UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

IVAN DANIEL BARASNEVICIUS

CHEIO DE DEDOS: DESVENDANDO O COMPOSITOR GUINGA

CHEIO DE DEDOS: REVEALING THE COMPOSER GUINGA

CAMPINAS

2019

IVAN DANIEL BARASNEVICIUS

CHEIO DE DEDOS: DESVENDANDO O COMPOSITOR GUINGA

CHEIO DE DEDOS: REVEALING THE COMPOSER GUINGA

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Música, na área de Música: Teoria, Criação e Prática.

Dissertation presented to the Institute of Arts of the State University of Campinas in partial fulfillment of the requirements for the degree of Master in Music, in the area of Music: Theory, Creation and Practice.

ORIENTADOR: PAULO JOSÉ DE SIQUEIRA TINÉ COORIENTADOR: GILSON UEHARA GIMENES ANTUNES

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO IVAN DANIEL BARASNEVICIUS, E ORIENTADA PELO PROF. DR. PAULO JOSÉ DE SIQUEIRA TINÉ.

CAMPINAS 2019

BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

IVAN DANIEL BARASNEVICIUS

ORIENTADOR: PAULO JOSÉ DE SIQUEIRA TINÉ

COORIENTADOR: GILSON UEHARA GIMENES ANTUNES

MEMBROS

1. PROF. DR. PAULO JOSÉ DE SIQUEIRA TINÉ

2. PROF. DR. MARCELO SILVA GOMES

3. PROF. DR. JOSÉ ALEXANDRE LEME LOPES CARVALHO

Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação e na secretaria do Programa da Unidade.

DATA DA DEFESA: 19.08.2019

Dedicatória

à minha filha Pietra Bermudes Barasnevicius, inspiração e motivação para todo e qualquer esforço. à Dé Bermudez, pela parceria em tudo na vida. à Ana Nilce, pelos exemplos de sabedoria, força e dignidade.

Agradecimentos

À minha família, especialmente à Dé Bermudez e Ana Nilce, por todo o suporte nos momentos de necessidade e compreensão nos momentos de ausência, ambos bastante frequentes durante o período em que cursei o Mestrado na UNICAMP. Ao meu orientador Prof. Dr. Paulo José de Siqueira Tiné, singularmente, pela amizade de longa data e por todos os ensinamentos ao longo desses anos, já que fiz boa parte de minha graduação, em guitarra elétrica, com a sua orientação na FAAM-SP e, acima de tudo, em acreditar neste trabalho, oferecendo todo o suporte necessário para que pudesse ser concluído. Ao meu coorientador Prof. Dr. Gilson Uehara Gimenes Antunes, em especial, pelas valiosas sugestões, leituras, indicações discográficas e bibliográficas, sobretudo, no que diz respeito ao Violão Brasileiro, sua história e personagens, sendo que suas contribuições foram muito importantes para que fosse possível compreender o cenário musical em que Guinga está inserido. Aos professores da Pós-Graduação do Instituto de Artes da UNICAMP, com os quais tive a oportunidade de conhecer diferentes abordagens metodológicas nas disciplinas oferecidas pelo curso, o que decerto expandiu de forma decisiva a minha visão não só sobre Música: Paulo Tiné, Rafael dos Santos, Regina Machado, Gilson Antunes, Zé Alexandre Carvalho, Jorge Schröder, Manuel Falleiros, Budi Garcia. Aos docentes que participaram de minhas bancas de qualificação e defesa: José Roberto Zan, Marcelo Gomes e Zé Alexandre Carvalho. Suas leituras cuidadosas, suas críticas e contribuições foram essenciais para que os rumos deste trabalho pudessem ser corrigidos. Aos entrevistados, também, que tiveram a paciência em fazer os seus depoimentos sobre a produção do disco Cheio de Dedos e demais desdobramentos: Carlos Malta, Itamar Assiere, Mário Sève, Rodrigo Lessa, Papito Mello, Paulo Aragão, Ed Motta, Lula Galvão e Guinga. Ao Prof. Jorge Schröder pelas conversas, sugestões bibliográficas e valiosas contribuições para este trabalho; ao guitarrista e produtor musical Pedro Pimentel por seu suporte e por compartilhar seus conhecimentos sobre áudio e à Monique Lima por seu apoio e sugestões de leitura em nossas conversas sobre esta dissertação.

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar uma análise de um recorte na carreira do compositor Carlos Althier de Souza Lemos Escobar, o Guinga, que compreende, de forma geral, o processo de produção do disco Cheio de Dedos, terceiro da discografia de Guinga, lançado pela gravadora Velas, no ano de 1996 e que consiste no tema principal desta pesquisa. Entre os métodos de investigação, foram realizadas entrevistas com diversos músicos envolvidos nos processos de produção do disco Cheio de Dedos. Desta forma, detalhes significativos sobre como os arranjos foram produzidos revelaram-se, assim como significados inerentes aos nomes das composições e elaboração das letras. Além disso, foram realizadas análises melódicas, harmônicas e formais de algumas das músicas presentes no disco, como forma de montar um panorama dos elementos utilizados por Guinga em suas composições para este disco e de que forma os arranjos foram elaborados e gravados. Como resultado das análises musicais, foram evidenciadas algumas características das composições de Guinga neste período, para que assim fosse possível compreender melhor o processo de produção do disco Cheio de Dedos, trabalho este que até hoje é um dos mais emblemáticos da carreira deste compositor. A partir da verificação de diversas resenhas e comentários, em jornais e revistas sobre o disco Cheio de Dedos, foi possível conferir que este trabalho se tornou um dos mais conhecidos da carreira do compositor Guinga. Palavras-chave: arranjo; composição; violão brasileiro; análise melódica; análise harmônica.

ABSTRACT

This work aims to present an analysis of a part of the career of the composer Carlos Althier de Souza Lemos Escobar, named Guinga, which comprehends, in a general way, the production process of the album Cheio de Dedos, third album of the discography of Guinga and that was released by the Record Label Velas in 1996, and which is the main theme of this research. Among the research methods, interviews were conducted with several musicians involved in the production processes of the Cheio de Dedos. In this way, significant details about how the arrangements were produced could be brought to light, as well as meanings inherent in the names of the compositions and the elaboration of the letters. In addition, we performed melodic, harmonic and formal analysis of some of the songs on the disc, as a way of assembling a panorama of the elements used by Guinga in his compositions for this album. and in what way the arrangements were elaborated and recorded. As a result of the musical analysis, it was possible to show some characteristics of the compositions of Guinga in this period, as well as to better understand the production process of the album Cheio de Dedos, a work that until today is one of the most emblematic of this composer's career. From the verification of diverse reviews and commentaries in newspapers and magazines on the album Cheio de Dedos, it was possible to verify that this album became one of the best known of the career of the composer Guinga. Keywords: arrangement; composition; brazilian guitar; melodic analysis; harmonic analysis.

Lista de ilustrações

Figura 1: Introdução de Por trás de Brás de Pina………………………………………..... 61

Figura 2: Parte A de Por trás de Brás de Pina………………………………………...... 62

Figura 3: Parte B de Por trás de Brás de Pina………………………………………..….... 63

Figura 4: Parte C de Por trás de Brás de Pina…………………………………………...... 64

Figura 5: Parte D de Por trás de Brás de Pina…………………………………………...... 65

Figura 6: Parte E de Por trás de Brás de Pina…………………………………………...... 66

Figura 7: Introdução de Nó na garganta…………………………………………………... 76

Figura 8: Primeiro fragmento da seção A de Nó na garganta…………………………...... 76

Figura 9: Segundo fragmento da seção A de Nó na garganta…………………………….. 77

Figura 10: Primeiro fragmento da seção A’ de Nó na garganta…………………………... 78

Figura 11: Segundo fragmento da seção A’ de Nó na garganta…………………………... 79

Figura 12: Primeiro fragmento da seção B de Nó na garganta…………………………..... 80

Figura 13: Segundo fragmento da seção B de Nó na garganta………………………...... 81

Figura 14: Coda de Nó na garganta………………………….……………………………. 81

Figura 15: Introdução de Cheio de Dedos………………………………………………… 85 Figura 16: Seções A e A’ de Cheio de Dedos……………………………………………... 86 Figura 17: Seção B de Cheio de Dedos…………………………………………………..... 88 Figura 18: Coda de Cheio de Dedos……………………………………………………...... 90 Figura 19: Cheio de Dedos: Introdução, compassos 1 a 8 (Arranjo para violão elaborado por Guinga)...... 99 Figura 20: Cheio de Dedos: Introdução, compassos 1 a 5, primeira parte (Arranjo para sopros elaborado por Carlos Malta)...... 102 Figura 21: Cheio de Dedos: Introdução, compassos 6 a 9, segunda parte (Arranjo para sopros de Carlos Malta)...... 102 Figura 22: Seção A de Dá o Pé, Loro……………………………………………………... 109 Figura 23: Seção A’ de Dá o Pé, Loro…………………………………………………….. 110 Figura 24: Seção B de Dá o Pé, Loro…………………………………………………….... 111 Figura 25: Seção B’ de Dá o Pé, Loro……………………………………………………... 112 Figura 26: Coda de Dá o Pé, Loro………………………………………………………..... 112 Figura 27: Seção A de Ária de Opereta……………………………………………………. 121 Figura 28: Seção B de Ária de Opereta…………………………………………………..... 123 Figura 29: Primeira frase da letra de Ária de Opereta……………………………………... 135 Figura 30: Segunda frase da letra de Ária de Opereta…………………………………….. 136 Figura 31: Terceira frase da letra de Ária de Opereta.…………………………………….. 137 Figura 32: Quarta frase da letra de Ária de Opereta……………………………………….. 138 Figura 33: Quinta frase da letra de Ária de Opereta……………………………………….. 138 Figura 34: Sexta frase da letra de Ária de Opereta………………………………………... 139 Figura 35: Sétima frase da letra de Ária de Opereta………………………………………. 140 Figura 36: Oitava frase da letra de Ária de Opereta……………………………………….. 141 Figura 37: Nona frase da letra de Ária de Opereta………………………………………… 141 Figura 38: Introdução de Sinuoso………………………………………………………….. 143 Figura 39: Seção A de Sinuoso…………………………………………………………….. 143 Figura 40: Seção A’ de Sinuoso…………………………………………………………..... 144 Figura 41: Seção B de Sinuoso…………………………………………………………...... 145 Figura 42: Seção A’’ de Sinuoso…………………………………………………………... 145

Lista de tabelas

Tabela 1: Aberturas utilizadas por Guinga na introdução da peça Cheio de Dedos……..... 101 Tabela 2: Aberturas utilizadas por Carlos Malta na introdução da peça Cheio de Dedos..... 104 Tabela 3: Comparação das funções harmônicas na primeira parte da introdução da peça Cheio de Dedos...... 105 Tabela 4: Comparação das funções harmônicas na segunda parte da introdução da peça Cheio de Dedos...... 106 Tabela 5: Segunda metade da parte B de Ária de Opereta (Análise alternativa)...... 131

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 14 1. A TRAJETÓRIA DE GUINGA...... 17 2. A ENTRADA DE GUINGA NA GRAVADORA VELAS………………………...... 29 2.1. Panorama dos cinco primeiros álbuns de Guinga…………………………………...... 31 2.2. A contribuição do produtor Paulinho Albuquerque…………………………………….. 35 2.3. A entrada de Aldir Blanc na carreira de Guinga………………………………………... 40 3. ANOS 1990: A CRISE NO MERCADO FONOGRÁFICO BRASILEIRO E SUA RECUPERAÇÃO……...... ……………………...... 44 3.1. Sistemas de gravação e demais recursos utilizados nos anos 1980 e 1990……………... 49 3.2. Estética das gravações dos anos 1980 e 1990 na MPB………………………………...... 52 4. O DISCO CHEIO DE DEDOS – ANÁLISE DE ALGUMAS FAIXAS SELECIONADAS...... 57 4.1. Por trás de Brás de Pina...... 57 4.1.1. Forma rapsódica...... …………………...... 59 4.1.2. Análise melódico-estrutural e harmônica...... 61 4.1.3. Participação do grupo Nó em Pingo D’água...... 66 4.1.4. Descrição do arranjo...... 70 4.2. Nó na garganta...... 73 4.2.1. Análise melódico-estrutural...... 76 4.2.2. Análise harmônica...... 81 4.2.3. Descrição do arranjo...... 82 4.3. Cheio de Dedos...... 83 4.3.1. Análise melódico-estrutural...... 84 4.3.2. Análise harmônica...... 90 4.3.3. Descrição de arranjo...... 95 4.3.4. Comparação entre trechos das duas versões da peça Cheio de Dedos...... 95 4.3.4.1. O arranjo de Guinga para a peça Cheio de Dedos...... 99 4.3.4.2. O arranjo de Carlos Malta para a peça Cheio de Dedos...... 101 4.4. Dá o Pé, Loro...... 106 4.4.1. Análise melódico-estrutural...... 108 4.4.2. Análise harmônica...... 113 4.4.3. Descrição de arranjo...... 115 4.5. Ária de Opereta...... 118 4.5.1. Análise melódico-estrutural...... 121 4.5.2. Análise harmônica...... 126 4.5.3. Descrição de arranjo...... 132 4.5.4. Regimes de integração entre melodia e letra...... 133 4.5.4.1. Elementos passionais evidenciados pelo arranjo...... 134 4.5.4.2. Elementos passionais na letra de Ária de Opereta...... 135 4.6. Sinuoso...... 142 4.6.1. Análise melódico-estrutural...... 142 4.6.2. Análise harmônica...... 146 4.6.3. Descrição de arranjo...... 147 5. REAÇÕES AO DISCO CHEIO DE DEDOS NA IMPRENSA.…………...... 149 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………...... 155 REFERÊNCIAS...... 159 ANEXOS ...... 164

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem como objetivo apresentar uma análise de um recorte na carreira do compositor Carlos Althier de Souza Lemos Escobar, o Guinga, que compreende, de forma geral, o processo de produção do disco Cheio de Dedos, terceiro da discografia de Guinga, lançado pela gravadora Velas no ano de 1996 e que consiste no tema principal desta pesquisa. Para um melhor entendimento de como se desenvolveu a fase da carreira de Guinga, a qual constitui o recorte principal desta pesquisa, no primeiro capítulo, foram feitas algumas digressões, como, por exemplo, um mergulho em aspectos biográficos do compositor, detalhando de que forma teve seus primeiros contatos com a música, por meio de seus pais e tios. Com base em evidências biográficas trazidas por MARQUES (2002), CARDOSO (2006) e de entrevistas concedidas por Guinga, viu-se, também, como aconteceu o contato com alguns dos músicos que mais o influenciaram, durante a sua trajetória, como Haroldo Hilário Bessa, Paulinho Cavalcanti, Chiquito Braga, Hélio Delmiro e outros. No segundo capítulo, procurou-se reunir informações sobre como ocorreu a entrada de Guinga na gravadora Velas. Neste momento, baseados em realces biográficos trazidos por MARQUES (2002) e em depoimentos de ARAGÃO (2019) e MALTA (2019), buscou-se demonstrar de que forma alguns personagens da vida musical de Guinga, tais como Paulinho Albuquerque e Aldir Blanc, foram extremamente importantes para este processo e, em consequência, para o desabrochar da carreira do compositor. A partir das abordagens propostas por VICENTE (2002), iniciou-se, também, a delinear um panorama da gravadora Velas no período. Neste capítulo, com informações de CABRAL (2003), fez-se um rápido panorama dos cinco primeiros discos do Guinga lançados na gravadora Velas. Para que fosse possível compreender, de forma geral, o cenário em que a carreira de Guinga pôde finalmente decolar, a partir do lançamento do disco Cheio de Dedos, no terceiro capítulo, alguns pontos relacionados à indústria fonográfica do Brasil dos anos 1990 foram analisados, ou seja, da época de produção e lançamento do disco Cheio de Dedos. Com as referências apresentadas por VICENTE (2002), foi possível entender em qual cenário a gravadora Velas estava inserida: um momento de grandes turbulências econômicas no Brasil, que foram muito impactantes para as gravadoras da época e, também, quais gêneros musicais estavam em alta naquele período: pagode, sertanejo e rock. Entretanto a entrada de Guinga na gravadora Velas propiciou um aumento significativo à divulgação de seu trabalho como violonista e compositor. Por outro lado, elencaram-se alguns aspectos relacionados aos 15

trabalhos de dois artistas, nos anos 1980 e 1990: Gilberto Gil e Milton Nascimento, de maneira a compreender um pouco o cenário da MPB no período anterior à entrada de Guinga na gravadora Velas, ou seja, nos anos 1980. Muitos discos de música brasileira, gravados nos anos 1980 e começo dos anos 1990, traziam sonoridades que, muitas vezes, eram bem artificiais, com timbres bastante sintetizados. Embora desde os anos 1970 já existissem efeitos e recursos digitais, no início, eram caros e poucas pessoas tinham acesso a eles. Nos anos 1980, a disponibilidade de efeitos digitais passou a ser bem maior e era comum que os produtores sempre exagerassem no seu uso. Nesse mesmo período, aconteceu uma transição do meio pelo qual a música era comercializada: embora no Brasil o CD estivesse disponível desde meados dos anos 1980, somente no início da década de 1990 passou a ser consumido em larga escala. O vinil e o cd acabaram convivendo no mercado fonográfico por um certo período. No quarto capítulo, foram selecionadas algumas faixas presentes no disco Cheio de Dedos, para uma análise melódica, harmônica e de arranjo. O critério para a escolha das peças foi a disponibilidade da transcrição e a possibilidade de se remontar a maneira como a composição, arranjo e sua gravação foram elaborados, a começar de entrevistas com os músicos envolvidos no processo. Além disso, selecionaram-se faixas cujos arranjos foram concebidos de forma distinta, a fim de avaliar, em geral, como essas partes do disco foram elaboradas: o arranjo de Por trás de Brás de Pina foi totalmente elaborado pelo grupo Nó em Pingo D´água, antes de se entrar no estúdio e, quando foi gravado, o arranjo já estava concebido e ensaiado. Em outras faixas, como, por exemplo, Ária de Opereta, o arranjo foi elaborado diretamente no estúdio, durante as gravações, a contar das sugestões de Paulinho Albuquerque e Guinga. Vale citar, também, que, neste capítulo, as diferentes composições analisadas trouxeram a necessidade de ferramentas distintas para as suas respectivas análises. Em Por trás de Brás de Pina, o conteúdo da composição foi relacionado à forma rapsódica, conforme TINÉ (2008). Na peça Dá o pé, Loro, foi possível estabelecer uma relação entre o conceito de tópicas, citado por PIEDADE (2011), enquanto que na análise da canção Ária de Opereta, o conteúdo melódico, de letra e de arranjo foi associado com o regime passional de integração entre melodia e letra conforme TATIT (2012). Já na peça Cheio de Dedos, comparou-se um trecho das duas peças para evidenciar diferenças entre os arranjos de Guinga e Carlos Malta. No disco Cheio de Dedos, há duas gravações dessa peça: uma com dois violões, gravada por Guinga e Lula Galvão, e outra somente com instrumentos de sopro, mais exatamente saxofones e flautas. Esse último fonograma é o resultado de um arranjo elaborado por Carlos Malta para esta peça. Assim, neste trecho, foi verificado se existem diferenças e semelhanças entre as duas propostas de arranjo, para que se possa melhor compreender de que forma ambos foram concebidos. 16

Como exemplo de análise, foram destacados pequenos trechos de ambas as peças para uma análise comparativa a fim de aclarar as suas características. No quinto capítulo, foram compiladas e analisadas diversas resenhas sobre o lançamento do disco Cheio de Dedos e sobre outros eventos de que Guinga participou na época, para melhor compreender qual a recepção que o disco teve na imprensa e de que forma Cheio de Dedos passou a ser a principal referência da carreira desse compositor, sendo que, nas resenhas e comentários verificados, percebeu-se a grande importância, quando se referem à carreira do compositor Guinga, que é atribuída ao mencionado fonograma, já que foi bastante frequente, em diferentes resenhas analisadas, que ele seja lembrado como o compositor da peça Cheio de Dedos.

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1. A TRAJETÓRIA DE GUINGA

É notório que Carlos Althier de Sousa Lemos Escobar, o Guinga, tenha adquirido diversos saberes musicais, ao longo de sua trajetória, muito mais pelo contato intenso com pessoas que tinham uma relação bastante próxima com diferentes gêneros de música, seja por apreciação, execução ou composição que com um algum tipo de instrução formal. Como não teve acesso a uma instrução musical sistemática, tendo apenas aulas particulares de música e de forma não muito organizada, em diferentes momentos da sua vida, esses contatos com diferentes pessoas e o conhecimento acumulado por essas experiências tiveram um papel essencial à elaboração de seu capital cultural e de sua maneira de tocar e compor ao violão. É conhecida a biografia de Guinga escrita por MARQUES(2002), entretanto, para esta análise, julgou-se essencial que esta discussão demonstrasse, ainda, a biografia organizada por CARDOSO(2006). Mas parece desnecessário repetir o que já foi mencionado nesses dois trabalhos sobre a trajetória de Guinga. Algumas atualizações, evidentemente, podem ser feitas já que muitos outros trabalhos foram realizados pelo compositor, após a publicação dos trabalhos citados. Todavia esse detalhamento não é propósito desta investigação, visto que se procurará deter-se, principalmente, na época referente ao processo de produção do disco Cheio de Dedos, embora se possa buscar, ao longo deste trabalho, informações de outras épocas da carreira e da vida do compositor, para melhor compreensão do objeto principal desta pesquisa. Um aspecto que sobressai bastante, quando se analisa a trajetória do compositor, é o papel fundamental que a música exercia em sua vida familiar desde muito cedo. Seu pai era um grande apreciador de discos de ópera e de seresta, gêneros dos quais possuía uma grande coleção de discos, a que Guinga tinha acesso. Em relação à seresta, Guinga atribui muita importância a esse gênero em sua música e em sua vida. Esse fato está relacionado ao grande contato que teve com esse gênero, inicialmente, por meio de seu pai, mas, logo depois, pelo rádio, o qual teve um papel importantíssimo em sua elaboração de base musical. Segundo CARDOSO(2006), Gilberto Alves, por exemplo, foi um dos compositores a que Guinga teve acesso pelo pai. Orlando Silva, Silvio Caldas, Francisco Alves, Leonel Azevedo, Jota Cascata e Benedito Lacerda foram outros nomes essenciais para a sua formação. Entretanto, como é possível encontrar, inclusive, em depoimentos transcritos por CARDOSO(2006), é frequente que Guinga cite Bide Marçal, Claudionor Cruz, Pedro Caetano, Gilberto de Carvalho, Dante Santoro, Hervê Cordovil, João Petra de Barros, Gastão Formenti, Custódio Mesquita, Francisco Matoso, Américo Jacomino, Jaime Ovalle, Manuel Bandeira, Pixinguinha, Ernesto Nazareth, 18

Jacob do Bandolim, Nonô, Sá Roriz, Kid Pepe e Peter Pan, entre outros. Sobre a relação de Guinga com a seresta, é importante citar:

Vemos como o capítulo da seresta é, para Guinga, fundamental no caminho de qualquer compositor brasileiro, sob o risco de, omitindo-o, tornar-se um “compositor incompleto”. Podemos vislumbrar também o forte conhecimento de Guinga deste gênero, pela quantidade de citações de compositores e músicas [...]. Acrescentamos que a análise da entrevista com Paulo Aragão nos deu igualmente esta dimensão: Aragão fala-nos de um Guinga grande conhecedor da música brasileira da era do rádio, sendo o compositor sua referência para obter informações sobre este período da música brasileira. Como Aragão mesmo coloca, “eu nunca vi uma pessoa conhecer tanto o universo da canção brasileira, assim nos anos 30, 40 e 50 como o Guinga”. Aragão define Guinga como um dos principais conhecedores da música do rádio entre os anos 30 e 50 - justamente o período áureo não somente da seresta e do , mas também da música americana, provavelmente muito ouvida por Guinga em sua juventude (CARDOSO, 2006: 29).

Assim, esse contato intenso com a seresta, proporcionado, em princípio, pelo gosto musical do seu pai e, posteriormente, por ser um estilo em alta no rádio, à época de sua juventude, fez com que Guinga tivesse um amplo conhecimento dessas canções, o que certamente acabou por constituir um vasto repertório que se tornou essencial para a elaboração de sua personalidade musical. É evidente que a seresta não era a única influência sobre esse compositor nesta fase de sua vida, mas é um importante pilar na construção de sua sonoridade, como é possível observar em composições suas como Senhorinha. Mas, também, deve-se ressaltar que Guinga travou contato com outros gêneros no universo da música brasileira, como, por exemplo, a bossa-nova e o jazz:

A sua relação com a bossa-nova iniciou-se através do contato com Paulinho Cavalcanti, um violonista grande conhecedor deste gênero e do violão de João Gilberto, segundo o compositor - Guinga o define como uma das maiores enciclopédias da bossa-nova. Analisando os depoimentos, percebemos a importância da bossa-nova e do jazz na formação de Guinga, pois durante um período considerável de sua juventude – dos 17, 18 anos aos 20, segundo o compositor - o músico se afastou de suas origens seresteiras e buscou nesses dois novos universos a sua identidade musical. O próprio Guinga mudou de orientação poucos anos depois, chegando à consideração de que os universos musicais não devem se excluir, mas se somar, retomando assim os seus elos com a tradição seresteira. 56 Mas a importância da bossa-nova e do jazz em sua formação durante esses poucos anos não deve ser colocada em segundo plano (CARDOSO, 2006: 29-30)

Entretanto salienta-se que o fato de Guinga ter se exposto à influência do jazz, da seresta ou da bossa-nova não exatamente fez com que os adotasse como primordiais em seu 19

trabalho. A experiência com essas diferentes linguagens produziu um acervo de elementos que depois se tornaram fundamentais em sua musicalidade. Parece importante evidenciar, além disso, o contato com a música clássica que Guinga desenvolveu durante a sua juventude. Quando tinha por volta de 13 anos de idade, passou a sofrer de insônia, que contribuiu para que ouvisse, com frequência, a Rádio MEC, que sempre apresentava um vasto repertório das mais variadas vertentes da música clássica. Embora no começo não pudesse compreender de forma aprofundada o que estava ouvindo, percebendo grande parte dos elementos desse universo como algo inacessível, esse contato o auxiliou em sua formação musical. Segundo CARDOSO(2006), ouvir o repertório clássico não foi um hábito apenas dessa época em razão da insônia, e sim hábito que o compositor continuou praticando muitos anos depois. É provável que este tenha sido o repertório que mais escutou desde a sua adolescência. Por outro lado, é interessante lembrar que esse impactante contato com a música acontecia enquanto a sua família passar por uma situação econômica muito difícil. Quando Guinga era muito jovem, morou em lugares considerados periféricos, como as proximidades da Praça Seca e da Taquara, que são bairros da região de Jacarepaguá, embora fiquem relativamente próximos a áreas como a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes, lugares que podem ser considerados, de forma geral, mais abastados. Morou, também, na Vila Valqueire, bastante próximo à Madureira, conhecidamente um grande reduto do e, por sua vez, fica bem próximo a Ricardo de Albuquerque. Guinga morou também no Méier. Mudava-se com frequência de casa quando as finanças se tornavam insustentáveis, o que, ainda, o levava a mudar de escola, ficando, muitas vezes, em situações desconfortáveis com tantas alterações. Além disso, o relacionamento de seus pais era bastante turbulento, sendo que as brigas eram constantes dentro de casa. Seu pai era um sargento-enfermeiro do Hospital da Aeronáutica e sua mãe era “do lar”. Quando seus pais se separaram, mudou-se com a mãe para a casa de sua avó, na Vila Valqueire. Nessa época, acabou se afastando da coleção de discos do pai e de seus hábitos de escutá-los com frequência. Essa mudança, assim, fez com que Guinga acabasse tendo influência musical de outros gêneros, pois seus tios também tinham uma grande proximidade com outros universos musicais que o sensibilizaram.

Guinga iniciou-se desde cedo na música através da convivência musical no seio de sua família, por intermédio da qual toma contato com o violão através de seu tio Marquinhos. Sua família apresentava estreita relação com a música: sua mãe cantarolava serestas, seu pai ouvia seresta, ópera e música erudita, seu tio Claudio, “bissexto” cantor profissional, chegou a gravar alguns discos em 78 RPM, seu tio Danilo era dono de uma imensa discoteca de jazz de todas as vertentes (CARDOSO, 2006:22). 20

Frequentemente Guinga relata que, quando morou na casa da avó, seu tio Marquinhos tocava diversas peças que são bastante importantes até os dias atuais no repertório do violão brasileiro, como, por exemplo, “Se ela perguntar”, de Dilermando Reis. Guinga aprendeu a tocar essa música como da maneira como seu tio fazia. Entretanto CARDOSO(2006) cita uma série de outras peças que fizeram parte desse repertório que Guinga conheceu nessa época:

Apresentamos com mais precisão as músicas tocadas pelo seu tio: segundo Guinga, este tocava muito o repertório de Dilermando Reis, “Se ela perguntar”, “Adelita”, “Abismo de Rosas”, “Sons de Carrilhões”, e acompanhava muito bem no violão. Desta forma, sabemos que Guinga teve contato desde cedo com um conhecido repertório de violão: as peças referidas são, na ordem, de Dilermando Reis, Francisco Tarrega, Canhoto e João Pernambuco. Com exceção do compositor espanhol – cuja “Adelita” era extremamente popular entre os violonistas que executavam este tipo de repertório no -, os demais são violonistas-compositores brasileiros, com cujo repertório Guinga foi familiarizado, portanto, desde sua mais tenra juventude (CARDOSO, 2006:26).

Assim, desde muito cedo, apesar das condições econômicas desfavoráveis de sua família, já havia um intenso contato com os materiais musicais de grande sofisticação e que seriam bastante influentes, mais tarde, para a formatação de sua personalidade musical. Além disso, ressalta-se que os discos que seu tio Danilo possuía foram também muito influentes para a sua formação. A importância de alguns acontecimentos de sua vida, nessa época, é evidenciada em diversas entrevistas dadas por Guinga. No trecho transcrito abaixo, retirado de uma declaração que o compositor fez ao programa Café lá em casa, produzido e apresentado pelo guitarrista Nelson Faria, percebe-se a influência que seu tio exerceu ao tocar violão e, também, Guinga teve contato, nessa época, com alguns discos que considera como clássicos. Embora ele não tenha detalhado qual seria a procedência dessas gravações, é bastante provável que seja da coleção de discos do seu tio Danilo.

Começou como todo mundo, a família, geralmente a família, vem pela família, não sei se no teu caso foi assim também, a família, o ambiente, né...aquela frase de que “o homem é o homem em suas circunstâncias”, é isso mesmo…O homem é o homem em suas circunstâncias, se você é criado em um ambiente musical, [...], a tendência é que você vá trafegar dentro da música, não que seja profissionalmente, mas a musicalidade já está ali, o ambiente é bom, então as coisas se desenvolvem. Eu, com onze anos de idade, lá em casa se ouvia muita seresta, muita música americana, muito jazz, muita música clássica, tudo, tinha de tudo um pouco. Apareceu um disco do Stan Getz, nunca mais esqueço disso, chamado Focus, que é um disco em que o Stan Getz toca com uma orquestra de cordas e uma percussão, tem bateria e 21

uma orquestra de cordas. E um compositor americano chamado Ed Solter, esse disco é muito pouco conhecido, até nos Estados Unidos ele é pouco conhecido, mas é um clássico, porque ele é um disco limítrofe. Ele nem é jazz e nem é clássico. Você sente que o compositor tinha uma paixão pelo Debussy, a maneira do cara escrever é muito impressionista, mas ao mesmo tempo, o cara é um americano e tem o jazz na alma. E é um disco em que há muito improviso, por incrível que pareça, eu que não sou assim, enlouquecido por improviso, não sei improvisar, né...Gosto, mas não é a linguagem que fala mais profundamente na minha alma. Eu fui perceber isso com o tempo, que o Stan Getz improvisou durante muito tempo no disco e o disco é uma obra prima. Ninguém gostava desse disco na minha casa, porque ele era um disco estranho, e eu com onze anos fui me apaixonando por esse disco. Esse disco me jogou dentro da música. Logo depois, me apareceu em casa também, um Oscar Peterson Trio, com West Side Story, tocando só Bernstein. Tonight, Maria, Somewhere...Então, aquilo, pronto...esses dois discos me jogaram dentro da música, eu senti, com onze anos de idade, eu senti que eu era apaixonado por música. Eu ouvia aquilo, eu chorava, eu ouvia sozinho pra ninguém me ver chorar. Uma coisa assim, uma relação muito solitária com este tipo de coisa. E ali foi desenvolvendo, meu tio tocava violão, o meu tio que me criou, porque meu pai se separou da minha mãe, eu fui morar na casa da minha avó. Morava a minha avó e um tio meu, irmão de minha mãe. Aí fui dormir no quarto dele, aquele negócio de colocar as pessoas dentro da casa, a casa pequena, e ele ficava tocando violão, ele tocava isso aqui toda noite (toca um trecho de “Se ela perguntar”, de Dilermando Reis), e eu aprendi a tocar com ele isso, ouvindo meu tio tocar (GUINGA In: Café lá em casa, 2016)

Na mesma entrevista, Guinga ressalta, em alguns momentos, a qualidade de seu tio como violonista, ao declarar que, embora não tenha se dedicado profissionalmente, possuía um excelente ouvido e era muito melhor violonista que ele próprio, porém é difícil verificar o quanto esta informação corresponde à realidade ou se faz parte muito mais da memória afetiva do compositor. De qualquer forma, é notório que Guinga considere que, de algum modo, o seu tio violonista tenha sido o seu primeiro professor. Assim, pode-se afirmar que essas experiências foram essenciais para a elaboração da personalidade musical de Guinga, apesar de sua família viver em condições financeiras não confortáveis e da separação de seus pais ter sido bastante marcante em sua infância. Ao mesmo tempo, de forma consciente ou não, desde muito cedo, o compositor fazia um contato intenso com grandes referenciais de uma cultura musical bastante sofisticada e abrangente, como se pode perceber a partir das citações elencadas anteriormente. CARDOSO (2006), também, ressalta a importância dessa convivência com a música no seio familiar para a formação de Guinga.

Guinga fala-nos de sua convivência em uma família profundamente ligada à música, com parentes que cantavam e tocavam cotidianamente, o que lhe trouxe desde cedo uma grande vivência com o mundo dos sons. Como ele deixa entrever, naturalmente ao ver seus familiares tocarem e cantarem, Guinga aproximou-se fortemente da música, e através de seu tio iniciou seu 22

contato com o instrumento que o marcaria para toda a sua vida – o violão (CARDOSO, 2006:25).

O fato é que Guinga, desde muito cedo, foi intensamente exposto a uma vivência musical bem rica e diversificada. A base formada pela seresta era enriquecida pelo choro, jazz, música clássica e ópera, e todos esses estilos eram elementos muito presentes em sua vida. A família de Guinga, apesar de não ter muitas condições financeiras, era extremamente apegada à música. As reuniões musicais eram muito frequentes, com festas e encontros em que se cantava e tocava, e muitos músicos amadores e profissionais circulavam nesse ambiente. Nessas reuniões, Guinga pôde conhecer algumas pessoas que foram muito importantes à sua formação como pessoa e também como músico, como é o caso do pianeiro Gadé e também Haroldo Hilário Bessa que, segundo CARDOSO (2006), era amigo íntimo do compositor e violonista Garoto.

Indagamos o compositor acerca do repertório executado por Haroldo: Radamés Gnattali, Pixinguinha, Garoto, Jacó do Bandolim, Laurindo de Almeida, alguns clássicos da música americana, como “Laura”, “Stella by Starlight” e um pouco de bossa nova - gostava de Tom Jobim. Segundo Guinga, “Haroldo era um músico excelente, que tinha conhecimento maior da seresta e do violão, do repertório clássico de violão, eu digo clássico dentro da música popular, ele chegou a estudar clássico também” (CARDOSO, 2006:27).

Assim, CARDOSO(2006) ressalta que Guinga teve a oportunidade de ouvir o violonista Garoto muito cedo, já nesta época, em seu núcleo familiar. Deve-se destacar, também, o repertório que Haroldo tocava. O contato com essas peças, naquele momento, ainda, teve uma importância marcante à formação musical de Guinga, assim como o que foi citado anteriormente quanto aos seus tios Marquinhos e Danilo e ao gosto musical de seus pais. Em seus depoimentos, além de seus tios Marquinhos e Danilo, é frequente que Guinga revele, além disso, a influência de Paulinho Cavalcanti, posto que ele foi responsável por colocar Guinga em contato com novos repertórios e novos materiais musicais, sendo, assim, uma grande influência à época.

O primeiro mestre do violão na minha vida foi meu tio Marquinhos [...] Eu dali me mudei [...], morava em Vila Valqueire e fui pra Jacarepaguá e na rua em que eu morava, lá em Jacarepaguá, tinha um exímio violonista chamado Paulinho Cavalcanti, que tirava tudo de ouvido, tocava tudo do João Gilberto, tocava tudo da bossa-nova, tudo de standards de jazz e eu ficava ouvindo o Paulinho tocar, ia pro muro da casa dele pra ver o Paulinho, um cara da minha idade [...]. O primeiro foi meu tio, o segundo o Paulinho. O Paulinho, pra você ver como eu gostava do cara, eu fazia letra pras músicas dele, só pra ficar 23

perto dele, vendo ele compor e tudo...coisa de moleque, treze, quatorze anos…(GUINGA In: Café lá em casa, 2016).

Como se pode apreender, a partir das declarações de Guinga, Paulinho Cavalcanti tocava um extenso repertório de música brasileira e de jazz e foi bastante relevante para Guinga, nesse início, ter contato com esse repertório. Entretanto Paulinho teria outro importante papel na vida de Guinga, pois foi o responsável por apresentá-lo a Hélio Delmiro, que, nesta época, aos 16 anos, já possuía, segundo Guinga, uma grande desenvoltura em seu instrumento, o que acabou impressionando o compositor. É interessante notar a descrição do momento em que Guinga e Hélio Delmiro são apresentados.

Aí, um dia, com quatorze anos, o Paulinho falou assim: “Você acha que eu toco muito, né? Então hoje eu vou te levar na casa de um cara”. E aí ele me levou na casa do Hélio Delmiro [...]. O jeito que ele [Hélio Delmiro] tocava com dezesseis anos, acho que foi o melhor Hélio que vi na minha vida. Era um assombro. Foi o primeiro gênio que eu deparei pela frente. Eu, quando vi aquilo, não entendi nada. Eu me lembro que cheguei na casa dele com o Paulinho..eu era de subúrbio, né...O Helinho morava no Méier...ele ainda mora nessa casa, voltou pra essa casa, eu tenho ido até lá...Nós batemos lá [...] Sabe o que ele estava fazendo? Halterofilismo. Estava no fundo da casa, ele e o irmão levantando peso [...] Aí já largou o halteres e veio pro violão. Aí já veio com o violão no peito, nunca mais me esqueço, improvisando tudo [...] Eu saí da casa dele neste dia umas onze horas da noite, eu de uniforme de colégio. Eu era primeiro ou segundo ano ginasial, uma coisa assim. Nunca mais me esqueço, nós nos conhecemos, ele tinha dezesseis e eu quatorze anos. Outro dia estava lembrando isso com ele: “Helinho, lembra quando você chegava na seresta [...]. A gente estava na seresta e aí de repente chegava o Helinho, chegava do quartel, tarde da noite, e aí ia lá pra seresta no Mackenzie, que é um clube que tem lá no Méier. Ia ver os amigos, que a gente já estava lá. Aí, a gente diz: “Helinho, toca aquela música que a gente gosta que você faça aí?”...que era um negócio que fazia o maior sucesso, sabe o que que era? Hino Nacional tocado em samba [...] Ele manda o “Ouviram do Ipiranga…” em samba e era o maior sucesso da seresta...(GUINGA In: Café lá em casa, 2016).

Por volta dessa mesma ocasião, além de suas tentativas de colocar letra nas músicas de Paulinho Cavalcanti, para observá-lo tocar seu violão, Guinga fazia mais algumas experiências com composição, entretanto os resultados, de forma geral, ainda, eram bastante simplórios, segundo ele próprio costuma evidenciar em algumas entrevistas analisadas para este trabalho. À vista disso, Guinga desde muito cedo já nutria interesse pela elaboração de novas melodias e percebia que tinha facilidade para isso. As primeiras tentativas parecem ter acontecido, de maneira bastante informal, como se confirma no trecho:

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Eu, novinho, sentia que tinha facilidade para fazer melodia, mas coisas bem infantis, coisa de criança mesmo. E, eu com meus quatorze anos, um amigo meu que era dentista [...], ele tinha uns 28, era o dobro da minha idade...uma vez ele me pegou na rua, nunca mais esqueço, esse é meio que culpado de eu ser compositor. Ele disse: “Guinga, dei minhas letras pro Juninho musicar [...], [mas ele] não quis nem saber das minhas letras, não me deu uma resposta. Bota música nas minhas letras”. Eu digo: “Mas eu nunca fiz uma música” [...] “Você sabe compor, você vai fazer, você é muito inteligente..” (GUINGA In: Café lá em casa, 2016).

CARDOSO(2006) comenta algumas declarações de Guinga sobre as suas primeiras experiências, ao elaborar melodias, mostrando que, para Guinga, traziam resultados bastante ingênuos, mas confirmando que desde aquela época ele já parecia ter como principal intuito tornar-se de fato um compositor.

Guinga já compunha desde os 12, 13 anos músicas que classifica como “bobagens juvenis”, mencionando ainda, talvez lembrando ingenuamente, o desejo infantil de tornar-se um “compositor brasileiro” (“meu sonho sempre foi ser um compositor brasileiro”) (CARDOSO, 2006:31).

Porém, em 1967, aos dezesseis anos, Guinga conseguiu ser classificado com sua composição Sou só solidão, feita em parceria com Paulo Faia, no II Festival Internacional da Canção, o que acabou por representar a entrada definitiva para o mundo musical profissional. Em pouco tempo, estava trabalhando como músico acompanhante de diferentes artistas, como Alaíde Costa e João Nogueira. Alaíde Costa teve um papel muito importante nessa fase para a carreira de Guinga, já que foi a primeira a lhe dar uma oportunidade de trabalhar como músico acompanhante. Posteriormente, nos anos 1970, Guinga teve algumas de suas composições gravadas por artistas como , e MPB-4. CARDOSO (2006) relata aqui como essas gravações e parcerias acabaram facilitando a entrada de Guinga no meio musical:

Poucos anos depois iniciou-se a carreira de Guinga como compositor em disco, através de três gravações, realizadas por Gilson Peranzzetta e pelo quarteto vocal MPB- 4 – este grupo grava as músicas “Maldição de Ravel” e “Conversa com o coração”, duas parcerias com Paulo César Pinheiro, em um LP lançado em 1974 chamado “Palhaços e reis”. Essa estreia ocorreu em parte graças às suas parcerias com este letrista, por seu já grande prestígio no início da década de 70 devido às parcerias com Baden Powell, o que facilitou o acesso de Guinga aos meios artísticos e musicais neste período (CARDOSO, 2006:31).

Entretanto, nessa época, para Guinga, a parte financeira era bastante complicada, pois não era fácil sobreviver apenas com o que ganhava como músico e compositor. Assim, 25

acabou se matriculando no curso de odontologia da Universidade Fluminense, em 1970, buscando assim garantir o seu sustento de forma mais eficiente, sendo que era, também, bastante estimulado por seu pai neste aspecto. Vale lembrar ainda que sua esposa Fátima costumava, nesse período, estimular Guinga a fim de que procurasse focar em suas composições, dando prioridade à sua própria carreira em vez de ficar prestando serviços para outros músicos. Foi o que acabou acontecendo e, em 1974, Guinga deixou de acompanhar João Nogueira. Apesar dessas dificuldades, vale lembrar que por volta desta época Guinga alcançou um relativo sucesso comercial, já que a cantora Clara Nunes gravou, em seu bem-sucedido LP Claridade, a música Valsa de Realejo, composta por Guinga, o que proporcionou ao violonista uma boa quantidade de dinheiro, sendo suficiente para que pudesse se casar.

Segundo Fátima, naquela época, o trabalho de Guinga era essencialmente voltado a ser violonista acompanhador de outros músicos, sua carreira de compositor não tendo o mesmo espaço em sua vida - apesar do compositor já ter uma obra em parceria com Paulo César Pinheiro. Fala-nos igualmente sobre a dificuldade de Guinga, sua insegurança sobre a viabilidade comercial de suas músicas, seu medo de ver suas músicas incompreendidas pelas pessoas, que lhe afirmavam sempre serem suas composições demasiadamente difíceis, herméticas e rebuscadas. Sua mulher incentivava-o sempre a investir na sua própria carreira de compositor, sugerindo largar o ofício de acompanhador de outros músicos – o que foi feito em 1974, quando Guinga parou de acompanhar João Nogueira. Na sequência, o compositor iniciou seus estudos com Jodacil Damasceno (CARDOSO, 2006:32).

Quando se formou em odontologia, em 1975, aos poucos foi se afastando ainda mais dos palcos e se concentrou nessa área, atividade que exerceria ainda por muitos anos e seria muito importante para o seu sustento. Assim, a partir dessa época, Guinga ficaria por volta de quinze anos sem maiores exposições, mas compondo de forma intensa novos temas instrumentais, além das canções que fazia ao lado de Paulo César Pinheiro. Ainda com relação à parte musical, Guinga acabou focando mais em suas composições e também nas aulas de violão com o professor Jodacil Damasceno, com quem estudou por cinco anos, entre 1976 e 1981, e que contribuiu de forma intensa para a elaboração da personalidade musical de Guinga em seu instrumento, já que teve, por intermédio de Jodacil, um contato intenso com diversos elementos que se tornaram muito relevantes em sua maneira de tocar violão e compor, afastando-se de forma definitiva de sua carreira de músico acompanhador. CARDOSO (2006) ressalta:

Antes de encontrar o professor Jodacil Damasceno, Guinga já havia feito aulas com diversos professores, como o maestro Guerra-Peixe, Fernando Azevedo, Sérgio Carvalho, Raimundo Nicioli Queiroz e Bohumil Med, com 26

os quais teve aulas de solfejo, modos, cifra de violão e percepção musical. Segundo o compositor, pouca coisa foi bem aprendida durante essas lições, das quais destacamos de sua fala o elo estabelecido com o compositor Guerra- Peixe e sua música (CARDOSO, 2006:32).

É certo que as aulas com Jodacil foram muito importantes para Guinga, nesse período, pois Jodacil apresentou-lhe diversos compositores com os quais não tinha tido contato anteriormente, fazendo, assim, um trabalho muito consistente de apreciação musical, além de focar em aspectos técnicos do instrumento, de forma a melhorar a sua digitação e sonoridade. Guinga não tinha a intenção de se tornar um concertista e nem considerava ter a disciplina necessária para isso e, de alguma maneira, Jodacil entendeu qual seria o seu caminho e procurou mostrar-lhe elementos que pudessem contribuir para a sua musicalidade. Guinga tinha interesse pelas peças estudadas, mas muito mais pelo aspecto composicional do que por sua execução. Raramente conseguia concluir o estudo de uma peça inteira, pois, no meio do estudo, perdia o gosto e começava a compor novos materiais.

Guinga apresenta uma visão semelhante quanto ao caráter das lições e ao rumo tomado nestas aulas: tratou-se antes de uma fonte de inspiração, de um conhecimento do universo da música e do violão, do que de uma proposta de estudo tradicional, na qual aprenderia a tocar com perfeição o repertório em questão. Como o próprio Guinga afirma, ele dificilmente chegava a estudar uma música inteira, pois o estudo das peças lhe trazia uma vontade de compor, “e o compositor sempre falou mais alto”. As músicas estudadas traziam sempre um mote para novas criações, e essa veia era sempre preferida e colocada em primeiro plano, mesmo secundarizando o estudo sistemático das peças em questão. O próprio Guinga afirma veementemente que o período de aulas abriu sua cabeça principalmente como compositor, já que ele nunca teve a proposta de ser um concertista, não tendo segundo ele “nem disciplina nem anatomia nas mãos para ser um concertista” (CARDOSO, 2006:34-35).

Como o aluno demonstrava que existia um grande interesse pela parte harmônica, Jodacil procurava indicar-lhe compositores contemporâneos, como, por exemplo, Ravel, entre outros, fazendo, inclusive, transcrições especialmente para ele. Assim, esse encontro com Jodacil trouxe muitas inspirações a Guinga, visto que Jodacil ampliou não somente o seu universo de violão, mas propiciou-lhe ferramentas, para o seu lado compositor, colocando-o em contato com um universo musical bastante abrangente. Embora já tivesse conhecimento de Villa-Lobos, por exemplo, Jodacil foi o responsável por mostrar Leo Brouwer a Guinga. Antes dessa época, ele não tinha ciência da obra do compositor cubano. Contudo estudou também Agustin Barrios e os espanhóis Granados, Tarrega, Albeniz e Manuel de Falla, entre outros. 27

Além de Paulinho Cavalcanti, Hélio Delmiro e Jodacil Damasceno, conforme CARDO outro violonista teve grande importância ao aprimoramento de Guinga, tendo sido, além disso, uma grande influência: Chiquito Braga. Falecido no ano de 2018, Chiquito tocava violão, guitarra, viola de 12 cordas, cavaquinho e bandolim. Coincidentemente, assim como Guinga, teve nas harmonias de Ravel, com as quais teve contato muito cedo, outra grande influência. Consta que tinha o pianista, arranjador e compositor Stan Kenton como uma grande referência, justamente por causa das inovações harmônicas que esse fazia. Como estudo, era frequente que Chiquito tirasse de ouvido diversas partes dos arranjos deste compositor, tanto o acompanhamento quanto os sopros para adaptá-las em seu vocabulário no instrumento, aplicando, assim, novas aberturas de acordes e conduções de vozes nos standards que tocava em orquestras e demais conjuntos de Belo Horizonte. Vale lembrar que Chiquito já fazia seus arranjos em bloco no instrumento, no fim da década de 1950, fato não muito comum aos guitarristas de sua época e região. Assim, trouxe muitas novidades para os músicos de Belo Horizonte no fim dos anos 1950 e começo dos anos 1960. No início de sua carreira, em meados dos anos 1950, fez parte de alguns grupos de baile e, posteriormente, acompanhou músicos como Tito Madi, Agostinho dos Santos, Sérgio Ricardo e Elizeth Cardoso, sendo que acompanhou esta última, em uma excursão sul- americana, que realizou no disco Canção do Amor Demais, lançado em 1958 e que representa um marco bastante importante na história da Bossa Nova. No ano de 1966, Chiquito se mudou para o Rio de Janeiro, a convite do maestro Moacir Santos, com quem estudou harmonia, fuga e contraponto, entre outros tópicos. Nesta cidade, Chiquito desenvolveu uma sólida carreira acompanhando artistas, fazendo arranjos e gravações. Fez trabalhos em estúdio e na televisão, com trilhas de novelas e de filmes. Ao longo dos anos, trabalhou também com artistas como Taiguara, Gilberto Gil, Jards Macalé, Dorival Caymmi, Fafá de Belém, Alaíde Costa, Tim Maia, Leila Pinheiro, Gal Costa, Som imaginário, Maria Bethânia, Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano Veloso, Simone, Nara Leão, Zizi Possi, Fafá de Belém, Guinga e Ed Motta, entre outros. Apesar de ter realizado muitos trabalhos em estúdio, Chiquito realizou poucos registros de suas músicas. Lançou, no ano de 1992, o disco Instrumental CCBB, juntamente com Zezo Ribeiro e Alemão. O disco Quadros modernos, realizado ao lado de Toninho Horta e Juarez Moreira, foi lançado de forma independente em 2000. O primeiro disco feito totalmente com suas composições foi lançado, no ano de 2017, o Passeando Nas Nuvens. 28

O contato com a maneira de tocar de Chiquito Braga, usando acordes inusitados, investindo em novas relações com as cordas soltas do instrumento, foi muito marcante para Guinga, conforme ressalta CARDOSO (2006):

A concepção profundamente original do violão de Chiquito Braga marcou fortemente o compositor. Lembramos que Chiquito Braga é um violonista- compositor, que compõe em uma relação intrínseca com o instrumento, buscando neste as suas possibilidades composicionais. Leva o violão a novos limites, inventando novos acordes, novas relações com as cordas soltas, explorando o uso violonístico do instrumento. Este contato somou-se provavelmente às aulas com Jodacil Damasceno, já que a partir deste período, através do contato com o mundo violonístico de Villa-Lobos, Leo Brouwer e João Pernambuco, Guinga utiliza crescentemente certas características idiomáticas do instrumento ao compor (CARDOSO, 2006:34-35).

Embora já soubesse de Chiquito Braga desde os anos 1970, passou a ficar mais próximo deste aos anos 1990. A convivência com ele trouxe mudanças na maneira de Guinga enxergar as possibilidades harmônicas do violão. Considerava que Chiquito era um inventor de acordes, um descobridor de novas possibilidades de acompanhamento no braço do violão e, certamente, esse encontro somou novas possibilidades à musicalidade de Guinga. Como já citado, logo após se formar em Odontologia, Guinga ficou um período recluso, mais preocupado com a sua carreira como dentista e seu consultório que com a sua música, embora continuasse estudando e compondo canções e temas instrumentais, de modo contínuo, pensando, talvez, que aquele material nunca viesse ser conhecido ou que nunca seria gravado durante a sua vida. Quando teve a oportunidade de começar a trabalhar com um dos seus principais parceiros, Aldir Blanc, no final dos anos 1980, este último pediu-lhe que lhe mostrasse todo o material composto que tivesse, pois gostaria de ouvir tudo que fosse possível a fim de verificar onde seria possível encaixar letra. A partir desse encontro, como se verá adiante, um grande número de canções foi produzido e serviu de material aos primeiros discos, que foram lançados na década de 1990, no momento em que a carreira de Guinga passou a se desenvolver, seu nome passou a ser amplamente divulgado e ele praticamente deixou o consultório dentário.

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2. A ENTRADA DE GUINGA NA GRAVADORA VELAS

Como citado anteriormente, Guinga classificou, em 1967, a música Sou só solidão no II Festival Internacional da Canção. Essa música era uma parceria de Guinga com Paulo Faia, e este fato marcou a entrada do compositor no mundo profissional da música. Vale ressaltar, também, que durante os anos 1970, outras peças de Guinga foram gravadas por Clara Nunes, Elis Regina e MPB-4, mas depois Guinga passou um período relativamente grande afastado dos palcos, mas compondo intensamente temas instrumentais e canções, as quais, principalmente, ao lado de Paulo César Pinheiro. Além disso, as aulas de violão com o professor Jodacil Damasceno, entre 1976 e 1981, tinham acrescentado muito ao seu repertório violonístico e composicional. Porém, no final dos anos 1980, dois personagens importantes à história da música brasileira foram essenciais para que a carreira de Guinga se deslanchasse: Paulinho Albuquerque a Aldir Blanc. Evidente que não seria justo afirmar que apenas a articulação feita pelo produtor Paulinho e pelo letrista Aldir fosse o único fator responsável por essa mudança na carreira do compositor, todavia ambos, certamente, tiveram papéis de destaque à sequência de fatos que levou o violonista Guinga a ter seus cinco primeiros discos lançados pela gravadora Velas: Simples e Absurdo (1991), Delírio Carioca (1993), Cheio de Dedos (1996), Suíte Leopoldina (1999) e Cine Baronesa (2001). O objeto principal de interesse do presente trabalho é o terceiro disco do violonista, Cheio de Dedos. Lançado em 1996, este disco obteve os três prêmios Sharp no mesmo ano: Melhor disco instrumental1, Melhor música instrumental e Melhor produção, feita por Paulinho Albuquerque. Como é possível explicar o interesse pelo trabalho de um compositor como Guinga por parte da gravadora Velas, que parece ir totalmente na contramão das tendências mercadológicas de um período bastante conturbado do ponto de vista econômico e político? É sabido que no começo dos anos 1990 os executivos das gravadoras não tinham muita disposição em investir em novos artistas, ainda mais alguém com o perfil de Guinga, que não se encaixava nos segmentos de vendas realmente expressivas. Pelo que pôde ser verificado a partir da presente investigação, o produtor Paulinho Albuquerque exerceu um papel fundamental neste momento da carreira do compositor Guinga, pois sua parceria com Aldir Blanc estava rendendo bons frutos e assim ele defendeu a proposta de Guinga junto a e Vitor Martins. A

1 Apesar do disco “Cheio de Dedos” não ser totalmente instrumental, pois “Impressionados” traz a participação de Chico Buarque e “Aria de Opereta”, tem a participação de Ed Motta nos vocais. 30

gravadora Velas, que era de propriedade desses dois compositores, como se observou, nasceu do selo Velas. Sobre a entrada de Guinga para esta gravadora, Mario Marques destaca:

Aldir Blanc, seu novo amigo e parceiro, mais Paulinho Albuquerque buscaram ajuda. Solitários na empreitada, não tinham mais a quem recorrer. No início dos anos 90 reuniram-se com Vitor Martins, parceiro mais assíduo de Ivan Lins, e convenceram-no da importância de se produzir um disco de Guinga num momento em que a música instrumental brasileira respirava novos e alentadores acordes mesmo que diluída em pequenos selos e sem representatividade comercial (MARQUES, 2002: 62).

Assim, os três, inicialmente, tentaram incluir o trabalho de Guinga no cast de grandes gravadoras, mas não obtiveram respostas muito animadoras. Dessa forma, resolveram encarar a campanha por si mesmos, fundando a gravadora Velas, no Rio de Janeiro. Entretanto, o que começou como apenas um formato de lançar os discos de Guinga, cresceu e colocou também, no mercado, trabalhos de Ivan Lins, Ulisses Rocha e Teco Cardoso, Selma Reis, Zizi Possi e Edu Lobo, entre outros. Portanto a gravadora Velas foi uma iniciativa independente, tendo, inicialmente, sua finalidade em algumas vertentes da música brasileira, mas logo depois ampliou seu ramo de atuações.

A Velas foi criada em 1990 pelo produtor Paulinho Albuquerque e pelos compositores Vitor Martins e Ivan Lins, a partir do diagnóstico de que havia uma demanda insatisfeita no mercado por música popular de qualidade. Distribuída de maneira precária pela PolyGram e pela Continental, a empresa foi fechada em 1991 mas reaberta já no ano seguinte com estrutura completa de gravadora. A Velas chegou a reunir em seu catálogo alguns dos maiores nomes da MPB, como o próprio Ivan Lins, Edu Lobo, Zizi Possi, Leny Andrade, Cesar Camargo Mariano, Paulo Moura, Flávio Venturini, . Dominguinhos, Tavinho Moura, Pena Branca & Xavantinho, 14 Bis, Vânia Bastos e Fátima Guedes, entre outros. A gravadora também revelou artistas como Guinga, Chico César, Belô Velloso e Vânia Abreu. Nos primeiros cinco anos de sua existência a empresa teve distribuição própria e chegou a representar selos internacionais como Egren, gravadora oficial de Cuba; Varese, selo americano especializado em trilhas de cinema; além do catálogo da Walt Disney Company (VICENTE, 2002:344).

Percebe-se que a atuação da Velas foi bastante relevante neste período, pois lançou discos de artistas como Guinga, Chico César, Lenine, Rita Ribeiro, Vânia Abreu, , Quarteto Jobim Morelenbaum, além de trabalhar com nomes consagrados como Edu Lobo, Fátima Guedes e Zizi Possi. A boa aceitação de seus produtos lançados, que, em sua maioria, eram do segmento MPB e da música instrumental, estimulou a transformação do selo em uma gravadora, o que poderia tornar o negócio mais vantajoso, dado que seria possível produzir e distribuir os seus produtos para o Brasil, Estados Unidos, Europa e Japão. Assim, a Velas 31

chegou a abrir, no ano de 1996, escritórios para a sua representação em Barcelona e Los Angeles, além de representar no país selos internacionais como o cubano Egren e outros. Sendo uma empresa independente e apesar de ter seu objetivo inicial na música brasileira, posteriormente ampliou e segmentou a sua atuação no mercado fonográfico. Chegou a cogitar sua entrada em outros segmentos, ao distribuir discos da gravadora Roadrunner Records, no Brasil, como os da banda Sepultura, assim como da Walt Disney Records. No início de 1998, a Velas passou a se dedicar, exclusivamente, a produzir e divulgar os seu produtos, de forma que sua distribuição foi transferida para a Eldorado. No ano de 1999, no entanto, a distribuição do catálogo da Velas foi transferida para a Universal e, em 2001, para a Sony, entre outras. A gravadora Velas chegou a receber alguns Prêmios Sharp por alguns de seus títulos lançados, além de indicações para o Grammy Latino de 2001, 2002, 2003 e 2004 e, também, Cubadisco de 2002. A partir de 2007, a gravadora Galeão tornou-se responsável por administrar todo o catálogo da gravadora Velas, continuando, assim, com a distribuição nacional de seus CDs e DVDs e cuidando da distribuição digital mundial, que, nesse tempo, começara a ganhar alguma notoriedade. A Galeão, por sua vez, foi adquirida depois pela The Orchard.

2.1. Panorama dos cinco primeiros álbuns de Guinga O primeiro disco, Simples e Absurdo, foi lançado em 1991 pela gravadora Velas, tendo sido gravado nos Estúdios Chorus, no Rio de Janeiro, sendo produzido por Paulinho Albuquerque e, basicamente como conteúdo diversas parcerias entre Guinga e Aldir Blanc. O disco contém as seguintes faixas: Canibaile; Sete Estrelas; Lendas Brasileiras, Paixão Descalça; Ramo de Delírios; Zen-Vergonha; Rio-Orleans; Simples e Absurdo; Quermesse; Odalisca; Nem Cais, Nem Barco. Há diversas participações neste disco: Leila Pinheiro em Canibaile, Chico Buarque em Lendas Brasileiras, Claudio Nucci em Ramo de Delírios, Ivan Lins em Rio-Orleans, Leny Andrade em Nem Cais, Nem Barco, entre outras. Nessa época, a carreira de Guinga ainda não tinha o alcance de divulgação que passou a ter logo depois do disco Cheio de Dedos. Tem-se uma ideia de como foi a repercussão do disco Simples e Absurdo, assim como a maneira como ele estava sendo divulgado com base em algumas considerações de CABRAL(2003):

O disco teve uma excelente repercussão, particularmente na imprensa escrita, já que a rádio e a televisão estavam, já há muito tempo, afastados da boa música popular brasileira. O lançamento foi feito no Jazz Club, onde Guinga aventurou-se a cantar para uma casa lotada (na verdade, composta por amigos e admiradores), com a ajuda de Leila Pinheiro e Cláudio Nucci, além do 32

tecladista Paulo Malaguti e do saxofonista e flautista Zé Nogueira. O crítico de música popular e publicitário Franco Paulino, seu cliente na clínica odontológica, ficou de tal maneira entusiasmado com o disco Simples e Absurdo que sugeriu a Guinga cantar em São Paulo, onde ainda era um desconhecido (CABRAL, 2003: 14).

O segundo trabalho, Delírio Carioca, gravado e lançado, em 1993, também, pela Velas, foi produzido no mesmo estúdio do anterior. Esse álbum tem as faixas Delírio Carioca; Saci; Par ou Ímpar; Passarinhadeira; Nítido e Obscuro; Canção do Lobisomem; Catavento e Girassol; Viola Variada; Choro pro Zé; Age Maria; Baião de Lacan; Mise-en-Scène; Henriquieto; Visão de Cego; além de uma versão instrumental de Delírio Carioca. Entre essas faixas, duas são parcerias de Guinga e Paulo César Pinheiro: Saci e Passarinhadeira. Todas as demais são assinadas por Guinga e Aldir Blanc. Em contraponto com o disco de estreia, esse disco possui a particularidade de Guinga cantar, em quase todas as faixas, mas também participaram Djavan, cantando na faixa título, Delírio Carioca, e Leila Pinheiro em Baião de Lacan. O disco teve seu lançamento feito no mesmo lugar do trabalho anterior, conforme evidencia CABRAL (2003).

O disco foi, mais uma vez, lançado no Rio Jazz Club, onde Guinga viveu uma das mais importantes emoções da sua carreira: ao cantar Catavento e Girassol, o imenso público que superlotava a casa cantou com ele em coro, numa alegria digna da velha Rádio Nacional (CABRAL, 2003: 15).

Com base nessa citação, apreende-se que, aos poucos, era desfeito certo estigma de que Guinga era um compositor que compunha somente melodias difíceis e complexas e que só poderiam ser cantadas por ele mesmo ou por cantores profissionais pelas dificuldades inerentes à boa parte de seu repertório. Ao mesmo tempo em que se tratava de um material extremamente elaborado, como no caso da faixa Catavento e Girassol, cuja melodia, harmonia e arranjo são bastante sofisticados, era algo que podia ser cantado e gravado na memória do ouvinte de forma relativamente fácil. Na sequência, o disco Cheio de Dedos, objeto principal de nossa investigação, foi gravado nos Estúdios Discover, no Rio de Janeiro, entre agosto e setembro de 1996 e lançado, nesse mesmo ano, também, pela gravadora Velas, trazendo assim 15 faixas: Cheio de Dedos; Dá o Pé, Loro; Impressionados; com participação de Chico Buarque, Inventando Moda; Nó na Garganta; Me gusta a Lagosta; Picotado; Ária de Opereta; com participação de Ed Motta, Divagar, Quase Pairando; Rio de Exageros; com participação do pianista Chano Dominguez, Blanchiana; Por Trás de Brás de Pina; com participação do grupo Nó em Pingo D´água, Desconcertante; que teve a participação do grupo cubano Diapasón, além de Sinuoso e de um 33

segundo arranjo para a faixa título, Cheio de Dedos, elaborado por Carlos Malta. Esse disco elenca alguns elementos diferentes dos anteriores, como o fato de boa parte das faixas serem peças instrumentais compostas por Guinga e, não necessariamente serem parcerias entre Guinga e Aldir Blanc, como aconteceu com a maior parte das faixas presentes nos dois discos anteriores. Certamente, esse foi o trabalho que trouxe maior divulgação ao nome de Guinga, já que, como se verificou, caiu no gosto da crítica, acontecimento que não havia sido consolidado até então, como se verá em algumas resenhas e notas sobre esse disco, transcritas em capítulo posterior. Boa parte das características peculiares de suas composições e arranjos, que obtiveram atenção de críticos, músicos e admiradores, após o lançamento do disco Cheio de Dedos, existia muito antes do lançamento desse álbum, pela maneira peculiar como costuma elaborar a grande maioria de suas melodias intrincadas, de suas harmonizações pouco usuais e uso recorrente de recursos idiomáticos2 do violão. Apesar disso, esse disco ficou marcado na carreira de Guinga, sendo considerado como um dos mais emblemáticos de sua carreira e, talvez, o mais conhecido por seu público. Sobre a reação da crítica ao disco, vale destacar:

A crítica elege o disco seguinte, Cheio de Dedos, que sai três anos depois, em 1996, como o seu preferido até então. Nele Guinga faz um corte abrupto com seus dois trabalhos registrados anteriormente. Fazer um disco instrumental interrompia suas intenções de tornar-se popular (MARQUES, 2002: 67).

Assim, pode-se dizer que o ano de 1996 foi muito importante à carreira de Guinga. O lançamento do disco Cheio de Dedos, tendo faixas cantadas por Ed Motta e Chico Buarque, alcançou uma repercussão bastante respeitável, como se verá adiante no capítulo dedicado à recepção desse trabalho na imprensa. Vale lembrar que, nesse mesmo ano, a cantora Leila Pinheiro lançou um novo disco totalmente dedicado à parceria entre Guinga e Aldir Blanc, Catavento e Girassol:

O belo disco de Leila Pinheiro vendeu mais de 100 mil exemplares, desfazendo a velha história de que Guinga é um compositor “difícil”. Mas o próprio compositor foi surpreendido com tanto êxito. Disse ele: “Desde Bolero de Satã na voz de Elis Regina, não experimentava a sensação de ouvir minha música no rádio como acontece com Catavento e Girassol. Isso é tudo que quero na vida. Nada de ficar preso na gaveta. Não quero ser cult” (CABRAL, 2003: 18).

2 CARDOSO(2006) trata de forma bastante detalhada em seu texto a questão do idiomatismo nas composições de Guinga. Assim, como considero que este conceito está muito bem explorado neste trabalho, optei por não abrir aqui esta discussão. Entretanto, no capítulo com as análises de algumas peças selecionadas, voltarei diversas vezes para este conceito. 34

No disco Catavento e Girassol, foram gravadas as faixas: Catavento e Girassol; Canibaile; O Coco do Coco; Neblina e Flâmulas; Valsa para Leila; Chá de Panela; Baião de Lacan; Para Quem Quiser Me Visitar; Samba de um Breque; Exasperada; Cordas; Exílio e Paraíso; Luas de Subúrbio e Madeira de Sangue, sendo que todas as composições são parcerias entre Guinga e Aldir Blanc. No ano de 1999, mais um trabalho de Guinga foi finalizado, Suíte Leopoldina, gravado nos estúdios Discover, entre dezembro de 1998 e fevereiro de 1999 e, novamente, lançado pela gravadora Velas. Novos parceiros que não haviam sido gravados anteriormente aparecem nesse disco, como Nei Lopes, Celso Viáfora, Mauro Aguiar e Mariana Blanc. Esse disco possui as faixas: Dos Anjos, com participação de Toots Thielemans; Parsifal, com participação de Chico Buarque e Nei Lopes; Di Menor; Sargento Escobar; Chá de Panela, com participação de Alceu Valença; Choro Perdido, Noturno Leopoldina, Guia de Cego, com participação de Ivan Lins; Perfume de Radamés; Par Constante, com participação de Ed Motta; Cortando um Dobrado; Mingus Samba; com participação de Lenine; Dissimulado; Constance, a qual, também, com participação de Toots Thielemans. Sobre o título do disco, vale lembrar que, embora tenha nascido em Madureira, Guinga foi criado em Jacarepaguá e sempre manteve certo vínculo com Leopoldina, transparecendo essa ligação pelas citações em seu repertório de lugares, como a Igreja da Penha, Brás de Pina3, entre outros.

Tudo isso tem uma explicação: seu pai nasceu na Penha e sua mãe na Olaria. Além disso, nunca deixou de frequentar a Leopoldina desde a infância. Ainda era um jovem músico quando iniciou sua amizade com um ilustre morador da Penha, o bandolinista Joel Nascimento. Guinga era um dos frequentadores do Sovaco da Cobra, o botequim que reunia a fina-flor do choro carioca. (CABRAL, 2003: 18).

Já Cine Baronesa, também lançado pela gravadora Velas e gravada nos Estúdios Discover, entre dezembro de 2000 e janeiro de 2001, traz 13 faixas: Melodia Branca; Cine Baronesa; Vô Alfredo; Nem Mais Um Pio; Yes, Zé Manés; Caiu do Céu; No Fundo Do Rio; Estonteante; Geraldo No Leme; Fox e Trote; Como Eu Imaginara; Orassamba e um arranjo adicional para Melodia Branca. Esse trabalho mostra outras composições da parceria com Aldir Blanc, como a faixa-título Cine Baronesa; Vô Alfredo; Yes, Zé Manés e Orassamba; assim como composições ao lado de outros parceiros, como Nei Lopes, No Fundo Do Rio e Fox e Trote; Sérgio Natureza em Nem Mais Um Pio e Hermínio B. de Carvalho em Como Eu Imaginara. Em outras faixas, como Melodia Branca; Caiu do Céu; Estonteante e Geraldo no

3 Como será possível verificar adiante, na análise da faixa Por Trás de Brás de Pina, presente no disco Cheio de Dedos. 35

Leme, a assinatura é somente de Guinga. Quanto às participações em Melodia Branca Guinga trouxe Fátima Guedes e o Quarteto Maogani, em No Fundo Do Rio Nei Lopes e Sérgio Cabral, enquanto em Yes, Zé Manés, participa Chico Buarque e, em Fox e Trote, novamente o Quarteto Maogani. O disco Cine Baronesa foi produzido de igual modo por Paulinho Albuquerque e lançado em 2001, sendo que este trabalho traz novas referências às origens de Guinga, pois o compositor, mais uma vez, fez mais uma viagem à sua infância e trouxe de volta o Cine Baronesa no título deste trabalho, lembrando o nome do cinema que frequentava em Jacarepaguá na sua juventude.

2.2. A contribuição do produtor Paulinho Albuquerque Considerado como um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da carreira do violonista Guinga, Paulo Roberto de Medeiros e Albuquerque, ou simplesmente Paulinho Albuquerque, como era conhecido, foi produtor e diretor musical, mas também foi iluminador e advogado, sendo que era um amigo de longa data de Guinga. Junto com Aldir Blanc, foi um dos responsáveis pela entrada de Guinga na gravadora Velas, fato de grande relevância nesta fase da sua carreira. Como se verá a seguir em diversos depoimentos colhidos pra este trabalho, é interessante notar que diversas pessoas próximas ao Guinga evidenciaram a importância de Paulinho para a carreira do compositor. Por outro lado, MARQUES(2002) ressalta que Paulinho Albuquerque adentrou o meio musical quase que por acidente:

Paulinho Albuquerque, um dos articuladores e principais responsáveis pelo empurrão inicial na carreira de Guinga, entrou na música por acaso. Advogado de marcas e patentes nos anos 70, não era músico, mas pisou no solo do meio artístico assim que lhe deram uma brecha. Levava jeito. Na década de 80 trabalhou como assistente de produção de três discos de Djavan, em 80, 82 e 86. Em 1985, passou a se dedicar à curadoria do Free Jazz Festival, na primeira edição do Evento (MARQUES, 2002: 62).

Esse produtor esteve envolvido com diversos outros trabalhos além dos elencados por Mario Marques. Verificou-se também que se formou em Direito pela UERJ em 1964 e exerceu a profissão até 1978, trabalhando com direitos autorais, assim como também com direito industrial. A partir do final dos anos 1970, esteve envolvido com diversas gravadoras e editoras. Ou seja, antes do trabalho com Guinga e com a gravadora Velas, ao lado de Ivan Lins e Vitor Martins, Paulinho Albuquerque esteve ligado a diversos outros projetos envolvendo produção musical. Sobre o trabalho de Paulinho Albuquerque, ao lado de Guinga, convém ressaltar:

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Com Guinga, Paulinho foi o que no futebol se chama de “distribuição de camisas”: apitava na estética, mas seu papel principal era o de escolher os músicos, selecionar os arranjadores e arregimentar convidados. Confiava nas pessoas que escolhia. Sabia que precisava associar o nome do Guinga a artistas convidados. Acreditava que, dessa forma, o produto - a música de seu pupilo e a letra de Aldir - ganharia peso na mídia. Como realmente ganhou. (MARQUES, 2002: 63).

Papito Mello, baixista do grupo Nó em Pingo D´água, à época da gravação do disco Cheio de Dedos, enfatiza algo próximo dessa declaração de Mário Marques:

O Paulinho, acho que o grande barato do Paulinho era conseguir juntar as pessoas certas, deixar todo mundo à vontade, entendeu? E ter as opiniões críticas ditas de uma forma sempre bem-humorada, uma forma sempre bem educada e pertinente. Então era muito fácil, as vezes que eu trabalhava com o Paulinho era muito fácil, assim, trabalhar com ele (MELLO, 2019).

Em outro depoimento para este trabalho, ARAGÃO (2019) relata diversos aspectos relacionados à maneira de trabalhar de Paulinho Albuquerque e Guiga. Embora não tenha participado do processo de produção do Cheio de Dedos, dando início às suas colaborações ao trabalho de Guinga a partir do disco Cine Baronesa, lançado alguns anos depois, julgou-se importante transcrever alguns trechos de seu depoimento, já que este contém diversas informações sobre como era a convivência e o trabalho com o produtor Paulinho Albuquerque, o que pode ser bastante útil para compreender como costumava ser a interação desse produtor com os músicos e arranjadores. A gente estava convivendo com o Guinga nesse época, começando a conviver [O grupo Maogani], e a gente convidou o Guinga para participar do nosso disco, e ele foi, ele tinha gostado muito do trabalho, tinha uma troca musical bacana, e a gente conheceu através dele o Paulinho [Albuquerque], que era o produtor de sempre dos discos dele, e a gente fez nesse disco, o Cine Baronesa, duas faixas. [...] A gente convivendo com o Guinga ele mostrou várias músicas pra gente, e se eu bem me lembro foi ele mesmo que sugeriu a valsa, o Cine Baronesa mesmo, e o Fox e Trote. Nos dois casos, a gente gravou o violão dele, aprendeu a tocar o violão dele, foi pra casa, fez o arranjo, ensaiou e chegou no estúdio com uma coisa pronta [...] Mostramos para ele [Guinga], houve uma interação. Eu lembro que tinha feito, no Cine Baronesa, uma introdução que era maior, que era mais extensa, um introdução enorme e tal [...] A gente mostrou isso pro Guinga e pro Paulinho, o Guinga adorou, o Paulinho deu algumas sugestões. O Paulinho era um cara muito musical, apesar de não ser músico propriamente. Mas era um cara que conhecia muita música, melômano, um cara que tinha uma cultura musical enorme, convivia com música desde sempre e tal, e era um cara esperto nesse sentido. Então ele que falou: “Essa introdução acho que está um pouco longa, vamos cortar”. E corta daqui, corta dali. Chegamos antes do estúdio, foi até na minha casa [...], onde eu morava na época, e assim foi. Quando chegou no estúdio, chegou com tudo pronto e gravamos (ARAGÃO, 2019).

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A partir de diversas entrevistas com músicos que participaram do processo de gravação do disco Cheio de Dedos, fica evidente que Paulinho e Guinga eram muito próximos e que o produtor desempenhou um papel essencial na elaboração deste trabalho. Embora alguns arranjos presentes no disco, por exemplo, já fossem tocados e aprimorados antes das seções de gravação, como foi o caso de Por Trás de Brás de Pina, que o grupo Nó em Pingo D´água já levou para o estúdio de forma bastante coesa, é notório, a partir dos diferentes testemunhos dos músicos envolvidos, que, em boa parte das músicas, as suas sugestões tiveram um papel essencial, como, por exemplo no arranjo para sopros feito por Carlos Malta para a peça Cheio de Dedos, ou então para Ária de Opereta. É bastante interessante evidenciar esse processo de arranjo, para algumas dessas faixas, já que o nível de dificuldade dessas músicas é grande, e Lula Galvão, por exemplo, relatou, em seu depoimento, que algumas das músicas que gravou foram aprendidas por ele, no momento da gravação, sem que se tivesse muito tempo para se preparar para a performance. ARAGÃO (2019), em seu depoimento, declara ter presenciado os dois tipos de ocorrência, nas ocasiões em que teve a oportunidade de trabalhar com Guinga.

Neste disco [Cine Baronesa] e em outros discos eu vi muitas vezes esse tipo de situação onde era um arranjo montado mais ou menos no estúdio. Mas, mais do que montado no estúdio, eu acho que era um arranjo assim, que era esse tipo de arranjo que vestia, vamos dizer assim, o violão do Guinga. Eu vi muitas vezes o Guinga passando a música na hora com o Jorge Helder, que é um cara que tinha muita experiência e conhece o Guinga profundamente e tal, ia lá na hora, aprendia a tocar e vamos lá. O Lula também é um cara que conhece profundamente a música do Guinga e tem um encaixe extraordinário com o Guinga. Por exemplo, no caso do Cheio de Dedos, apesar de não ter visto, acho totalmente plausível [...] O Guinga de uma certa maneira, mandava [...] Acho que o Lula chegava com uma ideia de acompanhamento no estúdio, já conhecia a música, e aí certos detalhes, por exemplo, vamos dobrar essa melodia, vamos abrir mais um canal, como às vezes ele fazia, aí, sim, isso era feito na hora. Realmente era esse tipo de procedimento: Os arranjos do Gilson Peranzzetta, certamente era uma coisa que era feita antes, Já chegava tudo pronto na hora. Os arranjadores que ele trabalhava, o Leandro Braga, certamente [era feito] antes [...]. Depois, no disco seguinte, que foi o Noturno Copacabana, que era o meu caso, também a gente fez tudo antes, mostrei tudo pro Guinga, ele aprovou as coisas, os arranjos, entendeu? E claro, você tem algum nível de criação no estúdio, em termos dos detalhes, em termos da base, e mesmo do próprio arranjo, coisas que se modificam. O Proveta, também, o arranjo já chegava pronto, esses arranjos maiores, vamos dizer assim. Essa é a lembrança que eu tenho, era mais ou menos assim que acontecia (ARAGÃO, 2019).

O arranjador e violonista Paulo Aragão conviveu aproximadamente por uma década com Paulinho Albuquerque. Com o tempo, acabaram se aproximando e criando laços que iam além dos trabalhos de transcrições, arranjos, gravações e demais etapas de produção 38

musical. Embora em grande extensão, transcreve-se, neste contexto, mais um trecho de seu depoimento, que se pode considerar bastante esclarecedor sobre a maneira como Paulinho Albuquerque costumava realizar seu trabalho de produção musical.

O Paulinho era um cara que tinha uma cultura musical muito grande, era um cara que conviveu na música brasileira muito intensamente com todos os movimentos de tudo que é tipo que aconteceram contemporâneos a ele, era um cara que tinha um conhecimento muito grande. Eu lembro de ter excelentes conversas com ele sobre a música brasileira [...], sobre os sambistas, [ele] adorava samba e conhecia muito o samba. Tem até uma foto dele, não sei se você conhece essa foto, dele criancinha, assim com o pai dele, ele e o Wilson Batista. O pai dele era jornalista, e tinha ido entrevistar o Wilson Batista. Um dos primeiros caras a entrevistar o Wilson Batista. Então ele tinha uma referência da música brasileira, do samba, e depois do jazz. Ele foi para os Estados Unidos, durante anos era ele quem organizava, era o curador do Free Jazz. Então ele era um cara que era muito atuante, assim ele produziu muita gente [...], Ivan Lins, ele produziu muito tempo...Nei Lopes, você vê, [ele era] muito eclético, [ele] adorava o Nei Lopes. Ele era muito próximo do Nei Lopes, produziu muitas coisas do Nei Lopes. Ele praticamente que descobriu, [e foi] o primeiro produtor do Djavan. Como produtor, ele não era exatamente um músico, até tocou alguma coisa, não me lembro...Mas assim, ele não era um músico de formação, não era um cara que ia pegar uma partitura e discutir com você e tal, apesar de conhecer muita música [...], e de interferir de uma maneira legal. Eu lembro dos dois ou três discos que eu participei mais ativamente do Guinga com ele produzindo, da gente conversar: “não, nessa faixa, vamos pensar a instrumentação…”, e ele sabia tudo, de uma vivência muito grande de estúdio, enfim…Ele era um cara intuitivo, e era um cara que conhecia muita coisa, e era uma figura muito generosa comigo, ele gostava de mim, a gente se encontrava até fora do ambiente de música, a gente ia a jogo de futebol juntos, eu sou bem mais novo do que ele, mas a gente era botafoguense, a gente ia pro estádio...eu fui algumas vezes lá pra Caio Martins, ver jogo ruim pra caramba, este tipo de coisa...Então eu tinha uma amizade com ele, era um cara que foi muito legal, muito generoso comigo. A gente fez muito trabalho com o Maogani, ele gostava do trabalho do Maogani e ajudou nesse início de carreira e tal. Então, assim, as lembranças que eu tenho...e ele tinha um formato na cabeça dele assim, dos discos, e ele foi um cara muito importante no trabalho do Guinga. Eu acho que ele era um cara de juntar pessoas. Esses casamentos que ele fez em relação à obra do Guinga...Claro que, com o tamanho da produção que eles tiveram, [foram] vários discos, e num momento em que o Guinga ainda estava se afirmando [...]. Foram uns dez anos de convivência minha com ele, com o Guinga, trabalhando, foram uns dois ou três discos [em] que eu participei mais ativamente. Eu fiz muita coisa nessa época com o Guinga, tudo o que ele precisava de partitura, eu ia, escrevia e tal. E aí comecei a fazer alguns arranjos para ele, quer dizer, já tinha feito no Cine Baronesa, tinha acompanhado bem de perto a gravação toda do arranjo do Gilson, tava lá aprendendo na verdade. E aí, em 2002 ou 2003 o Guinga resolveu me chamar para fazer os arranjos do disco Noturno Copacabana, e aí para mim foi uma fogueirona, porque também eu nunca tinha feito um trabalho assim, já tinha uma experiência de arranjador, já tava rolando, já tava trabalhando, escrevendo para orquestra, mas nunca tinha encarado fazer um disco inteiro. E foi um tremendo desafio esse disco. E aí foi muito legal, o Paulinho ajudou 39

também muito e tal. Lembro até o primeiro dia, gravação de cordas [...]. Foi o primeiro arranjo de cordas que eu fiz dirigido em estúdio, que foi O Silêncio de Iara. E eu todo cheio de dedos com os caras, com os músicos [...]. O Paulinho me puxou de canto: “Fala com esses caras aí, afina isso aí, dá bronca neles” [...]. Ele me botando pilha pra eu ter uma autoridade maior. Pra mim foi um teste de fogo, e foi muito generoso da parte dele (ARAGÃO, 2019).

Assim, é fato que Paulinho Albuquerque exerceu um papel essencial à produção do disco Cheio de Dedos, assim como em toda a fase dos primeiros discos de Guinga lançados pela gravadora Velas. Mas também, nessas declarações, nota-se que Paulinho Albuquerque foi uma peça-chave no processo de produção e desenvolvimento da carreira do compositor de uma forma bem mais ampla nessa época e teve participação muito ativa, em diversas etapas dos arranjos de outros discos, como, por exemplo, Cine Baronesa e Noturno Copacabana, como, a partir das situações descritas por ARAGÃO (2019), assim como também teve um papel muito importante nessa fase da carreira do próprio Paulo Aragão, visto que havia uma presença bem constante, no estúdio, quando este arranjador passava por novas experiências em sua carreira. A participação de Paulinho Albuquerque na produção dos discos de Guinga foi descrita diversas vezes por diferentes entrevistados. MALTA (2019), quando perguntado sobre a influência do produtor na elaboração dos arranjos que produziu para o disco Cheio de Dedos, e como se deu este processo, descreve:

O Paulinho era um cara que frequentava show, entendeu? O Paulinho não era aquele produtor intocável, ela gostava de ver os músicos tocando (...) Como ele via o resultado das coisas que a gente fazia assim, muito natural, a melhor forma de começar o trabalho é a partir do que já está meio que pronto, entendeu? Então, nesse caso, (...) a gente já chegou com a forma da música definida. O arranjo a gente bolou justamente quando o Guinga me mostrou (...). Ele gravava as bases com o Lula, e aí o Paulinho ia chamando a galera pra colocar alguma coisa em cima (...). Os arranjos de base eram praticamente assim definidos pelo Guinga, e o Lula ali naquela assessoria harmônica toda, né? Botando aquela lente de aumento naquelas cadências harmônicas, fazendo aquelas outras inversões...Coisas de ritmo também que eles tocavam muito bem [...] (MALTA, 2019).

Papito Mello, que era integrante do grupo Nó em Pingo D´água, na época da gravação do disco Cheio de Dedos, evidencia como era a atuação de Paulinho Albuquerque nos ensaios e gravações dos projetos com o qual estava envolvido, como, por exemplo, a participação do grupo na faixa Por trás de Brás de Pina:

O Paulinho não era um músico, ele era um produtor. Ele vinha exatamente com aquilo que faltava pro músico ouvir ou o que sobrava do músico, entendeu? Ele vinha com o feeling da coisa: “Talvez aqui pudesse caber 40

alguma coisa assim, alguma coisa assado, ele tinha um ouvido maravilhoso e uma formação musical muito boa e opinava nessas partes. No caso do nosso arranjo [...] a gente chegou com tudo pronto, acho que ele nem foi no ensaio, acho que o Guinga foi no ensaio, a gente fez um ensaio com o Guinga e ele viu direto na gravação. Pelo que eu me lembro, ele pouco interferiu no arranjo. Provavelmente ele achou que tava tudo bacana e tal, e a parte da mixagem o Guilherme [Reis] fez primorosamente, a gente conversou, eu me lembro de eu conversando com o Guilherme sobre as partes da música, o que que ele deveria dar mais valor, o que dele deveria dar menos e tudo, e ele pra variar fez uma mixagem maravilhosa (MELLO, 2019).

Com esses depoimentos, também, é possível ter uma idéia da maneira como Paulinho trabalhava em suas produções. Ele veio da área de produção de shows, fez trabalhos com diversos artistas e, posteriormente, migrou para a produção de discos, tendo atuado como produtor em diversos trabalhos, especialmente com artistas da área do samba. E certamente devido a suas experiências anteriores com shows, quando produzia discos, era como se tivesse continuado como um diretor de show. Era como se, de alguma maneira, ele quisesse ver o que acontecia no palco dentro do disco e justamente por não ter, praticamente, nenhum entendimento sobre a parte teórica das melodias, harmonizações e arranjos, ele tinha o cuidado de sempre buscar ouvir a opinião dos músicos ao tomar as decisões relacionadas às suas produções.

2.3. A entrada de Aldir Blanc na carreira de Guinga Aldir Blanc, certamente, foi um personagem de suma importância para a trajetória musical de Guinga. Um dos mais importantes letristas da Música Popular Brasileira, pode ser considerado um dos responsáveis, ao lado de Paulinho Albuquerque, Vitor Martins e Ivan Lins, pela guinada na carreira musical do violonista no começo dos anos 1990. Foge aos propósitos deste trabalho tecer detalhes da biografia de Aldir Blanc, inclusive, porque já existe um amplo material disponível a esse respeito. O objeto principal neste momento é destacar de que forma se estabelece a parceria entre Vitor Martins, Aldir Blanc e Paulinho Albuquerque, assim como investigar em quais pontos a conexão entre Guinga e Aldir Blanc foi relevante para que a carreira do compositor pudesse obter a projeção que se conhece hoje. Depreende-se, baseado na verificação da produção que foi gerada com essa parceria, que esse encontro significou uma grande injeção de ânimo para ambos. Guinga, nesse período, encontrava-se desanimado com sua carreira musical, pois, depois de tantos anos acompanhando artistas, tocando e compondo, nesse cenário ainda não havia alcançado resultados realmente expressivos em termos de reconhecimento. Já Aldir Blanc buscava uma nova parceria musical, após ter rompido com 41

João Bosco por volta de 1983. Segundo CABRAL(2003), o violonista Raphael Rabello foi o responsável por aproximar os dois, na década de 1980, embora Guinga e Aldir já tivessem se encontrado antes, nos anos 1960, na casa de Aluisio Portocarrero, avô do compositor Daniel Gonzaga, apesar de não terem se falado com maior profundidade nesta época. Ressalta-se, aqui, a ocasião em que Rabello apresentou Aldir Blanc a Guinga, conforme CABRAL(2003):

Guinga e Paulo César estavam presentes no último LP de Clara Nunes, Nação, gravado em 1982, com a música Cinto Cruzado. Na festa de lançamento do disco, Guinga seria apresentado pelo violonista Raphael Rabello a Aldir Blanc, com quem comporia grande parte da sua obra e que seria um dos principais responsáveis pela gravação do primeiro disco inteiramente dedicado a ele. Aldir já estava alerta em relação ao talento do futuro parceiro, desde a advertência feita pelo próprio Raphael: “Você precisa conhecer o Guinga” (CABRAL, 2003: 13).

A parceria entre os dois não se estabeleceu de maneira imediata, embora Aldir já estivesse provavelmente observando o trabalho do violonista. Foi somente em meados de 1988, em uma noite do verão carioca, que Guinga finalizou os atendimentos mais cedo, em seu consultório de odontologia no bairro do Grajaú, e foi para a Tijuca, onde Aldir o esperava em seu apartamento. Com esse encontro entre os dois, definitivamente, a parceria começaria a acontecer. É importante citar que:

Durante cinco horas ininterruptas Guinga tratou de mostrar seu Moët et Chandon, deixando transbordar cerca de 30 canções. Tocou e valsas de sua autoria, sob o olhar aturdido de Aldir. O poeta da Muda conhecia Bolero de Satã e Punhal, esta gravada por Clara Nunes, e só. Guinga desfiou uma sequência que Aldir batizaria de “derruba-letrista”. Guinga soluçou e sorriu de soslaio. Estava consumado o encontro que viria a ser uma das mais aplaudidas parcerias da música brasileira (MARQUES, 2002: 51).

Assim, após esse encontro, no final da década de 1980, Guinga passou a trabalhar de maneira sistemática com Aldir Blanc. Entretanto os primeiros resultados parecem não ter sido muito animadores, já que a primeira composição não agradou a dupla. MARQUES(2002) evidencia que Aldir teria escrito a história de uma doméstica da Rua Santa Clara, em Copacabana, que costumava presenciar fenômenos sobrenaturais. Embora tenham ficado incomodados com o resultado irregular, continuaram insistindo. Posteriormente, fizeram Esconjuro, que foi gravada por Leila Pinheiro em seu disco Outras Caras, de 1991, que traz também a composição Noturna. A faixa Esconjuro também foi gravada por Sérgio Mendes, em seu disco Brasileiro, de 1992. A próxima composição foi Lendas Brasileiras, que acabou sendo gravada por Chico Buarque no disco de estreia de Guinga.

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O encontro com Aldir balançou Guinga, que passou a criar desmedidamente. Aldir acompanhava. As melodias surgiam aos borbotões. De uma só vez nasceram mais de 20. Entre elas, Delírio Carioca, que acabou dando nome ao segundo disco, lançado em 93, e Vô Alfredo, que só foi registrada por Guinga em “Cine Baronesa”, em 2001. Catavento e Girassol, a música mais cantada da dupla pelo Brasil, foi também a mais ouvida, a mais curtida, a mais pensada (MARQUES, 2002: 56).

Aldir Blanc, maravilhado com as composições intrincadas com as quais estava trabalhando, passou a comentar com diversas pessoas do meio musical sobre a produção que começava a se desenhar ao lado de Guinga. Com certeza, Aldir Blanc era muito bem relacionado e mencionou o nome de Guinga para muitos contatos. A sua propaganda gerou efeitos muito positivos, a divulgação realizada pelo letrista teve um papel importante para a entrada de Guinga na gravadora Velas. Sobre este aspecto, deve-se frisar:

A entrada de Aldir Blanc na carreira de Guinga é dotada de um significado importante, injetando sangue novo nas veias do compositor. Esta parceria iniciou-se em 1988 para 89, período onde a dupla teve uma produção extremamente fértil. Fátima esclarece essa história. Segundo ela, ocorreu uma abertura, uma janela que se abriu na vida de seu marido. Aldir, encantado com Guinga, passou a falar do compositor para todo mundo, afirmando sua genialidade, o que apareceu em diversos jornais. Isso propiciou as condições para que Paulinho Albuquerque, junto com Vítor Martins e Ivan Lins, chamasse Guinga para gravar um disco. Assim, na década de 90, Guinga viabilizou sua carreira de compositor como artista de palco e de disco (CARDOSO, 2006: 52).

É fato que, nessa época, o violonista e o letrista produziram bastante. Como se nota, os dois primeiros discos de Guinga, basicamente, são compostos de parcerias assinadas pela dupla. Porém, MARQUES(2002) evidencia que como no começo da década de 1980 havia acontecido entre Aldir Blanc e João Bosco, em meados de 1999, o relacionamento entre Guinga e Aldir Blanc estremeceu bastante em razão de uma reportagem assinada pelo jornalista Luís Antônio Giron, publicada na Gazeta Mercantil, em que ele fez críticas à poesia de Aldir, o qual já havia pedido a Guinga que fosse cauteloso em suas declarações à imprensa e, por isso, teria ficado bastante magoado com o acontecido. Além disso, Aldir considerava que muitas de suas letras não eram utilizadas nos discos de Guinga. Mal-entendido semelhante havia acontecido, alguns anos antes, entre Guinga e Paulo César Pinheiro, um dos seus mais essenciais parceiros, antes da fase com Aldir Blanc, à época da divulgação do disco Simples e Absurdo:

O sucesso do disco também o levou a ser muito procurado pelos jornais e, numa das entrevistas, ocorreu aquela tragédia que costuma ser fatal para políticos e, às vezes, embaraçoso para artistas como ele: o entrevistado pensa uma coisa e diz outra. É que falando sobre a sua fase com Paulo César 43

Pinheiro, comparando-a com a que vivia com o novo parceiro Aldir Blanc, disse, entre outras coisas, que custara a perceber que Paulinho tinha a carreira dele e que precisava que ele, Guinga, tivesse a sua. O problema foi que, para explicar tal ponto de vista, acabou falando outras coisas que desagradaram inteiramente Paulo César Pinheiro. Resultado: fim da parceria (CABRAL, 2003: 14).

Por esse momento de tensão na relação entre os dois, nos momentos seguintes Guinga procurou ampliar o número de colaboradores, como, por exemplo Nei Lopes, Celso Viáfora e Mauro Aguiar. Contudo fica evidente que a contribuição que Aldir trouxe à carreira de Guinga teve suma importância para que o compositor tivesse o reconhecimento e prestígio que alcançou nos anos subsequentes, dado que foi um dos responsáveis por sua entrada na gravadora Velas, além de ter gerado um saldo enorme de músicas compostas. Contudo, enquanto os dois primeiros discos de Guinga foram trabalhos recheados de composições dessa dupla, a partir do terceiro trabalho, Cheio de Dedos, as parcerias foram ampliadas, trazendo novas cores para as composições de Guinga.

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3. ANOS 1990: A CRISE NO MERCADO FONOGRÁFICO BRASILEIRO E SUA RECUPERAÇÃO

No começo da década de 1990, o mercado fonográfico brasileiro passava por grandes dificuldades. Apesar de ter passado um período bastante favorável, no final dos anos 1980, como não se tinha visto antes na história da indústria fonográfica brasileira, o cenário econômico, no início dos anos 1990, era bastante ruim, com diversos planos fracassados nessa área e o confisco do Plano Collor, além das turbulências no plano político que culminaram em uma renúncia de Fernando Collor, no final do ano de 1992 e, certamente, afetaram diversas atividades industriais e econômicas no país.

Embora a indústria do disco tenha [...] vivido em 1989 o melhor desempenho de sua história, o quadro não se repetiu no início dos anos 90. O confisco promovido pelo Plano Collor e a instabilidade política e financeira que se seguiram, lançaram a indústria até 1992 naquela que seria a maior crise de sua história. Dos 76,8 milhões de unidades alcançados em 1989 a produção caía, já no primeiro ano da década, para os 45,1 milhões, retornando assim a seu patamar pré-Plano Cruzado. Em 1992, o recuo foi ainda mais dramático, com a produção caindo para apenas 32,1 milhões de unidades. Esse quadro trouxe várias consequências para a indústria (VICENTE, 2002:143).

Desta forma, em um cenário pessimista como esse, na indústria do disco brasileira do começo da década de 1990, não havia espaço para aventuras sem garantia de retorno, o que tornava tudo mais complicado para artistas, novos ou não, mas que estavam tentando solidificar uma carreira, inclusive, era o caso de Guinga nesse momento. Se, no final dos anos 1980, existia uma propensão a se investir em novos nomes, em virtude de um cenário econômico mais favorável, apesar de obviamente a década de 1980 também ter sido caracterizada por uma alternância entre momentos bons e de crise, nesse momento do começo dos anos 1990, que foi marcado por crises econômicas e políticas, a disponibilidade da indústria do disco para investimentos em novos artistas era bem reduzida.

Em 91 a situação mostra-se caótica e a percepção de que a indústria chega ao “fundo do poço” domina os discursos. O que se seguiu, foi a frenética busca pela redução de custos e despesas, bem como do risco no investimento, com uma empresa como a BMG (ex-RCA), de longa de tradição no país, chegando a cogitar seriamente em limitar seus lançamentos aos títulos internacionais. Além do apelo ao catálogo internacional, as empresas lançam mão do mesmo conjunto de medidas já adotado na crise anterior: enxugamento do quadro de funcionários, redução de casts e mordomias, suspensão do lançamento de novos artistas e concentração dos esforços de marketing em torno dos nomes de maior projeção (VICENTE, 2002:143-144). 45

Além disso, deve-se ressaltar que a música de Guinga, do ponto de vista mercadológico, não era exatamente algo que pudesse ser considerado comercial, sendo ele muito mais próximo do que se poderia considerar como um artista de catálogo, que atendia a um nicho bem específico do mercado musical que de um artista de vendas mais expressivas, mais voltado a segmentos populares, que, conforme observa VICENTE(2002), de forma geral, era o tipo de artista que seria mais desejado pelas gravadoras em atividade no Brasil naquele momento.

[...]. Assim, se em 1989 investir se tornara a palavra de ordem, com a indústria apoiando-se em novos nomes como Marisa Monte, Ed Motta, Adriana Calcanhoto, Elimar Santos e buscando a ampliação de sua capacidade produtiva, em março de 1990, diante das medidas econômicas do novo governo, muitos dos lançamentos e investimentos em novos artistas são adiados ou suspensos, com a indústria voltando-se mais uma vez ao porto seguro das compilações de sucessos. Apesar disso, os executivos das grandes gravadoras mostram-se otimistas em relação ao Plano e chegam a apostar no crescimento do consumo mais popular, destinando mais produtos às faixas de menor poder aquisitivo que, na sua percepção, não haviam sido atingidas pelo confisco (VICENTE, 2002:143).

Assim, nesse período, a cena musical comercial brasileira era bastante diversificada, com algumas bandas de rock em destaque, sendo que uma grande febre da denominada Axé Music dominava os principais espaços de mídia e apresentações. Além disso, existia uma grande onda de pagode, com vários novos grupos que abraçavam um estilo bastante comercial de samba. As duplas sertanejas eram também bastante executadas, com diversos novos nomes com trabalhos cada vez mais arrojados e shows cada vez mais produzidos.

Nesse sentido, ao contrário do que ocorrera em 1980, a nova crise não levou a uma mudança no modelo de atuação das gravadoras, e sim a uma radicalização e consolidação de processos já desenvolvidos ao longo da década anterior. Merece destaque, nesse quadro, o maior empenho das empresas na busca pelo mercado mais popular, mais especificamente pelo segmento da música sertaneja que se torna, durante os anos iniciais da década, o mais importante da indústria (VICENTE, 2002:144).

Ou seja, nesse momento, em decorrência de dificuldades, o objeto das gravadoras, de forma geral, estava muito mais voltado aos tipos mais populares de música e que dessem possibilidade maior de retorno. Além do momento político e econômico turbulentos, que minavam, em grande parte, a propensão a investimentos arriscados e apostas em determinados nomes e gêneros, no mercado fonográfico brasileiro, conforme descrito anteriormente, outro 46

aspecto a ser ressaltado é o fato de que a estrutura e atuação da indústria fonográfica, nesse período, sofreram drásticas mudanças, tanto na sua organização interna, como com relação ao formato como a música era vendida ao consumidor, conforme (VICENTE, 2002):

Outro fator a marcar o cenário de crise e, principalmente, a sua superação, foi o da substituição tecnológica. A transição de formatos entre o LP e o CD parece ter sido bastante rápida e superado as expectativas e o planejamento da indústria. Embora nem no auge da crise de 90/92 as vendas de CDs tenham parado de crescer, o preço ainda bastante alto do produto no país era apontado insistentemente como fator de agravamento da crise. Por isso, ainda em 92, Sony e BMG apressaram-se em inaugurar suas fábricas locais de CD, ampliando o atendimento a uma crescente demanda que era, até aquele momento, servida por uma única empresa. Mayrton Bahia, diretor artístico da PolyGram, também via na transição de formatos, associada à pirataria, uma razão para o agravamento da crise, declarando em 92 que “junto com a crise do país está havendo a do vinil. Enquanto aumenta o número de CDs vendidos, diminui o de LPs. A fita cassete pode substituir esse vácuo. Mas ela está sendo estuprada pela pirataria. É hora das gravadoras começarem uma campanha institucional para combater a pirataria, envolvendo toda a classe artística. Apesar da advertência, a pirataria em cassetes continuou e o formato foi progressivamente abandonado pela indústria, com o comércio ilegal respondendo atualmente pela totalidade de sua produção (VICENTE, 2002:145-146).

Desta forma, vale lembrar que, no Brasil, entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, acontecia a transição do formato vinil para o CD. Embora esse último já fosse comercializado, desde o começo da década de 1980, é fato que a sua ampla utilização no Brasil ocorreu muito depois disso. Assim, no final da década de 1980, a popularidade dos CDs aumentou bastante, já que fornecia maior capacidade e clareza sonora, sem os chiados típicos do vinil. O CD supostamente trazia também maior durabilidade, e todos esses aspectos juntos fizeram com que os discos de vinil passassem a ser considerados obsoletos. É importante também lembrar que muitos outros formatos foram, posteriormente, derivados dele, tais como o CD de áudio e dados (CD-R), as mídias regraváveis (CD-RW), o Vídeo Compact Disc (VCD), o Super Vídeo Compact Disc (SVCD), o Photo CD, Picture CD, CD-i, Enhanced Music CD, entre muitos outros menos conhecidos. Assim como a década anterior, os anos 1990 foram caracterizados, para a indústria do disco no Brasil, por diferentes oscilações do mercado, intercalando momentos de crise e crescimento. A partir de 1993, aconteceu uma retomada do crescimento da indústria fonográfica brasileira. Entre outros pontos, essa recuperação está diretamente ligada ao aumento do número de vendas de CDs.

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Se em 1993 ocorreu a retomada do crescimento do mercado de discos no Brasil aquele foi, não por coincidência, o primeiro ano em que o número de CDs vendidos superou o de LPs. De modo análogo ao que ocorrera nos países centrais uma década antes, pode-se dizer que também por aqui o CD foi um dos principais responsáveis pela superação da crise da indústria do disco (VICENTE, 2002:147).

Vale também lembrar que, nessa época, muitas relançamentos de catálogos antigos foram feitos em CD, o que fez com que muitos artistas tradicionais tivessem o interesse em seu trabalho renovado por parte do público. Muitas coletâneas a preços baixos eram lançadas no mercado. Era também comum que o consumidor comprasse novamente discos que já tivessem adquirido anteriormente em vinil. Nesse cenário, a música brasileira foi bastante beneficiada, pois muitos de seus discos não eram mais fabricados. Os discos antigos relançados e as compilações acabavam sendo um excelente negócio, pois o custo com a sua produção era muito menor, o que fazia com que esses relançamentos tivessem o preço bastante acessível:

Em 93, por exemplo, dentre os discos antigos que não mais existiam em vinil e estavam saindo em CD, constavam 18 álbuns de Chico Buarque, 15 de Gal Costa, 11 de Jorge Ben Jor e 11 de Elba Ramalho, entre muitos outros. Além desses relançamentos, surgiam também séries econômicas de coletâneas que, sem ter de arcar com os custos de gravação e direitos autorais, eram vendidas com preços em média 30% menores que os de um CD normal. Este foi o caso de séries de compilações como “Best Price” (Sony), “Bom e Barato” (PolyGram) e “Best Seller” (Warner) – todas reunindo artistas nacionais e internacionais. Já a EMI-Odeon tomou uma iniciativa um pouco diferente ao criar a série “Dois em Um”, que reunia dois álbuns do mesmo artista em um único CD e que contemplou, entre outros, artistas nacionais como Paulinho da Viola, Clementina de Jesus, Djavan, Ivan Lins e Gonzaguinha (VICENTE, 2002:148)

Obviamente, a situação econômica mais favorável a partir de 1993 fez com que a indústria retomasse o seu crescimento. Enquanto o valor dos CDs, LPs e cassetes estava em queda, os salários tinham uma discreta melhora, o que possibilitava o retorno do crescimento e do poder de compra do consumidor, que se tornaria ainda mais intenso, nos anos seguintes, fazendo com que, no final dos anos 1990, a indústria fonográfica batesse recordes de vendas. VICENTE (2002) elenca mais algumas características desse período:

Esse período de prosperidade teria as marcas da definitiva adequação da indústria instalada no país às práticas globalmente predominantes: a substituição tecnológica, a terceirização da produção (baseada na inovação tecnológica e na constituição de uma cena independente diversificada) e numa ampla segmentação do mercado (VICENTE, 2002:146-147).

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A partir de 1994, fatores como a estabilização econômica, a abertura comercial e a substituição tecnológica trouxeram grande crescimento para a atividade industrial de forma geral. Embora esse crescimento tenha trazido algumas dificuldades no começo, como por exemplo o adiamento de alguns lançamentos de discos, em consequência de problemas na capacidade de produção, com a estruturação de novas empresas fabricantes de CDs o obstáculo foi rapidamente resolvido. Esse aumento das vendas de CDs também impactou as vendas de aparelhos reprodutores, que subiram de forma acentuada. Diversos outros aspectos da indústria fonográfica dos anos 1990 podem ser destacados como fatores importantes para que se possa compreender a dinâmica no mercado musical no Brasil neste momento e, ainda, estabelecer paralelos com a entrada de Guinga na gravadora Velas e o posterior desenvolvimento da sua carreira e discografia. Portanto evidencia-se, nesse contexto, um veículo que foi importante à divulgação do trabalho de artistas que faziam parte do elenco de diversas gravadoras em atividade, no mercado musical brasileiro neste período, que foi a criação da MTV Brasil, que chegou aqui em 1990, por um acordo de concessão entre a empresa Viacom e o Grupo Abril. A MTV Brasil teve um papel muito importante no crescimento do uso do videoclipe como uma estratégia para a divulgação dos artistas. Eventos criados pela emissora, como o VMB4, que premiava os videoclipes que se destacassem, fortaleceram ainda mais essa estratégia. VICENTE(2002) evidencia que no final da década de 1990, a MTV Brasil, que a princípio era bem segmentada e voltada ao público de rock e pop, passou por algumas alterações:

Originalmente dedicada ao pop/rock (nacional e internacional) e com um público situado na faixa etária entre 12 e 34 anos, a MTV Brasil sofreu, em março de 1999, importantes alterações em sua programação, passando a veicular também clipes de segmentos populares como pagode, axé e sertanejo. Tal atitude, que parece ter sido em parte motivada pela entrada da Abril no mercado fonográfico (ocorrida no ano anterior através da criação da Abril Music), levou a uma maior valorização do videoclipe também como veículo de divulgação desses segmentos. Além do mais, “um clipe bem realizado serve, ainda, para vender o artista no exterior, convencendo as subsidiárias das gravadoras a lançar seus discos... Na estratégia de marketing das gravadoras, os clipes em geral vêm assumindo um lugar cada vez mais relevante. Até mesmo porque passaram a ser exibidos não apenas na TV. Pode-se assisti-los em salas de espera de aeroportos, lojas de discos e restaurantes badalados, por exemplo...” (VICENTE, 2002:152).

4 Sigla utilizada para Vídeo Music Awards Brasil. 49

Assim, a MTV Brasil que, em seu início, era uma emissora voltada para um público bem específico, buscando ampliar suas possibilidades de atuação, no final da década de 1990, passou a atuar em diferentes segmentos, levando a uma necessidade da ferramenta de divulgação pelo videoclip para segmentos mais populares. Já mais próximo do final de suas atividades, como um canal aberto voltado à música, dera ênfase a outras áreas de atuação, principalmente, a programas humorísticos e reality shows, numa tentativa de gerar mais renda em uma estrutura que não estava atendendo às expectativas de lucro da sua direção. A MTV Brasil encerrou suas atividades neste formato no ano de 2013. Foi substituída por um novo canal operado pela empresa Viacom disponível em serviços de TV a cabo. O espaço na rede ocupada pela MTV Brasil, no sinal aberto, passou a exibir a programação de outro canal, a Ideal TV. Embora não seja possível estabelecer uma relação direta entre a MTV e a produção de Guinga, já que ele atuava em outro tipo de segmento, e que de forma geral não fazia parte dos interesses desse veículo, certamente diversas tendências musicais dos anos 1990 foram amplamente divulgadas pelos programas da MTV Brasil.

3.1. Sistemas de gravação e demais recursos utilizados nos anos 1980 e 1990 Outro aspecto a ser ressaltado sobre esse período da indústria fonográfica é o fato de que diversos recursos para gravações e efeitos passaram a ficar mais acessíveis. Embora muitos recursos digitais já existissem, por exemplo, desde os anos 1970, costumavam ser caros e, assim, poucos músicos e produtores tinham acesso a eles, o que começou a mudar de forma acelerada no início dos anos 1990.

Mas além do mercado de discos e dos meios de divulgação musical, também o setor de equipamentos profissionais para gravação e shows teve um grande desenvolvimento no período. A abertura econômica, aliada à difusão das tecnologias digitais de produção propiciada pelo protocolo MIDI, causaram intensas mudanças no cenário, possibilitando uma ampla pulverização das atividades de produção musical. Sucessivas gerações de equipamentos digitais de produção passaram a dar nova feição e importância à Feira da Música, que desde os anos 80 reunia fabricantes de instrumentos e equipamentos. Em setembro de 1991, a Roland do Brasil – empresa surgida naquele ano de uma joint venture entre a Roland japonesa e a empresa brasileira Foresight – promovia no Anhembi a Music Expo, com o intuito de apresentar sua linha de equipamentos digitais. Em apenas um dia o evento movimentou US$ 1 milhão demonstrando, em plena crise, a vitalidade desse novo mercado. A Music Expo contaria ainda com sucessivas reedições, maior número de expositores e crescente sucesso nos anos seguintes (VICENTE, 2002:153).

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O sistema de delay digital, por exemplo, já existia muito antes das décadas de 1980 e 1990. Por sua vez, acabou proporcionando a criação do sistema de gravação digital. Consta que um dos primeiros delays digitais disponíveis foi o Lexicon. Apesar disso, antes dele, na década de 1950, já existiam outros tipos de delay, como, por exemplo, as câmaras de eco, a Echoplex, que era baseado no sistema de rolo, com uma fita magnética que grava o som o qual está sendo tocado naquele momento e já reproduz com atraso. Assim, tratava-se de uma fita magnética que possuía curta duração, não sendo possível muitas repetições. O som era repetido, mas a qualidade da repetição acabava ficando prejudicada. Entretanto, apesar de, nos dias atuais, existirem equipamentos que buscam, de forma deliberada, reproduzir essa deterioração do som original que era bem característico deste tipo de equipamento, na época, isso era visto como uma grande limitação, já que o intuito era conseguir uma reprodução/repetição que tivesse o máximo de fidelidade possível. Assim, essa busca acabou proporcionando a criação do sistema de delay digital. E o mesmo sistema acabou sendo útil, também, à gravação digital. Por caminhos parecidos, em pouco tempo, passou a ser usado também o reverb digital. As primeiras experiências não tinham grande qualidade, pois havia taxa de amostragem muito baixa, mas, posteriormente, essa taxa foi aumentada. Entretanto essas gravações já usavam a tecnologia PCM5, sistema que é utilizado até os dias atuais. Nos anos 1980, por exemplo, já podia-se contar com o padrão MIDI. Os teclados da época, por exemplo, já saíam de fábrica com o General MIDI. Nesse período, o padrão corrente era o de 16 bits, que atualmente ainda é utilizado. Como se observa, já existia também o formato do CD, além do vinil e K7. Porém era possível perceber diferenças de qualidade nessas diferentes mídias, pois, normalmente, as fitas K7 perdiam bastante em qualidade em relação às outras. O CD apresentava um espectro de frequência muito amplo. As gravações dessa época, de forma geral, eram feitas com rolos de fita magnética, embora o sistema digital já estivesse disponível. Assim, cada vez mais opções para a gravação e a reprodução de áudio eram disponibilizados, o que desencadeou, de forma geral, um período de grande

5 PCM significa Pulse Code Modulation, ou seja, modulação por código de pulsos, sendo esta a tecnologia mais antiga de áudio digital. Esta tecnologia tem seu início nos anos 1930, como uma forma de representar sinais analógicos digitalmente, ou seja, com ondas representadas em intervalos regulares. A digitalização sonora envolve basicamente os seguintes parâmetros: taxa de amostragem (sample rate) e profundidade de bit (bit depth). O primeiro indica quantas vezes a amplitude de uma onda é medida, enquanto o segundo indica o número de bits em cada amostragem. A variação desses parâmetros é um indicador da fidelidade do áudio. O PCM deu origem a diferentes formas de digitalização sonora. As empresas Sony e Philips, durante os anos 1970, desenvolveram esta tecnologia por meio do CD, que tem taxa de amostragem de 44.1 KHz e amplitude de 16 bits. Já o PCM com 8 KHz de amostragem e 8 bits de resolução é utilizado no sistema telefônico.

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experimentação com todos esses recursos. Assim, além dos efeitos técnicos, essas experiências geraram muitos efeitos artísticos. O MIDI, por exemplo, permitia converter um sinal de áudio em uma gama enorme de diferentes timbres, o que passou a ser usado em grande medida por muitos músicos em suas gravações. Na década de 1980, ainda se usava muito mais a gravação de rolo, embora muitos dos periféricos, tais como delays e reverbs, já fossem digitais. Certamente entre os anos 1980 e 1990 aconteceu um período de transição para o digital em que diferentes formas de armazenamento de áudio coexistiram, mas a tendência para o digital ganha cada vez mais força nos anos 1990, ainda que esse movimento tenha começado muito antes, como citado, com as primeiras experiências envolvendo delays digitais. Nos anos 1970, por exemplo, muitos desses recursos digitais já estavam disponíveis, porém eram demasiadamente caros, portanto poucas pessoas tinham acesso a eles. Não se declara, aqui, exatamente a transição para as gravações diretas no computador, mas sim para o sistema ADAT, que já era digital. Mesmo que fosse algo ainda rudimentar, já era um equipamento mais portátil e confiável que as fitas de rolo. O armazenamento era realizado em fitas, mas estas não eram no formato magnético, e sim digital. É claro que nem todos os trabalhos gravados nessa época já utilizavam esse sistema, mas, sendo muito prático e barato, passou a ser usado com cada vez mais frequência e não só por estúdios de grande porte, mas também em estúdios de gravação menores. Ressalta-se um aspecto, quanto às gravações, que é o número cada vez maior de canais disponíveis. Se nos anos 1960 as gravações eram feitas com apenas quatro canais, posteriormente, passaram a ser utilizados oito e 16 vias. Nos anos 1970, os gravadores de 16 canais já eram utilizados, e esse número aumentou ao longo dos anos, sendo hoje em dia o número de canais virtuais disponíveis infinito. Essas mudanças decerto influenciaram diretamente os processos de edição, mixagem e masterização, que também foram evoluindo ao longo do tempo. Nas gravações analógicas, com o uso de rolo, existiam poucas opções quanto à edição. Era possível gravar novamente, por cima de um trecho, que não atingiu um resultado satisfatório, por exemplo, mas as edições eram imprecisas, demoradas e, muitas vezes, com resultados ruins. Era comum que se gravasse muitas vezes a mesma música, para depois selecionar os melhores trechos e assim montar a forma da peça. Com a gravação digital, as possibilidades e edição são inúmeras e os resultados muito mais eficientes. A masterização, na época do vinil, era um processo que visava equilibrar os níveis de volume e equalização de diversas faixas em estéreo de um mesmo álbum, por exemplo. Esse processo normalmente era feito em conjunto com o engenheiro de corte, que estabelecia os critérios para o áudio de forma que o sulco do vinil não ficasse muito profundo, o que poderia ocasionar o pulo da agulha. De 52

forma geral, o engenheiro de corte fazia uso de compressores e equalizadores para acertar os níveis de um determinado fonograma de uma forma padronizada. Posteriormente, o processo de masterização passou a ser utilizado para que o resultado final do áudio também pudesse ser melhorado após a mixagem. Vale ressaltar também que, em meados da década de 1990, introduziu-se o sistema Protools6, em suas primeiras versões, software esse que é usado, com frequência, em gravações profissionais até o presente momento e que permite o armazenamento das informações diretamente no disco rígido do computador, o que torna todo o processo muito mais confiável e preciso. Assim, é bastante provável que o disco Cheio de Dedos tenha sido gravado pelo sistema ADAT, posto que, a partir do momento em que este formato entrou em cena, foi adotado pela maioria dos estúdios de gravação. De forma geral, somente os estúdios com uma característica mais saudosista continuaram gravando por essa época, utilizando-se de fitas magnéticas. Seu lançamento já foi feito diretamente do formato CD.

3.2. Estética das gravações dos anos 1980 e 1990 na MPB Quando se observa, de forma geral, a estética predominante nas gravações da MPB nos anos 1980, percebe-se que essa década foi marcada por uma série de procedimentos bem característicos de captação, mixagem e masterização, com timbres e resultados bem específicos. Era frequente que, nessa época, a maioria dos timbres utilizados fossem sintetizados, ou seja, eram produzidos artificialmente por meio de processos tecnológicos de manipulação dos sons originais. Certamente, era um grande contraponto com o tipo de procedimento que se adotava nos anos 1970, cujas características das vozes e instrumentos, apesar do uso de efeitos, tendia a ter um caráter mais orgânico. Um compositor que pode ilustrar a situação descrita é Gilberto Gil. Em 1978, logo após o término do seu contrato com a gravadora Philips, Gilberto Gil passou a trabalhar com a

6 O Pro Tools é uma estação de áudio digital que integra hardware e software, usado para a produção e edição de áudio. O software é produzido pela Digidesign, uma divisão da empresa Avid. 53

WEA/Warner Music7. Lançado em agosto do mesmo ano e produzido por Marco Mazzola8, seu primeiro trabalho nesta gravadora foi o lançamento de uma apresentação no Festival Internacional de Jazz de Montreux, na Suíça. Gil foi o primeiro brasileiro convidado a se apresentar neste festival, onde esteve ao lado de A Cor do Som e Silvinho. No final dos anos 1970, Gil trabalhou com diferentes produtores em seus lançamentos: O disco Nightingale(1979), por exemplo, foi gravado em Los Angeles e produzido por Sérgio Mendes. Nesse trabalho, apesar do uso de efeitos, predomina a sonoridade natural dos instrumentos e voz, como se pode observar em faixas como Ella, Bah-La-Fon e Here and Now. Já Realce(1979), também, contou com a produção de Mazzola e, nesse álbum, já se pode observar uma mudança grande de sonoridade, tanto no que diz respeito aos timbres como quanto à concepção dos arranjos, que parecem buscar estar próximos à sonoridade em voga na época. De forma geral, no começo dos anos 1980, os trabalhos de Gil passaram a contar com a utilização de diversos timbres eletrônicos e sintetizados em sua concepção e gravação. Depois de ter trabalhado com os produtores citados, a partir do disco Luar (a gente precisa ver o luar), de 1981, Gil passa a ser produzido por Liminha9, embora aqui em parceria com Lincoln Olivetti e Robson Jorge. Nesse trabalho, pode-se notar uma sonoridade bem diferente da encontrada em Realce. Posteriormente, Liminha continuou trabalhando com Gil, porém sozinho, como, por exemplo, no disco Um Banda Um(1982), em que se encontram timbres já bem mais sintetizados em sua gravação, como se observa claramente em faixas como Afoxé é e Banda Um. Em Extra(1983), verifica-se a mesma tendência, com timbres cada vez mais artificiais, como se identifica em faixas Elá, Poeira e também em Extra. No início de 1984, Gilberto Gil fez a trilha sonora do filme Quilombo(1984). Em agosto do mesmo ano, ao retornar de uma

7 Warner Music Group (WMG) é um conglomerado norte-americano multinacional, de entretenimento e de selos musicais, com sede em Nova York. Considerada o maior conglomerado norte-americano, é a terceira entre as três maiores gravadoras do mundo, as outras duas são: Universal Music, a primeira, e a Sony Music Entertainment, a segunda maior. A empresa possui as maiores e mais bem sucedidas gravadoras, incluindo os selos próprios: Warner Bros. Records Inc. e Atlantic Records. Em 2013, a Warner Music Group adquiriu um conjunto de ativos vendidos pela Universal Music Group sobre a aquisição da EMI Music Group incluindo a Parlophone Records. Já WEA (Warner/Elektra/Atlantic) é a denominação da subsidiária brasileira da Warner Music Group – braço fonográfico do grupo Time-Warner – que já disputou com a Universal a condição de maior empresa fonográfica do mundo. A WEA iniciou suas atividades no Brasil, em 1976, sob a administração de Andre Midani, ex-diretor da Philips-Phonogram. Antes disso, ela era representada no país pela Continental.

8 Marco Aurélio da Silva Mazzola, ou simplesmente Mazzola, foi responsável pela produção de muitos discos de Gal Costa, João Bosco, Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Djavan, Gilberto Gil, Chico Buarque, Simone, Elis Regina, Caetano Veloso, Banda Eva, entre outros. Os discos produzidos em, aproximadamente, 30 anos de carreira levaram ao número de 30 milhões de cópias vendidas até 1997. Vale citar aqui também a criação do selo MZA, que foi concebido como uma espécie de joint venture com a Universal Music, cuidando assim da distribuição e promoção de suas produções. Chico César, Rita Ribeiro e Zeca Baleiro gravaram por ele. 9 Arnolpho Lima Filho, que também é conhecido como Liminha, foi o baixista da banda Os Mutantes, sendo que, posteriormente, tornou-se um conhecido produtor musical. 54

turnê, Gilberto Gil, em sociedade com Liminha, montou o estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, para começar a gravação desse álbum. Liminha ainda produziria outros trabalhos de Gil, como, por exemplo, Raça Humana(1984), em que se demonstram influências de rock e reggae, lembrando, por exemplo, a sonoridade do grupo The Police, como na faixa Feliz por um triz. Nesse trabalho, Liminha participou também como instrumentista em diversas faixas. É certo que a utilização de timbres menos naturais é uma característica importante desse fonograma. Liminha produziu também Dia Dorim e Noite Neon(1985), cujas influências de reggae e rock continuam fortes, embora, nesse último trabalho, provavelmente estas influências sejam mais evidentes. Os timbres de bateria desse trabalho, por exemplo, são ainda mais sintetizados que os anteriores. A sequência de produções de Liminha foi quebrada em O Eterno Deus Mu Dança (1989), que foi produzido por Celso Fonseca e Vitor Farias. Em Parabolicamará (1991), a parceria com Liminha foi retomada. Uma hipótese é de que o uso dessas sonoridades mais sintetizadas e menos naturais nessa fase da carreira de Gilberto Gil, seja uma influência direta da produção de Liminha e da grande disponibilidade de novos recursos tecnológicos à época, o que dava muita margem para experimentalismos com timbres e sonoridades. Já no caso de Milton Nascimento, quando se escuta o disco Journey to Dawn (1979), que foi produzido por Jim Price e lançado pela gravadora A&M Records, observa-se que um dos objetivos era divulgar o trabalho desste compositor nos Estados Unidos e percebe- se o predomínio de sonoridades mais naturais dos instrumentos. Já o disco seguinte, Sentinela (1980), que foi produzido por Marco Mazzola, sendo lançado pela gravadora Ariola, observam- se algumas mudanças na sonoridade, evidenciado, por exemplo, pelo uso da percussão nas faixas Tudo e Peixinhos do mar, e uma sonoridade mais artificial na bateria, como nas faixas Canção da América e Roupa Nova. Mazzola produziu, também, pela Ariola os discos Caçador de Mim (1981), Anima (1982), Missa dos Quilombos (1982), nos quais se podem encontrar timbres experimentais na faixa Em nome de Deus, por exemplo, além de Ao vivo(1983), Encontros e Despedidas(1985), A Barca dos Amantes (1986), Yauaretê (1987), sequência que foi quebrada em Miltons (1988), produzido por Marcio Ferreira. Nesses trabalhos da década de 1980, de forma geral, identifica-se a utilização de timbres sintetizados, menos naturais, e com grande frequência. É bastante provável que, nos dois casos citados, Gilberto Gil e Milton Nascimento, a tendência seguida pelo trabalho de produção teria influenciado o resultado final no que diz respeito à concepção dos timbres e sonoridades. Entretanto, também, pode-se considerar que a ampla disponibilidade de timbres e possibilidades de periféricos à época 55

tornava possível o grande experimentalismo com timbres, o que gerava, ainda, uma grande influência sobre o resultado geral das produções. Em contrapartida, de forma geral na MPB constata-se, nos anos 1990, uma grande tendência de retorno às sonoridades mais naturais dos instrumentos nas gravações, em oposição ao predomínio dos timbres sintetizados e artificiais na década anterior. Destaca-se a presença, por exemplo, de Jacques Morelenbaum, em diversos discos da MPB dos anos 1990, o que talvez seja um sinal de um retorno de uma tendência menos artificial na estética das gravações dessa década. Mas esse aspecto está mais relacionado à captação e à concepção artística do trabalho, em que o direcionamento era privilegiar a sonoridade o mais natural possível dos instrumentos, sem muitos efeitos aparentes. O violoncelista e arranjador Jaques Morelenbaum iniciou sua carreira como integrante do grupo de rock progressivo, A Barca do Sol, com o qual gravou três discos e junto a que esteve na ativa entre os anos de 1973 e 1981. Esse grupo, em seu início, era a banda de apoio do cantor Pery Reis, porém, no ano de 1974, lançou seu primeiro disco, A barca do sol, cujo trabalho tem, inclusive, a participação de Egberto Gismonti, em duas faixas. Nesse mesmo ano, Ritchie, que alguns anos depois alcançaria o sucesso, em sua carreira solo, como cantor, entrou para o grupo a fim de atuar como flautista. Em 1976, A Barca do Sol lançou o seu segundo disco, Durante o Verão, sendo que, nessa fase, aconteceram outras mudanças na formação do grupo. Em 1978, a Barca do Sol gravou o LP de estreia da cantora Olivia Byington, chamado Corra o Risco. O disco contém algumas das músicas mais conhecidas do grupo, além de outras canções que viriam compor o novo trabalho, que foi lançado, em 1979, o álbum Pirata. Em 1980, o grupo fez uma participação no disco Anjo Vadio, de Olívia Byington. Pouco depois, em 1981, o grupo se separou definitivamente. Um assunto importante a ser ressaltado, acerca do grupo A Barca do Sol, é o fato de que as letras das músicas eram compostas por poetas da conhecida Geração Marginal10, como Geraldo Carneiro, Nando Carneiro, Cacaso e João Carlos Pádua.

10 A geração marginal, que também é conhecida como geração mimeógrafo, foi um movimento que ocorreu, no Brasil, imediatamente após a Tropicália, ou seja, durante os anos 1970, em plena ditadura militar. A censura existente, na época, fez com que professores universitários, poetas, artistas e intelectuais, em geral, buscassem por meios alternativos de difusão cultural. O mimeógrafo, que era uma tecnologia bastante acessível à época, deu nome ao movimento. Deve-se ressaltar que a geração mimeógrafo não se expressou apenas pela poesia, mas também pelo cinema, dramaturgia e música, conforme se evidencia nesta digressão sobre o grupo A Barca do sol. Entretanto, possivelmente, a produção poética é a mais lembrada, em razão de ser a mais adequada às restrições de suporte impostas pela página que era mimeografada. De forma geral, a produção literária deste movimento não era aceita por grandes editoras. Somente, em 1975, a editora Brasiliense publicou o livro 26 Poetas Hoje. Assim, essa produção era denominada poesia marginal, visto que se encontrava à margem de um circuito editorial tradicionalmente estabelecido. Ressalta-se que outras produções artísticas dessa geração não tinham acesso às galerias tradicionais. 56

Algum tempo depois do fim do grupo, A Barca do Sol, Jaques entrou para a Banda Nova, que foi criada, para acompanhar Tom Jobim, em seus shows e gravações, a partir de 1994. O grupo esteve ativo até a morte de Jobim, em 1994, atuando em espetáculos e gravações que o levou a vencer o Grammy de 1996 com o CD Antônio Brasileiro. A partir de 1995, integrou o Quarteto Jobim Morelenbaum, que foi formado com Paula Morelenbaum, Paulo Jobim e Daniel Jobim. Com esse grupo, Morelenbaum fez diversas excursões pelo Brasil, Europa e Estados Unidos, sendo que, no ano de 1999, lançou o disco Quarteto Jobim Morelenbaum. Além disso, participou, ainda, de outros coletivos e, durante os anos 1990, Jaques Morelenbaum atuou como arranjador de alguns álbuns de Caetano Veloso, como, por exemplo, Circuladô (1991), Circuladô vivo (1992), Fina Estampa (1994), Fina estampa ao vivo (1995), O quatrilho, Tieta do agreste, Orfeu do Carnaval, Livro, Prenda minha e A Foreign Sound (2004), entre outros trabalhos. Existem diversos outros exemplos que podem caracterizar essa proposta mais acústica na MPB dos anos 1990. Um disco de Gilberto Gil que pode ser citado é O Sol de Oslo que, certamente, possui essa característica. Esse trabalho, lançado em 1998, foi gravado na cidade de Oslo, na Noruega, no ano de 1994, com exceção das faixas Onde o Xaxado Tá e Oslodum. Também nos anos 1990, Milton Nascimento, com o disco Angelus, apresentou uma sonoridade bem mais acústica que os trabalhos anteriores, além das participações de Pat Metheny, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Robertinho Silva, Naná Vasconcelos, entre outros. Outro exemplo que poderia ser citado, nesse percurso, é o disco Afro-, lançado por Mônica Salmaso em duo com Paulo Bellinati no ano de 1995 e que aponta para uma concepção totalmente acústica. Ademais, vale ressaltar, também, que, apesar dos exemplos aqui citados, referentes aos anos 1980, dentro do cenário da música brasileira, nem todo o público se rendeu à sonoridade mais tecnológica. Hermeto Pascoal, por exemplo, foi um dos nomes que não cedeu à sonoridade mais artificial, mesmo durante esse período, como se observa em sua discografia dos anos 1980.

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4. O DISCO CHEIO DE DEDOS - ANÁLISE DE ALGUMAS FAIXAS SELECIONADAS

Neste capítulo, objetivou-se analisar algumas das peças presentes no disco Cheio de Dedos. Foram selecionadas peças em que se acredita sejam representativas, de forma geral, do trabalho avaliado. Entretanto as peças cujas análises estão aqui presentes também foram escolhidas, de acordo com a possibilidade de se levantar informações mais aprofundadas, a respeito de seus processos de composição, arranjo e gravação. Os entrevistados para este trabalho foram Carlos Malta, Itamar Assiere, Mário Sève, Rodrigo Lessa, Papito Mello, Paulo Aragão, Lula Galvão e o próprio Guinga. Foram extremamente generosos e forneceram informações preciosas sobre a feitura de cada um dos fonogramas aqui analisados os quais foram essenciais para várias passagens presentes no texto das páginas seguintes. Ainda assim, existem outras faixas que ficaram de fora destas análises e que são farto material para análises futuras e mais aprofundadas e possam nos levar a compreender ainda mais os processos de composição, arranjo e produção da obra de Guinga. De forma geral, como será possível verificar a seguir, fez-se uma pequena introdução sobre cada peça analisada para logo depois adentrar nas análise melódico-estruturais e harmônicas, assim como da descrição do arranjo, de forma a tentar organizar e expor o maior número possível de informações sobre cada composição. Evidente que cada peça possui as suas idiossincrasias, então, em cada uma, alguns pontos diferentes foram ressaltados, dependendo do formato e proposta da composição e arranjo.

4.1. Por trás de Brás de Pina

A faixa Por trás de Brás de Pina é assinada somente por Guinga. Antes iniciar a análise musical da peça, é relevante elucidar alguns pontos, começando pelo título, que foi inspirado no nome de um bairro no Rio de Janeiro, onde Guinga morou, sendo uma referência também a Gilson Peranzzetta. Papito Mello ressalta a relação de Guinga com o bairro Brás de Pina:

Ele morou em Brás de Pina. É um bairro da Zona Norte do Rio, depois do Méier. O Guinga sempre teve muito orgulho de ser da zona norte, embora a maior parte dos músicos bem sucedidos, famosos do Rio de Janeiro venham da zona sul, ele sempre fez questão de falar: “Olha, a minha influência, a minha vida foi a zona norte”... aquela coisa mais de bairro, menos burguês e tudo mais. Acho que o título da música vem daí. Ele gosta de enfatizar isso (MELLO, 2019). 58

Assim, neste cenário, cabe fazer uma pequena digressão para que seja possível compreender um pouco da história do bairro de Brás de Pina. A partir do século XVII, a cidade do Rio de Janeiro se expandia economicamente graças aos ciclos de ouro, cana-de-açúcar e café. Assim, existia a necessidade de direcionar essas produções para outras regiões. A fim de potencializar o desenvolvimento da cidade, foi criada, em 30 de abril de 1854, a Estrada de Ferro Mauá, que tinha como objetivo de unir o Porto Mauá com Raiz da Serra. Já, em 1875, foi criada a linha de ferro Rio D'Ouro, cujo objetivo principal era suprir a escassez de água no Rio de Janeiro. Essa linha passava por regiões como Caju e Irajá. Posteriormente, foi ampliada, passando a se chamar Leopoldina Railway. A implantação da linha férrea, no Rio de Janeiro, acabou resultando no surgimento de diversos bairros, contribuindo para a posterior construção e expansão do bairro de Brás de Pina. É um bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, mais exatamente na Zona da Leopoldina, sendo que faz divisa com Cordovil, Vila da Penha, Penha Circular, Irajá e Vista Alegre. Segundo consta, o nome do bairro é uma referência ao antigo proprietário daquelas terras, o empresário português Brás de Pina, já que, no século XVIII, ele mantinha um engenho de açúcar e aguardente no local. As terras que faziam parte da sua fazenda iam até as margens da baía da Guanabara, onde também era contratador de caça às baleias. Nesse local, Brás de Pina construiu o antigo Cais dos Mineiros, para se escoar tanto a sua produção de açúcar quanto a de óleo de baleia que era usado para a iluminação pública. Suas terras tornaram-se, no início do século XX, grandes fazendas das famílias tradicionais, e uma parte foi adquirida pela Companhia Imobiliária Kosmos11.

A modernização de Brás de Pina ocorreu, no início do século XX, sendo que um ponto importante para esse avanço foi a inauguração da antiga parada de Brás de Pina da Estrada de Ferro Leopoldina, ocorrida em 1910. A urbanização foi iniciada, quando a Companhia Imobiliária Kosmos adquiriu as terras do antigo engenho e loteou o terreno, erguendo casas em estilo neocolonial e arborizando o novo bairro, que, inicialmente, foi chamado Vila Guanabara e depois renomeado para Brás de Pina. A igreja da paróquia de Santa Cecília12 foi construída sobre uma colina e inaugurada em 24 de novembro de 1929. Numa época em que o Rio de Janeiro passava por grandes modificações urbanas, a Companhia Imobiliária Kosmos loteou, planejou e construiu um bairro modelo, moderno e coeso. Foram

11 O dono desse empreendimento era o engenheiro Guilherme Guinle, já que ele era presidente da Companhia Imobiliária Kosmos e dono das referidas terras. 12 Ele doou uma área deste bairro à Mitra Episcopal do Rio de Janeiro para a construção da igreja de Santa Cecília. A construção da igreja foi mais um atrativo para a vinda de novos moradores. 59

construídas casas em estilo colonial, em diferentes faixas de valor, que remontam o imaginário de ordem e limpeza urbana, junto a um centro comercial, ao lado da linha férrea e um clube chamado de Guanabara Tennis Clube que depois ficou conhecido como Country Club.

4.1.1. Forma rapsódica

O nome “rapsódia” sugere uma improvisação [...] A excelência de uma improvisação assenta-se mais em seu inspirado imediatismo e vivacidade do que em sua elaboração. É claro, a diferença entre uma composição escrita e improvisada é a velocidade de produção [...]. Assim, sob condições apropriadas, uma improvisação pode ter a profundidade de elaboração de uma composição cuidadosamente trabalhada. Geralmente, uma improvisação irá apegar-se a seu tema mais pelo exercício de imaginação e emoção do que, propriamente, das faculdades estritamente intelectuais. Haverá uma abundância de temas e idéias contrastantes cujo efeito total se adquire por meio de uma rica modulação e regiões remotas. A conexão entre temas de natureza tão diferenciada e o controle da tendência centrífuga da harmonia, são, em geral, obtidos de maneira casual, por meio de “pontes” e, inclusive, justaposições abruptas (SCHOENBERG, 2004: 198 apud TINÉ, 2008: 166).

Embora não se trate de uma improvisação, é possível relacionar a estrutura da peça Por trás de Brás de Pina com uma forma rapsódica, já que ela se assenta em repetições de diversos temas encadeados, mas que não obedece a uma forma pré-definida como a canção, a forma sonata, o minueto, o rondó, e sim trata-se de uma forma mais livre. TINÉ (2008) aclara que exemplos de rapsódia podem ser encontrados na música brasileira, como Quebra-pedra e Pato preto, ambas de Tom Jobim. Formato semelhante pode ser encontrado também em De sábado para Dominguinhos, de Hermeto Pascoal.

Por outro lado, pode-se perguntar se tal procedimento não seria o modo próprio de distribuição formal do material popular [...]. Talvez não seja por acaso que um cancioneiro como George Gershwin, quando almejou compor obras de concerto, tenha começado pela Rapsódia em Blues. O próprio Tom Jobim, quando sai da forma canção da bossa nova para processos mais regionalistas em “Quebra-Pedra” e mais recentemente em “Pato Preto”, não deixa de adotar uma construção na base da colagem do material de inspiração étnica, ainda que associada a um processo de harmonização procedente do período que o destacou (TINÉ, 2008: 167).

É importante ressaltar o que SCHOENBERG(1983) considera sobre as formas mais livres e a necessidade de classificação desse tipo de estrutura, sem a qual corre-se o risco de parecer sem uma forma clara, definida ou desorganizada: 60

Introduction, Prelude, Fantasy, Rhapsody, Recitative, and other types of musical organization which previous theorists did not describe by simply called “free”, adding, “no special form is adhered to” and “free form formal restrictions”. Form to them was not organization by restriction, thus, “free” forms would seem amorphous and unorganized. The cause of the failure of the theorists may be that no two of their “free” forms have a similar structure. But even among forms which are not free formal restrictions - scherzos, rondos, first movement of sonatas and symphonies-it is difficult to find two movements which resemble each other in more than the most primordial outline. It is these differences that make one work of Beethoven, but another only a work of XY - just as other differences make a creature a man, but another an ape. If composers did not eagerly try to name their works correctly, theorists might also consider those “restricted” forms as unorganized (SCHOENBERG, 1983: 165-166).13

Por outro lado, TINÉ (2008) acrescenta que, quando se faz a comparação do repertório jazzístico com o repertório da música popular produzida no Brasil, nos anos 1960, verifica-se pela tradição jazzística o principal procedimento que consiste na “variação” e, por sua vez, tem por principal referência à improvisação, elemento que passou a fazer parte da forma sistemática da música brasileira, principalmente, por meio da bossa-nova.

Quando se veem as análises formais de diferentes arranjos de diferentes décadas de clássicos de jazz realizados em obras como Changes Over Time e Inside Score, percebe-se que uma série de solos escritos, espaços para improvisação e solis em naipe são formados na maioria das vezes respeitando- se a estrutura do chorus ou da canção propriamente dita. Tais estruturas são às vezes totalmente, às vezes parcialmente transpostas para outra tonalidade [...] No caso brasileiro, esta estrutura da canção é raramente mantida, o que leva a um procedimento basicamente rapsódico de colagem de seções. Por outro lado, este procedimento também esteve associado historicamente à improvisação (TINÉ, 2008: 166).

13 Introdução, Prelúdio, Fantasia, Rapsódia, Recitativo e outros tipos de organização musical os teóricos anteriores não descreveram, mas simplesmente chamaram de “livres”, acrescentando que “nenhuma forma especial é aderida” e “restrições formais de formas livres”. A forma, para eles, não era organização por restrição, portanto formas “livres” pareceriam amorfas e desorganizadas. A causa do fracasso dos teóricos pode ser, porque duas de suas formas “livres” não têm estrutura semelhante. Mas, mesmo entre formas que não são restrições formais livres - scherzos, rondós, primeiro movimento de sonatas e sinfonias - é difícil encontrar dois movimentos que se assemelham em mais do que o contorno mais primordial. São essas diferenças que fazem um trabalho de Beethoven, mas outro apenas um trabalho de XY - assim como outras diferenças fazem de uma criatura um homem, mas de outro um macaco. Se os compositores não tentassem nomear corretamente seus trabalhos, os teóricos também poderiam considerar essas formas “restritas” como desorganizadas.

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Observando a estrutura presente em Por trás de Brás de Pina, percebe-se que não existe uma estrutura que se remete a formas recorrentes, como a canção, o blues ou outros formatos, já que a música aqui analisada traz as formas A/B/C/A/B/C/D/E.

4.1.2. Análise Melódico-estrutural e harmônica

A peça Por trás de Brás de Pina possui seis diferentes seções. A introdução é composta por uma frase, denominada aqui frase a, e sua posterior repetição, como se pode observar na Figura 1. Vale ressaltar que essa frase da introdução possui uma ornamentação característica, uma mordente que se repete por toda a introdução. A melodia da introdução é toda elaborada a partir do modo Ré mixolídio, o que também faz com que essa peça estabeleça mais uma conexão com o universo da música nordestina. Por esse mesmo aspecto, a maneira como Guinga elaborou essa melodia traz também à peça uma característica modal.

Ressalta-se que, na introdução desse arranjo, que possui oito compassos, verifica- se apenas o violão dobrando essa melodia com a flauta acompanhada do triângulo, entretanto a cifra D7 utilizada nos auxilia com relação ao contexto harmônico da peça. A introdução apresenta características modais, visto que as duas frases existentes neste trecho foram elaboradas a partir do modo Ré mixolídio.

Figura 1: Introdução de Por trás de Brás de Pina

Já na seção A, reporta-se que ela é composta por duas semifrases, que se repetem, conforme mostrado na figura 2. A diferença entre as duas semifrases encontra-se na nota em que são finalizadas. Enquanto a semifrase a é concluída na 5J do acorde, a semifrase a’ é 62

finalizada na 3M. Assim, a junção dessas duas semifrases forma a frase principal desta seção. Estruturalmente, a seção A configura uma sentença regular, já que apresenta uma repetição imediata da frase em questão.

De forma geral, assinala-se que, assim como a introdução, a seção A, com oito compassos, também apresenta características modais, pois a progressão principal desse trecho é formada pelos acordes Am6/D7, ou seja, Ré mixolídio. O acorde intermediário Dm6/A acaba não sendo estrutural, sendo, portanto o resultado da aproximação cromática Fá-Fá#-Fá existente, nas primeiras semicolcheias dos tempos um e dois do primeiro compasso da seção A.

Figura 2: Parte A de Por trás de Brás de Pina

Já a seção B, apresentado na figura 3, é composta por duas semifrases de igual teor e extensão, denominadas a e a’ e uma frase maior, denominada b, que, embora comece da 63

mesma forma que as duas semifrases anteriores, gera uma irregularidade com relação à estrutura geral da peça, já que o sexto compasso possui três tempos.

Pode-se afirmar que a seção B, com oito compassos, configura uma seção média contrastante, sendo que está, predominantemente, na região da tônica menor, ou seja, Ré menor.

Figura 3: Parte B de Por trás de Brás de Pina

A seção C é composta de duas semifrases, denominadas a e a’e de sua subsequente repetição. É importante observar que as duas semifrases são compostas, a partir da variação de um mesmo motivo, conforme se observa na figura 4. Esse motivo que aparece na seção C, por sua vez, está relacionado ao material usado na elaboração das frases e semifrases da seção B.

A seção C, que possui oito compassos, pode ser analisada na mesma região da seção anterior, ou seja, Ré menor, entretanto existe a possibilidade de analisar esse trecho em Fá maior, ou seja, a região da mediante bemol (-III). Assim, a progressão 64

F/Bb7/F/G7/Dm6/G7/Dm6/Bb7//F/Bb7/F/G7/Dm6/G7/Dm6/D7, que foi analisada como III/VI7/III/IV7/im6/IV7/im6/VI7//III/VI7/III/IV7/im6/IV7/im6/I714, seria analisada como I/IV7/I/II7/vim6/II7/vim6/IV7//I/IV7/I/II7/vim6/II7/vim6/VI7=I715.

Figura 4: Parte C de Por trás de Brás de Pina

Já a parte D, conforme se verifica na figura 5, possui duas frases, denominadas de a e a’. As duas frases são bem parecidas, porém as finalizações são diferentes.

Considera-se que a seção D traz a característica de vamp modal híbrido, já que, nos três primeiros compassos, a progressão de acordes B7 e F#m sugerem o modo Si mixolídio, enquanto, nos três seguintes, tem-se o modo Si frígio maior, sugerido pelos acordes Am/C e B7, embora em uma análise alternativa essa progressão também possa sugerir um movimento cadencial IV-V direcionado a Mi menor. Em contraste com as outras seções da peça, a parte D apresenta 11 compassos de extensão.

14 O último acorde desta seção, D7, já representa um retorno para a região da tônica maior, ou seja, Ré maior. 15 Assim como na análise anterior, este acorde, que em Fá maior seria o VI7, já representaria o retorno para a região da tônica maior, por isso, VI7=I7. 65

Figura 5:Parte D de Por trás de Brás de Pina

Nesse arranjo, a seção E é utilizada como base à improvisação. Como se ressalta na figura 6, ela mantém a estrutura de acompanhamento encontrada na seção A da peça. Guinga, nessa composição, procurou usar como referência para a base de improvisação uma das seções principais da peça, mas não usa a estrutura inteira para os improvisos, mesmo porque as seções de improvisação não constituem obviamente o foco principal de um trabalho como Cheio de Dedos.

Observando o que acontece no presente arranjo, nota-se uma diferença entre o espaço para a improvisação em Por trás de Brás de Pina e ao tipo de estrutura que é comumente usado para esse fim no jazz, conforme observa TINÉ (2008), quando compara os procedimentos formais existentes, na música popular brasileira, nos anos 1960 e o repertório jazzístico. 66

Quando se compara o procedimento formal na construção do arranjo no repertório estudado com o da tradição jazzística percebe-se que, no último caso, dá-se principalmente o procedimento “variação”, cuja matriz principal é a improvisação, elemento aculturado no Brasil principalmente através da bossa-nova (TINÉ, 2008: 166).

Figura 6: Parte E de Por trás de Brás de Pina

Como se denota, Guinga tem uma ligação muito grande desde o seu período de formação com o repertório clássico e com o jazz. Certamente nessa peça entende-se a influência dessas duas vertentes, tanto pelo recurso da improvisação, que remete ao repertório de jazz, apesar de essa acontecer a partir apenas de uma das seções da peça e não na estrutura completa da composição, como também por existir um acompanhamento que é fixado, o que já remete a procedimentos mais diretamente relacionados com a música clássica. Assim, o procedimento verificado para a estruturação dessa peça e, de forma específica, para a seção de improvisação, mostra a ligação profunda que Guinga mantém com ambos os repertórios. Após o solo improvisado, existe um arranjo que utiliza fragmentos da melodia principal e que serve como coda, porém sempre a partir dessa mesma estrutura de acompanhamento.

4.1.3. A participação do grupo Nó em Pingo D’água

A peça Por trás de Brás de Pina teve a participação do grupo Nó em Pingo D´água, que é um grupo carioca de choro e samba e que também busca fazer a fusão desses gêneros com o jazz e a música clássica. Para melhor compreender a atuação do grupo Nó em Pingo D´água, no arranjo analisado, considera-se interessante fazer um breve resumo da história recente do choro, para melhor compreender em que fase desse gênero o grupo se insere.

Entre o período que se estende desde o final do século XIX até meados dos anos 1960, ao mesmo tempo que o choro passa por diversas transformações, quanto à 67

instrumentação utilizada, embora de forma geral mantenha a sua estrutura formal, o gênero acaba por cada vez mais se firmar enquanto gênero musical.

A partir do terno (flauta, violão e cavaquinho), os grupos incluiriam um número cada vez maior de instrumentistas. O pandeiro seria incorporado na década de 1920 e o regional (conjunto com um ou dois solistas, cavaquinho, violões de 6 e 7 cordas e pandeiro) se tornaria indispensável para o trabalho nas rádios (ZAGURY, 2014: 1).

Nos anos 1960, Jacob do Bandolim exerceu uma função essencial para que certos procedimentos se tornassem característicos do choro. A fixação da instrumentação utilizada teve uma grande importância neste período, sendo que o grupo em formato regional passou a ser considerado ideal para interpretar esse gênero. Entretanto Jacob também tem grande importância por outros aspectos, já que cristalizou uma maneira de compor e de interpretar choro, criando, assim, uma forma de se proceder, dentro do estilo, que é percebida como tradicional até hoje. Já o grupo Nó em Pingo D´água faz parte de um movimento posterior, uma redescoberta do choro que pôde ser verificada durante os anos 1970.

Nos anos 1970 o choro experimenta o que seria denominado como uma revitalização. Junto a este movimento de “retomada”, temos alguns artistas que procuravam abordagens musicais que trariam mudanças no formato de compor e/ou interpretar o gênero, como Radamés Gnattali, o grupo Nó em Pingo D´água, dentre outros (ZAGURY, 2014: 1).

Assim, o grupo Nó em Pingo D´água foi criado em 1979, sendo a princípio composto por Celsinho Silva (pandeiro), Jorge Filho (cavaquinho), Jorge Simas (violão de sete cordas), Arthur (violão de seis cordas), Mário Sève (flauta) e Marcos de Pina (bandolim). Algumas mudanças na formação aconteceram, mas uma das mais relevantes foi a que contou com Celsinho Silva, Mário Sève, Papito, Rodrigo Lessa e Rogério Souza. O grupo teve a oportunidade de trabalhar com diversos artistas da MPB, além de Guinga, entre os quais podem-se citar Elizeth Cardoso, Ivan Lins, Paulinho da Viola e Moraes Moreira. Além disso, participaram de diversas excursões internacionais, em países como Chile, Estados Unidos, Holanda e Alemanha. Em 1983, em parceria com Antonio Adolfo, lançaram o LP João Pernambuco - 100 anos, pelo selo Funarte, sendo que esse disco chegou a ganhar o Prêmio Sharp de Música Popular na categoria Instrumental. Em 1987, lançaram o disco Salvador, pelo selo Visom, sendo que ganharam novamente o Prêmio Sharp. Em 1990, o grupo lançou um trabalho somente com composições de Jacob do Bandolim. No ano de 1996, produzem o disco 68

Receita de Samba. Em 1997, lançam o disco Viva Noel - Tributo a Noel Rosa, pela gravadora Velas, a mesma gravadora em que foi lançado o trabalho que é o objeto principal desta pesquisa. Além da participação no disco Cheio de Dedos, a parceria com Guinga se estendeu e, em 1998, o grupo lançou o CD Nó na garganta, cuja faixa-título é de autoria do violonista Guinga. Sua outra versão, presente no disco Cheio de Dedos, também consta nas análises do presente trabalho.

Entre outros trabalhos diversos, o grupo participou também de alguns songbooks lançados pela Editora Lumiar, tais como os de Ary Barroso, Tom Jobim e Chico Buarque. No ano de 2002, em parceria com o pianista Cristóvão Bastos, fizeram o disco Domingo na geral, também pela Editora Lumiar. Em 2002, participaram do disco Café Brasil - Conjunto Época de Ouro e Convidados, lançado pela WEA Music. Em 2003, produziram o disco Nó em Pingo D´água interpreta Paulinho da Viola, sendo que também participaram, em 2004, do disco Meu tempo é hoje, de Paulinho da Viola, trabalho que constitui a trilha do documentário sobre esse artista. Em 2016 lançaram o trabalho Sambatologia.

Segundo depoimento dado por Mário Sève para esta pesquisa, na época da participação do Nó em Pingo D´água, na gravação de Por trás de Brás de Pina, os integrantes do grupo estavam bem próximos de Guinga, não só do ponto de vista pessoal, mas também das suas composições, já que eventualmente faziam alguns trabalhos em parceria.

Nosso primeiro encontro foi num concerto fora do Rio que a gente foi convidado a tocar juntos, e aí você sabe que a música do Guinga não é de chegar lá e tocar, a gente teve que aprender o estilo do Guinga e adaptar à linguagem do grupo Nó em Pingo D´água ao estilo dele, inclusive até fazendo alguns arranjos sobre outras coisas que não têm a ver com esse disco exatamente. Então assim começou o nosso encontro, ficamos muito amigos (LOPES, 2019)

Conforme citado anteriormente, no disco Cheio de Dedos, encontra-se, também, a peça Nó na garganta, que, mais tarde, foi dedicada por Guinga ao grupo, inclusive, nomeia um dos trabalhos do Nó em Pingo D´água, lançado dois anos depois da participação em Por trás de Brás de Pina. Papito Mello, que era o baixista do grupo à época, em seu depoimento, comenta sobre a faixa Nó na garganta, gravada pelo Nó em Pingo D´água e sobre o arranjo de Por trás de Brás de Pina:

O Guinga fez aquela música, Nó na garganta, é uma música que ele fez pro Nó em Pingo D´água, que é o grupo em que eu tocava, que a gente gravou 69

esse disco. Ele fez essa música pra gente, a gente gravou um disco, com o título, Nó na Garganta, que é essa música, com um arranjo legal, com cordas e tudo mais. É um disco do Nó em Pingo D´água, o primeiro disco de músicas autorais do Nó em Pingo D´água, e aí o Guinga fez essa música pra gente. A gente ficou muito tocado, muito sensibilizado, ele gostou muito do arranjo também e aí logo depois ele gravou esse disco, o Cheio de Dedos, e nos chamou para fazer essa participação na música Por trás de Brás de Pina. Aí, o arranjo que fez fui eu e o Rodrigo Lessa (MELLO, 2019).

Papito Mello ainda enfatiza alguns aspectos da convivência com Guinga e de sua reação, ao ouvir a mixagem da faixa Nó na garganta, quando foi gravada pelo Nó em Pingo D´água:

Falar do Guinga é muito fácil. É um cara de piada, um cara de um humor fino à toda prova, é um cara de uma emoção à toda prova. [...] Na gravação da música Nó na garganta, no nosso disco, eu me lembro que assim que terminou a mixagem, eu botei pra ele no telefone a música e ele chorou copiosamente do outro lado, ficou emocionado...Isso é o Guinga, um super compositor, um super amigo, um cara da melhor qualidade, um cara facílimo de viver (MELLO, 2019).

Ressalta-se, ainda, que um componente importante da sonoridade do grupo diz respeito à utilização do baixo elétrico, que não é usual em grupos de choro e, também, de forma geral, não é utilizado no disco Cheio de Dedos. Papito comenta que esta característica do grupo não foi muito bem aceita por setores mais tradicionais do choro carioca:

Eu toco só baixo elétrico. O diferencial já era do grupo propriamente dito. No Nó em Pingo D´água, esse foi um diferencial da gente como grupo de choro. Saiu o violão de 7 cordas e o cavaquinho e entrou o baixo elétrico na história e isso deu uma sonoridade um pouco diferente [...] No começo o pessoal do choro ficou meio sem saber muito o que dizer, o pessoal mais tradicional do choro não gostou, mas depois a gente acabou conquistando esse pessoal todo, principalmente o Época de Ouro, fizemos muitos shows com o Época de Ouro, que era o conjunto mais tradicional de choro do Brasil, conjunto do Jacob do Bandolim, .e eles gostavam muito da gente, então graças a essa bênção do Época de Ouro, a gente conseguiu furar esse bloqueio que naquela época era muito forte do choro tradicional, a instrumentação do choro tradicional e do pessoal aceitar o baixo elétrico dentro do choro, então isso era uma característica do grupo. Foi aproveitada dentro do disco do Guinga também, que tem uma sonoridade mais de baixo acústico nas outras faixas todas, mas no Nó em Pingo D´água é baixo elétrico mesmo. Eu usava muito o fretless. Nessa gravação do Guinga eu usei um baixo com trastes, mas eu usava muito o fretless também (MELLO, 2019).

Na época da gravação do disco Cheio de Dedos, o grupo estava produzindo uma série de shows, em uma casa noturna do Rio de Janeiro, com diversos convidados, como Ivan 70

Lins, Paulinho da Viola, Zé Renato, Dona Ivone Lara, entre outros. Leila Pinheiro, por exemplo, depois de ter participado de uma dessas apresentações, convidou o grupo para fazer alguns dos shows de lançamento do disco Catavento e Girassol, pois estava sendo lançado nessa época. Claro que, nessas apresentações, eram executadas outras músicas do repertório de Leila Pinheiro, mas nessa época boa parte do material tocado estava ligado ao repertório de Guinga. Em seu depoimento, Mário Sève conta também que Paulinho Albuquerque foi bastante importante para a participação do Nó em Pingo D´água na gravação presente no disco Cheio de Dedos, tanto por sua proximidade com Guinga, como pelo fato de ser o seu produtor musical à época. Vale citar a importância atribuída ao compositor Guinga por Mário Sève em seu depoimento:

Essa música do Guinga tem uma importância muito grande para quem começa a conhecer, você fica deslumbrado, vai estimulando você a fazer outras, a compor, a tocar, a fazer arranjos novos de idéias novas [...] E o Guinga sempre teve uma cabeça muito aberta, eu vi o Guinga sempre muito interessado em ouvir a rapaziada nova, em aprender coisas novas (LOPES, 2019).

Mário Sève comenta que o fato de ter participado dessa gravação trouxe muitas novas idéias não só para o grupo, mas também de forma individual a cada integrante. Posteriormente a esse trabalho, Rodrigo Lessa escreveu arranjos para Leila Pinheiro, e o grupo gravou a composição Nó na Garganta com a participação do próprio Guinga, entre outras coisas.

4.1.4. Descrição do arranjo

Segundo depoimento de Mário Sève, o grupo Nó em Pingo D´água, de forma geral, possui uma maneira específica de trabalhar, no que se refere à elaboração dos arranjos, visto que são produzidos de forma coletiva quando o grupo tem a oportunidade de se reunir. Normalmente um ou dois integrantes, dependendo da peça, estabeleciam algumas ideias sobre como deveria ser feito aquele arranjo, digerindo aquela composição, para transformá-la e inseri-la na sonoridade do coletivo. Mário se recorda de ter ensaiado e gravado partes que estavam escritas.

Assim, o arranjo aqui analisado é assinado por Rodrigo Lessa e pelo baixista Papito. Segundo Mário Sève, algumas ideias presentes neste arranjo, relacionadas a convenções rítmicas e levadas foram sugestões do baixista Papito, pois este possuía uma grande 71

vivência com a música pernambucana. Papito, em seu depoimento, detalha seu envolvimento com a música da região de Pernambuco, o que explica algumas das escolhas dos elementos rítmicos verificados nesse arranjo:

Eu me apaixonei desde cedo pelo maracatu. Eu conheci o Lenine antes que todo mundo, ainda em Pernambuco, o Lenine em Pernambuco, a gente passou uma noite inteira levando som no alto da serra e poucos meses depois disso ele veio pro Rio de Janeiro. Então assim, embora eu nunca tenha tocado profissionalmente com o Lenine, no começo da carreira do Lenine, eu tive muito presente aqui no Rio, os dez primeiros anos dele aqui, que ele não era famoso, eu convivi muito com ele, e assim, toquei muito maracatu com ele, as músicas dele, outras músicas de outros artistas como Ivan Santos, Tadeu Matias, Lula Queiroga, veio todo mundo junto. Eles moravam no mesmo apartamento, então eu frequentava muito lá. Então eu me apaixonei pelo maracatu já naquela época. Então, quando a gente resolveu fazer esse arranjo, eu dei como ideia trazer pro maracatu pra gente fugir do lugar comum do baião, que todo mundo faria o baião ali, normal. E o maracatu sempre se presta bem dentro do baião. E aqueles pífanos também, acho que fui eu que tive a ideia daqueles pífanos iniciais ali, pra fazer a introdução, e foi isso, aí sentamos juntos, a gente no Nó em Pingo D´água fazia muito isso assim: alguém cuidava do arranjo, uma ou duas pessoas, duas pessoas era até raro (MELLO, 2019).

Papito, além do mais, destaca a liberdade que o grupo teve quanto ao processo de arranjo e produção da faixa e, também, algumas explicações de outra ordem, para a escolha dos elementos rítmicos utilizados, ou seja: tentar dar um tratamento diferente àquela composição, de forma a sair do que seria óbvio:

A gente entrou mais pro maracatu pra fazer alguma coisa um pouco diferente daquilo que ele já fazia na música, do que ele tinha idéia. Ele adorou [...] que a gente colocou umas flautas, umas dobras de flauta com bandolim, bem legal assim. A base do maracatu no pandeiro, com o Celsinho também. Foi bem bacana e o resultado parece que o Guinga gostou muito também. Foi isso. Muito simples, trabalhar com amigos, excelentes músicos, bons produtores que deixam você à vontade. A gente teve carta branca pra fazer o que quisesse... (MELLO, 2019).

Para ensaiar o arranjo proposto, antes da gravação oficial, o grupo costumava se reunir no próprio estúdio Discover, onde foi gravado o disco Cheio de Dedos e, por coincidência, também o disco do grupo Nó em Pingo D´água, em homenagem a Noel Rosa, lançado em 1997. Ainda segundo Mário Sève, para a gravação de Por trás de Brás de Pina, o grupo fez diversos ensaios, a fim de chegar à gravação com tudo já muito bem definido sobre como fazer, bastando algumas resoluções sobre o andamento a ser utilizado e algumas 72

pequenas inserções de frases durante o arranjo. Ou seja, foi claramente um arranjo estruturado e escrito.

Mário Sève afirma, também, que o arranjo não foi gravado ao vivo; ele recorda que a parte dos sopros foi gravada posteriormente, não por questões técnicas do grupo, mas pelas condições disponíveis de gravação naquela situação, posto que o estúdio não era de tamanho adequado, para realizar uma gravação ao vivo com um grupo grande. Papito Mello, em seu depoimento, ressaltou alguns detalhes sobre o processo de gravação da participação do grupo Nó em Pingo D´água, na faixa Por trás de Brás de Pina, como, por exemplo, a importância do técnico Guilherme Reis, para a construção da sonoridade do trabalho, além de citar também Paulinho Albuquerque. Além disso, nesta passagem de seu depoimento, cita Chano Dominguez, com quem teve a oportunidade de travar contato nessa época:

Esse disco rolou todo muito fácil, com o Paulinho Albuquerque, que era um cara também da mesma onda do Guinga, um cara de um humor à toda prova e também de uma competência de juntar as pessoas, de deixar todo mundo à vontade...então foi relativamente tranquilo. A música [Por trás de Brás de Pina] era um baião originariamente. Eu adoro maracatu, aí eu puxei um pouco o baião para o maracatu no arranjo e fiz em conjunto com o Rodrigo Lessa. Gravamos com um super técnico, que era o Guilherme [Reis], que já faleceu e que também era responsável por todo aquele som bonito do disco (..) Muito prazerosa a gravação, deu tudo super certo. Conheci um grande amigo, Chano Dominguez, que é um pianista espanhol. Eu só fui ter noção do tamanho do Chano Dominguez, a gente ficou amigo aqui, ficamos trocando e-mails durante muito tempo, (...) Quando eu tive na Espanha, e ele por acaso nem estava lá, eu nem estive com ele lá, mas lá eu tive a noção do tamanho dele na música espanhola. Ele é o Egberto Gismonti espanhol. É um fenômeno. (...) Essa época foi um contato muito prazeroso, muito proveitoso, assim, musicalmente, com Guinga, Paulinho Albuquerque, Lula Galvão (MELLO, 2019).

Com relação ao arranjo, a peça Por trás de Brás de Pina seguiu o formato conforme verificado no fonograma analisado: A/B/C/A/B/C/A/D/E. Na introdução, tem-se a melodia principal dessa parte feita com violão e flauta, acompanhados pelo triângulo. Já na seção A, a melodia principal foi feita com o saxofone soprano e existe um contracanto que é tocado com a flauta e o bandolim. A percussão foi feita com pandeiro e agogô, e baixo elétrico e violão são utilizados no acompanhamento. Na seção B, a melodia também é feita com o saxofone soprano. A percussão foi feita com xequerê, reco-reco e ganzá, enquanto, de igual modo, são usados baixo elétrico e violão no acompanhamento, porém, agora, com o acréscimo do bandolim. Entretanto, enquanto o violão de forma geral nesse trecho utiliza arpejos, o bandolim faz os 73

acordes sem arpejá-los, na maior parte do tempo, mudando apenas no final dessa parte, quando já assumira os arpejos que iriam ser parte importante de sua atuação na seção seguinte. Na seção C, a melodia é feita pelo saxofone soprano, mas a flauta faz respostas à melodia, porém de forma bem rítmica. No acompanhamento, além do baixo elétrico, percebe-se o violão e o bandolim fazendo arpejos. A repetição das seções A, B e C seguem, de forma geral, a mesma organização dos instrumentos utilizados e já descritos. Na próxima repetição da seção A, verifica-se que a melodia é feita com dois saxofones, em contraste com as repetições anteriores, enquanto a percussão é feita com pandeiro e agogô, e o acompanhamento é realizado com violão e baixo. O contracanto é feito com flauta e bandolim. Na seção D, encontra-se um grande contraste quanto às seções anteriores. A melodia é executada a partir de uma dobra entre saxofone soprano e flauta. O violão faz o acompanhamento a partir de arpejos, e a percussão, a partir do uso de pandeiro com vassoura, surdo imitando a alfaia e triângulo, procura trazer para o arranjo a acentuação típica do maracatu16. A parte E, conforme citado, é utilizada como base para a improvisação de saxofone soprano e foi toda baseada em estrutura da parte A. Assim, a percussão é feita com pandeiro e agogô, enquanto o acompanhamento é feito com violão e baixo elétrico. O background rítmico existente nessa parte é feito com flauta e bandolim. Ao final do solo de saxofone soprano, percebe-se um retorno da melodia, executada fragmentada e com dois saxofones e, no fim da peça, nota-se o uso do recurso de fade-out.

Participaram da gravação desse arranjo, além de Guinga (violão), Rodrigo Lessa (bandolim), Rogério Souza (violão), Papito (baixo elétrico), Mário Sève (flautas e saxofone soprano), Celsinho Silva (pandeiro, agogô, xequerê, pandeiro com vassoura, ganzá, surdo, triângulo e reco-reco).

4.2. Nó na garganta

A faixa Nó na Garganta é assinada somente por Guinga. Segundo depoimento de Lula Galvão, o clima entre os músicos e a equipe de produção durante as gravações do disco Cheio de Dedos era de grande descontração, apesar da consciência de que tinham mais adiante um trabalho de grande complexidade, visto que, como se constata, de forma geral, as composições e arranjos presentes na obra de Guinga possuem um grande nível de dificuldade. Vale citar aqui um pequeno trecho do seu depoimento em que se visualiza em qual ambiente o

16 Conforme citado anteriormente, em seu depoimento, Mário Sève atribui estas inserções de acentuações que são típicas do maracatu à parte da atuação do baixista Papito neste arranjo, já que este último já tinha nesta época uma relação bastante próxima com a música pernambucana. 74

fonograma, que é o objeto desta pesquisa, foi registrado e também em qual ele descreve a interação entre Guinga e Paulinho Albuquerque naquele contexto:

Essa figura [Guinga] é uma figura complexa...Vem junto com ele toda uma vivência que ele teve [...] A mesma perspicácia, o convívio da brincadeira, da rapidez [...] Coisas muito engraçadas, inteligentes pra caramba [...]Então você imagina, juntar o Paulinho Albuquerque, que já gostava pra caramba da coisa do humor, o trabalho com o Casseta e Planeta [...] Chegava no estúdio, era assim, sem brincadeira [...]. O Guinga só falava besteira, Paulinho Albuquerque quase caindo da cadeira de tanto rir, a gente não parava de rir, era um lance impressionante [...] A gente ria pra caramba, mas tinha pela frente a gravação daquelas músicas, que não eram fáceis… (GALVÃO, 2019).

Segundo alguns dos depoimentos colhidos para esta pesquisa, como, por exemplo, os de Carlos Malta e do próprio Guinga, algumas das faixas presentes no disco Cheio de Dedos, tais como Dá o Pé, Loro e Cheio de Dedos, puderam ter seus arranjos executados diversas vezes em apresentações, nos mais variados contextos, de forma que suas estruturas e distribuição nos instrumentos pudessem ser testadas e, se necessário, alteradas. Em outros casos, como na participação do grupo Nó em Pingo D´água, na faixa Por trás de Brás de Pina, o grupo chegou bastante coeso às seções de gravação, tendo ensaiado e feito experimentos com os arranjos antes de entrar em estúdio. Porém, em algumas das faixas, como Ária de Opereta e Nó na Garganta, grande parte de seus respectivos arranjos foram elaborados, diretamente, durante as sessões de gravação, conforme se verifica, a partir do depoimento de Lula Galvão, que descreve um momento em que Paulinho Albuquerque solicita-lhe uma importante contribuição para esse arranjo:

As músicas que já estavam assim, organizadas [...] Algumas já estavam definidas, e outras não estavam, e aí surge a ideia: “E se o Lula fizer a melodia, assim, dessa música aí, Nó na Garganta?” ...tem que aprender, né? Eu não conhecia a música [...]E aí eu fui ver [...] Aprendia assim na hora as coisas, as melodias difíceis [...] Tinha um tempo da brincadeira e tinha um tempo das coisas sérias, pegar as coisas na hora, no estúdio... (GALVÃO, 2019).

Algo semelhante aconteceu, durante as gravações da faixa Divagar, quase pairando. A princípio, estava programado que Lula iria realizar um solo, mas, ao final, fez também a melodia, que teve que ser aprendida naquele momento. Neste trecho, ele também comenta e destaca a performance nessa gravação de Paulinho Trompete: 75

Essa aí foi naquele mesmo clima de Nó na Garganta. Também sugeriram que eu fizesse a melodia, e essa já estava programado que eu fosse fazer um solo. Essa também eu aprendi lá na hora. E aí eu me lembro que depois que eu fiz o solo e tudo, chegou o Paulinho Trompete, pegou lá a gravação [..]. O cara chegou lá, aprendeu o lance [...]. Alguém sugeriu pra ele, ele saiu tocando no final e [...] fez um puta solo no final (GALVÃO, 2019).

Lula Galvão, em seu depoimento, lembra também que o seu improviso presente, na coda da faixa Nó na Garganta, foi uma sugestão do Paulinho Albuquerque:

Até tem um final, que não sei até quando é sugestão do Guinga ou do Paulinho, que eu fizesse tipo um improviso, assim [...] na segunda exposição do tema, eu fazia uns comentários, e no final, tipo um solo [...] Como o Paulinho sugeriu que a melodia fosse feita no violão, e já na hora pintou a ideia de fazer comentários em cima da própria melodia, entendeu? Então foi assim tipo um presente pra mim, a faixa ficou assim [...] Eu fazendo a melodia e me deram também a oportunidade de fazer solo ali no final e no meio [...] O Paulinho tinha essa coisa, ele gostava muito de música, então quando ele viu a possibilidade de que o violão liderasse ali no caso de fazer a melodia da música, ele viu também isso de fazer comentários, solo... (GALVÃO, 2019).

Quando perguntado se, de forma geral, a sua atuação no disco Cheio de Dedos esteve relacionado com questões além da parte como instrumentista nas gravações e na elaboração de alguns dos arranjos, Lula Galvão declara:

Me lembro que o Guilherme Reis [...] era um cara assim muito meticuloso, que gostava de tirar som de violão [...] Coisas que a gente fazia, assim, de dois violões, já ouvia ali e já ficava tudo...já saía meio que mixado o negócio [...] Claro que depois com as coberturas [...] o espaço vai sendo dividido [...] Eu não participava de processo de mixagem, não participava nesse disco assim (GALVÃO, 2019).

Em situações de gravação, costuma ser bastante comum que músicos convidados apenas compareçam à sessão apenas para realizar os seus registros, ficando focados em questões de execução e interpretação das faixas com as quais se vai trabalhar, tendo acesso ao material gravado somente depois de tudo pronto. Em outras situações, o músico convidado pode participar ativamente tanto do processo de captação como dos processos de mixagem e masterização, tendo assim uma interação maior com a feitura do trabalho. Dessa forma, a partir das declarações dadas em seu depoimento, apreende-se que este o primeiro caso ilustra o que aconteceu com Lula Galvão neste fonograma.

76

4.2.1. Análise melódico-estrutural

Nesta peça, como em grande parte das composições e arranjos da obra de Guinga, compreende-se a predominância das melodias que surgem pelas digitações do violão, ou seja, aqui o caráter idiomático é muito presente. Não que tal fato aconteça na totalidade da peça, porém, em muitos momentos, como se visualiza, a partir da sobreposição da melodia principal com o acompanhamento presente nesta análise, o desenho da melodia principal está presente na maneira como Guinga desenvolve seus arpejos no acompanhamento. Apesar de o arranjo apresentar duas exposições da melodia aqui descritas, o acompanhamento de violão, aqui transcrito, é de forma geral o mesmo em toda a peça. Assim, optou-se por transcrever cada parte apenas uma vez de forma a concentrar a análise na estrutura da melodia principal.

A introdução de Nó na Garganta tem oito compassos de extensão. Não há uma melodia de introdução, a qual é feita apenas pelos arpejos, como se percebe na figura 7.

Figura 7: Introdução de Nó na garganta.

Figura 8: Primeiro fragmento da seção A de Nó na garganta 77

Com 18 compassos, a seção A é extensa, portanto preferiu-se, neste contexto, dividi-la em dois fragmentos, como forma de facilitar a sua visualização. Esta seção é composta por quatro frases, denominadas de a, b, a’ e c, conforme se verifica nas figuras 8 e 9. As frases a e b são compostas por duas semifrases cada. A frase a’ destoa das duas anteriores, possuindo três semifrases. Já a frase c possui estrutura rítmica totalmente diferente das três frases anteriores.

Figura 9: Segundo fragmento da seção A de Nó na garganta

Comparando-se as figuras 8 e 10, os primeiros fragmentos das seções A e A’ são iguais. A diferença entre essas seções se encontra no final do segundo fragmento, mais exatamente nas frases c, como se pode verificar nas figuras 9 e 11. Embora possuam tamanho semelhante, ambas apresentam contornos diferentes, sendo que, após a segunda frase c, existe um interlúdio de quatro compassos, como é mostrado ao final da figura 11. Essa diferença, nas últimas frases de cada seção, faz com que o número de compassos entre elas seja diferente, pois enquanto a seção A possui 18 compassos, a seção A’ possui 21 compassos. 78

Ainda com relação à estrutura da parte A, é importante notar que as duas semifrases que compõem as frases a são elaboradas a partir de um motivo de três notas, que é apresentado logo no primeiro tempo da primeira semifrase e é desenvolvido nos compassos seguintes por meio de variações nas alturas utilizadas. Esse motivo só é abandonado na segunda semifrase, que compõe a frase b, sendo retomado na frase a’ e abandonado novamente durante a frase c.

Figura 10: Primeiro fragmento da seção A’ de Nó na garganta

Na seção A’, algo semelhante acontece, novamente as três primeiras semifrases são elaboradas a partir desse motivo de três notas, que é abandonado no final da frase b, sendo retomado depois na frase a’. Na semifrase extra presente na frase a’, existe uma variação no uso do motivo, já que aqui ele é repetido apenas duas vezes, em vez das três, que são habituais na quase totalidade da peça. Assim como ocorre no final da frase b, o motivo principal é deixado de lado novamente durante a frase c. Assim, embora a estrutura dessa seção possa ser vista como um tanto irregular, já que em A temos 18 compassos e em A’ temos 21 compassos, as frases, semifrases e motivos são estruturados de forma bastante coerente nesta composição. 79

Figura 11: Segundo fragmento da seção A’ de Nó na garganta

A seção B possui 20 compassos e é descrita nas figuras 12 e 13. A exemplo do que foi feito na análise da seção A, optou-se, neste cenário, por fragmentar a seção e facilitar a visualização, já que ela é demasiadamente extensa. A seção B é composta por quatro frases, denominadas de a, b, a´ e c. A primeira e terceira frases desta seção, respectivamente, a e a’, são bastante parecidas; a diferença entre elas é o fato de a segunda frase ter a harmonia diferente da primeira. Ritmicamente, de forma geral, esta seção é bastante contrastante quanto à seção anteriormente analisada, sendo que retoma o motivo principal da peça apenas em parte da frase b. Porém, de igual modo, é bastante coerente internamente, visto que ritmicamente as frases a 80

e a’ são bastante próximas. A frase c, embora possua diferenças rítmicas com relação à parte a, pode-se afirmar que têm grande ligação com a mesma.

Figura 12: Primeiro fragmento da seção B de Nó na garganta

A exemplo do que acontece ao final da seção A, em que há um pequeno interlúdio e a melodia faz uma pequena pausa, ao final da parte B, tem-se o mesmo procedimento nos quatro últimos compassos representados na figura 13.

Na figura 14, a coda é composta, a partir dos mesmos materiais presentes na introdução e serve como vamp para o improviso de violão ao final do arranjo. Nesta transcrição, deixou-se a coda com quatro compassos e a barra de repetição, mas, neste momento do arranjo, destaca-se o uso da técnica de fade-out.

81

Figura 13: Segundo fragmento da seção B de Nó na garganta

Figura 14: Coda de Nó na garganta

4.2.2. Análise harmônica

A introdução de Nó na garganta se encontra na região da submediante menor, ou seja, na tonalidade de Sol# menor, que, como se verá adiante, é a mesma tonalidade em que a seção B se encontra. Vale ressaltar o uso da nota pedal no baixo e também o fato de este mesmo vamp usado na introdução aparecer no final da parte B. 82

Já as seções A e A’ da peça se encontram na região da tônica, ou seja, Dó menor. Embora existam diferenças em sua estrutura harmônica e melódica, ambas permanecem na mesma região tonal. Apesar do vamp no final da parte A’ guardar certa semelhança com o que acontece na introdução, como, por exemplo, no formato dos arpejos do acompanhamento de violão, é possível observar que se trata de material distinto.

Na seção B, acontece uma modulação para a região da submediante menor, que, segundo os critérios de monotonalidade propostos por Schoenberg, seria uma modulação do tipo indireta, o que traz bastante contraste com relação às seções A e A’, embora não seja totalmente inesperada, posto que este material já foi utilizado durante a introdução.

A coda possui o mesmo material apresentado durante a introdução, porém, desta vez, serve de base para o improviso de violão.

4.2.3. Descrição do arranjo

O arranjo da peça Nó na garganta possui o formato introdução/A/A’/B/A/A’/B/coda. Assim, de forma geral, o que acontece, nesse arranjo, é uma repetição da estrutura principal do tema A/A’/B, com acréscimo, na segunda exposição, de mais um violão fazendo diversas frases em resposta à melodia e de detalhes na percussão.

Na introdução, são perceptíveis dois violões fazendo os arpejos, além do baixo acústico fazendo uma nota pedal e o triângulo na percussão. Já nas seções A e A’, que possuem estruturas semelhantes no arranjo, as diferenças entre as partes estão mais ligadas à finalização da melodia; já que um dos violões se mantém nos arpejos, enquanto o outro faz a melodia, ficando em destaque na mixagem. O acompanhamento do baixo se torna mais movimentado, buscando ornamentar os espaços deixados pela melodia. Na percussão, nesta seção, podemos ouvir, além do triângulo, o ganzá.

Na transição para a seção B, na percussão, pode-se ouvir um prato, provavelmente tocado sem baquetas, além do ganzá e triângulo já utilizados na seção anterior. O baixo acústico, nesta seção, apresenta ainda mais liberdade nas respirações da melodia. No final da seção B, a entrada de um terceiro violão terá grande importância na seção seguinte.

Nas seções A e A’ seguintes, que possuem arranjo semelhantes, a exemplo do que ocorre anteriormente, além dos dois violões principais, um fazendo os arpejos e outro fazendo a melodia, um terceiro violão realiza diversas frases nos espaços deixados pela melodia. Na 83

percussão, além do ganzá e do triângulo, tem-se a inserção de pratos de forma semelhante ao que acontece na seção anterior, além do tamborim que aparece no final do A’.

Na última aparição da seção B, há dois violões principais, um com a melodia e outro com os arpejos, mas não se tem aqui o terceiro violão fazendo as frases em resposta à melodia principal, o que certamente funciona como um contraste com relação à seção anterior e também com relação à coda, em que o violão solo tem grande destaque. Na percussão, há tamborim, além do triângulo e ganzá. Logo no início desta seção, a presença do prato evidencia a transição da seção anterior e a sua finalização.

Na coda, o elemento de destaque é o solo de violão, entretanto, também, escutam- se, no acompanhamento, os dois violões principais deste arranjo fazendo arpejos, além do baixo acústico, que, em vez que realizar uma nota pedal, a exemplo do que acontece na introdução, procura executar uma linha mais movimentada, apesar da cifra sugerir uma nota pedal. Verifica-se o também nesta seção o uso na percussão de um surdo, além dos já citados triângulo, ganzá e tamborim e prato na transição.

No que se refere à concepção da gravação, neste tipo de arranjo, fica evidente também o uso de sobreposições ou overdubs, pois, em diversos momentos, podem-se ouvir três violões e diferentes percussões sobrepostas. No que se refere à maneira como a percussão é utilizada neste arranjo, certamente, o procedimento de se inserir novos elementos aos poucos nas diferentes seções. Na introdução, ouve-se apenas o triângulo, já na coda há uma gama variada de instrumentos, como ganzá, tamborim, pratos e surdo, além do triângulo. É interessante observar, também, o fato de que, em vez de o solo ficar entre as exposições do tema, como seria comum em situações mais estandardizadas, aqui há duas exposições da estrutura principal A/A’/B, antes que o solo aconteça na coda. As principais diferenças entre as duas exposições residem no uso de um terceiro violão nas seções A e o acréscimo de elementos percussivos.

Participaram desta gravação, além de Guinga (violão), Lula Galvão (violão), Armando Marçal (surdo, prato, triângulo, ganzá e tamborim) e Jorge Helder (baixo acústico).

4.3. Cheio de Dedos

A faixa que dá título ao terceiro disco de Guinga, Cheio de Dedos, possui duas versões que estão neste trabalho. Um dos arranjos é feito com dois violões, enquanto outro foi elaborado somente com sopros e escrito por Carlos Malta. Segundo o depoimento de Lula 84

Galvão a respeito de sua parte no arranjo para dois violões de Cheio de Dedos, depois de aprender as peças compostas por Guinga, Lula buscava visualizar os pontos em que havia um espaço para as suas contribuições. Essa interação entre os violões de Guinga e Lula Galvão, certamente, está presente na maioria das peças gravadas pelos dois nos diversos discos de Guinga. Segundo seu depoimento, muitas de suas sugestões de acordes eram experimentadas diretamente com Guinga, que costumava abrir espaço para essas contribuições.

Eu aprendia assim as coisas e procurava fazer um complemento, mais para o registro agudo, de forma que pudesse calçar ali [...] Muitas vezes, a harmonia fica suspendida ali, então esse processo pra mim era muito legal porque eu tinha uma liberdade de experimentar com o próprio compositor ali e ele respaldando, porque quando ele faz a melodia da música que ele compôs no violão, ele compõe na parte grave ali, aí ele joga os acordes mas tem horas que fica só a melodia... (GALVÃO, 2019).

É interessante notar também algumas considerações a respeito do processo de composição de Guinga a partir da perspectiva de Lula Galvão e a descrição do procedimento deste último quanto às composições que precisava estudar para fazer as gravações e apresentações.

O Guinga, quando ele compõe, o negócio vem prontíssimo, com as vozes complementares, contracantos, tudo [...] E isso também que era a parte delicada, porque eu tinha que fazer...eu vou trabalhar na parte mais aguda e tentar ao máximo possível ver o que que era e tudo...fazer uma análise assim...ele usa muito a corda solta..você olhando, pensa que é um acorde, e quando você vai analisar já é outra coisa [...] E a melodia, também, você tem que saber qual a função daquele acorde na hora [...] Não é uma música que a pessoa chegue e saia tocando assim...você tem que ter um convívio e fazer uma análise...(GALVÃO, 2019).

4.3.1. Análise melódico-estrutural

Para a presente análise, adotou-se como referência o arranjo para violão elaborado por Guinga. A introdução da peça Cheio de Dedos é composta por oito compassos e pode ser dividida em duas frases, denominadas a e a’ pela sua similaridade, sendo que possuem apenas dois finais diferentes, observada na figura 15. 85

Figura 15: Introdução de Cheio de Dedos

Nas duas frases da introdução, percebe-se que, embora a melodia esteja em destaque na transcrição, ela surge totalmente das digitações dos acordes no braço do violão, ou seja, é quase que integralmente baseada em seus arpejos, com exceção apenas das quatro colcheias que compõem o anacruse. Entretanto outro ponto que parece relevante nesses dois trechos é o fato de Guinga ter elencado uma série de possibilidades de harmonizações para a nota Ré, ou seja, a nota da melodia, que é realmente apoiada pelos acordes e acaba sendo colorida de diferentes formas pelas diferentes funções, ou seja, assumindo diferentes significados em cada bloco de notas. No primeiro acorde, Cm7(9), assume o papel de uma 9M, enquanto, no acorde B7(9+), será a 9+. No acorde Eb7M/G, o Ré será a 7M, enquanto, no Am7(5o/11), será a 11J. No acorde Ab7(11+), a nota Ré representará a 11+, para então subir para o Mi bemol, no acorde seguinte, G7(13-), no qual será a 13m, sendo que, nesse penúltimo acorde da frase a da introdução, pode-se encontrar a nota Mi bemol na melodia. Na primeira vez da introdução, no final, o Mi bemol da melodia se torna novamente Ré, 9M do acorde Cm7(9) e, na segunda vez da introdução, representada aqui pela frase a’, pode-se perceber que a diferença com relação à primeira vez está no acorde final, que passa a ser Db7M(11+), sendo que a melodia neste ponto está na nota Dó, 7M do referido acorde. Já a seção A possui 14 compassos, enquanto a seção A’ possui 13 compassos. Nota- se que a anacruse que inicia a seção A e a melodia principal da composição é bem parecida com o anacruse da introdução, sendo apenas a sua variação. As seções A e A’ possuem quatro frases cada, embora a frase final da parte A’ seja um pouco menor, daí a assimetria que faz com que essa seção apresente apenas 13 compassos, como se apresenta na figura 16. 86

Figura 16: Seções A e A’ de Cheio de Dedos

A frase a, cujo trecho em semicolcheias que permeia o final do primeiro e o segundo compassos da seção A tem, assim como a introdução, evidente característica idiomática do instrumento de Guinga, já que essa melodia mescla, em sua construção, o emprego de cordas soltas com arpejos baseados na digitação do braço. Ao final do segundo compasso da frase a, observa-se um cromatismo que liga a 7m do acorde Cm7(9), Si bemol, passando pelo Lá, ao Lá bemol que é a fundamental do acorde Ab7(13-) presente no compasso seguinte. Nesse mesmo compasso, o último da frase a, encontra-se novamente o recurso idiomático de Guinga, ao elaborar suas melodias a partir das digitações típicas do instrumento, como se pode observar nos acordes Ab7(13-)/Gb e G7(13-)F. No primeiro e segundo 87

compassos da frase b, há uma cadência II/IV - V°9/IV que se direciona para o IV, que aparece no compasso seguinte. Porém, nesse compasso, tem-se um acorde F(9), aqui analisado como V/VII, em vez de uma acorde menor. O Si natural que aparece nesse compasso configura uma antecipação do B7 do compasso seguinte, analisado aqui como subV/VII. No início da frase b da seção A, também, no primeiro e segundo compassos, há uma sequência de arpejos com contornos similares. No acorde Gm7(5°), há dois arpejos; o primeiro, que é ascendente, é um Ab/G, enquanto o segundo, descendente, é um Gm7(5°)/F. Ambos os arpejos são coerentes com a estrutura do modo Sol lócrio. Algo semelhante acontece no compasso seguinte, que se inicia com um arpejo E° ascendente, embora a sequência seja quebrada no final, provavelmente, por uma questão idiomática do violão, pois a mudança de padrão provocada pelo desenho proposto, nas últimas semicolcheias desse compasso, viabiliza a bordadura Lá bemol - Mi - Sol. Esse tipo de contorno melódico, realizado nesse trecho, ou seja, sequências de arpejos que embora diferentes fazem parte das escalas de acorde do momento conectados por graus conjuntos e slides ao final de cada grupo de semicolcheias, certamente, é um recurso típico do universo do Choro, como, por exemplo, na seção A de Capricho, de Zé Lico, ou na seção B de Chorei17, de Pixinguinha. Procedimento semelhante ainda pode ser observado em Desiludido18, de Tico-Tico. Esse Sol, ao mesmo tempo em que é a resolução da referida bordadura Lá Bemol - Mi - Sol é, também, uma nova apojatura, já que a nota Sol é a 9M do acorde Fm(9) existente no compasso seguinte. Logo, na sequência, na frase c, é importante observar a repetição de uma mesma ideia meio tom abaixo, nos acordes B7 e Bb7. A única diferença entre eles, embora mínima, reside no fato de que o baixo do acorde B7 é antecipado, enquanto o Bb7 está na cabeça do segundo tempo. Porém, em termos de material melódico, nessa frase, há muita similaridade com o material usado nas frases anteriores. As duas últimas frases da seção A, denominadas d e e, começam de forma semelhante, porém não terminam da mesma forma, já que d prepara a seção A’, enquanto e prepara a transição para a seção B. Entretanto deve-se evidenciar o caráter idiomático das

17 Embora em ambos os casos, obviamente, os arpejos desta seção de Capricho sejam, de maneira geral, iguais ascendente e descendentemente, em oposição ao que faz Guinga, ao subir e descer com arpejos diferentes dentro do mesmo modo. Entretanto existe a similaridade do contorno da melodia e o fato de ambas serem elaboradas a partir de arpejos.

18 Aqui também é possível observar a similaridade no contorno melódico elaborado a partir de arpejos. Neste caso, foram utilizados arpejos diferentes ascendente e descendentemente, o que é bastante próximo ao procedimento utilizado por Guinga no referido trecho de Cheio de Dedos, embora neste último parece mais razoável pensar em arpejos diferentes dentro no mesmo modo, enquanto em Desiludido podem-se verificar arpejos em sentido oposto, mas de acordes com funções diferentes. 88

melodias desse trecho. No acorde do segundo compasso da frase e da seção A, é importante ressaltar o uso de duas bordaduras incompletas com as notas Ré-Mi e a antecipação da nota Si, que será a 4J do F#m7(4) do próximo compasso. A seção B contém 22 compassos e seis frases, sendo que a última frase apresenta mais um caráter de transição e prepara o retorno da seção A, dentro do arranjo, como se observa na figura 17.

Figura 17: Seção B de Cheio de Dedos

No início da seção B, já em Mi menor, na frase a, na melodia, a 4J que foi antecipada será resolvida na 3m do acorde, ou seja, trata-se de uma apojatura. Assim, nessa frase a, o acorde Em7 será analisado como I de Mi menor e, aqui, estabelece-se claramente a nova tonalidade. Entretanto observa-se o emprego de uma aplicação dissociada do modo dórico, já que, nesse trecho, novamente, o uso de arpejos aparece dentro deste modo. O segundo compasso se inicia com um arpejo A/G descendente, sendo seguido por um arpejo G/F# tocado de forma ascendente. Observa-se a conexão entre os arpejos feita por graus conjuntos. 89

Na frase b da seção B, tem-se o modo lócrio 4°/7° para o acorde D#°, considerado aqui como o V°9 da tonalidade de Mi menor. Neste momento, encontra-se, novamente, a utilização dos arpejos sequenciais, porém em sentido contrário e sempre coerentes com o modo do momento, neste caso, Ré# lócrio 4°/7°, sétimo grau de Mi menor harmônico. No primeiro compasso da frase b, há um arpejo de F#m7(5o)/E descendente, uma bordadura Mi-Ré#-Mi e novamente o arpejo F#m7(5o)/E, porém, agora, em sentido ascendente e finalizando na cabeça do compasso seguinte. No segundo compasso dessa mesma frase b, há um cromatismo entre as notas Ré-Ré sustenido-Mi e novamente o arpejo F#m7(5°) de forma ascendente. No início do terceiro compasso da frase b, não existe um arpejo, quebrando, de certa forma, o padrão verificado anteriormente, entretanto são notas totalmente coerentes com o modo do momento. Uma interpretação alternativa seria dizer que se trata de um arpejo Am7/G, porém com a 5J substituída pela 4+. No final do terceiro compasso novamente aparece o arpejo F#m7(5°) de forma ascendente. No último compasso, de certa forma, ele abandona a ideia dos arpejos e antecipa a mudança de modo, utilizando as notas da escala de Sol maior, com exceção da primeira nota Ré sustenido, pois o modo predominante, no primeiro acorde da frase seguinte, é Sol Jônio. Nesta frase b, é importante verificar também a recorrência da figura rítmica, utilizando fusas presentes na primeira metade do segundo compasso e que se repetem, embora com alturas diferentes, no início do quarto compasso dessa frase. Na frase e da seção B, destaca-se, de igual modo, a utilização de arpejos sequenciais em sentidos contrários, a exemplo do que foi ressaltado em alguns momentos das frases analisadas anteriormente. Entretanto, apesar de mais uma vez serem utilizados arpejos, trazendo para a composição uma nova recorrência deste recurso, Guinga enriquece o arranjo, usando os arpejos de forma distinta das anteriores, embora essa aplicação lembre bastante o que acontece em frases que aparecem antes. No primeiro compasso, tem-se um arpejo G/F# feito de forma ascendente e, na sequência, F#m7(5°)/E descendentemente. Ambos fazem parte do modo indicado como escala de acorde, Fá# lócrio. No final do primeiro compasso e começo do segundo compasso dessa frase, há uma bordadura Mi-Ré#-Mi e, logo depois, dois arpejos de F#m7(5°)/E, sendo que o primeiro é feito logo depois da bordadura, e o segundo logo depois de um cromatismo, realizado pelas notas Ré-Ré#-Mi, sendo que este segundo invade o compasso seguinte, sendo a resolução no Em7(9), analisado aqui como I e acontece somente na quarta semicolcheia do terceiro compasso desse fragmento, podendo ser considerado esse ponto como mais uma assimetria dentro desta peça, o que certamente pode ser considerada uma característica importante dessa e de outras composições de Guinga. Deve-se salientar que, novamente, os arpejos do segundo compasso são totalmente coerentes com o modo Ré# lócrio 90

4°/7°. A coda possui três compassos, como se observa na figura 18. Neste trecho, acredita-se que os pontos mais relevantes dizem respeito à análise harmônica, já que acontece uma digressão19 para a região de Sol maior, conforme será comentado posteriormente.

Figura 18: Coda de Cheio de Dedos

4.3.2. Análise harmônica Cabe ressaltar a interação existente entre as cordas presas e soltas na digitação utilizada por Guinga, em diversos momentos, como, por exemplo, para o acorde Db7M(11+) existente no final da introdução, como será visto na sequência. Ele utiliza a terceira corda (Sol) solta, procedimento bastante característico do compositor e amplamente utilizado, em diversas peças de sua autoria, tais como Perfume de Radamés, Dichavado, Pra quem quiser me visitar, Di Menor, entre tantas outras e que se trata de um recurso bem específico do violão. Distingue-se, no original para violão, a introdução, que está em Dó menor. É feita duas vezes, mudando-se apenas o último acorde de cada vez: como se pode verificar na cifragem dos acordes, proposta no exemplo 1. As funções de cada grau foram observadas da seguinte maneira na primeira vez: Cm7(9) - I; B7(9+) - SubV/VII; Eb7M/Bb - III; Am7(5o/11) - II/V; Ab7(11+) - Sub V/V; G7(13-) - V; Eb7M/G - III. Na segunda vez, verifica-se uma sequência similar de acordes, com exceção do acorde final, como se pode detectar: Cm7(9); B7(9+); Eb7M/Bb; Am7(5o/11); Ab7(11+); G7(13-); Db7M(11+) - -II. O último acorde da introdução, Db7M(11+), presente no final do exemplo dois, é um acorde napolitano, sobre o qual TINÉ(2014) afirma:

Tradicionalmente o acorde napolitano é a primeira inversão do acorde maior do II grau rebaixado em meio-tom na escala maior ou menor. O nome sexta napolitana advém do fato que na harmonia tradicional, se grafar a primeira inversão com o número 6(no caso IV6), já que este intervalo acontece entre o baixo invertido e a fundamental do acorde. Já a designação “napolitano” é relativamente arbitrária. No caso da música popular a primeira inversão é

19 No contexto das análises musicais do presente capítulo, uso o termo digressão conforme TINÉ (2014). 91

deixada de lado e a indicação se faz com II- (TINÉ, 2014: 72).

A seção A tem seu início na tonalidade de Dó menor. Em sua frase a, essa seção se inicia no acorde Cm7(9), analisado aqui como I, para, na sequência, ir para Ab7(13-)/Gb, analisado como SubV/V. Neste mesmo compasso, também são dignos de nota a sua duração irregular20 de três tempos e o fato de tanto o Ab7(13-)/Gb quanto o G7(13-)/F serem acordes na terceira inversão. Já na frase b da seção A, constata-se uma cadência secundária que se direciona ao IV, mas, ao chegar a este respectivo grau, ele está alterado e já representa, na verdade, outro acorde dominante, V/VII. Na frase c da seção A, têm-se os acordes B7 e Bb7 que podem ser analisados como SubV/VII e V/III. Na sequência, aparece o Eb6, analisado aqui como III, para, logo depois, chegar ao -II, Db6, sendo que, nesse grau, há novamente um acorde napolitano, a exemplo do que foi verificado na introdução da peça. Este Db6 precede o Ebm/Gb, que pode ser interpretado como subII/V, já que, logo na sequência, na frase seguinte, irá se conectar ao V. Assim, do mesmo jeito que é possível um acorde dominante ser substituído por outro, um trítono acima, em um movimento análogo, acontece o mesmo com o II. No contexto da tonalidade de Dó menor, a cadência II/V - V/V - V poderia tanto se dirigir a um Gm7, que seria o V de Dó menor natural, como também ao G7, que comumente seria o V de Dó menor harmônica, mas poderia ser também o V de Dó menor melódica. Desta forma, é perfeitamente justificável que a escala que serve como referência para este acorde seja o dórico. De qualquer forma, aqui caberia também, de igual modo, a máxima de que “tudo que serve ao menor serve ao maior”, já que, apesar de o V posterior ser um acorde maior, encontra-se aqui um IIm7 em vez de um acorde meio diminuto. Vale lembrar, também, que Guinga utiliza duas aberturas diferentes, na sequência, para esse acorde. No início do compasso, apresenta-se um Ebm7(4)/Gb, enquanto no seu final, de forma antecipada ritmicamente, há um Ebm7(4) que, na verdade, é uma sobreposição de quartas, recurso muito utilizado no vocabulário harmônico do jazz, principalmente modal e, também, algo bastante idiomático do instrumento, já que a afinação tradicional do violão, que é praticamente toda em quartas, de forma geral, mostra-se bastante adequada para a execução de acordes desse tipo. Neste fragmento, o que se pode observar é o uso das tensões adicionadas de forma bastante similar aos dois primeiros acordes, provavelmente, mais por aspectos idiomáticos do violão que por outros critérios harmônicos ou melódicos. Deve-se ressaltar, além disso, a utilização de um cromatismo no baixo entre

20 Irregular com relação à estrutura geral desta composição. 92

esses dois acordes, no final do segundo compasso da frase c, assim como o processo de preparação da nota Lá bemol, que aparece no final do terceiro compasso da frase c e é a 5J do acorde Db6, mas é suspensa e se torna a 4J do acorde Ebm7(4), sendo resolvida, logo depois, no Sol bemol, 3m desse mesmo acorde. Na frase d da seção A, observamos no seu início o acorde G6, analisado aqui como V e que, neste contexto, exerce o papel de dominante apesar de a sétima estar omitida, o que pode também ser interpretado como uma forma de ambiguidade. Observa-se a utilização da 6M, na primeira corda solta do violão, assim como a 9M na segunda casa da corda Sol. Esses intervalos caracterizam a escala que é referência a esse acorde como Mixolídio. Esse acorde será utilizado para a digressão para o tom homônimo, Dó maior, pois a propriedade de ambos os tons terem o mesmo acorde como dominante viabiliza essa transição. O acorde B7(9+) será analisado como subV/VII, se considerarmos ainda a tonalidade de Dó menor. Entretanto ele também poderia ser considerado como um V/III, se a tonalidade de Dó maior já for assumida neste momento. No compasso seguinte, há uma frase que neste contexto pode ser considerada como fazendo parte do I de Dó maior. Logo depois, apresenta-se uma cadência subV/V-V, realizada pelos acordes Ab7(9) e G7(9) e prepara a volta para o começo da seção A, com a utilização mais uma vez de uma assimetria na estrutura rítmica da peça. Na sequência, o Ab7(9), analisado como subV/V, precede o G7(9). Se considerarmos apenas a figura rítmica que imita o que aconteceu nos dois acordes, o G7(9) pode ter como modo de acorde o Mixolídio. Entretanto, se considerarmos a nota Mi bemol, presente no anacruse do retorno da seção A, o modo para esse acorde poderia ser Mixo 13-. Ou seja, neste ponto existe uma ambiguidade na estrutura da peça que não deixa claro se é uma preparação para Dó maior ou Dó menor. Algumas outras interpretações alternativas para os fenômenos harmônicos aqui descritos são cabíveis. O acorde Db6, por exemplo, foi considerado nesta análise como um acorde napolitano. Entretanto, neste acorde, Guinga não utiliza o intervalo de sétima, o que pode ser interpretado como uma ambiguidade, pois a sétima seria essencial para diferenciar a sua função entre subV ou -II. Por outro lado, também, uma cadência napolitana entre os acordes Db6 - G7 - C6, respectivamente -II , V e I, destaca-se, apesar de as interpolações existentes feitas pelos acordes Ebm7(4) e B7(9+). No final da seção A da peça, novamente, observa-se o uso de recursos idiomáticos, tanto pela construção melódica, a partir das digitações dos acordes indicados na cifragem, como também pelo amplo uso das cordas soltas e ligaduras. Neste trecho, ainda, encontra-se um compasso de três tempos, que está em consonância com o que foi verificado no terceiro fragmento. Na finalização da seção A’, a semelhança com o primeiro acorde do primeiro final é total, entretanto, neste cenário, é possível de observar uma digressão 93

para a tonalidade de Dó maior. Porém, é importante ressaltar a ambiguidade dos acordes G6 e C6, posto que, nessa passagem, não é utilizada a nota Fá sustenido. Uma interpretação aceitável que seriam acordes pivô para preparar a introdução na cadência da nova tonalidade, Mi Menor e que vai predominar na seção B. As seções A e A’ estão em Dó menor, quase integralmente, embora terminem no tom homônimo maior e, na segunda vez, ou seja, no final da seção A’, essa cadência é utilizada para possibilitar a transição para Mi menor. No final da seção A’, encontra-se o mesmo acorde do final da seção A, sendo que o mesmo recurso idiomático de utilizar ligaduras e cordas soltas é mantido, porém, em vez do B7(9+), tem-se, na sequência, o C6(9). Ao final da seção A’, verifica-se um momento de transição cuja cadência realizada pelos acordes F#m7(4) e F7(11+), que, em Dó maior, seriam, respectivamente II/III e subV/III, mas que, nesta perspectiva, tornam-se II e SubV e são essenciais à nova tonalidade, Mi menor, a fim de que seja confirmada. Assim, no início da seção B, na frase a, observa-se uma busca pela estabilização na tonalidade de Mi menor, entretanto, na frase b, observa-se o acorde dominante D#° que acaba se direcionando ao acorde G7M(6) da frase c, em vez de confirmar a modulação para Mi menor, algo que só vai acontecer de maneira clara no final desta seção. A frase c da seção B se inicia com o acorde do III, G7M(6). Na sequência, há três outros acordes, F#m7M(6), Ebm7M(6) e Cm7M(6). Pode-se afirmar que existe uma relação entre esses acordes que não pode ser considerada funcional, e sim simétrica. Entretanto, com o Cm7M(6), é diferente, pois pode ser considerado como o IVm7M do G7M, ou seja, a sua subdominante menor. Porém, nesta análise, esses acordes serão denominados, respectivamente, como II, VII e VI. É provável que não foi este o critério utilizado por Guinga para elaborar essa passagem. Esse trecho parece ter sido elaborado muito mais a partir de elementos idiomáticos no violão e dos paralelismos gerados por esses acordes, visto que, independente da tipologia desses acordes e de sua análise, os três conservam a mesma digitação no braço do instrumento, mas com uma distância de um tom e meio de um para outro. Uma hipótese é a de que Guinga pode ter pensado no movimento dos baixos, que faz um arpejo triádico diminuto em sentido descendente, mas preencheu as vozes, além do baixo, de forma mais livre. Identificam-se ecos desse tipo de procedimento em composições de Hermeto Pascoal, Leo Brouwer, Villa-Lobos e em outras composições do próprio Guinga. Na frase d da seção B, que se inicia no III, a exemplo do da frase anterior, há uma sequência de acordes que faz uma progressão que não exatamente prioriza os movimentos cadenciais, mas que se mostra extremamente idiomática. Após o primeiro acorde, G7M(6), no qual se destaca, novamente, uma construção melódica que se mostra bastante idiomática, 94

apesar de fazer parte de forma geral do modo Sol Jônio, pois, neste ponto, no acorde G7M(6), que é III, certamente foram priorizadas as cordas soltas, como é frequente em peças elaboradas especialmente para o violão, posto que as notas Ré, Sol e Si podem ser executadas nas cordas soltas do instrumento, o que favorece a sua sonoridade específica. Já o E7(9+) traz a estrutura do modo Mi alterado e uma aplicação dissociada21 do sétimo grau da escala menor melódica. Vale lembrar que Guinga faz, neste momento, algo bastante específico do instrumento, pois, ao mesmo tempo em que faz algumas ligaduras de expressão ascendentes, mantém algumas notas soando, ou seja, o tratamento dado a diferentes grupo de notas é específico, valorizando assim a característica polifônica do violão. O terceiro compasso dessa frase d apresenta duas variações para o VI, C7M, VI da escala de Mi menor natural e, logo depois, um acorde C+, apesar de ser o VI, o que sugere um caminho harmônico muito mais ligado à condução de vozes do trecho que os acordes gerados por um determinado campo harmônico. No final desse trecho, o acorde B7(9+) sugere um movimento parecido com o verificado no acorde E7(9+), que, além de ter a mesma tipologia, faz o mesmo procedimento bastante idiomático, em que realiza algumas ligaduras ascendentes de expressão enquanto mantém outras soando. Na frase e da seção B, os arpejos do primeiro compasso fazem parte da estrutura do Fá# lócrio, enquanto, no compasso seguinte, pelo mesmo motivo e apesar do cromatismo, observa-se o modo Ré# lócrio 4°/7°. Ou seja, neste ponto, tem-se implícita uma cadência II- V°9-I que se direciona para o Em7(9). Na frase f da seção B, já ocorre o preparo do retorno para a tonalidade inicial da peça, Dó menor. Embora o acorde F7M/A não seja muito usual como IV de uma tonalidade menor, acredita-se que a análise seja adequada se for observada a cadência que prepara a volta para o tom de Dó menor, sendo que a utilização desses dois acordes e suas tensões adicionadas está novamente muito mais relacionada ao aspecto idiomático do violão que com questões de arranjo ou harmonia que sejam anteriores, ou ainda, a uma aplicação das cadências de forma que a tonalidade seja bastante ambígua, não ficando claro se ainda se volte para o tom maior ou para o tom menor. Deve-se evidenciar, na frase f, novamente, o uso de um compasso irregular para este contexto, de três tempos, gerando assimetria em mais um trecho da peça, conforme verificado em momentos anteriores, ou seja, acontece um retorno do mesmo tipo de recurso utilizado em outros momentos da composição. Na coda, assinala-se uma digressão em direção à tonalidade de Sol maior realizada pelos acordes Bb7M(11+), analisado como -III, ou seja, um empréstimo modal da tonalidade

21 Uso o termo aplicação dissociada conforme proposto por TINÉ(2014). 95

de Sol menor, seguido por um Ab7M(11+), que pode ser analisado como um acorde napolitano nesta mesma tonalidade. Assim como sugerido em outros momentos desta análise, certamente, a escolha desses acordes, para a coda parece refletir muito mais o critério idiomático do compositor, mas que leva a composição por caminhos harmônicos menos usuais e bastante sofisticados. Contudo, vale lembrar também que na análise harmônica proposta para este trecho, acontece uma digressão em direção a Sol maior e que esta não é a única possibilidade de análise viável. Pode-se considerar também uma finalização no terceiro grau do tom de Mi menor.

4.3.3. Descrição do arranjo

A estrutura do arranjo da peça pode ser dividida da seguinte maneira: Intro/A/A’/B/Intro/A/A’/B/Coda. De maneira geral, não existem diferenças significativas na execução das repetições das seções desse arranjo. Deve-se ressaltar, também que, de forma geral, Guinga não costuma realizar improvisações ou grandes variações, no que diz respeito à dinâmica, quando interpreta essa peça. Uma possível explicação a esse aspecto é que se trata de algo proposital, pois é uma peça com grande riqueza de detalhes em seus materiais. O arranjo aqui analisado foi executado com dois violões com cordas de nylon, sendo que ainda existe um outro arranjo para sopros para esta peça, elaborado por Carlos Malta e que, também, faz parte do mesmo disco. O violão principal transcrito aqui e que será o objeto de análise, neste texto, foi gravado por Guinga, e o segundo violão, de forma geral, que proporciona os reforços harmônicos aos lugares apropriados, foi gravado por Lula Galvão.

4.3.4. Comparação entre trechos das duas versões da peça Cheio de Dedos Neste disco, como se constata, existem duas gravações dessa peça: uma com dois violões, gravada por Guinga e Lula Galvão, e outra somente com instrumentos de sopro, mais exatamente saxofones e flautas. Este último fonograma é o resultado de um arranjo elaborado por Carlos Malta para essa peça. Assim, neste capítulo, será verificado se existem diferenças e semelhanças entre as duas propostas de arranjo, para que se possa melhor compreender de que forma ambos foram concebidos. Como exemplo de análise, serão avaliados pequenos trechos de ambas as peças e sua análise comparativa a fim de entender da maneira mais clara possível as suas características e procedimentos. Carlos Malta, em entrevista concedida em razão desta pesquisa, conta ter conhecido Guinga durante uma visita que o compositor fez à casa de Hermeto Paschoal, junto com 96

Ithamara Koorax22. Cita que foi numa época em que Guinga e a cantora estavam fazendo algumas apresentações na casa Mistura Fina23. Vale ressaltar que Carlos Malta, como se verifica, tocou por um tempo considerável com o grupo de Hermeto, gravando os discos “Hermeto Paschoal e Grupo” (1982), “Lagoa da Canoa” (1984), “Brasil Universo” (1986), “Só não toca quem não quer” (1987) e “Festa dos Deuses” (1992). Carlos Malta recorda, em seu depoimento, ter ficado impressionado, nessa oportunidade, com o alto nível das composições de Guinga e com o que define como “sotaque brasileiro cheio de refinamento e originalidade” (MALTA, 2017), visto que o violonista não era conhecido nessa época como é atualmente. O flautista lembra também que, neste dia, esse encontro entre Hermeto Paschoal e Guinga foi bastante proveitoso do ponto de vista musical, com performances para os presentes e, nessa oportunidade, Hermeto convidou Guinga e Ithamara para fazer uma participação, em uma apresentação, que o seu grupo faria na casa de shows Circo Voador24. Logo depois de ter saído da banda de Hermeto, em 1993, Carlos Malta passou um período na Suíça, onde gravou com o violoncelista Daniel Pezzotti o disco “Rainbow”. Assim que voltou para o Rio de Janeiro, o flautista estava ansioso para mostrar este trabalho a alguns amigos, entre os quais estava Guinga. E, segundo consta em seu depoimento, a partir desse encontro, passou a tocar algumas músicas com Guinga e convidou-o tanto quanto Leandro Braga a uma apresentação na casa Rio Jazz Club, que, segundo Carlos Malta, aconteceu entre maio e junho de 199325. De acordo com o seu relato, nessa apresentação, participou, também, o fagotista Geraldo Jorge e, no repertório, foram incluídas algumas peças de Guinga, outras de Hermeto Pascoal e, ainda, um arranjo para flauta e fagote de uma das Bachianas Brasileiras, de Villa-Lobos. Assim, conforme consta no depoimento do flautista, no período que precedeu ao arranjo e à gravação do disco Cheio de Dedos, era comum que tanto Guinga convidasse Carlos Malta, para fazer participações em suas apresentações, como o contrário também acontecia. Nesta época, segundo Carlos Malta, tocaram em diversos lugares do Rio de Janeiro, mas também em locais no exterior, citando, inclusive, algumas apresentações na Espanha. Carlos Malta destaca uma das peças que aprendeu e mais tocou nesta época com Guinga, justamente, Cheio de Dedos. Afirma que, na época em que o compositor estava preparando o repertório

22 Carlos Malta não soube precisar exatamente a data, acreditando ter sido em 1991 ou 1992, aproximadamente. 23 Segundo Carlos Malta, na época em que este estabelecimento ainda se situava na Rua Garcia D´Ávila. 24 Casa de espetáculos da cidade do Rio de Janeiro, localizado no bairro da Lapa, literalmente uma tenda de circo, daí o nome. 25 Novamente, o arranjador não soube dizer com precisão a data da referida apresentação. 97

que viria a ser o disco homônimo, o violonista já tocava essa música em duo com Lula Galvão. Então, a partir daí, o flautista aprendeu a tocar também essa peça e eles executavam essa composição com a formação de dois violões e flauta. Sobre o processo de ensaio, o arranjador comenta, em seu depoimento, que tanto ele quanto Guinga e Lula Galvão tocavam todas as peças decoradas, sem nenhuma referência escrita. O máximo que acontecia, segundo a descrição de Carlos Malta, era escrever algum trecho inicial, alguns poucos compassos, em algum pedaço de papel que estava à mão para facilitar a lembrança posteriormente. Ou seja, o processo de aprendizado das músicas era bastante prático, feito quase que totalmente nos ensaios, durantes as tardes, na casa do compositor no Leblon. Em caso de dúvida, em estudos subsequentes aos ensaios, tudo era resolvido por telefone, cantarolando e conferindo diretamente com Guinga o correto desenvolvimento de suas melodias intrincadas, já que Carlos Malta não costumava levar nenhum tipo de gravador nessas sessões. O arranjador descreve, também, que, para ele, as músicas de Guinga não eram decoradas por meio de seus esqueletos harmônicos, pelas suas estruturas tonais e cadências, mas sim buscando entender quais eram as melodias principais elaboradas pelo compositor. Nessa época, quando costumava tocar bastante essa peça, Carlos Malta teve a ideia de escrever um arranjo dessa composição somente com sopros. Segundo sua própria descrição, passou a fazer anotações das ideias harmônicas que se escondiam por trás daquela melodia toda arpejada. Nesse período, Paulinho Albuquerque, que era o produtor do referido fonograma, como fora citado anteriormente, pediu a Carlos Malta que elaborasse um arranjo para a faixa Dá o pé, Loro. O flautista, então, fez um arranjo utilizando flautas para essa faixa. Esta gravação de Dá o pé, Loro, presente no disco Cheio de Dedos, conta inclusive com a participação do violoncelista Daniel Pezzotti, já citado. Durante o processo de gravação, quando Paulinho Albuquerque veio mostrar a gravação com dois violões de Cheio de Dedos, Carlos Malta sugeriu ao produtor a inclusão de mais um arranjo dessa peça no disco, porém utilizando saxofones barítono, tenor, alto e soprano, duas flautas em Dó, uma flauta em Sol, uma flauta baixo e o piccolo. Argumentou que, em sua visão, poderia ser muito interessante que o disco começasse com o arranjo para duo de violões e terminasse com os sopros e, como já estava bastante acostumado a tocar essa música com o Guinga nas apresentações, seria muito fácil elaborar e gravar tudo. A ideia inicial era de que o seu arranjo para sopros soasse como uma vinheta para o disco. Carlos Malta lembra que tudo foi feito à mão e, posteriormente, quando Guinga foi tocar com a Orquestra Jazz Sinfônica, Malta cedeu a grade do arranjo e as partes separadas ao 98

compositor. Um aspecto interessante é que o arranjador considera que essa grade funcionou muito bem para a gravação realizada, mas para uma execução ao vivo não seria adequado, sendo necessário utilizar uma amplificação para as flautas ou então utilizar um número maior de flautas, visto que existe o risco de o arranjo soar desequilibrado, o que mostra que o arranjador considerou utilizar processos diferentes para as duas situações. Carlos Malta, ainda, pondera que, em seu arranjo, procurou alterar pouco o que foi escrito por Guinga, procurando manter uma fidelidade ao arranjo para violão. Porém, verificando o arranjo de Malta, há alterações na forma e na maneira como as aberturas dos acordes foram elaboradas, como por exemplo pode ser verificado aqui, na comparação entre as introduções. Entretanto o mesmo compositor afirma que procurou manter o tom original da peça, apesar de esse ser, de certa forma, incômodo para o saxofone26. Sobre o processo de gravação, surgiram alguns detalhes interessante em seu depoimento: Malta afirma que não foi elaborada uma guia com instrumentos para realizar a gravação, mas sim que gravou uma guia de referência, cantarolando a melodia junto com o metrônomo. A gravação do arranjo para sopros foi toda feita por camadas, do grave para o agudo, ou seja, nada foi gravado ao vivo, nem aconteceu de um grupo realizar performances desse arranjo. O arranjador gravou todos os saxofones e flautas presentes nesse fonograma. Assim, obviamente, não foram realizados ensaios com um grupo para essa sessão de gravação. O arranjador afirma, também, que teve total liberdade para escrever e gravar o arranjo, sendo que fez todo o processo acompanhado por Paulinho Albuquerque. Guinga teria visto o arranjo já todo gravado e aprovado totalmente o resultado sem propor nenhuma alteração. Vale ressaltar que Carlos Malta já elaborou outros arranjos ao compositor, tais como em Chá de Panela, Baião de Lacan, entre outros. Quando perguntado sobre quais os procedimentos de escrita que costumava utilizar de forma consciente, ou se faz uso de técnicas como as propostas, por exemplo por Ian Guest, Carlos Almada e outros na estruturação de seus arranjos, Malta afirma que, praticamente, desconhece tais procedimentos, sendo a sonoridade do que está produzindo o seu guia principal, além da grande experiência com as características dos seus instrumentos de proficiência, de forma a ter um maior controle dos resultados. Existiria, então, um abismo entre os métodos propostos por esses autores e a feitura de arranjos e adaptações como os da referida peça? Carlos Malta explicita, como um dos seus principais guias, o conhecimento como executante de cada um dos instrumentos utilizados no arranjo analisado. Então, com sua experiência como instrumentista em estudos, shows e

26 Como é possível verificar, na análise que se segue, a tonalidade inicial da peça é Dó menor. 99

gravações, tem plena consciência do que tem uma sonoridade viável ou não para os instrumentos de sopro nos quais costuma atuar. Considera, além disso, importante a sua experiência com overdubbing27, ou seja, o procedimento que fez em seu próprio arranjo para Cheio de Dedos. Sendo um ex-aluno de Paulo Moura e com uma pequena passagem pela universidade de música, Carlos Malta declara-se quase que totalmente autodidata, mas pondera, em seu depoimento, que a experiência, tocando e gravando com Hermeto Paschoal, foi, decerto, uma das suas mais importantes escolas. Entretanto, ao mesmo tempo, comenta ter participado das gravações relacionadas aos exemplos que compõem o método de arranjo de Ian Guest, sendo que, com frequência, reconhecia procedimentos que já utilizava e que tinha visto, muitas vezes, estudando as grades que Hermeto produzia, mas que não sabia exatamente as suas denominações técnicas, tais como drops, clusters, contracantos, entre outros.

4.3.4.1. O arranjo de Guinga para a peça Cheio de Dedos Assim, conforme descrito, salientam-se algumas diferenças entre as introduções dos dois arranjos, como forma de exemplificar e diferenciar os procedimentos utilizados por Guinga e Carlos Malta, em suas respectivas leituras da peça Cheio de Dedos. Na figura 19, é possível ver a introdução de Cheio de Dedos,conforme o original de Guinga:

Figura 19: Cheio de Dedos: Introdução, compassos 1 a 8 (Arranjo para violão elaborado por Guinga).

27 Como é conhecida a prática de se fazer dobras tocando consigo mesmo em gravações. 100

Como se observa, no original para violão, a introdução é feita duas vezes, mudando-se apenas o último acorde de cada vez, conforme se pode verificar na cifragem dos acordes, proposta na figura 19. As funções de cada grau e suas respectivas escalas foram observadas da seguinte maneira, na primeira vez: Cm7(9) - I / B7(9+) - SubV/VII / Eb7M/Bb - III /Am7(5b/11) - II/V / Ab7(11+) - Sub V/V / G7(13b) - V / Eb7M/G e, na segunda, Cm7(9) / B7(9+) / Eb7M/Bb - III / Am7(5b/11) / Ab7(11+) / G7(13b) / Db7M(11+) / -II.

Não existem evidências suficientes, neste caso, para definir, se o Ab7(11+) existente na última semicolcheia do segundo tempo dos compassos 3 e 7 da figura 19, deve adotar o modo mixo 11+ ou o modo alterado. É muito mais comum, no entanto que o acorde, classificado como subV, utilize o modo adotado nesta análise.

The Lydian b7 chord scale is used for all substitute dominants chords (expected resolution down a half step), bVII7 (expected resolution up a whole step, IV7 in a major key context (expected resolution down a perfect fourth), and extended substitute dominant chords (also expected to resolve down a half step) (NETTLES, s/d).

Algo similar acontece com o acorde G7/13b existente no segundo tempo dos compassos 4 e 8 da figura 19. Seria viável, a partir das notas existentes nesse acorde, que o modo considerado fosse o alterado. O último acorde da introdução, Db7M(11+), presente na última semicolcheia do segundo tempo do compasso 8, é um acorde napolitano. Uma hipótese sobre as aberturas dos acordes escolhidos por Guinga, para esse arranjo, é a de que elas estão muito mais relacionadas com a facilidade e conforto de suas respectivas digitações, no braço do instrumento, caracterizando, assim, os chamados violonismos e não por pertencerem a um determinado sistema de inversões e aberturas que não necessariamente proporcionam movimentos característicos do violão. Quanto a esse aspecto, é interessante citar o que diz Cardoso a respeito da presença destes procedimentos da música de Guinga:

Ao longo deste período de cerca de dois anos de pesquisa sobre a música de Guinga, reparamos como os elementos idiomáticos de seu violão constituem um elemento presente em seu processo composicional. No início de nossas investigações trabalhamos com diversos parâmetros, como a harmonia e os padrões motívico-melódicos, mas percebemos como a centralidade dos violonismos na obra deste compositor tem reflexos agudos em todos os demais parâmetros de sua música: sua construção violonística é uma das matrizes de sua concepção harmônica e melódica (CARDOSO, 2006: 79).

A tabela, a seguir, mostra as aberturas utilizadas por Guinga em seu arranjo para a 101

introdução da peça Cheio de Dedos.

Acorde Abertura utilizada

Cm7(9) Posição fechada, com 5J omitida e 9M adicionada

B7(9+) Sobreposição de quartas

Eb7M/Bb Drop 2

Am7(5b/11) Drop 2, com 3m substituída pela 11J

Ab7(11+) Drop 3, com 5J substituída pela 11+

G7(13b) Drop 3, com 5J substituída pela 13b

Eb7M/G Drop 3

Db7M(11+) Posição Fechada, com 5J substituída pela 11+ Tabela 1: Aberturas utilizadas por Guinga na introdução da peça Cheio de Dedos

4.3.4.2. O arranjo de Carlos Malta para a peça Cheio de Dedos Em seu depoimento, Malta relata que, em seu arranjo, alterou pouquíssimo o que foi escrito por Guinga, procurando fidelidade ao arranjo original para violão. Porém, verificando o arranjo de Malta, localizam-se diversas alterações na forma e em diversos elementos do arranjo. Assim, nas figuras 20 e 21, tem-se a transcrição da grade original da introdução do arranjo de Cheio de Dedos elaborado por Carlos Malta. As partituras originais foram cedidas por este arranjador para a elaboração desta pesquisa e encontram-se nos anexos deste trabalho. No trecho selecionado, observa-se a maneira como Malta trabalhou com os timbres dos instrumentos disponíveis. Na figura 20, que mostra a primeira parte da introdução, o arranjo traz os quatro saxofones, enquanto, na figura 21, que traz a segunda parte da introdução, constata-se o uso das flautas e do saxofone soprano. É importante notar que, nas transcrições das figuras 20 e 21, a seguir, estão os sons reais, sem transposição, para facilitar a visualização dos elementos destacados. 102

Figura 20: Cheio de Dedos: Introdução, compassos 1 a 5, primeira parte (Arranjo para sopros elaborado por Carlos Malta).

Figura 21: Cheio de Dedos: Introdução, compassos 6 a 9, segunda parte (Arranjo para sopros de Carlos Malta).

Ao contrário do que acontece no arranjo para violão, as aberturas dos acordes, utilizados nas duas vezes em que a introdução é tocada, diferem entre si, e ambas, como se 103

pode perceber a partir da transcrição, também, utilizam sonoridades bem diferentes dos que podem ser verificados no original para violão. As funções de cada grau e suas respectivas escalas, na primeira parte da introdução, escrita por Carlos Malta, na figura 20, foram observadas da seguinte maneira: Eb7M – III / Eb+7M – III / Eb7M(6M) – III / Eb+7M – III / Eb7M – III / Dbm7(9M) - IIb(acorde de aproximação cromática) / Cm7(9) - I. Ressalta-se a característica de aproximação cromática do acorde Dbm7(9) em direção ao Cm7(9):

É usada quando a inflexão encontra-se à distância de segunda menor da nota- alvo. Talvez seja a técnica que mais se aproxima dos objetivos melódicos do soli, pois, ao ser empregada, faz com que as vozes internas se movimentem com idêntico intervalo (obviamente, um semitom) e na mesma direção da linha da ponta. Assim, um voicing de igual disposição de vozes antecede o alvo, meio tom acima ou abaixo deste (ALMADA, 2000: 152).

Observando somente os blocos gerados pelas flautas, na repetição da introdução, transcritos na figura 21, procura-se cifrar e analisar os acordes da seguinte forma: Gm - V da M.N.28 / G7M29 / G7(4) - V da M.H.30 / G7M / Gm7 - V da M.N.31 / E7M(9M) - -II/III / Db7M(11+) - -II. É importante mencionar a utilização por Malta do acorde E7M(9M)32, analisado aqui, a princípio, como um acorde napolitano secundário. Sobre esta possibilidade, é relevante destacar:

A partir da compreensão da cadência napolitana pode-se explorar a sua ampliação para os demais graus da escala, lembrando sempre que o uso do acorde napolitano é de tipologia maior com sétima maior e que, na cadência napolitana, há um salto de trítono entre a fundamental desse acorde e a dominante individual correspondente (TINÉ, 2014: 1).

Por outro lado, a progressão E7M(9M) / Db7M(11+), presente no segundo tempo do compasso 8 da figura 21, guardadas as devidas diferenças entre os dois acordes, não deixa de remeter aos paralelismos, muitas vezes, utilizados em conjunto com a técnica de Campanella e largamente usada por Guinga em suas composições. Neste ponto, verifica-se a semelhança entre o arranjo de Malta e o original proposto por Guinga, já que ambos terminam a introdução,

28 V do campo de Dó menor natural. 29 O acorde G7M acontece, provavelmente, muito mais em razão de uma coincidência causada pelo movimento cromático contrário entre as notas mais agudas do motivo executado pelo Piccolo (Sib-Si-Dó-Si-Sib) e as notas do Saxofone Soprano (Sol-Fá#-Fá-Fá#-Fá) nos compassos 6,7 e 8 da introdução escrita por Carlos Malta que por possuir uma função tonal evidente, dada a sua estranheza com relação à tonalidade de Dó menor. 30 V do campo de Dó menor harmônica. 31 V do campo de Dó menor natural. 32 A enarmonização do Fb7M(9M) em E7M(9M) foi adotada para facilitar a visualização. 104

no acorde Db7M(11+), apesar da pouca semelhança entre os acordes das duas versões até aí e, embora as aberturas utilizadas neste acorde sejam diferentes, nos dois arranjos, em ambos os casos, pode-se analisar este Db7M(11+) como tendo a mesma função. A tabela, a seguir, mostra as aberturas utilizadas por Carlos Malta, em seu arranjo, para a introdução da peça Cheio de Dedos.

Acorde Abertura utilizada

Eb7M Drop 2

Eb+7M Drop 2

Eb7M(6) Drop 2, com a 5J substituída pela 6M

Dbm7(9) Drop 3, com a 3m substituída pela 9M

Cm7(9) Drop 3, com a 3m substituída pela 9M

Gm Tríade, posição fundamental

G7M Drop 2

G7(4) Drop 2, com a 3M substituída pela 4J

Gm7 Drop 2

E7M(9) Drop 2, porém com dobramento de 7M, 3M, e 9M adicionado

Db7M(11+) Posição livre, com 3 dobramentos de 11+ Tabela 2: Aberturas utilizadas por Carlos Malta na introdução da peça Cheio de Dedos

Ainda sobre as diferenças entre as duas versões, para esta introdução, vale ressaltar o que diz GUEST(2006) a respeito de procedimentos de rearmonização:

A canção popular traz a sua própria harmonia, adequada à linguagem e ao estilo. Essa harmonia vive na memória popular como parte da música. Cada estilo musical irá extraí-la a seu modo: nos limites do domínio instrumental e do vocabulário harmônico. Antes de pensar em enriquecer (ou modificar) a harmonia de uma música, convém tocá-la com harmonia mais simples, inerente. Em seguida, substituímos alguns acordes ou grupos de acordes (GUEST, 2006: 67).

Quanto a este aspecto, deve-se, ainda, fazer a distinção entre os acordes que compõem a harmonia inerente de uma determinada peça e os grupos de notas gerados pela escrita dos blocos para o arranjo. A situação verificada, neste exemplo, parece muito mais tratar-se de uma rearmonização utilizada, conscientemente, como ferramenta pelo arranjador, 105

já que os acordes utilizados, nos dois arranjos, de forma geral, seguem caminhos e sonoridades bastante diferentes. Afirma GUEST (2006):

As funções dão o colorido básico dentro da progressão, e a análise funcional organiza o procedimento de substituição harmônica. Trocar um acorde por outro da mesma função traz mudança mais discreta do que mudar a função propriamente dita (GUEST, 2006: 67).

Assim, como é fácil verificar na tabela, a seguir, em vários momentos, as funções dos arranjos são bastante diversas, se comparadas entre si, o que, segundo afirma Guest (2006), caracterizaria um contraste mais evidente entre as duas versões. Na Tabela 3, que faz uma comparação entre as primeiras partes desta introdução, verifica-se que, no arranjo feito por Guinga, há um acorde com função dominante, B7(9+). No local equivalente da versão feita por Malta, destaca-se um acorde com função tônica, Eb+7M. Algo semelhante acontece no acorde Am7(5b/11), utilizado por Guinga e que possui função subdominante, substituído pelo Eb+7M de Malta. Nota-se o mesmo, quando o Ab7(11+) utilizado pelo violonista, é substituído pelo Eb7M.

Arranjo Cm7(9) - I B7(9+) - Eb7M/Bb Am7(5o/11) - Ab7(11+) - G7(13-) - Eb7M/G - por subV/VII - III II/V subV/V V III Guinga

Arranjo Eb7M - III Eb+7M - Eb7M Eb+7M - III Eb7M - III Dbm7 Cm7(9M) por III (6M) - III (9M) – - I Carlos -IIm7 Malta Tabela 3: Comparação das funções harmônicas na primeira parte da introdução da peça Cheio de Dedos

Na segunda parte da introdução, mostrada aqui na Tabela 4, percebe-se que, além da harmonização utilizada por Malta ter sido alterada, novos contrastes aparecem. De forma geral, apesar de alterações nas aberturas utilizadas, a versão com os sopros permanece no V, entretanto pode-se aferir um movimento contrário acontecendo entre as notas mais agudas do motivo executado pelo piccolo e as notas do saxofone soprano nos compassos 6,7 e 8 do exemplo 3, mostrado anteriormente. A movimentação entre as funções dos acordes do arranjo para violão é bem maior neste trecho, como é se pode notar na tabela, a seguir:

106

Cm7(9) - I B7(9+) - Eb7M/Bb Am7(5o/11) - Ab7(11+) - G7(13-) - Db7M(11+) Arranjo subV/VII - III II/V subV/V V - -II7M por Guinga

Arranjo Gm – G7M – G7/4 – G7M – Gm7 – E7M(9M) Cm7(9M) - por V V7M V V7M V - -II/III I Carlos Malta Tabela 4: Comparação das funções harmônicas na segunda parte da introdução da peça Cheio de Dedos

4.4. Dá o Pé, Loro O disco Cheio de Dedos foi um dos vencedores do prêmio Sharp de 1996, sendo que foi premiado nas categorias de melhor disco instrumental, melhor produção e melhor faixa instrumental. Neste último quesito, a faixa vencedora foi Dá o pé, Loro. O nome desta faixa, segundo depoimento do próprio Guinga (Carlos Althier de Sousa Lemos Escobar), é uma homenagem a Hermeto Pascoal. Entretanto, este título, além de citar o apelido de Hermeto, ainda possui uma outra característica lúdica, conforme o próprio Guinga descreve:

O mais importante é que isso é uma homenagem ao Hermeto Pascoal [...] O apelido dele é Loro [...] E eu brinquei com o apelido dele [...] E também era um papagaio que tinha na casa dele que era muito engraçado, um papagaio preguiçoso, que dormia a tarde toda [...] Eu brincava muito com o Hermeto por causa daquele papagaio [...] Então isso é uma referência ao Hermeto mas é uma brincadeira com o papagaio dele também (GUINGA, 2019).

Além da questão lúdica, também é interessante, pois ressaltar que Hermeto foi responsável pelo encontro do saxofonista e flautista carioca Carlos Malta, integrante do grupo de Hermeto, por muitos anos e Guinga, conforme descrito anteriormente. A partir desse encontro, Malta e Guinga passaram a tocar juntos em diversas oportunidades, e essa proximidade e parceria posteriormente acabou levando a participação de Malta aos arranjos e gravações do disco Cheio de Dedos. Assim, a faixa Dá o pé, Loro, assim como o arranjo, para sopros para a composição que dá nome ao disco, conta com a contribuição de Carlos Malta. Segundo o depoimento para esta pesquisa, na época da gravação do disco Cheio de Dedos, era comum que ele tocasse Dá o pé, Loro, ao lado de Guinga e Lula Galvão, pois ela costumava ser incluída em diversas apresentações, que ocorriam em diferentes formatos, sendo que Guinga, quando era o artista principal, convidava Carlos Malta, porém o contrário também acontecia, assim como ambos faziam apresentações ao lado de Lula Galvão. Nessas oportunidades, Malta fazia vários experimentos com diversos instrumentos, como, por exemplo, os diferentes tipos de flauta, o 107

que acabou trazendo várias idéias aos arranjos que foram desenvolvidos, mais tarde, no disco Cheio de Dedos. Segundo depoimento de Malta, a parte do arranjo, para as flautas e violoncelo em Dá o pé, Loro, foi inspirada, sobretudo, na sonoridade de um de seus grupos, o Pife Muderno, porém misturada à estética predominante nas composições de Guinga. A partir dessa referência, fez algo com as duas vozes nas flautas, mas somando às intervenções do violoncelo, para que este diálogo entre os três instrumentos pudesse se juntar aos violões de Guinga e Lula Galvão, além de alguma percussão. Em oposição ao arranjo de Cheio de Dedos, que é totalmente fechado e convencionado, Dá o pé, Loro tem menos material escrito e mais elementos improvisados. Pelo depoimento de Malta, verifica-se, no referido fonograma, o que eles executavam nas apresentações descritas, anteriormente, à época da gravação do disco Cheio de Dedos. Na performance ao vivo, somente não acontecia a parte do violoncelo. Nessas ocasiões, Malta, frequentemente, experimentava a flauta baixo em Dá o pé, Loro e buscava fazer, nas apresentações, algo bastante próximo do que pode ser observado, na linha do violoncelo gravado no fonograma aqui analisado. Segundo seu depoimento, em primeiro lugar, foi concebida a maneira de tocar os violões, sendo que o arranjo que produziu foi adicionado logo depois. Sobre o processo de ensaio e concepção do arranjo e sobre o entrosamento dos violões de Guinga e Lula Galvão, Malta observou:

Eles tocavam muito, eles gostavam muito de ficar ensaiando(...). Pra tocar aquela música daquele jeito, o cara tem que estar afiado, porque o Lula não lia também, não lia as músicas, aprendia a música e aí ele tocava a música de várias formas...era uma coisa que às vezes ele definia e às vezes ele deixava em aberto o que ele podia fazer...mas como era gravação, a gente definiu daquele jeito que a gente tocava (MALTA, 2019).

A partir dessas declarações, verifica-se que acontecia um processo intenso de ensaio entre os violões, o que certamente foi responsável pelo grande entrosamento entre os dois músicos. Assim, baseado nesse processo de ensaio dos violões e de diversas experiências com a peça ao vivo, é que foi elaborado o arranjo com as flautas e o violoncelo. Assim, enquanto estava elaborando o arranjo para Dá o Pé, Loro, comentou com Guinga que gostaria de fazer algo com a sonoridade próxima ao seu trabalho com o grupo Pife Muderno e, além disso, sugeriu a participação do violoncelista Daniel Pezzotti para este trabalho, já que ele estava de férias no Brasil e com o seu violoncelo a tiracolo. Apesar de estar em uma época de descanso, o violoncelista havia trazido o instrumento para dar continuidade a seus estudos, o que era necessário sempre manter sempre de forma disciplinada em razão de 108

sua rotina como músico de orquestra. Carlos Malta e Daniel Pezzotti haviam gravado um trabalho33 um pouco antes e que acabou chamando bastante a atenção de Guinga, tanto pela formação de flauta e violoncelo como pela performance de Pezzotti. Por outro lado, o violoncelista nutria uma grande admiração pela música brasileira de forma geral e, também, tinha grande interesse pelo trabalho do Guinga. Vale ressaltar, ainda, que, no depoimento de Lula Galvão, consta que a peça Dá o pé, Loro teria sido composta, durante uma sequência de apresentações em Madrid com a cantora Fátima Guedes.

A gente estava fazendo uma temporada na Espanha, em Madri, no Café Central de Madri, com a Fátima Guedes e ele compôs essa música lá no hotel [...]. E incluímos ela no repertório do show. (GALVÃO, 2019).

Um ponto interessante a ser ressaltado é que o pianista Chano Dominguez, que participou da gravação das faixas Me gusta a lagosta e Rio de exageros, ambas presentes no disco Cheio de Dedos, foi convidado a fazer essas participações, durante esta mesma temporada, com Fátima Guedes, em Madri, conforme lembra Lula Galvão. Neste trecho, Lula comenta também a participação do grupo cubano Diapasón, que fez parte da gravação das faixas Me gusta a lagosta e Desconcertante.

A participação do Chano, a gente estava no Café Central em Madrid fazendo aquela temporada [...] E ele era um cara que já estava em evidência lá, e tocava nesse café também. Então, nós nos conhecemos lá e foi feito o convite para que ele participasse da faixa, e a ideia do grupo cubano [Diapasón] deve ter sido do Vitor Martins ou do Paulinho Albuquerque mesmo (GALVÃO, 2019).

Vale, ainda, ressaltar que o arranjo para Dá o pé, Loro foi gravado por camadas (overdubs) e não ao vivo, sendo que primeiro foram gravados os violões para que depois fossem adicionadas as flautas, o violoncelo e a percussão.

4.4.1. Análise melódico-estrutural Na presente análise, é relevante observar que existem algumas assimetrias nesta composição, como por exemplo o fato de a seção A possuir 10 compassos enquanto que a seção A’ possui 12 compassos. Tanto A quanto A’ são compostas por duas frases e uma semifrase de extensão, porém em A’ a semifrase do final é maior, com quatro compassos. Já a seção B possui

33 O disco em questão é Rainbow e foi lançado em 1993. 109

10 compassos e apenas uma frase, enquanto a seção B’ possui 13 compassos, uma frase e uma semifrase de extensão. A coda é uma variação das seções A, mas podem-se encontrar várias diferenças quanto às repetições dessa parte que acontecem ao longo da peça. Em primeiro lugar, ela é bem mais curta, tendo apenas oito compassos e duas frases. Em segundo lugar, há um processo de rearmonização, o que a diferencia de todas as seções A anteriores. Durante o arranjo de Dá o pé, Loro observam-se algumas repetições das seções A e B. Entretanto, como as diferenças entre as repetições estão em fatores externos à melodia principal, para a presente verificação, pensou-se em analisar apenas uma vez o conteúdo melódico de cada seção. Assim, como citado anteriormente, a seção A, com 10 compassos, possui duas frases e uma semifrase de extensão, como pode ser visto na figura 22.

Figura 22: Seção A de Dá o Pé, Loro

As duas primeiras frases, assim como a maior parte desta peça, são compostas por repetições e variações de um pequeno motivo de quatro colcheias, ressaltado em azul e que ocupa a anacruse e a metade do primeiro compasso desta seção. No segundo compasso, há uma variação do motivo apresentado no primeiro, já que os intervalos são ligeiramente diferentes. Nos compassos três e quatro, há uma variação do que é apresentado nos dois primeiros compassos, posto que apenas a primeira nota do compasso quatro é diferente da primeira nota do compasso dois. Os próximos três compassos repetem o que aconteceu nos três primeiros dessa parte, porém a finalização é diferente, pois existe uma semifrase de extensão, o que faz com que a estrutura fique irregular. No final da frase a’, conforme destacado em verde, detecta- 110

se a cadência melódica de traço intervalar 6-1(la-do ascendente), a ocorrência do que PIEDADE (2011), a partir da noção de tópica, chamou de cadência nordestina:

Desde cedo, na literatura, o nordeste se apresentou como Brasil profundo, e a musicalidade nordestina levou a um universo de tópicas muito importante na música brasileira. Não basta ser dórico ou mixolídio, com ou sem 4ª aumentada, para levantar uma evocação do nordeste: é preciso que estas alturas apareçam em figurações específicas, como a cadência nordestina (PIEDADE, 2011: 5).

Assim, conforme PIEDADE (2011), é importante ressaltar que o ponto não é apenas a escolha do modo ou intervalo que pode caracterizar a tópica, mas também a maneira como esse elemento se articula dentro da composição. Assim, na semifrase de extensão, acontece uma variação do intervalo utilizado, mas o ritmo é mantido, assim, acredita-se que seja cabível a relação.

As tópicas nordestinas são peças-chave do repertório do baião, e dali migraram para uma parcela enorme dos gêneros musicais brasileiros. Criou- se o mito do nordeste musical, o mistério do nordeste profundo, que foi fonte exuberante para compositores nacionalistas e continua sendo, passando por Elomar, o movimento armorial, o jazz brasileiro e muitas outras paragens. (PIEDADE, 2011: 5).

Já a seção A’ pode ser dividida, novamente, em duas frases e uma semifrase de extensão, como se observa na figura 23.

Figura 23: Seção A’ de Dá o Pé, Loro

Enquanto as duas primeiras frases são iguais às da seção A, a semifrase de extensão apresenta diferença em seu tamanho e harmonização quanto à finalização da parte anterior. É importante observar que isso ajuda também a tornar esta estrutura irregular, a exemplo da frase 111

anterior, porém de forma distinta. No final da frase a’ e durante a semifrase de extensão, destacado em verde, aparece a tópica nordestina, inclusive utilizando o intervalo 6-1 de forma ainda mais evidente. A seção B possui apenas uma frase e 10 compassos, como se pode visualizar na figura 23. Vale observar que o motivo utilizado, destacado em azul, é diferente do que existe nas seções A, o que é um elemento criador de contraste do ponto de vista melódico. A frase é formada, de maneira geral, pela repetição deste motivo, sendo que, na última repetição, existe uma pequena variação no intervalo utilizado.

Figura 24: Seção B de Dá o Pé, Loro

Já na seção B’, como se pode ver na figura 24, a frase possui a mesma extensão da primeira, entretanto a finalização de ambas as frases ocorre em notas diferentes. Ressalta-se que ambas as terminações repousam na 4J(11J) de um acorde de tipologia m7, porém com meio tom de diferença entre uma frase e outra. A estrutura motívica é a mesma da frase anterior. A diferença entre as seções B e B’ ocorre, nas diferentes terminações de frase, Sol (2m) em B e Fá# (fundamental) em B’ e, na semifrase de extensão, que é, de certa forma, curta e não traz a estrutura motívica que se desenvolve anteriormente nas seções B, como se depreende a partir da figura 25. 112

Figura 25: Seção B’ de Dá o Pé, Loro

Um ponto interessante a ser destacado é o fato de que, nas partes A e A’, que estão na região da tônica menor, como se verá adiante, existe a resolução melódica e harmônica. As duas semifrases de extensão que acontecem no final dessas partes são resolvidas na nota Mi, assim como a harmonia se resolve no acorde de função tônica na mesma tonalidade. Já na seção B, a frase a é finalizada na 2m do tom do momento, ou seja, Sol em F# menor, porém a resolução melódica só acontece de fato na semifrase de extensão da parte B’, visto que termina na nota Fá#. Neste contexto, portanto, a melodia possui resolução porém a harmonia não, pois já se resolve no acorde correspondente à tonalidade da seção A e à nota em questão, Fá#, converte-se em 9M do acorde Em6. A coda, conforme a figura 26, é baseada na melodia da seção A.

Figura 26: Coda de Dá o Pé, Loro

113

A coda tem apenas duas frases, não possuindo a semifrase de extensão presente nas seções A. É importante observar que essa parte surge como uma variação da parte mencionada, porém com harmonização completamente diferente. Melodicamente, ambas as frases são iguais, porém existem diferenças em sua harmonização, posto que, nos dois últimos compassos da frase a’, todas as notas foram harmonizadas, o que também é evidenciado pelo ralentando existente na execução desta parte.

4.4.2. Análise harmônica Na maior parte de suas composições, Guinga envereda por procedimentos essencialmente tonais, no que se refere ao tonalismo comum à música popular de influência jazzística, sendo que, em muitos momentos, traz características idiomáticas do seu instrumento, conforma já foi abordado anteriormente. Entretanto, na composição Dá o pé, Loro, Guinga mescla elementos idiomáticos do seu instrumento com diferentes procedimentos, para harmonizar a melodia principal, incluindo procedimentos modais. A partir das considerações de TINÉ (2014), o conceito de modalismo pode se desdobrar em diversos procedimentos distintos, tais como o da cadência modal, o modal vamp, o acorde modal (obtido pela saturação modal) e a monomodalidade. Apesar de o princípio ser basicamente o mesmo, ou seja, o de se evitar a relação “dominante - tônica” e seus procedimentos relacionados, como, por exemplo, o diminuto com função de dominante e cadências secundárias, existem sutis diferenças entre os procedimentos citados. De forma geral, um dos procedimentos adotados por Guinga, em Dá o pé, Loro, seria aquele classificado como sendo o da cadência modal, em que a música ainda é tonal, mas com cadência de sabor modal. Nesse tipo de situação, conforme apontado, embora a relação “dominante - tônica” ainda possa existir em alguns momentos, o desenrolar da harmonia parece evitar tais relações, o que certamente se pode observar na peça analisada. Ressalta-se ainda que tais procedimentos se dão em associação com o modalismo inerente ao gênero (baião), com seus traços melódicos característicos, principalmente, o 6-1, presente nos exemplos em que PIEDADE (2011) tipifica a tópica nordestina, conforme descrito anteriormente na análise melódica. Entretanto, nesta análise, parece evidente que, assim como grande parte do repertório do Guinga, a melodia e o acompanhamento desta peça foram também baseados nas idiossincrasias do instrumento do que em questões apenas harmônicas e melódicas, visto que os paralelismos entre os padrões de digitação no braço do violão são recorrentes. Assim, apesar 114

desse caráter profundamente idiomático, nesta análise, busca-se evidenciar quais relações harmônicas e melódicas são formadas a partir destes paralelismos e idiomatismos. Nas seções A e A’, a harmonia não é estática, o que seria bastante característico de uma situação modal. Existem progressões de acordes, sendo que, no início, há o predomínio de acordes de tipologia Xm7, com exceção dos finais de frase. Assim como já mencionado, apesar dessas mudanças, a harmonia parece evitar as relações dominante-tônica. Desta forma, a seção A se inicia na região da tônica menor, fazendo a progressão II-I-II-VI-II-I-II34. Nos três últimos compassos da seção A, acontece uma pequena digressão para a região do trítono (Dominante bemol ou subdominante elevada), com a progressão I-II-I-II. Já a seção A’ é semelhante à anterior, em seu início, mas, em seus cinco últimos compassos, ocorre uma progressão que pode ser considerada como parte da tônica menor. Evidente que não existe apenas um caminho para se analisar esta peça. O acorde que aparece, inicialmente no anacruse e, depois se repete por praticamente toda a peça, apresenta ambiguidade, pois não possui terça35, podendo tanto ser um Bm7(9) como um B7(9). Inclusive, por essa ambiguidade, parece ser uma saída para analisar este trecho e considerar o primeiro compasso todo como Fá# dórico, em que a progressão de acordes F#m7(9) / B7(9) poderia ser analisada como parte deste modo (i/IV). Já no segundo compasso, o modo para a progressão Em7(9) / Bm7(9) estaria em Mi dórico. Nos compassos 3,4 e 5 da seção A, a progressão F#m7(9) / B7(9) / C#m7(9) / B7(9) pode ser considerada como parte do Fá# dórico novamente. No final da seção A, tem-se a progressão Bb7(9) / C7(9), que pode também ser considerada como um vamp híbrido, dado que os dois acordes, não necessariamente, fazem parte do mesmo campo harmônico36. Já a seção A’ é semelhante à anterior em seu início, mas, nos seus cinco últimos compassos, há uma progressão que pode ser analisada como parte do modo Mi dórico, em que Em7 e Em6 pertencem a esse modo. Nas seções B e B’ da peça, é possível observar uma digressão para a região da supertônica menor, ou seja, Fá# menor, sendo que, harmonicamente, a frase presente na seção B e a primeira frase do B’ se diferenciam pelo seu final, já que uma termina no acorde de Dm7(6/9)/A, enquanto a outra é finalizada, no acorde de C#m7(11), analisado como v (não

34 Importante ressaltar a relação entre a cadência plagal (II-I) e a acomodação do traço melódica 6-1, encontrada em diversos exemplos nordestinos. 35 Embora no songbook, lançado pela Ed. Gryphus, a cifragem para este acorde seja Bm7(9), o que não parece correto, tanto pelo fato desse acorde no arranjo de violão não possuir terça, como pelo fato de cifrar a peça desse jeito, faz com que a cifragem não cumpra o seu papel principal, o de evidenciar a harmonia essencial da peça.

36 Exceto, hipoteticamente, um outro vamp no modo Mixo13-, pertencente ao V grau da escala menor melódica, ainda que tal hipótese seja um pouco artificial. 115

dominante). Após o final da frase a’, durante a semifrase de extensão, há uma progressão harmônica que proporciona dois tipos de análise. Por um lado, em F# menor, a sequência C7(9) /B7(9) /Bb7(9)37 /Em6 pode ser analisada, respectivamente, como subV/IV-IV-III-vii. Ao mesmo tempo, a análise desta progressão já em Mi maior levaria à conclusão de que se trata de subV/V-V-I-i, sendo que, no caso do acorde analisado como I, tem-se o baixo no trítono, a exemplo do que pode ser verificado na semifrase de extensão da primeira parte A. Na coda, há uma rearmonização da melodia principal, embora, neste cenário, ela apareça com a métrica alterada com relação ao início da peça. Fica evidente o idiomatismo do instrumento, na escolha dos acordes para apoiar a melodia, já que proporcionam digitações parecidas, porém, em diferentes lugares do braço do instrumento, consequentemente, gerando os paralelismos observados. Assim, os acordes D7(9/11+)38, C7(9/11+)39 e Bb7(9+) podem ser analisados, respectivamente, como -VII7, -VI7 e -V7. Entretanto, também é possível relacionar o procedimento aqui adotado de harmonização com a homenagem ao Hermeto Paschoal presente nesta composição, já que o tipo de recurso aqui adotado é frequentemente encontrado em suas composições. Vale ressaltar, também, que o acorde E(11+) é bastante representativo, para a situação de ambiguidade presente nesta peça, tanto pela análise baseada na situação de cadência modal, conforme descrita por TINÉ(2014) e, ao mesmo tempo em que é a resolução da peça, trata-se de um acorde maior com 11+, o que faz com que tenha um sabor modal40, no entanto, não tem a sétima e, além disso, ele não é atingido por uma cadência harmônica convencional.

4.4.3. Descrição do arranjo A estrutura do arranjo de Dá o pé, Loro divide-se em três principais partes: uma seção de exposição do tema, uma seção de improvisos e uma seção de reexposição do tema. Existem pequenas peculiaridades, nos instrumentos usados em cada parte, conforme descrito a seguir. Começando pela exposição, na seção A, podem-se ouvir os dois violões, sendo que um deles procura destacar a melodia, além do baixo acústico dobrando a voz grave do violão de base. Na seção A’, tem-se o acréscimo do triângulo, embora seja interessante observar que ele não começa exatamente no primeiro compasso dessa frase. Na repetição da seção A, tem-

37 Obviamente, considerando aqui a enarmonização Bb7 = A#7. 38 Sendo que, no terceiro compasso da coda, aparece apenas com a extensão 11+, sem a 9M, portanto. 39 Sendo que, no quarto compasso da coda, aparece apenas com a extensão 9M. 40 Embora não fique evidente, trata-se de um acorde relacionado ao modo mixo11+ ou ao lídio.

116

se a melodia na flauta, além dos dois violões. A partir dessa repetição da parte A, o acompanhamento feito pelo baixo acústico se mantém, porém o ritmo é levemente diferente da primeira parte A da peça. Aqui também entram a caixa com vassoura e o surdo, além do triângulo que se mantém. Na seção A’, além da melodia sendo feita na flauta, percebe-se um contracanto sendo feito pelo violoncelo. Na seção A, na percussão, estão os mesmos elementos da parte anterior, ou seja, caixa com vassoura, triângulo e surdo. Nas seções B e B’, a melodia principal é executada pela flauta, enquanto o violoncelo contribui para o estabelecimento do background que é utilizado como base. Entretanto, nos espaços em que a melodia respira, o violoncelo acaba fazendo quase uma dobra da linha de baixo, embora com certa liberdade, já que começa contida, mas acaba criando uma independência com relação àquela. Neste trecho, enquanto um dos violões faz a base, o outro apenas pontua algumas notas mais relevantes da melodia. Na percussão, existe uma alteração na textura, em vez do triângulo da parte anterior, pode-se ouvir um agogô e um caxixi, porém o surdo continua. De forma geral, o baixo se mantém em grande parte do tempo, fazendo o papel de pedal na nota F# e acentuando o ritmo característico da peça, porém adquirindo um pouco mais de liberdade nas mudanças harmônicas e nos espaços cedidos pela melodia principal. No retorno da seção A, o violoncelo assume um caráter mais rítmico, fazendo parte da base em vez de dobrar a melodia. Nesta repetição da seção A’, o violoncelo também tem este mesmo caráter, porém de forma distinta, acentuando apenas os contratempos, fazendo parte do background. Quem faz a dobra da melodia com a flauta, neste momento, é um dos violões. Novamente, na percussão, pode-se perceber neste trecho um triângulo misturado com o som da vassoura na caixa, além do surdo. Já nas seções B e B’, observa-se a melodia sendo executada nas flautas e, novamente, ouve-se, na percussão, em vez do triângulo, agogô, caxixi e um surdo. De igual modo, o violoncelo faz o background, indo para a dobra do baixo, nos espaços cedidos pela melodia principal, embora com certa liberdade. A estrutura da seção de improvisos é distinta da estrutura do próprio tema, porém a inspiração é evidente. O critério de elaboração desta seção proporciona um conforto maior aos improvisadores, entretanto sem fugir completamente dos elementos utilizados ao longo da peça. Assim, a primeira parte da seção dos improvisos, denominada aqui por seção C, possui 20 compassos e estrutura harmônica que lembra a seção A da peça, embora possua um trecho único de 20 compassos. Já na seção D, a estrutura é basicamente a mesma das seções B e B’ da peça, com dois trechos distintos, um de 10 e outro de 13 compassos. 117

Nas duas seções de improviso, apresentam-se dois solos relativamente curtos. O primeiro solo é feito com a flauta, porém, com algumas intervenções do violoncelo, que estabele respostas às suas frases. O solo é feito sobre a seção C, que possui 20 compassos e é, de forma geral, inspirado na seção A da peça, ainda que com algumas adaptações. Já o segundo solo, de violão, é feito na seção D, que possui 23 compassos e é baseada na estrutura das seções B e B’ da peça, sendo que existem interações do violão com o violoncelo e com a flauta, que respondem às suas frases, interagindo com a sua improvisação. Nesta seção dos improvisos, a textura da base é formada pelo baixo acústico, pelo violão, pelo triângulo, caxixi e caixa com vassoura, visto que, nos trechos anteriores, esses instrumentos não tinham sido misturados na elaboração da percussão, sendo anteriormente divididos de forma distinta entre as seções A e B da peça. Vale ressaltar que a re-exposição é mais curta que a exposição, não possuindo a repetição das seções A e A’, sendo apresentada em apenas uma vez cada. Posteriormente, há uma última repetição das seções B e B’ e, logo em seguida, a coda, que é o trecho mais curto da peça, com apenas oito compassos. Nesta re-exposição, tem-se a seção A, na qual a melodia principal é feita pela flauta, sendo dobrada pelo violão. O violoncelo, nesta parte, assume novamente um caráter mais rítmico, enquanto, na seção A’, acaba realizando uma dobra da melodia principal. Assim como nas seções A anteriores, a percussão utilizada aqui foi de caixa com vassoura, triângulo e surdo. Nesta última repetição das seções B e B’, observa-se a flauta fazendo a melodia principal, sendo que o violoncelo realiza o background junto aos violões para novamente responder à melodia principal no espaço em que procura respirar. Assim como na exposição, a percussão, neste momento, realiza uma textura elaborada pelo agogô, caxixi e surdo. Na coda, a melodia principal é feita pela flauta com o violoncelo e os violões realizando a sua dobra, o que faz com que este seja o trecho da peça com maior densidade. A percussão, utilizada neste momento, é coerente com todas as partes anteriores, ou seja, triângulo, caixa com vassoura e surdo. Além disso, também, há um ralentando no final da coda, antes do acorde final. É importante ressaltar que esta peça traz a exposição, em uma estrutura não muito usual, com diversas repetições das seções A e B. Porém, dentro destas repetições, é nítida a proposta do arranjo de a cada novo trecho introduzir um novo elemento, como se buscasse manter a atenção do ouvinte a cada nova frase ou seção. Entretanto, apesar destas sutilezas e novidades percebidas, na passagem de um trecho para outro, é notória a busca pela coerência geral, já que certos elementos presentes no arranjo, como, por exemplo, a escolha dos diferentes 118

instrumentos de percussão que foram utilizados nas seções A e B, ou as diferentes utilizações para o violoncelo, são repetidas na exposição e re-exposição. Outro ponto interessante a ser ressaltado é que, apesar do arranjo manter o tradicional formato exposição-improvisos-re- exposição, a exposição, além de possuir repetições menos usuais, é bem mais extensa do que o retorno ao tema, que acontece de forma mais resumida. Participaram da gravação desta faixa, além de Guinga e Lula Galvão (violões), Carlos Malta (flautas), Daniel Pezzotti (violoncelo), Jorge Helder (baixo acústico) e Armando Marçal (percussão).

4.5. Ária de Opereta Como foi descrito anteriormente, Paulinho Albuquerque foi uma das mais importantes peças do processo de produção do disco Cheio de Dedos. Além disso, esteve ligado a diversos outros projetos, envolvendo produção de discos e shows e, também, é fato que ele teve influência fundamental no desenvolvimento da carreira do Guinga, já que foi um dos responsáveis, ao lado de Aldir Blanc e Vitor Martins, por sua entrada na gravadora Velas. Segundo depoimento dado pelo pianista Itamar Assiere, responsável pela gravação do piano, na faixa Ária de Opereta, o convite para que pudesse participar deste projeto veio pelo próprio Paulinho, pois Itamar esteve presente na maioria de suas produções tanto da época em que trabalhou com a gravadora Velas como depois de ter fundado seu próprio selo, o Carioca Discos. Itamar ressalta que, para o disco Cheio de Dedos, inicialmente, iria gravar a faixa Inventando Moda, para que este arranjo tivesse piano e violão, mas, durante o processo de gravação, foi muito difícil sincronizar os dois instrumentos, visto que não foram gravados juntos em uma situação em rubato. Paulinho, que costumava ser bastante sistemático em suas produções, gostava de gravar tudo com metrônomo, a não ser que fosse uma situação como a descrita, em que não seria viável fazê-lo. Porém, incomodado com a imprecisão rítmica na ocasião, achou melhor complementar a gravação com saxofone, deixando o piano de lado ou, em caso contrário, Guinga teria que refazer a sua parte. Assim, ficou acertado que Itamar não faria mais Inventando Moda, mas que gravaria a faixa Ária de Opereta para este disco, de início, com teclados. O pianista ressalta que Paulinho mostrou uma prévia da gravação, já com a voz de Ed Motta e um violão gravado por Guinga. Itamar não soube precisar se Paulinho Albuquerque enviou a Guinga uma fita, antes da gravação, para que pudesse se preparar ou se harmonizou a música diretamente no estúdio, ou ainda se Lula Galvão disponibilizou uma cifra, porque Guinga não tem por hábito escrever as suas composições. De qualquer forma, a situação descrita evidencia que a percepção foi a ferramenta mais importante à sua performance, tanto 119

pela ausência de partituras quanto pela dificuldade de se notar, adequadamente, as composições de Guinga usando somente cifras. Neste período, era comum que Itamar trabalhasse com Paulinho, em discos de samba no Estúdio Discover, no Rio de Janeiro, onde o Cheio de Dedos foi gravado, principalmente usando teclado, dado que esse estúdio não contava com um piano disponível. Porém, como o pianista Chano Dominguez havia sido convidado a gravar na faixa Rio de Exageros, também presente em Cheio de Dedos, a produção reservou duas sessões na Companhia dos Técnicos, antigo Estúdio da RCA, que, segundo Itamar, era um dos poucos lugares, naquele contexto, onde se poderia ter um bom piano disponível. Itamar havia elaborado uma primeira introdução com teclados, mas, como Paulinho não ficou satisfeito com essa primeira opção, em que Itamar fazia uma citação de Carmen, ele solicitou que fosse pensada outra opção de introdução com piano para ser gravada na Companhia dos Técnicos. Como já citado aqui e também por Itamar em seu depoimento, no processo de produção dos trabalhos de Guinga, normalmente, os elementos do arranjo eram elaborados a partir do violão. Esse procedimento foi citado por diversos outros entrevistados para este trabalho. Assim, Itamar comenta que primeiro se gravava a performance do violão, para que depois novas ideias fossem adicionadas. Na peça aqui analisada, Ária de Opereta, não existe um violão na gravação final, porém Itamar usou, para elaborar a sua parte no piano, um violão-guia que Guinga havia gravado mas que não entrara no fonograma resultante. Sobre as aberturas dos acordes utilizados em seu acompanhamento, Itamar destacou ter seguido a harmonia proposta por Guinga a partir da guia de violão gravada anteriormente, e foi totalmente responsável pelo desenvolvimento da introdução presente no arranjo. O cantor e compositor Ed Motta, que fez uma participação neste disco, gravando a melodia principal de Ária de Opereta, relata que, à época anterior ao lançamento do disco Cheio de Dedos, teve a oportunidade de ouvir diversas composições de Guinga que ainda não haviam sido lançadas, que acabou realizando algumas gravações caseiras em um encontro com Guinga:

Eu me recordo bem que a primeira vez que escutei a música [Ária de Opereta] eu fui na casa do Guinga e eu levei um aparelho portátil de DAT, o antigo DAT, para gravar umas músicas dele para escutar, que eu fui morar um tempo nos Estados Unidos e levei essas músicas para escutar mesmo. Eu tava ouvindo muito os dois primeiros discos dele e ouvia demais esse DAT com uma série de músicas inéditas que depois ele gravou, entre elas Senhorinha e outros temas gravados pela Leila Pinheiro também (MOTTA, 2019).

120

Em seu depoimento, Ed Motta lembra que essas gravações foram feitas de maneira bem informal, apenas com voz e violão na casa de Guinga. Nessa época, a Ária de Opereta ainda não tinha uma letra, mas havia um acompanhamento bem característico:

O original tem aquele estilo do Guinga de calçar a melodia com o violão junto, e o do disco é com piano, bonito também, mas a versão dele foi a primeira que eu escutei, foi dessa forma (MOTTA, 2019).

Guinga, em 1991, havia participado de um projeto em homenagem a Nino Rota que culminou com o lançamento do disco independente Nino Rota por Solistas Brasileiros. Esse disco, lançado pela Kuarup Records, tem a participação de Guinga, Chiquinho do Acordeon, Dudu Alves, Luis Carlos Borges, Roberto Corrêa, Laércio de Freitas, Joel Nascimento, Raphael Rabello, Henrique Cazes, Toinho Alves e Théo de Barros. Ed Motta sugeriu relacionar a composição de Ária de Opereta com o envolvimento de Guinga nesse projeto, pois ambos os fatos aconteceram em épocas próximas.

Daí, eu me lembro bem, ele começou com Senhorinha, era ele o violão só o tempo todo, ele com o violão em casa. E a segunda música era a Ária de Opereta, que a versão que ele me mostrou era uma versão sem letra e me lembrava muito a música do Nino Rota, né...me lembrava muito música de cinema e tal, né. O lance do [cantarola a melodia da seção A]. Isso é bem Nino Rota, bem cinema. E ele participou de um projeto em homenagem ao Nino Rota no Brasil, uma gravação que existe, O Guinga tá nesse disco por coincidência. Acho que tem alguma relação aí dessa música com o Nino Rota (MOTTA, 2019).

Em seu depoimento, Ed Motta abordou, também, o estilo de cantar de Guinga, pelo qual nutre grande admiração, além de lembrar que a performance em Ária de Opereta, traz dificuldades ao cantor tanto pelo desenvolvimento melódico da peça, cheio de saltos dissonantes e repousos em extensões, como pelos caminhos harmônicos, que, por sua vez, exploram regiões tonais distantes e difíceis de serem atingidas com naturalidade, como será visto, posteriormente, em sua análise.

Eu fiquei muito honrado de participar, apesar de preferir ele cantando, não só essa música que eu gravei, mas tudo que ele faz eu prefiro ele cantando. Ele cantando dá uma onda especial mesmo, assim... Ele tem aquela forma de cantar influenciada pelos cantores da década de 30, 40...Orlando Silva, essa turma toda. E é isso, foi maravilhoso, música difícil de cantar, né? Música que tem uma série de acidentes... Me lembro bem, nós gravamos aqui no Jardim Botânico, no antigo estúdio Discover (MOTTA, 2019).

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Ademais, Ed Motta comenta também que existiam outras opções de músicas para que ele participasse deste trabalho, mas, desde que conheceu a peça Ária de Opereta, ficou bastante interessado em participar, a partir dessa composição, pela riqueza harmônica e melódica dessa composição. Além disso, já nessa época, Ed Motta era um grande conhecedor da obra de Guinga, sendo que tinha por hábito ouvir, constantemente, seus dois primeiros discos, Simples e Absurdo e Delírio Carioca.

4.5.1. Análise melódico-estrutural Como uma forma de melhor compreender os elementos presentes na peça Ária de Opereta, será realizada, sempre que viável, a análise da melodia e de suas ornamentações. Essa composição possui duas seções, A e B, além de introdução e coda. Observa-se, na figura 27, que a seção A possui 16 compassos e quatro frases, denominadas aqui de a, b, c e d; a seção B possui 17 compassos e oito semifrases, denominadas a, b, c, d, e, f, g e h. Na seção A, de forma geral, as frases possuem um tamanho mais regular, enquanto, em contraste, na seção B as semifrases divergem entre si com relação ao seu tamanho. De forma geral, a melodia de Ária de Opereta possui, em sua elaboração, diversos saltos e abundante uso de cromatismos, o que irá contribuir para o seu caráter passional, conforme será abordado depois, nesta análise, quando pertinente.

Figura 27: Seção A de Ária de Opereta 122

Na frase a da seção A, no primeiro compasso, há um salto de 7M entre as notas Dó e Si, realizado pelo anacruse. Logo depois, a melodia faz uma nota de passagem cromática entre a 7M e 6M da escala do acorde do momento, por meio das notas Si-Si bemol-Lá, sendo que o Si bemol pode ser considerada uma nota de passagem cromática. Na sequência, têm-se as notas Si e Lá, realizando outro salto de sétima, atingindo a nota Lá, que é a 4J do acorde Em7. A partir deste Lá, novamente, há um movimento cromático, porém, partindo da 4J em direção a 3m do mesmo acorde, representado pelas notas Lá, Lá bemol e Sol, sendo que o Lá bemol pode ser considerada como uma nota de passagem cromática. O Ré sustenido, no final desse compasso, pode ser considerado como uma antecipação do compasso seguinte, posto que não faz parte nem do acorde e nem da escala definida para o momento, que é Mi frígio, assim poderá ser analisado como 3M do acorde B/E. No terceiro compasso da frase a, encontra-se, de igual modo, um grupo de notas realizando uma bordadura, representado pelas notas Mi, Sol e Dó e se direciona para o Ré sustenido do compasso seguinte, que é a 3M do acorde B7(9-)/E. Ou seja, de maneira geral, a frase a é composta por uma sequência de três motivos, dado que, no final, em que poderia estar uma quarta repetição desse motivo, tem-se uma nota longa utilizada para a finalização desta frase. Importante observar, também, que, embora tenham diferenças quando observadas de perto, as frases a e b, de forma geral, preservam um contorno semelhante. Na frase b da seção A, verificamos um salto de 7M entre as notas Mi e Ré Sustenido por um anacruse. Logo depois, há um cromatismo entre as notas Ré Sustenido, Ré e Dó Sustenido, ou seja, a exemplo do que acontece no início da primeira frase entre a 7M e 6M da escala do acorde do momento, que é Mi lídio, porém com uma nota de passagem cromática entre elas, que é o Ré natural. Entre o final do primeiro compasso dessa frase e o início do segundo, nota-se, novamente, um salto, porém de 6M. Na sequência, aparecem as notas Dó e Sol sustenido, respectivamente, 6m e 3M do acorde E7(13-). Posteriormente, as notas Lá, Dó e Fá vão compor uma bordadura, que se direciona para o Sol sustenido, que é a 3M do acorde E7(9-)/A. Na frase c da seção A, verifica-se, igualmente no anacruse, um salto de sétima, porém, dessa vez, um salto de 7m, seguido por um movimento cromático entre as notas Sol, Sol bemol e Fá e o Sol bemol é uma nota de passagem cromática neste contexto. É importante ressaltar a antecipação representada pelo Sol sustenido, no final do primeiro compasso dessa frase, visto que não faz parte da escala de acorde do momento, e sim do material do compasso seguinte. No final dessa frase, um cromatismo descendente é realizado pelas notas Dó, Si, Si 123

bemol, Lá e Lá bemol, também de forma distinta do que se pode encontrar em trecho similar das frases anteriores. As notas Si e Lá bemol podem ser analisadas como notas de passagem cromáticas, sendo que o Lá bemol poderia ter uma análise alternativa, pois pode ser considerado também como uma antecipação da 3m do Fm6 seguinte. É interessante observar que a frase d da seção A é bastante diferente das três anteriores em termos de contorno. No início dessa frase, há um salto de 4J, logo depois, um intervalo de 3M. Observa-se a relação com a mudança das cifras: no primeiro círculo, o primeiro movimento termina na fundamental do acorde, no segundo, o movimento termina em sua 7M. No terceiro compasso, é importante visualizar uma quebra do esquema motívico proposto pelas frases anteriores. Posteriormente, será percebido que, no final da seção B, acontece um movimento semelhante. Na sequência, será analisada a melodia da seção B, como se observa na figura 28.

Figura 28: Seção B de Ária de Opereta

Na semifrase a da seção B, acontecem algumas recorrências. A melodia se inicia na 7M do acorde Bb7M e percebe-se a repetição da nota Lá, que funciona, neste ponto, como uma antecipação, recurso que será repetido outras vezes como se poderá perceber adiante. Constata-se também, neste trecho, um movimento cromático entre as notas Lá, Lá bemol e Sol, sendo que o Lá bemol pode ser classificado como uma nota de passagem cromática. No acorde 124

Eb7M(6), já na semifrase b da seção B, na qual a nota Ré representa a 7M desse acorde, não há repetição da nota, como no começo desse segmento, mas, tem-se, novamente, o intervalo de 7M, na cabeça do compasso, assim como de novo um movimento cromático, desta vez, entre as notas Ré, Ré bemol e Dó, sendo que o Ré bemol é uma nota de passagem cromática. Vale ressaltar também que as semifrases a e b da seção B são similares, estando apenas transpostas umas 4J acima uma da outra, com exceção da primeira nota. De forma geral, o motivo indicado em azul na semifrase a permeia toda a seção B, assim como acontece com a seção A, embora o motivo usado na seção B seja ligeiramente diferente do que é utilizado na seção anterior. A semifrase c da seção B estabelece uma forma de contraste quanto às duas semifrases anteriores em razão de seu tamanho, mas, ainda assim, utiliza-se o material motívico apresentado nas duas semifrases anteriores, embora de forma estendida. Na semifrase c da seção B, logo no primeiro acorde, Db7(4/9), analisado como SubV/II, observa-se, novamente, a utilização de notas repetidas na melodia, funcionando como uma antecipação, conforme aconteceu em frases anteriores. Ressalta-se, também, a utilização da 4J e 5J na melodia, o que caracteriza, conforme descrito posteriormente na análise harmônica, a configuração do modo mixolídio para esse acorde e vale lembrar que esse contorno não aparece desta maneira em outros momentos da peça. Já o fragmento existente no segundo acorde, E7(9), traz o desenho bastante próximo aos presentes nas semifrases a e b da seção B, apresentando ligeiras diferenças intervalares apenas. É importante destacar mais uma vez a utilização de um cromatismo, representado aqui pelas notas Fá sustenido, Fá e Mi; sendo que o Fá natural pode ser analisado como uma nota de passagem cromática. Na semifrase d da seção B, que começa ainda no acorde Eb7(9) e termina no acorde Ab7(9-), apresenta-se uma nota de passagem não cromática, caracterizada pelo Fá e termina- se com um salto de 6m entre as notas Sol, que é a 3M do acorde Eb7(9) e o Mi bemol, que é a 5J do acorde Ab7(9-). Na semifrase e da seção B, distingue-se, no primeiro acorde, Db7(4/9), novamente, a utilização do recurso da nota repetida, funcionando como uma antecipação, conforme foi evidenciado nas semifrases anteriores da seção B. No final do primeiro compasso, aparece um movimento cromático descendente, que se inicia na 4J do acorde Db7, Sol bemol, e vai até a 9M do próximo acorde, C7(9/11+). Assim, a nota Mi funciona aqui como uma nota de passagem cromática. No final da semifrase e, verifica-se um salto de 6+ entre as notas Si bemol e Sol sustenido, o qual, sendo enarmonizado em um intervalo de 7m, mostra uma recorrência, posto que esse salto está presente na melodia, em diversos pontos dos frases anteriores, de forma destacada. 125

Na semifrase f da seção B, um contorno melódico oscila entre a 4+ e 5J do acorde, que é parecido com o encontrado no começo da semifrase c da seção B do segmento anterior, que oscila entre a 4J e 5J do acorde, ou seja, mais uma recorrência que traz coesão a essa melodia, apesar das sutis diferenças rítmicas e intervalares. No final da semifrase f da seção B, no acorde G#7(9b/11+), há um contorno que também pode ser considerado uma recorrência, pois, apesar das diferenças entre os intervalos dos acordes, diz-se que está relacionado com o material da semifrase d da seção B. Neste ponto, vale ressaltar também que o material presente na melodia é essencial para caracterizar a escala de acorde deste G#7(9b/11+) como alterada. Na semifrase g da seção B, além da repetição do motivo principal, existe outro aspecto que também proporciona um contorno bastante próximo ao que acontece em boa parte desta seção, ou seja, mais uma recorrência que traz mais consistência à elaboração melódica, já que se pode observar novamente uma repetição de nota, em seu começo, fato que já havia sido percebido, no início das semifrases c, d e e da seção B e que funciona aqui também como uma antecipação, conforme descrito anteriormente. Na semifrase h da seção B, percebe-se uma frase que difere tanto ritmica quando melodicamente de todo o material investigado nesta análise, mas deve-se evidenciar que faz todo o sentido com o que foi verificado na análise harmônica, dado que os intervalos desse trecho fazem parte da estrutura do modo Sí lídio, que é a escala de acorde utilizada no caso dos acordes napolitanos41. Esse trecho pode ser considerado como uma recorrência do que acontece na frase d da seção A, pois ambas possuem características semelhantes, embora o contexto harmônico e intervalar seja diferente. Por outro lado, vale ressaltar que é possível associar a composição Ária de Opereta com um determinado tipo de tópica, a exemplo do que foi feito na análise da peça Dá o pé, loro. Entre as variações listadas por PIEDADE(2011), a tópica época-de-ouro pode ser relacionada com a peça analisada neste momento.

O universo de tópicas época-de-ouro inclui floreios melódicos das antigas modinhas, polcas, valsas e serestas brasileiras. A execução de traços destas melodias ornamentadas evoca a simplicidade, a singeleza e o lirismo do Brasil antigo. Este Brasil profundo se expressa em floreios melódicos em certas frases, padrões harmônicos, ornamentação típica (muitas apojaturas e grupetos) que estão fortemente presentes nas modinhas, polcas, no choro e, a partir daí, em vários outros repertórios de música brasileira, e mesmo em segmentos de obras de um estilo completamente diferente do ambiente época- de-ouro (PIEDADE, 2011:108)

41 No caso da primeira opção de análise harmônica descrita para este trecho. 126

Assim, é possível afirmar que a melodia de Ária de Opereta apresenta diversas formas de ornamentações em suas duas seções, que torna coerente a associação com a referida tópica. Como citado anteriormente nesta análise, a melodia de Ária de Opereta possui também em sua elaboração diversos saltos e abundante uso de cromatismos. E também, entre outros exemplos, pode-se ressaltar novamente que no terceiro compasso da frase a da parte A verifica- se um grupo de notas realizando uma bordadura, representado pelas notas Mi, Sol e Dó, e que se direciona para o Ré sustenido do compasso seguinte, que é a 3M do acorde B7(9-)/E. Outro ponto que pode ilustrar a relação com a tópica época-de-ouro reside na frase b da seção A, onde se pode observar um salto de 7M entre as notas Mi e Ré Sustenido através de um anacruse, como citado anteriormente, sendo que logo depois é possível encontrar um cromatismo entre as notas Ré Sustenido, Ré e Dó Sustenido, ou seja, entre a 7M e 6M do acorde do momento, porém com uma nota de passagem cromática entre elas, no caso o Ré natural. Já no final do primeiro compasso desta frase e o início do segundo podemos observar novamente um salto, entretanto se trata de um salto de 6M. Na sequência, temos as notas Dó e Sol#, respectivamente, 6m e 3M do acorde E7(13-), e no final temos as notas Lá, Dó e Fá que vão compor uma bordadura, que se direciona para o Sol#, 3M do acorde E7(9-)/A, só para citar alguns pontos da melodia onde é possível estabelecer uma relação com a tópica citada.

4.5.2. Análise harmônica A frase a da seção A é iniciada com o I, na tonalidade de Dó maior. O segundo acorde, Em7, pode ser analisado como III. O terceiro acorde, B/E, é analisado aqui como V/III e encontram-se, na melodia neste momento, as notas fá#, mi, sol e dó, respectivamente 5J, 4J, 6m e 9m de si. Nestes quatro primeiros acordes, é interessante observar o baixo pedal em mi, o que gera, inclusive, o baixo na 4J no terceiro e quarto acordes. A frase b da seção A se inicia com o acorde E7M. Vale observar também que se encontra, novamente, um cromatismo, desta vez, a partir do Ré#, que está na cabeça do compasso, indo em direção ao Ré natural e depois ao Dó#, sendo o Ré natural apenas uma nota de passagem. Neste momento, é possível observar uma picardia no acorde E7M, que é a mediante maior. A princípio neste ponto deveríamos encontrar o acorde Em7, porém o compositor utilizou o E7M, seu oposto, portanto. E como esse acorde é abandonado, logo em seguida, acontece um procedimento muito próximo ao citado por TINÉ (2014), para o caso da picardia no acorde C7M, existente na peça Luiza, de Tom Jobim. O próximo acorde, A#m7(5b), pode ser classificado como SubII/II. Quanto a essa tipologia de acorde, TINÉ (2014) afirma:

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Como extensão do substituto de dominante (subV), há a possibilidade de um acorde substituto de subdominante (“subII”), ou seja, uma tétrade menor com 7a. menor ou meio diminuta correspondente ao subV [...]. Observe que as cadências obedecem à lógica do subV, ou seja, quando o substituto de dominante prepara um acorde maior do campo, ele corresponde à tipologia do modo alterado e, portanto, o substituto do II é um acorde meio diminuto e, quando o subV substitui a dominante de um acorde menor do campo, ele corresponde à tipologia do modo mixo 11+ e o subII correspondente é um acorde menor com sétima menor. Entretanto, como “tudo que serve ao menor serve ao maior”, pode-se utilizar a cadência sub II V que se dirige a um acorde maior no campo com os acordes menor com 7a. (dórico) e dominante (mixo 11+), o que, de fato, é muito mais comum (TINÉ, 2014:105).

Entretanto vale destacar que esse acorde, no contexto da peça, não está em uma situação cadencial, conforme descrito na citação acima, porém a classificação SubII/II seria uma forma de situar este acorde dentro da tonalidade. O próximo acorde, E7(b13), pode ser analisado como V/VI. De maneira geral, é comum que o modo mixo 9-/13- seja escolhido para dominantes secundários que se direcionam a acordes menores, o que acontece neste caso.

Como se pôde observar, às dominantes de acorde menor no campo (II, III e VI) podem ser adicionadas as seguintes extensões 9- (nona menor) e 13- (décima terceira menor) e às dominantes de acorde maior podem ser adicionadas as seguintes extensões 9 (nona maior) e 13 (décima terceira maior). O VII grau não recebe, a princípio, dominante individual por não possuir, nesse momento, estabilidade, devido à ausência de 5ª justa. Concluímos com isso que o modo que “gera” a dominante de acorde menor no campo harmônico é o mixo9-(13-), ou seja, o modo do V grau da escala menor harmônica, e o modo que “gera” a dominante de acorde maior no campo harmônico é o mixolídio, ou seja, o modo do V grau da escala maior. Isso significa que as dominantes secundárias são geradas pelos campos harmônicos das tonalidades vizinhas e relativas (da tonalidade principal ou vizinha) no Círculo das Quintas. Por exemplo: o acorde A7(9-)13-, V/II (V do II), é gerado pelo modo de LÁ mixo9-(13-), quer dizer escala de Ré menor harmônica começada pelo V grau. Esta tonalidade (Ré menor) é relativa de FÁ maior, vizinha de DÓ no Círculo das Quintas. Se conferirmos cada dominante e sua proveniência, verificaremos a verdade da colocação anterior. Tal fato corrobora com a ausência de dominante para o VII grau: essa dominante (no caso F#7) seria gerada pelo V grau de SI menor, tonalidade que não é vizinha nem relativa de tonalidades vizinhas no Círculo das Quintas de DÓ maior (TINÉ, 2014:20)

O acorde Am7(9) pode ser analisado como o VI. O próximo acorde, E7(9b)/A, apesar de manter o pedal na nota lá, pode ser analisado como V/VI, apesar de diferentemente do acorde da mesma tipologia citado há pouco, não se resolve no VI. Na frase c da seção A, encontra-se o acorde Dm7(11), cuja escala-acorde é o modo dórico. O próximo acorde, G#°(b13), é de tipologia diminuta. Seguindo o que é sugerido por (TINÉ, 2014), esse acorde pode ser analisado como V°9, sendo que a sua escala-acorde é o 128

modo lócrio 4°/7°42. Este acorde, na verdade, substitui o B°, que tem como escala-acorde o modo lócrio 6M43. Quanto às características principais desse tipo de acorde, é interessante observar que (TINÉ, 2014):

Ian Guest apresenta em seu livro “Arranjo” três funções para o acorde diminuto: as funções dominante, auxiliar e a cromática. Para alguns deles eu dei um segundo nome a fim de se especificar melhor sua função. Assim como o acorde dominante é aplicado como preparação dos demais graus do campo harmônico, o acorde diminuto pode fazer o mesmo. Neste caso, o de função dominante, o acorde diminuto sempre acontece ½ tom abaixo do acorde “alvo” que pode ser antecedido por seu diminuto individual ou ele pode acontecer após o alvo. Nesses dois casos o diminuto sempre ocorre nos tempos ou compassos fracos do ritmo harmônico (TINÉ, 2014:30).

A primeira seção dessa peça possui 16 compassos em cada uma das repetições. O acorde G#°(13-) acontece, no décimo compasso desta seção, ou seja, em um compasso fraco do ritmo harmônico, assim como descrito acima. Como a tonalidade desta seção é Dó maior, a princípio, esse acorde poderia ser analisado como um dominante secundário do VI, sendo analisado então como V°9/VI. Entretanto, observando a sequência dos acordes presentes nesse trecho, percebe-se que o acorde diminuto em questão não leva ao VI, e sim para uma forma alterada do primeiro grau, no caso um C7/G, que possui função V/IV. Assim, parece mais adequado analisar o acorde como uma rotação do B°, porém com 11J, sendo que o B° tem como escala-acorde o modo lócrio 6M. O próximo acorde, C7/G, pode ser analisado, como descrito acima, como V/IV. Esse acorde, C7/G, prepara o Fm6, cuja escala-acorde é Fá dórico7M44. Existem diferentes análises sobre esse tipo de evento harmônico. Quanto a esse acorde, ressalta-se:

No campo harmônico maior, o quarto grau, que possui função subdominante, é um acorde maior. Porém, existe também a possibilidade, neste mesmo ponto, de se usar um acorde menor. Tal acorde é conhecido como subdominante menor. Normalmente, tal acorde vem acrescido da 6M ou 7M, mas em alguns casos podemos encontrar o subdominante menor com 77m (BARASNEVICIUS, 2009: 59).

Verifica-se, no caso do acorde analisado, que se pode encontrar o Lá bemol, que é

42 Sétimo grau da escala de lá menor harmônica. Vale ressaltar que, em diferentes métodos, este modo possui nomenclaturas diferentes. (TINÉ, 2014) chama-o de Lócrio diminuto, entretanto parece que a nomenclatura adotada aqui é mais adequada. Utilizou-se essa nomenclatura em outros textos de cunho didático lançados anteriormente (BARASNEVICIUS, 2009). Entretanto, deve-se citar que existem outras possibilidades de nomenclatura também difundidas. É possível também (GOODRICK, 1987) classificar este modo, por exemplo, de “Altered Dominant bb7”. 43 Segundo grau da escala de lá menor harmônica. 44 Em diferentes métodos, este pode aparecer simplesmente descrito como menor melódica, já que se trata do primeiro modo do primeiro grau desta escala. 129

a 3m de Fá, e o Mi, que é a 7M de Fá. A presença dessas duas notas caracteriza a escala-acorde como fá menor melódica, ou seja, está em consonância com o que é citado no texto acima. Essa abordagem, influenciada pelo que Arnold Schoenberg diz a respeito desse tipo de acorde, em seu Tratado de Harmonia, não é a única possibilidade de análise. TINÉ (2011) classifica essa situação como sendo um Empréstimo Modal, ou seja, o Fm6 pode ser interpretado como um acorde emprestado da tonalidade de Dó menor. Assim, pode-se verificar que se trata da abordagem mais comum para esses casos, conforme descrito acima, ou seja, quando é utilizado um acorde do tom menor dentro do contexto maior. Na frase d da seção A, o acorde Am/E é aqui analisado como VI. Na sequência, tem-se o Am7M/E, cuja escala-acorde é o dórico7M45 e depois Cadd9/E, analisado como I. Logo após, aparece o acorde B7(9-/11+), que tem a função de V/III e, no final da parte A, tem- se uma resolução de certa forma inesperada em um acorde maior no II, que acontece por uma picardia na S/T, ou seja, quando o grau é atingido com a terça alterada, em sentido oposto ao existente no campo harmônico, sendo abandonado logo após ter sido atingido. Assim, como se pode observar, na seção A de Ária de Opereta, apesar da utilização de alguns dominantes secundários e da sua finalização no acorde maior no segundo grau, de forma geral, esse trecho predominantemente está dentro da tonalidade de Dó maior. Do ponto de vista harmônico, a seção B pode ser considerada menos estável que a primeira, o que pode certamente ser considerado como um elemento de contraste entre as partes. Assim, a semifrase a da seção B começa na tonalidade de Si bemol e termina em uma tonicização no acorde B7M, o que pode viabilizar duas possíveis análises, como se verá logo mais. O primeiro acorde dessa parte, Bb7M/F, analisado aqui como I do novo tom, Si bemol, foi atingido sem nenhuma preparação modulatória prévia. Entretanto faz-se uma analogia com o processo da picardia, pois o que seria o VII do tom inicial da parte A, um acorde meio- diminuto, aparece totalmente alterado para um acorde maior com sétima maior. Porém, não se encontram, nessa sequência, os processos de digressão ou modulação propriamente ditas, conforme descrito anteriormente. Encontra-se, nesse trecho, uma sequência quase total de acordes dominantes: logo depois do acorde Bb7M/F, tem-se o acorde G7(11+)46, analisado, nesse cenário, como V/II e, logo depois, na semifrase b da seção B, o acorde Eb7M/G,

45 Essa opção é considerada aqui por ser o modo com menos notas evitadas disponíveis. 46 É importante lembrar que no songbook da Ed. Gryphus, neste ponto, encontra-se uma cifragem diferente para este acorde. Considerando a transposição que se fez a esta análise, conforme descrito anteriormente, no referido material, neste ponto, tem-se o acorde A+/G. Entretanto, uma percepção é a de crer, por mais que isso possa ser algo subjetivo, que a cifragem G7(11+) e a respectiva análise V/II e escala-acorde mixo11+ é mais adequada.

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analisado como IV. Na sequência, tem-se um acorde D7(b13), considerado como V/VI. A semifrase c da seção B se inicia no Db7(9) que traz algo, de certa forma, inusitado em sua estrutura: apesar de ser analisado aqui como SubV/II, sua escala-acorde é mixolídio e não mixo 11+ ou alterado, como frequentemente acontece nesses casos. Analisa-se esse acorde como sendo mixolídio pelo uso na melodia da nota Sol bemol, 4J de Ré bemol. O próximo acorde, E7(9), pode ser considerado aqui como subV/IV, sendo que o seu modo é o mixo11+. Na sequência, o acorde Eb7(9) será analisado como V/-VII, tendo também como escala de acorde o modo mixo11+. Considera-se essa possibilidade de análise como a que melhor se encaixa, neste caso em particular, já que, efetivamente, o acorde Eb7(9) se direciona ao Ab7(9- ), que, como se visualizará, a seguir, é o -VII. Contudo importa ressaltar que caberiam, para este caso, pelo menos duas análises alternativas, já que o Eb7(9) poderia ser considerado o IVblues, ou ainda como SubV/III, mas avalia-se que são menos adequadas essas abordagens, pois não condizem com o caminho feito pela harmonia. De qualquer forma, seria o caso de uma diferenciação mais conceitual que prática, pois, nessas três possibilidades de análise, a escala-acorde seria mixo11+. O próximo acorde, Ab7(9-), já na semifrase d da seção B, direciona-se para o Db7(4/9) e será analisado aqui como V/-III e, apesar da 9b presente na cifragem, tem como escala de acorde o mixo 9b/13b, pois, na melodia deste momento, encontra-se o Mi bemol, 5J do acorde, o que seria incompatível com a escala alterada. No Db7(4/9), presente no início da semifrase e da seção B, analisado como SubV/II, é importante frisar que, assim como o acorde Db7(9) de alguns compassos atrás, ele também tem como escala de acorde o modo mixolídio, dado que a 4J está presente na melodia deste ponto. Na sequência, encontra-se o C7(9/11+), que é V/V e possui como escala de acorde o mixo11+. No próximo acorde, A7M, que é o primeiro da semifrase f da seção B, tem-se o que, de certa forma, poderia ser interpretado como uma picardia no VII do tom do momento, Si bemol maior. Uma eventual modulação, para os espaços tonais mais distantes, normalmente, é atingida, utilizando uma dupla interpretação de um acorde napolitano ou de um subV, mas esses processos não foram verificados nesse trecho, pois, no acorde A7M, acontece apenas uma picardia, não existindo digressão ou a modulação propriamente dita, o que caracterizariam processos mais complexos, envolvendo cadências para no novo tom pelos procedimentos citados. Assim, a partir do acorde G#7(9-/11+), podem-se ter dois caminhos de interpretação, sendo que uma possibilidade não necessariamente exclui a outra. Em uma primeira perspectiva, o G#7(9-/11+) é analisado como SubV/VI e seu modo é a escala alterada. 131

Na semifrase g da seção B, o acorde G7M/D é o VI, entretanto aconteceu uma digressão, para que esse VI alterado fosse atingido, pois, na tonalidade de si bemol maior, o VI seria um acorde menor com sétima, a princípio. Na sequência, encontra-se novamente o C7(9/11+), que, no começo, seria V/V, possuindo como escala de acorde o mixo11+. Entretanto deve-se observar que, nesta progressão, ele funciona como um SubV do acorde B7M, já na semifrase h da seção B. Dessa forma, o C7(9/11+) pode então ser analisado como SubV/-II. O último acorde, B7M, é analisado como o acorde napolitano do tom de Si bemol maior, ou seja, -II. Observa-se sobre esse acorde:

Tradicionalmente o acorde napolitano é a primeira inversão do acorde maior do II grau rebaixado em meio-tom na escala maior ou menor. O nome sexta napolitana advém do fato de na harmonia tradicional, se grafar a primeira inversão com o número 6 (no caso IV6), já que este intervalo (6ª) acontece entre o baixo invertido e a fundamental do acorde. Já a designação “napolitano” é relativamente arbitrária. No caso da música popular a primeira inversão é deixada de lado e a indicação de grau se faz com II-. Tal acorde engendra uma cadência denominada cadência napolitana, que na música clássica assume as seguintes possibilidades: II- I6/4 V I, II- V I, e a versão plagal II- I (TINÉ, 2014:72).

Constata-se que o acorde descrito na citação acima é exatamente o que se verifica, no final da seção B, em que há uma digressão direcionada para o acorde B7M, conforme citado anteriormente. Outra possibilidade de análise sugere que, a partir do A7M, tem-se um processo modulatório para Si maior, ou seja, esse acorde poderia ser considerado como o -VII do novo tom, conforme mostra a Tabela 5, a seguir:

Db7(4/9) C7(9/11+) A7M G#7(b9/11+) G7M(6)/D C7(9/11+) Badd9 B7M

subV/II V/V tom: si SubV/-VI -VI (lídio) subV I I (mixo) (mixo 11+) maior- (alterada) (mixo 11+) (lídio) (lídio) VII (lídio)

Tabela 5: Segunda metade da parte B de Ária de Opereta (Análise alternativa)

Assim, nessa análise alternativa, o G#7(b9/11+) seria considerado o SubV/-VI, seguido pelo próprio -VI, SubV e, finalmente, o I do tom de Si maior. Como uma forma de melhor compreender os elementos presentes na melodia de Ária de Opereta, procurou-se realizar uma análise harmônica e melódica da peça, evidenciando 132

suas características. Como foi possível, apurou-se, ao longo desta análise, que essa melodia possui diversos cromatismos, notas de passagem, entre outros elementos típicos de figuração melódica. De acordo com o que ficou evidente na análise harmônica, existem grandes contrastes entre as duas partes da peça. Harmonicamente, a primeira parte é mais estável que a segunda. Com relação à análise melódica, também, identificam-se alguns contrastes entre os trechos, embora o motivo principal, composto por semínima pontuada e três colcheias, mantenha-se. Embora, em harmonia, essa peça seja bem sofisticada, passando por três tons diferentes pelo menos, pode-se afirmar que, com relação à sua estrutura melódica, ela seja bastante tradicional. Atesta-se que existe uma quadratura bem clara, pois são duas partes que são compostas por quatro frases cada. De forma geral, as frases são compostas por três repetições do motivo principal, acrescidas de uma nota longa no final. A última frase de cada uma das seções possui características diferentes de todo o restante, mas são similares entre si com relação ao contorno.

4.5.3. Descrição do arranjo A peça Ária de Opereta é uma parceria de Guinga e do letrista Aldir Blanc. Entretanto entende-se que esta faixa escape um pouco dos padrões idiomáticos do violão, frequentemente seguidos por Guinga em suas composições e que foram comentados diversas vezes antes no presente trabalho. Mesmo que seja possível encontrar no songbook o acompanhamento escrito para o violão, na gravação dessa faixa, presente no disco Cheio de Dedos, tem-se o piano como instrumento principal de acompanhamento, sendo que o mesmo foi gravado por Itamar Assiere, assim como um arranjo de cordas que foi escrito por Leandro Braga, além da participação de Ed Motta na voz. Nesta gravação, presente no disco Cheio de Dedos, não existe um violão gravado por Guinga, que apenas realizou alguns vocalizes. O arranjo analisado segue a estrutura: Intro/A/A’/B/A’’/B/coda. Em linhas gerais, a estrutura formal desse arranjo segue o seguinte plano: a introdução foi feita apenas com o piano no formato de melodia acompanhada. Na seção A, tem-se a voz fazendo a melodia principal e o piano fazendo o acompanhamento. A seção A’ começa de forma parecida com a anterior, porém, no final, entram as cordas escritas por Leandro Braga. Na seção B, encontram-se também o acompanhamento do piano e as texturas produzidas pelas cordas. Após a seção B, há uma repetição da seção A, todavia sem a letra no início, que foi substituída por vocalizes. Na continuação, tem-se a seção B, novamente e uma coda feita somente com o piano.

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4.5.4. Regimes de integração entre melodia e letra Como se trata de um conteúdo cancional, julgou-se apropriado incluir nesta análise algumas das teorias propostas por Luiz Tatit em O cancionista, onde esse autor busca categorizar os regimes de integração entre melodia e letra para melhor compreender o sentido de uma determinada realização musical. Ainda que essa abordagem não seja o foco principal deste trabalho como um todo, pondera-se que se mostra como perfeitamente adequada para esta composição em particular. Assim, estabeleceu-se que a peça Ária de opereta, segundo os critérios propostos pelo referido autor, apresenta um regime predominantemente passional, tanto quanto à composição em si e no que diz respeito à interpretação de Ed Motta. Vale ressaltar que não necessariamente o tratamento dado pelo arranjo e pela interpretação a uma determinada canção pode evidenciar as principais características de seu regime de integração entre a melodia e letra e não há problema nenhum se o arranjo e a interpretação forem estruturados de forma a não iluminar as características mais claras da peça, dando ênfase a aspectos menos óbvios da obra, no entanto, a partir dos dados aqui analisados, verificou-se que a característica passional presente nesta peça acaba sendo evidenciada pela interpretação de Ed Motta, assim como pelo arranjo com piano e cordas presente na gravação. Confirma-se, entre outros pontos, que a passionalização nesta composição se caracteriza, principalmente, pela elaboração da melodia que se utiliza de grandes saltos em sua estrutura e de sua grande tessitura, chegando a 23 semitons ou a uma décima quarta menor. Ou seja, é uma melodia que busca a expansão no decorrer da peça, que vai ao encontro de que Luiz Tatit considera uma passionalização, conforme se pode conferir:

Assim, ao investir no continuidade melódica, no prolongamento das vogais, o autor está modalizando todo o percurso da canção com o ser e os estados passivos da paixão (é necessário o pleonasmo). Suas tensões internas são transferidas para a emissão alongada das frequências e, por vezes, para as amplas oscilações de tessitura. Chamo a este processo de passionalização. Ao investir na segmentação, nos ataques consonantais, o autor age sob a influência do fazer, convertendo suas tensões internas em impulsos somáticos fundados na subdivisão dos valores rítmicos, na marcação dos acentos e na recorrência. Trata-se aqui, de tematização (TATIT, 2012: 22).

É possível observar também o emprego de recorrentes cromatismos na elaboração da melodia durante toda a peça. É certo que essa é uma prática comum em diversas melodias compostas por Guinga, mas, nessa perspectiva, a sua utilização ganha também um caráter expressivo. Entre outras composições que se utilizam largamente deste recurso, citam-se a canção Parsifal e também os temas instrumentais, como Cheio de Dedos, Dichavado e 134

Picotado, entre muitas outras.

4.5.4.1. Elementos passionais evidenciados pelo arranjo Os elementos passionais, temáticos ou figurativos podem ser evidenciados ou atenuados pela elaboração e organização dos elementos presentes em um determinado arranjo. Em Ária de Opereta, considera-se relevante tecer alguns comentários sobre o andamento. Salienta-se que o arranjo da peça analisada, traz andamento médio-lento, porém vale lembrar que é bastante elástico, como se observa claramente logo na introdução, que é feita somente com o piano, o que favorece a característica passional dessta composição. Na seção A, o andamento se mantém, aproximadamente, em 72 bpm. Em alguns momentos deste trecho acontece uma diminuição do andamento, como se utilizasse uma série de fermatas, em diferentes pontos do texto, como, por exemplo, em “Às vezes tu és Gilda...” ou então “...e eu sou teu pai”, assim como “Em outras, tua sina...”, ou ainda “...Madame Butterfly”. Logo adiante, o ritmo se torna mais regular em “Disfarça teu amor…” mas é interrompido novamente em “...Bal Masqué” e “Cigana és…” e também “Carmen de Bizet”. A abordagem de Ed Motta se mantém a retardar o andamento, em alguns momentos da segunda seção A, como se menciona em “Amiga feito a pomba…” e “...Lohengrin”, assim como “Valquíria…” e “que há em mim”. Novamente, o ritmo parece ficar mais regular em “Nós juntos somos Traviatta…” para ser interrompido em “Não fuja não” e “Princesa Turandot”. A esse aspecto, é importante observar:

A dominância da passionalização desvia a atenção para o nível psíquico. A ampliação da freqûencia e da duração valoriza a sonoridade das vogais, tornando a melodia mais lenta e contínua. A tensão da emissão mais aguda e prolongada das notas convida o ouvinte para uma inação. Sugere, antes, uma vivência introspectiva do seu estado. Daqui nasce a paixão, que em geral, já vem relatada na narrativa do texto. Por isso, a passionalização melódica é um campo sonoro propício às tensões ocasionadas pela desunião amorosa ou pelo sentimento de falta de um objeto de desejo (TATIT, 2006: 23).

Com certeza, essa elasticidade no andamento proposto no arranjo reforça o regime passional da composição e da interpretação de Ed Motta, visto que enfatiza, em linhas gerais, o prolongamento das vogais. Embora essa característica seja mais evidente nas seções A presentes no arranjo, ela também pode ser encontrada no final das seções B, em que o andamento se mantém, de maneira geral, a 76 bpm e, após apresentar uma certa regularidade rítmica em “A força do destino te fez mil Salomés” , volta a diminuir o passo em “Barbeiro e palhaço a teus pés” e “...em São João de Meriti”, assim como em “Eu sou Peri tu és…”. 135

Ressalta-se que a diferença entre a predominância da elasticidade na seção A e de uma maior regularidade rítmica no início da seção B, embora ainda assim possa ser considerado algo sutil, por si só já se evidencia como um contraste no arranjo e na interpretação no que diz respeito ao tratamento do ritmo nas diferentes seções da peça.

4.5.4.2. Elementos passionais na letra de Ária de Opereta Analisando o conteúdo da letra de Ária de Opereta, entende-se que a passionalização também se caracteriza pela disjunção apresentada no texto e que se encaixa perfeitamente no conteúdo passional proposto pela melodia. Uma interpretação possível é a de que alguma forma, trata-se de uma conversa, talvez ao pé do ouvido, em que a figura masculina busca evidenciar à sua parceira que ela aparenta ter vários traços de personalidade diferentes, muitas vezes, contrastantes, que é dito quase de maneira irônica. Essa atitude o faz chamar à conversa diversos personagens icônicos de diferentes óperas, constatando que são muitas mulheres em apenas uma. Assim, a canção faz referência a diferentes formas de disjunção. As citações são organizadas na peça de forma que os contrastes se evidenciem. Para uma melhor visualização dos elementos citados, serão visualizados os trechos da letra dispostos em “tatituras”, divididos por segmentos, segundo proposto por TATIT(2006), de forma a facilitar a idealização das características citadas acima. Observa-se, na figura 29, a tatitura do primeira frase da letra de Ária de Opereta:

Figura 29: primeira frase da letra de Ária de Opereta

Na seção A, pretende-se demonstrar a menção a quatro personagens. A primeira é Gilda, da ópera Rigoletto, de Giuseppe Verdi(1851) - “Às vezes, tu és Gilda em Rigoletto, e 136

eu sou teu pai” – em que de depreende uma referência a uma mulher que se entrega ao amado, um conquistador que não valoriza os seus sentimentos, despreza-a e, mesmo assim, ao final da obra, ela se sacrifica por seu amado para poupar-lhe a vida. Observe agora o segunda frase da letra:

Figura 30: Segunda frase da letra de Ária de Opereta

Quando cita Madame Butterfly, de Giacomo Puccini(1904) - “Em outras, tua sina é a de Madame Butterfly” - o compositor apresenta uma figura feminina ingênua, que será usada e enganada por seu marido, em um casamento mentiroso, que tinha fins políticos e estratégicos, e ela, por consequência, suicida-se diante de tanta humilhação. De alguma forma, essas duas mulheres exibem traços psicológicos próximos - ambas frágeis, enganadas, desprotegidas, ingênuas. Porém, logo adiante, as figuras femininas, trazidas para a composição, mudam de perfil, como se apura na terceira frase, presente na figura 31:

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Figura 31: Terceira frase da letra de Ária de Opereta

Em “Disfarça teu amor, Amélia em Bal Masqué”, encontra-se uma menção à ópera Ball Masqué, Giuseppe Verdi(1859). Essa obra trata-se, entre outras coisas, de um caso escandaloso de traição e adultério, posto que o personagem do Rei Ricardo é apaixonado por Amélia, mulher se seu amigo e conselheiro Renato. Este último tenta inutilmente alertá-lo sobre uma conspiração para assassiná-lo, sem sucesso, porém Renato descobre o adultério e mata Ricardo. Carmen, de Georges Bizet (1875), citada logo na sequência - “Cigana és igual a Carmen de Bizet” - traz a imagem de uma cigana sedutora que utiliza seus talentos e beleza para seduzir os homens, conseguir o que quer e depois descartá-los. Tranquilamente, essas duas últimas mulheres - Carmen e Amélia - possuem perfis totalmente opostos ao de Madame Butterfly e Gilda. Na seção A’, o compositor estabelece novos contrastes, citando mais quatro obras, como se vê nas frases:

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Figura 32: Quarta frase da letra de Ária de Opereta

Quando afirma “Amiga feito a pomba no meu barco em Lohengrin” o compositor traz à ideia, de alguma forma, de um sentimento de amizade e confiança entre os parceiros, citando a pomba que guia o cavaleiro Lohengrin, ao final da ópera homônima, de Richard Wagner(1850), de volta ao castelo do Santo Graal. Na quinta frase, presente na figura 33, existe uma menção à A Valquíria, também de Richard Wagner(1870):

Figura 33: Quinta frase da letra de Ária de Opereta

Nesta obra, Richard Wagner lembra a história de Brünnhilde, a Valquíria que desobedece às ordens do pai, o deus Wotan, para matar Sigmund, seu meio-irmão e também filho do Wotan o qual tinha uma relação adúltera e incestuosa com Sieglinde, sua irmã gêmea. Brünnhilde se recusa a matar o meio-irmão, tenta salvar Sieglinde e perde o status de Valquíria. Estima-se, em Brünnhilde, lealdade, honra e respeito aos seus princípios. Observa-se, nessa 139

ótica, a frase seguinte, na figura 34:

Figura 34: Sexta frase da letra de Ária de Opereta

A Obra La traviatta, de Giuseppe Verdi(1853), narra a história da cortesã Violetta, que é apresentada a Alfredo, que a amava em segredo. Com tuberculose, ela não queia se comprometer, mas se apaixona e, logo depois, o pai de Alfredo, Georgio, pede-lhe que se afaste para não manchar o nome da família; ela aceita, mas Alfredo, ao desconfiar do afastamento, pensa se tratar de uma traição. Ao final, já bastante debilitada pela doença, pobre e sozinha, morre diante de Alfredo e seu pai, que havia lhe revelado a verdade pouco antes. Em O trovador, também de Giuseppe Verdi(1853), há disputa pelo amor de Leonora pelo Conde de Luna e por Manrico, o trovador. Ao final da peça, Leonora, que quer salvar Manrico de uma execução, aceita se casar com o Conde, mas se envenena logo depois. Em Turandot, de Giacomo Puccini(1924), a fatal princesa que dá nome à peça apresenta traços sádicos, odeia os homens e não quer se entregar a nenhum deles. Quando o príncipe, que é hipnotizado pela atitude sádica da princesa, desvenda os enigmas propostos por ela e obtém o direito de se casar com Turandot, a princesa tenta fugir. Assim, conclui-se que, na segunda seção A, novos contrastes foram introduzidos: a confiança, amizade e lealdade em Lohengrin e A Valquíria em oposição à mesquinhez e hipocrisia de Traviatta, às disputas em O Trovador, assim como ao sadismo da princesa de Turandot. Na seção B, novas citações aparecem, como se percebe, na frase seguinte, na figura 35:

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Figura 35: Sétima frase da letra de Ária de Opereta

Na ópera Salomé, de Richard Strauss (1905), a personagem homônima apresenta uma atitude bastante doentia, ao pedir ao rei Herodes a cabeça de São João Batista, numa bandeja de prata, para depois beijá-la, depois da tentativa frustrada de seduzir o profeta. A citação de O Barbeiro de Sevilha, de Rossini, traz para a canção a história de amor do Conde Almaviva por Rosina, sendo que, em toda a sua extensão, o personagem do barbeiro Fígaro, que era conhecedor de todos os segredos e escândalos de Sevilha, age em toda a ópera para que o Conde possa finalmente se aproximar da sua amada. Na frase seguinte, temos uma que não traz exatamente uma conexão com o universo das óperas citadas, ao longo da letra, mas serve como uma conexão para as citações finais, como se vê na figura 36:

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Figura 36: Oitava frase da letra de Ária de Opereta

O Guarani, de Carlos Gomes, também é citada pela personagem Cecília, que é filha de Dom Antônio de Mariz, um fidalgo português, chefe dos caçadores de uma colônia lusitana. Observe a citação no último trecho da letra desta peça, na figura 37:

Figura 37: Nona frase da letra de Ária de Opereta

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Assim como boa parte das outras óperas presentes nesta letra, essa história também traz várias formas de se estar apartado do objeto de desejo, pois Cecília está comprometida a casar-se com Dom Álvaro, que, por sua vez, está prometido a uma índia aimoré. Assim, Cecília apaixona-se pelo índio Peri, líder da tribo guarani, que, por corresponder ao amor da menina, resolve apoiar os caçadores em sua luta contra os Aimorés. Em resumo, O Guarani narra uma história de amor em que Cecília desperta as paixões, ao mesmo tempo, em quatro homens: Gonzales, Dom Álvaro, o Cacique Aimoré e Peri. É evidente que as obras citadas, em Ária de Opereta, também, podem permitir outras análises, como, por exemplo, o fato de O Guarani também retratar a dizimação dos índios Aimorés, entre outros assuntos, como, por exemplo, o interesse econômico de Espanha pela colônia portuguesa. Entretanto essas outras análises não são objeto do presente trabalho. O interesse, neste momento, é evidenciar que Guinga e Aldir Blanc buscaram ressaltar, por meio de citações, várias formas de ser apartado de um determinado objeto de desejo, que, segundo a teoria proposta por Luiz Tatit, em O cancionista, é parte essencial para que a passionalização possa ser o regime predominante.

4.6. Sinuoso Na transcrição do songbook da Editora Gryphus, a peça Sinuoso apresenta a estrutura Intro/A/A’/B/A’’, ou seja, a composição está transcrita em forma canção. Ao observar, porém o arranjo presente no disco Cheio de Dedos para dois violões, ele apresenta o seguinte formato: Intro/A/A’/Intro/A/A’/B/A’’/B/A’’, ou seja existe neste arranjo uma abordagem menos usual para a forma canção. Nesta análise, buscou-se verificar o material existente no violão principal, que foi gravado por Guinga, como forma de melhor evidenciar os aspectos relevantes da estrutura da peça. Certamente, esse fato não gera equívoco nesta investigação, dado que essa peça é uma daquelas composições que corroboram com a afirmação de que o arranjo feito por Guinga para o violão principal de uma peça já acarretam todos os elementos necessários para uma forma bem clara e estruturada, como melodia, harmonização, forma e convenções.

4.6.1. Análise melódico-estrutural A introdução de Sinuoso apresenta quatro compassos e duas semifrases, denominadas aqui de a e a’. É importante ressaltar, neste momento, que essa análise contempla apenas um dos violões, pois, neste trecho, o segundo violão repete o início de cada semifrase de forma defasada. Observe a figura 38: 143

Figura 38: Introdução de Sinuoso

A seção A da peça Sinuoso possui oito compassos e quatro semifrases, denominadas a, a’, b e c, sendo que as duas primeiras frases, por sua vez, formam uma frase e as duas últimas formam outra, como se percebe na figura seguir. As duas primeiras semifrases possuem caráter rítmico bem parecido. Não é possível afirmar que de uma para outra existe uma diferença apenas de transposição, pois o contorno das duas é distinto. Observa-se agora a seção A, na figura 39:

Figura 39: Seção A de Sinuoso

Já as semifrases b e c da seção A trazem grande contraste com relação às anteriores e, embora a semifrase b traga, em seu início, parte do mesmo motivo presente no começo das duas semifrases anteriores, o desfecho desta seção proporcionado pela semifrase c traz materiais bem diferentes do que se pode observar no início da seção A. 144

Na seção A’, como se mostra na figura 40, também possui oito compassos e quatro semifrases e compreende-se que as duas primeiras semifrases seguem praticamente o mesmo esquema proposto na seção anterior, porém as semifrases a e a’ dessa seção são bem mais parecidas entre si que não seção anterior, sendo que há quase uma transposição literal entre uma semifrase e outra. Com relação à seção A, entende-se que as frases b e c são completamente distintas da seção anterior. Ao final da seção A’, encontra-se a frase anacrúsica que mostra uma engenhosa solução de Guinga nesta composição, já que ela serve tanto como encaixe para o retorno da introdução como também para a entrada da seção B. Assim, tanto é possível tocar este arranjo no formato Intro/A/A’/B/A’’, como está no referido songbook da Editora Gryphus, como também é perfeitamente viável seguir o formato do arranjo aqui analisado sem que seja necessária nenhuma alteração, ou seja: Intro/A/A’/Intro/A/A’/B/A’’/B/A’’.

Figura 40: Seção A’ de Sinuoso

Já na seção B, assim como nas duas anteriores, verifica-se, na figura 41, também, que possui oito compassos. Nesta seção, existem três frases, denominadas aqui frases a, b e c. O motivo principal da peça aparece aqui também de forma recorrente, como se visualiza no primeiro tempo dos compassos 1, 3, 5 e 7 desta seção. Apesar disso, existe grande contraste rítmico entre as referidas frases da seção B, assim como elas são bastante distintas do material apresentado nas seções A e A’. 145

Figura 41: Seção B de Sinuoso Na figura 42, seção A’’, apresenta-se, basicamente, o mesmo material da seção A’, com exceção do seu segundo final, em que não se encontra a frase em anacruse para voltar ao início da seção B. Assim, essa seção apresenta quatro semifrases, denominadas aqui de semifrases a, b, c e d.

Figura 42: Seção A’’ de Sinuoso

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4.6.2. Análise harmônica A introdução desta peça, de forma geral, harmonicamente, pode ser analisada como um acorde E7 estendido. Já na seção A, detecta-se um certo paralelismo entre os primeiros acordes das duas primeiras semifrases, respectivamente, Bm7(5°/11) e F#m7(5°/11), que apesar de sua tipologia, não estão envolvidos em uma cadência, portanto aqui eles estão apenas situados em suas respectivas posições. É importante ressaltar também que, apesar do paralelismo entre esses acordes, este não se aplica ao restante do conteúdo das duas primeiras semifrases. Já na semifrase b, a progressão de acordes: Am7-G(13b)-Cb7M/Eb-Bb7M/D pode ser analisada como VI / V / -II/-VII7M / VII7M. Entretanto a alternativa seria analisar os dois acordes finais, como uma pequena digressão para o tom de Sib maior. Na semifrase c, a exemplo do material presente na introdução, trata-se de um acorde E7 estendido, embora entre esse trecho e a introdução existam evidentes diferenças no material melódico utilizado. Melodicamente, as seções A e A’ possuem início semelhante, porém, a partir do final da semifrase a’, já se verificam as evidentes peculiaridades de cada seção. Harmonicamente, a diferença entre as duas seções se faz evidente a partir da semifrase b. Em A’, a partir da semifrase b, já se pode verificar a cadência que se direciona para a tônica, ou seja, iim7(5o) - VII, cadência essa que vai ser feita novamente, durante a semifrase c, embora com acordes diferentes: subV/V - I - V - I. É importante ressaltar que o segundo acorde da semifrase c, C7M(6)/G, estando na segunda inversão, soa não como I, mas como um acorde V com 4J, 13M e 9M, portanto poderia também ser cifrado, por exemplo, como G(6/4/9). Assim, com relação ao acorde seguinte, G(9/13-)47, a 4J resolve na 3M, a 13M em 13m e a 9M se mantém. A partir da análise das cadências presentes nas duas partes, verifica-se que a seção A possui final suspensivo, enquanto o final da seção A’ tem caráter conclusivo. A seção A’’ possui material em grande parte bastante parecido com a seção A’, tanto melódica quanto harmonicamente. As semifrases a, a’ e b são idênticas. A diferença entre as partes se encontra, no segundo final da semifrase c, pois, na seção A’’, a cadência se direciona diretamente do subV/V para o I e, obviamente, não existe o anacruse para preparar o retorno da seção A. Assim como a finalização da seção A’, a seção A’’ possui caráter conclusivo.

47 Vale ressaltar que este acorde também pode ser cifrado como Eb4+/G. 147

4.6.3. Descrição do arranjo É interessante verificar a declaração de Lula Galvão quanto a como foi construída a sua parte neste arranjo: Esse é aquele processo de fazer um complemento do violão [...] Essa aí eu já tinha aprendido ela antes, não foi no estúdio não [...] Porque eu tinha que dobrar, tinha que fazer um segundo violão que respondesse o dele, por exemplo na primeira frase [cantarola a melodia de Sinuoso] [...] Foi isso, eu atuei ali na parte aguda, vendo as inversões e cobrindo aquelas melodias com intervalos de quartas também [cantarola mais um trecho da melodia de Sinuoso] com acordes de formações quartais, e também dobrar uma melodia em terças, esse cromática aí...(GALVÃO, 2019).

Nesse arranjo, Lula Galvão buscou sempre complementar as linhas principais e aberturas de acordes propostos por Guinga em sua parte. Realmente, pode ser considerado como um elemento idiomático do violão realizar grande parte das melodias principais na região mais grave ou nas primeiras casas do braço do instrumento e utilizando cordas soltas, sendo que, certamente, isso é bastante recorrente inclusive na obra do próprio Guinga, como, por exemplo, em peças como Dichavado e Perfume de Radamés. É interessante citar aqui, também, um trecho do depoimento de ARAGÃO (2019), a respeito da interação entre Guinga e Lula Galvão:

Em relação a isso, o que eu vejo muito acontecer nas gravações e tal, existe esse tipo de situação do Lula interferir realmente no violão do Guinga, acho perfeitamente possível, já que eles têm uma afinidade, uma cumplicidade tão grande, enfim, acho que é possível, apesar do Guinga em geral chegar bem fechado com o violão dele. Não que ele não esteja aberto a sugestões, mas em geral ele já chega com a coisa bem pronta e tal. Agora, tem uma situação, não sei se é isso exatamente a que você está se referindo, mas acho que vale citar também, que o violão do Guinga, por mais fechado que chegue, chegue pronto e tal, na hora em que você cria os complementos existe um certo espaço, até assim, harmonicamente falando, para certas escolhas, por parte de quem está complementando, no sentido da condução da harmonia mesmo. Então por mais que venha, por mais que o violão do Guinga já te dê toda a sugestão de harmonia e todo o caminho(...), mas tem sutilezas em termos de condução de baixos, ou mesmo de condução das tensões, de coisas que não estão no violão do Guinga e se prestam muito bem (...) O violão do Guinga, por mais completo que seja, ainda dá espaço para algumas escolhas como essas. Na Cheio de Dedos, talvez isso não aconteça tanto, mas em várias músicas [do repertório de Guinga], isso acontece bastante (ARAGÃO, 2019).

É certo que o exemplo citado por Aragão se aplica ao arranjo da peça Sinuoso, em que o violão de Lula Galvão busca preencher os espaços deixados pelo arranjo do violão principal de Guinga. Outro aspecto importante a ser destacado, em sua declaração, é que essa peça não foi aprendida durante as sessões de gravação, sendo que já era tocada em duo com Guinga antes de ser registrada. Esse procedimento mostra um contraste com relação ao que 148

pôde ser verificado, em outros arranjos presentes neste disco, tais como a versão para sopros de Cheio de Dedos, que foi direto da concepção, na partitura elaborada por Carlos Malta, para a sessão de gravação, pois ele próprio gravou, em separado, todos os instrumentos presentes naquele fonograma, ou ainda, em Por trás de Brás de Pina, que embora fosse bastante ensaiada antes de sua gravação, foi gravada em partes por camadas.

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5. REAÇÕES AO DISCO CHEIO DE DEDOS NA IMPRENSA

Neste capítulo, reuniu-se e foram comentadas algumas resenhas sobre o disco Cheio de Dedos feitas logo após o lançamento deste disco, assim como outras reportagens relacionadas ao compositor Guinga, como forma de delinear qual foi a recepção do disco Cheio de Dedos à época de seu lançamento, ou então, trazer à tona outras informações relevantes para o entendimento do objeto principal desta pesquisa. Como mencionado antes, é notório que o lançamento desse disco elevou a nome de Guinga a um alcance que ele não havia atingido tanto com os dois primeiros discos quanto com seu trabalho acompanhando outros artistas, ou então como compositor sendo gravado por diferentes intérpretes. Assim, torna-se importante detalhar como foi a recepção deste disco pela crítica à ocasião do seu lançamento. COLOMBO (1996) fez a seguinte resenha do referido disco, publicada na Folha de São Paulo, em 30 de dezembro de 1996 e que se transcreve na íntegra:

Quando Carlos Althier de Souza Lima, 46, o Guinga, pensou em gravar “Cheio de Dedos”, sua idéia era a de fazer uma crônica musical do Rio de Janeiro. O cirurgião-dentista acabou então compondo em cima de velhas fórmulas - tendo o choro como referencial constante. Homenageou ícones clássicos da cultura popular carioca e incluiu um pouco de modernidade no gênero, tocando ao lado do Nó em Pingo D´água - grupo da nova guarda de chorões cariocas que mistura jazz e pop ao repertório. “Cheio de Dedos” homenageia Jacob do Bandolim, Raphael Rabello, Villa- Lobos e o eterno companheiro de parcerias Aldir Blanc. “Fiz músicas sem letra para que ele colocasse letra. Como está sem tempo, gravei-as assim mesmo e lhe deixo o desafio”, disse o compositor em entrevista à Folha. Das 15 faixas que compõem o CD, só duas são cantadas. “Ária de Opereta”, interpretada por Ed Motta, e “Impressionados”, um choro lamurioso que evoca as figuras de Lautrec, Gauguin, Van Gogh e Cézanne e tem participação especial de Chico Buarque. “Acho que ousei bastante neste álbum, principalmente nos arranjos, mas o fiz com fundamento e autoridade de quem já passeou muito pelos antigos modelos”. Mas a inspiração de compor vai além de meros referenciais. A vigília em que passa seu cotidiano é o principal motor do seu trabalho. “Tenho medo da morte e não durmo mais do que quatro horas de uma vez. Não quero perder nada que acontece à minha volta, vivo compondo”. Perfeccionista, não gosta de retoques em suas músicas. “A possibilidade de queimar a composição é de 99%”. “Cheio de Dedos”, segundo ele, completa um caminho iniciado em “Catavento e girassol”, disco com composições suas interpretadas por Leila Pinheiro. “Pretendi me afirmar como compositor de MPB, simplesmente isso, e acho que consegui”. (COLOMBO, 1996:4).

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A ideia de crônica musical do Rio de Janeiro parece ser bastante pertinente na maior parte deste disco, pois neste trabalho manifestam-se diversos elementos que corroboram com esta afirmação, como por exemplo a participação do grupo Nó em Pingo D´água e de diversos outros músicos que participam do disco e que são bastante atuantes no cenário musical carioca, como Carlos Malta, Lula Galvão e Itamar Assiere. Contudo nota-se que, por outro lado, existem também elementos presentes no disco Cheio de Dedos que não necessariamente remetem à cidade natal de Guinga, como, por exemplo, as participações do grupo Diapasón e do pianista Chano Dominguez, ou ainda as citações de diversas personagens de diferentes óperas em Ária de Opereta. O choro, não só neste disco, mas na obra de Guinga como um todo, certamente é um referencial importante, como se pode verificar na intrincada melodia de Cheio de Dedos e também de outras composições presentes em outros trabalhos, como Dichavado e Perfume de Radamés. Também deduz-se que existem nesse disco outros elementos essenciais para a obra de Guinga, como a influência do jazz, que se pode perceber nos solos de Lula Galvão e outros, ou no uso de diferentes ritmos brasileiros, como nas faixas Dá o pé, Loro e Me gusta a lagosta. É interessante notar a citação sobre o fechamento de um ciclo começado no disco Catavento e Girassol, lançado por Leila Pinheiro. Apesar de Guinga até este momento ser conhecido principalmente como um compositor de canções, o disco Cheio de Dedos, que foi um álbum predominantemente instrumental, foi o responsável por um impulso inédito na divulgação de sua carreira, ganhando, inclusive, um Prêmio Sharp de melhor disco instrumental. Além disso, de forma geral, a música instrumental possui uma circulação muito menor no cenário da MPB, já que artistas deste cenário trabalham predominantemente com canções. Portanto é bastante curioso que um disco com as características de Cheio de Dedos seja um dos trabalhos mais conhecidos da carreira de Guinga até os dias atuais. Nesta mesma reportagem, há uma resenha crítica do disco Cheio de Dedos, aqui transcrita, em que COLOMBO(1996) afirma:

“Cheio de Dedos” é um disco de compositor. Portanto, só o que interessa é a melodia. Nem por isso Guinga se perde em virtuosismos. As faixas são curtas e estudadas, sem lugar para o improviso. É fiel à sua própria concepção. A languidez do choro - e não a alegria do chorinho - delineia as composições, que têm arranjos inspirados para as cordas, mas contidos no que se refere aos metais. Os arranjos a que submete o gênero lembram as transformações impetradas pelos membros da Camerata Brasileira e as de Raphael Rabello. Em alguns momentos, Guinga se afasta do Rio de Janeiro, como no baião experimental, “Dá o pé, Louro”, composto para reverenciar Hermeto Paschoal. O disco tem também um samba inspirado, “Rio de Exageros”, com 151

participação especial do pianista Chano Dominguez, e uma modinha, “Inventando moda”. Apesar de poucas surpresas - o formato das composições é conhecido e respeitado à risca, Guinga ousa em arranjos capazes de personificar todo esse universo com seu estilo próprio. Foi mais longe do que seu modesto objetivo de contar a história musical do Rio. Fez o melhor disco de música brasileira do ano (COLOMBO, 1996:4).

Embora não seja o foco principal do disco, existem sim diversos improvisos dos músicos participantes deste fonograma, como o solo de Lula Galvão, nas faixas Nó na garganta, ou de Chano Dominguez em Me gusta a lagosta e Rio de exageros. Nessa resenha crítica, COLOMBO(1996) também entende que, em Cheio de Dedos, Guinga, em alguns momentos, afasta-se da ideia mais próxima ao Rio de Janeiro, como em Dá o pé, Loro, cujo ritmo predominante é o do baião. Com relação aos arranjos, o formato de várias das peças é conhecido, mas Guinga em diversos momentos trata estas estruturas comumente utilizadas pelo compositores de maneira não convencional, por exemplo, na faixa Sinuoso, cuja canção de forma A/A/B/A é desdobrada de forma completamente inusitada, conforme pôde ser detalhado na análise presente neste texto. Ainda com relação aos arranjos, acrescenta-se que não apenas os sopros e as cordas são contidos, mas que existe uma concepção que permeia boa parte da obra de Guinga, conforme discutido em diversos pontos deste trabalho, e que se baseia no fato de que o violão elaborado pelo compositor já trazer todas as informações necessárias da peça: melodia, harmonia, convenções, rearmonizações e contracantos, dessa forma, é bem comum que os arranjos sejam elaborados em torno do que já estava escrito anteriormente para o violão. Essa maneira de trabalhar as suas composições e arranjos, certamente, é bem particular de Guinga. Em outras reportagens coletadas, porém, sobre diferentes assuntos relacionados a Guinga, é frequente que a música Cheio de Dedos ou o disco homônimo sejam citados como a principal referência do compositor. Esse fato baseia-se na reportagem de CALADO(1997) sobre uma indicação para o Grammy da Banda Mantiqueira:

Quem for ao Supremo já poderá ouvir uma amostra do que será o próximo disco da banda. Segundo Proveta, a gravação deve acontecer em março. A produção, mais uma vez, ficará a cargo de Rodolfo Stroeter, do selo Pau Brasil. Três composições do violonista carioca Guinga devem entrar no repertório do novo CD: “Cheio de Dedos”, “Samba de um Breque Só” e “Catavento e Girassol”. A “big band” toca pelo menos uma delas no show de hoje. “O Guinga tem muita vontade de gravar um disco com a Mantiqueira”, conta o maestro, que acha bastante possível que o projeto se realize já em 98 (CALADO, 1997). 152

De fato, a banda Mantiqueira gravaria Guinga, em trabalhos posteriores, embora não exatamente tenham sido as faixas descritas na reportagem da época. Em seu segundo cd, denominado Bixiga, lançado em 2000 pelo Selo Pau Brasil, existem duas composições de Guinga gravadas: Catavento e Girassol e Baião de Lacan. Percebe-se também a importância dada ao disco Cheio de Dedos pela sua indicação ao Prêmio Sharp. É interessante notar, também, conforme evidencia RYFF(1997) que, na categoria de música instrumental, Guinga era o único indicado nesta premiação. Algo semelhante aconteceu com Paulinho da Viola, nessa mesma ocasião, porém, em outro quesito, conforme se depreende, no seguinte trecho da reportagem publicada na Folha de São Paulo, em 1997:

Pelo menos para três artistas, o suspense de saber se o prêmio irá para as suas mãos não existe. É que em três dos 48 quesitos só há um indicado. Com isso, o sambista Fred, o cantor Paulinho da Viola e o violonista Guinga sabem que não voltarão para casa com as mãos abanando. Autor de “Olhos negros - sete vidas”, Fred foi o único indicado pelos 25 jurados no quesito revelação da categoria samba. As três concorrentes a melhor música instrumental foram feitas por Guinga: Dá o pé, Louro”, “Divagar, quase pairando” e “Nó na garganta”. Ele ainda concorre a melhor disco instrumental por “Cheio de Dedos”. O caso de Paulinho da Viola é idêntico. “Alento”, “Ame” e “Timoneiro”, as três únicas concorrentes a melhor música de samba, são do disco “Bebadosamba”, de Paulinho. Na categoria samba, ele ainda concorre a melhor arranjador, melhor cantor e melhor disco - que também concorre a melhor programação visual (RYFF, 1997).

No dia 28 de maio de 1998, em outra nota na Folha de São Paulo sobre um show de Guinga, que aconteceria naquele mesmo dia, também verifica-se o destaque que é dado aos Prêmios Sharp recebidos pelo disco Cheio de Dedos, classificando-o como um disco instrumental, embora, como se sabe, ele também possui algumas músicas cantadas. Além disso, a nota busca evidenciar algumas influências conhecidas de Guinga e, ainda, a parceria com alguns integrantes da Banda Mantiqueira.

O tímido dentista carioca Carlos Althier de Souza Lima, 48, leva seu violão a dois palcos paulistanos. Guinga, que “entre uma consulta e outra, resolve um arranjo”, se apresenta hoje no Villaggio Café e no Sesc Paulista na segunda- feira. O compositor viaja pelas melodias com a sofisticação que lhe conferiu três prêmios Sharp em 97 pelo disco instrumental “Cheio de Dedos”. No repertório, a diversidade ganha nome: “Choro pro Zé”, “Valsa de Leila”, “Baião de Lacan”, “Samba de um breque”, entre outras. 153

A boa nova do show do Village é “Você, você”, música em parceria com Chico Buarque, uma de suas grandes influências - as outras são Villa - Lobos, Hermeto Paschoal, Hélio Delmiro (“O Pelé do violão”, segundo ele). Acompanhando Guinga, três integrantes da Banda Mantiqueira: Proveta (sax), Walmir Gil (trumpete) e François (trombone) (Folha de São Paulo, 1998:66).

Em uma nota sobre o Festival Kaiser 97, que teve como uma das principais atrações Gal Costa, cuja apresentação teve a participação de Guinga e da Banda Mantiqueira, é interessante notar, mais uma vez, que o disco Cheio de Dedos é aqui também considerado uma referência, quando se fala de Guinga. Neste evento, aconteceram diversas outras apresentações, como o show “Concertão”, com Arthur Moreira Lima, Paulo Moura, Heraldo do Monte e Elomar: “Ganhador de três prêmios Sharp por seu terceiro CD, Cheio de Dedos, Guinga vem consolidando uma produtiva carreira de compositor e violonista desde 67” (PESSINI, 1997:92). Em outra nota sobre uma participação, em um show do violonista Paulo Bellinati, em 1997, que, na ocasião, contou com as participações de Guinga e do saxofonista Proveta, há referência clara ao Prêmio Sharp e ao disco Cheio de Dedos:

Os dois conceituados instrumentistas participam como convidados do violonista Bellinati no projeto Rumos Musicais, que tem a consultoria do maestro Nelson Ayres. Guinga foi ganhador do Prêmio Sharp de melhor disco instrumental por “Cheio de Dedos” e Proveta, como líder da Banda Mantiqueira, figura como indicado ao próximo Grammy de jazz latino (FOLHA DE SÃO PAULO, 1997:60).

É natural que este tipo de nota possa também ser produzido pelos veículos de comunicação, simplesmente a partir de um material distribuído pela assessoria de imprensa de um determinado artista e que tenha seu conteúdo bem direcionado a um determinado foco, entretanto, é interessante notar que, apesar da apresentação de Paulo Bellinati não ter uma relação direta com o disco Cheio de Dedos, como se trata de um trabalho de grande relevância à carreira do Guinga, é frequentemente colocado como uma grande referência de sua carreira, quando o compositor é citado na imprensa. E, certamente, essa situação não ocorreu apenas à época do lançamento do referido disco, como se verá, a seguir. Em outra nota, desta vez sobre uma apresentação do Quinteto Villa-Lobos, ao lado de Guinga, publicada na seção Shows do Guia da Folha, datada de 8 de junho de 2007, muito mais recente, portanto pode-se verificar exatamente isso:

Criado em 1963, o grupo de leva o nome do seminal compositor brasileiro conserva sua atual formação há dez anos. Os músicos partem de peças eruditas de Villa-Lobos, como “Canção do Amor”, e alcançam o território 154

popular, executando peças de Chiquinha Gonzaga, entre outros. Após o intervalo, junta-se ao quinteto o violonista carioca Guinga, e são interpretadas canções suas, como “Cheio de Dedos” (SZYNKIER, 2007:62).

Provavelmente, nesta apresentação, outras canções de Guinga foram executadas, além de Cheio de Dedos, conforme se vê no próprio texto. Entretanto, aqui novamente, ela é tomada como a principal referência do compositor, já que foi escolhida entre outros títulos para que fosse possível ilustrar a sua obra para alguém, que, possivelmente, não tenha um contato muito próximo com a sua obra.

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As conclusões atingidas sobre o processo de composição e produção do disco Cheio de Dedos, durante o desenvolvimento deste trabalho, são parciais, sendo que, evidentemente, faz-se necessário um aprofundamento das discussões aqui levantadas. Na introdução e no primeiro capítulo, ponderou-se que, desde muito cedo, Guinga tinha algum contato com a música clássica e também com a seresta por seus pais, que possibilitaram o acesso a esse capital cultural. Assim, desde muito jovem, aos poucos, Guinga foi se familiarizando com esse universo musical que, muito provavelmente. Aconteceu que Guinga e a sua maneira de se apropriar deste capital cultural foi muito mais ligado à apreciação musical que ao aprendizado linear das disciplinas que tratam de uma parte dos elementos da música, ou seja, o domínio de seu código de escrita ou conhecimento aprofundado das regras que tentam explicar os caminhos harmônicos tonais e modais. Este fato pode ter uma série de explicações como, por exemplo, a família desestruturada emocional e financeiramente, ou, então, aspectos da personalidade do compositor que não facilitaram o aprendizado formal de tais elementos, já que ele, em diversas ocasiões, em que teve oportunidade, declarou não ter paciência para aprender a ler uma partitura com fluência. Assim, ter uma longa experiência em apreciar música clássica, certamente, pode ser considerado um aspecto bastante relevante de sua personalidade musical. Percebeu-se, também, que o compositor foi muito exposto, como se verifica, à influência do jazz, da seresta e da bossa-nova. Conclui-se, portanto, a partir desta pesquisa, que o contato intenso com a seresta, por exemplo, proporcionado em princípio pelo gosto musical do seu pai e, posteriormente por ser um estilo em alta no rádio à época da juventude de Guinga, fez com que o violonista tivesse um amplo conhecimento desse repertório e, com certeza, constituiu uma cultura musical que se tornou essencial à elaboração da sua musicalidade. Verificando o repertório existente nos dois primeiros trabalhos do compositor Guinga, assevera-se a predominância das parcerias entre ele e Aldir Blanc, que certamente pode ser considerado como uma amostra da boa produção musical que ambos tiveram entre o final dos anos 1980 e o começo dos anos 1990 e da importância que o letrista teve no desenvolvimento de sua carreira, como compositor nessa época, evidentemente junto a outras figuras, como Paulinho Albuquerque e Vitor Martins. Porém, a partir do terceiro disco, Cheio de Dedos, Guinga trouxe um repertório diferente dos trabalhos anteriores, permeado por diversas peças instrumentais e com menos parcerias. Ou seja, é possível afirmar, com base em 156

nossa pesquisa, que este trabalho representou uma guinada em sua carreira também por este aspecto. A partir desta pesquisa, foi possível concluir também que Paulinho Albuquerque teve uma essencial importância na carreira de Guinga, sendo um personagem muito atuante em suas produções. O primeiro disco de Guinga, Simples e Absurdo, já foi produzido por Paulinho Albuquerque, e embora a sequência tenha sido quebrada em Delírio Carioca, que foi produzido por Zé Nogueira, nos próximos três trabalhos - Cheio de Dedos, Suíte Leopoldina e Cine Baronesa - a produção ficou também a cargo de Paulinho. Assim, esse profissional teve um desempenho bastante relevante à carreira de Guinga neste período, sobretudo no disco que é o objeto principal desta investigação, conforme foi possível aferir por exemplo durante as entrevistas, onde os músicos participantes lembraram, por diversas vezes, a forma como Paulinho interagia com os músicos, arregimentando os mesmos e dando sugestões para os arranjos. Embora Guinga já estivesse em atividade há décadas, acompanhando outros artistas, compondo canções com diversos parceiros, assim como temas instrumentais, tendo suas obras gravadas por artistas de renome, tais como Clara Nunes, MPB-4 e Elis Regina, foi somente a partir de sua entrada na gravadora Velas, que a sua carreira como compositor e instrumentista tornou-se mais conhecida e passou a ter o grande reconhecimento que possui hoje. E verifica-se que tanto Paulinho Albuquerque quanto Aldir Blanc tiveram uma grande influência para que a parceria de Guinga com a gravadora de Ivan Lins e Vitor Martins se tornasse realidade. Outras conclusões puderam ser obtidas a partir da análise melódica, harmônica e formal de algumas das faixas do disco, já que se pôde apresentar aspectos menos evidentes das peças mas que estão presentes nas composições, de forma a ampliar o entendimento sobre os procedimentos técnicos específicos do compositor Guinga como também sobre como os arranjos, ensaios e a produção musical do referido fonograma ocorreram. Enfatiza-se que as conclusões obtidas neste texto são apenas parciais, sendo possível ainda detalhar, em pesquisas futuras, diversos outros aspectos referentes ao repertório aqui analisado e discutido. Com base em diferentes formas de análise, apresentaram-se algumas das características presentes da obra do compositor Guinga, nas quais foi possível concluir quais elementos fazem parte do universo musical desse compositor, pois Guinga costuma utilizar caminhos harmônicos não muito usuais no universo da canção brasileira e que apontam para uma utilização bastante idiomática de seu próprio instrumento. 157

Portanto, acredita-se que embora as faixas não tenham sido analisadas em sua totalidade, os exemplos selecionados, para este trabalho, ilustram algumas das mais importantes situações da produção do disco Cheio de Dedos, a fim de apresentar um claro panorama sobre como as composições, os arranjos e gravações foram concebidos. É evidente, contudo, que muito mais além desta contribuição, com base nestas análises e nas informações levantadas pode ser discutido sobre este importante disco não só para a carreira de Guinga, mas para a história da música brasileira dos anos 1990. O mesmo, certamente, vale para a discografia desse compositor, que já é bastante vasta no momento da publicação desta dissertação. Todavia, neste trabalho, buscou-se fazer um recorte na época do disco Cheio de Dedos, sendo que alguns trabalhos anteriores e posteriores foram comentados apenas a exemplo de contextualização, não havendo necessidade de análises específicas mais aprofundadas. Assim, de forma geral, conclui-se que o idiomatismo do instrumento é bastante relevante para caracterizar a obra de Guinga, e não apenas no disco que é o objeto principal desta investigação, Cheio de Dedos. O elemento idiomático está presente nas peças aqui analisadas, apesar de os tratamentos diferentes dados para o arranjo de cada peça. De maneira geral, grande parte dos arranjos são construídos a partir do que é sugerido pelo compositor Guinga, em seu arranjo original para violão que está presente na maioria de suas composições de diversas fases de sua carreira. E, quando o violão não está presente no resultado final das gravações, como é o caso da faixa Ária de Opereta, o arranjo foi construído, a partir das ideias propostas por Guinga, em seu acompanhamento ao violão. Nas peças analisadas, também, inferiu-se que Guinga utilizou diversas vezes estruturas assimétricas em suas composições, gerando seções com números ímpares de compassos e, em alguns casos, empregando compassos irregulares em sua construção. Da mesma forma, conclui-se que Guinga procura expandir as estruturas formais para além do é mais usual. Esse fato, certamente, pode ser considerado como algo bastante característico do seu estilo de composição. Esses aspectos podem ser observados, nas peças aqui investigadas, Cheio de Dedos, Dá o Pé, Loro, Sinuoso, Nó na Garganta, entre outras. No que diz respeito à construção dos arranjos do disco Cheio de Dedos, com base nas faixas analisadas, percebem-se algumas situações recorrentes, que podem, nessa perspectiva, ser descritas como características importantes sobre a maneira como esse disco foi produzido. No caso dos arranjos para violão das faixas Cheio de Dedos e Sinuoso, identifica- se a interação entre o violão principal, composto e tocado por Guinga e os complementos escritos por Lula Galvão, procurando sempre preencher os espaços do violão principal e inserir 158

as extensões não tocadas por ele inicialmente. No arranjo para sopros de Cheio de Dedos, em Nó na Garganta e Ária de Opereta, constata-se que boa parte do arranjo foi construído, em estúdio, baseado em sugestões e testes feitos, durante o processo de captação, ou seja, surgiu diretamente no processo de produção e não como foi ensaiado e executado anteriormente. De forma geral, o produtor Paulinho Albuquerque teve grande importância, nessa parte do processo, nas faixas em que este foi o procedimento adotado. Em outros casos, como, por exemplo, Por trás de Brás de Pina, o arranjo foi elaborado e ensaiado previamente e, no estúdio, pouquíssimas alterações foram feitas. Ou seja, nestes casos, não ocorreram modificações relevantes, durante o processo de gravação, a preocupação maior foi em captar os detalhes da melhor maneira possível.

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REFERÊNCIAS

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COLOMBO, Silvia. Cheio de Dedos. Folha de São Paulo, São Paulo, 30 dez. 1996. Ilustrada, p. 4.

CALADO, Carlos. Mantiqueira festeja indicação ao Grammy. Folha de São Paulo, São Paulo, 2 dez. 1997. Folha acontece.

RYFF, Luiz Antônio. Música e teatro levam Prêmio Sharp. Folha de São Paulo, São Paulo, 7 maio 1997. Ilustrada.

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SZYNKIER, Claudio. Guia da Folha, São Paulo, 8 – 14 jun 2007. Shows, p.62.

FOLHA DE SÃO PAULO, São Paulo, Shows, p. 60. s/d

Discos e CDs:

CHEIO DE DEDOS. Carlos Altier de Sousa Lemos Escobar, Guinga (compositor e intérprete). Rio de Janeiro: gravadora Velas,1996. Compact Disc.

CINE BARONESA. Carlos Altier de Sousa Lemos Escobar, Guinga (Compositor e intérprete). Rio de Janeiro, RJ, gravadora Velas, 2001. Compact Disc. 28

DELÍRIO CARIOCA. Carlos Altier de Sousa Lemos Escobar, Guinga (Compositor e intérprete). Rio de Janeiro, RJ, gravadora Velas, 1993. Compact Disc.

SIMPLES E ABSURDO. Carlos Altier de Sousa Lemos Escobar, Guinga (Compositor e intérprete). Rio de Janeiro, RJ, gravadora Velas, 1991. Compact Disc.

SUÍTE LEOPOLDINA. Carlos Altier de Sousa Lemos Escobar, Guinga (Compositor e intérprete). Rio de Janeiro, RJ, gravadora Velas, 1999. Compact Disc.

Dissertações ou teses:

CARDOSO, Thomas Fontes Saboga. Um violonista-compositor brasileiro: Guinga. A presença do idiomatismo em sua música. Rio de Janeiro, RJ: 2006. Dissertação (Mestrado em música). Número de páginas: 148. UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ: 2006. 160

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TINÉ, Paulo José de Siqueira. Procedimentos modais na Música Brasileira: Do campo étnico do nordeste ao popular da década de 1960. Tese (Doutorado em Música). Número de páginas: 196. USP, São Paulo, SP: 2008.

ZAGURY, Sheila. Os grupos de Choro dos anos 90 no Rio de Janeiro: Suas releituras dos grandes clássicos e inter-relações entre gêneros musicais. Campinas, SP:2014. Tese (Doutorado em Música). Número de páginas: 253. UNICAMP, Campinas, SP:2014.

ARAGÃO, Paulo. Pixinguinha e a gênese do arranjo musical brasileiro (1929 a 1935). Rio de Janeiro, RJ: 2001. Dissertação (Mestrado em Música). Número de páginas: 126. UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ: 2001.

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Entrevistas:

ARAGÃO, Paulo. Entrevista a Ivan Daniel Barasnevicius em 29/05/2019. São Paulo - SP. Áudio por Skype.

MALTA, Carlos. Entrevista a Ivan Daniel Barasnevicius em 27/03/2017 e 01/02/2019. São Paulo - SP. Áudio por Skype.

MELLO, Papito. Entrevista a Ivan Daniel Barasnevicius em 23/05/2019. São Paulo - SP. Áudio por Skype.

GALVÃO, Luis Guilherme Farias (Lula Galvão). Entrevista a Ivan Daniel Barasnevicius em 06/02/2019. São Paulo - SP. Áudio por Skype.

MOTTA, Eduardo (Ed Motta). Entrevista a Ivan Daniel Barasnevicius em 27/04/2019. São Paulo - SP. Áudio por Facebook.

ARAÚJO, Pedro Pimentel de. Entrevista a Ivan Daniel Barasnevicius em 23/04/2019. São Paulo - SP. Áudio por Skype.

ESCOBAR, Carlos Althier de Souza Lemos (Guinga). Entrevista a Ivan Daniel Barasnevicius em 27/02/2019. São Paulo - SP. Áudio por Skype.

JÚNIOR, Itamar Assiere Valente (Itamar Assiere). Entrevista a Ivan Daniel Barasnevicius em 06/02/2019. São Paulo - SP. Áudio por Skype.

LESSA, Carlos Rodrigo Hue Ribeiro de (Rodrigo Lessa). Entrevista a Ivan Daniel Barasnevicius em 23/04/2019. São Paulo - SP. Áudio por Skype. 161

LOPES, Mario Sève Wanderley (Mario Sève). Entrevista a Ivan Daniel Barasnevicius em 12/04/2019. São Paulo - SP. Áudio por Skype.

SANTOS, Rafael dos. Entrevista a Ivan Daniel Barasnevicius em 27/03/2017. São Paulo - SP. Áudio por Skype.

Livros:

MARQUES, Mario. Guinga: os mais belos acordes do subúrbio. Rio de Janeiro: Editora Gryphus, 2002.

CABRAL, Sérgio. A Música de Guinga. Col. Songbook. Rio de Janeiro: Editora Gryphus, 2003.

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SCHOENBERG, A. Fundamentos da composição musical (trad. Eduardo Seincman). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.

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Trabalhos publicados online:

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