulo Soethe considerado o principal precursor do chamado- 7 Deus, um delírio (São Paulo: Cia das Letras, sobre José Carlos Barcellos. (Nota da IHU On- realismo mágico latino-americano. Escreveu, 2007), de Richard Dawkins, publicada em 2006 Line) entre outras obras, Pedro Páramo e El llano sob o título The God delusion. Esta obra ins- 9 Antonio Manzatto: doutor em Teologia pela en llamas (São Paulo: Círculo do Livro, 1977). pirou o tema de capa da revista IHU On-Line Univerdade de Lausanne, na Bélgica. Atual- (Nota da IHU On-Line) número 245, de 26/11/2007, que teve como mente, é o diretor da Faculdade de Teologia 11 Harold Bloom (1930): professor e crítico lite- título “O novo ateísmo em discussão” (Nota da Nossa Senhora da Assunção, da Arquidiocese rário norte-americano. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) de São Paulo. (Nota da IHU On-Line) 16 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 “Quase todas as grandes obras da literatura mundial têm dimensão religiosa”

Autor do Manual de teologia e literatura, o alemão Georg Langenhorst não acredita num diálogo entre as duas áreas, mas em encontros excitantes e frutíferos

POR GRAZIELA WOLFART

a visão do teólogo alemão Georg Langenhorst, “a literatura escreve contra o esquecimento, fornece modelos de vida exitosa, serve para a auto-refl exão e para um olhar em direção a uma vida melhor, tanto para indivíduos como para comunidades”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele fala sobre essa complexa relação e afi rma Nque “o olhar sobre a literatura pode possibilitar uma visão mais livre sobre o modo como a religião está hoje ancorada na vida”. Professor na Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Augsburg, Alemanha, Langenhorst é autor de diversas publicações, especialmente sobre a relação entre teologia e literatura. Aqui, cita- mos alguns dos seus livros: Gedichte zur Bibel (Poemas da Bíblia)(München: Kösel- Verlag, 2001), Gedichte zur Gottesfrage (Poemas à pergunta de Deus) (München: Kösel-Verlag, 2003) e seu fundamental Manual de “teologia e literatura”, publi- cado em alemão, sob o título Theologie und Literatur. Ein Handbuch (Darmstadt: IVULGAÇÃO

Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2005). Confi ra a entrevista. D

IHU On-Line - Qual é a importância de relacionar teologia e literatura “A identidade de IHU On-Line - Em que medida o pen- em nossa sociedade, marcada pela samento e a prática teológicas con- secularização? qualquer sociedade e de tribuem para a constituição da iden- Georg Langenhorst - No contexto das tidade cultural e lingüística de uma culturas européias contemporâneas, a qualquer estado é sociedade? teologia ainda é pouco percebida. Os Georg Langenhorst - A identidade de teólogos não desempenham um desta- estruturalmente qualquer sociedade e de qualquer es- cado papel, nem no discurso intelec- tado é estruturalmente co-determina- tual, nem nos folhetins, nem na mídia. co-determinada pelo da pelo fator religioso — seja no apelo As igrejas perderam muito de sua força à determinada confi ssão, seja em mis- formadora de cultura. Este retrocesso, fator religioso” cigenações pós-modernas, ou em sua no entanto, faz com que nessas culturas recusa. A Europa está profundamente cresça um novo interesse por religião, marcada pelo cristianismo, mesmo fora das igrejas e independentemente que muitas pessoas já não pratiquem delas. Os artistas não precisam mais o “ser cristão”. A defesa do direito, temer, como outrora, serem isolados e rica, variegada e desafi adora ocupação da moral e da ética, o ritmar do ci- funcionalizados pelas igrejas. Precisa- com religião, confi ssão ou fé em Deus. clo anual, as festas e os rituais são mente na literatura de língua alemã, Assim, o olhar sobre a literatura pode e permanecem cristãos, mesmo que percebe-se uma nova desenvoltura em possibilitar uma visão mais livre sobre muitos já não o saibam. No momen- questões de religião. Em romances, o modo como a religião está hoje anco- to, a teologia só contribui para tal fi m peças teatrais e poesias, existe uma rada na vida. com bem poucos elementos criativos.

SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 17 Há algumas décadas, sobretudo o Islã ocorreria através de outras formas, a introduz um novo elemento religioso. realidade no contexto da fi c ção. Além Não é possível, ainda hoje, fazer valer disso, a literatura tem a chance de ambas as tradições lado a lado, seja apresentar visões, ou o possível, o por interpenetração, por estimulação utópico — que são importantes fontes recíproca ou por miscigenação. de energia ética. A literatura escreve contra o esquecimento, fornece mo- IHU On-Line - Qual é a contribuição “Sem a tradução da delos de vida exitosa, serve para a da tradução da Bíblia feita por Lutero auto-refl exão e para um olhar em di- para a língua e a literatura alemã? Bíblia por Lutero, a reção a uma vida melhor, tanto para Georg Langenhorst - Sem a tradução indivíduos quanto para comunidades. da Bíblia por Lutero, a língua alemã língua alemã não poderia não poderia ter se desenvolvido e se IHU On-Line - De que modo a religião imposto da mesma forma como um ter se desenvolvido e se e a fé aparecem nos grandes clássi- idioma nobre. Até hoje, esta tradução cos da literatura universal? O senhor de Lutero é valorizada em amplos cír- imposto da mesma forma pode dar exemplos? culos — também no âmbito do catoli- Georg Langenhorst - Quase todas as cismo — como documento lingüístico e como um idioma nobre” grandes obras da literatura mundial como fonte espiritual. têm dimensão religiosa. Permita-me mencionar exemplos da literatura de IHU On-Line - Quem são os grandes língua alemã. O mundo e a obra dos nomes referenciais, quando falamos prêmios Nobel de literatura de língua de teologia e literatura? alemã são impregnadas por uma colo- Georg Langenhorst - A disciplina aca- ração religiosa. Hermann Hesse6 foi fi - dêmica de “Teologia e Literatura” foi Balthasar4 e Romano Guardini, moti- lho de um Pastor pietista. A controvér- determinantemente inspirada pelo te- vados por Tillich, surgiram, principal- sia com a tradição evangélica perpassa ólogo e fi lósofo evangélico Paul Tilli- mente, do lado evangélico, Dorothee sua obra, de Unterm Rad [Sob a roda] ch.1 Embora ele mesmo não tenha Sölle5 e, do lado católico, Karl-Josef até Steppenwolf [O lobo das estepes]. lecionado esta disciplina, sua aber- Kuschel como protagonistas da pesqui- Em Siddharta, ele conecta concepções tura em cultura e teologia facilitou o sa sistemática. Sobretudo Kuschel é cristãs e budistas. Nelly Sachs,7 a lírica surgimento da área de “Literatura e considerado “patrono acadêmico” da judaica, escreveu poesias caracterizan- Teologia”. A partir de Tillich, formou- disciplina de “Teologia e Literatura. do, sobretudo, o holocausto e a sobre- se uma tradição específi ca nos EUA e vivência como judia após essa catás- na Inglaterra. Nathan A. Scott e Amos IHU On-Line - Quais as implicações trofe. Em sua obra, são repetidamente Niven Wilder,2 e mais tarde David Jas- em considerar a literatura como ob- invocadas, como focos orientadores, per,3 Terry Wright e outros, estabele- jeto de refl exão ético-teológica? fi g uras bíblicas e temas do Antigo e do ceram ali uma tradição fortemente Georg Langenhorst - Na perspectiva Novo Testamento. As obras de Heinrich direcionada para a fi losofi a e a teoria ético-teológica, a literatura pode ter Böll8 e de Günter Grass9 se desenca- literária. Na Alemanha, sempre houve diversas funções. O aumento do va- deiam principalmente nas cidades de um interesse mais intenso pela própria lor ético da estética talvez seja pelo cunho católico que são Colônia e Dan- literatura e seu signifi cado teológico. fato de expor, mais claramente do que zig. Sem uma análise das numerosas Foram seus precursores Hans Urs von 4 Hans Urs Von Balthasar (1905-1988): teólo- go católico suíço. Estudou Filosofi a em Viena, 6 Hermann Hesse (1877-1962): escritor ale- Berlim e Zurique, onde doutorou-se em 1929, mão, que emigrou para a Suíça em 1912 e em 1 Paul Tillich (1886-1965): teólogo alemão, e em Teologia em Munique e Lyon. Destacou-se 1923 naturalizou-se suíço. Procurou construir que viveu quase toda a sua vida nos EUA. Foi como investigador dos santos padres e da Fi- sua própria fi losofi a, a partir de sua inter- um dos maiores teólogos protestantes do sé- losofi a e Literatura modernas, especialmente pretação pessoal das correntes fi losófi cas do culo XX. É autor de uma importante obra. En- a franco-germana. Criou sua própria Teologia, Oriente. Em 1946, ganhou o Prêmio Nobel de tre os livros traduzidos em português, podem síntese original do pensamento patrístico e Literatura, pelo livro O jogo das contas de vi- ser consultados Coragem de ser (6. ed. Edito- contemporâneo. Entre suas obras destacam-se dro. (Nota da IHU On-Line) ra Paz e Terra, 2001) e Amor, poder e justiça O cristianismo e a angústia (1951), O misté- 7 Nelly Sachs (1891–1970): escritora judia, (Editora Cristã Novo Século, 2004). (Nota da rio das origens (1957), O problema de Deus nascida em Berlim, ganhou o Prêmio Nobel da IHU On-Line) no homem atual (1958) e Teologia da história Literatura em 1966. (Nota da IHU On-Line) 2 Amos Niven Wilder (1895-1993): pastor, po- (1959). A edição 193 da IHU On-Line, de 28- 8 Heinrich Theodor Böll (1917–1985): escritor eta, professor e teólogo, nascido em Calais, 08-2006, Jorge Luis Borges. A virtude da ironia alemão, laureado com o Prêmio Nobel da Lite- Maine. Estudou em várias instituições incluin- na sala de espera do mistério publicou uma ratura em 1972. (Nota da IHU On-Line) do a Yale Divinity School, onde recebeu seu entrevista com Ignácio J. Navarro, intitulada 9 Günter Grass (1927): intelectual e escritor Ph.D., in 1933. (Nota da IHU On-Line) Borges e Von Balthasar. Uma leitura teológica. alemão, cuja obra alternou a atividade literá- 3 David Jasper (1951): padre e teólogo angli- (Nota da IHU On-Line) ria com a escultura enquanto participava de cano, é atualmente professor de literatura e forma ativa da vida pública de seu país e lhe teologia na Universidade de Glasgow, Escócia. 5 Dorothee Sölle (1929-2003): socialista, es- deu um Prêmio Nobel de Literatura em 1999. É um escritor e um expoente intelectual den- critora e teóloga alemã, é conhecida por ter Também é reconhecido como um dos princi- tro dos campos da hermenêutica cristã e da criado o termo Cristo-facismo. (Nota da IHU pais representantes do teatro do absurdo da pós-modernidade. (Nota da IHU On-Line) On-Line) Alemanha. (Nota da IHU On-Line) 18 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 “É excitante ver como, por exemplo, o Islã e o budismo se tornam temas literários, confi gurando-se literariamente de modo bem diverso do que, por exemplo, o cristianismo”

alusões ao ambiente de cunho católico, ligioso, como, por exemplo, o estudo os romances destes dois autores seriam da cultura bíblica, informações sobre quase incompreensíveis. a história da Igreja, ou sobre liturgia e religiosidade popular, para melhor po- IHU On-Line - Como falar de literatu- der entender e interpretar determina- ra e teologia considerando o avanço dos textos. Os próprios escritores es- do diálogo inter-religioso? “No contexto das tão freqüentemente interessados por Georg Langenhorst - A disciplina de questões e impulsos existenciais. Ante “Teologia e literatura” se abre sem- culturas européias tão diversifi cadas expectativas, não é pre mais em duas direções: é cada vez possível um “diálogo” específi co, po- mais superada a concentração sobre contemporâneas, a rém certamente encontros muito ex- a respectiva literatura nacional — ha- citantes e frutíferos. Com o conceito vendo uma abertura para a literatura teologia ainda é pouco “diálogo” só se onera tais encontros mundial. Porém, sempre mais é supe- e se despertam falsas e sempre nova- rada a pura concentração no judaís- percebida. Os teólogos mente decepcionantes expectativas. mo e no cristianismo como grandezas orientadoras no âmbito da teologia. não desempenham um IHU On-Line - Como se estabelece a Ou seja, há uma abertura para as reli- relação entre teologia e literatura na giões mundiais. É excitante ver como, destacado papel, nem América Latina? por exemplo, o Islã e o budismo se tor- Georg Langenhorst - Existe uma grande nam temas literários, confi gurando-se no discurso sociedade internacional que se dedica ao literariamente de modo bem diverso encontro de literatura e religião: a Inter- do que, por exemplo, o cristianismo. intelectual, nem nos national Society for Religion, Literature and Culture (ISRLC). Aqui, se conectam IHU On-Line - Quais são os principais folhetins, nem na mídia. muitas redes de pesquisas internacio- pontos do seu Manual de teologia e nais. Infelizmente, a temática central literatura? Podemos mesmo estabe- As igrejas perderam de “teologia e literatura” está nela de- lecer um diálogo entre estas duas sempenhando um papel cada vez menor. áreas? muito de sua força Na Alemanha, há neste campo um bom Georg Langenhorst - Meu Manual de número de pesquisadores que se encon- teologia e literatura delineia a história formadora de cultura” tram e intercambiam regularmente. Que da pesquisa desta disciplina acadêmi- bom que agora também haja tal rede na ca. Construída cronológica, estrutural América Latina, a Alalite. Nela, já há e tematicamente, ela se concentra, alguns anos, estão sendo conectados es- em primeira linha, no desenvolvimento forços existentes em torno de teologia e existente no âmbito do idioma alemão. literatura, e vai se construindo uma tro- Tendências internacionais sempre são, ca desafi adora entre pesquisadores de todavia, pelo menos mencionadas. diversas faculdades e países. Estou certo Podemos falar de um “Diálogo entre teólogos utilizam a literatura princi- de que, em breve, hão de se formar con- Teologia e Literatura”? Não creio que palmente para uma auto-refl exão crí- tatos frutíferos através dos continentes. isso tenha sentido. Os participantes tica, para a sensibilização lingüística A união entre “teologia e literatura” po- diferenciados de tais encontros têm e para a inclusão de textos literários derá, então, conduzir a um palpitante expectativas bem diversifi cadas. Os no contexto catequético. Os cientistas diálogo intercultural entre a América La- literários estão à procura do saber re- tina, a América do Norte e a Europa. SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 19 A literatura como um campo fértil de diálogo com a teologia

Literatura e teologia podem e devem trabalhar juntas, afi rma a teóloga Maria Clara Bingemer

m entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, a teóloga e pro- IVULGAÇÃO fessora da PUC-Rio Maria Clara Bingemer analisa de forma positiva a re- D lação entre teologia e literatura. Para ela, o embate entre crença e ceti- cismo fomenta, para o futuro próximo, um fértil caminho para o diálogo teopoético ou teoliterário. “Sobretudo agora que estamos em tempo de Enovos ateísmos”, explica. Maria Clara acredita que a afi rmação central do Cristia- nismo de que “Deus é amor”, presente da Primeira Carta de João, é um excelente princípio estilístico. “O que, na história da humanidade, seduziu mais a literatura como tema do que o amor em todas as suas formas?”, pergunta ela. Maria Clara Bingemer é graduada em Jornalismo, mestre em Teologia, pela PUC- Rio, e doutora em Teologia Sistemática, pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma. Atualmente é a decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC- Rio. É autora de, entre outros, Simone Weil - A força e a fraqueza do amor (Rio de Janeiro: Rocco, 2007).

IHU On-Line – Como podemos enten- realidades terrestres, com a colocação trabalha com a inteligência da fé que der as relações entre literatura e teo- do humano no centro do pensar teoló- se autocompreende como experiência logia, tanto no passado quanto hoje? gico, assim como com a consideração de vida e vida em abundância. O cris- Maria Clara Bingemer - Antes era da experiência como um convite a fa- tianismo, além disso, tem imensa força impensável aproximar teologia de li- zer teologia, a literatura passou a ser cultural e foi o confi gurador da matriz teratura, metodológica e conceitu- vista como um campo fértil de diálogo civilizatória do Ocidente, dentro da almente, assim como em termos de com a teologia. A prova disso são os qual se inscreve a literatura ociden- conteúdo. Havia um fechamento das numerosos trabalhos acadêmicos en- tal e mesmo a literatura tout court. disciplinas em si mesmas e a litera- volvendo as duas áreas do saber que O que sai da imaginação dos escritores tura que, teoricamente, lidava com a têm sido publicados em diversos perió- e se transforma em livro, em matéria fi c ção e a verossimilhança não pode- dicos científi cos, a quantidade de pes- literária, pode inspirar e realmente ria nunca pensar em aproximar-se da soas que trabalham nesta área, bem inspira os teólogos. Haja vista que vá- teologia, que lidava com a verdade e como o esforço de elaborar e discutir rios teólogos escreveram e pensaram a afi rmação dogmática. Hoje, com o princípios metodológicos que fazem sobre obras e autores literários. Cito giro copernicano que houve no Concí- interagir as duas disciplinas. Ou seja, dois exemplos, um europeu, Hans Urs lio Vaticano II,1 com a valorização das hoje em dia, literatura e teologia po- von Balthasar, que escreveu a memo- 1 Concílio Vaticano II: Realizado entre 1962 e dem sim e, mais do que isso, devem rável obra Le chrétien Bernanos, e um 1965, é considerado o maior acontecimento trabalhar juntas. brasileiro, José Carlos Barcellos e todo da história da Igreja, do século XX. Durante o seu excelente trabalho sobre a obra o Concílio Vaticano II, foram publicados dois 2 documentos. A constituição dogmática Lu- IHU On-Line – Em sua opinião, é tran- de Julien Green. E há muitos outros. men Gentium, que foi tema de capa da IHU qüila a relação entre as duas? Dostoiévski, por exemplo, é um dos On-Line, edição nº. 124, de 22 de novembro Maria Clara Bingemer - Até o mo- mais trabalhados autores em teses de de 2004, e a constituição pastoral Gaudium et Spes, que foi tema de capa da Revista IHU mento, são relações razoavelmente teologia na Europa hoje em dia. On-Line, nº. 157, de 26 de setembro de 2005. pacífi cas, embora não deixe de haver O IHU promoveu, de 11 de agosto a 11-11- confl itos e interações não tão bem- 2 Julien Green (1900-1998): de nome Julian 2005, o Ciclo de Estudos Concílio Vaticano II Hartridge Green, escritor norte-americano de – marcos, trajetórias e perspectivas. Confi ra, sucedidas entre as duas. A literatura expressão francesa. Toda a obra de Green, que também, a edição 157 da IHU On-Line, de 26- é amiga da vida, enquanto a Teologia foi profundamente marcada tanto pela sua 09-2005, intitulada Há lugar para a Igreja na homossexualidade como pela sua fé católica, sociedade contemporânea? Gaudium et Spes: eletrônica do IHU, www.unisinos.br/ihu. (Nota é dominada pela questão da fé, do bem e do 40 anos, disponível para download na página da IHU On-Line) mal, e da sexualidade. (Nota da IHU On-Line) 20 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 IHU On-Line – A universidade abre es- paço para o diálogo entre literatura e “A literatura é amiga da vida, enquanto a teologia? Como está a pesquisa nessa área, pensando no caso da América La- Teologia trabalha com a inteligência da fé que tina e do Brasil? Maria Clara Bingemer - Sim, enfatica- se autocompreende como experiência de vida mente sim. Creio que, mais do que nun- ca, na América Latina e no Brasil essa e vida em abundância” área está crescendo. Haja vista a funda- ção da Alalite, que é uma associação de pesquisadores que trabalham nessa linha e nessa interação. Volta e meia, sou con- vidada para participar em bancas de te- IHU On-Line – Como você vê e inter- dora das verdades de fé que constituem o ses que versam sobre Teologia e Litera- preta o distanciamento que há entre credo dos fi éis católicos (estamos falando tura, a partir das obras de escritores do teólogos e críticos literários? de Igreja Católica), mas é uma das instân- porte de Saramago, Machado de Assis, Maria Clara Bingemer - Isto sempre hou- cias que formam o tecido da tradição. Ao Lezama Lima4 etc. Creio que cresce a ve. O crítico literário não é um criador, lado dela, estão o sentir comum dos fi éis, olhos vistos esse diálogo. Pessoalmente mas, como a palavra mesma o diz, um a Patrística, a liturgia, a teologia. Portan- dou cada ano, com a professora Eliana crítico. Ele não elabora um conteúdo e to, ao haver essa rejeição à Igreja como Yunes,5 de literatura, da PUC-Rio, um uma obra novos, mas elabora uma críti- um todo, é preciso esclarecer de que seg- curso de pós-graduação para estudan- ca, uma apreciação sobre a obra de ou- mento da Igreja se fala. A Igreja é o povo tes de teologia e literatura. Já demos tro. Assim como há distanciamento en- de Deus, e não só o Magistério. E, se em um sobre Adélia Prado e Manuel Ban- tre autores literários e críticos literários, algum momento da história o Magistério deira,6 outro sobre Guimarães Rosa, também o há com os teólogos, que no agiu de uma determinada maneira por outro sobre ,7 outro fundo são criadores de linguagem, ela- acreditar que ela era a atitude correta a sobre os contos de fadas e, neste úl- boradores de conteúdos postos em pala- tomar para proteger a fé dos católicos, timo ano, 2007, sobre Machado de As- vras. No entanto, creio que, se houvesse em muitas outras ocasiões pediu perdão e sis. Publicamos Adélia e Bandeira. Está uma respeitosa aproximação, muito te- reviu posições, como no caso de Galileu, para sair Guimarães e se Deus quiser, riam a contribuir um para o trabalho do Darwin, Lutero etc. Isso nunca é lembrado sai esse ano, para aproveitar o cente- outro. Os críticos literários são conhece- e me parece injusto. 4 José Lezama Lima (1910- 1976) poeta, ensa- dores profundos e sérios dos conteúdos ísta e novelista cubano. Além de patriarca in- visível das letras cubanas desde 1944 até 1957, literários e podem contribuir com sua IHU On-Line - Karl-Josef Kuschel insi- fundou a revista Verbum e esteve à frente de crítica para um maior conhecimento nua que Deus é um péssimo princípio Orígenes, a mais importante revista cubana dos teólogos das obras literárias. Mes- estilístico. Você concorda? de literatura. Considerado um dos fundadores do neobarroco na América, emergiu interna- mo se os críticos têm um foco que não Maria Clara Bingemer - Não sei o que o cionalmente com a publicação de Paradiso, corresponde ao da teologia, o diálogo da respeitadíssimo professor Kuschel enten- em 1966. Além de uma extensa produção de teologia com o ateísmo, o agnosticismo de por isso. Creio que deve ir na linha ensaios e poemas, Lezama escreveu também contos singulares, que dialogam com o conjun- e o pluralismo, tem acontecido continu- do que diz sobre a teopoética, no senti- to de sua obra. (Nota da IHU On-Line) amente desde o Concílio Vaticano II e do de que não é “outra” teologia, ou a 5 Eliana Yunes é professora do Departamento deve só progredir e não voltar atrás. substituição do Deus de Jesus Cristo pelo de Letras da PUC-Rio. Confi ra uma entrevista que ela concedeu à IHU On-Line sobre Clarice dos diferentes escritores e poetas, mas Lispector, publicada na edição número 228, de IHU On-Line – Você acredita que a Igre- a questão da estilística de um discurso 16-07-2007 (Nota da IHU On-Line). ja seja lembrada de forma positiva ou sobre Deus que seja atual e adequado 6 Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (1886-1968): poeta, crítico literário e de arte, negativa quando o assunto é a relação (cf. As escrituras e os escritores, 1999). professor de literatura e tradutor brasileiro. entre literatura e teologia? De minha parte, creio que a afi rmação Considera-se que Bandeira faça parte da ge- Maria Clara Bingemer - Muito positivo não central do cristianismo de que “Deus é ração de 22 da literatura moderna brasileira, 3 sendo seu poema “Os sapos” o abre-alas da é, já que a Igreja criou o Syllabus, no qual amor” da Primeira carta de João, é um Semana de Arte Moderna de 1922. Juntamen- colocou obras literárias de grande valor. excelente princípio estilístico. O que, na te com escritores como João Cabral de Melo Ou seja, a Igreja freqüentemente é lem- história da humanidade, seduziu mais Neto, , Gilberto Freyre e José Con- dé, representa o que há de melhor na produ- brada como tutela, obstáculo, patrulha- a literatura como tema do que o amor ção literária do estado de Pernambuco. (Nota mento que impede a liberdade da criação em todas as suas formas? Por isso, creio da IHU On-Line) literária. Há que lembrar, no entanto, que que nesse sentido, sim, Deus é um ex- 7 Clarice Lispector (1920-1977): foi uma es- critora brasileira nascida na Ucrânia. Autora o Magistério da Igreja é a instância defi ni- celente princípio estilístico. No entanto, de livros como Perto do coração selvagem e 3 Syllabus: Documento de autoria do Papa Pio reconheço que deveria conhecer melhor A hora da estrela. A IHU On-Line número 228, IX, que afi rma que a sociedade civil e o Esta- a obra de Kuschel para responder mais de 16-07-2007, é intitulada Clarice Lispector: do devem ser unidos à Igreja e subordinados a uma pomba na busca eterna pelo ninho. esta (Nota da IHU On-Line). adequadamente. (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 21 nário, o de Machado de Assis. Isso é apenas um exemplo do que se pode fazer. Seguramente, há muito mais sendo feito e essa parceria só tende a crescer. Literatura e teologia em Adélia Prado IHU On-Line – O ceticismo também aparece no diálogo entre literatura Para José Augusto Mourão, Adélia Prado não faz teologia, mas e teologia? literatura, na arte de embaralhar o divino e o humano Maria Clara Bingemer - Após trabalhar Machado de Assis, eu diria que sim. E muitas vezes há o embate entre cren- POR ANDRÉ DICK E GRAZIELA WOLFART ça e ceticismo, como se poderia ver 8 9 em Camus, Dostoiévski e Saramago DIVULGAÇÃO inclusive. Creio que aí reside, para ão são as crenças o estrume a o futuro próximo, um fértil caminho partir do qual Adélia escreve, para o diálogo teopoético ou teolite- mas o íntimo, a experiência, a rário. Sobretudo agora que estamos íntima convicção de que Deus 10 em tempo de novos ateísmos, com é justo, por exemplo, o que as obras de Richard Dawkins, André “Nescapa a catecismos, a silogismos e à própria teo- Comte Sponville,11 entre outros. logia.” A fala é do professor do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa José Augusto Mourão. Na entrevista que con- EIA MAIS L ... cedeu por e-mail para a IHU On-Line, ele analisa a relação entre literatura e teologia na obra de Adélia Maria Clara Bingemer concedeu Prado. Mourão é presidente do Centro de Estudos de outras entrevistas à IHU On-Line, disponíveis na nossa página eletrônica Comunicação e Linguagens (CECL), diretor do Insti- www.unisinos.br/ihu. Confi ra. tuto de S. Tomás de Aquino (ISTA) e dos Cadernos ISTA. Entre seus livros pu- blicados, citamos Paixão, discurso e sujeito (1996), Semiótica e Bíblia (1999) * “Igreja que deseja ser ouvida e A palavra e o espelho (2000). Confi ra a entrevista. numa cultura pós-cristã precisa ter um testemunho forte, crível e con- sistente, que acompanhe o discurso” IHU On-Line - Existe, na obra de Adélia Prado, um vínculo direto com a * “O documento (de Aparecida) não religião católica e com a teologia, ou ela independe de crenças? De que tem o profetismo e o sopro libertador modo você percebe esse traço em sua obra? Há poemas que representem que caracterizou Medellin e Puebla”. melhor esse caminho e que fariam o que se chama de “teologia poética”? José Augusto Mourão - Não são as crenças o estrume a partir do qual Adélia escreve, mas o íntimo, a experiência, a íntima convicção de que Deus é justo, por exemplo, o que escapa a catecismos, a silogismos e à própria teologia. 8 Albert Camus (1913-1960): escritor, novelis- ta, ensaísta e fi lósofo argelino. (Nota da IHU Se há uma “teologia poética” que atravessa a sua obra, essa teologia é feita On-Line) do casamento da carne e de palavra. Terra de Santa Cruz e O pelicano são 9 Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821- livros em que essa aliança claramente se divisa. O cotidiano abre-se ao di- 1881): um dos maiores escritores russos e tido como um dos fundadores do existencialismo. vino como a fl or na árvore. Com um bemol: Adélia é a catecúmena admitida De sua vasta obra, destacamos Crime e cas- com reservas pelos doutores da lei, o que diz desde logo a sua marginalidade tigo, O idiota, Os demônios e Os irmãos Ka- relativamente ao corpo de uma doutrina estabelecida e aos doutores. ramázov. A esse autor a IHU On-Line edição 195, de 11-9-2006 dedicou a matéria de capa, intitulada Dostoiévski. Pelos subterrâneos IHU On-Line - Num de seus poemas, “Antes do nome”, Adélia escreve do ser humano. (Nota da IHU On-Line) que “Quem entender a linguagem entende Deus”. Acredita que Adélia 10 Conferir a revista IHU On-Line número 245, de 26-11-2007, intitulada “O novo ‘ateísmo’ visualiza uma espécie de transubstanciação e de sublime teológico por em discussão”. (Nota da IHU On-Line) meio da poesia? 11 André Comte-Sponville (1952): fi lósofo José Augusto Mourão - “Quem entender a linguagem entende Deus.” É evidente: materialista ateu francês. Estudou na École Normale Supérieure. Sponville utiliza o refe- Deus é a palavra do começo, o Verbo criador e o verbo feito carne. A palavra é de rencial de Jean-Paul Sartre, que já havia dito si, messiânica: promete a salvação, o reino das bem-aventuranças. Por outro lado, que “todos somos responsáveis por todos” e o que melhor defi ne o humano é a estrutura de interlocução: somos carne habitada de Dostoiévski, “somos todos responsáveis por tudo, diante de todos”. Foi membro do clu- pela palavra. Como chegaríamos a Deus se não fosse pela escada da linguagem, que be de Roma entre 1989 a 1997. Atualmente, é não é propriedade privada, mas lugar de encontro, partilhável, universal, infi nita- professor na Universidade de Paris. mente traduzível, em que se espaçam o desejo e a visita de Deus?

22 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 José Augusto Mourão - Adélia não se desterrou do mundo, não se refugiou numa clausura, como o fazem as sei- “Como chegaríamos a Deus se não fosse pela escada tas ou a gnose: o real é o seu as- sento. A justiça é a sua divisa. Por da linguagem, que não é propriedade privada, mas isso não negoceia com o mundo (in- justo), por isso querela com os seus lugar de encontro, partilhável, universal, fantasmas e com Deus mesmo, como infi nitamente traduzível, em que se espaçam o desejo teria feito Job. IHU On-Line - No ensaio “Literatu- e a visita de Deus?” ra e teologia: aproximações”, José Carlos Barcellos lembra que “uma coisa é o poder criador de linguagem religiosa por parte da literatura, ou- tra é a capacidade teológica dessa IHU On-Line - Uma das infl uências, na mesma literatura. Só se pode falar poesia de Adélia, é a de Drummond, IHU On-Line - Muitos temas percor- em teologia, na medida em que, a poeta conhecido por seu afastamen- rem a poesia de Adélia, inclusive a partir de um horizonte de fé, se ins- to da religião. Como se combinaria tensão entre corpo e alma, por meio taurar o exercício da crítica sobre essa busca de uma linguagem com de uma linguagem amorosa. Ela pro- a linguagem religiosa, tanto em re- sentido mais religioso com a obser- curaria, por meio dos versos, sinteti- lação à forma quanto ao conteúdo. vação de um cotidiano, vivido numa zar uma busca pessoal pelo amor de O discernimento crítico é um ele- pequena cidade, tendo em torno a Deus em relação às pessoas? mento absolutamente necessário do rotina, a partir de seu comentário de José Augusto Mourão - A noção de fazer teológico”. Como avalia, em que o Deus que habita a linguagem pessoa é tipicamente cristã. O cristão relação à obra de Adélia Prado, esse “não é um deus tácito, como o são os não vive soterrado na caverna, contor- pensamento? deuses do paganismo, mas um Deus cendo-se para sair à luz. A gnose não José Augusto Mourão - Contra o mono- que se fez Palavra no tempo”? é o seu reino. Viver é viver-com. Não logismo da teologia, ou ao lado, Adélia José Augusto Mourão - Todos fazem se vai a Deus sozinho, mas a partir das apropria-se do tesouro plurilingue da Bí- um poema a Carlos Drumond de An- ligações (muito eróticas, na obra de blia e da polifonia das linguagens de que drade, mesmo se as placas de trânsi- Adélia) humanas, pequenos fi os a que testemunham os salmos, as narrativas, to nos indicam que vamos na contra- a linguagem poética dá o seu brilho as crónicas, as leis — traduzindo-o em mão… Mas é o vínculo ao cotidiano, ao inigualável. linguagem poética. A teologia nem sem- rasteiro, à rotina que liga o familiar pre é crítica. A doxa (a opinião comum, e o estranho. Não há salvação fora do IHU On-Line – Na realização da po- o dogma) sobrepõe-se com frequência à corpo e da palavra. O Deus a que fala esia, Adélia Prado combate uma es- procura da verdade, que é comunitária e Adélia não é de fato o deus pagão, pécie de massifi cação, de estado de intersubjectiva. Adélia não faz teologia, onipresente nas forças da natureza, barbárie, adotando, às vezes, uma faz literatura. Essa é a sua arte maior: mas o Deus que comparece na carne reclusão. A religião está sendo aban- embaralhar o divino e o humano. do mundo e do nosso horizonte de ex- donada, como a poesia, em muitos pectativa. Adélia não atraiçoa a carne casos, principalmente quando o su- IHU On-Line - Como percebe a declara- para falar de Deus: a sua fi delidade é jeito não encontrar espaço para se ção de Adélia Prado, numa entrevista, encarnada, não é feita de princípios e pronunciar, mostrar a sua voz e sua de que “todo fenômeno de experiência categorias. angústia contemporânea? da unidade é de natureza religiosa”? José Augusto Mourão - “Todo fenômeno da experiência da unidade é de natureza religiosa.” A religião associa, une, sem “Adélia não atraiçoa a carne para falar de Deus: a confusão ou fusão alucinatória. Fazer corpo é a sua função. Diziam os Padres sua fi delidade é encarnada, não é feita de princípios que a Igreja era um corpo a caminho. Ora, todo o corpo exige uma “repúbli- e categorias” ca”, como se dizia em quinhentos, uma distribuição de energia, de afectos e perceptos. A experiência da unidade liga o corpo que somos ao corpo da humanidade.

SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 23 “A grande literatura teológica encontra-se principalmente na poesia”

O escritor francês Philippe Sollers considera a literatura do cristianismo “considerável”

POR GRAZIELA WOLFART

DIVULGAÇÃO ada experiência de linguagem é única, como deveria ser toda e qualquer concepção do divino”, afi rma o crítico e escritor francês Philippe Sollers, em entrevista por e-mail à IHU On- Line. Para ele, a leitura intensiva do pensamento de Heideg- ger é absolutamente necessária para a compreensão do bem “Ce do mal na literatura teológica. Philippe Sollers, autor de vasta obra, estudou na Escola Superior de Ciências Econômicas e Sociais, em Paris. No início da década de 1960, Sollers destacou-se como importante intelectual, empreendendo uma refl e- xão sobre a linguagem e suas relações com o real. Foi o editor da revista Tel Quel, referencial do pensamento estruturalista. No Brasil, foi publicada sua obra Sade contra o Ser Supremo (São Paulo: Estação Liberdade, 2001). A página pessoal do escritor é www.philippesollers.net

IHU On-Line - Quais são as principais li- cessariamente um acesso a Deus, devem tos são da mais alta importância histórica mitações e desafi os que a literatura teo- ser estudadas. Aliás, eu erro falando de e, para citar apenas este exemplo, a vida lógica tem pela frente? misticismo, como o prova o pensamento e a obra de Santa Teresa de Ávila o prova Philippe Sollers - A literatura teológica, chinês fundamental. amplamente. Você lerá, em breve, uma como você diz, está agora encerrada e obra fundamental de Julia Kristeva sobre tudo o que pôde ser dito está agora con- IIHU On-Line - Como o senhor considera esta santa espanhola católica e doutora da cluído. É, pois, preciso estudá-la e relê-la que foi registrada na literatura a ideo- Igreja. segundo uma restrita perspectiva históri- logia neoreligiosa da Revolução France- ca. Dito isso, aceito prazerosamente que sa (o culto de Ser Supremo)? Qual é a IHU On-Line - Como o senhor vê que o se leiam meus romances como romances contribuição da literatura para a fi xação bem e o mal estão retratados na litera- teológicos estrangeiros, no sentido em que deste novo paradigma? tura teológica? Ernst Jünger emprega esta expressão. Philippe Sollers - Eu indico a vocês aqui o Philippe Sollers - Seria, enfi m, preciso ler meu livro Sade contra o Ser Supremo, que Para além do bem e do mal, de Nietzsche, IHU On-Line – Qual é o poder de persua- aborda exatamente esta questão. Esta in- como também toda a sua obra, como ultra- ção da literatura teológica? venção “revolucionária” foi, como vocês passagem simultânea da teologia e da fi lo- Philippe Sollers - É um poder considerá- sabem, de Robespierre e foi bem depressa sofi a. Indico aqui o meu romance Uma vida vel, do qual se apossam infelizmente os abandonada nos fatos, mas não nas cabe- divina (Paris: Gallimard, 2006). Ou seja, a clérigos para diluir sua força. ças. Trata-se de uma extravagância como leitura intensiva do pensamento de Heideg- aquela do calendário revolucionário que ger é aqui absolutamente necessária. IHU On-Line - O senhor pesquisa as di- deveria ter substituído o calendário cristão, versas formas literárias. Qual seria a o qual, salvo engano, ainda é hoje empre- IHU On-Line - Qual é a sua opinião sobre especifi cidade da literatura no caso de gado em todas as transações econômicas. a forma como Deus, ou o Ser Supremo obras teológicas? das religiões, é descrito nas obras literá- Philippe Sollers - A grande literatura te- IHU On-Line – De que maneira vê a im- rias teológicas? ológica encontra-se principalmente na portância das cartas e dos manuscritos Philippe Sollers - Cada experiência de lin- poesia. Aqui basta você recorrer à Divina enquanto documentos literários, para a guagem é única, como deveria ser toda e comédia, de Dante Alighieri. Evidente- constituição de uma literatura específi ca qualquer concepção do divino. No infi n i- mente, todas as formas de misticismo, na área da teologia? to, todo ponto é infi nito e desenvolve sua incluindo aquelas que não encerram ne- Philippe Sollers - As cartas e os manuscri- própria forma.

24 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 Teologia e Literatura: a cena alemã

O coordenador do PPG em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paulo Soethe, é autor do artigo que segue, sobre teologia e literatura. Graduado em Letras Alemão-Português, pela Univer- sidade Federal do Paraná (UFPR), mestre e doutor em Letras, pela Universidade de São Paulo (USP), o Prof. Dr. Paulo Soethe cursou pós-doutorado na Universidade de Tübingen, na Alemanha

POR PAULO SOETHE

A presença decisiva da Teologia no bates recentes em face do fenômeno meio à atmosfera do renouveau catho- mundo acadêmico e intelectual ale- da secularização, ganhou também a lique, preocupa-se de maneira clara mão, a despeito da recente e irrever- refl exão sobre a Teologia da Cultura, com valorizar obras que do ponto de sível secularização da sociedade, tem e em particular a área de estudos de vista temático sirvam doutrinariamen- seu fundamento histórico no caráter Teologia e Literatura. te ao cristianismo. Portanto, apesar decisivo que o pensamento e a prática Se vigia até o fi nal do século XIX da grandeza de suas análises, a abor- teológicas desempenharam na cons- sobretudo um modelo confrontativo dagem e prática que assume excluem tituição da identidade cultural e lin- entre estética e religião, em que a boa parte da produção contemporâ- güística naquele país. A língua alemã autonomia da arte revelava-se incom- nea, e praticamente não encontram ganha status e legitimidade cultural a patível com o rigor e clareza da dou- continuidade para além da abrangên- partir da tradução da Bíblia por Lutero. trina, os esforços voltam-se a partir de cia datada do contexto cultural católi- A organização da sociedade, da econo- então para a superação desse modelo co de sua época. mia, das relações de poder e mesmo a e para o destaque do valor heurístico, Nesse contexto, é preciso dizer que delimitação das grandes unidades ad- cognitivo e mesmo espiritual dos tex- o conceito de literatura cristã foi ob- ministrativas de toda a região ocorrem tos estéticos para a refl exão e prática jeto de grandes debates na primeira sob o signo da identidade confessio- teológicas. A obra de um Paul Tillich metade e meados do século XX (com nal. Isso envolvia naturalmente longos (1888-1965), apesar da compreen- a participação de escritores impor- debates e a busca de fundamentação são idealista da cultura (“Religião é a tantes como Elisabeth Langgässer ou teológica para as ações. É central a substância da cultura e cultura a forma mesmo Heinrich Böll, em frentes di- presença da teologia na história das da religião”), lega, do ponto de vista versas), mas deixou de ser uma ques- grandes universidades, seja na matriz metodológico, postulados fundamen- tão produtiva a partir dos anos 1960. luterana, como na pequena Tübingen, tais, como o da correlação: “A chave Tenho conhecimento de que o debate onde ninguém menos que Hölderlin, para a compreensão teológica de uma voltará à cena em breve, já que uma Hegel e Schelling, por exemplo, che- criação cultural é seu estilo” (Teologia nova geração de teólogos empenha-se gam a dividir o mesmo quarto na mo- sistemática). Na tradição católica, até por revalorizar o conceito e recolocá- radia estudantil, todos como estudan- mesmo pela relação menos confl itiva lo em discussão. tes de teologia evangélica-luterana, entre arte e doutrina, os esforços de A partir dos anos 1970, estabele- seja em Münster e Regensburg, que refl exão e diálogo frutifi cam em obras ce-se o que Georg Langenhorst (2005, agora voltam a estar em evidência, na densas e com grande potencial de ade- p. 49 ss.) chama de paradigma do di- frente católica. rência, como as de Romano Guardini álogo. Esse paradigma recebe fortes A Teologia como disciplina acadêmi- (1885-1965) e Hans Urs von Balthasar impulsos das novas necessidades da ca e universitária de grande importân- (1905-1988). Em Guardini, cabe o des- Didática da Religião, disciplina impor- cia, se chegou a estar em questão nas taque à compreensão de determinados tantíssima na Alemanha, pela oferta décadas mais recentes, já dispunha escritores como profetas, cujas obras regular de aulas confessionais católi- de tamanha legitimidade e consolida- ganham status de revelação, por sua cas e evangélicas em todas as escolas. ção, que só fez, a partir do desafi o, força questionadora da nova realidade Mas ganha autonomia também na área aprimorar ainda mais seus pressupos- humana à luz de preocupações exis- de Teologia em se mesma. Esse para- tos metodológicos e epistemológicos, tencias profundas. Hölderlin, Dostoié- digma caracteriza-se por considerar consolidando-se ainda mais, do ponto vski e Rilke são objetos de suas gran- a literatura em sua multiplicidade de de vista científi co. Com isso, nos de- des obras. Balthasar, de sua parte, em realização, o que implica respeitar sua

SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 25 especifi cidade e autonomia, sem co- mento da obra de grandes escritores, optá-la ou instrumentalizá-la para fi ns e a refl exão sobre literatura a partir religiosos ou teológicos. Além disso, de um interesse pautado pelo diálogo caracteriza-se também por estabele- inter-religioso são as marcas centrais cer com a literatura, fonte de desafi os da produção de Kuschel. Um de seus e questionamentos, um diálogo criati- grandes méritos é haver agregado em vo e atento sobretudo aos processos “O advento da torno de sua pessoa uma geração de de realização poética, que não se per- jovens teólogos formados nessa área, mite desconsiderar a unidade indisso- modernidade e seu que a consolidaram em uma renoma- lúvel entre forma e conteúdo. da série junto à editora Matthias Grü- Destaca-se aqui no meio evangéli- espírito de liberdade newald intitulada justamente Teologia co-luterano o nome de Dorothee Söl- e Literatura, com 13 títulos publica- le (com seus conceitos de realização refl exiva, o postulado de dos. Poderíamos chamar o grupo “Cír- e, posteriormente, com sua prática culo de Hechingen”, já que ele vem se de uma teopoesia). No meio católico, uma literatura universal, reunindo há vários anos nessa cidade cabe destaque à obra de Dietmar Mie- para simpósios semestrais. Destaque th, que publica em 1976 dois grandes baseada no amplo acadêmico encontram nesse Círculo livros, com destaque à relação entre especialmente Christoph Gellner (Uni- ética e estética em nossa área de es- reconhecimento da obra versidade de Lucerna) e Georg Lange- tudos: Dichtung, Glaube und Moral. nhorst (Universidade de Augsburg). Studien zur Begründund einer narra- de grandes escritores, e a Este último, Georg Langenhorst, tiven Ethik e Epik und Ethik. Eine the- destaca-se certamente como lideran- ologisch-ethische Interpretation der refl exão sobre literatura a ça na área acadêmica e sucessor de Josephsromane Thomas Manns. Suas Kuschel na cena alemã. Com vasta considerações baseiam-se na valoriza- partir de um produção, publicou recentemente o ção do caráter único da fi cção como já mencionado manual Theologie und campo que possibilita a “totalidade da interesse pautado pelo Literatur – ein Handbuch. Havia orga- experiência sensitiva”. A fi cção literá- nizado em 2004 importante congresso ria, segundo Mieth, oferece a possibi- diálogo inter-religioso são internacional na área na cidade de lidade de se abordar projetos de vida Würzburg, o que resultou em publica- éticos individuais em seu todo, pela as marcas centrais da ção de uma coletânea com os traba- fi g uração da vida das personagens e lhos, em 2005. Langenhorst, em seu relações entre elas, mas sem risco de produção de Kuschel” programático manual, despede-se do incidência em extrapolações indevidas paradigma de um diálogo entre Teo- de casos particulares, dado que o tex- logia e Literatura. Decepcionado pela to literário fi ccional conta, de saída, ausência de uma interlocução efetiva com validade e legitimidade gerais. A com escritores e estudiosos de Litera- consideração da literatura como obje- tura, entende ser mais produtivo, em to de refl exão ético-teológica coloca seu contexto, assumir que a discussão em primeiro plano o interesse pela vidades conjuntas, publicaram juntos da área se dá mesmo internamente gênese estrutural da pessoa em geral, um livro sobre escritores (Advogados na Teologia, e procura portanto rever sem tanto destaque à obrigatorieda- da humanidade, 1989) e conclamaram pressupostos teóricos cultivados até de e validade de preceitos isolados em 1984 um simpósio em Tübingen, o momento. Aponta em seu manual a e descontextualizados. A literatura que se pode considerar o evento de necessidade de internacionalização da tem, com isso, a força para constituir fundação dos Estudos de Teologia e Li- cena alemã, e talvez aí se surpreenda modelos éticos, à medida que a ética teratura na Alemanha, enquanto área com o envolvimento muito maior de comportamental ganha plasticidade, acadêmica estruturada e integrada. As colegas da áreas de Letras em outras mostrando-se capaz de contemplar publicações de Kuschel concentram-se realidades, como a latino-americana, a complexidade e multiplicidade da na refl exão sobre uma cristopoética que agora se consolida e avança, com vida. e uma teopoética na obra de grandes a Fundação da Alalite. A esposa de Por fi m, o pensador com maior autores da literatura universal, sob Georg Langenhorst, Annegret Lange- produção e adesão na área de Teolo- um método confrontativo que ana- nhorst, é teóloga e hispanista, autora gia e Literatura, colega de Dietmar lisa a resposta dos escritores ao fato de um dos livros na série organizada Mieth na Universidade de Tübingen, da religião e das questões suscitadas por Kuschel, sob o título O Deus dos é Karl-Josef Kuschel. Kuschel inicia pela fé. O advento da modernidade europeus e a(s) história(s) dos outros. sua produção na esteira das obras de e seu espírito de liberdade refl exiva, A cristianização da América na litera- Hans Küng e Walter Jens. O teólogo e o postulado de uma literatura uni- tura contemporânea da América His- o literato desenvolveram diversas ati- versal, baseada no amplo reconheci- pânica (1996).

26 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 27 Brasil em Foco

Reforma tributária e o aumento da desigualdade social

A reforma tributária do Lula atinge o coração do sistema social preconizado pela Constituição de 88, ao pôr fi m ao orçamento da seguridade social”, avalia Sérgio Miranda.

POR PATRICIA FACHIN

ontrário à proposta de reforma tributária apresentada pelo governo, o ex-deputado federal mineiro Sérgio Miranda afi rma que uma das ques- tões mais importantes não está sendo debatida: a justiça tributária. Para ele, esse remendo na reforma faz parte de um conteúdo neolibe- ral, que trará graves conseqüências para o país, acentuando, inclusive, Cas desigualdades sociais e regionais. Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, o ex-relator da reforma tributária, em 2006, afi rma ainda que as mudanças deveriam propor a eliminação de “tributos sobre a cesta básica”, e aumentar a regulamentação de impostos so- bre grandes fortunas. A retirada de determinados subsídios da Constituição, como os concedidos aos “produtores rurais que, até hoje, não pagam imposto de renda e nem previdência social”, também seria uma medida capaz de colaborar para a construção de reforma tributária mais igualitária. Na entrevista a seguir, Miranda comenta alguns aspectos da reforma tributária, como a unifi cação do ICMS, a perda de prerrogativas dos estados na participação da política econômica e a subestimação da fi scalização do trabalho no país. Durante mais de 40 anos, Miranda foi fi liado ao PCdoB, do qual se desfi liou em 2005. Atualmente, é presidente municipal do PDT de Belo Horizonte.

IHU On-Line – Como o senhor percebe O primeiro diz respeito à unifi ca- o terceiro, o mais grave, refere-se ao as mudanças sugeridas pelo governo ção do ICMS (Imposto sobre Operações fi m do orçamento da seguridade social. para a reforma tributária? Essa propos- relativas à Circulação de Mercadorias Durante o processo constituinte de ta apresenta algum equivoco? e Prestação de Serviços de Transpor- 1988, o ponto alto, fruto do ambien- Sérgio Miranda – Esse projeto de reforma te Interestadual e Intermunicipal e de te político da época, estava marcado proposto pelo governo traz a simplifi ca- Comunicação). Há muito tempo, os es- pelos anseios a liberdade democrática ção tributária e abre possibilidades para tados vêm perdendo o poder de fazer e justiça social. Desse modo, criou-se, se evitar a cumulatividade de alguns im- política econômica, já que as dívidas na Constituição de 88, o sistema de se- postos. No entanto, a proposta esquece são controladas, ao mesmo tempo em guridade social. Esse deveria garantir e subestima completamente o problema que a União proíbe a emissão de títu- as políticas que envolvem a área da da justiça tributária, que é o aspecto los pelos entes subnacionais. Com a saúde, assistência social, previdên- mais grave do sistema tributário brasi- votação da legislação nacional sobre o cia, incluindo aí o seguro desemprego leiro. Trata-se, nesse sentido, de uma ICMS, sugerida pelo Senado, eles per- e o abono salarial. Entretanto, essas reforma de conteúdo neoliberal, e que dem totalmente a sua competência políticas só teriam conseqüência se apresenta algumas conseqüências mui- tributária. tivessem um fi nanciamento próprio. to graves. Para explicar minha posição, O segundo aspecto da proposta do Por isso, esse orçamento passou a ser destaco três pontos dessa proposta. governo, o qual considero, junto com fi n anciado por parte do orçamento fi s- 28 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 cal e por contribuições sociais. Essas “Há muito tempo, os patronal sobre a folha, porque acaba questões devem ser levadas em con- oferecendo um privilégio para aquelas sideração quando se discute previdên- estados vêm perdendo o empresas com um grande faturamento, cia. Portanto, digo que não se pode emprega poucas pessoas e onera em olhar apenas a contribuição sobre a poder de fazer demasia outras com uma mão-de-obra folha dos patrões e dos empregadores. intensiva. Então, havia um consenso de Deve-se olhar, sim, as outras contri- política econômica, já que nós procuraríamos combinar man- buições que formam o orçamento da tendo sempre uma cobrança sobre a seguridade social. que as dívidas são folha, mas diminuindo essa cobrança e Entretanto, o ajuste fi scal neoli- substituindo por outros tributos. Mas, beral, que assistimos desde a década controladas, ao mesmo quando se prevê no projeto uma deso- de 1990, distorceu o orçamento da se- neração da folha, não há uma substitui- guridade social. Em todos esses anos, tempo em que a União ção clara de como isso será suprido por nunca foi feita a separação física dos outros recursos. orçamentos. Sendo assim, os orça- proíbe a emissão de mentos fi scal e da seguridade social IHU On-Line - O governo argumenta sempre foram tratados em conjunto. títulos pelos entes que o valor arrecadado através do Essa técnica serviu, até agora, para IVA federal será transferido para o concentrar os tributos nas mãos da subnacionais” orçamento da seguridade. Como o União e para cumprir os compromissos senhor avalia essa afi rmação? fi s cais com a política econômica. Ora, Sérgio Miranda – Vejo isso como um se acabar o orçamento da seguridade problema, pois ocorrerá uma transfe- social e se diminuir a arrecadação so- exportação fi cava no Banco Central, rência de capital, o que signifi ca que bre a folha, isso vai gerar um défi cit ou seja, eram os dólares que o país a seguridade social não terá recursos na previdência, que será usado como necessitava para cumprir seus com- próprios. Se a proposta fosse aca- uma argüição da necessidade de uma promissos externos. Ora, se os dólares bar com a cumulatividade da COFINS nova reforma. obtidos com a venda de minérios da (Contribuição para o Financiamento O último ponto diz respeito ao pro- Vale, com a produção dos sojicultores, da Seguridade Social) e a duplicida- blema da injustiça tributária. Discute- por exemplo, não voltam mais para o de da CSLL (Contribuição Social so- se muito a carga fi scal no Brasil. Di- Brasil, por que manter enormes con- bre o Lucro Líquido), poderia se fazer zem que ela é alta, mas esse não é o cessões fi scais para os exportadores? reformulações nesses tributos, mas problema central. A grande questão é Se os dólares poderão fi car no exterior, mantendo-os como próprios da segu- que a carga tributária é injusta. Pre- o Brasil não se benefi cia desse favo- ridade social. Por isso, acredito que dominam tributos sobre o consumo recimento que deu aos exportadores. a reforma tributária do Lula atinge o de forma indireta, enquanto os tribu- O quadro exposto revela um problema coração do sistema social preconizado tos sobre a renda e a propriedade são no Congresso que permite o aconteci- pela Constituição de 88, ao por fi m ao bastante subestimados na nossa carga mento de coisas como essa. orçamento da seguridade social. tributária, ao contrário do que existe nos países desenvolvidos. Aqui, 60% do IHU On-Line – Alguns especialistas di- IHU On-Line – Outra proposta da re- total dos tributos são impostos sobre zem que a criação do IVA federal (uni- forma é acabar com a briga dos esta- o consumo. O desconto dos chamados fi c ação dos impostos), o qual juntaria dos. A sugestão agora é que o estado juros sobre o capital próprio, a não- o PIS, PASEP, COFINS e Cide (imposto que consome o produto pague o IVA. tributação dos lucros e dividendos na sobre combustíveis), não é a reforma Quem de fato deveria pagar os im- fonte mostram como alguns setores ideal, mas a possível no momento. O postos e quem deveria concentrar são tremendamente benefi ciados por senhor concorda? essa renda, para que houvesse maior isenções tributárias. O agronegócio, Sérgio Miranda – Se quiséssemos man- competitividade entre os estados? por exemplo, não paga previdência, e ter o espírito da Constituição de 88, Sérgio Miranda – Esse é problema com- o exportador tem isenção de ICMS e de poderíamos reformular, acabar com a plexo e também não tem uma respos- outros tipos de tributos. cumulatividade da COFINS e do PIS, mas ta simples. Por que surge guerra fi scal? mantendo-os como contribuições sociais. Porque há uma tendência natural de IHU On-Line – E como o senhor avalia Se acabarmos com o orçamento da segu- concentração da produção nos esta- a proposta do governo, de não per- ridade social, e, mesmo que os recursos dos mais fortes. Um empresário, para mitir a internalização dos dólares re- venham como transferência do orçamen- transferir sua produção para um esta- cebidos das exportações? to fi scal, vão ocorrer problemas. do mais pobre, busca algum tipo de Sérgio Miranda – Isso é uma contradi- Há um consenso entre aqueles que compensação. Então, se instala uma ção evidente. O Brasil tinha uma polí- discutem a previdência social. Todos guerra fi scal, na qual os empresários tica de favorecimento tributário para concordam com a idéia de que não se aproveitam dessa disputa para ob- os exportadores porque o resultado da pode ser cobrada apenas a contribuição ter enormes benefícios. Esse é o pro-

SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 29 “O que diferencia a esquerda da direita é, complexa. O sistema trabalhista bra- sileiro foi desmontado nesses anos de principalmente, a luta pela igualdade social. Essa neoliberalismo, no que diz respeito às múltiplas jornadas e aos contratos de eqüidade não se materializa em realizar alguns trabalho. Isso contribuiu para o surgi- mento dos falsos estágios e das falsas problemas sociais, cujo valor é mínimo em relação ao total cooperativas. Hoje, os trabalhadores ainda são submetidos a um enorme ar- do orçamento. A igualdade se materializa no rocho salarial. Não existe correção de salários pela infl ação, o que faz com enfrentamento com os privilégios dos ricos, dos poderosos” que eles fi quem dependentes do cres- cimento da produção, do PIB. Não é tirando os direitos que se aumenta a formalização. Aumenta-se a formalização buscando melhoras tri- blema grave. Mas, quando se discute postas da reforma tributária previa a butárias para as pequenas empresas e o problema da desigualdade no Brasil, destituição do imposto sobre a folha dando algum tipo de prêmio àqueles se subestima um debate sobre a de- de pagamento dos trabalhadores. que formalizam empregos. Há, ainda, sigualdade regional, não apenas entre Segundo o governo, essa proposta uma subestimação da fi scalização do as várias regiões do país, mas, às ve- possibilitaria o aumento de empre- trabalho no país. Hoje, compensa mui- zes, dentro do próprio estado. gos. Entretanto, os sindicatos, em to mais manter um trabalhador sem o O que vem sendo feito no Brasil é reunião com o presidente pediram a registro, porque as penalidades são a transformação paulatina de um es- derrubada desse artigo. Qual é a sua ínfi mas. O dinheiro que o empregador tado federativo e um estado unitário, avaliação sobre o caso? não paga de tributos é muito mais re- concentrado na União, e a perda de Sérgio Miranda – A discussão sobre levante do que a multa de descumpri- prerrogativas por parte dos entes sub- crescimento do emprego vem do au- mento da legislação. nacionais. Isso é uma tendência muito mento da demanda e não do custo forte recomendada pelo Consenso de da mão-de-obra. Se existe demanda IHU On-Line - Com a tributação atu- Washington, pelas regras do FMI, de na sociedade, o empresário contrata, al, uma pessoa com renda elevada e impedir que os estados façam política compra matéria-prima e produz. Mes- outra de baixa renda pagam o mes- econômica. Então, essa proposta que mo que a mão-de-obra seja de custo mo imposto. Quais são os pontos surge agora é fecho de uma série de zero, se não existir demanda, as em- centrais numa reforma tributária, na medidas já anteriormente adotadas presas não vão produzir. perspectiva de uma maior eqüidade para limitar a capacidade de autono- O problema é que o país fi cou gar- social e de renda que o senhor con- mia dos estados e municípios. roteado durante anos numa política sidera inegociáveis para a construção econômica de baixo crescimento. Tí- de uma reforma tributária justa? Como devemos tratar esse problema? nhamos um PIB potencial. Quando Sérgio Miranda – Uma reforma progres- A discussão do federalismo fi scal no ele crescia acima desse índice, sofria sista, por exemplo, deveria eliminar os Brasil é um debate mais abrangente, a intervenção do Banco Central, que tributos sobre a cesta básica e aumen- para o qual não tenho uma solução. No aumentava a taxa de juros. A desone- tar uma tributação sobre renda (juros entanto, qualquer pessoa de bom senso ração da folha como está sendo pro- e lucros) e propriedades. Se observar- sabe que nisso reside um dos aspectos posta, sem uma vinculação explícita à mos parte dos salários na distribuição da crise nacional: as diferenças regio- previdência, deve ser encarada como funcional da renda brasileira, ela vem nais. Se a União não permite que os um golpe futuro em relação ao regime caindo. Assim, tem aumentado a parte estados possam fazer concessões fi scais previdenciário. dos juros que representam a média de para atrair investimentos, como eles vão quase 30% da renda nacional bruta e se desenvolver? O governo está respon- IHU On-Line - Há muitos trabalhado- os lucros e dividendos. dendo a tal questão por meio da criação res informais no Brasil, e, certamen- Aumentar uma tabela de imposto desses pontos. Essa reforma tributária, te, uma das causas se deve ao al- de renda para quem recebe salário é de certa maneira, joga tudo para depois. tíssimo valor tributário cobrado das penalizar a classe média e proteger os Mais tarde, serão defi nidas as leis com- pequenas empresas. Com a reforma muito ricos. Seria necessário, nesse plementares. Assim, procura-se garantir tributária, que questões devem ser caso, um debate sobre a concepção do as mudanças constitucionais que são as levadas em consideração nesses ca- sistema tributário, principalmente so- mais difíceis de serem votadas, e o res- sos, para dar oportunidade aos pe- bre o consumo, que atinge mais de 60% to vai ser feito por lei complementar ou quenos empreendedores, a fi m de do total dos impostos. Regulamentar o ordinária. que eles possam atuar de acordo imposto sobre grandes fortunas, retirar com a lei? da Constituição determinados subsí- IHU On-Line - Uma das principais pro- Sérgio Miranda – Essa é uma questão dios, como os concedidos aos produ-

30 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 tores rurais que, até hoje, não pagam imposto de renda e nem previdência so- cial, também seriam boas alternativas para começar a construir uma reforma tributária mais igualitária. Memória

IHU On-Line – Mas será possível pro- José Carlos Barcellos por essa reforma, garantindo o aces- so à inclusão social como está previs- to na Constituição de 88, tendo em vista a lógica econômica comandada pelo mercado? Sérgio Miranda – Não. Seguindo a ló- gica do governo e do mercado, não há garantias sociais. A Constituição de 88 diz que não existe política social sem garantia de fi nanciamento. Não adian- ta ter as melhores intenções e fazer as declarações mais caridosas sem ter a garantia de fi nanciamento. Se quiser- mos avançar socialmente no Brasil, precisamos nos posicionar claramente frente a essa reforma tributária.

IHU On-Line – A proposta da refor- ma tributária é mais um fator que demonstra a crise da esquerda? Ela tende a ser pragmática e se orientar pelo poder? Sérgio Miranda – Com certeza. Um agrupamento de esquerda não pode apresentar um projeto como esses. O que diferencia a esquerda da direita é, principalmente, a luta pela igualdade uando falamos da relação entre teologia e literatura no Brasil, social. Essa eqüidade não se materia- é indispensável mencionar o nome do professor José Carlos liza em realizar alguns problemas so- Barcellos, falecido no último dia 14 de fevereiro de 2007. Con- ciais, cujo valor é mínimo em relação siderado um dos pioneiros em estudar o diálogo entre essas ao total do orçamento. A igualdade se duas áreas do saber, Barcellos era doutor em Letras pela USP e materializa no enfrentamento com os emQ Teologia pela PUC-Rio, sendo por muitos anos professor da Universidade privilégios dos ricos, dos poderosos. No do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense. A revis- entanto, o governo atual se omite em ta IHU On-Line teve o privilégio de entrevistá-lo sobre o diálogo entre as relação ao problema, o que demonstra um dos elementos da crise da esquer- obras literárias e o pensamento teológico e sobre as questões religiosas na da. Um partido que se apresenta como obra Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. A entrevista foi publicada esquerda não pode ser omisso em rela- na edição número 178, de 02-05-2006. Entre seus livros, citamos O he- ção a questões tão importantes. rói problemático em Cerromaior: subsídios para o estudo do neo-realismo português (Niterói: EDUFF, 1997), Literatura e espiritualidade: uma leitu- ra de Jeunes Années, de Julien Green (Bauru: EDUSC, 2001) e Literatura e LEIA MAIS... homoerotismo em questão (Rio de Janeiro: UERJ, 2006). Sobre reforma tributária, foram publicados os O coordenador do PPG em Letras da Universidade Federal do Paraná seguintes conteúdos na nossa página eletrônica (UFPR) Paulo Soethe, nos enviou o depoimento a seguir, sobre José Carlos www.unisinos.br/ihu Barcellos. Graduado em Letras Alemão-Português, pela Universidade Fede- * Por uma reforma tributária justa. Mani- ral do Paraná (UFPR), mestre e doutor em Letras, pela Universidade de São festo dos movimentos sociais Paulo (USP), o Prof. Dr. Paulo Soethe cursou pós-doutorado na Universidade * Reforma tributária: uma alternativa para conter as desigualdades sociais? Entrevista com de Tübingen, na Alemanha. Após o testemunho de Paulo Soethe, confi - Luiz Antônio Benedito ra uma carta elaborada pela Comissão Organizadora do Segundo Colóquio * A ‘nova’ reforma tributária. Artigo de da Associação Latino-Americana de Literatura e Teologia (Alalite), da qual Renaldo Gonçalves Barcellos foi um dos idealizadores.

SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 31 José Carlos Barcellos, Santiago de Chile, 11 de março de 2008 primus inter pares José Carlos Barcellos (In Memoriam)

POR PAULO SOETHE No dia 14 de fevereiro, recebemos a notícia do falecimento de José Carlos. Ainda que alguma informação nós já tivéssemos da do- Mel silvestre tirei das plantas, ença que o acometia, não deixamos de nos comover pela pressa sal tirei das águas, luz tirei do céu. com que se desenvolveram os acontecimentos. No entanto, mais do Só tenho poesia para vos dar. que isso, nos comoveu o fato de ter perdido tão rapidamente um Abancai-vos, meus irmãos. amigo com quem contávamos há alguns anos para o desenvolvimen- Jorge de Lima to de nossa Associação de Literatura e Teologia (Alalite).

Generosidade, gentileza e acuidade intelectual e Com efeito, conhecemos José Carlos por ocasião da realização metodológica raras são as marcas de José Carlos dos seminários de Literatura e Fé, organizados pela Universidade Barcellos. Seu gesto medido e sempre cordial, a Católica de Chile, circunstância em que nos foi permitido desfrutar aproximação discreta e a fala fl uente, luminar e de sua qualidade intelectual, da profundidade de suas refl exões, da convicta prevalecem na memória: são indícios da capacidade de estabelecer vínculos entre teologia e vida, de sua vida que vence e permanece. preocupação por incorporar aos estudos em literatura e teologia Uma publicação sobre literatura e teologia que vem uma espessura acadêmica de primeiro nível, de seu conhecimento a público pouco tempo depois de seu falecimento da literatura latino-americana e universal, de sua formação em di- remete-se por si mesma a ele. Sua contribuição versos âmbitos, e, enfi m, do carinho fraternal compartilhado. a essa área de refl exão e pesquisa é singular, como são também admiráveis suas publicações A perda prematura de José Carlos nos permitiu refl etir um pouco sobre autores portugueses, espiritualidade ou sobre o que foi sua vida; pelo menos no que dela se somava a nós nos literatura e homoerotismo. José Carlos doutorou- diversos encontros que pudemos ter: conferências, conversações, reu- se duplamente, em Literatura Portuguesa e em niões, o belo colóquio realizado no Rio de Janeiro, em abril de 2007, do Teologia, o que de certa maneira constituiu o qual ele foi um importante organizador. E, desta refl exão, concluímos batismo legítimo dessa área interdisciplinar em que José Carlos não teve a oportunidade de viver uma vida longa, mas nosso país. Seu trabalho em teologia sistemático- sim contribuiu para acolher os dons que Deus lhe deu - e que ele assu- pastoral sobre Julien Green (PUC-Rio, junho de miu como tal - para que ela fosse intensa e para deixar-nos um legado 2000) cumpriu em si mesmo, pela escolha do que se traduz em muitos esforços e projetos associados a suas preocu- objeto, o gesto sacramental. pações intelectuais. No entanto, o testemunho mais decisivo sobre sua Padrinho amável e atencioso, José Carlos cuidou personalidade e seu caráter nos foi dado pela forma como aceitou sua de modo especial do neófi to: motivou colegas, própria dor; essa atitude tão delicada e prudente, e provavelmente cultivou correspondência e diálogo permanentes, quase alegre, com que assumiu os detalhes de sua enfermidade sem organizou eventos. Deve-se em grande medida desejar complicar a seus amigos, com a caridade característica dos ao empenho dele e à sua sempre disposta homens de fé e com a valorização pela vida que parecera não querer interlocução o surgimento da Associação Latino- desperdiçar nem sequer o último momento disponível. Americana de Literatura e Teologia (Alalite), que ele viu nascer em boa hora, há pouco menos Como Comissão Organizadora do segundo Colóquio Internacional de um ano: em meio à luta corajosa contra o da Alalite, queríamos que José Carlos tivesse um lugar especial na adoecimento do corpo, colheu os frutos gratos jornada de inauguração do evento. Isso não será possível formal- da atividade intelectual e humana, para dividi- mente, pois ele já não está conosco. No entanto, prevemos que los conosco, seus pares. alguma parte de nosso encontro esteja dedicada a refl etir sobre seu A homenagem a José Carlos, permito-me fazê- trabalho intelectual. Há alguns participantes que estão preparando la em nome de muitos, no sentido do que ele isso. Postulamos, além disso, que o sinal fundamental de nossa fé tantas vezes nos ofereceu: o convite ao diálogo nos faz crer que a comunhão dos santos nos permite retomar per- amplo, consciente do drama da salvação e manentemente esse dom tão precioso que nos foi dado, que é o da cioso do Amor como senda possível aos que presença. Por isso, nesta simples homenagem, que enviamos aqui dele participam de forma fraterna. do Chile, queremos simplesmente agradecer a presença de José A carta belíssima que os Amigos de Santiago nos Carlos: sua presença entre nós é algo que o tivemos perto, e sua fi z eram chegar há pouco, e que certamente nos presença no Reino, que é a casa onde fi nalmente nos sentimos mais emocionou a todos, é um presente a mais que, cômodos. além deles, também José Carlos nos deixa. O diálogo que somos... e do qual José Carlos Comissão Organizadora do Segundo Colóquio da Alalite Barcellos continua participando.

32 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 Teologia e literatura – uma definição

eproduzimos, a seguir, um texto escrito pelo professor Jose Carlos Bar- cellos (in memoriam). Ele está disponível no site “E-Dicionário de Termos Literários”, de Carlos Ceia (www.fcsh.unl.pt/edtl/index.htm). O artigo ajuda a compreender historicamente a origem das relações entre teolo- Rgia e literatura. Confi ra: As relações entre a teologia e a li- se-ia, pois, nessa perspectiva, de um teratura são muito complexas e diver- aspecto daquilo que António Blanch sifi cadas e só recentemente têm sido (1995) chama de recuperação do “va- objeto de uma refl exão sistemática. “As relações entre a lor homem” em literatura. No Ocidente, desde a consolidação da Historicamente, três obras foram escolástica nos sécs. XII e XIII — com teologia e a literatura são muito importantes na abertura e con- teólogos do porte de Santo Alberto solidação desse campo interdiscipli- Magno, São Tomás de Aquino ou São muito complexas e nar de estudos: Religiöse Gestalten Boaventura — até o séc. XX, a teolo- in Dostojewskijs Werk, de Romano gia acadêmica quase sempre ignorou diversifi cadas e só Guardini (1933), Histoire littéraire completamente a existência e a im- du sentiment religieux en France, de portância da literatura, não obstante recentemente têm sido Henri Bremond (1915ss) e La religion a evidente relevância das questões de Péguy, de Pie Duployé (1965). A teológicas nas obras de autores como objeto de uma refl exão primeira delas é fruto dos cursos que Dante, Gil Vicente, Camões, Calderón, o grande teólogo ítalo-alemão minis- Milton, Hopkins, Antero de Quental ou sistemática” trou, a partir de 1923, na universida- Dostoiévski, por um lado e, por outro, de de Berlim, na cadeira de Weltans- o freqüente recurso à linguagem poé- chauung (“visão de mundo”) católica. tica por parte de alguns dos mais insig- Sua opção por lecionar essa disciplina nes místicos cristãos, como são João a partir da literatura — num ambiente da Cruz ou Santa Teresa de Ávila, ou universitário predominantemente pro- ainda a manifesta qualidade literária to metafísico, sobre o qual a teologia testante ou secularizado — é profun- dos textos de oradores sacros como se veio apoiando sistematicamente, damente sintomática da busca de uma Vieira ou Bossuet. pelo menos desde a Idade Média. Eis nova linguagem que assegurasse a in- Ao longo do séc. XX, registra-se um por que a teologia atual se vê obrigada teligibilidade e comunicabilidade dos paulatino e crescente interesse pelo a recorrer a “linguagens de emprésti- conteúdos propriamente teológicos. A estudo das relações entre teologia e li- mo”, como as das ciências humanas, obra do padre Bremond, por sua vez, teratura, tanto por parte de teólogos, da política, da arte ou da literatura, é um monumento de pesquisa e eru- quanto por parte de críticos literários. para elaborar sua própria linguagem, dição, que muito contribuiu para dar Para os primeiros, a razão fundamen- fenômeno este analisado por Michel visibilidade e respeitabilidade inte- tal pela qual começam a se interes- de Certeau (1969) e Henrique Cláudio lectual, nos meios acadêmicos do séc. sar profi ssionalmente pela literatura de Lima Vaz (1986). XX, aos autores espirituais do passado, (e também por outras artes) parece Para críticos e teóricos da litera- abrindo caminhos, assim, para o tra- decorrer da desintegração da lingua- tura, por sua vez, o interesse pelas balho de outros estudiosos, como foi o gem tradicional da fé e da teologia, relações entre esta e a teologia de- caso, em Portugal, de José Sebastião na esteira da assim chamada crise da corre do esgotamento das metodolo- da Silva Dias (1960), por exemplo. A metafísica ocidental. Efetivamente, a gias excessivamente formalistas de tese de doutoramento de Pie Duployé, crise do racionalismo idealista — de- abordagem do fenômeno literário e apresentada em Estrasburgo, teve sencadeada pela obra daqueles pensa- da conseqüente necessidade de se entre outros méritos o de levantar dores a quem Paul Ricoeur chamou de reintroduzir no âmbito dos estudos li- pioneiramente a questão do estatuto “mestres da suspeita” (Marx, Nietzs- terários a preocupação com a comu- epistemológico da literatura para a te- che e Freud) e posteriormente apro- nicação de uma mensagem, com uma ologia, a ratio humaniorum litterarum fundada por infl uência de Heidegger particular percepção das experiências theologica, nas palavras do autor. e do existencialismo — constituiu um humanas, como núcleo irredutível de Em 1969, o grande teólogo e his- sério golpe na tradição do pensamen- toda e qualquer obra literária. Tratar- toriador da teologia Marie-Dominique

SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 33 opera magna é uma densa e erudita trilogia, que se propõe a apresentar a teologia católica pensada à luz do belo (a estética teológica), do bom (a dra- “Ainda que a metodologia empregada tenha mática teológica), e do verdadeiro (a lógica teológica). Para tanto, o autor envelhecido muito diante dos notáveis recorre inúmeras vezes, entre outras fontes, à literatura ocidental, desde os desenvolvimentos da teoria e da crítica literárias das gregos até nossos dias, literatura esta que ele conhecia em profundidade e últimas décadas, continua a ser uma obra de freqüentemente nas línguas originais. Para von Balthasar, o belo é a manei- referência obrigatória e muitas de suas conclusões ra segundo a qual o bem é percebido pelo homem como verdadeiro (obser- permanecem válidas” ve-se que, em alemão, percepção é Wahrnehmung, isto é, “apreensão do verdadeiro”). Caberia, portanto, ao teólogo, buscar investigar como a lite- ratura — e também a música e as artes plásticas — apreende esteticamente a Chenu retomou a questão formulada mus, Georges Bernanos, Franz Kafka verdade do cristianismo. É esse o pro- por Duployé e propôs que se consi- e, sobretudo, Dostoiévski). jeto que ele desenvolve ao longo de derasse literatura como “lugar te- Mais recentemente, Adolphe Ges- vários volumes e que vem alcançando, ológico”, isto é, como uma fonte de ché (1995), professor de Lovaina, tam- nos últimos anos, grande ressonância elementos para o trabalho teológico bém se ocupou das relações entre te- nos meios teológicos de diversos paí- (“lugares teológicos” são, entre ou- ologia e literatura. Gesché defende a ses, à medida que sua obra vai sendo tros, a Bíblia, os concílios, a Patrística tese de que, para cumprir efi cazmente traduzida e estudada. e também a razão natural, o pensa- seu papel, a teologia deveria eleger a No campo da crítica literária pro- mento de fi lósofos e juristas etc.). Essa antropologia cultural como interlocu- priamente dita, merece especial re- posição encontrou recepção favorável tora privilegiada, pois “torna-se impos- levo a extensa obra do belga Charles em Hervé Rousseau (1976), por exem- sível, de fato e de direito, falar corre- Moeller, Littérature du XXe siècle et plo, mas também suscitou a oposição tamente de Deus se não se conhece o christianisme (1953ss). Nela, estu- de um Jean-Pierre Jossua (1985), que homem”. A antropologia seria, assim, dam-se muitos dos principais escrito- aponta para o risco de se considerar a epistemologia da teologia, o lugar de res do século, cristãos e não-cristãos, a literatura, nesse caso, simplesmente sua verifi cabilidade. Nessa perspecti- na perspectiva das relações de suas vi- como uma fonte a mais de dados pre- va, Gesché — para quem a teologia é das e obras com o cristianismo. Ainda viamente disponíveis alhures para a a ciência dos limites do humano ou do que a metodologia empregada tenha teologia e de não se atentar para aqui- seu excesso — postula a constituição envelhecido muito diante dos notá- lo que somente a literatura é capaz de de uma antropologia literária, enten- veis desenvolvimentos da teoria e da dizer, ou pelo menos, é capaz de dizer dida como a compreensão do homem crítica literárias das últimas décadas, melhor que outros discursos. Quanto construída pela literatura, como disci- continua a ser uma obra de referência a esse particular, observa-se em todo plina com a qual a teologia precisaria obrigatória e muitas de suas conclu- o debate a preocupação constante dialogar, pois é na literatura que se sões permanecem válidas. com o problema do mal. De fato, essa encontra a verdade mais profunda do Em Portugal e no Brasil, têm vindo questão parece polarizar a atenção de ser humano a lume recentemente algumas obras muitos teólogos, quando estes falam Dos grandes teólogos do séc. XX, importantes que estudam destacados da importância da literatura para a te- aquele cuja obra dá maior relevo às nomes das literaturas de língua por- ologia ou daquilo que só a literatura questões literárias é, sem dúvida, o tuguesa em relação com a teologia. seria capaz de dizer. Diante da presen- suíço Hans Urs von Balthasar. Reconhe- Podem-se citar, entre outros, os traba- ça avassaladora do mal, tal qual expe- cendo que a tradição teológica ociden- lhos de Antonio Manzatto (1994), sobre rienciada ao longo do séc. XX, eles se tal privilegiou as idéias de verdade e Jorge Amado; de Heloísa Vilhena de dão conta da insufi ciência e irrelevân- de bem, mas ignorou ou negligenciou Araújo (1996) e Paulo César Carneiro cia da linguagem teológica tradicional gravemente a de beleza, von Balthasar Lopes (1997), sobre Guimarães Rosa; e, inversamente, da profundidade e procurou elaborar uma teologia que de Waldecy Tenório (1996), sobre João comunicabilidade dos grandes painéis reequilibrasse os três transcendentais Cabral de Melo Neto: de Alcir Pécora literários sobre o mal (entre outros ci- da fi losofi a clássica, devolvendo à es- (1994), sobre Antônio Vieira, e de Ma- tem-se os nomes de Edgar Allan Poe, tética o lugar que lhe cabe ao lado da ria Joaquina Nobre Júlio (1997), sobre Emily Brontë, Julien Green, Albert Ca- ética e da lógica. Por isso mesmo, sua Vergílio Ferreira.

34 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 Nanotecnologias

A inserção das nanotecnologias na vida humana: como será o futuro?

Para o sociólogo Edmilson Lopes Jr., as nanotecnologias apenas “radicalizam tendências atuais”. Não há por que atribuir poderes mágicos a elas, garante.

POR PATRICIA FACHIN

ntre as promessas de benefícios milagrosos e o medo de criar objetos incontroláveis, crescem as especulações sobre o futuro humano integra- do às tecnologias. “Mudanças sociais signifi cativas, as quais impactam ESSOAL profundamente nossa forma de ser e estar no mundo” acontecerão com P

o tempo, afi rma o pesquisador. RQUIVO A EEm entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail, ele diz que “há mais especu- lações e projeções do que fatos concretos que alicercem algumas das análises alar- mistas com as quais nos defrontamos sempre que alguém se dispõe a comentar sobre os impactos sociais das nanotecnologias”. Entretanto, reconhece que os processos de inovação tecnológica criarão, como de praxe, “novos campos de atuação e novas possibilidades de desenvolvimento das potencialidades criativas dos humanos”. Edmilson Lopes Júnior é mestre em Sociologia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRGN), e doutor em Ciências Sociais, pela Universidade Esta- dual de Campinas. Atualmente, é docente do departamento de Ciências Sociais da UFRGN. Nas próximas edições, acompanhe entrevistas exclusivas que abordarão a ampla temática das nanotecnologias. Os debates publicados nessa editoria subsidiam a discussão que será aprofundada no Simpósio Internacional Uma Sociedade pós-hu- mana: Possibilidades e limites das nanotecnologias. O evento ocorre entre os dias 26 e 29 de maio, na universidade. Acesse a programação completa na nossa página eletrônica www.unisinos.br/ihu.

IHU On-Line - Como construir um de- metade do século XX, de que devemos Ele expressa também a preocupação bate não emocional, como o senhor ter cuidados para não transplantar me- de não incorrermos, nesta questão, no diz, sobre os ganhos e riscos coloca- canicamente para o campo científi co as mesmo tipo de equívoco que boa parte dos pelas nanotecnologias? querelas ideológicas da luta política. das Ciências Sociais embarcou quando Edmilson Lopes Jr. - Advogar a rea- da discussão sobre os organismos ge- lização de um debate menos emocio- 1 Pierre Bourdieu (1930-2002): sociólogo neticamente modifi cados: buscou-se nal sobre os ganhos e riscos colocados francês. De origem campesina, fi lósofo de for- mais demarcar e fazer avançar posi- mação, chegou a docente na École de Socio- pela nanotecnologia nas Ciências So- logie du Collège de France, instituição que o ções defi nidas do que compreender o ciais implica, antes de tudo, em levar consagrou como um dos maiores intelectuais que estava de fato ocorrendo. Em uma sempre em conta o conselho de Pierre de seu tempo. Dirigiu, por muitos anos, a re- situação como essa, o perdedor é o 1 vista Actes de la recherche en sciences socia- Bourdieu, maior sociólogo da segunda les (Nota da IHU On-Line) grande público, que não pode contar

SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 35 com análises distanciadas e realmente críticas. Isso não signifi ca, obviamen- “A redefi nição de espaço IHU On-Line - As nanotecnologias po- te, que, enquanto cidadãos, engaje- dem redefi nir os usuais modelos da mo-nos apaixonadamente em defesa e tempo provocado pelo realidade social? Isso já está acon- dessa ou daquela proposição sobre as tecendo e nem estamos nos dando implicações do desenvolvimento da uso generalizado da conta? nanotecnologia. O que não podemos, Edmilson Lopes Jr. - As nanotecnolo- repito, é subordinar a análise cientí- telefonia móvel é um gias, de algum modo, apenas radicali- fi c a àquelas proposições emocional- zam tendências atuais. Na realidade, mente defendidas. exemplo dessas mudanças sociais signifi cativas, as Obviamente, não se trata, por cer- quais impactam profundamente nossa to, de fazer entrar novamente em cena transformações. Em forma de ser e estar no mundo, vão superados preceitos positivistas do que ocorrer aos poucos. A redefi nição de venha a ser um debate científi co obje- alguns campos, como o da espaço e tempo provocado pelo uso tivo. Longe disso! E nem de propor que generalizado da telefonia móvel é um se guarde no armário nossas paixões e leitura ótica, a exemplo dessas transformações. Em interesses. Muito pelo contrário, quan- alguns campos, como o da leitura óti- to mais claros e expostos ao conheci- nanotecnologia barateará ca, a nanotecnologia barateará a pro- mento geral eles estiverem, melhor. A dução e isso, acredito, implicará em objetividade é sempre o resultado do a produção e isso, um aumento exponencial do controle aclaramento do lugar social, político e da privacidade. Esse controle não será científi co a partir do qual emergem as acredito, implicará em nenhum produto da nanotecnologia, análises e proposições. mas a expansão de uma tendência so- um aumento exponencial cial hoje presente. IHU On-Line - Como as Ciências So- Claro que em alguns setores, na ciais podem ajudar a democratizar do controle da medicina, por exemplo, as aplicações as discussões sobre os impactos das das nanotecnologias poderão provocar nanotecnologias? De que maneira privacidade. Esse grandes revoluções nas formas de tra- isso vem sendo feito? tar de doenças e de enfrentar vulnera- Edmilson Lopes Jr. - As nanotecnolo- controle não será bilidades e limites físicos. gias abrem uma importante oportuni- dade para uma interconexão entre as nenhum produto da IHU On-Line - E no que se refere Ciências Sociais e as outras ciências. ao mundo do trabalho? O desenvol- E isso será possível na medida em nanotecnologia, mas a vimento das nanotecnologias tem que os cientistas sociais não caírem transformado a realidade dos meios na tentação de criar mais um campo expansão de uma de produção e a dinâmica do merca- interdisciplinar, o qual, como já nos do, exigindo até maior qualifi cação alertou Stephen Wood, pode levar a tendência social hoje dos profi ssionais? produção de “especialistas de coisa Edmilson Lopes Jr. - Também em nenhuma”. Na medida em que cons- presente” relação à redefi nição dos postos de truamos uma boa ciência social (seja trabalho, acredito que há mais es- antropologia, ciência política ou so- peculações e projeções do que fatos ciologia) das nanotecnologias, estare- concretos que alicercem algumas das mos cumprindo um importante papel. análises alarmistas com as quais nos O conhecimento produzido por essas econômicos podemos desenhar para o defrontamos sempre que alguém se Ciências Sociais contribuirá para de- futuro próximo? Quais expectativas, dispõe a comentar sobre os impactos mocratizar as informações sobre as desejos e fantasias são expressos nos sociais das nanotecnologias. nanotecnologias. materiais produzidos pela mídia e pela Destruição criadora: essa é a lógica Há uma agenda de pesquisa que indústria cultural a respeito das nano- dos processos de inovação tecnológi- pode e deve ser enfrentada: como se tecnologias? Quais são as dimensões ca. Não será diferente com as nano- confi gura o campo científi co das na- econômicas, culturais e sociais que tecnologias. Com o desaparecimento notecnologias (suas linhas de força, envolvem o desenvolvimento das na- de formas de trabalho e organização relações de poder, capital científi co notecnologias? da produção hoje existentes, teremos etc.)? Com base nas informações dis- Em parte, aqueles preocupados em novos campos de atuação e novas pos- poníveis — fornecidas pelos cientis- trabalhar com a temática das nanotec- sibilidades de desenvolvimento das tas envolvidos em projetos de nano- nologias no campo das ciências sociais potencialidades criativas dos huma- tecnologias —, que cenários sociais e têm incorporado, em seus trabalhos, al- nos. Mas é sempre bom lembrar que as gumas das questões acima apontadas. 36 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 tam que as nanotecnologias serão benéfi cas e, entre outras coisas, “Os países com maior investimento na pesquisa de possibilitarão a eliminação de des- perdícios na produção de produtos, ponta serão, inevitavelmente, os principais reduzindo a dependência de recur- sos naturais no desenvolvimento de ganhadores da nova revolução técnico-científi ca que novas tecnologias. Em contrapar- tida, os críticos apontam que elas as nanotecnologias anunciam” podem ter impactos negativos na saúde e no meio ambiente. Diante dessas divergências, qual é a sua avaliação? Edmilson Lopes Jr. - Devo reafi rmar “O que não podemos, repito, é subordinar a análise que existem muitas especulações e projeções irrealistas em relação às na- científi ca àquelas proposições emocionalmente notecnologias. De algum modo, mesmo que involuntariamente, essas projeções defendidas” constroem muitas das posturas alarmis- tas que vemos por aí. Nunca é demais repetir, já que lições básicas da socio- logia estão sendo olvidadas no debate sobre as nanotecnologias, que são os “As nanotecnologias são, sim, uma expressão da atores sociais (nós, homens e mulheres concretos), com suas ações (nem sem- criatividade humana. E, como tal, com pre controladas e previsíveis, por certo) e relações, que determinam o rumo dos potencialidades e possibilidades em aberto” acontecimentos. Nesse sentido, não há por que atribuir poderes mágicos (malig- nos ou milagrosos) a uma determinada tecnologia. inovações tecnológicas não se desen- dominantes na área. Essa perspectiva, volvem num vazio, mas embebidas em mais do que legitimar o imobilismo ou IHU On-Line - As nanotecnologias po- relações econômicas, culturais e sociais. a negação do desenvolvimento cientí- dem ser vistas como uma conquista e Por outro lado, o aumento da complexi- fi c o, deve nos conduzir a uma postura uma extensão do ser humano, já que dade dos sistemas sociais conspira con- de maior cobrança de investimentos elas foram desenvolvidas pelo homem? tra as análises causais simples. públicos tanto nas pesquisas na área Nesse contexto, não precisamos temê- quanto em investigações das Ciências la? IHU On-Line - Alguns pesquisadores Sociais. Estas últimas poderão forne- Edmilson Lopes Jr. - As nanotecnologias apontam apenas vantagens para a so- cer informações e saberes importantes são, sim, uma expressão da criatividade ciedade no que se refere à utilização para o monitoramento dos agentes pú- humana. E, como tal, com potenciali- das nanotecnologias. Entretanto, uma blicos e dos atores sociais. dades e possibilidades em aberto. Tan- vez que grandes multinacionais domi- to podem contribuir para a melhoria de narem essa tecnologia, países e popu- IHU On-Line - Esse debate está bas- nossa vida como para agravar velhos lações pobres podem ser particular- tante polarizado entre os especialis- problemas sociais, como, por exem- mente afetados? tas. Os que são favoráveis argumen- plo, o da desigualdade. Edmilson Lopes Jr. - Os países com maior investimento na pesquisa de ponta serão, inevitavelmente, os principais ganhado- LEIA MAIS... res da nova revolução técnico-científi ca que as nanotecnologias anunciam. Edmilson Lopes Jr. participou da edição 120 da IHU On-Line. A entrevista As Ciências Sociais Mas também foi assim em relação a têm papel estratégico nas defi nições sobre nanotecnologia, está disponível no nosso sítio. revoluções precedentes. Por outro >> Confi ra também as entrevistas publicadas nas Notícias do Dia: lado, na medida em que o desenvol- * Nanotecnologias: a relação com o meio ambiente e a sociedade vimento das nanotecnologias implica * Somos ciborgues? Nanotecnologias e as conseqüências na sociedade * Nanotecnologia no Brasil sem qualquer controle social, entrevista publicada do sítio do IHU. em um grande investimento de capi- * “Levante o dedo quem tem zero de ciborgue” tal econômico e científi co, os grandes * As conquistas e os desafi os das nanociência grupos empresariais tenderão a ser os * O homem, as máquinas e o futuro

SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 37 Entrevista da Semana

Incentivo ao conhecimento: o retorno das obras clássicas

Ao lado da esposa e outros sócios, o economista italiano Andrea Vicentini realiza o sonho de tornar acessível grandes clássicos da literatura traduzidos ao português

POR GRAZIELA WOLFART

az sete anos que os admiradores da literatura econômica passaram a ter uma boa fonte de novidades. Uma pequena editora de Curitiba, a Se- gesta, trabalha no sentido de lançar no Brasil traduções de obras pouco

conhecidas até mesmo no meio acadêmico. Não são best-sellers, mas IVULGAÇÃO D atraem por trazerem discussões que, mesmo antigas, não perdem a atua- lidade.F O que mais desperta interesse é a coleção Raízes do Pensamento Econômi- co, atualmente com oito títulos . A IHU On-Line entrevistou, por e-mail, o economista italiano Andrea Vicentini, um dos sócios da editora. Ele fala sobre o projeto, as difi culdades e as próximas metas de publicação. Vale lembrar que as obras não se encontram pelas livrarias do país, com exceção da Cultura, de São Paulo, e da Leonardo da Vinci, do Rio de Janeiro. Mas quem quiser pode fazer o download gratuito no site www.segestaedi- tora.com.br. Vicentini trabalha com a esposa, Marzia Terenzi Vicentini, e um casal de amigos - Pedro de Alcântara Figueira e Fani Goldfarb Figueira. Todos são aposen- tados e dedicam-se a escolher os temas e ajudar na tradução das obras. Andrea Vicentini é formado em Contabilidade e Ciências econômicas pela Uni- versidade de Urbino. Entre 1969 e 1975, foi diretor da Companhia Brasileira de Colonização e Imigração Italiana.

IHU On-Line - O que motivou a apos- dade de se conhecer com mais profun- ajudou e foi fundamental para que ta de vocês em clássicos e em obras didade alguns textos sobre problemas pudéssemos iniciar nossas atividades. pouco conhecidas? No que a traje- monetários que pudessem ajudar a Somos quatro pessoas a trabalhar, es- tória de vida dos sócios da editora compreender melhor a política eco- colher as obras e traduzir: Pedro de ajuda a entender esse interesse em nômica. O objetivo era colocar obras Alcântara Figueira, historiador, Fani publicar obras de pouco interesse importantes e desconhecidas à dis- Goldfarb Figueira, doutora em Socio- comercial? posição dos estudiosos e dos leitores, logia, Marzia Terenzi Vicentini, dou- Andrea Vicentini - O projeto Raízes em textos integrais e bem editados. O tora em Literatura Italiana, e eu, que do Pensamento Econômico nasceu de- apoio fi nanceiro do Instituto Italiano fi z um curso em Ciências Econômicas pois de vários anos de estudo na área de Cultura, que fi nanciou a tradução na Universidade de Urbino, na Itália, de história, literatura, sociologia e de três textos de autores italianos,1 e vivo, desde 1967, problemas ligados economia. Os desastrados planos eco- à agricultura brasileira: organizei uma nômicos dos anos 1980, implantados 1 O entrevistado refere-se aos seguintes livros cooperativa agropecuária e desenvolvi no Brasil por grupos de economistas e autores: Da moeda de Ferdinando Galiani, uma empresa agrícola. Organizei uma Breve tratado, de Antonio Serra e Tratado ligados às universidades de São Paulo Mercantil sobre a moeda, de Geminiano Mon- cooperativa agropecuária e desenvolvi e Rio de Janeiro, indicaram a necessi- tanari. (Nota da IHU On-Line) uma empresa agrícola. 38 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 IHU On-Line - Como está o processo da “Sem dúvida, o estudo de acontecimentos e fatos do tradução e publicação de O capital? Qual é a atualidade de Marx? passado irá ajudar a entender o presente” Andrea Vicentini - Depois da queda da antiga União Soviética, o trabalho teóri- tas entidades, a Segesta esbarra no lobby a chegada de ouro e prata do Novo co de Marx ganhou autonomia e eliminou das grandes editoras que monopolizam o Mundo ao velho continente, a pri- a confusão que considerava, erronea- fornecimento. A Segesta, assim, procura meira emissão de papel moeda com mente, os regimes socialistas existentes ter, antes de se comprometer com a edi- John Law,6 os debates sobre comér- como resultado do seu pensamento. Aris- ção, o capital necessário para o custeio. cio de cereais dos iluministas antes tóteles, que estava ligado a Alexandre, o Só vendemos nossos livros pela internet. da Revolução Francesa. Grande, ganhou força depois da morte Fazemos doações às bibliotecas públicas deste. O mesmo está acontecendo com que pedirem (enviamos livros para 200 A morte do dólar Marx. Ele é o Aristóteles dos nossos tem- bibliotecas do Ceará). Colocamos os tex- Estamos assistindo, no plano da polí- pos. Não existe obra de economia tão tos na internet para download gratuito. tica, a uma grande tragédia americana: clara, profunda, importante, atual como Somos pessoas aposentadas com mais a morte do dólar. O que irá acontecer? O capital, publicado em 1867. A tradu- de 65 anos de idade. De um lado, pode- É difícil encontrar nos jornais artigos ção contratada pela Segesta ainda está mos ir ao cinema gratuitamente, como de economistas que ajudem a compre- em fase de estudo. Uma vez pronta, se- podemos viajar de ônibus sem pagar, de ender a situação. Alguns dizem que a rá colocada na internet para download outro, acho que temos o dever de difun- culpa da crise fi nanceira está ligada ao gratuito. E isto será importante para co- dir o conhecimento. fi n anciamento de imóveis nos Estados nhecer e estudar o texto. Unidos. O governo americano reconhece IHU On-Line - Qual é a importância que o problema, mas afi rma que não existe IHU On-Line - Quais são as característi- vocês mais destacam no fato de tor- desemprego e que o custo de vida não cas dos livros publicados pela Segesta? nar disponível uma obra antiga, mas está subindo. Eu me pergunto: se o coi- Qual é a particularidade da coleção Ra- que continua atual? Em que medida as tado trabalha, se o poder de compra do ízes do Pensamento Econômico? idéias de grandes pensadores contri- salário é constante, por que, então, ele Andrea Vicentini - Todos os textos da buem para a compreensão da socieda- não está pagando o fi nanciamento do coleção eram inéditos no Brasil e estão de e da cultura contemporâneas, prin- seu imóvel? O governo americano está todos ligados ao conhecimento dos pro- cipalmente falando de economia? mentindo e é evidente que falsifi ca os blemas da moeda. Observamos que esta Andrea Vicentini - Vou responder com indicadores do custo de vida. Sabemos linha de estudo está sendo implementa- as palavras que o imperador da lín- que este grupo que está no poder nos da na França, onde está sendo traduzido gua portuguesa, Antônio Vieira5, diz Estados Unidos está acostumado a falsifi - Antonio Serra,2 na Alemanha, onde está num sermão: “se queres ver o futu- car: fraudou o resultado de uma eleição, sendo traduzida a obra de Galiani3 Da ro, lede as histórias e olhai para o fraudou a causa de uma guerra injusta e moeda; e na Argentina, onde já foi tra- passado, se quereis ver o passado assassina. Por que não pode manipular duzido o texto de Oresme4. Quero subli- lede as profecias e olhai para o fu- os indicadores econômicos? Mas o dólar nhar, assim, que a pesquisa da Segesta turo. Se no passado se vê o futuro e é a medida que avalia todas as commo- faz parte de um processo maior que está no futuro se vê o passado, segue-se dities e a alta expressiva dos preços do ativo no mundo todo. que no passado e no futuro se vê petróleo, da soja, do trigo, do milho, por o presente, porque o presente é o exemplo, já está nos mercados do mun- IHU On-Line - Vocês afi rmaram que o futuro do passado”. Acrescento que do inteiro. Uma forte infl ação na terra trabalho da editora não dá lucro. Qual alguns textos do passado são mais do dólar está em andamento e ninguém é a principal motivação em publicar li- importantes quando chegam a ser vai poder esconder este fato dramático. vros apenas pelo prazer da literatura? clássicos, isto é, quando você lê e Acho que haverá uma grande transferên- Andrea Vicentini – Inicialmente, pensa- relê o texto e em cada leitura en- cia de riqueza de uma classe para outra, mos que os livros pudessem ser vendidos contra sempre idéias novas para como aconteceu com a chegada do ouro para os acervos das Bibliotecas Públicas compreender a atualidade. Vivemos e da prata do Novo Mundo na Europa de e Universidades, mas isto não aconteceu. martelados pela mídia, dentro de 1600. E, também, como desdobrou a si- Quando o governo faz compras para es- um confuso e intrincado labirinto tuação na França na época da primeira de idéias que escondem o verda- emissão do papel moeda de John Law. 2 Antonio Serra: autor do primeiro livro de deiro caminho do conhecimento dos Os economistas contemporâneos, que economia política na Itália, em 1613. (Nota do entrevistado) fatos políticos. A saída pode ser en- escrevem e comentam a situação, falam 3 Ferdinando Galiani (1728-1787): economista contrada em textos do passado que de recessão. Mas creio que estamos en- italiano. (Nota da IHU On-Line) tratam questões importantes, como frentando um fato novo. Vou usar uma 4 Nicole d’Oresme (1323-1382): Economista, 7 matemático, físico, astrônomo, fi lósofo, psicó- palavra nova: exúvia . Sim, uma inco- logo, musicólogo e teólogo francês. Foi conse- 5 A revista IHU On-Line número 244, de 19- lheiro do rei Carlos V da França. (Nota da IHU 11-2007 dedicou seu tema de capa a Antônio 6 John Law (1671-1729): economista escocês. On-Line) Vieira. O download pode ser feito em www. (Nota da IHU On-Line) unisinos.br/ihuonline (Nota da IHU On-Line) 7 Exúvia é o tegumento deixado pelos artró- SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 39 mensurável exúvia. O desconcerto da máquina do mundo será tão grande CONFIRA AS OBRAS QUE COMPÕEM A COLEÇÃO RAÍZES DO PENSAMENTO ECONÔMICO que vamos ter uma profunda mudança ECONOMISTAS PORTUGUESES: O ESCRITÓRIO AVARENTO (1655), DE FRANCISCO MANUEL DE MELO, E SOBRE A na sociedade sem poder prever o que INTRODUÇÃO DAS ARTES (1675), DE DUARTE RIBEIRO DE MACEDO. vai nascer dos despojos do atual im- TRATADO MERCANTIL SOBRE A MOEDA (1683), DE GEMINIANO MONTANARI perialismo. Sem dúvida, o estudo de PEQUENO TRATADO DA PRIMEIRA INVENÇÃO DAS MOEDAS (1355), DE NICOLE ORESME acontecimentos e fatos do passado vai DIÁLOGOS SOBRE O COMÉRCIO DE CEREAIS (1770), DE FERDINANDO GALIANI ajudar a entender o presente. BREVE TRATADO DAS CAUSAS QUE PODEM FAZER OS REINOS DESPROVIDOS DE MINAS TER ABUNDÂNCIA DE OURO E PRATA (1613), DE ANTONIO SERRA ENSAIO SOBRE A NATUREZA DO COMÉRCIO EM GERAL (1755), DE RICHARD CANTILLON IHU On-Line - Como surgiu a idéia ECONOMISTAS POLÍTICOS, COLETÂNEA DE PEQUENOS TEXTOS INTEGRAIS DE ADAM SMITH, WILLIAM PETTY, NICHOLAS de tornar disponíveis as obras para BARBON, PIERRE DE BOISGUILBERT, BENJAMIN FRANKLIN, ENCYCLOPÉDIE DE DIDEROT E D’ALEMBERT(ARTIGOS: download gratuito? Vocês são adep- AGRICULTOR E FINANÇAS), TURGOT E DAVID RICARDO tos da teoria de que “o conheci- DA MOEDA (1751), DE FERDINANDO GALIANI mento é livre”? Andrea Vicentini - Queremos que os textos sejam conhecidos. Temos leito- res que fazem download em Portugal, do trigo, escrito pouco tempo antes de edição em língua portuguesa, aqui no 10 em Angola, em Moçambique e em vá- ele ser nomeado Ministro da Fazenda Brasil, dos Grundrisse. rios lugares do Brasil. O livro é outra pelo governo militar. Naquele tempo, Vou fi nalizar lembrando que me refe- coisa. A impressão é feita no melhor estava procurando elementos e idéias ri antes ao “desconcerto da máquina do papel encontrado no mercado. A capa para organizar uma cooperativa agro- mundo”. São palavras de Camões quan- é forte e bonita. Imprimir o texto fi ca pecuária de plantadores de algodão e do descreve uma trágica tempestade. caro. O cartucho é mais caro do que trigo e achei aquele estudo muito im- Para entender problemas econômicos, o livro. portante. Como ministro, Delfi m reali- gosto de recorrer a escritores da grande zou o que tinha escrito teoricamente e literatura. É na grande literatura que po- IHU On-Line - Como o senhor vê a impulsionou a produção de trigo, con- demos encontrar notáveis pensamentos divulgação que Delfi m Netto faz da tribuindo para modernizar a produção sobre temas de economia. Nestes dias, 11 editora? agrícola, que chegou a ser da mais alta li a história de Cogia Hassan , nas Mil e Andrea Vicentini - Quando cheguei ao tecnologia. Hoje, ele tem a maior bi- uma noites, que afi rma que o dinheiro Brasil, em 1967, estudei um texto de blioteca de textos econômicos existen- existe para ser gasto. E acrescenta que Antonio Delfi m Netto8 sobre a política tes no Brasil e nos disse que vai doar o dinheiro deve, também, produzir ri- podes e pelos répteis por ocasião das mudas. todos os livros à USP, com a condição queza para poder receber o necessário A palavra vem do latim exuere que signifi ca de que a universidade fi que também sem medo de esgotar a fonte. A tragédia despojar. O entrevistado explica que usou com a casa onde se encontram, para americana esqueceu este “também”, e essa expressão para indicar que estamos en- frentando uma situação completamente nova. evitar a perda do acervo. Ele conhe- a riqueza está acabando. A poupança do A moeda dólar é a medida de todas as mer- ceu os nossos livros e está dando um mundo, que sustentava as imensas des- cadorias. A palavra commodity vem do latim forte apoio. Reconheço que a propa- pesas do império quando adquiria os tí- commoditate, que signifi ca que tem valor, pode ser medida. O desaparecimento do dólar ganda do Delfi m foi fundamental para tulos da dívida pública americana, está vai criar uma situação nova, ainda indefi nida. a Segesta. sendo dirigida agora a outros destinos. Como vamos dar valor às mercadorias? Sobre Era o medo do socialismo que empur- os despojos do dólar, a humanidade terá que criar alguma coisa, comentou Vicentini. (Nota IHU On-Line - Quais são os próximos rava os países capitalistas a sustentar o da IHU On-Line) planos da editora? poder americano. Hoje, não existe este 8 Antônio Delfi m Netto (1928): economista Andrea Vicentini - Está em preparação medo, e quem tem dólares está gastan- e político brasileiro. Atuou como secretário da Fazenda em São Paulo entre 1966 e 1967. a tradução da obra de Simonde de Sis- do. E gastando, o dólar se desvaloriza. A Durante o regime militar, entre 1967 e 1974, mondi,9 Novos princípios de Economia exúvia começou. Acabaram As mil e uma foi ministro da Fazenda. Em 1979, ocupou o Política, escrito em 1819-1826. Depois, noites. Vão começar as Mil e duas noi- cargo de ministro da agricultura e em 1985 foi ministro do Planejamento. É professor eméri- espero começar as revisões de O capi- tes. O que será? to da Faculdade de Economia e Administração tal. O programa é publicar somente o da Universidade de São Paulo (USP). Antonio primeiro livro de Marx que foi editado Delfi m Netto elogiou a iniciativa da editora. Entre outras coisas, ele disse que “O proje- por ele em 1867. Gostaria de dizer que 10 Grundrisse der Kritik der politischen Öko- to da Segesta merece todo o apoio dos que se o interesse sobre Marx é grande no Bra- nomie (Elementos fundamentais para a críti- interessam pela teoria econômica e pela eco- sil. Foram editadas recentemente duas ca da economia política): é um manuscrito de nomia política. Trata-se de uma contribuição Karl Marx, completado em 1858. Sobre o tema, fundamental para a melhoria do conhecimento boas traduções da Ideologia Alemã. Te- a IHU On-Line entrevistou Jorge Paiva. A en- da literatura econômica entre nós. Talvez seja mos conhecimento de que se prepara a trevista “‘Grundrisse’ de Marx. Um outro para- indispensável mesmo para os que se julgam (Nota da IHU On-Line) digma teórico para os desafi os contemporâne- ‘cientistas’ e, portanto, desinteressados dos 9 Jean-Charles-Léonard Simonde de Sismon- os” está disponível na nossa página eletrônica aspectos arqueológicos da profi ssão.”. O co- di (1773-1842): economista e historiador suíço. www.unisinos.br/ihu. (Nota da IHU On-Line) mentário na integra pode ser lido através do Nos seus últimos anos de atividade profi ssional 11 Cogia Hassan é uma personagem de um endereço www.gegestaeditora.com.br/arti- escreveu a Histoire des français (1821-1844). conto do livro As Mil e Uma noites. (Nota da gos/d_netto.htm. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) 40 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 Invenção

Editoria de Poesia

Adriana Zapparoli

POR ANDRÉ DICK

A poeta Adriana Zapparoli nasceu a mulher que o defendia. vestida com Dentre os nomes, no Brasil, que se em 1969 e é natural de Campinas (SP). o linho e a amálgama a / sua pele de aproximam de sua poética está certa- Fez doutorado em Farmacologia, pela corça pintalgada. o ofídio na cintura. mente o de Josely Vianna Baptista. Am- Universidade Estadual de Campinas um chamariz / na conversão, atrain- bas têm um trabalho elaborado, estru- (Unicamp), e em 2007 lançou seu li- do-o para a vida. fescenino o senti- tural, que mantém um diálogo com um vro de estréia, A fl or-da-Abissínia (São mento na / necessidade do íntimo”. certo “desregramento de sentidos” de Paulo: Lumme Editor), depois de pu- No poema “neméia”, não incluído em Rimbaud, ou seja, não é possível esperar blicar poemas em revistas impressas, A fl or-da-Abissínia, por sua vez, há um uma leitura previsível em seus versos. como ET Cetera, A Cigarra e Poesia sentimento de abandono: “abraçar a O próprio título do primeiro livro de Za- Sempre, e eletrônicas, como Zunái e divindade masculina. esguia. gerar o pparoli remete a Rimbaud: a Abissínia é Mnemozine. Prepara, para breve, o li- seu fi lho e / abandoná-lo. agora”. Com a região em que o escritor francês se re- vro O leão de Neméia. isso, parece que Adriana trata sempre fugiou depois de decidir nunca mais es- Numa espécie de revitalização do de um ambiente em que a vida e a crever poesia, a fi m de trafi car escravos barroco, Zaparolli faz poemas essen- morte estão entrelaçadas, talvez pelo e armas. Nessa dissolução entre prosa e cialmente musicais, com imagens es- tom científi co, ligando-as a uma ten- poesia, Adriana também desenvolve um tranhas e muito bem trabalhadas. Suas são que remete a corpos visualizados caminho seguido por Claudia Roquette- imagens botânicas criam uma analogia e descritos com raro cuidado. Pinto, sobretudo em Zona de sombra. O sobretudo com o corpo humano. Ou Em “Scorpione”, Adriana, por exem- verso, se assim pode ser chamado, de seja, é muito comum em sua poesia plo, procura uma espécie de metalingü- Zapparoli, no entanto, é mais elíptico, que esteja falando de seres humanos ística, com algumas imagens desauto- mais quebrado. quando fala sobre plantas, utilizando, matizadas e um contato com o deus da Por vezes, é uma poesia que pare- inclusive, nomes científi cos, raros. Ve- medicina entre os romanos e os gregos, ce estar sendo exagerada e até mesmo jamos um poema como “yoni”: “na ca- numa aproximação com a mitologia romântica quando está trabalhando marilha de orvalho o cenário. / perla (procurada em outros poemas seus): “a em camadas diferentes de linguagem, seria por uma concha envolta em pé- andarilha do deserto negro abandona- além de se caracterizar por um humor talon de orquídea. / ela a doçaina, o va, algumas vezes, os seus olhos lagar- sutil, sempre oblíquo e desviado pelo neter, o fundo contrário. uma fl or no tos ao respirar a essência daquelas síla- tom científi co de algumas proposições. inferno / levamente molhado. / a sua bas. a gramática monossilábica daquele No entanto, por trás disso, parece ha- parte mais fi na, fl ogística, em límpi- pensamento escorpião de palpos com- ver, junto com a sintaxe rebuscada, as da essência turmalina...”. Em “hieros pridos, demasiado horrendo e parali- elipses e fragmentações, uma procura gamos”, a poeta escreve: “falo ele- sante, demorava-se em sua mente. [...] por certa completude que inexiste, mas trocutado / no direito do acólito, / do com suas cascas em ecdise atravessou que insiste em ser buscada. Adriana en- êxtase em botões de lótus. / / dentro mais uma porta de fechar atrás de si. e viou especialmente à IHU On-Line três dela, os bulbos / de tulipas estão mais foi então que ele, cheio de coragem, le- poemas inéditos, com algumas das ca- próximos”. Em “tirso”, Adriana escla- vantou-se ofídico, Asclépio, à margem racterísticas que encontramos em seus rece melhor esse traço amoroso: “era daquelas águas”. poemas anteriores.

SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 41 baunilha-dos-jardins

mata-calado d’água quente. sua língua é uma linha em louça, um riacho bacântico. surpreende-me quando o vejo no canto, nas fi las verdes do pedaliáceo, do alto, por debaixo. naquele quarto em branco e preto. o bácaro está contido no mastro e sobre as coisas que penso — você: num vão do espaço, no túnel do tempo, no banco de madeira sob o jato, no óleo da semente, nas palavras aos pedaços... são os fragmentos que o trazem. numa linguagem de aço e mutante é o caminho para o receptáculo em fl o res-de-baunilha.

mudras: te peço de bela, enfi m, te peço falo e todas as miçangas mudas. orvalhando em cadência, misturam-se as runas, as rimas e as rugas dentro do colo do útero. pois motriz é o fl u xo-menta. então durma, por sobre o conforto deste chafariz, que mesmo assim, me culpo-calêndula... por que trava a guia, o estame da vida... se te peco aos anjos, tão temente e latejante, liame e liana, de cabeça- incorporo- corpo fl ambando lantejoula de dicotiledônea e tendo receio dos calos que me alcançam à retina, samsara, em dor-mente-clorofi la. e se ao vê-lo, tornar-me melódica em cascata então, transponha-me com o corpo-falo que eu lhe devolvo a chibata da guiza a carburar esta prata. mais tarde, e quanto mais... em tarde de ramachandra e sita.

42 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 Destaques On-Line

Essa editoria veicula notícias e entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU. Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line disponíveis Maio de 68: “O balanço vai da idolatria à fl agelação” nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu) Fernando Eichenberg de 11-03-2008 a 15-03-2008. Confi ra nas Notícias do Dia 13-03-2008 O jornalista descreve sobre os refl exos dos episódios ocorri- Das resistências às alternativas. Fórum Mundial das Alter- dos em maio de 1968 na sociedade francesa hoje, lembrando nativas. Documento fi nal do cinema, direitos individuais e mercado de trabalho. Para Confi ra nas Notícias do Dia 11-03-2008 ele, “o período ainda passa por avaliações e divide opiniões Neste dia, o sítio do IHU publicou o documento fi nal redigido sobre suas contribuições”. após o Encontro Latino-americano do Fórum Mundial das Al- ternativas (FMA), ocorrido em Quito, no Equador, no fi nal de A cirurgia plástica sob um olhar antropológico fevereiro. O documento foi traduzido pelo CEPAT. Andrea Tochio Confi ra nas Notícias do Dia 15-03-2008 Hugo Assmann: ‘Diante da presença dele ninguém fi cava O feminino mudou. Passaram-se os anos e a inserção das indiferente’ tecnologias no nosso dia-a-dia fez com que a estética e a Esther Grossi construção do corpo mudassem também. Nesta entrevista, Confi ra nas Notícias do Dia 12-03-2008 Andrea Tochio fala sobre seu trabalho em que analisa Nesta entrevista, a ex-deputada federal faz uma homena- antropologicamente a cirurgia plástica. gem ao teólogo Hugo Assmann, com quem conviveu e apren- deu tanto. “O Hugo era grande; ele usufruía dos momentos existenciais. Também era absolutamente comprometido com cada momento. Era, em síntese, uma fi gura fantástica”, re- Análise da Conjuntura lembrou. A Conjuntura da Semana está no ar. Confi ra no sítio do IHU - www.unisinos.br/ihu

A análise é elaborada, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores - CEPAT - com sede em Curitiba, PR, em fi na sintonia com o IHU

SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 43 44 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 FIQUE SABENDO... Agenda da Semana * Querô (Maxwell Nascimento) é fi - lho de uma prostituta que se matou Confi ra os eventos dessa semana, realizados pelo IHU. com querosene pouco depois de ele A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU nascer. O garoto cresce numa pensão (www.unisinos.br/ihu). e nas ruas do porto de Santos. Na Febem, descobre o inferno. Sobre o fi l me, foi publicado o artigo Menor abandonado, uma situação atual, na edição número 242 da revista IHU On- Dia 19-03-2008 Line, intitulada Rio dos Sinos, um ano depois da tragédia. Ainda é possível Ofi cina de artes plásticas: Criando a própria Ceia salvá-lo? O conteúdo está disponível Palestrante: Profa. MS Maria Rosicler Ferretto Barbosa - Unisinos em www.unisinos.br/ihu. Horário: 17h30min às 19h * Numa universidade do Rio de Ja- Local: Sala 1G 119, junto ao Instituto Humanitas Unisinos-IHU neiro, Paulo (Caio Blat), estudante de medicina, Leon (Alexandre Rodri- gues), estudante de sociologia, e a Exibição do fi lme: Querô (Carlos Cortez, 2006, 90 min) futura arquiteta Letícia (Maria Flor) Debatedor: Prof. Dr. Hilário Dick - Unisinos são os melhores amigos, dividindo Horário: 19h30min às 22h precariedade de moradia, a falta de dinheiro e a cervejinha com a mesma Local: Auditório Central alegria. Pinta um risco de triângu- Dia 24-03-2008 lo amoroso que abala o grupo. Além disso, eles têm um encontro marcado Exibição do fi lme: Proibido proibir (Jorge Duran, 2006, 100 min) com a dura realidade social do país. Sobre o fi lme, foi publicado o artigo Debatedores: Profa. Dra. Christa Berger e Prof. Dr. José Roque Junges- Unisinos Uma sociedade entre a violência e a Horário: 19h30min às 22h ternura, na edição número 222 da re- vista IHU On-Line, intitulada Rûmî. O Local: Sala 1G 119, junto ao Instituto Humanitas Unisinos-IHU poeta e místico da dança do Amor e da Unidade. Para saber mais, acesse www.unisinos.br/ihu.

VOCÊ JÁ IMAGINOU QUE ALGUM DIA FALARÍAMOS EM FUTURO PÓS-HUMANO? OU, ALGO MAIS SURPREENDENTE, QUE HOMENS E MÁQUINAS PODERIAM SER UM SÓ: HÍBRIDOS?

ESSA DISCUSSÃO ESTARÁ PRESENTE NAS CONFERÊNCIAS E MINI-CURSOS DO SIMPÓSIO INTERNACIONAL UMA SOCIEDADE PÓS-HUMANA? POSSIBILIDADES E LIMITES DAS NANOTECNOLOGIAS. O EVENTO ACONTECERÁ NA UNISINOS ENTRE OS DIAS 26 E 29 DE MAIO DESTE ANO. A PROGRAMAÇÃO COMPLETA DO ENCONTRO JÁ PODE SER CONFERIDA ATRAVÉS DO NOSSO SÍTIO WWW.UNISINOS.BR/IHU.

SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 45 Da preocupação individual ao interesse social: o retrato de Jorge Durán sobre a juventude brasileira

Diretor do fi lme Proibido proibir, que faz alusão ao slogan da revolução de maio de 1968, fala sobre o posicionamento dos jovens brasileiros, diante das mazelas do país

POR BRUNA QUADROS

ueria colocar no centro da história a Universidade, outor- gando-lhe a importância que merece, como formadora dos nossos jovens”, afi rma o roteirista e diretor Jorge Durán, so- PESSOAL bre o fi lme Proibido Proibir, lançado em 2006. Segundo ele,

a imagem do jovem, hoje, no Brasil, é mascarada por alguns RQUIVO A “Qcineastas e se confunde no imaginário do público. “Esse jovem existe no cinema dos Estados Unidos e em parte do europeu. Ele não tem ética; é perverso, cruel, amoral, sem afetos”, reforça. Em relação à postura dos jovens diante das questões sociais do país, Durán é enfático: “qualquer universidade, para ser respeitada, tem a obrigação de fazer seus alunos olharem para o país em que vivem”. O Instituto Humanitas Unisinos – IHU exibirá e discutirá o fi lme Proibido proibir, no dia 24 de março. A análise e o debate sobre a obra de Jorge Durán serão feitos pela Profa. Dra. Christa Berger e pelo Prof. Dr. José Roque Junges, integrantes do corpo docente da Unisinos. A exibição do fi lme será na sala 1G 119, junto ao IHU, das 19h30 às 22h. A programação integra o evento Páscoa 2008: um grito contra a violência. Para saber mais, acesse www.unisinos.br/ihu.

IHU On-Line - O título do seu fi lme se tam de estudar, de ler, de saber o que Proibido proibir, colocar no centro da alicerça no slogan “É proibido proibir”, passa no mundo, pensei que o Paulo co- história a Universidade, outorgando-lhe imortalizado pela revolução de jovens nheceria essa época, maio de 1968, da a importância que merece, como for- universitários em Maio de 1968. Quais qual seria um admirador. madora dos nossos jovens. Não existiria são as suas pretensões ao produzir esta história não fossem eles estudan- este fi lme? Como foi surgindo esta história tes universitários. Por isso, a desenvol- Jorge Durán - Em todos os casos, come- Sou muito interessado no Brasil, vo como tema, com maior força, na se- cei a escrever o texto somente pensando como tema. A juventude é outro tema gunda parte do fi lme, para que se sinta, no assunto que me interessava, procu- que me interessa. Vejo muito cinema. mais claramente, que o que ocorre com rando personagens e tema ao mesmo E o que vejo sobre a juventude me de- a vida deles está vinculado à passagem tempo. No fi lme Proibido proibir, o slo- sagrada. Acredito que foi inventado um pela Universidade, que os leva a com- gan “É proibido proibir” faz referência a “jovem” inexistente, mas que na cabe- preender o mundo e o lugar em que uma época em que a juventude era tre- ça de muito cineasta e de algum público vivem. Não são heróis, apenas jovens mendamente ativa. Escolhi o título para se tornou real. Esse jovem existe no ci- cheios de energia que vão fi cando sem pôr ele na boca de Paulo, estudante de nema dos Estados Unidos e em parte do muitas opções, na medida em que a re- medicina, que o usa como escudo para europeu. Ele não tem ética; é perverso, alidade do país vai revelando algo pró- enfrentar a realidade, muito dura, pela cruel, amoral, sem afetos. Penso que ximo deles, que lhes diz respeito. Seria que transita: o país, a cidade, o hospital ele seja “cinematográfi co”, nem por o primeiro passo para se tornar um bom universitário. Por outro lado, por ser um isso o considero “real”. Nada no cinema cidadão e um profi ssional ético. A ami- fi l me sobre uma parcela da juventude é “real”, mas o que me interessa pôr na zade e a lealdade são também um tema ignorada pelo cinema, jovens que gos- tela é a realidade que vejo. Queria, em que o fi lme aborda.

46 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 Tenho viajado muito e debatido em somente no seu signifi cado urbanístico, IHU On-Line - Quais são as marcas que diversos países este fi lme. Em todos, te- mas também no seu signifi cado social e a juventude do Brasil de hoje carrega nho encontrado uma juventude inquieta, político, fi nalmente. Não é preciso ser daquele Maio de 1968? curiosa com o mundo, aparentemente e militante, para se sensibilizar diante Jorge Durán - A mesma de sempre: perfeitamente comum, como a daqui. destes problemas. Qualquer universida- energia, romantismo, humanidade, afe- Na Suíça e na Itália, jovens universitá- de, para ser respeitada, tem a obrigação to, lealdade, fraternidade. Tudo isto rios me disseram palavras semelhantes: de fazer seus alunos olharem para o país exposto de maneira menos evidente. É as personagens do fi lme seriam muito em que vivem. Mesmo que não o façam, que eu acho que o jovem, em geral, nas- semelhantes a eles, mas o contexto dos o próprio estudo, a própria teoria e a ce com tudo isto dentro dele, e o per- países radicalmente diferente. Não te- convivência cotidiana com os problemas de nessa mixórdia que é o mundo hoje. nho pretensão nenhuma ao começar um do país podem levar um estudante a fi car projeto. Diria que sou movido pela curio- consciente. Daí a fazer alguma ação con- IHU On-Line - O que se pode esperar sidade. Sei que o resultado é produto do creta é outro passo que somente alguns para o futuro do país, diante dos jovens trabalho intenso. Não considero o resulta- dão. Não é incomum saber de estudantes que a sociedade está formando hoje? do dos fi lmes que fi z produto do talento, de comunicações que fazem algum tipo Jorge Durán – Tudo, ainda mais quando mas do trabalho. Certamente que tenho de trabalho comunitário. Eu escolhi tra- apareçam oportunidades de trabalho e dedos para tocar esse piano que chamado balhar sobre as pessoas que me interes- de crescimento pessoal. São os jovens cinema. Por último, queria fi lmar o Rio sam. Por exemplo, policiais e bandidos que vão mudar algo no país. A educação que mais gosto, que é o da zona norte. A não me interessam. Não considero que e a saúde são fontes de energia que fal- zona sul é confortável, porém, em termos jovens que fumem maconha sejam trafi - tam demasiadamente. de cinema, prefi ro bairros populares, não cantes e devam ser colocados na mesma necessariamente favelas, lugares sofridos prateleira que trafi cantes profi ssionais. IHU On-Line - O que o processo de pro- e difíceis. Os bairros de classe média da dução do fi lme agregou a você, profi s- Zona Sul, Ipanema, Leblon acho sem inte- IHU On-Line - Jovens preocupados com sionalmente e pessoalmente? resse estético, sem drama, de uma arqui- as questões sociais compõem o retra- Jorge Durán - Como gosto de fazer cine- tetura anódina. to da juventude brasileira? Como você ma, este fi lme me deu a possibilidade de defi ne os jovens de hoje? dizer o que penso do país e do cinema. IHU On-Line - Qual é a sua visão sobre Jorge Durán - Os jovens que vejo pa- Fiz o fi lme com uma estética realista, o slogan “É proibido proibir”? recem concentrados nas suas vidas, nos em oposição à estética dominante, que Jorge Durán - Acho interessante, porém seus problemas. Estão atentos ao acon- pinta e mascara, inventa até encher o ambíguo. Vale para Maio de 1968. Hoje tecer, de forma distante, e descrentes saco uma realidade que não tem ânco- em dia é uma bela frase. da possibilidade de intervir na coisa ra no mundo que vivemos; que nasce do pública. Para mim, é claro que não só mundo inventado em outros fi lmes. Se IHU On-Line - Na obra, os três jovens o jovem, mas o cidadão brasileiro, tem fi c ou bom ou ruim, sobre o que refl ito são universitários, o que nos remete a uma importância mínima para o homem constantemente, respondo para mim uma idéia de situação fi nanceira está- publico brasileiro, que não seja como que trabalhei muito e acredito funda- vel, tendo em vista a questão do acesso massa de manobra para eleições. mente no que afi rmo. à educação no Brasil. Neste sentido, o que move os jovens a se interessarem pela situação do país, sendo que esta não seria sua responsabilidade? FIQUE SABENDO... Jorge Durán - Qualquer estudante de Chileno, Jorge Durán vive no Brasil ganhou o concurso para fi lmes de bai- sociologia faz pesquisa de campo. Para desde 1973. Em 1978, dirigiu seu pri- xo orçamento do Ministério da Cultu- construir o personagem Leon, que estu- meiro longa metragem, intitulado A cor ra, além do prêmio ofi cial do júri no da sociologia, me fi z assessorar por meu do seu destino. Ficou conhecido pelos Festival de Havana, de melhor fi l me fi l ho, Paulo Durán, que me informou roteiros de Lúcio Flávio - O passageiro no festival de Biarritz e de melhor ator sobre o cotidiano de alguns estudantes da agonia (1977), Pixote – A lei do mais no Festival de Cinema Luso-Brasileiro de ciências sociais. O fi lme não os co- fraco (1981) e O beijo da mulher-ara- de Santa Maria da Feira, em Portugal, loca como militantes de alguma causa, nha (1984), os três dirigidos por Hector entre outros. Para televisão escreveu, ou movimento político ou social, apenas Babenco, e Gaijin, caminhos da liber- entre outros, episódios do seriado Mu- conscientes do que vêem. Difícil um es- dade (1979), de Tizuka Yamasaki. Proi- lher (1998) e A justiceira (1997), e foi tudante de medicina não reparar na mi- bido proibir, lançado em 2006, marca o co-roteista da minissérie Amazônia séria do brasileiro, na precariedade da retorno de Durán à direção, após duas (2007). Atualmente, é coordenador do décadas. Patrocinado pela Petrobras, Departamento de Roteiro e professor vida que vivemos. Difícil também uma com o apoio do Programa Ibermedia no Curso de Cinema da Universidade estudante de arquitetura não reparar – Fundo Ibero-Americano, que visa es- Gama Filho, do Rio de Janeiro, além na cidade degradada em contraste com timular a co-produção de fi lmes para de professor de roteiro na Escola de a paisagem exuberante de Rio de Janei- cinema e televisão, Proibido proibir Cinema . ro. Impossível ignorar as favelas, não

SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 47 Perfi l Popular

A cada edição, a história de um membro da comunidade. Maria de Lurdes Dutra Vargas

POR GRAZIELA WOLFART ARGAS V vida ensinou para Maria de Lurdes Dutra Vargas, de 52 anos, REYCE

que a trajetória humana é feita de altos e baixos. “Com a G OTOS

idade, vamos aprendendo sempre coisas novas. Nascemos F para morrer, somos uma vela no mundo. Assim como estamos acesos, já apagamos”, refl ete ela, na conversa que teve com Aa IHU On-Line , em visita à redação da revista, oportunidade na qual contou-nos sua história. Mesmo abalada pela dramática experiência de perder dois fi lhos, Maria de Lurdes continuou a lutar por dias melhores, sempre colocando a família em primeiro lugar. Acompanhe, a seguir, a lição de vida que esta senhora nos proporciona.

Nascida na localidade de Segredo, “Trabalhei em tudo o que é serviço, até cortando município de Sobradinho, no Rio Gran- de do Sul, Maria de Lurdes Dutra Var- mato de lenha de acácia e em trabalho temporário gas aprendeu, desde cedo, como é a vida no interior. Precisava trabalhar na de colheita de nozes” roça e não estudou porque, naquele tempo, conta ela, não era obrigatório ir para a escola, e os pais queriam que trabalhar como doméstica. “Também pertencia à prefeitura de São Leopol- os seis fi lhos ajudassem no trabalho fui camareira de motel, com carteira do, sendo considerada “área verde”. braçal da lavoura. O pouco tempo que assinada. Trabalhei em tudo o que é “Daí meu marido fez uma casinha ali, freqüentou o colégio lhe proporcionou serviço, até cortando mato de lenha bem pequena, só para ele e os guris pa- o aprendizado básico, para que pudes- de acácia e em trabalho temporário de rarem enquanto estavam trabalhando. se escrever o próprio nome. “Fui de colheita de nozes”, conta. A gente achou que não ia dar problema família pobre, e minha mãe se juntou nenhum, porque era área verde. Deci- com outro homem, meu padrasto, que Nosso perfi l popular desta semana dimos vender a casa lá em Cachoeira e bebia, incomodava. Tivemos uma vida teve oito fi lhos: quatro homens e qua- vir toda a família para São Leopoldo”. sofrida”, lembra. tro mulheres. Depois de duas décadas A casinha inicial construída por Sandro morando em Cachoeira do Sul, a famí- tinha duas peças. Quando viram, várias Com o passar dos anos, Maria co- lia mudou-se para São Leopoldo. Toma- pessoas começaram a construir casas nheceu Sandro Roberto Vargas, que ram a decisão, pois onde estavam era ali também. Depois da ocupação, foi veio a se tornar seu marido. Casaram- difícil conseguir emprego para os ho- formada a Cooperativa Progresso, para se e, cansada de trabalhar na roça, mens. Quando começaram a construir lotear os terrenos. Começaram a pagar ela propôs a mudança para uma cida- a estação de trem em São Leopoldo, as prestações e faz dez anos que a fa- de maior. O primeiro destino foi Ca- o marido de Maria conseguiu emprego mília de Maria e Sandro mora ali. “Foi choeira do Sul, onde moraram por 20 para ele e para os guris mais velhos. bom criar a cooperativa, para a gente anos. Chegando lá, o marido de Maria fi c ar mais descansado”, recorda Maria. de Lurdes conseguiu emprego no cul- O lugar onde Maria e sua família “Daí a gente tinha certeza de que não tivo de arroz, pois Cachoeira do Sul é construíram morada fi ca no bairro Rio ia sair mais despejo, pois antes viviam a capital do arroz, diz Maria. Ela foi dos Sinos. Ela conta que a localidade nos ameaçando”, desabafa. “Agora sa-

48 SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 “A única solução para fugir do perigo do mundo é estar dentro da igreja”

Eu tinha uma máquina em casa e nem sabia colocar linha na agulha. Hoje, nós trabalhamos com o grupo do curso. Temos encomendas de camisetas para entregar e ganhamos nosso dinheiro”, garante, animada. O marido de Maria de Lurdes poderia estar trabalhando na cooperativa também, construindo casas novas. Mas ele optou por traba- lhar em uma olaria, “porque lá eles assinam a carteira”, explica ela.

A criação dos fi lhos: valores e fé Sobre a criação dos fi lhos, Maria conta que, em Cachoeira do Sul, utili- zou o recurso do patronato, uma espé- cie de colégio interno. “Quando eu via que meus fi lhos estavam rebeldes, eu os colocava lá, onde tinham hora para comer, para brincar, para estudar e para dormir”. Todos seus fi lhos foram engraxates em Cachoeira do Sul. Eram “Acredito muito em Deus, porque se não fosse Ele eu não chamados de “pequenos operários”. “Eu sempre ensinava para eles não pe- estava em pé” garem nada dos outros sem perguntar antes. Criei eles assim. Graças a Deus nunca tive problema com meus fi lhos. Eles saiam de casa de manhã para en- bemos que o terreno é da gente, tudo é um pedacinho do meu fi lho que fi cou graxar e já perguntavam ‘mãe, o que medido”. Depois de quatro anos de na terra. Mas ela começou a afastar está faltando?’ e traziam o que eu pe- trabalho na cooperativa foi instalada a ele de nós”, lamenta. dia com o dinheiro que eles faziam no rede de luz e o encanamento de água. trabalho”. “No início foi tudo um sacrifício”. Maria conta que se sente muito bem no convívio com as pessoas da coope- Maria de Lurdes é evangélica, per- Tristeza rativa. “Lá sempre tenho uma palavra tencente à Igreja Evangélica Assem- No entanto, viver sem água, luz e amiga. Tem gente companheira, que bléia de Deus Gideões Missionários, de na insegurança do desabrigo não foi se ajuda nas horas mais difíceis”. Ela Pelotas/RS. “Acredito muito em Deus, tudo o que Maria de Lurdes precisou começou a se entrosar com os vizinhos porque se não fosse Ele eu não estava enfrentar. O maior drama de sua vida depois que perdeu o primeiro fi lho. em pé, em razão de tudo isso que eu foi perder os dois fi lhos homens mais “Eu andava muito nervosa e abatida e, passei”, diz. O grande sonho de Maria novos. Um morreu afogado na praia de para não fi car em casa, só pensando, de Lurdes é levar os fi lhos para dentro Torres, há dois anos. Tinha 23 e deixou comecei a fazer um curso de padaria. da igreja, para seguir a religião que ela um gurizinho de 3 anos. E o outro, há Lá tem uma psicóloga que conversa e o marido seguem. “Peço para Deus sete meses, morreu de infarto, com com a gente uma vez por semana. E que não quero morrer sem ver todos 22 anos. Maria de Lurdes tem 10 ne- foi ali que levantei meu astral e me meus fi lhos dentro da igreja. Quero tos e se sente a “segunda mãe” das animei de novo”. Mais tarde, entrou partir tranqüila, em paz, sabendo que crianças. “Esse menino do meu fi lho em outro curso promovido pela coope- deixei meus fi lhos dentro da igreja, que faleceu era muito apegado comi- rativa, desta vez de corte e costura, onde não tem perigo. A única solução go. Eu pedi para a mãe da criança não com a ajuda da Unisinos e do Programa para fugir do perigo do mundo é estar me deixar longe do meu netinho, que Tecnosociais. “Fiquei muito contente. dentro da igreja”.

SÃO LEOPOLDO, 17 DE MARÇO DE 2008 | EDIÇÃO 251 49 IHU Repórter

Marcos Paulo Guerin ARROS B LESSANDRA

POR ALESSANDRA BARROS A

jaleco branco representa um desafi o. Ao mesmo tempo em que inspira orgulho por chegar até aqui e ser um pro- fi s sional da saúde e futuro enfermeiro, é preciso cuidar para não passar essa sensação de poder. É importante sa- ber usar esse poder, com ética e profi ssionalismo” “OO IHU Repórter desta edição conta a história de Marcos Paulo Guerin, 32 anos, estudante do sétimo semestre de enfermagem, que trabalha há seis anos na Unisinos. Nos últimos dois anos e meio, Guerin dedica oito horas do seu dia ao ambulatório da universidade, onde expressa seu amor pela pro- fi s são e demonstra o talento para cuidar das pessoas. Trata-se de um sonho realizado com muito esforço e dedicação, hoje reconhecido pelos colegas de trabalho e de sala de aula. Confi ra a entrevista.

Origens – Nasci em São Leopoldo, Valores - O jaleco branco represen- ginei o quanto a atenção especial com numa família humilde, mas com valo- ta um desafi o. Ao mesmo tempo em que a criança poderia fazer muita diferença res. Tenho um irmão e duas irmãs e sou inspira orgulho por chegar até aqui e ser naquele momento. o único a cursar universidade. Meus pais um profi ssional da saúde e futuro enfer- sempre me apoiaram nos estudos e tam- meiro, é preciso cuidar para não passar Profi ssão – Desde então, essa cena bém me deram muita responsabilidade essa sensação de poder. É importante está cristalizada na minha memória e por ser o mais velho dos fi lhos. saber usar esse poder, com ética e pro- me inspirou no que me tornei hoje, como fi s sionalismo. profi ssional e futuro enfermeiro. Passei a Infância – Tive uma infância bastante desejar ser enfermeiro, de atuar na área tranqüila. Gostava de jogar bolita com os Estudos – Fiz o Ensino Fundamental e da saúde e cuidar diretamente das pes- amigos, mas nunca fui do futebol. Como o Ensino Médio em escola pública. Quan- soas, ou seja, gostaria de tentar fazer sou o mais velho dos meus irmãos, fui o do comecei a pensar no que queria ser desse atendimento algo diferente, com fi l ho mais exigido. Cedo assumi a função quando crescesse, minha primeira opção um olhar atencioso e dedicado. de “cuidador” dos pequenos. Meus pais era ser químico. Tinha a fantasia das po- trabalhavam fora, e eu fi cava cuidando ções, das experiências em laboratório, Sonho - O primeiro passo foi estudar dos irmãos, até eles retornarem do tra- que me causavam fascínio. no curso de técnico de enfermagem, na balho. Foi assim que descobri o talento Escola de Enfermagem da Paz, de São de ser atencioso com o próximo. Percebi Trabalho – Mudei de opção quan- Leopoldo. Na mesma clínica, houve a que esse papel, até então das mulheres, do tive a oportunidade de trabalhar no possibilidade de continuar na área da também era possível para os homens. almoxarifado de uma clínica, em São enfermagem. Acabei por trabalhar como Leopoldo, e cuidava da distribuição de auxiliar de enfermagem no mesmo local Família – A família é meu porto segu- medicamentos. Um dia, quando estava onde havia assistido a cena da menina, ro e gosto de estar entre eles. Em casa, levando material para o pronto-atendi- pois queria ser enfermeiro. também sou visto como um enfermeiro. mento, fi quei surpreso com uma menina Costumo ser solicitado e consultado, doente, que havia sofrido queimaduras Graduação – Na Unisinos, foi onde quando alguém aparece doente na famí- e chorava muito. Observei a forma como o sonho tornou-se realidade. Em 2001, lia ou na vizinhança. Gosto disso e per- ela foi atendida pela equipe de enfer- entrei na universidade para traba- mito essa atenção, pois sou acessível. magem e aquilo me marcou muito. Ima- lhar como técnico de enfermagem

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