Para Onde!?, Volume 6, Nú mero 2, p. 217­225, jul./dez. 2012 ISSN 1982­0003 Instituto de Geociências, Programa de Pós­Graduação em Geografia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.

Música, geografia e ensino: o díalogo local/global nos movimentos mangue beat e hip-hop

Demetrius Gomes

Graduado em Geografia pela Fundação Educacional Unificada Campograndense ­ FEUC.

Recebido em 04/2012. Aceito para publicação em 12/2012. Versão online publicada em 01/02/2013 (http://seer.ufrgs.br/paraonde)

Resumo: O presente trabalho busca articular a mú sica e o conhecimento geográfico a partir da leitura do lugar através dos movimentos musicais brasileiros, mais especificamente a relação local/global nas obras musicais de Chico Science e expoentes da cena contemporânea das artes nos respec­ tivos movimentos: “Mangue Beat E Hip­Hop”. As proposições dos geógrafos sobre o lugar são colocadas em perspectiva para traçarmos uma relação entre a linguagem cientifica e a linguagem musical que e a possıv́ el aplicação desta no processo de ensino/aprendizagem e também para a pesquisas de fenôme­ nos espaciais engendrados pelas expressões sócio/culturais. Palavras-chave: Mú sica. Mangue Beat. Racionais. Lugar. Global. Globalização.

Introdução to ao cotidiano quanto à assimilação e repulsão da esfera de uma ordem global representada pela A mú sica brasileira é rica em geograficida­ indú stria cultural que ao massificar o consumo traz de assim como outras linguagens artıś ticas, como a tanto a uniformidade quanto a resistência para os literatura, as artes plásticas, o que se percebe é uma movimentos musicais e artıś ticos que estão inseri­ a sede topográfica do artista brasileiro se revelada dos numa razão local. com uma intensidade atroz. Com o advento mais articulado da globali­ A transversalidade contida na mú sica zação, houve nos movimentos musicais populares enquanto objeto de estudo, e se tratando especifi­ que emergiram na década de 90 um recrudesci­ camente da mú sica produzida no Brasil, traz consi­ mento do discurso social em suas produções. go uma gama de possibilidades para os estudos A nova face dos movimentos musicais no geográficos em varias escalas e dimensões, e priori­ que diz respeito ao diálogo da razão local com a tariamente no presente artigo procuramos ressal­ razão global através da esfera artı́stico­musical tar a dimensão cultural. Sendo assim este trabalho difundida em Recife e na Grande São Paulo (Capão se propõe a analisar a partir das composições de Redondo), difundida por jovens da classe média Chico Science e Mano Brown, representantes de baixa no caso de Recife e da periferia de São Paulo dois movimentos musicais modernos, a saber: Man­ que ao absorverem elementos de uma emergente gue Beat e Hip Hop; os conteú dos, as especificida­ indú stria cultural “globalizante” resistem a esta des, espacialidades, semelhanças e diferenças que proclamando a força do lugar através das letras das essas obras mantem entre si e que remetem ao diá­ mú sicas, sonoridades e atitudes frente ao mercado logo local/global proposto por , para fonográfico e a sociedade de consumo, a busca de quem “cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma afirmação indenitária que reflete empirica­ uma razão global e de uma razão local, convivendo mente o local, a força do lugar também se faz pre­ dialeticamente.” (SANTOS, 2008, P.339) sente nas composições. O lugar, conceito chave em Geografia é um O arcabouço teórico fornecido por autores tema recorrente nas produções artitiscas de cunho como Milton Santos, Rui Moreira, Roberto Lobato popular, ora pela resistência, ora pela afirmação Corrêa, Zeny Rosendahl e para exem­ identitaria ou mesmo como ato espontâneo na plificarmos, evocam nas suas obras o debate geo­ reprodução do espaço vivido que forja no artista gráfico e sua interfaces com a linguagem artıś tico­ sua linguagem, E que irá suscitar e estabelecer dis­ cultural que ao se manifestar cria uma zona proxi­ cursos e diálogos que revelam o lugar em suas pecu­ mal com as idéias abordadas por esses pesquisado­ liaridades, ações, e relações tanto no que diz respei­ res, principalmente o lugar e a identidade, que é o

-217- recorte desse trabalho. nica, enfim, nas vanguardas e na indú s­ Podemos inferir pelo contexto histó rico tria do entretenimento. Tudo isso era que o Mangue Beat e o Hip Hop são herdeiros de vivido como novidade internacional movimentos musicais que já vinham se universali­ que a gente queria abordar assim zando ao sofrerem forte influência estadunidense. desassombradamente. Mas hoje acho que foi o nome mais certo possıv́ el.” A “Bossa Nova, o Tropicalismo” são resultados ( em entrevista ao site desse amalgama de ritmos brasileiros em dialogo UOL Tropicália) com agente global, e principalmente no “Tropica­ lismo” o esplendor pelo novo, e ao mesmo tempo a Com arranjos musicais ruidosos e ambiên­ resistência, a negação, a busca de uma identidade cias psicodélicas, desenvolvidos principalmente latino­americana, a referencia constante do lugar pelo maestro Rogério Duprat, o tropicalismo tinha se fazem presentes. como expoentes os artistas Tom Zé, Caetano Veloso e que compunham canções cheias de Movimentos musicais no Brasil: uma breve his- metáforas e ambigü idades, fazendo referências às tória raıź es ou matrizes da mú sica brasileira como o baião, xote, samba, bossa nova, sem, no entanto se No final dos anos 60, perıó do de grande alinhar com um projeto eminentemente de mú sica efervescência nas produções artitiscas em nıv́ el étnica, constantemente denunciando a repressão, mundial advindas das propostas de “Pop Art” ges­ revelando e dialogando com essa nova sociedade tada pelo estilo a de vida americano se estabele­ de consumo que estava sendo engendrada. cendo como um novo caminho a ser trilhado no que diz respeito a produção e ao consumo da emergen­ “Eu tinha passado um mês no Recife. te indú stria cultural, encontramos na mú sica os Em Caruaru, tinha conhecido as ciran­ beatles, através do gênero “Rock and Roll” uma das e a Banda de Pıf́ anos. A caracterıś ti­ plataforma do que viria a ser a industria da musica ca nordestina forte que Pernambuco nos anos subsequentes e que viria influenciar vari­ concentra muito bem tinha me tocado as gerações. fundo no sentido de buscar ao mesmo No Brasil, com a repressão e a censura ins­ tempo a especificidade e a diversidade tauradas pelo regime militar, configurou­se um da coisa brasileira. Mas eu também ouvia os Beatles, e nesse momento saıá cenário para o surgimento de musicas de protesto. o Sargent Pepper's Lonely Hearts Club Através de uma articulação que envolvia vários Band, que me impressionou muito com campos da arte como Cinema, Teatro, Artes Plásti­ o arrojo e o experimentalismo de Geor­ cas e também militância polıt́ ica. O que podemos ge Martin. Esse disco me deu a sensa­ chamar de arte critica foi marcado por duas posi­ ção de compromisso com a idéia de ções antagônicas, uma “nacional popular” defendi­ transformação, de que a mú sica ia além da pelo partido comunista e seus simpatizantes, do que tinha se decantado em nós a que preconizavam uma arte didática e nacionalis­ partir do convencional. Também é ta; e uma corrente de vanguarda que trazia um pen­ dessa época o nosso primeiro contato samento cosmopolita, hermético, moderno que com as vanguardas da mú sica, artes plásticas de Hélio Oiticica e Antônio viria a ser a marca do “tropicalismo”. Dias, o Cinema Novo de , o de Zé Celso. Tudo isso “Eu não sentia tanta atração pela idéia fazia latejar na nossa cabeça e no nosso de Tropicalismo, porque botar esse coração o senso da aventura.” nome parecia que a gente queria fazer (Gilberto Gil em entrevista ao site UOL um negócio dos trópicos, no Brasil e do Tropicália) Brasil. Não queria que fosse esse o centro da caracterização do movimen­ Percebemos no tropicalismo a latência de to, porque ele queria ser internaciona­ lista e anti­nacionalista. Tendia mais uma razão local e uma razão global convivendo pra o som universal, outro apelido que dialeticamente. O tropicalismo foi pioneiro na a gente ouviu e adotou também duran­ rebeldia, no inconformismo e na quebra de uma te um perıó do, mais pra idéia de aldeia estética estabelecida, deixou marcas profundas na global, de Marshall MacLuhan, muito vida cultural e musical brasileira, influenciou e presente na época. A gente tinha muito lançou as bases para as futuras gerações, seus domı­́ interesse nas conquistas espaciais, no nios diretos se estenderam para além dos anos 60. rock'n'roll, na mú sica elétrica e eletrô­

-218- “Bom, primeiro a herança em nós mes­ sua maioria de classe média que ascendiam na mos, que estamos aı:́ Caetano, eu, Tom mú sica em busca de um espaço para expor idéias, Zé, Rogério Duarte. Continuamos basi­ inquietaçõ es, em plena transição do processo camente tropicalistas. A prova é o que democrático, alçaria para a fama grupos musicais fazemos. Servimo­nos da nossa vivên­ como, Plebe Rude, Paralamas do Sucesso, Capital cia pó s­tropicalista pra manifestar Inicial e Legião Urbana que podemos chamar de: “a certas coisas que tinham ficado no leva de Brasıĺ ia”, que em meio a muitas mú sicas embriã o. Falamos aqui da questã o comerciais traziam também forte inclinação para a negra, que no Tropicalismo ainda não denú ncia das mazelas sociais. Mú sicas como Alaga­ podia ser esboçada com clareza. E há o dos do Paralamas do Sucesso, Geração Coca­Cola grande contıń uo cultural que o Brasil da Legião Urbana expõem de forma contundente as tem, com todas as festas populares, desigualdades do foço social entre pobres e ricos. esse contı́nuo que vai do folclore à Em São Paulo o grupo Titãs questionava as mú sica popular, absorvendo os extra­ instituições, como a polıć ia, famıĺ ia e a igreja, no Rio tos eruditos, deglutindo antropofagi­ de Janeiro o cantor Lobão trabalhava um discurso camente as influências que vem de carregado de referências em favor da democracia, fora, da alta e da baixa cultura. Para em sua mú sica ”Panamericana”, que amea­ além das nossas pessoas, apareceu lhou uma vasta produção e em pouco tempo cons­ muita coisa tropicalista. Uma possibili­ truiu em letras como, Brasil e Burguesia uma visão dade de que a mú sica de vanguarda ácida do paıś e da sociedade. surgisse no Brasil, com Hermeto Pas­ “A razão local”' das produções desse perıó ­ choal, , Naná Vascon­ do incorporaram a “razão global”, um aspecto que celos… O Chico Science dizia nos shows podemos destacar é o comercial, pois o “rock 80” que o próprio modo de ele se mover era viabiliza a entrada de gravadoras internacionais tropicalista. Há um desaguar de ele­ que buscavam ampliar fatias de mercado, agora mentos tropicalistas em vários traba­ mais profissional no sentido de trabalhar a mú sica lhos.” (Gilberto Gil em entrevista ao site como um produto a ser massificado, podemos des­ UOL Tropicália) tacar a influência direta recebida pelas bandas, U2, The Police, Midnight Oil, da Jamaica as presenças A década de 70 traz como uma de suas mar­ Peter Tosh e Bob Marley que se apresentaram cas o desdobramento do gênero MPB e da consoli­ como poetas do protesto e da conscientização num dação da indú stria cultural e fonográfica, ainda em casamento do Reggae e do movimento Rastafari se tempos de ditadura, vozes emergiram em tom de fizeram ouvir e serem absorvidos pelo rock nacio­ protestos em canções cada vez mais apuradas este­ nal, e do Punk que já tinha sido gestado desde déca­ ticamente. da de 70 com the Ramones, Sex Pistols entre Gonzaguinha, , Geraldo Vandré, outros, o “Rock Nacional” tomou de empréstimo a Raimundo Fagner, Zé Ramalho, o grupo de Minas atitude. Gerais, conhecido pela alcunha de “Clube da Esqui­ Assim o cosmopolitismo, a contestação na”, que entre outros revelou artistas da enverga­ feita de forma direta à mıd́ ia, a empresas multinaci­ dura de Lô Borges, , Fernando onais monopolistas, ao Estado e as instituições Brant, Beto Guedes, com uma veia mais religiosas entraram na pauta dos grupos de Rock rock, Novos Baianos realizando misturas rıt́ micas que emergiram no Brasil dos 80. de musica brasileira e rock, figuram entre esses Estabelecendo uma linguagem que incor­ artistas que assumindo ou não uma postura polıt́ i­ pora, repele e resignifica as irresistıv́ eis influências co­ideológica contribuıŕ am imensamente com a de uma arte cada vez mais globalizada os roqueiros rica produção musical dessa época. tupiniquins deixaram um legado para arte musical Com a “MPB” vivendo seu auge tanto brasileira ainda a ser explorada pelos meios acadê­ comercial quanto no processo criativo, surge na micos. Preparam o terreno para um futuro que se década de 80 o “Rock Nacional”, marcada pela tran­ aproximava, onde seus sucessores trariam uma sição da ditadura para a redemocratização, esse postura mais radical nas suas obras. Em alguns estilo foi um instrumento utilizado por jovens em momentos utilizaram elementos da “MPB” mais

-219- clássica como a Bossa Nova e o Samba, declinaram circulação de conceitos pop”. O novo som e a diver­ diante de um mercado que se fragmentava inexora­ sidade cultural da cidade fazem parte também do velmente e foram talvez parte de uma experiência conceito “mangue”. pioneira de massificação via rádio, TV e mıd́ ias em Através das letras das canções e das sonori­ grande escala no Brasil. dades exploradas por Chico Science e Nação Zumbı,́ O lugar nas obras de Chico Science dos Raci­ um mosaico de paisagens da cidade de recife emer­ onais MC's. ge em poesias. Denunciando as desigualdades, o Nos anos 90 a consolidação da globalização descaso do poder pú blico com as periferias e clas­ enquanto projeto da expansão capitalista atinge a ses menos abastadas que fazem parte daquele indú stria da mú sica, trazendo transformações nas ambiente. produções, e nas estruturas das linguagens musi­ Talvez o CD mais emblemático do grupo cais. seja o “Da lama ao Caos”, que marcou o inicio da As tecnologias da informação (internet, carreira fonográfica. Além de todo o espectro musi­ telecomunicação, radiodifusão, mp3, celulares) cal desenvolvido nesse trabalho, encontramos na convergiram afetando a vida humana, fragmentan­ contracapa um belıś simo manifesto divido em três do e pondo em cheque as questões de classes socia­ partes intituladas: “Caranguejos com cérebro” redi­ is, raça, etnia, nacionalidade, forjando num primei­ gido pelo jornalista e mú sico Fred 04, na primeira ro momento uma crise identitaria. parte temos uma explicação do mangue enquanto Porém o que se identificou no decorrer do bioma e berçário da vida, na segunda, a cidade de processo foi um reforço das identidades locais em Recife e sua decadência ao se inserir na modernida­ resposta a globalização. O discurso e a arte das peri­ de pálida das metrópoles que desejam ascender ao ferias ganham as ruas e iniciam uma nova era nos posto de lugares desenvolvidos e terceira parte movimentos artıś tico­musicais, sobre essas duas trata da cena em que os mangue boys estariam atu­ ordens Milton Santos afirma: ando no manifesto está contido as intenções e dire­ ções que o movimento deveria tomar, a seguir “A partir dessas duas ordens, se consti­ alguns trechos: tuem paralelamente, uma razão global e uma razão local que em cada lugar se “Não é por acaso que os mangues são considera- superpõem e, num processo dialético, dos um elo básico da cadeia alimentar marinha. tanto se associam, quanto se contrari­ Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, am. E nesse sentido que o lugar defron­ inimigos das donas-de-casa, para os cientistas ta o mundo, mas também, o confronta, são tidos como símbolos de fertilidade, diversida- graças a sua própria ordem.” (Santos, p. de e riqueza”. 332) “Em contrapartida, o desvario irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que elevou a cidade No Brasil na cidade de Recife/Pernambuco ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a obra do escritor, médico e geógrafo Josué Castro, a revelar sua fragilidade.” viria a ser o ponto de partida de um dos movimen­ “Em meados de 91, começou a ser gerado e arti- tos mais criativos da Mú sica Popular Brasileira: o culado em vários pontos da cidade um núcleo de Mangue Beat. pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era O Mangue Beat articulou elementos tradici­ engendrar um *circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a onais do Nordeste do paıś como o maracatu, ciran­ rede mundial de circulação de conceitos pop. da, embolada, coco, com elementos globais ligados Imagem símbolo: uma antena parabólica enfia- a cultura pop, à tecnologia ­ rock, mú sica eletrônica, da na lama.” funk, soul, Rap, Reggae e dub. (CD Da Lama ao Caos) Sobre a égide do movimento estavam ban­ das como: mundo livre S/A, Sheik Tosado, Faces do A releitura musical da Geografia de Josué de Subú rbio, Devotos do O dio. Castro é recorrente. Na mú sica “Da lama ao Caos”, A proposta do movimento tem como sıḿ ­ Chico Science estabelece o seguinte dialogo com bolo, uma antena parabólica enfiada na lama. A Josué de Castro: lama podendo significar a situação caótica da cida­ de tanto no cenário econômico como no cenário “O sol queimou, queimou a lama do rio, eu vi um musical e também como sinônimo de fertilidade chie andando devagar, vi um aratu pra lá e pra dos manguezais existentes por toda Manguetown. cá, vi um garanguejo andando pro sul, saiu do E a antena simbolizando a conexão com redes de mangue, virou gabiru, oh Josué, eu nunca vi tama- informação e a conexão com “à rede mundial de nha desgraça, quanto mais miséria tem, mais

-220- urubu ameaça.“ “Senhor de engenho, Eu sei, bem quem você é. (CD Da Lama ao Caos) Sozinho, cê num guenta, Sozinho, Cê num entra a pé, Cê disse que era bom, E a favela ouviu, lá tam- A cidade com seus fixos e fluxos que para bém tem Whiski, red Bull, tênis Nike e fuzil, admi- Doreen Massey (2007) são peculiarmente grandes, to, Seus carro é bonito, É, Eu não sei faze, inter- intensas e heterogêneas constelações de trajetóri­ net, vídeo-cassete, Os carro loco, Atrasado eu to as conflitantes, que exigem dela enquanto lugar um pouco sim, To, Eu acho, Só que tem que, Seu uma negociação complexa dessas trajetórias resul­ jogo é sujo, E eu não me encaixo, Eu sou problema de montão, de carnaval a carnaval, eu vim da tantes da globalização neoliberal, é fonte de inú me­ selva, Sou leão, Sou demais pro seu quintal”. ras referencias do movimento mangue como pode­ (CD 1000 trutas, 1000 tretas) mos observar na letra da mú sica A cidade, onde fica explicita essa negociação espacial: A cidade se apre­ Milton Santos (2008) abordando ainda senta centro das ambições, para mendigos ou ricos, essas diferenças dirá: outras armações. Coletivos, automóveis, motos e metrôs, trabalhadores, patrões, policiais, camelôs. “A localidade se opõe a globalidade, Contemporâneo do Mangue Beat o movi­ mas também se confunde com ela. O mento Hip Hop brasileiro que se constituı ́ como mundo, todavia, é nosso estranho. base para o trabalho do grupo paulistano Racionais Entretanto se, pela sua essência, ele mc´s, teve suas origens na Jamaica, vindo a desen­ pode esconder­se, não pode pela sua volver nos EUA ainda na década de 80 sobre três existência, que se dá nos lugares, (...), O elementos básicos da expressão Hip Hop: o “DJ”, lugar é o quadro de uma referencia pragmática ao mundo, do qual lhe vêm que é a sigla para Disk Jockey, “montador de disco”, solicitações e ordens precisas de ações o “MC” que pode ser entendido como controlador condicionadas, mas é também o teatro de microfone ou mestre de cerimônia e o terceiro insubstituıv́ el das paixõ es humanas, elemento desenvolvido a partir das lutas entre responsáveis, através da ação comuni­ gangues, principalmente no bairro do Bronx em cativa, pelas diversas manifestações da Nova York foi o” Break”, estilo de dança que simula espontaneidade e da criatividade.” os movimentos das lutas de rua. (Santos. P.322) O grafite também foi adicionado ao movi­ mento enquanto expressão legitima de uma arte A evocação empıŕ ica do lugar evidenciada tıṕ ica dos movimentos articulados na rua. nas obras dos artistas Chico Science e Mano Brown O universo abordado por Mano Brown e os encontram paralelos nas afirmações e estudos de Racionais está intimamente ligado ao Capã o vários geógrafos, entre eles o geógrafo George O. Redondo, comunidade carente originaria desses Carney (2007), que ao associar a mú sica ao lugar, artistas e suas circunvizinhanças, aos bairros das diz que as experiências com a mú sica, muitas vezes, periferias paulistanas, e suas dicotomias em rela­ estão ligadas aos bairros, escolas, igrejas. Essa ção à “selva de pedra”, a esfera de extrema violência vivência e intimidade irão aparecer na obra de vivida por seus habitantes, a loucura produzida Chico Science em musicas como Rio, Pontes e Over­ pelo caos social, a amizade, traição, racismo, bandi­ drives, onde são listados vários bairros de Recife, dos, policia, drogados, play boys, e a perversidade muito particular para quem mora lá ou conhece a do sistema e da lógica capitalista fomentados pela cidade: globalização. Ao denunciar as diferenças sociais que se “É Macaxeira, Imbiribeira, Bom Pastor, é o Ibura, projetam no espaço geográfico, os Racionais se Ipasep, Torreão, Casa Amarela, Boa Viagem, aproximam da afirmação de Milton Santos; “a glo­ Jenipapo, Bonifácio, Santo Amaro, Madalena, Boa Vista, Dois Irmãos, é Cais do Porto, é Caxan- balização paradoxalmente incita a violência, por gá, é Brasilit, Beberibe, CDU (...)” exigir competitividade sem ética”. (SANTOS, 1997) (CD Da lama ao Caos) Na mú sica Negro Drama num estilo verbor­ rágico tıṕ ico do Rap todo esse universo é abordado Na mú sica formula Mágica da Paz de Mano de forma contundente, onde o local e o global se Brown os bairros aparecem como campos mina­ fundem, travando um embate que evidencia, apro­ dos, onde o conhecimento do lugar é requisito para funda e expõem diferenças históricas: entender suas leis e códigos de ética próprios:

“Passageiro do Brasil, São Paulo, Agonia que “Cada lugar um lugar, Cada lugar uma lei, sobrevivem, Em meio as zorras e covardias, Peri- cada lei uma razão e eu sempre respeitei, ferias, vielas e curtiços.”

-221- Qualquer jurisdição, qualquer área, Jardim Solidariedades, violência, cotidiano, con­ Santo, Eduardo, Grajaú, Missionária, Fun- tradição, afirmação de identidades, resistência, chal, Pedreira e tal, (...)” formam o escopo das obras desenvolvidas pelo ( Formula Mágica da Paz) “Mangue Beat” e pelo “Hip Hop” dos Racionais mc's, onde o recorte “lugar” tal qual entendido pelo geó­ O banditismo é tratado tanto por Chico grafo George O. Carney é condicionante para a arte Science quanto por Mano Brown como efeito cola­ produzida: “As caracterıś ticas ú nicas de lugares teral do sistema e da situação de desigualdade pre­ especı́ficos podem oferecer as pré­condiçõ es sente nos lugares ocupados pelas populações mar­ necessárias a novas idéias musicais, O contexto ginalizadas. histórico, ambiental e social de um lugar, muitas Na mú sica “Banditismo por uma questão vezes, fornece cenário e inspiração para determi­ de Classe” de Chico Science, bandidos famosos das nado grupo ou individuo criar mú sica”. favelas de Recifes como “galeguinho do Coque”, Nosso esforço aqui não é trazer apenas uma lendas urbanas e é Lampião são colocados nessa visão romantizada do lugar, pois nas produções dos condição: autores essa visão também é solapada a cada poe­ sia, estrofe ou idéia desenvolvida que demonstram “Galeguinho do Coque não tinha medo, não tinha sempre um conteú do crıt́ ico do lugar que ao se apre­ Não tinha medo da perna cabiluda sentar enquanto espaço da vivencia comunitária, Biu do olho verde fazia sexo, fazia do brincar, do cotidiano e dos laços de solidarieda­ “Fazia sexo com seu alicate.” des irá também ser palco de embates, contradições, “Oi sobe morro, ladeira, córrego, beco, favela lutas pelo poder e uma categoria geográfica muito A polícia atrás deles e eles no rabo dela Acontece hoje e acontecia no sertão importante no que diz respeito a criação da artıś ti­ Quando um bando “de macaco perseguia Lam- ca (mú sica), representante natural da cultura de pião.” um povo, principalmente num paıś como o Brasil “Banditismo por pura maldade em que essa arte é tão presente. “Banditismo por necessidade.” Entendemos que esse dialogo pode ser (CD Da Lama ao Caos) muito produtivo e enriquecedor em todos os nıv́ eis da vida acadêmica, no nosso caso a dicotomia Na mú sica Racionais Capitulo quatro, versı­́ local/global a ser explorada especificamente do culo seis, de Mano Brown, tem o mesmo tema da ensino médio que se coloca como publico alvo criminalidade tratado como algo fabricado pela desse trabalho, se faz presente no fazer artıś tico sociedade de consumo que possui certa miopia através dos discursos de mú sicos e compositores com a condição alheia: que ao vivenciarem as mudanças e dinâmicas espa­ ciais materializam os fenômenos em suas obras, “ 60% dos jovens de periferia sem antecedentes seja pela ludicidade ou pela descrição crua e direta criminais já sofreram violência policial da realidade, do espaço vivido. A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras Música, o lugar e o ensino da geografia Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros A cada 4 horas, um jovem negro morre violenta- “Segundo “os” PCN's” a escola deve ser o mente em São Paulo.” local de diálogo, de aprender a conviver, vivencian­ “Quatro minutos se passaram e ninguém viu do a própria cultura e respeitando as diferentes O monstro que nasceu em algum lugar do Brasil formas de expressão cultural. Talvez o mano que trampa de baixo de um carro Ao trazer para a escola linguagens que tra­ sujo de óleo balham referencias artitiscas, cinema, teatro, etc. O Que enquadra o carro forte na febre com sangue trabalho voltado para a expressão cultural ganha nos olhos novos contornos, pois a experiência direta com O mano que entrega envelope o dia inteiro no sol essas linguagens pode sugerir ao aluno um rico Ou o que vende chocolate de farol em farol Talvez o cara que defende o pobre no tribunal aprendizado em termos de diversidade cultural, Ou que procura vida nova na condicional. identidade dos lugares e da sua própria cultura. Alguém num quarto de madeira lendo à luz de A transversalidade na mú sica enquanto vela expressão cultural dos lugares pode nos fornecer Ouvindo um rádio velho no fundo de uma cela.” ótimas ferramentas na compreensão e investiga­ (CD Capitulo4, versıć ulo 6) ção da pluralidade cultural de um paıś , território, região ou lugar, quando estudamos os movimentos

-222- musicais, que por excelência carregam conteú dos as esferas do poder. identitarios, reivindicam visibilidade, movimen­ . Para o geógrafo George Carney (2007), a tam e interferem no espaço e deixam suas marcas mú sica tanto reflete quanto influencia as imagens no tempo. que as pessoas possuem de lugares e a forma como Para o geógrafo Ruy Moreira (2007), se faz essas imagens mudaram significativamente as ati­ necessária uma quebra entre o “mundo da arte e o tudes das pessoas para com lugares. A revolução mundo da ciência”, que coloca esses campos de deflagrada pelo Mangue “Beat e pelo Hip Hop” nas conhecimento em lados opostos incomunicáveis comunidades em que eles se originaram ecoa até por distintas linguagens. hoje. Vestimentas, novas linguagens, auto­imagens, Fonte privilegiada da linguagem tanto real são questões passiveis de serem abordadas em sala da ciência quanto simbólica da arte, o espaço é o de aula no que diz respeito a relação global/local, tema, portanto, que pode, numa leitura não positi­ ao visitarmos esses lugares com os alunos através vista do mundo, unificar a ciência e a arte numa das mú sicas. mesma perspectiva do olhar, eliminando a dualida­ Encontramos nos “IPCN'S”, que a descrição de objetivo­subjetiva da compreensão do homem dos lugares não esgota a analise do seu objeto. E que elas encerram. “Até porque quando falamos da necessário explicar como aqueles fatores que o realidade da vida dos homens utilizando­nos do constituem se organizaram, para lhe permitir uma rico universo lingü ıś tico do espaço, movemo­nos identidade. Aqui natureza, técnica, relações sócias num arsenal semiótico de horizontes e pluralidade são os tecidos básicos que ao se reunirem forjam a infindos.” (MOREIRA. P146) cultura, suas especificidades, antagonismos e dedu­ Ao trazer para sala de aula essa dualidade ções da realidade. Ou seja, o casamento entre ciên­ entre arte e ciência estarıá mos sem artifıć ios ou cia e arte preconizado pelo geógrafo Rui Moreira maquiagens, trabalhando a musicalidade que é ganha forma agora, pois ao usarmos as linguagens parte concreta da nossa cultura e da realidade dos artıś ticas e descritivas apoiadas no recorte históri­ discentes. co/geográfico do lugar devemos ampliar a analise Tratar de mú sica com um povo altamente do objeto e lhe conferir método cientifico, sem que musical, incorrendo em uma pequena redundân­ um atue em detrimento do outro, mas formando cia, nos coloca um desafio que pode ser compensa­ um ú nico corpo do saber, convivendo e dialogando dor, pois no Brasil em quase todos os aspectos e de forma franca. atividades ela se faz presente e talvez seja a lingua­ De acordo ainda com os PCN's é fundamen­ gem da arte que melhor nos represente. Através tal que o professor considere os conhecimentos dela podemos discorrer sobre situações cotidianas, que os alunos possuem para planejar situações de até assuntos mais complexos da teia espacial, como ensino e aprendizagem significativas e produtivas. relações de poder, polıt́ ica, globalização, etc. O caráter lú dico e proximal da mú sica e do imaginá­ Para Yves Lacoste (1988) o saber geográfi­ rio geográfico com a sociedade seja ela de qualquer co nos revelaria que as relações de poder jazem no classe abrem à possibilidade trazer a tona na sala espaço e é preciso que os professores de Geografia aula experiências de leituras espaciais já vivencia­ assumam posturas menos conservadoras em rela­ das pelos discentes no contato intenso que estes ção à leitura de livros didáticos, manuais geográfi­ possuem com a arte da mú sica e a Geografia empı­́ cos, enfim que se busque investigar a cultura social rica midiática. pelas imagens e assim trazer o que é oculto no espa­ A pesquisa e o ensino são pedras funda­ ço: a ação polıt́ ica. Ao apresentar essa dimensão mentais nessa proposta de trabalho que visa trazer aos alunos estarıá mos desvendando a verdadeira a relação global/local para a sala de aula sobre uma função da Geografia. E a mú sica assim como outras perspectiva artıś tico­geográfica, no qual o trabalho formas de manifestações, podem nos tirar desse do professor e dos alunos torna­se uma aventura conservadorismo livrestico e abrir novas dimen­ lú dica “Freiriana”. Para o educador sões dialéticas no ensino e na leitura espacial. (2007) o oficio do professor acontece dentro da Os movimentos musicais que desemboca­ seguinte relação: ram no “Mangue Beat” e no “Hip Hop” são legıt́ imos representantes dessa leitura espacial que hora “Não há ensino sem pesquisa e pesquisa explicita, hora camufla esse jogo polıt́ ico e contex­ sem ensino. Esses que fazeres se encon- tual de cada época, debruçar sobre esse tema (Mú ­ tram um no corpo do outro. Enquanto sica/Geografia) é também um esforço e um exercı­́ continuo buscando, recuperando. Ensi- cio de trazer a tona as implicações das relações no porque busco, indaguei, porque inda- go, e me indago. Pesquiso para consta- espaciais e no nosso caso, o lugar, receptáculo das tar, constando, intervenho, intervindo relações que se dão politicamente, e espelham vari­

-223- educo e me educo. Pesquiso para conhe- MOREIRA, Ruy. O que é Geografia. São Paulo; Ed cer o que ainda não conheço e comuni- Brasiliense, 2007. car a novidade”. (FREIRE. P.29) MOREIRA, Ruy. Pensar e Ser em Geografia. São Pau­ Conclusão lo; Ed. Contexto, 2007.

Nosso trabalho está ancorado em dois diá­ MOTTA, Nelson. Noites Tropicais: solos, improvi­ logos que se complementam no seu desenvolvi­ sos e memórias musicais. Rio de Janeiro Ed. Objeti­ mento, o primeiro se dá entre a mú sica e a geografia va, 2001. através dos discursos empıŕ icos dos compositores e os elementos musicais que se alimentam da base Parâmetros curriculares nacionais; História, Geo­ teórica geográfica formando uma via quase ú nica grafia. Secretaria de Educação Fundamental.Brası­́ de linguagem; o segundo versa sobre lugar como lia:MEC/SEF, 1997. receptor de uma cultura globalizada que ao se reproduzir, contesta e resiste a esta pela arma mais ROSENDAHL, Zeny. LOBATO, Roberto Corrê a. natural que é a própria arte. Estabelecidos esses (Org). Manifestações da Cultura no Espaço; Ed. parâmetros vem a aplicação em sala de aula para UERJ. 1999. explicitar e aprofundar o quanto à linguagem artıś ­ tica pode contribuir para a linguagem cientifica na ROSENDAHL, Zeny. LOBATO, Roberto Corrê a. educação. (Org). Literatura, mú sica e espaço. Ed. UERJ. 2007. Levar para a sala de aula esse trabalho é nosso objetivo final, concretizar a pesquisa e colo­ SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e ca­la a disposição dos alunos para que esta possa Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Ed. Universida­ servir como ferramenta investigativa do lugar. de de São Paulo, 2008. Chico Science e Mano Brown através das suas com­ posições são artistas contemporâneos que muito SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova; Da crıt́ i­ falam e refletem sobre a nossa sociedade, expondo ca da Geografia a uma Geografia crıt́ ica. São Paulo; de forma crıt́ ica, seus anseios, vivências e trajetóri­ Ed. Universidade de São Paulo, 2008. as pela linguagem universal da mú sica que ao se transformar em instrumento de contestação, pode ser bastante reveladora dos conflitos espaciais.

Referências

COELHO, Teixeira. O que é Indú stria Cultural. São Paulo: Brasiliense, 1981, 5. ed. Coleção Primeiros Passos.

FERNANDES, Bernardo Mançano.Josué de Castro;­ vida e obra/Bernardo Mançano Fernandes, Carlos Walter Porto Gonçalves­2.ed.rev. e ampl.­São Pau­ lo; Ed. Expressão Popular, 2007.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia; Saberes necessários á Prática educativa. São Paulo; Ed. Paz e Terra, 1996.

LACOSTE, Yves. Geografia: isso serve em primeiro lugar, para fazer a guerra.Campinas, SP;Ed. Papi­ rus,1988.

MASSEY, Doreen. Pelo Espaço. São Paulo: Ed. Ber­ trand Brasil, 2005.

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Abstract: This paper seeks to articulate the music and geographic knowledge from the reading of the place through the Brazilian musical movement, specifically the local / global relationship in musical works of Chico Science and Mano Brown exponents of contemporary arts scene in their movements, "Mangue And Hip Hop Beat. "The propositions of geographers over the place are placed in perspective to draw a relationship between language and scientific language musical and possible application of the process of teaching / learning and also for research of spatial phenomena engendered by the expres­ sions cultural. Keywords: Music. Mangue Beat. Rational. Place. Global. Globalization.

Résumé: Cet article cherche à articuler la musique et de la connaissance géographique de la lecture de l'endroit à travers le mouvement musical brésilien, en particulier la relation local / global sur les œuvres musicales de Chico Science et Mano Brown exposants de la scène artistique contemporaine dans leurs mouvements ", Mangue et Beat Hip Hop. "Les propositions des géographes sur la place sont mis en perspective d'établir un lien entre la langue et l'application langage scientifique et musicale possible du processus d'enseignement / apprentissage et pour la recherche des phénomènes spatiaux engendrés par les expressions socio / culturels. Mots-clés: Musique. Mangue Beat Mangue. Rational. Lieu. Mondiale. la Mondialisation.

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