Universidade Federal do Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

A ANTROPOFAGIA DE ROSA MAGALHÃES

Leonardo Augusto Bora

Rio de Janeiro Fevereiro de 2014

Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

A ANTROPOFAGIA DE ROSA MAGALHÃES

Leonardo Augusto Bora

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Orientador: Prof. Dr. Frederico Augusto Liberalli de Góes. Co-Orientador: Prof. Dr. Luiz Felipe Ferreira – UERJ.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2014 A Antropofagia de Rosa Magalhães

Leonardo Augusto Bora

Orientador: Professor Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes Co-Orientador: Professor Doutor Luiz Felipe Ferreira - UERJ

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Examinada por:

______Presidente: Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes (Ciência da Literatura/UFRJ)

______Profª. Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira (Ciência da Literatura/UFRJ)

______Prof. Doutor Samuel Sampaio Abrantes (Escola de Belas Artes/UFRJ)

______Profª. Doutora Helenise Monteiro Guimarães (Escola de Belas Artes/UFRJ), Suplente

______Profª. Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins (Ciência da Literatura/UFRJ), Suplente

Rio de Janeiro Fevereiro de 2014

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Sumário

I – Introdução – Do índio de tocheiro ao anarquista canibal...... 12

II - Rosa Magalhães e a carnavalização do Brasil...... 25

II. 1 – O profissional carnavalesco: hibridismo e ambiguidades...... 25

II. 2 - Contando a História, histórias e estórias: a canibalização do Brasil...... 39

III – Tupi or not Tupi, in a South American Way!...... 47

III. 1 – O Delírio tropical...... 47

III. 1. 1 – Índio come gente, quem diria!...... 51

III. 1. 2 – Peri beijou Ceci ao som d’O Guarani – um gesto de brasilidade...... 79

III. 1. 3 – E deu Tupi or not Tupi: eis a visão do (a) artista...... 111

III. 1. 4 – Tem Iracema em Ipanema... viva a banda – da - da; – da – da – da – da...... 155

III. 1. 5 – Auê, Imperatriz!...... 205

IV – O índio é acima de tudo um forte...... 225

V – Viva nós, os brasileiros!...... 264

VI – Conclusão - o índio e o alaúde, Macunaíma com Flash Gordon...... 299

VII – Referências bibliográficas...... 320

VIII – Anexos...... 333

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Título A Antropofagia de Rosa Magalhães

Resumo A dissertação investiga os diferentes discursos e símbolos observáveis na fragmentada narrativa de enredo desenvolvida pela carnavalesca Rosa Magalhães para o desfile da escola de samba , no carnaval de 2002, intitulado Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way!. O tema e fio condutor do enredo, a antropofagia (física e cultural), une os conflitantes momentos de uma alegoria da brasilidade: dos relatos dos primeiros cronistas que aportaram em nosso país parte-se para o romantismo indianista, em conformidade com os ideais de unificação nacional do Império, destacando-se o romance O Guarani, de José de Alencar; na sequência, o movimento modernista de 1922 e o seu desdobramento no Manifesto Antropófago, redigido por Oswald de Andrade e ilustrado por Tarsila do Amaral, em 1928, roubam a cena, propondo outra configuração da identidade nacional e da temática indígena (menos arraigada à nobreza e a um modelo de civilidade e honradez e mais preocupada com a crítica social – o anarquista canibal em oposição ao índio postiço ou de tocheiro do período romântico); finalmente, o enredo aborda o neoantropofagismo da Tropicália e o universo simbólico que enreda Carmen Miranda, considerada precursora da antropofagia cultural e musa de um determinado Brasil, marcado pela alegria, pelo exotismo e pela cafonice, sob o manto da folia momesca. Mas o enredo não se esgota nessa sequência de retalhos temáticos: patrocinado pela cidade de Campos dos Goytacazes, tornou-se um símbolo de o quanto a relação entre artistas e patrocinadores pode ser conflituosa; além disso, se observado enquanto peça do conjunto de narrativas desenvolvidas no período de 1992 a 2002, a sinopse e o desfile se mostram representativos de um estilo (sintético e autofágico), inseridos em uma tradição, embora não livres da experimentação radical e de momentos de negação do anteriormente defendido – uma teia complexa, portanto. A figura do índio, que aparece oito vezes num período de onze anos, é reprocessada em 2002, num exercício de plasticidade; o culto à miscigenação e ao carnaval brasileiro enquanto explosão de nacionalidade também é uma recorrência narrativa, opção temática em conformidade com um histórico de enredos da Imperatriz Leopoldinense – o que serve para se pensar os limites da autoria. Mais comprometido com as perguntas que com as respostas, exercitando o olhar dialético de que fala Didi-Huberman, o estudo mostra que as narrativas carnavalescas das escolas de samba podem gerar centelhas reflexivas de grande poder incandescente; os volteios temáticos de Rosa Magalhães são convites sucessivos a se pensar o problemático conceito de identidade nacional e o entre-lugar latino-americano.

Palavras-chave Carnaval; Escola de Samba; Rosa Magalhães; Alegoria; Brasilidade; Antropofagia; Romantismo indianista; Oswald de Andrade; Tarsila do Amaral; Neoantropofagismo; Tropicália; Tradição; Olhar dialético; Ressignificação; Identidade nacional; Entre-lugar.

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Title Rosa Magalhães' Anthropophagy

Abstract This thesis investigates the different discourses and symbols observable at the fragmented narrative theme developed by Rosa Magalhães for the carnival parade of the samba`s school Imperatriz Leopoldinense, in 2002, entitled Goitacazes... Tupi or not Tupi , in a South American Way!. The theme and thread of the story, anthropophagy (physical and cultural), links the conflicting moments of an apologue of Brazilianness: from reports of the earliest chroniclers who arrived in our country goes to the Indianist Romanticism according to the ideals of national unification of the Empire, highlighting the novel "O Guarani", by José de Alencar; after that, the modernist movement of 1922 and their split in Manifesto Antropófago, written by Oswald de Andrade and illustrated by Tarsila do Amaral, in 1928, steal the scene, proposing a new configuration of the national's identity and the indian theme (less entrenched from the nobility and from a model of civility and honesty and more concerned with social criticism - the cannibal anarchist opposed to the fake Indian or to the "de tocheiro" from the Romantic period); and finally, the 2002's theme aproachs the "Tropicália's" neoanthropophagy and the symbolic universe that envolves Carmen Miranda, who can be considered the precursor of the cultural anthropophagy and icon of a particular , marked by joy, exoticism and kitsch, under the "momesca" mantle of revelry. But the theme does not be empty after this sequence of thematic flaps: sponsored by the city of Campos dos Goytacazes, became a symbol of how the relationship between artists and sponsors can be confrontational, furthermore if it is observed as part of the set of narratives developed the period 1992-2002, the synopsis and the parade can represent an specific (synthetic and autophagic) style, inserted into a tradition, though not been free from a radical experimentation and from moments of denial previously advocated - a complex web therefore. The figure of the Indian, who appears eight times in eleven years, is reprocessed in 2002 - an exercise of plasticity; the worship of miscegenation, and the as a burst of nationality is also a narrative recurrence, tha is a thematic option in accordance with Imperatriz Leopoldinenses' historical themes - which serves to think about the limits of authorship. More committed with the questions than the answers, exercising the dialectical gaze that Didi- Huberman writes, the study of the samba's school can show that the narratives could generates reflectives sparks of the great and incandescent power; the themes' voltes from Rosa Magalhães are successive calls to think about the problematic concept of national identity and the latin- american sign-place.

Key-words Carnival, , Rosa Magalhães; Allegory; Brazilianness; Anthropophagy; Indian Romanticism; Oswald de Andrade; Tarsila do Amaral; Neoanthropophagy; Tropicalia; Tradition; Dialectical Look; National identity; Sign-place.

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Agradecimentos

Carnaval... Minha frieza de paranaense Policiamentos interiores, Temores da exceção... E o excesso goitacá pardo selvagem!

Aos meus pais, Ana Maria e Sérgio Luiz, e ao meu irmão Luiz Fernando, foliões incansáveis do meu desfile particular, Unidos do Rio Bonito, em Irati, Paraná, e na Passarela do Samba. Ao professor Fred Góes, o mais baiano dos cariocas, antropófago-nouveau-déco- retro-pós-vintage-futurista, agitador que gentilmente aceitou me orientar (ou desorientar, ao gosto do seu parceiro Leminski) pelos roseirais carnavalescos. Ao professor Felipe Ferreira, a atenção desmedida e generosa, o exemplo de comprometimento acadêmico, o conselho certo no momento (in)certo e a co-orientação precisa para o carnaval inexato. Ao “queridão” Fábio Fabato, de ajuda fundamental para este cortejo, o Manuel Bandeira do meu Carnaval Carioca. Obrigado pela malandragem, pela confiança e pela Mocidade, salve a Mocidade! À professora Vera Karam, orientadora primeva, do Rosa e do Warat, “um sonho de sonhar-se”; e à professora Deizi Link: num domingo gelado, na Confeitaria Holandesa, o impulso para escrever o projeto e ganhar o Rio. À Carolina Iantas, rainha de outras baterias; e ao Thiago Hoshino, que batizei no terreiro de cá. Ao Manuel Guilherme, que ainda verso nos tamborins; à Dandara Damas, a voz que ouço ao ler o Manifesto, e ao Jean Marchese, Oropa, França e Londrina; à Marina Lacerda, a brisa de Copacabana, e ao Rodrigo Estrela, o clóvis da Zona Oeste; à Naiara Tukano, da tradição das Amazonas, mulheres guerreiras; à Sabrina Rossi, Frida- Tarsila, e ao Mariano Zamponi, um toque de fernet; à Indiara Liz, ao seu lado eu sou mais feliz; à Denise Mazocco, das Veredas Vivas; ao Mozart Pereira, nos Becos e Guetos, e à Patricia Monteiro, Maio-nese com afeto; ao Dwan Garcez, Obi-Wan mangueirense; à Natália Guerellus, o Interrogalismo latente; e aos destaques Cátia Toledo, Saulo Pivetta, Sylvia Malatesta e Arthur Tertuliano - pedaços de Curitiba no meu coração vagabundo. Ao Bruno Bocci, que me levou ao Abaporu. À turma da faculdade, das cervejas (mais promessas que verdades), das trocas, da vivência na longínqua terra do Fundão (o outro mangue) e na vizinha UERJ, em

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especial ao André Uzêda, ao Henrique Monnerat e ao Isaac Montes, carnavalizadores da melancofolia. À Fátima, do Departamento de Ciência da Literatura, e à Patrícia, da Secretaria da Pós-Graduação: bússolas da travessia acadêmica. Aos professores Flávia Trocolli, Martha Alkimin e Luis Alberto Nogueira Alves, que confiaram no Fred e no meu trabalho. Ao artista Pedro Ernesto, do Planalto Central, que amigavelmente me emprestou o melhor desenho que alguém poderia fazer sobre a deglutição do Bispo Sardinha. Ao Centro de Memória do Carnaval - LIESA, na figura de Fernando Araújo, que abriu o acervo para este pesquisador e cedeu preciosas imagens e imprescindíveis documentos. Ao Mauro Leite Teixeira, ao Sérgio Faria e ao Alexandre Medeiros, todos atenciosos e dispostos a contribuir para o trabalho. Ao amigo de outras viagens Vinícius Natal, o interlocutor e o café de que eu sentia falta, a certeza de futuras parcerias. Ao Daniel Reis, um amigo soberbo; ao Evandro Vargas, outra prova de que o Sul dá samba; ao Alan Diniz, um doce bárbaro; ao Vini Gresilense e ao Thiago Lacerda, pelas boas-vindas na corte do GRESIL; ao Luiz Bianchi, a guitarra do batuque. Aos que contribuíram para que os dois anos do Mestrado se transformassem, também, em boas histórias de outros carnavais: Marcelo Camões, Gustavo Melo, Eduardo Pinto, André Lúcio, PH Simões, etc. etc. etc. Ao mestre Eduardo Gonçalves, o carnaval em carne e osso – está fundado o desvario!; e à mestra Maria Augusta, inspiração para o amanhã. À “turma do Edu”, pela alegria na Zona Norte e na Zona Sul: William, Flávio, Ana Beatriz, Edu Nunes, Rafa Bandeira, e lá vai o bonde do Oswaldo Jardim... À “Dona” Eraci Gonçalves, por materializar a minha fantasia de retalhos; e à Marina Brie, memórias de . Aos amigos e companheiros Rafael Gonçalves e Vítor Saraiva, artistas extraordinários, tupis tangendo alaúdes – voilà!; e à Mocidade Unida do Santa Marta, botando fogo na folia. À Letícia Tostes, hasta siempre. À família Haddad Gomes Porto, Rosana, Rogério, Matheus e Pandora, por acolherem este cavaleiro errante, nas terras de São Francisco, Niterói; e ao Gabriel Haddad, primeiro leitor e grande incentivador disso tudo, na hora em que o sol se esconde. Auê! À carnavalesca Rosa Magalhães, que muito atenciosamente me recebeu e contou das comilanças e deglutições. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Capes, pela bolsa concedida, alimento material para o estômago deste “bicho-papão”.

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Aos meus avós, pés fincados no barro, comedores de batata. Aardappeleters, Abaporu.

A Fernando Pamplona e aos seus botões.

Aos índios do Brasil e aos índios de cordão.

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L’affaire Sardinha

O bispo ensinou ao bugre que pão não é pão, mas Deus presente em eucaristia.

E como um dia faltasse pão ao bugre, ele comeu o bispo, eucaristicamente.

(José Paulo Paes)

Índio preso na surpresa de saber índios de fato os desfilantes pintados no carnaval caricato exposição que escondia o dia detrás da noite a noite detrás do dia

(Emerson Ahut Wato – Entre homem e pássaro)

Ilustração: Pedro Ernesto

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I – Introdução – Do índio de tocheiro ao anarquista canibal

Minha carne é de carnaval o meu coração é igual àqueles que têm uma seta e quatro letras de amor por isso onde quer que eu ande em qualquer pedaço eu faço um campo grande

Swing de Campo Grande – Novos Baianos (Paulinho Boca de Cantor, Moraes Moreira e Galvão)

Os anos 90 do século passado, no universo do carnaval carioca, serviram de palco temporal para o “duelo” estético travado entre dois dos maiores artistas que as escolas de samba brasileiras já tiveram em seus barracões1: Rosa Magalhães e Renato Lage. De 1990 a 2000, sete dos campeonatos disputados (sendo que as quatro outras vitórias laurearam carnavalescos – em equipes ou carreiras solo – diferentes, não havendo repetição2) foram conquistados por Rosa ou Renato3, que construíam, nas escolas que defendiam (Imperatriz Leopoldinense e Mocidade Independente de Padre Miguel, respectivamente), trajetórias de sucesso com características distintas, dentre as

1Maneira genérica de nomear os armazéns, galpões e demais espaços em que são confeccionadas fantasias e alegorias. Até 2005, as escolas de samba do Grupo Especial ocupavam antigos galpões da região portuária do Rio de Janeiro (segundo Ricardo Barbieri, a situação era predominantemente irregular: “até 2005, nenhuma escola do Grupo Especial tinha a efetiva posse desses galpões”), muitos sem a estrutura fabril adequada para o trabalho de centenas de profissionais; em 2006, passaram a ocupar os blocos da , complexo de galpões de quatro andares, localizado no bairro da Gamboa. As escolas de samba dos outros grupos, porém, permanecem à deriva, não gozando do privilégio de confeccionar as peças em lugares adequados: no mais das vezes, triunfa a insalubridade das ocupações de velhos e semidestruídos prédios. Ver BARBIERI, Ricardo José de Oliveira. Cidade do Samba: do barracão de escola às fábricas de carnaval. In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; GONÇALVES, Renata (orgs). Carnaval em múltiplos planos. Rio de Janeiro: Aeroplano editora, FAPERJ, 2008, p. 125/144. 2 Em 1992, Mário Monteiro e Chico Spinosa ganharam o carnaval à frente da Estácio de Sá, com o enredo Paulicéia Desvairada: 70 anos de modernismo no Brasil; em 1993, Mário Borrielo foi o carnavalesco campeão, tendo realizado o antológico Peguei um Ita no Norte, no Acadêmicos do Salgueiro; Joãosinho Trinta, com Trevas! Luz! A explosão do universo, conquistou, em 1997, mais um título de campeão para a sua prateleira de vitórias e o primeiro título de campeã do carnaval carioca para a ; em 1998, duas escolas dividiram o lugar mais alto do pódio: Estação Primeira de Mangueira, com o enredo da Mangueira, do carnavalesco Alexandre Louzada, e Beija-Flor de Nilópolis, com o enredo Pará: o mundo místico dos caruanas, nas águas do Patu Anu, da comissão de carnaval formada por Cid Carvalho, Fran Sérgio, Ubiratan Silva, Nelson Ricardo, Victor Santos, Paulo Fuhro e Amarildo Mello, sob a coordenação de Laíla. 3 Em 1990 e 1991, Renato Lage dividia o posto de carnavalesco com a então esposa Lilian Rabello; juntos conquistaram o único bicampeonato da história da Mocidade Independente, com os enredos Vira Virou, a Mocidade chegou (1990) e Chuê Chuá, as águas vão rolar (1991). Em 1996, com o enredo Criador e Criatura, Renato Lage foi campeão sozinho e deu ao pavilhão da Mocidade uma quinta estrela dourada. 12

quais as linhas gerais dos conjuntos de enredos transformados em alegorias e fantasias: Renato preferia enredos temáticos pouco ligados aos pormenores históricos (a água, os sonhos, os jogos, o corpo humano, os astros celestes, o circo, etc.), de cronologia indefinida ou insinuada, com tendências à abstração; Rosa preferia enredos históricos (as visões do paraíso terreal e o descobrimento da América, as transformações diacrônicas do carnaval carioca, a união de Pedro I e Leopoldina, a vida e a obra de Chiquinha Gonzaga, a trajetória da missão artística holandesa, etc.) de cronologia geralmente demarcada, executando aprofundadas pesquisas bibliográficas a fim de embasar as narrativas verbal e visual – com tendências, portanto, à concretude dos registros historiográficos e/ou literários encontrados nas bibliotecas. No plano da estética propriamente dita, os comentaristas se ocuparam de simplificar os estilos: enquanto Rosa era “barroca”, Renato “high tech”, rótulos que ambos relativizariam em entrevistas concedidas recentemente4. Classificações à parte, fato é que Renato e Rosa, Mocidade e Imperatriz polarizavam a disputa e causavam frisson quando entravam na Passarela do Samba (Avenida Marquês de Sapucaí), alimentando a mais famosa das perguntas de arquibancada: afinal, quem vai ganhar a competição?5

4 No dia 07 de maio de 2013, durante encontro realizado pelo Centro de Referência do Carnaval e pelo Departamento Cultural da UERJ, no Auditório do Centro Cultural da UERJ, com a participação dos professores Maria Laura Cavalcanti e Felipe Ferreira e do jornalista Marcelo de Mello, Renato Lage expressou que a fama de ser um “carnavalesco high-tech” limita o seu trabalho, uma vez que, apesar de gostar da utilização de recursos tecnológicos de última geração, prefere a minúcia e o detalhamento do trabalho manual ensinado por artistas como Arlindo Rodrigues e levado à avenida em carnavais como o de 2003, quando ele, Renato, e a esposa, Márcia Lage, à frente do Acadêmicos do Salgueiro, revisitaram os grandes momentos dos 50 anos da escola e abusaram de palha, ráfia, espelhos e formas “antigas”. Já Rosa Magalhães, no dia 16 de julho de 2013, no Auditório do Instituto de Artes da UERJ, em encontro promovido pelo Centro de Referência do Carnaval e pelo Departamento Cultural da UERJ, com a participação do professor Felipe Ferreira e do jornalista Marcelo de Mello, concordou com a ideia de Ferreira de que a obra por ela desenvolvida pode ser considerada “barroca” uma vez que o barroco é parte da pós-modernidade. Segundo ele, algumas características do barroco (dinamismo, contraste, dramaticidade, opulência, decoração, originalidade, ousadia, acúmulo, entre outras) são detectáveis no contexto pós-moderno, como na sobreposição de imagens da Internet. Nesse sentido, o conceito de “barroco” não está atrelado a um ideário de oposição à tecnologia e culto ao arcaico, ao contrário. A carnavalesca, em conversa comigo, no barracão da Unidos de , no dia 04 de outubro de 2012, afirmou exatamente isso, após declarar ser fã de cinema 3D: “Eu sou barroca, também. Eu sou pós- moderna. Eu sou o que disserem que eu sou.” Percebe-se que é possível, portanto, relativizar as alcunhas e deslocá-las da zona das simplificações, considerando ambos, Rosa e Renato, artistas contemporâneos que transitam por diferentes universos temáticos. Felipe Ferreira já havia expressado a visão defendida no Auditório do Instituto de Artes da UERJ na Revista de Carnaval 2009 da Imperatriz Leopoldinense, no artigo Rosa Magalhães: Pós-Modernidade Barroca. Nele, afirma que “muito mais que barroca, a carnavalesca (...) pode ser definida como uma artista pós-moderna, por sua capacidade de acumular, sobrepor e justapor referências reunidas em toda uma vida ligada à cultura, às artes e ao ensino.” In: FERREIRA, Felipe. Rosa Magalhães: Pós-Modernidade Barroca. In: Imperatriz Leopoldinense – Revista de Carnaval 2009. Rio de Janeiro: Gráfica Formato3, 2009, p. 34. 5 O jornalista Fábio Fabato, em crônica intitulada O Cravo e a Rosa, tece comentários acerca das disputas que envolveram os artistas, nos anos 90. Na visão dele, “jamais o barroco e o high tech – para sermos 13

É o cenário brevemente exposto que serve de pano de fundo para as primeiras memórias carnavalescas que trago no perfil e na bagagem. Venho de longe, do interior do Paraná, e em Irati, minha cidade natal, havia um carnaval exuberante para os padrões da região, com desfiles de blocos e escolas de samba e, principalmente, grandes bailes e notórios concursos de fantasias. O fascínio que nutria pela folia de Momo se dividia entre as visões das alegorias (pequenas, toscas, meros elementos alegóricos, como um elefante de isopor e papier-mâché sobre um tablado de madeira compensada) sendo levadas do pavilhão em que eram confeccionadas (nos arredores da casa de minha família) à Avenida Munhoz da Rocha, no centro da cidade, onde ocorriam os desfiles; e as transmissões televisivas dos desfiles cariocas, que levavam as famosas escolas de samba do Rio de Janeiro para o Rio Bonito, o bairro em que eu morava. Em frente à TV, permanecia dividido: de um lado, hipnotizavam-me o “luxo” e o “detalhe” da Imperatriz de Rosa Magalhães; do outro, a “criatividade” e a “surpresa”6 da Mocidade de Renato Lage provocavam excitação. O coração da criança, então, permutou as duplas: adotou a Mocidade lageana e se encantou pela Rosa gresilense7. Os desenhos, nos cadernos do colégio, arremedos das alegorias que pintavam a tela: a imagem futurista e multicolorida de um garoto jogando videogame podia, tranquilamente, dividir a página com cavaleiros e arlequinados em preto e branco8. Desenho, de início, e com a rapidez adequada, a exposição de motivos afetivos que, vinte anos depois, gestaram esta pesquisa. Acompanhando o trabalho de Rosa Magalhães desde a primeira infância, descobri na autora narrativas instigantes que desafiam a inteligência devido à possibilidade de reinterpretações temáticas. Além

bem rasteiros nas definições (eles são bem mais do que isso...) – promoveram duelos tão abespinhados e inspirados na pista dos desfiles. ‘Outro dia, por acaso, vi um desses seriados japoneses na televisão. Parecia coisa do Renato Lage’, alfinetou Rosa, em uma reportagem durante os preparativos para o carnaval de 1996. Lage devolveu de prima: ‘Faltam humor e irreverência ao estilo da Rosa. O carnaval tem de ter dessas coisas para ser mais interessante’, sentenciou. Hoje, (...) as cutucadas não são as mesmas de outrora: ambos sabem que crescem quando o outro está fortalecido.” In: FABATO, Fábio. O Cravo e a Rosa. In: DINIZ, Alan; FABATO, Fábio; MEDEIROS, Alexandre. As Três Irmãs. Como um trio de penetras “arrombou a festa”. Rio de Janeiro: NovaTerra, 2012, p. 132. 6 Os termos “luxo”, “detalhe”, “criatividade” e “surpresa” são relativizados, uma vez que se está a falar da perspectiva infantil que tende a simplificar as impressões. A rigor, as quatro características podem ser aplicadas aos trabalhos de ambos os carnavalescos. 7 A Imperatriz Leopoldinense também é chamada de “GRESIL” (abreviação de “Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense”), donde deriva o adjetivo “gresilense”, que aparecerá ao longo deste trabalho. 8 As imagens descritas se referem aos desfiles apresentados por Mocidade Independente e Imperatriz Leopoldinense em 1993, ano de que guardo as primeiras lembranças “encorpadas” da folia carioca (até então, apenas lampejos, fragmentos, como a incêndio da alegoria da Unidos do Viradouro e os pés cortados de Luciana Sargentelli sambando na Estácio de Sá, ambos os fatos de 1992). 14

disso, a carnavalesca mistura à erudição das bibliotecas o apreço pela cultura popular presente em enredos que tratam de temas “simples”: o arroz e o feijão, o sapoti, o jegue, a literatura de cordel, a cachaça9. Em outras palavras: Rosa, a exemplo de autores literários como Mário de Andrade, e João Guimarães Rosa, é uma excelente contadora de histórias que funde em suas criações o erudito e o popular10, e uma artista de difícil classificação (os selos “modernista”, “regionalista” e “barroca”, pura e simplesmente, podem ser entendidos como frutos da sede de taxonomia da racionalidade ocidental, símbolos de uma postura pouco problematizadora que se mostra na contramão do olhar dialético defendido por autores como Theodor Adorno, Walter Benjamin, Félix Guattari e Georges Didi-Huberman, que sugerem o diálogo com a obra e propõem visões em perspectivas conflitantes). Autora que se renova e que, ainda que intuitivamente, parece refletir sobre o conjunto de sua obra, preferindo mudar o rumo da nave a permanecer navegando uma mesma rota, Rosa também não abre mão do humor e da possibilidade de ironizar a temática exposta no asfalto e a si própria, recurso narrativo de indiscutível expressividade. Ainda nos anos 90, os enredos da carnavalesca, de títulos “estrambólicos”, nem sempre se mostravam claros, o que aguçava a minha curiosidade e me fazia correr à biblioteca, à cata de referências e explicações – que nem sempre floresciam11. Nesse cortejo, dançam algumas reflexões do crítico de arte Thierry De Duve, para quem amar a obra em questão é o primeiro ponto fundamental para que um

9 Referências aos seguintes enredos, respectivamente: Um, Dois, Feijão com Arroz (Estácio de Sá, 1989), O Ti-Ti-Ti do Sapoti (Estácio de Sá, 1987), Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube, lá no Ceará (Imperatriz Leopoldinense, 1995), Sou amigo do Rei (Acadêmicos do Salgueiro, 1990) e Cana-caiana, cana roxa, cana fita, cana preta, amarela, Pernambuco... quero vê descê o suco, na pancada do Ganzá! (Imperatriz Leopoldinense, 2001). 10 Sobre o tema, ver KRELLING, Gustavo; OSINSKI, Dulce Regina Baggio. “Rosa de Ouro nunca foi de brincadeira”: a presença da arte erudita no carnaval de Rosa Magalhães. In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, Estudos de Carnaval, v.08, n. 02, 2011, p. 167/182. 11 Os títulos dos enredos de Rosa Magalhães às vezes não são claros o bastante para a compreensão imediata dos temas abordados, e a própria artista discorreu sobre isso no encontro realizado na UERJ, em 16 de julho de 2013, quando contou que o título do enredo que desenvolveu com a amiga Lícia Lacerda no Império Serrano, em 1982, Bum bum paticumbum prugurundum, foi retirado da entrevista concedida por a Sérgio Cabral, publicada originalmente no livro As escolas de samba – o quê, quem, quando, onde, como e por quê e depois, em parte, na obra Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Segundo a artista, o título sugerido por Fernando Pamplona, Onze, Candelária e Sapeca aí, não a agradava: usava de um trocadilho que não mascarava a “clareza” da proposta. A expressão onomatopaica de Ismael, por sua vez, “ocultava” o enredo sem deixar de sintetizar (sonoramente, em especial) a proposta de falar da evolução das escolas de samba, para terminar na crítica ao gigantismo do espetáculo (as “superescolas de samba S.A.”). O exemplo ilustra o fato de que Rosa, a começar pelos títulos dos enredos, é adepta da experimentação. Ver: CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. São Paulo: Lazuli Editora, Companhia Editora Nacional, 2011, p. 269. 15

ensaísta se ocupe da análise dela12. Segundo o autor, a obra a ser analisada precisa despertar reações, sentimentos, provocar o desejo. Ele diz não se interessar, consecutivamente, por obras muito claras, óbvias: “interesso-me apenas por obras que não entendo (...)”13 Deixa-se levar pelo enigma da esfinge (figura mitológica muito cara a Agamben, para quem “na interpretação psicanalítica do mito de Édipo, o episódio da Esfinge, que sem dúvida deveria ter importância essencial para os gregos, fica obstinadamente obscuro; mas é precisamente este aspecto da história do herói que deve ser aqui evidenciado”14) e se vê motivado a escrever sobre trabalhos capazes de colocar o intelecto em movimento, uma vez que multifacetados e, nos termos de Mikhail Bakhtin, polifônicos. O componente ético desse duelo hermenêutico é o respeito para com o caráter enigmático da obra: não se deve matar o mistério encerrado no objeto de estudo, mas reavivar os “claros enigmas”, no contraste drummondiano. Logo, é possível dizer que a poeticidade serve de irrigação ao germinar das reflexões críticas. Para além das visões restritivas e classificatórias que pretendem, numa perspectiva necrófila, conforme apontado por em suas Pedagogias, dissecar o seu objeto, o pesquisador-ensaísta enquanto representante da “crítica criativa” (expressão utilizada por Eduardo Prado Coelho) se propõe a questionar o objeto, dialogando com ele e observando-o sob múltiplos enfoques, numa dança do olhar motivada por inquietações subjetivas, sem a obrigação cartesiana de se chegar a um fim último.15 Tais inquietações (ligadas à noção de “desassossego”, também apresentada por Prado Coelho, em diálogo com Fernando Pessoa) são provenientes do caráter mutável (plástico) da obra de arte e do sentimento amoroso trocado entre o crítico e o objeto de estudo. Parece evidente, então, que a vida do narrador é fundamental para a feitura de uma pesquisa de viés ensaístico: o ensaísta fala de uma obra (livro, música, quadro, escultura, filme, desfile carnavalesco) a fim de falar das questões últimas da vida, causas maiores, razão pela qual estaria o ensaio no limiar entre a arte e a filosofia. A partir dessas elucubrações de Adorno, pode-se dizer que o ensaísta pensa de maneira fragmentária, ciente de que a realidade observada é inapreensível em sua totalidade e, no limite, inclassificável; logo,

12 DE DUVE, Thierry. Reflexões críticas: na cama com Madonna. In: Concinnitas, ano 6, n. 7, dezembro de 2004, p. 36. 13 Ibidem, p. 37. 14 AGAMBEN, G. Estâncias – a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Tradução de Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 221. 15 ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2008, p. 17. 16

há uma natural negação de qualquer objetivo totalizante: não se pretende fechar a discussão, mas apresentar caminhos possíveis, desbravando algumas trilhas. Um desfile de escola de samba, produto em cuja construção são empregadas centenas, milhares de mãos e pés (e mentes!), é um desafio às discussões sobre os limites da autoria (e não se tem a pretensão de responder à foucaultiana questão “o que é um autor?”), uma vez que está emerso em um caldo subjetivo formado por ingredientes conflitantes – e atentar para isso é o primeiro passo para a compreensão das dimensões analíticas dos desfiles de Rosa Magalhães. Entender os desfiles enquanto objetos pensantes e desdobráveis (a ideia de que as obras de arte se teorizam e contêm em si um núcleo reflexivo que deve ser ativado pela crítica, observável em Schiller, Benjamin e Didi-Huberman) é evitar as rotulações e o absolutismo da crítica punitiva, diariamente à nossa mesa, em escalas valorativas reduzíveis a “estrelas”. Como diz Guattari, é possível “produzir novos infinitos a partir de um mergulho na finitude sensível, infinitos não apenas carregados de virtualidade, mas também de potencialidades atualizáveis em situação, se demarcando ou contornando os Universais repertoriados pelas artes, pela filosofia, pela psicanálise tradicionais (...).”16 Rasgados os rótulos, emerge uma “política de uma ética da singularidade, em ruptura com os consensos, os ‘lenitivos’ infantis destilados pela subjetividade dominante.”17 Nessa esteira, o autor propõe um novo paradigma estético, que serve para, de antemão, refutar a crença daqueles que insistem em enxergar um desfile de carnaval como algo “menor”:

O novo paradigma estético tem implicações ético-políticas porque quem fala em criação, fala em responsabilidade da instância criadora em relação à coisa criada, em inflexão de estado de coisas, em bifurcação para além de esquemas pré-estabelecidos e aqui, mais uma vez, em consideração do destino da alteridade em suas modalidades extremas. Mas essa escolha ética não mais emana de uma enunciação transcendente, de um código de lei ou de um deus único e todo-poderoso. A própria gênese da enunciação encontra-se tomada pelo movimento de criação processual.18

Com os pressupostos teóricos dessa visão crítica na algibeira, é possível ganhar a rua. O ponto de partida das trilhas a serem percorridas neste estudo é a sinopse do enredo (chamada Histórico do Enredo, no Livro Abre-Alas entregue ao corpo de jurados

16 GUATTARI, Félix. Caosmose. Um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 132. 17 Ibidem, p. 132/133. 18 Ibidem, p. 123. 17

pela organização da LIESA - Liga Independente das Escolas de Samba19) desenvolvido por Rosa Magalhães para a Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002, o décimo- primeiro à frente da escola do bairro de Ramos, coroando uma década de estrondoso sucesso: cinco títulos de campeã (1994, 1995, 1999, 2000 e 2001) e três vice- campeonatos (1993, 1996 e 199820).21 O enredo em questão, intitulado Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way!, retrata variações da figura do índio e do conceito de antropofagia ao longo da história do Brasil, do “canibalismo selvagem” que chocou os primeiros viajantes europeus e abocanhou a curiosidade do Velho Mundo, nas páginas das narrativas de viagem (a chamada “literatura de informação”), ao Manifesto Antropófago ilustrado por Tarsila do Amaral, batendo às portas de José de Alencar, Carlos Gomes, Oswald e Mário de Andrade, culminando tudo na “geleia geral” tropicalista e na figura-síntese de Carmen Miranda, releitura globalizada e carnavalesca do ideal antropofágico22. O índio é o personagem central da narrativa e ganha novas roupagens a cada salto temporal do enredo, expressando as modificações pelas quais passou uma certa parcela do que se entende por “cultura brasileira”, ao longo de mais de 500 anos de “História oficial” (pós-Cabral). É, bem se vê, um enredo bastante amplo, que pode sustentar a visão panorâmica (e pluralista) de conceitos como identidade nacional, cultura e contracultura, indianismo, entre outros. Além disso, alguns dados extra-textuais (informações sobre os motivos que levaram ao tema e ao enredo e as particularidades da construção do carro Abre-Alas, por exemplo) engordam o caldo e alimentam reflexões sobre pontos que têm gerado acalorados debates na contemporaneidade, como a intervenção de patrocinadores no processo criativo do enredo e os limites (se é que existem) da experimentação estética (desconstrução de materiais, contrastes estilísticos, pastiche, etc.) em um desfile carnavalesco enquanto

19 Os livros Abre-Alas estão disponíveis para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. Neste estudo, serão consultadas as edições de 1992 a 2002. 20 Oficialmente, nas tabelas classificatórias a Imperatriz aparece na posição 03 (terceiro lugar), mas, uma vez que o campeonato foi dividido entre Mangueira e Beija-Flor (que nas referidas tabelas ocupam as posições 01 e 02), não há sentido em negar o vice-campeonato do GRESIL apenas “para cumprir tabela”. 21 É interessante notar que a escola somente não voltou ao sábado das campeãs em 1997, devido à quebra de uma alegoria, durante o desfile oficial, o que prejudicou a evolução. 22 Um conjunto temático muito parecido foi manipulado pelo carnavalesco Chico Spinosa, no desfile apresentado pela escola de samba União da Ilha do Governador, em 1995. O enredo, intitulado Todo dia é dia de índio, voava da devoração do Bispo Sardinha às favelas do Brasil contemporâneo, confrontando diferentes “caras” da antropofagia. Entre outras confluências, apresentou alegorias relacionadas a Carmen Miranda, à peça O Rei da Vela e à pintora Tarsila do Amaral, a exemplo do que faria Rosa, em 2002. Trata-se de uma excelente narrativa, que merece ser “devorada” e cotejada com este trabalho. 18

obra de arte complexa23, de matriz popular, e também destino turístico cujos espaços são disputados a tapas por empresários e governantes - um megaevento dinâmico numa cadeia de permanentes conflitos e negociações24, enfim, que precisa ser compreendido pelas arquibancadas, pelos sofás das casas, pelos ouvintes das rádios, pelo corpo de jurados e, logicamente, pelos desfilantes. Entretanto, o dado que mais diferencia o enredo de 2002 daqueles anteriormente apresentados pela autora está enlaçado à percepção de que, mais que uma síntese de momentos significativos da cena cultural (e da literatura, especificamente) brasileira, é possível enxergar a narrativa enquanto resumo temático do universo que a autora arquitetou na Imperatriz Leopoldinense nos dez anos anteriores (de 1992 a 2001), o que vem à tona quando determinados subtemas (o contraste entre brancos europeus e selvagens ameríndios e o fascínio que a natureza tropical exercia aos olhos dos brancos colonizadores são os melhores exemplos) e motivos imagéticos (como os jacarés, os índios, as onças, as borboletas e as bananas) do enredo são recortados e analisados em relação ao montante de informações verbais e visuais dos carnavais passados. É possível, ainda, traçar um esboço da visão política que a autora expressou em suas narrativas foliônicas: parafraseando o título do enredo e o refrão central do samba entoado pela escola em 199925, qual é a cara do Brasil que desfilou na mais vitoriosa

23 Na visão de Roberto DaMatta, “é um erro imaginar que um desfile de carnaval se resume em apenas um desfile, embora esse ‘grande desfile’ seja paradigmático”. Ainda segundo o autor, “como todos esses desfiles ou apresentações implicam um julgamento e um concurso, pode-se observar como suas relações são dinâmicas e possuem notáveis consequências como uma dramatização de certos aspectos da sociedade brasileira”. In: DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 124. 24 Sobre tão complexo sistema, Felipe Ferreira explica que “as escolas de samba contemporâneas têm procurado encontrar caminhos que as permitam articular seus velhos sentidos nas novas formas de desfiles que se impõem. Conceitos importantes para a definição destes grupos, os discursos da tradição, da raiz e do pertencimento ao espaço da cultura popular vêm sendo questionados pelas novas formas assumidas pelos desfiles, reflexos por sua vez das negociações de interesses entre as próprias escolas, o poder público, o poder empresarial, a intelectualidade e, não menos importante, os participantes ou componentes. Se alguns desses poderes parecem ter voz mais ativa atualmente, é importante lembrar que as escolas existem como resultado do equilíbrio negociado de todos os atores e que o processo de hegemonia não se dá pela imposição de um conceito sobre o outro, mas pela negociação entre as partes.” In: FERREIRA, F. Escolas de samba: uma organização possível. In: Escritos carnavalescos. Coleção Circuitos da Cultura Popular – Vol. 07. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2012, p. 179/180. 25 Em 1999, a Imperatriz Leopoldinense desfilou o enredo Brasil, mostra a sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. O refrão central do samba de enredo, composto por César Som Livre, Waltinho Honorato, João Estevam e Eduardo Medrado, dizia: “Brasil, mostra a sua cara / Sua beleza em forma rara / Esse seu jeito de viver”. 19

década da Imperatriz de Rosa Magalhães (sem dúvidas, um “grande decênio”26), para ser sintetizado em 2002? Em suma, figura o entendimento de que o Delírio tropical27 de 2002 oferece combustível para um vasto estudo acadêmico albergado pela Teoria Literária, uma vez que mistura linguagens (relatos de viajantes, fontes históricas, obras de literatura, artes plásticas, músicas, ópera, teatro, cinema, televisão, etc.)28 em um espetáculo artístico de notável densidade cuja narrativa não segue as facilidades do gênero. Tudo, porém, ganha vestes mais instigantes se parte da obra anterior da artista for levada em conta, o que justifica o recorte temporal e a extração de dois eixos interpretativos do texto-base (a sinopse do enredo de 2002): o índio enquanto símbolo nacional e o senso de brasilidade atrelado à celebração de um país mestiço. “Assado à moda indígena”29, este estudo transdisciplinar se propõe a investigar a narrativa antropofágica de Rosa Magalhães, enfocando as relações entre a literatura, as

26 Utiliza-se a expressão, ressignificando-a, em referência à sequência de dez anos em que a Imperatriz Leopoldinense conseguiu cinco vitórias e três vice-campeonatos (de 1992 a 2001). Originalmente, O grande decênio é o título do enredo apresentado pela co-irmã Beija-Flor de Nilópolis em 1975, de autoria do carnavalesco Manuel Antônio Barroso - uma louvação aos dez primeiros anos do Regime Militar instaurado após o golpe de 01 de abril de 1964. O samba de enredo, composto por Bira Quininho, elencava e exaltava explicitamente as políticas dos militares: PIS, PASEP, FUNRURAL, MOBRAL. Faz- se menção a isso porque Rosa Magalhães foi a carnavalesca da azul e branco no ano anterior, 1974, ilustrando o enredo Brasil ano 2000 (também de autoria de Manuel Antônio Barroso), que projetava o pujante “país do futuro” – igualmente inclinado, portanto, para com o ideário dos generais, embora menos explícito. Juntamente com o enredo de 1973, intitulado Educação para o desenvolvimento, O grande decênio e Brasil ano 2000 formam uma trinca de odes ao Planalto de farda e quepe. Segundo o cronista Alan Diniz, a sequência de narrativas pró-regime fez com que a escola da Baixada Fluminense ficasse mal vista, tachada de reacionária: “Nem mesmo a assinatura de Rosa Magalhães – um talento oriundo da fase de ouro do Salgueiro, respeitada profissional da Escola de Belas Artes – aplacou a ira dos intelectuais.” In: DINIZ, A. Do governismo ao surrealismo, a Beija-Flor reescreveu sua história. In: DINIZ, A.; FABATO, F.; MEDEIROS, A. Obra citada, p. 36. Em debate sobre a obra de Joãosinho Trinta realizado no Espaço Cultural FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), em 07 de novembro de 2011, com a presença dos debatedores Fernando Pamplona, Rosa Magalhães, Milton Cunha, Geraldo Carneiro, Maria Augusta Rodrigues e Aydano André Motta, e mediação de Fábio Fabato, Rosa, ao ser questionada sobre a sua passagem pela Beija-Flor, alegou que não foi a carnavalesca de fato, uma vez que tudo “era muito incipiente” e o idealizador dos enredos era “um historiador, mas não sei qual era o nome, não me lembro mais.” Rosa disse que julgava os enredos “estranhos”, mas fez os desenhos porque “foi uma primeira incursão”. 27 Tal é o título da reportagem dedicada ao desfile da Imperatriz Leopoldinense veiculada na edição da revista Manchete (especial de carnaval) de número 2.525, de fevereiro de 2002. A expressão será utilizada, no decorrer do trabalho, para se referir ao desfile sobre os goitacazes e a antropofagia cultural. 28 Para Silviano Santiago, a Semana de 22 “foi ela própria uma obra de arte total, no sentido wagneriano, uma Gesamtkunstwerk, abrangendo a literatura, a música e a pintura – obra coletiva (...).” Tal ideia de complexidade, que, inclusive, coloca em evidência a antiga questão da autoria (não é o conjunto de fantasias e alegorias uma obra de arte coletiva?), se aproxima da ideia de desfile de escola de samba exposta nesse trabalho. In: ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 339. 29 Expressão utilizada por André Thevet. In: THEVET, André. Singularidades da França Antártica. São Paulo: Nacional, 1944, p. 244. 20

demais formas de arte e o carnaval das escolas de samba. Para isso, depois de tecer reflexões sobre o papel da carnavalesca no contexto do carnaval carioca, será empreendida uma análise detalhada da sinopse do enredo de 2002, problematizando os diferentes momentos de que fala o texto (como os primeiros tempos registrados pelos cronistas e o indianismo romântico de José de Alencar). O núcleo teórico dessa parte do trabalho será o conceito de antropofagia cultural: o estudo mergulhará no caldeirão de referências da artista, devorando o Manifesto Antropófago de 1928, passando em revista o neoantropofagismo da Tropicália e problematizando a personificação “americanizada” de Carmen Miranda, espécie de “rainha das bananas”, como representada ao final do desfile de 2002. O estudo procurará mostrar que Rosa Magalhães, artista mediadora, aplicou as ideias basilares da antropofagia cultural oswaldiana de maneiras distintas, no carnaval enfocado, atualizando-as e adaptando-as ao diferente contexto. As proposições centrais do Manifesto serão postas em causa e o debate cercará (deixando porteiras abertas, é claro) as possibilidades de ressignificação dos conceitos, conforme propõem publicações recentes que têm se debruçado sobre a temática. Na sequência, o índio, primeiro subtema, ganhará o corpo da dissertação. É o índio um símbolo praticamente constante nos trabalhos carnavalescos que Rosa desenvolveu de 1992 a 2002: apareceu oito vezes. Em 1994, a figura central do enredo campeão foi o “índio de tocheiro de Catarina de Médicis”30, contra o qual o enredo de 2002, citando Oswald de Andrade, declara guerra. Já no debutar da carnavalesca na verde, branco e ouro, o enredo Não existe pecado abaixo do Equador teve a obra Visão do Paraíso, de Sergio Buarque de Holanda, como bússola, misturando navegantes ibéricos, castelos, florestas virgens e mitos indígenas, naquilo que Felipe Ferreira chama de “fusão entre a cultura do colonizador (europeu) e do colonizado (nativo americano).”31 A “fusão” mencionada, aponta o autor, também se faz presente no título do enredo de 94, Catarina de Médicis na corte dos Tupinambôs e Tabajères, quando os nomes de nações indígenas brasileiras são grafados com acentos da língua francesa. Ao final desse desfile, utilizando da figura do ensaísta Montaigne, desenhava-se a possível origem da relação entre o índio brasileiro e a Revolução Francesa, tema de obra

30 Expressão presente no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, originalmente publicado em 1928. Disponível em: ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. In: Revista de Antropofagia. Reedição da Revista Literária publicada em São Paulo – 1ª e 2ª “Dentições” – 1928 – 1929. São Paulo: Editora Abril, 1975. 31 FERREIRA, F. O Marquês e o Jegue – estudo da fantasia para escolas de samba. Rio de janeiro: Altos da Glória, 1999, p.130. 21

homônima de Afonso Arinos de Melo Franco que também expressa a amálgama colonizador & colonizado e serve de centelha reflexiva para que sejam pensados o lugar e o não-lugar do índio nos contextos nacional e internacional. No que tange ao segundo ponto destacado, o senso de brasilidade explorado nos enredos e desfiles de Rosa Magalhães, especialmente na emblemática apresentação de 2002, fundamental será a comparação das visões de Brasil presentes nas obras de autores basilares da sociologia nacional, Gilberto Freyre e . Realizado um mapeamento dos pensamentos desses autores, as lentes utilizadas pela carnavalesca serão postas em causa, a fim de se tentar extrair recorrências narrativas. Muito se diz, por exemplo, que a artista utiliza “lentes europeias” para observar os temas trabalhados, evidência a ser investigada. Levando-se em conta que as escolas de samba em si, independentemente dos carnavalescos, apresentam identidades ou discursos identitários construídos ao longo do tempo (a ideia, por exemplo, de que o Salgueiro é uma escola com predisposição para enredos de temática negra, erigida após a “revolução” iniciada no final dos anos 5032), também será necessário pensar o papel de Rosa Magalhães enquanto artista responsável pela narrativa de uma agremiação carnavalesca em específico, a Imperatriz Leopoldinense, escola cuja “tradição” nos remete a uma determinada noção de Brasil; nesse terreiro, Rosa representou continuidade ou ruptura? É possível encontrar indícios de que a identidade da escola influenciou o trabalho da

32 Muito se fala da “fase de ouro” do Salgueiro, liderada pelo professor da Escola de Belas Artes Fernando Pamplona e tendo em Arlindo Rodrigues (também é importante mencionar Maria Augusta Rodrigues, Joãosinho Trinta e a dupla Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, que se juntou à turma em 1971) as mãos habilidosas que materializaram uma sequência de enredos e desfiles de estética surpreendente, exaltando histórias e personagens de um “Brasil negro”, como o Quilombo dos Palmares, Aleijadinho, Xica da Silva e Chico-Rei. Na visão da historiografia convencional, intelectuais e artistas plásticos “de fora” assumiram as cadeiras de responsáveis pelo desenvolvimento dos enredos (verbal e visualmente), gestando mudanças nas concepções estéticas e discursivas, de um modo geral, de diretores e demais componentes das escolas, que, num primeiro momento, estranharam a substituição do veludo pela palha, das perucas brancas pelas estamparias africanas. Uma complexa via de mão dupla: por um lado, o espetáculo das escolas de samba entrou em um processo de crescente interferência externa, profissionalização e crescimento socioeconômico; por outro, a abertura possibilitada pela “revolução” continha em si a semente da autocrítica: Pamplona, tempos depois, vociferaria contra a mercantilização e a suposta descaracterização das escolas de samba, afastando-se da Marquês de Sapucaí. Entre as fraldas do berçário salgueirense construiu-se um discurso identitário hoje cristalizado na bibliografia carnavalesca, no qual variações dos termos “identidade”, “autenticidade”, “pureza” e “tradição” brilham mais que os lamês e paetês das fantasias . Maria Laura Cavalcanti assim define a conjuntura (que será melhor investigada no decorrer da dissertação): “Essa ideia e seus corolários, mais ou menos explícitos – o da perda de autenticidade, de abandono do caráter comunitário e artesanal, e da identidade cultural, em suma, de corrupção de uma pureza original da manifestação popular -, são extremamente recorrentes na bibliografia sobre o carnaval.” In: CAVALCANTI, M. L. V. C. O rito e o tempo. Ensaios sobre o carnaval. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 29. 22

autora? Como investigar tal limiar cultural e coletar as pistas? Eis alguns entre vários desafios. Para a realização da pesquisa, imprescindível aparece a leitura das obras literárias e históricas mencionadas nos escritos da autora, mas, num trabalho fronteiriço que desfila de mãos dadas com a semiótica, não havendo limites bem demarcados entre os saberes palmilhados, ficar restrito às narrativas verbais não é o suficiente. Imagens dos desfiles estudados (fotografias e frames extraídos de vídeos) serão utilizadas para complementar a análise, sendo empregado, portanto, o método comparativo. O cotejo dos cortejos assinados pela artista é o tempero da sopa. As letras dos sambas de enredo, entrevistas impressas e matérias jornalísticas, comentários realizados durante as transmissões televisivas e algumas informações colhidas em entrevistas realizadas com Rosa Magalhães e demais agentes que participaram do processo de criação e execução dos desfiles analisados também enriquecerão o sabor do prato. Sobre o diálogo com a antropofagia cultural enquanto estratégia para interpretar determinadas facetas do Brasil, escreveu Maria Cândida Ferreira de Almeida:

Ler a cultura brasileira à luz da antropofagia é expor os momentos de emergência de conflitos advindos do contato entre as culturas formadoras, do qual se serviram os textos literários, as artes plásticas e o cinema. Mais do que oposições dicotômicas do tipo cultura/natureza, civilizado/selvagem, tecnologia/sobrenatureza, a dialética da identidade brasileira requer a multiplicidade, para o que contribuíram diferentes disciplinas, especialmente a antropologia brasileira contemporânea.33

A visão de Ferreira de Almeida justifica os ecos antropológicos deste trabalho e nos remete ao trocadilho de Adone Agnolin: o saber antropológico tem sabor antropofágico34. Se, como escreveu Oswald de Andrade, “nada existe fora de devoração”, posto que “o ser é a devoração pura e eterna”, é hora de afiar os dentes e estender o sabor antropofágico aos demais saberes que se preparam, feito alas na concentração do sambódromo, para o desfile em forma de ensaio que ora se inicia.

33ALMEIDA, Maria Cândida Ferreira. Tornar-se outro. O topos canibal na literatura brasileira. São Paulo: Annablume, 2002, p. 22. 34 Referência a AGNOLIN, Adone. O Apetite da Antropologia. O sabor antropofágico do saber antropológico: alteridade e identidade no caso tupinambá. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005. 23

“Gente: pode ir pondo o cauim a ferver.”35 Começou A Grande Comilança!36

Figura 01: Gravura de Theodore De Bry para a coleção Grand Voyages, de 1590, ilustrando o choque do mercenário Hans Staden (acima de todos, ao centro) ao presenciar um ritual antropofágico. Digitalização de uma das cartelas do jogo Cobra-Rio, parte integrante do Material Didático Séculos Indígenas no Brasil, lançado em junho de 2012, durante a Cúpula dos Povos e a Rio+20. Na parte de trás da cartela, alguns importantes questionamentos são lançados ao leitor: “Como você interpreta a cena que aparece nessa imagem? Será que ela corresponde à realidade dos povos indígenas brasileiros?”; finalmente, “Você considera que as imagens criadas pela ilustração correspondem à imagem que os indígenas têm de si mesmos?”

35 Final do texto de apresentação da primeira edição da Revista de Antropofagia, à propósito intitulado Abre-Alas, redigido por Antonio de Alcântara Machado, o diretor da publicação. O autor avisava: “E arreganho a dentuça. Gente: pode ir pondo o cauim a ferver.” In: MACHADO, Antonio de Alcântara. Abre-Alas. In: Revista de Antropofagia. Reedição da Revista Literária publicada em São Paulo – 1ª e 2ª “Dentições” – 1928 – 1929. São Paulo: Editora Abril, 1975, p. 01. 36 A Grande Comilança foi o nome dado ao carro Abre-Alas da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002. Segundo a justificativa apresentada no Livro Abre-Alas, a alegoria representava “carcaças e ossos, os detritos deglutidos. A grande antropofagia, monstros carnívoros e as suas presas.” 24

II – Rosa Magalhães e a carnavalização do Brasil

Ah ! Esse enredo delirante Um momento emocionante Lindamente popular37

(Zé Katimba, Chopinho, Amaurizão e Tuninho Professor)

II. 1 – O profissional carnavalesco: hibridismo e ambiguidades

A existência de agentes responsáveis pela concepção artística de manifestações carnavalescas e/ou folias em geral pode ser tão antiga quanto a própria folia. Rosa Magalhães costuma apresentar, em suas palestras, desenhos de préstitos e triunfos romanos, medievais e renascentistas, destacando a antiguidade da figura do “carnavalesco” em sentido amplo.38 Este estudo não pretende buscar as origens remotas dos avós e bisavós dos artistas de carnaval contemporâneos, mas entender o contexto em que a figura do carnavalesco (nos moldes do que se convencionou assim chamar, nos barracões do Rio de Janeiro) se tornou central no universo das escolas de samba cariocas é importante para se pensar o papel de Rosa Magalhães enquanto artista mediadora, sem falar no fato de que ela é a maior campeã da “Era Sambódromo” (iniciada em 1984, com a inauguração da Passarela do Samba Professor Darcy Ribeiro, projetada por ) e, por isso mesmo, grande representante dessa profissão não regulamentada.39 Segundo depoimento de Renato Lage, colhido durante a mesa Com que roupa? do ciclo de discussões Carnaval – que festa é essa?, na qual dividiu a boca de cena do Teatro I do CCBB do Rio de Janeiro com Rosa Magalhães, a profissionalização dos

37 Trecho do samba de enredo apresentado pela Imperatriz Leopoldinense no carnaval de 1997, sobre a vida e a obra da compositora Chiquinha Gonzaga, intitulado Eu sou da lira, não posso negar. 38 Na noite de 17 de maio de 2011, no Teatro I do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Rio de Janeiro, na primeira mesa do ciclo de discussões Carnaval – que festa é essa?, mediada por Felipe Ferreira e intitulada Com que roupa?, Rosa Magalhães apresentou uma série de desenhos de fantasias e adereços riscados na Idade Média e no Renascimento e defendeu, brincalhona, que Michelangelo foi o maior de todos os carnavalescos, posto que desenhava “fantasias” esplendorosas, como a roupa da Guarda Suíça Pontifícia, responsável pela segurança papal, e carros alegóricos utilizados em cortejos da Itália renascentista. 39 A professora Helenise Monteiro Guimarães, em sua dissertação de Mestrado em História da Arte defendida na Escola de Belas Artes da UFRJ, em 1992, afirma que os atuais carnavalescos do Rio de Janeiro são a atualização dos “técnicos” ou “pré-carnavalescos”, profissionais responsáveis pela idealização e realização de antigos festejos, como o “cortejo em homenagem ao casamento de Dom João com a infanta de Espanha, Carlota Joaquina de Bourbon, cortejo este que não era carnavalesco, mas que continha as mesmas características: carros alegóricos, efeitos de fogos de artifício e o caráter festivo e comemorativo.” In: GUIMARÃES, Helenise Monteiro. Rio de Janeiro, 1992. Dissertação de Mestrado em Artes Visuais (História da Arte) – Universidade Federal do Rio de Janeiro - EBA. 25

carnavalescos se deu após a passagem de Fernando Pamplona pelo Acadêmicos do Salgueiro e a criação do “quinteto infernal”40, à época da “revolução em vermelho e branco”, na terminologia de Felipe Ferreira41. Na visão do carnavalesco, os principais companheiros de trabalho de Pamplona, que seguiram carreiras frutíferas após o batizado no Salgueiro, como Arlindo Rodrigues, Joãosinho Trinta, Maria Augusta, Rosa Magalhães e ele próprio, Renato Lage, são representantes das primeiras gerações de profissionais do carnaval, ou seja, artistas “de fora” que emprestariam seu talento às escolas de samba em troca de remuneração financeira, estabelecendo-se, logo, uma relação trabalhista, ainda que sem contratos formais (é sabido que, até hoje, a assinatura de um contrato de trabalho não é uma prática consolidada no universo das escolas de samba, ainda mais nos grupos de acesso que não são iluminados pelos holofotes da Marquês de Sapucaí; usando de uma expressão comum no direito das obrigações, ainda persistem os acordos firmados “no fio do bigode”). A visão de Renato Lage deixa claro que, para ele, o pagamento de um salário é o principal fator responsável pela profissionalização do carnavalesco.42 Por meio do pagamento, a relação entre o artista e a escola deixava de ser afetiva e/ou amorosa para se tornar uma prestação de serviços como outra qualquer, permitindo o cada vez maior ingresso de profissionais off-samba e dando início à chamada “dança das cadeiras”: uma vez que os vínculos estabelecidos entre artistas e escolas não são apenas sentimentais, a

40 Maneira como o pesquisador Haroldo Costa se refere à primeira equipe de trabalho coordenada por Fernando Pamplona, da qual faziam parte o casal Nery, “um excelente figurinista amigo seu, que era Arlindo Rodrigues, e um criativo aderecista e desenhista, que era Nilton Sá, da Escola Nacional de Belas Artes.” In: COSTA, Haroldo. Salgueiro – 50 anos de glória. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003, p. 45. 41 Nas palavras do autor, “o fato é que a revolução patrocinada por essa escola mudou o rumo da maior festa popular brasileira, inventando novas tradições e apontando outros caminhos para o Carnaval. Uma revolução de arte, competência e ousadia em vermelho e branco.” In: FERREIRA, F. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 358. 42 A antropóloga Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti realizou a pesquisa de campo da sua tese de doutoramento no barracão da Mocidade Independente de Padre Miguel, durante os preparativos para o carnaval de 1992. À época, os carnavalescos da agremiação eram o casal Renato Lage e Lilian Rabello, personagens centrais do estudo da pesquisadora. O seguinte trecho da narrativa elaborada após o acompanhamento etnográfico bem ilustra a problemática da questão salarial no universo das escolas de samba: “Fechar o contrato era um aspecto especialmente sofrido em sua (Renato Lage) relação com a escola. (...) (Renato) concordava com a necessidade de o carnavalesco se profissionalizar, mas assinalava também a dificuldade de unir as pessoas: ‘o carnaval é um show, então é uma competição muito grande, um quer engolir o outro. Por exemplo a ideia de fazer um piso salarial. O carnavalesco tem a liberdade de negociar o contrato. Sempre brigamos por um bom contrato. Só não consegue melhor porque os outros não fazem. Aí eles falam em mercado, ora, o mercado não existe.’ A situação era, em suma, a seguinte: o contrato se fechava abaixo de suas expectativas, entretanto no decorrer do ano ganhavam no final mais do que o negociado. Na expressão de Lilian, a relação adquiria desse modo uma feição ‘super-paternalista’ que a incomodava. (...) Cabe lembrar a natureza muito particular desse contrato: ‘É mais na palavra – comenta Renato – bem poucos fazem’”. In: CAVALCANTI, M. L. V. C. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / MinC / Funarte, 1994, p. 64/65. 26

sucessiva troca de profissionais após o término de um ciclo carnavalesco (fracassado ou vitorioso: não são incomuns as trocas de carnavalescos após vitórias43) é algo corriqueiro e compreensível – vale a lógica do mercado, a exemplo do que ocorre no futebol, com a valorização e desvalorização de “passes”44. Atualmente, a mesma lógica mercadológica vale para outros segmentos das escolas de samba: casais de mestres-sala e porta-bandeiras, coreógrafos de comissões de frente, diretores de carnaval, harmonia e evolução, intérpretes de sambas de enredo, mestres de bateria e chefes de adereçaria também tendem a priorizar o financeiro em detrimento das relações emocionais estabelecidas para com as cores e o símbolo de uma dada bandeira. No contrafluxo desse rio, Fernando Pamplona, o “pai de todos”, costuma aparecer na pequena historiografia das escolas de samba como o carnavalesco oriundo da Academia que se dedicou à arte popular carnavalesca (ao Acadêmicos do Salgueiro, em específico) por amor (ele conta ter se apaixonado pela escola durante o carnaval de 1959, quando fazia parte do corpo de jurados e atribuiu a maior das notas à escola em vermelho e branco da Tijuca45), sem receber salário:

Estávamos em 1959, o Nelson (Nelson de Andrade, ex- presidente do Salgueiro) me procurou no Teatro Municipal, me deu de presente um retrato naïf do Debret, tirado de uma das alegorias, trocamos ideias concordantes sobre o que achávamos das escolas de samba e ele me convidou para fazer o Salgueiro em 1960. Topei com a condição de o enredo ser sobre “NZAMBI DOS PALMARES” e sua revolução de verdade. Trabalharia sem qualquer remuneração, como amador, o que, aliás, sempre fui em toda a minha colaboração com as escolas e com o samba.46

Não se pode dizer, porém, que Pamplona foi o primeiro artista plástico “erudito” (os termos são colocados entre aspas porque podem e devem ser relativizados) a assinar

43 Foi o que ocorreu com Rosa Magalhães após a vitória da , em 2013: a artista deixou a agremiação do bairro de e foi contratada pela Mangueira de Cartola. 44 Tal é a visão aguda de Fernando Pamplona, para quem “os carnavalescos, todos profissionais, fazem os mesmos rodízios dos técnicos de futebol, dependendo do resultado do ano anterior. Compra-se o passe de Diretor de Harmonia, de Diretor de Bateria, de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, de Compositor, de Puxador de Samba (ou intérprete, como dizia o Jamelão, um dos raros que se mantinham fiéis às suas cores) e de quase todo o resto também. Todo mundo quer “levar o seu”. E entra a guerra das televisões, das cervejas, do merchandising. Spielberg ou Zefirelli mesmo sem conhecer nada de nossa cultura popular poderiam perfeitamente ser carnavalescos.” In: PAMPLONA, Fernando. O Encarnado e o Branco. Rio de Janeiro: NovaTerra, 2013, p. 167/168. 45 “Depois do meu julgamento das alegorias, senti que estava deixando de lado os meus sonhos do Império Serrano e minha empolgação com a Mocidade Independente. Virei Salgueiro definitivamente, para todo o sempre, jamais julgaria de novo!” In: PAMPLONA, F. Obra citada, p. 55. 46 Ibidem, p. 57. 27

trabalhos em escolas de samba. Eneida de Moraes, no seu monumental História do Carnaval Carioca, diz que “a partir de 1988 começam a surgir nomes de artistas contratados pelos clubes para preparar, não apenas seus carros alegóricos, mas também para decorar os salões ou pintar os estandartes.”47 Helenise Monteiro Guimarães aponta para isso, informando que os cenógrafos e artistas plásticos participavam ativamente do carnaval carioca desde o final do século XVIII.48 De acordo com Sérgio Cabral, em 1959 a “já contava com a assessoria de um especialista em espetáculos, o português Chianca de Garcia, na confecção de suas alegorias e fantasias (...)”49 No mesmo ano, o Salgueiro contou com o toque artístico do casal Marie Louise e Dirceu Nery, que desenvolveram o enredo Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, sobre a obra de Jean-Baptiste Debret. Dirceu “cuidou das alegorias e dos adereços, abandonando os grandes carros e criando adereços que os componentes trariam nas mãos”50. A suíça Marie Louise, por sua vez, “desenhou todas as fantasias respeitando fielmente os figurinos da época, mudando apenas as cores originais, pois, em 1959, nenhuma escola de samba desfilava com fantasias que não ostentassem as suas cores.”51 Felipe Ferreira aprofunda a questão e defende que a escolha da Avenida Rio Branco como palco da folia carioca, em 1957, contribuiu para a ascensão das escolas, uma vez que a antiga “Avenida Central” cortava o coração da cidade, a região da Cinelândia, onde estavam e continuam alicerçados símbolos da “alta cultura”: o Theatro Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes e a Biblioteca Nacional, por exemplo. A visibilidade conquistada pelas agremiações seria fundamental para o despertar do interesse de artistas plásticos:

47 ENEIDA. História do Carnaval Carioca. Rio de Janeiro – São Paulo – Bahia: Editora Civilização Brasileira, 1958, p. 274. Segundo a pesquisadora, o cenógrafo Carrancini é um grande nome a ser lembrado, uma vez que “preparou a fachada do Teatro Lucinda para os grandes bailes, além de se ter encarregado, nesse mesmo ano, de pintar os carros dos Democráticos. (...) Outros nomes eram: o cenógrafo Oreste Coliva, o escultor Benevenuto Berna e o pintor Marques Brandes. Gabriel Marroig era apontado, pela imprensa, como ‘distinto aluno da nossa Academia de Belas Artes’. Em 1889 Rodolfo Amoedo, célebre pintor, executou o estandarte dos Tenentes, tão belo que foi exposto na Casa Costejon. ‘É impossível – diz um jornal – fazer a descrição do valioso trabalho do mestre, cujas composições tanto honram a nascente arte brasileira’”. Na sequência do texto, Eneida apresenta aos leitores outros nomes, como Décio Vilares, Teixeira da Rocha, Anísio Fernandes, Fiuza Guimarães, Kalixto, Carlos Meireles, Jaime Silva, Moreira Júnior, Raul Deveza, J. Carlos e Di Cavalcanti. 48 Ver GUIMARÃES, Helenise Monteiro. Carnavalesco, o profissional que “faz escola” no carnaval carioca. Rio de Janeiro, 1992. Dissertação de Mestrado em Artes Visuais (História da Arte) – Universidade Federal do Rio de Janeiro - EBA. 49 CABRAL, S. Obra citada, p. 196. 50 Ibidem, p. 197. 51 Ibidem, p. 197. 28

A parceria com folcloristas, cenógrafos, figurinistas e pintores vindos das escolas e ateliês de arte, fato corriqueiro com relação aos antigos ranchos mas novidade em se tratando das escolas de samba, iria criar vínculos poderosos entre os grupos carnavalescos e a classe média brasileira, que deixaria de ser simples espectadora e assumiria papel ativo dentro dessas organizações “populares”. A participação do folclorista Dirceu Néri e da artista plástica e figurinista Marie Louise na criação plástica do Carnaval apresentado pela escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, em 1959, do cenógrafo e professor da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro Fernando Pamplona, na mesma escola, entre 1960 e 1962, do cenógrafo e figurinista Arlindo Rodrigues, também no Salgueiro, a partir de 1961, e da artista plástica Beatrice Tanaka na Portela, em 1966, são alguns momentos que marcam essa “incorporação” nas escolas de samba do Rio de Janeiro de elementos “externos” a suas “tradições”.52

Outros estudiosos do carnaval carioca direcionam as lentes para tal conjuntura histórica e desenham conclusões parecidas. Helenise Monteiro Guimarães entende que a tão falada “revolução salgueirense”, produto da busca por uma melhor apresentação visual, possibilitou a construção de pontes entre diferentes setores artísticos; o conhecimento absorvido de outras áreas, como as artes cênicas (as visões cenográfica, coreográfica e cromática dos espetáculos teatrais), incrementou a linguagem visual dos cortejos, mas também diminuiu o seu caráter intuitivo e espontâneo53. Pode-se dizer que novas identidades e tradições eram esculturadas, algo também defendido por José Sávio Leopoldi e Hiram Araújo. Leopoldi sugere que já nos anos 60 a sofisticação dos padrões estéticos visava ao gosto da comissão julgadora e conferia prestígio aos profissionais contratados, o que não deixava de “causar conflitos de várias ordens.”54 Hiram Araújo, por sua vez, fala que o carnaval das escolas de samba passaria a seguir “os caminhos das superproduções, do chamado show business.”55 A visão de Rachel Valença também contribui para o fortalecimento dessa (por vezes pouco problematizadora) genealogia das escolas de samba cariocas. Segundo a autora, as décadas de 40 e 50 foram importantes para que as agremiações adquirissem uma identidade própria, “adaptando elementos dos blocos, dos ranchos e das grandes

52 FERREIRA, F. Obra citada, p. 355. 53 Sobre a influência das artes cênicas no carnaval do Rio de Janeiro, é válido destacar que Eneida de Moraes também investigou tal faceta em História do Carnaval Carioca, retornando ao século XIX e aos bailes que ocorriam em salas de espetáculos. Para ela, carnaval e teatro sempre andaram muito unidos. É interessante o fato de que Eneida elenca, entre uma série de teatrólogos que “escreveram revistas ou comédias carnavalescas”, o nome de Magalhães Júnior, pai de Rosa Magalhães. In: ENEIDA. Obra citada, p. 281/282. 54 LEOPOLDI, José Sávio. Escola de Samba, ritual e sociedade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010, p. 101. 55 ARAÚJO, Hiram. Carnaval: seis milênios de história. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003, p. 232. 29

sociedades, e fazendo-se respeitar como entidades ímpares no carnaval e na cultura popular (...)”56 Porém, destaca, a maior parte das modificações ocorreria na década de 60, quando se deu a “progressiva aceitação das escolas de samba por parte da classe média.”57 Sobre o papel dos artistas plásticos nesse processo, explica:

O ingresso em uma escola de samba de artistas plásticos de formação universitária, alheios à comunidade a que pertenciam os sambistas, acabou por modificar os padrões estéticos vigentes no samba. Ao modelo comunitário e artesanal foram lentamente incorporados elementos estranhos. Introduziram-se materiais de efeito, como a ráfia, que antes era desprezada pelos sambistas exatamente por sua simplicidade. Os trabalhos bordados, belíssimos se examinados de perto mas de pouco impacto num desfile que era, mais e mais assistido à distância, foram cedendo lugar a materiais industrializados. E, sendo ele próprio, carnavalesco, um profissional, instituiu na escola o sistema de trabalho remunerado.58

Seguindo esse raciocínio, tinha início um efeito cascata: as mudanças visuais experimentadas pelo Salgueiro levaram as outras agremiações a uma paulatina revisão dos conceitos estéticos, “recorrendo cada vez mais a profissionais de Artes Plásticas como forma de ‘corrigir’ sua estética suburbana.”59 Diretores, espectadores e demais interessados mudavam as suas concepções e forjavam novos paradigmas – “tradições”, não é demais repetir, eram inventadas e cristalizadas nos primeiros estudos do campo. Nesse período tão efervescente, o carnavalesco foi ocupando o espaço nuclear do processo de elaboração de um desfile de escola de samba (algo que, contemporaneamente, quando percebemos a “primazia do visual”60 ofuscar o samba no pé dos passistas, ganha contornos tão vultuosos quanto complexos, desencadeando uma série de discussões sobre os limites das influências tecnológicas, os direitos autorais ligados à comercialização das imagens via transmissão televisiva e às reedições de

56 VALENÇA, Rachel T. Carnaval – Para tudo se acabar na quarta-feira. Rio de Janeiro: Relume – Dumará, 1996, p. 60. 57 Ibidem, p. 60. 58 Ibidem, p. 61. 59 Ibidem, p. 62. 60 A expressão é utilizada por Maria Laura Cavalcanti, para quem “a noção de ‘visual’ liga-se intimamente à de espetáculo, que distingue entre ator e espectador por oposição à ideia de festa, que une os participantes numa experiência da mesma ordem, e mesmo à de ‘samba’ ou ‘samba no pé’ que valorizam o que há de participativo nesse canto e nessa dança. Certamente, a visualidade do desfile enfatiza seu caráter espetacular. Mas também é certo que a festa carnavalesca (...) traz a visualidade no seu bojo. Pois fantasia e alegoria definem-se por uma dualidade: são para serem de um lado vividas, usadas, sentidas, mostradas e de outro olhadas, apreciadas.” In: CAVALCANTI, M. L. V. C. C. Obra citada, p. 52. 30

enredos, a existência ou não de um piso salarial, etc.). Maria Laura Cavalcanti, dialogando com o estudo de Helenise Monteiro Guimarães, chega a afirmar que

em sua forma atual, o desfile das grandes escolas traz no seu bojo um personagem central – o carnavalesco. Ele (...) vem, geralmente, ‘de fora’ da escola e mantém com ela uma relação ‘profissional’, circulando num meio social que transcende esta ou aquela escola em particular.61

Desdobra-se, a partir dessa constatação, a “temática da circularidade entre os diversos níveis de cultura indicada por Mikhail Bakhtin (1987), do permanente diálogo, visto não necessariamente como harmonioso entendimento, entre as chamadas cultura popular e de elite.”62 A autora observa que os barracões das escolas de samba, lugares onde o “maior espetáculo da Terra” é preparado, são ambientes, no mais das vezes conflituosos63, de circulação cultural (a ideia de que a cultura não é algo dado, estanque, parado, morto, mas construído socialmente, mutante e mutável, em negociação, como apregoa a teoria cultural hodierna64). Nesse patamar, o carnavalesco pode ser entendido

61Ibidem, p. 28. 62 Ibidem, p. 30. 63 O conflito, evidentemente, não é algo recente. Nos idos dos anos 1960, no calor da “revolução salgueirense”, delineava-se um quadro de sucessivos impasses. Se, por um lado, os componentes da escola resistiam às mudanças estéticas, por outro lado não havia consenso entre os próprios realizadores das tais mudanças. Sérgio Cabral narra o seguinte episódio: “Às vésperas do carnaval de 1963, a equipe responsável pela elaboração do enredo da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro foi surpreendida por uma entrevista do antigo companheiro Nílton de Sá repudiando a sua participação na escola, no carnaval de 1960. Na entrevista, concedida à jornalista Ana Arruda (mais tarde, Ana Arruda Calado), do Correio da Manhã, confessou-se arrependido do seu trabalho. ‘Embora tenha sido uma das coisas mais bonitas que já fiz e tenha visto o meu trabalho admirado por milhares de pessoas, o que envaidece um artista, a tese que defendo é que a intromissão do intelectual nos fatos da tradição popular concorre para a sua degeneração’, disse Nílton de Sá, acrescentando que o que se fazia no Salgueiro ‘ameaça o caráter forte que o negro imprimiu à escola de samba’. Depois de elogiar o Império Serrano pelo desfile de 1962, quando se apresentou ‘cem por cento povo’, Nílton acusou: ‘O artista plástico quer se utilizar da escola de samba porque ela está em evidência. Os ranchos, de menor interesse do público e das autoridades, ficaram intocados pelos intelectuais, assim como as escolas menores. Já chega a péssima influência do teatro de revista, notadamente nos últimos anos, em seus figurinos e coreografias. A Portela é que mais se ressente com essa imitação, visível pelo mau gosto das plumas e das baianas de umbigo de fora.’ In: CABRAL, S. Obra citada, p. 207/208. Pamplona, décadas mais tarde, em entrevista concedida ao Portal Obatuque.com, declararia: “Meu amigo Sérgio Cabral disse que os intelectuais estavam se metendo no samba. Eu escrevi uma carta pra ele para dizer que nós estávamos voltando com o tradicional. As baianas já estavam com barriga de fora. Nós vestimos as baianas. Nós voltamos com a tradição e eles disseram que era uma revolução. Voltamos com a raiz básica de como se formaram as escolas de samba.” In: GOMES, Antonio Henrique de Castilho. A (re)configuração do discurso do samba. Rio de Janeiro, 2012, 178 f. Tese de Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio, f. 164. O caso bem ilustra o conflito entre concepções de “certo” e “errado”, “bom” e “mau” em matéria de interferências culturais. No decorrer do trabalho, a temática será retomada, uma vez que o enredo elaborado por Rosa Magalhães para o carnaval de 2002 foi bastante criticado e virou motivo de uma disputa judicial. 64 Vide as teorizações de autores como Edward Said, Carlo Ginzburg, Néstor García Canclini, Homi K. Bhabha, Stuart Hall e Félix Guattari. 31

enquanto “mediador cultural”, ponte entre diferentes universos de saberes. A antropóloga assim apresenta a problemática:

Proponho aqui a compreensão do carnavalesco como um mediador cultural e das escolas de samba como um lugar de ampla interação entre camadas e sequestros sociais diferentes na complexa sociedade urbana contemporânea. Michel Vovelle (1987, p. 214) utiliza a expressão “mediador cultural” para qualificar o personagem que, na dialética entre cultura de elite e cultura popular, transita entre mundos diversos, ocupando inevitavelmente uma posição ambígua (...)65

Não parece equivocado afirmar, então, que o carnavalesco é um artista limítrofe, em trânsito, representante da multivocidade cultural de que se fala hoje. O antropólogo Nilton Santos comunga desse entendimento e aprofunda o estudo da mediação cultural realizada pelos carnavalescos da cidade do Rio de Janeiro. Valendo-se das teorizações de Leopoldo Waizbort, defende que a figura do carnavalesco é um exemplo das “’novas profissões’ de caráter fluido”66 contemporâneas e complementa a interpretação com a ideia de que “a presença e a influência marcantes do carnavalesco (...) atuando como mediador sociocultural, têm a ver com a predominância e consolidação do código letrado, formal também no contexto das escolas de samba.”67 Em outras palavras: as escolas de samba, inseridas que estavam no contexto das mudanças pelas quais passou a sociedade brasileira (nos campos político e trabalhista, principalmente) ao longo do conturbado século XX, careciam de uma racionalidade operacional e/ou instrumental (sem falar no apoio político e na necessidade de criar tradições e identidades) para se fortalecerem enquanto instituições e não seguirem o mesmo caminho de ranchos e grandes sociedades, qual seja, o definhamento.68 O pesquisador fala que tal entendimento levaria a uma “maior formalização dos conteúdos estéticos, econômicos, artísticos, organizacionais, etc., da forma escola de samba.”69 Na visão dos saudosistas, perdia-se em definitivo a espontaneidade e a ingenuidade (artística e narrativa) dos primeiros tempos das escolas de samba, condenando a folia à morte - “resmungos” que

65CAVALCANTI, M. L. V. C. Obra citada, p. 30. 66 SANTOS, Nilton. A arte do efêmero – Carnavalescos e mediação cultural no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Apicuri, 2009, p. 67. 67 Ibidem, p. 68. 68 Felipe Ferreira fala em “estratégias de sobrevivência”, dentre as quais a negociação com o poder público e a construção de tradições já nos idos das décadas de 30 e 40, quando as escolas de samba malmente engatinhavam. Ver FERREIRA, F. Estratégias de sobrevivência: o surgimento das escolas de samba no Brasil de Getúlio Vargas. In: FERREIRA, F. Escritos Carnavalescos, p. 151/152. 69 SANTOS, N. Obra citada, p. 69. 32

são lucidamente ironizados por Felipe Ferreira ao afirmar que “desde que nasceu, o carnaval está morrendo.”70 Sobre isso, discorre Maria Isaura Pereira de Queiroz:

Sem dúvidas o número crescente dos participantes das escolas de samba, assim como sua inserção numa sociedade urbana muito complexa, tal como a do Rio de Janeiro, determinou a adoção de um aparelho administrativo burocrático. Os velhos foliões manifestam sempre a nostalgia dos antigos tempos, quando a escola era composta de famílias que habitavam o mesmo bairro e sua organização dependia de um líder de indiscutível prestígio, surgido espontaneamente em seu interior; reconhecem, porém, que um impulso exterior, decorrentes das transformações da região metropolitana e da expansão dos subúrbios, convergiu com um impulso interior à escola, proveniente de seu próprio crescimento, tornando inevitável a transformação. Foi preciso então, explicam eles, que ela se organizasse segundo o modelo de escritórios e fábricas...71

Evidentemente, os principais funcionários desses escritórios e fábricas seriam eles, os carnavalescos72. Em seu livro Fazendo Carnaval, uma referência para aqueles que pretendem se aventurar pelos corredores dos barracões (não há outros grandes livros sobre a feitura do carnaval escritos por carnavalescos) Rosa Magalhães faz alguns apontamentos sobre o caráter híbrido do profissional carnavalesco:

A pessoa responsável pela parte visual do desfile de Escola de Samba é chamada de carnavalesco. O termo é bastante engraçado, porque não possui a conotação de folião. O significado verdadeiro da palavra seria cenógrafo, figurinista e uma espécie de diretor de cena. Às vezes, o carnavalesco faz também o enredo. A própria diretoria da escola pode escolher o tema, que é dado a esse artista para que o desenvolva em forma de desfile. Não existe um tipo de formação

70 FERREIRA, F. O tirolês no espelho. In: Escritos Carnavalescos, p. 228. No texto, o autor fala do carnaval como um todo, mas é possível recortar a reflexão e enquadrá-la na temática específica das escolas de samba. Num recorte ainda menor, pensando no abrangente gênero musical “samba”, vem à tona a opinião de Pedro Alexandre Sanches, para quem o tropicalismo intensificou a “decadência bonita do samba” (o tema será abordado quando da análise da Tropicália): “Que o samba morresse – que morra, afinal, ele vive morrendo, desde que nasceu – não era assim tão inesperado ou surpreendente ou chocante.” In: SANCHES, Pedro Alexandre. Tropicalismo, decadência bonita do samba. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000, p. 18. 71QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval Brasileiro – O vivido e o mito. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992, p. 79/80. 72 Numa outra vertente, muito tem se falado sobre os “escritórios” ou “condomínios” de compositores de sambas de enredo: um mesmo compositor (ou grupo de compositores) compõe sambas para várias (às vezes dezenas) de escolas, assinando apenas uma ou outra obra. É claro que podemos pensar na atemporal comercialização de letras e melodias (os exemplos de Noel Rosa e são emblemáticos), mas no campo das escolas de samba a discussão só veio a ganhar volume nos últimos tempos. O aparente definhamento das alas de compositores de algumas agremiações tradicionais acendeu um sinal de alerta entre os vigilantes: estaria o gênero musical samba de enredo também “ameaçado” e condenado à massificação? 33

específica para carnavalesco. A maioria deles é autodidata. Aprenderam olhando e imaginando o que fariam se fossem os criadores daquela história. Entretanto, a Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro tem uma tradição entre seus membros, discípulos ou professores, de envolvimento com o carnaval carioca. Chamberlain já desenhava os estandartes dos ranchos (que naquela época contavam pontos no concurso), Amoedo desenhou o primeiro estandarte do Ameno Resedá, passando por Santa Rosa e Marie Louise Nery, que foi a primeira mulher a trabalhar em Escola de Samba como figurinista e aderecista. Mas, em sua maioria, esses artistas são autodidatas e profundamente intuitivos.73

O trecho evidencia certas dualidades da profissão que merecem um olhar mais atento. Primeiramente, devido ao fato de que não há cursos universitários específicos para a formação de carnavalescos nem a exigência de diplomas para o ingresso em uma escola de samba, existem profissionais com formação acadêmica (caso de Rosa Magalhães, bacharel em pintura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, bacharel em cenografia pela Escola de Teatro da Uni-Rio, licenciada em francês pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e bacharel em francês pela Faculté des Lettres et des Sciences Humaines) e profissionais sem qualquer formação superior ou sem formação na área das artes – os autodidatas, que aprendem a fazer carnaval no calor dos ateliês e barracões, ao som das serras, soldas e máquinas de costura. Se não se pode dizer que o diploma em alguma área afim é um determinante de qualidade ou uma condição sine qua non para o sucesso na arte carnavalesca (afinal, há uma série de artistas de carnaval brilhantes sem formação acadêmica em artes visuais, indumentária ou cenografia, como Joãosinho Trinta, Viriato Ferreira e Renato Lage), pode-se dizer que a sólida carreira trilhada na Academia dá o tom do trabalho de Rosa Magalhães, que demonstra preocupação com o embasamento teórico e as pesquisas bibliográficas e de campo. Não é equivocado afirmar que, do ponto de vista literário, ela e Joãosinho Trinta são os artistas que mais rebuscadas narrativas levaram para o asfalto da Passarela do Samba74, cada um à sua maneira, demarcando imaginários

73 MAGALHÃES, Rosa. Fazendo Carnaval. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1997, p. 135. 74 Fernando Pinto é um terceiro nome a ser citado quando o ponto de discussão é complexidade de enredos de escolas de samba. O carnavalesco desenvolveu algumas narrativas muito instigantes, como Ziriguidum 2001, Carnaval nas Estrelas (1985), Tupinicópolis (1987) e Beijim, Beijim, Bye Bye Brasil (1988), todos para a Mocidade Independente de Padre Miguel. Tupinicópolis é, talvez, um dos mais complexos enredos que já passaram pela Passarela do Samba – não à toa, um dos preferidos de Rosa Magalhães, conforme lista apresentada ao pesquisador Júlio Cesar Farias (ver FARIAS, Júlio César. O Enredo de Escola de Samba. Rio de Janeiro: Litteris Editora, 2007, p. 182). Crítica feroz à conturbada política de demarcação de terras indígenas e também à sociedade de consumo contemporânea, o enredo 34

bastante peculiares: João enveredando para os delírios transcendentais e metafísicos às vezes pouco compreensíveis, adotando vozes proféticas finisseculares e abraçando as cosmogonias e os discursos inflamados75; Rosa privilegiando as bibliotecas e extraindo das páginas fatos históricos e dados biográficos dos mais exóticos e curiosos. A autora, porém, transcende os limites do saber universitário (representante da categoria “erudito”, na classificação de Alfredo Bosi76) e abre portas e janelas para as culturas popular e massiva, bem como para a realidade contemporânea estampada em jornais e revistas77, misturando as referências (fragmentos textuais, algo tão caro à ensaística) em um caldeirão simbólico, conforme será visto nos próximos capítulos.78 Num segundo momento, há carnavalescos autores de enredos e carnavalescos que não se ocupam do desenvolvimento dos temas, restringindo-se à criação visual de

deu à Mocidade Independente um dos vice-campeonatos mais debatidos da história da Marquês de Sapucaí. Infelizmente, Fernando Pinto faleceu em 1987 (mesmo ano em que Arlindo Rodrigues abandonou a folia terrena) e encerrou uma carreira brilhante porém relativamente curta: ao todo, assinou quatorze enredos no grupo especial, número reduzido se comparado à média de trinta de Rosa Magalhães e Joãosinho Trinta. Na contramão das narrativas rebuscadas desses autores, os enredos da carnavalesca Maria Augusta Rodrigues contribuíram para a inserção da crônica no universo dos desfiles das escolas de samba; um típico domingo carioca, por exemplo, foi transformado em fantasia no antológico Domingo, enredo apresentado pela União da Ilha do Governador, em 1977. Trata-se de outro viés narrativo, também extremamente interessante do ponto de vista literário. 75 Sobre a obra de Joãosinho Trinta, ver: CUNHA JÚNIOR, Milton Reis. Rapsódia brasileira de Joãosinho Trinta: um grande leitor do Brasil! Rio de Janeiro, 2010, 300 f. Tese de Doutorado - Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro; GOMES, Fábio; VILLARES, Stella. O Brasil é um luxo – Trinta carnavais de Joãosinho Trinta. Rio de Janeiro: CBCP – Centro Brasileiro de Produção Cultural: Axis Produções e Comunicação, 2008; PINHEIRO, Marlene Soares. Sob o Signo do Carnaval. A Travessia do Avesso. São Paulo: Annablume, 1996. 76 Bosi teoriza sobre a situação da cultura universitária brasileira, a cultura fora da universidade, a indústria cultural, a cultura popular e as relações entre as culturas brasileiras em seu texto Cultura brasileira e culturas brasileiras, parte constituinte do livro Dialética da Colonização. O tema será discutido amplamente ao longo do trabalho. Ver BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 77 Para a elaboração da sinopse do enredo Quase no ano 2000, de 1998, a autora consultou famosos livros de literatura distópica (como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley), filmes de ficção científica (Blade Runner – o caçador de andróides, de Ridley Scott; Metrópolis, de Fritz Lang; a trilogia inicial de Star Wars, de George Lucas; entre outros) e, principalmente, notícias de revistas e jornais, conforme se observa na bibliografia apresentava ao final do texto, onde aparecem o artigo de Rogério Durst publicado no Caderno de Informática d’O Globo, em 27 de janeiro de 1997, artigos de André Luiz Barros, Cláudio Cordovil, Pedro Butcher, Regina Zappa e Ernesto Soto veiculados pelo Caderno B do Jornal do Brasil de 01 de junho de 1997, além de matérias da Revista IstoÉ publicadas em junho do mesmo ano. Os dados comprovam que Rosa também retira a argila da sua criação carnavalesca de fatos do cotidiano e dos produtos da chamada indústria cultural, não estando acorrentada a um modelo de referencial teórico, tão somente. O sistema de significações da autora é plural e transita entre as mais diferentes e contrastantes “culturas”. 78 Na conversa de 04 de outubro de 2012, Rosa declarou que estava cada vez mais encantada com a arte popular naif e disposta a se dedicar a projetos alocados no interior do Brasil, como óperas amazônicas. O interesse pelo Brasil interiorano ficou evidente no conjunto visual que a Unidos de Vila Isabel expôs na avenida, em fevereiro de 2013: as grandes referências da autora foram artistas populares, como Francisco da Silva, Manuel Graciano, Fé Córdula, Costinha, Zezinha, entre outros. 35

fantasias, alegorias e adereços – o que também, na tão complexa rede de linguagens e atores sociais que é uma escola de samba, é parte da narrativa do desfile. Rosa Magalhães já vivenciou as duas e mais variantes: o enredo desenvolvido na Beija-Flor de Nilópolis, em 1974, não era de autoria da artista, mas de Manuel Antônio Barroso; em 1978, na Portela, Rosa ilustrou o enredo Mulher à brasileira, do Departamento Cultural da escola; no Império Serrano, ao lado de Lícia Lacerda, em 1982, o enredo campeão Bum bum paticumbum prugurundum tinha autoria de Fernando Pamplona, que fora professor de ambas as artistas. Nesse último caso, o texto de apresentação do enredo (a sinopse) é assinado pela dupla de carnavalescas: trata-se, então, de nuance diferente – a narrativa escrita, base para a feitura do samba de enredo (que nada mais é que outra narrativa para o mesmo espetáculo, agora fincada na base musical da combinação entre letra e melodia) é desenvolvida pelo carnavalesco a partir de decupagem autoral de outrem.79 Tempos depois, nas passagens pela Imperatriz Leopoldinense (1984 e de 1992 a 2009), Estácio de Sá (1987, 1988 e 1989), Acadêmicos do Salgueiro (1990 e 1991), Império Serrano (2010), União da Ilha do Governador (2010) e Unidos de Vila Isabel (2011, 2012 e 2013), sozinha ou dividindo a cadeira de artista responsável pela concepção artística do cortejo80, Rosa assinou a autoria dos enredos apresentados. Na Vila Isabel, durante os três anos em que permaneceu na escola, dividiu a autoria com o historiador Alex Varela. Em 2013, o cantor e compositor também participou do desenvolvimento do tema e assinou a narrativa sobre a vida do homem do campo. O enredo elaborado para 2014, marcando a estréia da carnavalesca na Estação Primeira de Mangueira, é assinado por Osvaldo Martins, autor de uma série de enredos da Verde-e-Rosa.81 Também para 2014,

79 Sobre o caso, escreveu Fernando Pamplona: “Um dia, fui procurado pelo sorriso mais simpático do samba – Jamil Cheiroso, que não era bicheiro, mas peixeiro -, que me conquistou e levou um enredo baseado nos livros de Marília Barbosa. O enredo se chamava “Onze, Candelária e Sapeca aí”. De quebra, ele levou Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, minhas ex-alunas da Escola de Belas Artes. Rosinha mudou o nome do enredo para Bum bum paticumbum prugurundum (1982). Beto-sem-braço e a escola fizeram o resto e, de desclassificado, o Império virou campeão, e assim aconteceu conforme o combinado: eu não iria lá, não veria o barracão, e ‘não teria nada a ver com o resto...’” In: PAMPLONA, F. Obra citada, p. 146/147. 80 Nos anos de 1984 e 1987, Rosa dividiu o posto de carnavalesca com Lícia Lacerda; em 2010, no Império Serrano (que estava no Grupo de Acesso A), assinou o carnaval em parceria com Mauro Leite e Andréa Vieira (informações colhidas no Centro de Memória do Carnaval - LIESA e no sítio http://www.galeriadosamba.com.br). 81 Ainda pensando na trajetória de Rosa Magalhães enquanto artista de carnaval, é preciso destacar que a autora também assinou trabalhos para a folia de São Paulo: em 2003, à frente da Barroca Zona Sul, defendeu o enredo De Três Corações à Coroação. Quem sou eu? Rei Pelé. Para 2014, desenvolveu Um 36

no carnaval do Rio, Rosa redigiu o enredo da Unidos de Lucas, escola do Grupo de Acesso B da Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, intitulado Missicofe, Missicofe, Dari, Dari... Trata-se de uma homenagem ao centenário da mãe da carnavalesca, a teatróloga e autora infantil Lúcia Benedetti. No caso deste último enredo, Rosa é apenas a autora; quem assina como carnavalesco é Mauro Leite, assistente da artista desde a passagem pela Estácio de Sá, na segunda metade da década de 1980. Nessa trajetória, um momento sui generis merece destaque. A carnavalesca também participou da comissão de carnaval liderada por Maria Augusta Rodrigues, em meados dos anos 80, quando da fundação da escola de samba Tradição, dissidência da Portela. Segundo Nilton Santos, a comissão foi formada em 1984, quando a recém- nascida escola do bairro de Campinho chegou ao antigo Grupo 2B, que desfilava na Avenida Rio Branco. Além de Maria Augusta, responsável pelo Departamento de Carnaval da escola, a trupe de artistas era inicialmente formada por Lícia Lacerda, Rosa Magalhães, Viriato Ferreira, Paulino Espírito Santo e Edmundo Braga. Na visão de Maria Augusta, conforme o exposto por Nilton Santos, a comissão deveria reunir “indivíduos com uma trajetória similar e/ou próxima, com trabalhos desenvolvidos em outros contextos, pois somente assim haveria ‘igualdade e respeito entre seus membros’ e a ‘disputa de vaidade e egos’ ficaria sensivelmente reduzida.”82 Sobre isso, relatou a própria Rosa, na mesa Com que roupa?, do ciclo de discussões realizado no CCBB, em diálogo com os interlocutores Felipe Ferreira e Renato Lage:

Na Tradição, éramos seis carnavalescos (...) Era o Viriato (Viriato Ferreira), eu, a Lícia (Lícia Lacerda), Augusta (Maria Augusta Rodrigues), Paulino (Paulino Espírito Santo) e Braga (Edmundo Braga) (...) E o seguinte, olha, vou te contar uma coisa muito doida: o João Nogueira sentava no sofá lá de casa e dizia assim: ‘fiz a música.’ E aí é que a gente ia saber qual era o enredo, que ele que fez o enredo, ele fez a música e acabou. Não tinha esse negócio de escolher samba. (...)83

A declaração da artista sugere outra variação da forma de se trabalhar o enredo, que nos remete aos carnavais anteriores a 1970, quando o tema não era definido com a

museu de grandes novidades, na Dragões da Real. Informações disponíveis no sítio http://www.sasp.com.br. Acesso em 16/08/2013. 82 SANTOS, N. Obra citada, p. 54. 83 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=NQFKHDXffrM. Acesso em 08/08/2013. 37

antecedência com que é apresentado contemporaneamente.84 Fernando Pamplona conta, por exemplo, que os enredos do Salgueiro, nos anos 60, começavam a ser trabalhados às portas do carnaval, no início de fevereiro.85 No caso da Tradição, não deixa de ser interessante pensar que, apesar de ter sido formada uma comissão de seis carnavalescos, a fala de Rosa Magalhães dá a entender que a escolha inicial do enredo competia aos compositores (João Nogueira e Paulo César Pinheiro, autores dos sambas da Tradição até 1989). O que se percebe, diante desse panorama, é que os limites da autoria, no megaevento anualmente realizado na Marquês de Sapucaí, são porosos e mutáveis. Não é difícil entender o quão delicada pode ser a redação de uma narrativa que, a exemplo dos roteiros teatrais e dos libretos de óperas (fala-se, aqui, da sinopse do enredo, não do roteiro ou das justificativas), não se basta enquanto texto escrito, carecendo do asfalto, palco aberto em linha reta, para se completar. Igualmente complexo é dirigir um espetáculo aparentemente anárquico e mambembe como um desfile de escola de samba, quando a “armação” das alas e a montagem das gigantescas alegorias ocorrem nas ruas centrais do Rio de Janeiro (uma sucessão de dribles contra os obstáculos estruturais que a urbe oferece, de árvores e postes de luz a viadutos e passarelas), reunindo milhares de componentes, não havendo um ensaio geral completo (os chamados “ensaios técnicos” não contam com fantasias e alegorias nem com o contingente de desfilantes de um desfile oficial). Rosa Magalhães discorre sobre a preparação para o desfile em Fazendo Carnaval, afirmando que se trata de um procedimento de desconstrução: se no barracão as alegorias e fantasias estão prontas e decoradas, “começa então o trabalho inverso, ou

84 Hoje, além de haver um prazo para a entrega do enredo determinado pela LIESA, as escolas procuram apresentar o tema e o seu desenvolvimento o quanto antes (às vezes, como nos casos da Imperatriz Leopoldinense em 1996 e da Mocidade Independente de Padre Miguel em 2013, com mais de um ano de antecedência, ainda no calor dos carnavais anteriores), a fim de capitanear recursos e organizar a disputa de sambas concorrentes, verdadeiro frisson entre os meses de julho e outubro. Além disso, tudo é justificado cuidadosamente (a sinopse, as fantasias, as alegorias, os destaques, etc.), explicações estas que compõem o Livro Abre-Alas, “calhamaço em dois volumes de cerca de três e meia centenas de páginas, um para cada noite de desfile, que a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro elabora e distribui para a imprensa e para seu corpo de julgadores.” In: QUESADO, Clécio. O Enredo: Uma proposição imaginária para a representação do desfile. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras (UFRJ), 2006, p. 01. A necessidade das justificativas será questionada ao final deste trabalho. 85 Ao contar para o entrevistador Sérgio Cabral os bastidores do desfile salgueirense de 1961, sobre Aleijadinho (tema escolhido durante uma viagem realizada às cidades históricas de Minas Gerais, após o reveillon), Pamplona declarou: “Aliás, se eu contar que a gente começava a trabalhar no enredo no início de fevereiro, o pessoal de hoje, que passa praticamente o ano inteiro trabalhando, pode não acreditar.” In: CABRAL, S. Obra citada, p. 441. 38

seja, desmontar e empacotar para levar para a avenida. O trajeto em direção à concentração é muito penoso.”86 Ter experimentado diferentes formas de atuação enquanto carnavalesca, ao longo de sua trajetória artística, seguramente contribuiu para o aperfeiçoamento profissional de Rosa Magalhães. No período enfocado por este trabalho, de 1992 a 2002, ela é a autora de todos os enredos, assinando-os sozinha. No caso do texto de apresentação ao enredo de 2002, a sofisticação narrativa atinge níveis elevados; a artista, num procedimento antropofágico embebido de paródia e ironia, assimila a voz de outro narrador, Oswald de Andrade, e assim encerra a sinopse entregue à imprensa e aos compositores: “Rosa Magalhães – Carnavalesca - Ano 447 da deglutição do Bispo Sardinha.”87 Resumia, na assinatura do texto, a mensagem que seria defendida ao longo do desfile.

II. 2 – Contando a História, histórias e estórias: a canibalização do Brasil

Terminada a revisão histórica, fica mais fácil compreender o papel de Rosa Magalhães enquanto carnavalesca e o universo cultural em que ela está inserida. Rosa, filha de intelectuais (o imortal Raimundo Magalhães Júnior - dos grandes pesquisadores de Machado de Assis que o Brasil já teve e membro do corpo de jurados do primeiro concurso oficial de escolas de samba, em 193288 -, e a jornalista e escritora Lúcia Benedetti, considerada precursora do teatro infantil brasileiro), algumas graduações no currículo, aluna e professora da Escola de Belas Artes da UFRJ e única figurinista

86 MAGALHÃES, R. Obra citada, p. 145. 87 MAGALHÃES, R. Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way!. Sinopse de enredo disponível em: http://www.galeriadosamba.com.br/V41/ES.asp?4M%7%311377 e no Livro Abre-Alas de 2002, para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA. 88 Outro dado biográfico interessante é contado por Jota Efegê, que relatou a primeira coroação do Rei Momo carioca, promovida pelo jornal A Noite, em 1933. Segundo ele, o primeiro Momo da folia do Rio de Janeiro era um boneco de papelão, que desfilou pela Avenida Rio Branco e “sentou no trono que o esperava no desaparecido Beira-Mar Cassino, de onde, desde aquele sábado gordo, passou a presidir o carnaval carioca.” No entanto, “o mesmo vespertino não se contentou em dar aos carnavalescos da Sebastianópolis um Momo figurado num rei-boneco.” Era preciso, “no ano imediato, um novo rei: de carne, osso e muita gordura.” Deu-se, então, uma “gestação rápida, momentânea, que ocorreu na própria sala da redação na praça Mauá, entre mesas e máquinas de escrever (...)” O escolhido para representar o monarca da folia foi “um redator de turfe, o volumoso Morais Cardoso, paramentado em real vestimenta (que o caricaturista Fritz dizia ter sido confeccionada por ‘modesta costureira de teatro’ e o imortal Magalhães Júnior afirma ter conseguido com o maestro Silvio Piergile no Teatro Municipal), empunhou o cetro e pôs na cabeça a coroa indicativa de sua soberania. Era ele o Rei Momo, o deus corporificado.” Raimundo Magalhães Júnior, portanto, foi um dos “pais” do primeiro Momo carioca; a filha do imortal não seria irmã do rei da folia? In: EFEGÊ, Jota. Figuras e coisas do carnaval carioca. Rio de Janeiro: Edição Funarte, 1982, p. 158/159. 39

brasileira a ostentar um Emmy na mesa de trabalho, pelo conjunto de peças concebidas para a abertura dos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro, em 2007, goza da fama de elaborar as melhores pesquisas de enredo para o carnaval carioca. Amante dos temas históricos e de longas conversas com a literatura (há outros bons exemplos, além do já citado Oswald de Andrade; em 2005, desenvolveu enredo sobre a obra do dinamarquês Hans Christian Andersen; Alexandre Dumas e os romances de capa e espada entraram em cena em 2006, num enredo sobre o amor entre Garibaldi e Anita, em Santa Catarina; em 2010, a vez foi de carnavalizar O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes), é comum o comentário de que “Rosa tira água de pedra”89: mergulha na biblioteca e, depois de vasta prospecção bibliográfica, encontra algo carnavalizável, o que nem sempre, diga-se, agrada o público ávido por amenidades e, principalmente, os patrocinadores. Curiosamente, a artista começou a desenhar fantasias e alegorias por acaso. O jornalista Fábio Fabato assim narrou a iniciação da artista no mundo do samba (no barracão do Salgueiro, em 1971), na crônica O Cravo e a Rosa:

Conta Rosa que o desembarque no barracão salgueirense ocorreu sem que conhecesse os pormenores de uma escola de samba. “Ah, você vai desenhar a roupa da porta-bandeira”, decretou Pamplona (Fernando, o carnavalesco) com seu vozeirão grave, longe de conferir explicações mais detalhadas. A novata carnavalesca então olhou para o lado e, sem a menor cerimônia, perguntou para uma costureira: “o que faz uma porta-bandeira?” (...) A história de nossa Catarina pós-moderna começou mesmo na campeoníssima Festa para um rei negro (1971): ela ajudou a montar a escola, comprou um ingresso de arquibancada e finalmente foi apresentada a um desfile. Sim, boas-vindas a partir de um trabalho que também era um pouco dela. Estranho, não? Nada mais Rosa do que pegar no ganzê e no ganzá logo no batismo de fogo.90

A artista menciona o episódio da porta-bandeira em Fazendo Carnaval. Nas palavras dela, “munida de uma lapiseira e uma borracha, lá fui eu desenhar os figurinos. Tudo o que eu tinha era curiosidade e boa vontade. Fiquei maravilhada com uma descoberta: os livros sobre indumentária.”91 O relato reforça a ideia de que existem duas

89 Dulce Osinski e Gustavo Krelling apresentam a afirmação, proferida por Maria Augusta Rodrigues na transmissão televisiva da Rede Globo, durante o desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2004, cujo tema era o pau-brasil e a cor vermelha: “Ao ser indagada sobre a proposta do tema de Rosa Magalhães para o desfile de 2004, a comentarista Maria Augusta ressalta a preocupação com a pesquisa no trabalho da artista: ‘A Rosa é uma pessoa muito competente! Que faz pesquisas maravilhosas! Às vezes tira água de pedra! E nesse caso é um assunto muito rico! Acredito que vamos ter um belo espetáculo!” In: OSINSKI, D; KRELLING, G. Obra citada, p. 173. 90FABATO, F. Obra citada, p. 130. 91 MAGALHÃES, R. Fazendo Carnaval, p. 11. 40

características essenciais permeando o trabalho de Rosa: a inquieta curiosidade (o gosto por falar daquilo que ainda não foi falado, com uma linguagem estética ainda não utilizada) e a paixão pelas bibliotecas, o berço das suas criações. O apreço pelos livros foi por ela descrito a Felipe Ferreira, em cuja dissertação de Mestrado em História da Arte, intitulada O Marquês, o Jegue, a Princesa e o Corta- Jaca: um estudo sobre a expressão plástica da cultura popular e da cultura erudita nas fantasias de carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro (e posteriormente publicada em livro sob o título O marquês e o jegue. Estudo da fantasia para escolas de samba), anexou uma longa entrevista realizada com a artista durante os preparativos para o carnaval de 1992 - às vésperas, portanto, dela começar a percorrer a vitoriosa trilha na Imperatriz Leopoldinense. Nas palavras dela, um carnaval não começa na prancheta do ateliê, mas com uma pilha de livros de vários assuntos, de onde, “de repente a coisa aparece, ou não aparece. Eu continuo mexendo, até aparecer. (...) Quando o assunto... eu não tenho, eu peço a alguém ir na biblioteca e descobrir alguma coisa, começo a ler. Às vezes é uma frasezinha só que você acha...”92 Pois ela achou, em mais de trinta anos de confetes e serpentinas, histórias e estórias (para lembrar da lição de outro Rosa, Guimarães, no primeiro prefácio de Tutaméia93) interessantíssimas, como a da expedição financiada pelo Instituto Histórico e Geográfico, durante o reinado de Pedro II, que levou camelos e dromedários da Argélia ao sertão do Ceará, em busca

92 FERREIRA, F. O Marquês, o Jegue, a Princesa e o Corta-Jaca: um estudo sobre a expressão plástica da cultura popular e da cultura erudita nas fantasias de carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em História da Arte. Área de Concentração: Antropologia da Arte. Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, f. 185. É interessante perceber a aproximação do comentário de Rosa Magalhães com algo apontado por Thierry De Duve. Para o crítico francês, “uma vez que decidi que amo uma obra o suficiente e sinto que ela ‘sabe’ algo que desejo muito conhecer, estou pronto para começar. O que acontece é um diálogo: envio questões teóricas à obra, e ela responde ou não. O modo como ela responde ou não à pergunta me faz prosseguir em minha linha de questionamento ou, então, a mudar a base, seja refinando as hipóteses com as quais estou trabalhando, seja abandonando-as, convocando certas referências e dispensando outras”. In: DE DUVE, T. Obra citada, p. 38. 93 O Rosa de Cordisburgo opõe a palavra estória aos termos história e História. Ao fazer isso, ele está a falar de anedotas, histórias menores, tradicionalmente consideradas menos importantes pela dita “alta literatura”. O escritor, nesse sentido, questiona a História oficial e as histórias oficiosas, buscando a estória, a narrativa oral, as pequenas estoriinhas que embalam o cotidiano do povo e beiram o fabulesco (não seria o caso do “causo” dos camelos no Ceará, antes da comprovação encontrada nos arquivos, episódio que será contado na sequência?). A anedota, segundo ele, é como um fósforo: uma vez riscado perde a serventia. Porém, explica, a anedota contada pode ter outra função: ser instrumento de análise, “nos tratos da poesia e da transcendência”. Ver ROSA, João Guimarães. Tutaméia – Terceiras Estórias. 2ª edição, Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1968, p. 03. 41

de tesouros escondidos nas dunas.94 Segundo a própria Rosa, o “achamento” dessa narrativa tão preciosa se deu por acaso:

Quando li sobre a viagem que Gonçalves Dias fez até Baturité, no final do século XIX, em cima de um desses animais (camelos), pude imaginar a sua vontade e curiosidade de usar aquela montaria. No entanto, até saber de todos os fatos sobre essa primeira expedição científica brasileira, tive de ir atrás de muitas informações. Meu pai mencionou, certa vez, a existência de camelos no Ceará, mas não entrou em detalhes. No Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, não encontrei notícias muito precisas sobre o assunto. Assim, por algum tempo, a história dos camelos ficou no limbo, à espera de novas fontes. Foi por acaso que acabei achando o que procurava. Marquei um encontro com um entomólogo, professor da UFRJ, e ele escolheu o local: a biblioteca da universidade, na Quinta da Boa Vista. Como não conhecia o lugar, tratei de ir mais cedo. (...) Para minha surpresa, era exatamente onde todas as expedições científicas brasileiras tinham seu registro, inclusive essa primeira. Lá mesmo, dias depois, fiz toda a pesquisa. Alguns livros não puderam ser copiados por causa de sua raridade, mas através de um colecionador cearense consegui o que me faltava, inclusive um livreto que ensina como tratar de dromedários adultos e de filhotes. E foi assim que entrei em contato com esses camelos que me renderam um bom enredo para o desfile da Imperatriz Leopoldinense no carnaval de 1995 (...)95

É perceptível, no relato da artista, o interesse pelo desconhecido de que fala Thierry De Duve. O fascínio nutrido pelo estranhamento se faz presente na descrição que ela faz dos camelos:

O camelo sempre foi um dos bichos que mais me atraíram. Muito feio, diga-se de passagem, tem duas corcovas, os joelhos pontudos, as patas parecem grandes demais para os cambitos, é beiçudo e ainda por cima tem dois estômagos. Tudo parece não combinar.96

No mesmo artigo, a “professora” (maneira como alguns colegas de trabalho se referem a Rosa Magalhães) conta das aventuras vividas no Marrocos e das descobertas empíricas que foram transformadas em carros alegóricos e fantasias. Os grandes

94 Curiosamente, o fato é mencionado por Jota Efegê no seu Figuras e coisas do carnaval carioca, no relato Camelos (de verdade) no carnaval carioca. O autor informa que, em 1868, “o clube X exibiu uma caravana oriental montada em camelos que mandara vir da Ásia propositalmente para esse fim”. Eram camelos “autênticos, ‘no duro’. Tão verdadeiros quanto os que, em 1859, autorizados pela lei nº 939, aportaram no Ceará trazidos pelo navio Splendid, morrendo pouco depois por inadaptação.” In: EFEGÊ, J. Obra citada, p. 253. 95MAGALHÃES, R. Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube, lá no Ceará... In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 6, n. 1, 2009, p. 238/239. 96MAGALHÃES, R. Obra citada, p. 238. 42

mercados da África saariana reservaram surpresas à artista, que, estimulada, transladou o que viu para a Passarela do Samba:

Ainda pelas minhas andanças pelas bandas orientais, lembrei- me de um mercador que cobrava para mostrar o que havia dentro da sua cesta. Muito curiosa, paguei as moedas que me pediu enquanto ele abria a cesta que trazia no braço. Conforme foi abrindo a cesta bem devagar, fui chegando o rosto mais para perto da tampa já entreaberta, cheia de curiosidade. Dei um grito de pavor quando, lá de dentro, saiu uma enorme cobra preta, daquelas com uma espécie de aba na cabeça que a faz parecer ainda maior. O mercado, as cobras nas cestas e os ursos com argolas no nariz foram transformados em carro alegórico.97

A descrição é riquíssima porque reforça o entendimento de que Rosa (e novamente é válida a comparação com escritores como Ariano Suassuna, Mário de Andrade e Guimarães Rosa, todos viajantes que se deixaram encantar pelas surpresas do interior do Brasil e levaram para suas páginas literárias parte das experiências colhidas para além do saber erudito que representam os livros) extrai matéria visual para os carnavais e motivos temáticos para os enredos não apenas das bibliotecas, mas da vida real, concreta, que está “lá fora”, no Brasil ou no resto do mundo. A artista, nesse sentido, não é apenas uma boa pesquisadora, mas uma excelente observadora, curiosa e inquieta, e uma narradora perspicaz, o que certamente contribui para que ela permaneça em um lugar de destaque quando o quesito analisado é o enredo. Chegamos, pois, à noção de enredo de escola de samba enquanto narrativa que se desenvolve em múltiplos planos, para usar da expressão de Roberto DaMatta. O texto escrito (a sinopse ou histórico do enredo, anexada às justificativas, ao roteiro e às descrições dos elementos, no material entregue ao júri) está conjugado ao samba de enredo (que possui autoria diversa) e ao conjunto visual do desfile (fantasias e alegorias), fragmentos que, unidos ao longo da Passarela, passam aos olhos de espectadores e jurados, os leitores “do lado de fora”, uma vez que os próprios desfilantes também são leitores da obra de que fazem parte e precisam compreender o papel que desempenham, seja em uma ala ou em uma alegoria. Não à toa, como declarou Fernando Pamplona ao entrevistador Sérgio Cabral, era comum os desfilantes chamarem as alegorias de enredo: “Aprendi naquele ano (1961) que, para os sambistas, enredo quer dizer alegorias. O pessoal do morro achava que a gente não tinha enredo

97MAGALHÃES, R. Obra citada, p. 239. 43

porque ninguém via as alegorias (...)”98 Na visão de Pamplona, “o enredo não é apenas o tema em si, mas principalmente a maneira como foi tratado, em função do samba e do desfile. Sem enredo, não há desfile de uma escola de samba. Como Mário de Andrade classificou, o desfile é uma dança dramática.”99 Em sendo a dramaticidade (o caráter operístico de que falava Joaõsinho Trinta, também observável no Festival Folclórico de Parintins, por exemplo) uma característica basilar das escolas de samba, a necessidade de uma história se faz presente: é preciso seguir um fio narrativo, ainda que muito fino, diferentemente do que ocorre com outros folguedos. Assim como os demais quesitos de uma escola de samba, o enredo passou por mudanças ao longo de pouco mais de oitenta anos de “desfiles oficiais”. Suposta herança dos ranchos100 e inicialmente não-obrigatório101, era escolhido na beira do carnaval, nos idos das décadas de 50 e 60, como relatou Fernando Pamplona. Atualmente, não é exagerado afirmar que a escolha do enredo condiciona todo o processo de elaboração de um desfile e é o motor de arranque de uma escola de samba. Tal é o entendimento de Felipe Ferreira, para quem “o primeiro momento do processo de criação do desfile de uma escola de samba é a criação do enredo. É a partir da história a ser contada (...) que irão se articular os diferentes elementos visuais e musicais que compõem o desfile.”102 Maria Laura Cavalcanti segue a mesma linha de raciocínio: “a confecção de um desfile começa mal terminando o carnaval do ano anterior, com a definição de um novo enredo a ser levado pela escola à avenida.”103 Compete ao carnavalesco transportar as imagens do texto escrito para o visual de fantasias e alegorias ou vice-versa (afinal, no processo criativo há casos em que o visual condiciona

98 CABRAL, S. Obra citada, p. 441. 99 FARIAS, Julio Cesar. Obra citada, p. 16. 100 Sobre isso, é interessante observar um trecho da famosa entrevista concedida por Ismael Silva a Sérgio Cabral, destacado e comentado por Maria Laura Cavalcanti. Na visão do sambista, fundador da Deixa Falar, possível primeira escola de samba, “‘se é escola de samba não tem alegoria. Alegoria e enredo são coisas de rancho. Por isso, eu não chamo as escolas de samba atuais de escolas de samba. Para mim são ranchos.’ Ismael está, portanto, do lado do ‘samba’, e recusa, em plena década de 1970, às escolas de samba o seu próprio nome.” In: CAVALCANTI, M. L. V. C. Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile, p. 51. A entrevista é fundamental para se pensar o mito de origem das escolas de samba e a desconstrução deste, algo que nem sempre (quase nunca) é feito: simplesmente aceita-se a fala de Ismael Silva como verdade absoluta, algo bastante problemático. 101Considera-se o enredo Teste do Samba, apresentado pela Portela, em 1939, o primeiro a unificar as narrativas escrita, sonora e visual; até então, as escolas não se preocupavam em apresentar alas que fizessem referência direta ao enredo cantado. Atribui-se a Paulo da Portela, também autor do samba- enredo, a iniciativa de vestir toda a escola com uniformes de estudantes – portanto, contando a narrativa através das vestimentas. Ver CABRAL, S. Obra citada, p. 136. 102 FERREIRA, F. Escolas de samba: uma organização possível. In: Escritos carnavalescos, p. 180/181. 103 CAVALCANTI, M. L. V. C. Obra citada, p. 15. 44

a escritura: não é raro ouvir a afirmação, proferida por carnavalescos, de que “o enredo foi escolhido pelo visual”). Rosa Magalhães discorreu sobre o quesito no seu Fazendo Carnaval, apresentando a mesma opinião de Felipe Ferreira e Maria Laura Cavalcanti: “a escolha do enredo é o ponto de partida para um grande desafio: colocar a escola na avenida.”104 A autora informa que os assuntos (temas) podem ser tratados sob diferentes enfoques e destaca que o mais importante é a legibilidade: acima de tudo, o enredo precisa ser compreendido por compositores, espectadores, desfilantes e jurados – o que nem sempre é fácil. Logicamente, enredos rebuscados e menos convencionais (aqueles que desenvolvem temas estrangeiros ou mesmo nacionais pouco conhecidos do grande público e, principalmente, aqueles que misturam planos narrativos e inserem um enredo dentro do outro, aqueles excessivamente abstratos e aqueles de temática polêmica ou assustadora/grotesca) tendem a dificultar a leitura e podem não ser bem recebidos pelo público. Há, ainda, as variantes impostas pelo samba (uma sinopse de enredo considerada ruim pelos analistas de carnaval pode gerar um samba considerado bom pela crítica e conquistar o público e os jurados, independente do visual; também pode gerar um samba ruim que, por alguma razão, termine por levantar as arquibancadas e contribua para o bom funcionamento do desfile – daí a ideia de “samba funcional” tão em voga atualmente105) e pelo visual (alegorias e fantasias belas e vistosas tendem a “maquiar” enredos fracos, pouco inventivos; por outro lado, o excesso de experimentação ou a falta de recursos – o que se agrava quando o samba não cai nas graças da “galera” – podem ser fatais e condenar às más colocações, mesmo ao rebaixamento, um desfile de enredo bom). São muitas as permutações, os casos e os exemplos, e mais numerosos os critérios de valoração, os crivos e os juízos (como definir o “bom” e o “mau”?). Para além das objetividades, a disputa das escolas de samba tende a não gerar consensos. Resta a ideia cristalizada na fala popular de que “o

104 MAGALHÃES, R. Fazendo Carnaval, p. 26. 105 Alberto Mussa e Luiz Antonio Simas explicam a situação, chamando-a de “encruzilhada”: “a partir de 1990 os sambas começam cada vez mais a ficar estruturalmente semelhantes. Passam a ter, quase sem exceção, uma primeira parte, seguida de um refrão de oito versos (ou seja, 16 compassos), e de uma segunda parte, seguida de um segundo refrão, também de oito versos – que passou a ser chamado ‘refrão principal’, dada a sua quase obrigatoriedade. Esse refrão principal, via de regra, tem como função ‘levantar a avenida’, mencionando de forma entusiástica o nome da escola, às vezes fugindo completamente do enredo; e deve ter uma melodia ‘pra cima’, para empolgar a plateia durante o desfile. (...) E existe uma crença já enraizada entre os próprios compositores de que, nos carnavais de hoje, o samba tem que ser ‘funcional’. E ser funcional significa atender a esses parâmetros.” In: MUSSA, Alberto; SIMAS, Luiz Antonio. Samba de enredo – história e arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 117. 45

desfile ocorre na avenida”, ou seja: no espaço ritual do Sambódromo, da “curva” de entrada à Apoteose, tudo pode acontecer – os prognósticos são perigosos. O enredo que serve de mote para esta dissertação, Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way!, pode ser classificado, de modo perigosamente simplista, como “indianista.”106 De narrativa irônica e fragmentada, é um caso que reúne inúmeras particularidades carregadas de material inflamável (literalmente), servindo e muito para se pensar o manancial de tensões e subjetividades exposto anteriormente. Pouco festejado pelo público, bastante criticado pela mídia, mal avaliado pelo júri, não laureado pelo Estandarte de Ouro em qualquer categoria e, posteriormente, alvo de uma disputa judicial, está-se diante, aparentemente, de um enredo ruim que resultou em um desfile esquecível. Porém, seguramente é um dos enredos de Rosa Magalhães que mais articulou referências literárias e conceitos de brasilidade e identidade nacional, relativizando-os na Passarela. Ainda, sobreviveu ao crivo do tempo e é, pouco mais de uma década depois, dos enredos mais lembrados atualmente, figurando em qualquer estudo ou conversa que se ocupe da relação entre carnavalescos e patrocinadores. Virou um emblema, referência para o próprio Fernando Pamplona, crítico feroz da intervenção de patrocínios nas escolas de samba107. Terceiro colocado no carnaval de 2002, atrás de Mangueira e Beija-Flor, os goitacazes de Rosa não deram à Imperatriz Leopoldinense o almejado tetracampeonato, mas continuam a render discussões e a cozinhar curiosidades. Pois deixemos o papo de lado e sigamos os tambores.

106 Tal é a classificação (superficial) apresentada por Julio Cesar Farias, que também coloca o enredo de 2002 na pasta “enredo de patrocínio”, juntamente com os carnavais leopoldinenses de 1995 (o já mencionado Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube, lá no Ceará..., com apoio financeiro do governo cearense) e 1996 (Imperatriz Leopoldinense honrosamente apresenta “Leopoldina, a Imperatriz do Brasil”, com patrocínio da Áustria). Ver FARIAS, J. C. Obra citada. 107 Quando questionado sobre o que o desagradava no carnaval atual, Pamplona declarou, em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo de 23 de fevereiro de 2009, intitulada Comercialização fez o Carnaval virar Broadway: “A comercialização. Começaram a comprar porta-bandeira, mestre-sala, pagar por mês. Começou a comercialização, principalmente, do samba-enredo. E veio a história dos patrocínios. O próprio carnavalesco perdeu a liberdade. A não ser a Rosinha (Rosa Magalhães, da Imperatriz Leopoldinense), que é ultrainteligente e, quando Campos (cidade do norte fluminense) pagou para fazer um enredo (em 2002), ela saiu com a antropofagia dos Goytacazes e foi para a Semana de Arte Moderna. Ela consegue driblar essa artificialidade.” O artista também refutou a ideia de que teria sido o primeiro “carnavalesco profissional” do carnaval carioca: “Não, não fui eu. Já tinha o Julinho (Mattos), que fazia o Paraíso do Tuiuti, a Mangueira, tinha uma fábrica de papel machê e fazia carro alegórico para o país inteiro. Teve o (Carlos Haraldo) Sörensen, que era profissional, cobrava da Portela 2.000 cruzeiros por risco (desenho de fantasia). Ele não era amador como sempre fomos no Salgueiro. Nunca levamos um tostão. Nem eu nem Arlindo (Rodrigues) nem João Trinta. No Salgueiro, não. Depois, eles se tornaram profissionais, compraram apartamento e eu não fui para lugar nenhum.” Disponível no sítio http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2302200922.htm. Consulta em 15/07/2013. 46

III – Tupi or not Tupi, in a South American Way!

E deu Tupi or nor Tupi Eis a visão do artista Nessa nação tupiniquim Índio virou um anarquista108

(Marquinhos Lessa, Guga e Tuninho Professor)

III. 1 – O Delírio tropical

Plumas intencionalmente desfiadas, o predomínio do preto, grandes olhos e uma imensa boca que se abria, mostrando a língua e os dentões, num misto de ameaça e deboche. Os componentes da Comissão de Frente da Imperatriz Leopoldinense, em 2002, representavam o bicho-papão, famoso personagem do imaginário brasileiro, e brincavam com a fama da própria escola, que entrava na Sapucaí, por volta das 02:45 da madrugada de terça-feira gorda, 12 de fevereiro, disposta a abocanhar um tetracampeonato. Eis o começo do desfile intitulado Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way!, o mais polêmico daquele carnaval. Em linhas gerais, o enredo de Rosa Magalhães, partindo da cidade de Campos dos Goytacazes, se propunha a fazer uma leitura das transformações culturais pelas quais passou a figura do índio ao longo da História do Brasil. “O índio é apresentado sob diversas facetas no decorrer da evolução do próprio país”109, afirmou a carnavalesca na sinopse do enredo entregue à imprensa e aos compositores gresilenses. Do imaginário europeu, estimulado pelas visões surpreendentes dos primeiros cronistas, passava-se ao romantismo de José de Alencar, desembocando a mistura no Modernismo de 22, quando Oswald de Andrade assinou o célebre Manifesto e Mário de Andrade fez de Macunaíma, seu herói sem nenhum caráter, um símbolo de brasilidade. Depois das pinceladas de Tarsila do Amaral e de bailar com a Tropicália de Gil e Caetano, a autora encerraria a apresentação exaltando Carmen Miranda, entre colares, flores e bananas, tropicalizando o american way of life. Passado um carnaval de temática mais “popular” (em 2001, sobre a cana-de-açúcar e a cachaça, enredo que terminava com uma homenagem à Mangueira, escola de samba fundada por Carlos Cachaça), Rosa voltava,

108 Trecho do samba de enredo entoado pela Imperatriz Leopoldinense no carnaval de 2002, sobre a antropofagia cultural, intitulado Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way! 109 MAGALHÃES, R. Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way! Sinopse de enredo disponível em: http://www.galeriadosamba.com.br/V41/ES.asp?4M%7%311377. Consulta em 07/07/2013. 47

em 2002, a apostar nos enredos visceralmente bibliográficos, a exemplo do que havia feito em 1999, quando carnavalizou o Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. Resumindo a ópera, a artista se apropriou do fato de que os goytacazes eram antropófagos para repensar o conceito de identidade nacional e desaguar na antropofagia cultural oswaldiana e nos desdobramentos desta, na segunda metade do século XX – o neoantropofagismo da Tropicália. Textos literários, um libreto de ópera, telas, desenhos, filmes, peças teatrais e letras da MPB seriam interpretados e traduzidos em fantasias e carros alegóricos – uma grande digestão! Ao contar sobre o processo criativo que a levou à tessitura da narrativa do enredo, Rosa deixa claro que tudo começou com o nome da cidade:

Eu pedi um monte de livros. “Mande aí o que tiver!” (...) Aí um dos livros era Atas da Câmara. Não sei por que que me mandaram isso! Aí eu disse: “nunca li um livro de Atas da Câmara, vou ler. (...) Aí eu comecei a ler. (...) E aí uma hora lá, uma reunião, uma discussão enorme sobre o nome da cidade. Se era dos Goytacazes ou sem os Goytacazes. Eu disse: “gente, se isso aqui é uma ata de governo é porque o negócio é importante!” Não é? Então tá pronto. É isso. E aí o resto foi um delírio seguindo essa ata do governo.110

O delírio passou em revista mais de 500 anos de história, sobrepondo, ao melhor gosto das vanguardas, estilos conflitantes em 06 setores formados por 30 alas e 07 carros alegóricos. Ao conversar comigo, no barracão da Unidos de Vila Isabel, em 04 de outubro de 2012, Rosa já havia mencionado a “aventura” de mergulhar nas atas da Câmara de Vereadores, oceano em que se deparou com longos debates sobre o nome do município (se deveria ser grafado com i ou y, se o correto era Goytacazes ou Goitacás, se a referência explícita aos índios deveria ser mantida ou retirada do nome). Tantas discussões acionaram a fagulha da curiosidade e a levaram a uma vasta pesquisa, durante a qual descobriu que, além de muito velozes, tais índios praticavam o “canibalismo”111. Rosa contou que as narrativas dos rituais antropofágicos presentes nos relatos de Hans Staden, bem como as gravuras de Theodore De Bry e a história do bispo Pero Fernandes Sardinha, incitavam a sua imaginação adolescente. Descreveu

110 Transcrição de relato feito durante o 9º Debate Escola de Inovação, sobre a obra de Joãosinho Trinta, realizado no Espaço Cultural FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), em 07 de novembro de 2011, como parte do projeto FINEP Tira o Chapéu, organizado pelo jornalista Fábio Fabato. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=oqnUW--7a-s. Acesso em 10/08/2013. 111 O termo é colocado entre aspas porque tem sido feita, contemporaneamente, uma distinção entre “canibalismo” e “antropofagia”, especialmente no campo dos estudos antropológicos, conforme ensina Maria Cândida Ferreira de Almeida. 48

brevemente algumas práticas dos rituais (“muito engraçados e sofisticados”), destacou a informação de que às mulheres cabia devorar um caldo feito com os intestinos do prisioneiro morto112 (o que ela julgava “um horror”) e riu do fato de que a “vítima” não era maltratada, antes de ter a nuca estourada por um tacape113, ao contrário: recebia boa alimentação, participava dos rituais da tribo, inclusive ganhava uma esposa indígena. A “comida” era integrada à vida social da comunidade e bastante mimada, mas fatalmente não escaparia de ser assada, aos pedaços, sobre um braseiro114. A autora também contou que tinha apreço pelo Modernismo de 22 desde “os tempos de colégio”, quando, durante um passeio, foi a uma exposição sobre a Semana de Arte Moderna e se deixou surpreender pelas telas de Tarsila do Amaral. Nota-se que o imaginário trabalhado no desfile não era desconhecido da autora. Nem poderia: Rosa já havia inserido a temática indígena sete vezes, de 1992 a 2001, nos enredos elaborados para a Imperatriz Leopoldinense. Quando lancei a questão sobre o apreço pela figura do índio, Rosa respondeu que “no Brasil, todo mundo tem um pouco de índio” e que a construção de um conceito de identidade brasileira passa pela valorização das tribos e comunidades tradicionais.115 Contou que tem ascendência indígena, nordestina (mencionou Iracema, de José de Alencar), por parte de pai (Raimundo Magalhães Júnior nasceu em Ubajara, no Ceará) e que sempre se interessou pela cultura dos povos da floresta, embora tenha desbravado o interior do país mais recentemente, deixando a Europa de lado e abraçando o popular, “mais livre”. Disse,

112 O relato é feito por Hans Staden (ou melhor: pelo seu ghost writer, o doutor Dryander; Staden, segundo o historiador Eduardo Bueno, era pouco letrado) em sua obra Duas viagens ao Brasil, originalmente publicada na “terça-feira de carnaval de 1557”, o que não deixa de ser curioso! Segundo as memórias do arcabuzeiro alemão, “as vísceras ficam com as mulheres. Fervem-nas, e com o caldo fazem uma massa fina chamada mingau, que elas e as crianças sorvem. As mulheres comem as vísceras, da mesma forma que a carne da cabeça.” In: STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Primeiros registros sobre o Brasil. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008, p. 165. 113 Na verdade, tratava-se de uma maça decorada com penas e casca de ovo de macaguá, chamada ibira- pema, ao redor da qual os índios dançavam durante a madrugada que antecedia a manhã do sacrifício. Ver STADEN, H. Obra citada, p. 162/163. 114 O aventureiro Hans Staden, diferentemente, viveu nove meses entre os “selvagens hostis”, nas proximidades de São Vicente e Bertioga, mas escapou do sacrifício, foi resgatado por uma pequena comitiva de franceses (o navio estava ancorado no porto de Niterói) e, após uma encenação um tanto farsesca, conseguiu ludibriar o chefe Abati-poçanga (que o havia “tratado como um filho”) e retornar à Europa, levando consigo as exóticas e chocantes narrativas (verídicas?) dos “festins canibais” celebrados na Terra dos Papagaios. Ver STADEN, H. Obra citada. 115 Essa mesma visão está expressa na Justificativa do Enredo entregue aos jurados, no Livro Abre-Alas da LIESA. Rosa escreveu: “Goytacazes são os índios que habitavam a região onde hoje se encontra a cidade de Campos, no norte fluminense, índios esses que foram completamente dizimados. Nossa origem étnica e cultural, entretanto, tem muito a dever aos índios.” 49

por fim, que gosta do índio enquanto personagem romântico, “mas não só isso. Ele se transforma. É disso que eu gosto, dos pedaços.” A ideia de pedaços (que ganha um colorido irônico se pensarmos nos rituais antropofágicos), revela que o olhar de Rosa aprecia os fragmentos, característica que pode nos remeter à agilidade visual da pós-modernidade e ao conceito de microhistória de autores como Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, mas também à longa tradição ensaística (Montaigne, Benjamin, até mesmo Machado de Assis, autor muito apreciado pela carnavalesca), que procura extrair o máximo de potencial reflexivo dos menores recortes existenciais (movimento semelhante ao que faz Guimarães Rosa em Tutaméia, livro em que utiliza de pequeninas estórias para refletir acerca de questões filosóficas universais e atemporais, afirmando que “o livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber”116, ou seja, reconhecendo as ausências, as fissuras e as fraturas, os “nacos” arrancados do texto). Os pedaços de Rosa Magalhães também denunciam o gosto pelo contraste e a possibilidade do paradoxo, algo que a artista revelou ao entrevistador Felipe Ferreira:

Felipe Ferreira - O Mauro, seu assistente, concordou comigo que você tem uma coisa de juntar fragmentos e criar com os pedaços. Por exemplo, temos as suas fantasias com uma perna de tecido listrado e a outra lisa, com estampados por cima. Rosa Magalhães - Às vezes eu vejo a roupa e digo: “Eu quero esta calça aqui com aquela manga dali.” Felipe Ferreira - Do mesmo modo, me parece que é desta mesma maneira que você chega ao enredo: juntando pedaços. Rosa Magalhães - Eu queria ligar uma época na outra através de um elemento.117

Em 2002, o elemento utilizado foi o conceito de antropofagia cultural, fio condutor de um enredo cujo protagonista, o índio, é um sujeito desdobrável, paradoxal, caval(h)eiro e anarquista, despedaçado à moda canibal.118

116 ROSA, J. G. Obra citada, p. 12. 117 FERREIRA, F. O Marquês, o Jegue, a Princesa e o Corta-Jaca: um estudo sobre a expressão plástica da cultura popular e da cultura erudita nas fantasias de carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro, f. 202. 118 Nos termos de Rosa, na Justificativa do Enredo, “a antropofagia foi descoberta com muita surpresa pelos europeus. E é essa antropofagia que se torna o fio condutor do enredo.” 50

III. 1. 1 – Índio come gente, quem diria!

Começa o delírio em tempos pré-coloniais, na região em que hoje se encontra a cidade de Campos dos Goytacazes, no norte fluminense, onde os antropófagos viviam:

Campos dos Goytacazes era terra dos ferozes índios Goitacá. Além de ferozes e belicosos, esses índios corriam e nadavam com muita destreza; andavam tão rapidamente que seus inimigos raramente conseguiam alcançá-los e essa habilidade era também aproveitada na caça de animais silvestres. Exímios nadadores, quando um tubarão se lançava contra eles, batiam com tanta força que o matavam, aproveitando seus dentes afiados para as pontas de suas flechas devastadoras. Divididos em 3 tribos: Goiatacá-Mopi, Goiatacá-Jacoritó e Goiatacá-Guaçu, eram temidos pelos colonizadores, e o alto grau de cultura neolítica atingido por eles lhes garantiu o reconhecimento como uns dos mais evoluídos índios brasileiros e os que os mais contribuíram para a formação do povo fluminense.119

A partir dessa abertura histórica, o desfile, já em seu primeiro setor (após a Comissão de Frente e o carro Abre-Alas, que será analisado à frente), misturava referências literárias e rompia as fronteiras geográficas, embrenhando-se nas florestas descritas por viajantes estrangeiros, como André Thevet e Jean de Léry, que vieram ao Brasil à época da França Antártica de Villegagnon, fundada em 1555, às margens da Baía da Guanabara. Curiosamente, a carnavalesca não se preocupou em referenciar as criações visuais no roteiro que integra o Livro Abre-Alas, espalhando as peças para o leitor montar o quebra-cabeça. A segunda alegoria, Floresta habitada pelos índios goitacá, é prova disso. Nela, havia esculturas das criaturas fantásticas que supostamente habitavam as matas em que os índios antropófagos viviam, a exemplo do que narraram (às vezes com generosas doses de imaginação) os viajantes europeus. Nesse ponto, é válido destacar que os índios entre os quais os cronistas viveram eram tupinambás, conforme ensina Florestan Fernandes em seu fundamental estudo sociológico. Rosa usou da liberdade de misturar referências da antropofagia tupinambá (da qual há inúmeros relatos, entre os quais os de Hans Staden, Jean de Léry e André Thevet) à visão que desenvolveu acerca dos ariscos goitacazes120, com quem os

119 MAGALHÃES, R. Obra citada. 120 A etimologia do nome goitocá tem dividido os especialistas, que aventam diferentes possibilidades de significação: “grandes corredores” ou “gente que sabe nadar”. Rosa Magalhães acenou para essas duas características em sua sinopse, destacando o vigor físico dos índios tanto na terra como na água. Há, ainda, uma terceira opção, segundo a qual goitacá quer dizer “nômade, errante, aquele que não se fixa em nenhum lugar.” Ver http://dicionarioindigena.blogspot.com.br/ e http://pt.wikipedia.org/wiki/Goitacases. 51

tupinambás mantinham relações diplomáticas (no mais das vezes belicosas) e comerciais. Florestan Fernandes diz que os tupinambás “tinham fronteiras com vários grupos tribais, com os quais viviam continuamente em guerra. Ao norte eram seus vizinhos os Guaitacaz, que ficavam a sete léguas do Cabo de São Tomé.”121 O mesmo autor, valendo-se dos relatos de Jean de Léry, descreveu a maneira como eram realizadas as trocas mercantis entre as tribos, procedimento marcado pela desconfiança mútua e pela expectativa de comportamento recíproco. Os tupinambás não confiavam nos guaitacaz; por conta disso, as trocas ocorriam após um complexo jogo de convites e provocações, uma espécie de “trégua” durante a qual os oponentes dialogavam. “Feita porém a troca, rompe-se a trégua e apenas ultrapassados os limites do lugar fixado para a permuta procura cada qual alcançar o outro a fim de arrebatar-lhe a mercadoria.”122 Os relatos reforçam a ideia de que os goitacazes não eram muito amistosos. Indóceis ou não, fato é que há poucos registros sobre eles. No livro Aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro, José Ribamar Bessa Freire e Márcia Fernanda Malheiros informam que “os autores que escreveram sobre esses índios (goitacás) não tiveram um contato direto e pessoal com eles. Limitaram-se a anotar informações de segunda mão, obtidas com índios tupis ou colonos que os combatiam.”123 Os autores dividem os povos nativos da região fluminense em duas famílias linguísticas: tupi e puri. A família tupi, da qual faziam parte tupinambás (ou tamoios), temiminós (ou maracajás), tupinikins (ou margayas), ararapes (ou ararys) e maromomis (ou miramomins), foi e continua sendo bastante estudada, havendo vasta catalogação e um bom acervo de fontes. A família puri, por outro lado, permanece cercada por suposições às vezes demasiadamente vagas. O pesquisador Aryon Rodrigues vinculou os puris ao tronco Macro-Jê e dividiu a família em vinte e três línguas. Freire e Malheiros afirmam que doze dessas línguas eram faladas no território do Rio de Janeiro, quais sejam: Puri, Coroado, Coropó, Guaru, Pitá, Xumeto, Bacunin, Bocayú, Caxiné, Sacaru, Paraíba e Goitacá (guaitacá, waitaká ou aitacaz), esta última falada “nas planícies e restingas do Norte Fluminense,

Acessos em 13/07/2013. Luís Antônio Pimentel, estudioso de topônimos tupis, divide a palavra goitacá em três: goa (sujeito indeterminado), iatá (que, ou aquele que anda, peregrino) e cá (mato). Afirma, a partir disso, que goitacá quer dizer “que, ou aquele que anda pelo mato, peregrino das selvas.” In: PIMENTEL, Luís Antônio. Topônimos Tupis de Niterói. Niterói: Editora Icaraí, 1988, p. 17. 121 FERNANDES, Florestan. A Organização Social dos Tupinambá. São Paulo: Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia “Hucitec”, 1989, p. 26. 122 Ibidem, p. 86/87. 123 FREIRE, José Ribamar Bessa; MALHEIROS, Márcia Fernanda. Aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009, p. 29. 52

em áreas próximas ao Cabo de São Tomé, no território entre a Lagoa Feia e a boca do rio Paraíba.”124 Assim como faz Rosa Magalhães na sinopse do enredo, os autores dividem os goitacás em grupos, mas, diferentemente da carnavalesca, que fala em três ramificações, Freire e Malheiros subdividem os goitacás em quatro: goitacá-mopi, goitacá-jacoritó, goitacá-guassu e goitacá-mirim. O jornalista e historiador Eduardo Bueno dedica algumas páginas aos waitakás e não poupa adjetivos para reforçar a suposta ferocidade desses índios. Valendo-se dos relatos do Frei Vicente de Salvador, destaca o fato de que tais nativos mais pareciam anfíbios que terrestres, sendo exímios remadores, corredores e, principalmente, nadadores. Segundo os relatos do Frei, os goitacás caçavam tubarões com os próprios braços: primeiro, metiam pedaços de madeira nas bocarras dos animais, segurando-os com força para não serem esmigalhados; depois, com as mandíbulas travadas, enfiavam as mãos livres nas goelas das feras marinhas, a fim de retirar as entranhas. Arrancadas as “barrigadas”, os bichos eram levados para a terra, “não tanto para os comerem como para dos dentes fazerem as pontas de suas flechas, que são peçonhentas e mortíferas.”125 Bueno ainda recorre ao padre Simão de Vasconcelos e afirma que também no solo os goitacás não enfrentavam dificuldades: capturavam veados a pé, tão velozes quando as flechas. Os relatos pintam os índios com as tintas da barbárie: dormiam no chão, feito os cachorros, erguiam choupanas nos pântanos dos crocodilos, “usavam longas cabeleiras, até o meio das costas, e queimavam ervas venenosas, lançando nuvens tóxicas em seus inimigos.”126 Para o extermínio da nação goitacá127 contribuiu sobremaneira a aliança estabelecida entre tupinambás e franceses, de um lado, e temiminós e portugueses, de outro, à época das batalhas que culminaram na destruição da França Antártica e na fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, aos pés dos morros Cara de Cão e Pão de Açúcar, e da Vila de São Lourenço dos Índios, do outro lado da Guanabara – a semente da atual Niterói. Sérgio Buarque de Holanda e Olga Pantaleão se debruçaram sobre o período e concluiram que

124 Ibidem, p. 15. 125 BUENO, Eduardo. Capitães do Brasil. A saga dos primeiros colonizadores. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1999, p. 113. 126 Ibidem, p. 114. 127 Sobre o passado de Campos, recomenda-se, ainda, a consulta da obra A Terra Goytacá, de Alberto Lamego. Trata-se de um gigantesco levantamento historiográfico sobre a formação da cidade de Campos dos Goytacazes, a partir da fundação da Aldeia de Santo Antônio dos Guarulhos. Os “tempos canibalescos”, porém, não são o enfoque da pesquisa. 53

a animosidade dos Tupinambás da Guanabara – os tamoios dos cronistas portugueses – parece ter cedido passo ao proveito que de seu entendimento com esses europeus lhes poderia resultar para suas lutas constantes com os portugueses e, ainda mais, com as tribos adversas: os Tupiniquins, os Goitacás e, principalmente, os Maracajás, estabelecidos na própria baía ou em suas vizinhanças.128

A folclorista de Campos dos Goytacazes Ana Augusta, mãe da carnavalesca Maria Augusta Rodrigues, também escreveu sobre os índios da planície campista e lamentou o cruel extermínio empreendido pelos colonizadores:

A planície goitacá foi colonizada por portugueses. Foi colonizada à revelia, contra e combatendo os índios. Então, eles não poderiam deixar de resistir. O que os brancos fizeram com os índios nessa região foi uma coisa inominável. (...) Os índios eram amáveis, eram amistosos, mas os brancos queriam a terra. Não ficou vestígio de cultura indígena porque eles foram completamente exterminados. Esse episódio da varíola é típico. Tinha muito goitacá aldeado com os jesuítas, dizem que eram dois mil, e foram totalmente dizimados com panos de varíola. Jogaram no meio do aldeamento dos índios os trapos dos variolentos. Não ficou um. O goitacá foi dizimado várias vezes, sendo que esse episódio da varíola, para mim, é um dos mais cruéis de nossa história.129

José Ribamar Bessa Freire e Márcia Fernanda Malheiros, ao tratar do esfacelamento da nação indígena, lamentam o fato de que a matança também passou uma borracha sobre o idioma nativo, não havendo registros escritos sobre a língua goitacá.130 O que restaram, na visão dos autores, foram os retalhos narrativos redigidos por estrangeiros, cujo conteúdo se coaduna com o enunciado por Eduardo Bueno:

os goitacás eram guerreiros robustos e altos, ou, como escreve Simão de Vasconcelos, “gente agigantada, membruda e forçosa.” Manejavam o arco e a flecha com uma agilidade extraordinária. Destacavam-se pela habilidade em nadar e pela velocidade em correr. Sua pele tinha uma cor um pouco mais clara do que a dos seus vizinhos tupinambás. Usavam cabelos compridos, descendo pelas costas, mas raspavam a parte da frente da cabeça. Viviam em pequenas cabanas de palha. Praticavam a agricultura de coivara, plantavam milho e vários tipos de tubérculos, mas não cultivavam a mandioca, como os

128 HOLANDA, Sérgio Buarque de; PANTALEÃO, Olga. Franceses, holandeses e ingleses no Brasil quinhentista. In: HOLANDA, S. B. (direção). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo I – A Época Colonial. V. 1. Do descobrimento à expansão territorial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 170. 129 Relato disponível em: http://www.jangadabrasil.org/temas/2011/08/09/as-ideias-de-ana-augusta/. Acesso em 23/11/2013. 130 FREIRE, J. R. B.; MALHEIROS, M. F. Obra citada, p. 29. 54

tupinambás. Enterravam seus mortos em igaçabas lisas, ovoides e cinzentas, sem ornamentos.131

Observado minimamente o histórico da nação goitacá, é possível mergulhar com mais fôlego na narrativa desenvolvida por Rosa Magalhães na Passarela do Samba. Os autores cujos relatos mais dialogam com as criações da artista são André Thevet e Jean de Léry. O frade francês André Thevet132 (que tinha “fama de ser um pouco ingênuo e demasiado ‘imaginativo’”133), depois de descrever a bananeira como “a mais admiravel das arvores até hoje vistas”134, fala dos jacarés que aterrorizavam os índios brasileiros, um símbolo de ferocidade associado aos goitacás (como visto no relato do padre Simão de Vasconcelos recortado por Eduardo Bueno), que apareceu duplicado na segunda alegoria do desfile:

Direi, de passagem, que, além das fructas encontradas nas margens das lagoas, vi um jacaré, do tamanho de um vitello, proveniente dos brejos proximos, nos quaes havia sido morto. Como os lagartos, de que já falei, os indios também comem da carne do jacaré. Os nativos dão-lhe o nome de jacareaçú e são maiores do que os do Nilo. Affirmam os indigenas que, em uma lagoa de cinco leguas de circumferencia, do lado de Pernomeri e da região dos Cannibaes, distante dez graus do equador, há certos crocodilos, maiores do que bois, que lançam um vapor mortal pela garganta. Quem deles se aproxima arrisca-se a morrer – assim o ouviram os indios de seus avós.135

O mesmo autor parecia ora enxergar os índios de maneira idealizada e eurocêntrica, comparando-os aos gregos clássicos, modelo de civilidade (“Maneiras que me fazem lembrar o louvavel costume dos governadores de Thebas, antiga cidade da Grecia, os quaes, quando deliberavam sobre assumptos da republica, permaneciam sempre sentados em terra.”136), ora – devido aos rituais da antropofagia – como selvagens bárbaros “cuja alegria augmenta à proporção que se aceleram os preparativos

131 Ibidem, p. 29. 132 Curiosamente, Thevet iria se tornar capelão da rainha Catarina de Médicis, personagem central do enredo elaborado por Rosa Magalhães para o carnaval de 1994, Catarina de Médicis na corte dos Tupinambôs e Tabajères. Ver: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII. Antologia de textos. 1591 – 1808. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2012, p. 108. 133 FRANÇA, J. M. C. Obra citada, p. 107. 134 THEVET, A. Obra citada, p. 201. 135 Ibidem, p. 203. 136 Ibidem, p. 226. 55

funebres.”137 Ainda no campo das dubiedades, enxergava beleza (os corpos eram bem feitos e os membros bem proporcionados) e feiúra (os olhos eram mal feitos, negros e vesgos) na aparência dos nativos, conforme observa Alcmeno Bastos:

Além da arbitrariedade estética de julgar feios olhos negros, por serem negros, o complemento da observação dá-nos a certeza de que o francês faz uma avaliação na qual se misturam o físico e o psicológico, pois diz que tal “característica confere ao seu olhar um aspecto que lembra o das feras selvagens” (THEVET, 1978, p. 103).138

A associação dos índios às feras ganhava maior relevo quando da descrição das práticas antropofágicas, especialmente daquelas relacionadas aos nativos que viviam longe, no interior do território (os tapuias), marca de um etnocentrismo que existia entre as próprias comunidades silvícolas (“os cannibaes e indigenas do littoral do rio do Maranhão são ainda mais crueis em relação aos espanhoes, excedendo os da Guanabara em atrocidade, quando se entregam a essas mesmas cerimonias”139, escreveu). Na visão do frade, fazendo coro à longa tradição de demonizar o leste140, “a vingança mais injuriosa e cruel, usada pelos selvagens, consiste em devorar o inimigo. (...) Os antigos turcos, mouros e arabes possuiam costumes quase identicos (...), usando armas muito semelhantes às dos selvagens americanos.”141 É interessante perceber que, apesar de mapear alguns traços culturais da prática de comer gente, conforme expõe Alcmeno Bastos, não há, no discurso de Thevet, uma tentativa vultuosa de relativizar a antropofagia, diferentemente do que faria Michel de Montaigne no ensaio Dos canibais, onde provoca: “Não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra.”142 No texto-base de seu enredo, ainda no trecho que trata dos “primeiros tempos”, Rosa Magalhães expressa a mesma ideia central defendida por Staden e Thevet, uma vez que afirma: “a antropofagia era geral entre os indígenas de várias nações, e significava a realização de vingança contra seus inimigos.”143 Nesse sentido, o texto simplifica a ritualística e reduz a prática de comer carne humana ao conceito de

137 Ibidem, p. 244. 138 BASTOS, Alcmeno. O índio antes do indianismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011, p. 27. 139 THEVET, A. Obra citada, p. 245. 140 Vide a tese defendida em Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente, de Edward Said. 141 THEVET, A. Obra citada, p. 233. 142 MONTAIGNE, Michel de. Dos canibais. In: Os Pensadores – Montaigne. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000, p. 195. 143 MAGALHÃES, R. Obra citada. 56

vingança. De acordo com os ensinamentos de Maria Cândida Ferreira de Almeida, tal visão pode ser associada ao advento do termo canibalismo, de caráter eminentemente negativo/reprovável. Diz a autora que a palavra canibal tem sua etimologia em Cristóvão Colombo144: “a história do vocábulo canibal remonta à descoberta da América e aos diários de Cristóvão Colombo, como um fruto do primeiro olhar sobre o Novo Mundo.”145 O navegador associou os índios do continente recém-descoberto aos míticos ciclopes e aos cinocéfalos (homens com focinho de cachorro), donde derivou a palavra canibal. A pesquisadora explica que Colombo foi um leitor voraz dos bestiários medievais, livros muito populares no contexto das Grandes Navegações, dado o caráter maravilhoso das narrativas. Unir as visões extraídas das páginas às práticas empiricamente observáveis na América não foi complicado:

A associação dos animais maravilhosos, descritos por Ailly e por Marco Polo, aos antropófagos sul-americanos se deu logo em sua primeira viagem, quando Colombo recolheu a palavra cariba entre os pacíficos arawak, índios de Cuba, que assim designavam seus inimigos. Vinda da boca dos rivais, a palavra assume um significado pejorativo por conotar ferocidade e barbárie extremas. Mas entre os próprios cariba, índios caribis das pequenas Antilhas, ela significava “em desvantagem” e era assim que eles se designavam.146

Dados os registros do diário de Colombo, teria ocorrido precisamente no dia 17 de dezembro de 1492 a primeira aparição do termo canibal sob a pena do navegador. Maria Cândida Ferreira de Almeida interpreta a criação do neologismo (em substituição ao termo antropófago) como produto da “necessidade de se nomear uma nova situação, diversa da anterior, com um termo próprio que reflita sua particularidade.”147 A nomenclatura, nesse sentido, expressava, mesmo que indiretamente, a surpresa do colonizador e a necessidade de enquadrar os povos americanos em uma nova categoria. É por isso que a pesquisadora ressalta: “O surgimento da palavra canibal, que significa não só aquele que devora a carne humana, mas especificamente o habitante do Novo

144 É importante destacar que Colombo é o protagonista do enredo desenvolvido por Rosa Magalhães para o carnaval gresilense de 1992, intitulado Não existe pecado abaixo do Equador, que festejava os 500 anos do descobrimento da América. Na justificativa do enredo, encontrada no Centro de Memória do Carnaval - LIESA, está escrito: “A Imperatriz Leopoldinense traz um enredo histórico e ao mesmo tempo fantástico. Histórico porque se reporta à época do descobrimento da América há 500 anos atrás. Fantástico porque, de acordo com a visão do século XV, seres estranhos tentaram impedir Colombo de chegar ao seu destino, tal qual Ulisses. Sereias, monstros caudalosos, outros com cabeça de cachorro, pés virados para trás fazem parte dos perigos pelos quais Colombo passou.” 145 ALMEIDA, M. C. F. Obra citada, p. 39. 146 Ibidem, p. 41. 147 Ibidem, p. 42. 57

Mundo, vai preencher no imaginário renascentista e barroco a falta de um conceito.”148 Complementando a análise, informa que, com o passar do tempo, o termo que originalmente se referia aos índios antropófagos das terras americanas foi assimilado “ao conceito de antropófago em geral, e, em outros casos, na biologia por exemplo, passou a ser usado para se referir àqueles que comem da mesma espécie.”149 Resta a ideia de que na raiz semântica da palavra canibal circula a seiva saturada do eurocentrismo representado pela esquadra de Colombo, que facilmente associava aos canibais (os caribes insulares, em oposição aos “pacíficos antilhanos”150) os adjetivos incivilizados, bárbaros, ferozes, cruéis, entre outros – todos, é claro, inchados de sentido negativo.151 Não é difícil entender, consequentemente, o porquê de a maioria dos viajantes enxergar nos motivos da “comilança” tão somente a vingança e a vilania – estava a ser construído um imaginário exótico, discurso pontuado de estranhamento e terror. Contra essa perspectiva unilateral, Maria Cândida Ferreira de Almeida ensina que existem pelo menos dois tipos de canibalismo: por contingência e ritual. O primeiro tipo é aquele praticado com fins marcadamente nutritivos, ou seja: o sujeito consome carne humana porque precisa sobreviver, sendo compelido a isso por alguma circunstância adversa, não necessariamente pela vontade de devorar um semelhante. O segundo tipo, “mais rico e interessante”152, é aquele ligado à cosmologia indígena e às crenças metafísicas das tribos, estando “submetido às leis morais de um determinado grupo; deixar de realizá-lo, no plano do ser, não afeta diretamente a existência material, mas sim aquilo em que o grupo acredita (...)”153. Segundo a autora, essa variante do fenômeno da antropofagia, devido à forte carga subjetiva e transcendental, ainda não foi bem

148 Ibidem, p. 42. 149 Ibidem, p. 42. 150 CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil – História, Direitos e Cidadania. São Paulo: Editora Claro Enigma, 2012, p. 37. 151 A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha também faz um bom estudo lexical dos termos canibalismo e antropofagia. Para ela, a assimilação que o Renascimento fez das imagens dos cinocéfalos está expressa em Rabelais, que, no glossário do Quarto livro de Pantagruel, fala em canibais africanos, popularizando a imagem dos homens com cabeça de cães. Segundo a pesquisadora, a ideia de selvagens comedores de carne humana é antiga e compunha o imaginário medieval, figurando enquanto “fantasma”: acreditava-se na existência deles, mas ninguém sabia aonde viviam. Depois de Colombo, foi possível situar os “fantasmas” no mapa (a autora menciona o mapa de Sebastian Munster, de 1540, que “coloca laconicamente, no espaço ainda largamente ignoto entre a boca do Amazonas e a boca do Rio da Prata, a palavra Canibali, e a ilustra com um feixe de galhos de onde pendem uma cabeça e uma perna.”), “assimilando caribes e canibais numa sinonímia que irá perdurar, no século XVIII, até a Enciclopédia.” In: CUNHA, M. C. Obra citada, p. 36/37. 152 ALMEIDA, M. C. F. Obra citada, p. 49. 153 Ibidem, p. 46. 58

compreendida pelos estudiosos; além disso, “não se elaborou extensa pesquisa sobre a sua repercussão na produção de representações iconográficas e ficcionais brasileiras.”154 Tal carência teórica tem dificultado a compreensão plural dos diferentes ritos antropofágicos, contribuindo para a permanência das visões etnocêntricas. Em diálogo com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, conclui que, mesmo quando revestido de vingança, “ao capturar e devorar o inimigo, o guerreiro teria acesso ‘se tornar deus’, de ‘tornar-se outro’”.155 Isso explica a razão pela qual alguns antropólogos entendem que a devoração do bispo Sardinha pode não passar de um mito: os índios dificilmente comeriam o que não conheciam, ou, em termos distintos, o que não fazia parte do sistema simbólico da sociedade deles – no caso, um homem branco não integrado à tribo. Não é exagerado dizer que a antropofagia era um eixo central das práticas sociais tupis e expressava as regras de coesão social das comunidades. Nas palavras de Manuela Carneiro da Cunha, “morte ritual e antropofagia são o nexo das sociedades tupi.”156 Ronald Raminelli igualmente defende a necessidade de se pensar o fenômeno antropofágico sob diferentes enfoques. Na visão dele, a vinculação da ingestão de carne humana à violência, extremamente comum, nem sempre é válida. O autor explica que, sim, a vingança pode ser elencada como um dos motivos do canibalismo, ainda que dissociada da pura e simples vilania e visando à renovação do ciclo vital: “na cerimônia, a memória da vingança perpetuava-se criando elos entre passado e futuro, sendo a única tradição transmitida para a posteridade. A obsessão da desforra permanecia como vínculo entre as gerações.”157 Entretanto, outros inúmeros motivos podiam levar uma determinada tribo a “comer gente”, como o amor (não, logicamente, o conceito de amor romântico com o qual estamos familiarizados). Entre os tapuias (genérica denominação tupi para as etnias que não se restringiam ao litoral brasileiro), era comum que mães ingerissem a carne dos filhos mortos, o que, simbolicamente, pode ser interpretado como um retorno do fruto ao interior da árvore – novamente, a “renovação do ciclo da vida.” O autor, que pesquisou a representação dos canibais nas pinturas de Albert

154 Ibidem, p. 49. 155 Ibidem, p. 45. 156 CUNHA, M. C. Obra citada, p. 39. 157 RAMINELLI, Ronald. Canibalismo em nome do amor. In: Revista Nossa História, Ano 2, nº. 17, março de 2005. Rio de Janeiro: Editora Vera Cruz, p. 27. 59

Eckhout158, diz que logo após o nascimento de uma criança tapuia o cordão umbilical que a ligava ao útero materno era cortado e cozinhado “para que a mãe o comesse juntamente com o pelico (placenta). Caso uma mulher abortasse, imediatamente o feto era devorado, pois alegavam que não poderiam dar-lhe melhor túmulo.” Alcmeno Bastos destaca algo semelhante, afirmando que o historiador Simão de Vasconcelos escreveu que para um indígena brasileiro não havia melhor sepultura que o estômago de outrem – logo, os entes queridos que faleciam deveriam ser devorados e incorporados às entranhas dos vivos, sendo isso “o sinal de maior amor que podem ostentar nesta vida aos que se ausentam para a outra.”159 O antropólogo suíço Alfred Métraux estudou a antropofagia ritual dos tupinambás enquanto parte da religião dos indígenas e defendeu que nas narrativas de Thevet há uma considerável preocupação com o caráter cerimonial dos rituais, uma vez que o viajante havia percebido que as práticas ao redor dos banquetes não eram aleatórias ou acidentais, diferentemente do que dera a entender Hans Staden, cujos relatos, mais episódicos e genéricos, pareciam dedicar o grosso da preocupação ao tom sensacionalista160. Coube a Thevet primeiramente enxergar a estrutura dramática que envolvia os ritos antropofágicos: cada membro da tribo desempenhava um determinado papel, a sequência de ações não podia ser alterada, a comilança não era um festim desgovernado - havia regras, prioridades, impedimentos. Era realizada, inclusive, uma cerimônia de renominação: o executor deveria escolher um novo nome, representando a assimilação ritual do falecido e uma espécie de renascimento. Para Thevet, a escolha se

158 A maior referência da missão artística holandesa financiada por Maurício de Nassau, tema do enredo desenvolvido por Rosa Magalhães em 1999. 159 BASTOS, A. Obra citada, p. 44. 160 Sem dúvidas, o “sensacionalismo” de Staden deu certo: Alcmeno Bastos afirma que a narrativa do mercenário é a que mais se popularizou e conquistou leitores e traduções ao redor do globo. Bastos, diferentemente de Métraux, encara Staden com olhos extremamente amistosos e consegue enxergar nas linhas do cronista a preocupação com o caráter cerimonial dos rituais, conforme se depreende da seguinte defesa: “Hans Staden ocupa uma posição singularíssima no quadro da literatura de informação sobre o Brasil dos séculos XVI e XVII. Em primeiro lugar, pelo fato de ter sido o único a vivenciar, numa posição de completo desfavorecimento, a cultura do indígena brasileiro, pois foi prisioneiro e esteve ameaçado de morrer por mais de uma vez, escapando por muito pouco. Os demais cronistas pertenciam aos círculos do poder e estiveram isentos dos riscos que Staden correu. Em segundo lugar, Staden foi o primeiro europeu a publicar um texto sobre a terra e o indígena brasileiro com tão copiosas informações obtidas in loco, resultado, portanto, de experiência direta. Em terceiro lugar, o relato de Staden é praticamente isento de qualquer preconceito com relação ao indígena, até simpático, a despeito de não lhe faltarem motivos para pintar de seus “anfitriões” um retrato negativo. (...) O primeiro dos autores de que teria se valido Gonçalves Dias é precisamente Staden, com explícita menção do capítulo 28, no qual o alemão fala das ‘cerimônias’ de execução dos cativos.” In: BASTOS, A. Hans Staden e o Modernismo Brasileiro: a Antropofagia em questão. In: BASTOS, A. Estudos reunidos de Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Caetés, 2012, p. 169/170. 60

dava antes da pancada fatal, em presença do prisioneiro. Nesse ponto, afirma Métraux, “Thevet encontra-se em contradição com todas as demais fontes, que acordam em situar a cerimônia da renominação após o massacre ritual, único momento em que o mesmo teria significação plausível.”161 A despeito da incipiente preocupação culturalista, fato é que nos relatos de Thevet também são encontradas as mais estereotipadas visões para com os canibais, justamente aquelas que rodariam o mundo e seriam popularizadas em imagens de almanaques e livros de exotismos, peças teatrais e, contemporaneamente, no cinema hollywoodiano (vide a maneira como a antropofagia é representada em séries como Indiana Jones e Piratas do Caribe, campeãs de bilheteria que não poupam tempero no quesito extravagância). O seguinte trecho redigido pelo viajante francês, que literalmente espeta os colonizadores portugueses, não deixa dúvidas:

É verdade que as entranhas são commummente comidas pelas mulheres; quanto à cabeça, espetam-na os selvagens na ponta de uma vara, collocada na oca, como sinal de triumpho e victoria (especialmente mostram os indios prazer em espetar as dos portugueses). (...) A historia não fala de nenhum povo, por mais barbaro, que use de tão excessiva ferocidade.162

Rosa Magalhães utilizou tais visões de canibais, que indiscutivelmente estão cristalizadas no imaginário coletivo (afinal, quem nunca viu a imagem de um índio com ossos enrolados nos cabelos e um crânio espetado em uma lança?), para compor a segunda alegoria do desfile, na qual alguns artistas circenses brincavam com ossadas humanas, enrolados em cipós, entre centenas de folhas verdes manchadas de vermelho, numa possível referência (sutil) ao sangue dos rituais antropofágicos. A ferocidade dos índios era representada pela profusão de dentes que saltavam das fantasias das alas do setor que antecedia a alegoria e dos destaques do carro, em meio às cores vermelha, preta e amarela. O farto uso da palha sem qualquer pigmentação ou brilho, como nas saias das baianinhas, conferia às vestes um caráter rústico que também pode ser associado à crueza dos relatos de Thevet. O segundo setor daria seguimento à temática, em variações de azuis, vermelhos e laranjas, mantendo as dentições à mostra e sintetizando a violência nas esculturas dos tubarões.

161 MÉTRAUX, Alfred. A religião dos tupinambás e suas relações com as demais tribos tupi-guaranis. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979, p. 121. 162 THEVET, A. Obra citada, p. 245. 61

Também se viam, na segunda alegoria, referências aos relatos do pastor calvinista Jean de Léry. Considerado o “Montaigne dos antigos viajantes”, como destaca Jean Marcel Carvalho França, o genebrino Léry, em comparação a Thevet, foi mais simpático para com os índios brasileiros, chegando-se a dizer que Léry “colaborou em muito para difundir no Velho Mundo aquela imagem positiva do indígena, tão cara a Montaigne, a Ronsard e a tantos outros.”163 Em que consistia, porém, tal “imagem positiva”? No que tange aos rituais de antropofagia, nota-se, nos textos de Léry, preocupação perspectivista semelhante àquela demonstrada por Montaigne em Dos Canibais – não à toa Léry redigiu que a obra de Thevet “se apresenta prenhe de mentiras.”164 De acordo com Maria Cândida Ferreira de Almeida,

Jean de Léry levou 20 anos entre a viagem ao Novo Mundo e o momento em que escreveu sua história, já na Velha Europa. Em sua narrativa, guardou os traços essenciais, fornecendo o que muitos autores consideram uma informação etnográfica exata e minuciosa, mas, diferentemente de seus conterrâneos, Léry enriqueceu seu relato com interpretações sobre o aspecto simbólico do canibalismo. Os diversos cronistas descrevem, com pequenas variações, o rito sacrificial a que eram submetidos os inimigos dos tupinambás. A descrição de Jean de Léry, a mais prestigiada, é entremeada de análises comparativas e de reflexões sobre a cultura do povo tupinambá.165

O “senso etnográfico primitivo” confere ao trabalho de Léry um tom diferenciado, mais preocupado em entender a antropofagia enquanto ritual complexo do que em descrever minuciosamente uma série de pormenores para, no fim, resumir a prática a uma estranha sequência de obrigações que desembocaria numa refeição a ser descrita com tintas carregadas, ao gosto dos leitores de então, e motivada, tão somente, pela vingança166 167. O viajante percebeu, por exemplo, que o executor (que não comia

163 FRANÇA, J. M. C. Obra citada, p. 110. 164 Ibidem, p. 109. 165 ALMEIDA, M. C. F. Obra citada, p. 124. 166 Nas palavras de Adone Agnolin, “o protestante Léry, polemizando com a obra de Thevet, tenta, ao invés, uma diferente aproximação da indagação do fenômeno. Através de sua formação humanística, tenta reler esta prática ritual indígena com a atenção paralelamente fixada às crueldades que se cumpriam na sua velha Europa, lacerada pelas ‘guerras de religião’. (...) E se a vingança é interpretada por Léry em função do auto-reconhecimento do grupo, isso não acontecia, segundo ele, na França, onde se perpetravam, dentro da mesma nação, massacres indiscriminados. In: AGNOLIN, A. Obra citada, p. 141. 167 A sofisticação interpretativa de Léry pode estar ligada ao fato de que o pastor calvinista viveu na França Antártica por mais de um ano, diferentemente de seu desafeto Thevet, que passou apenas dez semanas à beira da Guanabara, no verão de 1555-1556. O maior tempo de “emersão no ponto de vista nativo” (para usar de uma categoria da moderna etnografia) de Léry pode justificar o detalhamento e o 62

da carne moqueada) utilizava de um instrumento cortante, feito de dentes de animal, para fazer cortes pelo próprio corpo, marcando na pele a participação no rito. O número de incisões era proporcional ao número de sacrifícios realizados; quanto mais cicatrizes, maior o prestígio entre os membros da tribo – o ritual estava enredado, portanto, em uma teia de hierarquizações. Ferreira de Almeida associa a prática à história da tatuagem, explicando que, a fim de destacar as marcas sobre a pele, os guerreiros “esfregam-nas com pó negro que as torna indeléveis.”168 O dado serve para ilustrar a percepção de que Léry filtrava as informações a serem analisadas, “empobrecendo” o conjunto de dados disponíveis – o oposto do que fizera Thevet. Por outro lado, extraiu dos dados selecionados maior potencial reflexivo, enriquecendo as interpretações sobre os usos simbólicos da antropofagia.169 O mais controverso ponto da obra de Léry (e que está diretamente ligado a algumas das imagens utilizadas pela carnavalesca na alegoria 02) é a demonização das cerimônias religiosas. Ronaldo Vainfas embarca no mesmo batel daqueles que exaltam o olhar multiculturalista de Léry, mas não deixa de problematizar a visão demonizadora do cronista:

festejado por inúmeros historiadores como especialmente sensível à cultura do “outro” (o que não deixa de ser verdadeiro em numerosos aspectos), Jean de Léry foi, sem dúvida, o cronista que mais demonizou a cerimônia tupi dentre os primeiros que a descreveram. Basta dizer que considerou “possuídas pelo diabo” (a exemplo de Nóbrega) as mulheres tocadas pelos espíritos dos maracás e qualificou a própria cerimônia como sabá.170

Se por um lado é possível enxergar nessa postura de Léry uma tentativa de eximir dos índios a culpa pela prática da antropofagia (eles organizariam os rituais e comeriam carne humana porque, em última instância, eram atormentados por

caráter menos fantasioso dos relatos. Ver BANDEIRA, Julio. Canibais no Paraíso. A França Antártica e o Imaginário Europeu Quinhentista. Rio de Janeiro: Mar de Ideias, 2006, p. 109. 168 LÉRY, J. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980, p. 200. 169 Agnolin complementa o exposto dizendo: “É assim que neste último autor (Léry), o canibalismo configura-se como um comer cozido que afasta a sombra do barbárico (a homofagia), uma alegorização da prática (alegoria da crueldade, da usura, da falta de caridade, que faz de Léry, adepto de uma leitura retórica do evangelho, um ‘tropista’), uma metonímia universal do dogma calvinista da Eucaristia. É justamente enriquecendo a interpretação e o uso simbólico da antropofagia – através desta operação interpretativa/simbólica – que, mesmo não aceitável, a prática antropofágica se torna, pelo menos, compreensível.” In: AGNOLIN, A. Obra citada, p. 152. 170 VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 58. 63

demônios171), por outro viés é indiscutível o fato de que a demonologia excedia os limites autorais e exercia verdadeiro fascínio sobre a mentalidade da época, representando um grande resquício do teocentrismo medieval. Glória Kok entende que o colonizador adaptou ao seu imaginário cristão os seres sobrenaturais que povoavam a cosmogonia indígena; nesse sentido, espíritos e divindades como Anhan e Jurupari, durante o processo de catequização, “sofreram o que o historiador Jacques Le Goff classificou de desnaturação, querendo dizer que os temas folclóricos foram substituídos pelos cristãos, mudando radicalmente de significado.”172 Aos poucos, pipocavam relatos de espíritos maléficos devoradores de defuntos, que viviam a rondar as sepulturas, em busca de carne morta. Tais espíritos eram informes e surgiam em qualquer parte, sendo o fogo um poderoso amuleto para a proteção da tribo. Além dessa categoria de seres maléficos, havia animais e criaturas corpóreas que supostamente “traziam mensagens do mundo dos mortos”173, como certos pássaros de canto melancólico e aparência terrível. Nas palavras do cronista,

Em verdade penso que esses selvagens pouco diferem dos brutos e que no mundo não existem homens mais afastados de quaisquer ideias religiosas. Entretanto, ainda alguma luz atravessa as trevas de sua ignorância. Acreditam não só na imortalidade, da alma, mas ainda que, depois da morte, as que viveram dentro das normas consideradas certas, que são as de matarem e comerem muitos inimigos, vão para além das altas montanhas dançar em lindos jardins com as almas de seus avós. Ao contrário as almas dos covardes vão ter com Ainhãn, nome do diabo, que as atormenta sem cessar. Cumpre notar que essa pobre gente é afligida durante a vida por esse espírito maligno a que também chamam Kaagerre. Muitas vezes, como pude presenciar, sentindo-se atormentados, exclamavam subitamente enraivecidos: "Defendei-nos de Ainhan que nos espanca". E afirmavam que o viam realmente ou sob a forma de um quadrúpede, ou de uma ave ou de qualquer outra estranha figura. Admiravam-se muito quando lhes dizíamos que não éramos atormentados pelo espírito maligno e que isso

171 De acordo com Adone Agnolin, “Léry, ao fazer uma leitura mais ampla do canibalismo, ressalta-o não como um gosto aberrante e tendo um fim em si mesmo, mas com o objetivo principal de ‘causar temor aos vivos (inimigos)’. Ele discerne, na prática ritual antropofágica, os germes do que Alfred Métraux definirá como ‘um drama ritual de profunda importância religiosa e social’, no qual a semiliberdade do prisioneiro, onde se fixa particularmente a atenção de Léry, ‘se explicava com a sua nova condição: temporariamente, pelo menos, ele tinha deixado de ser um inimigo para tornar-se um membro da comunidade da aldeia.’ De qualquer forma aquela prática ritual se impunha aos próprios índios enquanto eram os ‘espíritos’ que exigiam o sacrifício das vítimas para vingar a morte de alguém. A única verdadeira motivação das expedições guerreiras é, como ressalta Léry, a vingança do sangue que não pode ser completa sem que o inimigo seja devorado.” In: AGNOLIN, A. Obra citada, p. 236/237. Grifo do autor. 172 KOK, Glória. Os vivos e os mortos na América portuguesa – Da antropofagia à água do batismo. São Paulo: Editora da Unicamp, 2001, p. 46. 173 Ibidem, p. 50. 64

devíamos ao Deus de quem tanto lhes falávamos, pois, sendo muito mais forte do que Ainhan, lhe proibia fazer-nos mal. E acontecia que, sentindo-se amedrontados, prometiam crer em Deus. Mas passado o perigo zombavam do Santo, como se diz no provérbio, e não se recordavam mais de suas promessas. No entanto tal temor ao espírito maligno não era irrisório. Pude vê-los mais de uma vez apreensivos, batendo com as mãos nas coxas, aflitos e em suores.174

Coube ao editor reformista Theodore De Bry popularizar a imagem de tais espíritos graças às gravuras elaboradas para os relatos de Léry publicados na Viagem à Terra do Brasil. Julio Bandeira explica que a mais famosa das ilustrações, aquele que mostra o conflito entre canibais e demônios, faz parte da Americae Tertia Pars, memorabile provinciae Brasiliae, “o terceiro dos seis volumes, ou partes, das Grandes Viagens, dedicado ao Brasil e aos canibais.”175 Na imagem, são vistos peixes alados, pássaros de aparência grotesca (que lembram alguns demônios de Hieronymus Bosch) e criaturas de corpos peludos, asas de morcegos e chifres, espécies de gárgulas em vermelho e azul, com pintas amarelas por todo o corpo. Tais criaturas espancam alguns índios, enquanto outros tentam se defender, erguendo os braços aos céus em atitude desesperada. Curiosamente, conforme explica Julio Bandeira, Léry teria vetado as imagens dos demônios, que só foram acrescentadas num segundo momento:

A água-forte e o talho-doce permitiram a riqueza de detalhes que fez das Grandes Viagens o grande best-seller sobre o Novo Mundo, logo traduzido do latim para o alemão. Com os recursos técnicos da gravura em metal, houve também acréscimos e liberdades ausentes das edições originais – como os monstruosos peixes-voadores do tamanho de uma nau, dos quais os demônios andróginos tomaram emprestadas as suas asas – fantasias que o sóbrio Léry não permitira nas xilogravuras. Este suplício dos tupinambás, em meio à atmosfera carregada de heresias, misticismos e erotismos do imaginário europeu quinhentista, fora acrescentado para ilustrar o capítulo XVI, Religião dos selvagens da América; (...); ignorância de Deus, do livro de Léry, no qual é mencionado o maligno Ainhã, que espera a alma dos covardes.176

O dado mais extraordinário da figura é que nela aparece o próprio Léry, em primeiro plano, “com seus trajes negros e o rosto corado, apontando para o céu, numa discussão exaltada com o único canibal livre desses diabos alados (...)”177 Junto aos

174 LÉRY, J. Obra citada, p. 164/165. 175 BANDEIRA, J. A imagem da capa. In: Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 5, nº 49, outubro de 2009. Rio de Janeiro: Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional, p. 04. 176Ibidem, p. 04. 177 Ibidem, p. 04. 65

interlocutores há um terceiro homem, de costas, vestindo roupas coloridas - o que, para Julio Bandeira, significa que se trata de um francês católico. No círculo formado pelos três personagens o autor resumia os conflitos doutrinários (envolvendo a eucaristia, “a maneira correta de se comer o corpo de Deus na terra dos canibais”178) que contribuiram para a expulsão dos protestantes e o fracasso da França Antártica. Nesse sentido, o embate desenhado por De Bry pode ser considerado um prelúdio do Massacre de São Bartolomeu, de 1572, que despertaria o horror de Léry e Montaigne, gerando a célebre comparação com os selvagens brasileiros: os franceses demonstrariam ser capazes de atrocidades mais primitivas que aquelas supostamente cometidas pelos índios d’além mar.179 180 O simples fato de Léry aparecer dialogando com um canibal expressa a ideia de que ambos estavam em um mesmo plano argumentativo, algo endossável graças ao texto do viajante, que, em certo momento, apresenta um diálogo filosófico entre um branco e um selvagem, demonstrando “a inferioridade do espírito de ganho europeu diante da generosidade superior do selvagem num continente ainda livre do espírito comercial.”181 A posição de Léry, que pode ser comparada às futuras elucubrações de Montaigne, Rousseau e Diderot, prova que o pastor calvinista realmente enxergava nos índios marcas de superioridade existencial: eles tinham muito a ensinar aos europeus, como faz o velho tupinambá ao desconstruir o discurso a favor do acúmulo de riquezas e da perpetuação de heranças defendido pelo interlocutor branco:

- Na verdade – continuou o velho, que, como verás, não era nenhum tolo - , agora vejo que vós outros mairs (franceses) sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados.182

178 Ibidem, p. 04. 179 Léry escreveu, emblematicamente: “Não abominemos, portanto demasiado a crueldade dos selvagens antropófagos. Existem entre nós criaturas tão abomináveis, se não mais, e mais detestáveis do que aquelas que só investem contra nações inimigas de que têm vingança a tomar. Não é preciso ir à América, nem mesmo sair de nosso país, para ver coisas tão monstruosas.” In: LÉRY, J. Obra citada, p. 162. 180 Manuela Carneiro da Cunha acrescenta que a sexualidade dos franceses também seria comparada à dos índios brasileiros, levando Jean de Léry a afirmar que “em matéria de lascívia, os europeus são piores que os brasileiros.” In: CUNHA, M. C. Obra citada, p. 47. 181 BANDEIRA, J. Canibais no Paraíso. A França Antártica e o Imaginário Europeu Quinhentista, p. 134. 182 Ibidem, p. 134. 66

Rosa Magalhães, ainda que nada tenha relatado sobre isso nas justificativas do Livro Abre-Alas, certamente consultou os textos de Léry e as gravuras de De Bry, uma vez que podem ser vistas, na segunda alegoria do desfile, reproduções quase fiéis das criaturas demoníacas observáveis na ilustração analisada por Julio Bandeira. Das folhagens pontiagudas, entre as composições fantasiadas de goitacás, saltavam os demônios desenhados pelo gravador belga, sob a forma de esculturas tridimensionais que inclusive respeitavam o colorido original. Trata-se, é claro, de um pertinente diálogo: ao invés de criar novos corpos e novas caras para as estranhas criaturas, a carnavalesca preferiu a reprodução de imagens pré-existentes, plenamente integradas à temática do enredo e, em específico, daquele setor. Com relação aos imensos crocodilos que ajudavam a compor a cenografia do carro alegórico, Léry, a exemplo de Thevet, também descreveu os animais brasileiros, dentre eles os jacarés. O viajante não demonstra maiores surpresas ao narrar que os selvagens consumiam a carne dos répteis: insere-os na lista dos animais comestíveis, entre lebres, tatus (ambos considerados muito saborosos), lagartos, sapos e serpentes. E expõe uma contradição: pelo que tinha visto, os jacarés não eram gigantescos (“têm a grossura de uma coxa de um homem e comprimento proporcional”183) nem perigosos (“os selvagens os trazem vivos para as suas casas e as crianças brincam em redor deles sem mal algum”184); entretanto, os índios mais velhos contavam histórias de “jacarés monstruosos que, ao pressentir gente, deixam os carniçais aquáticos, onde fazem o seu covil. (...) Diz o autor da ‘História Geral das Índias’ que matou crocodilos (...) com mais de cem pés de comprimento (...).”185 Pode-se dizer que Léry não embarca de pronto na história dos crocodilos descomunais, maiores que os crocodilos do Nilo descritos por Plínio; antes prefere a dúvida e chega a insinuar uma denúncia do excesso: “é coisa quase incrível.”186 Sobre a pescaria dos tubarões, encenada na alegoria 03 e descrita com tintas escatológicas nos relatos do Frei Vicente de Salvador, Léry menciona os animais marinhos ao descrever a viagem pela “zona tórrida”, ou seja, a região próxima à linha do Equador. Sob os olhos dele,

183 LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1961, p. 127. 184 Ibidem, p. 127. 185 Ibidem, p. 127. 186 Ibidem, p. 127. 67

alguns têm mais de quatro pés de comprimento e grossura proporcional, mas por não ser boa a carne os marinheiros só a comem em caso de necessidade e na falta de peixe melhor. Têm a pele tão rija e áspera como uma lima, a cabeça chata e larga e a boca rasgada como a do lobo ou do dogue da Inglaterra. Mas não são apenas monstruosos, têm ainda os dentes aguçados e são tão perigosos que se pegam um homem pela perna ou outra qualquer parte do corpo ou arrancam o bocado ou carregam a vítima para o fundo do mar. Por isso os receavam os marinheiros grandemente quando se banhavam e mesmo depois de pescados com anzóis de ferro da grossura de um dedo e jogados ao tombadilho do navio, não se precaviam menos, como o teriam feito em terra com cães bravios. Mas como esses tubarões não servem para alimento e não fazem senão o mal, depois de torturar os que podíamos apanhar, ou os matávamos a pancadas como cães raivosos ou, cortando- lhes as nadadeiras, amarrávamos-lhes um arco de pipa na cauda e os atirávamos ao mar, pois assim ficavam muito tempo flutuando debatendo-se em cima d’água antes de poder mergulhar, o que nos divertia bastante.187

A despeito da crueldade para com os peixes, parece claro que os tubarões metiam medo nos marinheiros e que o ato de matar os animais a pancadas, como narrou a carnavalesca na sinopse do enredo, era digno de assombro: uma prova de valentia dos índios goitacá, os mesmos que enfrentavam crocodilos e duelavam com demônios. Resumidamente, os relatos de André Thevet e Jean de Léry expressam imagens observáveis no conjunto visual dos dois primeiros setores do desfile analisado. Terminava, com a alegoria dos tubarões, o trecho pré-colonial do enredo, traduzido em fantasias e carros alegóricos de formas agressivas, denotando a violência primitiva dos selvagens antropófagos. O mesmo ideário cantava a letra do samba-enredo de Marquinhos Lessa, Guga e Tuninho Professor, interpretado por Paulinho Mocidade:

Campos... Terra dos índios goytacazes São ferozes, são vorazes Vida de antropofagia Na Europa, a notícia rolava, Homem branco se assustava Índio come gente ... Quem diria!

Os sustos dos homens brancos, aos poucos, foram rareando. É possível afirmar que o ritual antropofágico passou por significativas mudanças após a efetiva colonização dos territórios brasileiros, culminando o processo no quase extermínio das

187 Ibidem, p. 55. 68

nações indígenas litorâneas (o etnocídio denunciado por Manuela Carneiro da Cunha188, Darcy Ribeiro e demais defensores da causa indígena) e, por consequência, no desaparecimento da “vida de antropofagia” de que fala o samba. Na visão de Eduardo Viveiros de Castro, a sociedade tupinambá perderia uma dimensão essencial da existência devido à fragmentação identitária ocasionada pelo paulatino fim dos ritos antropofágicos. Segundo o antropólogo, “a repressão ao canibalismo não foi o único motivo para o abandono. Os europeus passaram a ocupar o lugar e as funções dos inimigos, alterando a lógica do ritual.”189 O terceiro setor do desfile gresilense, dedicado a O Guarani, não mais trataria da antropofagia física: enveredaria por outros caminhos, românticos e adocicados. Parafraseando a máxima de Figueiredo Pimentel, com toda a ironia que a expressão pode encerrar, o índio civilizava-se.

Figura 02: Componentes da Comissão de Frente da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002, fantasiados de Bicho Papão. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

188 Nas palavras da antropóloga, “povos e povos indígenas desapareceram da face da terra como consequência do que hoje se chama, num eufemismo envergonhado, ‘o encontro’ de sociedades do Antigo e do Novo Mundo. Esse morticínio nunca visto foi fruto de um processo complexo cujos agentes foram homens e micro-organismos, mas cujos motores últimos poderiam ser reduzidos a dois: ganância e ambição (...)” In: CUNHA, M. C. Obra citada, p. 14. 189 RAMINELLI, R. Obra citada, p. 29. 69

Figuras 03 e 04: Detalhes da alegoria 03 da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002, intitulada A pescaria dos tubarões. Nela, esculturas de tubarões com as bocarras abertas expressavam a ideia de que os índios goitacá eram extremamente corajosos: caçavam as feras marinhas, matando-as com a força dos próprios braços, conforme os relatos do Frei Vicente do Salvador. Bocas escancaradas com os dentes à mostra iriam se tornar uma espécie de leitmotiv do desfile. Fonte: transmissão televisiva da TV Globo.

Figura 05: Detalhe da parte frontal baixa da segunda alegoria da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002, intitulada Floresta habitada pelos índios goitacá. Nela, figuravam imensos crocodilos com bocas abertas, além de demônios e criaturas fantásticas desenhados por Theodore De Bry e descritos por André Thevet e Jean de Léry. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 70

Figuras 06, 07 e 08: Artistas circenses da segunda alegoria da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002, representando canibais, e visão panorâmica do primeiro setor do desfile, com a presença de muitos ossos e dentes pontiagudos. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 09: Componente da primeira ala da Imperatriz Leopoldinense, usando a fantasia Índio Goitacá. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Figura 10: Ala Infantil Feminina da Imperatriz Leopoldinense, usando a fantasia Índia. O caráter rústico da roupa e a profusão de dentes, hastes e penas afiadas, além da forte presença do vermelho, contribuem para a manutenção do conceito de ferocidade. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 11: Parte do “tapete” (maneira como é chamada a sequência de alas de uma escola de samba quando vista de cima) do segundo setor, que tratava da pescaria dos tubarões. Percebe-se a continuação dos dentes à mostra nas fantasias – as golas dos desfilantes são agressivas (e divertidas) dentaduras brancas. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Figuras 12 e 13: Detalhes da alegoria 03 da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002 – uma leitura carnavalesca das pescarias dos goitacás. O destaque fantasiado de índio apresenta na gola os mesmos grandes dentes que compunham as roupas das alas dos dois primeiros setores. No fundo do mar alegórico, uma floresta de algas brancas (confeccionada com árvores de Natal) envolvia os vorazes tubarões azuis, símbolos de ferocidade. Resta a ideia de que tanto na terra (a floresta em verde e vermelho da alegoria 02) quanto na água (a floresta submarina da alegoria 03) os goitacás eram destemidos e vigorosos. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Figura 14: Gravura de Theodore De Bry elaborada para a obra Grandes Viagens, de Jean de Léry. Elementos da imagem foram selecionados por Rosa Magalhães e transformados em esculturas do segundo carro alegórico do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense. Fonte: Bridgeman Art Culture History - http://www.bridgemanartondemand.com/image/919604/theodore-de-bry-cacodemon-attacking-the- savages-from-americae-tertia-pars-1562. Acesso em 12/08/2013. É curioso observar que alguns pesquisadores, como Maria Sylvia Porto Alegre, veem as obras de De Bry como “fantasiosas e grosseiras, copiadas de forma adulterada dos esboços feitos pelos primeiros viajantes ou simplesmente inventadas”, visão à qual se opõe radicalmente Maria Cândida Ferreira de Almeida, para quem o gravurista huguenote expressava o imaginário da época em que vivia: “o gravador representava para o público europeu uma alteridade que, se fosse desenhada de forma mais natural, não seria compreendida, enquanto os naturalistas do século XIX, como Hercule Florence, dirigiam suas representações para um público bem mais familiarizado com a natureza sul-americana e com os brasileiros.” In: ALMEIDA, M. C. F. Obra citada, p. 132.

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Figuras 15, 16, 17 e 18: Detalhes da alegoria 02 da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002, onde se veem reproduções de elementos desenhados por Theodore De Bry. Fonte: transmissão televisiva da TV Globo.

Figuras 19 e 20: Detalhes da alegoria 02 da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002, onde se veem reproduções de elementos desenhados por Theodore De Bry. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Figura 21: Detalhe da parte frontal baixa da segunda alegoria da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002. Misturam-se ossos, folhas pontiagudas, cipós, espíritos maléficos e crocodilos: interpretação carnavalesca para as descrições dos primeiros cronistas. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 22: Gravura de Theodore De Bry, parte da obra India Occidentalis, retratando uma caçada de crocodilos gigantes na Flórida. A descoberta de répteis comparáveis àqueles existentes no Nilo mexeu com o imaginário dos navegadores. É inevitável a comparação com a interpretação carnavalesca assinada por Rosa Magalhães. Fonte: USF Magazine, V. 53, nº 03. Disponível em: http://magazine.usf.edu/2011- fall/libraries/history-preserved.aspx. Acesso em 20/07/2013.

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Figura 23: Vista frontal da segunda alegoria do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense, chamada Floresta habitada pelos índios goitacá. A ala diretamente à frente, a exibir cocares em preto, amarelo e vermelho, representava o índio goitacá. Os dentes afiados apareciam até mesmo no esplendor do destaque principal. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 77

Figura 24: Visão frontal da terceira alegoria do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense, chamada A pescaria dos tubarões. A ala diretamente à frente, a última das quatro versões para o índio pescador, apresentava, nas golas dos desfilantes, dentaduras completas, dando a impressão de que os componentes estavam a ser engolidos por grandes bocarras de seres marinhos. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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III. 1. 2 – Peri beijou Ceci ao som d’O Guarani – um gesto de brasilidade

“Entretanto, José de Alencar viu o índio de forma romântica. O índio apaixonado pela donzela que habitava uma fortaleza.” Assim explica a carnavalesca Rosa Magalhães o salto temporal dado pelo enredo, que viaja pelas águas do Paquequer e descortina o romance de Peri e Ceci, transformado em ópera sob a batuta de Carlos Gomes. O maestro “tomou conhecimento dessa história na Itália, onde estudava, pois lá se vendia um folhetim sobre um certo índio goitacá. Era a história de José de Alencar, que inspirou o compositor na sua ópera O Guarani, que, apesar de possuir esse título, trata de um chefe goitacá (...)” Na sinopse do enredo, a autora reforça a ideia de que nas veias de Peri corria o destemido sangue goitacá: “Peri, o tapuio, é um chefe goitacá, erroneamente apelidado de O Guarani. Na cena final, abraçado à palmeira, com Ceci, no leito do Paraíba, desce com a inundação rumo às planícies campistas (...)”190 Dá-se, então, o beijo ao som da ópera, carnavalizado na marchinha História do Brasil, de Lamartine Babo191. De fato, e contraditoriamente, José de Alencar não deixa dúvidas de que Peri é um representante da nação goitacá (gerando um natural questionamento no leitor atento e conhecedor dos mapas indígenas; os levantamentos revelam que a etnia guarani habitava principalmente o sul do país, não a região fluminense):

Por fim D. Antônio passando o braço esquerdo pela cintura de sua filha (Ceci), caminhou para o selvagem e estendeu-lhe a mão com gesto nobre e afável; o índio curvou-se e beijou a mão do fidalgo. -De que nação és? perguntou-lhe o cavalheiro em guarani. -Goitacá, respondeu o selvagem erguendo a cabeça com altivez. -Como te chamas? -Peri, filho de Ararê, primeiro de sua tribo.192

Fazendo vistas grossas ao fato de que os interlocutores dialogaram em guarani (idioma que possivelmente um goitacá não dominaria), inquestionável é que o contexto do terceiro setor do desfile tem as cores do romantismo brasileiro, no qual a obra de

190 MAGALHÃES, R. Obra citada. 191 Lamartine Babo já havia inspirado a carnavalesca no ano 2000, cujo título do enredo, Quem descobriu o Brasil, foi Seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval, dialoga com a mesma marchinha do compositor: “Quem foi que inventou o Brasil? / Foi seu Cabral! / Foi seu Cabral! / No dia vinte e um de abril / Dois meses depois do carnaval.” Além disso, é preciso destacar que Lamartine é um personagem muito caro à Imperatriz Leopoldinense: em 1981, a vida e a obra do compositor foram exaltadas no enredo O teu cabelo não nega (Só dá Lalá), desenvolvido com maestria por Arlindo Rodrigues – e rendendo o primeiro bicampeonato da história da agremiação. 192 ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: Editora Ática, 2006, p. 94. 79

Alencar está inserida. Antonio Candido e José Aderaldo Castello, em Presença da Literatura Brasileira – Das origens ao realismo, afirmam que “amor, religião, sentimento da natureza e da sociedade são as grandes constantes do lirismo romântico, na poesia sobretudo, mas também na prosa.”193 O nacionalismo crescente, durante o Império, figurou nas páginas dos autores românticos por meio de tonalidades contrastantes; se, de um lado, o condoreirismo poético utilizou de versos laudatórios, em defesa de ideais patrióticos como a abolição da escravatura (vide algumas das mais famosas exclamações de Castro Alves), em outra vertente, na prosa, encontramos o indianismo – e é Alencar o grande representante do indianismo romântico brasileiro. Na visão exaustiva de Antonio Candido, o romance romântico brasileiro “tem fome de espaço e uma ânsia topográfica de apalpar todo o país.”194 Frutos do processo histórico que desembocou nas regências e no governo de Pedro II, as narrativas de Alencar passeiam pelas três esferas temáticas mais significativas da prosa do período: a cidade, o campo e a selva – ou, em termos distintos, a vida urbana, a vida rural e a vida primitiva. O indianismo expressa o mergulho mais radical em busca de uma representação de brasilidade, propondo o retorno ao passado das narrativas ágrafas, quando os primeiros habitantes do território brasileiro já espelhavam a força da unificada (que não era tão unificada assim, dadas as revoltas que eclodiram no período pós-independência, ao longo das regências e no decorrer do II Reinado) nação futura. Segundo Afrânio Coutinho,

À valorização da terra corresponderia a do homem brasileiro. (...) No século XVIII o indígena veio corporificar esse ideal. (...) No romantismo, o ideal de literatura nacional identificou-se com o indianismo, isto é, a busca da nacionalidade encontrou no indígena, sua cosmogonia, seus ideais, seus costumes, suas lendas, o motivo central. É verdade que o indianismo não resistiu à morte do romantismo. Mas o índio permaneceu uma atração em todos os tempos para a literatura brasileira, a ponto de reviver durante o modernismo sob várias formas. De qualquer modo, contudo, a sua mensagem e a contribuição que forneceu à literatura não morreram, pois ele foi um dos elementos que serviram à inteligência brasileira para penetrar fundo adentro do Brasil, buscando sua realidade para incorporá-la às letras.195

193 CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira. História e Antologia. I - Das origens ao realismo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 159. 194 CANDIDO, A. Formação da Literatura Brasileira. Momentos Decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012, p. 433. 195 COUTINHO, Afrânio. A tradição afortunada (o espírito de nacionalidade na crítica brasileira). Rio de Janeiro: José Olympio, 1968, p. 166/167. 80

Tal penetração florestas e aldeias adentro gerava dificuldades aos escritores, uma vez que o distanciamento temporal exigia a prospecção histórica e a recriação de nações indígenas aculturadas e/ou extintas196; consecutivamente, demandava maior preocupação com a verossimilhança (nas palavras de Candido, o “lastro do real”). Nesse sentido, Alencar foi, acima de qualquer coisa, um notável estudioso e pesquisador da temática indígena (línguas, mitos, hábitos culturais, etc.), o que fica flagrante nas notas que complementam o texto de Ubirajara – anotações por vezes extensas que expressam a preocupação do autor com o embasamento daquilo que literariamente ele defendia, do emprego de termos indígenas à descrição de rituais religiosos, receitas medicinais, conflitos entre duas ou mais tribos197. Tudo, e eis grande parte do refinamento do texto, a partir de um olhar multiculturalista que chega a relativizar os famigerados rituais antropofágicos, nos moldes de Léry e Montaigne. De acordo com Alexandra Vieira de Almeida, Alencar declararia guerra aos cronistas que

pintaram o índio como um incivilizado, um bárbaro, um canibal, como uma reação ao desconhecido que, por sua vez, remete aos imaginários da bestialidade não só da Idade Média, mas também àqueles criados a partir do enfrentamento que podemos encontrar nos mitos gregos, em que os heróis combatem forças inconsistentes e perturbadoras da ordem.198

Nesse ponto, é preciso reforçar a ideia de que o empenho de Alencar não estava isolado: havia um contexto histórico a convergir para tanto. Na época em que o romantismo imperou em nossas páginas, o indianismo não interessava apenas aos escritores românticos, mas aos próprios Imperadores, afinal, havia uma íntima ligação entre os cocares multicoloridos e as coroas douradas que os governantes máximos do Brasil ostentavam em suas cabeças. Lanças e espadas estavam unidas, sob o brasão do Império, ao lado do manto régio adornado com penas de papo de tucano – belo

196 Lilia Moritz Schwarcz bem explica a situação: “Sabia-se muito pouco a respeito dos indígenas, mas na literatura ferviam os romances épicos que traziam chefes indígenas heróicos, amores silvestres com a floresta virgem como paisagem. Os antigos dicionários de nossas línguas nativas feitos pelos jesuítas passaram a ser estimados, pois neles se escolhiam termos indígenas que poderiam ser entremeados às estrofes dos novos poemas.” In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. D. Pedro II, um monarca nos Trópicos. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 204. 197 Antonio Candido entende que as notas contribuem para que Ubirajara tenha “requintes mais eruditos de reconstituição etnográfica, talvez para responder às críticas de Franklin Távora, o Semprônio das Cartas a Cincinato.” In: CANDIDO, A. Obra citada, p. 537. 198 VIEIRA DE ALMEIDA, Alexandra. Literatura, Mito e Identidade Nacional. São Paulo: Editora Ômega, 2008, p. 67/68. 81

exemplar de arte plumária, atualmente em exposição no Museu Imperial, em Petrópolis. A literatura foi apenas a maneira mais popular de aspergir o tema aos quatro ventos. No Segundo Reinado, o apreço pela figura do índio ficou mais evidente. De acordo com Lilia Moritz Schwarcz, “é nesse contexto que, sem abandonar a coroa, d. Pedro introduz o cocar e uma visão original do país.”199 Organizava-se, em torno do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, um “projeto nativista e romântico, cujo objetivo era fomentar o triunfo da literatura nacional, que, no caso brasileiro, deveria levar em conta a capacidade poética do índio.”200 Curiosa e ironicamente, o autor que mais contribuiu para isso era um desafeto confesso do Imperador: José de Alencar, a quem Lira Neto chama “o inimigo do Rei”. Trata-se de mais uma particularidade quase anedótica da nossa história: o escritor, usando de pseudônimo, criticou veementemente o poema épico A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, feito sob encomenda do Imperador. Lilia Schwarcz conta que “Alencar afirmava que os indígenas da Confederação poderiam figurar em um romance árabe, chinês ou europeu.”201 Pedro II não gostou da ironia e publicou, no Jornal do Commercio, um artigo de apoio a Magalhães, sob o pseudônimo O Outro Amigo do Poeta. Travava-se, nas páginas do jornal, um duelo argumentativo. A retaliação “prática” veio no campo da política: o Imperador impediu que Alencar, um “filho de padre” “muito mal educado” ocupasse uma cadeira do Senado, em 1869, mesmo tendo sido eleito pela maioria dos votos. Estava declarada a guerra.202 Nas palavras de Afrânio Coutinho,

naturalmente, ao atirar-se contra um escritor consagrado e protegido pelo Imperador, chefe reconhecido da literatura brasileira e centro de um poderoso grupo que o incensava, sabia Alencar a quanto se arriscava, daí por certo a cautela do pseudônimo. Por outro lado, confiava na posição que assumia, pois representava o pensamento da renovação, enquanto Magalhães o da reação. Que esta era insustentável, ficou documentado fartamente pela justeza das críticas, ainda hoje válidas, provando-se que a tentativa de Magalhães foi malograda sob todos os pontos de mira.203

199 SCHWARCZ, L. M. De olho em D. Pedro II e seu reino tropical. São Paulo: Editora Claro Enigma, 2009, p. 33. 200 Ibidem, p. 33. 201 SCHWARCZ, L. M. As Barbas do Imperador. D. Pedro II, um monarca nos Trópicos, p. 134. 202 Ver NETO, Lira. O inimigo do rei. Uma biografia de José de Alencar ou a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava D. Pedro II e acabou inventando o Brasil. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2006. 203 COUTINHO, A. Obra citada, p. 97. 82

É indiscutível, porém, o fato de que o “inimigo” contribuiu para o sucesso da empreitada nativista de Pedro II, elevando o índio, nas páginas literárias, a símbolo de nobreza e brasilidade.204 Lilia Schwarcz informa que “o próprio imperador, inspirado por essa voga, além de propor a criação de gramáticas e dicionários, começa a estudar o tupi e o guarani (...)”205. Não bastasse, Pedro II passaria a distribuir títulos de nobreza com topônimos indígenas, como Quixeramobim, Bujuru, Uruçui, Poconé, etc. Os nobres brasileiros ostentariam nas denominações a fusão do elemento tropical à tradição medieval europeia representada pelos velhos brasões. Junto a isso, em documentos oficiais e demais alegorias do Brasil, viajariam o mundo “indígenas quase brancos, idealizados em ambiente local.” 206 Na ficção romântica de Alencar, diz Antonio Candido, os índios idealizados personificavam “a vontade profunda do brasileiro de perpetuar a convenção que dá a um país de mestiços o álibi de uma raça heróica, e a uma nação de história curta a profundidade do tempo lendário”207; Maria Cândida Ferreira de Almeida emite opinião semelhante:

os romances indianistas de José de Alencar produziram uma reconstituição do passado da nação, transformando-o em um passado mítico, que aponta para as questões próprias do conflito que se desenrolavam no presente da escritura. Iracema e Ubirajara participam explicitamente dessa vertente, pois o próprio autor os considera como “lendas” (...). Já O Guarani aparece como “romance brasileiro”, índios bons e maus, brancos bons e maus, todos estão em confronto, participando de uma narrativa que é também “história do Brasil”. O retorno ao passado, histórico ou mítico, era uma tentativa de ressignificar o presente e projetar o futuro, camuflando a violência e a destruição que marcaram o começo da colonização do Brasil (...)208

204 , ao discutir a pertinência do paralelismo traçado entre o romance indianista brasileiro e o romance de cavalaria europeu, afirma que o triunfo do índio alencariano é um paradoxo, uma vez que “o esperável seria que o índio ocupasse, no imaginário pós-colonial, o lugar que lhe competia, o papel de rebelde. Era, afinal, o nativo por excelência em face do invasor; o americano, como se chamava, metonimicamente, versus o europeu. Mas não foi precisamente o que se passou em nossa ficção romântica mais significativa. O índio de Alencar entra em íntima comunhão com o colonizador. Peri é, literal e voluntariamente, escravo de Ceci, a quem venera como sua Iara, ‘senhora’, e vassalo fidelíssimo de dom Antônio.” In: BOSI, A. Obra citada, p. 177. 205 SCHWARCZ, L. M. Obra citada, p. 205. 206 SCHWARCZ, L. M. De olho em D. Pedro II e seu reino tropical. São Paulo: Editora Claro Enigma, 2009, p. 36/37. 207 CANDIDO, A. Obra citada, p. 538. 208 ALMEIDA, M. C. F. Obra citada, p. 194. 83

Os três romances mencionados no excerto de Maria Cândida Ferreira de Almeida, O Guarani, Iracema e Ubirajara, desenham três diferentes momentos da história do país: em Ubirajara, a ação ocorre em tempo anterior à chegada dos portugueses – o tempo lendário em que Araguaias, Tocantins e Tapuias guerreavam em territórios selvagens; Iracema, por sua vez, enfoca os primeiros momentos da colonização e do contato entre brancos e índios, simbolizado pela união entre Iracema, a famosa “virgem dos lábios de mel”, e Martim, de cuja união nasce Moacir, filho da dor e do Brasil mestiço; o Brasil colonizado é representado em O Guarani, cuja ação se passa mais de cem anos após a chegada da esquadra de Cabral, no “ano da graça de 1604”.209 Adentrando nos aspectos formativos do romance, o ponto que imediatamente incita o leitor é a presença de um icônico herói indígena: Peri. Como consequência, pode-se dizer que O Guarani guarda certo componente inovador no que tange à temática do heroísmo na literatura brasileira, significando “o advento do herói, que a poesia não pudera criar na epopéia neoclássica, ou no próprio Gonçalves Dias.”210 Peri, mais do que um personagem de folhetim carregado dos clichês do tipo, é uma resposta “ao desejo ideal de heroísmo e pureza a que se apegava, a fim de poder acreditar em si mesma, uma sociedade mal ajustada, agitada por lutas recentes de crescimento político.”211 Alencar buscava, sobretudo, a construção ficcional de personagens que expressassem em suas ações o conceito de um Brasil coeso e valoroso. Nos termos de Antonio Candido, “imaculados Parsifais, puros, inteiriços, imobilizados pelo sonho em meio à mobilidade da vida e das coisas.”212 A vida dos protagonistas dos romances de heroísmo, diferentemente daquela apresentada nos romances de costumes, como Memórias de um Sargento de Milícias, em que as personagens se moldam a diferentes contextos e transitam entre bons e maus desejos, “é aparada, aplainada, a fim de que o herói caminhe numa apoteose sem fim. (...) A luta é combinada como em certos tablados de boxe, e o herói não pode deixar de vencer (...)”213 Peri é o símbolo maior desse entendimento: o herói por excelência, inclusive, nos termos machadianos, com

209 Paradoxalmente, O Guarani foi o primeiro romance indianista a ser escrito por Alencar, na forma de folhetins para o Diário do Rio de Janeiro, entre janeiro e abril de 1857. Tempo depois, a narrativa foi reunida em fascículos e publicada na forma de romance. 210 CANDIDO, A. Obra citada, p. 537. 211 Ibidem, p. 537. 212 Ibidem, p. 538. 213 Ibidem, p. 538. 84

fumos de fidalguia214. Um emblema tão forte que leva Candido a dizer que Alencar foi o único escritor da literatura brasileira a criar um “mito heróico” - justamente o de Peri.215 Na trilha de Walter Scott e dos romances de cavalaria, o escritor “fixou um dos mais caros modelos da sensibilidade brasileira: o do índio ideal, elaborado por Gonçalves Dias, mas lançado por ele na própria vida cotidiana.”216 Por causa disso, ainda na visão de Candido, O Guarani não conquistou os leitores do século XX, posto que exige “voos” maiores no exercício da leitura: assim como as ilustrações de Theodore De Bry, lança mão de recursos muito presos à época da produção, parecendo, aos olhos contemporâneos, artificiais, forçados, pouco verossímeis217. Em termos distintos, a obra “ficou datada” e não sobreviveu à experimentação formal radical levada a cabo por Machado de Assis, considerado, hoje, dos maiores escritores (mundiais) do século XX (dado extraordinário se levado em conta que a maior parte da obra do escritor foi publicada no século XIX). No conjunto da obra de Alencar, O Guarani pode ser considerado uma narrativa longa, dividida em quatro partes: Os aventureiros, Peri, Os aimorés e A catástrofe. As partes são divididas em capítulos curtos, dinamizando a progressão – marca dos folhetins até a contemporaneidade, vide os seriados e as telenovelas. De um modo geral, a despeito do que geralmente ocorre com as publicações folhetinescas, a estrutura narrativa é bem pensada: se na abertura do primeiro capítulo temos a descrição meticulosa do cenário em que a história irá se desenvolver (o rio Paquequer e o esplendor da natureza selvagem, a casa do fidalgo português D. Antônio de Mariz, o quarto perfumado da donzela Ceci), ao final da obra dá-se o incêndio e a destruição da casa e dos seus ocupantes, com exceção de Cecília e Peri, que, inseridos em uma releitura do mito indígena do Tamandaré (o mito do grande dilúvio, popularizado na bíblica história de Noé e encontrado nas mais diferentes culturas), são carregados pelas

214 Lilia Schwarcz, analisando o texto de Alencar, diz que “Peri como espírito era nobre, e até rei. (...) Peri era, portanto, muito diferente dos demais indígenas. (...) Alencar recria um passado mítico com seus senhores valentes e bondosos, e indígenas fiéis e honrados. Trata-se de um encontro de dignidades: o cavalheiro e o selvagem. Mais que isso, Peri era rei nas florestas (...)” In: SCHWARCZ, L. M. As Barbas do Imperador. D. Pedro II, um monarca nos Trópicos, p. 138. 215 Complementa a análise do caráter mítico de O Guarani o trabalho de Renato Ortiz, para quem o romance alencariano é um “mito fundador da brasilidade”. Ver: ORTIZ, RENATO. Românticos e Folcloristas. São Paulo: Olho d’Água, 1992. 216 CANDIDO, A. Obra citada, p. 538. 217 Sobre isso, escreveu Maria Cândida Ferreira de Almeida: “Costumes como a antropofagia indígena precisavam ser ‘enformados’ em uma cultura pictórica helênica para serem absorvidos pelo imaginário europeu, pois os novos objetos de saber necessitavam da referência da Antiguidade para se verem reconhecidos (...)” In: ALMEIDA, M. C. F. Obra citada, p. 133. 85

águas furiosas, sentados sobre uma palmeira há pouco arrancada pelo guerreiro, numa demonstração de força descomunal. Um final mítico e absurdamente dramático, de acordes wagnerianos, incontestavelmente apoteótico – e por isso Rosa Magalhães deve ter dele se apropriado, na sinopse do enredo de 2002. Porém, e eis o ponto fraco da obra com um todo, a ação triunfa sobre a forma e o encadeamento de acontecimentos se torna mais importante que a experimentação narrativa (que, a rigor, não há). Alencar tinha grande preocupação com a linguagem, pois acreditava que a língua portuguesa refém do português de Portugal, castiço, não espelhava o caráter plural do Brasil, mestiço; portanto, não servia a narrativas que se propunham a recriar as origens da nação. No entanto, inseriu centenas de termos indígenas retirados de dicionários em romances de forma pré-definida, valorizando sobremaneira o léxico em detrimento da narratividade. O resultado é um conjunto de romances com pretensões nacionalistas (alvos de todas as críticas que podem e devem ser feitas a isso218) enquadrados nas molduras do romance romântico francês e seguindo a cartilha sintática do mais culto português-padrão - distantes, bem se vê, da independência formal proclamada por Machado de Assis, que se daria, entre tantas inovações, às liberdades de abraçar a metalinguagem, o monodiálogo e até mesmo a ausência da linguagem verbal tradicional, como no Capítulo 139 de Memórias Póstumas de Brás Cubas, De como não fui Ministro d'Estado, no qual se leem pontos, tão somente.219

218 Machado de Assis, confesso admirador de José de Alencar, foi um grande crítico dessa proposta nacionalista presa à valorização do índio enquanto “símbolo original” do país. No importante ensaio Instinto de Nacionalidade, de 1873, o autor diagnosticou o fenômeno (a valorização das “cores do país” na prosa e na poesia e o “desejo de criar uma literatura mais independente”) e desarmou a visão daqueles que só reconheciam “espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura.” Em outras palavras, Machado estava a assumir a mesma postura reflexiva que o levaria a refutar o Realismo enquanto escola literária e a afirmar (contra a taxonomia que até hoje impera, no ensino da literatura preso às “escolas”, aos estilos de época e à periodização pouco ou nada problematizadora) que não era um escritor realista, uma vez que o rótulo limitava a sua obra e a sua visão de literatura. O Bruxo valeu-se de um dos seus maiores interlocutores para provocar os “indianistas convictos”: “perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês.” Defendia-se a ideia de que o caráter nacional de uma obra não reside no cenário em que a história se ambienta, nas florestas selvagens e nas tribos extintas; tal crença estaria mais para um “instinto”, algo animalesco, pouco racional. In: ASSIS, Machado de. Machado de Assis: crítica, notícia da atual literatura brasileira. São Paulo: Agir, 1959, p. 28/34. Disponível em: http://www.cdrom.ufrgs.br/assis/massis.pdf. Acesso em 01/09/2013. 219 Na visão de Ronaldes de Melo e Souza, exposta na aula inaugural do curso O romance tragicômico de Machado de Assis, em 20 de agosto de 2013, a diferença elementar entre os romances de Alencar e os romances de Machado reside no fato de que Alencar escreveu “romances de inventário” (a exemplo da trilogia indianista, com as pretensões retrospectivas de inventariar as origens do Brasil), enquanto 86

Com relação aos selvagens antropófagos, observa-se, nas linhas de Alencar, um olhar diferenciado, atendendo aos interesses da época do romantismo indianista (tão bem explicitados por Antonio Candido). Não há, em O Guarani, longas reflexões sobre o canibalismo, como se observa em Ubirajara, na nota de número 08 do capítulo III, A noiva. Nessa nota, o escritor afirma:

Ninguém pode seguramente abster-se de um sentimento de horror ante essa ideia do homem devorado pelo homem. Ao nosso espírito civilizado, ela repugna não só à moral, como ao decoro que deve revestir os costumes de uma sociedade cristã. Mas antes de tudo, cumpre investigar a causa que produziu entre algumas, não entre todas as nações indígenas, o costume da antropofagia. (...) É ponto averiguado, pela geral conformidade dos autores mais dignos de crédito, que o selvagem americano só devorava ao inimigo, vencido e cativo na guerra. Era esse ato um perfeito sacrifício, celebrado com pompa, e precedido por um combate real ou simulado que punha termo à existência do prisioneiro. (...) Os restos do inimigo tornavam-se pois como uma hóstia sagrada que fortalecia os guerreiros; pois às mulheres e aos mancebos cabia apenas uma tênua porção. Não era a vingança; mas uma espécie de comunhão da carne; pela qual se operava a transfusão do heroísmo.220

O trecho deixa evidente que o romancista tinha a preocupação de explicar aos leitores que o rito antropofágico, por mais “horrível” que fosse, possuía um fundamento e seguia regras precisas. A ousada referência à comunhão católica e à hóstia eucarística (o “corpo de Cristo”, alimento da teofagia) mostra que o olhar de Alencar estava aberto para a investigação e a relativização da diferença; era um olhar menos ortodoxo e mais curioso, etnográfico, que levou Silviano Santiago a afirmar que, antecipando Métraux e Florestan Fernandes, Alencar “tenta enquadrar a antropofagia como ritual entre os indígenas brasileiros, e não como uma forma sanguínea a bárbara de comportamento.”221 Apesar disso, assim como fez Gonçalves Dias, desenhou os Aimorés como nativos ferozes, vis, sem as marcas civilizatórias observáveis em Iracema, Peri e Ubirajara. No capítulo d’O Guarani intitulado Os selvagens, a descrição dos inimigos é carregada de truculência:

Machado escreveu “romances de invenção” (mais interessantes no universo da teoria literária, dado o alto grau de experimentação textual). 220 ALENCAR, J. Ubirajara. São Paulo: Editora Ática, 1993, p. 40/42. Grifo do autor. 221 SANTIAGO, Silviano. Roteiro para uma leitura intertextual de Ubirajara. In: ALENCAR, J. Obra citada, p. 07. 87

Homens quase nus, de estatura gigantesca e aspecto feroz; cobertos de peles de animais e penas amarelas e escarlates, armados de grossas clavas e arcos enormes, avançavam soltando gritos medonhos. A inúbia retroava; o som dos instrumentos de guerra misturado com os brados e alaridos formavam um concerto horrível, harmonia sinistra que revelava os instintos dessa horda selvagem reduzida à brutalidade das feras.222

Tem-se uma visão bestializada dos Aimorés (Alfredo Bosi lista os adjetivos bárbaros, horrendos, satânicos, carniceiros, sinistros, horríveis, sedentos de vingança, ferozes e diabólicos223), atualização do etnocentrismo que rebaixava os tapuias à absoluta barbárie – ponto de vista que não se restringia a Alencar: Marco Morel explica que o famoso Varnhagen, em sua História Geral do Brasil, classificou os índios interioranos como “gentes vagabundas que, guerreando sempre, povoavam o terreno que hoje é do Brasil (...)” Além disso, ironicamente afirmaria, em panfletos polemistas, que se os “philotapuias” fossem considerados os verdadeiros donos da terra brasileira, “todos os brasileiros seriam ‘criminosos’ que estariam ‘de posse do que é de outrem’”.224 No texto de Alencar, a desconstrução, por meio dos adjetivos atribuídos, de termos ligados ao universo erudito da música clássica, flagrante nas expressões “concerto horrível” e “harmonia sinistra”, mostra que o escritor fazia questão de opor os Aimorés ao universo civilizado de Mariz, do qual Peri fazia parte enquanto índio de “alma nobre”. Os inimigos, “maus selvagens”, eram instintivos e comparáveis às feras. Além disso, andavam “quase nus”, ou seja: subentende-se que o modelo de índio civilizado, para Alencar, pressupunha o uso de determinadas vestimentas. Indiretamente, o autor “acusa o golpe”: entendia que a nudez denotava incivilidade.225 Muito diferentes são as descrições de Peri, guerreiro “na flor da idade”. Quando pela primeira vez apresenta o goitacá, Alencar não poupa imagens positivas e doces:

Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam aimará, apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates, caía-lhe dos ombros até o meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem.

222 ALENCAR, J. O Guarani. São Paulo: Editora Ática, 2006, p. 195. 223 BOSI, A. Obra citada, p. 178. 224 MOREL, Marco. O mau selvagem: índios invisíveis no Romantismo brasileiro. In: FONSECA, Silvia Carla Pereira de Brito; LESSA, Mônica Leite. Entre a monarquia e a república: imprensa, pensamento político e historiografia (1822 – 1889). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008, p. 135. 225 Sobre a temática, ver BORA, Leonardo Augusto. Entre bons e maus selvagens: a representação do índio no carnaval brasileiro. In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares – Estudos de Carnaval. V. 10, n. 02. Rio de Janeiro: Faperj, 2013, p. 109/126. 88

Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor de cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza inculta da graça, da força e da inteligência. Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro, à qual se prendiam do lado esquerdo duas plumas matizadas, que descrevendo uma longa espiral, vinham roçar com as pontas negras o pescoço flexível. Era de alta estatura; tinha as mãos delicadas; a perna ágil e nervosa, ornada com uma axorca de frutos amarelos, apoiava-se sobre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida. Segurava o arco e as flechas com a mão direita caída, e com a esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo forcado de pau enegrecido pelo fogo.226

As vestes e a fisionomia de Peri expressam os valores que o personagem internamente congrega: é forte, belo, inteligente, elegante, delicado, iluminado pela graça. E consciente do seu papel de índio civilizado, afinal, ele próprio repreendia a barbárie dos Aimorés, como explica o narrador: “o índio conhecia a ferocidade desse povo sem pátria e sem religião, que se alimentava de carne humana e vivia como feras, no chão e pelas grutas e cavernas; estremecia só com a ideia de que pudesse vir a assaltar a casa de D. Antônio de Mariz.”227 Nota-se que, na visão do honrado Peri, os inimigos não possuíam pátria nem religião, entendimento que confirma a ideia de que o protagonista que dá título ao romance reunia em si os valores da nação brasileira unificada sob a égide da Igreja e o tremular de uma bandeira.228 Devoto de sua amada Cecília, “menina ingênua e inocente”, no capítulo intitulado Ceci o índio admite para o pai da moça, D. Antônio, que pretendia ficar junto à casa da família fidalga, branca, numa demonstração de santificada subserviência e abdicação diante da donzela, que ele, coroando a visão imaculada, identificava com Nossa Senhora:

-Peri é escravo da senhora. -Mas Peri é um guerreiro e um chefe. -A nação goitacá tem cem guerreiros fortes como Peri; mil arcos ligeiros como o vôo do gavião.

226 ALENCAR, J. Obra citada, p. 28. 227 Ibidem, p. 76. 228 Lilia Schwarcz assim define a oposição entre Peri e os Aimorés: “Peri era, portanto, muito diferente dos demais indígenas, ‘nos quais a braveza, a ignorância e os instintos carniceiros tinham quase apagado o cunho da raça humana.’ Descritos como ignorantes, bárbaros e possuidores de instintos canibais, os Aimorés representavam os selvagens, que, de tão ‘diabólicos’, deveriam ser esmagados pela ‘civilização’. In: SCHWARCZ, L. M. Obra citada, p. 138. 89

-Assim decididamente queres ficar? -Sim; e como tu não queres dar a Peri a tua hospitalidade, uma árvore da floresta lhe servirá de abrigo. -Tu me ofendes, Peri! exclamou o fidalgo; a minha casa está aberta para todos, e sobretudo para ti que és amigo e salvaste minha filha. -Não, Peri não te ofende; mas sabe que tem a pele cor de terra. -E o coração de ouro.229

O índio também é dotado do vigor físico que faz de Ubirajara um símbolo do intrépido selvagem que se submete a provações físicas sobre-humanas se necessário for, em defesa do seu povo ou para conquistar a mulher amada. Tanto o guerreiro araguaia (Ubirajara) quanto o guerreiro goitacá (Peri) lutam com o animal que representa o que há de mais violento nas selvas brasileiras: a onça (que Alencar também nomeia e tigre). O autor capricha nos detalhes perfurantes:

Era uma onça enorme; de garras apoiadas sobre um grosso ramo de árvore, e pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando o salto gigantesco. Batia os flancos com a larga cauda, e movia a cabeça monstruosa, como procurando uma abertura entre a folhagem para arremessar o pulo; uma espécie de riso sardônico e feroz contraía-lhes as negras mandíbulas, e mostrava a linha de dentes amarelos; as ventas dilatadas aspiravam fortemente e pareciam deleitar-se já com o odor do sangue da vítima. (....) Foi cair sobre o índio, apoiado sobre as largas patas detrás, com o corpo direito, as garras estendidas para degolar a sua vítima, e os dentes prontos a cortar-lhe a jugular.230

Peri vai à caça do bicho (que apresenta traços de vilania, afinal é insinuado um riso sinistro, comparável à descrição dos canibais sedentos de sangue) para atender a um desejo de Ceci, que queria ver uma onça viva:

-Quando Ceci acha bonita uma flor, Peri não vai buscar? perguntou o índio. -Vai, sim. -Quando Ceci ouve cantar o sofrer, Peri não o vai procurar? -Que tem isso? -Pois Ceci desejou ver uma onça, Peri a foi buscar.231

Na sequência do diálogo, o valente afirma que buscaria mesmo uma nuvem, se a donzela assim desejasse; morreria para subir aos céus, onde poderia tocar o nefelibata

229 ALENCAR, J. Obra citada, p. 105/106. 230 Ibidem, p. 28 e 30. 231 Ibidem, p. 55. 90

desejo de Ceci. Difícil é imaginar uma prova de devoção mais pungente e adocicada! O que salta aos olhos, no caso dessas descrições de Peri, é que ao lado da quase infantil docilidade palpita uma assombrosa robustez. Ao desenhar a luta entre Peri e a onça, no início do romance, Alencar compara a força do felino à força do índio, mostrando que, apesar de possuir os valores delicados do ideário cortesão, Peri também ostentava a coragem, a bravura e a força muscular do tigre brasileiro:

Como a princípio, o índio havia dobrado um pouco os joelhos, e segurava na esquerda a longa forquilha, sua única defesa; os olhos sempre fixos magnetizavam o animal. No momento em que o tigre se lançara, curvou-se ainda mais; e fugindo com o corpo apresentou o gancho. A fera, caindo com a força do peso e a ligeireza do pulo, sentiu o forcado cerrar-lhe o colo, e vacilou. Então o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote; fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, que, subjugada, prostrada de costas, com a cabeça presa ao chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde alcançá-lo com as garras. Essa luta durou minutos; o índio, com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça, e o corpo inclinado sobre a forquilha, mantinha assim imóvel a fera, que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem.232

Peri, filho e rei da natureza, estava disposto a enfrentar a mesma natureza pelo amor de Ceci, ainda que para isso tivesse de renegar a identidade indígena goitacá. A renegação atinge o grau máximo quando, livremente, o índio decide se converter ao cristianismo233, a fim de salvar a vida de Ceci – tirá-la da casa da família, que estava a ser atacada pelas flechas de fogo dos vis aimorés, e levá-la ao Rio de Janeiro (a donzela jazia adormecida, após ter bebido de uma taça com sonífero, oferecida pelo pai, ciente de que todos morreriam; apenas um cristão poderia retirá-la da casa paterna e conduzi-la a outra localidade). D Antônio batiza o indígena em meio ao conflito; Peri, ajoelhado, numa cena similar à das ordenações dos cavaleiros medievais234, torna-se cristão e passa a se chamar Antônio; dava-se a transformação final: “Peri beijou a cruz da espada que o

232 Ibidem, p. 30. 233 Conversão que também aparece em Iracema, na figura do índio Poti, como observa Alfredo Bosi. O autor afirma que nesses romances indianistas “o risco de sofrimento e morte é aceito pelo selvagem sem qualquer hesitação, como se a sua atitude devota para com o branco representasse o cumprimento de um destino, que Alencar apresenta em termos heróicos ou idílicos. Creio que é possível detectar a existência de um complexo sacrificial na mitologia romântica de Alencar. (...) O Guarani e Iracema fundaram o romance nacional.” In: BOSI, A. Obra citada, p. 179. 234 O próprio autor assevera isso, ao colocar na boca de D. Antônio, no início do romance, a exclamação de que Peri “é um cavaleiro português no corpo de um selvagem!” In: ALENCAR, J. Obra citada, p. 45. 91

fidalgo lhe apresentou, e ergueu-se altivo e sobranceiro, pronto a afrontar todos os perigos para salvar sua senhora.”235 E mais uma vez salva a virgem Cecília, conduzindo o romance ao seu desfecho operístico, quando, irmãos de alma, os amantes trocam juras confessionais e passam da canoa à palmeira mítica - que é levada pelas águas e desaparece no horizonte. A cena final endossa o entendimento de que o romance alencariano alberga o produto de um longo processo de gestação literária. A história do incorruptível goitacá e da sua devoção pela inefável Cecília, na visão de João Alexandre Barbosa, emoldura um “romance de fundação”, sendo que “o brasileirismo, ou indigenismo, de que se acha imbuído, é apenas uma parte de um sistema mais rico de significações.”236 O pesquisador alega que o fecho do romance pode ser entendido como recurso ao componente lendário para representar a “reunião de raças procriadoras da nacionalidade, como pedia a etnologia romântica perfilhada por Alencar (...)”237, algo análogo à cena de Iracema em que a mãe indígena pare o filho gerado da união com o português Martim: “Nessa hora em que o canto guerreiro dos pitiguaras celebrava a derrota dos guaraciabas, o primeiro filho que o sangue da raça branca gerou nessa terra da liberdade via a luz nos campos de Porangaba.”238 Maria Cândida Ferreira de Almeida prefere falar em “romance-monumento”239, defendendo que Alencar monumentalizou o passado brasileiro, construindo florestas, fortalezas e índios postiços, índios de tocheiro, artificias porém plenamente integrados ao contexto de então. A temática tão em voga no Brasil Imperial ganhou a Europa e atraiu o interesse do compositor Antônio Carlos Gomes, que tomou conhecimento da história de Peri e Ceci, na Itália, e decidiu transformá-la em partituras. O músico brasileiro, financiado por Pedro II, compôs a ópera homônima (no italiano, Il Guarany), cuja estreia, em 1870, no Teatro alla Scala, em Milão, foi um sucesso. O libreto foi escrito por Antonio Scalvini e Carlo D’Ormeville, com base nas notas de Alencar; Pery foi interpretado por Francesco Villani e Ceci por Maria Sass; a regência coube ao maestro Eugênio

235 Ibidem, p. 270. 236 BARBOSA, João Alexandre. Leitura de José de Alencar. In: ALENCAR, J. Obra citada, p. 06. 237 Ibidem, p. 06. 238 ALENCAR, J. Iracema. Lenda do Ceará – Edição do Centenário. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1965, p. 128. 239 ALMEIDA, M. C. F. Obra citada, p. 195. 92

Terziani240. Lilia Schwarcz explica que a obra “combinava as normas européias com o desejo de exprimir os aspectos considerados mais originais em nossa cultura. Compunha-se música romântica mas de base indígena, como ao afirmar uma identidade ao mesmo tempo universal e particular.”241 Trata-se, e não é de causar espanto, do mesmo jogo de contrastes observável no romance de Alencar (ainda que, para o autor, os romances indianistas fossem uma expressão autêntica do Brasil original, desconsiderando o fato de que a forma romanesca utilizada era europeia, mais especificamente francesa). A pesquisadora também afirma que

na primeira apresentação o exotismo do cenário aliado às vestes dos habitantes primeiros do Brasil parece ter agradado. Os indígenas locais podiam ser até gregos em sua indumentária, assim como brancos em sua coloração. O que mais importava, porém, era a construção de uma memória para esse Império americano.242

No seu desfile de 2002, Rosa Magalhães expressou este conjunto de referências em um setor formado por oito alas (entre elas, a bateria e o corpo de passistas) e um carro alegórico. O primeiro casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, Chiquinho e Maria Helena, também ajudava a compor o setor, à frente da bateria. A artista, seguindo a narrativa de Alencar, optou por começar o bloco temático com referências à exótica natureza da Mata Atlântica: as três primeiras alas representavam A floresta, Vegetação com orquídeas e Vegetação com bromélias, predominando tonalidades de verde e formas que lembravam folhagens. A justificativa das fantasias, sucintamente, dizia que elas representavam “a vegetação tropical, habitat do índio.” Na sequência, vinha O colonizador, ala com vestes europeias, nas cores branca, amarela e azul. Como adereço de mão, os brincantes carregavam arcabuzes. O figurino acenava para a mistura entre brancos e índios (que existia na própria casa de Mariz, como informa o romance), uma vez que no topo dos chapéus dançavam as plumas de grandes penachos, verdadeiros cocares. Nos punhos, nas botas e nos detalhes dos chapéus, a pele de onça significava o hibridismo: a fidalguia portuguesa estava inserida em um universo selvagem, tomado pelas plantas, pelos índios e pelas feras.

240 Referências colhidas em FREITAS, Olga Sofia Sousa Santos. Nacionalismo e Indianismo na Ópera ‘Il Guarany’ de Antônio Carlos Gomes. Artigo disponível no sítio http://www.academia.edu/199495/Nacionalismo_e_Indianismo_na_opera_Il_Guarany_de_Antonio_Carlo s_Gomes_1836-1896. Acesso em 18/08/2013. 241 SCHWARCZ, L. M. Obra citada, p. 139. 242 Ibidem, p. 139. 93

A exemplo do que ocorrera no segundo setor, quando as quatro alas representavam a mesma coisa (os índios pescadores que “conseguiam pescar tubarões e usavam os dentes afiados como pontas para as suas flechas”), o conjunto formado pelo primeiro casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, a Madrinha da Bateria, a Bateria e os Passistas (masculinos e femininos) trazia o mesmo elemento central nas fantasias utilizadas: a onça-pintada. Em meio a uma explosão de verde bandeira e amarelo ouro, cabeças de onças adornavam as cabeças dos desfilantes, mostrando que a autora deu grande destaque ao episódio d’O Guarani em que Peri luta com o tigre brasileiro, a fim de capturar o bicho e realizar um desejo de Ceci. Rosa Magalhães justificou a presença marcante do animal com a seguinte afirmação (enxuta, novamente): “Ceci pede a Peri que cace uma onça e a leve viva para que ela possa ver o olhar da fera.” A roupa da bateria, em cuja gola se viam as patas e as garras da onça (ao leitmotiv dos dentes, observável na abertura e nos dois primeiros setores, juntavam-se, agora, as unhas das onças-pintadas), recebeu o nome A onça cujo olhar Ceci queria ver. Na sequência das duas últimas alas do setor dedicado a O Guarani (intituladas Índios como Peri e Jovens como Ceci, representações da “visão operística do século XIX do figurino indígena” e da indumentária de “Ceci, jovem pela qual Peri se apaixona”, respectivamente) surgia a quarta alegoria do desfile, Teatro Scala de Milão, onde a ópera de Carlos Gomes foi apresentada. Rosa derrubou as paredes do teatro e representou, sobre o chassi do carro alegórico, o fosso da orquestra, o palco e a boca de cena da casa de óperas. Predominavam o dourado e o vermelho do interior do prédio, inaugurado em 03 de agosto de 1778, mas havia, entre os músicos da orquestra e as composições com figurinos de “índios românticos” (com saiotes de tecido), adereços representando folhagens verdes, como se a natureza tropical brotasse do piso do Scala e envolvesse a música de Carlos Gomes, enroscando-se na decoração do teatro e nos suportes das partituras. Na parte traseira da alegoria, o esplendor da vegetação brasileira ganhava maior destaque: entre as reproduções de cartazes alusivos à ópera, grandes palmeiras verdejavam. O principal elemento plástico da alegoria, porém, vinha da fauna - era a onça-pintada, dando continuidade ao imaginário evocado pelas alas do terceiro setor. Inúmeras esculturas de onças compunham a cenografia (uma delas, inclusive, encimava o gerador, nos fundos do carro) e reforçavam a ideia de que os acordes de Carlos Gomes eram capazes de fazer com que a natureza selvagem brasileira

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despertasse e invadisse o teatro, um espaço erudito, símbolo da racionalidade e da sensibilidade do branco de Europa, o colonizador. Se, numa visão panorâmica, o uso da imagem da onça parece excessivo, uma análise acurada do simbolismo do animal revela que ele estava perfeitamente integrado ao contexto do enredo. Além de figurar em O Guarani e Ubirajara (havendo, portanto, respaldo no texto literário de José de Alencar), explica Maria Cândida Ferreira de Almeida que o bicho pode ser considerado, nos termos da historiografia analítica de Lucien Febvre, uma longa duração literária brasileira, atuando como “ameaça canibal” nas narrativas indígenas, orais e eruditas. A autora recorre a Hans Staden para começar a interpretação do símbolo:

O papel destacado da onça dentro da cultura ameríndia pode ser depreendido da fala do grande guerreiro Cunhambebe, descrita por Hans Staden, na qual ele se declara jaguar. Tal importância pode ter como paradigma o lugar que a onça ocupa na cosmologia dos tupis. Para esse grupo, como descreve Viveiros de Castro, o espírito de um jaguar (nã na’ o we) recebe o mesmo tratamento e destino do espírito de um inimigo. O jaguar é considerado pelos tupis como um inimigo awi, o que lhe confere o mesmo estatuto que o de um guerreiro. No jaguar encontramos um locus classicus tupinambá: o animal era executado com honras de prisioneiro de guerra, sua morte dava direito ao guerreiro de tomar novo nome sobre sua cabeça.243

Alencar provavelmente tinha conhecimento disso, afinal, leitor dos cronistas e dedicado estudioso da cultura indígena que foi, é difícil acreditar que inseriu vitórias de guerreiros sobre onças nos mais violentos dos seus romances indianistas à toa. O protagonista de Ubirajara, na abertura do romance, tinha o nome Jaguarê e é descrito como “o mais feroz jaguar da floresta.”244 Corajoso, o jovem caçador indígena “despreza o jaguar, que já cansou de vencer.”245 Jaguarê, que ao final do romance se transforma em Ubirajara, o “senhor das duas lanças”, internalizara a força do animal derrotado, numa espécie de assimilação totêmica diretamente ligada ao ritual antropofágico. Ele havia se transformado em onça após a vitória sobre a fera – um processo de devoração simbólica. A metamorfose homem-onça também aparece em Guimarães Rosa, no conto Meu tio o Iauaretê, no qual “cada onça morta pelo caçador permanece junto ao

243 ALMEIDA, M. C. F. Obra citada, p. 65. 244 ALENCAR, J. Ubirajara. São Paulo: Editora Ática, 1993, p. 13. 245 Ibidem, p. 13. 95

contador, rediviva, presa à sua condição de devoradora-devorada.”246 O personagem rosiano, em certo momento, afirma que “onça é povo meu, meus parentes”247, quebrando as fronteiras entre homens e bichos. A obra, na visão de Eduardo Viveiros de Castro, é um dos pontos culminantes da literatura mundial, apresentando ao leitor um “espantoso exercício perspectivista.”248 O Iauaretê não é, porém, invencionice de Rosa. Estudioso das narrativas indígenas que fora, o escritor deparou-se com a figura da onça em uma chusma de histórias, trazendo um vasto imaginário para a sua mesa de trabalho. Luís da Câmara Cascudo, em Literatura Oral no Brasil, na parte dedicada aos contos de animais, desenvolve a narrativa de A Raposa e a Onça e mostra ao leitor que a fábula criada em torno da máxima “o bem se paga com o bem” apresenta variações ao redor do globo: cobras, lobos, tigres, panteras, esses animais representam a devoração do tempo e o componente animalesco do homem. O conto brasileiro, coletado por Couto de Magalhães, em 1876, fala do “caso da Micura com a Onça (Iauareté), ouvido de indígenas, em meados do século XIX (...)”249. Maria Cândida Ferreira de Almeida explica que há muitas onças fantásticas na tradição popular brasileira, como a “onça- maneta”, a “onça-cabocla”, a “onça-da-mão-torta”, a “onça-boi”, entre outras.250 Em Ariano Suassuna, especificamente no Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta251, tem-se um verdadeiro tratado de “onçologia”:

246 ALMEIDA, M. C. F. Obra citada, p. 66. 247 ROSA, J. G. Meu tio o Iauaretê. In: ROSA, J. G. Ficção Completa. Volume 2. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2009, p. 821. 248 Nas palavras do antropólogo: “Começo por lembrar que a literatura brasileira (e latino-americana, e mundial) atinge um de seus pontos culminantes no espantoso exercício perspectivista que é Meu tio, o Iauaretê, de Guimarães Rosa, a descrição minuciosa, clínica, microscópica, do devir-animal de um índio. Devir-animal este, de um índio, que é antes, e também, o devir-índio de um mestiço, sua retransfiguração étnica por via de uma metamorfose, uma alteração que promove ao mesmo tempo a desalienação metafísica e a abolição física do personagem – se é que podemos classificar o onceiro onçado, o enunciador complexo do conto, de “personagem”, em qualquer sentido da palavra. Chamo a esse duplo e sombrio movimento, essa alteração divergente, de diferOnça, fazendo assim uma homenagem antropofágica ao célebre conceito de (Jacques) Derrida. (Pode-se ler o “Meu tio, o iauaretê”, diga-se de passagem, como uma transformação segundo múltiplos eixos e dimensões do Manifesto Antropófago).” Disponível em: http://root.ps/download/estrategiasconjuntas/VIVEIROS-DE-CASTRO-Eduardo- Encontros-1.pdf, p. 128. 249 CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. São Paulo: Global Editora, 2006, p. 311. 250 ALMEIDA, M. C. F. Obra citada, p. 68. 251 Coincidentemente, no mesmo carnaval de 2002 a Escola de Samba Império Serrano, que foi a terceira a desfilar na segunda-feira (mesma noite em que a Imperatriz Leopoldinense se apresentou), desenvolveu o enredo Aclamação e Coroação do Imperador da Pedra do Reino: Ariano Suassuna, de autoria do carnavalesco Ernesto Nascimento. O primeiro casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, a exemplo da Imperatriz, representava onças (Onça Parda e Onça Pintada); além disso, ao menos duas alegorias apresentavam esculturas de onças: o Abre-Alas (em que onças aladas circundavam a coroa, símbolo da escola) e a alegoria 06, O massacre e os dragões da ressurreição – as onças pintadas, que poderia ilustrar o seguinte trecho do romance: “Esclareço a Vossa Excelência, Sr. Corregedor, que, apesar de formado e 96

pardas, negras, vermelhas, pintadas, mestiças, onças-de-bode, onças-tigre, inclusive uma onça mijadeira e um jaguar sarnento colorem as páginas. O Bacharel Clemente Hará de Ravasco Anvérsio, mencionado no Folheto II do romance, criara o movimento literário “Oncismo Negro-Tapuia do Brasil”, que exigia que seus membros fossem “fiéis à realidade e às Onças do Sertão.”252 Em diálogo com a mitologia romana, ao tratar do Quinto Império sertanejo, o narrador D. Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, o Dom Pedro IV, conta que seu avô, Dom Pedro II, sobreviveu a um sacrifício terrível: a mãe, Princesa Isabel, foi degolada na Pedra do Reino e abandonada na caatinga, mas o bebê recém-nascido (a Princesa incrivelmente pariu no momento da degola, tendo a criança rolado pedra abaixo) não feneceu e foi encontrada por um vaqueiro, perto do corpo da mãe assassinada e de duas Onças-Pintadas – uma delas fêmea, que teria amamentado o pequeno e, consecutivamente, o Império do sertão brasileiro. A metáfora, de indiscutível força e beleza, até mesmo um cadinho de ironia (pode ser entendida como paródia), mostra o quão importante é o signo da onça na prosa de Suassuna.253 O caráter antropofágico fica mais evidente quando surge a “visagem” da Onça Caetana, uma “divindade cariri”254 extremamente fascinante, representada sob a forma antropozoomórfica, nas xilogravuras, que, metamorfoseada num corpo de mulher (sob a forma de Moça Caetana), sangrava “os assinalados” com as unhas longas e afiadas como garras, para, depois, beber o sangue dos homens que por ela se deixavam seduzir e repousavam em seu peito (onde uma cobra-coral fazia as vezes de colar).255 Variação

esclarecido, o Doutor Manuel Viana Paes é um sertanejo, da Ribeira do Sertão do Rio do Peixe, de modo que não deixava de acreditar nuns certos rumores que correm, por aqui, a respeito de quem é comido por uma Onça – ou devorado por um Jaguar, para ser mais tapirista e epopéico. Segundo alguns adeptos do Catolicismo-sertanejo, quem tem a desgraça de ser comido por uma Onça, não ressuscita no último dia não, quem ressuscita é a Onça!” In: SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2007, p. 419. 252 SUASSUNA, A. Obra citada, p. 42. 253 Outro dado interessante é que Suassuna menciona explicitamente o romance O Guarani em seu Romance d’A Pedra do Reino. No Folheto L, O Inquérito, o narrador Quaderna diz: “O senhor há de se lembrar que O Guarani começa apenas com uma cavalgadazinha besta, dez ou doze Cavaleiros que acompanham Álvaro de Sá em demanda, para o ‘Solar do Paquequer’, a casa-nobre do Fidalgo Dom Antônio de Mariz.” In: SUASSUNA, A. Obra citada, p. 358. A relação com Alencar não fica restrita à citação: o romance é oferecido, dedicado e consagrado por Suassuna à memória de treze “cavaleiros”, dentre os quais José de Alencar. 254 Na abertura do romance, tem-se a seguinte descrição épica: “Da terra agreste, espinhenta e pedregosa, batida pelo Sol embraseado, parece desprender-se um sopro ardente, que tanto pode ser o arquejo de gerações e gerações de Cangaceiros, de rudes Beatos e Profetas, assassinados durante anos e anos entre essas pedras selvagens, como pode ser a respiração dessa Fera estranha, a Terra – esta Onça-Parda em cujo dorso habita a Raça piolhosa dos homens. Pode ser, também, a respiração fogosa dessa outra Fera, a Divindade, Onça-Malhada que é dona da Parda, e que, há milênios, acicata a nossa Raça, puxando-a para o alto, para o Reino e para o Sol. In: SUASSUNA, A. Obra citada, p. 31. 255 Ibidem, p. 305. 97

do bíblico leão alado de São Marcos e integrada à estética armorial sertaneja256, a Onça Caetana reúne em si as características que, nas cosmologias indígenas, representam o canibalismo ritual praticado por homens, deuses e animais. Nessa trilha, ao menos dois estudos antropológicos reforçam a importância do simbolismo da onça, quais sejam, os realizados por Eduardo Viveiros de Castro, uma etnografia dos Araweté, povo de língua Tupi-Guarani da Amazônia Oriental; e por Aparecida Vilaça, que trabalhou com os índios Wari’ da região da foz do rio Negro.257 Viveiros de Castro empreendeu seu trabalho na tentativa de compreender o ritual Araweté segundo o qual as almas dos mortos, recém-chegadas ao “céu” (evidentemente, não se trata do “céu” católico), são devoradas pelos deuses (daí a ideia de “deuses canibais”), ressuscitando a partir dos ossos e, finalmente, gozando da imortalidade. O antropólogo percebeu que “o destino da pessoa Araweté é um ‘tornar-se outro’, e isso é a pessoa – um devir. Intervalo tenso, ela não existe fora do movimento.”258 À visão diferenciada do conceito de pessoa (e é preciso frisar que o movimento de tornar-se outro é justamente o ponto de partida do longo estudo de Maria Cândida Ferreira de Almeida, basilar para este trabalho) se soma o entendimento de que os deuses comiam as almas dos índios mortos, ou seja, a prática antropofágica também se dava em outro plano existencial. Nesse plano, os deuses possuíam “animais de estimação”, bichos da fauna brasileira que aparecem costumeiramente em contos xamanísticos e rituais de pajelança - dentre eles, a onça. Segundo Viveiros de Castro, “estes animais são em geral identificados pelos sufixos –aão, ‘grande’, ou –yo, ‘amarelo’ (no sentido de eterno ou perfeito).”259 A onça, especificamente, não figura coadjuvante no mito da criação dos bichos. Na crença Araweté, os animais, antes de serem criados pelos deuses, eram humanos. Porém,

durante uma grande festa de cauim, a divindade Ñã-Mai’ (“deus-onça”, o irmão de Mikora’i, o “filho do gambá”), vingando-se da morte de sua mãe nas garras da Ñã nowi’hã, a onça monstruosa, transformou-os todos nos animais de hoje: o gavião-real, urubu, onças,

256 Rosa Magalhães visitou a temática armorial em 1990, no Salgueiro, quando, ao desenvolver o enredo Sou amigo do Rei, tratou das influências medievais observáveis no sertão brasileiro. Uma das alegorias trazia reproduções escultóricas de ilustrações armoriais. 257 Recomenda-se, também, a leitura de Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa. 258 CASTRO, Eduardo Viveiros de. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986, p. 22. 259 Ibidem, p. 227. 98

ariranhas, guaribas, macacos-prego, cuxiú, cutia, caititu, anta, mutuns, tucanos, veados, jacus, pacas, tamanduás...260

Percebe-se que a onça, mais que um símbolo da fauna brasileira ligado à exótica beleza da sua pele e ao fato de ser o maior felino das Américas, é protagonista de alguns mitos da cosmogonia indígena, ocupando posição destacada no imaginário Araweté. Uma situação semelhante é observável entre os Wari’ estudados por Aparecida Vilaça. De acordo com a antropóloga, a visão existencial dos Wari’ parte da ideia de jam, “um traço, marca, representação ou imagem de um corpo.”261 Basicamente, existem dois tipos de jam: a projeção de um corpo ausente ou presente (por exemplo, a sombra de uma árvore ou o reflexo de um animal na superfície de um lago, no caso de corpos presentes; e as pegadas de um homem na areia, no caso de um corpo ausente) e o duplo. A segunda categoria, mais complexa, sugere que alguns corpos possuem uma espécie diferenciada de jam: são capazes de projetar um duplo, um outro-eu que não apenas projeção imagética (como as sombras e os reflexos), mas algo móvel e com existência própria, independentemente da materialidade do corpo. Nas palavras de Aparecida Vilaça, “se qualquer ser vivo ou objeto pode projetar uma imagem ou deixar uma marca, produzindo um jam da primeira categoria, somente os seres humanos e os animais de algumas espécies têm um jam da segunda categoria (...)”262 Nos seres humanos, este duplo viria à tona em situações especiais, como durante os sonhos, as doenças graves e febris, a iminência da morte. Pois bem: a partir dessa separação das qualidades de jam, entendem os Wari’ que há dois tipos de animais: “aqueles que são somente corpo, matéria – da mesma forma que os vegetais, os minerais e todas as coisas inanimadas – e aqueles que são algo mais, imortais e humanos: os animais com jam (...)”263 As onças (os jaguares) são animais com jam, sendo que, dentro dessa categoria especial, somente elas e as cobras não podem ser comidas pelos índios. São animais que “estão sempre prontos a atuar de modo a atrair os Wari’ para junto de si, o qua acarreta um processo de identificação e incorporação da vítima na espécie animal (...)”264 À incorporação, e eis o caráter perigoso dos animais com jam, seguem-se a fragilização do corpo e a doença, possível

260 Ibidem, p. 224. 261 VILAÇA, Aparecida. Comendo como gente. Formas do canibalismo Wari’. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1992, p. 55. 262 Ibidem, p. 55. 263 Ibidem, p. 64. 264 Ibidem, p. 64. 99

prelúdio da morte (evitada somente por meio da intervenção do xamã). Dadas as consequências, não é difícil entender o porquê desses bichos serem temidos, considerados muito poderosos e dignos do absoluto respeito. Para Maria Cândida Ferreira de Almeida, “a ameaça à vida é a primeira conotação do signo onça; em seguida, encontramos a ameaça à integridade do corpo, sugerida pelos dentes que mastigam e destroem a carne. Lembremos o horror de d. Lauriana, mãe de Ceci, diante da onça presa por Peri.”265 Os exemplos literários e etnográficos apresentados servem para que seja feita uma reflexão mais aprofundada sobre o símbolo da onça, animal diretamente associado ao canibalismo, à destruição e aos rituais xamânicos brasileiros266. O destaque dado ao elemento no terceiro setor do desfile analisado (considerado pelos espectadores aquele com mais “cara de Rosa Magalhães”, devido ao luxo da alegoria da ópera e às fantasias ricas em bordados e galões) se justifica e mostra que, ainda que intuitivamente, a carnavalesca estabeleceu uma correta conexão entre os felinos de garras afiadas e dentições à mostra e a antropofagia, o tema central do enredo. É de Maria Cândida Ferreira de Almeida uma excelente síntese da problemática:

A literatura escrita traz, na forma híbrida, as tradições, mantendo seu conteúdo essencial: o horror à destruição ontológica como espelho da destruição metafísica e, ao mesmo tempo, como resistência à destruição da identidade primeva da tradição cultural ameríndia. A cultura erudita é apropriada pela cultura popular e retoma dela seu tema. A onça, inimigo awi dos tupinambás, passa para as histórias populares de assombração e retorna na novela Meu tio o Iauaretê. As partes se mantém íntegras, ocupando um novo lugar no discurso.267

Nas entrelinhas das partituras, o paradoxo: no bloco temático cujo protagonista era um índio modelo anti-canibal, o elemento visual utilizado à exaustão foi o bicho que sintetiza o instinto canibalesco mais sanguinário. “Signo do canibalismo na cosmologia ameríndia”268, a onça reinou no terceiro setor do Delírio tropical e deu continuidade à comilança até então empreendida por dinossauros, jacarés e tubarões. No quarto setor,

265 ALMEIDA, M. C. F. Obra citada, p. 72/73. 266 Tal imaginário é permanentemente invocado durante as apresentações dos Bois Caprichoso e Garantido, no Festival Folclórico de Parintins, no Amazonas. No festival de 2013, por exemplo, ambos os oponentes representaram operisticamente lendas e/ou rituais indígenas, nos três dias de apresentações, com referências às onças-pintadas. Pode-se dizer que a imagem da onça é uma constante no Bumbódromo (arena em que se dá a disputa, na ilha de Parintins). 267 CASTRO, E. V. Obra citada, p. 76. 268 ALMEIDA, M. C. F. Obra citada, p. 68. 100

os espectadores veriam se juntar aos comensais a famosa Cuca, nas cores de Tarsila do Amaral.

Figura 25: Visão da primeira metade do terceiro setor do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense. A sequência de alas com fantasias em tons de verde representava A floresta, Vegetação com orquídeas e Vegetação com bromélias. A ala com plumagem amarela representava O colonizador, introduzindo vestes européias em um setor dominado, até então, por flores e folhagens. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Figura 26: Primeiro casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira da Imperatriz Leopoldinense, Chiquinho e Maria Helena, no carnaval de 2002. As fantasias, que não foram justificadas por Rosa Magalhães no Livro Abre-Alas entregue aos jurados da LIESA, traziam folhas de bananeiras, frutos tropicais e onças- pintadas. As cabeças dos dançarinos representavam, justamente, as cabeças dos felinos. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figuras 27 e 28: Fantasias da bateria e da Madrinha de Bateria (Luiza Brunet) da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002. Percebe-se a permanência da temática da onça, com a predominância da estampa de pele de onça-pintada. Na fantasia do ritmista, as grandes unhas nas ombreiras e os dentes na cabeça representam a ferocidade do animal, que é associado à antropofagia, na cosmologia indígena. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 102

Figura 29: Desfilantes da bateria da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002, fantasiados de Onça cujo olhar Ceci queria ver. Nota-se que a roupa é formada por inúmeras patas e garras do “tigre brasileiro”. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figuras 30, 31, 32, 33, 34 e 35. Cenas do desfile da Imperatriz Leopoldinense, em 2002, mostrando a recorrência da imagem da onça-pintada, em fantasias e adereços do terceiro setor. A fotografia central baixa mostra detalhes da fantasia feminina da ala de passistas da escola, que, assim como a bateria, apresentava chapéu de cabeça de onça, com grandes dentes à mostra. Fontes: Centro de Memória do Carnaval - LIESA e O Globo. 103

Figura 36: Vista frontal completa da alegoria 04 do desfile da 2002 da Imperatriz Leopoldinense, intitulada Teatro Scala de Milão, onde a ópera de Carlos Gomes foi apresentada. Percebe-se a mescla de referências ao universo erudito da Casa de Óperas (partituras, smokings, cortinas de veludo, arabescos e volutas dourados) e elementos da natureza selvagem brasileira (onças-pintadas, folhagens, palmeiras). Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Figura 37: Recorte da vista frontal da alegoria 04 do desfile da 2002 da Imperatriz Leopoldinense, intitulada Teatro Scala de Milão, onde a ópera de Carlos Gomes foi apresentada. Percebe-se, dentro da boca de cena, um tanto escondida pelas composições fantasiadas de “índios românticos”, a reprodução da cenografia original da montagem de Il Guarany, em 1870. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 38: Vista atual do interior do Teatro alla Scala, em Milão, onde a ópera Il Guarany, de Carlos Gomes, foi encenada pela primeira vez, em 1870. A carnavalesca Rosa Magalhães idealizou a alegoria 04 do desfile de 2002 com base na visão do auditório e da boca de cena da Casa. Fonte: http://gallerialesaledelre.wordpress.com/tag/spettacolo/. Acesso em 26/08/2013. 105

Figura 39: Cenário do 3º ato, cena 03, da primeira montagem da ópera Il Guarany, apresentada no Scala de Milão. Aquarela de Carlo Ferrario, 1870. Fonte: SCHWARCZ, L. M. Obra citada.

Figura 40: Vista da parte traseira da alegoria 04 do desfile gresilense de 2002. A vegetação tropical (com destaque para as palmeiras) envolve os cartazes da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes. Uma onça- pintada encima o gerador de eletricidade. Fonte: Transmissão televisiva da TV Globo. 106

Figuras 41 e 42: Ilustrações feitas em homenagem a Carlos Gomes, por ocasião da estreia da ópera Il Guarany, em Milão. Na imagem à esquerda, de Bordalo, publicada em O Besouro, em 19/10/1978, um índio ajoelhado oferece flores ao músico. Na ilustração da direita, publicada na Revista Ilustrada, em 1889, vê-se Carlos Gomes a ostentar laços e guirlandas em sua homenagem, tendo as linhas do Pão de Açúcar ao fundo. Fonte: SCHWARCZ, L. M. Obra citada, p. 139.

Figuras 43, 44, 45 e 46: Figurinos utilizados na primeira montagem da ópera Il Guarany, em 1870. Percebe-se o contraste entre as vestes indígenas, rústicas (duas imagens à esquerda) e as luxuosas roupas da fidalguia da Casa de Mariz (duas imagens à direita). É interessante notar que, apesar da simplicidade, o casal indígena também apresenta roupas de inspiração européia, caracterizando a ideia de um civilizado “índio romântico”, bem ao gosto de Alencar. Fonte: SCHWARCZ, L. M. Obra citada.

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Figura 47: Farda e manto régio utilizados pelo Imperador Pedro II na abertura da Assembléia Geral, em 03 de maio de 1872, no Rio de Janeiro. Atualmente, a roupa está em exposição no Museu Imperial de Petrópolis, na mesma sala em que se encontra a tela D. Pedro na abertura da Assembléia Geral, de Pedro Américo. A murça amarela, que já fora utilizado por Pedro I e retratado por Debret, revela um sofisticado trabalho de arte plumária com penas de papo de tucano, numa referência à natureza tropical e aos mantos tupinambás. Pode-se dizer que a roupa sintetiza o ideal de unificar o país sob o símbolo do índio, representante do Brasil “original”. Fonte: Sítio do Museu Imperial de Petrópolis, Projeto DAMI (Digitalização do Acervo do Museu Imperial). http://200.216.53.106:10358/handle/acervo/81. Acesso em 24/08/2013.

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Figura 48: Afresco de Domenico de Angelis representando uma das cenas finais de O Guarani, em uma das paredes do Salão Nobre do Teatro Amazonas, em Manaus. Na pintura, vê-se o herói indígena Peri salvando a desfalecida donzela Ceci do incêndio que consumia a fortaleza em que ela vivia, a casa do fidalgo português D. Antônio de Mariz. O índio carrega a amada nos braços, apoiando-a no ombro direito – e demonstra a força e a coragem que tanto definiam o seu caráter de “índio-cavaleiro”. Outro detalhe interessante é que Peri se equilibra sobre um tronco de palmeira, numa referência direta ao texto de Alencar – que, por sua vez, não deixa de antecipar a apoteose do romance, quando o guerreiro arranca uma palmeira com os próprios braços, durante o dilúvio. O entorno do afresco também merece atenção: percebe-se que a pintura da coluna grega reproduz a pela da onça-pintada, símbolo de brasilidade (e ferocidade). A mescla de referências ao exotismo tropical e ao classicismo europeu dá ao ambiente um caráter eclético, representativo do apogeu do ciclo da borracha, no final do século XIX. O Teatro Amazonas foi inaugurado em 1896, após a Proclamação da República, portanto. Entretanto, a estética do interior do prédio revela que o imaginário imperial continuava a ser reproduzido. Impossível não lembrar da reflexão de Alfredo Bosi sobre a fusão entre natureza e arquitetura: “O processo europeu de dominação vai assimilar os dados da natureza: desenhará na selva formas góticas e clássicas, fazendo o rio correr no meio de arcarias de verdura e de capitéis formados por leques de palmeiras.” In: BOSI, A. Obra citada. Foto do autor.

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Figura 49: Detalhe de afresco de Domenico de Angelis, em uma das paredes do Salão Nobre do Teatro Amazonas, em Manaus. Peri salva Ceci do incêndio que destrói a casa de Mariz, equilibrando-se sobre um tronco de palmeira. Escreveu Alencar no Capítulo X da Quarta Parte, intitulado Cristão: “De repente, um grande clamor soou em torno da casa; as chamas lamberam com suas línguas de fogo as frestas das portas e janelas; o edifício tremeu desde os alicerces com o embate da tromba de selvagens que se lançava furiosa no meio do incêndio. Peri, apenas ouviu o primeiro grito, reclinou sobre a cadeira e tomou Cecília nos braços; quando o estrondo soou na porta larga do salão, o índio já tinha desaparecido. Apesar da escuridão profunda que reinava em todo o interior da casa, Peri não hesitou um momento; caminhou direito ao quarto onde habitara sua senhora e subiu à janela. Uma das palmeiras da cabana estendia-se por cima do precipício e apoiava-se a trinta palmos de distância sobre um dos galhos da árvore que os Aimorés tinham abatido durante o dia para tirarem aos habitantes da casa a menor esperança de fuga. Peri, apertando Cecília nos braços, firmou o pé sobre essa ponte frágil, cuja face convexa tinha quando muito algumas polegadas de largura. Quem lançasse os olhos nesse momento para aquela banda da esplanada veria ao pálido clarão do incêndio deslizar-se lentamente por cima do precipício um vulto hirto, como um dos fantasmas que, segundo a crença popular, atravessavam à meia-noite as velhas ameias de algum castelo em ruínas. A palmeira oscilava, e Peri, embalando-se sobre o abismo, adiantava-se vagarosamente para a encosta oposta. Os gritos dos selvagens repercutiam nos ares de envolta com o estrépito dos tacapes que abalavam as portas da sala e as paredes do edifício. Sem se inquietar com a cena tumultuosa que deixava após si, o índio ganhou a encosta oposta, e segurando com uma mão nos galhos da árvore, conseguiu tocar a terra sem o menor acidente.” In: ALENCAR, J. Obra citada, p. 271. Foto do autor.

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III. 1. 3 – E deu Tupi or not Tupi: eis a visão do (a) artista

Nada de plumas, franjas, brocados, bordados, rendas, babados, arabescos e cordões luxuosos. O quarto setor do “delírio” de Rosa Magalhães usou e abusou de materiais plásticos, malhas e ferros aparentes. Uma ruptura: da rebuscada estética que enredou O Guarani (o setor “barroco” do desfile) à tradução visual do Manifesto Antropófago por meio de obras de Tarsila do Amaral, “limpas” e de formas “estranhas” – e provavelmente consideradas “pobres” por aqueles que idolatram o veludo. Um exemplo de tradição da ruptura, nos termos de Octávio Paz, para quem a modernidade se faz de negações das tradições anteriores, ainda que em tal movimento estejam as estacas e as vigas de novas tradições e que as tradições anteriores jamais sejam implodidas por completo.269 Contraste que, em diálogo com Karl Erik Schollhammer, pode ser entendido como ilustração do contraditório espírito modernista, comprometido com o processo de revalorização da iconografia nacional por meio de uma linguagem que, além de moderna e universal, valorizava o arcaico, o primitivo e a “expressão genuína da identidade brasileira,”270 tencionando global e local, velho e novo, índios imbuídos de nobreza cristã e selvagens que não foram catequizados – fizeram foi carnaval e comeram o Bispo Sardinha, desafiadores e indóceis, resistindo às incursões coloniais271. Uma “ambiguidade criativa”, em suma: “a vontade de transgressão da tradição e, por outro lado, o desejo de recuperação redentora da mesma.”272 Ambiguidade complexa, observável no corpo do desfile em estudo. À primeira vista, o salto estético parece uma bem sucedida tentativa de expressar as diferenças entre o índio romântico de Alencar, o “índio conformado e bonzinho de lata de bolacha”273, e o canibal inveterado de Oswald de Andrade, autor do Manifesto.

269 Ver PAZ, Octávio. A Tradição da ruptura. In: Os Filhos do Barro: do Romantismo à Vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 270 SCHOLLHAMMER, Karl Erik. A imagem canibalizada: a Antropofagia na pintura de Tarsila do Amaral. In: ROCHA, João Cezar de Castro; RUFFINELLI, Jorge (Org.) Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em cena. São Paulo: É Realizações Editora, 2011, p. 268. 271 Tal é o que defende o pesquisador Christopher Dunn, para quem “o manifesto de Oswald retrata o índio como uma alegoria do que se perdeu na violenta imposição da civilização européia.” O índio, nesse sentido, “deixa de representar uma ‘essência’ nacional e imutável” e passa a expressar outros valores, notadamente agressivos. In: DUNN, Christopher. Brutalidade Jardim. A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 37. 272 Ibidem, p. 268. 273 GOMES, Heloisa Toller. Antropofagia. In: FIGUEIREDO, Eurídice. Conceitos de Literatura e Cultura. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2010, p. 41. 111

Heloisa Toller Gomes concorda com e explica que o selvagem da Antropofagia de 28 é comparável ao “mau selvagem” de Montaigne:

O índio oswaldiano não era o “bom selvagem” de Rousseau, acalentado pelo Romantismo e, entre nós, “ninado pela suave contrafação de Alencar e Gonçalves Dias”. Tratava-se de um indianismo às avessas, inspirado no selvagem brasileiro de Montaigne (Des cannibales), de um “mau selvagem”, portanto, a exercer sua crítica (devoração) desabusada contra as imposturas do civilizado.274

A expressão “indianismo às avessas” é interessante porque dá o tom da quinta alegoria do desfile, onde as composições sambavam sobre estruturas metálicas que lembravam andaimes, pontes e passarelas treliçados, o avesso do luxo em dourado e vermelho apresentado na interpretação do Scala de Milão e um tema urbano encontrado na produção de Tarsila do Amaral, como nas telas E.F.C.B., de 1924; São Paulo, também de 1924; e La gare, de 1925. Entre as estruturas de ferro preto, não havia marcas do esplendor tropical convencional, com bromélias, orquídeas e onças-pintadas. Os símbolos naturais visualmente apregoados eram cactos espinhosos, mamoeiros de frutos nada singelos e animais considerados feios, pouco valorizados, como o tatu. O próprio contraste entre a natureza estilizada e elementos próprios de parques industriais (imagem que voltaria com força total na Tropicália) evidenciava que o índio do Manifesto de Oswald não estava circunscrito a uma tribo distante e incomunicável, antes ao lado de automóveis e telas de cinema a exibir filmes americanos, símbolos da modernidade e do “progresso”, como ironiza Mário de Andrade ao levar o anti-herói Macunaíma para a São Paulo dos anos 20, mescla de tecnologia e provincianismo. Na sinopse do enredo, a carnavalesca ressaltou o contraste e rapidamente explicou as origens da Antropofagia cultural:

Um grande movimento veio sacudir a arte brasileira, nos idos anos 20, dando início ao Modernismo no Brasil. No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente ... A natureza na brasilidade modernista é simbolizada na selva. "Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade", anotou Oswald de Andrade. Somos bárbaros ! ... Avante !... e avante fomos com um movimento que se seguiu logo ao modernista da Semana de 22. Inicia- se uma nova era, a Antropofágica.

274 CAMPOS, Haroldo de. Uma poética da radicalidade. In: Oswald de Andrade – obras completas, VII: poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1972, p. li/lii. Citado em GOMES, H. Obra citada, p. 41. 112

"Tupi or not Tupi, that is the question... Alegria é a prova dos nove... Filhos do sol, encontrados e amados pelos imigrados, pelos traficados e pelo turista, no país da cobra grande. Nunca fomos catequizados, fizemos foi carnaval. O índio vestido de senador do Império, ou figurando nas óperas de Alencar, cheio de bons sentimentos portugueses. Contra o índio tocheiro, afilhado de Catarina de Médicis". Sabe-se que o manifesto antropofágico teve um precedente no manifesto canibal dadaísta. Não há nada de espantoso nisso: com os sucessos arqueológicos e etnológicos e a voga do primitivismo e da arte africana, no começo do século XX, era natural que a metáfora do canibalismo entrasse para a semântica dos vanguardistas europeus. A nossa Antropofagia, entretanto, é bem diferente. Assimila as influências externas, funde com a nossa natureza nacional e produz uma obra totalmente transformada em sua essência. A Antropofagia é a única filosofia original brasileira e o mais radical dos movimentos que produzimos.275

O trecho é longo e traz um balaio de apontamentos que devem ser calmamente investigados (estamos, aqui, no olho do furacão). O primeiro dado curioso é a aparente ausência de Tarsila do Amaral: Mário (por meio da citação de Macunaíma) e Oswald são mencionados, Tarsila não. No entanto, na narrativa visual do desfile um setor inteiro foi dedicado a ela (cinco alas e uma alegoria), seguindo a justificativa segundo a qual “o manifesto antropofágico de Oswald de Andrade e o desenho de Tarsila do Amaral são elementos decisivos para uma nova era nas artes.” É de se supor que Rosa Magalhães escolheu Tarsila como grande (talvez única de identificação imediata) representante das artes plásticas que beberam e comeram no alguidar do Manifesto, confundindo-se a obra da artista com o panfleto redigido pelo então marido Oswald e não havendo, por consequência, a necessidade de misturar ao setor outras referências visuais, para além das tintas da pintora276. Ora, o desenho Abaporu, imagem-síntese e estopim do antropofagismo de 28 (e costumeiramente confundido com Antropofagia, como ocorreu durante a transmissão televisiva da TV Globo) ilustrou o primeiro número da 1ª Dentição da Revista de Antropofagia, publicado em maio de 1928, em São Paulo. A variação Antropofagia, por sua vez, apareceu duas vezes, na 2ª Dentição: em 17/03/1929 (apenas o risco) e 19/07/1929 (fotografia da tela). As imagens mais famosas da pintora (das mais famosas das artes nacionais, bem verdade) emprestaram os pés gigantescos e as cabeças minúsculas ao papel-jornal da Revista, retendo em suas formas

275 MAGALHÃES, R. Obra citada. 276 Façamos justiça: ao longo das duas Dentições da Revista de Antropofagia diferentes artistas tiveram suas obras expostas nas páginas da polêmica publicação. São eles: Maria Clemencia, Rosario Fusco, Antonio Gomide, Pagú, Di Cavalcanti e Cicero Dias. 113

o ideário do movimento. Metonimicamente, Tarsila é a parte que, no desfile da Imperatriz, representou o todo: o Modernismo de 22, a Antropofagia de 28, a efervescência cultural da “etapa experimental mais intensa da cultura brasileira”277. O que Rosa fez foi abraçar a expressão Tarsiwald, de Mário de Andrade, que, semelhante à imagem Antropofagia, irmã mais moça do Abaporu, funde o “casal 20” da nossa década de 20; texto e pintura expressavam o mesmo ideário devorador.278 A obra de Tarsila pode ser entendida como propulsora do Manifesto e por vezes chega a ser considerada superior, à exceção de Macunaíma, à produção literária do chamado “modernismo destrutivo” (a primeira e mais radical fase do modernismo literário brasileiro, de 1922 a 1930).279 Aracy Amaral explica que a tela Abaporu, pintada em 1928 e atualmente integrada ao acervo do Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires (MALBA), retornando ao Brasil apenas em ocasiões esporádicas (um desterro incômodo), propiciou a eclosão da Antropofagia oswaldiana. Segundo a pesquisadora, “nenhuma das telas de Tarsila do final dos anos 20 teve o impacto do Abaporu, chegando à criação de um movimento que influenciaria a literatura do tempo.”280 A história desse “impacto” é mais um daqueles episódios da vida cultural brasileira que deixariam marcas inapagáveis nas gerações subsequentes:

No dia 11 de janeiro de 1928 Tarsila oferece a Oswald de Andrade, como presente de aniversário, seu último quadro. Ao vê-lo, Oswald impressionou-se profundamente e chamou por telefone o poeta Raul Bopp, nesse dia em São Paulo. Ambos olharam a pintura e Oswald comentou: “É o homem, plantado na terra.” Tarsila se recorda, conforme nos deu em depoimento, dos dois amigos discutindo a pintura e de ouvir Raul Bopp dizer: “Vamos fazer um

277 Assim o teórico das vanguardas Jorge Schwartz se refere ao período de 1922 a 1929, da Semana de Arte Moderna ao crack da Bolsa e à crise do café. In: SCHWARTZ, Jorge. Fervor das Vanguardas. Arte e Literatura na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 33. 278 Karl Erik Schollhammer defende isso ao dizer que “discutir a troca de influências entre as artes visuais e a literatura no movimento modernista já não é novidade para a crítica literária, uma vez que, para os modernistas, o próprio esforço artístico de criar uma expressão inovadora, no que se refere à tradição, significava romper as fronteiras entre gêneros e disciplinas. Assim, letras e artes se aproximaram, cúmplices, superando, ao mesmo tempo, o discurso realista e a imagem mimética. A imagem se ‘textualizava’ na procura de uma linguagem pictórica renovadora da herança do naturalismo e o texto poético incluía elementos sonoros e visuais em busca de efeitos sinestésicos que refletiam uma sensação mais íntegra, plena e sensual da moderna realidade urbana.” In: SCHOLLHAMMER, K. E. Obra citada, p. 267/268. 279 Aqui, é importante que se diga que Tarsila do Amaral (assim como Rosa Magalhães, atualmente) foi uma artista preocupada em escrever sobre o seu trabalho. A pintora, além das conhecidas cartas trocadas com interlocutores como Mário de Andrade, escrevia crônicas sobre arte muito interessantes, que merecem ser consultadas. Ver: AMARAL, Aracy. (org.) Tarsila Cronista. São Paulo: Edusp, 2001. 280AMARAL, A. (textos). Tarsila do Amaral. São Paulo: Produzido e Editado por Fundação Finambrás em Homenagem aos 50 anos do Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1998, p. 42/43. 114

movimento em torno desse quadro?” Qual o título a ser dado à pintura? Era tão intensa a vinculação telúrica que emanava da figura central que correram ao dicionário tupi-guarani de Montoya, herdado por Tarsila de seu pai, para obter o nome para a tela. Finalmente compuseram a palavra: Abaporu. Aba: homem; poru: que come.281

Alcmeno Bastos, que estudou as relações entre os relatos de Hans Staden e o Manifesto Antropófago, apresenta um outro e saboroso episódio sobre a gênese da Antropofagia oswaldiana:

Raul Bopp, autor de Cobra Norato (1931), integrante da primeira geração modernista e participante da corrente antropofágica entre 1927 e 1929, conta que certa noite, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade “resolveram levar o grupo que frequentava o solar (de Tarsila) a um restaurante situado nas bandas de Santa Ana”, especializado em rãs. À chegada do prato, “entre aplausos”, “Oswald levantou-se e começou a fazer o elogio da rã, explicando, com uma alta percentagem de burla, a teoria da evolução das espécies.” Citando outros imaginários, “os ovistas holandeses, a teoria dos homúnculos, os espermatistas, etc”, provou “que a linha da evolução biológica do homem, na sua longa fase pré-antropoide, passava pela rã.” Ao que Tarsila do Amaral, no clima jocoso da explicação de Oswald, comentou: “- Em resumo, isso significa que, teoricamente, deglutindo rãs, somos uns... quase antropófagos.” Comenta Raul Bopp: “A tese, com um forte tempero de blague, tomou amplitude. Deu lugar a jogo divertido de ideias. Citou-se logo o velho Staden e outros clássicos da Antropofagia: / ‘Lá vem a nossa comida pulando’”. Ali mesmo, Oswald de Andrade, “no seu malabarismo de ideias e palavras, proclamou: Tupy or not tupy, that is the question”.282

Independente da veracidade da cena (Tarsila e Oswald, segundo anota Alcmeno Bastos na sequência do texto, não teriam confirmado a história), é de se convir que não há lugar e momento mais apropriados para a erupção da centelha antropofágica que uma mesa, durante uma refeição. Com ou sem as rãs no estômago, fato é que o Abaporu foi pintado e Oswald escreveu o Manifesto, despejando no papel o resultado de uma extensa deglutição intelectual: o autor já havia redigido e publicado o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, no Correio da Manhã de 18 de março de 1924, e consumido os manifestos das vanguardas européias publicados até então – e estes foram muitos, entre os quais o Manifesto Técnico da Literatura Futurista, de 11 de maio de 1912, redigido por Marinetti, em Milão; o Manifesto-Síntese A Antitradição Futurista, de 29 de julho de 1913, redigido por Guillaume Apollinaire, em Paris; a Bofetada no Gosto Público,

281 Ibidem, p. 43. 282BASTOS, A. Obra citada, p. 174. 115

manifesto do Cubofuturismo russo, de dezembro de 1912, redigido por Burliuk, Kruchënik, Maiakovski e Khlebnikov, em Moscou; o Manifesto do Senhor Antipirina, redigido por Tristan Tzara e lido na primeira manifestação dadá, em Zurique, em 14 de julho de 1916; e o Manifesto do Surrealismo, de 1924, redigido por André Breton, em Paris. O dadaísmo, especificamente, teve uma sequência de manifestos, a maioria de nomes inusuais, como o Manifesto sobre o amor fraco e o amor amargo, de 12 de dezembro de 1920. As leituras dos panfletos eram acontecimentos de grande repercussão intelectual.283 Rosa Magalhães menciona, na sinopse do enredo de 2002, o “manifesto canibal dadaísta”, considerado precursor do Manifesto Antropófago. Trata-se do Manifesto Canibal Dadá, de Francis Picabia, lido na “noite Dadá”, no Théâtre de la Maison de l'Oeuvre, em Paris, no dia 27 de março de 1920. O texto de Picabia tem acordes niilistas e ecos nietzschianos, afirmando, num trecho bastante forte: “Morre-se como herói ou idiota, o que é a mesma coisa. A única palavra que não é efêmera é a palavra morte. Vocês amam a morte para os outros. À morte, à morte, à morte.”284 Na sequência do texto, o autor provocativamente afirma que o dinheiro, ao contrário, não morre; o dinheiro é Deus e um “personagem sério”, aquele que confere honradez aos homens. A negação iconoclasta das crenças humanas se dá com a repetição da palavra nada: “DADÁ, este não cheira a nada ele é nada, nada, nada. / Como as esperanças de vocês ele é: nada / como os paraísos de vocês: nada / como os ídolos de vocês: nada / como os artistas de vocês: nada / como os heróis de vocês: nada / como as religiões de vocês: nada.” A ideia de que Dada é nada não é patente de Picabia, afinal, no Manifesto Dadá 1918, Tristan Tzara abre um trecho com a afirmação de que “Dadá não significa nada.”285 Tzara e Picabia eram amigos, tanto que o segundo ilustrou o Manifesto do Senhor Antipirina redigido pelo primeiro. As negações dadaístas reverberaram no Brasil e foram incorporadas pela Antropofagia oswaldiana. Nesse ponto, é preciso destacar a ideia de que, para além de qualquer ufanismo em verde e amarelo, o Modernismo de 22, do qual o Manifesto Antropófago é filho temporão, não é um produto integralmente brasileiro se buscarmos a “originalidade

283 Informações retiradas de TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. Apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 18ª Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. 284 Disponível no sítio http://luisalbertowarat.blogspot.com.br/2011/08/manifesto-canibal-dada.html. Acesso em 13/09/2013. 285 TELES, G. M. Obra citada, p. 138. 116

teórica” da Semana que abalou as estruturas culturais da conservadora São Paulo dos anos 20; de um modo geral, é possível afirmar que o conceito de Antropofagia começa a ganhar corpo quando as vanguardas européias são apropriadas por autores como Oswald de Andrade (e ressignificadas no contexto nacional, não sem marcos fundacionais, caso dos manifestos que pipocaram antes do Antropófago). Logo, para se entender o contexto modernista e, principalmente, a Antropofagia, é preciso lançar olhos para o momento histórico em que eclodiram as vanguardas européias; o Modernismo de 22 não pode ser adequadamente analisado em si, restrito ao contexto brasileiro, mas em relação à efervescência global das primeiras décadas do século XX. Aqui, frise-se que movimentos de vanguarda insuflados pelos teóricos europeus eclodiram em toda a América Latina, merecendo especial atenção os manifestos argentinos redigidos por Jorge Luis Borges.286 Segundo Jorge Schwartz, a discussão sobre os significados da palavra “vanguarda” ganhou a América Latina como um todo no final dos anos 20, no quadro de politização crescente do período entre-guerras (que descambou para os opostos das extremas direita, nos regimes nazifascistas, e esquerda, com a Revolução Bolchevique de 1917). Para ele, “inicialmente restrito ao vocabulário militar do século XIX (...), o termo ‘vanguarda’ acaba adquirindo na França um sentido figurado na área política, especialmente entre os discípulos de Saint-Simon.”287 Na visão de Peter Bürger, os movimentos, sucintamente

podem ser definidos como um ataque ao status da arte na sociedade burguesa. É negada não uma forma anterior de manifestação da arte (um estilo), mas a instituição arte como instituição descolada da práxis vital das pessoas. 288

Os artistas de vanguarda entendiam que as obras de arte, ao longo do século XIX, haviam sido descoladas da vida prática, servindo mais à manutenção do status quo e menos à politização e às transformações sociais. O grande objetivo dos vanguardistas, isso posto, era superar (em termos hegelianos) a arte “alienada”, fincando as bases para uma nova práxis vital, não mais atrelada ao individualismo burguês, à racionalidade

286 Jorge Schwartz elaborou um estudo muito detalhado acerca dos movimentos de vanguarda latino- americanos, sendo leitura fundamental para se compreender a repercussão dos manifestos europeus em nossos vizinhos continentais. Ver SCHWARTZ, J. Vanguardas Latino-Americanas. São Paulo: EDUSP, 2008. 287 Ibidem, p. 51. 288 BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 105. 117

acrítica e à propriedade privada. Uma tarefa difícil, nascida sob as sucessivas negações. fala em “movimentos artísticos insurrecionais” e explica que, diferentemente do que se pode pensar num primeiro momento, a explícita vinculação ao ideário de esquerda só viria a ocorrer mais tarde (caso observável no Segundo Manifesto do Surrealismo, de 1930, claramente inclinado ao marxismo). Num primeiro momento, a rebeldia não tinha siglas definidas. O próprio Oswald de Andrade declarou, em 1933, no prefácio de Serafim Ponte Grande, que “como tantos outros de sua geração, passara pela experiência vanguardista por efeito de uma inquietude mal compreendida, que ignorava a origem social e o fundo político dos seus anseios.”289 O Oswald que fala em 1933, esclarece Benedito Nunes, é um ferrenho militante marxista que faz uma espécie de breve retrospectiva, admitindo que a visão política do Manifesto de 1928 carecia de maior respaldo. Nos termos do pesquisador,

a bandeira rebelde, nem preta nem vermelha, do primitivismo nativo por ele sustentada a doses de sarcasmo, fora como uma doença infantil – o “sarampão antropofágico”, que atingira indistintamente aqueles que não tinham recebido a vacina marxista. Mais contraditório que o poeta e não menos do que o homem de partido que se tornara, o romancista Oswald de Andrade compunha o epitáfio de sua posição como “antropófago”, no ato de publicar o livro nela inspirado.290

As vaias, os berros e os urros da Semana de Arte Moderna de 1922, a partir da revisão crítica de Oswald, soam mais como provocação imatura que como projeto solidificado.291 Isso não compromete, porém, a contribuição material e simbólica da semana para o futuro das artes brasileiras; o que não se deve é encarar os fatos ocorridos no Teatro Municipal de São Paulo enquanto discurso canonizado, acima de questionamentos, e, principalmente (e eis o equívoco mais comum), fato inaugural e mais importante do Modernismo brasileiro292. Na visão de Sergio Paulo Rouanet, é

289 NUNES, Benedito. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, Oswald de. A Utopia Antropofágica. Rio de Janeiro: Editora Globo,1995, p. 07. 290 Ibidem, p. 07. 291 Mario de Andrade exporia semelhante criticidade retrospectiva em conferência pronunciada em 30 de abril de 1942, no Itamaraty, ao declarar que a Semana “tinha se limitado e uma renovação superficial da cultura brasileira, emaranhando-se num diletantismo hiperindividualista que desconhecia os grandes problemas da atualidade brasileira e mundial.” In: ROUANET, Sergio Paulo. Mal-estar na Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 340. 292 Tais problemas interpretativos são destrinchados por Maria Eugenia Boaventura na Introdução Chuva de Batatas, da coletânea 22 por 22 – A Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporâneos. O livro reúne centenas de textos publicados na imprensa à época da Semana de 22, figurando enquanto leitura imprescindível para se compreender o período em que o Modernismo tomou de assalto a capital paulistana. Nas palavras da autora, “a valorização desse minuto delirante de remodelação artística torna- 118

preciso entender, de início, que a Semana “vive em dois registros temporais, o da época em que ela surgiu e o da época em que ela é lida e interpretada.”293 Atentar para tal constatação quase óbvia evita a queda nas pirambeiras das certezas e tende a enriquecer as leituras sobre 22. Rouanet declara que é possível encarar a semana enquanto um “conjunto de manifestações artísticas”294, ou seja, uma “obra de arte total” por meio da qual os antigos conceitos de arte foram revistos de maneira histriônica, bem-humorada, até certo ponto anárquica. Fato inconteste é que é possível traçar uma linha de causas e efeitos entre a Semana e o Manifesto Antropófago de 1928. Rosa Magalhães apresentou, na sinopse do seu enredo sobre os canibalismos físico e cultural, uma definição bastante didática da Antropofagia oswaldiana: o movimento de assimilação de ideias estrangeiras que, após o processo de deglutição antropofágica, ganham outra significação no cenário brasileiro (latino-americano, terceiro-mundista, subdesenvolvido e historicamente colonizado) e podem, finalmente, ser exportadas – devolvidas às outras nações em um ato eminentemente político, afirmando uma determinada “identidade tupiniquim”. A carnavalesca utilizou a palavra metáfora, que aparece na definição de Antropofagia apresentada por Heloisa Toller Gomes. Diz a autora:

Para Oswald de Andrade, Antropofagia é tanto metáfora quanto diagnóstico e medida terapêutica. Metáfora do que deveríamos rejeitar, assimilar e superar em prol de nossa independência cultural; diagnóstico da sociedade brasileira reprimida por uma colonização predatória; medida terapêutica, porque forma eficaz de reação contra a violência aqui praticada pelo processo colonizador.295

Benedito Nunes, ao se debruçar sobre o tema, fala em “metafísica bárbara” e define o movimento antropofágico e a prática revolucionária por ele desfraldada como “rebelião individual” a serviço de uma revolução brasileira de cores primitivas, a Revolução Caraíba, da qual “as revoluções todas são aspectos parciais, incompletos; ‘maior que a Revolução Francesa’, emprestou seu impulso à rebeldia romântica, à

se muito artificial ao se colocar o evento como fato mais importante do Modernismo. Essa semana tão comemorada não inaugurou o movimento, foi apenas a festa planejada para anunciar o engatinhar de uma nova mentalidade, e os resultados precários conseguidos, até então, pela mesma turma que, em 1917, havia vibrado em silêncio com as ousadias de O Homem Amarelo e de A Boba, de Anita Malfatti (...).” In: BOAVENTURA, Maria Eugenia. (Org.). 22 por 22 – A Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporâneos. São Paulo: EDUSP, 2008, p. 14. 293 ROUANET, S. P. Obra citada, p. 339. 294 Ibidem, p. 339. 295 GOMES, H. T. Obra citada, p. 49. 119

revolução bolchevista, ao surrealismo e (...) à ação transformadora da técnica, que produziu (...) o selvagismo da sociedade industrial.”296 Observa-se, na interpretação de Benedito Nunes, a presença dos mesmos ideais que impulsionaram as vanguardas há pouco elencadas, inclusive a iconoclastia religiosa, comprovação de que a Antropofogia é fruto de uma tradição297. Nesse sentido, outro ponto que chama a atenção, à primeira leitura do trecho da sinopse de Rosa Magalhães, é a reprodução da passagem do Manifesto que contém a máxima “nunca fomos catequizados, fizemos foi carnaval” (uma das construções mais populares do texto, junto ao lema “A alegria é a prova dos nove”). A frase não apenas expõe a íntima relação entre a Antropofagia cultural e a carnavalização298 (já anunciada no título Abre-Alas, dado à apresentação da Revista de Antropofagia redigida por Antonio de Alcântara Machado) como refuta a Igreja Católica, também simbolizada na figura de Pero Fernandes Sardinha, personagem que Oswald ironicamente escolheu para redefinir o calendário da História do Brasil - a chegada da esquadra de Cabral às praias baianas não mais seria tomada como “início” do nosso país, mas o ano em que Sardinha supostamente foi devorado e deglutido pelos caetés, após um naufrágio no litoral de Alagoas (segundo as contas de Oswald, 1554; segundo dados históricos, 1556). Na busca pela carnavalização das tradicionais visões de país, o autor abraçava a ironia e a paródia, o chiste e o deboche299: ao invés do secular patriarcado de governadores gerais, padres e senhores de engenho (reunidos na expressão “pater famílias”), o matriarcado de Pindorama; em oposição ao índio à Alencar (eternizado em Peri, o “índio de alma branca”), o indócil canibal; expurgando o tabu freudiano e o punitivo Deus católico,

296 NUNES, B. Obra citada, p. 18. 297 Ainda sobre a influência das vanguardas européias na semana de 22, Sergio Paulo Rouanet escreve: “Os rapazes de 1922 defendiam a autenticidade da cultura brasileira (...), mas não eram nacionalistas primários. Afinal, seus autores de cabeceira eram os europeus Marinetti, Tzara e Breton. Como disse Mário (de Andrade), ‘o espírito modernista e suas modas foram importados diretamente da Europa.’” In: ROUANET, S. P. Obra citada, p. 344. 298 Ver MADUREIRA, Luís. “Intenção Carnavalesca de Ser Canibal”, ou: Como (não) ler o Manifesto Antropófago. In: ROCHA, J. C. de C..; RUFFINELLI, J. (Org.) Obra citada, p. 299/317. 299 É o que afirma Heloisa Toller Gomes: “a Antropofagia oswaldiana despontou envolta em atilado senso de humor; e seu caráter lúdico, parodístico e, portanto, crítico, não pode ser desdenhado. Ele realça a função do discurso irônico, em uma reflexão de matiz anarquista e contestadora, fazendo do riso e da utopia uma forma de combate e incorporando tanto o erudito quanto o coloquial e o prosaico na tessitura de sua escrita. (Helena, 1986, p. 76-78). Como sucede na paródia, há ali relações intertextuais com obras de autores anteriores: ao mostrar filiações diante de alguns destes (Montaigne, Rousseau, Freud, Keyserling), o texto oswaldiano marca um destacamento desvalorizador em relação a outros (Anchieta, Antonio Vieira, Goethe) e combina, num mesmo gesto dialético, a recapitulação e o repúdio, a continuidade e a ruptura (...)” In: GOMES, H. T. Obra citada, p. 48/49. É interessante notar que entre os autores situados na “ala da valorização” estão Rousseau e Montaigne, nomes presentes no enredo que Rosa Magalhães defendeu em 1994, Catarina de Médicis na corte dos Tupinambôs e Tabajères. 120

devorava-se o totem e exaltavam-se Guaraci300 e Jaci, “mães” dos viventes e dos vegetais, respectivamente. O anti-clericalismo se espraiava pelo texto e seria reforçado nas passagens em que, analogamente, pedras são atiradas contra vitrais de catedrais:

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. (...) Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. (...) Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: - É a mentira muitas vezes repetida. (...) A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. (...) Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.301

A gag estoura na afirmação de que “fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.”302 Novamente, percebe-se a inversão enquanto estratégia para a desestabilização dos paradigmas e a valorização das “coisas nossas”, como o carnaval, tema que permeia a primeira geração modernista desde 1922. A commedia dell’arte, que emprestou seus personagens à folia brasileira, aparece em Paulicea Desvairada, de Mário de Andrade, em cujo poema Inspiração a imagem da cidade de São Paulo é comparada às vestes de um arlequim: “Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...”303 No poema O Trovador a referência à comédia italiana permanece; Mário, ao final, exclama: “Sou um tupi tangendo um alaúde!”304 A mistura do índio com o pierrot, em conformidade com o imaginário de Rosa Magalhães, apresenta um acorde romântico e expressa o deslumbramento do jovem poeta. Em 1923, o deslumbramento daria lugar à euforia e ao gozo despudorado, no belo Carnaval carioca, poema longo e declaração de êxtase. O poeta descreve a surpreendente e reveladora experiência de brincar o carnaval de rua do Rio de Janeiro, abandonando a frieza e os preconceitos de “paulista” e “erudito” (nos termos de Alberto Pucheu, Mário de Andrade era “um quase completo estrangeiro na festa popular

300 Oswald se refere a Guaraci como uma divindade feminina. Diferentemente, a mitologia tupi-guarani mostra Guaraci enquanto deidade masculina, representação do Sol, irmão de Jaci, a Lua. 301 ANDRADE, O. Obra citada. 302 Ibidem. 303 ANDRADE, Mário. Paulicea Desvairada. São Paulo: Casa Mayença, 1922, p. 43. 304 Ibidem, p. 45. 121

carioca”305) e abraçando os sorrisos e requebrados do Brasil mestiço, que, segundo confissão feita a Carlos Drummond de Andrade, em carta enviada em 1924, podem valer uma biblioteca.306 No corpo do poema, o autor volta a afirmar: “Sou um tupi tangendo um alaúde.”307 Referências à cultura indígena e ao apreço pela chamada negrofilia308 se sobrepõem: o “amor curumim abre as asas de ruim papelão”309 e nos olhos da “morena boa” há “o verde das florestas, / Todo um Brasil de escravos banzo sensualismos, / Índios nus balanceando na terra das tabas, / Cauim curare cachiri / Cajás... Ariticuns... Pele de Sol! / Minha vontade por você serpentinando...”310 Ao final do poema, vigoroso (e tortuoso) retrato dos quatro dias de desvario vivenciados pelo poeta, “o préstito se vai”311 e resta o cenário das cinzas, a fadiga e o descanso dos corpos há pouco frenéticos, que adormecem “sem necessidade de sonhar.”312 Oswald de Andrade, na coletânea Pau Brasil, de 1925, também descreve um desfile carnavalesco (com alguns detalhes que chegam a lembrar as apresentações das escolas de samba dos dias atuais), no poema Na Avenida (aqui reproduzido na grafia original):

305 PUCHEU, Alberto. O “Carnaval Carioca (1923)”, de Mário de Andrade. In: PUCHEU, Alberto.; GUERREIRO, Eduardo. (org). O carnaval carioca de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, 2011, p. 41. 306 Na carta a Drummond, Mário de Andrade escreveu: “Eu conto no meu Carnaval Carioca um fato a que assisti em plena avenida Rio Branco. Uns negros dançando o samba. Mas havia uma negra moça que dançava melhor que os outros. Os jeitos eram os mesmos, mesma habilidade, mesma sensualidade mas ela era melhor. Só porque os outros faziam aquilo um pouco decorado, maquinizado, olhando o povo em volta deles, um automóvel que passava. Ela, não. Dançava com religião. Não olhava pra lado nenhum. Vivia a dança. E era sublime. Este é um caso em que tenho pensado muitas vezes. Aquela negra me ensinou o que milhões, milhões é exagero, muitos livros não me ensinaram. Ela me ensinou a felicidade.” In: PUCHEU, A. Ibidem, p. 35/36. 307 ANDRADE, M. Carnaval Carioca (1923). In: PUCHEU, A.; GUERREIRO, E. Obra citada, p. 09. 308 O termo é utilizado por Felipe Ferreira ao tratar do interesse que os autores modernistas passaram a nutrir em relação à africanidade. Nas palavras do autor: “O reflexo desse interesse pela cultura dos povos africanos e seus descendentes iria se expressar em terras brasileiras através de textos teóricos ‘modernistas’ – como os publicados na revista Estética, por exemplo -, através da utilização da temática negra nas artes – como o quadro A negra, pintado por Tarsila do Amaral, em 1923, ou o painel Samba e Carnaval que Di Cavalcanti pintaria, em 1929, para o Teatro João Caetano – ou na literatura, com o livro Essa negra Fulô, de Jorge de Lima. A relação entre a ‘negrofilia’ à francesa e a intelectualidade brasileira tem um bom exemplo em Oswald de Andrade, que, em uma conferência em Paris, em 1923, chegou a afirmar estar sentindo, naquela cidade, a ‘presença sugestiva do tambor negro e do canto do índio.’ É dentro desse movimento de abrangência internacional que irão surgir dois personagens carnavalescos que acabariam por representar a essência da festa brasileira: a baianinha e o malandro.” In: FERREIRA, F. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro, p. 256/257. É interessante notar que, em 1907, Pablo Picasso, ao pintar a tela Les demoiselles d'Avignon, já demonstrava o interesse internacional para com a cultura negra de que fala Felipe Ferreira; na obra, considerada um emblema do Cubismo, há referências a máscaras tribais africanas. 309 ANDRADE, M. Obra citada, p. 10. 310 Ibidem, p. 15. 311 Ibidem, p. 15. 312 Ibidem, p. 17. 122

Na Avenida

A banda de clarins Annuncia com os seus clangorosos sons A approximação do impetuoso cortejo A commissão de frente Composta De distinctos cavalleiros da boa sociedade Rigorosamente trajados E montando fogosos corceis Pede licença de chapeo na mão

20 creanças representando de vespas Constituem a guarda de honra Da Porta Estandarte Que é precedida de 20 damas Fantasiadas de pavão Quando 40 homens do cõro Conduzindo palmas E artisticamente fantasiados de papoulas Abrem a Allegoria Do Palacio Floral Entre luzes electricas313

Tanto Oswald quanto Mário viam no carnaval brasileiro (dedicando um carinho especial ao carnaval carioca) uma síntese social do país. A experiência de Mário, mais intensa (o poeta pretendia passar apenas um dia no Rio de Janeiro, justamente o sábado de carnaval, antes de visitar parentes e o amigo Manuel Bandeira, em Petrópolis, mas abandonou o intento original e se entregou à folia completa), lembra uma cena desenhada por em O País do Carnaval, romance de estreia do escritor baiano, cena esta que motivou Roberto DaMatta a redigir uma parte de seu Carnavais, Malandros e Heróis. No romance amadiano, publicado em 1930, o protagonista Paulo Rigger, blasé representante da elite agrária baiana que passara sete anos na França e desembarca no Rio de Janeiro em pleno carnaval, declara que se sentiu efetivamente brasileiro apenas duas vezes na vida: no carnaval carioca, quando sambou na rua314, e quando surrou a amante francesa Julie, punindo-a por uma traição. A partir dessa declaração polêmica (a percepção da “tragédia em descobrir-se brasileiro”315), DaMatta desenvolve a sua análise sobre a oposição entre a casa e a rua, espaços privado e público

313 ANDRADE, O. Pau Brasil. Paris: Sans Pareil, 1925, p. 64. 314 O texto de Jorge Amado em parte lembra os relatos poéticos de Mário de Andrade: “Quando Paulo Rigger saiu, um grupo de mulatas sambava na rua. Cor de canela, seio quase à mostra, requebravam-se voluptuosamente, num delírio. Paulo viu ali todo o sentimento da raça. Viu-se integrado no seu povo.” In: AMADO, Jorge. O país do carnaval. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 29. 315 DAMATTA, R. Obra citada, p. 90. 123

que supostamente se invertem no contexto dos festejos de carnaval. Contemporaneamente, a visão de DaMatta tem sido relativizada e considerada um tanto reducionista, afinal, definir o carnaval como prática de inversão social gera um problema de origem: outras manifestações (festivas ou não) também usam da inversão enquanto princípio norteador; o carnaval não é apenas um evento de inversão. Indiscutível, porém, é o fato de que a proposição de um estudo em “múltiplos planos” trouxe grandes contribuições aos estudos carnavalescos, figurando DaMatta enquanto leitura basilar para qualquer estudo que se proponha a pensar o carnaval brasileiro. Em Oswald de Andrade, o triunfo do tema do carnaval carioca se dá no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, originalmente publicado no Correio da Manhã de 18 de março de 1924. No segundo parágrafo do Manifesto, o autor afirma: “O Carnaval do Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica e rica.”316 No trecho, além de referências a raça e etnia (temática em voga nos círculos intelectuais de então), percebem-se as sementes do raciocínio que levaria Oswald, quatro anos depois, a redigir passagens do Manifesto Antropófago. O apreço pelo carnaval ganha teor religioso, numa provocativa profanação da religiosidade “oficial”, visão que também se expressa no texto de 1928, quando catequização e carnavalização são colocadas em polos opostos. A referência a Wagner e, por extensão, a comparação das óperas eruditas aos cordões carnavalescos de Botafogo317 não deixa de soar contemporânea; hoje, a ideia de Gesamtkunstwerk (obra de arte total) wagneriana (mencionada por Silviano Santiago e Sergio Paulo Rouanet) é aplicada aos estudos dos desfiles das escolas de samba, considerados obras de arte em si que reúnem manifestações artísticas complementares, vide o estudo A “ópera de rua” do carnaval: circularidade numa Gesamtkunstwerk tupiniquim contemporânea, de Isaac Caetano Montes, apresentado no 19° Encontro do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no dia 09 de outubro de 2013, no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica.

316 ANDRADE, O. A Utopia Antropofágica. Rio de Janeiro: Editora Globo,1995, p. 41. 317 É importante notar que Oswald inverte o olhar e sugere, nos termos de Christopher Dunn, que “os blocos e cordões de Botafogo chegam a eclipsar as óperas de Wagner, epítome da alta cultura européia consumida pela elite local. Essas manifestações populares, que ofuscam a cultura importada dos países dominantes com uma exaltação insurgente, são aclamadas como emblema da nacionalidade.” In: DUNN, C. Obra citada, p. 33. 124

O texto do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, em determinado momento, apresenta esquematicamente a tônica das ideias que Oswald sustentava: “Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros. Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.”318 Observa-se que a posição do Oswald de 1924, nesse ponto, é mais ortodoxa (e contraditória319) que aquela traduzida no manifesto de 1928, flexível e complexa. Em comparação ao ideal antropofágico de deglutição e assimilação da cultura estrangeira (portanto, uma importação “consciente” e enriquecedora, não a importação “de consciência enlatada”320), o ideário da Poesia Pau-Brasil, mais preso aos “frutos da terra”, chega a condenar a importação, supervalorizando a exportação das “coisas nossas”. A língua vulgar das ruas, a culinária, os minérios, a vegetação e a dança estão entre os “produtos” valorizados.321 O carnaval é a vedete. Na pintura de Tarsila do Amaral, o carnaval não poderia ficar ausente. No mesmo ano em que Oswald publicou o Manifesto da Poesia Pau Brasil, Tarsila pintou o quadro Carnaval em Madureira, óleo sobre tela que hoje pertence à Fundação José e Paulina Nemirovsky, de São Paulo. A obra é aparentemente simples, como bem aponta Felipe Ferreira; todavia, debaixo do véu da simplicidade há questões instigantes, “ligadas à obra da pintora e à expressão do modernismo nas artes plásticas brasileiras”,

318 ANDRADE, O. Obra citada, p. 42. 319 Ora, Oswald redigiu o Manifesto da Poesia Pau-Brasil assumidamente em diálogo com o modernismo de Blaise Cendrars, conforme declarou a Péricles da Silva Ramos, no Correio Paulistano de 26 de junho de 1949. O primitismo que encantava os artistas franceses despertou no poeta brasileiro a vontade de redigir um texto em defesa da exportação da cultura brasileira, contra a importação. No entanto, contraditoriamente, a própria motivação para a escrita do texto, bem como os referenciais teóricos, são importações européias. As palavras de Oswald são muito claras: “O primitivismo que na França aparecia como exotismo era para nós, no Brasil, primitivismo mesmo. Pensei, então, em fazer uma poesia de exportação, baseada em nossa ambiência geográfica, histórica e local. Como o pau-brasil foi a primeira riqueza brasileira exportada, denominei o movimento Pau-Brasil. Sua feição estética coincidia com o exotismo e o modernismo 100% Cendrars, que, de resto, também escreveu conscientemente poesia pau- brasil.” In: GOMES, H. T. Obra citada, p. 44. 320 Em oposição aos “importadores de consciência enlatada”, Oswald coloca “uma consciência participante, uma rítmica religiosa.” In: ANDRADE, O. Obra citada, p. 47/48. 321 Benedito Nunes definiu a questão com maestria: “O Manifesto Pau-Brasil, que é prospecto e amostra da poesia homônima, situa-se na convergência desses dois focos. Pelo primitivismo psicológico, valorizou estados brutos da alma coletiva, que são fatos culturais; pelo segundo, deu relevo à simplificação e à depuração formais que captariam a originalidade nativa subjacente, sem exceção, a esses fatos todos – uns de natureza pictórica (Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da favela...), folclórica (O carnaval), histórica (Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil), outros étnicos (A formação étnica rica), econômicos (Riqueza vegetal. O minério), culinários (A cozinha. O vatapá...) e linguísticos (A contribuição milionária de todos os erros). (...) Em tais princípios de sua poética, na acepção ampla do termo, princípios que podem ser aplicados à pintura de Tarsila desse período, encerra o Manifesto, como aspectos complementares de uma só concepção primitivista, um programa de reeducação da sensibilidade e uma teoria da cultura brasileira.” In: NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obra citada, p. 10. 125

questões que ajudam a compreender “a construção de um conceito de carnaval popular formulado a partir do diálogo entre a visão de uma participante da elite intelectual brasileira e a festa carnavalesca ocorrida no subúrbio de Madureira.”322 – e cabe, aqui, a comparação do excerto de Felipe Ferreira com a visão desenvolvida para com o trabalho de Rosa Magalhães na Imperatriz Leopoldinense, agremiação do bairro de Ramos, subúrbio carioca da “Zona da Leopoldina”, junto ao Complexo do Alemão; os questionamentos que a obra de Tarsila suscita são semelhantes àqueles suscitados pela obra da carnavalesca. De acordo com Felipe Ferreira, a presença de uma Torre Eiffel estilizada dá ao observador desavisado a certeza de que se trata de uma lembrança do período em que Tarsila morou e estudou na capital francesa, o que representaria um diálogo pré- antropofágico – a autora inserira o maior símbolo da Cidade Luz em um cenário do subúrbio de Madureira, com direito a casebres, barracos, mulheres negras, palmeira, morros e bandeiras coloridas, ressignificando-o. No entanto, a pesquisadora Nádia Battella Gotlib revela que um coreto imitando a Torre Eiffel foi construído em Madureira, em 1924. Tarsila, ao passar pelo Rio de Janeiro durante o carnaval daquele ano, na companhia de Oswald de Andrade, Blaise Cendrars, Olívia Guedes Penteado e demais personalidades do campo artístico, teria visto a versão tupiniquim da torre francesa e levado para a tela “as diversas versões da Torre Eiffel que vira, traduzindo ali suas vivências tanto em Paris quanto no Rio de Janeiro (...).”323 Ferreira ressalta que atentar para esses fatos não compromete a originalidade da pintura; na comparação com o trabalho de Rosa Magalhães ora analisado, é o equivalente a dizer que a transposição para a segunda alegoria do desfile das figuras monstruosas criadas por Theodore De Bry, por exemplo, não diminui a gradação artística da obra, ao contrário, torna a peça mais enovelada, com fios narrativos a serem desfiados em diferentes níveis de leitura. Desenvolvendo ainda mais a interpretação, a Torre Eiffel também aparece no poema Morro Azul, de Oswald de Andrade, parte da coletânea Pau Brasil. Eis o poema oswaldiano, na grafia de 1925: Morro Azul

Passarinhos Na casa que ainda espera o Imperador

322 FERREIRA, F. Carnaval em Madureira: modernismo e festa popular no Brasil. In: FERREIRA, F. Escritos carnavalescos, p. 166. 323 Ibidem, p. 167/168. 126

As antenas palmeiras escutam Buenos-Ayres Pelo telephone sem fios Pedaços de ceu nos campos Ladrilhos no ceu O ar sem veneno O fazendeiro na rede E a Torre Eiffel nocturna e sideral324

É de se convir que não se trata de uma visão tradicional do monumento francês. As referências aos passarinhos, ao “ar sem veneno” (o ar puro do interior, livre da poluição), à fazenda e à rede dão a entender que a torre surge, na mente do poeta, enquanto síntese imagética das memórias d’além-mar, do lado cosmopolita de Oswald, autor e eu-lírico que oscilava entre as fazendas de café provincianas e as gares e os boulevares da Cidade Luz (a Paris festiva imortalizada por Hemingway). A comparação entre os versos de Oswald e as pinceladas de Tarsila é possível e fortalece as interpretações daqueles que desconhecem a história do coreto. Assim como no episódio das rãs devoradas no restaurante de Santa Ana, narrado por Alcmeno Bastos, resta a ideia de que a visão de Tarsila para com o coreto de Madureira não é garantia de esclarecimentos: a interpretação de Carnaval em Madureira não se esgota neste ou naquele dado. Jorge Schwartz vê a pintura como “o quadro de Tarsila que (possivelmente) melhor traduz a oposição entre o rural e o urbano, o interior paulista e Paris, a periferia e o centro.”325 O autor sugere que a fazenda do interior de São Paulo e o subúrbio de Madureira, simbolicamente, representam a mesma coisa: o Brasil pouco desenvolvido, na periferia do mundo. O monumento de ferro, coreto carnavalesco ou torre do Champ de Mars, pode representar, tanto no poema quanto na pintura, o resumo de uma “utopia tecnológica”326. Ferreira situa a tela de Tarsila no contexto maior do modernismo brasileiro e conclui o seguinte:

Esse diálogo entre as artes do povo e a intelectualidade artística é, aliás, uma das marcas do modernismo que ajudaram a forjar um conceito de popular característico do início do século XX, associando a ideia de formação da nacionalidade brasileira à valorização do folclórico e do popular incorporados às criações intelectuais do movimento. Não é de se estranhar, portanto, a presença de elementos

324 ANDRADE, O. Pau Brasil. Paris: Sans Pareil, 1925, p. 48. 325 SCHWARTZ, J. Fervor das Vanguardas, p. 27. 326 Ibidem, p. 27. 127

‘típicos’ das festas populares – tais como coretos carnavalescos – nas obras modernistas.327

Tem-se, evidentemente, um contraste, recurso estilístico muito explorado pelo modernismo à Oswald de Andrade (e futuramente retrabalhado nas canções tropicalistas, onde a bossa e a palhoça, os aviões e os chapadões apareceriam lado a lado – variações da Torre Eiffel entre os casebres de Madureira?). A Antropofagia intensificou os contrastes, misturando em uma mesma tribo a racionalidade de intelectuais da envergadura de Montaigne, Rousseau e Goethe a mitos indígenas e instintos primitivos. Maria Helena Rouanet adverte, porém, que não se deve encarar a Antropofagia oswaldiana apenas pelo prisma das oposições que, por debaixo de um verniz poético bastante inflamado, terminam por mascarar um certo conformismo - não faltam artigos, dissertações e teses recém-publicados a desconstruir os discursos antropofágico e neo-antropofágico/tropicalista, mostrando que eles podem, sim, soar conservadores, sendo utilizados para a manutenção do establishment, cristalizados na idolatria328. A autora ressalta que “a Antropofagia se caracteriza por ser um processo de assimilação crítica do outro, e é por essa perspectiva que a funcionalidade discursiva de sua valorização deve ser pensada.”329 Ou seja: esquecer de redimensionar criticamente os brados de Oswald para incensar o Manifesto, pura e simplesmente, é cair na contradição de derrubar um altar para erigir outro, talvez maior e mais opulento. Especialmente no plano massivo, a visão celebratória não saiu de moda e atravessou os séculos a gerar documentários e coletâneas “em homenagem”, mas na Academia, associados à “decrépita” teoria crítica, os movimentos de vanguarda pareciam ter perdido o encanto (ainda pululam algumas publicações com mais confetes que pontos de inflexão, embora o modismo acadêmico aparentemente tenha vivido o seu apogeu até as últimas décadas do século passado, quando o finissecular “clima de fim de festa” –

327 FERREIRA, F. Obra citada, p. 168. 328 Exemplifica-se com a dissertação A politização da arte e a estetização da política, por que não? – o tropicalismo e o seu legado, de Henrique Campos Monnerat, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, em maio de 2013, e disponível no sítio http://www.academia.edu/3731641/A_POLITIZACAO_DA_ARTE_E_A_ESTETIZACAO_DA_POLITI CA_POR_QUE_NAO_-_o_tropicalismo_e_o_seu_legado; e com o ensaio Verdade Tropical: um percurso de nosso tempo, de Roberto Schwarz, parte da obra Martinha versus Lucrécia, publicada em 2012. Ambos os trabalhos, cujo foco é a Tropicália, retornam à Antropofagia oswaldiana e questionam o caráter conservador dos movimentos. 329 ROUANET, Maria Helena. Quando os bárbaros somos nós. In: ROCHA, J. C. C.; RUFFINELLI, J. (Org.) Obra citada, p. 174. 128

ressaca intensificada pela “grande derrota”330 do socialismo real - se apoderou da teoria da vanguarda e condenou a Antropofagia e demais correntes ao limbo dos antiquários). A postura deslumbrada, no universo de relativizações e incertezas da contemporaneidade, tem sido cada vez mais refutada pelos pesquisadores de olhar dialético, e este trabalho segue tal caminho – procura desconstruir os “pontos pacíficos” e dar voz aos dissonantes. Não há como passar despercebida, então, a afirmação de Rosa Magalhães (sedimentada na “história da literatura” de cartilhas e apostilas convencionais) de que “a Antropofagia é a única filosofia original brasileira e o mais radical dos movimentos que produzimos.” Tal “movimento radical”, em contraste com a sólida e vivaz certeza do trecho da artista, não virou um souvenir démodé, um discurso oficializado nas estantes da teoria? Não é a Antropofagia uma filosofia moribunda, anacrônica num mundo em que a literatura de entretenimento triunfa, o carnaval carioca se apropria de shows de Las Vegas sem a menor cerimônia e o cinema de arte agoniza em meio aos blockbusters?331 A questão é complexa e merece algumas páginas. Obviamente, as perguntas formuladas acima não passam de provocações embebidas no discurso segundo o qual, por exemplo, o uso que o carnavalesco Paulo Barros faz de números circenses e atrações dramáticas dos teatros e parques temáticos de Orlando e Las Vegas é seguramente um símbolo da deturpação do caráter das escolas de samba do Rio de Janeiro, modelo de folia decadente, e violência contra uma “cultura legítima e/ou original”332. A despeito da qualidade do trabalho final apresentado e da complexidade discursiva deste ou daquele enredo, fato é que a crítica (da Antropofagia e da Tropicália, bem como dos desfiles das escolas de samba) exige do seu autor um cuidado redobrado: não se deve pular da louvação ao esmigalhamento; da celebração

330 Ver as obras Alegorias da derrota, de Idelber Avelar, e Direita para o social e esquerda para o capital, organizado por Lúcia Maria Wanderley Neves. 331 Questionamentos de ordem semelhante dão início ao artigo A Felicidade Guerreira – Oswald de Andrade e as Utopias, de André Bueno. O autor questiona: “Como ler Oswald de Andrade agora (1990), comemorando o centenário de nascimento , mais os setenta anos da Semana de Arte Moderna, em que tudo parece celebração oficial, conforto, lugar estabelecido? Como ficam, lidas a partir dos desencantos e revisões deste final de século, a invenção da moderna cultura brasileira, antropofágica, a crítica do Patriarcado, a defesa do Matriarcado de Pindorama, a figura do ‘Bárbaro-Tecnizado’, a América como local da imaginação utópica, inventiva, em movimento, versus a aridez do espírito calvinista, do negócio e do capitalismo? Seriam apenas ideias do passado, roteiros já esgotados, impulsos críticos agora oficializados, uma criação moderna, porém datada, pedindo superação?” In: BUENO, André. A Felicidade Guerreira – Oswald de Andrade e as Utopias. In:TELES, G. M. et. al. Oswald Plural. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1995, p. 63. 332 A questão será aprofundada à frente, quando a relação entre artistas e patrocinadores será discutida e exemplificada, por exemplo, pela relação ainda pouco estudada entre a Coca-Cola, principal símbolo do capitalismo norte-americano, e as escolas de samba cariocas, nos anos 50. 129

despudorada do carnaval de outrora à condenação do carnaval contemporâneo, com as armas do saudosismo333. Uma possível e primeira resposta para os questionamentos está no trecho de Maria Helena Rouanet mencionado: deve-se reler o Manifesto oswaldiano, hoje, através da perspectiva crítica da atualização das máximas forjadas há mais de oitenta anos. Justamente tal preocupação motivou os pesquisadores Jorge Ruffinelli e João Cezar de Castro Rocha à organização da coletânea Antropofagia Hoje? Oswald de Andrade em Cena, de 2011, mesmo ano que Oswald foi o autor homenageado da 9ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), em cuja conferência de abertura o professor Antonio Cândido atentou para a necessidade de que os princípios antropofágicos sejam relidos à luz do século XXI e das demandas socioculturais emergentes (entre as quais é possível elencar a posição dos países outrora chamados “terceiro-mundistas” frente aos Estados Unidos e à Europa – e aos desafios da crise econômica global; o papel das culturas periféricas no caldeirão da cultura de massa; a biopirataria e o interesse global cada vez mais voltado para a Amazônia e as questões ambientais; as estratégias de autoafirmação e organização das minorias; as causas indígenas, feridas abertas nos países latino-americanos; as imigrações e o tão falado – e por vezes sangrento – “intercâmbio cultural”; a “nova negrofilia”, agora ligada a políticas de ações afirmativas; os conflitos religiosos e as reconfigurações das “guerras santas”; as novas concepções de gênero e sexualidade; os debates artísticos acerca dos limites da autoria, das rotulações e da politização da arte – o “dilema” ética versus estética; entre outras e igualmente tortuosas questões que envolvem, via de regra, uma “luta com os automatismos intelectuais de nossa tradição”334). No mesmo evento, o crítico literário João Cezar de Castro Rocha defendeu a repolitização da antropofagia no mundo globalizado, afirmando que “num conjunto de relações econômicas, políticas e

333 Não à toa, Eneida coloca, entre os “acérrimos” inimigos do carnaval, a chuva, a polícia e os saudosistas. Sobre os últimos, declara: “naturalmente, ontem como hoje, quando os saudosistas achavam que o carnaval estava morrendo, quando declaravam que o carnaval bom fora o do seu tempo, os foliões continuavam sem dar-lhes atenção, as festas sucediam-se e os mesmos jornais que publicavam os pessimismos, os disparates saudosistas, eram os primeiros a contar as alegrias desvairadas, a grande e bela e pujante alegria do carnaval.” In: ENEIDA. Obra citada, p. 222. Felipe Ferreira dialoga com a autora e afirma que “cabe a nós entender as novas fantasias e nos livrar das ideias cristalizadas. Cabe àqueles que estudam o carnaval e gostam de carnaval vestir o pierrô de Eneida e continuar suas pesquisas. Não o velho pierrô que a ‘amiga dos sambistas’ usava, mas sim o pierrô contemporâneo que ela estaria vestindo agora, sem saudades dos antigos carnavais, posto que saudosistas e derrotistas estavam, junto com a chuva e a polícia, entre aqueles que ela considerava os grandes inimigos da festa carnavalesca.” In: FERREIRA, F. Sem saudades do carnaval. In: FERREIRA, F. Escritos carnavalescos, p. 38. 334 Expressão de Eduardo Viveiros de Castro, para quem “o perspectivismo é a retomada da Antropofagia oswaldiana em novos termos.” In: http://root.ps/download/estrategiasconjuntas/VIVEIROS-DE- CASTRO-Eduardo-Encontros-1.pdf, p. 122. Acesso em 25/11/2013. 130

culturais assimétricas, a antropofagia é uma arma de combate disponível para quem está no polo menos favorecido.”335 Nessa linha de raciocínio debatida na FLIP, há dezenas de outros autores que propõem atualizações da crítica oswaldiana. O escritor João Almino entende que “não faria sentido hoje em dia tentar ressuscitar o que o Manifesto Antropófago enterrou. Caberia, sim, analisar suas limitações e atualizar sua crítica.”336 Ironicamente, critica os teóricos que, numa atitude de negação do legado modernista, fazem “greve de fome” e se fecham culturalmente, intentando a questionável preservação da “originalidade”. Lançando olhos para os híbridos culturais de que fala Canclini, propõe a valorização do dissenso e a articulação de movimentos sociais locais; nesse ponto, o autor adverte: não se trata de “reforçar ou criar guetos, mas promover a valorização social e os direitos humanos, civis e sociais337, e lutar contra a discriminação.”338 A Antropofagia, nesse caminho, pode ser uma ferramenta importante para se pensar as políticas culturais hodiernas (ponto que será o foco do último capítulo deste trabalho). Vera Follain de Figueiredo não vê na atitude antropofágica de Oswald de Andrade um deslumbramento para com a modernização nem o consórcio conformismo/conservadorismo que pode ser genealogicamente associado a um herdeiro da oligarquia cafeeira paulista, o que, na visão dela, faz com que o texto nunca tenha perdido a atualidade. A autora entende que Oswald optou por jogar com o binômio tradição/modernidade com fins críticos, não conformistas, refutando a crença no progresso teorizada por Walter Benjamin339, crença esta que seria testada em definitivo após a carnificina das duas Grandes Guerras e do terror atômico de Hiroshima e

335Disponível no sítio http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/um-sentimento-de- inferioridade-cultural. Acesso em 22/09/2013. 336 ALMINO, João. Por um Universalismo Descentrado. Considerações sobre a Metáfora Antropófaga. In: ROCHA, J. C. de C.; RUFFINELLI, J. (Org.). Obra citada, p. 59. 337 Pode parecer esquisito que um autor literário fale da Antropofagia enquanto caminho possível para se pensar novas articulações no campo jurídico. Jovens autores que transitam entre a teoria crítica do Direito e os estudos literários, porém, não se furtam ao uso da filosofia oswaldiana, reinterpretando-a e rompendo as barreiras entre as “disciplinas” tradicionais. É o que se vê, por exemplo, no artigo As engrenagens d’A Máquina: leituras transversais latino-americanas, de Arthur Victor Ferreira Tertuliano, Leonardo Augusto Bora e Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino, publicado na revista Captura Críptica, Revista Discente do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, em 2009. Disponível no sítio http://www.ccj.ufsc.br/capturacriptica/documents/n2v1/parciais/24.pdf. Acesso em 17/11/2013. 338 ALMINO, J. Obra citada, p. 61. 339 Vide o texto Sobre o conceito da história, de 1940, especialmente o fragmento de número 09, que analisa o quadro Angelus Novus, de Paul Klee. Disponível em BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996, p. 222/232. 131

Nagasaki.340 O pesquisador norte-americano Kenneth David Jackson, por sua vez, interpreta o Manifesto como uma contestação dos grandes projetos utópicos celebrados na virada para o século XX (que nos remetem à reconfiguração dos mapas geopolítico e sociocultural do mundo, no século XIX), explodidos em 1945 (com um epílogo em 1989, na destruição do Muro de Berlim). Na visão dele, “o Manifesto assume um papel cultural de instrução, apropriando-se da natureza brasileira para fazer um discurso de libertação sociocultural.”341 Ainda para o autor, é fundamental embasar a releitura e a revalorização do Manifesto nas discussões empreendidas nos círculos de estudos internacionais sobre os processos de globalização (uma delicada questão de “epistemologia política”342); expandindo a visão, numa perspectiva contra-hegemônica mais explícita, o texto pode contribuir para a denúncia dos “localismos globalizados” de que fala Boaventura de Sousa Santos.343 Em síntese, as proposições de Jackson orbitam ao redor da oposição entre global e local tencionada (com o tempero da galhofa, diga-se de passagem) por Oswald de Andrade, um “intelectual de Terceiro Mundo, porta-voz do seu lugar, seu povo e sua língua, sendo ao mesmo tempo uma pessoa de formação profundamente ligada ao Ocidente e ao iluminismo europeu.”344 Na linha de teóricos como Homi Bhabha, Jackson defende que Oswald abriu um “entre-lugar” tropical, vestindo as roupas da intelectualidade periférica pós-colonialista, nem colonial nem indígena, nem global nem local, na fronteira, portanto. Luiz Costa Lima é o marco teórico utilizado pelo pesquisador norte-americano, uma vez que o crítico brasileiro afirma que o Manifesto é a metáfora de uma questão existencial de raízes antigas (o abrasileiramento do to be or not to be shakespeariano é mais do que apropriado): até que ponto é possível romper com a tradição ocidental, a “tradição que herdamos”345 da abstrata razão iluminista, por meio da canibalização? Sergio Paulo Rouanet foi mais longe (e com mais ousadia e criatividade) nesse questionamento: “psicografou” o Manifesto Antropófago II, texto em que declara guerra à antropofagia caeté e celebra a antropofagia tupinambá. Trocando em miúdos, Rouanet

340 Ver FIGUEIREDO, Vera Follain de. Antropofagia: uma releitura do paradigma da razão moderna. In: ROCHA, J. C. de C.; RUFFINELLI, J. (Org.). Obra citada, p. 389/397. 341 JACKSON, K. David. Novas receitas da cozinha canibal. O Manifesto Antropófago hoje. In: ROCHA, J. C. de C.; RUFFINELLI, J. (Org.). Obra citada, p. 432. 342 Ibidem, p. 429. 343 Ver SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2006, p. 792. 344 JACKSON, K. D. Obra citada, p. 435. 345 Ibidem, p. 435. 132

entende que a antropofagia que levou à devoração do Bispo Sardinha (base para a feitura do Manifesto de 1928) é uma “antropofagia periférica”, obsoleta346 e “incapaz de alterar os rumos da história.”347 Enquanto os artistas e intelectuais caetés devoram o que julgam importante para a sua cultura, submetendo o “alimento” a um pré-julgamento diretivo enquadrado nas escalas valorativas, os tupinambás devoram tudo, inclusive eles próprios, autofágicos, heterofágicos e panfágicos.348 Na metáfora do Abaporu (Benedito

346 Com ironia parelha, o mesmo Sergio Paulo Rouanet, no ensaio A vingança do Bispo Sardinha, afirma que “os temas do modernismo transformaram-se em lugares comuns” e, a exemplo das outras vanguardas, enferrujaram sob a chuva dos anos. O termo antropofagia passou a ser utilizado para tudo, chegando o autor a dizer que “o Brasil inteiro rói, incansavelmente, o fêmur do bispo Sardinha.” A difusão de uma ideia simplificada (e por que não estereotipada?) das provocações oswaldianas enfraqueceu o peso ideológico do discurso de 1928. O mesmo enfraquecimento acometeu as vanguardas européias, especialmente o Surrealismo. A Antropofagia se difundiu enquanto cadáver de uma época, mas, evoca Rouanet, “o espírito do modernismo está a postos. Indomesticável, ele deve ser mobilizado contra sua contrafação, o modernismo vulgar.” Eis o advento da necessidade de atualização crítica. In: ROUANET, S. P. Mal-estar na Modernidade. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 344. 347 ROUANET, S. P. Manifesto Antropófago II. In: ROCHA, J. C. de C.; RUFFINELLI, J. (Org.). Obra citada, p. 49. 348 A questão não é nada simples e pode ser exemplificada, na seara do carnaval carioca, com a impressionante repercussão que teve o manifesto Nossa avenida vai além do carnaval, proposto pelo então candidato a prefeito do Rio de Janeiro, em 2012, Marcelo Freixo, do PSOL. No texto, assinado por nomes como Fernando Pamplona, Rachel Valença, Fábio Fabato, Alberto Mussa, Lilian Rabello, Luiz Fernando Reis, Eduardo Gonçalves e Luiz Antonio Simas, o candidato, entre inúmeros outros pontos (que, dada a explosão da polêmica, ficaram um tanto ofuscados) criticava a gestão do espetáculo “desfile das escolas de samba” e, principalmente, o predomínio de temas patrocinados pouco ou nada ligados à matriz sambista, como o festival Rock In Rio, a Coréia do Sul, a raça de cavalos Mangalarga Marchador e a revista Caras (temas que foram transformados em enredos pelas escolas Mocidade Independente de Padre Miguel, Inocentes de Belford Roxo, Beija-Flor de Nilópolis e Acadêmicos do Salgueiro, respectivamente, no carnaval de 2013). Advogando contra o direcionamento indiscriminado de verbas públicas às escolas de samba, o manifesto cutucava a onça: “Eis o reflexo de um poder público que se limita a administrar os recursos como balcão de negócios, já que a prefeitura não garante o papel de influência sócio-cultural representado por uma de nossas maiores riquezas simbólicas. Ora, faz-se necessária a atuação de um órgão municipal (Subsecretaria) dedicado a pensar a folia carioca durante todo o ano, espelhando a importância alcançada por este evento com nuances tão particulares, e que influencia o conjunto da formação social carioca. Quando uma empresa ou pessoa física apresenta uma proposta para obter apoio financeiro – seja diretamente através de dinheiro governamental, ou obtendo autorização para captar em troca de isenção fiscal –, este projeto é analisado pelo ente público, e sua relevância é considerada para que os recursos ou isenção sejam concedidos. Basicamente, busca-se aqui processo semelhante para o carnaval.” Por fim, defendia que “para receber a subvenção, é fundamental que os enredos (inclusive os patrocinados) apresentem grande valor cultural. Caso, portanto, opte pela exaltação direta ou indireta a marcas comerciais, a escola não deverá receber verba pública.” Apesar de justificar, na sequência imediata do texto, que a proposta não era uma “tentativa de dirigismo temático”, mas uma “busca pela gestão criteriosa de recursos para que as agremiações não se tornem meros veículos de propaganda para empresas privadas”, as proposições de Freixo não foram bem recebidas pelos dirigentes das escolas de samba, que taxaram a ideia de “censura”, e por outra ala de estudiosos e realizadores do carnaval carioca, que viram nas subjetivas expressões “riquezas simbólicas” e “grande valor cultural” (ganhou a mídia a variante “contrapartida cultural”) uma visão simplificada sobre algo espinhoso: se a cultura, contemporaneamente, não é vista como algo estanque e homogêneo, mas como processo, rede, amálgama dinâmica, híbrida e num permanente transformar-se (a ideia de que, talvez, a grande tradição das escolas de samba é a tradição das mudanças provenientes de sucessivas negociações), como mensurar o “valor cultural” de um tema, a semente do futuro enredo? Mais: quem estaria imbuído do direito de julgar os temas, considerando-os culturalmente relevantes ou não, e quais critérios seriam utilizados no processo avaliativo? Tais construtivas indagações, ao longo da campanha, foram discutidas pelo 133

Nunes, numa trilha de questionamentos análoga à percorrida por Rouanet, fala no “fantasma do Abaporu”, “resíduo intelectual” do movimento liderado por Oswald349) “os caetés querem ter raízes. Os tupinambás querem ter asas. (...) Ou guelras.”350 Transculturais, os tupinambás de que fala o autor se assemelham aos artistas-anfíbios ou mediadores apresentados por Néstor García Canclini351 e aos carnavalescos do Rio de Janeiro representados por Rosa Magalhães; não querem ter raízes ou pés imensos fincados no solo, mas voar ou nadar pelos mais diferentes domínios. É preciso voltar, então, à afirmação de Rosa Magalhães de que “a Antropofagia é a única filosofia original brasileira e o mais radical dos movimentos que produzimos.” Não se trata de simplesmente refutar ou endossar a poética defesa da carnavalesca: ela é perfeitamente possível e aceitável em uma sinopse de enredo de escola de samba, gênero textual que não se propõe (felizmente!) a ser uma dissertação ou tese acadêmica. Não se pode esconder, entretanto, a percepção de que, em termos acadêmicos, o trecho simplifica o tema e se mostra preso à visão canonizada do texto oswaldiano, na contramão do que as últimas páginas tentaram mostrar. Em termos distintos, o Manifesto Antropófago (que por si só oferece matéria para um grande enredo de escola de samba, dada a sua envergadura temática e imagética) é pouco problematizado no texto de Rosa Magalhães; a carnavalesca preferiu apresentar ao público e aos jurados (o que já é uma postura pouco usual em tempos de enredos simplistas, e, por isso mesmo, um ato louvável e corajoso – fosse de outro modo não estaria a servir de combustível intelectual para este trabalho) conceitos cristalizados e laudatórios da teoria da

candidato e respondidas pelos seus apoiadores, nos debates televisivos, nos comícios e nos programas do horário eleitoral gratuito. Reflexões sobre a preservação do patrimônio imaterial e a mercantilização da cultura pipocaram nas redes sociais e colocaram em evidência o universo carnavalesco – algo raro no período de meio de ano. Alguns presidentes de agremiações, porém, não se mostraram convencidos e organizaram atos de repúdio nas quadras das escolas que representavam. Este conflito, que felizmente levou a gestão do carnaval carioca para as pautas políticas, pode ser investigado a partir de pressupostos da Antropofagia oswaldiana. A postura multiculturalista (intencionalmente excessiva, é claro) dos tupinambás alegoricamente exaltada por Rouanet não se atrita com a visão mais “conservadora” (melhor é dizer “conservantista” ou protecionista, dado o caráter negativamente reacionário associado ao termo “conservador”) que transpassa o manifesto de Freixo? O debate, que parece ter esfriado após o resultado das urnas (o candidato Eduardo Paes, do PMDB, reelegeu-se prefeito da cidade, com 64,60% dos votos válidos), não pode ser deixado de lado, principalmente pela não existência de soluções planificadas. No último capítulo deste trabalho, as provocações de Rouanet serão melhor investigadas e o conflito revisitado, desenhando-se possíveis respostas aos questionamentos. O manifesto integral pode ser lido no seguinte sítio: http://www.marcelofreixo.com.br/portal/docs/carnaval28062012.pdf. Acesso em 01/11/2013. 349 Ver NUNES, B. Obra citada, p. 08. 350 ROUANET, S. P. Obra citada, p. 49. 351 Ver CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da Modernidade. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 361. A visão de Canclini será analisada na sequência do trabalho. 134

literatura, que, em comparação às provocações de Rouanet, por exemplo, parecem um tanto empoeirados. Se a colagem de fragmentos literários sugere, numa primeira visão, uma estratégia narrativa muito apropriada (vide as colagens dadaístas) e ousada (afinal, a sinopse é eminentemente um texto expositivo/explicativo de caráter didático, voltado aos compositores da escola e ao júri da LIESA, em especial; o encadeamento dos fragmentos torna, sim, a leitura mais complexa), é fato que o texto perde força ao não se desgarrar da linearidade canônica. Ainda em diálogo com Rouanet, pode-se dizer, metaforicamente, que a artista não conseguiu deixar de roer (ao menos totalmente) o fêmur do bispo Sardinha. Aqui, cabe a pergunta provocativa: de que maneira seria possível narrar a antropofagia oswaldiana com mais atualidade, ousadia e desvario em um desfile carnavalesco e numa sinopse de enredo? No que tange à imagética do quarto setor, porém, o “fantasma do Abaporu” parecia exorcizado: a mais famosa imagem do movimento antropofágico não aparece nas fantasias, tampouco na alegoria. Como dito anteriormente, a sinopse é uma narrativa incompleta, um texto fraturado de origem: a narrativa verbal deve ser entendida enquanto base para o visual da escola de samba (fantasias e alegorias) e para o samba de enredo entoado por intérprete e componentes, no compasso da bateria. Quando se lançam olhos para o conjunto plástico do setor modernista, percebe-se uma explosão de verdes e amarelos retirados de Tarsila do Amaral, em cinco fantasias de alas. A rigor, pode-se confundir a sequência de grupos de desfilantes com o setor de um desfile dedicado tão somente à pintora. Indiretamente, é como se Rosa Magalhães afirmasse que a linguagem visual da Antropofagia é a linguagem pictórica de Tarsila, transbordando brasilidade. Brasilidade que se dá, na produção de Tarsila, em momentos diferentes, porém sequenciais e complementares, segundo a história da arte convencional. Para o desfile da Imperatriz Leopoldinense, foram selecionadas obras das fases Pau-Brasil352 (coroada na primeira exposição individual de Tarsila, aberta em 07 de junho de 1926, em Paris353) e Antropofágica (iniciada em 1928, com Abaporu), aquelas diretamente

352 Segundo Aracy Amaral, “explica Tarsila, em entrevista alguns anos depois, que o nome ‘pau-brasil’ teria sido dado às telas realizadas nesse período (à época de 1925) por estas se caracterizarem pelo mesmo espírito de brasilidade contido nos poemas de Oswald, Pau-Brasil, e que alcançou, na época de sua publicação, grande repercussão.” In: AMARAL, A. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 208. 353 Aracy Amaral informa que falar em uma “fase Pau-Brasil” genérica não é recomendável, embora bastante comum. De acordo com a autora, as subdivisões são importantes, quais sejam: fases Pré-Pau- 135

associadas à Antropofagia oswaldiana e consideradas os pontos culminantes da carreira de Tarsila como pintora. Na visão de Aracy Amaral, tais fases são as responsáveis pela inscrição de Tarsila na história da arte no Brasil, uma vez que “sintetizam, plasticamente, o seu relacionamento genuíno com a terra, e sua picturalidade, como bem afirmou Haroldo de Campos, atualizada pelo contato com o Cubismo (...)”354. As duas primeiras fantasias do setor, Cactus – pintura de Tarsila do Amaral e Folhas e sol – pintura de Tarsila do Amaral, não se referem a duas telas em específico; a carnavalesca preferiu recortar temas recorrentes nas pinturas realizadas por Tarsila ao longo dos anos 20, mesclando as referências nas roupas desenhadas. Os cactus aparecem em inúmeras pinturas, como Morro da favela, de 1924, O sapo, de 1928, Abaporu, de 1928, Distância, de 1928, A lua, de 1928, Cartão Postal, de 1929, Sol poente, de 1929, Antropofagia, de 1929, e Idílio, de 1929. A ala Cactus – pintura de Tarsila do Amaral era feminina; nas saias das desfilantes via-se uma clara referência a Sol poente, tela da fase Antropofágica que Aracy Amaral considera exemplo de paisagem subconsciente marcada pela evocação355. Nas palas e nas cabeças, placas na forma de cactus reproduziam os traços orgânicos de Tarsila (as cabeças, especificamente, lembravam as plantas observáveis em Morro da favela e A lua). As bolas, também presentes em outras fantasias do setor, são observáveis em telas como A feira I, de 1924, Paisagem com touro, de 1925, O mamoeiro, de 1925, A feira II, de 1925, O lago, de 1928, Floresta, de 1929, e Paisagem, de 1931. Na fantasia Folhas e sol, nota-se, principalmente, a influência da obra Antropofagia: nas cabeças dos brincantes, o grande sol amarelo e laranja (uma rodela de laranja cortada) contrastava com a pala de folhas de bananeiras

Brasil, Pau-Brasil Construtivo, Pau-Brasil Exótico e Pau-Brasil Metafísico/Onírico. Ver AMARAL, A. Obra citada, p. 28/42. 354 Ibidem, p. 289/290. 355 A autora diz que as obras da fase Antropofágica de Tarsila do Amaral revelam não apenas a intensificação do desejo de buscar as formas e as cores da brasilidade, mas um mergulho introspectivo da pintora, disposta a materializar com as tintas algumas imagens oníricas do subconsciente. Nesse sentido, a fase Antropofágica pode ser entendida como a sequência fortalecida da fase Pau-Brasil Metafísica/Onírica. Uma declaração da própria Tarsila, pinçada e analisada por Aracy Amaral, corrobora a teoria: “Essa descrição (a descrição do Abaporu), como de um sonho, nos reporta às figuras e temáticas desses quadros (da fase Antropofágica): ‘só então compreendi que eu mesma havia realizado imagens subconscientes, sugeridas por estórias que ouvira em criança.’ Refere-se a artista às estórias contadas pelas pretas velhas da fazenda à criançada na hora de dormir, repetidas dezenas de vezes e misturadas à lembrança inapagada dos servidores de cor, divulgando seus medos, lendas e superstições... (...) Praticamente toda voltada para os temas ligados à natureza, seus trabalhos refletem bem paisagens subconscientes, onde a evocação (em Sol Poente) e as sensações (como em Sono) ditam a realização dos trabalhos.” In: AMARAL, A. Obra citada, p. 280/282. 136

(presentes em telas de diferentes épocas, como A Negra, de 1923, e Antropofagia, de 1929) e o costeiro de cactus estilizados. A terceira e a quarta alas do setor traziam elementos de um mesmo quadro: a Cuca, de 1924. A fantasia Tatu – pintura de Tarsila do Amaral apresentava um dos animais que Tarsila utilizou na composição da tela. O quadro foi iniciado no mês de fevereiro do ano “de sua maior produtividade e ânimo criativo”356, sendo um dos mais festejados representantes da fase Pau-Brasil Metafísico/Onírico, que Aracy Amaral considera o melhor segmento da produção da década de 20. Na época, a artista narrou, em carta endereçada à filha Dulce, que estava pintando “uns quadros bem brasileiros, que têm sido muito apreciados. Agora fiz um que se intitula A Cuca. É um bicho esquisito, no mato com um sapo, um tatu e um outro bicho inventado.”357 Aracy Amaral apresenta uma boa descrição da tela:

Em meio a uma paisagem campestre simbólica – cactus, árvores e tufos, em pequenos núcleos de vegetação sinteticamente realizados – um pequeno e emblemático lago azul ao centro da composição é circundado por bichos fantásticos ou reais, como o sapo, uma taturana gigantesca, um tatu-pássaro e um grande personagem amarelo, invenção pura (...), para o qual se voltam atentamente todos os demais Esse quadro, diga-se de passagem, é o único a conservar parcialmente a moldura de Pierre Legrain, o consagrado artesão e encadernador art déco parisiense a que Tarsila recorreu para emoldurar suas telas em sua primeira exposição em Paris. Essa atitude de solicitar a Legrain a concepção de molduras que enfatizaram o caráter exótico- mágico de suas obras – confeccionadas com pele de lagarto, em cartão ondulado, em madeiras aparadas de madeira facetada, espelhos angulosamente recortados, etc. – sempre nos pareceu um sinal de insegurança diante do público ao qual ia se apresentar. Ao mesmo tempo, essas molduras se constituíram em trabalhos paralelos às suas pinturas, nelas sem dúvida interferindo e induzindo críticos franceses a certa reserva ou a denominar suas obras de tableaux-objets. Ou seja: Tarsila não se opunha a ser considerada “exótica”, ou antes, estimulou, ou se deixou levar pela etiqueta que nos identifica no exterior a partir do momento em que o Brasil buscava afirmar sua identidade cultural.358

A crítica francesa recebeu a mostra individual de Tarsila com entusiasmo e surpresa, diferentemente da recepção que a artista teria no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, em 1929. O crítico M. Kuntzler, sobre A Cuca, redigiu que

356 Ibidem, p. 146. 357 Ibidem, p. 146. 358 AMARAL, A. Tarsila do Amaral, p. 35/38. 137

nesta pequena tela, a pintora nos faz abandonar o mundo das realidades pelo da abstração. Faz viver diante de nós seres fantásticos, em meio a plantas de formas rudimentares, como deviam ser as da época terciária. Deve-se acrescentar que tudo isso é pintado com tons puros, planos e enquadrados com cilindros revestidos de pele de serpente.359

A visão de Kuntzler dá a entender que a exótica moldura não apenas complementava a tela; tornara-se parte e/ou extensão da pintura, plenamente integrada ao trabalho de Tarsila. A menção aos “seres fantásticos” nos remete à metamorfose fitozoomórfica levada a cabo pela pintora, que não tinha a preocupação de imitar a realidade, nos moldes da pintura acadêmica tradicional (foco da crítica depreciativa, por vezes ridicularizadora, publicada pelo Jornal do Comércio, em 28 de julho de 1929, sobre a exposição realizada no Rio de Janeiro; segundo o jornal, havia “bruxuleios de boa arte” entre as pinceladas de Tarsila, indícios de que se a autora deixasse de ser mimada pelos “infelizes modernistas” poderia figurar enquanto “verdadeira artista”. Ao final, a grande provocação: “Não nos parece que esteja longe o dia em que a Sra. Tarsila entrará pelo bom caminho...”360). A influência das vanguardas e das liberdades estéticas por elas defendidas é evidente. Tarsila, como bem observa Aracy Amaral, estava disposta a desafiar o olhar do leitor: as plantas e as pedras parecem bichos, os bichos nem sempre existem na realidade, as formas humanas são redefinidas e as cabeças podem ser muito menores que os pés. Na fantasia Tatu – pintura de Tarsila do Amaral, Rosa Magalhães enfatizou o “tatu-pássaro” de que fala Aracy Amaral, animal incomum que também aparece na pintura A feira I, compondo a fauna tarsiliana. A cabeça do bicho, nas cores amarela e preta, foi adaptada para as cabeças dos desfilantes (os olhos vermelhos não foram esquecidos). Os grafismos do corpo da criatura podiam ser vistos nas palas dos brincantes, enquanto variações das plantas observadas exatamente atrás da cauda do tatu formavam o costeiro, em verde escuro. O rabo do tatu caía do costeiro, uma espécie de capa curta. Na sequência, a ala com a fantasia Cuca – pintura de Tarsila do Amaral trazia a reprodução do animal amarelo que domina a metade esquerda da tela, o “bicho esquisito” a que se refere Tarsila, na carta à filha Dulce. A pala, a saia e o costeiro exibiam as folhas da árvore situada à esquerda da Cuca, mesclando verdes e amarelos.

359 AMARAL, A. Tarsila: sua obra e seu tempo, p. 241/242. 360 Ibidem, p. 432. 138

A análise da última ala do setor, O Mamoeiro – pintura de Tarsila do Amaral, revela estratégia de construção semelhante àquela observada nas demais fantasias do bloco temático: a carnavalesca representou o todo por meio de uma parte da pintura em questão; no caso, a tela homônima, pintada em 1925. O Mamoeiro é um retrato de paisagem do interior: ponte sobre riacho, varal com roupas estendidas ao sol, casas entre arvoredos, mulheres e crianças passeando de mãos dadas ou nas soleiras das portas. No canto superior direito, a árvore que dá título ao quadro: um mamoeiro estilizado, com sete gordos mamões; em torno do cacho, cinco galhos de folhas espalmadas sugerem braços humanos – as insinuações metamórficas de que fala Aracy Amaral. A tela, situada na fase Pau-Brasil Exótico, representa o “paulatino abandono do construtivo em prol da sensualidade das linhas,”361 guinada estética possivelmente influenciada pelas viagens ao Rio de Janeiro e a Minas Gerais. As produções do período são, grosso modo, “cenas interioranas de elementos recortados, estilizados, colorful, aprazíveis para o gosto europeu, e ao mesmo tempo tão brasileiras enquanto imagética (...)”362. Pode-se dizer que Rosa Magalhães teve a preocupação de captar as linhas sinuosas dos desenhos e a cor das obras (especialmente as cores do elemento mamoeiro), a fim de conceber um figurino que passasse a mensagem desde a linguagem da cor, sem falar nos demais adereços. A roupa, basicamente, era uma adaptação carnavalesca da árvore que nomeia a tela: na cabeça e na pala, bolas alaranjadas representavam os mamões; no costeiro, os galhos da árvore e as grandes folhas espalmadas, em verde; a malha que cobria o corpo, em azul celeste, completava a pintura em forma de fantasia. Nesse ponto, é preciso trazer à baila a opinião de Haroldo de Campos segundo a qual a cor, nas telas de Tarsila do Amaral, não é apenas um elemento de conteúdo, mas “antes um elemento da forma, um formante, uma cor estrutural.”363 A visão panorâmica do conjunto de cinco alas evidencia que Rosa Magalhães partiu desse entendimento ao colorir as fantasias. Encerrando o setor dedicado à Antropofagia oswaldiana e às pinturas de Tarsila do Amaral, surgia imponente a quinta alegoria do desfile, de nome sem experimentação: Tarsila do Amaral. No carro, elementos visuais retirados de diferentes obras da pintora figuravam rearranjados, formando uma espécie de síntese visual das fases Pau-Brasil e Antropofágica. Os animais presentes em A Cuca, à exceção da própria Cuca, apareciam na frente da alegoria: quatro tatus, duas lagartas e dois pequeninos sapos, entre folhas de

361 AMARAL, A. Tarsila do Amaral, p. 33. 362 Ibidem, p. 33. 363 Ibidem, p. 35. 139

bananeira. Nas laterais, verdes cactus serviam de base para os “queijos” treliçados sobre os quais dançavam as composições. As estruturas metálicas de treliças, em preto, e as folhas de bananeira dominavam a cenografia, agindo as fantasias (nas quais se destacavam os cactus e as rodelas de laranja) enquanto complementações, perfeitamente integradas ao cenário. No centro do carro, em frente a um “paredão” de cactus em verde muito escuro, quase preto (cor utilizada para realçar a escultura central), via-se uma versão tridimensional de Antropofagia, resumo do setor. Cabe, aqui, a percepção de que o Abaporu, diferentemente do que pode parecer num primeiro momento, também se faz presente na alegoria, coroando o setor Tarsiwaldo: conforme aponta Aracy Amaral, os corpos monstruosos que representam Antropofagia são “um acoplamento de A Negra com o Abaporu.”364 Tarsila uniu, em uma mesma tela, imagens pintadas em 1923 (A Negra) e 1928 (Abaporu), mostrando que não havia barreiras entre as genéricas fases Pau-Brasil e Antropofágica. Nas palavras de Aracy Amaral, o quadro é uma

fusão harmoniosa das duas figuras, o mesmo tratamento quanto à cor, a superfície da tela sem rastros, e o fundo numa brutal projeção da flora tarsiliana conhecida até então somente em desenhos da artista em dimensão reduzida. Mas entre o fundo, cuja referência ao Abaporu é bem evidente, no cacto e no sol, e o primeiro plano Tarsila interpõe a folha de bananeira presente em A Negra, desta vez mais naturalista, sem a preocupação da estilização geometrizante.365

O “fantasma” de que fala Benedito Nunes não havia deixado o solo. Permanecia nu, a pensar com os pés.366

364 AMARAL, A. Tarsila: sua obra e seu tempo, p. 281. 365 Ibidem, p. 281/282. 366 Gonzalo Aguilar, ao analisar o Abaporu, faz uma comparação entre a pintura de Tarsila do Amaral e o Pensador, de Rodin. Segundo ele, uma diferença entre as peças é que “toda a tensão do corpo do Pensador de Rodin está na cabeça, enquanto no Abaporu está nos pés. O Abaporu pensa com os pés.” Por meio da inversão entre cabeça e pés, “a figura de Tarsila parece atacar tanto o privilégio dado à cabeça na tradição ocidental quanto ao rosto enquanto elemento de identificação. Ou é mais radical ainda, e o que está questionando é a identidade mesma como laço comunitário. O Abaporu compõe um novo corpo não sem antes apagá-lo e desnudá-lo.” In: AGUILAR, Gonzalo. O Abaporu, de Tarsila do Amaral: Saberes do pé. In: ROCHA, J. C. de C.; RUFFINELLI, J. (Org.). Obra citada, p. 284 e 282. 140

Figura 50: Carnaval em Madureira (1924), de Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 76x63 cm. Coleção particular. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. Acesso em 04/06/2013.

Figura 51: Morro da Favela (1924), de Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 64x76 cm. Coleção Sérgio Fadel, Rio de Janeiro. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. Acesso em 04/06/2013.

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Figura 52: Desfilantes com a fantasia Cactus – pintura de Tarsila do Amaral, durante o desfile da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002. É perceptível, nas saias das mulheres, a clara referência à tela Sol poente, de Tarsila do Amaral. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 53: Sol poente (1929), de Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 54x65 cm. Coleção Geneviève e Jean Boghici, Rio de Janeiro. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. Acesso em 04/06/2013.

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Figura 54: Vista aérea parcial do quarto setor do desfile da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002. As cores utilizadas pela carnavalesca Rosa Magalhães refletem a paleta de uma série de obras de Tarsila do Amaral. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 55: Paisagem com touro (1925), de Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 50x65,2 cm. Coleção , Rio de Janeiro. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. As cores da tela bem ilustram a paleta utilizada por Rosa Magalhães para colorir o setor Tarsiwaldo do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense. Acesso em 04/06/2013.

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Figura 56: Desfilantes da Ala Corpo Santo, com a fantasia Tatu – pintura de Tarsila do Amaral, no quarto setor do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense. Nas cabeças dos brincantes, nota-se a reprodução da cabeça do tatu presente na tela A Cuca, de Tarsila do Amaral. As palas e os costeiros também fazem referência à obra da pintora. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 57: Detalhe da obra A Cuca (1924), de Tarsila do Amaral. Representante da peculiar fauna tarsiliana, o tatu da pintura foi transformado em fantasia, pela carnavalesca Rosa Magalhães. A vegetação à direita virou o costeiro da roupa, enquanto as folhas em forma de coração adornavam o saiote. O corpo do animal foi adaptado para cabeça, pala e capa. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. Acesso em 04/06/2013.

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Figura 58: Desfilante da Ala da Urca com a fantasia Cuca – pintura de Tarsila do Amaral, no quarto setor do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense. Nota-se, na cabeça da foliã, a reprodução da Cuca da pintura. A pala, o costeiro e o saiote fazem referência às folhas das plantas situadas à esquerda e abaixo do animal amarelo, na tela de Tarsila. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 59: Detalhe da obra A Cuca (1924), de Tarsila do Amaral. A cabeça e o tronco do animal foram adaptados para as cabeças dos desfilantes, enquanto a vegetação à esquerda emprestou suas formas e cores às palas, aos costeiros e aos saiotes das fantasias. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. Acesso em 04/06/2013.

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Figura 60: Desfilante da Ala Amar é Viver com a fantasia O Mamoeiro – pintura de Tarsila do Amaral, no quarto setor do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense. Na cabeça e na pala da foliã estão presentes os mamões da pintura de Tarsila. No costeiro, os galhos e as folhas em forma de mãos espalmadas. Os materiais plásticos e as malhas de cores puras predominavam no setor modernista, contrastando com o luxuoso bloco temático dedicado a O Guarani, imediatamente anterior. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 61: Detalhe da obra O Mamoeiro (1925), de Tarsila do Amaral. Os frutos e os galhos da árvore que dá nome à tela foram adaptados para a fantasia carnavalesca. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. Acesso em 04/06/2013. 146

Figura 62: O Mamoeiro (1925), de Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 65x70 cm. Coleção Mário de Andrade, Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. Acesso em 04/06/2013.

Figura 63: A Feira I (1924), de Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela. Segundo Aracy Amaral, ignora-se a ubicação atual da obra. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. Nota-se, à esquerda e abaixo da árvore com folhas em forma de bolas, a presença do mesmo tatu observável em A Cuca, legítimo representante da fauna tarsiliana. Acesso em 04/06/2013.

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Figura 64: Desfilante com a fantasia Cactus – pintura de Tarsila do Amaral, no quarto setor do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense. Nota-se, na cabeça e na pala da foliã, a presença de cactáceos em material plástico e bolotas, um padrão bastante utilizado pela pintora. Os braceletes mantém a temática. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 65: A Lua (1928), de Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 110x110 cm. Coleção Fanny Feffer, São Paulo. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. O cactus presente na paisagem lunar é semelhante àquele observável na fantasia Cactus – pintura de Tarsila do Amaral. Acesso em 04/06/2013.

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Figura 66: Vista parcial do quarto setor do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense. Notam-se, de baixo para cima, pedaços das fantasias Folhas e Sol, Tatu, Cuca e O Mamoeiro, todas pinturas de Tarsila do Amaral. A fantasia em primeiro plano exibia rodelas de laranja e folhas de bananeira, temas presentes na obra-síntese do setor: Antropofagia, de 1929. O colorido revela variações de verdes e amarelos, cores básicas das fases Pau-Brasil e Antropofágica de Tarsila do Amaral. A ausência de plumas e de materiais associados à “linguagem do luxo” e o predomínio de materiais plásticos e formas pouco usuais davam ao setor o caráter modernista bem ao gosto do Manifesto oswaldiano. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 149

Figura 67: Vista aérea da ala feminina que desfilava a fantasia Cactus – pintura de Tarsila do Amaral, durante o desfile da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 68: A Cuca (1924), de Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 73x100 cm. Acervo Musée de Grénoble, França. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. Os elementos visuais que compõem a tela, além de terem oferecido suas formas e cores a duas fantasias do setor analisado, foram rearranjados na quinta alegoria do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense. Acesso em 04/06/2013.

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Figura 69: Vista frontal da quinta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002, intitulada Tarsila do Amaral. Os cactus, as estruturas treliçadas em preto, as lagartas e as folhas de bananeira remetem os espectadores a diferentes obras de Tarsila do Amaral. As lagartas localizadas na frente do carro, especificamente, foram retiradas de A Cuca. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Figura 70: La Gare (1925), de Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 84,5x65 cm. Coleção particular. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. As estruturas metálicas treliçadas em preto ajudaram a compor a quinta alegoria do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense, mescla de cosmopolitismo construtivista e primitivismo selvagem. Acesso em 04/06/2013.

Figura 71: E.F.C.B. (1924), de Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 142x127 cm. Acervo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. Novamente, observam-se as estruturas metálicas treliçadas em preto, utilizadas por Rosa Magalhães na composição cenográfica da alegoria 05 do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense. Acesso em 04/06/2013. 152

Figura 72: Vista superior da quinta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002 (desfile das campeãs), intitulada Tarsila do Amaral. Na parte da frente, observam-se representações tridimensionais dos animais exóticos presentes em A Cuca (lagartas, tatus e sapos). No centro da alegoria, em frente aos cactus em verde escuro, a versão escultórica de Antropofagia, imagem que funde Abaporu e A Negra. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 73: Antropofagia (1929), de Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 126x142 cm. Coleção particular. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. Acesso em 04/06/2013. 153

Figura 74: Abaporu (1928), de Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 85x73 cm. Coleção Eduardo Francisco Constantini, Buenos Aires. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. Acesso em 04/06/2013.

Figura 75: A Negra (1923), de Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, 100x80 cm. Acervo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Fonte: portal Tarsila do Amaral - http://www.tarsiladoamaral.com.br/. Acesso em 04/06/2013.

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III. 1. 4 – Tem Iracema em Ipanema... viva a banda – da - da; Carmen Miranda – da - da – da - da

Segundo as “ralas” explicações da carnavalesca Rosa Magalhães, oferecidas ao corpo de jurados da LIESA no Histórico do Enredo compilado no Livro Abre-Alas de 2002, o “tropicalismo de Gil e Caetano” é fruto da Antropofagia oswaldiana, transformando-se em neoantropofagismo - o colorido subtema do quinto e mais recheado de referências setor do desfile gresilense, formado por seis alas e um carro alegórico. The Brazilian Bombshell na primeira metade do século XX, figura valorizada pelos tropicalistas como ícone e símbolo maior da “cafonice” latino-americana, portanto predecessora da Tropicália, a “rainha das bananas” Carmen Miranda ganharia, no enredo sobre a Antropofagia iniciado com as deglutições ancestrais, um setor inteiro: o sexto e último, igualmente com seis blocos de fantasias e uma alegoria (além do segundo casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira), fechando o Delírio tropical com seus turbantes decorados com frutos, flores, borboletas e sombrinhas. Tropicália e Carmen Miranda, temas interligados, serão analisados conjuntamente a partir de agora. De antemão, é preciso deixar evidente que tanto a sinopse e as justificativas de Rosa Magalhães (a artista diz, na explicação das fantasias do setor, que apesar de ter começado na música o tropicalismo se manifestou em outras artes367 – visão que será debatida nas próximas páginas) quanto este trabalho partem do pressuposto de que o tropicalismo, segundo o panorama mais apregoado desse tema, no corpus bibliográfico, foi um movimento musical, apresentando conexões com outras áreas artísticas, como as artes plásticas, o teatro, o cinema e a televisão, ocorrido no Brasil, na segunda metade do século XX – com força total entre os anos de 1967 e 1968, tornando-se o mais festejado exemplo de um movimento artístico geral chamado Tropicália. O que soa óbvio nem sempre o é: há teóricos, como Antonio Risério, que parecem não entender a Tropicália enquanto movimento artístico geral, enxergando-o sequer como movimento

367 Também é esta a visão do pesquisador Júlio César Valladão Diniz, que afirma: “O movimento começou em 1967, pautado pela intervenção crítico-musical no cenário cultural brasileiro, e do qual participaram os compositores , e Tom Zé, os poetas Torquato Neto e Capinam, os maestros de formação erudita Rogério Duprat, Damiano Cozzella e Júlio Medaglia, o grupo Os Mutantes, a cantora e o artista plástico Rogério Duarte, entre tantos outros.” In: DINIZ, Júlio. Antropofagia e Tropicália – devoração/devoção. Texto original em francês apresentado no Colóquio Brésil/Europe: repenser Le Mouvement Anthropophagique organizado pelo Collège International de Philosophie (Paris, 2007). Disponível no sítio http://www.maxwell.lambda.ele.puc- rio.br/NELIM/ensaios_artigos/julio_antropogafiaetropicalia.pdf. Acesso em 28/11/2013. 155

musical, mas uma “básica e essencialmente coisa da cabeça do Caetano”368. Não se questiona o fato de que obras de outras áreas artísticas hoje alocadas no sistema simbólico da Tropicália, como o filme Terra em Transe, de , a montagem de O Rei da Vela dirigida por José Celso Martinez Corrêa e os penetráveis de Hélio Oiticica, instalação intitulada Tropicália originalmente apresentada na exposição coletiva Nova Objetividade Brasileira, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, todos os eventos datados de 1967, sejam anteriores à obra que se tornou o maior símbolo da Tropicália na música, o disco-manifesto Tropicalia ou Panis et Circensis, gravado em São Paulo, no explosivo maio de 1968.369 A anterioridade temporal, no entanto, não invalida a percepção de que, aos poucos (e Caetano Veloso, com sua “astúcia mercadológica-intelectual”370, contribuiu sobremaneira para isso, como deixa claro em Verdade Tropical; ele se diz o agente que teria detectado as invisíveis conexões entre as propostas artísticas distintas, deduzindo e comprovando que estava a ocorrer, no Brasil, um movimento maior, que receberia o nome da instalação de Oiticica e ganharia o apreço dos jornalistas371), a ideia de movimento artístico-cultural geral foi estruturada e passou a hospedar agentes como Zé Celso, Glauber Rocha, Hélio Oiticica, até mesmo o comunicador de massas Abelardo Barbosa, o popular

368 Declaração apresentada por Christopher Dunn, para quem a “explicação ‘caetanocêntrica’ de Risério subestima as contribuições dos colegas baianos e seus aliados, registrados em álbuns-solo tropicalistas lançados entre 1968 e 1969 por Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes, Rogério Duprat, Nara Leão e Gal Costa. Até a irmã de Caetano, Maria Bethânia, que não participava formalmente do movimento tropicalista, gravou um LP ao vivo em 1968 com músicas tropicalistas. Caetano assumiu o papel de porta- voz da Tropicália, especialmente depois de ser constituída como um movimento formal, mas sempre trabalhou em colaboração com o grupo baiano e em diálogo com artistas de outras áreas que expressavam ideias similares.” In: DUNN, C. Obra citada, p. 108/109. 369 Caetano Veloso, numa demonstração de “caetanocentrismo”, declara, em Verdade Tropical, que a “estréia tropicalista” foi a apresentação de Alegria, Alegria no III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967, quando ele cantou caminhando contra o vento juntamente com o grupo de rock argentino Beat Boys, gerando muita discussão. In: VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008, p. 163. Celso Favaretto também destaca a apresentação de Domingo no Parque, de Gilberto Gil, exemplo de “complexidade construtiva”. Segundo o teórico, “o festival foi o ponto de partida de uma atividade que logo seria denominada tropicalismo. A polêmica que havia cercado a apresentação das músicas transformaria Caetano e Gil em astros. A imprensa se encarregou de fazer de suas declarações desabusadas, de sua verve crítica, o prenúncio de uma posição artística, e mesmo política, sincronizada com comportamentos da juventude de classe média, vagamente relacionada ao movimento hippie. A onda era reforçada pelo trabalho de marketing do empresário Guilherme Araújo e aceita pelos, agora, tropicalistas.” In: FAVARETTO, Celso. Tropicália Alegoria Alegria. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007, p. 23. 370 CATANI, Afrânio Mendes. As coisas estão no mundo – Prefácio. In: SANCHES, Pedro Alexandre. Tropicalismo – decadência bonita do samba. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000, p. 09. 371 Nos termos de Caetano Veloso: “Eu tinha escrito Tropicália havia pouco tempo quando O Rei da Vela estreou. Assistir a essa peça representou para mim a revelação de que havia de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um movimento que transcendia o âmbito da música popular.” In: VELOSO, C. Obra citada, p. 239. 156

(transformado na primeira fantasia de ala do setor, com direito a buzinas e abacaxis), rompendo as barreiras da música.372 Com o decorrer das décadas e o distanciamento epocal, cristalizou-se no imaginário e na história brasileiros a visão de um grande movimento de contornos incertos, mais um “estilo de época”, o estilo tropicalista, espécie de versão brasileira do flower power norte-americano, muito divertido, exagerado e vendável (por isso reiteradamente invocado de maneira acrítica), do qual Carmen Miranda seria a primeira representante – e que, no contexto das escolas de samba do Rio de Janeiro, especialmente na década de 1980, ganharia um expoente: o carnavalesco Fernando Pinto, costumeiramente chamado de “carnavalesco tropicalista” e associado a imagens de frutos, flores, araras, e índias seminuas em contraste com perucas de cores vibrantes, óculos escuros, astronautas e produtos da cultura de massa, como importações eletroeletrônicas.373 Generalizante que é, tal visão é insuficiente para embasar um estudo sobre a Tropicália, uma vez que tende a “embolar” tudo em um mesmo saco de confetes e a reproduzir chavões até justificáveis em manifestos e publicações festivas, mas pouco esclarecedores no meio acadêmico. Aqui, é preciso demarcar o objeto e deixar inconteste que, na visão de Gilberto Gil, o tropicalismo musical, cuja eclosão ocorreu no Festival da Record de 1967, tendo por “certidão de nascimento” a gravação coletiva

372 Christopher Dunn explica a questão nos seguintes termos: “Em 1967, quando essas obras (Terra em Transe, O Rei da Vela e Tropicália) foram apresentadas ao público, elas não eram necessariamente percebidas como parte da mesma lógica cultural que permeava seus diferentes campos. Foram interpretadas dentro dos limites das áreas específicas do cinema, do teatro e das artes visuais, respectivamente. Dito isso, é importante reconhecer, mesmo assim, a natureza profundamente dialógica da produção cultural do fim da década de 1960 no Brasil.” O autor define tal dialogismo interartes como convergências tropicalistas. In: DUNN, C. Obra citada, p. 109. 373 Fernando Pinto, já mencionado no capítulo II, irá retornar ao centro da discussão no capítulo III, quando o enredo Tupinicópolis será brevemente investigado. Aqui, cabe uma referência ao enredo desenvolvido pelo carnavalesco em 1980, na Mocidade Independente de Padre Miguel, intitulado Tropicália Maravilha. Trata-se, na visão de Felipe Ferreira, de “um carnaval que apontava caminhos marcantes para a história da escola e do carnaval brasileiro”, uma vez que “misturava temas contemporâneos – como ecologia, urbanização e globalização – reunidos sob um olhar abusado, tropicalista, irreverente e esteticamente desafiador, sem deixar de lado as referências ao excesso, ao barroco e ao transbordamento visual característica dos desfiles das escolas de samba mais tradicionais.” O autor descreve que “a abertura da escola, com imensos abacaxis dourados, chocava pela estranheza, pelo inusitado dos elementos associados a um acabamento ultra kitsch, em tudo diferente do que seria apresentado pelas outras escolas naquela noite. (...) O grupo de tripés reunindo imagens de Carmen Miranda, Chacrinha, , Juscelino Kubitschek, Caetano Veloso e de uma surpreendente nota de dez cruzeiros precedendo a alegoria final – uma homenagem à anistia recém votada pelo Congresso no Brasil – era uma espécie de geléia geral brasileira. O tom fortemente político do final do enredo colocava em novo contexto as aparentes loucuras tropicais do restante do desfile, numa espécie de drible desconcertante na platéia.” Diante do exposto por Ferreira, resta a ideia de que certamente Hélio Oiticica aprovaria o trabalho de Fernando Pinto, essencialmente vanguardista. In: FERREIRA, F. A Maravilhosa Tropicália de Fernando Pinto. In: LEAL, Igor (coord.) Mocidade Independente – revista de carnaval 2010. Rio de Janeiro: Marlyn Comunicação, 2010, p. 68/69. 157

de maio de 1968, tem um fim (que ele chama “corte”) bem demarcado: o final de 1968, época em que ele e Caetano foram presos, acusados de subversão.374 A detenção no Rio de Janeiro, segundo os relatos de Caetano Veloso em Verdade Tropical, ocorreu em 27 de dezembro daquele ano, pouco depois do polêmico número apresentado no programa televisivo Divino, Maravilhoso375 em que ele cantou a canção Boas Festas, de Assis Valente, com um revólver apontado para a cabeça (imagem em que, segundo ele, havia uma perigosa “densidade poética”376). Gil e Caetano passaram por diferentes presídios cariocas e foram embarcados para Salvador na Quarta-Feira de Cinzas de 1969; na capital baiana, eram obrigados a viver em regime de confinamento (não ficavam enclausurados em celas, mas não podiam sair da cidade e tinham de se apresentar ao coronel chefe da Polícia Federal da Bahia diariamente; caso contrário, voltariam ao cárcere). No mesmo ano, decorridos alguns meses, deu-se o exílio em Londres, selando de vez, na visão dos parceiros, o movimento musical. Gil e Caetano delimitam temporalmente a Tropicália no campo da música, mas não negam (mais celebram) que o movimento transbordou e se tornou algo maior e fluido (visão carregada de significado político, uma vez que parte do entendimento de que o movimento musical foi o epicentro da Tropicália, o que não deve ser assimilado como verdade incontestável). Em 1968, perguntou a Caetano Veloso, em entrevista originalmente publicada no livro Balanço da bossa e outras bossas: “Que é o tropicalismo? Um movimento musical ou um comportamento vital, ou ambos?” A resposta de Caetano não tem meias palavras: “Ambos. E mais ainda: uma

374 Nas palavras de Gilberto Gil, em depoimento a Hamilton Almeida, em fevereiro de 1972, “o fim do Tropicalismo já não foi, foi uma coisa do destino (...). De repente a gente teve que parar o trabalho, a gente foi preso, teve que sair do país. Então, já era outro fator, já era outra forma de movimento, mas que também foi positivo, o resultado taí hoje, eu reputo minha experiência lá fora como uma coisa fundamental na minha vida. Como também o Tropicalismo, a fase toda já era muito dilacerante no fim, que já tava sendo difícil mesmo pra nós... (...) Eu já tava realmente cansado. Caetano também tava. Não posso dizer se ele recorda os sentimentos da época da mesma forma, mas eu sei que ele tava cansado, que ele tava cercado de um clima de paranoia como eu estava, isso ele tava.” No mesmo depoimento, Gil afirma que, independente da prisão (que provocou o fim brusco, um verdadeiro corte no movimento), ele e Caetano tinham vontade de encerrar a Tropicália e viajar pelo mundo. Deduz-se que, apesar de rápido, o movimento tropicalista musical foi extremamente intenso e desgastante para os seus principais agentes. Também fica subentendido que Gilberto Gil e Caetano Veloso se viam como o cérebro do movimento, uma vez que atribuem o fim da Tropicália à prisão de ambos e pensavam o final do movimento mesmo antes dos meses de cárcere e do posterior exílio na Inglaterra. Disponível em: ALMEIDA, Hamilton. O sonho acabou, Gil está sabendo tudo. In: RISÉRIO, Antonio (org.). Gilberto Gil, Expresso 222. São Paulo: Corrupio, 1982, p.71 e 73. 375 O programa estreou na TV Tupi em 28 de outubro de 1968, conforme informação de época da Folha de S. Paulo colhida no sítio http://tropicalia.com.br/en/eubioticamente-atraidos/reportagens- historicas/baianos-na-tv-divino-maravilhoso. Acesso em 16/11/2013. 376 VELOSO, C. Obra citada, p. 337. 158

moda. Acho bacana tomar isso que a gente está querendo fazer como tropicalismo. Topar esse nome e andar um pouco com ele. Acho bacana. O tropicalismo é um neoantropofagismo.”377 A palavra moda serve para explicar a expansão do tropicalismo para outras áreas e a sua diluição no imaginário cultural do país378, inclusive em termos mercadológicos associados aos efêmeros modismos – um dos pontos mais espinhosos da questão379. No depoimento a Hamilton Almeida, em 1972, Gilberto Gil também defendeu que o tropicalismo transcendia a música:

Hamilton Almeida: - O movimento tropicalista não era um movimento só musical, né? Ele dava um corte muito vertical nas coisas... Gilberto Gil: - Exato, eu acho. Era um insight na realidade brasileira. E mais que na brasileira, na coisa do mundo todo, cê tá entendendo? (...) Hamilton Almeida: - O Tropicalismo seria um movimento bem global; influía mesmo na maneira de ver, de sentir... Gilberto Gil: - Exato, porque ele falava dos costumes, de tudo, do comportamento. Questionava ao nível da alma brasileira. Obrigava as pessoas a tomar outras posições, a rever... então era incômodo.380

377 CAMPOS, Augusto de. Conversa com Caetano Veloso. In: COELHO, Frederico; COHN, Sergio (org.). Tropicália . Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, 2012, p. 115. 378 Celso Favaretto segue linha de pensamento semelhante; para ele, “o tropicalismo surgiu, assim, como moda; dando forma a certa sensibilidade moderna, debochada, crítica e aparentemente não empenhada. De um lado, associava-se a moda ao psicodelismo, mistura de comportamentos hippie e música pop, indiciada pela síntese de som e cor; de outro, a uma revivescência de arcaísmos brasileiros, que se chamou de ‘cafonismo’.” In: FAVARETTO, C. Obra citada, p. 23. 379 Um fato recente ilustra a problemática: em 2012, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé entraram na Justiça contra a construtora Odebrecht e o uso de nomes como Divino Maravilhoso para nomear edifícios do Empreendimento Tropicália, um condomínio de luxo situado no bairro de Patamares, em Salvador. Segundo Henrique Campos Monnerat, “a construção desses edifícios se insere num processo nacional de especulação imobiliária que caminha junto com a privatização dos espaços públicos e a gentrificação de muitas áreas da cidade. A reação contra o nome dos edifícios foi imediata: após Caetano Veloso, seguido de Tom Zé e Gilberto Gil, pedirem que a empresa retirasse os nomes, a Odebrecht respondeu que se tratava de uma ‘homenagem ao movimento tropicalista’ e que não havia impedimentos legais para a utilização dos títulos das canções. A empresa ainda argumentou que o objetivo da homenagem foi o de “referendar um importante movimento artístico, de grande representatividade na Bahia e no Brasil.” A questão foi levada aos tribunais e depois de alguns meses, em setembro de 2012, a Odebrecht perdeu o direito de utilizar os nomes relacionados à Tropicália no estabelecimento. Caetano, Gilberto Gil e Tom Zé argumentaram que havia uma clara intenção de se apropriar do ideário tropicalista para fins comerciais. Ironicamente, o tropicalismo, que no final dos anos 1960 procurou botar o dedo na ferida da mercantilização da arte, encontrava-se ele mesmo mercantilizado, uma explícita etiqueta de moda nos nomes que batizariam os edifícios e seus espaços de convivência. Novamente o tema da Tropicália e da mercantilização da arte estavam postos.” In: MONNERAT, Henrique Campos. A politização da arte e a estetização da política, por que não? - O tropicalismo e o seu legado. Dissertação de Mestrado - Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013, f. 20/21. Grifo do autor. A questão exposta por Monnerat atualiza uma das discussões que permeiam a Tropicália desde 1968, quando Hélio Oiticica já havia bradado contra a comercialização da “moda” tropicalista. Nesse sentido, a ironia de que fala o autor não se dissolve ante a declaração de Caetano de que o tropicalismo era movimento musical, comportamento vital e moda? 380 ALMEIDA, H. Obra citada, p. 71. 159

A despeito da dubiedade encalacrada no “exato, eu acho”, a posição de Gil é semelhante à de Caetano. O “incômodo” a que se refere o depoente acometia, desde tempos anteriores, personagens como Hélio Oiticica, a rigor o primeiro artista a usar do nome Tropicália para batizar uma peça, na segunda metade dos anos 60. A posição do artista plástico frente às apropriações tropicalistas é complexa (Oiticica era um excelente escritor e transmitia para suas laudas as inquietudes criativas que materializavam, em madeira, cola, pregos e tecidos, as instalações que o notabilizaram). Apesar de não ser mencionado por Rosa Magalhães na sinopse do enredo nem nas justificativas, e de igualmente não aparecer nas fantasias das alas nem na alegoria do sexto setor do desfile em foco, dedicar algumas linhas à visão de Oiticica é importante para a preparação do terreno onde, na sequência, serão depositadas novas e polifônicas sementes. Ora, mais do que classificar a Tropicália (a postura dos rotuladores já refutada neste trabalho), observar os diferentes discursos alinhavados ao redor dela e lançar questionamentos sobre as visões consensuais é o desafio do pesquisador imbuído da ensaística teorizada por Adorno e Didi-Huberman. Assim como a ideia de carnaval ou, mais especificamente, escola de samba, a Tropicália é um constructo entre perspectivas conflitantes e disputas simbólicas. Oiticica estava diretamente inserido nessa disputa, e tanto sabia disso que redigiu, em 04 de março de 1968 (dois meses antes da gravação de Tropicalia ou Panis et Circensis) um longo e contundente depoimento, cujos principais trechos são expostos abaixo:

Da ideia e conceituação da nova objetividade, criada por mim em 1966, nasceu a “Tropicália”, que foi concluída em princípios de 1967 e exposta (projeto ambiental) em abril de 1967. Com a teoria da nova objetividade queria eu instituir e caracterizar um estado da arte brasileira de vanguarda, confrontando-o com os grandes movimentos da arte mundial (op e pop) e objetivando um estado brasileiro da arte ou das manifestações a ela relacionadas (...) A conceituação da “Tropicália”, apresentada por mim na mesma exposição, veio diretamente desta necessidade fundamental de caracterizar um estado brasileiro. Aliás, no início do texto sobre objetividade, invoco Oswald de Andrade e o sentido da antropofagia (antes de virar moda, o que aconteceu após a apresentação do Rei da vela) como um elemento importante nesta tentativa de caracterização nacional. “Tropicália” é a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente “brasileira” ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional. (...) Propositadamente quis eu, desde a designação criada por mim de “Tropicália” (devo informar que a designação foi criada por mim muito antes de outras que sobreviveram, até se tornar a moda atual de esnobes, intelectuais) até os seus mínimos elementos, acentuar essa nova linguagem com elementos 160

brasileiros, numa tentativa ambicioníssima de criar uma linguagem nossa, característica, que fizesse frente à imagética pop e op, internacionais, na qual mergulhavam boa parte de nossos artistas. (...) na verdade, quis eu com a “Tropicália” criar o mito da miscigenação – somos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo – nossa cultura nada tem a ver com a europeia, apesar de estar até hoje a ela submetida: só o negro e o índio não capitularam a ela. Quem não tiver consciência disso que caia fora. Para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita europeia e americana terá de ser absorvida, antropofagicamente, pela negra e índia da nossa terra, que na verdade são as únicas significativas, pois a maioria dos produtos da arte brasileira é híbrida, intelectualizada ao extremo, vazia de um significado próprio. E agora o que se vê? Burgueses, subintelectuais, cretinos de toda espécie a pregar tropicalismo, “Tropicália” (virou moda) – enfim, a transformar em consumo algo que não sabem direito o que é. Ao menos uma coisa é certa: os que faziam stars and stripes já estão fazendo suas araras, suas bananeiras etc., ou estão interessados em favela, escolas de samba, marginais anti-heróis (Cara de Cavalo virou moda) etc. (...) O mito da tropicalidade é muito mais do que araras e bananeiras: é a consciência de um não-condicionamento às estruturas estabelecidas, portanto altamente revolucionário na sua totalidade. Qualquer conformismo, seja intelectual, social, existencial, escapa à sua ideia principal.381

Por debaixo da verborragia de Oiticica há importantes questões para se pensar a relação entre Antropofagia e Tropicália e o papel que músicos como Caetano Veloso e Gilberto Gil viriam a desempenhar, no decorrer do movimento. Expressões como “verdadeira cultura brasileira” soam, à luz do culturalismo contemporâneo, um tanto limitadas e anacrônicas. A ideia de que somente as culturas negra e indígena são significativas, no contexto nacional, também ecoa restritiva e purista, mais próxima da visão de um folclorista do século XIX que de um antropólogo do século XXI. Já os balaços disparados contra “intelectuais” e “subintelectuais” parecem conter uma certa dose de desfaçatez, afinal, a simples leitura do texto de Oiticica revela que o raciocínio do artista é um raciocínio profundamente intelectualizado, nada “primitivo” – algo análogo ao que ocorre quando da leitura dos trechos de Verdade Tropical em que Caetano Veloso parece se desculpar pela suposta falta de intimidade com os livros, o que soa inverossímil à medida que a prosa avança e os raciocínios por ele desenvolvidos se mostram muito complexos do ponto de vista narrativo, recheados de citações das mais eruditas, da filosofia de Marx, Nietzsche e Heidegger à literatura de Joyce, Camus, Proust, Steinbeck, Borges, Musil, para ficar em poucos canonizados. Oiticica transitava

381 OITICICA, Hélio. Tropicália. In: COELHO, F.; COHN, S. (org.). Obra citada, p. 98/103. Grifos do autor. 161

entre a favela da Mangueira e o MAM, entre o asfalto da avenida carnavalesca (ele chegou a ser passista da Verde-e-Rosa) e o mármore das galerias. Não havia, na própria figura do realizador, o componente de hibridismo então atacado? Os dados mais curiosos a serem colhidos da provocação de Oiticica são as informações de que o apreço por Oswald de Andrade é anterior à montagem de O Rei da Vela e ao tropicalismo musical; e de que a Tropicália havia virado moda antes mesmo da gravação do álbum Tropicalia ou panis et circensis e do programa televisivo Divino, Maravilhoso, dado que justifica a postura defensiva do artista plástico, primeiro zagueiro de um time historicamente mais preocupado com as comemorações dos gols. Oiticica procurava, repetidas vezes, mostrar que fora o criador do termo – não para se autopromover em cima do conceito de Tropicália, mas para defendê-lo das indevidas apropriações, com fins mercadológicos típicos dos modismos, desprovidas da perspectiva de transgressão e/ou superação das estruturas sociais e artísticas arcaizantes; em outros termos, sem o caráter de vanguarda e o desejo da revolução, porém acorrentadas ao conformismo e às superficialidades estéticas (a defesa de que “o mito da tropicalidade é muito mais do que araras e bananeiras”, especialmente, se revela bastante feliz, evidenciando que o autor não estava preso ao epitélio do movimento em curso; ao contrário, preocupado com o cerne da problemática, “a consciência de um não-condicionamento às estruturas estabelecidas”). Tanto o criador dos Parangolés não berrava ao léu, contra tudo e contra todos, que no mesmo 1968 adotaria postura elogiosa e entusiasmada com relação à música da “baianada”. No texto A trama da terra que treme (O sentido de vanguarda no grupo baiano), publicado no Correio da Manhã, em setembro daquele ano, o artista utiliza Tropicalia ou panis et circensis, então um fenômeno musical brasileiro de repercussão internacional, como exemplo de vitória sobre a “repressão cultural” vivenciada em tempos de ditadura e submissão aos Estados Unidos. Em diálogo com Haroldo de Campos, Oiticica havia detectado:

Quem pretender criar uma cultura de exportação no dizer de Haroldo de Campos, única maneira de engolir, deglutir o que nos é bombardeado de fora e devolver em criação válida como coisas nossas, neutralizando assim o colonialismo cultural a que nos querem permanentemente submeter, está fadado a ser negado, seja pela indiferença, seja pela sabotagem mais suja, seja pela reação violenta, vestida esta de direita, a la Corção, ou de certo tipo de esquerda

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(ortodoxa ou equivocada?), que se acaba identificando também com essa direita em determinado tipo de ação, principalmente na cultural.382

Na contramão disso tudo, os agentes da Tropicália musical, aríetes de um movimento de vanguarda condensado no álbum coletivo, teriam adquirido consciência da necessidade da união em prol da vitória da arte sobre a repressão cultural – e isso no campo da música popular, aquele que, na visão de Oiticica, mais era vampirizado383 por interesses escusos:

Na música popular essa consciência ganhou hoje corpo, o que antes parecia privilégio de artistas plásticos e poetas, de cineastas e teatrólogos, tomou corpo de modo firme no campo da música popular com o grupo baiano de Caetano e Gil, Torquato e Capinam, Tom Zé, que se aliaram a Rogério Duprat, músico ligado ao grupo concreto de São Paulo, e ao conjunto Os Mutantes, e hoje assume uma dramaticidade incrível a luta desses artistas contra a repressão geral brasileira, tão conhecida minha há dez anos (repressão não só da censura ditatorial, mas também da intelligentia bordejante). Aqui tudo se torna mais dramático, pois está diretamente ligado ao consumo de massa ou à “cultura de massa” etc., e sujeito portanto a maior repressão.384

Na sequência do texto, Oiticica condena as vaias “reacionárias” sofridas por Caetano Veloso e Gilberto Gil e diz que as criações e posições do grupo baiano, na esteira das denúncias feitas por Oswald de Andrade, na década de 1920, eram verdadeiramente revolucionárias, não apenas esteticistas; ao contrário, eles se dedicavam à “desmistificação, na música, do ‘bom gosto’ como critério de julgamento.”385 O artista vibra com as provocações dos músicos tropicalistas e denuncia os críticos (chamados “criticoides”) que insistiam em desmerecer a Tropicália frente a números musicais “bem-comportados” de intérpretes cujas apresentações se resumiam a

382 OITICICA, H. A trama da terra que treme (O sentido de vanguarda no grupo baiano). In: COELHO, F.; COHN, S. (org.). Obra citada, p. 152. 383 O termo vampirização é utilizado por Alfredo Bosi, para quem “a cultura de massa entra na casa do caboclo e do trabalhador da periferia, ocupando-lhe as horas de lazer em que poderia desenvolver alguma forma criativa de auto-expressão: eis o seu primeiro tento. Em outro plano, a cultura de massa aproveita- se dos aspectos diferenciados da vida popular e os explora sob a categoria de reportagem popularesca e de turismo. O vampirismo é assim duplo e crescente: destrói-se por dentro o tempo próprio da cultura popular e exibe-se, para consumo do telespectador, o que restou desse tempo, no artesanato, nas festas, nos ritos. Poderíamos, aqui, configurar com mais clareza uma relação de aparelhos econômicos industriais e comerciais que exploram, e a cultura popular, que é explorada. Não se pode, de resto, fugir à luta fundamental: é o capital à procura de matéria-prima e de mão de obra para manipular, elaborar e vender. A macumba na televisão, a escola de samba no Carnaval estipendiado para o turista, são exemplos de conhecimento geral.” In: BOSI, A. Obra citada, p. 328/329. 384 OITICICA, H. Obra citada, p. 154. 385 Ibidem, p. 156. 163

“chegar, cantar e pronto, voltar para casa e dormir sossegado depois de tomar uns uísques.” Os tropicalistas, não: a experiência deles era “calcada numa modificação a longo prazo.”386 A gravação de Tropicalia ou panis et circensis, num cabaré de São Paulo, teria sido o ponto culminante da ousadia criativa da turma, uma obra de arte em si: “Ali, todo o caráter ambiental pode ser explícito, surgindo o ‘calor ambiente’ como elemento totalizante; a meu ver é algo já além do simples happening organizado: a estrutura é mais aberta, há nela maior dose do imponderável (...).”387 A cultura de massa, como a linguagem propagandística, não era incensada, mas assimilada criticamente e transformada em canções não-conformistas; nesse sentido, as letras e as apresentações se revelavam enquanto exercícios de experimentação insubmissos, “como uma rama que se faz e cresce etapa por etapa: a tramavivência.”388 Diante do exposto, não é de estranhar que Oiticica não tenha criticado a assimilação que Caetano Veloso fez do termo Tropicália. O cantor e compositor narra o diálogo com o artista plástico em três momentos de Verdade Tropical: as partes que abrem e fecham o livro, Intro e Vereda, respectivamente, e o capítulo Tropicália. Na primeira parte, o autor relata que o nome Tropicália foi inventado por Oiticica e posto como título da canção-símbolo do movimento pelo cineasta Luís Carlos Barreto. No final, esboça uma reflexão mais aprofundada sobre o termo:

O nome de “tropicalismo”, que rejeitei a princípio por considerar restritivo, hoje me parece adequado como nenhum outro o seria. Justamente por eu ter preferido enfatizar em primeiro lugar nossa aceitação do repertório do pop internacional – como oposição de choque ao nacionalismo -, o apelido hoje me soa como uma revelação involuntária da essência do movimento. Sua própria construção – por jornalistas ingênuos a partir de uma sugestão de Luís Carlos Barreto por causa da obra de Oiticica – tem a marca do acaso significativo, do acercamento inconsciente a uma verdade. Uma responsabilidade pelo destino do homem tropical, um dínamo escondido que desencadeasse uma resposta histórica para uma pergunta semelhante à de Nietzsche – eis a motivação íntima do que se chamou de tropicalismo em música popular brasileira.389

No capítulo Tropicália, o autor relata mais pormenorizadamente o episódio da atribuição do nome e declara que jamais ouvira falar em Hélio Oiticica nem nos

386 Ibidem, p. 160. 387 Ibidem, p. 163. 388 Ibidem, p. 165. 389 VELOSO, C. Obra citada, p. 490. 164

penetráveis (“labirinto ou mero caracol de paredes de madeira, com areia no chão para ser pisada sem sapatos, um caminho enroscado, ladeado de plantas tropicais, indo dar, ao fim, num aparelho de televisão ligado, exibindo a programação normal.”390) Diante da sugestão de Barreto, a primeira reação de Caetano teria sido uma contundente negativa: não colocaria na música o título do trabalho de outrem. Além disso, a palavra poderia reduzir a canção a uma “localização geográfica.” Porém, explica o compositor, a palavra se agarrou ao projeto: “enquanto eu não encontrasse um nome melhor, a canção se chamava Tropicália. Nas caixas de fitas, nas fichas de gravação, nas conversas, o nome Tropicália se impôs.”391 O outro título cogitado, Mistura fina, não saiu do papel, definhando esquecido. A canção Tropicália é a faixa de abertura do LP Caetano Veloso, de 1968, o primeiro disco solo do cantor e compositor (em 1967, ele e Gal Costa haviam lançado o LP Domingo, de inspiração bossa-novista). O álbum reúne alguns clássicos instantâneos do artista de Santo Amaro, como Alegria, Alegria, Soy Loco Por Ti, América e Superbacana, canções em que são observáveis estratégias de construção típicas das vanguardas históricas, como o ready made e as linguagens contrastantes. Na visão de Rosa Magalhães, a exemplo dos modernistas, os compositores da Tropicália, dos quais Caetano Veloso e Gilberto Gil são os nomes mais lembrados, procuravam reviver os arcaísmos brasileiros, justapondo-os a símbolos da modernidade urbana, como os automóveis e as aeronaves, a Coca-Cola, os parques industriais, a gasolina, as revistas em quadrinhos e demais elementos que povoaram a cultura pop do século XX (ainda que sem existência material comprovável), como os discos-voadores. Nos termos da carnavalesca, o tropicalismo

alegoriza o nacionalismo e os produtos da indústria cultural. Neo-antropofágico ou alegórico, o Brasil não é tratado como a essência mítica perdida, um paraíso devastado, estilhaça-se o Brasil. Gil e Caetano criam uma mistura, própria da linguagem carnavalesca, associada à prática antropofágica oswaldiana. Uma revivência de arcaísmos brasileiros, que se chamou de “cafonismo”. O cafonismo e o humor, responsáveis pelo caráter lúdico das canções tropicalistas.392

Caetano Veloso fala no caráter alegórico presente na canção Tropicália, mistura de referências que pretendia criar um mosaico do Brasil multicultural, fervendo em uma

390 Ibidem, p. 183. 391 Ibidem, p. 183. 392 MAGALHÃES, R. Obra citada. 165

mesma panela elementos como a carta de Pero Vaz de Caminha e o concreto de Brasília. Como um trecho da canção é utilizado por Rosa Magalhães para encerrar a sinopse do enredo de 2002, é importante entender a visão de Caetano para com a obra:

Com a mente numa velocidade estonteante, lembrei que Carmen Miranda rima com A banda (e eu já vinha fazia muito tempo pensando em bradar o nome ou brandir a imagem de Carmen Miranda), e imaginei colocar lado a lado imagens, ideias e entidades reveladoras da tragicomédia Brasil, da aventura a um tempo frustra e reluzente de ser brasileiro. A palavra bossa, que já estava no samba de Noel (anos 30), se impunha, naturalmente (era claro para mim que ela estaria, como em Coisas nossas, no refrão da nova música), e sua rima com palhoça punha, mais do que a bossa nova, a TV do Fino da Bossa de Elis em confronto com uma população que mal deixava de ser rural. O Carnaval, o próprio movimento tropicalista (que então não tinha esse ou qualquer outro nome), a miséria e a opressão, a Jovem Guarda de Roberto Carlos, tudo teria lugar ali – as palavras encontravam rimas, contrastes e analogias; as imagens, espelhos, lentes e ângulos inusitados. Mas eu não queria que a nova canção fosse, como Coisas nossas, um mero inventário. Era preciso que um daqueles elementos – ou um outro em que não tinha ainda pensado – impusesse uma estrutura ao texto a ser cantado, de modo a manter um alto nível de tensão entre as abordagens que se sucederiam numa lista monstruosa. A ideia de Brasília fez meu coração disparar por provar-se imediatamente eficaz nesse sentido. Brasília, a capital-monumento, o sonho mágico transformado em experimento moderno – e, quase desde o princípio, o centro do poder abominável dos ditadores militares. Decidi-me: Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo.393

Aqui, entra em cena a dissonante voz de Roberto Schwarz, para quem uma obra musical como Tropicália bem expressa o envoltório simbólico da cena de Verdade Tropical em que Caetano Veloso descreve um “passeio performático” realizado em meio a uma passeata do movimento estudantil que explodira em conflito com a Polícia Militar, no centro do Rio de Janeiro, em tempos ditatoriais: sobrepõe imagens pontuadas por elementos discrepantes e choca pelo verborragismo das mais absurdas dissonâncias, as quais mascaram um tom conservador incrustado na crença de que ser brasileiro é doloroso, delicioso e ridículo – embora, e eis a percepção da falta de uma perspectiva de transformação social, para alguns (poucos) seja muito menos doloroso, materialmente falando, dado o secular quadro de concentração de renda e os preconceitos sociais não superados. Em outras palavras, Schwarz enxerga nas

393 VELOSO, C. Obra citada, p. 179/180. 166

construções de Tropicália uma espécie de celebração de um país socialmente desigual – afinal, também era preciso exaltar a “palhoça”, não apenas os edifícios de Brasília. Na visão do autor, é este caráter falsamente paradoxal (uma vez que faticamente inclinado para a linha conservadora), também chamado de “desfaçatez camaleônica”, a principal “verdade” sobre (ou sob) a qual Caetano Veloso apresenta as suas memórias – e isso, um fator não anula o outro, é, sob o crivo de Schwarz, um dos componentes literários mais instigantes da obra, posto que alça o narrador-protagonista à categoria de herói problemático gramsciano e torna o texto do livro, comparável às memórias de Bandeira e Drummond, digno de análises pormenorizadas. Confrontando a crítica festiva, Schwarz levantou tais suposições primeiramente em 1970, no texto Cultura e Política, 1964-1969. No trecho dedicado ao tropicalismo, o “jovem Schwarz” deixava claro que considerava a Tropicália um movimento artístico importante, porém prenhe de ambiguidade: “sob o fundo ambíguo da modernização, é incerta a divisa entre sensibilidade e oportunismo, entre crítica e integração.”394 Trata-se da percepção de que não estavam claros, em meio ao furor tropicalista, os reais intentos dos artistas envolvidos e os limites das suas ações: afinal, estariam músicos como Caetano Veloso e Gilberto Gil agindo de modo “ingênuo”, movidos por um até quixotesco idealismo juvenil, ou havia, por detrás dos discursos e dos discos, intentos mercadológicos, ligados às cifras do mundo do show-business e à sedução da moda? Seria possível conciliar as duas coisas ou isso automaticamente invalidaria a lógica da vanguarda? É o que se observa na seguinte provocação do autor:

Uma ambiguidade análoga aparece na conjugação de crítica social violenta e comercialismo atirado, cujos resultados podem facilmente ser conformistas, mas podem também, quando ironizam o seu aspecto duvidoso, reter a figura mais íntima e dura das contradições da produção intelectual presente. Aliás, a julgar pela indignação da direita (o que não é tudo), o lado irreverente, escandaloso e comercial parece ter tido, entre nós, mais peso político que o lado político deliberado. Qual o lugar social do Tropicalismo?395

Passados quarenta e um anos, em 2011 Schwarz aprofundaria sobremaneira a discussão de 1970 no longo ensaio Verdade Tropical: um percurso de nosso tempo. No texto, a obra de Caetano Veloso (brevemente analisada em uma entrevista concedida a

394 SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964 – 1969. In: SCHWARZ, R. Cultura e Política. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 30. 395 Ibidem, p. 30/31. 167

Afonso Fávero, Airton Paschoa, Francisco Mariutti e Marcos Falleiros, em 1999396) é retalhada e, consecutivamente, a Tropicália e a Antropofagia vêm à tona, gerando reflexões amadurecidas, situadas em um outro momento histórico. Schwarz começa por traçar uma oposição entre o Caetano interiorano, menino idealista e questionador que não se deixava igualar aos demais da sua idade, amantes de “enlatados” norte- americanos, e o jovem cantor e compositor do eixo Rio-São Paulo, que alcançou o estrelado nos programas de auditório (exemplares da cultura massiva) e se dizia fã de Chacrinha397 (apresentador que supostamente empreendia uma “experiência dada de massas”398), usando da “parafernália roqueira no terreno resguardado da MPB.”399 Para Schwarz, isso

não se tratava de uma inconsistência, ao contrário do que podia parecer. No seu caso, a incorporação da coisa estrangeira vinha em benefício do foco nacional, puxado para a atualidade pelas transgressões bem meditadas, que o questionavam e aumentavam o valor problemático. À maneira da Antropofagia oswaldiana, que estava sendo redescoberta por conta própria, a importação das inovações internacionais favorecia o desbloqueio e a ativação histórica das realidades e dos impulsos de um quintal do mundo.400

Entretanto, à medida que a leitura avança, o texto de Schwarz perde o caráter elogioso. O ensaísta passa a problematizar as atitudes narradas pelo memorando e conclui que “o artista associava uma tradição brasileira, marcada social e racialmente, a um desenvolvimento de vanguarda, que a desprovincianizava, além de viabilizá-la no

396 Na entrevista, Schwarz sintetiza o montante de ideias apresentadas no ensaio de 2011, afirmando que o livro de Caetano Veloso, apesar de possuir enormes qualidades, possui incongruências que impedem voos mais altos, como os fatos de que o músico, cuja adolescência narrada é marcada por um certo esquerdismo, passa a militar contra a esquerda após sofrer vaias; e de que Verdade Tropical passa em silêncio pelo corredor das discussões sobre a mercantilização da cultura. Para maiores informações, ver FALLEIROS, Marcos; FÁVERO, Afonso; MARIUTTI, Francisco; PASCHOA, Airton. Tira-dúvidas com Roberto Schwarz. In; Novos Estudos CEBRAP. São Paulo: ANPOCS, novembro de 2002, p. 53/71. 397 Um contraponto aos elogios tecidos a Chacrinha em Verdade Tropical pode ser visto no excerto Chacrinha?!, redigido por e publicado em 07 de outubro de 1967, no Jornal do Brasil. No texto, a escritora critica o “sadismo” do apresentador, que humilhava e ridicularizava os “calouros”. Ao final, questiona e afirma: “Será pela possibilidade da sorte de ganhar dinheiro, como em loteria, que o programa tem tal popularidade? Ou será por pobreza de espírito de nosso povo? Ou será que os telespectadores têm em si um pouco de sadismo que se compraz no sadismo de Chacrinha? Não entendo. Nossa televisão, com exceções, é pobre, além de superlotada de anúncios. Mas Chacrinha foi demais. Simplesmente não entendi o fenômeno. E fiquei triste, decepcionada: eu quereria um povo mais exigente.” In: LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999, p. 36/37. 398 VELOSO, C. Obra citada, p. 161. 399 SCHWARZ, R. Martinha versus Lucrécia. Ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 61. 400 Ibidem, p. 61. 168

mercado estrangeiro (...)”.401 Ou seja: o discurso antropofágico também poderia ser utilizado para fins mercadológicos, ligados ao universo do chamado “capital cultural”, nos termos de Pierre Bourdieu. Além disso, Schwarz observa que Caetano Veloso colore a questão com tintas festivas demais, impróprias para o período histórico em que a redescoberta da Antropofagia ocorria (uma sangrenta ditadura; é interessante a percepção de Schwarz de que o texto de Verdade Tropical só retrata a ditadura como algo realmente trágico quando o narrador-protagonista descreve os dias passados na prisão, como se apenas ali, no interior de uma cela, ele tivesse tomado consciência do quadro de horror em que o país estava mergulhado - e ainda assim com o olhar centrado em si mesmo402) e sem a devida criticidade para com o secular quadro de desigualdade social existente no país. É o que está explicitado na seguinte passagem:

O jogo de progressões e retomadas entre Santo Amaro, Salvador, a cultura internacional e a Bossa Nova, com o Brasil ao fundo, sugeria um percurso democrático de modernização. É como se por um momento (inverossímil) o progresso e a internacionalização se fizessem para o bem de todos, num toma-lá-dá-cá harmonioso, e não à custa dos fracos e atrasados.403

Em resumo, das páginas de Schwarz brota o entendimento de que o narrador de Verdade Tropical é uma figura contraditória: apesar de cultuar determinados ícones da esquerda, como Ernesto Che Guevara (para quem a música Soy Loco Por Ti, América é dedicada), Caetano Veloso, ao descrever suas peripécias pela década de 1960, se mostra mais interessado nos ideais apregoados por um manifesto de quarenta anos que nas manifestações estudantis que então explodiam em conflitos nas ruas do Rio de Janeiro. A fim de ilustrar tal compreensão, Schwarz destaca o há pouco mencionado momento em que o autor de Verdade Tropical descreve a participação que teve em uma passeata estudantil reprimida pelos militares: ele não tomou partido e apenas “passeou” pela cena de batalha em praça pública, espécie de guru ou profeta milenarista que se reservou ao

401 Ibidem, p. 71. 402 O próprio Caetano Veloso atina para algo nesse sentido ao afirmar que no dia 13 de dezembro de 1968, quando do anúncio do Ato Institucional nº 05, ele não mediu “a extensão e a profundidade das mudanças anunciadas pelos noticiários da TV. Claro que a linha dura tomara o poder. Mas nós (tropicalistas) justamente éramos vistos com hostilidade pelas esquerdas mais barulhentas.” In: VELOSO, C. Obra citada, p. 336. Fazendo justiça a Caetano, na abertura do capítulo Barra 69, o autor faz uma reflexão consternada sobre as pessoas que morreram e foram torturadas nas prisões brasileiras, durante o regime militar, concluindo que, diante do drama de tantos brasileiros (ele também fala nos argentinos e chilenos, pensando no quadro das ditaduras latino-americanas), ter passado dois meses nas prisões cariocas “foi um episódio que nem sequer mereceria referência.” In: VELOSO, C. Obra citada, p. 404. 403SCHWARZ, R. Obra citada, p. 75. 169

direito de tão somente proferir palavras desaforadas às pessoas que o cercavam, ator de um “teatro para uso sobretudo particular.”404 Schwarz demonstra uma certa reserva ao classificar a cena como “esquisita”. Para ele, as considerações tecidas por Caetano Veloso acerca do episódio são tão esquisitas quanto a atitude: o autor de Verdade Tropical lança sobre a caminhada em meio à passeata as luzes do vanguardismo, valorizando-a “como um lance de arte de vanguarda, ou neovanguarda dos anos 60”405, um tipo de performance. O crítico entende que há no episódio elementos da teoria da vanguarda, como a recusa da separação entre arte e praxis vital e “a performance improvisada à luz do dia, com dimensão política, envolvendo o cidadão comum (...)”.406 Porém, coloca em seguida, preencher alguns requisitos do vanguardismo não esgota a dimensão política da cena nem a encerra na caixa do contestatário: há mais por detrás das palavras de Caetano. Além de um autoenaltecimento que, na visão de Schwarz, soa cômico, a cena seria exemplar da postura política que o autor desenha ao longo das suas memórias, qual seja: a de um sujeito que, no fim das contas, coloca os ideais individuais acima da coletividade e se mostra condescendente (Schwarz fala em “afinidade”) com a “desagregação que se processa à sua volta”407 – células conservadoras no “sangue novo” das tropicálias, a música e o movimento. Christopher Dunn entende as inquietações que motivaram Schwarz a redigir as primeiras críticas à Tropicália, em 1970 (retrabalhadas no ensaio publicado em 2012, posterior ao Brutalidade Jardim de Dunn), mas utiliza de autores como Silviano Santiago e Heloisa Buarque de Hollanda para mostrar que os vereditos contrários são por demais esquadrinhados na “tradição teórica européia hegeliana-marxista”, deixando de lado “outras práticas artísticas e teóricas fundamentadas nas especificidades culturais e históricas do Brasil.”408 Demasiadamente preocupado com a crítica social, Schwarz limitava a arte tropicalista ao dever-ser, menos interessado em entender a poética das composições (que, ainda que contraditórias do ponto de vista da realidade social brasileira e mergulhadas numa zona de ambiguidades no que tange à mercantilização, podem ser excelentes do ponto de vista estético – isso, é claro, se considerarmos que é

404 Ibidem, p. 91. 405 Ibidem, p. 92. 406 Ibidem, p. 92. 407 Ibidem, p. 93. 408 DUNN, C. Obra citada, p. 21. 170

possível separar a estética daquilo que se convencionou chamar de “ética política de esquerda”) que em enxergar no movimento as marcas (ou a ausência) da arte revolucionária de inclinação soviética que, no limite, levam ao realismo socialista ou jdanovismo. Isso fica patente quando Schwarz compara as canções tropicalistas ao Cinema Novo e à estética da fome, manifestações consideradas verdadeiramente engajadas409. Ora, pergunta o crítico de arte com inclinações perspectivistas, ainda que uma coisa tenha motivado a outra, é possível colocar em um mesmo “recipiente analítico” o filme Terra em Transe e o álbum Tropicalia ou panis et circensis? Na Justificativa do Enredo, à disposição no Centro de Memória do Carnaval - LIESA, Rosa Magalhães não entra em tais discussões cabeludas: apresenta aos leitores uma visão panorâmica sobre o neoantropofagismo, passeando por música, teatro, cinema e televisão. Nas palavras dela, “o Rei da Vela é um marco no , uma rebeldia nos anos de censura e ditadura política. Macunaíma vira filme através da visão de Joaquim Pedro de Andrade, e Chacrinha é o rei da comunicação.” Se na sinopse Carmen Miranda é tão somente citada por se fazer presente no trecho final da letra de Tropicália, canção-síntese do movimento que é utilizada pela autora para encerrar o texto, junto à menção ao Bispo Sardinha, na justificativa a Pequena Notável ganha algumas linhas: “Carmen Miranda, tropicalista por natureza, síntese desta visão antropofágica, foi ao exterior não para importar, mas para exportar os ritmos, a exuberância e a cor do Brasil, sem medo de ser cafona.” Diante da revisão bibliográfica exposta anteriormente, as afirmações, mais uma vez, parecem genéricas e reducionistas (e aqui cabe o reforço: um texto expositivo de enredo de escola de samba não é um estudo acadêmico, portanto não é refém de qualquer preocupação com “profundidades” ou “especificidades” teóricas; nesse sentido, Rosa Magalhães vai além daquilo que é comumente apresentado pelos demais

409 Eis um ponto complicado, posto que teóricos ainda mais agressivos que Schwarz, como Pedro Alexandre Sanches, relativizam o engajamento do Cinema Novo, considerando-o contraditoriamente anti- pós-moderno e triunfo da pós-modernidade; rebelde e vítima, em suma, como se depreende da seguinte passagem: “(...) Glauber Rocha é, via Terra em Transe, fundador do pós-modernismo brasileiro. Mas não o é, também, por simples razão: Glauber é um modernista, ainda que tenha se voltado verbalmente contra o movimento de 1922, em rebelião dentro do próprio seio do modernismo. Ele critica, até certo ponto, a alienação modernista, reivindicando não um antimodernismo, mas um modernismo engajado, atuante politicamente. Isso não é o pós-moderno – Glauber propõe a continuidade do sonho humanista do iluminismo, do romantismo, até do já individualista modernismo. É, apesar dos tempos, essencialmente humanista. Não só delira, mas também – e ainda – sonha. Por essa razão, descobrir-se no útero do monstro deve ter sido para ele terrível, a concretização contrária de todo um projeto construído com zelo e tino. A aparente consciência disso traria consequências dramáticas para o artista e para sua carreira.” In: SANCHES, P. A. Obra citada, p. 40. 171

carnavalescos). O discurso segundo o qual a Tropicália é descendente direta da Antropofagia é reproduzido aos baldes e, como visto, fora defendido pelos próprios Hélio Oiticica e Caetano Veloso, este último costumeiramente considerado o “líder” do movimento – percepção essencial para se refletir acerca da “monumentalização” do tropicalismo, que, a exemplo das críticas que sofreram as demais vanguardas históricas, se dizia contrário às hierarquias mas parecia carecer de líderes que o personificassem.410 Alfredo Bosi, em Dialética da Colonização, aponta para a relação entre 1928 e 1968 quando das investigações sobre as relações entre culturas erudita e popular. Para Bosi, a Tropicália nasceu em um contexto de crise da cultura de massa, no qual era preciso repensar o intercâmbio cultural entre diferentes esferas sociais – e por isso jovens como Caetano Veloso mergulharam no caldo oswaldiano, reacendendo a fogueira para o cozimento da identidade brasileira. Nas palavras do teórico paulista, “não por acaso é o momento áureo do tropicalismo que repropõe a volta ao pensamento antropofágico do modernismo.”411 Opinião semelhante é sustentada por autores que desenvolveram estudos sobre a Tropicália em épocas distintas, como Getúlio Mac Cord, que publicou uma coletânea de entrevistas e depoimentos em 2011, e Celso Favaretto, que já destacava a máxima de Caetano segundo a qual “o tropicalismo é um neoantropofagismo”412 em 1979, na primeira edição de Tropicália Alegoria Alegria, um dos livros referenciados por Rosa Magalhães. Pela pena de Caetano Veloso, o trecho de Verdade Tropical que explicitamente diz respeito às anotações de Rosa Magalhães, qual seja, o recorte republicado em 2012

410 No máximo, as publicações tendem a sugerir que Caetano Veloso dividia a liderança da Tropicália com Gilberto Gil, e ambos (Caetano mais, sem dúvidas) contribuiram para o reforçar dessa ideia: em 1993, por exemplo, a dupla lançou o álbum Tropicália 2, em comemoração aos 25 anos do disco de 1968, uma gravação coletiva em cuja foto de capa se veem nove “tropicalistas”, entre eles Gal Costa, os Mutantes, Tom Zé e Rogério Duprat. Henrique Monnerat lança olhos para os apagamentos simbólicos que ajudaram a construir o “mito” Tropicália centralizado nas figuras de Caetano Veloso e Gilberto Gil, afirmando que “uma visão consensual teve cada vez mais espaço à medida que a década de 1960 se distanciava: o que se considerou como o tropicalismo ganhava as cores vivas de um movimento. Nesse processo, artistas de distintas áreas foram incluídos no rol de participantes, sem que se fizesse jus a outros, relegados a um segundo plano ou simplesmente ignorados. Na proposta de revelar os porquês do esquecimento e da canonização, alguns trabalhos teóricos recentes têm o mérito de questionar essa história oficial do chamado movimento tropicalista.” In: MONNERAT, H. C. Obra citada, f. 12. No rol dos “apagados” o autor coloca, por exemplo, Tom Zé (que chegou a dizer que havia se transformado no “Trótsky da Tropicália”) e Torquato Neto, um dos idealizadores do álbum de 1968. O caso mais curioso e controverso é o do cantor Ronnie Von, associado à Jovem Guarda (mitificada na tríade Roberto Carlos, e Wanderléa) e considerado, à primeira vista, um corpo estranho à turma de Caetano e Gil – ainda que tenha gravado três discos considerados “tropicalistas” pelo próprio, todos “apagados” da história oficial da Tropicália. 411 BOSI, A. Obra citada, p. 334. 412 FAVARETTO, C. Obra citada, p. 55. 172

sob o título Antropofagia, compreende um pedaço da obra situado na Parte 2, pedaço este que reúne quatro capítulos: A poesia concreta, Chico, Vanguarda e Antropofagia. Destes, os dois capítulos finais merecem atenção redobrada, posto que neles (e especialmente no último) o músico explica aos leitores o papel que a ideia de vanguarda artística exerceu no caldeirão tropicalista. A Antropofagia ganha contornos bem definidos, num capítulo denso, em que dialogam Antonio Candido, Georg Lukács e os irmãos Campos, entre outros “convidados” ilustres. Sobre o Manifesto Antropófago, o autor afirma:

O segundo manifesto, o Antropófago, desenvolve e explicita a metáfora da devoração. Nós, brasileiros, não deveríamos imitar e sim devorar a informação nova, viesse de onde viesse, ou, nas palavras de Haroldo de Campos, “assimilar sob espécie brasileira a experiência estrangeira e reinventá-la em termos nossos, com qualidades locais ineludíveis que dariam ao produto resultante um caráter autônomo e lhe confeririam, em princípio, a possibilidade de passar a funcionar, por sua vez, num confronto internacional, como produto de exportação.” Oswald subvertia a ordem de exportação perene – de formas e fórmulas gastas (...) – e lançava o mito da antropofagia, trazendo para as relações culturais internacionais o ritual canibal. A cena da deglutição do padre d. Pero Fernandes Sardinha pelos índios passa a ser a cena inaugural da cultura brasileira, o próprio fundamento da nacionalidade.413

De certa maneira, o princípio antropofágico pode ser identificado nas principais canções do “Caetano tropicalista”, como Alegria, alegria, apresentada no festival de 1967, na qual a Coca-Cola, marca-símbolo do capitalismo norte-americano, é arranjada em um conjunto de referências ao turbulento período político brasileiro de então. Trata- se de um desfocado retrato da “realidade confusa e fragmentada de uma cidade brasileira moderna, no caso o Rio de Janeiro, caracterizada pela presença constante da mídia de massa e produtos de consumo.”414 Mas se trata, também – e eis a constatação da impossibilidade da neutralidade -, de uma “crítica à intelligentzia de esquerda (‘por entre fotos e nomes/ sem livros e sem fuzil/ sem fome, sem telefone/ no coração do Brasil’)”415, posição ideológica que seria interpretada de maneiras distintas por autores contemporâneos ao movimento, como Heloisa Buarque de Hollanda, Augusto de

413 VELOSO, C. Obra citada, p. 242. 414 DUNN, C. Obra citada, p. 88. 415 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de Viagem. CPC, Vanguarda e Desbunde: 1960/70. Rio de Janeiro: Aeroplano editora, 2004, p. 63. 173

Campos416 e Roberto Schwarz. Salta aos olhos, novamente, a percepção de que a Antropofagia ressignificada pela Tropicália não estava despojada de ideais políticos demarcados; em sendo a própria cultura um conceito enredado na trama política, parece inquestionável a ideia de que o discurso tropicalista não se apropriou da Antropofagia de maneira ingênua - o discurso antropofágico servia à Tropicália porque legitimava determinadas concepções políticas e culturais dos idealizadores do movimento, especialmente Caetano Veloso, conforme se depreende do trecho abaixo, retirado de Verdade Tropical:

A ideia do canibalismo cultural servia-nos como uma luva. Estávamos “comendo” os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva. Claro que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a adotamos.417

Gilberto Gil também expressou o incômodo gerado pela “atitude defensiva dos nacionalistas”, conforme se depreende de um trecho de entrevista publicada no Jornal da Tarde, em 04 de outubro de 1967, às vésperas da apresentação de Domingo no

416 O autor, no texto A explosão de Alegria, Alegria, originalmente publicado em 1967 – ou seja, logo após a composição e apresentação da obra, afirma que a música soava como um “novo desabafo- manifesto, mais do que necessário, ante a crise de insegurança que, gerando outros preconceitos, tomou conta da música popular brasileira e ameaçou interromper a sua marcha evolutiva.” A perspectiva evolucionista soa incômoda ao leitor contemporâneo e é justificada com acordes de Oswald de Andrade: “Caetano Veloso e Gilberto Gil, com Alegria, Alegria e Domingo no Parque, se propuseram, oswaldianamente, ‘deglutir’ o que há de novo nesses movimentos de massa e de juventude e incorporar as conquistas da moderna música popular ao seu próprio campo de pesquisa, sem, por isso, abdicar dos pressupostos formais de composição, que se assentam, com nitidez, em raízes musicais nordestinas. Pode- se dizer que Alegria, Alegria e Domingo no Parque representam duas faces complementares de uma mesma atitude, de um mesmo movimento no sentido de livrar a música nacional do ‘sistema fechado’ de preconceitos supostamente ‘nacionalistas’, mas na verdade apenas solipsistas e isolacionistas, e dar-lhe, outra vez, como nos tempos áureos da bossa-nova, condições de liberdade para a pesquisa e a experimentação, essenciais mesmo nas manifestações artísticas de largo consumo, como é a música popular, para evitar a estagnação.” Novamente, Augusto de Campos dá a entender que a MPB segue a linha reta da evolução, posição que tendia, logicamente, a glorificar a Tropicália, na tradição e ruptura da “idade do ouro” da Bossa Nova. Ver CAMPOS, A. de. A Explosão de Alegria, Alegria. In: RISÉRIO, Antonio (org.). Gilberto Gil, Expresso 222. São Paulo: Corrupio, 1982, p. 19/20. 417 VELOSO, C. Obra citada, p. 242. O mesmo trecho é mencionado por Maria Cândida Ferreira de Almeida, autora que destaca a presença da antropofagia na produção de outros artistas do período, como Lygia Clark: “o cenário do período apresentado por Caetano Veloso constitui-se como um pano de fundo para entender o interesse subjacente às outras manifestações artístico-antropofágicas dos anos 70. Lygia Clark, com sua expressão plástica até hoje de vanguarda, produziu uma série de obras performáticas que envolviam o corpo humano. São dela dois trabalhos que tratavam do tema do canibalismo: Baba antropofágica (1973) e Canibalismo (1973).” Na sequência, a autora dá destaque à obra de Nelson Pereira dos Santos, Como era gostoso meu francês, de 1971. In: ALMEIDA, M. C. F. Obra citada, p. 148. 174

Parque no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 21 de outubro daquele ano, no Teatro Paramount, em São Paulo418:

Na música pop de hoje, os Beatles passam a utilizar todos os tipos de música e de instrumentação eruditas que não pertenciam ao que chamavam iê-iê-iê. Estão evoluindo sempre, enquanto no Brasil a própria música chamada jovem torna-se conservadora. E na música popular brasileira o conservadorismo é muito pior. Se pensássemos sempre assim, estaríamos tocando nossas músicas com instrumentos indígenas. É preciso pensarmos em termos universais. O mundo hoje é muito pequeno, não há razões para regionalismos. Se amanhã formos a Marte e se lá houver música, a Terra talvez se uma e proteste: “não toquem esta música, ela é estrangeira”.419

Pode-se dizer que ambos os compositores (Caetano de maneira mais explícita) têm a preocupação de esclarecer que os princípios antropofágicos não foram aplicados de modo acrítico, puramente celebratório, na estruturação do tropicalismo. Tal postura ao mesmo tempo lúcida e defensiva ganha vigor em Verdade Tropical quando o memorando reconhece que a ideia de Antropofagia apregoada pelos tropicalistas passou a ser invocada, tempos depois, de maneira perigosamente simplista – algo que inicialmente foi apontado por Gilberto Gil, aquele que menos teria se deixado seduzir pelo cantar de Oswald. Essa linha reflexiva leva Caetano a refutar com veemência a opinião do psicanalista Contardo Calligaris de que ao atuar como resposta para o dilema da identidade nacional, o “antropofagismo” teria servido mais ao colonizador que a nós, colonizados, uma vez que o Brasil estaria a se mostrar exótico (simbolizado pelas figuras carnavalescas de Chacrinha e Carmen Miranda, ambas em destaque no enredo de Rosa Magalhães) não apenas para o estrangeiro que invade as nossas praias, mas para os próprios brasileiros, que, massa de manobra à la Terra em Transe, não possui uma consciência de si substantivamente calcificada. A provocação de Calligaris atenta para o fato de que a Antropofagia não está livre de uma certa dose de subserviência, a qual, se manipulada de modo pouco cuidadoso, pode reforçar o regime de “escravidão cultural” em que nós, latino-americanos, nações formadas à base de chibatadas,

418 Tal importante evento para a música popular brasileira, também chamado de “Festival da virada”, ganhou, em 2010, um bom documentário: Uma noite em 67, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil. No filme é possível ver as apresentações integrais das canções que concorreram ao grande prêmio do festival da Record, que teve por vencedora a composição Ponteio, de . Alegria, Alegria terminou em quarto lugar; Domingo no Parque, na segunda posição. Entre as composições de Gil e Caetano, no terceiro lugar, ficou Roda Viva, de Chico Buarque. 419 Sem crédito. Gil espera tranquilo outra vaia. In: COELHO, Frederico; COHN, Sergio (org.). Tropicália . Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, 2012, p. 47. 175

supostamente ainda vivemos. Caetano não apenas tacha Calligaris de conservador como afirma, encerrando a peleja, que

se a Antropofagia era tão mau sintoma, aparentemente o Brasil tem anticorpos poderosos contra ela, uma vez que foi o maior fracasso do movimento de 22, e o bom senso já a penaliza, mal ela ensaia uma volta no concretismo, no tropicalismo etc. Mas eu também sei ser realista – Oswald também sabia – e considero bem-vindo o refluxo conservador.420

Trocando em miúdos, Caetano Veloso refuta a visão de Calligaris mas, em certa medida, e com a inteligência retórica que pontua toda a Verdade Tropical, reconhece que os “renascimentos” da Antropofagia de 1928 não ocorrem sem alguns problemas. Ele reforça a ideia de que a Antropofagia, no caso tropicalista, passou por um filtro reflexivo e diz, páginas depois, que o encontro com o conjunto de ideias de Oswald de Andrade ocorreu quando o processo de construção da Tropicália “já estava maduro e o essencial da produção já estava pronto”421, ou seja: não foi a Antropofagia a parteira do movimento – antes uma enfermeira encarregada de cuidar da criança. Se a guerra a Calligaris fora declarada, não é preciso dizer do montante de críticas que o músico fez e faz às proposições de Roberto Schwarz, um desafeto confesso. No começo do capítulo Antropofagia, Caetano Veloso explica que o primeiro contato estabelecido com Oswald de Andrade não foi por meio do Manifesto, mas da montagem de O Rei da Vela dirigida por José Celso Martinez Corrêa, em 1967, algo que ele já havia relatado em 1972, durante uma entrevista a Hamilton Almeida, publicada na obra Alegria, alegria - Uma Caetanave organizada por Waly Salomão. Na entrevista, ao ser questionado sobre a afinidade intelectual existente entre ele e os irmãos Campos, Caetano explicou que as discussões geradas por O Rei da Vela foram de importância cabal para a solidificação da amizade com Augusto e Haroldo422. Em Verdade Tropical, por sua vez, o autor afirma que o impacto causado pela peça se juntou à inquietação provocada pelo filme Terra em Transe423, de Glauber Rocha, cuja

420 VELOSO, C. Obra citada, p. 246. 421 Ibidem, p. 251. 422Para maiores informações, consultar VELOSO, C. Alegria, alegria. Uma Caetanave organizada por Waly Salomão. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, 1977. 423 A respeito do filme Terra em Transe, é indispensável a leitura de Terra em Transe: alegoria e agonia, de Ismail Xavier. No texto, Xavier destrincha a montagem da película de Glauber Rocha e mergulha no núcleo ideológico da obra, observando os componentes alegóricos presentes na narrativa. O primeiro tratamento do roteiro de Terra em Transe está disponível em Roteiros do Terceiro Mundo, coletânea de textos de Glauber Rocha organizada por Orlando Senna. 176

estreia ocorrera no mesmo ano. Juntos, peça e filme se entrelaçariam no estopim teórico da Tropicália; juntos, Zé Celso e Glauber Rocha formariam uma dupla de realizadores incensada pela pena de Caetano, conforme se depreende das seguintes afirmações: “Zé Celso se tornou, aos meus olhos, um artista grande como Glauber. (...) A peça continha os elementos de deboche e a mirada antropológica de Terra em Transe.”424 E complementa:

No texto de apresentação que fez imprimir no programa, Zé Celso dedicava o novo espetáculo a Glauber e à capacidade de responder à realidade da época que o Cinema Novo exibia – e de que o teatro estava carente. E se referia a Chacrinha como teatralmente criativo e inspirador. Isso confirmava minha percepção de que o que eu vira tinha tudo a ver com o que eu estava tentando fazer em música.425

Mas atrás de Glauber e José Celso, na parede da memória tropicalista, pairava a figura de Oswald de Andrade – e Caetano Veloso faz questão de ressaltar isso ao longo do capítulo426. A despeito do fato de ter descoberto, após desbravar a produção do escritor modernista, que os textos teatrais são “a parte mais fraca de sua obra”427, Caetano coloca Oswald em um patamar artístico muitíssimo elevado, autor de uma poesia “a um tempo solta e densa, extraordinariamente concentrada (...)”428, cujos versos “convidavam a repensar tudo o que eu sabia sobre literatura brasileira, sobre poesia brasileira, sobre arte brasileira, sobre o Brasil em geral, sobre arte, poesia e literatura em geral.”429 Além dos elogios literários, o músico atribui a Oswald a curiosa responsabilidade pela união de dois grupos ideologicamente antagônicos que orbitavam em torno da Tropicália: os “irracionalistas”, grupo formado por nomes como José Celso e , e os “super-racionalistas”, conjunto em que poderiam ser enquadrados os poetas concretos e os músicos dodecafônicos. Resumindo a prosa, fato é que o texto de Caetano Veloso oferece aos leitores a “versão oficial” do tropicalismo (uma Verdade), que é, evidentemente, apenas uma e

424 VELOSO, C. Verdade Tropical, p. 237. 425 Ibidem, p. 239. 426 Sobre a relação de Glauber Rocha com a obra oswaldiana, Caetano diz que o cineasta “parece ter sido o único a não partilhar do culto oswaldiano: talvez tivesse medo de ser assimilado a uma figura com tantos pontos em comum com ele próprio. De resto, ele já tinha feito a sua escolha entre os modernistas: Villa-Lobos, com seu nacionalismo retumbante e a conquista de renome internacional, com seu talento exuberante, com seu temperamento e seus caprichos, parecia-lhe uma identificação mais adequada.” In: VELOSO, C. Obra citada, p. 252. 427Ibidem, p. 241. 428 Ibidem, p. 241. 429 Ibidem, p. 251. 177

limitada versão. Na linha celebratória, não faltam livros, coletâneas musicais e documentários a reproduzir tal ponto de vista – o exemplo mais recente é o documentário Tropicália, de Marcelo Machado, lançado em 2012. Na linha da teoria crítica, a voz de Roberto Schwarz é um grito rebelde que aponta para algo desestabilizador: os discursos tropicalista e antropofágico podem maquiar posições conservadoras, ignorando “as diferenças de poder entre os centros dominantes e as periferias.”430 O mais intempestivo berro, entretanto, é de Pedro Alexandre Sanches, cuja crítica elaborada em Tropicalismo – decadência bonita do samba associa à eclosão da Tropicália o advento da pós-modernidade brasileira, sucintamente representada pela fragmentação das metanarrativas, pelo culto aos simulacros, pela “desideologização” social, pela desorganização “dos substratos pulsantes das formas mais elaboradas da comunicação (a arte, o sexo, o amor).”431 Nesse contexto, diz o autor, as relações sociais se esfacelam em virtualidades; colore o ar uma névoa festiva e ao mesmo tempo conformista – celebra-se a rapidez, a otimização, o “futuro que já começou” (o componente triunfalista presente no prefixo pós), ainda que tudo isso mascare um vazio existencial coletivo (desdobrado, por exemplo, na surpreendente expansão das religiões pentecostais) e estimule o consumo desenfreado de necessidades descartáveis e padrões globalizantes. O tropicalismo, arauto e refém da pós-modernidade, teria se transformado em um “movimento destinado a impossibilitar quaisquer movimentos posteriores.” 432 Os rebeldes de outrora ficaram congelados em fotografias de capas de discos, um “desmovimento” “iconizado primeiro em pântanos latino-americanos pelo tropicalismo (...).”433 O autor não poupa acidez e dispara, na abertura de sua obra:

430 Eis a síntese da problemática, nos termos de Christopher Dunn: “Os adversários dizem que o modelo antropofágico apenas evita o complexo problema da dependência econômica e cultural. Roberto Schwarz afirmou que a destruição filosófica dos pares opostos original/derivativo, em termos práticos, não ajuda quase nada a resolução desse dilema. Para Schwarz, a antropofagia cultural foi uma solução imaginária para intelectuais de elite que obscureceu a percepção das classes trabalhadoras em relação à alienação social desses intelectuais: ‘Como não notar que o sujeito da Antropofagia (...) é o brasileiro em geral, sem especificação de classe?’ (Schwarz, 1987, p. 101). Desse ponto de vista, a antropofagia cultural funciona como uma espécie de ideologia de identidade nacional, que omite a desigualdade de classes e ignora as diferenças de poder entre os centros dominantes e as periferias. O Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, continua sendo um dos textos mais provocativos e sugestivos da literatura brasileira. A contínua reciclagem da metáfora antropofágica sugere que ela continua sendo um modelo viável, apesar de dificilmente livre de controvérsias, para a conciliação de interesses locais e cosmopolitas na produção cultural brasileira.” In: DUNN, C. Obra citada, p. 37/38. 431 SANCHES, P. A. Obra citada, p. 24. 432 Ibidem, p. 25. 433 Ibidem, p. 25. 178

No terreno em que se pisa – da fragmentação pós-moderna?, da miséria física? -, as formas de “baixa cultura” tomam de assalto o cenário cultural, sob as asas, frequentemente, de figuras como Caetano Veloso, entusiasta, sob argumentos de 30 anos de idade, do Brasil virado de bunda da axé music. Não por acaso, o universo da música popular transforma-se em veio imediato de expressão dos valores culturais nacionais, em quase único fator de orgulho ufanista aos brasileiros, ao lado dos também festivos futebol e carnaval. A distinção entre alta e baixa cultura se esfuma, e figuras abertas ao grande mercado de consumo – Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, para não ter de chegar ao cometa diabólico, o padre Marcelo Rossi – são alçados ao pedestal de poesia de “alta cultura”; transformam-se em arautos da intelectualidade, em símbolos nacionais à estatura de Villa-Lobos ou Machado de Assis. Decadentismo, pois não?434

Ignorando os trechos muito questionáveis em que o autor opõe “alta cultura” (representada por Machado de Assis e Villa Lobos) e “baixa cultura” (representada pela axé music, mas também por agentes de obras tão discrepantes que a comparação parece ensandecida, como Chico Buarque e Marcelo Rossi435), a passagem evidencia que Pedro Alexandre Sanches observa a Tropicália com olhos carregados de mordaz criticidade, destrinchando a Verdade Tropical de Caetano Veloso e as três últimas décadas do século XX com menos elegância e substrato teórico que Roberto Schwarz. Logo, não deixa de parecer estranhíssima a constatação de que Rosa Magalhães referenciou a obra de Sanches entre as leituras que embasaram a pesquisa do enredo de 2002 – afinal, Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way! é, entre tantas facetas, um

434 Ibidem, p. 27. 435 O texto de Sanches é, em grande medida, uma provocação, o que permite a verborragia despudorada. Em outro momento da abertura do livro, dispara contra e justifica o ato, apelando para as paixões, numa sensível demonstração de ambiguidade e consciência da incompletude analítica: “Imerso no impasse entre existir ou não existir, mastigo meus próprios argumentos. Idolatro os homens que viraram o que viraram, aprendo com eles, me rebelo contra eles. Percebo que, para reclamar de um modelo vigente mofado, que não tem mais condições de se perpetuar, adoto critérios e estratagemas aprendidos do próprio modelo, de fios esvoaçantes de cabelo a tumores escapados de suas paredes intestinais, ou presos a elas Sirvo-me das bandejas que me ofereceram tão graciosos garçons. (...) Não acho o mapa da mina, não coloco em pé o ovo de Colombo, mas escalo com dor a escarpa que possa dar no lado de lá da ululância, como aquela que contrapõe a fuça feia da ignorância a Caetano Veloso, essa Carla Perez de pop-intelectuais e/ou intelectualóides nacionais, que seduz mentes, rebolando o cérebro, com a mesma voracidade e superficialidade que a outra utiliza para, rebolando as nádegas, seduzir baixos-ventres. A hidra tem sete cabeças. Sobretudo, procuro a saída no fim do espinheiro, já cravado de espinhos lancinantes. Invejoso de suas rebeldias, aplico-me o unguento da rebeldia. Não, não acredito mais em vocês. Mas sim, tanta rebeldia, por desencontradas de novas e renovadas soluções, é, tanto quanto rebeldia, declaração cândida de amor aos artesãos e aos náufragos do presente perpétuo. Nascer amedronta. Tropicalismo – decadência bonita do samba não odeia o mundo em que se viu metido, mas existe para ser uma declaração apaixonada a , a , a Gilberto Gil, a Chico Buarque, talvez acima de qualquer outro a Caetano Veloso (que ninguém escapa de sua própria Carla Perez).” In: SANCHES, P. A. Obra citada, p. 15/16. 179

elogio à Tropicália, na linha da crítica celebratória. Ao menos nos bastidores do desfile, o olhar antagônico se mostrava firme e forte. Disposta a colorir o quinto setor com as tintas festivas da visão de Caetano Veloso, Rosa Magalhães afirma que o Brasil se estilhaçou, no contexto da Tropicália. A imagem é ótima porque retirada de uma canção tropicalista típica, Superbacana, de 1968. Na letra da canção, o autor ironiza:

Toda essa gente se engana Pra ser o superbacana Eu nasci pra ser o superbacana Superbacana Superbacana Superbacana Super-homem Superflit, Supervinc Superist, Superbacana Estilhaços sobre Copacabana O mundo em Copacabana Tudo em Copacabana Copacabana O mundo explode longe, muito longe O sol responde O tempo esconde O vento espalha E as migalhas caem todas sobre Copacabana me engana Esconde o superamendoim O espinafre, o biotônico O comando do avião supersônico Do parque eletrônico Do poder atômico Do avanço econômico A moeda número um do Tio Patinhas não é minha Um batalhão de cowboys Barra a entrada da legião dos super-heróis E eu superbacana Vou sonhando até explodir colorido No sol, nos cinco sentidos Nada no bolso ou nas mãos Um instante, maestro Super-homem Superflit Supervinc, Superist Superviva, Supershell Superquentão

A sucessão de referências à cultura de massa, especialmente ao universo das revistas em quadrinhos norte-americanas, com super-heróis e cowboys, e à sociedade de consumo pós-industrial (avião supersônico, avanço econômico, parque eletrônico) revelam que na canção Superbacana há uma fragmentação e deglutição da realidade

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brasileira sob a lente do cosmopolitismo global. Procedimento antropofágico análogo pode ser visto na composição Batmacumba, de Gilberto Gil436, a décima primeira e penúltima faixa do disco Tropicalia ou panis et circensis. Na letra da música, são fundidos o personagem Batman e a macumba, super-herói norte-americano e religiosidade afro-brasileira. A expressão estilhaços, sobre a qual se debruçou Augusto de Campos, bem expressa tal colagem de fragmentos aparentemente incongruentes.437 O setor tropicalista do desfile de Rosa Magalhães, nesse sentido, pode ser entendido como uma alegoria dentro de uma alegoria maior, um fragmento em si fragmentado colado a outros cinco fragmentos - os dois setores dedicados aos relatos dos cronistas estrangeiros (primeiro e segundo) mais os setores polarizados por José de Alencar (terceiro), Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral (quarto) e Carmen Miranda (quinto e último). As fantasias que representavam Chacrinha, Caetano Veloso e Gilberto Gil expressavam o excesso do imaginário tropicalizante; Chacrinha, por exemplo, exibia paletó florido e esplendor formado por abacaxis emplumados, numa profusão de tecidos brilhantes (lamês), pedras e galões. Na sequência, a representação de Macunaíma438 dialogava com a adaptação cinematográfica que Joaquim Pedro de Andrade fez da obra de Mário de Andrade, filme de 1967 que “ao colocar a antropofagia de várias maneiras, não cita o contexto do Brasil colonial – fonte da metáfora oswaldiana.”439 Apesar disso, como a antropofagia (literal e metáfora sexual) permeia a obra como um todo, sem falar no “clima constante de alegria e deboche que exemplifica bastante a atitude

436 Sobre a obra de Gilberto Gil, é importante a consulta da Tese de Doutorado de Fred Góes, defendida em 1993. Ver: GÓES, Frederico Augusto Liberalli de. Gil engendra em Gil rouxinol: a letra da canção em Gilberto Gil. Rio de Janeiro, 1993, 323 f. Tese de Doutorado – Faculdade de Letras, Departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 437 Pedro Alexandre Sanches faz um estudo de Batmacumba (cuja letra seria “uma cornucópia de referências embaralhadas” (...), com o “poder de reunir, em poucas emendas de palavras desanexadas de seus sentidos, a ideologia – a desideologia – tropicalista.”) e das demais canções da Tropicália, não economizando sal nas críticas ao “centrismo” conformista supostamente celebrado, principalmente, por Caetano Veloso e Gilberto Gil. De acordo com o autor, o tropicalismo se converteu em um “fantasma colorido” que “paira sobre as cabeças que pensam dois metros acima do Brasil.” O movimento estilhaçou-se: “por ora, os estilhaços voam pelos escombros das cidades demolidas. Buzinas tocam aqui e ali, mas o sinal continua fechado. Obediente, o homem pós-moderno continua a não o ultrapassar. Até que resolva fazê-lo.” In: SANCHES, P. A. Obra citada, p. 297. Grifos do autor. 438 Macunaíma que já foi enredo da escola de samba Portela, em 1975, carnaval desenvolvido por Hiram Araújo sob o título Macunaíma, o herói de nossa gente. O samba de enredo composto por David Corrêa e Norival Reis, cantava: Macunaíma, índio branco catimbeiro / Negro sonso feiticeiro / Mata a cobra e dá um nó. Informações disponíveis em: http://portelaweb.com.br/outro.php?codigo=80. Acesso em 22/11/2013. 439 RAMOS, Guiomar. Um cinema brasileiro antropofágico? (1970 – 1974). São Paulo: Annablume, 2008, p. 20. 181

carnavalesca proposta por Oswald”440, a carnavalesca inseriu-a no conjunto de obras neoantropofágicas. As fantasias dos brincantes, camisolas brancas parecidas com a vestimenta que o personagem de usa, no começo do filme, traziam pencas de bananas, um dos leitmotivs do setor (nas roupas que representavam Caetano Veloso e Gilberto Gil os frutos amarelos também apareciam, tanto nas vestes como nos costeiros; nas alas posteriores e no carro alegórico sobre O Rei da Vela continuava o “bananal”, que só terminaria com o final do sexto setor, na alegoria dedicada a Carmen Miranda; em resumo, os dois últimos setores do desfile exibiam a banana como símbolo de um determinado Brasil441). Pendurados nos pescoços dos desfilantes, chupetas cor de rosa. As duas alas que antecediam a alegoria Tropicalismo – O Rei da Vela (visão carnavalizada da montagem do Teatro Oficina) representavam “índios tropicalistas”. Bananas se misturavam ao calçadão de Copacabana e a velas de acetato, mostrando ao leitor atento que tais “índios” de cocares e tangas estilizadas se referiam ao Segundo Ato da peça de Oswald de Andrade, ambientado em uma ilha tropical, na Baía de Guanabara. A descrição do autor é preciosa:

Uma ilha tropical, na Baía de Guanabara, Rio de Janeiro. Durante o ato, pássaros assoviam exoticamente nas árvores brutais. Sons de motor. O mar. Na praia ao lado, um avião em repouso. Barraca. Guarda-sóis. Um mastro com a bandeira americana. Palmeiras. A cena representa um terraço. A abertura de uma escada ao fundo em comunicação com a areia. Platibanda cor-de-aço com cáctus verdes e coloridos em vasos negros. Móveis mecânicos. Bebidas e gelo. Uma rede do Amazonas. Um rádio. Os personagens se vestem pela mais furiosa fantasia burguesa e equatorial. Morenas seminuas. Homens esportivos, hermafroditas, menopausas. Com o pano fechado, ouve-se um toque vivo de corneta. A cena conserva-se vazia um instante. Escuta-se o motor de uma lancha que se aproxima.442

A simples leitura do trecho revela o porquê de a peça ter entusiasmado Caetano Veloso a ponto de o músico pensar que um “movimento cultural maior” estava a sacudir o país. O contraste entre o primitivo e o cosmopolita, a flagrante presença do elemento estrangeiro, a menção ao exotismo e à brutalidade brasileiros (a “brutalidade jardim” de Gilberto Gil, cantada em Geléia Geral, canção que funde o bumba-meu-boi dos festejos

440 Ibidem, p. 20. 441 Banana que já havia sido transformada em enredo da Imperatriz Leopoldinense pelo carnavalesco Viriato Ferreira, em 1991, sob o título O que é que a banana tem? 442 ANDRADE, O. O Rei da Vela. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2003, p. 65. 182

populares e o iê iê iê do rock britânico – e fornece o título da obra de Christopher Dunn), tal conjunto de ideias, originalmente publicado em 1937, fora reprocessado na montagem de 1967, travestindo-se de crítica à ditadura militar e de radical experimentação cênica – o que leva o crítico Sábato Magaldi à afirmação de que “são numerosas as razões para se atribuir a O Rei da Vela o papel fundador de uma nova dramaturgia no Brasil (...)”443 e o pesquisador Carlos Gardin a exaltar que “esta montagem, sem dúvida alguma, tornou-se um marco de extrema importância para o teatro nacional, espécie de divisor de águas entre o que acontecia no teatro brasileiro até então e o após a montagem do grupo Oficina.”444 Coube ao artista Hélio Eichbauer, de formação em Praga e passagem pela Cuba pós-revolucionária, materializar a cenografia sugerida por Oswald no início de cada um dos três atos da peça (o “escritório de usura de Abelardo & Abelardo”445, em São Paulo, com direito a retrato da Gioconda na parede, no Primeiro Ato; a ensolarada cena à beira da Guanabara, no Segundo Ato; a versão noturna e decadente do mesmo cenário do Primeiro Ato, no Terceiro, com esqueletos brancos sobre um fundo preto), além de desenhar o conjunto de figurinos. As indicações de Oswald para a cenografia do Segundo Ato geraram uma tela que resultado da passagem de Eichbauer pelo Caribe, menos austera que os cenários concebidos na República Tcheca, de inspiração construtivista e cores baixas (cinza, marrom).446 De acentos primitivistas e talvez fauvistas, grandes coqueiros e bananeiras à Lasar Segall ao redor de um vista para o Pão de Açúcar e o Corcovado, Cristo Redentor encarapitado no alto, todos os montes que

443 MAGALDI, Sábato. O país desmascarado. In: ANDRADE, O. Obra citada, p. 07. 444 O autor complementa tal entendimento: “A época de efervescência política e intelectual promovia um amplo debate sobre a cultura nacional e, nada mais significativo, então, que a montagem de O Rei da Vela. A referida encenação tornou-se ponto de convergência para um intenso debate de ideias sobre a cultura nacional (e também política), incluindo contribuições que redundariam no Tropicalismo (movimento musical) e no chamado Cinema Novo, especialmente aquele de Terra em Transe, de Glauber Rocha. Encenar O Rei da Vela promoveu não só o debate mas também uma certa revisitação à nossa cultura passada, aos nossos postulados nacionalistas, às nossas posições estéticas frente à cultura internacional. Os debates integram, como já dissemos, músicos, cineastas, intelectuais, estudantes, os poetas do concretismo, tornando o final da década de 60, talvez, na época de maior agitação cultural que já vivemos no Brasil. Assim, Oswald revivido, como que ressuscitado 30 anos após, antropofagizava futuristicamente a inteligência nacional. Seus postulados para um teatro antropofágico, adormecidos até então, eram acordados e recordados nessa nova tentativa de busca da nacionalidade em nossas manifestações culturais.” In: GARDIN, Carlos. O teatro antropofágico de Oswald de Andrade. Da ação teatral ao teatro de ação. São Paulo: Annablume, 1995, p. 147. 445 A ressignificação da história de Abelardo (em duas versões na peça: Abelardo I e Abelardo II) e Heloísa (que na peça é Heloísa de Lesbos) por si só é exemplo do processo de deglutição antropofágica empreendido por Oswald de Andrade. 446 Ver a recente publicação Cartas de Marear: Impressões de Viagem, Caminhos de Criação, de Hélio Eichbauer. 183

compõem a paisagem natural do Rio de Janeiro coloridos em amarelo e laranja, colagem de cacos ou estilhaços de cores quentes em contraste com o céu azul e o oceano verde. Tal cenário alegre, que poderia ter sido retirado de um filme de Carmen Miranda em Hollywood e servido de capa para um disco tropicalista (foi escolhido por Caetano Veloso para a capa do seu álbum Estrangeiro, de 1989), ganhou a Passarela do Samba na alegoria 06 do desfile gresilense de 2002. Rosa Magalhães adaptou para a cenografia do carro alegórico a cenografia elaborada para o palco do Oficina, por Eichbauer, materializando algo atinado por Carlos Gardin: as rubricas que antecedem o Segundo Ato lembram “um cenário do que seria um carro alegórico para desfile de carnaval ou mesmo das paradas militares brasileiras. Mais uma vez nosso carnaval. Oswald e a realidade brasileira alinhados. (...) O kitsch dos carros alegóricos e sua miscelânea (...).”447 O caráter artificial e “cafona” das alegorias carnavalescas servia à proposta de Oswald de Andrade, que pretendia, com O Rei da Vela, misturando teatro de rebolado e ópera, fantasia circense e chanchada cinematográfica, num processo de bricolage insinuado nos mosaicos do Pão de Açúcar e do Corcovado, fazer uma grande crítica paródica à história do Brasil, na visão de José Celso Martinez Corrêa:

Oswald, através de uma simbologia rica, nos mostra O Rei da Vela se mantendo na base da exploração (“Herdo um tostão de cada morto nacional!”) e da Frente Única Sexual, isto é, do conchavo com tudo e com todos (a vela como falus): conchavo com a burguesia rural, com o imperialismo, com o operariado etc., para manter um pequeno privilégio (não é o rei do petróleo, do aço, mas, simplesmente, da michuruca vela). Toda esta simbologia procura conhecer a realidade de um país sem História, preso a determinados coágulos que não permitem que sua história possa fluir. E faz deste personagem (Abelardo I, o Rei da Vela) emanações, formas mortas, sem movimento, mas tendo como substituto toda uma falsa agitação, uma falsa euforia e um delírio verde-amarelo, ora ufanista, ora desenvolvimentista, ora festivo, ora defensor da segurança da pátria, mas sempre teatro, sempre mise-em-scène, sempre brincadeira de verdade, baile do Municipal, procissão, desfile patriótico, marchas da família, Brasílias, cenário de ópera. A peça é a mesma, trocam-se as plumas. (...) O humor grotesco, o sentido da paródia, o uso de formas feitas, de teatro no teatro, literatura na literatura, faz do texto uma colagem do Brasil de 30. Que permanece uma colagem ainda mais violenta do Brasil de trinta anos depois, pois acresce a denúncia da permanência e da velhice destes mesmos e eternos personagens. (...) Sua peça está surpreendentemente dentro da estética mais moderna do teatro e da arte atual. A superteatralidade, a superação

447 GARDIN, C. Obra citada, p. 157. 184

mesmo do racionalismo brechtiano através de uma arte teatral síntese de todas as artes e não artes, circo, show, teatro de revista etc.448

O fragmento de José Celso traz à mesa o corpo crítico da peça oswaldiana e faz com que constatemos que, infelizmente, O Rei da Vela permanece enquanto “colagem violenta” do Brasil de hoje, mais de quarenta anos depois da montagem do Oficina, oitenta anos após a escritura do texto. Sobre o aspecto sintético da peça, é fato que ele se faz presente na sexta alegoria do desfile de Rosa Magalhães e no cortejo como um todo: o desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense, assim como O Rei da Vela, é uma “síntese de todas as artes e não artes”, bricolagem de linguagens artísticas. Numa opção pelo quadro mais carnavalesco da montagem, o carro que representava a encenação de 1967 não exibia o cenário onde a tragédia financeira de Abelardo I tem o seu desfecho, o escritório de usura, mas o palco festivo da ilha na Guanabara – uma opção apenas visual ou também política? Além da versão de Eichbauer para as rubricas de Oswald de Andrade, apresentada anteriormente, o calçadão de Copacabana e uma série de estruturas que lembravam edifícios, formadas por velas brancas449, completavam o desenho cênico da alegoria. À frente do carro, deitado sobre a “rede do Amazonas” presa a duas bananeiras e decorada com bananas descascadas, um destaque negro representava o Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade, com vestes e maquiagem que imitavam a caracterização de Grande Otelo. No centro da alegoria, um grupo de atores usando versões carnavalescas para os figurinos concebidos por Eichbauer encenavam trechos da montagem de José Celso. Sobre as estruturas laterais, composições masculinas vestindo grandes saiotes e cocares de plumas de espanador (típicos índios de cordão, tema que será abordado no próximo capítulo) exibiam uma das roupas de figuração do espetáculo (que pode ser vista no cartaz da peça, vestindo o ator Renato Dobal). Encimando a cenografia,

448 CORRÊA, José Celso Martinez. O Rei da Vela: Manifesto do Oficina. In: ANDRADE, O. Obra citada, p. 24/25. 449 Aqui, cabe a informação de que a vela é utilizada com diferentes conotações, ao longo da peça de Oswald de Andrade: é tanto o símbolo da riqueza de Abelardo I (ironicamente, o “primeiro socialista que aparece no Teatro Brasileiro”, cruel agiota e produtor de velas que, no início da peça, ordena que Abelardo II, a usar vestes de domador de circo, mantenha os devedores trancados em uma jaula) como o símbolo fálico da repressão sexual que perpassa os três atos – o poder de Abelardo I sobre Heloísa. Em crise financeira, prestes a morrer, no Terceiro Ato, Abelardo I implora para que Abelardo II acenda uma vela, que é colocada em um castiçal de ouro – outrora símbolo da lucratividade alcançada em cima da crise das empresas elétricas, a vela converte-se em símbolo de abandono, derrota e morte. Ao morrer, o personagem derruba castiçal e vela, apagando-se a chama e a vida do agora miserável “Rei da Vela”. Abelardo II abraça-se com Heloísa e profere: “Heloísa será sempre de Abelardo. É clássico!”, ao que se segue a Marcha Nupcial, irônica representação da continuidade das alianças escusas da miserável e patriarcalista história brasileira. 185

composições femininas usavam maiôs verdes decorados com plumas alaranjadas e bananas amarelas, versão carnavalesca para a descrição da personagem Dona Cesarina, que surge, no Terceiro Ato da peça, “abanando um leque enorme de plumas em maiô de Copacabana (...)”450. O destaque central da alegoria, Silvinho Fernandes, exibia a fantasia Tropicália Maravilha, mescla de roupa de branco (casaca, colete e gravata, além da coroa estilizada formada por bananas) com roupa de índio (saiote de plumas); no esplendor, o desenho inconfundível do calçadão de Copacabana era rodeado por bananas e plumas – em uma fantasia de destaque, a síntese da alegoria. Assim como no carro da ópera de Milão, a parte traseira não passou em branco: em meio a retratos de Caetano Veloso e Gilberto Gil, lia-se a máxima É proibido proibir (um dos lemas da contracultura e título de canção de Caetano Veloso), fotografias e palavras sobre um fundo colorido que reproduzia os grafismos da capa do álbum Gilberto Gil, de 1968, que trazia o músico vestindo fardão da ABL em meio a dois retratos provocativos: no da direita, representava um piloto com macacão vermelho e volante nas mãos; no da esquerda, um risonho soldado imperial, com farda azul e medalhas no peito. Seguindo-se à homenagem a Caetano Veloso e Gilberto Gil, músicos que representaram a Tropicália, no desfile de Rosa Magalhães (exemplar, portanto, do processo de mitificação de que falam Roberto Schwarz e Henrique Monnerat), uma sucessão de fantasias em que predominavam as cores amarela e rosa anunciavam que o subtema havia mudado: era chegada a hora de Carmen Miranda entrar em cena, coroando a comilança. Figura costurada no imaginário nacional e presença constante nos desfiles das escolas de samba, nos blocos de fantasiados e nos shows de transformistas, Carmen Miranda é uma personalidade dúbia, que ainda em vida carregou no seu turbante o peso dos aplausos consagradores e das vaias condenatórias. Ora exaltada a “Embaixatriz” da música popular brasileira no exterior, “reconhecida como um talento”, ora “acusada, sutil ou grosseiramente, de ter aceitado a descaracterização de sua imagem enquanto sambista brasileira ‘autêntica’, adulterando o ritmo do samba e tornando-se uma paródia de si mesma”451: tal quadro extremamente paradoxal motivou a pesquisadora Simone Pereira de Sá a se debruçar sobre a Pequena Notável, personagem midiático em torno da qual orbita uma das questões centrais para

450 ANDRADE, O. Obra citada, p. 66. 451 SÁ, Simone Pereira de. Baiana Internacional. O Brasil de Carmen Miranda e as lentes de Hollywood. Rio de Janeiro, 1997, 230 f. Tese de Doutorado - Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, f. 05. 186

se pensar a produção carnavalesca de Rosa Magalhães: “o que é ser brasileiro?”452 Respostas prontas, este trabalho adverte em sua Introdução, não existem nem são desejáveis. O mais importante é o fervor da dúvida. Em linhas gerais, a tese de Simone Pereira de Sá é estruturada sobre os maleáveis conceitos de identidade nacional e autenticidade, desdobrados nas oposições “entre a imagem ‘autêntica’ de Carmen e a invenção da Baiana Internacional que conquista Hollywood; e entre esta imagem cosmopolita da cantora e outras reiterações do mesmo gesto heterofágico”453. Segundo a autora, a associação entre a postura artística de Carmen Miranda e a antropofagia oswaldiana (que ela prefere chamar heterofagia, a fim de se livrar dos “ecos modernistas”) é evidente, assim como a “redescoberta” pela Tropicália não é segredo para nenhum pesquisador (ainda que tal procedimento também esteja carregado de ambiguidades, uma vez que o próprio Caetano Veloso declararia, em artigo escrito para o The New York Times, em 1991, que, nos anos 50, Carmen Miranda provocava nos futuros tropicalistas um “misto de orgulho e vergonha”, uma vez que “as gravações que ela tinha feito nos pareciam ridículas: Chica Chica Boom Chic, Cuanto le Gusta e South American Way iam no sentido inverso ao dos nossos anseios de bom gosto e de identidade nacional.”454 A autora é quem anota: tal posição seria radicalmente revista quando da explosão da Tropicália.455). O que interessa à pesquisa não é detectar as conexões, mas entender o símbolo cultural Carmen Miranda enquanto “garota-propaganda” de uma visão de Brasil e América Latina pulverizada pelo mundo à época da Política de Boa Vizinhança, imaginário ligado ao Manifesto Antropófago, no final dos anos 20, e reconstruído no contexto tropicalista, no final dos anos 60 – e transportado, o conjunto de visões, para o

452 Ibidem, f. 10. 453 Ibidem, f. 21. 454 Ibidem, f. 04. 455 Em Verdade Tropical, Caetano Veloso aponta para o caráter ambíguo de Carmen Miranda e afirma que ela era “um emblema tropicalista, um signo sobrecarregado de afetos contraditórios que eu brandira na letra de ‘Tropicália’, a canção-manifesto (...).” O músico exalta as qualidades vocais e dramáticas de Carmen Miranda e confessa: “o fato de ela ter se tornado, com o sucesso em Hollywood, uma figura caricata de que a gente crescera sentindo um pouco de vergonha, fazia da mera menção de seu nome uma bomba de que os guerrilheiros tropicalistas fatalmente lançariam mão. Mas o lançar-se tal bomba significava igualmente a decretação da morte dessa vergonha pela aceitação desafiadora tanto da cultura de massas americana (portanto da Hollywood onde Carmen brilhara) quanto da imagem estereotipada de um Brasil sexualmente exposto, hipercolorido e frutal (que era a versão que Carmen levava ao extremo) – aceitação que se dava por termos descoberto que tanto a mass culture quanto esse estereótipo eram (ou podiam ser) reveladores de verdades mais abrangentes sobre cultura e sobre Brasil do que aquelas a que estivéramos até então limitados.” In: VELOSO, C. Obra citada, p. 262. 187

desfile concebido por Rosa Magalhães e apresentado em 2002, na Marquês de Sapucaí, ele, o desfile em si, outra visão em tão enredada teia de olhares e interpretações. Diante do enigma dessa esfinge de turbante e sandálias de plataforma, Simone Pereira de Sá conclui que a Pequena Notável sambista, porta-voz do “legítimo” samba afro-baiano-carioca, e a Brasilian Bombshell, personificação da “falsa baiana” e do estereótipo de um país de “macaquitos” (a vedete exportada pela “República de Bananas” para divertir o Tio Sam, em Los Angeles) são faces complementares de um mesmo constructo sociocultural. No Rio de Janeiro dos anos 30, Carmen Miranda despontou como protagonista feminina que lançou compositores, agenciou músicos dos morros e dos subúrbios, fez séries de shows para a elite da então capital federal, contribuiu para a profissionalização do ofício de cantora de música popular, ajudou a consolidar o rádio como veículo de comunicação de massa e inventou “um ícone de enorme comunicação mass-midiática a partir do traje baiano”, coleção de realizações que leva a autora a situar a artista no mesmo rol onde estão Noel Rosa, Pixinguinha, Lamartine Babo, Almirante, Ismael Silva e . Em Hollywood, Carmen Miranda representou o papel de Baiana Internacional, a perfeita “amante latina”, “secretária” dos Estados Unidos que levava o exotismo do “quintal do mundo” às salas de projeção do mundo inteiro. Na perspectiva da autora, tais rostos são “inseparáveis e tributários de um gesto anterior e essencial que é este que chamamos de heterofágico e que se caracteriza pela disponibilidade e abertura para o ‘outro’.”456 A pesquisadora Eneida Maria de Souza põe mais pimenta nesse vatapá e se propõe a pensar a construção do corpo de Carmen Miranda enquanto construção de um ideário massificante de América Latina, sob a ótica estadunidense. Na visão dela, a “rainha das bananas” é um “estereótipo da mulher latino-americana, que se expressava musicalmente no ritmo de samba, rumba e bolero. A construção estilizada de sua imagem guardava um pouco de cada lugar da América (...).”457 A percepção desse ideal unificador leva a autora a afirmar que não é possível entender Carmen Miranda enquanto representante de uma “autêntica cultura brasileira”, algo semelhante ao proposto por Simone Pereira de Sá. A teia política em que a artista estava enredada até os balangandãs apontava para a anulação das diferenças internas da América Latina, com fins de dominação (o triunfo da hegemonia norte-americana): ainda que se

456 SÁ, S. P. de. Obra citada, p. 201. 457 SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 153. 188

reconhecesse o caráter plural das nações e culturas que formavam (e formam) o continente centro-sul-americano, “o que interessava ao programa de controle político e econômico dos Estados Unidos dessa época era o esquecimento das diferenças locais da América Latina.”458 Não se tratava de uma unificação inclinada ao ideal de Simón Bolívar nem do panamericanismo que alguns autores enxergam no Macunaíma de Mário de Andrade, união de países conscientes de sua posição colonizada e tendo em vista a superação das desigualdades sociais junto ao respeito pelas diferenças culturais, mas de uma unificação que facilitasse a “penetração imperialista dos Estados Unidos”459. O corpo de Carmen Miranda, veiculado à exaustão em jornais, revistas, rótulos e películas cinematográficas, sintetizaria um conjunto de nações submissas (Simone Pereira de Sá destaca que a artista, apesar de roubar a cena pelo exotismo das vestes e pela ótima desenvoltura diante das câmeras, desempenhava papeis secundários: “a namorada, a noiva ou a secretária que flertava mas não ‘levava’ o mocinho do filme”460) e culturalmente planificadas. Em outras palavras, melhor do que dizer que a Carmen Miranda de Hollywood cantava samba e rumba é a defesa de que ela não cantava samba nem rumba, mas híbridos culturais, ela mesma um corpo anfíbio, situada no entre-lugar da cultura latino-americana (e dos países periféricos como um todo, vide as teorizações do indiano Homi Bhabha), na tensão entre hegemonia e contra- hegemonia, colonizador e colonizado, norte e sul, Tio Sam e Tia Ciata. Nos textos que embasaram o desfile gresilense de 2002, nas fantasias e na alegoria do sexto e último setor não se vê, ao menos explicitamente, tamanha carga de ambiguidade. Rosa Magalhães preferiu exaltar Carmen Miranda enquanto figura que resume o tropicalismo e a essência da Antropofagia oswaldiana, “deglutindo as influências estrangeiras e criando algo novo.461” Desenhou-se, portanto, um retrato celebratório no conjunto de alas que representavam, sequencialmente, Drag Queens vestidas de Carmen Miranda, Jovens Carmen Mirandas, Bailarinos de show com sombrinhas, Músicos do Bando da Lua (a banda com a qual a artista se apresentava), Bailarinos de show com borboletas e, finalmente, Carmen Miranda, a ala de baianas da escola. As roupas das baianas, das mais bonitas daquele carnaval, traziam boás amarelos, frutos tropicais e colagens de quadrados multicoloridos. As saias pareciam

458 Ibidem, p. 155. 459 Ibidem, p. 155. 460 SÁ, S. P. de. Obra citada, f. 06. 461 MAGALHÃES, R. Obra citada. 189

colchas de retalhos - e uma interpretação possível é a de que no tecido das vestes das baianas estava insinuado o caráter retalhado e paradoxal da Pequena Notável e da Brasilian Bombshell. Na última alegoria do cortejo, bananas, morangos, abacaxis, flores, borboletas e balangandãs compunham um cenário que mais parecia uma amplificação de um turbante de Carmen Miranda. A destaque de luxo Walquíria Miranda representou a personagem, com fantasia em que não faltaram bananas. E mais bananas se viram na parte traseira do carro, onde, cafonice pouca é bobagem, havia um coração de bananas em cujo centro uma fotografia de Carmen Miranda parecia triunfar. Depois da alegoria O Tropicalismo de Carmen Miranda, somente a Velha- Guarda passou pela avenida, defendendo a segunda parte do samba de enredo:

Macunaíma com Zé Pereira É índio, é negro, é Imperador Mais tarde, essa mistura brasileira A Tropicália originou Tem Iracema em Ipanema, alegria geral Eu sou também Carmen Miranda no meu carnaval

Terminava o delírio, mas as polêmicas não tinham fim.

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Figura 76: Primeira página sobre o desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2002, da reportagem da revista Manchete especial de carnaval. O título Delírio tropical emoldura uma fotografia do quinto setor do desfile gresilense, sobre a Tropicália e o neoantropofagismo. As cores das fantasias e a profusão de bananas dão o tom tropicalista ao conjunto visual. Fonte: Revista Manchete n. 2525, p. 08.

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Figura 77: Desfilantes da ala Índio tropicalista I, no quinto setor do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense. As bananas, o saiote estilizado e a referência ao calçadão de Copacabana compõem uma fantasia de índio pouco convencional – uma roupagem nova para um mesmo personagem. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 78: Componente da ala Chacrinha, com fantasia confeccionada com tecidos brilhosos (lamês). As flores, os abacaxis, as pedras, as plumas, os pompons e os galões vistosos indicam que a linguagem visual adotada pela carnavalesca Rosa Magalhães, no setor tropicalista, era a linguagem do excesso. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Figura 79: Desfilantes da ala Índio tropicalista I. É possível observar com mais definição a presença dos saiotes estilizados e dos cocares formados por bananas. As cores verde e amarela predominaram no setor. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 80: Destaque Silvinho Fernandes durante o concurso de fantasias do Hotel Glória. A roupa foi utilizada no desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2002, na alegoria sobre o tropicalismo e O Rei da Vela. A mescla de figurino de homem branco urbanizado (paletó, colete e gravata) e elementos indígenas (saiote de penas, plumas na cabeça) representa a fusão estilística do enredo Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way! As bananas e o calçadão de Copacabana completam a fantasia. Fonte: Revista Manchete n. 2525, p. 58.

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Figura 81: Vista frontal da alegoria 06, Tropicalismo – O Rei da Vela (visão carnavalizada da montagem do Teatro Oficina), do desfile que a Imperatriz Leopoldinense realizou no carnaval de 2002. À frente da alegoria, nota-se a mistura das cores verde, amarela e rosa da ala Índio tropicalista II, com grandes velas brancas nos costeiros. As mesmas velas são vistas nas laterais da alegoria, compondo a cenografia cuja principal inspiração é a cenografia concebida por Hélio Eichbauer para o Segundo Ato da montagem de O Rei da Vela dirigida por José Celso Martinez Corrêa, em 1967. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 82: Fotografia de uma cena do Segundo Ato da montagem de O Rei da Vela dirigida por José Celso Martinez Corrêa, em 1967. A cenografia concebida pelo artista Hélio Eichbauer foi adaptada por Rosa Magalhães para a cenografia da alegoria 06 do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2002. Fonte: SANCHES, P. A. Obra citada, p. 13.

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Figura 83: Detalhes do palco central da alegoria Tropicalismo – O Rei da Vela (visão carnavalizada da montagem do Teatro Oficina). À frente, na rede presa a duas bananeiras, um destaque representava o Macunaíma interpretado por Grande Otelo, no filme de Joaquim Pedro de Andrade. Entre os atores que interpretavam trechos do Segundo Ato de O Rei da Vela, à direita da imagem, vê-se um índio de cordão. Outros tipos brasileiros são carnavalizados, como a baiana com flores na cabeça e o cangaceiro de vestes alaranjadas. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Figura 84: Componente da sexta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2002, representando o Macunaíma imortalizado por Grande Otelo, no filme de Joaquim Pedro de Andrade. Bananas descascadas decoravam a rede onde o “herói sem nenhum caráter” se divertia. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Figura 85: Composições masculinas da alegoria Tropicalismo – O Rei da Vela (visão carnavalizada da montagem do Teatro Oficina), representando índios de cordão com saiotes e cocares de plumas de espanador. Fonte: Transmissão televisiva da Rede Globo.

Figura 86: Recorte de cartaz original da primeira montagem de O Rei da Vela, de 1967. O ator Renato Dobal usava fantasia de índio de cordão, com direito a machadinha – figurino adaptado por Rosa Magalhães para a sexta alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2002. Fonte: Antropofagia hoje?, p. 316.

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Figura 87: Parte traseira da alegoria 06 do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2002, onde se viam fotografias de Gilberto Gil e Caetano Veloso e a máxima É proibido proibir. O grafismo é adaptação da capa do álbum lançado por Gilberto Gil em 1968. Fonte: Transmissão televisiva da Rede Globo.

Figura 88: Capa do disco lançado por Gilberto Gil em 1968, cuja estética bastante peculiar (com marcas de desenhos de histórias em quadrinhos e rótulos de produtos industrializados) serve de base para a parte traseira da alegoria Tropicalismo – O Rei da Vela (visão carnavalizada da montagem do Teatro Oficina). Foto do autor.

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Figura 89: Capa do álbum Estrangeiro, de Caetano Veloso. O cantor e compositor escolheu para ilustrar o seu disco, lançado em 1989, uma pintura de Hélio Eichbauer para a cenografia do Segundo Ato da montagem de O Rei da Vela dirigida por José Celso Martinez Corrêa, em 1967, peça que influenciaria sobremaneira a produção do músico. O projeto cenográfico exposto na capa se fez presente na cenografia da sexta alegoria do desfile gresilense de 2002. Foto do autor.

Figura 90: Visão aérea da ala Bailarinos de show com sombrinhas, a terceira do sexto setor do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2002, setor dedicado a Carmen Miranda. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Figura 91: Componentes da ala Músicos do Bando da Lua, a quarta do último setor do desfile gresilense de 2002. Nos ombros dos desfilantes, pencas de bananas. Nos chapéus, grandes abacaxis em verde e amarelo. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 92: Componente fantasiado de Carmen Miranda na primeira ala do último setor do desfile gresilense de 2002, intitulada Drag-Queens – Carmen Miranda. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Figura 93:Ala de baianas da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002. Nas saias, notam-se boás amarelos, frutos tropicais e losangos coloridos (retalhos); os babados dourados, os balangandãs e o torso em dourado, amarelo e rosa (não esquecendo das bananas) completam o figurino. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 94: Vista aérea geral da ala de baianas da Imperatriz Leopoldinense, em 2002. Ao fundo, a última alegoria do desfile, homenageando Carmen Miranda. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Figura 95: Destaque Walquíria Miranda representando Carmen Miranda, à frente da sétima e última alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2002, intitulada O Tropicalismo de Carmen Miranda. Flores multicoloridas, colares, balangandãs e bananas compõem a cenografia. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 96: Detalhe da parte traseira da alegoria 07 do desfile gresilense de 2002. No interior de um coração decorado com flores e formado por dezenas de bananas, uma fotografia de Carmen Miranda em pose triunfal: o “fecho de ouro” do desfile sobre a Antropofagia. Fonte: Transmissão televisiva da Rede Globo.

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Figura 97: Visão aérea global da alegoria 07 do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2002. Grandes morangos e bananas compõem um cenário tropical onde predominam as cores amarela e rosa. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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Figura 98: Recorte da lateral da alegoria O Tropicalismo de Carmen Miranda, onde se vê uma profusão de flores multicoloridas, bananas, colares e balangandãs. As composições, usando vestes douradas e torsos decorados com plumas na cor rosa, representavam a Pequena Notável e a Brasilian Bombshell. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 204

III. 1. 5 – Auê, Imperatriz!

A reportagem sobre o desfile da Imperatriz Leopoldinense publicada na revista Manchete nº 2.525, especial de carnaval, em fevereiro de 2002, assim resume a apresentação da escola de samba do bairro de Ramos:

Em busca do tetra, a Imperatriz Leopoldinense contou uma história sob um ponto de vista diferente. O enredo de Rosa Magalhães falou na resistência à invasão da cultura dos gringos, inspirada no Manifesto Antropofágico (sic), de Oswald de Andrade. Num delírio de carnaval, misturou índios Goytacazes, Modernismo, Antropofagia e Tropicalismo no enredo Goytacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way!462

Na sequência do texto, fica evidente o tom elogioso impresso pelo jornalista no discurso elaborado sobre o desfile gresilense:

A Rainha da Bateria Luiza Brunet estava simplesmente deslumbrante, com sua beleza imune ao tempo. A musa desfila há 21 anos no carnaval carioca e é considerada pé-quente. Outro ponto forte da apresentação da escola foram as fantasias luxuosíssimas, cor de ouro, com frutas na cabeça, das baianas. Os 3.500 componentes desfilaram entre sete carros monumentais, com acabamento perfeito. A agremiação de Ramos gastou R$ 2,5 milhões, sendo que R$ 1,8 milhão veio dos cofres da Prefeitura de Campos. O Mestre-Sala Chiquinho e a Porta-Bandeira Maria Helena (mãe e filho) também deram um show à parte. Nada, porém, comparado ao impacto do Abre-Alas, uma enorme boca confeccionada com restos de carros e alegorias queimados no incêndio que destruiu o barracão da verde, branco e ouro. Destaque, ainda, para Elymar Santos, vivendo Carlos Gomes na regência da estreia da ópera O Guarany, no Teatro Scala de Milão.463

Situada na era dos “desfiles-espetáculo”, não é de estranhar que a reportagem comece enaltecendo a beleza física da rainha de bateria Luiza Brunet e não faça menções ao samba de enredo, à bateria, à evolução e à harmonia (a integração entre o canto e a dança) da escola de samba. A “primazia do visual” já mencionada neste trabalho costura a descrição da revista Manchete, que fala em “fantasias luxuosíssimas” e “carros monumentais, com acabamento perfeito.” A segunda afirmação, porém, soa

462 Ver a reportagem Delírio tropical, publicada na Revista Manchete n. 2.525. Rio de Janeiro: Editora Bloch, fevereiro de 2002, p. 08. 463 Ibidem, p. 11.

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irônica se comparada aos mapas de notas dos jurados de Alegorias e Adereços, que atribuíram à Imperatriz Leopoldinense o pior conjunto de notas alcançado pelo quesito desde 1993: nenhum dez (10,0), sendo o mais alto dos quatro conceitos um discreto 9,8. O julgador Amaury Chaves atribuiu o menor deles (o segundo menor do total geral de 40 notas, perdendo apenas para as duas notas 9,5, uma de Enredo e uma de Conjunto, que serão analisadas no decorrer do texto), 9.6, sob a seguinte justificativa:

Embora apresentando belas alegorias (excetuada a 1ª, que parecia extremamente fúnebre), não foi atingindo o nível de criatividade e beleza plástica das que obtiveram a nota máxima. Há que se acrescentar, ainda, o mal (sic) acabamento lateral dos carros nº 04 e 05. Neste último, via-se inclusive toda a estrutura interna de metal pintado de preto.464

O carro 05 a que o julgador se refere é o carro Tarsila do Amaral, cujas estruturas de metal pintado de preto são interpretadas, neste trabalho, como uma referência às obras da pintora que apresentam estruturas metálicas treliçadas, como pontes e plataformas, em contraste com formas naturais. Ao mesmo carro alegórico o julgador Mauricio Salgueiro, igualmente econômico no conceito atribuído (9,7), renderia elogios, aplausos observáveis na mais frágil (para não dizer engraçada, dada a ausência de critérios) das quatro justificativas do quesito:

O conjunto de alegorias da escola apresentou um desfile altamente criativo e inteligente. Magnífica a Tarsila em três dimensões, cercada de excelentes estilizações dos elementos da proposta. Quase chegou à magia.465

As julgadoras Lúcia Ribas e Ana Bernacchi, que atribuíram as notas 9,7 e 9,8, respectivamente, demonstraram maior cuidado com as justificativas (a primeira especialmente, uma vez que redigiu, em folhas anexas, comentários pormenorizados sobre cada carro alegórico das 14 escolas analisadas, um trabalho e tanto). Ambas julgaram o conjunto de alegorias da Imperatriz Leopoldinense bastante original e interessante, mas lamentaram a falta de acabamento em alguns pontos, como partes traseiras e geradores. Lúcia Ribas considerou “maravilhosa” a alegoria de abertura do desfile, a mesma que Amaury Chaves julgou “extremamente fúnebre”. Ana Bernacchi

464 Justificativa presente no Mapa de Notas e Justificativas do Carnaval de 2002, disponível no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 465 Ibidem. 206

criticou o carro alegórico que fechou o desfile, O tropicalismo de Carmen Miranda, alegando que o “excesso de cores e formas” prejudicou o visual (ainda que se possa interpretar o excesso como estratégia visual da carnavalesca para se referir à excessiva e multifacetada Carmen Miranda, com seus turbantes e babados nada comedidos). Outro comentário que pode suscitar debate foi redigido pelo rigoroso julgador de Conjunto Wilson Martinez, para quem a Imperatriz Leopoldinense, em 2002, “não reeditou seus desfiles anteriores.”466 Martinez possivelmente se referia à perfeição técnica e à linguagem do luxo atribuídas aos desfiles realizados pela agremiação ao longo da década de 1990, sob a regência artística de Rosa Magalhães. A mesma afirmação, sob a ótica da crítica de viés ensaístico representada por Didi-Huberman e Thierry De Duve, soaria profundamente elogiosa, afinal é de se exaltar a não-reedição ou repetição de uma fórmula – a ideia de que mais vale a experimentação que o comodismo. O julgador, investido da postura eminentemente punitiva, ainda criticou as fantasias da escola: “fantasias repetitivas não agradaram ao visual.” Contraditoriamente, no quesito Fantasias a escola recebeu quatro notas máximas (10,0), não sofrendo qualquer punição. A justificativa de nota de Conjunto que mais interessa às reflexões deste trabalho foi redigida pela julgadora Regina Maria Salles Gomes de Oliveira. O conceito 9,7 recebeu a seguinte sustentação: “(O desfile) transmitiu sensação visual de vários blocos de índios – onde as próprias alas não sabiam onde começavam ou terminavam. A colagem de fragmentos prejudicou o conjunto.”467 Três palavras saltam aos olhos e clamam por reflexões acuradas: blocos, colagem e fragmentos. Ainda que intuitivamente, a julgadora percebeu as propostas estética e narrativa do desfile, conforme defendido nos capítulos anteriores: Rosa Magalhães objetivava mostrar algumas transformações pelas quais a figura do índio enquanto símbolo sociocultural do Brasil passou ao longo de 500 anos de história, mudanças visuais e, principalmente, conceituais. Entretanto, o juízo de valor suscitado pela percepção e refletido no conceito 9,7 (numa punição, em síntese) não corresponde à interpretação que um crítico de arte disposto a mergulhar nas fissuras narrativas, seguindo as indicações de Didi-Huberman, faria do objeto observado, o desfile carnavalesco formado por diferentes blocos temáticos que possuíam um personagem comum, o cambiante selvagem.

466 Ibidem. 467 Ibidem. 207

Didi-Huberman, no livro O que vemos, o que nos olha, elabora reflexões concernentes às diferentes maneiras de se observar uma peça, ação que desencadeia um jogo, nos termos de Schiller, primordial e fundante da relação artística. Brota a ideia de que as obras de arte, peças de um jogo com a subjetividade, desafiam os olhares daqueles que as enxergam, ensinando que às vezes não se tinha visto o que se viu. Nesse tabuleiro, entre a tautologia e a crença (metafísica), os críticos de arte, em geral, tendem a superdesenvolver uma ou outra visão, enfocando ou o aspecto material do objeto para o qual se olha ou as ausências que o cercam (o processo, o tempo, os não- lugares em que ele está preso). Nas palavras do teórico,

o artista geralmente não vê a diferença entre o que ele diz (...) e o que ele faz. Mas pouco importa, afinal de contas, se o crítico é capaz de ver o que é feito, portanto de assinalar a disjunção – sempre interessante e significativa, com frequência mesmo fecunda – que trabalha nesse intervalo dos discursos e dos objetos. Assinalar o trabalho das disjunções é com frequência revelar o próprio trabalho – e a beleza – das obras. Isto faz parte, em todo caso, das belezas próprias do trabalho crítico. Ora, muitas vezes o crítico de arte não quer ver isto: isto que definiria o lugar de uma abertura, de uma brecha que se abre em seus passos; isto que o obrigaria a sempre dialetizar – portanto cindir, portanto inquietar – seu próprio discurso. Ao se dar a obrigação, ou o turvo prazer, de rapidamente julgar, o crítico de arte prefere assim cortar em vez de abismar seu olhar na espessura do corte. Prefere então o dilema à dialética: expõe uma contrariedade de evidências (visíveis ou teóricas), mas se afasta do jogo contraditório (o fato de jogar com contradições) acionado por parâmetros mais transversais, mais latentes – menos manifestos – do trabalho artístico.468

É por isso que o autor propõe o pensamento da imagem dialética, a visão inquieta disposta a observar uma mesma obra sob diferentes ângulos. Thierry De Duve expande a ideia e afirma que é preciso “uma certa quantidade de enigma, de perplexidade, que coloca o intelecto em movimento.”469 Sem as guelras da perplexidade e da dúvida, o mergulho em uma obra de arte parece condenado à asfixia, a crítica condenada à punição. Aplicando os conceitos ao objeto em discussão, a julgadora que atribuiu o 9,7 ao conjunto do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense detectou as estratégias narrativas da carnavalesca, mas, asfixiada pela crença de que o julgamento deve ser absoluto, não conseguiu enxergar uma explicação possível para a colagem de fragmentos: a interessante tentativa de fazer do desfile uma alegoria geral da alegoria tropicalista. O neoantropofagismo, como indicado na sinopse do enredo, estilhaçou o

468 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 69/70. 469 DE DUVE, T. Obra citada, p. 37. 208

Brasil. Eis a brecha para que o conjunto visual do desfile seja entendido enquanto intencionalmente fragmentado ou estilhaçado, em retalhos contrastantes ao gosto das composições tropicalistas. Tal interpretação tenderia a valorizar o objeto, refutando a homogeneidade e a planificação. No que tange ao julgamento do quesito Enredo, as três notas abaixo de 10,0 recebidas (9,6, 9,8 e 9,9) expressaram o desconforto diante de um tema “complexo” e “pouco claro”. A julgadora Liana Barcelos, que atribuiu a nota 9,9 à narrativa de Rosa Magalhães, justificou:

Argumento complexo, de difícil assimilação, porém trabalhado com brilhantismo e criatividade. O fio condutor deste enredo – antropofagia cultural – é a chave para desvendá-lo, porém foi desenvolvido de maneira pouco explícita, o que pode dificultar o seu alcance imediato durante o desfile. A ausência de elos de conexão entre os ícones escolhidos como referência para contar o enredo (índios – movimento modernista) afetou a compreensão.470

Aqui, as expressões chave para desvendá-lo, pouco explícita e alcance imediato evidenciam que, na visão da julgadora, a clareza é uma das qualidades a ser pontuada em um julgamento artístico, o que, novamente, se contrapõe à visão dialética da crítica de arte menos preocupada com o esclarecimento e mais interessada nos nós, nas incompletudes, nas incongruências das obras. Se Agamben valoriza a dúvida e entende que os “enigmas das esfinges teóricas” não podem ser desvendados por completo, dado o caráter inapreensível dos textos, na justificativa redigida pela julgadora se vê o oposto: a defesa de que a chave para desvendar o enredo deveria ter sido explicitamente desenvolvida. Já a ideia de que “a ausência de elos de conexão entre os ícones escolhidos como referência para contar o enredo (índios – movimento modernista) afetou a compreensão” mostra que a julgadora não aprovou os cortes abruptos entre um setor e outro – mais uma vez, o contraste e a fragmentação foram considerados prejudiciais à boa narrativa. O julgador de Enredo Orpheu da Silva Souza foi o mais rigoroso do quesito e atribuiu a nota 9.6 ao Delírio tropical. A justificativa segue linha parecida com a de Liana Barcelos: “Enredo de compreensão confusa. (...) Associação da ideia antropofágica goitacá com a ideia cultural com uma ligação não explícita o suficiente

470 Justificativa presente no Mapa de Notas e Justificativas do Carnaval de 2002, disponível no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 209

para o tema proposto pela escola. Faltou antropofagia.”471 A pergunta que imediatamente surge é: o que o julgador que advogou por clareza quis dizer com “faltou antropofagia”? Clécio Quesado, julgador que atribuiu 9,8 ao enredo gresilense, foi mais objetivo em sua argumentação: “De um tema pobre (Campos), extraiu um assunto rico (antropofagia). Pena ter trabalhado com tantas reduplicações internas: 03 índios goitacazes, 04 pescadores, 02 tropicalistas, 02 Carmens... Merecia maiores variações...”472 Mais do que as punições justificadas por Quesado, chama a atenção a ideia de que a carnavalesca extraiu um assunto rico de um tema pobre, a cidade de Campos dos Goytacazes. Não sabia, mas estava tratando, o julgador, de uma questão que viraria ação judicial movida pela prefeitura da cidade “homenageada” contra a Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense. Reportagens anteriores ao desfile já continham indicativos de que as escolhas narrativas de Rosa Magalhães poderiam não agradar os patrocinadores. Na Folha de S. Paulo de 11 de fevereiro de 2002, dia do desfile gresilense, a jornalista Sabrina Petry, da sucursal do Rio, redigiu, na matéria intitulada Imperatriz tenta o tetracampeonato hoje:

A Imperatriz tenta hoje o tetracampeonato, com o enredo Goytacazes... Tupi or not Tupi, In a South American Way!, dedicado à cidade de Campos, reduto eleitoral do governador Anthony Garotinho (PSB). A escola costuma ter desfiles corretos, mas que não empolgam o público, e os campeonatos vencidos acabam provocando polêmicas. A Imperatriz recebeu R$ 1,8 milhões da Prefeitura de Campos para falar das "belezas" da cidade, mas a carnavalesca Rosa Magalhães preferiu contar a história dos índios goitacás, primeiros habitantes da região, porque, segundo ela, não havia nenhuma beleza no local. Apesar do marketing frustrado, o prefeito da cidade, Arnaldo Vianna, vai desfilar ao lado da mulher, Ilsan Vianna, sobre um dos carros alegóricos.473

Enquanto recurso jornalístico para fomentar polêmica, a afirmação de que “Rosa Magalhães preferiu contar a história dos índios goitacás, primeiros habitantes da região, porque, segundo ela, não havia nenhuma beleza no local” é uma pérola. Tanto na entrevista realizada na Cidade do Samba quanto nos demais depoimentos orais utilizados como referências para este trabalho a autora em momento algum mencionou a ausência de belezas em Campos; a justificativa para falar dos índios e da antropofagia estava na tentativa de fugir do óbvio, ou seja, falar das coisas da cidade, belas ou não,

471 Ibidem. 472 Ibidem. 473 Disponível no sítio http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1102200225.htm. 210

sob o ponto de vista turístico e/ou empresarial. Na conversa de 04 de outubro de 2012, no barracão da Unidos de Vila Isabel, a artista afirmou que não poderia falar de petróleo, produto que já havia servido de tema para outra escola de samba (, em 1995), muito menos de cana-de-açúcar, o tema do carnaval da Imperatriz Leopoldinense de 2001 – cujas alegorias sequer haviam sido desmontadas. Diante das impossibilidades, deu-se o mergulho nas atas da Câmara de Vereadores, o início do processo criativo que gestou o Delírio tropical. A página virtual da GloboNews abordou a mesma questão com maior elegância, na matéria Imperatriz Canibal, veiculada pouco depois do desfile da escola, na madrugada de 12 de fevereiro de 2002:

No Carnaval de 2002, a vitoriosa carnavalesca Rosa Magalhães ganhou um patrocínio da cidade de Campos (RJ). Para não ter que falar em petróleo e chuvisco, acabou desencavando a curiosa história dos índios antropófagos goitacazes. Trouxe para a avenida a história de sua resistência à aculturação numa boa, no estilo South American Way. O Abre-Alas, Comilança, é baseado no Manifesto Antropofágico (sic), de Oswald de Andrade. O carro, que seguia a comissão de frente de bichos-papões, foi feito com restos de outros, usados em anos anteriores. Ora, afinal, como diz o samba-enredo, o "índio virou anarquista". Assim, essa imensidão de índios brasileiros se derramou pela Marquês de Sapucaí - com referências ao tropicalismo e, como disse Rosa Magalhães, à rainha da cafonice, Carmen Miranda, na pele de Luíza Brunet - e fez (mais) um desfile voraz. Será que a fome de títulos da escola da zona da Leopoldina será saciada?474

Desconsiderados os pontos mal apurados (Luiza Brunet não representava Carmen Miranda; o carro baseado em Oswald de Andrade não era o Abre-Alas, mas a quinta alegoria), a matéria se propôs a apresentar um panorama do desfile, deixando o julgamento para as cabines da LIESA. A Folha de S. Paulo, diferentemente, pré-julgou o desfile, conforme se observa na notícia Imperatriz Leopoldinense desagrada a Sapucaí; Tetra fica longe:

A tricampeã Imperatriz Leopoldinense não empolgou a Marquês da Sapucaí neste último dia de desfile do grupo especial do Rio. Segundo pesquisa da Globo, a escola teve a pior avaliação pelos telespectadores (nota 8,0). A Imperatriz e seu enredo, Goytacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way!, foram vaiados mesmo antes de entrar na passarela. As vitórias da escola desde 99 não foram bem aceitas pelas chamadas “comunidades” carnavalescas.

474 Disponível no sítio http://ww2.sescsp.org.br/sesc/hotsites/paisagem0/pesquisa_ver.cfm?ItmId=19. Acesso em 10/08/2013. 211

No ano passado, no desfile das campeãs, integrantes da Imperatriz chegaram a ser alvo de latinhas de cerveja e garrafinhas de água. O samba-enredo retoma o velho tema indígena, já cantado inúmeras vezes na história do Carnaval.475

A simplificação final não apenas incomoda – e muito – o observador atento como parece travestida de má vontade para com a escola. Ao que parece, o jornalista relator do texto sequer teve o cuidado de ler a sinopse do enredo: viu que a palavra índio aparecia seguidas vezes na letra do samba e tratou de enquadrar a obra no “velho tema indígena, já cantado inúmeras vezes na história do Carnaval”, afirmação que, depois de quatro parágrafos nada elogiosos, adquire as cores do juízo de valor negativo. E as críticas apenas começavam. As mais impiedosas seriam disparadas pela prefeitura de Campos dos Goytacazes, cujos representantes, depois da participação no desfile oficial (a primeira-dama foi destaque da alegoria A pescaria dos tubarões e registrada em foto pelas lentes da revista Manchete), declararam à imprensa que estavam muito descontentes com o enfoque dado pela carnavalesca Rosa Magalhães ao enredo – formou-se o auê. A jornalista Débora Batista, do portal de notícias UOL, escreveu, em 15/02/2012:

CAMPOS, RJ - O Carnaval 2002 não está sendo dos melhores para a Imperatriz Leopoldinense. Além de não conseguir o tão sonhado tetracampeonato, a diretoria da escola ainda pode ser alvo de um processo da prefeitura de Campos. Isto porque o prefeito Arnaldo Vianna não gostou do que foi apresentado na avenida. Ele, que conseguiu a quantia de R$ 1,8 milhão para a carnavalesca Rosa Magalhães, teme que a população, descontente com o que foi mostrado na TV, reclame que nenhuma medida foi tomada. "Ainda não decidimos processar a Imperatriz", afirmou o procurador do município de Campos, Élson de Oliveira. Ele diz que quer analisar fitas do desfile para conferir se o que foi mostrado através de carros alegóricos e alas está em conformidade com o que a prefeitura pediu e foi assinado em contrato com a Imperatriz. O secretário de Comunicação de Campos, Hélio Cordeiro, faz questão de esclarecer que, apesar do município ter dado à escola quase R$ 2 milhões, o dinheiro não saiu só dos cofres públicos. "A prefeitura colaborou com uma parte e o restante conseguiu com um grupo de empresas, como o Banerj e a Petrobras". Hélio Cordeiro disse que o prefeito considerou que seria um grande marketing para Campos apostar na Imperatriz Leopoldinense, tricampeã do carnaval. Mas não foi o que aconteceu. Não foi mostrado na Sapucaí que a cidade foi a primeira da América do Sul a contar com energia elétrica, ou que o

475 Disponível no sítio http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u45951.shtml. 212

presidente Nilo Peçanha e o abolicionista José do Patrocínio nasceram no município. "Eu vi muita banana e tubarão na avenida. Nunca soube que Campos tivesse essas coisas", comentou o técnico de informática Rodrigo Pessanha de Souza.476

Já a versão digital do Jornal Nacional conseguiu tirar algumas palavras da carnavalesca Rosa Magalhães, inserindo-as em matéria Confusão no carnaval do Rio, também publicada no dia 15 de fevereiro:

A Imperatriz Leopoldinense recebeu ajuda financeira de Campos, cidade do norte do estado do Rio. Em troca, destacaria aspectos da cultura e da história do município. O enredo fala da saga dos Goytacazes, índios que habitavam a região. A prefeitura não gostou do que viu. "Só os índios goytacazes, aquele aspecto do canibalismo dos índios goytacazes frustrou todos nós", declarou Fernando Leite, representante da prefeitura de Campos. "A gente deve ter muito orgulho desse DNA indígena e não rejeitar e achar que não tem nada a ver com a cidade, quando ela mesma se chama Campos dos Goytacazes", diz a carnavalesca da Imperatriz, Rosa Magalhães.477

Carlos Eduardo Machado, jornalista da cidade de Campos dos Goytacazes, redigiu uma coluna sobre o assunto, em 18 de fevereiro de 2002, tomando as dores do “município traído”. O texto, intitulado Campos, sinônimo de riqueza, história e calor humano, foi publicado no jornal O Documento, de Cuiabá, a exibir uma coletânea de clichês, rimas e sugestões de gosto duvidoso:

Campos foi a primeira cidade da América do Sul a ter energia elétrica. Localizada na região norte-fluminense, cidade quente como a pele da mais doce morena, encanta pelas praias, plataformas de petróleo, pela história preservada e pelo sorriso envolvente da mulher campista. Este é o breve histórico de minha terra natal, hoje com uma popluçào estimada em 600 mil habitantes. Neste carnaval, Campos foi homenageada pela Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, com a representação da tribo Goytaca (primeira civilização do local). Percebi um destaque maior à figura de Carmen Miranda, o que não tem nada a ver com a história do índio Goytacá, da tribo valente e persistente como o suor de sua gente. Curiosamente o apagão chegou e o fato de Campos ter sido a primeira cidade da América do Sul com luz elétrica nem sequer foi mencionado. 478

Certamente, Rosa Magalhães não aprovaria a sugestão de que as plataformas de petróleo podem causar “encantamento” nos visitantes. Do desfile das campeãs,

476 Disponível no sítio http://noticias.uol.com.br/ajb/2002/02/15/ult741u3289.jhtm. Acesso em 19/11/2013. 477 Disponível no sítio http://jornalnacional.globo.com/Telejornais/JN/0,,MUL540397-10406,00- CONFUSAO+NO+CARNAVAL+DO+RIO.html. Acesso em 18/11/2013. 478 Disponível no sítio http://www.odocumento.com.br/artigo.php?id=36. Acesso em 18/11/2013. 213

realizado em 16 de fevereiro e transmitido para todo o Brasil pela TV Bandeirantes, os membros da prefeitura de Campos não participaram, em sinal de protesto. Indagada por uma repórter da emissora de televisão sobre a polêmica em torno da ação judicial e das declarações pouco amistosas das autoridades campistas, a carnavalesca, ao lado do carro Abre-Alas e molhada de chuva, foi sucinta, sem esconder um sorriso enigmático: “Eu falei de Campos, sim!” Nos bastidores do “mundo do samba”, dizem que a situação ainda não foi judicialmente resolvida. O conjunto de argumentos contrários ao enredo desenvolvido por Rosa Magalhães revela alguns pontos interessantes para se pensar a delicada relação entre patrocinadores e agremiações carnavalescas, um dos temas mais discutidos pela crítica carnavalesca contemporânea e que pode, ao leitor desavisado, parecer recente – o que não é.479 Primeiramente, é possível identificar uma instantânea oposição entre o imaginário evocado ao longo do desfile (com símbolos como tubarões, bananas e Carmen Miranda) e o imaginário que os defensores da prefeitura de Campos acreditam verdadeiramente dizer respeito ao município (com símbolos como energia elétrica e plataformas de petróleo). Na visão governamental, a cidade somente seria decentemente homenageada se exaltada enquanto polo energético, boa mesa e berço de personalidades notórias. Fica subentendido que no contrato de patrocínio havia especificações sobre a temática480, ou seja, um dirigismo estatal, com vistas à divulgação de um produto (a

479 É o que provam Danielle Kiffer e Felipe Ferreira no artigo Isto faz um bem!: as escolas de samba, a Coca-Cola e a “invasão da classe média” no carnaval carioca dos anos 50. No texto, os pesquisadores investigam um episódio nebuloso da história do carnaval carioca, praticamente ignorado pela historiografia carnavalesca: um concurso criado pela Coca-Cola, em parceria com o jornal Última Hora, em 1957, que consistia no “patrocínio de uma disputa entre as escolas de samba do Rio de Janeiro, na qual cada uma das participantes musicaria um texto louvando a Coca-Cola (...).” As escolas de samba de então, mesmo as mais “tradicionais”, como Mangueira e Portela, abraçaram o concurso, do qual a primeira campeã foi a Unidos do Salgueiro. O último concurso foi realizado em 1962, devido ao desgaste da estratégia de marketing. A análise do concurso revela muitas coisas, dentre as quais o fato de que os anos 50 foram muito dinâmicos, no contexto das escolas de samba: a tão comentada “invasão da classe média” mencionada no título do artigo não se deu de uma hora para a outra, ao contrário – foi produto de um processo longo e complexo. Além disso, aflora a ideia de que a capacidade que as escolas de samba possuem de dialogar com entidades privadas e marcas de produtos não é de hoje: nos anos 50, associações que, sob o olhar “tradicionalista” e/ou “purista”, parecem injustificáveis e terrivelmente prejudiciais ao “correto” tratamento que se deve dar o samba já eram feitas, sem muita cerimônia. Nos termos dos autores, “Mais do que expressão de um imperialismo globalizante e totalitário, a estreita relação estabelecida entre um dos maiores símbolos do americanismo – a Coca Cola – e as grandes representantes da ‘pureza’ e criatividade do ‘povo brasileiro’ – as escolas de samba cariocas – foi um momento de intenso diálogo no qual se discutiram conceitos básicos para a afirmação desses grupos carnavalescos como ‘o maior espetáculo da Terra’”. In: FERREIRA, F.; KIFFER, Danielle. Isto faz um bem!: as escolas de samba, a Coca-Cola e a “invasão da classe média” no carnaval carioca dos anos 50. Mimeo. 480 É o que se deduz a partir da notícia Imperatriz pode ser processada por quebra de contrato, publicada no portal Diário OnLine, em 15 de fevereiro de 2002. O texto afirma: “A escola de samba Imperatriz 214

cidade de Campos dos Goytacazes) e ao enaltecimento deste a partir da ótica mais convencional possível, qual seja, a da história oficial nua e crua (“primeira cidade da América do Sul com luz elétrica”) utilizada a favor da propaganda política. Num segundo momento, diante da complexidade teórica e visual do espetáculo apresentado pela Imperatriz Leopoldinense, é de causar estranhamento o fato de os governantes de Campos não terem utilizado o Delírio tropical a seu favor, afinal, da mesma forma que é possível a afirmação (restritiva) de que tubarões, bananas e Carmen Miranda são elementos estranhos à cidade “homenageada”, é possível expandir a visão (exercitando o olhar dialético, portanto) e enxergar Campos dos Goytacazes enquanto berço de uma das mais extraordinárias facetas da vida cultural brasileira, aquela profundamente associada ao indianismo e ao conceito de antropofagia cultural. Em outras palavras, seguindo o novelo desenrolado por Rosa Magalhães ao longo da Marquês de Sapucaí, pode-se afirmar que o enredo deixa subentendido que Campos dos Goytacazes é o caldeirão original onde ferveram as antropofagias física e cultural, caldo que alimentou, no decorrer da história, a literatura de José de Alencar, a música de Carlos Gomes, a pintura de Tarsila do Amaral, o modernismo de Oswald de Andrade, a Tropicália de músicos como Gilberto Gil e Caetano Veloso, o sucesso de Carmen Miranda. Para utilizar de um jargão, é “uma questão de ponto de vista”. Passados onze anos, Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way! é mais lembrado pela polêmica do patrocínio que pelas fantasias e alegorias concebidas por Rosa Magalhães. Atualmente, enredos sobre cidades desenvolvidos pelo prisma das homenagens institucionalizadas (popularmente chamados enredos CEP) são mal vistos pela crítica carnavalesca. Cada um à sua maneira, os carnavalescos tentam vestir os temas geográficas com roupas diferenciadas, o que às vezes surte efeito contrário: a narrativa convencional (que basicamente segue o roteiro primeiros habitantes –

Leopoldinense, terceira colocada no Grupo Especial deste ano, pode ser processada por quebra de contrato. A agremiação desfilou com o enredo Goytacazes... Tupi or not Tupi (sic) e recebeu metade de seu orçamento (R$ 1,8 milhão) da Fundação Municipal Jornalista Oswaldo Lima. Segundo o contrato, a escola deveria abordar a história e personalidades de vulto nacional oriundos da cidade, mas citou apenas os índios no título. O procurador-geral de Campos, no Rio de Janeiro, decide nesta segunda-feira se processa a escola ou não. A direção da Imperatriz alega que a sinopse estava pronta em julho, e, mesmo, assim, o dinheiro foi repassado. A versão do presidente da Fundação, Fernando Leite, é diferente. Ele afirma que havia uma promessa de mudança. O patrocínio de Campos, que liberou parte do R$ 1,8 milhão, é motivo de outra ação. O Ministério Público Estadual considera ilegal o convênio. A pedido da prefeitura, o Tribunal de Justiça cassou uma liminar que suspendia o patrocínio.” Disponível no sítio http://www.dgabc.com.br/Noticia/119443/imperatriz-pode-ser-processada-por-quebra-de-contrato. Acesso em 26/11/2013.

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fundação e colonização – belezas naturais - costumes locais (culinária, festejos religiosos, música, dança, artesanato, artes em geral) – personalidades importantes – “progresso” e industrialização – final festivo, com variações, é claro) permanece à vista, apenas “maquiada”, o que tende a confundir a leitura ou, nos termos de Antonio Cândido, gerar uma dualidade “nociva”.481 Isso ocorre porque a relação entre patrocinadores e artistas continua problemática, gerando discussões exaltadas (vide o episódio envolvendo o manifesto de Marcelo Freixo, mencionado no capítulo sobre o Manifesto Antropófago e Tarsila do Amaral), por vezes infrutíferas. Felipe Ferreira, no texto Bumba meu Fusca, originalmente publicado em O Pasquim 21, nº 95, de 17 de janeiro de 2004, problematiza a questão e conclui que “não tem mais volta: a promoção publicitária já invadiu as escolas de samba.”482 Diante dessa constatação, um dos motivos que contribuíram para o afastamento de Fernando Pamplona da Marquês de Sapucaí, o autor lamenta a maneira como a propaganda é feita (“os exemplos mais gritantes são o Salgueiro com um enredo sobre a TAM e a Beija-Flor homenageando a Varig. Ambos os desfiles acontecendo no mesmo pobre ano de 2002.”483) e levanta questionamentos:

Não seria mais digno e simples se a veiculação de anúncios nas escolas fosse permitida e regulamentada? Por que não se fazer como nos teatros, onde o patrocínio de uma peça não implica elogio do patrocinador durante o espetáculo? Não dá nem para imaginar a tendo que se vestir de bomba de gasolina e representar um texto em louvor à Petrobras para obter patrocínio da empresa. Ao contrário, o patrocinador paga somente para veicular seu nome a algum projeto da atriz, e todo mundo lucra com isso. (...) Por que o mesmo não pode acontecer com, digamos, a Mocidade Independente de Padre Miguel? Um enredo sobre Arlindo Rodrigues podia ser patrocinado pela TAM, outro sobre circo poderia ser “gentilmente oferecido ao público” pela Varig. E por aí vai. As escolas e as empresas só teriam a lucrar com essa visão mais moderna da relação entre mercado e cultura. Por outro lado, os enredos se libertariam das constantes “homenagens” que muito mal disfarçam a grana oferecida pelos “homenageados”. É claro que isso tudo teria de ser discutido, com limites, regras e espaços de publicidade muito bem definidos. (...) O patrocínio precisa urgentemente deixar de ser visto como um bicho-papão e um limitador dos desfiles, para se transformar num elemento de libertação e de apoio à imaginação dos sambistas. Só assim vamos nos

481 O autor, ao analisar O Uraguai, de Basílio da Gama, obra com fundo político anti-jesuíta bem demarcado, afirma que “a possibilidade de duas leituras nada tem de mau em si, pois é frequentemente, no plano da estrutura, manifestação da polivalência da expressão literária. É, todavia, negativa quando representa desconexão e uma leitura atrapalha a outra (...).” In: CANDIDO, A. Vários Escritos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1970, p. 176. 482 FERREIRA, F. Bumba meu Fusca. In: FERREIRA, F. Escritos carnavalescos, p. 194. 483 Ibidem, p. 194. 216

livrar de regras que desclassificam uma escola por causa de um único logotipo, mas aceitam enredos inteiros exaltando as qualidades dos serviços de bordo de uma empresa aérea.484

O jornalista Fábio Fabato e o professor de História Luiz Antonio Simas também contribuem para o debate, fazendo coro a Fernando Pamplona e citando o enredo de 2002 da Imperatriz Leopoldinense como exemplo de “lençol” dado pelo artista, a carnavalesca Rosa Magalhães, no patrocinador, a cidade de Campos dos Goytacazes. No texto A era do samba-jingle (de título parecido com aquele dado por Diogo Mainardi à coluna publicada na edição da revista Veja de 13 de fevereiro de 2002, O jingle-enredo, texto em que os goitacazes são mencionados e os compositores do samba ironicamente criticados por alguém que parece não apreciar o carnaval carioca – logo, a semelhança fica restrita ao título485), publicado na edição de O Globo de 26 de agosto de 2012, os autores criticam os patrocínios “sem fins culturais” (o que está expresso no seguinte trecho: “Não se trata de patrocínio cultural (...), mas sim a quase completa abertura para marcas, países, raça de cavalo e até mesmo uma campanha ligada à divisão dos royalties do pré-sal (...).”486) e afirmam: “poucos se dignaram a pensar se a lógica de associação das escolas com o capital empresarial está estruturada de forma correta. A coisa passou a funcionar, grosso modo, assim: o cara paga, compra um enredo, e leva de brinde uma hora e meia de exposição.”487 Aqui, retornam questionamentos alimentados pelo manifesto de Marcelo Freixo e passíveis de cotejo com o artigo (ainda inédito) de Danielle Kiffer e Felipe Ferreira: como determinar o caráter cultural de um tema a ser patrocinado e transformado em enredo de escola de

484 Ibidem, p. 194/195. 485 O autor diz: “O pessoal do Carnaval é inventivo para bolar apelidos, mas fica muito a dever quando decide transformar sambas em jingles publicitários. Um jingle publicitário é feito para vender. Nesse caso, as empresas que financiam o Carnaval deveriam ter contratado diretamente profissionais do ramo para compor os enredos. O autor de um jingle de um amaciante de roupas consegue encontrar muito mais atributos positivos no produto que anuncia do que Amendoim B-F ou R. Mocotó (compositores da Beija- Flor de Nilópolis e da Unidos do Viradouro, respectivamente) nos temas de suas escolas. Com o intuito de homenagear a cidade de Campos, terra do governador Garotinho, a Imperatriz Leopoldinense exalta o canibalismo dos índios goitacazes: "São ferozes, são vorazes, vida de antropofagia, índio come gente, quem diria. (...) Alguns tradicionalistas reclamam da transformação do Carnaval num veículo de marketing empresarial e político. Mas são uma minoria. A tendência é que cada vez mais empresas e governos invistam no negócio, inclusive porque não lhes custa nada, já que podem usufruir das leis de incentivo cultural. Pelas regras atuais, é proibido expor marcas de produtos nos carros alegóricos, mas tenho certeza de que, em breve, a proibição será contornada, tornando o investimento ainda mais oportuno.” Disponível no sítio http://veja.abril.com.br/130202/mainardi.html. Acesso em 19/11/2013. 486 Disponível no sítio: http://opiniao.galeriadosamba.com.br/post/a-era-do-samba-jingle/85/opt/1/. Acesso em 19/11/2013. 487 Ibidem. 217

samba? Quais os riscos do dirigismo? Os reais desdobramentos de 2002, é possível mensurá-los? Nesse torvelinho, o embate carnavalesco versus patrocinador é apenas mais um ingrediente pitoresco de um desfile de difícil digestão. E de outra forma não poderia ser: o carro Abre-Alas do Delírio tropical, que suscitou opiniões radicalmente divergentes entre os julgadores de Alegorias Amaury Chaves e Lúcia Ribas, se chamava A Grande Comilança. Não se tratava de um banquete convencional, a exemplo da inesquecível mesa de guloseimas apresentada por Renato Lage na Mocidade Independente, em 1997, ou da pantagruélica refeição servida aos olhos do público, na sexta alegoria do desfile gresilense de 2007, mas de um monturo de ossos e restos de animais – o que possivelmente levou o julgador Amaury Chaves a considerar a alegoria fúnebre. Na parte da frente, seres de aparência pré-histórica com bocarras abertas; no corpo da alegoria, ossadas a simular um esqueleto, dentro do qual as composições representavam os intestinos das criaturas, o suco gástrico, a escatologia; no fundo, imensos dentes pontiagudos e mais bocas escancaradas. Dinossauros verdes pareciam devorar uns aos outros, sugerindo a ideia de que o ato de comer a carne da própria espécie está para além da “aurora do homem” investigada por Stanley Kubrick em seu 2001. Ao invés do dourado e dos tons tropicais, característicos da artista, a predominância do preto e do verde escuro, as cores pesadas da decomposição. Foi um impacto! A alegoria que não agradou Amaury Chaves é essencial para se pensar o processo criativo de Rosa Magalhães, no contexto do desfile sobre a antropofagia. Mencionado na reportagem Delírio tropical, da revista Manchete, e descrito em detalhes pela carnavalesca, na entrevista realizada em outubro de 2012, um incêndio (o terror de qualquer profissional do carnaval) atingiu o antigo barracão da Imperatriz Leopoldinense, na zona portuária do Rio de Janeiro, em agosto de 2001. O fogo teria começado no barracão da Unidos do Viradouro488 e “descido” ao barracão gresilense

488 O carnavalesco Chico Spinosa narrou o ocorrido no Posfácio do livro As Titias da Folia – O Brilho Maduro de Escolas de Samba de Alta Idade: “Na Unidos do Viradouro, tive problemas com fogo, mas antes da Avenida, ao contrário do que aconteceu no caso do famoso carnaval dos ciganos. Estávamos em 2002 (“O Viramundo, o Rei do Mundo”) e, em meio aos preparativos, chamas consumiram o nosso barracão. Além da Viradouro, a Imperatriz Leopoldinense viu seus preparativos e materiais reduzidos a nada. Luizinho Drumond, patrono da Imperatriz, e eu assistimos do meio-fio à destruição dos dois barracões, obra de um cigarro aceso lançado do viaduto da Perimetral no meio dos isopores e tambores de resina. O fogo se alastrou até o barracão da Beija-Flor, mas os bombeiros conseguiram salvar a escola de Nilópolis.” Ver: SPINOSA, Chico. Posfácio. In: CAMÕES, Marcelo; FABATO, F.; FARIAS, J. C.; NATAL, V.; SIMAS, L. A. As Titias da Folia. O Brilho Maduro de Escolas de Samba de Alta Idade. Rio de Janeiro: NovaTerra, 2014, p. 209. 218

pelo elevador de carga, consumindo o almoxarifado da escola e algumas alegorias e fantasias do carnaval passado. Restaram pilhas de entulho, ferros retorcidos, isopor derretido. A carnavalesca, então, incorporou a proposta antropofágica do enredo e construiu um carro Abre-Alas diferente de todos os que já havia apresentado: utilizou os restos do fogaréu na composição da alegoria. Além disso, decidiu destruir as esculturas que sobreviveram ao fogo, restos dos antigos carnavais, como anjos barrocos – demonstrou, no barracão da Vila Isabel, um certo prazer ao narrar que os “anjinhos” do carnaval de 2001 foram “picados”, “ralados” e incorporados à estrutura do Abre-Alas em montagem enquanto “alimento” deglutido. Aos poucos, os estômagos dos dinossauros ficaram preenchidos e o carro ganhou forma. Ao utilizar o entulho como matéria-prima, a carnavalesca, de certa forma, estava devorando e deglutindo a si mesma, a memória dos seus anjos e índios passados, que ficaram perdidos nos outros carnavais. Simbolicamente, um ritual de antropofagia não apenas teórico, mas físico. Autofagia. O chefe de adereçaria Sérgio Faria, que trabalhou com Rosa Magalhães de 1992 a 2009, não apenas confirmou a história do incêndio, em depoimento informal colhido antes do início do debate com Rosa Magalhães realizado na UERJ, em 16 de julho de 2013, como declarou considerar o desfile de 2002 “um dos trabalhos mais extraordinários da Rosa.” Segundo ele, a carnavalesca precisou ter pulso firme para “peitar” os interesses de Campos dos Goytacazes e realizar um trabalho autoral, confrontando as expectativas daqueles que esperavam que as fantasias e alegorias representassem poços de petróleo e potes de “chuvisco”, o doce típico da cidade. Os saltos do enredo (em especial a passagem da antropofagia física dos índios para a literatura de José de Alencar e o Manifesto Antropófago) mereceram elogios do aderecista. Sobre o incêndio, disse que foi um desafio a mais, porque o barracão chegou a ser interditado, mas que ao longo da “Era Rosa” outros desafios foram enfrentados e superados, como os problemas envolvendo o patrocínio (novamente ele) proveniente da Holanda, a fim de financiar o desfile de 1999 (no qual a carnavalesca não inseriu moinhos de vento nem tulipas; “fugiu” para o Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae e os retratos de Brasil pintados pelos artistas da corte de Nassau). “O dinheiro não veio”, mas o desespero foi superado pelo trabalho frenético do barracão gresilense. Nas palavras de Sérgio Faria, mais uma vez a carnavalesca passou no teste e conseguiu fazer um desfile visualmente competente, ainda que sem os recursos necessários para a 219

confecção do projeto original. Em 2002, o “dinheiro veio”; foi a vez do fogo alterar o projeto e aplicar o teste. Pensando em algumas reflexões de Oscar Wilde489, na obra de arte existe um espírito crítico, germe imanente, cabendo à crítica desenvolvê-lo sem a pretensão do esgotamento. Após o panorama apresentado, parece correto afirmar que, no caso do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2002, a expectativa pela “perfeição formal” supostamente existente nos trabalhos anteriores de Rosa Magalhães pesou contra a antropofagia da carnavalesca e impediu que arquibancadas e cabines de jurados desenvolvessem o espírito crítico inerente ao desfile e embarcassem na onda reflexiva que um dos mais tortuosos enredos daquele “pobre ano”, nos termos rigorosos de Felipe Ferreira, poderia propiciar. O desfile não foi “redondo”, mas com dentes e ossos pontiagudos difíceis de deglutir. Algo oposto à aclamada perfeição de 1994, quando a artista conquistou o quarto campeonato da história da escola de Ramos, com o enredo Catarina de Médicis na corte dos Tupinambôs e Tabajères. Mas isso é papo para o próximo capítulo, quando o primeiro eixo temático extraído do desfile de 2002 será devorado: o índio, de tocheiro e anarquista canibal.

489 Ver o diálogo A crítica e a arte (Com algumas notas sobre a importância de nada fazer). Disponível em: WILDE, Oscar. A Decadência da Mentira e outros ensaios. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994. 220

Figura 99: Detalhes da parte da frente da Alegoria nº 01 da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002. Restos de materiais, formas confusas, inacabamento, cores escuras, o conjunto visual faz referência à devoração e à digestão canibais, escatologicamente. Considerado “fúnebre” por um dos julgadores do quesito Alegorias e Adereços, muito diferente do “padrão Rosa Magalhães” apresentado nos anos anteriores, o carro foi confeccionado com parte do entulho resultante do incêndio que atingiu o barracão da escola, em 2001, num exemplo de autofagia. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

221

Figura 100: Detalhes da parte da frente do carro Abre-Alas (A Grande Comilança) do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2002. Nota-se a predominância das cores verde e preta. Os ossos pontiagudos e as bocas escancaradas dos dinossauros compõem um cenário escatológico: a devoração ancestral, anterior à história do homem. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figuras 101, 102, 103 e 104: Recortes de imagens do carro Abre-Alas do desfile gresilense de 2002, com destaque para as bocas dentadas das feras pré-históricas. Fonte: Transmissão televisiva da Rede Globo. 222

Figura 105: Visão aérea global do carro Abre-Alas da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002, dando início à grande comilança proposta pelo desfile. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 106: Destaque do carro Abre-Alas da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002. Plumas desfiadas, penas de faisão pretas, tachas, fivelas, rasgos: o conjunto de materiais utilizado na confecção da roupa remete o espectador ao universo escatológico e agressivo do carro alegórico. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 223

Figura 107: Componente da Comissão de Frente da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 2002. Coreografados por Fábio de Mello, os dançarinos representavam o Bicho Papão, usando fantasias perfeitamente integradas à estética do carro Abre-Alas (que se vê ao fundo). Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

Figura 108: Componentes fantasiados de Bicho Papão, na Comissão de Frente da Imperatriz Leopoldinense, em 2002. As cores escuras contrastam com os ameaçadores olhos em amarelo e vermelho. A debochada roupa pode ser entendida como uma síntese da mensagem do enredo: a cultura é uma sucessão de devorações; quem tem medo das bocarras abertas? Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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IV – O índio é acima de tudo um forte

O Brasil, qualquer transeunte sabe, foi descoberto por Cabral e fundado pela violência. Violência física e espiritual do branco adventício e invasor sobre o índio nativo e o negro sequestrado na África e escravizado. Conquista e catequese ou catequese e conquista. Do índio, o massacre foi completo.490

(Paulo Leminski - Vida)

Sou índio, sou forte Sou filho da sorte sou natural Sou guerreiro, sou a luz da liberdade Carnaval!491

(Marcio André, Alvinho, Aranha e Alexandre da Imperatriz)

A fantasia de “homem selvagem” nos remete ao carnaval da Idade Média e a um personagem das histórias populares de matriz oral que ganharia as páginas literárias de autores como Boccaccio: um sujeito misterioso, que “vivia no fundo das florestas, cercado de animais selvagens, com os cabelos desgrenhados e o corpo coberto de pelos.”492 Juntamente com os fantasiados de urso493, os homens selvagens representavam a ligação ancestral entre os homens civilizados dos burgos medievais e as feras indomáveis que habitavam as matas. Eram, portanto, símbolos de inversão e descontrole, medo (usavam máscaras com longas barbas e tinham os corpos adornados com folhas ou penas) e violência (nas mãos, levavam grandes porretes). Felipe Ferreira é quem observa: “essa imagem do homem selvagem estaria presente, com algumas modificações, nos séculos seguintes, em brincadeiras carnavalescas de várias cidades do

490 LEMINSKI, Paulo. Vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 34. 491 Refrão principal do samba de enredo apresentado pela Imperatriz Leopoldinense no carnaval de 1994, sobre a festa brasileira em Ruão, em 1550, intitulado Catarina de Médicis na Corte dos Tupinambôs e Tabajères. 492 FERREIRA, F. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro, p. 31. 493 Nos termos de Felipe Ferreira, “o disfarce de urso estava ligado a uma crença européia que dizia que esse animal, ao sair de sua toca no fim do inverno, poderia prever se o frio iria acabar logo ou se duraria ainda mais tempo. Caso o urso retornasse para sua hibernação, era sinal de que o frio iria continuar. Se, após acordar, ele saísse da toca, o inverno estaria prestes a terminar e todos comemoravam.” In: FERREIRA, F. Obra citada, p. 31. 225

mundo. (...) Até nas brincadeiras de rua do início do século XX, no Rio de Janeiro (...).”494 Em terras cariocas, a temática ganharia corpo nos índios de cordão. O índio é um dos personagens carnavalescos menos estudados, o que, por si só, traveste o assunto de interesse acadêmico.495 Os cocares emplumados não são privilégio da folia do Rio de Janeiro, tampouco do nosso país: no Brasil, os grupos de caboclinhos do Nordeste exemplificam uma variação da indumentária carnavalesca de temática indígena, ligada aos ritos do maracatu e aos festejos de bumba-meu-boi; em Nova Orleans, nos Estados Unidos, as manifestações carnavalescas não-oficiais e negras não são comandadas por reis, símbolos da nobreza européia, mas pelos “caciques (Big Chiefs) das Mardi Gras Indian Tribes (Tribo de Índios do Mardi Gras) ou, simplesmente, black indians.”496 Lá, a tradição de brincar carnaval fantasiado de índio, típica da comunidade afro-descendente, data do final do século XIX e se popularizou após a Exposição Internacional do Algodão, em 1894, quando “houve a apresentação de inúmeros espetáculos que recriavam a conquista do meio-oeste em que brancos e índios se enfrentavam em batalhas truculentas, ruidosas, sanguinolentas, selvagens, com perdas representativas nas duas frentes.”497 Aqui, os famigerados “índios de cordão” saíam às ruas no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, tendo sofrido uma grande e bem-sucedida repressão governamental, uma vez que eram associados a violência, algazarra e destruição do patrimônio público. Eneida de Moraes, em História do Carnaval Carioca, conta que, em 1888, o primeiro cordão organizado na cidade do Rio de Janeiro, a Sociedade Carnavalesca Triunfo dos Cucumbis, usou fantasias de índios: “Eram negros fantasiados de índios, tocando instrumentos primitivos. (...) Negros fantasiados de índios executando músicas e danças de

494 Ibidem, p. 32. 495 Ver BORA, L. Obra citada. 496 GÓES, Fred. Entre Reis e Caciques no Mardi Gras de Nova Orleans. In: CAVALCANTI, M. L.; GONÇALVES, R. (orgs.). Obra citada, p. 41. 497 Fred Góes também afirma que a recriação das batalhas nos Westerns cinematográficos influenciou a criação de blocos de índios do carnaval de Salvador, como os Apaches do Tororó e os Comanches, hoje desaparecidos. Segundo o autor, “este dado é extremamente curioso como elemento de identificação de duas comunidades afro-descendentes distintas e distantes que bebem na mesma fonte de inspiração e nela se projetam: uma no espetáculo ao vivo e outra no espetáculo cinematográfico. Some-se a isso o fato de ambas terem sido rotuladas como expressões de extrema violência, isto é, são recorrentes nas histórias do carnaval baiano e do Mardi Gras os enfrentamentos de tribos rivais em que número de mortos se assemelha às representações dos espetáculos do velho oeste. Quem brincou o carnaval de rua da Bahia nesse período, certamente não se esqueceu de que, ao se ouvir o bater ritmado das machadinhas dos Caciques do Tororó, era hora para fugir e buscar abrigo até que o grupo se afastasse.” A associação entre blocos de índios e violência também ocorria no carnaval de rua do Rio de Janeiro, gerando a prisão de inúmeros brincantes e a posterior proibição dos cordões de selvagens. In: GÓES, F. Obra citada, p. 41/42. 226

africanos.”498 Maria Clementina Pereira Cunha é outra pesquisadora que relata a folia dos negros fantasiados de índios, descrevendo o “enredo” das apresentações dos cucumbis:

A história contada pelos cucumbis representa um cortejo de príncipes, princesas, feiticeiros, embaixadores de outras nações africanas e o povo, levando para o rei do Congo seu filho recém- circuncidado. A morte do príncipe, atacado por tribo inimiga que se veste de penas, como os índios do Brasil, dá origem a uma série de peripécias, encerradas pela ressurreição do jovem por intermédio da mágica do feiticeiro. Além das saudações em português, o enredo fecha-se com louvações a São Benedito e à Virgem Maria, novamente cantadas no idioma dos brancos ao ritmo de ganzás, agogôs, xerequês, tamborins, chocalhos, marimbas e adufes – ao passo que todo o resto permanecia na língua africana. As fantasias envergadas pelos participantes do cucumbi eram também bastante características: para os índios, círculos de penas nos joelhos, cintura, braços e pulsos; cocares de plumas com palas vermelhas, colares de miçangas, corais e dentes (...)499

O historiador Luiz Edmundo também discorreu sobre o visual assustador dos índios de cordão: usavam “vastos cocares de penas longas e coloridas, emoldurando rostos cor de canela, pintados a urucum, brincos de metal e colares de vidrilho; na boca sempre traziam um apito de barro, por onde silvam, aos pulos; traziam atravessado nas costas um lagarto seco, uma serpente ou uma pele dura de jacaré.”500 A mais famosa descrição desses brincantes (que não deve ser levada ao pé da letra e considerada fonte histórica de veracidade inquestionável, afinal, é um texto literário com marcas ficcionais de difícil mapeamento), no entanto, é aquela feita por João do Rio (tema do enredo de Rosa Magalhães para o desfile do Império Serrano, no Grupo de Acesso A, no carnaval de 2010), na crônica Cordões, originalmente publicada em 1903, na Gazeta de Notícias, e posteriormente reelaborada e alocada na obra A alma encantadora das ruas. O trecho a seguir apresenta a redação de 1906:

O cordão vinha assustador. À frente, um grupo desenfreado de quatro ou cinco caboclos adolescentes com os sapatos desfeitos e grandes arcos pontudos corria abrindo as bocas em berros roucos. Depois um negralhão todo de penas, com a face lustrosa como piche, a gotejar suor, estendia o braço musculoso e nu sustentando o tacape de ferro. Em seguida gargolejava o grupo vestido de vermelho e amarelo

498 MORAES, E. de. Obra citada, p. 97. 499 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia. Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. Companhia das Letras, 2001, p. 42. 500 Ibidem, p. 177. 227

com lantejoulas d’oiro a chispar no dorso das casacas e das grandes cabeleiras de coches, que se confundiam com a epiderme num empastamento nauseabundo. Ladeando o bolo, homens em tamancos ou de pés nus iam por ali, tropeçando, erguendo archotes, carregando serpentes vivas sem os dentes, lagartos enfeitados, jabutis aterradores com grandes gritos roufenhos.501

A descrição das vestimentas desses índios carnavalescos, na visão de Felipe Ferreira, revela que eles são híbridos culturais: mais representam a visão estereotipada que os brancos de Europa tinham dos selvagens brasileiros, seres bestializados, entre o humano e o animalesco, que a realidade tribal das nossas matas. Nesse sentido, os índios de cordão pareciam saídos “da imaginação de algum estrangeiro. A curiosa ‘coroa’ circular e o saiote, ambos feitos de penas, pouco têm a ver com o habitante original do Brasil. O fato se explica através da visão que o europeu tinha do nosso índio.”502 Idealizações semelhantes, conforme visto no Capítulo III. 1. 2 deste trabalho (aquele dedicado à análise d’O Guarani, de José de Alencar), ocorriam no campo da literatura, especialmente durante o governo de Pedro II, Imperador que financiou pesquisas e produções literárias sobre o universo indígena, algo ainda pouco conhecido na época, que jazia trancafiado nas gavetas do exotismo. Se nas bibliotecas triunfava o índio modelo de nobreza, porém, nas ruas do Rio de Janeiro ouviam-se “gritos roufenhos” e o estourar de tacapes contra o chão: os black indians tupiniquins expressavam a selvageria indômita dos aimorés de Alencar, vilanizados, em oposição à honradez e à subserviência de Peri. Em outras palavras, estavam mais para “canibais anarquistas” que para guerreiros de alma pura e valores cortesãos. Inseridos no secular quadro de disputa espacial que ajudou (e ajuda) a definir o carnaval carioca, no contexto do advento e da solidificação da República (fins do século XIX e início do século XX), os índios de cordão viram a corda arrebentar para o seu lado: foram considerados perigosos, massacrados pela imprensa (o Jornal do Commercio, por exemplo, noticiou, em 11 de fevereiro de 1902, um conflito entre cordões que resultou em duas mortes; o mesmo periódico, em 15 de fevereiro de 1904, descreveu o Grupo Teimosos das Chamas, enfatizando o caráter selvagem dos “seus índios ferozes e terríveis, dançando e cantando no meio de silvos estridentes, gritos e

501 RIO, João do. Cordões. In: A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 142. 502 FERREIRA, F. Obra citada, p. 291. 228

imprecações.”503) e metaforicamente chutados para fora da folia, levando pontapés de pierrôs e colombinas afrancesados.504 Passaram por um processo de apagamento simbólico semelhante ao ocorrido em Salvador e descrito por Fred Góes, que atribui ao modelo de carnaval cercado por cordas e dominado por “blocos burgueses, prepotentes e milionários”505, na segunda metade do século XX, o fim de organizações populares negras de inspiração indígena, como os Apaches do Tororó. No Rio de Janeiro da Belle Époque, buscava-se um modelo de carnaval “civilizado”, de inspiração francesa (o padrão a ser seguido era o carnaval de Nice, com suas batalhas de flores e bailes esplendorosos). Os cordões representados pelos cucumbis não se adequavam a esse modelo de “folia regrada”, o que levou o poder público a reagir por meio de seu braço armado: a polícia entrou em cena, disposta a acabar com a arruaça. Em 1904, contra o suposto vandalismo praticado pelos foliões de saiotes e cocares, a imprensa noticiava que “o cordão que não exibisse licença, quando solicitada por uma autoridade policial, seria levado com todos os seus componentes (...) para a polícia central (...).”506 No decorrer dos anos 20, quando o movimento modernista sacudiu São Paulo e reverberou na então capital da República, o Rio de Janeiro, o apreço pelo indianismo e pela negrofilia, como observado no Capítulo III. 1. 3, ganhou os círculos intelectuais. A temática tribal tanto virou tema de conferências como decoração de bailes carnavalescos – além de, novamente, dominar a cena literária, gerando ótimas produções, como o transgressor Macunaíma. Nas ruas cariocas, entretanto, os cordões agonizavam; reinavam o Corso, os Ranchos e as Grandes Sociedades. O modelo de folia em ascensão era o das escolas de samba, que teve o seu primeiro “concurso oficial” (mais para disputa de sambas que para desfiles nos moldes contemporâneos) em 1932, ano que autores como Felipe Ferreira consideram essencial para se compreender o processo de modificações que deu ao carnaval carioca uma “cara” próxima àquela ainda vista hoje, quase cem anos depois. Em 1932, além do concurso dos desfiles das escolas de samba, realizado na Praça Onze, o então prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, firmou acordo com o Touring Club; ambos, a prefeitura e a entidade privada, fariam parcerias com órgãos da imprensa e organizaram o carnaval da cidade, conferindo à

503 Ibidem, p. 287. 504 Tal é a ideia presente em uma charge publicada na revista Careta de 20 de fevereiro de 1909, na qual se vê um pierrô branco dando um pontapé no traseiro de um índio de cordão, que tomba derrotado. In: CUNHA, M. C. P. Obra citada, p. 388. 505 GÓES, F. Obra citada, p. 42. 506 CUNHA, M. C. P. Obra citada, p. 196 229

festa um caráter internacionalista. Com a criação da “Comissão Executiva dos Festejos”, a folia carioca passou a ser discutida em termos turísticos e globais, produto a ser vendido que, para isso, carecia de uma organização rígida. Foi elaborado, pela primeira vez, um “programa oficial das atividades carnavalescas”, composto por eventos como o “Banho de Mar à Fantasia”, o “Dia dos Blocos”, um “Concurso de Marchas, Sambas e Músicas Carnavalescas”, um “Corso de Automóveis” e uma “Batalha de Flores e Confete em Copacabana.”507 Faltava um monumental bal masqué, na linha das suntuosas festas venezianas; o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, na Avenida Rio Branco, emprestaria o seu interior aos maiores bailes de fantasiados que a cidade já viu, tradição que durou de 1932 a 1975, contando com decorações assombrosas de artistas como Fernando Pamplona. A oficialização da folia a princípio foi um sucesso, rendendo elogios desenfreados da imprensa e, no plano contrário, críticas dos saudosistas que temiam pelo fim da espontaneidade carnavalesca – algo que, sabemos hoje, não ocorreu.508 O símbolo desse novo modelo de folia para inglês ver, entretanto, não seria o índio, mas um casal até hoje a dançar no imaginário cultural do Rio de Janeiro: o malandro de camisa listrada e chapéu panamá e a mulata baiana de “requebros febris”. Nas ruas, o índio seria visto como “mais uma” fantasia tradicional da folia popular, junto a dezenas de outros tipos que até hoje saem de casa nos dias de carnaval. Na visão de Roberto DaMatta, a existência de fantasias de índios nos carnavais populares do Brasil decorre do fato de que os personagens carnavalescos são “figuras periféricas do mundo social brasileiro”509, como nobres em geral (reis, rainhas, duques), seres sombrios (caveiras, diabos, morcegos), povos distantes e exóticos (gregos, romanos, chineses, tiroleses) e “figuras liminares que o cotidiano só revela dolorosamente” (ladrões, prostitutas, palhaços, caubóis, malandros); a fantasia de índio pode ser enquadrada nessa última categoria desenhada por DaMatta, uma vez que os povos indígenas brasileiros sofreram, ao longo da história, o etnocídio de que falam Manuela Carneiro da Cunha e Darcy Ribeiro, restando à margem dos grandes centros urbanos e

507 Informações colhidas de FERREIRA, F. Obra citada, p. 321/322. 508 O melhor exemplo disso é a incrível proliferação (a imprensa costuma chamar de “renascimento”) de blocos de rua ocorrida nos últimos anos, tanto na Zona Norte quanto na Zona Sul, fenômeno sociocultural que tem gerado muitas discussões das mais variadas ordens. 509 DAMATTA, R. Obra citada, p. 62. 230

continuando a ser massacrado, no século XXI510. Felipe Ferreira fala que “as fantasias de ‘sujo’, de índios, de Clóvis irão surgir, naturalmente, no seio popular, mas sempre com um forte traço de união com as fantasias ‘tradicionais’”511, plantando a ideia de que “nossa fantasia de carnaval estará – desde sua origem até a atual apresentação de uma escola de samba na Passarela – estabelecendo uma ligação entre a cultura popular e a cultura erudita”.512 Após o breve histórico das representações do índio no carnaval carioca, chegamos, finalmente, ao desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense, assinado por Rosa Magalhães. Em um depoimento gravado em áudio para a transmissão televisiva da Rede Globo, a carnavalesca diz que o ponto de partida do desfile “é o índio; e esse índio, ele vai se transformando e ele vai aparecendo de diversas formas.” As transformações, que foram analisadas pormenorizadamente no capítulo anterior, mostram que esse índio de que fala Rosa Magalhães é um ser mutante, um símbolo plástico que se metamorfoseia e ganha diferentes contornos em diferentes momentos da vida cultural brasileira. Não se trata de um personagem unilateral, planificado, mas de um constructo multifacetado que chega a assumir posições radicalmente conflitantes: ora é o índio afilhado de Catarina de Médicis, no romantismo imperial; ora é o anarquista antropófago que refuta o “bom selvagem” dos festejos organizados para a

510 A desastrosa ação policial que levou à desocupação da Aldeia Maracanã, ao lado do estádio de mesmo nome (que então era reformado para os jogos da Copa das Confederações de 2013 e Copa do Mundo de 2014), em 22 de março de 2013, é um exemplo disso; a truculenta repressão levada a cabo pela Polícia Militar, a mando do governador do Estado, Sérgio Cabral Filho, atraiu olhares da imprensa internacional para a questão dos índios urbanizados do Rio de Janeiro que ocupavam o prédio do antigo Museu do Índio Darcy Ribeiro, pleiteando a criação de uma Universidade Indígena, voltada para o ensino de saberes tradicionais. A chuva de bombas de efeito moral, o gás lacrimogêneo e os tiros de balas de borracha denunciaram a falta de trato para com as pautas indigenistas e mostraram que, na visão dos governantes e de boa parte da população carioca (proliferaram-se, nas redes sociais, comentários indignados, pregando o retorno dos índios às florestas ou a prisão sumária de todos), os índios tendem a permanecer à margem. No dia 22 de abril do ano 2000, dia das comemorações dos “500 anos do Brasil”, em Brasília, índios que marchavam em direção à Esplanada dos Ministérios também foram massacrados; a imagem dos índios feridos manchou as comemorações oficiais e, assim como ocorreria treze anos depois, expressou o não- lugar do índio na sociedade brasileira contemporânea. Naquele ano, o carnavalesco Chico Spinosa, à frente da escola de samba , protestou contra a marginalização dos índios na última alegoria do desfile sobre a chegada dos portugueses ao Brasil: dominava o carro uma escultura de índio destroçado. Também no ano 2000, Renato Lage, então carnavalesco da Mocidade Independente de Padre Miguel, se referiu à questão de maneira menos agressiva, no carro Abre-Alas do desfile sobre as cores da bandeira do país e as riquezas (materiais e imateriais) evocadas por elas: dialogando com a canção Um índio, de Caetano Veloso, levou para a avenida uma nave espacial tripulada por índios que sobreviveram ao massacre secular e encontraram abrigo nos confins do espaço sideral. Nos anos 80, Fernando Pinto ironizou com maestria as políticas governamentais para com as terras indígenas nos enredos Como era verde meu Xingu e Tupinicópolis. Décadas depois, a pauta de reivindicações permanece extensa e resistência é a palavra de ordem. 511 FERREIRA, F. Obra citada, p. 101. 512 Ibidem, p. 101. 231

recepção da rainha francesa, em 1550. O enredo de 2002, nesse sentido, é sintético: funde, em uma mesma narrativa, as visões contrastantes que permitem a reinvenção do índio repetidas vezes. Uma sofisticação criativa da artista, que, nos enredos anteriormente desenvolvidos para a Imperatriz Leopoldinense, apresentou índios menos problemáticos. No período de 1992 a 2002, a figura do índio apareceu nos enredos Não existe pecado abaixo do Equador (1992), Marquês que é Marquês do sassarico é freguês (1993), Catarina de Médicis na Corte dos Tupinambôs e Tabajères (1994), Imperatriz Leopoldinense honrosamente apresenta: Leopoldina, Imperatriz do Brasil (1996), Quase no ano 2000 (1998), Brasil, mostra sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae (1999), Quem descobriu o Brasil, foi seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval (2000) e, é claro, Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way! (2002), totalizando oito vezes. Lançar olhos para o caráter desse personagem em cada uma das narrativas é a tarefa a ser realizada, importante para se pensar o enredo de 2002 enquanto representativo de um imaginário. Não existe pecado abaixo do Equador, enredo de 1992, é uma alegoria ao descobrimento da América, tendo Cristóvão Colombo como personagem central. O índio aparece na abertura (algumas composições do carro Abre-Alas estavam fantasiadas de índios, resumindo o universo do enredo ao redor da coroa, símbolo da escola, então decorada com flores, frutos e papagaios) e na segunda metade do desfile (após a chegada do navegante europeu ao território americano). No carro alegórico de número 08, que representava o Éden tropical, duas grandes peças escultóricas misturavam referências a obras renascentistas de Michelângelo, como o Adão de A criação de Adão, o mais famoso afresco do teto da Capela Sistina, no Vaticano, e a escultura Aurora, feita para o túmulo de Lorenzo de Médici, em Florença, com pinturas corporais e grafismos indígenas típicos das Américas (com destaque para a América Central de maias e astecas; viam-se, por exemplo, representações carnavalescas das serpentes emplumadas, entidades cultuadas pelos povos pré-colombianos da região centro-americana). Penas de papagaios também decoravam as esculturas, que apareciam cercadas por aves tropicais, tamanduás e ramas carregadas de flores e frutos de maracujá, o fruto da árvore do bem e do mal, na versão edêmica tupiniquim. Nas

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palavras de Rosa Magalhães, parafraseando Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso513,

a fruta, causa da perdição de nossos primeiros pais, não foi com certeza a maçã, que só cresce em outras latitudes, nem foi a banana, ou menos ainda a figueira índica, como se pensou a princípio; a fruta da árvore do bem e do mal só podia ser o maracujá, chamado de "Grenadilla” nas Índias de Castela, que pelo aroma, sabor e pela beleza de sua flor, já era capaz de acender o apetite de Eva.514

Sérgio Buarque de Holanda, pai do cantor e compositor Chico Buarque, um dos autores da canção que empresta a ideia do título do enredo de 1992515, conta que os clichés do “mundo sem mal”, a crença de que havia um paraíso terrestre já presente no imaginário do medievo, foram projetados no território americano quando da chegada dos primeiros navegadores europeus. Tal é o mote para o visual das fantasias da segunda metade do desfile, que mesclavam roupas ibéricas renascentistas com tangas e penachos. As composições da última alegoria, Dádivas do paraíso (representação do inverso da moeda: os produtos americanos, como milho, feijão, pimentão, tomate, cacau, fruta do conde, abacaxi, batata, abacate e maracujá, sendo levados para a Europa em um navio) exibiam, no alto corporal, cocares indígenas com penas brancas e verdes, mangas bufantes renascentistas com detalhes em dourado e corpetes em pontas, típicos dos bufões e nobres carnavalescos. No baixo corporal, saias com grafismos astecas e tornozeleiras com penas. Segundo Felipe Ferreira, nessas vestimentas de recortes temáticos bem demarcados “a alegoria da fusão de duas culturas, a européia e a centro- sul americana, é representada pela aproximação de elementos de cada uma delas.”516 Outro recurso visual utilizado pela artista, a fim de reforçar a ideia de fusão517, foi “o contraste entre o brilho dos cetins e lamês e a opacidade das penas”.518 Três alas do

513 Ver HOLANDA, S. B. de. Visão do Paraíso. São Paulo: Editora Brasiliense, 2002. 514 MAGALHÃES, R. Não existe pecado abaixo do Equador. Histórico do enredo encontrado no Livro Abre-Alas da LIESA de 1992, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 515 Trata-se da canção Não existe pecado ao sul do Equador, de Chico Buarque e Ruy Guerra, originalmente composta para o musical Calabar. 516 FERREIRA, F. O Marquês e o Jegue – estudo da fantasia para escolas de samba, p. 129. 517 Não apenas Felipe Ferreira fala em fusão, mas Alfredo Bosi, que, ao analisar O Guarani, observa o sequinte: “Na sua representação da sociedade colonial dos séculos XVI e XVII Alencar submete os pólos nativo-invasor a um tratamento antidialético pelo qual se neutralizam as oposições reais. O retorno mítico à vida selvagem é permeado, no Guarani, pelo recurso a um imaginário outro. O seu indianismo não constitui um universo próprio, paralelo às fantasias medievalistas européias, mas funde-se com estas. Duas paralelas, ensina a geometria, nunca se tocam. Mas aqui não é bem de espírito geométrico que estamos falando...” In: BOSI, A. Obra citada, p. 180. 518 FERREIRA, F. Obra citada, p. 129. 233

desfile representavam índios, sem maiores especificações: Índio I (habitante das Américas), Índio II (habitante do Éden) e Índio III (morador do paraíso). No samba de enredo, composto por Tuninho Professor, Jurandir, Edinho e Nilson Melodia, o refrão de meio colocava os selvagens americanos em evidência: “O canto do índio ecoou, ê, ô, ê, ô / Vem do ar, vem do ar / E, livre, a floresta se encantou / Eh, mirá!” Procedimento criativo análogo ao observável em algumas fantasias de índios do desfile de 1992 pode ser visto em 1994, ao longo do desfile que materializou o enredo Catarina de Médicis na Corte dos Tupinambôs e Tabajères, o campeão daquele carnaval. A diferença, de acordo com Felipe Ferreira, reside no fato de que alguns figurinos de 1994 não apresentavam áreas de influências bem delimitadas, ou seja, não era possível afirmar ao certo aonde começava o índio e aonde terminava o cortesão – “elementos da cultura européia e da cultura indígena brasileira se fundiam num resultado curiosamente híbrido.”519 Os figurinos assim concebidos adquiriam uma rica ambivalência, posicionando-se “a meio caminho entre a indumentária renascentista e a indumentária indígena.”520 Nessas fantasias, ao invés de um cocar ou de uma coroa, a carnavalesca fundiu as duas coisas: a coroa também era cocar e vice-versa. Mais do que trabalhar em cima da oposição entre os reis da França e os índios do Brasil, Rosa Magalhães preferiu, a começar pelo título (o uso dos termos tupinambôs e tabajères, “a forma como se pronunciaria na França o nome das tribos indígenas brasileiras tupinambás e tabajaras. Uma representação fonética de uma relação cultural.”521), fundir os dois universos e criar uma alegoria geral da influência que o índio brasileiro supostamente exerceu na França pré-revolucionária. Grosso modo, o desfile apresentou duas variações de fantasias de índios: de um lado, franceses vestidos de índios, usando saiotes de balé (ou seja: uma fantasia dentro da outra, como nas duas alas de mesmo nome: Francês vestido de índio); de outro, “índios índios”, os selvagens brasileiros “legítimos”, representados, explicitamente, em seis alas: Índios na pesca, Índio caçador (duas alas), Índio guerreiro (duas alas) e Índio dançarino, estas com vestes mais próximas das fantasias de índio convencionais, com malhas pintadas e tangas de penas. O enredo justifica a diferenciação, pois, segundo o texto de Rosa Magalhães, apenas 50 índios brasileiros foram levados (ou “aceitaram o convite para a festa”, como ela diz) para Ruão, número pequeno se comparado à

519 Ibidem, p. 132. 520 Ibidem, p. 132. 521 Ibidem, p. 125. 234

grandiosidade do evento. Dada a necessidade de mais pessoas para as encenações de danças tribais, caçadas e batalhas, cerca de 250 marinheiros franceses teriam se fantasiado de índios e literalmente entrado na dança. O resultado: “na praça, se agitavam 300 homens (os 50 índios brasileiros e 250 marinheiros franceses, fingindo de índios), todos nus e enfeitados à moda dos selvagens.”522 Na visão alegórica do desfile, enquanto os índios, fakes ou naturais, bailavam entre os pavilhões cenográficos especialmente construídos para a festa (com motivos como seres marinhos e onças pintadas), a nobreza, abrigada em tendas, aplaudia embasbacada aquele festival de estranhamentos. De acordo com a autora, “a festa fez tanto sucesso que pediram bis, e, no dia seguinte, tudo foi representado novamente, para alegria da platéia.”523 A cena foi traduzida em cenário carnavalesco na sétima alegoria do desfile, A corte aplaude a dança dos índios, na qual brincantes com roupas de nobres se misturavam a elementos da natureza d’além mar, sob os estandartes que decoravam a tenda, observando composições seminuas - os índios do Brasil. Na alegoria de número 08, O índio é acima de tudo um forte, a carnavalesca materializou a imagem da força natural dos índios e dos seres das florestas, animais e vegetais (com destaque para os jacarés com bocarras abertas, que, além do desfile de 2002, apareceram em 1992, no carro do Boitatá, em 1996, no carro sobre o fascínio que a Imperatriz Leopoldina passou a nutrir para com a arte indígena brasileira, em 1998, nas fantasias da ala que representava o índio brasileiro, e em 1999, no carro sobre o volume da obra pictórica Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae que reuniu imagens dos animais selvagens brasileiros – ou seja: o jacaré é um símbolo recorrente nos desfiles de acento indígena de Rosa Magalhães, no período de 1992 a 2002). Uma grande escultura de índio guerreiro em posição altiva condensava o título do carro, claro diálogo com Euclides da Cunha. A frase que abre o capítulo III, O sertanejo, da segunda parte de Os Sertões, intitulada O Homem, é, sem dúvidas, uma das mais contundentes (e parafraseadas) afirmações da literatura brasileira: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte.”524 Rosa Magalhães se apropriou da máxima euclidiana e

522 MAGALHÃES, R. Catarina de Médicis na Corte dos Tupinambôs e Tabajères. Histórico do enredo encontrado no Livro Abre-Alas da LIESA de 1994, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 523 Ibidem. 524 Na sequência do texto, o autor afirma que o sertanejo é desgracioso, desengonçado e torto, um “Hércules-Quasímodo”, sujeito que traz no aspecto a “fealdade típica dos fracos.” É um homem que se apresenta permanentemente fatigado, passando aos observadores as sensações de preguiça e imobilidade. 235

ressignificou-a, traçando um paralelo entre a força do sertanejo e a bravura do índio. O enredo apresentava o selvagem, portanto, como um ser corajoso, resistente e forte: modelo de integridade física e moral, na linha de Peri e Ubirajara. O refrão principal do samba de enredo composto por Márcio André, Alvinho, Aranha e Alexandre da Imperatriz exultava: “Sou índio, sou forte / Sou filho da sorte / Sou natural / Sou guerreiro, sou a luz da liberdade / Carnaval!” Ao final do cortejo, desenhava-se uma das mais complexas relações que se pode estabelecer entre os índios brasileiros e o Velho Continente: aquela calcada na suposição de que os selvagens das nossas matas influenciaram sobremaneira a inteligência francesa e exportaram ideais que culminariam na Revolução de 1789, sob a tríade Liberté, Égalité, Fraternité. Na sinopse do enredo, a autora afirma:

O relato que acabamos de fazer, a respeito dos 50 índios do Brasil que foram fazer uma estada momentânea num dos pontos mais freqüentados da França, não ficará somente como um momento na relação dos dois países; o Brasil tornou-se presente na literatura do século XVI, quando Montaigne exalta a pureza de costumes do "bom selvagem", entendendo que a civilização dos índios do Brasil era mais compatível com a natureza do homem. O selvagem, com seus defeitos e virtudes, era muito mais livre e invejavelmente mais feliz. Naquela época, todo dia era dia de índio. Os anseios do povo francês são inspirados neste comportamento: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.525

Na Defesa do tema escolhido, a questão é retomada:

E este fato (a festa brasileira em Ruão, em 1150, narrada na obra Une fête brésilienne celebrée à Rouen em 1550, de Ferdinand Denis) influenciou a narrativa do escritor e filósofo Montaigne. Ele tomou conhecimento dos índios e de seus costumes não só através da festa de Ruão, mas também por causa de seu mordomo, que viveu mais de 10 anos no Brasil. A teoria sobre o ser em seu estado mais puro, "o bom selvagem", seria mais tarde retomada por J. J. Rousseau,

Porém, e eis a justificativa da máxima, a primeira impressão engana: por debaixo da casca de desgraça e fatiga está um homem capaz de se transfigurar, podendo adquirir o “aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.” In: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Campanha de Canudos. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d., p. 80. Se pensarmos que até hoje os índios são vistos, por muitas pessoas, como sujeitos preguiçosos e com tendências à fraqueza de caráter (visão mais do que preconceituosa, frisando), o diálogo que Rosa Magalhães estabelece com Euclides da Cunha se torna ainda mais pertinente: ela desconstrói tal primeira impressão equivocada e exalta os índios enquanto modelos de força – eles, também, titãs do Brasil. 525 MAGALHÃES, R. Obra citada. 236

influenciando diretamente os ideais do povo francês por Liberdade, Igualdade e Fraternidade, lema de que se orgulham até hoje.526

Nessa parte do desfile, os nomes de Michel de Montaigne e Jean Jacques Rousseau saltam aos olhos do espectador e ofuscam a rainha Catarina de Médicis. Mais do que dançar para a realeza da França, os índios brasileiros teriam plantado, lá, as sementes do pensamento que viria, mais de duzentos anos depois, explodir nas ruas de Paris, com a Tomada da Bastilha e a queda do Antigo Regime. A temática é trabalhada com pormenores na obra O índio brasileiro e a Revolução Francesa – as origens brasileiras da teoria da bondade natural, de Afonso Arinos de Melo Franco, livro que não é referenciado por Rosa Magalhães. O autor apresenta uma descrição minuciosa da festa brasileira de 1550 (que, num átimo de modéstia, ele considera “resumida”), revelando detalhes curiosos, como o fato de que os índios possivelmente pertenciam a apenas uma tribo (segundo Ferdinand Denis, eram somente tupinambás da costa da Bahia). Além disso, atenta para o fato de que não somente os reis franceses viram as danças tribais de índios, marinheiros e prostitutas completamente nus, às margens do Sena, em um cenário paradisíaco onde até as árvores nativas da campina francesa sofreram intervenções decorativas e passaram a exibir flores e frutos artificiais, imitando a natureza tropical brasileira; a pitoresca celebração tribal foi testemunhada pela rainha da Escócia, Maria Stuart, pelos embaixadores da Espanha, da Alemanha, da Inglaterra, de Portugal e de outras nações européias, por um conjunto de bispos, arcebispos e cardeais e por “vários duques e príncipes de sangue real.”527 Em suma: a nobreza européia como um todo e o alto escalão da Igreja Católica bateram palmas para o festim dos verdadeiros e falsos tupinambôs e tabajères. Na ótica do pesquisador, um acontecimento de tamanha magnitude certamente mexeu com a visão que os europeus despejavam sobre os povos das terras recém-descobertas. Rosa Magalhães concorda com isso, uma vez que afirmou, na defesa do tema, que a festa “marcou definitivamente a história da França”528 e representou o primeiro grande diálogo entre as culturas brasileira e francesa. Sabiamente, o pesquisador não cai na tentação (que permanentemente espreita os estudos carnavalescos) de buscar conexões automáticas entre um fato e outro, no caso, a

526 Ibidem. 527 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O índio brasileiro e a Revolução Francesa. As origens brasileiras da teoria da bondade natural. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Topbooks, s.d., p. 87. 528 MAGALHÃES, R. Obra citada. 237

festa de Ruão e a produção de obras como A Tempestade, de Shakespeare, ou mesmo Dos Canibais, de Montaigne, este temporalmente mais próximo da época em que a festa ocorreu.529 Numa linha analítica bem fundamentada, Afonso Arinos procura problematizar os possíveis efeitos que a ideia genérica de “bom selvagem” também presente na festa causou na mentalidade européia, especialmente em Montaigne e Rousseau530, deixando claro que as encenações de 1550 não representam uma causa única e imediata, antes um símbolo em meio a uma teia de imbricações histórico- culturais.531 A narrativa do enredo de Rosa Magalhães, nesse ponto, é mais imediatista –

529 Alexandrino Filho, especialista em Montaigne, explica, no estudo intitulado Aporia canibal, que o percurso que levou o ensaísta francês a redigir Dos Canibais é mais complexo do que aquele que a história costumeiramente conta – e tende a atribuir diretamente à festa de Ruão. Nas palavras do teórico, “desde as pesquisas de Gilbert Chinard, no começo do século XX, a crítica tem lido o ensaio Dos Canibais com olhos suspeitosos. O pesquisador francês provou que Montaigne enxertou várias frases de diversos parágrafos dos comentários que o tradutor Urbain Chauveton fez ao discurso de Girolamo Benzoni, um italiano que, aos 22 anos, partiu para conhecer a América e se tornou posteriormente num de seus historiadores, com a Nova histórica do Novo Mundo. Tratava-se de considerações acerca das possíveis origens do continente. Montaigne editou alguns desses parágrafos, suprimindo algumas frases, fazendo pequenas alterações em outras, mas mantendo ipsis litteris as demais. Não se tratava apenas de uma descoberta de fontes. Seu maior valor consistia em mostrar que o escritor havia aparentemente mentido quando afirmara ter-se contentado com as informações de um empregado doméstico seu que teria vivido ‘dez a doze anos’ no Brasil, no Rio de Janeiro (...), além daquelas obtidas junto a marinheiros e comerciantes que visitaram o país (...).” O autor conclui afirmando que se deve ler Montaigne “sob o signo da desconfiança metódica” e que “em se tratando de Montaigne, é difícil, porém, não admitir que ele leu livros sobre o Brasil, mais provavelmente o de André Thevet e o de Jean de Léry.” In: FILHO, Alexandrino. Aporia Canibal. In: FILHO, A. (Org.). Montaigne e seu tempo. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2012, p. 118/119. 530 A conexão entre ambos os teóricos é referendada por Afonso Arinos de Melo Franco, para quem “a voz discreta de Montaigne, e o seu eco ampliado a séculos de distância, nos brados dolorosos de Jean Jacques Rousseau, constituem, de fato, os mais importantes elos desta cadeia de ideias que procuramos reconstituir.” In: FRANCO, A. A. M. Obra citada, p. 164. 531 Outro fato que teria contribuído para isso foi a nebulosa entrada de Carlos IX em Bordeaux, em 09 de abril de 1565, durante a qual teriam desfilados três grupos de “selvagens” brasileiros – índios que supostamente teriam conversado com o rei e com o próprio filósofo, que relatou ter perguntado aos “canibais” sobre a maneira como as lideranças indígenas eram recebidas ao visitar aldeias estrangeiras (em outras palavras, Montaigne queria saber como eram as “entradas reais” indígenas). A comprovação de que tais diálogos aconteceram carece de fontes, mas é fato que Montaigne participou da entrada e relatou-a como acontecida em Ruão, dado que, segundo Alexandrino Filho, precisa ser melhor estudado porque bastante curioso. O que parece claro ao pesquisador é que a entrada ocorreu em Bordeaux (há outros relatos de época sobre isso, como o registro feito pelo primeiro-escrivão do Parlamento), até porque a cidade de Ruão vivia um clima de instabilidade social muito grande, o que impedia a realização de um cortejo régio. A instabilidade culminou no episódio conhecido como Cerco de Ruão, iniciado em maio de 1562, quando, em meio aos conflitos religiosos entre católicos e protestantes que sacudiam a Europa, a cidade se viu tomada de assalto por cerca de 500 protestantes que invadiram a prefeitura, roubaram armas e trancaram as portas de comunicação com o mundo exterior. Somente em 26 de outubro daquele ano o exército real teria conseguido fazer um rombo nos muros da cidade, que foi invadida e pilhada pelos soldados. Segundo relatos da época, cerca de quatro mil pessoas foram assassinadas; o estado em que a cidade se encontrava era deplorável, muito diferente do esplendor vivenciado doze anos antes, quando da triunfal entrada dos reis de França. O viajante Nicolas Durand de Villegagnon, fundador da França Antártica brasileira, participou dos conflitos, ferindo-se em combate. Alguns dos ensaios sobre a violência e a natureza humana redigidos por Montaigne, intelectual que tomava partido nos conflitos 238

o que se justifica, afinal, a autora buscava o máximo de expressividade narrativa num pequeno espaço de desenvolvimento (a rigor, uma alegoria e uma ala, o fechamento do desfile), sem falar na necessidade de um mínimo de clareza e legibilidade (é importante reforçar a ideia, já exposta quando das discussões sobre o Modernismo e a Tropicália, de que um enredo de escola de samba, por mais embasado teoricamente que seja, não é nem deve ter a pretensão de ser uma dissertação acadêmica). O que se viu, na Passarela do Samba, foi a alegoria Montaigne escreve seus ensaios e a floresta invade sua imaginação e a ala Os anseios do povo francês enquanto representações carnavalescas dos efeitos que a festa de Ruão possivelmente teve sobre os pensamentos de Michel de Montaigne e, posteriormente, Jean Jacques Rousseau. O destaque Samuel Abrantes representou Montaigne em um escritório renascentista repleto de livros, espaço de racionalidade que se via tomado pela vegetação tropical brasileira, galhos, folhagens e cipós – um contraste e uma disputa espacial – ou seria uma fusão? Metaforicamente, a sala com os livros e alfarrábios pode representar a mentalidade do ensaísta e a razão europeia como um todo, ambas as estâncias envolvidas pela selva. Tal imagem justapõe natureza e cultura e bem sintetiza as ideias expostas em Dos canibais, ensaio em que Montaigne, baseando-se em fatos e costumes (a crítica que pode ser feita a ele, conforme aponta Luiz Costa Lima, em Limites da Voz), relativiza a “selvageria” da alteridade, exalta a coragem dos indígenas e, para utilizar de um anacronismo, antecipa a visão multiculturalista da antropologia pós- Malinowski. Subjetivamente, o filósofo põe em xeque conceitos naturalizados, como a desigualdade social e a acumulação de bens. Faz-se um elogio à sociedade sem Estado, algo que apareceria com outras cores no final do desfile de 2004, quando Rosa Magalhães fechou a apresentação da Imperatriz Leopoldinense com a Utopia, de Thomas More, idílica ilha onde crianças brincam com joias, uma vez que o ouro não possui valor: não há o culto à propriedade privada. Montaigne, por meio de afiadas reflexões, mostra que existem diferentes possibilidades de se enxergar a realidade e desmascara certas posturas europeias consideradas mais bárbaras que as práticas antropófagas dos habitantes da América. Ao final do ensaio, irônica e brilhantemente, devora o próprio texto ao inverter o foco da observação e relativizar o discurso até então defendido, assumindo o olhar do branco europeu, arraigado aos valores do Velho

religiosos (assumia posição católica, inclusive tendo sido acusado de “catolicismo radical”), teriam sido motivados pela matança do Cerco de Ruão. Ver FILHO, A. Obra citada. 239

Mundo: “Tudo isso é, em verdade, interessante, mas, que diabo, essa gente não usa calças!”532 Ironia semelhante se faz presente na sinopse do enredo de 2002, na qual, como visto anteriormente, Rosa Magalhães assume a voz de Oswald de Andrade e expulsa do coreto o “índio tocheiro de Catarina de Médicis”, ou seja, o índio que oito anos antes foi “homenageado” por ela mesma e rendeu um título de campeã à Imperatriz Leopoldinense. Em reportagem especial da Revista Manchete de 26 de fevereiro de 1994, posterior aos desfiles e à apuração das notas dos jurados, a artista foi coroada A Deusa dos Tupinambôs – e posou para uma foto a ostentar um imenso cocar amarelo do tal índio de Catarina de Médicis.533534 Não se está diante de um paradoxo? Ainda na alegoria final do desfile de 1994, as composições, vestindo tangas e cocares de penas em verde e amarelo (sobre o chapéu de Montaigne também havia um penacho indígena), exibiam faixas com as cores da Revolução Francesa (que ainda tremulam na bandeira daquele país), bleu, blanc et rouge (azul, branco e vermelho, cores que representavam, respectivamente, a liberdade, a igualdade e a fraternidade do lema revolucionário). Rosa Magalhães fundia, nos corpos dos desfilantes, as cores dos índios e as cores da França, numa referência à possível materialização política do ideal do “bom selvagem” que vivia em estado de liberdade, igualdade e fraternidade na terra sem mal do Novo Mundo. Estrutura parecida com a do último carro do desfile gresilense de 1994 pode ser vista na sétima e última alegoria do desfile de 1999, que encerrou a apresentação do enredo (igualmente campeão) Brasil, mostra sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. A carnavalesca alegoricamente recriou uma das salas da Biblioteca Jaguelônica, em Cracóvia – Polônia, onde os livros que formam a coleção que dá nome ao enredo foram encontrados pelos pesquisadores C. Sprague Smith e P. Whitehead, em 1972, após séculos de esquecimento, dentro de caixas de madeira que também guardavam manuscritos originais de composições de Mozart, Bach e Brahms –

532 MONTAIGNE, M. Obra citada, p. 203. 533 Ver DEO, Bianca. Rosa Magalhães, a Deusa dos Tupinambôs. Reportagem publicada na Revista Manchete n. 2186. Rio de Janeiro: Editora Bloch, 26 de fevereiro de 1994, p. 76/77. 534 Imagem semelhante é vista na capa do livro Montaigne e seu tempo, que reúne ensaios sobre o autor de Dos Canibais redigidos por diferentes pesquisadores, com organização de Alexandrino Filho. Na capa, há um desenho do rosto de Montaigne emoldurado por um grande cocar em verde, amarelo e vermelho, em contraste com o rufo renascentista. 240

um tesouro da arte mundial.535 No carro, as pilhas de livros e as caixas de madeira se misturavam a folhagens e animais das florestas brasileiras, como onças pintadas, cobras e jacarés. As composições representavam índios, os “homens felizes que viviam nas matas”536, na visão idílica do samba de enredo. Nas laterais da biblioteca, grandes livros se abriam feito portas; de dentro deles, saíam homens vestidos de índios – mais uma vez, o selvagem e o acadêmico, o ágrafo e o letrado, o primitivo e o erudito se misturavam. No restante do desfile, índios também apareceram no primeiro e no quarto setores: entre o carro Abre-Alas, Nobreza holandesa no Brasil, e a alegoria 02, Albert Eckhout pinta os tipos brasileiros (que possuía composições fantasiadas de índios, holandeses e negros, sob a justificativa de que “o pintor holandês pintou os tipos brasileiros: a negra, a índia e a mulata”537), a ala 04 representava os retratos de índios pintados por Eckhout538; entre as alegorias 03 e 04, três alas representavam caboclinhos com aves brasileiras (tucanos, araras e pássaros em geral). As roupas desses grupos temáticos, porém, mesclavam elementos indígenas, como cocares e adornos de penas, com referências ao universo das pinturas de Eckhout539 (molduras douradas, por

535 Nas palavras da carnavalesca: “Os quatro volumes do Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae (icones aquatilium, icones volatilium, icones animalium e icones vegetalium), tiveram uma história bastante extraordinária, sendo, até onde se pode constatar, a primeira fonte fidedigna da América (não fantasiosa) pintada por um olhar europeu. Em 1652, este acervo fazia parte do presente enviado por Mauricio de Nassau-Siegen a Frederico Guilherme, Eleitor de Brandemburgo, permanecendo nesta biblioteca por cerca de 300 anos. Quando veio a Segunda Guerra Mundial, a Biblioteca foi evacuada, todo o seu precioso acervo colocado em cinqüenta caixas. Uma dessas caixas foi parar numa pequena vila, território alemão durante a guerra, que posteriormente se tomaria Polônia. Por lá ficaram e foram dados como perdidos, escondidos nas sombras do tempo. Um pesquisador do Museu de História Natural de Londres, que pesquisava peixes da América do Sul, queria identificar um, descrito em 1640, durante a ocupação holandesa. Ele sabia da existência de um grande número de pinturas feitas pelos artistas trazidos pelo Príncipe Nassau-Siegen, e tinha conhecimento de se tratar de material de extraordinária beleza. Em 1972, após muito pesquisar, Whitehead acabou localizando-os na Biblioteca Jaguelônica, junto com os manuscritos originais de músicas de Mozart, como o primeiro Cosi fan tutti, Casamento de Fígaro (3 e 4 atos), manuscritos de Bach e Brahms. Finalmente o Brasil foi redescoberto através desta obra de valor incalculável para os estudiosos de nossa terra. Louvor seja dado ao bibliotecário que ficou tomando conta e protegendo um acervo tão precioso.” In: MAGALHÃES, R. Brasil, mostra sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. Histórico do enredo encontrado no Livro Abre-Alas da LIESA de 1999, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 536 A letra original do samba de enredo composto por César Som Livre, João Estevam, Walter Honorato e Eduardo Medrado cantava: “Homens felizes vivendo nas matas / imagens do meu Brasil.” 537 MAGALHÃES, R. Obra citada. 538 Sobre a produção artística do “Brasil flamengo”, ver: BRIENEN, Rebecca Parker. Albert Eckhout. Visões do Paraíso Selvagem. Obra Completa. Rio de Janeiro: Capivara Editora, 2010. 539 Curiosamente, não há registros sobre a obra de Albert Eckhout anterior à passagem pelo Brasil de Nassau, o que levanta a dúvida sobre qual motivo levou o Conde holandês a convidar o pintor a embarcar com ele para o Brasil, em 25 de outubro de 1636. Além de Eckhout, o pintor de paisagens Frans Post acompanhou a equipe. Os mais importantes trabalhos realizados por Eckhout no Brasil são 24 pinturas atualmente expostas no Museu Nacional de Copenhague. “Oito telas grandes são retratos de corpo inteiro de brasileiros: um índio Tarairiu ou Tapuia, uma mulher Tarairiu, um índio Tupinambá, uma mulher Tupinambá com sua criança, um guerreiro negro, uma mulher negra com sua criança, um homem mestiço 241

exemplo) e aos festejos populares de Pernambuco (fitas, rendas, bordados e babados). Os índios da alegoria final mais se pareciam com a visão tradicional dos selvagens e com as imagens encontradas na abertura do volume Icones Animalium Brasiliae, que se propunha a classificar taxonomicamente os bichos observados pelos holandeses, “desde os homens até os insetos”540. Na apresentação do Tomo ao “Sereníssimo e Poderosíssimo Príncipe e Senhor Dom Frederico-Guilherme Marquês de Brandemburgo, Camareiro-Mor do Sacro-Romano Imperador e Príncipe Eleitor Etc Etc Etc”, a justificativa: “O presente tomo inclui as imagens dos animais a começar pelo homem que, sendo o chefe deles, deve vir em primeiro lugar. Em seguida vem o macaco, o maior imitador do homem e como que seu histrião.”541 Os índios pintados pelos holandeses dançavam na alegoria, seminus, sem peças decorativas associáveis à presença do branco. Índios semelhantes aos apresentados anteriormente, ou seja, “filtrados” pelas lentes europeias e inseridos no imaginário do homem branco, coloriram o sétimo setor do desfile de 1996, representando o trecho do enredo Imperatriz Leopoldinense honrosamente apresenta: Leopoldina, Imperatriz do Brasil que falava do encantamento que a primeira esposa de Pedro I, a arquiduquesa austríaca Carolina Josefa Leopoldina, da casa dos Habsburgos, nutriu pela natureza selvagem do Brasil e pelos homens de pele morena que viviam embrenhados nas florestas. Na visão da carnavalesca Rosa Magalhães, quando chegou ao Brasil, em 05 de novembro de 1917, a já Imperatriz Consorte do Brasil (o casamento com Pedro I ocorrera por procuração, em Viena, em 13 de maio de 1817) verificou que as instalações reais brasileiras eram muito simples, na

e uma mulher mameluca. Outra tela retrata uma dança Tapuia e outras 12 telas, que são quadradas, mostram as mais importantes plantações brasileiras. Três telas menores retratam enviados congoleses. Estas 24 telas eram parte de um presente de Maurício de Nassau para o Rei Frederico III da Dinamarca. (...) Nenhuma outra pintura dos anos de Eckhout no Brasil é conhecida.” As obras do pintor que compõem o Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae são desenhos e esboços a óleo feitos sob encomenda de Nassau; “(...) são estudos dos nativos brasileiros, animais, plantas e frutas. Eles fazem parte de uma grande e importante coleção de brasiliana que o Conde levou para casa quando voltou para os Países Baixos em 1644. A maioria desses desenhos, se não todos, foram dados ou vendidos por Maurício de Nassau para Frederico-Guilherme, eleitor de Brandemburgo, em 1652. Juntamente com a obra brasileira feita por outros artistas, foram incluídos na supostamente chamada Libri Picturati, anteriormente na Biblioteca Estadual Preussische, Berlim, e agora na Biblioteca Jaguelônica em Cracóvia.” In: DUPARC, J. Frederik. Albert Eckhout. In: TEIXEIRA, Dante Martins (org. científica). Brasil – Holandês. Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. Tomo I. Rio de Janeiro: Editora Index, 1995, p. 58/59. 540 TEIXEIRA, D. M. (org. científica). Brasil – Holandês. Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae – Icones Animalium Brasiliae. Tomo V, p. 02. 541 Ibidem, p. 04. 242

verdade simplórias, se comparadas ao magnífico luxo dos palácios austríacos de Hofburg e Schönbrunn; porém,

se havia esta grande discrepância, por outro lado a natureza rica e generosa ofuscava tudo o que ela já havia visto. Tudo a interessava: os minerais, os animais, a flora, etc., e enviava para Viena exemplares da arte plumária indígena e tudo o mais que podia coletar, para mostrar ao pai onde era esse reino tão encantado e desconhecido.542

Trata-se de uma leitura romatizada da relação estabelecida entre a nobre austríaca e as rústicas terras tropicais. As fantasias das alas do sétimo setor, após uma alegoria que representava a chegada da Imperatriz ao Rio de Janeiro (fato que foi retratado por Jean-Baptiste Debret em pintura que serviu de referência visual para a carnavalesca, o que será abordado no próximo capítulo), mostravam animais brasileiros na visão indígena, como o tatu, o macaco, o peixe e a capivara. Na oitava alegoria do cortejo, intitulada A natureza e os índios encantam D. Leopoldina, viam-se animais selvagens, como os jacarés, grandes cocares e leques adornados com penas de aves brasileiras e sobreposições de grafismos indígenas e estamparias animais, como as peles de onças. Novamente, dialogavam referências a estudos indígenas feitos por Debret – uma releitura da indumentária de silvícola, agora sob as lentes do grande nome da Missão Artística Francesa. A visão panorâmica até aqui apresentada permite afirmar que, dentro do indianismo carnavalesco observável nos dez primeiros anos em que Rosa Magalhães esteve à frente da Imperatriz Leopoldinense, há um bloco temático que reúne representações de selvagens sob a ótica europeia – ibérica, em 1992, francesa, em 1994, austríaca (e também em certo grau francesa, dado o componente debretiano), em 1996, e holandesa, em 1999. Nos desfiles dos anos 1993, 1998 e 2000, o índio ganha conotações diferentes, expressando discursos menos presos à materialidade dos registros visuais das páginas da História, coletados nas bibliotecas e nas salas de museus. Um olhar cuidadoso sobre tais variações se faz necessário. Inseridos na narrativa do enredo Marquês que é Marquês do sassarico é freguês, levado à avenida em 1993, os índios assinados por Rosa Magalhães, que tinha Viriato Ferreira por figurinista, eram releituras de índios originalmente concebidos pelo

542 MAGALHÃES, R. Imperatriz Leopoldinense honrosamente apresenta: Leopoldina, Imperatriz do Brasil. Histórico do enredo encontrado no Livro Abre-Alas da LIESA de 1996, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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carnavalesco Fernando Pinto, na década de 80, em enredos como Tropicália Maravilha (1980), Como era verde meu Xingu (1983) e Tupinicópolis (1987), na escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. A artista descreveu Fernando Pinto, um dos três carnavalescos homenageados no enredo sobre as transformações pelas quais passou o carnaval carioca, do Entrudo à Passarela do Samba, de modo econômico: “Juntando as coisas mais heterogêneas, como índios, motociclistas, embalagens, etc., (Fernando Pinto) conseguiu inovar muito o carnaval carioca.” O trecho diz quase nada sobre as provocativas invencionices carnavalescas do artista pernambucano que se dividia entre os barracões de escolas de samba, os estúdios de gravação musical e os palcos (trabalhou com os , por exemplo), mas insinua, é inegável, o contraste entre “primitividade” (índios) e “contemporaneidade” (motociclistas e embalagens) caro aos modernistas e, posteriormente, aos tropicalistas, como visto nos capítulos anteriores. A irreverência de Fernando Pinto levou-o a criar figurinos indígenas pouco convencionais, adicionando às visões tradicionais do tipo, representadas pelo conjunto cocar e tanga, referências às estéticas das “tribos urbanas”, principalmente no que tange ao movimento punk (cabelos arrepiados de cores gritantes, vestes rasgadas, tênis nos pés). Na apresentação do enredo de 1987 isso fica evidente:

O enredo Tupinicópolis tem no reaproveitamento da cultura da civilização indígena brasileira seu principal objetivo e conteúdo. Utiliza o termo tupiniquim não somente para designar uma tribo, mas também como um coletivo indígena e principalmente para traduzir uma filosofia típica nacional, o Tupiniquismo: De tudo que é ou passa a ser tupiniquim. Do ato de Tupiniquizar. Tupinicopolizar. Tupinicópolis, o carnaval, é a visualização de uma grande metrópole indígena. Tupinicópolis, a taba de pedra. É um carnaval de ficção científica tupiniquim, retro-futurista, pós-indígena. O New Eldorado. Tupinicópolis tem sua pseudo-origem baseada na justa e real demarcação das terras indígenas. Nessas terras, ricas terras, foram descobertas riquezas naturais infinitas, que foram comercializadas e industrializadas pelos próprios índios. E as ocas se multiplicaram e as tabas se agigantaram e assim nasceu Tupinicópolis, a lendária cidade índia do Terceiro Milênio. O desfile segue o cotidiano da cidade. Dia, noite e dia, enfocando o dever, o lazer, o prazer dos tupinicopolitanos. E o lixo. O carnaval utiliza a forma e a linguagem da própria literatura indígena, onde os índios convivem e se relacionam com os animais, conduzindo, assim, o carnaval para uma empostação fabulista que dá mais tropicalismo e brasilidade ao espetáculo. A arte indígena brasileira é revisitada e revivida na estética pós-Marajoara Tupinicopolitana. A moda é o Tupi Look. É a Era do

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Tupi Power. É a cultura Tupiniquim falando para o mundo via Tupinicópolis.543

Uma leitura superficial do texto de Fernando Pinto mostra que o carnavalesco praticamente escreveu um adendo ao Manifesto Antropófago de 1928. Numa linha oswaldiana bem demarcada, repleta de brincadeiras linguísticas, contrastes e frases de efeito, aparece a imagem de um índio cosmopolita que não vive nos confins do “mato virgem”, mas em uma metrópole pós-industrial. A expressão “carnaval de ficção científica tupiniquim, retro-futurista, pós-indígena” revela que o autor estava disposto a misturar em um mesmo liquidificador (imagem presente na alegoria que representava um shopping-center da cidade, o Shopping Boitatá; as composições do carro, inclusive, ostentavam liquidificadores, frutas e televisores nas cabeças, tudo revestido de prata) referências à cultura pop contemporânea e ao indianismo convencional, produzindo uma vitamina de sabor incomum: um carnaval de temática indígena que refutava qualquer classificação e rotulação determinista, uma vez que os rótulos apresentados pelo próprio artista (como retro-futurista e pós-indígena) estavam mergulhados na ironia das contradições tão apreciada pelos grandes artistas. Ironia também estruturante da menção à “pseudo-origem baseada na justa e real demarcação das terras indígenas”: ora, a questão das terras indígenas é um espinho em nossa goela política até hoje, permanecendo os índios à deriva do projeto desenvolvimentista que secularmente privilegia os interesses do agronegócio, para focar em apenas um dos inimigos dos “donos da terra.” A metrópole Tupinicópolis, nesse sentido, é uma utopia paradoxalmente distópica, afinal possuía os mesmos problemas de qualquer outro grande conglomerado urbano do mundo, como a concentração de renda e o lixo, tema da última alegoria do desfile. A menção ao Terceiro Milênio, obsessão de Joãosinho Trinta, dá ao texto um acento finissecular interessante: a urbe de estética pós-Marajoara revelava marcas decadentistas. Os índios urbanóides de Fernando Pinto carregavam em seus cocares um imenso peso político: o bom entendedor percebe que Tupinicópolis não é uma simples homenagem aos índios (o que soaria esquisito, uma vez que os índios estariam sendo “homenageados” por meio da emersão no universo do homem branco; universo ressignificado graças ao imaginário indígena, é claro, mas ainda assim tendo

543 PINTO, Fernando. Tupinicópolis. Sinopse do enredo de 1987 da Mocidade Independente de Padre Miguel, disponível no sítio http://www.galeriadosamba.com.br/carnavais/mocidade-independente-de- padre-miguel/1987/7/. Acesso em 02/11/2013. 245

por horizonte material – bancos, shoppings, casas noturnas, prostíbulos, farmácias, estádios de futebol, concursos de miss, paradas militares, etc. - o “mundo caraíba”) ou uma gratuita sobreposição de elementos conflitantes, mas uma feroz crítica à cultura, à sociedade e à política contemporâneas – arte de vanguarda. Devido ao caráter inédito de sua produção, no contexto dos desfiles das escolas de samba cariocas, e da sedutora plástica empregada, Fernando Pinto é costumeiramente “invocado” em desfiles carnavalescos; na maioria das vezes, como não poderia deixar de ser, pela Mocidade Independente de Padre Miguel (no período de 2003 a 2013, por exemplo, ele apareceu explicitamente em quatro desfiles da escola, em 2003, 2006, 2010 e 2011; indiretamente, foram feitas referências à estética do criador de Tupinicópolis em outras três apresentações; 2004, 2007 e 2013. O enredo para 2014 se chama Pernambucópolis e tem como personagem condutor ele, Fernando Pinto, que convida o público a uma viagem pelo estado de Pernambuco). As menções aos trabalhos do artista, porém, tendem a esvaziar o componente político das obras originais, sem o qual o conjunto de desfiles idealizado pelo “carnavalesco tropicalista” se torna apenas uma sucessão de belas imagens nada vanguardistas – abacaxis, araras e coqueiros esvaziados, como esbravejou Hélio Oiticica. Em termos distintos, Fernando Pinto tende a ser pasteurizado e resumido ao visual de suas criações; os discursos transgressores acabam neutralizados.544 O oitavo setor do desfile assinado por Rosa Magalhães em 1993 é um exemplo de saudação a Fernando Pinto realizada por uma agremiação para a qual o carnavalesco não chegou a emprestar sua arte. O tom festivo/elogioso dissociado do viés político original permeia as três alas fantasiadas de índios (Índio com bandeira, Índio com

544 A quase necessidade de invocar Fernando Pinto, nos últimos carnavais da Mocidade Independente, tem gerado algumas situações incongruentes do ponto de vista político, como em 2011, quando o enredo Parábola dos divinos semeadores, do carnavalesco Cid Carvalho, terminava com uma referência explícita ao enredo Ziriguidum 2001, carnaval nas estrelas, assinado por Fernando Pinto (e campeão) em 1985. A narrativa do desfile falava dos festejos surgidos ao redor da agricultura, da Antiguidade Clássica ao futuro (daí o gancho com Ziriguidum 2001, que, ironicamente, expressava uma visão de futuro dos anos 80 – sendo, portanto, passado). Estaria tudo mais ou menos bem não fosse o fato de que o enredo era patrocinado pela Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária, cuja presidente é a senadora pelo Tocantins Kátia Abreu, famosa inimiga das propostas de demarcação de terras indígenas que atendem aos interesses dos índios, além de “ganhadora” de vários “prêmios” Motosserra de Ouro, sob a acusação de contribuir para o enfraquecimento da legislação que protege as florestas brasileiras do desmatamento. Fernando Pinto, que, no período de cinco anos (1983 a 1987), fez dois enredos profundamente críticos no que tange à situação das florestas brasileiras e às questões indígenas (Como era verde meu Xingu e Tupinicópolis), aprovaria a referência ao seu trabalho em um desfile financiado pelos interesses da “bancada ruralista”? 246

cabeça de onça545 e Índio com patins e walkman) e a nona alegoria do desfile, cujo título sintetiza o motivo do setor: Homenagem a Fernando Pinto. Se pensarmos que apenas três carnavalescos mereceram homenagens no desfile, Arlindo Rodrigues, Fernando Pinto e Joãosinho Trinta, desenha-se a constatação de que Rosa Magalhães realmente admira o artista. Na alegoria, índios sobre motocicletas com jaquetas de couro e saiotes de penas circundavam uma reprodução da alegoria do “tatu-tanque” de Tupinicópolis, um dos carros que ajudavam a compor o desfile das Forças Armadas da cidade fictícia. As composições femininas, com os seios nus, ostentavam grandes cabeças de araras nos cocares; os boás amarelos que caíam dos punhos dialogavam diretamente com a estética de Fernando Pinto, que usava e abusava de perucas de metalóide e boás multicoloridos. Índios festivos também rodopiaram no desfile gresilense do ano 2000, inseridos no último setor do enredo Quem descobriu o Brasil, foi seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval, sobre a chegada da esquadra portuguesa ao território brasileiro, em 1500.546 Por ocasião das comemorações dos 500 anos do Brasil, todas as escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro abordaram temas ligados à história brasileira. Alguns carnavalescos, como Alexandre Louzada, da Estação Primeira de Mangueira, optaram por recortes bastante específicos: o artista, com base no belíssimo trabalho realizado pelo historiador Eduardo Silva, contou a história de D. Obá II, personagem instigante do Segundo Império, negro, morador de cortiços, amigo de Pedro II e figura importante para a causa abolicionista. Outras agremiações, como a Beija-Flor de Nilópolis, propuseram voos panorâmicos sobre os 500 anos da história brasileira – no caso da escola nilopolitana, um voo espiritualista, baseado em textos psicografados por Chico Xavier. A Imperatriz Leopoldinense de Rosa Magalhães,

545 Felipe Ferreira analisou tal fantasia, afirmando que “sob o pretexto de homenagear o carnavalesco Fernando Pinto, Rosa Magalhães criou uma fantasia que irá unir, num mesmo contexto, o animal e o humano. A pele da onça e a “pele” do homem civilizado – esta, simbolizada por uma casaca – irão se harmonizar num conjunto onde predominam as cores da bandeira brasileira. Também em relação à forma a oposição será efetuada, contrapondo-se a casaca e a faixa presidencial à bermuda informal. Coroando o conjunto, uma cabeça de onça sobre um cocar indígena representaria o domínio da natureza sobre o homem político, numa proposta de solução característica de Fernando Pinto.” In: FERREIRA, F. Obra citada, p. 131. 546 O desfile gresilense do ano 2000 é o pano de fundo do premiado documentário Imperatriz do carnaval, do cineasta Medeiros Schultz. O filme, narrado pelo pesquisador Sérgio Cabral e tendo Felipe Ferreira como produtor, mostra os preparativos do desfile que levou a escola de samba do bairro de Ramos ao terceiro bicampeonato da sua trajetória (antes, isso havia ocorrido em 1980 e 1981; e em 1994 e 1995. É preciso destacar que o bicampeonato 1999-2000 viria a se tornar tricampeonato em 2001, após a vitória do desfile sobre a cana-de-açúcar e a cachaça), da escolha do enredo e da apresentação da sinopse aos compositores à abertura dos envelopes do júri, durante a apuração das notas. 247

defendendo o título do ano anterior (conquistado com o enredo sobre o Brasil holandês e o Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, tema que bem poderia ter figurado no ano 2000), optou por contar o início da história “oficial” brasileira e celebrar o primeiro desembarque na terra indígena (título da sexta alegoria do desfile) enquanto gênese de um povo miscigenado. É o que a carnavalesca dizia no texto de apresentação do enredo:

Um dia, surgiram algas em grande quantidade, como tapetes flutuantes; chamavam-se botelhos. Os rabos de asno, um emaranhado de ervas felpudas, também foram vistos, junto com uma profusão de gaivotas conhecidas como fura-buxos, sinais claros da proximidade com a terra. Em 22 de abril de 1500 avistou-se a paisagem. Em 23 de abril, num pequeno barco, desembarcaram alguns tripulantes: um intérprete que falava hindu e árabe, um grumete da Guiné e um escravo de Angola, além de vários portugueses. Havia homens de três continentes conhecidos. De todo modo, os tripulantes do batel concluíram que nunca tinham visto homens como aqueles. Não era a primeira vez que os portugueses se deparavam com selvagens desnudos, mas era a primeira vez que tais homens não eram negros. Estava descoberto o Brasil. E no encontro desses homens, o branco, o negro e o índio, esboçava-se a origem do povo brasileiro. Aí, Peri beijou Ceci... e mais tarde chegaram outros povos, alemães, gregos, italianos, judeus ucranianos, chineses, japoneses, polacos, árabes, espanhóis. E cá estamos nós, revivendo essa história que aconteceu há 500 anos, dois meses depois do Carnaval!547

A chegada de Cabral e dos marinheiros portugueses ao solo da “terra dos papagaios” é vista como síntese da formação da gente daqui, mistura de que fala Darcy Ribeiro ao começar a Introdução de seu texto maior, O povo brasileiro: “Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos.”548 A bem pensada escolha lexical (confluência, entrechoque e caldeamento) aponta para uma relação originária complexa, não de todo pacífica e igualitária: no primeiro parágrafo do livro, o embate se faz presente. A visão de Rosa Magalhães é diferente, mais amena e festiva – passível de ser resumida em marchinha de Lamartine Babo, compositor que, pelo traço de Arlindo Rodrigues, deu à Imperatriz Leopoldinense o título de bicampeã do carnaval carioca, em 1981, após o inédito campeonato

547 MAGALHÃES, R. Quem descobriu o Brasil, foi seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval. Histórico do enredo encontrado no Livro Abre-Alas da LIESA de 2000, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 548 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 19. 248

conquistado com um enredo sobre a Bahia, em 1980. A referência a Lamartine, portanto, não apenas expressa a visão alegre da autora do enredo, mas surge enquanto homenagem à escola e lembrança vitoriosa – um indício de influência da “memória” e da “tradição” da escola de samba no trabalho da carnavalesca, ponto que será esmiuçado no próximo capítulo. Com a predominância das cores vermelha e amarela, o penúltimo carro do desfile do ano 2000, após uma sequência de quatro alas de índios economicamente justificadas como “os donos da terra”, exaltava a beleza da arte plumária, das cerâmicas e das pinturas corporais das tribos brasileiras. “Os botes desembarcam na terra e encontram a civilização indígena”549, expunha o roteiro entregue aos jurados. No último setor, a união das etnias seria tratada sob a ótica carnavalesca, no bloco temático formando pelas fantasias Rei Momo, Navegantes portugueses, Índios, Africanos e Baianinhas, terminando a festa na alegoria Sambando com a Imperatriz... na festa do Descobrimento. Verde, amarelo e ouro predominavam, coroando a festa a figura do rei do carnaval e o chapéu de palhinha de Lamartine Babo, cuja escultura, na parte traseira do carro, acenava discretamente. O tom de celebração, ora mais ora menos carnavalizado, se faz presente em todas as variações de indígenas apresentadas até aqui. As versões mais carnavalizadas são aquelas que fantasias sobre fantasias de índios (sejam os índios de Fernando Pinto, os marujos franceses fantasiados de índios ou os índios de carnaval misturados às comemorações dos 500 anos do Brasil), análogas aos índios de cordão estilizados do setor tropicalista de 2002. Os índios do Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, os índios sob os olhos de Leopoldina e os índios encontrados pela esquadra de Cristóvão Colombo possuem menos purpurina, mais parecidos com os índios do setor sobre O Guarani, romantizados, em Goitacazes... Sobre todos, porém, o cocar celebratório é depositado; e nenhum adquire maior expressividade narrativa que o índio de 1998, estrategicamente inserido no final do desfile, arrematando o enredo Quase no ano 2000. Após uma sequência de enredos históricos que levou para a avenida algumas visões para com o passado brasileiro, Rosa Magalhães decidiu, em 1998, olhar para o futuro – e para o futuro global. Melhor dizendo, decidiu olhar para as visões de futuro construídas no passado, no cinema e na literatura. A narrativa, de acento distópico, começava afirmando que, às portas do ano 2000, “ninguém vai ao trabalho voando, a

549 MAGALHÃES, R. Obra citada. 249

não ser no sentido figurado. O tal foguetinho nas costas afinal não aconteceu, apesar dos filmes futurísticos fictícios.”550 Muitos futurólogos, na visão da carnavalesca, erraram feio em suas previsões; outros pensadores, como Júlio Verne e H. G. Wells, acertaram:

Das previsões para o século 20, muito foi dito, mas a despeito de previsões econômicas, de bolas de cristal e outros jogos de adivinhações (...) os que mais acertaram foram os escritores de ficção, que me perdoem os outros. Júlio Verne previu viagens aéreas, os submarinos, o aumento da expectativa de vida, novas fontes de energia. H. G. Wells acertou na mosca com os aviões, tanques e bombas atômicas.551

As visões de cineastas como Fritz Lang e Ridley Scott, nos cults Metrópolis e Blade Runner552, respectivamente, não se refletiam na realidade do final do Segundo Milênio, muito menos tecnológica do que o cinema sugeria. Apesar disso, as bombas atômicas (às quais também se referiu Renato Lage, no crítico porém esperançoso final do desfile da Mocidade Independente de 1996, Criador e Criatura) eram a materialização do terror, potencial destrutivo que, fora das telas do cinema e das páginas da literatura, parafraseando Rosa Magalhães, não têm a menor graça.553 O que os ficcionistas não conseguiram prever, segundo a autora, é que as maiores preocupações do início do século XXI estariam relacionadas à preservação ambiental. A consciência ecológica não foi prevista por profetas e cientistas, que, mais preocupados com hecatombes, robôs e carros voadores, não conseguiram enxergar que as plantas, as águas, os animais, a preservação dos ecossistemas seria o foco das discussões do milênio vindouro. A penúltima alegoria do desfile se chamava As plantas e as águas; a última, Os animais e os povos. Justamente nesse ponto, sob a justificativa de que “o futuro está batendo à nossa porta, mas, antes de tudo, o futuro do homem é o futuro da

550 MAGALHÃES, R. Quase no ano 2000. Histórico do enredo encontrado no Livro Abre-Alas da LIESA de 1998, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 551 Ibidem. 552 Sobre o assunto, Alfredo Suppia possui um estudo em que propõe o diálogo entre Metrópolis e Blade Runner, afirmando que ambos os filmes são “obras de ficção científica em que a narrativa futurista reveste temáticas sociais contemporâneas”. Ver: SUPPIA, Alfredo. A Metrópole Replicante. Construindo um diálogo entre Metrópolis e Blade Runner. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2011, p. 14. 553 Disse a carnavalesca, na sinopse do enredo: “Engrenagens, porcas, parafusos e circuitos de robôs representam os prazeres da dominação sem culpa, ou a escravidão sem culpa. Na verdade, os propulsores individuais e os carros aéreos são a materialização do velho sonho de voar, que os homens sempre tiveram, desde o mito de Ícaro. O desenvolvimento do ser humano por meios genéticos, parapsicológicos e cibernéticos moderniza a velha fantasia do Super Homem. E a imagem de um robô de avental jamais substituiu a figura da dona de casa. O cinema, usando a tecnologia como desculpa, reciclou velhos mitos - e se algum dia estas coisas estiverem fora da tela, não vão ter a menor graça.” In: MAGALHÃES, R. Obra citada. 250

Terra”554, aparecia triunfal a figura do índio. A primeira ala do sexto e último setor se chamava Índio – Jacaré, mostrando a relação entre os povos tradicionais brasileiros e os animais selvagens; o mais alto destaque da sétima alegoria, fechando o desfile, era Beth Gama, com a fantasia Onça negra: roupa de índio, costeiro de bela arte plumária em marrom, amarelo e azul, cabeça de onça. A alegoria final representava a união dos povos de todo o mundo em torno do ideal de preservação da natureza. Indianos e elefantes, chineses e pandas, africanos e zebras se misturavam a esculturas de golfinhos, leões, girafas, ursos. Os índios brasileiros eram identificados com jacarés e onças, um dado bastante representativo. Tais animais aparecem, nos desfiles de Rosa Magalhães, enquanto símbolos de brasilidade diretamente associados aos índios. Além das aparições em 1998, o felino que serviu de motivo para o setor dedicado a O Guarani, no desfile de 2002, também apareceu nos desfiles de 1992 (Ala 16, As onças, e alegoria 07, de mesmo nome), 1993 (Ala 21, Índio com cabeça de onça), 1994 (Ala 16, Dançarino de onça, e Alegoria 05, Carrossel francês com onças selvagens), 1996 (Alegoria 08, A natureza e os índios encantam D. Leopoldina) e 1999 (Ala 24, Maracatu com onça-pintada e Alegoria 07, Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae Icone Animalium – Livros encontrados na biblioteca da Polônia).555 No desfile do ano 2000, não apareceram onças-pintadas, mas os felinos não ficaram de fora: nas cabeças, nas botas e nos ombros dos componentes da Comissão de Frente e das composições do carro Abre-Alas, a estilização de felinos dentados remetia ao exotismo dos lugares a serem descobertos pelos navegantes portugueses; à frente da segunda alegoria, As riquezas do Samorim da Índia, convincentes esculturas de tigres brancos mostravam as garras e os dentões. Não são os tigres as onças indianas? A mensagem que subjaz a imagem de uma índia com cabeça de onça negra, no alto da última alegoria de um desfile sobre visões de futuro e preocupações ambientais, é a de que na cultura indígena pode estar o segredo para a preservação de plantas, águas e animais, o equilíbrio ambiental tão sonhado. O índio forte, filho da sorte e natural,

554 Ibidem. 555 Tamanha recorrência alimentou uma crítica estereotipada costumeiramente feita à carnavalesca, como diz Alexandre Medeiros: “Alguns tacham seu trabalho (o trabalho de Rosa Magalhães) de ‘erudito demais’, que seus carros parecem ‘caixotes empilhados’ ou que suas soluções são apenas índios, onças e cavalos. Sabiamente, sempre fez ouvidos de mercador para os falatórios e nunca deixou de se reinventar (...).” In: MEDEIROS, A. Uma Rosa para a Imperatriz do Samba. In: DINIZ, A.; FABATO, F.; MEDEIROS, A. Obra citada, p. 159. 251

unido à força do maior felino da América do Sul, sintetiza a visão elogiosa que Rosa Magalhães dedica aos selvagens, independente do enredo. O retorno às raízes tribais enquanto alternativa positiva diante das ameaças tecnológicas é parte do discurso da carnavalesca, que em momento algum retrata conflitos interétnicos, doenças, marginalização social, índios despedaçados (como no final do desfile da Unidos da Tijuca, no ano 2000, do carnavalesco Chico Spinosa), torturados e sofredores (como sugere o enredo que a Beija-Flor de Nilópolis apresentou no carnaval de 2003, intitulado O povo conta a sua história. Saco vazio não para em pé; a mão que faz a guerra, faz a paz). Expressam, os selvagens desenhados pela artista até o ano 2000, o ideal de um Brasil harmônico e miscigenado por natureza. Em 2002, dá-se a ruptura: o índio de tocheiro é refutado e o anarquista canibal rouba a cena. Mesmo assim, as tensões sociais se diluem e são ocultadas pelo colorido festivo do carnaval enquanto maior expressão da raça, o nosso tropical instinto de nacionalidade, tema que será abordado na sequência deste cortejo.

Figuras 109, 110, 111 e 112: Desfilantes da ala Índio – Jacaré, no desfile de 1998 da Imperatriz Leopoldinense, na parte final do enredo Quase no ano 2000. A fantasia mostra que o índio aparece mesmo no enredo “futurista” de Rosa Magalhães, unido a um dos animais que mais figuraram nos desfiles do período de 1992 a 2002, o jacaré. Fonte: Transmissão televisiva da Rede Globo.

252

Figuras 113, 114, 115 e 116: Detalhes das fantasias utilizadas pelos componentes da ala Índio com cabeça de onça, uma releitura da estética de Fernando Pinto, durante o desfile gresilense de 1993. Fonte: Transmissão televisiva da Rede Globo.

Figura 117: Fantasia completa da ala Índio com cabeça de onça, utilizada no desfile da Imperatriz Leopoldinense de 1993. A roupa traz a mesma fusão entre selvagem e civilizado observada na fantasia do destaque Silvinho Fernandes, utilizada na alegoria sobre a Tropicália, no desfile de 2002 (figura 80). Merece destaque a presença da onça, um dos animais associados à antropofagia, presente em 07 dos 11 desfiles observados neste trabalho. Fonte: FERREIRA, F. O marquês e o jegue, p. 131.

253

Figuras 118, 119, 120, 121, 122 e 123: Detalhes das fantasias (ala Dançarino de Onça) e da alegoria (Carrossel francês com onças selvagens) que representavam onças, no desfile gresilense de 1994. Fonte: Transmissão televisiva da Rede Globo.

Figura 124: Visão frontal da alegoria Carrossel francês com onças selvagens, a quinta do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 1994. As esculturas de onças (presentes na alegoria sobre O Guarani, no desfile de 2002), podem ser entendidas como uma recorrência nos desfiles de Rosa Magalhães do período enfocado. Fonte: Revista Manchete n. 2186. Rio de Janeiro: Editora Bloch, 26 de fevereiro de 1994, p. 09.

254

Figura 125: Detalhes da alegoria Carrossel francês com onças selvagens (1994). Onças compunham a cenografia da frente do carro, como na quarta alegoria do desfile de 2002. Fonte: Revista Manchete n. 2186. Rio de Janeiro: Editora Bloch, 26 de fevereiro de 1994, p. 09.

255

Figuras 126, 127 e 128: Detalhes da sétima alegoria do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 1999, sobre o Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. No carro, que representava os animais terrestres brasileiros e os livros encontrados na biblioteca polonesa, onças e jacarés se misturavam a pilhas de livros, folhagens tomavam o espaço luxuoso da biblioteca, índios (selvagens) ocupavam um espaço tradicionalmente associado à erudição. Fonte: Transmissão televisiva da Rede Globo.

Figuras 129, 130 e 131: Destaque Beth Gama, no alto da sétima alegoria do desfile de 1998 da Imperatriz Leopoldinense. A fantasia representava uma onça negra brasileira e exibia traços indígenas, mostrando que mesmo em um desfile de acento “futurista” o selvagem brasileiro e os principais símbolos da nossa natureza triunfavam gloriosos. Fonte: Transmissão televisiva da Rede Globo.

256

Figura 132: Visão frontal parcial da última alegoria do desfile gresilense de 1994, intitulada Montaigne escreve seus ensaios e a floresta invade sua imaginação. Além do contraste entre natureza brasileira e erudição francesa, merecem destaque as fantasias dos índios, que apresentavam faixas com as cores da França revolucionária (azul, branco e vermelho), representando a ideia de que na festa brasileira em Ruão, em 1550, estariam as sementes dos ideais que embasaram a Revolução de 1789. Fonte: Revista Manchete n. 2186. Rio de Janeiro: Editora Bloch, 26 de fevereiro de 1994, p. 05.

257

Figura 133: Recorte da alegoria A corte aplaude a dança dos índios (1994). Flores e frutos tropicais serviam de cenário para a dança dos selvagens brasileiros que seduziram a nobreza francesa. Fonte: Revista Manchete n. 2186. Rio de Janeiro: Editora Bloch, 26 de fevereiro de 1994, p. 24.

258

Figura 134: Visão parcial da alegoria A natureza e os índios encantam D. Leopoldina, a oitava do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 1996. A pele de onça, a estilização (visão totêmica) de animais brasileiros, a arte plumária e os grafismos indígenas compõem um cenário multicolorido, inspirado em algumas aquarelas de Debret. Fonte: MAGALHÃES, R. Fazendo Carnaval, p. 77.

259

Figura 135: Vista frontal da alegoria Éden, a oitava do desfile gresilense de 1992. Notam-se referências à estética pré-colombiana e à natureza tropical das Américas (papagaios, maracujás, folhas, um tamanduá), mas as esculturas que representam Adão e Eva, com pintura corporal indígena, são inspiradas em projetos renascentistas de Michelângelo. Fonte: MAGALHÃES, R. Fazendo Carnaval, p. 10.

260

Figura 136: Detalhe do afresco A criação do homem (ou A criação de Adão), de Michelângelo, no teto da Capela Sistina, Vaticano. A comparação das formas desenhadas pelo artista renascentista com a escultura do Adão indígena de Rosa Magalhães é inevitável. Fonte: Coleção Universo e Humanidade, Tomo II. São Paulo: Editora A Grande Enciclopédia da Vida, 1967, p. 270.

Figura 137: Escultura Aurora, no túmulo de Lourenço de Médici, em Florença. A peça escultórica muito se parece com a Eva indígena da alegoria de Rosa Magalhães. Fonte: Coleção Universo e Humanidade, Tomo II. São Paulo: Editora A Grande Enciclopédia da Vida, 1967, p. 266.

261

Figura 138: Visão frontal da alegoria 06, Primeiro desembarque na terra indígena, do desfile do ano 2000 da Imperatriz Leopoldinense. Na visão alegórica da cena descrita por Pero Vaz de Caminha em sua carta a D. Manuel, Rosa Magalhães abusou das cores quentes e valorizou a arte plumária e as esculturas indígenas. O momento é entendido pela autora como a primordial fusão entre brancos, índios e negros em território brasileiro – o carro, portanto, expressa um marco fundacional do nosso país. Fonte: Revista Manchete n. 2499. Rio de Janeiro: Editora Bloch, 11 de março de 2000, p. 13.

262

Figura 139: Fantasia de composição da alegoria 11 do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 1992, intitulada Dádivas do Paraíso. Na roupa, observa Felipe Ferreira, a fusão das culturas européia e centro- sul americana (também analisada por Alfredo Bosi, ao mastigar o romance alencariano) se dá da seguinte maneira: “De um lado o cocar indígena, de outro a manga renascentista e o ‘corpete’ em pontas. A ‘saia’ irá contrastar sua forma – que remete à cultura asteca – com seu material – tecidos luxuosos simulando adamascados e materiais preciosos. Outro recurso utilizado é o contraste entre o brilho dos cetins e lamês e a opacidade das penas – co cocar e nas pernas.” Fonte: FERREIRA, F. O marquês e o jegue, p. 129.

263

V – Viva nós, os brasileiros!

Terra ... abençoada de encantos mil De Vera Cruz, de Santa Cruz, Brasil Iluminada é nossa terra O Branco, o negro e o índio No encontro, a origem da nação E hoje minha escola é toda raça Convida a "massa" e conta a nossa história São 500 anos vivos na memória De luta, esperança, amor e paz556

(Marquinhos Lessa, Guga, Tuninho Professor, Amaurizão e Chopinho)

Oh! Mundo tão desigual Tudo é tão desigual Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô! Oh! De um lado esse carnaval De outro a fome total Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô Ô!

(Gilberto Gil – A novidade)

Na sinopse do enredo de 1996, Imperatriz Leopoldinense honrosamente apresenta: Leopoldina, Imperatriz do Brasil, Rosa Magalhães assim explicou o processo histórico que desembocou na proclamação da Independência do Brasil, em 07 de setembro de 1822:

Napoleão foi vencido e Portugal exigia a volta da corte. D. João relutava em partir, havia se acostumado com o Brasil, gostava dele. Preferia enviar D. Pedro (...). Ele cá ficaria. Leopoldina não aceitou tal decisão. Estava grávida e não queria se separar do marido. Depois de muita discussão, D. João viu- se obrigado a voltar, deixando aqui, para governar o Brasil, D. Pedro e sua esposa. Já havia nos portugueses, porque eram portugueses os habitantes do Brasil, um sentimento de nacionalismo. D. Pedro, por sua vez, era liberal e adepto da existência de uma Constituição. O país continente clamava por sua soberania. Ir para Portugal ou ficar no Brasil e perder a coroa européia?; ficar num continente que não era sua pátria? Levados pelas ideias liberais, os portugueses (nós éramos portugueses) se sentiam brasileiros. D. Pedro é chamado de volta a Portugal. O Brasil estava prestes a virar colônia novamente. D. Pedro

556 Trecho do samba de enredo apresentado pela Imperatriz Leopoldinense no carnaval de 2000, sobre a chegada da esquadra de Cabral ao Brasil, intitulado Quem descobriu o Brasil, foi seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval. 264

viajara e Leopoldina, como era de costume, assumiu o comando do país. Em carta a D. Pedro, impele-o a proclamar a Independência. Nos tornamos brasileiros. Foi feita uma bandeira, por Debret. D. Pedro compôs o hino e o sentimento de brasilidade aflorou abertamente no coração de cada habitante do Brasil. D. Pedro, Imperador do país-continente; Leopoldina, Imperatriz do Brasil, mãe dos brasileiros. E nós, viva nós, os brasileiros!557

Em cotejo com o histórico do enredo de 2002, o foco deste trabalho, refulge a exclamação final (“E nós, viva nós, os brasileiros!”), tão festiva quanto a série de vivas! que encerra a sinopse de Goitacazes..., fragmento da letra da canção Tropicália, de Caetano Veloso. Na música e no texto apresentado ao júri, Iracema, Ipanema, A banda e Carmen Miranda são exaltadas, símbolos de um país marcado pelos ritmos, pela exuberância, pelas cores, “sem medo de ser cafona.”558 Explosão de alegria que também aparece no encerramento do desfile do ano 2000, com arlequinados em verde e amarelo misturados a índios, brancos e negros, alegoria perfeita do mito da democracia racial. Dialogando com Lamartine Babo, a carnavalesca diz, no final do texto de apresentação do enredo: “Aí, Peri beijou Ceci... e mais tarde chegaram outros povos (...)”559. Seguindo a metáfora do romance indianista de Alencar, a união entre brancos e índios se dá na sutileza de um beijo, a mítica gênese do eldorado mestiço. Esta celebração do Brasil enquanto “país-continente” de maravilhas, presente no final da apresentação de 2002, nos turbantes de Carmen Miranda, também permeia o conjunto de enredos defendidos pela carnavalesca nos dez primeiros anos em que esteve à frente da Imperatriz Leopoldinense. Eis um segundo eixo temático passível de ser extraído das entranhas do Delírio tropical. Darcy Ribeiro afirma, em O povo brasileiro, que “o Brasil passa de colônia a nação independente e de Monarquia a República sem que a ordem fazendeira seja afetada e sem que o povo perceba.”560 Indiretamente, fala que as “revoluções” brasileiras foram, nos termos de Antonio Gramsci, revoluções passivas, de cima para

557 MAGALHÃES, R. Imperatriz Leopoldinense honrosamente apresenta: Leopoldina, Imperatriz do Brasil. Histórico do enredo encontrado no Livro Abre-Alas da LIESA de 1996, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 558 MAGALHÃES, R. Justificativa do enredo Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way!, encontrada no Livro Abre-Alas da LIESA de 2002 e disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 559 MAGALHÃES, R. Quem descobriu o Brasil, foi seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval. Histórico do enredo encontrado no Livro Abre-Alas da LIESA de 2000, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 560 RIBEIRO, D. Obra citada, p. 219. 265

baixo, sem a participação popular e a alteração da ordem social vigente.561 O oposto da Revolução Francesa, revolução burguesa clássica, quando os sans-culottes conseguiram abalar as estruturas da monarquia e a guilhotina decapitou o rei, a rainha e boa parte da nobreza (para tudo terminar, ironicamente, no Império de Napoleão). No Brasil, o povo permaneceu à margem das grandes transformações políticas do século XIX, apenas assistindo (quando muito) às decisões oficiais. Este dado, que para Darcy Ribeiro e os teóricos do conflito é representativo da perpetuação do abismo social existente no país desde os primeiros tempos de colônia, não encontra espaço nas narrativas de enredo de Rosa Magalhães, no período de 1992 a 2002. Na sinopse de 1996, Leopoldina é a “mãe dos brasileiros”, misto de populismo e santidade. No mesmo texto, o povo brasileiro (que era português até 1822, a autora diz e repete, a fim de reforçar a informação) é descrito como imbuído de um “sentimento de nacionalismo”, expressão associável ao volksgeist (espírito do povo) de Herder, uma das molas propulsoras do romantismo alemão. A unificação de um povo tão díspare sob o espectro nacionalista, no dizer de Darcy Ribeiro, pode afetar a visão do leitor desavisado, uma vez que mascara as fendas que historicamente separam senhores de escravos, ricos de pobres, brancos de índios e negros. Nas palavras dele, é fato que o Brasil apresenta uma certa uniformidade cultural (a língua mais ou menos homogênea, apenas marcada por sotaques locais, seria prova disso) e se constitui enquanto unidade nacional, pois está “assentado num território próprio e enquadrado dentro de um mesmo Estado para nele viver seu destino.”562 Porém, complementa,

561 Tal ideia é magnificamente metaforizada por Machado de Assis, no capítulo LXIII, Tabuleta Nova, do romance Esaú e Jacó. Na ficção, o personagem Custódio, dono de uma tradicional confeitaria do Rio de Janeiro, mandara, em novembro de 1889, fazer uma nova tabuleta com o nome do seu estabelecimento, Confeitaria do Império, porque a antiga “estava rachada e comida de bichos” (O Império decadente do samba gresilense de 1989). Mas é confirmada a Proclamação da República e o comerciante entra em desespero: apesar de ter mandado ao pintor o recado “Pare no D.”, a pintura fora encerrada e o sujeito que prestou o serviço queria cobrá-lo. Custódio, que não queria pagar duas vezes pela pintura, questiona o Conselheiro Aires sobre o caso: deveria manter do Império ou substituir por da República? Se o nome original fosse mantido, haveria o risco de o estabelecimento ser atacado pelos republicanos? Se o nome fosse alterado e o regime não durasse, o que faria com a “tabuleta nova”? Se mudasse para do Governo, os oposicionistas reagiriam como? Muitas opções são ventiladas e a angústia de Custódio aumenta. Machado constrói diálogos inspirados, revelando o temor dos cidadãos cariocas diante das notícias desencontradas; haveria o Terror da Revolução Francesa? No final das contas, uma frase do Conselheiro Aires resume a situação: “As ocasiões fazem as revoluções (...). O povo mudaria de governo, sem tocar nas pessoas.” Não houve terror, não houve participação popular nem vitrines estilhaçadas: a passagem do Império para a República foi apenas uma troca de tabuletas – uma “revolução” passiva. Ver ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. São Paulo: Ática, 2002. 562 RIBEIRO, D. Obra citada, p. 22. 266

aquela uniformidade cultural e esta unidade nacional – que são, sem dúvida, a grande resultante do processo de formação do povo brasileiro – não devem cegar-nos (...) para disparidades, contradições e antagonismos que subsistem debaixo delas como fatores dinâmicos da maior importância. A unidade nacional, viabilizada pela integração econômica sucessiva dos diversos implantes coloniais, foi consolidada, de fato, depois da independência, como um objetivo expresso, alcançado através de lutas cruentas e da sabedoria política de muitas gerações. Esse é, sem dúvida, o único mérito indiscutível das velhas classes dirigentes brasileiras. Comparando o bloco unitário resultante da América portuguesa com o mosaico de quadros nacionais diversos a que deu lugar a América hispânica, pode se avaliar a extraordinária importância desse feito. Essa unidade resultou de um processo continuado e violento de unificação política, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de toda identidade étnica discrepante e de repressão e opressão de toda tendência virtualmente separatista. (...) Subjacente à uniformidade cultural brasileira, esconde-se uma profunda distância social, gerada pelo tipo de estratificação que o próprio processo de formação nacional produziu. O antagonismo classista que corresponde a toda estratificação social aqui se exacerba, para opor uma estreitíssima camada privilegiada ao grosso da população, fazendo as distâncias sociais mais intransponíveis que as diferenças raciais.563

Quando se transpõe a análise de Darcy Ribeiro para o histórico do enredo gresilense de 1996, fica perceptível que há um espesso filtro ideológico entre o olhar da carnavalesca, a autora do texto, e o episódio socio-histórico a ser investigado. A independência do Brasil é observada de cima para baixo, através das lentes da historiografia oficial, romantizada ao extremo (a passagem “o sentimento de brasilidade aflorou abertamente no coração de cada habitante do Brasil” parece em um tom acima do necessário), bem ao gosto do projeto imperial de unificação e pacificação do país nascente, tema já abordado no capítulo dedicado a O Guarani. Viu-se, com Lilia Moritz Schwarcz, que a valorização da temática indígena foi uma das estratégias utilizadas pelos Imperadores para expandir e consolidar a ideia de que o Brasil era um país uno, bravo, belo e valoroso como o selvagem dos romances e poemas românticos.564 No que

563 Ibidem, p. 23. Grifos do autor. 564 Alfredo Bosi diz que a empreitada indianista também contribuiu para o fortalecimento do ideal de sociedade pacificada, afirmando que “no caso brasileiro, um dos veios centrais do nosso romantismo, o alencariano, também mostrou-se receoso de qualquer tipo de mudança social, parecendo esgotar os seus sentimentos de rebeldia ao jugo colonial nas comoções políticas da Independência. Passado este ciclo, qualquer medida que avançasse no sentido de alargar a tão estreita margem de liberdade outorgada pela Carta de 23 assumia ares de subversão. Assim, a reforma eleitoral e a questão servil ficaram bloqueadas desde a vitória do Regresso, em 1837 (o termo foi cunhado e assumido prazerosamente pelos conservadores) até a subida da maré liberal nos anos 60: precisamente os três decênios que viram o surgimento e o clímax da nossa literatura romântica. Observa-se em todo esse período uma espécie de 267

tange à pacificação, é Darcy Ribeiro quem anota: movimentos “meramente republicanos ou antioligárquicos”565 eram considerados separatistas e reprimidos cruelmente; ou seja: por debaixo da bandeira desenhada por Debret ocorriam banhos de sangue – Cabanagem, Balaiada, Sabinada, Revolta dos Malês e Revolução Farroupilha são os exemplos de maior amplitude, no Brasil imperial. Nos primeiros passos da República, o testemunho de Euclides da Cunha sobre a destruição do Arraial de Canudos, em Os Sertões, é um retrato de que a repressão independia do regime político, fosse coroa ou faixa presidencial, e da região geográfica, norte ou sul (outros exemplos, sulistas, são a Guerra do Contestado e a Revolta dos Mucker). Darcy Ribeiro foi preciso ao detectar que o poder político e as elites do Brasil tremem nas bases ao menor sinal de rebeldia popular, sacando a espada e partindo para a degola. Segundo o autor, este pavor do alto escalão (o medo que cede à vontade de mastigar o povo feito um gigante esfomeado) fica expresso em duas vertentes: na “brutalidade repressiva contra qualquer insurgência”566 e na “predisposição autoritária do poder central, que não admite qualquer alteração da ordem vigente.”567 Refutando o mito da “democracia racial”, não titubeia ao afirmar:

O povo brasileiro pagou, historicamente, um preço terrivelmente alto em lutas das mais cruentas de que se tem registro na história, sem conseguir sair, através delas, da situação de dependência e opressão em que vive e peleja. Nessas lutas, índios foram dizimados e negros foram chacinados aos milhões, sempre vencidos e integrados nos plantéis de escravos. O povo inteiro, de vastas regiões, às centenas de milhares, foi também sangrado em contra-revoluções sem conseguir jamais, senão episodicamente, conquistar o comando de seu destino para reorientar o curso da história. Ao contrário do que alega a historiografia oficial, nunca faltou, aqui, até excedeu, o apelo à violência pela classe dominante como arma fundamental da construção da história. O que faltou, sempre, foi espaço para movimentos sociais capazes de promover sua reversão.568

Diante da argumentação de Darcy Ribeiro (ao longo do livro, o autor apresenta inúmeros infográficos que produtos de pesquisas demográficas, a fim de provar que sua encruamento das posições liberal-radicais que levaram à abdicação de Pedro I e aos sucessos tumultuosos da Regência. O fenômeno, que já foi diagnosticado em termos de consolidação do poder escravista, não é de todo estranho às formas paradoxais pelas quais uma figura de nítido corte rousseauísta como o bom sauvage acabou compondo o nosso imaginário mais conservador. Gigante pela própria natureza, o índio entrou in extremis na sociedade literária do Segundo Império.” In: BOSI, A. Obra citada, p. 176/177. 565 RIBEIRO, D. Obra citada, p. 23. 566 Ibidem, p. 23. 567 Ibidem, p. 24. 568 Ibidem, p. 25/26. Grifo do autor. 268

verborragia está fincada em dados empíricos, colhidos da sociedade), esfacela-se a crença de que o Brasil é um país igualitário, não socialmente estratificado ou racialmente segregado569. Quando se lê o histórico do enredo de Rosa Magalhães para o carnaval de 1996, porém, tem-se a impressão do oposto, o que leva o leitor da sociologia dialética a se perguntar o porquê de a autora optar por um viés tão romantizado e preso a um imaginário elitizante, cheirando a século XIX. Uma possível resposta está contida no nome da agremiação defendida: Imperatriz Leopoldinense. No campo das construções identitárias, as escolas de samba aparecem enquanto organizações populares com identidades socialmente construídas, algumas bem demarcadas e facilmente rotuladas, como Acadêmicos do Salgueiro (a “escola com vocação para temas negros”, berço de “modernidade e inovação”), União da Ilha do Governador (a “escola da alegria e da leveza”), Mocidade Independente de Padre Miguel (a “escola da vanguarda, do futurismo e da brasilidade”), Estação Primeira de Mangueira (a “escola da tradição”, o “Flamengo do samba”), Portela (a “escola do luxo e do esplendor”), Império Serrano (a “escola engajada/sindicalizada”), Caprichosos de Pilares e São Clemente (as “escolas da irreverência e dos enredos críticos”). É claro que tais rótulos (repetidos nos sambas e defendidos pelos torcedores) limitam a

569 Os termos do autor sustentam exatamente o oposto: o povo brasileiro é dilacerado, apresentando “uma estratificação classista de nítido colorido racial e do tipo mais cruamente desigualitário que se possa conceber.” Na sequência do texto, faz um prognóstico parecido com aquele cantado pela Beija-Flor de Nilópolis em 2003, ao falar que “a tolerância pode se acabar”: “Nessas condições de distanciamento social, a amargura provocada pela exacerbação do preconceito classista e pela consciência emergente da injustiça bem pode eclodir, amanhã, em convulsões anárquicas que conflagrem toda a sociedade. Esse risco sempre presente é que explica a preocupação obsessiva que tiveram as classes dominantes pela manutenção da ordem.” In: RIBEIRO, D. Obra citada, p. 24/25. O ano de 2013, em parte, pode ser entendido como o “amanhã” (ou um prenúncio do?) de que falou Darcy Ribeiro: as chamadas “jornadas de junho” (manifestações que tiveram por estopim o aumento do preço das passagens de ônibus nas maiores capitais do Brasil, foram duramente reprimidas pela Polícia Militar de São Paulo e, depois disso, tomaram as ruas de todos os estados do país, sob as mais conflitantes pautas e as mais diferentes bandeiras – sendo, porém, unificadas pela mídia sob o rótulo de “atos contra a corrupção”) desencadearam uma onda de manifestações sociais muito expressivas, noticiadas nas primeiras páginas dos mais famosos jornais do mundo, que podem figurar como exemplos das “convulsões anárquicas” de que falou Ribeiro. Nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, especialmente, a posição inflexível da Polícia Militar e do Batalhão de Choque desencadeou inúmeros conflitos com grupos de jovens mascarados chamados Black Blocs, de inspiração anarquista. Em meio às sequências de batalhas televisionadas (repetia-se o discurso de que “a manifestação começou pacífica, mas mascarados se infiltraram na passeata e deram início à violência”), as cenas de veículos incendiados, saques, depredações de agências bancárias e ataques a prédios oficiais ganharam maior destaque que as prisões arbitrárias, sendo repetidas à exaustão nos telejornais, possivelmente para justificar ou minimizar a violência com que os manifestantes foram reprimidos. Às vésperas de novas eleições presidenciais e de uma controvertida Copa do Mundo de Futebol a ser realizada no Brasil, ainda não se pode saber qual será o futuro das manifestações. O aumento das passagens de ônibus foi revogado nas principais cidades do país, mas as pautas reivindicatórias permanecem a crescer. Para lembrar de um dos mais famosos sambas de enredo da União da Ilha do Governador, como será o amanhã?Responda quem puder! 269

complexidade da questão e podem ser facilmente rebatidos, afinal, organismos vivos que são, na rede de acordos e negociações de que fala Felipe Ferreira, as escolas de samba são entidades mutantes (no caso da São Clemente, a agremiação deixou de fazer críticas sociais contundentes há algum tempo, seguindo uma tendência geral no universo das escolas de samba – Rosa Magalhães declarou, no debate de 16 de julho de 2013, na UERJ, que hoje não há espaço, no Grupo Especial, para enredos de crítica social, o que ela lamentava). Por outro lado, parece irrefutável que o apreço pelos símbolos (como a Águia da Portela, o Verde-e-Rosa da Mangueira, a Coroa do Império Serrano e a Estrela da Mocidade) e pelos rótulos identitários (ambos colados ao conceito de tradição) fortalece as instituições, contribuindo para a aglutinação dos antigos membros, para a formação de novos torcedores e até mesmo para a comercialização de marcas e produtos. Dizem, por exemplo, que a Mangueira só desfila bem quando o verde e o rosa predominam nas fantasias. Alguém discorda disso? Pois bem: a Imperatriz Leopoldinense também possui a sua identidade, e atentar para isso pode ajudar a compreender a predisposição de Rosa Magalhães para temas históricos vestidos de pompa e romantismo, albergados pelos ideais do Império, no período estudado. A escola, segundo Felipe Ferreira, conseguiu romper, juntamente com Mocidade Independente e Beija-Flor de Nilópolis, a hegemonia das “quatro grandes”, escolas que centralizavam a disputa, alternando-se nas primeiras posições, até meados da década de 1970: Mangueira, Portela, Império Serrano e Salgueiro570. A vitória da Beija-Flor de Nilópolis, em 1976, é entendida como um “divisor de águas”: uma até então pequena escola da Baixada Fluminense, que vinha de uma sequência de enredos em louvor ao Regime Militar, contratou o carnavalesco e o diretor de harmonia bicampeões pelo Salgueiro, Joãosinho Trinta e Laíla, e desbancou as quatro favoritas, conquistando o título de campeã do carnaval com o enredo Sonhar com rei dá leão, sobre o universo dos sonhos e a relação das imagens oníricas com o Jogo do Bicho. E não parou por aí: embalada, a azul e branca seria tricampeã, levando, na sequência, os canecos de 1977 e 1978. Em 1979, seria a vez da Mocidade Independente de Padre Miguel ganhar o campeonato, com o enredo O Descobrimento do Brasil, de Arlindo Rodrigues. Mas a agremiação verde e branca da Zona Oeste não conseguiu segurar o carnavalesco campeão, que migrou para outra verde e branca, a Imperatriz Leopoldinense, escola em que desenvolveu, em 1980 e em 1981, respectivamente, os já

570 Ver FERREIRA, F. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro, p. 361/362. 270

mencionados enredos O que é que a Bahia tem? (sobre o estado nordestino) e O teu cabelo não nega (homenagem a Lamartine Babo), ambos campeões graças a desfiles de beleza plástica e empolgação indiscutíveis. As “três irmãs” “arrombaram a festa”571 e deram início a uma nova fase do desfile das escolas de samba cariocas - certamente mais disputada. Fundada em 06 de março de 1959, na chamada Zona da Leopoldina (grande região formada pelos bairros de Triagem, Manguinhos, Bonsucesso, Olaria, Penha, Penha Circular, Brás de Pina, Cordovil, Parada de Lucas, Vigário Geral e, claro, Ramos, a décima primeira estrela da bandeira gresilense), a Imperatriz Leopoldinense é, de acordo com o pesquisador Alexandre Medeiros (que foi componente da Comissão de Frente e vice-presidente cultural da Imperatriz, em diferentes momentos da “Era Rosa”), uma escola de samba nascida no “asfalto”, diferentemente das “escolas de morro” da região da grande Tijuca (Tuiuti, Mangueira e Salgueiro dos morros homônimos; Império da Tijuca do Morro da Formiga; Unidos da Tijuca do Morro do Borel; etc.), por exemplo. Na visão do antropólogo Vinícius Natal, que entrevistou Alexandre Medeiros e redigiu o artigo Samba e Cultura – Práticas de Resistência do Departamento Cultural da Imperatriz Leopoldinense (1967-1973), a aproximação com o Morro do Alemão, do complexo de favelas que recebe o mesmo nome, se deu de modo paulatino:

Como já ressaltado, um grande diferencial da escola foi o fato de não ter sido criada com base em um “morro”, e sim mais no “asfalto”. Diferentemente de outras escolas tradicionais da época que tinham suas forças em comunidades dispostas em forma de ladeira, a Imperatriz Leopoldinense nascia com um toque diferente, assumindo isso como característica identitária particular. Enfatizamos que a proximidade do Complexo de favelas do Alemão faz-se hoje importante para o esteio da instituição. Porém, o crescimento da escola e sua consequente aproximação do morro deu-se de forma gradual, não tendo feito parte de forma significativa do momento inicial de sua criação, em 1959. Visto isso, os sambistas que frequentavam Ramos e seus recantos, blocos e adjacências não pertenciam apenas a uma classe menos abastada, mas também a uma classe média, que, por sua vez, cada vez mais estreitava laços com o mundo do samba. Formava-se então, no contexto de criação da escola profundo laço entre a

571 Beija-Flor de Nilópolis, Mocidade Independente de Padre Miguel e Imperatriz Leopoldinense, as “três irmãs” do samba, são o tema do livro homônimo de Alan Diniz, Alexandre Medeiros e Fábio Fabato, mencionado anteriormente. 271

Imperatriz e a geografia da região de Ramos, que acaba por abarcar também a área da Leopoldina.572

A presença de membros da classe média (profissionais com formação superior, como farmacêuticos e médicos, além de comerciantes, militares e funcionários públicos) ao lado de representantes de profissões menos valorizadas socialmente (como pintores, ferroviários e marceneiros), na ata de fundação da escola, é interpretada, por Alexandre Medeiros, de maneira semelhante: um dos fatores que supostamente deram à Imperatriz Leopoldinense um caráter diferente daquele observado na origem das escolas menos ligadas ao “asfalto”. As opiniões revelam que, na exata transição das décadas de 1950 e 1960, estruturavam-se sobre um contingente social híbrido os alicerces de uma agremiação carnavalesca que, de acordo com Alexandre Medeiros, não ganharia apenas uma bandeira, mas uma heráldica. O autor defende que ligar a história da simbologia da entidade à arte dos brasões é perfeitamente possível, uma vez que “a coroa, o dourado, o próprio nome e os enredos históricos nos remetem ao universo de reis, rainhas e imperadores.”573 As cores teriam sido tomadas emprestadas da escola madrinha, o Império Serrano, da “corte imperiana de Madureira”574, dando sequência a uma linhagem real alviverde (o dourado foi incorporado à bandeira no final dos anos 60, por decisão do presidente Antônio Carbonelli); o nome teria vindo “na carona do trem que corta toda a Zona da Leopoldina”575, prestando homenagem à primeira esposa de Pedro I, Imperatriz que nomeou “a linha férrea que ajudou a desenvolver aquela porção de Rio de Janeiro.”576 Emprestadas as cores e definido o nome, “a escolha da coroa como símbolo maior foi feita naturalmente. O desenho é uma referência à peça do Primeiro Reinado, desenhada por Debret, e que simboliza o período de poder de Leopoldina.”577 A revisão histórica redigida por Medeiros privilegia o componente nobre, que indiscutivelmente existe, descrevendo a “Rainha de Ramos” como escola de samba de berço mais “elitizado” (simbólica e socialmente) e menos “favelado”. Felipe Ferreira ilumina com mais intensidade o componente suburbano: para ele, a Imperatriz é uma

572 NATAL, Vinícius. Samba e Cultura – Práticas de Resistência do Departamento Cultural da Imperatriz Leopoldinense (1967-1973). In: Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares – Estudos de Carnaval. V. 09, n. 01. Rio de Janeiro: Faperj, 2012, p. 185. 573 MEDEIROS, A. A Heráldica do Império Leopoldinense. In: DINIZ, A.; FABATO, F.; MEDEIROS, A. Obra citada, p. 24. 574 Ibidem, p. 24. 575 Ibidem, p. 24. 576 Ibidem, p. 25. 577 Ibidem, p. 25. 272

louvável mistura de “nobres” e “plebeus”, amálgama de origem ambígua, sem maiores ou menores influências. Em diálogo com Ricardo Lourenço de Oliveira, defende que

o GRES Imperatriz Leopoldinense possui, em sua origem suburbana, uma curiosa ligação entre a cultura popular e a cultura erudita. O próprio significado de seu nome – de procedência aparentemente nobre - na verdade “parece ter sido curiosamente inspirado no da loja de tecidos – Imperatriz das Sedas – existente próximo à estação de Ramos” (Lourenço-de-Oliveira, 1996). O dia a dia e o sonho (o comércio da esquina e o luxo imperial) encontram sua expressão comum, ao mesmo tempo prosaica e nobre. O próprio jogo de palavras insinuado no nome Imperatriz Leopoldinense deixa no ar uma ambiguidade fértil, que coloca a escola a meio caminho; por um lado, da homenagem a uma figura da nobreza imperial e por outro da orgulhosa afirmação de sua origem suburbana. Imperatriz (Uma loja? Um posto nobiliárquico?) e Leopoldinense (Uma figura nobre? Um adjetivo gentílico?) estabelecem uma relação lúdica entre conceitos opostos que reforçam a ideia da escola de samba como um local privilegiado do encontro entre a cultura popular e a cultura erudita.578

Vinícius Natal, Alexandre Medeiros e Felipe Ferreira concordam que a Imperatriz Leopoldinense foi a primeira escola de samba a se preocupar com a criação de um Departamento Cultural, algo previsto na ata de fundação, origem de uma série de enredos “baseados em pesquisas acadêmicas”579, “conceitualmente elaborados e rebuscados”580, com justificativas “redigidas com argumentação consistente e densa.”581 Natal informa que o convite realizado por Amaury Jório (em cuja casa a escola foi fundada) a Hiram Araújo, para que este integrasse a equipe de pesquisa e desenvolvimento temático, foi um passo importante para a consolidação do Departamento, que efetivamente saiu do papel em 1967. Jório, militar simpatizante do comunismo, teria garantido à escola a consciência política de esquerda (inclusive o escritor e político Fernando Gabeira, então membro do MR8, chegou a integrar o grupo), traduzida no apreço por temas ligados à brasilidade não inclinados ao regime, mas afeitos aos ideais democráticos – o que despertou o interesse de estudantes engajados na luta contra a ditadura e de intelectuais atuantes no mundo das artes.

578 FERREIRA, F. O Marquês e o Jegue – estudo da fantasia para escolas de samba. Rio de janeiro, p. 121/122. 579 Ibidem, p. 122. 580 MEDEIROS, A. A nobreza do anonimato assinado. In: DINIZ, A.; FABATO, F.; MEDEIROS, A. Obra citada, p. 42. 581 Ibidem, p. 42. 273

Medeiros é cuidadoso ao anotar que figurava entre as preocupações do Departamento a inclusão das referências bibliográficas ao final das sinopses, rigor acadêmico incomum, nas décadas de 1960 e 1970. A partir de 1969, informa o pesquisador, os textos explicativos dos enredos seriam assinados pelo Departamento de Carnaval ou pelo Departamento Cultural, aparecendo como criações coletivas inseridas em uma ousada discussão sobre os limites da autoria e as marcas características da cultura popular. Apresentada pelo Departamento de Carnaval, em 1973, a seguinte justificativa não deixa mentir:

A elaboração do enredo de escola de samba é um gênero novo que inventou seus próprios cânone e módulos. É uma arte integrada − teatro, música, cenografia, pinturas, “script” e o rebolado essencial. O que estamos chamando de “script” é a redação, se possível em prosa poética, acessível em nível popular, isto é, pedagógica, do que vai acontecer na passarela em 80 minutos – e jamais se repetirá. No Departamento de Carnaval, a produção é coletiva. O espírito de equipe prevalece sobre a autoria individual. O enredo não tem dono. Nossa jogada é pretender desmistificar a tradição narcisista que viciou a cultura, tantas vezes falsificando seus fins e traindo sua missão em favor de exibicionismo nominal e de recompensas extraculturais. Em nível superior de elaboração teórica, o Departamento de Carnaval revive assim a gratuidade do anonimato folclórico.582

Trata-se de uma reflexão aprofundada, de um viés político que nos remete às mais contemporâneas discussões sobre a gesamtkunstwerk, os direitos autorais, o patrimônio imaterial, a memória e demais temas interligados. A coletividade evocada, anota Vinícius Natal, pode ser entendida como crítica ao modelo de centralização na figura do carnavalesco, costumeiramente considerada uma das mais significativas proposições da “revolução” encabeçada por Fernando Pamplona. Alexandre Medeiros afirma que no período de 1969 a 1975 foi desenvolvida coletivamente uma sequência de temas amarrados à literatura brasileira, base para enredos que mesclavam o folclore e o texto literário, o erudito e o popular. Paralelamente, o espaço físico da quadra de ensaios era palco de ações de cunho cultural, como apresentações teatrais e mostras cinematográficas.583 O enredo de 1969 é o mais festejado do período, informalmente considerado o enredo-síntese da Imperatriz Leopoldinense: Brasil, flor amorosa de três raças. Tendo como ponto de partida o poema Música brasileira, de Olavo Bilac (poeta

582 NATAL, V. Obra citada, p. 189. 583 Vinícius Natal é quem traz a informação, coletada de depoimento de Hiram Araújo. Ibidem, p. 193. 274

que fora enredo em 1967, sob o título Vida poética de Olavo Bilac), o enredo se propunha a contar “os aspectos da contribuição de negros, brancos e índios na formação nacional (...)”584. A celebração do “Brasil mestiço”, portanto, é muito anterior à chegada de Rosa Magalhães à escola, o que dirá do festim goitacá, no Delírio tropical. Este trecho da sinopse do enredo de 1969 é um primor:

Éramos três. A terra, o amor, a doçura, a poesia e o tempo nos fizeram fraternos com as mesmas lágrimas, as mesmas alegrias, cantando as mesmas canções. E assim construímos e lideramos a maior civilização dos trópicos.585

O tom adocicado com que a miscigenação brasileira é tratada lembra o ideário do Brasil Império e o teor subjacente às sinopses redigidas por Rosa Magalhães de 1992 a 2002. Mas não se deve perder de vista o fato de que o contexto era outro; segundo Natal, em todos os enredos do Departamento “o tema da nacionalidade aparece; falar sobre o nacional, nesse caso, é reafirmar a própria identidade do grupo, que, em tempos de luta pela democracia, exaltava a nacionalidade como forma de autodefesa de seu discurso, além de reforçar sua característica cultural.”586 Lá, nos idos dos anos 60 e 70, o Brasil vivia um regime ditatorial e o nacionalismo de olhar retrospectivo dos enredos gresilenses ganhava teor democrático, em oposição ao ufanismo progressista da propaganda oficial, traduzido em sambas pela Beija-Flor; o verde e o amarelo, lá, se misturavam ao vermelho (Hiram Araújo declarou a Vinícius Natal que Amaury Jório era visto como “militar-melancia”: “verde por fora, mas vermelho por dentro”587). Na década de 90 e no início dos anos 2000, diferentemente, o Brasil gozava das liberdades constitucionais e o teor político dos enredos não se opunha ao poder constituído. Uma leitura contextualizada ainda mais aguda autoriza a suposição de que o trecho destacado da sinopse de 1969 afirma, elipticamente, que nós, as três raças, o índio, o branco e o negro em igualdade (o povo brasileiro, sintetizando), “construímos e lideramos a maior

584 MEDEIROS, A. Obra citada, p. 43. 585 Ibidem, p. 43. 586 Vinícius Natal transcreve uma declaração de Alexandre Medeiros em que o autor afirma o seguinte: “Os enredos da Imperatriz nunca foram de cunho político, mas sim de cunho nacionalista, com o viés da literatura. Quando você pega Academia Brasileira de Letras, ele é muito simbólico, pois a escola acabou formando uma cara de enredos eruditos. Mas acho que naquela época não teve enredo muito político, só a Beija-Flor com os enredos ditos ‘chapa branca’ e o Império, com ‘Heróis da liberdade’.” In: NATAL, V. Obra citada, p. 193. A despeito da justificativa de Medeiros, parece claro que os enredos do GRESIL podem ser considerados nacionalistas e, por extensão, políticos, ainda que velados, sob o manto da literatura e a natural plasticidade das palavras. 587 Ibidem, p. 188. 275

civilização dos trópicos” – nós, não eles, os militares. A construção do país não se fazia com as gigantescas obras de concreto; a liderança do país não cabia aos generais. O povo detinha o poder, fraternalmente unido, “cantando as mesmas canções” (de luta?). Difícil é abarcar a real dimensão política de um texto redigido há mais de 40 anos; estaria tal leitura extrapolando os limites insinuados pelos dados? Diferenças à parte, o panorama revela que Rosa Magalhães está inserida em uma tradição. O apreço pelos temas literários é o melhor exemplo disso: em 1970, a Imperatriz defendeu o enredo Oropa, França e Bahia, sobre o Modernismo desencadeado pela Semana de 1922 – com destaque para Macunaíma, personagem que reapareceria na apresentação de 2002; em 1972, foi a vez de Martim Cererê, adaptação carnavalesca da obra homônima de Cassiano Ricardo (também no espírito modernista, centro do enredo Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way!); em 1973, o diálogo entre erudito e popular seria intensificado com o enredo ABC do carnaval à maneira da literatura de cordel. Merece destaque, ainda, o enredo Onde canta o sabiá, de Arlindo Rodrigues, elaborado para o carnaval de 1982; no título, a referência à Canção do Exílio de Gonçalves Dias se faz evidente – as conversas literárias e a valorização das “coisas nossas”, patriotismo traduzido em coroas e cocares, atravessavam décadas.588

588 É importante que se diga que a linha de enredos desenvolvida por Rosa Magalhães, a partir de 1992, deu seguimento aos três enredos anteriores apresentados pela escola, de inclinação histórica e bastante preocupados com a exaltação do Brasil. Em 1989, o enredo Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós, do carnavalesco Max Lopes, contou, sob o prisma da historiografia oficial, o processo que levou à Proclamação da República, em 1889 – uma celebração do centenário republicano, em suma, com elogios rasgados à Princesa Isabel, contada e cantada como “heroína que assinou a Lei Divina”. Em 1990, ainda com Max Lopes à frente da escola (que se sagrara campeã), o enredo Terra Brasilis, o que se plantou deu não repetiu o feito do ano anterior e terminou em quarto lugar; de qualquer forma, não faltaram índios, brancos e negros, frutos e flores tropicais (bananas e abacaxis às dúzias), nobres, castelos e brasões. Em 1991, Viriato Ferreira assumiu o carnaval da escola e apresentou O que é que a banana tem? (terceiro lugar na classificação final), enredo sobre a história do fruto que melhor representa o Brasil e a América Latina, com título que bem-humorada releitura do nome que Arlindo Rodrigues escolheu para a narrativa desenvolvida em 1980, delicada e bordada de sutileza. A substituição da Bahia pela banana foi uma simpática sacada do carnavalesco, que transformou o enredo em visual muito requintado, salpicado de crítica e piada na medida certa. Definitivamente, críticas escrachadas e humor fácil não combinam com a escola: a lição foi duramente ensinada em 1988, quando o enredo Conta outra que essa foi boa, do carnavalesco Luiz Fernando Reis, jogou tomates na história oficial e não poupou sequer a Princesa Isabel, neta de Leopoldina, como aponta Alexandre Medeiros na crônica 1989, o ano da redenção. Segundo o autor, “o enredo até foi bem executado, mas parece que os deuses do carnaval rogaram praga contra tamanha mudança estilística (...).” A Imperatriz terminou a apuração em último lugar e apenas não desceu para o grupo de acesso porque não houve rebaixamento (a chamada “virada de mesa”). Com os deuses intervindo ou não, restou a ideia de que a escola prefere a homenagem à ridicularização, o humor sofisticado da história de jegues e camelos ao humor descompensado das chanchadas, índios que se transformam mas não perdem a pose a índios que são massacrados e perdem a voz. Não foram Oswald de Andrade e o tropicalismo, temas repletos de gargalhadas, elegantemente adaptados ao Delírio tropical? 276

Diante do exposto, pode-se dizer que a escola de Ramos encontrou na carnavalesca Rosa Magalhães a intelectualidade e o cuidado com a pesquisa apreciados desde a década de 1960; nesse sentido, a contratação da artista representou a intensificação de um estilo já sofisticado, um “toque de classe” a mais, fundamental para que a escola “reinasse soberana” na década de 1990, época em que era chamada de bicho-papão do carnaval carioca (a debochada auto-homenagem materializada nos figurinos da Comissão de Frente de 2002, como visto na abertura do capítulo III. 1.). O casamento iniciado em 1992 durou 18 anos e gerou pouquíssimos frutos azedos (ainda estes relativizáveis) – algo admirável no universo do carnaval contemporâneo, marcado pela volubilidade. Possivelmente contribuiu para isso a sensibilidade da artista, que intuitivamente revelou, em entrevista a Felipe Ferreira, que a “identidade” da escola de samba influencia, sim, o trabalho do carnavalesco. O pesquisador questionou-a se o enredo que ela estava desenvolvendo para a Imperatriz (Não existe pecado abaixo do Equador) poderia servir para qualquer escola, a Portela, por exemplo. A discussão é importante:

Felipe Ferreira – Falamos também em como você se adapta às características de uma escola e da primeira vez você falou que bola o enredo e depois pensa na escola. Mas olhando os figurinos que você fez para a Imperatriz este ano percebe-se que o enredo é a cara da Imperatriz. Isso foi uma coincidência? Rosa Magalhães – Quando eu pensei na ideia podia ser para qualquer uma, mas na hora de escrever já era para a Imperatriz. Na hora de desenhar também. Então a coisa vem. Felipe Ferreira – Isto significa que se o enredo fosse para outra escola, você escreveria de outro modo? Rosa Magalhães – É, talvez. Felipe Ferreira – Este mesmo enredo para a Portela seria escrito de outro modo? Rosa Magalhães – Portela não sei, mas acho que o Salgueiro sim. Felipe Ferreira - Para a Portela não daria mesmo? Rosa Magalhães – Esse enredo? Acho que fica complicado.589

No pantanoso terreno de subjetividades sobre o qual as reflexões se movem, as certezas são ilusórias e não se pode dizer ao certo quais os limites da influência de Imperatriz Leopoldinense sobre o trabalho de Rosa Magalhães e vice-versa. Apesar

Ver MEDEIROS, A. 1989, o ano da redenção. In: DINIZ, A.; FABATO, F.; MEDEIROS, A. Obra citada, p. 118/121. 589 FERREIRA, F. O Marquês, o Jegue, a Princesa e o Corta-Jaca: um estudo sobre a expressão plástica da cultura popular e da cultura erudita nas fantasias de carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro, f. 202. 277

disso, não pode ser desconsiderado o fato de que as influências, mutuamente, existem. Uma afirmação que talvez seja possível fazer, então, é a de que acima de qualquer filtro geográfico (a ideia de que Rosa Magalhães é uma artista que olha o Brasil através de lentes europeias) existe o invisível filtro da própria instituição, a entidade abstrata Imperatriz Leopoldinense e uma capa de características, memórias, conceitos que desenham, na mente dos gresilenses e dos demais amantes do carnaval carioca, uma determinada imagem daquilo que a escola é, independente do artista que a ela presta trabalho. A agremiação enquanto entidade concreta, sediada em uma encruzilhada, com entrada pela Rua Professor Lacê, no bairro de Ramos, está emersa em um oceano de discursos identitários conflitantes (obviamente, a visão que cada participante tem da sua escola é única e no limite intraduzível; os fundadores têm visões diferentes das visões dos torcedores recentes; os administradores têm visões diferentes das visões dos ritmistas e demais componentes; os idólatras do trabalho de um carnavalesco passado têm visões diferentes das visões daqueles que defendem e aprovam o trabalho do carnavalesco em cena; e por aí vai.) que, a exemplo do que fala Darcy Ribeiro sobre a língua brasileira e os sotaques regionais, se observados genericamente, grosso modo, adquirem uma certa uniformidade, transmitem uma certa coesão, reproduzem um discurso parecido – eis a construção, sempre com frestas, de uma (in)certa identidade. Como a tal identidade gresilense, vestida por Rosa Magalhães, expressou a sua visão de Brasil, no período de 1992 a 2002, é o ponto a ser minimamente investigado através de visões (esquemáticas e panorâmicas, dada a vastidão desse campo) sobre cada uma das dez narrativas de enredo que desembocaram na alegoria goitacá.

1992 – Não existe pecado abaixo do Equador. A América (e por extensão o Brasil) é descrita como o paraíso terrestre, o lugar onde, sob os olhos dos navegadores espanhóis liderados por Colombo, índios sem pecado viviam felizes, em comunhão com a natureza. Um “berço esplêndido”, imenso jardim de delícias que se tornou, devido à ganância e à inoperância dos governantes, “maltratado e esquecido”590. A autora convoca, então, um exército de criaturas lendárias do folclore brasileiro, caiporas, sacis, boitatás e mães-d´água, para que todos unidos protejam o paraíso e vençam as ameaças.

590 MAGALHÃES, R. Não existe pecado abaixo do Equador. Histórico do enredo encontrado no Livro Abre-Alas da LIESA de 1992, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 278

A última alegoria do desfile expressava a fartura dos frutos da terra, deixando a ideia de que, apesar dos problemas, o paraíso continuava lindo, fértil e saboroso.

1993 - Marquês que é Marquês do sassarico é freguês. O carnaval da época do Marquês do Sapucaí serviu de ponto de partida para uma viagem cronológica pelas folias carnavalescas do Rio de Janeiro, passando a festança, é claro, pela avenida que recebeu o nome “de um senhor chamado Cândido José de Araújo Viana, nascido em 1793, há 200 anos”591, o professor e conselheiro de Pedro II Marquês de Sapucaí. No trecho do enredo dedicado à Passarela do Samba, os carnavalescos Arlindo Rodrigues, Fernando Pinto e Joãosinho Trinta ganharam homenagens, todos, cada um a seu modo, recriadores do Brasil. Ao final, uma reprodução alegórica da Praça da Apoteose representava o triunfo da alegria popular brasileira. Na visão da autora, o carnaval não vai acabar: é dinâmico. Foliões do futuro e fantasmas do passado se misturavam numa passarela atemporal, sassaricando e vivendo felizes – a corporificação de uma citação de Goethe apresentada no histórico do enredo: “O Carnaval é uma festa que, a bem verdade, não é dada ao povo, mas é o próprio povo que a dá, a si mesmo.”

1994 - Catarina de Médicis na Corte dos Tupinambôs e Tabajères. O enredo já foi esmiuçado no capítulo anterior. Os índios brasileiros enviados para os monumentais festejos em homenagem aos reis da França realizados em Ruão, em 1550, teriam influenciado a inteligência européia representada por Montaigne e, futuramente, Rousseau. O enredo e o samba exaltaram os selvagens tupiniquins como seres fortes, guerreiros livres, verdadeiros modelos de nobreza e integridade.

1995 – Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube, lá no Ceará... O samba de enredo composto por João Estevam, Eduardo Medrado, Valtinho Honorato e César Som Livre bem expressou a mensagem do enredo: “Mais vale a simplicidade / a buscar mil novidades / e criar complicação.” Os dromedários importados da Argélia para servirem de montaria para a primeira expedição científica brasileira, financiada por Pedro II, sucumbiram às pedras do sertão cearense. O “jegue esquecido na história” é o segredo e a homenagem: apesar de renegado e subestimado, feito o sertanejo, é forte, corajoso, não treme diante das adversidades – carregou D.

591 MAGALHÃES, R. Marquês que é Marquês do sassarico é freguês. Histórico do enredo encontrado no Livro Abre-Alas da LIESA de 1993, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 279

Pedro I, na ocasião do grito do Ipiranga, e emprestou o lombo a Napoleão Bonaparte, quando o Imperador francês cruzou os Alpes. Desponta, então, enquanto metáfora animal para o ser brasileiro, símbolo de sabedoria, perseverança e eficiência592 – já aparecera coroado no carro Abre-Alas e ressurge magnífico na última alegoria. O samba exclamava que “o sertão não é só lamento” e a carnavalesca exultava, patriota: “Abaixo o camelo, Viva o Jegue !”593 No título, o diálogo com Gil Vicente é evidente; a lusitana Farsa de Inês Pereira fora deglutida e abrasileirada.

1996 - Imperatriz Leopoldinense honrosamente apresenta: Leopoldina, Imperatriz do Brasil. Muito já foi dito sobre este enredo, na dissertação. A homenagem romantizada feita à Imperatriz Leopoldina passeou pela neve do Tirol e desembarcou no Brasil, em cores de Debret. Palácios maravilhosos, com louças, cavalos e candelabros, não conseguiram ofuscar a natureza tropical, com borboletas, índios e frutos coloridos. Ao final do desfile, a Proclamação da Independência: o monumento a Pedro I, localizado no Parque da República, em São Paulo, era transformado em um baile de carnaval, na alegoria A Imperatriz Leopoldinense honrosamente comemora a Independência e o carnaval. D. Pedro segura a carta de Leopoldina conclamando a Independência do Brasil. As alas do setor representavam nobres carnavalizados e mostravam bananas a decorar vestimentas imperiais: mais uma vez, os frutos amarelos exaltavam o Brasil. Levando em conta que o monumento concebido pelos italianos Ettore Ximenes e Manfredo Manfredi também é uma cripta funerária (os restos mortais de Pedro I e Leopoldina lá estão sepultados), a apropriação carnavalesca se torna ainda mais interessante e complexa: a folia despertava da morte os ideais de 1822; o Brasil independente (imperial) ressuscitava triunfante.

592 Na literatura, características semelhantes às do jegue de Rosa Magalhães são vistas no Burrinho Pedrês Sete-de-Ouros, de João Guimarães Rosa, personagem-título do primeiro conto do primeiro livro do escritor mineiro, Sagarana. A sabedoria do Burrinho rosiano leva-o a sobreviver a uma terrível enchente (cabeça d’água) que mata oito vaqueiros, salvando o homem que carregava nas costas, Badú, e o sortudo que consegue se agarrar ao seu rabo, em meio à corredeira – Francolim Ferreira. Sete-de-Ouros soube enfrentar a água sem “nenhuma pressa”: “e ir sem afã, à voga surda, amigo da água, bem com o escuro, filho do fundo, poupando forças para o fim. Nada mais, nada de graça; nem um arranco, fora de hora. Assim.” Enquanto o Burrinho de Guimarães Rosa é amigo da água, o jegue de Rosa Magalhães é amigo da terra seca. Ambos sábios e incansáveis peregrinos. Ver: ROSA, J. G. O Burrinho Pedrês. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 94. 593 MAGALHÃES, R. Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube, lá no Ceará... Histórico do enredo encontrado no Livro Abre-Alas da LIESA de 1995, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 280

1997 – Eu sou da lira, não posso negar. Enredo em homenagem à vida e à obra da compositora Chiquinha Gonzaga. Assim como o enredo de 1996, o protagonismo é feminino e a mulher brasileira (Chiquinha, brasileira de berço; Leopoldina, brasileira de coração e, principalmente, “mãe dos brasileiros”) é exaltada, considerada ousada, destemida, “adiante do seu tempo”594. Também como no enredo do ano anterior, o carnaval aparece enquanto alegria da raça: dois setores do desfile eram dedicados à folia – um, o terceiro, aos bailes de máscaras elitizados; outro, o quarto, às manifestações populares representadas pelos cordões. No histórico do enredo, Chiquinha Gonzaga é celebrada enquanto personalidade responsável pela introdução da música popular nos salões da elite, rompendo as barreiras sociais e valorizando o batuque e os estilos musicais típicos das classes menos favorecidas (visão de conflitos entre classes, ainda que nas entrelinhas). O desfile terminava com a apresentação do maxixe Corta-Jaca no Palácio do Catete, sede da República Brasileira, acontecimento que chocou os “puristas” da época, como Ruy Barbosa. Chiquinha teria colocado sua obra “em favor da nacionalização musical”595, um exemplo de amor ao país, ao povo brasileiro e ao carnaval carioca.

1998 – Quase no ano 2000. Diante de inúmeras construções de futuro presentes em obras literárias e cinematográficas, às portas do século XXI a carnavalesca percebeu que muitas previsões não se cumpriram (carros voadores, por exemplo), enquanto outras foram materializadas (o homem chegou à Lua, submarinos ganharam os mares, bombas atômicas explodiram). “Mas o homem que previa se esqueceu da ecologia”596: a natureza aparece, ao final da narrativa, como centro das atenções mundiais, na virada do milênio. Transmitia-se a ideia (que permanece inflamada, quinze anos depois) de que somente a união dos povos em torno da causa ecológica poderá salvar o mundo das previsões fatalistas – e quem representa o Brasil na “aldeia global” é o índio, símbolo de devoção à terra e de integração homem-natureza.

594 MAGALHÃES, R. Eu sou da lira, não posso negar. Histórico do enredo encontrado no Livro Abre- Alas da LIESA de 1997, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 595 Na Justificativa do enredo, Rosa Magalhães escreveu: "O fato da primeira música de carnaval ter sido composta por Chiquinha Gonzaga – música que é cantada até hoje - já seria um motivo para essa escolha. Não bastasse isso, em 1997 comemoramos 150 anos de seu nascimento. Chiquinha foi uma mulher que participou da nacionalização da música brasileira e também um exemplo de determinação e luta para conquistar na sociedade do século passado um espaço como cidadã, como artista e como mulher.” In: MAGALHÃES, R. Ibidem. 596 Trecho do samba de enredo composto para o carnaval gresilense de 1998, de autoria de Preto Jóia, Flavinho, Darcy do Nascimento e Guga. 281

1999 - Brasil, mostra sua cara em... Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. A natureza brasileira observada na “Holanda Tropical” de Maurício de Nassau fora catalogada e pintada por Albert Eckhout, gerando os quatro principais volumes da coleção de livros que dá nome ao enredo. Animais (voadores, aquáticos e terrestres) e plantas (flores, frutos, vegetais em geral) ganharam a Passarela do Samba em fantasias e alegorias bastante alegres, leves, coloridas, inspiradas em festejos pernambucanos: caboclinhos, maracatus e reisados. As baianas vestidas de borboletas deram um espetáculo à parte: quando rodopiavam, pareciam bater asas. Os tipos brasileiros (índio, negro, mulato e mameluco) foram exaltados e as alegorias fundiram natureza selvagem e cultura erudita. Perpassou a apresentação a mensagem de que a experiência holandesa em Pernambuco foi representativa de um Brasil mestiço, feliz, belo e profundamente nobre – fosse a nobreza da Holanda, fosse a nobreza das matas.

2000 - Quem descobriu o Brasil, foi seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval. Sintetizando o que já foi falado sobre tal enredo, Rosa Magalhães desenvolveu uma visão carnavalizada sobre a chegada das naus portuguesas ao Brasil, em 1500. Os sonhos de riqueza de D. Manuel renderam as quatro primeiras alegorias (com destaque para o carro das mercadorias africanas, na cor de marfim, e para o Abre- Alas, onde se viam referências ao frontispício da obra Grandes Viagens, elaborado por Theodore De Bry, e aos rinocerontes desenhados por Albrecht Dürer). A quinta levou a Nau Capitânia (e uma intrépida tripulação) para a Marquês de Sapucaí. A sexta e a sétima representavam o Brasil enquanto mistura de raças e explosão de alegria carnavalesca: no primeiro desembarque na terra indígena, a fusão entre brancos, índios e negros; na alegoria aos 500 anos, o “país do carnaval” celebrava a história de “luta, esperança, amor e paz.”

2001 – Cana-caiana, cana roxa, cana fita, cana preta, amarela, Pernambuco... Quero vê descê o suco, na pancada do ganzá! Um canto de canavial nordestino, espécie de versão brasileira dos work-songs dos algodoais norte-americanos (que, na visão de Paulo Leminski, estão na origem do Blues, gênero musical lamentoso), serviu de inspiração para o longo e mal-interpretado título do enredo de Rosa Magalhães que

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falava da história da cana, do açúcar e da brasileiríssima cachaça.597 Terminado o passeio pela história da cana na Ásia e na Europa, com os conflitos entre mouros e cruzados transformados em Cavalhadas e as cortes venezianas decoradas com doces de encher os olhos, o desfile cresceu com a chegada ao Brasil e as representações carnavalescas da sociedade açucareira – patriarcal, escravocrata, híbrida, nos termos de Gilberto Freyre, mencionado pela autora598. Após o rústico setor de canaviais, engenhos e senzalas, a sociedade mineira entrou em cena, afinal, segundo as pesquisas da carnavalesca, a cachaça era utilizada para aquecer os mineradores, durante o processo insalubre de garimpo do ouro (geralmente dentro de grutas ou com os pés enfiados na água). A Inconfidência Mineira foi celebrada enquanto movimento nacionalista que bebia cachaça como ato de patriotismo, nesse mesmo setor barroco.599 O último setor (o mais controvertido do desfile) apresentava ao público uma homenagem a Carlos Cachaça, fundador da Estação Primeira de Mangueira, primeira campeã dos concursos oficiais das escolas de samba cariocas. Mangueirenses ilustres, como Dona Zica, viúva de Cartola, reclamaram da “apropriação” indevida do verde e rosa. Rosa Magalhães não se fez de rogada e colocou um pequeno desfile da Mangueira (inclusive com Comissão de Frente) dentro do grande desfile da Imperatriz Leopoldinense, arrancando aplausos das arquibancadas e exaltando a “Nação Mangueirense”, exemplo de Brasil festivo, retrato da alegria de um país adoçado no mel da cana.

597 O dramaturgo Mauro Rasi, no quadro A Hora do Alçapão, à época exibido no programa Fantástico, nas noites de domingo da Rede Globo, atirou o enredo da carnavalesca no alçapão – imagem menos feia para lata de lixo -, numa das edições de janeiro de 2001. Julgou o título longo e pedante, pretensioso demais para algo “bobo” – a história da cana-de-açúcar (visão tremendamente questionável). O pesquisador Alexandre Medeiros comenta, na crônica Uma Rosa para a Imperatriz do samba, os títulos longos atribuídos por Rosa Magalhães a enredos como o de 2001: “Rosa também acabou lançando, intencionalmente ou não, uma série de tendências no mundo do samba. Foi, por exemplo, quem começou a batizar enredos com títulos que eram quase sinopses inteiras. Quando as outras escolas começaram a copiar sua ideia e a prática virou lugar-comum, tratou de fugir do modelo, retornando com a nomeação sintética anterior.” Ver: MEDEIROS, A. Uma Rosa para a Imperatriz do Samba. In: DINIZ, A.; FABATO, F.; MEDEIROS, A. Obra citada, p. 159. 598 Nas palavras de Rosa Magalhães, “a vinda dos escravos para estas plantações também teve uma importância muito grande na formação do povo brasileiro. Basta dizer que o livro de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, enfoca exatamente este período e as contribuições para a sociedade brasileira.” In: MAGALHÃES, R. Cana-caiana, cana roxa, cana fita, cana preta, amarela, Pernambuco... Quero vê descê o suco, na pancada do ganzá! Justificativa do enredo encontrado no Livro Abre-Alas da LIESA de 2001, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA. 599 Nessa parte da justificativa do enredo, a carnavalesca (ao modo do que faz Guimarães Rosa nas narrativas de Corpo de Baile, com animais, vegetais e minerais, e em Grande Sertão:Veredas, com o demônio), apresenta um breve “inventário” da cachaça – uma lista com dezenas de nomes que a bebida recebe Brasil afora: “abrideira, água-que-gato-não-bebe, arrebenta-peito, bagaceira, birita, branca, cana, canjebrina, capote-de-pobre, danada, dengosa, filha-do-senhor-de-engenho, jeribita, jinjibirra, malvada, parati, perigosa, pinga, quebra-munheca, uca, tome-juízo...” 283

Passados em revista os dez enredos que antecederam a apresentação emblemática de 2002, parece claro que a exaltação ao Brasil foi uma constante; sob diferentes fantasias, sim, mas confeccionadas em um mesmo ateliê, ou seja, produtos, as roupas narrativas, de uma mesma técnica de costura, inseridas em um mesmo conjunto de referenciais teóricos. Os símbolos mudam: pode ser o índio (predominantemente), a mulher, a Estação Primeira de Mangueira e a cachaça, o carnaval, Carmen Miranda; a mensagem final, porém, é muito semelhante em todos os casos – a ideia já bastante cozida de que vivemos em um país mestiço, alegre, valoroso. Bananas, flores, animais (a onça, o jacaré e a borboleta, em especial), o sistema sígnico trabalhado pela carnavalesca no período em foco revela um alto grau de coesão; nada parece gratuito: imagens e textos se estrelaçam formando redes que tanto abarcam os jegues e os camelos de 1995 quanto as baianinhas e os malandrinhos mangueirenses de 2001. Tem- se a construção de um imaginário próprio, marca indelével dos artistas notáveis – a assinatura ao final que permite que se afirme, terminado um desfile da Imperatriz Leopoldinense do período 1992 – 2002: eis um trabalho de Rosa Magalhães, em conformidade com a “identidade” da escola de samba. Situar tal montante de informações (que se chocam com as proposições de Darcy Ribeiro, como visto anteriormente) no campo da Sociologia brasileira ajuda a compreender o ideário político por debaixo dos tecidos, das plumas e dos galões, fortalecendo a interpretação. O pernambucano Gilberto Freyre, encontrado nos textos do enredo de 2001, é o nome cuja teoria sociológica mais se coaduna com o imaginário social evocado pelos enredos que a Imperatriz Leopoldinense desfilou, de 1992 a 2002. O teórico, segundo os pesquisadores Maria Lúcia Pallares-Burke e Peter Burke, virou refém de sua obra “juvenil” (publicada quando o autor tinha 33 anos) Casa-Grande & Senzala: se Caetano Veloso tende a ser lembrado por uma só canção, Alegria, Alegria (fato que lamenta, em Verdade Tropical; ele diz não ter conseguido se livrar do fantasma de Caminhando contra o vento, diferentemente do que ocorreu com Chico Buarque e A banda), Gilberto Freyre é automaticamente associado a Casa-Grande & Senzala, estudo vastíssimo que já nasceu clássico, balançando a inteligência brasileira tão logo chegou às livrarias, em 1933. O problema que o casal de pesquisadores observa é a simplificação de uma obra de fôlego a uma das ideias plantadas pelo sociólogo, qual seja: a de que o Brasil é um

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país em cujo processo de colonização os antagonismos se equilibravam, gestando um povo miscigenado, marcado pela plasticidade das relações sociais:

Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade, como já salientamos às primeiras páginas deste ensaio, um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo. 600

Se os colonizadores portugueses já apresentavam em sua composição étnica as cores do hibridismo (Portugal, na Península Ibérica – a “jangada de pedra” de José Saramago -, entre a Europa e a África moura, marcada pela “bicontinentalidade”601), em solo brasileiro a hibridação seria intensificada:

A base, a agricultura; as condições, a estabilidade patriarcal da família, a regularidade do trabalho por meio da escravidão, a união do português com a mulher índia, incorporada assim à cultura econômica e social do invasor. Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio – e mais tarde de negro – na composição. 602

Gilberto Freyre reconhece que o “ponto de apoio econômico da aristocracia colonial deslocou-se da cana-de-açúcar para o ouro e mais tarde para o café”603, mantendo-se um mesmo instrumento de exploração: a escravidão negra. Nesse ponto, não há controvérsias. O tratamento dado à temática da sexualidade, por outro lado, é um

600 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. São Paulo: Global Editora, 2011, p. 116. Grifo do autor. 601 Gilberto Freyre escreveu: “A indecisão étnica e cultural entre a Europa e a África parece ter sido sempre a mesma em Portugal como em outros trechos da Península. Espécie de bicontinentalidade que correspondesse em população assim vaga e incerta à bissexualidade no indivíduo. E gente mais flutuante que a portuguesa, dificilmente se imagina; o bambo equilíbrio de antagonismos reflete-se em tudo o que é seu, dando-lhe ao comportamento uma fácil e frouxa flexibilidade, às vezes perturbada por dolorosas hesitações, e ao caráter uma especial riqueza de aptidões, ainda que não raro incoerentes e difíceis de se conciliarem para a expressão útil ou para a iniciativa prática. (...) O que se sente em todo esse desadoro de antagonismos são as duas culturas, a européia e a africana, a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista encontrando-se no português, fazendo dele, de sua moral, de sua economia, de sua arte um regime de influências que se alternam, se equilibram ou se hostilizam.” Ibidem, p. 67 e 69. Nota-se que o autor relativiza o “equilíbrio” luso, afirmando que ele poderia cambalear para a hostilidade. 602 Ibidem, p. 65. 603 Ibidem, p. 93. 285

espinho: o autor não esconde o sadismo com que as escravas negras eram sexualmente abusadas pelos senhores, mas teria minimizado os efeitos da reiterada violência, no limite justificando-a com a “ligação natural à circunstância econômica da nossa formação patriarcal”604. Em outras palavras, é como se o produto do plástico processo de miscigenação (nós, os brasileiros, aliados à natureza geográfica sem grandes complicadores) apresentasse qualidades capazes de minimizar séculos e séculos de opressão. Revisões críticas da obra do sociólogo têm batido nessa tecla de sonoridade lamentosa605, apontando, em determinadas passagens de Casa-Grande & Senzala, um excesso de “mel de cana” a adoçar a miscigenação:

É verdade que agindo sempre, entre tantos antagonismos contundentes, amortecendo-lhes o choque ou harmonizando-os, condições de confraternização e de mobilidade social peculiares ao Brasil: a miscigenação, a dispersão da herança, a fácil e frequente mudança de profissão e de residência, o fácil e frequente acesso a cargos e a elevadas posições políticas e sociais de mestiços e de filhos naturais, o cristianismo lírico à portuguesa, a tolerância moral, a hospitalidade a estrangeiros, a intercomunicação entre as diferentes zonas do país. Esta, menos por facilidades técnicas do que pelas físicas: a ausência de um sistema de montanhas ou de rios verdadeiramente perturbador da unidade brasileira ou da reciprocidade cultural e econômica entre os extremos geográficos. 606

O “amortecimento” dos choques e a “harmonização” social não seriam perdoados por parte da crítica; segundo Maria Lúcia Pallares-Burke e Peter Burke, “em especial críticos marxistas”, os quais supostamente construíram intelectualmente a imagem de um “Freyre reacionário, ignorando suas muitas referências aos antagonismos sociais e tratando sua famosa trilogia sobre o Brasil como uma simples descrição de uma sociedade marcada pela harmonia social, pelo consenso e pela ‘democracia

604 Ibidem, p. 114. 605 Um exemplo recente de notável qualidade acadêmica é a dissertação de Mestrado em Direito de Marina Basso Lacerda, em cujo resumo a autora afirma: “A inserção feminina esteve subordinada à necessidade de povoamento e de reprodução de mão-de-obra. Desde os primeiros momentos, a indígena (e depois a negra, a branca e a mestiça) foi associada à natureza e à terra a ser colonizada, em uma analogia simbólica e prática de devastação. A prole gerada a partir do estupro de escravas e de uniões como as concubinatárias era massivamente ‘ilegítima’, ‘ninguendade’ que dá origem ao próprio povo brasileiro. No contexto colonial, o clã patriarcal foi a real fonte de poder, marcando entre nós o patrimonialismo, o patriarcalismo e o personalismo, sendo o espaço público formado pela invasão de /indiferenciação com elementos privados, dentre os quais o controle/exploração massivo, sistemático e violentíssimo de expressiva parcela das mulheres, donde se extrai que a relação patrimonialista e patriarcal é uma relação absolutamente gendrada.” Disponível em: http://www.maxwell.lambda.ele.puc- rio.br/16570/16570_1.PDF. Acesso em 04/12/2013. 606 FREYRE, G. Obra citada, p. 117. Grifo do autor. 286

racial’.”607 Nem tanto ao céu nem tanto à terra: Antonio Cândido, no prefácio a Raízes do Brasil, outra obra basilar da Sociologia brasileira cujos apontamentos podem ser relacionados aos enredos de Rosa Magalhães, é ponderado (sem deixar de assumir ser um intelectual de esquerda, e isso em 1967) ao dizer que o contexto da publicação de Casa-Grande & Senzala, os anos 30, às portas do Estado Novo de Getúlio Vargas, permite a afirmação de que o livro soou, à época, uma sinfonia libertária e anticonvencional:

Era justamente um intuito anticonvencional que nos parecia animar a composição libérrima de Casa Grande & Senzala, com a sua franqueza no tratamento da vida sexual do patriarcalismo e a importância decisiva atribuída ao escravo na formação do nosso modo de ser mais íntimo. 608

O autor não titubeia ao afirmar que Raízes do Brasil e Casa Grande & Senzala precisam ser revistos criticamente, o que não invalida a importância das obras – nem exclui as suas contradições e notas espinhosas. Fato é que o imaginário contido no breve panorama de Casa Grande & Senzala apresentado se faz notar nas narrativas de enredo da Imperatriz Leopoldinense há pouco decupadas. No desfile de 2001, a alegoria 05, O Plantio da Cana, resumia alegoricamente a sociedade patriarcal, escravocrata e híbrida teorizada por Gilberto Freyre: nobres, senhores de engenho e escravos dançavam ao redor de uma moenda, entre feixes de cana-de-açúcar e carros de bois. Uma visão alegre, sem grilhões, pelourinho, gargalheira e demais castigos. No extremo oposto, a Beija-Flor de Nilópolis, no carnaval do ano 2000, apresentou a simulação do estupro de uma escrava negra por traficantes brancos, na parte traseira da alegoria que representava um navio negreiro (Navio Negreiro, o inferno sobre as águas), atraindo a mídia para a polêmica em torno da violenta teatralização. Há espaço para sangue e visões de tortura em um desfile de carnaval? A análise de outros elementos alegóricos do período 1992-2002 ajuda a solidificar a percepção de que o universo temático (e visual) de Rosa Magalhães é coeso, mais para o equilíbrio de opostos que para o conflito e a segregação. Aquela que

607 BURKE, Maria Lúcia Pallares; BURKE, Peter. Repensando os trópicos . Um retrato intelectual de Gilberto Freyre. São Paulo: Editora Unesp, 2008, p. 28/29. 608 CANDIDO, A. O significado de “Raízes do Brasil”. In: HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 09. 287

é, talvez, a mais expressiva construção visual dos ideais do Império foi idealizada por Debret, em 1823: o “Pano de boca” do Teatro da Corte, visão alegórica que sintetiza a “identidade europeia e ao mesmo tempo tropical”609, universal (uma vez que a realeza brasileira era originária da Europa) e particular (o Brasil congregava todos os estereótipos do “modelo” de nação tropical latino-americana, “gentes, frutos e animais estranhos e considerados exóticos.”610). Lilia Schwarcz afirma que “nossa primeira pintura oficial como Estado independente”611 data de 1823 :

“Pano de boca” de uma apresentação teatral que celebrava a coroação de d. Pedro I como primeiro imperador do Brasil, a imagem mesclava uma série de elementos fundamentais à nova nacionalidade, os quais retornariam em tempos de d. Pedro II. Tendo passado pela inspeção e aprovação do Imperador e de José Bonifácio, a pintura sintetizava e celebrizava a originalidade da nova nação. No centro, o governo imperial surge representado por uma mulher, a qual, ornada por um fundo verde, traz num dos braços as armas do Império e no outro a Constituição. Adornam a imagem as frutas do país, o café e a cana-de-açúcar. Ao lado dos “produtos da terra”, desfilam as suas “gentes” exóticas: uma família negra demonstra sua fidelidade, enquanto uma indígena branca se ajoelha ao pé do trono. (...) Por fim, vemos as vagas do mar, que se quebravam ao pé do trono e revelavam a posição geográfica e longínqua do Império. Estamos, portanto, diante de uma grande representação; de uma espécie de teatro de inauguração.612

Aos pés do Imperador, sobre uma pequena escadaria, vê-se uma cornucópia despejando frutos sobre a terra brasileira, imagem que a carnavalesca Rosa Magalhães utilizou no carro Abre-Alas do desfile de 1996. Na alegoria, representando as riquezas brasileiras que encantaram Leopoldina, a dezenas de araras em azul e amarelo, adereços com penas verdes e coroas em dourado somavam-se adaptações, em tamanho grande, da cornucópia observada à frente do trono, no “Pano de boca” de Debret. Mangas, cajus, carambolas, abacaxis, incontáveis tipos de frutos formavam guirlandas que só faltavam exalar o perfume de um quintal. Ressignificação adequada, afinal, o enredo celebrava os mais patriotas ideais brasileiros. No mesmo desfile, na alegoria 07, A chegada de Leopoldina no Rio de Janeiro, e no setor seguinte, dedicado aos índios, viam-se outras referências a Debret em fantasias e adereços. No desfile do ano anterior, 1995, o artista francês já havia dado o ar da graça: na alegoria 03, O cais, grandes cisnes brancos

609 SCHWARCZ, L. M. De olho em D. Pedro II e seu reino tropical, p. 13. 610 Ibidem, p. 13. 611 Ibidem, p. 14. 612 Ibidem, p. 14/15. 288

compunham a parte da frente, entre guirlandas de flores e cortinas douradas, contrastando com as cores escuras da opulenta fantasia da destaque Walquíria Miranda (intitulada A partida). Os cisnes de pescoços curvos podem ser vistos no Cenário para o bailado histórico, outro “Pano de boca” pintado por Debret, concebido para “a apoteose de D. João VI no Teatro Real de São João, em 13 de maio de 1818.”613 Trata-se de uma alegoria ao poder imperial com referências à mitologia: D. João triunfa sobre o oceano, nas nuvens, entre anjos, deuses e guirlandas. Debret, o artista mencionado pela carnavalesca ao final da sinopse de 1996, autor da bandeira nacional, ela própria um exemplo de hibridismos e ressignificações: “o verde, cor heráldica da Casa Real Portuguesa de Bragança, à qual pertencia o Imperador; o amarelo, cor da Casa Imperial Austríaca de Habsburgo, da primeira Imperatriz.”614 Lilia Schwarcz fala em “redefinição cultural” e mostra que “elementos tradicionais do armorial e dos brasões europeus passam a representar uma nova realidade física, destituídos de seu significado anterior.”615 Ora, diante de todo o exposto, falar em “destituição” de significados talvez não seja o ideal; os significados nobiliárquicos oriundos da Europa permanecem, ainda que em segundo plano, ocultados pela mensagem tão forte exibida nos “Panos de boca” e nas demais alegorias criadas por Debret, expressões artísticas da fundação de um país que receberia, na Imperatriz Leopoldinense, sucessivas louvações. A pesquisadora fala que “não se pode esquecer que a realeza nasceu elevando a importância da mestiçagem existente no país. Negros (sempre leais), indígenas, bandeirantes... todos juntos vêm legitimar a nova monarquia tropical.”616 Todos juntos, no desfile gresilense do ano 2000, fantasiados de arlequins e pierrôs, celebrando os 500 anos do Brasil sob a coroa maior de Momo, o rei do carnaval, e uma chuva de papel picado. Todos juntos, no desfile gresilense de 2002, devorando e sendo devorados, celebrando o “país tropical” sob as “bênçãos” de Carmen Miranda. O refrão principal do samba do desfile, enfaticamente, não deixa mentir:

Hoje o couro vai comer! Auê, Imperatriz! Auê, auê! Nossa tribo canta o meu país

613 TREVISAN, Anderson Ricardo. A Construção Visual da Monarquia Brasileira: Análise de Quatro Obras de Jean-Baptiste Debret. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 3, jul. 2009. Disponível em: . 614 Ibidem, p. 15. 615 Ibidem, p. 15. 616 Ibidem, p. 16. 289

Pra valer!

A Imperatriz Leopoldinense, tribo do mesmo bairro que dá nome ao Cacique de Ramos, cantou, em 2002 e nos dez anos anteriores, um Brasil acima de tudo alegre. E cantou pra valer, com os dentes à mostra.

Figura 140: Cenário para o Bailado Histórico, de Jean-Baptiste Debret. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jean-Baptiste_Debret_-_Cen%C3%A1rio_para_o_ Bailado_Hist%C3%B3rico.jpg.

Figura 141: Recorte do Cenário para o Bailado Histórico, de Jean-Baptiste Debret; um anjo desfila sobre cisnes brancos adornados com guirlandas de flores, numa cena de mitológica delicadeza. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jean-Baptiste_Debret_-_Cen%C3%A1rio_para_o_ Bailado_Hist%C3%B3rico.jpg.

290

Figura 142: Detalhes da parte da frente da alegoria 03 do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 1995, intitulada O Cais. As grandes esculturas de cisnes brancos são adaptações para a linguagem carnavalesca do desenho elaborado por Debret para o Cenário para o Bailado Histórico, obra de 1818. A destaque Walquíria Miranda representava A Partida, exibindo belíssima fantasia em cores escuras. Atrás da destaque, esculturas de escravos negros carregando cestos com galinhas e frutos tropicais, também inspirados nas pranchas de Debret, circundavam uma representação alegórica do chafariz do Mestre Valentim, situado na atual Praça XV de novembro, às portas do cais de onde partiu a primeira expedição científica brasileira, rumo ao Ceará, durante o Segundo Império, em 1859. Fonte: MAGALHÃES, R. Fazendo Carnaval, p. 57.

291

Figura 143: Alegoria 07 do desfile gresilense de 1996, intitulada A chegada de D. Leopoldina ao Rio de Janeiro. Fonte: MAGALHÃES, R. Fazendo Carnaval, p. 32.

Figura 144: Desembarque da Princesa Leopoldina, pintura de Jean-Baptiste Debret. Rosa Magalhães adaptou para a cenografia do carro alegórico elementos observáveis na tela – embora nada tenha justificado nos textos apresentados ao júri e ao público em geral. A visão monumental da história brasileira e o apreço pelos temas imperiais são exemplificados pelo diálogo. Fonte: http://www.dezenovevinte.net/bios/bio_jbd_arquivos/debret_desembarque_leopoldina.jpg. 292

Figura 145: Borboletas que ajudavam a compor a cenografia da alegoria 05 do desfile gresilense de 1996, intitulada A visão romântica que D. Leopoldina tinha do Brasil. Novamente, é flagrante o contraste entre as cores da exuberante natureza do Brasil e o luxo em dourado das cortes européias. Fonte: MAGALHÃES, R. Fazendo Carnaval, p. 68.

293

Figura 146: Desfilantes da ala Borboletas, no desfile da Imperatriz Leopoldinense de 1994. O animal, presente no último setor do desfile de 2002 (nos turbantes de Carmen Miranda), é um dos que mais aparecem nos desfiles de Rosa Magalhães do período de 1992 a 2002, expressando as maravilhas da natureza tropical. Fonte: MAGALHÃES, R. Fazendo Carnaval, p. 40.

294

Figura 147: Carro Abre-Alas da Imperatriz Leopoldinense, no desfile de 1996. A alegoria expressava a mesma simbologia presente na fantasia da Comissão de Frente, na qual araras e frutos tropicais adornavam as casacas de violinistas da corte austríaca, berço de Leopoldina. No carro, veem-se coroas e cornucópias douradas, estas derramando frutos tropicais (mangas, carambolas, cajus, maracujás, abacaxis, etc.) numa cena que evoca fartura, tropicalidade e esplendor natural. As cornucópias podem ser entendidas como referência ao “Pano de boca” do Teatro da Corte, pintado por Debret em 1823. Fonte: MAGALHÃES, R. Fazendo Carnaval, p. 67.

295

Figura 148: “Pano de boca” pintado por Debret, em 1823, considerado, por Lilia Schwarcz, a primeira alegoria do Estado brasileiro independente. Sobre a escada, aos pés da figura que representa o Imperador e o poder da coroa pátria, uma cornucópia derrama frutos tropicais – imagem da qual se apropriou a carnavalesca Rosa Magalhães, quando da concepção da cenografia do carro Abre-Alas de 1996. Fonte: http://people.ufpr.br/~lgeraldo/debret35a.jpg. Acesso em 05/12/2013.

Figura 149: Ritmista da bateria da Imperatriz Leopoldinense, durante o desfile de 1996. Na fantasia, a mescla entre o luxo da corte e a natureza tropical – com destaque para a onça-pintada, símbolo recorrente nas narrativas da carnavalesca. Fonte: MAGALHÃES, R. Fazendo Carnaval, p. 122. 296

Figura 150: Alegoria 05 do desfile gresilense de 2001, intitulada O plantio da cana. Ao redor de uma moenda de engenho, nobres com perucas e babados e escravos seminus dançavam e cantavam o samba de enredo sobre a cana-de-açúcar e a cachaça. Visão carnavalesca das proposições de Gilberto Freyre (a carnavalesca Rosa Magalhães mencionou a referência ao sociólogo), o carro sintetizava a união entre casa-grande e senzala, brancos e negros, ricos e pobres, num tom festivo e pacificado bastante caro aos ideais da aristocracia. Fonte: Portal Tantos Carnavais.

297

Figura 151: Alegoria 07 do desfile gresilense do ano 2000, representando os festejos carnavalescos ao redor das comemorações dos 500 anos do Brasil. Um grande Rei Momo, à frente do carro, convidava pierrôs, colombinas e arlequins à folia, todos em trajando verde, amarelo e dourado. O carnaval enquanto comunhão social e representação da maior alegria brasileira aparece em inúmeros desfiles concebidos por Rosa Magalhães no período de 1992 a 2002, como 1993, 1996, 1997, 2001 e 2002. Fonte: Revista Manchete n. 2499. Rio de Janeiro: Editora Bloch, 11 de março de 2000, p. 14.

Figuras 152 e 153: Esculturas do Rei Momo e de Lamartine Babo (enredo da escola de 1981) saúdam o público e “convidam a massa”, como cantava o samba de enredo, a cair na folia. Brancos, negros e índios, sob a coroa de Momo e o chapéu de Lamartine, deveriam sambar com a Imperatriz, celebrando os 500 anos da história oficial do Brasil. Fonte: Transmissão televisiva da Rede Globo.

298

VI – Conclusão – o índio e o alaúde; Macunaíma com Flash Gordon

Rosa na roda, rosa na máquina, apenas rósea.

(Carlos Drummond de Andrade – Anúncio da Rosa)

Sergio Paulo Rouanet, no ensaio A Coruja e o Sambódromo, imagina o voo de uma coruja, milenar símbolo da “razão universal”, sobre diferentes continentes, a fim de “investigar o presente” e descobrir se ainda há lugar para a racionalidade no mundo contemporâneo. A ave pousa em estratégicos pontos da geopolítica mundial, como Sarajevo, Berlim, Irã, Estados Unidos e México. Por fim, pousa no Rio de Janeiro, em plena Passarela do Samba, em meio a um desfile carnavalesco. A cena descrita por Rouanet é, do ponto de vista simbólico, deliciosa:

Ei-la (a coruja) no sambódromo. Há um grande desfile, um carro alegórico cheio de bananas e abacaxis, mães-de-santo girando com suas saias rodadas, Macunaíma fazendo gestos obscenos para a arquibancada e um samba-enredo composto pelo modesto autor deste ensaio. O tema é a emergência entre nós de um novo tipo de humanidade, sensual, espontâneo e intuitivo, em tudo diferente da humanidade gringa; o florescimento, em nosso meio, de um saber próprio, de uma ciência ajustada às particularidades nacionais; e o surgimento de uma nova moral, que convenha ao nosso clima, à nossa formação multirracial e às nossas raízes históricas. É demais para a coruja. Ela diz coisas sentenciosas que ninguém quer ouvir e voa, deprimida, em direção a um pouso incerto.617

A imagética provocação de Rouanet aparece enquanto exemplar máximo da “morte do universalismo”. O autor acredita que o historismo (termo utilizado em substituição a nominalismo, que ele considera “limitado à lógica e à teoria do conhecimento”618) triunfou sobre os ideais universalizantes dos iluministas. Em outras palavras, prevaleceu, ao longo do século XX, a atitude “historista” que rejeita o universal e exalta uma determinada particularidade (“época, comunidade, classe, raça ou sexo”619), postura fincada nas teorizações de Herder em torno do conceito de Volk. Para Rouanet, a perspectiva historista tornou-se hegemônica, no Brasil, refutando os “tentáculos” do monstro universal: “tentáculo colonial, tentáculo gringo, tentáculo

617 ROUANET, S. P. Obra citada, p. 50. 618 Ibidem, p. 53. 619 Ibidem, p. 53. 299

sexista.”620 O historismo teria se infiltrado tanto na direita quanto na esquerda (o dado mais preocupante)621, vendendo a falsa impressão de que há uma “Cultura” maior, entidade abstrata e negativa (o “sistema” global/internacionalista e massificante a ser derrotado), e culturas locais, resistentes, autênticas, estas sim – e apenas estas - valorizáveis do ponto de vista intelectual – uma interpretação grosseira, em suma, das subdivisões teóricas de Alfredo Bosi. Um dos exemplos fornecidos pelo autor é particularmente caro a este trabalho: “não podemos escutar um disco de música brasileira sem nos vermos confrontados com a particularidade da cultura carioca e com a tese implícita de que gringo não pode entender o Brasil porque nunca desfilou na Mangueira.”622 Christopher Dunn, autor norte-americano que vem pesquisando a Tropicália, seria, sob esta lógica, uma aberração cultural a ser desconsiderada. E o problema aumenta quando a lente se volta para o próprio país e reduz a complexa questão das identidades culturais a estereótipos nacionalistas que podem maquiar novos e velhos tipos de exclusão e preconceito – a postura historista, ao sabor do vento ideológico, pode afagar ou condenar os movimentos negro, gay, indígena e feminista, para ficar nos mais conhecidos casos (o temível relativismo em grau elevado). Eis o velho e elucidativo exemplo da Antropologia cultural: aos olhos de um historista ortodoxo, um índio que vive numa cidade grande e usa telefone celular e camisa do Flamengo não pode ser considerado um índio verdadeiro se não retornar aos confins da Amazônia, para uma comunidade incomunicável, ágrafa, de preferência jamais observada, o que dirá visitada por um homem branco. Também sob essa lógica reducionista, a violência a que as mulheres são submetidas em alguns estados teocráticos pode se tornar plenamente aceitável, as políticas de ações afirmativas e reparações históricas podem ser consideradas absurdas ou levianamente assistencialistas, os debates sobre o patrimônio imaterial e os direitos humanos tendem a ser esvaziados, um branco japonês pode ser impedido de militar no movimento negro, um artista de família nigeriana pode ser acusado de se furtar a produzir “arte

620 Ibidem, p. 54. 621 A questão é explicada da seguinte maneira: “O verdadeiro historismo é sempre de direita. Ele expulsa o universal como quem expulsa um ladrão e convoca o particular como quem chama a polícia. Ele está protegendo um patrimônio: a propriedade, a tradição ou a ordem social. Os historistas que se crêem de esquerda, ao contrário, combatem o universal porque o percebem como um agente de dominação. Eles se veem como rebeldes, e expulsam o universal como quem expulsa um batalhão de marines. É um erro. Pois o historismo é uma roupa feita sob medida para a direita. Vestir a esquerda com essa roupa é vestir um guerrilheiro com a roupa de Rambo.” Ibidem, p. 60. 622 Ibidem, p. 55. 300

autenticamente africana”623 - a lista de exemplos se desenrola por quilômetros, revelando que as discussões identitárias continuam abertas e levando pancadas. Indiretamente, Rouanet afirma ao leitor que limitar o Brasil à Mangueira ou a qualquer outro símbolo cristalizado no imaginário coletivo (o futebol, a feijoada, a caipirinha, as bananas, os abacaxis e os gestos obscenos de Macunaíma, como na descrição do carro alegórico do desfile imaginado) é cair no perigoso jogo das simplificações que tende a suprimir o debate intercultural, construindo muros invisíveis ao redor de uma determinada visão de Brasil a ser frivolamente defendida (com fins diversos, protecionistas ou segregacionistas624), por um lado, mas abrindo brechas, por

623 Eis um exemplo real, envolvendo o artista anglo-nigeriano Yinka Shonibare, com quem Rosa Magalhães dialogou, no carnaval desenvolvido em 2012, à frente da Unidos de Vila Isabel. Shonibare é um caso de artista cuja obra não pode ser de todo separada da biografia – e ele mesmo defende isso, nas entrevistas que concede. Negro nascido em Londres, cresceu em Lagos, na Nigéria, retornando à Inglaterra para estudar artes. E, a primeira aparente contradição, afirma que foi ao retornar a Londres que se descobriu negro e passou a refletir sobre a africanidade: “Penso que a minha negrura começou quando desci do avião em Heathrow. Vim para estudar pintura... Um dos meus professores veio ao meu atelier e disse-me – ‘Bom, você é africano, não é? Por que é que não faz arte tradicional autenticamente africana?’ Evidentemente, dados os meus antecedentes, fiquei muito chocado com a ideia de que tinha de entender o conceito de uma autenticidade africana pura, de que se esperava isso de mim. Negava o meu compromisso com o modernismo e com a modernização. Por isso decidi explorar a noção de autenticidade e do que ela poderia significar. Foi então que concluí que a ideia de lealdade ou de fidelidade é-nos sempre imposta pelos outros, de fora.” Nesse sentido, a guinada artística empreendida por Shonibare ao desenvolver séries de peças cuja matéria-prima são tecidos africanos surge como provocação a uma maneira de se encarar não apenas a arte, mas a cultura e a sociedade contemporâneas. Munido dessa visão desestabilizadora, Shonibare criou inúmeros figurinos vitorianos com panos de África; decorou ambientes palacianos (à la Ancien Régime) com explosivas estamparias tribais, refutando os afrescos europeizados e os papeis de parede em tons pastel; revestiu caravelas, naus e galeras – também o navio de guerra do Almirante Nelson - com grafismos “primitivos”; e travestiu de tribalismo o universo dos dândis (inclusive, na instalação fotográfica Dorian Gray, que não utiliza das estamparias, ele próprio incorpora o personagem de Oscar Wilde e representa o mais famoso dândi da literatura inglesa). No entanto, os internacionalmente festejados “tecidos africanos de Shonibare” não são de todo africanos, mas produtos inventados na Holanda, de inspiração nas estamparias de Java, na Indonésia – eis a ironia maior dessa questão intercultural. Segundo José António Fernandes Dias, holandeses e ingleses passaram a produzir em escala industrial os “falsos” batiks “para exportar para África no século XIX. Emblemas privilegiados da imbricação colonial, os tecidos ‘africanos’ funcionam na obra de Shonibare como um dispositivo particularmente eficaz, quer conceptualmente quer formalmente, para lidar com a sua condição de artista contemporâneo de origem africana e com os dilemas dessa condição.” Tem-se, evidentemente, um ótimo cenário para debates sobre identidades, ressignificações e hibridações culturais. Ver DIAS, José António Fernandes. Das esquinas do olhar. Artigo disponível no sítio http://www.artafrica.info/html/artigotrimestre/4/artigo4.php, acessado em 15/07/2012. 624 Rouanet declara: “Em sua forma plural contemporânea, o historismo não perdeu seu vínculo com o historismo clássico. A luta do particular contra o universal assume a forma de uma luta das culturas, no plural, contra a cultura, no singular. Esta é autoritária, elitista, hierárquica. As culturas, estas, são a pátria da diversidade, da tolerância, da indiferenciação democrática entre as várias produções do espírito, todas iguais em mérito e em dignidade, uma sinfonia tendo o mesmo valor que um comercial, Guimarães Rosa não sendo nem melhor nem pior que uma dupla sertaneja. A cultura castra, as culturas libertam. Na época áurea do historismo nazista, as pessoas sacavam seu revólver quando ouviam falar em cultura. Parafraseando um escritor francês contemporâneo, podemos dizer que quando ouve falar em cultura, o historista de hoje saca a sua cultura. Quero deixar bem claro que não estou desconhecendo as diferenças éticas e políticas entre os vários historismos. Uma coisa, evidentemente, é o historismo agressivo, que combate o universal defendendo a superioridade de uma raça ou nação, e outra o historismo tolerante, 301

outro, para o domínio das corporações estrangeiras e para a manutenção da crença de que o exótico, o pitoresco, o arcaico, o cafona, o gueto e o primitivo (termos todos polissêmicos, carregados dos mais conflitantes desdobramentos conceituais, elogios à pátria ou críticas preconceituosas) são marcas ontológicas do ser brasileiro, não havendo, aos olhos dos historistas tolerantes625, a necessidade de superação da malha sociocultural profundamente desigualitária sobre a qual o nosso país foi estruturado (a crítica maior feita ao tropicalismo), afinal, “o Brasil é isso mesmo”. Ora, é possível e desejável reduzir o Brasil a um rosto, a um cartão-postal, a uma comida típica? - questiona o autor. Quem, afinal, lucra com este brasilianismo626? Como se equilibrar nessa gangorra de interesses? As narrativas de Rosa Magalhães analisadas neste trabalho, felizmente, não oferecem uma resposta encerrada para tais questionamentos – e a interrogação maior está plantada no enredo de 2002, Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way! Substituídas as mães-de-santo por baianas fantasiadas de Carmen Miranda, o desfile desenhado por Rouanet é quase um retrato dos dois últimos setores da apresentação gresilense que levou as diferentes facetas da antropofagia para a Marquês de Sapucaí: há bananas e abacaxis, há Macunaíma fazendo gestos obscenos. Ao primeiro olhar, um quadro historista festivo (não por acaso a Tropicália no meio). Uma visão mais atenta, porém, revela que se está diante de um problema: uma obra de arte total da qual inúmeros eixos reflexivos podem ser extraídos – a relação entre patrocinador e artista, a reinvenção temática dada a negação do índio de tocheiro, a baseado em Herder, que o combate em nome da preservação de culturas distintas, mas equivalentes em valor. Uma coisa é negar a cultura universal com uma bazuca, e outra, com uma caiprinha. Uma coisa é o historismo racista, que aprisiona o indivíduo na particularidade do seu corpo e do seu sangue, e outra, o historismo etnológico, que o inscreve, simplesmente, em sua cultura.” In: ROUANET, S. P. Obra citada, p. 59. Grifo do autor. 625 Não seria melhor a expressão historistas festivos? Em certo trecho de seu ensaio, Rouanet menciona as lições historistas propagadas nos programas da apresentadora Xuxa Meneghel; um exemplo melhor, hoje, é o programa televisivo Esquenta!, da apresentadora Regina Casé, que se propõe a ser um “caldeirão” cultural do Brasil. Se por um lado o programa é elogiado por celebrar a diversidade e a multiculturalidade brasileiras, por outro é veementemente criticado por massificar culturas distintas e apregoar visões estereotipadas dos “guetos”; com palavras mais contundentes, o programa venderia a mensagem de que o Brasil, país misturado por natureza, é um lugar onde todos têm igual valorização social, o gari e o astro do show-business, o menino pobre da favela e a estrela-mirim da telenovela, o católico e o macumbeiro – ainda que os dados numéricos sobre renda e criminalização mostrem o contrário. Os mais revoltados acusam o programa de racista e elitista, uma vez que não condena as seculares segregações brasileiras. Resta a ideia de que o Esquenta! pode receber críticas (fundamentadas) semelhantes àquelas realizadas ao tropicalismo de décadas atrás. 626 Adaptação do conceito de orientalismo brilhantemente analisado por Edward Said em sua obra homônima, fundamental para os debates identitários e a análise discursiva dos imaginários historicamente construídos. Ver: SAID, Edward W.. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. 302

utilização de materiais de antigos desfiles para a confecção de um Abre-Alas autofágico, as justificativas sucintas e genéricas, as referências visuais não esmiuçadas, tudo isso compõe um objeto inapreensível em sua totalidade, intencionalmente inacabado, polifônico desde o texto de apresentação aos jurados (quando ocorre a assimilação da voz narrativa de Oswald de Andrade). É um objeto pensante e maleável passível de ser morto (ou condenado, pelas notas do júri, pelas críticas de Campos dos Goytacazes, pelos espectadores de 2002 e de 2013) caso uma classificação imediatista seja levada a cabo. Em sendo a antropofagia uma devoração permanente que supera a morte pura a simples, aqui não há um cadáver: antes um corpo despedaçado prestes a ser engolido, deglutido e assimilado em sua complexidade – para reverberar em novas e contraditórias leituras e interpretações. É evidente que o componente festivo existe: ele permeia as dez narrativas de enredo anteriores, de 1992 a 2001, como visto no capítulo V. Símbolos de país também são repetidos: o índio é o principal agente, os frutos, os animais, o carnaval, o verde e o amarelo compõem a cenografia. A antropofagia, grosso modo, é uma atitude da carnavalesca que independe da temática. Mas há contradições e peças que não se encaixam, brilhando aí as centelhas que mais interessam – de modo que, após o longo panorama apresentado, não seja leviano afirmar, aqui, que os dez enredos de Rosa Magalhães que desembocam em 2002 não são meras glorificações do Império nem exaltações simplórias de um país pacificado – tomar tal faceta como totalidade é comer a pele, a superfície, deixando aos corvos os músculos, os nervos, os ossos, o tutano. Os símbolos se transformam: o índio pode passar de bom selvagem a anarquista canibal em uma mesma narrativa; a cara do Brasil, questionada no samba de 1999, oscila, embriagada de cachaça – pode ser o índio, a mulher (Carmen Miranda, a Imperatriz Leopoldina ou Chiquinha Gonzaga), o jegue, o Rei Momo. A artista (usando lentes européias e brasileiras, coloniais, imperiais e republicanas, contemporâneas todas - se entendermos, como Felipe Ferreira, que a pós-modernidade alberga a multiplicidade de visões) reprocessa, ano após ano, um imaginário que apenas superficialmente se mostra equilibrado e crivado de “verdade”. Ao mesmo tempo em que se tem um mapa de Brasil delineado, como na Comissão de Frente coreografada por Fábio de Melo, na abertura do desfile sobre o Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae, há, nas obras de Rosa Magalhães, um país sem nenhum caráter - a metáfora macunaímica. Isso posto, encarar os enredos da autora como “aulas de História”, algo que costumeiramente se faz, é 303

mergulhar com tubarões: além dos indícios de que a identidade de uma agremiação (no caso, a Imperatriz Leopoldinense) pode condicionar o teor das narrativas, os textos e os desfiles, ainda que não explicitamente, expressam discursos em conflito e despertam múltiplas interpretações – afinal, como exigir verdade histórica de uma narrativa carnavalesca, constructo a serviço de uma festa em que se usam disfarces? Em 2002, a narradora se disfarçou de cronista pré-colonial, romântica, modernista e tropicalista – e desenvolveu visões que não são pontos pacíficos, a Tropicália que o diga. No mesmo ano, o reprocessamento criativo se tornou um exercício radical, experimentação artística embebida de metalinguagem: destruiu-se (devorou-se) o passado e construiu-se, agressivamente, a novidade. Indiretamente, a carnavalesca refutava a Verdade Tropical e entornava o Delírio – não há, em tal movimento, um suculento naco de crítica social? Além disso, tanto a visão de Rosa Magalhães não é excludente ou limitada às coisas nossas e às referências eruditas que elementos do que há de mais “mercantilizável” na cultura norte-americana (principal alvo dos historistas patriotas) são assimilados sem parcimônia em determinados momentos, como 1998. O enredo Quase no ano 2000 é um dos mais significativos nós do conjunto de narrativas observado porque parece, à primeira vista, um corpo estranho, um bicho-de-pé no pé do bicho-papão. Na verdade, o enredo apresenta um processo de construção e desenvolvimento visual semelhante aos demais, mudando apenas (não totalmente, vide o índio na última alegoria e o setor dedicado às flores e às belezas naturais; o ideal de unificação/pacificação social também se fez presente, não em escala nacional, mas global – donde brota a noção um tanto desgastada de “aldeia global”) o leque de referências. No primeiro setor do desfile, havia fantasias referentes a Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, Asas do Desejo, de Wim Wenders, e Metrópolis, de Fritz Lang, indiscutivelmente cult movies do cinema autoral. No mesmo setor, brincava a ala Flash Gordon, referência despreocupada a um produto da cultura de massa. Na alegoria 04, Homem na Lua, personagens de filmes hollywoodianos disputavam o espaço cênico: Super-Homem, Darth Vader, os extraterrestres da série Homens de Preto, todos cantavam e dançavam com os rostos encobertos por máscaras importadas dos parques temáticos da Flórida. É como se na estante de Rosa Magalhães a série Guerra nas Estrelas dividisse a mesma prateleira com filmes de arte alemães; os quadrinhos de Flash Gordon figurassem ao lado de Macunaíma, o que não é surpreendente, afinal, os círculos culturais não são estanques, muito menos incomunicáveis (a já debatida ideia 304

de circularidade e mediação cultural) – quantos são os casos de obras consideradas “menores” que, com o passar do tempo, ganham o status de cults, sendo redescobertas e ressignificadas num outro contexto? Quem, entre nós, está completamente imune às influências dos mass media? No campo (minado) dos estudos universitários627, é relevante a mera identificação de elementos da cultura erudita em uma obra de arte popular ou tal procedimento tende a fortalecer a ideologia do escalonamento cultural, podendo ser utilizada para justificar a “importância” de um dado trabalho (os desfiles de Rosa Magalhães, por exemplo) apesar do caráter popular irrefutável – visão preconceituosa, portanto? É possível e/ou desejável, hoje, reorganizar a passeata contra a guitarra elétrica? O problema, a rigor, sequer passa pelo último questionamento, ainda que tal visão não tenha morrido nos anos 60. Indubitavelmente, não se deve ter medo de Virginia Woolf, de Carmen Miranda, dos palhaços das cavalhadas. Poetizando à Carlos Drummond, da tensão entre A Rosa do Povo e O Nome da Rosa pode surgir um terceiro tom (não confundir com terceira via), mistura fluida de difícil classificação nas gavetas do popular, do massivo e do erudito – pós-moderna, trans-moderna, ultra-moderna, qual a melhor definição para a amálgama de referências a desfilar na Passarela do Samba?628 Autores literários como Mário de Andrade, Ariano Suassuna (este, um fiel

627 A “sinuca” em que o saber universitário se encontra é abordada por Alfredo Bosi, autor que, ao falar das culturas brasileiras, afirma que há um fosso entre as universidades e a realidade social brasileira, predominando a crença de que apenas o conhecimento cultivado nas Academias, secularmente em diálogo com a cultura erudita e as fontes canonizadas, é digno de análise, num ciclo de retroalimentação que impede o diálogo com “o mundo exterior”. Segundo Bosi, a descontrolada abstração das discussões acadêmicas pode levar à perda da sensibilidade para a compreensão do “contexto preciso” de um texto, perdendo-se, consecutivamente, a “capacidade da interpretação histórica concreta.” Em outras palavras: a discussão tende a se esgotar nos limites dos livros, não rompendo as paredes das salas-de-aula. Além disso, adverte o autor, a sociedade de consumo (como os programas televisivos do gênero informativo e as revistas não-científicas) costumam simplificar “os resultados da cultura acadêmica”, despreocupados que são com o rigor de uma pesquisa. Como a “cultura universitária” deve se comportar, então, diante das culturas popular e de massa? Numa seara em que respostas prontas são perigosas, a consciência ético/política de que fala Guattari e a necessidade da humanização dos saberes expressa no elogio ao “amor” (termo que, numa primeira leitura, pode parecer piegas, romanticamente anacrônico, aos olhos da razão científica) de teóricos como Luis Alberto Warat, Thierry de Duve e Paulo Freire convergem para um caminho possível. Alfredo Bosi também fala na necessidade de envolvimento afetivo entre pesquisador e “objeto” pesquisado, cultura erudita e cultura popular: “para entrar no cerne do problema, só há uma relação válida e fecunda entre o artista culto e a vida popular: a relação amorosa.”; “o ponto nevrálgico do problema é sempre aquele: só há uma relação válida e fecunda entre o homem erudito e a vida popular – a relação amorosa.” Bosi também não descarta o engajamento político: ocupar os espaços institucionalmente disponíveis e levar para as esferas da governança os debates travados nas Academias é uma necessidade, infelizmente contrastante com a realidade em que se encontra a enferrujada máquina política brasileira. Ver: BOSI, A. Obra citada, p. 317, 331 e 334. 628 Tal concepção de cultura popular dinâmica, fluida, num fluxo de intercâmbios e tensões (observável em autores como John Storey, Chandra Mukerji e Michael Schudson), nos remete aos tempos pós- 305

militante a favor da rabeca, contra a guitarra elétrica) e Guimarães Rosa são exemplares de o quanto a “cultura popular” “colhida” nas ruas e a “cultura erudita” “garimpada” (aqui, uma escolha lexical intencionalmente provocativa) em bibliotecas, museus e salas de espetáculo podem ser fundidas em uma mesma obra, de modo tão organicamente coeso que as fronteiras se diluem, o São Francisco de Riobaldo se mistura ao Reno de Alberich. Fronteira, uma das pedras de toque das teorizações de Néstor García Canclini, autor cuja visão sobre as hibridações culturais contemporâneas ajuda a compreender o papel desempenhado por Rosa Magalhães. Na visão do teórico, é fato que o projeto moderno latino-americano não foi superado, sequer vivenciado em sua plenitude, o que põe em xeque o prefixo pós: como falar em pós-modernidade latino- americana se tampouco a modernidade e o seu culto ao progresso foram efetivados socialmente?629 O dilema ajuda a explicar, de maneira inconclusa (Canclini admite que

modernos e à visão fragmentária de que falam Lyotard, Baudrillard e outros, mencionados por Pedro Alexandre Sanches quando da análise da Tropicália. É relevante tencionar a problemática e mostrar que há autores, como Linda Hutcheon, que não veem a pós-modernidade como um “monstro” (maneira como Sanches se refere ao contexto); explica Hutcheon que simplesmente atacar o pós-moderno não contribui para as aplicações concretas das discussões no cenário cultural contemporâneo, caindo o intento do pesquisador em perigosas e inoperantes polarizações. Nas palavras da autora: “O pós-modernismo ensina que todas as práticas culturais têm um subtexto ideológico que determina as condições da própria possibilidade de sua produção ou de seu sentido. E, na arte, ele o faz deixando visíveis as contradições entre sua auto-reflexividade e sua fundamentação histórica. Na teoria, seja ela pós-estruturalista (...), marxista, feminista ou neo-historicista, as contradições nem sempre são tão visíveis, mas costumam estar implícitas (...). Entretanto, caso se ignore metade da contradição, fica muito fácil considerar o pós- moderno como neoconservadoramente nostálgico/reacionário ou radicalmente demolidor/revolucionário. Eu afirmaria que precisamos tomar cuidado com essa eliminação da complexidade total dos paradoxos pós-modernistas.” In: HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. História, Teoria, Ficção. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1988, p. 15. Grifo do autor. A visão de Hutcheon serve para se pensar a obra de Rosa Magalhães enquanto conjunto de narrativas eminentemente contraditórias, o que não faz delas automáticos subprodutos culturais, como pode sugerir uma visão superficial da crítica de Pedro Alexandre Sanches aplicada ao tropicalismo. Como diz a autora, é preciso relativizar a “retórica apocalíptica” que só faz desejar a implosão do pós-modernismo e condenar as linguagens híbridas, como a empregada pela carnavalesca no desfile de 2002; o desafio, para Hutcheon, está no questionamento e na contestação, importantes para que estratégias de negociações socioculturais não-submissas sejam traçadas e apresentadas pelas vozes secularmente menos ouvidas nos debates políticos nacionais e internacionais – no cenário brasileiro de hoje, como não pensar na questão indígena? 629 Nos termos de Canclini: “A perspectiva pluralista, que aceita a fragmentação e as combinações múltiplas entre tradição, modernidade e pós-modernidade, é indispensável para considerar a conjuntura latino-americana de fim de século.” Diz o autor que os “quatro traços ou movimentos definidores da modernidade: emancipação, expansão, renovação e democratização” se manifestaram na América Latina, mas de maneira “contraditória e desigual”, permanecendo as seculares desigualdades socioeconômicas, os entraves ao acesso a serviços básicos, públicos e de qualidade, como saúde e educação, bem como a fragilidade dos regimes políticos e as visões de cultura arraigadas a modelos antigos, de matriz conservadora. A democratização, por exemplo, “foi conquistada com sobressaltos” – as ditaduras militares não deixam mentir. Canclini questiona se a expansão, em particular a econômica, é o aspecto mais estagnado do desenvolvimento latino-americano e defende que “a crise conjunta da modernidade e das tradições, de sua combinação histórica, conduz a uma problemática (não uma etapa) pós-moderna, no sentido de que o moderno se fragmenta e se mistura com o que não é, é afirmado e discutido ao mesmo tempo.” Conclui, por fim, que há muito de equivocado na noção de pós-modernidade 306

“toda conclusão está atravessada pela incerteza”630), a emergência de híbridos culturais que transitam entre o arcaico e o contemporâneo, o popular massivo e o erudito, no contexto global como um todo, mas principalmente nos países emergentes, onde tais práticas culturais (o carnaval das escolas de samba, por exemplo) ocupam um espaço pouco trabalhado/controlado pelo poder público, tendo de negociar a sua sobrevivência com diferentes agentes, com vista aos mais diversos interesses. Grafites que ressignificam monumentos de bronze, nas praças e nos parques nacionais, são exemplares do diálogo conflitivo entre visões “monumentalizadoras” de cultura e práticas urbanas de acento desestabilizador (que, no entanto, podem ser apropriadas pela “alta cultura” e usadas para colorir as galerias de um museu ou os figurinos desfilados por uma grife, em uma passarela de fashion week). Diante dessa plasticidade e da “obsolescência frequente dos bens culturais”631, surgem artistas “que prosseguem sua carreira simultaneamente, sem excessivos conflitos, no campo culto e no popular-massivo.”632 Eis a definição de artistas anfíbios, aqueles “capazes de articular movimentos e códigos culturais de diferentes procedências.”633 Canclini utiliza Caetano Veloso e Astor Piazzola como referenciais da música latino-americana; pensando na Europa e nos Estados Unidos, menciona, entre outros, os cineastas Roman Polansky, Milos Forman e Francis Ford Coppola. O cinema tupiniquim também ganha destaque: Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade são considerados realizadores cujas obras apresentam ductibilidade e complexidade estética, propondo “reflexões sobre a hibridez da cultura brasileira.”634 Ora, a carnavalesca Rosa Magalhães pode ser inserida nesse rol de realizadores que fundem, em suas criações, feixes culturais aparentemente conflitantes (José de Alencar e Chacrinha, Metrópolis e Flash Gordon), adequando-os ao contexto carnavalesco do desfile e, portanto, ressignificando-os na Passarela do Samba.

festejada por uma gama de teóricos pouco preocupados em entender a complexidade da conjuntura latino- americana: “a essa altura percebe-se o quanto tem de equívoca a noção de pós-modernidade, se quisermos evitar que o pós designe uma superação do moderno. Pode-se falar criticamente da modernidade e buscá- la ao mesmo tempo que estamos passando por ela? Se não fosse tão incômodo, seria preciso dizer algo assim como pós-intra-moderno.” In: CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1998, p. 352/353 e 356. 630 Ibidem, p. 354. 631 Ibidem, p. 360. 632 Ibidem, p. 361. 633 Ibidem, p. 361. 634 Ibidem, p. 361. 307

O grande problema observado por Rouanet e ironicamente trabalhado no Manifesto Antropófago II diz respeito ao modo como a antropofagia, este conceito cristalizado no imaginário nacional (o problema da idolatria e da desmovimentação de que falam alguns autores consultados, entre eles Pedro Alexandre Sanches) e invocado para justificar qualquer prática intercultural (crítica que já era feita quando da eclosão tropicalista, como visto no capítulo III.1.4., especificamente com relação à posição dura de Roberto Schwarz e às ressalvas de Gilberto Gil), tem sido reiteradamente praticada pela sociedade de consumo e pela intelectualidade brasileira contemporâneas: devoram- se “gordas ideias europeias, nédias como frades, roliços filmes americanos, nutritivos como um Big Mac. Na hora do brinde, os convivas repetem o grito de guerra dos caetés: morte aos modelos estrangeiros.”635 Trata-se de uma contradição performativa encarnada em uma determinada prática antropofágica que “virou gastronomia oficial, com lugares marcados na mesa, talheres de prata e copos de cristal.”636 Metaforicamente, Rouanet ataca aqueles que simplesmente engolem o produto estrangeiro, não reprocessando a “comida” no sistema cultural brasileiro, encravado na complexidade latino-americana, mas reproduzindo-a ao mesmo tempo em que a nacionalidade é defendida:

É uma antropofagia muito esquisita. Ou os alimentos saem como entraram, sem nenhuma transformação. A passagem pelo tudo digestivo não altera nada, e o que era americano continua americano. Ou há uma pequena confusão na hora de sair. Em vez de guardar as proteínas da cultura estrangeira, devolvendo o resto, os caetés de hoje fazem o contrário. Eles rejeitam o que a cultura gringa tem de suculento e só absorvem o que ela tem de indigesto.637

O autor fala que mais do que a carne ou a gordura, os brasileiros caetés tendem a apreciar os calos estrangeiros638. A imagética é brilhante e deve ser aplicada ao universo

635 ROUANET, S. P. Manifesto Antropófago II, p. 51. 636 Ibidem, p. 51/52. 637 Ibidem, p. 52. 638 O próprio Rouanet trata a mesma questão com outras metáforas (um diálogo com Stanley Kubrick?), em Mal-estar na Modernidade: “O historismo dirá que vale, para a guerrilha cultural, o princípio de todas as guerrilhas: utilizar contra o inimigo as armas capturadas em combate, usar contra o gringo as lições aprendidas com o gringo. Não é nisso que consiste a antropofagia? Ao contrário, creio que é uma deformação da atitude antropofágica. Para Oswald de Andrade, deglutir o estrangeiro era aproveitar suas proteínas. O historismo latino-americano despreza a carne e contenta-se com os ossos. Ele os transforma em tacapes, e a primeira vítima é a cultura brasileira, pois o que ele devora da cultura européia não é o que ela tem de universal, mas o que ela tem de provinciano: seu etnocentrismo. Entendamo-nos: prefiro infinitamente uma identidade cultural baseada em Macunaíma, herói sem nenhum caráter, que a baseada 308

das escolas de samba cariocas, alvo constante da crítica “purista” segundo a qual a festa se transformou em espetáculo que faz questão de “chupar” influências “de fora”, como filmes de Hollywood e shows de ilusionismo. Para Rouanet, não há problema em devorar tais referências; mas há um problema digestivo grave caso elas não sejam reprocessadas pelo comilão, tão somente reproduzidas enquanto “macaqueação” (nos termos de Manuel Bandeira) de uma sintaxe simbólica desconectada de nossa realidade sociocultural – algo que, indiscutivelmente, tem sido tão praticado que exemplos são dispensáveis.639 O “canibalismo” problematizador, criativo e experimental é o tupinambá, que entende a identidade brasileira como algo negativo, aberto, nômade, inacabado e provisório, sem deixar de ser uma identidade. Trata-se de um modelo de antropófago com paladar mais delicado, apto a devorar sinfonias, bailes funk, teorias científicas, tratados filosóficos, peças de artesanato, filmes rodados em Los Angeles, ditados populares, canônes literários e apresentações de boi-bumbá da Amazônia, mas sempre em perspectiva, dialogando criticamente com o objeto observado e, consequentemente, politizando-o. Nos desfiles de Rosa Magalhães observados, principalmente no de 2002, o componente político se faz presente – de maneira não panfletária, por vezes tortuosa e de olhar anacrônico, convidando o leitor ao dilema. Ao mesmo tempo em que a autora não abandona o fêmur do bispo Sardinha (vide a sinopse do enredo Goitacazes... Tupi

em Siegfried, que tinha caráter demais. Mas no fundo não vejo grande diferença entre a atitude que idealiza Siegfried e a que idealiza Macunaíma. Fundar a especificidade germânica a partir das virtudes guerreiras e fundar a especificidade brasileira a partir das virtudes do jeitinho são duas variantes da atitude historista, contestáveis ambas.” In: ROUANET, S. P. Mal-estar na Modernidade, p. 92. 639 Eneida Maria de Souza contribui para a reflexão, uma vez que observa o seguinte: “O debate atual em torno da questão latino-americana é distinto daquele exercido nas décadas de 1940, 1960 e 1970, quando se buscava uma saída para os problemas da dependência cultural, utilizando-se a polaridade América Latina/Europa, América Latina/Estados Unidos. A antropofagia, conceito oswaldiano utilizado como resposta à cultura européia dominante dos anos 1920, encontra ressonância no pensamento contemporâneo através de outros canais de diálogo. Matar e comer o inimigo não constituem mais o problema, mas resta saber qual a identidade desse inimigo, uma vez que não mais se configura na sua transparência e nem a partir de um lugar estabelecido. A manifestação de uma alegria tropical e da aceitação nem tão mal-humorada da dependência forneceram a alguns teóricos brasileiros a ampliação do conceito de antropofagia para o de tropicalismo, dotado, contudo, de instrumental distinto daquele existente no Modernismo. A força da cultura de massa, elemento catalisador da circulação da moeda cultural e do rompimento de barreiras estéticas e elitistas, propiciou o salto para a pós-modernidade teóricas nestes nem tão tristes trópicos. O entre-lugar do discurso latino-americano, conceito forjado por Silviano Santiago, em 1971, (...) se filia à tendência tropicalista, dentro da tradição oswaldiana e modernista, sem se confundir com ela. Era preciso pensar a América Latina sem o traço amargo da dependência vivenciada por intelectuais marxistas, como é o caso do conceito das ‘ideias fora de lugar’, de Roberto Schwarz. Neste início de século, a pergunta dirigida aos estudos latino-americanos é de outra ordem e vários fatores de discórdia contribuem para o acirramento da discussão.” In: SOUZA, E. M. Obra citada, p. 157/158. 309

or not Tupi, in a South American Way!), parece claro que ela não apenas exaltou os tupinambôs e tabajères, em 1994: ela é uma antropófaga tupinambá preocupada com o reprocessamento temático das referências utilizadas e com a pertinência delas, cuidado intelectual que faz com que determinadas fontes (eruditas, populares e massivas - fronteiriças) não sejam meramente apropriadas e realocadas, mas semanticamente trabalhadas em relação a outras fontes e visceralmente transformadas – caso das menções a Debret, Gil Vicente, Michelângelo, Tarsila do Amaral, Montaigne, Thedore De Bry, Eichbauer, Albrecht Dürer, George Lucas, entre tantas outras. Um resultado parcial das digestões anuais realizadas até hoje, 2013 (com vistas ao carnaval de 2014, afinal, o calendário das escolas de samba é adiantado) foram desfiles do período de 1992 a 2002, marcados pelas linguagens imbricadas, pela complexidade narrativa, pelo regurgitar de alguns símbolos em específico e pela incessante reflexão sobre a identidade brasileira (com destaque para o elemento indígena). Perspectivados, os desfiles servem para que o nosso secular debate identitário seja atualizado sobre o asfalto do Sambódromo, espaço que não à toa leva o nome de Darcy Ribeiro. Mas, repete-se aqui, não se deve acreditar na suposição de que há uma resposta pronta para a indagação maior que perpassa as narrativas da autora: o que é ser brasileiro?640 Também, nesse ponto da caminhada, parece possível o entendimento de que a antropofagia de Rosa Magalhães representada pelo carnaval de 2002 é produto de uma série de práticas antropofágicas particulares, de conexões intelectuais em grande parte inapreensíveis e não-justificadas, o que torna o “conjunto da obra” bastante sedutor do ponto de vista acadêmico. Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way! serve de ilustração (as subdivisões do capítulo III revelam que a autora não se preocupou em especificar justificativas, defendendo os setores em blocos, por meio de explicações genéricas), mas a narrativa de 1998, Quase no ano 2000, é um exemplo radical: no Livro Abre-Alas daquele ano, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA, o roteiro de desfile, no espaço intitulado O que

640 Simone Pereira de Sá elabora o mesmo raciocínio em sua tese sobre Carmen Miranda, afirmando que a artista, acusada de corromper a identidade brasileira durante a passagem por Hollywood, ajudara a construir a mesma identidade, nos anos 30, ao lado de músicos como Ary Barroso e . Diz a autora que “refletir sobre a imagem de Carmen Miranda é estimulante, então, porque se trata de um tema que entrelaça o esforço da análise de um ícone da cultura de massas com uma discussão muito mais ampla: a da (re) invenção do Brasil e da brasilidade, nos anos 30, quando o samba, o Carnaval, o futebol, a alegria e a miscigenação tornam-se ‘naturalmente’ as ‘coisas do Brasil’, impondo-se enquanto expressões e elementos hegemônicos na construção da identidade nacional.” In: SÁ, S. P. Obra citada, f. 10.11. 310

representa, não apresenta qualquer especificação; em outras palavras, Rosa Magalhães não se preocupou com justificativas diferenciadas para cada fantasia e alegoria do desfile, preferindo condensar tudo no Histórico do enredo. Nos demais carnavais analisados, isso não ocorreu, mas o gosto por nomes de fantasias em repetição (como Índio I, Índio II, Índio III, um dos pontos penalizados pelo julgador Clécio Quesado, no que tange ao enredo de 2002), isso é observável em praticamente todas as narrativas investigadas. Serve, tal opção da carnavalesca, para se pensar o papel do roteiro de desfile, uma forma de guiar o olhar do observador. Ao preferir as poucas palavras, as visões genéricas, até mesmo os vazios, a artista se nega a demarcar caminhos pedagógicos, claros e pacificados para os olhos dos espectadores, jurados ou não. Qual a necessidade de dirigir o olhar, em um desfile de escola de samba? Néstor Canclini, ao questionar a teoria museológica que insiste em exposições evolucionistas e guiadas/roteirizadas, mostra que isso tende a enfraquecer o componente artístico do museu como espaço de vivência – e a expansão desse apontamento ao espaço da Passarela do Samba é possível e necessária. Indiretamente, Rosa Magalhães afirma que o desfile é um produto aberto a interpretações, podendo o excesso de “clareza” sufocar o potencial criativo. Quando o desfile se mostra uma colagem (com marcas de intencionalidade) de fragmentos, caso da apresentação de 2002, a abertura se torna ainda maior, carecendo os espectadores de um olhar mais inquieto e pluralista do que o necessário para a observação de um desfile menos experimental. José Celso Martinez Corrêa, no Manifesto do Oficina, declarou que n’O Rei da Vela oswaldiano (assim como no desfile de Rosa Magalhães), “aparentemente há desunificação. Mas tudo é ligado como as várias opções de teatralizar, mistificar um mundo onde a história não passa do prolongamento da história das grandes potências.”641 A desconexão entre as partes (o capítulo III tentou demonstrar isso) é aparente, ainda que baseada em negações: há fios costurando os pedaços, o que revela a engenhosidade autoral e o reprocessamento temático. Do alto dessa suposta fragmentação inquietante, antropofagia e tropicalismo mexeram com as visões de Brasil estabelecidas, nas décadas de 1920 e 1960, e ajudam, até hoje, a pensar a posição brasileira na geografia da cultura e da política globais – o enredo gresilense de 2002 é um herdeiro disso, que, a exemplo do Manifesto Antropófago e do ideário

641 CORRÊA, J. C. M. Obra citada, p. 28. 311

tropicalista, precisa ser constantemente reatualizado e pensado em relação a, não (como costumeiramente se faz) em si mesmo, peças de um museu sem grandes novidades. Luiz Costa Lima traduz em termos acadêmicos a provocação escrachada de Rouanet, no Manifesto Antropófago II, e defende que

o oposto da antropofagia é a mera aplicação do que se pensou ou fez nos centros de prestígio. Considerar a lógica (!), o parlamentarismo, as sublimações, mesmo que conflitivas, embalagens descartáveis não são atos antropofágicos mas sim provas de autojustificada ignorância. Não digo que o Manifesto Antropófago não tenha tido maiores consequências por sua orgulhosa imaturidade. Apenas digo que, para não o academizarmos, necessitamos nele distinguir o estrato fecundo de um agregado cujas consequências danosas continuamos a viver.642

Costa Lima e Rouanet advertem: a antropofagia oswaldiana não se esgotou em 1928 nem é um campo pacificado, mas uma construção discursiva em processo que se for tomada enquanto “verdade” perde o componente crítico e se converte em idolatria. Da mesma forma, diz Felipe Ferreira, o carnaval das escolas de samba está enredado em discursos; assim, ao invés de compreendê-lo “como um campo pacificado e neutro”, deve-se atinar para “as tensões que normalmente passam despercebidas sob o manto da verdade estabelecida.”643 Nenhum dos onze desfiles observados na segunda metade deste trabalho aglutinou mais tensões que o desfile que motivou a realização e serviu de núcleo reflexivo da pesquisa, Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way!. Um evento de cultura popular como o desfile investigado é um “processo de diálogos, tensões, imposições e concessões (...)”644, um objeto indócil, cambiante, portanto impossível de ser “concluído” em uma dissertação. Mais do que catalogar apontamentos ou listar resultados, é importante, aqui, reforçar o entendimento de que a antropofagia de Rosa Magalhães são antropofagias em processo, não se limitando a questão a uma análise acadêmica, que nada mais é que um discurso entre discursos, um olhar entre olhares, um componente em um desfile de percepções. Reacendem-se as letras do olhar

642 COSTA LIMA, Luiz. A Vanguarda Antropófaga. In: ROCHA, J. C. de C.; RUFFINELLI, J. (Org.). Obra citada, p. 371. 643 FERREIRA, F. O triunfal passeio do Congresso das Summidades Carnavalescas e a fundação do carnaval moderno no Brasil. In: FERREIRA, F. Escritos Carnavalescos, p. 102. 644 FERREIRA, F. Estratégias de sobrevivência: o surgimento das escolas de samba no Brasil de Getúlio Vargas. In: Obra citada, p. 152. 312

dialético de Didi-Huberman, certamente aprovado pela coruja de Rouanet645, que, sábia, não se deixaria enganar pela capa de felicidade historista do Delírio tropical – veria, com seus olhos de murucututu, o emaranhado de problemas a ferver por debaixo dos ossos e aprovaria a coragem e a “rebeldia madura” de uma realizadora de poucas palavras e mecha rosa no cabelo. Frise-se, antes que o último componente deixe a Praça da Apoteose, que esta é apenas uma das leituras passíveis de serem extraídas de um multifacetado e contraditório desfile. Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way! certamente poderá servir de matéria para novas pesquisas, dispondo estas das mais divergentes conclusões. Brincar o carnaval, vestindo as fantasias, também é um modo de interpretar os enredos e refletir acerca do festejo carnavalesco e do papel de um desfile de escola de samba no cenário cultural brasileiro. Os despojos ao final das apresentações, nas ruas do Centro do Rio de Janeiro, certamente têm mais a contar sobre as inquietações carnavalescas que o trabalho por mim empreendido; as memórias, os relatos registrados e os desencontrados, os elogios e as vaias de todos aqueles que participaram e ajudaram a construir a apresentação gresilense de 2002 ou qualquer outro desfile são incontáveis, mutáveis, no mais das vezes inalcançáveis. Que a brincadeira não tenha fim.

645 Diz o autor, ao final da viagem da coruja, que “Ouvi uma vez um jovem estudante, que tinha feito uma tese esplêndida sobre o Carnaval, atacar sua orientadora, uma professora alemã, alegando que os alemães não podiam entender a cultura brasileira, porque não tinham ‘jogo de cintura’. A professora respondeu que o jogo de cintura fora inventado pelos alemães – eles o batizaram com o nome de ‘dialética’. Nesse ponto, exibidíssima depois que a chamei de volta, a coruja me interrompe para dizer que foram seus patrícios que inventaram a dialética, e não os alemães. Que importa, ó pássaro de Minerva? Essa corrente ininterrupta que se estende de Platão a Hegel e deste a Joãosinho Trinta é a melhor comprovação da tese iluminista da unidade do gênero humano.” In: ROUANET, S. P. Obra citada, p. 93. 313

Figura 154: Rinoceronte, xilogravura de Albrecht Dürer, de 1515. Em exposição no British Museum, Londres. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/02/D%C3%BCrer_rhino_full.png. Acesso em 07/12/2013.

Figura 155: Adaptação do rinoceronte de Dürer para o carro Abre-Alas da Imperatriz Leopoldinense, no carnaval do ano 2000. Fonte: Transmissão televisiva da Rede Globo.

314

Figura 156: Detalhes da parte frontal da alegoria 04, Homem na Lua, do desfile de 1998 da Imperatriz Leopoldinense. O Super-Homem e o robô R2D2, da série de filmes Guerra nas Estrelas (símbolos da cultura de massa) compõem a cenografia, mostrando que a antropofagia de Rosa Magalhães não fica restrita a um determinado círculo cultural. Fonte: Transmissão televisiva da Rede Globo.

Figura 157: Escultura do Super-Homem, na parte frontal da alegoria 04, Homem na Lua, do desfile gresilense de 1998, com enredo Quase no ano 2000. Fonte: O Globo.

315

Figuras 158 e 159: À direita, cartaz do filme Metropolis, de Fritz Lang (1926); à esquerda, detalhe da alegoria homônima do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 1998. O cult movie do cinema alemão foi transformado em carro alegórico pela carnavalesca Rosa Magalhães. Fontes: Transmissão televisiva da Rede Globo; foto do autor.

Figura 160: Alegoria 07 do desfile gresilense de 2001, intitulada Homenagem a Carlos Cachaça. Rosa Magalhães levou a Estação Primeira de Mangueira para dentro da Imperatriz Leopoldinense, colorindo de verde e rosa a escola cujas cores são o verde, o branco e o ouro. A singular (e plural) antropofagia da carnavalesca permitiu tal ousadia. Fonte: O Globo. 316

Figuras 161 e 162: Elementos composicionais da alegoria 04, Homem na Lua, do desfile gresilense de 1998. Personagens da série Guerra nas Estrelas, sucesso de bilheteria em escala global, atravessaram a Passarela do Samba no mesmo cortejo em que se viam referências a exemplares do cinema de arte, como Metropolis e Asas do Desejo. Fonte: Transmissão televisiva da Rede Globo.

Figura 163: Cartaz do Espisódio IV (curiosamente, o primeiro a ser filmado e lançado) da série cinematográfica Star Wars (Guerra nas Estrelas), dirigido por George Lucas. Personagens observados no cartaz foram transportados pela carnavalesca Rosa Magalhães para a alegoria 04 do desfile gresilense de 1998. Fonte: Arquivo do autor.

317

Figura 164: Detalhes do carro Abre-Alas do desfile da Imperatriz Leopoldinense de 2001, representando os folguedos e as justas populares que surgiram ao redor do imaginário das Cruzadas, lutas entre mouros e cristãos. A utilização de símbolos da “cultura popular”, como as máscaras dos palhaços das cavalhadas (cabeças de bois decoradas com flores e fitas), revela que a carnavalesca Rosa Magalhães não se limita a um determinado conceito de cultura, ao misturar os ingredientes do seu caldeirão antropofágico. As fronteiras se diluem e o resultado são criações visuais complexas, nem sempre bem aceitas pelo público e pelos jurados. Fonte: Minha Revista – Especial Carnaval 2002. Editora Escala: São Paulo, fevereiro de 2002, p. 40. 318

Rosa Magalhães, em frente à última alegoria do desfile de 2002 da Imperatriz Leopoldinense. Fonte: Centro de Memória do Carnaval - LIESA.

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- Sinopses de enredo e Livros Abre-Alas da LIESA, disponíveis para consulta no Centro de Memória do Carnaval - LIESA:

MAGALHÃES, Rosa. Não existe pecado do lado de baixo do Equador. (Carnaval 1992).

MAGALHÃES, R. Marquês que é Marquês do Sassarico é freguês. (Carnaval 1993).

MAGALHÃES, R. Catarina de Médicis na Corte dos Tupinambôs e Tabajères. (Carnaval 1994).

MAGALHÃES, R. Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube, lá no Ceará... (Carnaval 1995).

MAGALHÃES, R. Imperatriz Leopoldinense honrosamente apresenta: Leopoldina, a Imperatriz do Brasil. (Carnaval 1996).

MAGALHÃES, R. Eu sou da lira, não posso negar. (Carnaval 1997).

MAGALHÃES, R. Quase no ano 2000. (Carnaval 1998).

MAGALHÃES, R. Brasil, mostra a sua cara em: Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. (Carnaval 1999).

MAGALHÃES, R. Quem descobriu o Brasil foi Seu Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do carnaval. (Carnaval 2000).

MAGALHÃES, R. Cana-caiana, cana roxa, cana fita, cana preta, amarela, Pernambuco... Quero vê descê o suco, na pancada do ganzá! (Carnaval 2001).

MAGALHÃES, R. Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way! (Carnaval 2002).

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332

VIII – Anexos

01. Sinopse de enredo da Imperatriz Leopoldinense para o carnaval de 2002:

Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way!

Campos dos Goytacazes era terra dos ferozes índios Goitacá. Além de ferozes e belicosos, esses índios corriam e nadavam com muita destreza; andavam tão rapidamente que seus inimigos raramente conseguiam alcançá-los e essa habilidade era também aproveitada na caça de animais silvestres. Exímios nadadores, quando um tubarão se lançava contra eles, batiam com tanta força que o matavam, aproveitando seus dentes afiados para as pontas de suas flechas devastadoras. Divididos em 3 tribos: Goiatacá-Mopi, Goiatacá-Jacoritó e Goiatacá-Guaçu, eram temidos pelos colonizadores, e o alto grau de cultura neolítica atingido por eles lhes garantiu o reconhecimento como uns dos mais evoluídos índios brasileiros e os que os mais contribuíram para a formação do povo fluminense. A antropofagia era geral entre os indígenas de várias gerações, e significava a realização de vingança contra seus inimigos. Antropófagos são os tupi-guaranis, que tanto dão que fazer... (terminaram comendo o Bispo Sardinha). Mais feliz foi Hans Staden, que depois de vários meses sendo criado para pitéu, consegui escapar para contar sua história. Ao descobrir um canibalismo real, a Europa viveu um grande impacto. Peri, o tapuio, é um chefe goitacá, erroneamente apelidado de O Guarani. Na cena final, abraçado à palmeira, com Ceci, no leito do Paraíba, desce com a inundação rumo às planícies campistas - "Peri beijou Ceci, ao som do Guarani"... de Carlos Gomes. O índio é apresentado sob diversas facetas no decorrer da evolução do próprio país. Um grande movimento veio sacudir a arte brasileira, nos idos anos 20, dando início ao Modernismo no Brasil. No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente... A natureza na brasilidade modernista é simbolizada na selva. "Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade", anotou Oswald de Andrade. 333

Somos bárbaros! Avante! ...e avante fomos com um movimento que se seguiu logo ao modernista da Semana de 22. Inicia-se uma nova era, a Antropofágica. Tupi or not Tupi, that is the question... Alegria é a prova dos nove... Filhos do sol, encontrados e amados pelos imigrados, pelos traficados e pelo turista, no país da cobra grande. Nunca fomos catequizados, fizemos foi carnaval. O índio vestido de senador do Império, ou figurando nas óperas de Alencar, cheio de bons sentimentos portugueses. Contra o índio tocheiro, afilhado de Catarina de Médicis. Sabe-se que o manifesto antropofágico teve um precedente no manifesto canibal dadaísta. Não há nada de espantoso nisso: com os sucessos arqueológicos e etnológicos e a voga do primitivismo e da arte africana, no começo do século XX, era natural que a metáfora do canibalismo entrasse para a semântica dos vanguardistas europeus. A nossa Antropofagia, entretanto, é bem diferente. Assimila as influências externas, funde com a nossa natureza nacional e produz uma obra totalmente transformada em sua essência. A Antropofagia é a única filosofia original brasileira e o mais radical dos movimentos que produzimos. Tem seus frutos na eclosão do Tropicalismo (iniciou-se na música brasileira). O Tropicalismo alegoriza o nacionalismo e os produtos da indústria cultural. Neo- antropofágico ou alegórico, o Brasil não é tratado como a essência mítica perdida, um paraíso devastado, estilhaça-se o Brasil. Gil e Caetano criam uma mistura, própria da linguagem carnavalesca, associada à prática antropofágica oswaldiana. Uma revivência de arcaísmos brasileiros, que se chamou de “cafonismo”. O cafonismo e o humor, responsáveis pelo caráter lúdico das canções tropicalistas.

Eu organizo o movimento Eu oriento o carnaval os olhos verdes da mulata A cabeleira esconde atrás da verde mata, o luar do sertão Mas seu coração balança a um samba de tamborim Viva Iracema - ma ma Viva Ipanema - ma ma Viva a banda - da da 334

Carmem Miranda da-da-da-da

Rosa Magalhães Carnavalesca - Ano 447 da deglutição do Bispo Sardinha

02. Justificativa do Enredo Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way!, presente no Livro Abre-Alas da LIESA de 2002, disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA:

O enredo para o ano de 2002 da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense chama-se Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way!. Este título resume todo o conteúdo do enredo. Goytacazes são os índios que habitavam a região onde hoje se encontra a cidade de Campos, no norte fluminense, índios esses que foram completamente dizimados. Nossa origem étnica e cultural, entretanto, tem muito a dever aos índios. A antropofagia foi descoberta com muita surpresa pelos europeus. E é essa antropofagia que se torna o fio condutor do enredo. Entretanto, José de Alencar viu o índio de forma romântica. O índio apaixonado pela donzela que habitava uma fortaleza. Carlos Gomes tomou conhecimento dessa história na Itália, onde estudava, pois lá se vendia um folhetim sobre um certo índio goitacá. Era a história de José de Alencar, que inspirou o compositor a criar a sua ópera O Guarani, que, apesar de possuir esse título, trata de um chefe goitacá. Ceci desce numa folha de palmeira, no leito do rio Paraíba, rumo às planícies campistas... A Semana de Arte Moderna de 22 foi a mola propulsora para o modernismo no Brasil, porém o movimento antropofágico de 1928 se torna a primeira silosofia de cunho nacional. O manifesto antropofágico de Oswald de Andrade e o desenho de Tarsila do Amaral são elementos decisivos para uma nova era nas artes. Na música brasileira, o tropicalismo de Gil e Caetano transforma-se em neoantropofagismo. O Rei da Vela é um marco no Teatro Oficina, uma rebeldia nos anos de censura e ditadura política. Macunaíma vira filme através da visão de Joaquim Pedro de Andrade, e Chacrinha é o rei da comunicação.

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Carmen Miranda, tropicalista por natureza, síntese dessa visão antropofágica, foi ao exterior não para importar, mas para exportar os ritmos, a exuberância e a cor do Brasil, sem medo de ser cafona... Viva Ipanema Carmen Miranda da da da da

Rosa Magalhães

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