Revista Crítica de Ciências Sociais

87 | 2009 Velhos e novos desafios ao direito e à justiça

Martha Albertson Fineman, Jack E. Jackson, Adam P. Romero (eds.), Feminist and Queer Legal Theory. Intimate Encounters, Uncomfortable Conversations

Ana Oliveira

Publisher Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Electronic version URL: http://rccs.revues.org/1622 Printed version ISSN: 2182-7435 Date of publication: 1 décembre 2009 Number of pages: 201-203 ISSN: 0254-1106

Electronic reference Ana Oliveira, « , Jack E. Jackson, Adam P. Romero (eds.), Feminist and Queer Legal Theory. Intimate Encounters, Uncomfortable Conversations », Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 87 | 2009, colocado online no dia 15 Outubro 2012, criado a 03 Outubro 2016. URL : http:// rccs.revues.org/1622

The text is a facsimile of the print edition. Revista Crítica de Ciências Sociais, 87, Dezembro 2009: 195­203

Recensões

James C. Scott (2009), The Art of Not Being Governed: An Anarchist History of Upland Southeast Asia. New Haven & london: Yale University Press, 442 pp.

Onze anos depois de Seeing like a State: beram formas de subsistência e organiza‑ How Certain Schemes to Improve Human ção social para manter os Estados à distân‑ Conditions Have Failed, James Scott con‑ cia. Por outras palavras, a localização das tinua a análise de como se formam os Es‑ populações não é um dado adquirido, ela tados e como resistem as populações a resulta de uma escolha e de um posiciona‑ projectos de incorporação forçada. Desta mento deliberado em relação aos centros vez, a história é dedicada às populações de poder vizinhos. que vivem na periferia dos Estados e se Vistos através desta lente que torna visível governam a si mesmas. a capacidade de acção das populações, os O autor leva‑nos à Zomia, uma área mon‑ seus modos de vida não são fruto de deter‑ tanhosa do tamanho da Europa, com apro‑ minismos ecológicos ou culturais, nem são ximadamente 2,5 milhões de quilómetros constantes ao longo do tempo. As diferen‑ quadrados, que se estende pelo Vietname, tes formas de subsistência e de organização Cambodja, Laos, Tailândia, Birmânia social têm uma história, e as populações ­(actual Myanmar) e quatro províncias da materializam em práticas os seus projectos China, até ao Nordeste da Índia. As mon‑ políticos. tanhas situam‑se na periferia dos Estados, James Scott conta‑nos ao longo do livro e nela vivem cerca de 100 milhões de pes‑ como se constituem mutuamente os Esta‑ soas, que apresentam uma diversidade dos e as zonas periféricas enquanto espaços ­étnica e linguística notável. A Zomia repre‑ agro‑políticos, onde complexos de técnicas senta um novo objecto de estudo e uma agrícolas e formas de organização social nova abordagem para estudar as zonas ter‑ são mobilizados para manter os espaços restres enquanto espaços políticos. Trata­ separados, apesar de estreitamente ligados ‑se da maior região do mundo onde as por migrações e trocas comerciais. Os es‑ populações vivem sem estarem completa‑ paços são constituídos como a negação do mente incorporadas em Estados‑nações. outro, com as montanhas a opor‑se aos O argumento apresentado é simples, mas vales, os bárbaros aos civilizados, a diver‑ controverso: as populações das montanhas sidade à hegemonia, a dispersão à concen‑ não levam um modo de vida primitivo, tração, os que se governam a si próprios anterior aos Estados. Elas são contempo‑ aos governados pelo Estado. A relação do râneas dos Estados, compostas por fluxos centro com a periferia torna impossível migratórios de pessoas que, ao longo dos compreender as histórias destes espaços últimos dois mil anos, escaparam aos su‑ políticos quando analisados separada‑ cessivos projectos de incorporação forçada mente. que ocorreram nos vales. As montanhas na Os sistemas agro‑ecológicos compatíveis periferia dos Estados funcionam como zo‑ com os projectos de construção de Estados nas de refúgio, onde as populações, tirando são aqueles que levam à concentração da partido das condições do terreno, conce‑ população em torno de campos de cereais e 196 | Recensões possibilitam a sedentarização, propriedade ciclos sucessivos de expansão e colapso, privada e estruturas de poder hierarquiza‑ pontuados por epidemias, fomes e guerras. das. A concentração de pessoas e exceden‑ Durante a construção dos Estados pré­ tes agrícolas permite o controlo e monito‑ ‑modernos, a periferia constituiu uma ten‑ rização das actividades a partir do centro. tação constante para as populações, um No Sudoeste asiático, a colheita preferida lugar onde podiam estar a salvo, praticar dos Estados tem sido a monocultura de ar‑ formas alternativas de subsistência, ou rea­ roz irrigado. Esta colheita exige mais traba‑ lizar trocas comerciais com os vales numa lho do que outras, recorrendo a tecnologias base voluntária, mantendo a sua autonomia agrícolas diferentes, como por exemplo a política. Para se manterem fora do alcance agricultura baseada na rotação. Mas esta do Estado, as populações tiraram partido última não se adequa a projectos de Estado, da fricção da distância e da fricção da apro‑ porque requer uma área maior de cultivo priação. As zonas de refúgio são diagnos‑ e uma população dispersa, o que funciona ticadas pelo Estado como áreas inacessí‑ como uma barreira à concentração de exce‑ veis, que impedem ou dificultam expedições dentes, fiscalização e colecta de impostos. punitivas e fiscalmente estéreis, não com‑ Um dos desafios dos Estados pré‑modernos pensando o esforço de apropriação. foi sempre o de persuadir as populações a Ao estudar as formas de cultivo quanto ao abandonar outras formas de subsistência seu valor de evasão nas zonas de refúgio, a fim de serem incorporadas nos projectos o autor defende que as formas de subsis‑ agrícolas e demográficos do Estado. Essa tência e organização social derivam em incorporação foi feita principalmente à grande parte da opção de se manterem fora custa da mobilização forçada de pessoas dos centros de poder. Por exemplo, a cul‑ para o centro, como mão‑de‑obra escrava. tura de tubérculos (batata, inhames, cas‑ Outro desafio foi construir sistemas legí‑ sava, entre outros) faz parte de um portfó‑ veis e fiscalizáveis que permitissem aos lio de colheitas resistentes à apropriação. funcionários do Estado controlar a popu‑ Estas colheitas requerem pouca manuten‑ lação e apropriar‑se da produção. Para tal, ção e podem permanecer no solo, o que torna‑se necessário construir um sistema torna difícil confiscá‑las. O portfólio de anti‑evasão a partir do centro. Além de subsistência conta com várias dezenas de concentrar as actividades produtivas, torná­ espécies botânicas cultivadas, pastorícia e ‑las visíveis e ao alcance dos funcionários, produtos provenientes de florestas que não o sistema usa tecnologias que possibilitam existem nos vales e podem ser usados para a comunicação ao longo de cadeias hierar‑ trocas comerciais, tais como pimenta, re‑ quizadas. A escrita permite a inscrição dos sinas, medicamentos e ópio. As montanhas registos e inventários, tais como censos e e vales ocupam nichos agro‑ecológicos que mapas cadastrais, bem como a translocação se complementam. desses registos ao longo da cadeia de A periferia é refúgio de uma grande di‑ ­comando. Além disso, a escrita facilita a versidade de sistemas políticos e formas manutenção de estruturas hierárquicas de de organização social. Os sistemas mais poder permanentes, através da inscrição simples encontram‑se no nível do agre‑ de genealogias e regimes de desigualdade, gado familiar, com formas de subsistên‑ continuados e baseados na propriedade. cia nómadas ou técnicas que requerem Os projectos de construção de Estados pouco trabalho colectivo. A organização tinham um carácter intrinsecamente expe‑ social é acéfala, sem chefes e sem estru‑ rimental e acarretavam grandes riscos, com turas de poder permanentes. As formas Recensões | 197 de organização social mais complexas nas ou “civilizados”. As identidades étnicas montanhas mimetizam os Estados a escalas não são mutuamente exclusivas, os indi‑ liliputianas. As culturas das populações são víduos falam várias línguas e desafiam os de base oral; a maioria não tem escrita, e sistemas de classificação dos estudiosos existe heterodoxia religiosa. Ao longo do e funcionários do Estado. No entanto, a tempo, a organização social aparece como classificação forçada das populações em fluida e reversível, composta de unidades etnias pode conduzir a projectos políticos que se associam e dissociam consoante os e a novas formas de relacionamento com projectos políticos, o posicionamento em o Estado, especialmente para reclamar relação a Estados vizinhos e as exigências direitos sobre recursos naturais ou terras. de segurança. Os indivíduos movem‑se Por último, refere‑se a importância política entre formas sociais e adoptam novas iden‑ das religiões milenaristas. A promessa do tidades. Esta multiplicidade de formas de fim do mundo e de uma nova ordem social subsistência, ideologias, organização social onde os poderes são invertidos, anunciada e identidades, juntamente com a disper‑ por líderes carismáticos, consegue mobili‑ são no terreno, não só mantêm o Estado zar populações com baixo nível de organi‑ à distância, como previnem a emergência zação e ultrapassar os obstáculos a projec‑ de Estados no seu seio. tos colectivos, seja a deslocação para uma O projecto político de Estado é acom­ nova área ou uma revolta contra os poderes panhado por uma utopia civilizacional instalados. de superioridade em relação à periferia. A extensa literatura sobre a formação de A identidade dos “civilizados" distingue‑se Estados, tanto histórica como contempo‑ pelo cultivo de arroz irrigado, budismo e rânea, raras vezes dá atenção ao seu re‑ escrita. Os bárbaros da periferia são uma verso. Esta é a história de todas as popu‑ invenção social do Estado, que permite re‑ lações que escaparam a sistemas coercivos forçar o projecto identitário da civilização e de trabalho escravo e vivem em zonas de através da estigmatização de outras iden‑ refúgio, desde as florestas tropicais até aos tidades. À luz de uma análise radicalmente desertos, que continuam a sofrer a pressão construtivista, a etnogénese resulta do dos Estados‑nações, equipados com tec‑ posicionamento das populações face aos nologias que reduzem cada vez mais a dis‑ projectos políticos dos centros de poder. tância. As populações adoptam práticas que lhes conferem graus variados de “bárbaros” Rita Serra

Nelken, David (2009), Beyond in Context. Developing a Sociological Understanding of Law (Collected Essays in Law). Burlington: Ashgate, 320 pp.

David Nelken é hoje uma figura académica dos estudos sociais do direito. Perde em incontornável quando se trata de proble‑ inovação porque se limita à compilação de matizar a relação tensa e articulada entre um conjunto de 15 artigos que nos últimos direito, teoria e sociedade. Beyond Law in 30 anos marcaram o essencial do seu per‑ Context, publicado há cerca de um ano, é curso científico. Ganha em relevância um livro que perde em inovação tudo porque condensa a evolução não apenas aquilo que ganha em relevância no campo do seu esforço de teorização social das 198 | Recensões práticas e dos processos jurídicos, como ­teoria sobre o porquê, como e quando de‑ da própria sociologia do direito enquanto terminados contributos e visões sociais área de saber investida de um objecto pró‑ devem ser relevados em diferentes tipos de prio e autonomizada epistemológica e processos legais” (xvi). É com esta preo‑ disciplinarmente. O título atribuído à cupação que o autor procura explorar uma ­publicação não é irreflectido, casuístico terceira via entre o cepticismo e o entu‑ ou produto inofensivo do jargão socioju‑ siasmo relativamente à importância epis‑ rídico: representa uma tentativa de ultra‑ témica e capacitadora da teorização social passar o cardápio de temas e abordagens do direito no desempenho dos operadores avançados pelos manuais mais canónicos judiciais e na modelação da vida pública de sociologia do direito, a partir dos quais regulada e observada segundo diferentes iniciou a leccionação da disciplina em me‑ racionalidades, onde a jurídica se combina ados dos anos 70. O contexto – em toda a diversa e mais ou menos hierarquicamente sua espessura e polissemia sociológica com outras coexistentes. (reenviando para os conceitos de am‑ O livro arruma‑se em três partes, obede‑ biente, contingência ou presunção) – sur‑ cendo, grosso modo, a uma lógica simulta‑ gia como uma variável imperiosa que per‑ neamente temática, teórica e cronológica. mitia pensar e despensar o direito na sua A primeira – Only Connect – reúne qua‑ construção e dinâmica social. E nessa pers‑ tro textos publicados entre 1981 e 1985 pectiva mais ampla se afirmou uma bateria e procura uma problematização geral e de autores que David Nelken procurou sistematizadora da relação entre direito e recensear e discutir ao longo dos diferen‑ sociedade. Com incidência nesta relação, tes ensaios presentes nesta obra, entre os são duas as culturas de investigação que quais se destacam nomes consagrados se foram progressivamente consolidando: como Boyd‑White, Cotterrell, Ehrlich, por um lado, os estudos sociojurídicos, Fish, Habermas, Legrand, Luhmann, concedendo particular enfoque às agendas Pound, Teubner e Watson. de reforma institucional e desenvolvendo Retomam‑se assim algumas interrogações uma monitorização contínua do sistema elementares: cumpre o direito uma função jurídico, tomando para si os problemas específica na sociedade ou, pelo contrário, emergentes da empiria; por outro lado, a é‑lhe constitutivo? Em que termos será sociologia do direito, apetrechada de um possível pensar a adequação ou fidelidade corpus conceptual e metodológico mais entre direito e sociedade? Como compre‑ robusto e menos aplicado, operando a um ender os efeitos e as determinações sociais, ritmo distinto e direccionando a sua inqui‑ políticas e económicas num quadro de rição para o lugar do direito na estrutura ­autonomia relativa do direito? Serão o dis‑ social, por via de motivações, problemas e curso jurídico e o discurso sociológico controvérsias teóricas relativamente autó‑ narrativas insanavelmente rivais que ser‑ nomas e delimitadas. O autor elabora uma vem formas e códigos distintos de produ‑ revisão histórica do desfasamento entre ção de conhecimento? Será o direito em estas duas abordagens, procurando refor‑ contexto uma formulação viciada ou redun‑ mular os desafios colocados ao estudo do dante? Como sublinha o autor, “embora direito e sociedade. À margem das falácias haja muitos e excelentes estudos sobre que originaram o designado gap problem, como o direito transforma, evita ou re‑ recupera‑se tanto os contributos marxistas prime modos alternativos de descrever e (de Gramsci a E.P. Thompson) para pen‑ julgar a realidade social, escasseia uma sar o direito e a reprodução social como Recensões | 199 outras linhas não‑marxistas pertinentes e função do direito são perspectivadas à para a recomposição de um programa luz da progressão hegemónica do neoli‑ de investigação no quadro da sociologia beralismo, da globalização da economia do direito. e do enfraquecimento dos Estados de A questão do desfasamento é ainda cara bem‑estar. Para compreender a natureza à relação entre direito e sociedade por ra‑ e profundidade deste processo erosivo o zões de outra ordem: se em autor socorre‑se das propostas teóricas de a reflexão sobre o direito enquanto me‑ Jürgen Habermas no sentido de reconsti‑ canismo de controlo social levanta o pro‑ tuir os contornos sociojurídicos de uma blema da efectividade, em Eugene Ehrlich, mais ampla crise de legitimação experi‑ mais do que instrumento, o direito é con‑ mentada nas sociedades contemporâneas. cebido como resultado e testemunho so‑ A primeira parte do livro é concluída com cial. Pelo que o clássico contraste que o uma tentativa de incorporar na análise do primeiro estabeleceu entre law in books processo legislativo e da decisão judicial e law in action – que encorajou o estudo os quadros conceptuais de Steven Lukes da mudança das condições sociais sobre e Anthony Giddens alusivos à relação as quais impende a normatividade jurí‑ dinâmica e recíproca entre estrutura e dica – é agora confrontado com o conceito acção social. de living law (por oposição a law for deci- Repensar e reformar o paradigma do‑ sion) proposto pelo segundo. Argumenta minante na sociologia do direito são os o autor que este conceito é mais frutuoso, desafios – ambiciosos – assumidos na se‑ permitindo ampliar e densificar o conhe‑ gunda parte desta publicação – Changing cimento sobre o direito na sociedade, que the Questions –, apostada numa revisão é assim encarado como “um aspecto da e discussão teórica através de seis artigos vida económica e social organicamente balizados entre 1986 e 2001. A partir das conectado e criado por padrões de vida contribuições de Stuart Henry, sublinha­ comuns, trabalho e relações em grupos ou ‑se a necessidade de superar os modelos outras colectividades. Atrás da living law ­analíticos induzidos pelas designadas encontram‑se as relações activas de sem‑ ­teorias da correspondência, isto é, do pres‑ pre: interacção, dominação, posse e con‑ suposto de uma correlação automática en‑ senso, bem como os requisitos variáveis da tre a regulação jurídica e a regulação social. produção e do consumo colectivos” (34). É aliás com esse desiderato que se explora Esta abertura do pensamento normativo e e enfatiza o mérito de todo o trabalho pre‑ da sociologia do direito à complexidade e cursor desse projecto epistemológico, que multidimensionalidade da vida social per‑ permitiu uma redescoberta do pluralismo mitiu, por um lado, reinterpretar e reava‑ normativo e forneceu “um guião estimu‑ liar a problemática da efectividade e, por lante para a ultrapassar um paradigma con‑ outro, alimentar a pesquisa do pluralismo finado aos ‘efeitos’ do direito na sociedade, jurídico (à data enquadrada sobretudo pela sem abandonar o objectivo de investigar antropologia jurídica), dando conta das o modo como o direito contribui para a tensões e da engrenagem entre múltiplas produção e a reprodução da sociedade” ordens normativas. (94). Com o mesmo fôlego empreendedor A crise da ideologia jurídica é o tópico que sobre os mapas e as controvérsias teóricas anima o terceiro ensaio: a uma escala ma‑ da sociologia do direito, o autor desen‑ crossociológica, as transformações ope‑ volve ainda uma incursão sociojurídica na radas na relação entre forma, conteúdo teoria luhmanniana da autopoiesis, de que 200 | Recensões resultou uma síntese comparativa e uma missão é dar conta dos limites difíceis clarificação conceptual entre o argumento ou intransponíveis de uma sociologia do da autonomia relativa e as características direito reflexiva. Se a viragem linguística autopoiéticas do direito. Se o primeiro de‑ reinsuflou a teorização social dos fenóme‑ riva de arrumações e especializações insti‑ nos jurídicos com preocupações de natu‑ tucionais, ocupacionais e procedimentais, reza discursiva e comunicacional – inter‑ acomodando a pluralidade de interesses pelando a contextualidade –, é certo que e requerendo um consenso político le‑ os instrumentos analíticos e conceptuais gitimador, as segundas decorrem de um à disposição da disciplina sociológica não processo de diferenciação funcional do perderam a sua utilidade, embora nem subsistema jurídico, portador de um có‑ sempre consigam apreender e decifrar digo próprio que se impõe através da sua o sentido jurídico dos processos sociais. auto‑observação, de uma racionalidade Esta é, de resto, matéria controvertida e dicotómica (legal/ilegal) e do recurso a me‑ disputada entre o autor e Roger Cotterrel, canismos de selectividade na observação e que se prolonga e desdobra nos artigos adaptação ao ambiente externo. A explo‑ finais do livro: trata‑se de compreender ração desta análise comparativa permite ao os mecanismos através dos quais se opera autor concluir que ao contrário do efeito uma resignificação do direito na sua dinâ‑ despolitizador da autopoiesis, a autonomia mica intercultural, bem como os diferen‑ relativa do direito permite um resgate do tes modos de o globalizar e localizar – de seu papel eminentemente político – apa‑ que são exemplo particularmente eluci‑ nágio dos – face às dativo as idiossincrasias sociológicas do determinações da política convencional. transplante jurídico. O aprofundamento do debate teórico Reunir num único livro – como outros au‑ na sociologia do direito é ainda ensaiado tores o fizeram no âmbito desta Collected através do questionamento de algumas Essays in Law Series – dezena e meia de especificidades sociojurídicas do direito artigos dispersos, redigidos num intervalo penal, tanto na sua relação íntima com a de três décadas, é empresa que, mesmo filosofia moral como nos termos em que se para o mais coerente dos teóricos, não verifica a sua maior ou menor reactividade consegue evitar a fragmentação, ainda ou permeabilidade às influências externas. que a unidade de argumento seja reivin‑ Já os últimos três artigos que completam dicação de partida do seu autor. O custo a segunda parte do livro debruçam‑se so‑ dessa eventual fragmentação é, no entanto, bre o lugar e a construção da verdade no compensado pela força teórica e analítica quadro das tensões entre direito e ciên‑ de David Nelken e pela oferta de uma visão cia. Tema inelutavelmente controverso, crítica e panorâmica sobre o mainstream mobiliza desde logo a problemática da e o underground da sociologia do direito. função pericial como recurso ilustrativo Não fornecendo uma cobertura exaustiva do diálogo ou da incompatibilidade entre ou enciclopédica, esta publicação com‑ discursos e saberes. bina pedagogia com complexidade, o que Se até aqui a finalidade do autor consis‑ lhe confere uma pertinência acrescida na tia em explorar e redireccionar a relação compreensão da trajectória e dos desafios complexa e multifacetada entre direito, da relação entre direito e sociedade na teoria e sociedade, a última parte do livro contemporaneidade. apresenta um conjunto de cinco artigos – publicados entre 1996 e 2007 – cuja Tiago Ribeiro Recensões | 201

Martha Albertson Fineman, Jack E. Jackson, Adam P. Romero (eds.), Feminist and Queer Legal Theory. Intimate Encounters, Uncomfortable Conversations. Farnham: Ashgate, 2009, 490 pp.

Feminist and Queer Legal Theory é uma com base na orientação sexual permaneceu antologia de hibridismos teóricos que legal e afirmada: uma lésbica não poderia premeia o desmantelamento das normas ser despedida do emprego por ser mulher, sociais, leis e estruturas patriarcais que mas poderia por ser lésbica. Não obstante circunscrevem a subversão do género em a variedade de respostas a esta situação, detrimento do sexo biológico. Em formato as que predominam nas políticas feminis‑ de pingue‑pongue interdisciplinar, a an‑ tas, gay e lésbicas tendem a naturalizar as tologia mapeia diferentes abordagens aos identidades sexuais binárias, adoptando conceitos de sexo, género e sexualidade, modelos de igualdade formal que equa‑ articuladas nas últimas décadas, para con‑ cionam o valor moral e o estatuto político figurar os termos referenciais teóricos dos da homo‑ e heterossexualidade – i.e., (ten‑ debates feministas/queer. Em particular, tativa de) inclusão dos gays e lésbicas nos desenrola as afirmações desenvolvidas e regimes de anti‑discriminação existentes. contestadas sobre a centralidade de uma É neste contexto que os teóricos queer te‑ teoria positivista da sexualidade na formu‑ cem críticas às teorias feministas e às teo‑ lação de perspectivas críticas das institui‑ rias gay e lésbicas. Todavia, esta colecção ções legais, sociais, políticas e culturais e não é um campo de batalha entre queers e sobre as implicações jurídicas, políticas, feministas; apresenta micronarrativas dis‑ sociais e culturais nas distintas aborda‑ tintas, com questões delimitadas e especí‑ gens teóricas de género e sexualidade. ficas, bifurcadas na tentativa de negociar Esta equação – matizada por assuntos as linhas de pensamento. legais da igualdade no casamento, assé­ A primeira secção, “Queer com ou sem dio sexual, direitos dos trabalhadores e teoria feminista do direito”, introduz al‑ privacidade – redesenha e reimagina as guns textos‑chave, posições políticas e alianças e antagonismos que arquitectam lugares ideológico‑institucionais que mar‑ o feminismo e a teoria queer. O volume, cam e situam as articulações feministas e com 23 académicos americanos, resulta do queer na contemporânea teoria do direito. projecto feminista e de teoria do direito A aparente e crescente tensão intelectual “Uncomfortable Conversation”. materializa‑se na retórica de dar uma pausa Nas últimas décadas, as comunidades de ao feminismo (“taking a break from femi- Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgéne‑ nism”, p. 9) que faculte uma apreciação ros (LGBT) têm encarado uma constela‑ mais ampla da fluidez e ambiguidade da ção de triunfos e sombreado uma série de sexualidade e uma reconsideração das polí‑ pânicos em torno da sexualidade – VIH ticas da sexualidade – relegadas a questões e pânicos morais contingentes. Enquanto da dependência, maternidade e/ou perigos algumas feministas abordaram o Estado de violência doméstica – e do prazer sexual para protecção, o próprio Estado tem sido das mulheres. Como aponta Janet Halley, a identificado como fonte substancial de abordagem pós‑moderna anti‑fundacional perigo para as comunidades LGBT e para tem conduzido ao cepticismo queer sobre as mulheres. Ainda que a discriminação, a natureza, baseada na identidade, da teo‑ com base no género, se tenha tornando ria do direito e das políticas feministas. Os inadmissível legalmente, a discriminação teóricos queer rejeitam o constrangimento 202 | Recensões binário e hierarquizado do hetero‑/homos‑ (incesto), propõe a criação de um tabu sexual; as práticas e ideologias da ”família sobre um espaço seguro – não no sentido sexual” matrimonial, descritas por Martha físico de uma casa ou local de trabalho, Albertson Fineman – forma natural de or‑ mas o espaço transcendente de uma rela‑ ganização social e cultural da intimidade, ção: a sacralidade de um(a) progenitor(a) centrada na visão patriarcal e “heteronor‑ com um(a) filho(a) análoga à de um(a) malizada” que privilegia a relação sexual supervisor(a) com um(a) supervisionado(a) (mesmo entre pessoas do mesmo sexo) – que desencoraje o relacionamento de prescrita na lei da família e nos mitos so‑ pessoas hierarquicamente relacionadas. ciais; o local de trabalho “higienizado”, Case procura uma solução para o pro‑ mencionado por Vicki Schultz, e o modelo blema da discriminação no local de tra‑ de assédio sexual – que contribuem para a balho, balanceando o argumento do tabu desumanização do local de trabalho e as‑ do incesto – que se contra‑argumenta ao sentam no falso paradigma da sexualidade, reprimir o erotismo e celebrar o pudor enquanto atributo individual passível de – e o argumento provocativo, de Richard ser isolado e purgado das instituições. Wasserstrom (1977), da irrevogabilidade A segunda secção, “Feminismo com ou da discriminação sexual e consequente sem teoria queer do direito”, é uma res‑ desigualdade de oportunidades, até todos posta teórica à primeira. Martha T. Mc‑ serem perfeitamente bissexuais. Mary Be‑ Cluskey procura demonstrar a tendência cker pondera as dinâmicas da sexualidade da teoria queer para adoptar e reforçar feminina oprimida pelo perigo (violação, uma perspectiva acrítica dos princípios assédio, incesto, violência doméstica), pela da ideologia liberal económica, em ques‑ dependência, pela “maternalização” da tões relacionadas com a lei e a intimidade. identidade (responsabilidade da materni‑ Paradoxalmente, a separação – em vez da dade e aceitação da “repronormatividade”) problematização – da relação entre políti‑ e pela mercantilização da ansiedade. Esta cas económicas e políticas de identidade, herança ideológica e cultural enfraquece e entre mercado‑Estado‑família, pode re‑ uma sexualidade activa, saudável, capaz, forçar as rígidas convenções da identidade autónoma, plena. e regulações da intimidade que a teoria A terceira secção distingue algumas expe‑ queer quer desmantelar. Em consonância, riências, epistemologias e subjectividades Tucker Culbertson e Jack Jackson insistem presentes nas políticas feministas/queer. na impossibilidade de escolher um lado na Segundo Devon Carbado, tal como as alegada divisão “feminismo versus queer”. políticas tradicionais anti‑racistas norma‑ Os autores argumentam que as exclusões lizam a heterossexualidade, as políticas e colapsos dos discursos e as estruturas dominantes gay/lésbicas marginalizam as de subordinação, organizadas através do identidades negras. Carbado desafia as imaginário político liberal, juridicamente noções essencialistas e reivindica interven‑ delimitado, revelam pontos teóricos e polí­ ções anti‑homofóbicas na advocacia dos ticos muito mais relevantes e prevalentes direitos civis dos negros e uma intervenção do que os conflitos categóricos caracterís‑ anti‑racista na advocacia dos direitos gay. ticos das monolíticas feministas e queers. Paisley Currah introduz as políticas dos Mary Anne Case, em concordância com transgéneros neste debate. A autora argu‑ Margaret Mead, explora a necessidade menta que os diferentes objectivos e estra‑ de tabus de sexo no trabalho. Ao questio‑ tégias de acção para desmantelar o género, nar a premissa do sexo entre pais e filhos enquanto conceito legal coerente, e para o Recensões | 203 expandir, de forma a incluir transgéneros, lei e benefícios económicos que favorecem não devem ser encarados como uma pro‑ pessoas casadas; forças legais e (in)directas posição “e/ou”. A incoerência do actual de género e de classe (carência económica esquema de classificação dos sexos, arbitra das mulheres); o paternafare de Anne Smith Currah, é uma áspera ilustração da pen‑ – instrumento burocrático da governação dente incapacidade do sexo de nascença neoliberal que unicamente sobrecarrega para determinar o género de um indivíduo. mães solteiras com uma lei de dependência Kenji Yoshino examina a violência e os “heteropatriarcal” feita à medida; a prática investimentos do discurso político‑sexual complexa e potencialmente subversiva do que insistem em classificações binárias da processo tutelar e dos cuidadores trans‑ sexualidade – hetero‑/homo‑ – e na cate‑ gressivos, questionada por Laura Kessler gorização diacrítica do sexo. Para Yoshino, – i.e., tarefa de cuidar, fora do tradicional o “contexto epistemológico” que censura contexto familiar, por aqueles a quem o a bissexualidade não é um acordo cons‑ Estado, historicamente, nega o privilégio ciente entre indivíduos, mas uma norma da privacidade familiar. social que se impõe inconscientemente. Esta eclética e (im)pertinente antologia Cumulativamente, Elizabeth Emens, exa‑ coreografa as categorias (legais) das pers‑ minando os princípios e práticas da co‑ pectivas feministas, gay/lésbicas e queers, munidade poliamor ou “não‑monogamia” numa dança cerimonial de conceitos ética, repreende os paradoxos da lei da ­iconoclastas e teses inter‑relacionadas monogamia (no sentido legal e cultural) e – género, identidade, sexualidade, inti‑ do casamento. midade, privacidade. O título Intimate Apesar da ideologia liberal aclamar a sepa‑ Encounters, Uncomfortable Conversations, ração das esferas e zonas de privacidade, expõe por um lado uma noção de intimi‑ o direito tem sido tanto central quanto dade desconfortável que não esgota, até hiperactivo em comandar as normas da tipifica, o modo como estes movimentos família, do parentesco, da intimidade e da se têm relacionado ou se poderão relacio‑ tutela. Carlos Ball esboça uma teoria femi‑ nar. Por outro, antecipa o desconforto, nista de autonomia relacional para orde‑ infligido aos leitores, da angustiante ca‑ nar uma política de apoio e advocacia dos tarse de verdades calcificadas na “roda de casamentos homossexuais, que substitua hamster”. A afirmação foucaultiana – da a tese do “deixa estar”. Segundo o autor, sexualidade enquanto dispositivo histórico quando os casais homossexuais solicitam do poder, assente na inserção do sexo em o reconhecimento das suas relações ao Es‑ sistemas de utilidade e regulação social tado, não estão a pedir para serem deixa‑ – inscrita na teoria queer e carimbada pela dos em paz, estão a pedir legitimação, logo teoria do devir, monta o cenário para a regulação dos relacionamentos. Ruthann multiplicidade, fluidez, hibridez de sexo(s) Robson acrescenta ao conceito de hete‑ versus categorias binárias homem/mulher, rossexualidade compulsória, de Adrienne hetero‑/homossexual. Este livro é a ervilha Rich (1980), o casamento compulsório. sob os 20 colchões da princesa, do conto O argumento discorre uma variedade de infantil de Hans Christian Andersen A Prin­ forças que impõem, gerem, organizam, cesa e a Ervilha. propagandeiam e mantêm à força a insti‑ tuição política do casamento: tolerância da Ana Oliveira