UNILETRAS Gêneros e Sexualidades Dissidentes ou Queer/Cuír/Quir nas Américas: artes, políticas e escrituras UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA

Reitor Luciano Vargas

Diretor do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes Luis Fernando Cerri

Departamento de Estudos da Linguagem Eliane Santos Raupp

UNILETRAS

Equipe Editorial Marly Catarina Soares Lucan Fernandes Moreno

Editor do Dossiê Marcelo Spitzner

Revisor ortográfico Marly Catarina Soares, Lucan Fernandes Moreno e Marcelo Spitzner

Revisor de lingua inglesa Johann Serman Domaradzki

Conselho Editorial

Agnès Levécot - Sorbonne - Paris Maria Tereza Amodeo - PUCRS Alexandre Soares Carneiro - UNICAMP Orna Messer Levin - UNICAMP Antonio Donizeti da Cruz - UNIOESTE Pedro Carlos Louzada Fonseca - UFG Clarice Nadir Von Borstel - UNIOESTE Regina Dalcastagnè - UnB Danglei de Castro Pereira - UEMS Rosane Cardoso - UNIVATES Fernando de Moraes Gebra - UNILA Rozana Aparecida Lopes Messias - UNESP/ASSIS Luciana Marino do Nascimento - UFAC Tânia Regina Oliveira Ramos - UFSC Luís Isaías Centeno do Amaral - UFPEL Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa - UFMG Marcus Vinicius de Freitas - UFMG Valdirene Zorzo-Veloso - UEL Maria Cristina de Almenida Mello Laranjeira - UC Vilson Leffa - UCPel Maria Cristina Fernandes Salles Altman - USP Antonio Donizeti Da Cruz - Unioeste Maria Marta Furlanetto - UFSC

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UNILETRAS Gêneros e Sexualidades Dissidentes ou Queer/Cuír/Quir nas Américas: artes, políticas e escrituras V. 39, N. 2 Capa Viviane Motim

Editoração eletrônica Andressa Marcondes

UNILETRAS (Universidade Estadual de Ponta Grossa). Departamento de Estudos da Linguagem - DEEL. Ponta Grossa, PR, Brasil, 1979 -

Anual de 1979-2007. Semestral 2008-.

ISSN 0101-8698 - impresso CCN 078192-4 1983-3431 - on-line

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2017 SUMÁRIO

149 Apresentação: Gêneros e Sexualidades Dissidentes ou Queer/Cuír/ Quir nas Américas: artes, políticas e escrituras – contextualização e apresentação Marcelo Spitzner

Dossiê Temático Gêneros e Sexualidades Dissidentes ou Queer/Cuír/Quir nas Américas: artes, políticas e escrituras

Nosso caos, nosso cosmos: notas sobre a memória e a cultura lgbt 157 brasileira Remom Matheus Bortolozzi e Felipe Areda

Sobre questões de gênero e imagens: um olhar sobre alair gomes 175 Tatiana Brandão de Araujo e Cláudia Mariza Mattos Brandão

Devir-terror: o inconciliável e o dialógico nas ações estético- 189 políticas do Coletivo Coiote Andiara Ramos Pereira

escrita de si, escrita da diferença 203 Mauricio Marques de Souza (Maurin K)

Feminismos quir: arte e ativismo na América Latina nos vestígios das 221 ditaduras Bárbara Ahouagi (Re)lendo gêneros, sexualidades e Estado normativo em Pelo Malo 233 Claudia Mayer

Cuba: (im)possibilidades queer na era da tolerância 243 Lourdes Martinez-Echazábal (tradução de Claudia Mayer)

lundu, padê, apocalipse cuír - Entrevista com Tatiana Nascimento 257 Marcelo Spitzner, Tatiana Nascimento

Resenha: Translocalities/Translocalidades: Feminist Politics 269 of Translation in the Latin/a Américas. (2014). Durham: Duke University Press, 2014. Thaís Ribeiro Bueno

Tema livre

Um estudo enunciativo de à luz do 277 hipergênero histórias em quadrinhos Ivan Vale de Sousa

Dona de casa ou dona de si? Um estudo sobre a representação 293 feminina em produtos de limpeza e alimentícios Ricardo Santos David

Aprender e ensinar a escrita: contribuições dos novos estudos 311 do letramento na formação inicial de professores de língua Giselle Cristina Smaniotto

English teachers’ identities concerning their knowledge of 321 slang Fábio Henrique Rosa Senefonte APRESENTAÇÃO

GÊNEROS E SEXUALIDADES DISSIDENTES OU QUEER/CUÍR/QUIR NAS AMÉRICAS: ARTES, POLÍTICAS E ESCRITURAS – CONTEXTUALIZAÇÃO E APRESENTAÇÃO

Marcelo Spitzner*

A partir da concepção de queer como projeto epistemológico ao invés de identitário, im- plicando uma abrangência crescente de questões, reflexões e debates acerca de gêneros e sexualidades, e de seu impacto sobre a construção de conhecimento sobre o que é normativo, normal, legal, próprio, este dossiê, levando adiante a proposta do simpósio temático celebra- do no II Desfazendo Gênero, em setembro de 2015, na cidade de Salvador – Bahia, se propõe a discutir de que maneira se expressam as experiências das dissidências sexuais em contextos nacionais, em que os engajamentos e as identidades sociais, culturais e políticas são histo- ricamente controlados por estados normativos. Aquele simpósio temático intitulado (im) possibilidades queer nas Américas – políticas, artes e epistemologias/ (im)posibilidades cuír en las Américas: políticas, artes y epistemologías/queer (im)possibilities in Américas: politics, arts and epistemologies e coordenado por mim e pela Professora Doutora Lourdes Martinez-Echazábal se propunha a debater: - de que maneira pensamentos e ativismos não normativos ou não-binários encontrariam espaços legítimos dentro do estado, da academia e outras instituições sociais; - os modos como expressões culturais e políticas se relacionam com formas de expressão não normativas, especialmente nos últimos 20 anos; - de que maneira intersecções entre eixos identitários distintos (sexo, gêneros, raça, etnia, religião, deficiência, origem, etc.) podem ser, desde perspectivas queer, (trans)feministas e não-normativas, vivíveis dentro dos domínios dos estados latino-americanos e suas políticas sociais; - meios para promover uma discussão que vise apontar a ingerência do Estado sobre os corpos das pessoas a fim de liberá-los de suas práticas repressoras; - que possibilidades artísticas e intervenções políticas podem desestabilizar a disciplina dos espaços acadêmicos e sócio-culturais.

* Professor de Estudos Literários da Universidade Federal Rural da Amazônia, Campus Tomé-Açu. Contato: marcelospit- [email protected][email protected] . Nesse sentido, propúnhamos que a discussão partisse de uma ideia de queer como um campo radicalmente instável e sob constante re-significação rumo a projetos políticos cada vez mais (im)próprios, de forma a sistematizar formulações teóricas no âmbito de uma epis- temologia da diferença a partir de configurações brasileiras e latino-americanas. Dessa for- ma este dossiê se propõe ainda a abrir um espaço de interlocução e de reflexão crítica sobre concepções políticas, teóricas e artísticas que contribuam para ampliar o ativismo queer em movimentos sociais diversos e nos âmbitos acadêmico e artístico. Percebem-se nos últimos anos aproximações sociais e cooperações econômicas, sobretudo incentivadas pela emergência das novas esquerdas ao poder, que podem nos levar a pensar que novas afinidades podem ser destacadas e, que, à medida que essas vozes historicamente silenciadas fortalecem seus discursos, novas redes de solidariedade e novos instrumentos de contestação da colonialidade do poder se instauram, a região pode desenvolver o que Walsh apud Costa (2010, p. 51) chama de pensamiento propio latino-americano. Segundo a autora,

[n]este sentido, pensamiento propio é sugestivo de um pensamento crítico diferente, que pretende marcar uma divergência com o pensamento dominante ‘universal’ (incluindo suas vertentes críticas, progressistas e de esquerda). Essa divergência não se destina a simplificar o pensamento indígena ou negro, ou relegá-lo à categoria ou estatuto de pen- samento localizado, situado e culturalmente específico e concreto, isto é, como nada mais que ‘conhecimento local’ entendido como mera experiência. Pelo contrário, é apresentar seu caráter político e descolonial, permitindo uma conexão entre os vários pensamientos propios como parte de um projeto mais amplo de pensamento crítico e ‘outros’ conhecimentos.

Isso me faz acreditar, e apostar, na possibilidade de uma teoria queer a partir espaço geopolítico reconhecido como Sul, pensada através das inúmeras produções culturais que colocam em xeque as normas de gênero, sexualidade, classe, localização, religião, fronteiras, contribuindo para a construção de novas cosmologias e epistemologias a partir de outros lu- gares de enunciação e, sobretudo, a partir de outros sujeitos de enunciação, de maneira que aquilo que Spivak (2010, p. 20) fez notar de que “algumas das críticas mais radicais produzidas pelo Ocidente hoje são o resultado de um desejo interessado em manter o sujeito do Ocidente, ou o Ocidente como Sujeito” possa ser posto diante de uma espécie de “giro decolonial” da teoria queer. Mas, um processo decolonial também poderia apontar a presentificação do outro e o reconhecimento de sua posição de poder têm-se dado não só por meio da apropriação, mas pela produção de novos e de outros caminhos em que os saberes tradicionais, experiências de opressão e de transgressão podem ser potentes instauradores de outra economia política de conhecimento (Cuscicanqui). Este dossiê, entre outras possibilidades de leitura, busca entender como a teoria queer penetra, viaja e é recebida na América Latina e como a América Latina reage e re-impulsiona os estudos queer1. No entanto, é preciso fazer algumas ressalvas quanto ao uso dos termos “penetrar”, “viajar”, e “receber”, quando se trata de uma teoria ou de um campo de conheci- mento que parte de lugar geralmente econômica e politicamente hegemônico, como os EUA, para um país ou uma região, como o Brasil, especificamente, ou a América Latina, em geral2. Os termos “penetrar” e “viajar” carregam a carga semântica da ação de quem penetra e viaja ao passo que revela a passividade de quem ou do local penetrado ou em que se aterrissa. O termo “receber” também pode aludir a passividade do receptor. Portanto, esses termos podem se revelar como metáforas heterossexistas. Mesmo assim, pretendo, com os devidos cuida- dos, manter esses termos. Primeiramente para problematizar essa penetração, perturbá-la e sacudi-la demonstrando que o processo de recepção nem sempre é passivo e pacifico, que resistências e deslocamentos são constitutivos desses processos. O termo viagem, e sobretudo o verbo viajar me agradam muito pelo seu caráter transitivo. Ao mesmo tempo em que a teoria queer pode viajar do norte, como origem, para o sul como destino, o sul também faz com que a teoria retome o seu curso, mas com as bagagens alteradas. Além disso, na maioria das vezes, as rotas não são lineares. Nesse aspecto, para além desses cuidados que precisam ser tomados com os termos, há que se abrir a possibilidade de se repensar tanto a trajetória da teoria como a produção local para onde a teoria faz a sua viagem. Ou seja, quando se trata, no caso específico dos estudos queer, e seus, digamos, objetos críticos, tais como as sexualidades, a abjeção, o desejo e a crítica a heteronormatividade, poderíamos nos perguntar se esses objetos críticos já não estavam, de alguma maneira, sendo discutidos, pesquisados, problematizados em outros lugares e de maneira paralela ao campo teórico do Norte. Dessa forma, o primeiro problema é investigar a produção teórica da problematização dos corpos/das corporalidades/das sexualidades no Sul, na América Latina, e na sua relação com a produção teórica do Norte, sobretudo dos EUA (embora a França e a Espanha possuam papel relevante para discussão) para entender como a teoria queer se comporta. Mais ainda, pensar de que maneira se efetiva uma tradução cultural ou uma apropriação da teoria queer no sul. Essa tradução cultural se concretizaria numa teo- ria queer do Sul? Essa pergunta nos leva a discussão sempre presente da tradução do próprio termo “queer”. Outro problema que é muito relevante é a profícua discussão a respeito das sexualidades não normativas que já existiam na América Latina, e no Brasil particularmente. Podemos nos perguntar se não seria essa produção uma teoria queer avant la lèttre. Autoras/es

1 Usarei aleatoriamente os termos ‘teoria’, ‘estudos’ e ‘políticas’ queer para referir-me a abordagem queer. Minha tendên- cia, no entanto, é preferir o termo estudos quando se tratar de abordagens sistematizadas na academia, e políticas quan- do a abordagem queer colocar em jogo as relações sociais, as atitudes cotidianas e nas relações com as instituições, ou ao que poderíamos chamar biopoder (para Foucault) ou farmacobiopornopoder (para Preciado) ou ainda à sexo-política colonial. Claramente, prefiro estudos à teoria, pois entendo que a abordagem queer é um campo bastante heterogêneo, muito mais do que um sistema teórico auto evidente e com fronteiras bem definidas.. 2 Raywen Connell, em entrevista a Miriam Adelman e a Carmem Rial (2013) reivindica a Austrália como Sul, apesar de ser um país economicamente considerado de Primeiro Mundo. como Néstor Perlongher, João Silvério Trevisan, Leila Míccolis e Herbert Daniel já não estariam levantando questões e oferecendo análises sofisticadas, assim como também transgressivas, para questionar a sociedade hetero-normativa-capitalista. [Não teríamos, então, umas teorias devassa-viada-bicha-mona-marica-marimacha-sapatão-plebeya-delinquente?] Assim como para Lisa Rose Bradford,

Clave en nuestra discusión sobre la importación y la integración de bienes culturales es cuestionar la hegemonía de los conceptos de original y copia de la llamada “política de linealidad”. Si las secuencias de la lectura de comienzo, final y continuidad pueden, como ha sugerido Edward Said, reemplazarse por elementos de repetición, diferencias, dis- continuidad de apertura – la “lectura doble” de la desconstrucción – se podrán priorizar las relaciones complementarias y los comienzos en vez de los Orígenes. De esta forma, el valor prioritario Del original se diluye en el énfasis que se pone en la transculturación en su proceso generador en lugar de traductor. Ya vimos ejemplos de la disyunción que realiza la traducción en el ámbito de cultura y géneros, y dentro de la historia de la traducción, han existido distintas manifestaciones de la manipulación de los paradigmas importados para el beneficio de la cultura receptora. (1999-2000, p. 35)

Diante disso, talvez fosse a hora de se perguntar se a teoria queer, com todo o seu aparato, não suplanta todo um campo de conhecimento, ou seja, se a teoria queer, ao mesmo tempo que se afirma como uma teoria libertária e pós-identitária, paradoxalmente estabelece novo colonialismo e imprime, outra vez, uma identidade marcadamente anglo-franco-americana, onde poderia florescer, a partir de múltiplos saberes-teorias-epistemologias outras políticas e economias de conhecimentos sobre os corpos, as corporalidades e os desejos. Este dossiê, como se vê a seguir, demonstra que a política de linearidade a que se refere Bradford é constantemente questionada e posta à prova e, como mostram Remom Matheus Bortolozzi, Felipe Areda, no ensaio Nosso Caos, Nosso Cosmos: Notas sobre a Memória e a Cultura LGBT Brasileira, há todo um arcabouço conceitual produzido por pensadoras LGBT que podem contribuir com a formação de um vocabulário de reflexão de nossa comunidade e construir conceito de cultura LGBT e sua ligação com o projeto político de criação de uma memória comunitária. Por outro lado, Tatiana Brandão de Araujo e Cláudia Mariza Mattos Brandão, em seu artigo Sobre Questões de Gênero e Imagens: um olhar sobre Alair Gomes, demonstram como olhar de Gomes objetifica o outro, logo e ao direcionar o seu olhar deixa de subverter a lógica binária do modo de ver ocidental. As autoras lançam mão de teóricas como Judith Butler e Laura Mulvey para sustentar as reflexões que apresentam, além de John Berger que alicerça a discussão sobre imagem como resultante de um ponto de vista único, uma (re)apresentação ideológica do mundo. Andiara Ramos Pereira em seu texto Devir-terror: o inconciliável e o dialógico nas ações estético- -políticas do Coletivo Coiote analisa duas ações estético-políticas do Coleito Coiote a partir das noções de terrorismo poético, de pornoterrorismo e de contrassexualidade e Mauricio Marques de Souza (Maurin K), em escrita de si, escrita da diferença, esboça uma cartografia a partir do mapeamento da publicação de fanzines no Brasil, Argentina e EUA. Essas ações e cartografias, como bem demonstra Maurin, “fazem da contraconduta de sexo e gênero uma ferramenta de desmantelamento do capitalismo cognitivo e buscam criar territórios existenciais mais fluidos a partir da escrita e da arte”. Da mesma maneira, no artigo Feminismos quir: arte e ativismo na América Latina nos vestígios das ditaduras, de Bárbara Ahouagi, apresenta-se uma reflexão crítica de ações que permeiam a arte, o ativismo e questões relevantes aos múltiplos feminismos, de diferentes partes da América do Sul, cuja condição marginal aproximam-se da perspectiva quir. Bárbara escolhe grafar o termo queer como quir, visando adaptar o termo à língua por- tuguesa e desconectá-lo irônica e poeticamente de sua origem em uma intenção simbólica decolonialista. Alguns autores de países periféricos também têm utilizado a grafia cuir, com a mesma intenção. Nesse dossiê, Claudia Mayer utiliza a grafia cuír. Há, além disso, diversas tentativas e intensos debates sobre tradução literal ou cultural do termo queer. Esse dossiê não está alheio a tal debate, mas está no cerne de toda compreensão de dissidências sexuais com que nos deparamos nas diversas manifestações artísticas e políticas aqui expressas. É certo que a potência da crítica queer/quir/cuír traduz-se nas intensas experiências marginais, de rua, nos corpos racializados, daqueles compreendidos como abjetos e que seguem afetando e resistindo à ordem colonial-capitalista. Seguindo esse intenso debate, os dois últimos artigos do dossiê refletem sobre as relações dos sujeitos queer/cuír frente aos Estados normativos. Assim, Claudia Mayer, em seu texto intitulado (Re)lendo gêneros, sexualidades e Estado normativo em Pelo Malo, apresenta uma análise da relação entre o estado normativo e a experiência da sexualidade dissidente no filme vene- zuelano Pelo Malo, fundamentando sua análise na proposta de decolonização epistemológica constituída nos trabalhos de Gloria Anzaldúa, Walter Mignolo e Aníbal Quijano a fim de cons- truir uma crítica à normatividade do Estado e contribuir com o fortalecimento dos projetos de libertação epistemológica do Sul Global frente aos violentos avanços neoliberais. Por sua vez, no artigo Cuba: (Im)possibilidades queer na Era da Tolerância, especialmente traduzido por Claudia Mayer para esse dossiê, a professora da University of California Santa Cruz, Lourdes Martinez-Echazábal, expõe o ostracismo e o ativismo LGBT em Cuba após a Revolução de 1959 e uma mudança significativa no enquadramento dos direitos LGBT na ilha pós anos 1990. Martinez-Echazábal levanta quatro importantes questionamentos a que busca responder em seu artigo. Seus questionamentos pautam as mudanças discursivas e institucionais dos direi- tos LGBT nas última décadas em Cuba; a maneira como a circulação transnacional de ideias sobre gênero e sexualidade influenciaram o ativismo e os estudos LGBT numa ilha que esteve relativamente isolada dos movimentos e da produção acadêmica globais até recentemente; a possibilidade de imaginar a cuiridade como algo além do modelo de governança binário hete- ronormativo que, desde os princípios da Revolução, marcou o modelo estatal e como artistas respondem a essas mudanças nesses contextos. O dossiê encaminha-se para a finalização com uma entrevista com Tatiana Nascimento, a tate, intitulada lundu, padê, apocalipse cuír - Entrevista com Tatiana Nascimento, realizada através da troca de imeios. Foram em torno de 30 trocas de imeios enriquecidos por respostas, trocas de ideias e experiências a respeito de escritura, questões raciais, decoloniais, afetos, arte. A publicação dessa conversa com Tatiana realiza um desejo de compartilhar espaços de escri- tura com essa pessoa cheia de afetos, forte e desafiadora, como boa filha de Iansã que ela é! O texto final do dossiê trata-se de uma bela resenha, feita por Thaís Ribeiro Bueno, a respeito de uma obra monumental intitulada Translocalities/Translocalidades: Feminist Politics of Translation. Publicada pela Duke University Press e organizada por Sonia Alvares, Claudia de Lima Costa, Verónica Feliu, Rebecca J. Hester, Norma Klahn e Millie Thayer, contando com mais de uma dezena de artigos/capítulos, resultado de mais de uma década de trabalhos desenvolvidos no campo das teorias feministas articuladas por e para mulheres provenientes de etnias minoritarizadas e países periféricos. Dessa maneira, esse dossiê espera ser tanto uma contribuição como uma abertura para debates numa seara tão vasta de estudos e experiências acadêmicas, políticas e artísticas como o campo dos estudos queer/cuír/quir, das dissidências sexuais nas Américas. Por isso, não apenas desejamos boas leituras como futuras interlocuções.

Referências

BRADFORD, Rose Lisa. El sentido de la traducción (desde los márgenes). In: Dispositio/n, Vol. 24, nº 51, Ann Arbor, 1999/2000. COSTA, Claudia de Lima. Feminismo, tradução cultural e a descolonização do saber. In Fragmentos, Florianópolis jul-dez/2010.n.39, p.45-59. SPIVAK, Gayatri. Explanation and culture: marginalia. In: ______. The Spivak Reader. New York: Routhedge, 1996. ______Pode o subalterno falar? [Sandra Regina Goulart Almeida et alli.]. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. Dossiê Temático Gêneros e Sexualidades Dissidentes ou Queer/Cuír/Quir nas Américas: artes, políticas e escrituras

Doi: 10.5212/Uniletras.v.39i2.0001

Nosso caos, nosso cosmos: notas sobre a memória e a cultura lgbt brasileira

Our chaos, our cosmos: notes on brazilian lgbt memory and culture

Remom Matheus Bortolozzi* Felipe Areda**

Resumo: A partir das reflexões e angústias que percorrem nosso esforço empreendido na constituição de um acervo voltado para preservação, salvaguarda e instigação historiográfica da arte, memória e cultura LGBT brasileiras, esse artigo buscar tecer, ao modo de notas ensaísticas, reflexões sobre o conceito de cultura LGBT e sua ligação com o projeto político de criação de uma memória comunitária. Para esse escopo, retomaremos um arcabouço conceitual produzido por pensadoras LGBT que podem contribuir com a formação de um vocabulário de reflexão de nossa comunidade – tais como os conceitos de eu plural de Leila Miccolis, de cosmos e ethernidade de Zé Celso, de luto em Anderson Herzer, além de pensadoras estrangeiras como Susan Sontag, com a noção de sensibilidade, e de David M. Halperin, com suas investigações sobre cultura e subcultura gay e categoria gênero. Palavras-chave: Memória LGBT; Cultura LGBT; Decolonial.

Abstract: Through the reflections and distresses that follows our engaged efforts to the constitution of a collection guided to the preservation, safeguard and historiographical instigation of brazilian LGBT art, memory and culture, this article aims to fashion, through essay notes, reflexions about the LGBT’s culture concept and it’s conection with the designing of a community memory as a political project. For this purpose, we’ll retrieve a conceptual repertory legacy of LGBT thinkers that can aid with the formation of a reflexive vocabulary from our community – such as the concept eu plural from Leila Miccolis, cosmos e ethernidade from Zé Celso, luto from Anderson Herzer, besides foreigner LGBT thinkers as Susan Sontag, with her notion of sensibility, and David M. Halperin, with his gay culture and subculture investigations and his genre concept works. Key-words: LGBT Memory; LGBT Culture; Decolonial.

* Doutorando em Medicina Preventiva (USP), Mestre em Educação (UNB), Especialista em Gênero e Sexualidade (UERJ) e graduado em Psicologia (UFPR). Email: [email protected] ** Mestrando em Literatura (UFSC), Bacharel em Antropologia (UNB) e Licenciado em Ciências Sociais (UnB). Email: [email protected]

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 157-173, jul/dez. 2017 Disponível em: 157 Remom Matheus Bortolozzi e Felipe Areda

“Segue-se uma MATÉRIA, que perdição em nossas mãos e dela fazer a tinta lida com materiais vividos como o de escrita da nossa história. contrário de recordações: torna-se A lição de Benjamin nos foi ensinada pe- memória, com cheiro não auto- las obras de Leonilson (Fortaleza, 1957-1993). biográfico; apenas biofragâncias, O artista plástico cearense – em meio a epi- ou bioflagrantes.” demia da aids e o pânico social que transfor- Herbert Daniel, mava nossos corpos, desejos e amores na pró- Meu Corpo Daria Um Romance, 1984 pria doença – soube contaminar a vida com sua arte, com uma produção poética que se inscrevia a partir de fragmentos, escombros, Nossos trapos, nossa história ruinas. Bordando em pedaços de lençóis ou Walter Benjamin nos ensina a com- pintando com gotas de sangue, Leonilson preender a história como campo de batalha. alegoriza o esforço de construção de uma Nesse campo repleto de pessoas oprimidas, memória e de uma cultura LGBT brasileira mortas e derrotadas, o que chamamos de como uma escrita desde a perdição. João bens culturais nada mais são do que despojos Silvério Trevisan (2000, p.325), comentando de guerra. Como afirma Benjamin: “Nunca a obra de Leonilson, sintetizou: “Nosso trapo, houve um monumento da cultura que não nossa arte. ” fosse também um monumento da barbárie” Em 2010, iniciamos um projeto de cons- (1987, p.222). Por isso, diferente do historicis- tituição de um acervo voltado para preserva- ta que conta a história a partir de uma nar- ção, salvaguarda e instigação historiográfica rativa de progresso dos bens culturais, uma da arte, memória e cultura LGBT brasileiras. historiografia das subalternas sabe que “as- Passamos a nos dedicar a tarefa de aquisição sim como a cultura não é isenta de barbárie, de obras de arte, livros, periódicos, LPs e CDs não o é, tampouco, o processo de transmissão produzidos por lésbicas, gueis, bissexuais, da cultura” (1987, p.222-223), de modo que as travestis e transexuais brasileiras, ou que te- pessoas oprimidas precisam tomar a história matizem a diversidade sexual e a pluraridade em suas mãos buscando não os monumentos de expressões de gênero no Brasil. Com in- da cultura, mas seus fragmentos, seus mor- vestimento unicamente particular – a partir tos, seus escombros. A instrução de Walter de nossa parceria amorosa, estética, compa- Benjamin para uma historiografia das pes- nheira e política –, contabilizamos no início soas subalternizadas era estar ciente da ne- de 2015 dois mil e quinhentos itens – ainda cessidade de “escovar a história a contrape- sem catalogação técnica. A construção desse lo”, indo em direção contrária a narrativa do acervo pessoal, ligada a uma vocação cole- progresso, dos monumentos, da transmissão cionista, nos permitiu começar a engendrar da cultura – sabendo, enfim que “Nada do uma história subalterna, uma historiografia que um dia aconteceu pode ser considera- que se faz aos modos dos trapos bordados por do perdido” (1987, p.223). É preciso tomar a Leonilson, inscrevendo narrativas pessoais- -políticas-amorosas desde fragmentos.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 157-173, jul/dez. 2017 158 Disponível em: Nosso caos, nosso cosmos: notas sobre a memória e a cultura lgbt brasileira

O colecionismo foi apontado por Walter comando indicando dois princípios coexisten- Benjamin como alegoria de uma historio- tes. Do lado da ideia de “começo”, teríamos um grafia subalterna. Em seus escritos sobre a princípio ontológico, de natureza ou históri- infância, Benjamin apresenta a vocação co- co, o que nos faz buscar nos arquivos a ordem lecionadora ligada à forma com que a criança sequencial das coisas, onde elas começam. se relaciona com o mundo. A colecionadora Simultaneamente, do lado da ideia de “coman- – tal qual a criança que cria uma narrativa a do”, teríamos um princípio da lei, nomológi- partir de pedras e flores encontradas – ressig- co, que faz todo arquivo se erigir por meio de nifica o mundo, descontextualizando objetos arcontes, aqueles que controlam e guardam os achados em apropriações que criam novas arquivos. Nas mãos dos arcontes estaria o que histórias. Ao colecionar – afirma Benjamin Derrida chama de “poder de consignação”, o – “as crianças decretam a renovação da exis- poder de controlar e reunir os signos em um tência por meio de uma prática centuplicada sistema – haja vista que para existir um arqui- e jamais complicada” (1995, p.229). Diante do vo é preciso haver organização unificadora e Caos, a criança colecionadora cria Cosmos. totalizadora. O arquivo reúne os bens culturais sob uma “verdade patriarquívica” (DERRIDA, Cada pedra que ela encontra, cada flor 2001, p.13). Diante do arquivo, a criança sabe colhida e cada borboleta capturada já é para ela princípio de uma coleção, e que as ações de unificação, identificação e tudo que ela possui, em geral, constitui classificação promovidas pelos arcontes faz para ela uma coleção única. Nela essa todo documento cultural ser documento de paixão mostra sua verdadeira face, o barbárie – para a criança, organizar é aniqui- rigoroso olhar índio, que, nos antiquá- lar. O poder patriarcal do arquivo, a patriar- rios, pesquisadores, bibliômanos, só quívica, contrasta com a potência infantil da continua ainda a arder turvado e ma- ação de colecionar. Enquanto o arquivo, his- níaco. Mal entra na vida ela é caçador. toricista e nomológico, estabelece conexões Caça os espíritos cujo rastro fareja nas totalizadoras em sistemas fechados de leitu- coisas; entre espíritos e coisas ela gas- ra e interpretação, a colecionadora sabe ser ta anos, nos quais seu campo de visão sua coleção sempre fragmentar, incompleta, permanece livre de seres humanos. (...) Seus sonhos de nômade são horas na ávida pela descoberta de uma nova obra que floresta do sonho. De lá ela arrasta a renovará toda a coleção. Como afirma Sônia presa para casa, para limpá-la, fixá-la, Kramer, o(a) colecionador(a) para Benjamin “é desenfeitiçá-la. Suas gavetas têm de aquele[a] capaz de descontextualizar o objeto tornar-se casa de armas e zoológico, para que possa funcionar como texto, dispon- museu criminal e cripta. “Arrumar” se- do esse objeto e sua coleção de modo que, ao ria aniquilar... (BENJAMIN, 1995, p.39) interagir com um objeto, cada qual (adulto[a], jovem ou criança) conheça a história desse A colecionadora opõe-se ao arquivista. objeto e atribua a ele um de seus inúmeros Jacques Derrida, discutindo o conceito de possíveis sentidos” (KRAMER, 1998, p.210). arquivo, lembrou que na palavra àrkhese de- signa, ao mesmo tempo, a ideia de começo e de

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A patriarquívica faz com que arquivar individual e social, aproveitando situações não seja necessariamente preservar a memó- concretas de um jeito que as extrapole. Como ria. Derrida alerta que há um mal fundante explica a poeta Leila: nos arquivos que faz com que arquivar seja Falar em primeira pessoa, jogar nas muitas vezes esquecer. Para despatriarcali- reuniões a vivência particular como zar os arquivos, não basta, portanto, só lutar um dado político, quando então boia- para ter acesso ao seu conteúdo; é preciso vam claramente as formas de repres- sobretudo – segundo Derrida – garantir a são, a partir da família. Substituindo as democratização à participação na sua consti- palavras de ordem e os velhos chavões, tuição e na interpretação de seus conteúdos. surgia o eu, que está em todos nós, o Esse debate derridiano nos orienta para o es- eu plural, nosso emocional exposto não forço político que as comunidades LGBT pre- como uma sessão terapêutica (quem falou em doentes ou cura?), mas polí- cisam empreender na constituição de uma tica e patética. E poética. Não se falava memória coletiva a partir da construção de de repressão como uma palavra vaga territórios despatriarcais de criação de his- que passava ao longe, mas da nossa tória, de encontro de coleções, de produção própria, a que dormia e acordava co- democrática de arquivos mais infantis. nosco, na nossa cama. (MICCOLIS & A partir das reflexões e angústias que DANIEL, 1983, p.88) percorrem nosso esforço empreendido nos Para o escopo de relacionar o conceito últimos anos de constituição dessa coleção – de cultura LGBT com o projeto político de sempre em curso, aberto e fragmentar – e do criação de uma memória comunitária que sonho apaixonado de transformá-lo em um não silencie as múltiplas vozes dos eu plu- território de memória coletiva, esse artigo rais, retomaremos um arcabouço conceitual busca tecer, ao modo de notas ensaísticas, produzido por pensadoras LGBT que podem reflexões sobre o conceito de cultura LGBT e contribuir com a formação de um vocabulário sua ligação com o projeto político de criação de reflexão de nossa comunidade – tais como de uma memória comunitária. É parte dessa os conceitos de cosmos e ethernidade de Zé política a afirmação e a produção do nosso eu Celso, de luto em Anderson Herzer, além de em coletividade, isso que Leila Miccolis cha- pensadoras estrangeiras como Susan Sontag, ma de eu plural. Um dos grandes aprendiza- com a noção de sensibilidade, e de David M. dos dos primeiros anos do nosso movimento Halperin, com suas investigações sobre cul- foi a radicalização da constituição da política tura e subcultura gay e categoria gênero. da subjetividade na enunciação do eu. Isso significava tirar o eu do armário e afirmar um eu que vive, que sente, que deseja, que afeta Nossos mortos, nossa purpurina e que faz política a partir da forma que vive, Talvez o mais pungente poema de sente, deseja e afeta. O eu é anunciado como Anderson Herzer (Rolândia, 1962-1982) – um individual coletivo, a arte de esfumaçar poeta transexual paranaense que construiu a

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 157-173, jul/dez. 2017 160 Disponível em: Nosso caos, nosso cosmos: notas sobre a memória e a cultura lgbt brasileira maior parte de sua obra quando internado na calaram mais um homem iludido. Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor E no mundo não dão mais argumentos (Febem) de São Paulo – seja “Mataram João pra fugir aos lamentos Ninguém”. Quase sem acesso a uma escolari- de quem sozinho falece. Para esses, não há mais compreensão, zação de qualidade e com precária formação não há mais permissão, para que se literária, Herzer (1982) escreveu dentro de tropece. uma das principais instituições de contro- Na televisão, o aguardo da cotação le e opressão da Ditadura Militar brasileira um instante ocupado, para dizer morto um manifesto pelo direito ao luto das vidas João Ninguém quaisquer, indigentes, indiferentes, esqueci- mas a aflição ataca, a cotação subiu ou das e ignoradas – as vidas que, por não serem caiu? estimadas, não são lastimadas. e João morreu... ninguém ouviu. Eu vou distribuir panfletos, Quando o próximo sangue jorrar dizendo que João morreu daquele por quem ninguém irá chorar, talvez alguém se recorde daquele que não deixará nada para se do João que falo eu. lembrar Falo daquele mendigo que somos daquele em quem ninguém quis pelo menos em matéria de amor, acreditar. daquele amor que esquecemos de Quando seus olhos só puderem fitar o cultivar escuro o qual com tanto dinheiro, ninguém quando seu corpo já estiver inerte, frio jamais coroou. (HERZER, 1982, pp. e duro, 153-154) quando todos perceberem morto João Ninguém Herzer dizia que “um homem jamais e quando longe de todos ele será seu morre, enquanto sua existência for recorda- próprio alguém. da” (HERZER, 1982, p.161). Acreditando nes- Tantas mãos, tantas linhas incertas, se dizer, citamos seu poema na íntegra, na tantas vidas cobertas, sem ninguém afirmação política de dizer o nome desse João pra sentir, Ninguém que – depois de uma trajetória de Tantas dores, tantas noites desertas abandono e negligência familiar, intensa vio- tantas mãos entreabertas, sem ninguém pra acudir. lência policial, encarceramento e transfobia Qualquer dia vou despir-me da luta – se suicidou aos 20 anos. O livro A queda para pisar em coisas brutas, sem me o Alto contendo sua autobiografia e toda sua arrepender. obra poética foi publicada em 1982 e se tornou Tão difícil ver a vida assassinada um best-seller com várias edições e reimpres- quando estamos já tontos pra tentar sões, bem como inspirou o filme Vera, dirigido sobreviver. e escrito por Sérgio Toledo em 1987. Apesar As perguntas sem respostas, sem nada, disso, poucos da nova geração de LGBT bra- as vidas curtas e desamparadas sileiros conhecem o nome e os poemas de o último grito que não foi ouvido

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Herzer. O tema da morte e do direito ao luto FEBEM com o título: “Os menores es- percorria seus poemas. Para Herzer, a função crevem”. (HERZER, 1982, p.132) do poeta era a preservação da própria vida, de Nessa ocasião, Anderson Herzer con- modo que perder um poeta era perder a po- seguiu denunciar o fato para a presiden- tência de significação de toda a existência. No te do Movimento de Defesa do Menor, Lia poema “A morte do poeta, ele escreve” “Agora Junqueira. Lia apresentou Herzer para que as palavras de afeto se acabaram, / ago- Eduardo Matarazzo Suplicy, na época ra que não há mais amor em meu coração, / Deputado Estadual, que não só intercedeu agora que sinto que todos morreram, / por- para a devolução dos poemas, como também que quem nos falava de amor, está partindo.” para sua libertação da Febem. Herzer depois (HERZER, 1982, p.161) e no poema “Esquecido foi apresentado à Rosie Marie Muraro, da poeta morto afirma” “Todos vão esquecer que Editora Vozes, que propôs que a seus poe- um dia eu existi / nem meus vastos prantos mas fosse integrada uma autobiografia, re- vão sobreviver, / versos com poeira de minha sultando no livro Queda Para o Alto – lançado razão / sãs lembranças de um poeta solidão.” infelizmente no ano do seu suicídio. Essa (HERZER, 1982, p. 156) história mostra o esforço político de Herzer Esse melancólico poeta solidão, contudo, de inscrição da sua vida, obra e trajetória em fez de sua vida um desacato poético diante uma memória coletiva e como essa vontade do poder político do esquecimento – que faz precisou romper o poder de consignação dos a existência e a memória ser direito somente arcontes – no caso, apatriarquívica do Sr. de alguns. Em sua autobiografia conta que Humberto que precisa apagar a autoria de em certo momento, o diretor da Febem se Anderson Herzer para erigir um monumento apoderou de suas poesias dizendo que iria cultural institucional com perverso título “Os publicá-las. Contudo, ao ver a capa do esbo- menores escrevem”. ço do livro, percebeu que o diretor usaria as A poética de Herzer nos lembra que poesias para enaltecer a instituição que ele nós, LGBT, habitamos um mundo que não denunciava, apresentando-as como resulta- somente quer nos matar, como também do do desenvolvimento cultural que a Febem quer apagar os rastros de nossa existência. possibilitava nas adolescentes: Na história de Herzer, sua transexualidade [...] tive uma discussão com o Sr. se intersecciona com outras vulnerabilida- Humberto, porque pedi que ele devol- des intensificando ainda mais a violência e vesse minhas poesias as quais ele ha- o risco – a situação de marginalidade moti- via pego, dizendo publicar um livro em vada pelo abandono e negligência familiar, meu nome. Mas quando vi o esboço da bem como seu posicionamento etário, como capa, o sangue fervia nas minhas veias adolescente e, portanto, sujeito menor dian- pois ele me disse que não seria possí- vel lançar um livro com meu nome en- te da legislação totalitária da época. Sua luta quanto eu permanecesse na FEBEM. por inscrever sua produção para garantir o Portanto, seria publicado em nome da registro de sua existência e de outras pessoas

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 157-173, jul/dez. 2017 162 Disponível em: Nosso caos, nosso cosmos: notas sobre a memória e a cultura lgbt brasileira subalternas nos ensina como é imprescindí- facadas não cumpriu o que insistia, não ma- vel a constituição de uma memória comuni- tou Luís, não matou o-que-não-podia-morrer tária que grite os nomes de Joãos Ninguéns, dentro daqueles que matavam o corpo mortal que invoque seus e suas poetas e que nunca de Luís. As facadas não eliminam, marcando deixe a potência de significação da vida se as fronteira daquele que mata para garantir esvair. que é diferente do que é morto – ‘mato, não Na comunidade LGBT brasileira, um porque és diferente de mim, mas para insistir, dos nossos primeiros aprendizados é a ne- garantir e provar que sou diferente de ti’ –; cessidade de, em um contexto de tantas mas, pelo contrário, expõem cada vez mais o mortes, romper a narrativa das perdas de dentro que jorra marcando – lembrando – se vidas. Aprendemos a dizer: bicha não morre, misturando – as mãos de quem esfaqueia. A vira purpurina. Purpurina, aquele pó corante faca que se suja de sangue, tenta esfaquear metálico capaz de fazer brilhar alegria no que mais uma vez para tentar se limpar... e não toca, tornou-se símbolo do enfrentamento do se limpa, apesar das cento e duas facadas. Zé esquecimento e de como nossa vontade de lembra que Luís não morreu nas mãos de seu existir rompe com a própria morte. Metáfora assassino, lembra que os “vestígios” da “bicho- do contágio, espalha-se sem controle e limite na assassinada” não se perdem, mas passam e, em tudo que toca, marca fazendo também a constituir outros corpos – o dele inclusive – purpurinar. A radicalidade desse ensinamen- revelando a contínua agência das “emanações to foi tomada por Zé Celso ao narrar a morte imortalizadas deste Corpo” (CORRÊA, 2007). de seu irmão no poema “A ethernidade de Transvive há mais de um Século de Luís”, fazendo de sua escrita a afirmação Facadas! berrante que Luís Antônio Martinez Correa Quantas bastariam pra matar seu cor- (Araraquara, 1950-1987) não morreu. po de mortal? Em 1987, no dia 23 de dezembro às 14 E os assassinos apaixonados horas e trinta minutos, Luís foi assassinato Facadas com mais de cem facadas. Nesse ano, outras se perguntavam bichas viraram também purpurina. Os artis- Facadas tas plásticos Darcy Penteado e Jorge Guinle E quantas para Matar ? Facadas Filho morreram em decorrência do vírus Suicidar? da aids e o dançarino Carlinhos Machado, Facadas a Lotinha dos DziCroquettes, foi também Concentradas? assassinado. Em seu poema, Zé insiste que Facadas Luís não morreu, haja vista que facadas não epifanisadas? matam o que não pode morrer: “Matar o Facadas que não Morre Dentro ou fora dos Corpos nesse Corpo Luíz, Assassinos Com Milênios de Facadas no Facadas Assassinado” (CORRÊA, 2007). O século de sangrando sangue Facadas

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sangrando emanações , Os Assassinos Trágicos Bodes Facadas Que clamam vitais, ‘Chega de Bode!’ Facadas Não se assumem Bodes eróticas, Guardam-se em Armários Facadas Tentam suicidar o que está lá dentro homoeróticas, Escondido Facadas O divino mortal apaixonado perdido. poéticas, Transvive há mais de um Século de Facadas Facadas! cômicas, Quantas bastariam pra matar seu cor- Facadas po de mortal? (CORRÊA, 2007) trágicas, Facadas Zé lembra que Luís transvive. Se sua musicais, vida foi transviada, não seria diferente na Facadas morte, que agora por ele era subvertida, Nesse corpo Luíz invertida, rasurada e transformada – Luís Facadas que não morre transvive e nos lembra que vidas não devem Facadas ser dadas como mortas. O que as narrativas Apolo inCorporado mestras (dos mestres) fazem é insistir no de- Facadas saparecimento, na foraclusão de seu corpo impecável , abjeto e, principalmente, no silenciamento Facadas através da morte. Subvertendo essa narra- elegante tiva, o UzynaUzona, zelado Facadas por Zé Celso, todos os dias 23 de dezembro sorriso largo constante celebram – nos mesmo horário do assassi- Facadas Palhaço! nato de Luís – o chamado dia da Ethernidade Facadas de Luís A referência ao éter (ether) rememora Dionísios! a personificação grega do céu sem limites Facadas e a substância que gregos e gregas antigas Amante! associavam à ubiquidade, um fluido sutil e Facadas rarefeito que em tudo estava e era respira- Esse Corpo-Alma Enfeitiçado do pelas Deusas e Deuses. Em grego Αἰθήρ Estava dentro dos Corpos Assassinos (transliterado Aithếr) é derivado do verbo ATerrorizados αἵθω (aíthô), queimar ou ainda – tal como Com a Beleza purpurina – fazer brilhar

Matar o que não Morre todos os dias 23 de dezembro, as 14h30 Dentro ou fora dos Corpos Assassinos cultivamos na agricultura teatral este Com Milênios de Facadas no Corpo chamamos dia da Ethernidade Assassinado de Luís nós, da Associação Cambiante

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Teatro Oficina UzynaUzona, tiramos da vida: as emanações imortalizadas da Luis férias depois desse dia. – essa vida actante imortal. Estes ritos inspiraram sempre Nossos Em mundo que torna a morte interdida anos sequentes. As emanações imorta- – e que torna insignificante a vida de pessoas lizadas deste Corpo, vem trazendo a di- subalternizadas – presentificar a existência ficílima mas poderosíssima revolução de nossas mortas e mortos é um exercício de cultural brazyleira antropofágica, vivi- blasfêmia. Trata-se da construção de narrati- da em nossos Corpos. Os vestígios de Luís, ‘essa bichona assassinada’ como vas voltadas para irreverência do que é consi- na Rádio gritava o Atanásio, em seu derado inviolável: a morte, o silenciamento, Armário Boçal,vem nos inspirando to- a opressão. Blasfemar, como lembra Donna dos os fins-começo de ano. (CORRÊA, Haraway (2000), significa levar as coisas a 2007) sério e não abandoná-las, mas encarar dentro das comunidades a importância do enfren- Na peça Acordes – versão antropofágica tamento da inviolabilidade. A comunidade da ópera de Bertolt Brecht e Paul Hindemith LGBT, ao blasfemar contra a morte dizendo Das Badener Lehrstück Vom Einverständnis, de que não adianta tentar nos eliminar que so- 1929 – cuja estreia pelo Teatro Oficina ocorreu mos da ordem do brilho, da contaminação e no dia 08 de novembro de 2010 e terminou da ubiquidade, afirma a ethernidade de nossas sua temporada do dia da Ethernidade de Luís, existências. Nesse movimento, LGBT se des- há uma cena chamada de “contemplação dos locam do pensamento dominante – aquele mortos” em que é projetada a foto de Luís que a poeta lésbica francesa Monique Wittig Antônio Martinez Corrêa, diante da qual o (1992) chamou de straightmind (pensamento coro invoca sua presença saudando – presente! hétero, reto, correto, sóbrio, ordeiro) – apon- Atrizes, atores e o público começam então a tando a própria distinção entre vida e morte berrar o nome de nossos mortos-que-não- como uma distinção da ideologia hétero. -morreram com um coro que responde a cada A noção de ethernidade se alicerça em um nome – presente! Presente! Presente! Trata- conceito de memória e de comunidade. Falar se de um rito de invocação que retoma, de de uma comunidade LGBT, ou de uma comu- forma decolonial, concepções não-ocidentais nidade de pessoas que não seguem a heteros- da morte. Sabemos que no Ocidente, a morte sexualidade hegemônica e a cisnormativida- foi isolada e se tornando repelida, maldita de, não é falar de um grupo, nem mesmo de e interdita, contudo o saber afro-diaspórico uma população. A noção de comunidade não brasileiro nos ensina que um fundamento de é e nem pode ser equivalente a noção de gru- continuidade das comunidades é o culto às po (seja de um grupo populacional conectado suas e aos seus ancestrais, tomando-as não por uma identidade externa ou de um grupo como estatuetas simbólicas, mas como per- que se reúna em torno de uma identidade es- manentes agências que continuam a atuar tratégica para uma luta), a noção de comuni- na comunidade e a participar da significação dade que adotamos é eminentemente cultural

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e cultura ganha aqui o sentido de cultivo, deveria se emaranhar em realizações cultu- ou melhor, de terreno de cultivo, ou ainda, rais com o objetivo não de nos afirmamos terreiro de cultivo. Citando Zé Celso, “Cultura gueis, mas, antes de tudo, de “criar um modo cria Cosmos – não grupos. Cria maneiras de de vida gay. Um tornar-se gay.” (FOUCAULT, ler, interpretar, viver a Vida no Mundo.” Por 2004, p.261). Seguindo esse caminho, o recen- isso, membros dessa cultura não devem ser te livro de David M. Halperin (2014) possui compreendidos como indivíduos culturais um título interessante: How to be Gay [Como (representantes mais ou menos legítimos da ser Gay]. Esse livro defende a perspectiva de identidade de um agrupamento), mas são o que ser gay não é uma identidade, mas diz que Antonin Artaud chamou de “atletas afe- respeito a uma orientação cultural, propondo tivos”, aquelas e aqueles que por meio de um que a viadagem – em seus termos, gayness – arcabouço de cultivo exercitam seu corpo e seja pensada como cultura. sua existência para contagiar, afetar, trans- Ser gay envolve um conjunto de atitu- mitir o invisível. Como afirma Zé Celso, des e valores, compõe uma orientação contagiado pelas emanações imortalizadas cultural. Implica uma sensibilidade de Artaud, o atleta afetivo é sempre duplo: refinada, um elevado sentido estético, O DUPLO DO POETA / É O BODE CANTOR / uma sensibilidade particular para a ETERNO CORPO FÍSICO ETERNO. moda e diferentes estilos, uma rela- Ao pensar em cultura como terreiro de ção não-padrão para objetos de cultu- cultivo, assumimos uma noção afro-diaspóri- ra dominante, uma rejeição de gostos ca de memória como invocação. Uma memó- comuns, bem como uma perspectiva crítica sobre o mundo hétero e uma co- ria que não é representada pelo silêncio, por letividade partilhada, mas mesmo as- interditos, mas pela invocação em cantigas, sim com uma visão singular do que re- poesias, desejos e corpos. A construção de almente importa na vida. (HALPERIN, uma memória é o exercício de fazer corpos 2014, p.10, trad. nossa) presentes. Para os nossos mortos não quere- mos minutos de silêncio, mas berros coleti- Ser gay, portanto, não é para Halperin vizadores – Presente! – Presente! – Presente! sinônimo de alguém que realiza práticas homoeróticas, mas é uma forma distinta de ser diante da cultura hegemônica que revela Nosso afeto, nossa afetação um enraizamento em um arcabouço cultural Michel Foucault, debatendo a ne- de uma comunidade subalternizada levando cessidade de “realizar criações culturais” aquele que se torna gay a ter uma perspectiva (FOUCAULT, 2004, p.262) em um movimento diferencial na forma de se relacionar com o de construção de uma cultura guei, afirma mundo. que nossa autoidentificação não deveria se li- Essa distintiva forma de ser gay, além gar a uma afirmação de uma substância, uma disso, parece estar enraizada em uma homossexualidade-coisa traduzida por nossa maneira particular de sentimento bicha cultura. Pelo contrário, nossa autoafirmação [queer]. E dessa forma bicha [queer]

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de sentimento – essa subjetividade bi- cultural, sem nenhuma conotação de doen- cha [queer] se expressa através de uma ça) foi o principal ícone da ideia de “gay”. maneira particular e dissidente em Mesmo que a maior parte das travestis orga- relação aos objetos culturais (filmes, nizadas em movimento social não reivindi- músicas, roupas, livros, obras de arte) quem como termo identitário a palavra gay; e as formas culturais em geral (arte da no âmbito cultural, Cláudia Wonder (2004) arquitetura, ópera e música teatro, pop e disco, estilo de moda, emoção e lin- destaca que não se pode apagar o papel his- guagem). Como uma prática cultural, a tórico das travestis na constituição dessa cul- homossexualidade masculina envolve tura. Lamenta que nos últimos anos a comu- uma maneira característica de receber, nidade LGBT tenha cristalizado em seu meio reinterpretar, e reutilizar a cultura do- o que chama de “ciranda de preconceitos” minante, de decodificar os significados (WONDER, 2008, p.163), instaurando uma heterossexuais ou heteronormativos já série de divisões e antagonismo motivados codificados nessa cultura dominante, por preconceitos internalizados: “o gay não a fim de que eles vêm para funcionar gosta da travesti, que por sua vez não o tolera como veículos de um significado gay ou bicha [queer]. (HALPERIN, 2014, também. A bichinha pintosa de quem nin- p.10, trad. nossa) guém gosta e a lésbica que não gosta de se misturar com travestis; além dos modernos Sendo uma orientação cultural, parti- que não assumem ser GLS ou isso ou aquilo, cipar da cultura gay não requer que a pes- e por aí afora” (WONDER, 2008, p.163). soa seja gay, mas que partilhe dessa forma Wonder contrasta esse cenário reme- de ser, sentimento, subjetividade. No Brasil, morando sua entrada no universo gay na por exemplo, é notório que mulheres heteros- sua juventude em meio a Praça da República, sexuais cisgêneros foram grandes produto- onde lhe foram apresentadas figuras míti- ras culturais gays, como Carmem Miranda, cas como Lola, Micheli Miss Universo, Nana Maria Alcina e Elke Maravilha. Pensar em Voguel, Miss Biá e Dinamarca que foram termos de comunidade culturais, e não de suas primeiras professoras na vida gay. agrupamentos de indivíduos que partilham Nesse tempo a coesão da comunidade tinha a mesma identidade, permite olhar de uma laços na cultura gay, em especial na práti- outra perspectiva que não as das cisões pre- ca cultural do travestismo. Nas palavras de sentes no movimento social. Claudia Wonder Claúdia Wonder, “acima de qualquer coisa, é (São Paulo, 1955-2010), cantora, atriz, compo- o travestismo que representa como um todo sitora e performer travesti brasileira, aponta essa cultura (gay)”. Com extremo carinho e que ao pensarmos em uma “cultura gay” é respeito, Cláudia rememora Rogéria, Valéria, fundamental visibilizar não somente que Lorena e outras artistas travestis e transfor- as travestis compõem essa cultura, mas que mistas de teatro e de shows como os maiores durante muitas décadas a prática cultural ícones de nossa comunidade, de forma que do travestismo (o sufixo ‘ismo’ é utilizado tanto as travestis e as transexuais, como os por Wonder (2008) enfatizando a prática

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homens homossexuais, a despeito das suas e explicitamente a vivência da homossexua- diferenças de identidade, sentiam-se repre- lidade e das expressões diversas de gênero, sentadas por essas produtoras culturais. tais como são vividas ou poderiam ser vi- Com uma narrativa histórica que pas- vidas. Falando especificamente das repre- sa pelo Miss Brasil Gay, pelos concursos dos sentações da homossexualidade masculi- mais belos transformistas do , na, Halperin (2012) cita autores como Walt dos shows de travestis, , As gi- Whitman, André Gide, Thomas Mann, Marcel golletes, O que é que a boneca tem, Boys meet Boys, Proust, Radclyffe Hall, Jean Genet, e James A gaiola das loucas, Roberta Close, Thelma Baldwin. No Brasil, de forma menos exclu- Lipp, drag queens e seu próprio show O vômi- dente, incluindo representações da lesbian- to do mito, Claudia Wonder (2008) nos revela dade e da transexualidade, mais ainda de o quanto a cultura gay é base para coesão de forma precária inviabilizando muitas pro- nossa comunidade, promovendo conexões e dutoras que precisam ser presentificadas, superando cisões individualistas. A estética poderíamos citar autores e autoras como da prática cultural do travestismo carrega João do Rio, Darcy Penteado, João Silvério em essência o que Cláudia enuncia a partir Trevisan, , Mario Faustino, do Manifesto da Guerrilla Travolaka, coletivo Cassandra Rios, Antônio Botto (que embo- autônomo de Barcelona, clamando por uma ra português, produziu no Brasil), Valery comunidade de piratas, trapezistas e guerri- Pereleshin (que embora russo, produziu no lheiros do gênero, como potência para “nos Brasil), Walmir Alaya, Leila Miccolis, Paulo apoderar do gênero, redefinir nossos corpos Augusto, Anderson Herzer, Lóris Adreon, e criar redes comunicativas livres e abertas Fernanda Farias de Albuquerque, Vange para nos desenvolver, nas quais qualquer Leonel, Elizabeth Bishop (embora norte-ame- um possa construir seus mecanismos con- ricana, produziu no Brasil), Anna França, Luís tra as pressões de gênero” (WONDER, 2008, Capucho e Cassiano Nunes, compositores p.71). Cláudia Wonder reivindica como va- como Tuca, Leci Brandão, Ângela Ro Rô, e lores revolucionários de nossa comunidade novamente Vange Leonel e artistas plásticos “a ambiguidade como identidade”, “a bele- como Hamilton Lima e novamente Darcy za da androgenia” e “a anarquia do gênero” Penteado. (WONDER, 2008, p.71). O outro movimento é o que David David Halperin investigando a cons- Halperin (2012) chama de uma subcultura tituição da orientação cultural gay aponta gay. Com esse termo, o autor não se refere a que podemos pensar em dois movimentos produtos culturais menores mas de um mo- distintos, mas complementares. O primeiro vimento de apropriações culturais da cultura é o que ele chama, mais especificamente, de dominante, com práticas que depende dos uma cultura gay produzida por pessoas que signos da cultura hegemônica, mas que de- pela primeira vez na história criaram obras senvolve uma relação parasitária subversiva que apresentaram diretamente, abertamente

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 157-173, jul/dez. 2017 168 Disponível em: Nosso caos, nosso cosmos: notas sobre a memória e a cultura lgbt brasileira que deslocam esses signos e criam novos sis- Marina Lima, cantando essa música vestida temas culturais. de terno. Uma das principais produções sub- Uma subcultura não é a mesma coisa culturais de nossa viadagem é o Bajubá (ou que uma cultura. A dinâmica de suas formações, seus objetivos e propósi- Pajubá), nome dado a um amplo léxico de tos e suas políticas são todas necessa- termos originários de línguas africanas (yo- riamente diferente. Uma subcultura rubá, ewe-fon, djedje, bantu) proveniente é uma relação (se não adversária) de das comunidades culturais afro-diaspóricas oposição a um conjunto já existente de e com centenas de corruptelas de palavras do valores culturais oficiais e refere-se, ex- português, do tupi, do italiano e do francês. plícita ou implicitamente, a um mundo Criando uma linguagem interna das comu- que não é sua própria criação indepen- nidades LGBT, o Bajubá permite a criação dente. É uma expressão de resistência de uma rede de proteção para contextos de a uma cultura dominante e um desafio a uma ordem social. (HALPERIN, 2012, violência – tornando-se uma linguagem de p.298, trad. nossa) “entendidos” estratégica para trocar infor- mações sem que policiais percebam, por No caso dos Estados Unidos da América, exemplo – e cria um permanente desloca- David Halperin (2012) cita como exemplos mento irônico diante da linguagem hegemô- dessas subculturas as performances das drag nica. Linguagem em permanente expansão, o queens, o camp, o voguing, a apropriação de Bajubá tornou uma arte de perverter a língua, figuras icônicas como Judy Garland ou Joan alterando seu léxico, transformando sua ca- Crowford e incorporações de músicas popu- dência, africanizando seu vocabulário, tradu- lares e de musicais da Broadway. Halperin zindo colonialmente expressões européias e (2012) aponta o exemplo da apropriação do feminilizando seus substantivos e artigos. A grupo musical sueco ABBA que, com dois partir desses movimentos, o Bajubá provoca casais heterossexuais e nenhuma música uma constante ironização da língua hege- tematizado a homossexualidade, se torna- mônica que a revela como manifestação da ram hinos gays. No caso do Brasil, é notório dominação e simultaneamente escapa dela. o caso da música Pavão Misterioso do cantor Recentemente foi lançado um dicionário de cearense Ednardo, que depois de ser popu- termos do Bajuba, Aurélia: A dicionária da lín- larizada como trilha da novela Saramandaia gua afiada, cujo o verbete “aurélia” já evidên- em 1976, foi apropriada como um manifesto cia essa arte da perversão: da libertação gay. Também podemos citar a música Mesmo que seja eu, do , Aurélia – S.f. 1. Bicha metida e conhece- símbolo de uma masculinidade hegemônica, dora profunda do bajubá, jurando que sabe de tudo; 2. Bicha filóloga, lexió- cujos versos “Você precisa de um homem para loga, eloquente, googleóloga, control- chamar de seu, mesmo que seja eu” ganhou -efóloga, eustômica, disléxica, prolixa outros contornos na performance lesbiana de e extremamente divertida. 3. Bicha

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rica, dona de ilha, que não tem medo uma sensibilidade, traçar seus contor- de comprar os maridos, uns seixas; 4. nos e contar sua história exige-se uma Meu cu. (VIP & LIBI, 2006, p.21). profunda afinidade modificada pela repulsa. (SONTAG, 2014, p.01) O registro historiográfico e a salvaguar- da da subcultura impõem uma dificuldade. David Halperin (2012) aponta como Muitas vezes essas produções culturais não uma das principais práticas culturais da sub- estão condensadas em bens culturais, haja cultura gay masculina o camp, palavra sem vista que os bens podem ser exatamente os tradução para o português mas que pode ser da cultura dominante ao passo que a produ- facilmente reconhecida em nossas práticas ção cultural propriamente LGBT estaria na sua – a predileção pelo exagero, pelo dramático, recepção por uma sensibilidade diferenciada. pelo artificial e pelo tragicômico que talvez A noção de sensibilidade foi utilizada por Susan possa ser aproximada da sensibilidade viada Sontag (2014) justamente para pensar o camp. brasileira presente na ideia de afetação. Para Nossa dificuldade é que o historicismo só co- Halperin, o camp se caracteriza pela capaci- nhece a história dos bens culturais ou a histó- dade de subverter tragédias e situações de ria das ideias, dessa forma uma historiografia violência, adicionando humor em situações das subalternas precisa construir uma história de horror e nos ensinando a rir como forma das sensibilidades. Sontag (2014) sabia que para de empoderamento diante das opressões co- esse escopo era necessária a construção de no- tidianas. “A cultura gay masculina” – afirma vos métodos de investigação, de levar a sério Halperin – “tem uma longa história de rir de tanto a nossa atração, quanto a nossa repulsa situações que para os outros são horríveis ou por essas sensibilidades. trágicas”. Como uma técnica de inversão do horror, o camp expõe uma tradição cultural Falar de uma sensibilidade (distinta de gay – sedimentada em uma sensibilidade – de idéia) é uma das coisas mais difíceis; recusa da autocondenação social. entretanto, existem razões especiais para o Camp, em particular, jamais O que caracteriza o Camp é a sua re- ter sido analisado. Não se trata de cusa deliberada de auto-isenção da uma forma natural de sensibilidade, zombaria que lhe é dirigida no mun- se é que isto existe. Na realidade, a es- do social, bem como a sua tendência sência do Camp é sua predileção pelo para tirar sarro e debochar de sua pró- inatural: pelo artifício e pelo exagero. pria abjeção. O Camp não é apenas um [..] Sinto-me fortemente atraída pelo modo de apropriação cultural, uma Camp e quase tão fortemente agre- forma de reciclar a cultura dominan- dida. É por isso que quero falar a seu te; também é produtivo, um impulso respeito e por isso posso fazê-lo. Pois criativo com sua própria direção, uma ninguém que compartilhe sinceramen- estratégia para lidar com a dominação te de uma determinada sensibilidade social. (HALPERIN, 2012, p. 203) pode analisá-la; só pode, seja qual for a sua intenção, mostrá-la. Para designar

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 157-173, jul/dez. 2017 170 Disponível em: Nosso caos, nosso cosmos: notas sobre a memória e a cultura lgbt brasileira

Uma das principais contribuições de da composição e recepção literária, David Halperin (2012) para o desenvolvi- mas na esfera da comunicação, com- mento de um arcabouço conceituação de portamento social e interações pesso- investigação da cultura e subcultura gay é a ais – definindo assuntos apropriados e importantes, formas de relação in- noção de gênero. O uso da palavra “gênero” no terpessoal e estilos de comunicação. campo de estudos do gênero e da sexualida- Nesse sentido, gêneros não são somen- de no Brasil está bastante cristalizada como te formais mas também pragmáticos. tradução da palavra inglesa gender, a categoria Eles fornecem às pessoas, em suas que se refere a produção sexuada de diferen- práticas diárias, com meios concretos ça sociais. Contudo, seguindo Halperin, uti- de interação com outro e negociando lizaremos a palavra gênero como tradução da situações sociais específicas – e eles os palavra inglesa genre, utilizada para se referir instruem em formas certas de se fazer. a gêneros literários. Com esse termo, David (HALPERIN, 2012, p. 132) Halperin (2012) buscou investigar formas so- A partir da investigação de gêneros cul- ciais e culturais em sua positividade, como turais LGBT, podemos inclusive criar campos produções que podem ser compreendidas de estudos comparativos entre comunidades de forma autônoma para sua investigação de diferentes nacionalidades e contextos so- e interpretação. Com isso, Halperin (2012) ciais. Que aproximações podemos fazer do quer conceber o estudo que propõe da cul- gênero do bitching (e as suas práticas cultu- tura gay mais como uma investigação que se rais do reading e throwingshade) com a nossa assemelha à Poética, do que à Sociologia ou gongação (e as práticas culturais do congar, à Antropologia, complementando as impor- do carão e das construções de narrativa de tantíssimas investigações dessas disciplinas, superioridade – “lacrar”, “fechar”, “sambar mas evitando reduzir as produções culturais a na cara das inimigas”)? Se compreendemos expressões ou produtos de processos sociais. o butching como gênero da cultura lesbiana A noção de gênero, na crítica literária, aponta estadunidense, que comparações podemos para uma regulação reconhecível – embora fazer com a nossa sapatonice brasileira? A mais ou menos flexível – de apropriação da noção de gênero pode permitir investigar as linguagem. Os gêneros culturais – sendo o conexões entre sujeitos que se identificam a camp um exemplo central – também se cons- partir de diferentes identidades sociais – o tituiria a partir de um trabalho regulatório travestismo, por exemplo, é para Cláudia um reconhecido feito por práticas sociais, discur- gênero cultural que conectava gays e traves- sivas ou não, mas que apresenta sempre uma tis –, assim como identificar diferenças de relação criativa e criadora no uso da lingua- classe, raça, etnia, sexo e construção corporal gem e das performances de práticas sociais. a partir das diferenças dos trabalhos regula- [...] gêneros de discurso performam a tórios feitos para produção de gêneros. No mesma função reguladora em práticas livro de How to be Gay, David Halperin (2012) discursivas codificadas não no campo busca identificar especificamente os gêneros

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 157-173, jul/dez. 2017 Disponível em: 171 que compões as comunidades de gays mascu- Com re-existência ao trágico, Zé Celso linos, levando-nos a perguntar quais gêneros transformou seus afetos em afetação criando que compõem, de forma exclusiva ou não, o gênero da tragycomedyorgia, cuja maior força solidificados ou ainda em construção, as co- está em, ao encarar a tragédia da vida, acionar munidades de travestis, de homens transe- a potência corrosiva do cômico e do orgástico. xuais, de mulheres transexuais, de mulheres

lésbicas e bissexuais? Como se tornar lésbica, Referências trans, travesti ou bissexual? A reflexão sobre o Camp e, mais especifi- BENJAMIN, W. Obras escolhidas. Vol. 1. camente, sobre como a produção de sensibili- Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de dades responde – e confronta – e interroga – a Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, violência do mundo social, também permite 1987. que investiguemos de forma mais positiva BENJAMIN, W. Obras escolhidas II: Rua de como LGBT brasileiras re-existem (para não mão única, São Paulo: Brasiliense, 1995. dizer resistir, palavra mais anticultural e destruidora de cosmos, segundo Zé Celso) CORRÊA, J. C. M. O corpo imortal do poeta Luis, 2007. Disponível em: http://www.teatroficina. diante da violência – e não somente como a com.br/posts/126. Acesso em: 15 de dezembro sofremos ou a suportamos. Um grande exem- de 2015 plo é como a produção teatral de Zé Celso foi DANIEL, H.; MICCOLIS, L. Jacarés transformada pelo assassinato de seu irmão. & Lobisomens: dois ensaios sobre a Percebendo que um mundo em que alguém homossexualidade. Rio de Janeiro: Achiamé/ é assassinado com 107 facadas é eminente- Socci, 1983. mente trágico, Zé Celso decide nunca mais DANIEL, H. Meu corpo Daria um Romance. montar drama: Rio de Janeiro: Rocco, 1984 Foram 107 facadas. Com uma, você DERRIDA, J. Mal do Arquivo: uma impressão mata uma pessoa. As outras todas es- freudiana. Tradução de Cláudia de Moraes tão, na verdade, matando uma outra Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. coisa, que está em quem mata e não FOUCAULT, M. Michel Foucault, uma em que está sendo morto. O Luís era entrevista: sexo, poder e a política da uma figura formidável, mais alegre identidade. Verve, Ed.5, 2004. Disponível que eu, mais livre que eu… A geração em: http://revistas.pucsp.br/index.php/verve/ dele cagava e andava para tudo, brin- article/viewFile/4995/3537. Acesso em: 15 de cava com ácido como se fosse drops. dezembro de 2015. Mais que a censura, mais que a prisão, mais que o exílio, a morte do Luís foi HALPERIN, D. M. How to be Gay. Cambridge, definitiva para mim: foi quando eu me Massachusetts: Bellnap Press, 2012. dei conta de que a vida é trágica. Ali, HARAWAY, D. Manifesto ciborgue Ciência, eu rompi com o drama. Eu rompi com tecnologia e feminismo-socialista no final do tudo, com as regras, com os dogmas (O século XX. In: HARAWAY, D. KUNZRU, H. POVO, 2015).

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 157-173, jul/dez. 2017 172 Disponível em: Nosso caos, nosso cosmos: notas sobre a memória e a cultura lgbt brasileira

Antropologia do ciborgue: As vertigens do pós- humano.Tradução de Tomás Tadeu – 2aEd. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2000. HERZER, A. Da Queda para o Alto. São Paulo, Editora Vozes, 1982 KRAMER, S., “Produção cultural e educação: algumas reflexões críticas sobre educar com museu” en: KRAMER, S., LEITE, M, I., Infância e produção cultural. Campinas: Papirus, 1998, pp. 199-215. O POVO. Leia íntegra da entrevista com José Celso Martinez Corrêa. Disponível em:http://www20.opovo.com.br/ app/opovo/paginasazuis/2011/01/24/ noticiasjornalpaginasazuis,2093293/leia- integra-da-entrevista-com-jose-celso- martinez-correa.shtml Acesso em: 15 de dezembro de 2015. SONTAG, S. Notas sobre o camp. (s/d) Disponível em: https://perspectivasqueeremdebate.files. wordpress.com/2014/06/susan-sontag_notas- sobre-camp.pdf. Acesso em: 15 de dezembro de 2015. TREVISAN, J. S. Paraíso Perdido, Paraíso Reencontrado. In: Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. p.429 – 469. VIP, A. LIBI, F. Aurélia: a dicionária da língua afiada. São Paulo: Editora Bispo, 2006. WITTIG, M. The Straight Mind and other essays. Boston: Beacon Press, 1992. WONDER, C. Olhares de Cláudia Wonder. São Paulo: Edições GLS, 2008.

Recebido para publicação em 26 mar. 2017. Aceito para publicação em 10 nov. 2017.

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Doi: 10.5212/Uniletras.v.39i2.0002

Sobre questões de gênero e imagens: um olhar sobre alair gomes1

On gender questions and images: a look at alair gomes

Tatiana Brandão de Araujo* Cláudia Mariza Mattos Brandão**

Resumo: O artigo propõe uma discussão acerca do voyeurismo como elemento marcante na obra do artista/fotógrafo brasileiro Alair Gomes, através da análise de imagens das séries A Window in Rio e Sonatina, Four Feet. Discutem-se as inter-relações entre o olhar voyeur e os corpos fotografados, identificados como representações que nos falam sobre os gêneros. O olhar de Gomes objetifica o outro, logo, é possível afirmar que o voyeurismo no conjunto analisado se dá tanto pela maneira como ele direciona o seu olhar, quanto pelo modo como ele se relaciona com os sujeitos representados, não subvertendo a lógica binária do modo de ver ocidental. Teóricas como Judith Butler e Laura Mulvey sustentam as reflexões apresentadas, além de John Berger que alicerça a discussão sobre imagem como resultante de um ponto de vista único, uma (re)apresentação ideológica do mundo. Palavras-chave: Alair Gomes; Olhar Fotográfico; Questão de Gênero.

Abstract: The article proposes a discussion on the voyeurism as an important element in the work of the Brazilian artist Alair Gomes, through the analysis of the images of the series A Window in Rio and Sonatina, Four Feet. It discusses the interrelations between the voyeur look and photographed bodies, identifying them as representations that inform about gender relations. The look of Gomes objectifies the other, therefore it is possible to affirm that the voyeurism in his work is given by the way his look is directed and also by the way he relates to the represented people, not subverting the binary logic of the Western view. Theorists such as Judith Butler and Laura Mulvey support

1 Este artigo resulta de aprofundamentos teóricos da comunicação oral “O Olhar Voyeur de Alair Gomes”, apresentada no V SIGAM: Simpósio Internacional de Gênero, Arte e Memória, realizado no Centro de Artes, da Universidade Federal de Pelotas, em novembro de 2016. * Mestre em Literatura (UFSC, 2014), doutoranda em História (PUC/RS, 2016), bolsista CAPES. Pesquisadora do Photo- Graphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq). E-mail para contato: [email protected] ** Doutora em Educação (UFPel, 2012), professora adjunta do Centro de Artes/Artes Visuais – Licenciatura, da Univer- sidade Federal de Pelotas. Coordenadora do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/ CNPq). E-mail para contato: [email protected]

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 175-187, jul/dez. 2017 Disponível em: 175 Tatiana Brandão de Araujo e Cláudia Mariza Mattos Brandão

the presented discussions, as well as John Berger, who bases the discussion on image as resulting from a unique point of view, an ideological (re)presentation of the world. Key-words: Alair Gomes, photographic look, gender studies

Consideramos que a abordagem da que o hábito contemporâneo de fotografar imagem fotográfica entendida como uma muitas vezes se relaciona mais ao atestado mediação visual comunicativa, que frutifica de presença, do que propriamente à vonta- da sintaxe da linguagem e da semântica do su- de de “espiar anonimamente”. Porém, essa jeito/fotógrafo, estamos acenando para uma relação pode ser estabelecida, visto que o antropologia cultural da fotografia. E isso nos voyeurismo se dá pela maneira de como a(o) permite refletir sobre os meandros que orga- fotógrafa(o) direciona seu olhar para o objeto nizam a reprodução dos sujeitos humanos em e/ou de como ela(e) se relaciona com o objeto imagens, uma figuração que pode corroer a ou o sujeito da representação. figura até transformá-la apenas em superfície Sabemos que “a natureza que fala à câ- visual, tal e qual propõe Andy Warhol2. mara não é a mesma que fala ao olhar; ela Também não podemos esquecer o grau é outra, especialmente porque substitui um de representatividade social de tais (re)apre- espaço preenchido pela ação consciente do sentações, do mundo e dos sujeitos, na con- homem, por um espaço que ele preenche temporaneidade. Sendo assim, somos estimu- agindo inconscientemente” (BENJAMIN, ladas a refletir sobre as imagens fotográficas 2012, p.100). Sendo assim, por mais que o como textos não-verbais que dão visibilidade olhar seja um ato de escolha, como diria John a percursos (auto)biográficos, na pretensão de Berger (1999), existe o inconsciente operan- colaborar para a acumulação de conhecimen- do na construção das imagens, ou seja, um to sobre os sujeitos e seus contextos sociais e modo particular de ver e representar a socie- históricos, cientes de que tais imagens afetam dade que está vinculado ao imaginário social. os imaginários sociais e individuais. Logo, a leitura visual do mundo viabiliza a “Todo fotógrafo é um voyeur” afirma compreensão do real para além de um con- Pedro Vasquez (2004, s.p), entretanto, tal junto de dados materiais ou fatos isolados, afirmação pode ser contestada, considerando favorecendo o reconhecimento dos funda- mentos das atitudes sociais como reflexos de mentalidades e comportamentos. 2 Considerado o pai da Pop Art norte-americana, Andy Warhol (1928-1987) ganhou visibilidade com as É possível definir leitura visual como a suas aclamadas “apropriações fotográficas”, que ele apreensão do(s) sentido(s) de uma imagem/ reproduzia, através da serigrafia, destacando signos imagéticos conhecidos de objetos de consumo (latas de símbolo/situação visível, ressaltando o fato de sopa Campbells e garrafas de Coca-Cola, por exemplo), que o entendimento da mensagem depende e de ícones famosos, assim como Marilyn Monroe, Elvis Presley e Elizabeth Taylor, fazendo da figura humana das relações estabelecidas entre a imagem, o uma forma-superfície, a testemunhar uma existência leitor e o meio. A leitura visual, assim como alusiva (ARGAN, 2013).

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 175-187, jul/dez. 2017 176 Disponível em: Sobre questões de gênero e imagens: um olhar sobre alair gomes qualquer tipo de leitura, depende de fatores de coerência e continuidade entre sexo, gêne- subjetivos, psicológicos, e sociais. A compreen- ro, prática sexual e desejo” (2003, p.38), apre- são dos textos visuais, não-verbais, implica na sentando o modo de operação dessa lógica capacidade dos indivíduos se apropriarem do dominante. E entendemos que tais questões mundo ao redor, de seus valores e modos de são relevantes para a compreensão das sub- expressão, significando-o, pois “o texto não- versões ou continuidades na obra do artista. -verbal é uma experiência quotidiana, e a lei- Este artigo tem por objetivo discutir tura não-verbal é uma inferência sobre essa sobre as inter-relações entre o olhar voyeur experiência” (FERRARA, 1986, p.13). de Alair Gomes e os corpos fotografados nas As obras do fotógrafo brasileiro Alair imagens analisadas; corpos, esses, aqui en- Gomes3, aqui analisadas/lidas, nos levam a tendidos como representações que nos falam pensar sobre expressões que manifestam de- sobre os gêneros: Será possível afirmar que sejos não consumados, através de imagens o olhar do artista subverte a lógica do modo capturadas do alto, assim como mediadoras de ver ocidental presente na história da arte, visuais de um mundo reconhecido através da não somente na fotografia ou no cinema? Ou janela. Identificamos o artista como um fo- as suas imagens reafirmam os binarismos do tógrafo voyeur, cujas imagens de séries como patriarcado discutidos por Butler? A Window in Rio e Sonatina, Four Feet, nos le- São importantes para a discussão as vam a indagar: Será que tais representações ideias de John Berger (1999) sobre os “Modos subvertem a lógica de dominação legitimada de Ver”, que nos possibilitam refletir sobre as pelos binarismos do patriarcado, ou elas re- imagens como representações de um ponto forçam essa ideia? de vista único, no caso, o olhar de quem regis- Para Judith Butler, os binarismos do tra; assim como, as argumentações de Laura Mulvey (1999) sobre como as mulheres nor- patriarcado produzem os chamados gêneros malmente são representadas pelo cinema, e de inteligíveis, que “instituem e mantêm relações que como tais representações são naturaliza- das/internalizadas. Cabe destacar que as dis- 3 “Alair de Oliveira Gomes (Valença RJ 1921 - Rio de Ja- neiro RJ 1992). Fotógrafo, filósofo, professor e crítico de cussões apresentadas resultam de análises de arte. Em 1944, gradua-se em engenharia civil na Escola algumas fotografias representativas do olhar Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil, atu- al Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Dois voyeur de Gomes, e entendidas como mani- anos depois, funda a revista literária Magog, com o po- festações visuais de discursos sobre gêneros. eta Marcos Konder Reis (1922 - 2001) e outros. Em 1948, abandona a engenharia para estudar física, matemática, A discussão ora apresentada inte- filosofia e biologia. Torna-se professor do Instituto de gra pesquisa desenvolvida no âmbito do Biofísica do Rio de Janeiro, em 1958. Recebe bolsa da Fun- dação Guggenheim, em 1962, e permanece cerca de um PhotoGraphein – Núcleo de Fotografia e ano realizando pesquisas na Universidade de Yale, nos Educação (UFPel/CNPq), intitulada “DO Estados Unidos. A partir do fim dos anos 1960, dedica-se com constância à fotografia e à crítica de arte. A maior PINCEL AO PÍXEL: sobre as (re)apresenta- parte de suas imagens são seqüências de nus masculinos ções de sujeitos/mundo em imagens”, que e fotos feitas da janela de seu apartamento na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, além de registros do carna- tem por objetivo geral compreender e siste- val carioca” (http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pes- matizar conhecimentos sobre a produção e soa1531/alair-gomes).

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 175-187, jul/dez. 2017 Disponível em: 177 Tatiana Brandão de Araujo e Cláudia Mariza Mattos Brandão

circulação de Imagens na contemporaneida- fascinação que o cinema pode causar e os de, fomentando uma cultura de cunho sim- modos de ver que predominam no cinema biótico entre a visão funcionalista e as visões narrativo Hollywoodiano, principalmente. estéticas e simbólicas dos elementos sociais, Sua análise parte de uma perspectiva femi- a partir de um ponto de vista interdisciplinar. nista e da teoria psicanalítica de Freud, afir- mando que “o inconsciente (formado pela ordem dominante) estrutura os modos de Alair Gomes e o prazer visual: ver e o prazer em olhar (1999, p.834, tradu- Segundo o Rick J. Santos (2014, p.86), ção nossa)4. Logo, o modo de ver e o prazer “nossos corpos são sempre corpos no mundo, visual apontados por Mulvey representam a e no mundo em que vivemos nossos corpos mulher como passiva ao olhar do homem, as- estão sempre expostos a alguma espécie de sim como um objeto destinado à realização leitura que os divide em termos de gênero, das fantasias do olhar masculino: raça, classe etc.”. Sendo assim, não podemos ignorar o discurso imposto sobre os sexos, que Se pressupõe que o olhar pode ser fonte de prazer, o que se denomina escopo- buscam simplificar configurações por demais filia. Quem olha parece obter prazer complexas. São binarismos que ofuscam a de tomar outras pessoas ou imagens multiplicidade dos corpos, desejos e expres- de pessoas como objetos. O qual pres- sões dos mesmos. Como afirmou Judith Butler supõe uma certa carga possessiva (2007, p.153), “a diferença sexual, entretanto, (ALIAGA, 1997, p.53, tradução nossa)5. não é, nunca, simplesmente, uma função de diferenças materiais que não sejam, de algu- Laura Mulvey é assertiva ao criticar a es- ma forma, simultaneamente marcadas e for- copofilia, que torna a mulher apenas um ob- madas por práticas discursivas”. jeto, muda, satisfazendo o olhar do homem Tais percepções nos permitem conside- heterossexual. O prazer decorrente do olhar rar a obra de Alair Gomes sob outro prisma, (escopofilia) é fundamental na constituição diferente da abordagem artística. Refletir psíquica dos indivíduos. Entretanto, tal pra- sobre as suas imagens a partir da potência zer decorre de relações estabelecidas entre o discursiva, nos possibilita apontar possíveis visto e o fantasiado, e é através disso que o contradições em uma produção artística sujeito constitui seu imaginário, assim como considerada subversiva para a época. Gomes suas representações simbólicas. E a maneira foi um artista gay, que inserido no contexto de representar a mulher presente na história conservador da ditadura militar brasileira da arte Ocidental, também se encontra na re- produziu uma extensa obra fotográfica com cente história da fotografia: forte apelo homoerótico. Para tanto, as discussões iniciadas pela 4 the unconcious (formed by the dominant order) structure ways autora Laura Mulvey se farão presentes no of seeing and pleasure in looking. 5 debate. Em 1975, a autora escreveu Visual Se presupone que el mirar puede ser fuente de placer, lo que se denomina escoptofilia. Quien mirar parece obtener placer del Pleasure and Narrative Cinema analisando a hecho de tomar a otras personas o imágenes de personas como objetos. Lo cual presupone cierta carga posesiva.

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A constância da representação do cor- relação com os homens que habitam a praia po feminino como objeto da escopofilia e a rua é distanciada, afastado fisicamente, masculina, desde os primórdios da foto- ele captura seus registros pelo frame de sua ja- grafia, não é acompanhada da represen- nela. Nessa série, assim como nas fotografias tação do corpo masculino nos mesmos de Sonatina, Four Feet (1970-1980), os homens moldes. A nudez masculina sempre retratados aparecem normalmente de cor- apareceu na fotografia, desde os primei- po inteiro. Diferente, por exemplo, da série ros daguerreótipos, porém, na maioria das vezes, vinculada a construções de Symphony of Erotic Icons, na qual Alair Gomes imagens deserotizadas, servindo como explora fragmentos de corpos nus masculinos. instrumentos para outros fins, em geral Nas fotografias de Gomes, os homens artísticos ou científicos, que excluem o se apresentam como dominantes e domina- prazer de um eventual espectador ou dos. Aquele que detêm o poder é o próprio espectadora (SANTOS, 2006, p.144). artista, e o representado está como submisso ao olhar de Gomes. Segundo E. Ann Kaplan Nesse sentido, é relevante afirmar que a (1995, p. 53), referindo-se ao cinema, os con- lógica que está presente em tais representações ceitos de voyeurismo e fetichismo são “meca- parte do princípio heterossexual, no qual o ho- nismos que o cinema dominante usa para mem tem o poder sob a mulher. Entretanto, construir o espectador masculino de acordo obras como as do artista brasileiro Alair Gomes com as necessidades de seu inconsciente”. tendem a subverter o olhar heterossexual, no Nesse sentido, é relevante notar o quanto pa- sentido de que os homens em suas obras, as- radoxal podem ser as imagens do fotógrafo, sim como nas imagens do norte-americano já que ao mesmo tempo em que desconstrói a Robert Mapplethorpe, são erotizados pelo lógica heterossexual do discurso dominante, olhar de outro homem. Sendo assim, não há ele mantém a relação de domínio-submissão como negar a importância de outra mirada sob perpetuada pelo sistema patriarcal. os corpos, outras representações, outras vozes Tanto mulheres quanto homens são que se apresentam na arte. socializados nesse sistema, que é marcada Nas fotografias de caráter homoerótico por uma cultura de violência e dominação. de Gomes existem as que são feitas em estúdio, Porém, no patriarcado o domínio situa-se na como as da série Symphony of erotic icons (1966- figura do homem, e independente de serem 1977), explorando nus masculinos. Porém, neste heterossexuais ou homossexuais, os mes- texto a discussão está focada em imagens que o mos podem agir de acordo com essa lógica artista registrou da janela de seu apartamento em suas relações pessoais e/ou de trabalho. (Ipanema, RJ). Isso, pelo caráter clandestino Como afirmou Bell Hooks, “…a cultura de delas, nas quais os retratados aparentam não dominação ensina a todos que o âmago de saber que estão sendo fotografados. nossa identidade é definida pela vontade de Em séries como A Window in Rio (1977- dominar e controlar os outros”6 (2004, p.115, 1980), o olhar desejante do fotógrafo está escondido em sua casa, não existe, portanto, 6 dominator culture teaches all of us that the core of our identity um contato direto dele com o observado. Sua is defined by the will to dominate and control others.

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tradução nossa). Tais questões se fazem pre- como uma de suas principais referências, sente em obras de Alair Gomes, nas quais a é fundamental dar “importância a como se relação que legitima o binário dominador- produz o significado nos filmes” (id., p. 44), -dominado é uma característica marcante. e às contribuições de outras áreas do conhe- Podemos considerar que nas imagens cimento para a sua análise. Esse tipo de po- analisadas “o homem não olha, simplesmen- sicionamento é relevante, visto que, quando te; mas em seu olhar está contida o poder de tratamos de imagem, é necessário ir alem ação e de posse...” (KAPLAN, 1995, p.54). E do conteúdo, e entender de que maneira as para Gomes os homens registrados são pos- imagens legitimam discursos. suídos por seu olhar, como expressões de seu próprio desejo. Corpos que se fazem imagem Como afirma Kaplan, para uma cri- tica feminista de cinema, que teve Mulvey

Figura 1: Alair Gomes, Sonatina, four feet, (1970-1980).

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1160377-fotografo-assassinado-tem-seus-retratos- de-garotos-das-praias-do-rio-na-bienal.shtml

Séries fotográficas como A Window in desejos, mas o fotografado não tem voz na Rio e Sonatina, Four Feet falam sobre dese- representação. Logo, as teorizações feminis- jos não realizados (Figuras 1 e 2), ao mes- tas de Laura Mulvey, acerca do olhar mascu- mo tempo em que dão visibilidade ao olhar lino e da escopofilia que dominam o cinema do fotógrafo que objetifica o outro. Gomes hollywoodiano, podem ser aplicadas às suas se apodera dos corpos, transformados em fotografias. Se existe uma subversão em imagens fotográficas como expressões de sua obra, ela está no fato de que esse olhar

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é parte de uma perspectiva homoerótica, o fizeram (e alguns ainda o fazem!) com as que na época não era socialmente aceitável. mulheres, são meros objetos de desejo, des- Entretanto, os corpos representados, assim providos de subjetividade. como uma boa parte dos artistas ocidentais

Figura 2: Alair Gomes, Sonatina, four feet, (1970-1980).

Fonte: http://brasileiros.com.br/2015/08/sp-artefoto-recebe-individuais-de-alair-gomes-e-jean-manzon/

Segundo John Berger (1999), a maneira Pedro Vasquez (2004, s/n) considera que como a nudez da mulher foi historicamente “duas circunstâncias combinadas contribuí- representada na arte Ocidental, apresenta os ram para oferecer a Alair um grande núme- corpos como objetos de posse do espectador, ro de modelos involuntários: a consolidação inclusive, dos próprios pintores, que geral- do surfe e a disseminação da aparelhagem mente eram homens. Em diferentes perío- de ginástica nas praias do Rio na década de dos históricos a representada não tinha voz 1970”. Como é possível perceber, elementos e, como o autor destaca, o real protagonista é simbólicos das novas características do pe- o espectador, sendo que a pintura acaba por ríodo estão presentes nas imagens, tanto nos adequar-se aos seus desejos. Se anteriormen- homens utilizando aparelhos de ginástica, te o olhar e o prazer no que se via ganhava da série Sonatina, four feet, assim como, em A contornos contemplativos, reflexivos, e até Window in Rio, cujas imagens apresentam ho- mesmo desveladores, hoje, ao contrário, mens vestindo calção de banho, traje típico de o lugar da privacidade e do encoberto está quem frequenta a praia, carregando aparatos quase que totalmente suprimido, e isso nos como as raquetes de tênis de praia (Figura 3). é mostrado por Alair.

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Figura 3: Alair Gomes, A Window in Rio, 1977-1980. constituído pelo que deseja descobrir acerca do outro ou, ainda, pelas fantasias que fabrica a partir daquilo que não vê. Sobre as fotografias registradas à dis- tância, Alexandre Santos afirma que “nas tomadas de rua, de sua janela ou da praia, há o envolvimento de uma posse silencio- sa do corpo alheio numa atitude de franca transgressão da ordem” (2006, p.217). Neste sentido, a exemplo do que já foi falado an- teriormente, é possível afirmar que existe a transgressão na questão de que além de sexista, o olhar que comanda as narrativas Ocidentais, é normalmente heterossexual, mas a lógica patriarcal da posse e da domi- nação é mantida. Ou seja, os sujeitos repre- sentados por Gomes (Figura 4) são reflexos do seu próprio desejo, sendo assim, o pro- tagonista nas suas obras é ele próprio, e os Fonte: http://www.sp-arte.com/noticias/casa- demais são meros coadjuvantes cujos corpos triangulo-expoe-series-fotograficas-ineditas- são apropriados pelo artista para a satisfação de-alair-gomes/ de seus desejos mais íntimos.

Figura 4: Alair Gomes, A Window in Rio, 1977-1980. A análise de suas obras nos mos- tra que se o prazer de ver é inerente ao sujeito, o desejo pelo proibido ou pelo es- condido também o é. E seus enquadra- mentos invasivos focam no proibido e no sonho desejável. Assim, ao mesmo tempo em que o su- jeito Alair Gomes se constitui pelo que lhe aparece, é também Fonte: http://www.select.art.br/casa-triangulo-apresenta-series-ineditas-de- alair-gomes/

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Se “a visão é uma construção histórica, a sociedade em masculino e feminino perma- que não há universalidade e estabilidade na nece intacta. Logo, por mais que tenhamos experiência de ver e que uma história da visão avançado na discussão sobre se imagem é depende de muito mais do que de alterações ou não representação da realidade, existem nas práticas representacionais” (MENESES, ainda lacunas nas discussões que naturali- 2005, p.38), então é preciso entender Alair zam a maneira como homens e mulheres são Gomes em seu contexto, mas também como representados: alguém que legitimou uma maneira de ver As Sonatinas Four Feet, assim como to- que se perpetuou no Ocidente, e que ainda é das as demais fotografias da primeira presente nos dias atuais. fase, realizadas do mirante secreto da “Seja como for, e pese a certa diversida- sua janela, eram impregnadas de lu- de recente em disciplinas distintas, a oferta minosa imprecisão em virtude do uso iconográfica – no cinema, na publicidade, na de uma objetiva de 200 mm com um televisão e também na arte – não deixa de duplicador de focal, o que se por um pressupor, majoritariamente, que o especta- lado lhe concedia o alcance equivalente dor é sempre heterossexual” (ALIAGA, 1997, a uma teleobjetiva de 400 mm, por ou- tro, não apresentava a mesma nitidez p.55, tradução nossa)7, além desse espectador ou a mesma profundidade de campo normalmente ser considerado um homem. E (VASQUEZ, 2004, s/n). por mais que tenham acontecido mudanças, seja com maior representatividade na mídia A primeira câmera 35 mm do artista ou no próprio meio artístico, as imagens ain- tinha uma teleobjetiva (SANTOS, 2006). E da são naturalizadas, consideradas represen- esse dado é relevante para o entendimen- tações de uma determinada realidade, e com to, não somente de como ele fotografava à isso, o próprio entendimento dos gêneros distância, mas também das possíveis inter- ainda é bastante naturalizado e representa- pretações que podem surgir a partir dessas do como apenas uma divisão binária entre fotografias. É plausível afirmar que as fotos homens e mulheres, feminino e masculino. de Alair Gomes tem um tom documental, Outra questão a ser considerada é que porém, as mesmas expressam mais sobre os o próprio entendimento dos gêneros, consi- sentimentos do artista, como uma expressão derando que vivemos em uma sociedade pa- autobiográfica de seu desejo (id., 2006), do triarcal, apresenta-se na maneira com a qual que o que realmente estaria acontecendo na as representações se afirmam. Portanto, não rua. adianta muitas vezes colocar uma protago- Focando as discussões nas séries foto- nista mulher ou um protagonista homosse- gráficas nas quais o artista não fotografa em xual em um filme, se a lógica que ainda divide estúdio, esse caráter documental transpare- ce. Inserido na discussão proposta por André 7 Sea como fuere, y pese a cierta diversidad reciente en distintas Rouille (2009), a arte de Gomes pode ser con- disciplinas, la oferta iconográfica – en el cine, a publicidad, templada pelo conceito de fotografia-expres- la televisión y también el arte – no deja de presuponer, mayoritariamente, que el espectador es siempre heterosexual são, na medida em que o artista se expressa

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através de sua arte, ao mesmo tempo em que diferente de documentar, visto que Alair fala registrou a movimentação característica da de si, de seu desejo, preservando a memória rua em que morava. Na fotografia-expressão subjetiva daquilo que o rodeia. (diferente da fotografia-documento e sua ca- O historiador Paulo Knauss diz que, racterística indicial) é possível apreender a “a imagem pode ser caracterizada como subjetividade daquele que registra, caracteri- expressao da diversidade social, exibindo a zando uma escrita pessoal. “A noção de escri- pluralidade humana” (2006, p.99), numa re- ta pessoal prevê a presença de um operador ferência à questão da classe, ou seja, que a que tem papel fundamental, entendendo a imagem pode registrar tanto o cotidiano da imagem menos como decalque e mais como classe trabalhadora quanto das elites. Porém, mapa das coisas fotografadas, visíveis ou in- se pode transpor essa lógica para outros visíveis na imagem” (SANTOS, 2006, p.61). grupos, sendo as imagens os meios para o “A fotografia-expressão exprime o acon- registro de vidas que antes eram esquecidas tecimento, mas não o representa” (ROUILLÉ, e silenciadas, destacando o fácil acesso do 2009, p.137), portanto, as fotografias de Alair material fotográfico, que desde o seu nas- Gomes por mais que expressem o âmago do cimento está marcado pela democratização sujeito, ao apresentarem o que ocorria no (MIRZOEFF, 1999). mundo ao redor também possuem “um va- “Nas duas décadas e meia entre 1945 e lor documental” (id, p.19). Inegável também 1969, a migração em massa às grandes metró- a sua importância como um dos pioneiros da poles brasileiras fez a balança da distribuição fotografia homoerótica brasileira (SANTOS, demográfica pender das áreas rurais para as 2006), sendo um dos representantes da arte urbanas” (GREEN, 2000, p.251). Esse fator, o brasileira nas décadas de 1970 e 1980, dando da crescente urbanização, favoreceu muitos visibilidade à questão da corporeidade e mas- homens a saírem de suas cidades no interior, culinidade para o debate, assim como o can- ou mesmo ambientes mais rurais, e migra- tor e o grupo Dzi Croquettes rem para as grandes cidades, como São Paulo o fizeram, através de suas performances ou Rio de Janeiro, à procura de um lugar em musicais. que fossem mais aceitos. Segundo o autor, existiu desde a década de 1950, o crescimen-

Considerações finais to de uma subcultura gay nessas cidades que ocuparam espaços, tanto em bares como na Cabe observar que é fundamental o en- própria praia. tendimento das fotografias de Gomes inse- Por mais que Alair Gomes tenha como ridas em um contexto de repressão, subver- tema seu próprio desejo, as rotinas apresen- tendo o que o estado e a sociedade defendiam tadas pelo seu olhar distanciado também re- como desejo e corpo normativo. O artista metem a essas mudanças nos cenários das acabou por construir “micronarrativas” fo- grandes cidades brasileiros. Como André tográficas (SANTOS, 2008), como um modo Rouillé afirma, lentes como a teleobjetiva

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 175-187, jul/dez. 2017 184 Disponível em: Sobre questões de gênero e imagens: um olhar sobre alair gomes achatam a imagem, descontextualizando-a, ganhava visibilidade e divulgação através de o que se percebe nas imagens aqui apresen- fotografias: tadas. Porém, ao conhecer o artista e seu con- Alair Gomes juntamente com outros texto vivencial é possível relacionar sua obra artistas atuantes nos anos 70 e 80, foi não apenas como uma mera representação um artista cujos trabalhos fotográficos de subjetividade, mas também como reflexo estiveram vinculados à problemática de mudanças sociais. de lidar com a invisibilidade forçada, Ao mesmo tempo em que se fala sobre muitas vezes como um elemento au- a “apropriação do espaço urbano” (GREEN, toimposto em sua trajetória artística, 2000, p.33) como fundamental para o cresci- cujo tema majoritário foi a representa- mento de uma subcultura gay, não se pode ção fotográfica de um viés estético de- sejante em direção ao corpo masculino negar a existência de preconceitos na so- (SANTOS, 2006, p.190). ciedade da época. E o historiador James N Green relata isso falando sobre grupos de Existem outras produções de Alair homens de classe média querendo expul- Gomes, como na série Adoremus, nas quais o sar homens gays de um espaço na praia de artista explicita o seu desejo de uma maneira Copacabana, que era muito frequentado por mais óbvia, quando sua aproximação dos cor- eles, ou até mesmo bares que eram hostis aos pos nus traz implícita a concretude do desejo, homossexuais. como algo que foi obtido ao invés de apenas O caráter clandestino do olhar de Alair almejado. Porém, o distanciamento de suas Gomes, em suas imagens à distância, revela fotos através da janela possibilita refletirmos um pouco sobre o desejo que não pode ser sobre o sujeito voyeur que deseja, mas tam- expresso publicamente. E nesse ponto, se bém sobre esse desejo que muitas vezes é si- percebe outro paradoxo que acompanha a lenciado por uma sociedade preconceituosa. ocupação do espaço, que ao mesmo tempo é Alair Gomes subverte o discurso da acompanhado do silenciamento. É possível coerência de gênero, suas fotos falam sobre criticar a maneira como Alair Gomes repre- aquele que não quer se enquadrar, sobre senta os corpos e ao mesmo tempo reconhe- aquele que vocifera sobre outras possibilida- cer que o artista resiste ao silêncio de sua voz, des de entender o próprio corpo e o desejo. e se expressando através de imagens, cria um Se a inteligibilidade dos corpos refere-se à discurso diferenciado do de sua época. norma, o artista se afasta em direção ao não Considerando o contexto histórico do inteligível, àquilo que não pode ser falado em artista, é possível pensar que suas fotogra- voz alta, e ao fazer isso, constrói outro dis- fias de caráter voyeurístico, capturadas à curso, outras possibilidades para o que para distância de seus objetos de desejo, podem muitos é impensável. estar relacionadas ao fato da homossexuali- Pedro Vasquez (2004) estabeleceu uma dade não ser aceita no cotidiano brasileiro do relação entre o voyeurismo de Alair Gomes e o período. Seu desejo, silenciado e reprimido, filme “Janela Indiscreta” de Alfred Hitchcock.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 175-187, jul/dez. 2017 Disponível em: 185 Tatiana Brandão de Araujo e Cláudia Mariza Mattos Brandão

No filme, o protagonista, um fotógrafo de Vientre: Representaciones de la sexualidad en profissão, devido a uma perna quebrada, aca- la cultura y el arte contemporáneos. Valencia: ba por espionar os vizinhos com sua câmera Generalitat Valenciana, 1997. com teleobjetiva. Cada janela da vizinhança ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: conta histórias, que ocorrem dentro e fora de Companhia das Letras, 2013. campo. Com ele, o espectador constrói his- BENJAMIN, Walter. Pequena História da tórias, imagina, e as janelas se transformam Fotografia In Magia e Técnica, Arte e Política: em enquadramentos instigadores. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Alair Gomes tinha uma forte relação São Paulo: Brasiliense, 2012. com o cinema, o que influenciou as suas BERGER, John. Modos de Ver. Rio de Janeiro: produções (SANTOS, 2006). Da sua janela, Rocco, 1999. o fotógrafo criou outras janelas, recortes do BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: cotidiano de homens que iam à praia. O fator Feminismo e subversão da identidade. Rio de serial de algumas séries fotográficas explo- Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. ra um possível caráter ficcional. Se Alfred ______.Corpos que pensam: sobre os limites Hitchcock referenciou o próprio cinema ao discursivos do “sexo” In LOURO, Guacira (org.). explorar as janelas dos vizinhos de seu pro- O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. tagonista, Alair Gomes apresenta o registro Belo Horizonte: Autentica, 2007. documental de uma atividade que ocorria FERRARA, Lucrécia D‘aléssio. Leitura sem nos arredores de onde morava e constrói uma palavras. São Paulo: Ática, 1986. possível ficção, brincando com o caráter do- GREEN, James N. Além do Carnaval: A cumental e ficcional da fotografia. Homossexualidade Masculina no Brasil do Como já apontado aqui, “a situação Século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000. de apropriação clandestina do corpo alheio HOOKS, Bell. The Will To Change: Men, não era a única maneira de obter fotos dos Masculinity, and Love. Whashington Square garotos” (SANTOS, 2006, p.217), o que per- Press: New York, 2004. mite inúmeras discussões sobre uma obra KAPLAN, E. Ann. O olhar é masculino? In que é vasta. Alair Gomes não deixa de ser KAPLAN, E. Ann. A Mulher e o Cinema: Os dois um voyeur quando fotografa na rua ou den- lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. tro de seu apartamento, até mesmo quando MENESES, Ulpiano B. de. Rumo a Uma constrói situações mais intimas, mas, com História Visual In MARTIN, J.S; ECKERT, C; certeza, suas obras configuram um univer- NOVAES, S.C (org.). O imaginário e o poético so que possibilita diferentes interpretações nas Ciências Sociais. Bauru, SP: EDUSC, 2005. e relações para além do real que apresentam. MIRZOEFF, Nicholas. The Age of Photography (1839-1082). In MIRZOEFF, Nicholas. An Introduction to Visual Culture. London;New Referências York: Routledge, 1999. ALIAGA, Juan Vicente. El Poder de la Mirada: MULVEY, Laura. Visual Pleasure and Narrative Bienvenidos a la Cúpula del Placer In Bajo Cinema In BRAUDY, Leo; COHEN, Marshall

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 175-187, jul/dez. 2017 186 Disponível em: Sobre questões de gênero e imagens: um olhar sobre alair gomes

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Recebido para publicação em 23 mai. 2017. Aceito para publicação em 30 out. 2017.

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Doi: 10.5212/Uniletras.v.39i2.0003

Devir-terror: o inconciliável e o dialógico nas ações estético-políticas do coletivo coiote

Becoming-terror: the irreconcilable and the dialogic in the political-aesthetic actions of coletivo coiote

Andiara Ramos Pereira*

Resumo: Nesse artigo analiso duas ações estético-políticas do Coletivo Coiote. A primeira, uma ação em que imagens sacras foram utilizadas como dildos para masturbações públicas e, logo na sequência, foram quebradas em uma das vias turísticas mais frequentadas da cidade do Rio de Janeiro. Essa ação ocorreu na Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, em 2013, momento no qual o Papa Francisco visitava a cidade para a Jornada Mundial da Juventude católica. A segunda ação foi uma costura vaginal realizada para protestar contra os crescentes casos de estupros na cidade de Rio das Ostras, região dos lagos do Rio de Janeiro, em 2014. Esses dois eventos são aqui pensados a partir das noções de terrorismo poético, de pornoterrorismo e de contrassexualidade, respectivamente engendradas por Hakim Bey e Diana J. Torres em suas obras “Caos, terrorismo poético e outros crimes exemplares” (2003) e “Pornoterrorismo” (2013). Palavras-chave: terrorismo poético, pornoterrorismo, Coletivo Coiote.

Abstract: In this article, I analyze two political-aesthetic actions of Coletivo Coiote. The first action in which sacred images were used as dildos for public masturbations and afterwards were broken in one of the most visited tourist routes of Rio de Janeiro. This action took place at the Rio Slut Walk 2013, at which time Pope Francis visited the city for Catholic World Youth Day. The second action was a vaginal seam performed to protest against the increasing cases of rape in Rio das Ostras city, Rio de Janeiro lakes region, 2014. These two events are here thought with the notions of poetic terrorism, pornoterrorism and contrasexuality, respectively engendered by Hakim Bey and Diana

* Andiara Ramos Pereira é mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos Contemporâneos das Artes pela Uni- versidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-graduação em Memória Social pela Universidade Federal do Es- tado do Rio de Janeiro. Bolsista Capes. Possui pesquisa voltada para as intersecções entre Arte, Gênero e Política. É membro da Coletiva Feminista Maria Bonita RJ, organização responsável pela realização de eventos com a temática da pós-pornografia na cidade do Rio de Janeiro. Email: [email protected]

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J. Torres in their works “Caos, terrorismo poético e outros crimes exemplares” (2003) e “Pornoterrorismo” (2013). Keywords: Pornterrorism, poetic terrorism, Coletivo Coiote.

Uma conjuntura: assimétrica de poder. Não está em questão A cisheterocentralidade e as apenas a constituição de uma identidade he- mobilidades dissensuais gemônica e de outridades subalternizadas, A natureza não é um destino. Os nossos mas a concepção de redes produtivas de corpos não são naturalmente femininos ou poder que regulam a vida em sociedade de masculinos. E a sexualidade não depende de maneira minuciosa. Nesse sentido, a propa- um sexo oposto e complementar. Os corpos gação social e a internalização de um dispo- são sexuados de acordo com um dispositivo sitivo de sexualidade que torna natural aquilo tecnológico colonizador empreendido pela que é instituído tecnologicamente orienta a burguesia europeia heterossexual branca atribuição de sentidos e a inteligibilidade dos (PRECIADO, 2014). Esse dispositivo, que, corpos normativos de modo que tudo que tal como Foucault, compreendo como dispo- escapa às normas de gênero e sexualidade é sitivo de sexualidade, engendra o próprio sexo considerado um desvio moralmente vil. e a sexualidade a partir da produção discur- É inteligível o corpo que alinha sexo, gê- sivo-científica que os descreve como dados nero, práticas sexuais e desejo numa perspec- biológicos a serviço da gestão sócio-política tiva cisheterocentrada. Ou seja, aquele corpo das populações. Entretanto, apreender cer- que se adequa a um dos sexos binários sem tas sensações como provenientes dos sexos/ nenhuma dissonância morfológica, tendo gêneros e sexualidades sob a afirmação da um pênis ou uma vagina, deve assumir ex- biologia ou da natureza pura, sem uma men- pressões de gênero decorrentes de seus sexos, ção cultural, significa camuflar a produção masculino ou feminino, e possuir um desejo tecnológica dos desejos e prazeres. Essa ca- sexual pelo sexo oposto e complementar, de muflagem, que equivale à dissimulação da modo que suas práticas sexuais correspon- construção tecnológica dos sexos/gêneros dam às práticas heterossexuais (BUTLER, e sexualidades, é o principal mecanismo de 2013). Para essa continuidade causal entre controle social viabilizado pelo dispositivo sexo, gênero, desejo e prática sexual, temos de sexualidade. Sob a aparência do natural, o as equações: mulher = vagina = feminilida- de = desejo por homens e homem = pênis = sexo é incitado pela (hetero)sexualidade para masculinidade = desejo por mulheres. Essas a gestão da vida estratificada na hierarquia equações, contudo, não são formuladas de do masculino sobre o feminino. O então for- maneira simétrica. Para os homens, o poder, mulado sexo binário passa a ocupar o lugar para as mulheres, a resignação. Essa é a regra da evidência tácita sem que, com isso, se per- do mundo patriarcal cisheterocentrado. Não ceba a violência forjada pela fixação orgânica é por acaso que os casos de estupro ocorrem da diferença sexual pautada na distribuição

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 189-202, jul/dez. 2017 190 Disponível em: Devir-terror: o inconciliável e o dialógico nas ações estético-políticas do Coletivo Coiote com intensa regularidade.1 Ou que os homos- (2012) a circulação de nossos corpos na ci- sexuais sejam perseguidos e espancados até dade constitui uma espécie de mobilidade a morte nas ruas das grandes cidades. Ou dançante que implica uma relação de poder. que as mulheres lésbicas estejam sujeitas às Dito de outro modo, os nossos movimentos práticas do estupro corretivo. E ainda, que corriqueiros de ir à universidade ou ao traba- as pessoas intersexuais não possam decidir lho, voltar para nossas casas no final do dia sobre a morfologia que querem para si e se- ou ir a festas e encontros familiares nos finais jam submetidas à cirurgias logo no início da de semana, tudo isso corresponde a coreo- vida. Além da patologização das identidades grafias políticas do corpo na cidade. A noção trans que as submete à necessidade de uma de “coreografia” é usada simultaneamente autorização médica e jurídica para, somente como prática política e como enquadramento assim, terem suas existências reconhecidas. teórico que mapeia performances de mobili- Essas violências são necessárias para sanar dade e mobilização em cenários urbanos de o medo de contaminação incitado pela liber- contestação. Nesse sentido, aparições espe- dade de um corpo desviante. taculares2 de corpos dissidentes do sistema Corpos normais e desviantes, em sua sexo/gênero estabelecido podem engendrar inteligibilidade perfeita ou ausente, são práticas de resistência às naturalizações que percebidos no fluxo cotidiano das cidades. O geram violências marcadas pela diferença de modo como os corpos são percebidos em seus sexo, gênero ou sexualidade. movimentos – ou, em outras palavras, como tocam o chão da história, fazem e refazem Duas re-ações estético-políticas seus trajetos diariamente ou inauguram um novo corpo e um novo chão de modo com- A fim de produzir uma análise sobre pletamente imprevisível – pode traduzir um os modos de resistência propostos por cor- consenso com o fluxo neoliberal cishetero- pos dissidentes das normas de sexo/gêne- centrado estabelecido ou pode produzir um ro e sexualidade, tomo como referência o dissenso. Como dissenso, compreendo uma Coletivo Coiote. O Coletivo Coiote é um gru- “ruptura nas formas sensíveis da comunida- po nômade e autogerido que articula ações de” (RANCIÈRE, 1996, p. 370). E, como em estético-políticas de combate ao capitalismo toda ruptura, as normas são confrontadas, cisheterocentrado. Para isso, apropria-se de fazendo emergir novas possibilidades para- linguagens artísticas, como a performance, digmáticas de mobilidade. De uma maneira a música, a pintura corporal, a dança, etc., ou de outra, os corpos na cidade coreografam para, articulando-as com temáticas políti- seus percursos. De acordo com André Lepecki cas, provocar choques estéticos em quem se depara com suas ações. Dizer que há, nas ações do Coletivo Coiote, uma apropriação 1 Em 2015, o 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública estimou que no Brasil ocorrem 5 estupros por hora. Cf.: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/11/brasil-te- 2 Para uma definição da expressão “aparição espetacu- ve-5-estupros-por-hora-e-um-roubo-carro-por-minuto- lar”, ver: Abramo, Helena. Punks e Darks no espetáculo -em-2015.html Acesso em 9/04/2017. urbano. São Paulo, Editora Scritta, 1994.

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de linguagens artísticas não significa dizer protestar contra os crescentes casos de es- que o que o Coletivo Coiote faz é arte. No tupros na cidade de Rio das Ostras, região campo da arte há uma tendência à morali- dos lagos do Rio de Janeiro, em 2014. No dia zação de condutas que seriam lidas como seguinte dessa ação, ocorrida na festa de en- execráveis em outros contextos. Ou seja, o cerramento de um seminário acadêmico que mundo da arte absorve ações com poder de tratava do tema Corpo e Resistência, inúme- desestabilização, mas as neutraliza, fazendo ros jornais chamavam atenção para o escân- com que elas sejam achatadas à formulação dalo que confundia performance com crime. “isto é arte”. Tornam-se, desse modo, pala- A ação na Marcha das Vadias do Rio de táveis. Porém, no Coletivo Coiote nada é tão Janeiro ocorreu no meio da tarde, durante a simples assim. Se “tudo é possível no mun- concentração do ato. O Coletivo Coiote che- do da arte” (Danto, 2016, p. 15), essa é uma gou na Avenida Atlântica em um grupo de conjuntura que pode reduzir à categoria de três pessoas; logo duas delas tiraram suas arte os movimentos de resistência política roupas e penduraram molduras com ima- que, mesmo com a utilização de linguagens gens representando Cristo sobre seus sexos, artísticas, não possuem nenhuma intenção como um tapa-sexo profanador. A terceira de disputar um espaço nesse campo. Tais pessoa estava o tempo todo mascarada, ves- movimentos de resistência recusam as gale- tida e utilizava uma grande lixeira cor de rias de arte, os museus e os centros culturais, laranja (dessas dispostas pela prefeitura da pois privilegiam o espaço público como lugar cidade em locais estratégicos) para tocar mú- do debate político e da desobediência civil sicas conhecidas nos ambientes de militância por excelência. Não respondem à escassez cariocas, como as canções do Anarcofunk e da categoria “performance”, e sim à ânsia de da K-trina Errátik. Essas músicas foram tri- ver mudanças sociais significativas. Esse é o lha sonora da ação do início ao fim. O casal espírito do Coletivo Coiote. despido colocava camisinhas em crucifixos Embora seu nome seja pouco conhecido, e outras imagens sacras e as usavam para pelo menos duas das ações do Coletivo Coiote masturbações mútuas. As organizadoras da tiveram enorme impacto no cenário político Marcha das Vadias e as demais pessoas pre- brasileiro, gerando repercussão mundial. A sentes formaram prontamente um cordão de saber: a ação em que imagens sacras foram isolamento para que a ação pudesse aconte- utilizadas como dildos para masturbações pú- cer do início ao fim. Um ambiente de êxtase, blicas e, logo na sequência, foram quebradas misturando tensão e excitação, se formava ali em uma das vias turísticas mais frequenta- naquele instante. Por fim, o casal quebrou to- das da cidade do Rio de Janeiro. Essa primei- das as imagens utilizadas na ação, com a aju- ra ação ocorreu na Marcha das Vadias do Rio da de pessoas presentes que se dispuseram de Janeiro, em 2013, momento no qual o Papa a fazer o mesmo, espontaneamente. Após o Francisco visitava a cidade para a Jornada evento, o Coletivo Coiote foi criminalizado Mundial da Juventude católica. A segunda e passou a ser investigado pelo Ministério ação foi uma costura vaginal realizada para Público Federal.

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Imagem: Frame de vídeo da ação do Coletivo Coiote na Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, em 2013.

Na segunda ação para a qual chamo pesquisas e conversa em uma das sa- atenção, o Coletivo Coiote foi convidado las do CURO (Campus Universitário de pela comissão organizadora do evento aca- Rio das Ostras); às 18h ação do Coletivo dêmico Corpo e Resistência, do curso de convidado; 21h festa de confrater- nização na área externa do Espaço Produção Cultural da Universidade Federal Multiuso. No entanto, ao conhecer o Fluminense, campus de Rio das Ostras, para local do Evento o coletivo Coiote pe- realizar uma apresentação na Festa Xereca diu para fazer a ação durante a festa Satânik. Deixo que xs organizadorxs lhes de confraternização e não às 18horas conte a história: em local interno do CURO, o que foi aceito de imediato por nós. Assim, por 28 de Maio de 2014: essa é a data do volta das 22horas tem início a ação do evento acadêmico Corpo e Resistência Coletivo Coiote junto com o Anarco Seminário de INVESTIGAÇÃO & Funk. (Um pequeno aparte necessário CRIAÇÃO do Grupo de Pesquisas/ para esclarecer a conjuntura da ação: 1 CNPq práxis estético-políticas na arte – ninguém sabia o que eles iriam fazer: contemporânea. Primeiro evento que foi lhes dado um tema, o alto índice de realizamos de forma equivalente e ho- estupro na cidade de Rio das Ostras; foi rizontal. Cada um dos organizadores e lhes dado total liberdade para realizar participantes teve o mesmo tempo de sua ação. 2 – todas as estudantes orga- fala, 30 minutos para apresentarem nizadoras do evento de uma forma ou suas pesquisas. Assim, era a programa- de outra estavam vinculadas às lutas ção: das 15h às 17h30 apresentação das feministas, daí o nome que escolheram

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para a festa, Xereca Satanik). Assim, queimada e em seguida escarificações por volta das 22horas tem início a ação são feitas nos corpos femininos ali pre- do Coletivo Coiote em parceria com sentes. Marcas de luta, marcas de resis- Anarco Funk. A bem da verdade a ação tência. Exaustos, os corpos se retiram. já havia começado há muito tempo, Ficamos ali, atônitos sem ter que dizer. pois toda a preparação de seus corpos (PIMENTEL e VASCONCELLOS, 2017, e de demarcação do território onde a no prelo) ação iria se dar já estava acontecendo desde mais cedo. Aliás, podemos dizer Como vimos, o convite ao Coletivo que a ação começou quando aceitaram Coiote foi realizado para que uma denúncia vir sem verba para Rio das Ostras... Mas coletiva contra os crescentes casos de estupro tomemos como início o momento em na região fosse elaborada. A ação decorren- que a roda se fechou e os componentes te da reflexão sobre os inúmeros casos de da ação tomaram um lugar demarcado. estupro necessariamente envolve a dor - da Um corpo masculino coberto de lama e costura, do corte -, a imagem da violação se ladeado por uma cabeça de caveira es- faz e, logo depois, há o alívio da retirada, da tava agachado ao pé de uma amendoei- ra diante de uma fogueira. Outros três tomada de poder pela mulher que expulsa corpos femininos cantavam e batuca- de si o agente de sua dominação. Como vam em material improvisado músicas denúncia à violência de Estado, obviamente de protesto e resistência criadas cole- a ação não passou despercebida. Na manhã tivamente durante a Aldeia Maracanã seguinte, circulava nos grandes canais de co- e as jornadas de junho de 2013. Esses municação as manchetes “polícia apura festa cantos foram ganhando força e produ- com ritual satânico, uso de drogas e orgia” ziram uma espécie de transe performa- e “performance ou crime?”. Das manchetes tivo naqueles corpos que os entoavam. para discussões em escolas de arte do mundo Foi quando um dos corpos femininos deitou-se sobre uma mesa, que esta- todo, aqueles de formação mais conservado- va diante da árvore, abriu as pernas ra diziam que “isso não é arte”, outros tenta- e enfiou uma bandeira do Brasil em vam angariar argumentos que pudessem, de sua vagina a qual foi imediatamente modo desesperado, fazer com essa ação fosse costurada por outro corpo feminino absorvida pelo campo da arte. Arte, anti-arte, numa menção direta e crua à violên- contra-arte ou não-arte, fato é que a ação do cia de Estado que os corpos femininos Coletivo Coiote escapa ao campo estrito da sofrem até hoje no Brasil. Mas esses arte e suscita discussões no campo social corpos se unem e enfrentam a violên- sobre a condição das mulheres no mundo cia de Estado: num gesto rápido e forte o corpo estuprado arranca a costura e contemporâneo e os limites da autonomia retira a bandeira lá de dentro. Não tem sobre o próprio corpo. arrego! Contra a violência de Estado a força da resistência radical feminina. Sangro para resistir. Teatro da cruel- dade contemporâneo. A bandeira é

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Imagem: Printscreen de matéria do portal de notícias G1.

Matéria disponível em: http://g1.globo.com/rj/regiao-dos-lagos/noticia/2014/05/uff-vai-apurar- denuncia-de-festa-com-ritual-satanico-drogas-e-orgias.html Acesso em 09/04/2017.

Imagem: Printscreen de matéria da plataforma virtual do jornal O Globo

Matéria disponível em: http://oglobo.globo.com/sociedade/performance-ou-crime-12698298 Acesso em 09/04/2017.

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Algumas chaves de leitura possíveis: e autodeterminação, de livres práticas cor- terrorismo poético, pornoterrorismo e porais e vivências de prazer, de descentra- outros crimes exemplares mento de um referente hegemônico e de Essas duas manchetes sobre as ações multiplicidade de constituições de si. É um do Coletivo Coiote revelam um tipo de re- movimento de desestabilização do corpo he- pugnância ou temor supersticioso como rea- gemônico pela proliferação de outridades: ções do público? Se sim, o que nessas duas como efeito, há a possibilidade da presen- ações provoca tais respostas? Precisamente: tificação de dissidências sexuais. como se configura o terrorismo nessas E como a nudez colabora na articula- ações? Para responder essas perguntas, a ção da cena de choque no terrorismo poéti- noção de terrorismo poético é fundamental. co? Como se constrói a dimensão política do No texto “CAOS Terrorismo poético e ou- corpo nu na cidade? A nudez se faz arma de tros crimes exemplares” (2003), Hakim Bey intervenção política porque o corpo é o ter- propõe ações de insurreição que se valem ritório da biopolítica. Ou seja, o corpo é um do dispositivo de disparo de choques estéti- território onde se articulam tecnologias po- cos: “A reação do público ou choque estético líticas investidas sobre “a saúde, as maneiras produzido pelo Terrorismo Poético tem de de se alimentar e de morar, as condições de ser uma emoção ao menos tão forte quan- vida e todo o espaço da existência” (FOUCAULT, to o terror – profunda repugnância, tesão 2014, p. 155, grifo meu). Esse poder, antes de sexual, temor supersticioso” (BEY, 2003, preocupar-se com o direito de morte, está in- p. 7). O choque estético provoca a abertura teressado em gerir a vida humana de modo da confront-ação-direta. Uma confrontação a constituir as subjetividades, os desejos, as radical que instala o devir-terror. Proponho condutas morais e as práticas sociais. Nesse que o terror se move simultaneamente em sentido, posicionar a nudez em sincronia duas zonas viscerais: a da recusa, articulada com a apropriação das imagens sacras e pelo inconciliável, e a do convite, articulada crucifixos para profanação, tal como ocorre pelo devoramento dialógico da alteridade. nas ações do Coletivo Coiote, é combater as De modo que o terror, ao mesmo tempo ideias que encerram o corpo na autocensu- em que repele exercícios de poder e saber ra. “Fique nu para simbolizar algo”, afirma hegemônicos, instaura um campo dialógi- Hakim Bey. A criação do terrorismo poéti- co afirmador de outridades discursivas e co ocorre, assim, por meio da destruição de performativas. Dito de outro modo, o ter- valores morais, procedimento chamado de ror é a instância do inconciliável porque “arte sabotagem”. Isso porque o terrorismo elimina qualquer possibilidade de diálogo poético é contra a lei instituída, é arte como com forças inimigas figuradas na Igreja, no crime, crime como arte: crime ou performance? Estado, no capitalismo, no patriarcado e na Nas palavras de Bey: cisheterocentralidade. E é dialógico porque Se os legisladores se recusam a con- há a afirmação das políticas de autonomia siderar poemas como crimes, então

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alguém precisa cometer crimes que de intervenção sociopolítica contra-hege- funcionem como poesia, ou textos mônico da ação. Dito de outro modo, tornar que possuam a ressonância do terro- possível significa viabilizar sob a condição de rismo. Reconectar a poesia ao corpo antes sacralizar4 e moralizar tudo aquilo que a qualquer preço. Não crimes contra se torna arte. É nesse sentido que confun- o corpo, mas contra Ideias, (e Ideias- dir as fronteiras entre a arte e a vida é um dentro-das-coisas) que sejam letais e asfixiantes. Não libertinagem estúpi- procedimento necessário para a eficácia do da, mas crimes exemplares, estéticos, terrorismo poético. crimes por amor” (BEY, 2003, p. 17) Já no segundo caso, embora Bey não utilize a expressão “biopolítica”, entende os Os crimes propostos por Hakim Bey são crimes de terrorismo poético como a “supe- tanto crimes contra as instituições quanto ração de toda a polícia interior ao mesmo crimes de resistência às opressões biopolí- tempo em que se engana toda autoridade ticas. No primeiro caso, a recusa de institui- externa” (BEY, 2003, p. 63). Tais crimes se ções significa também a recusa do sistema teórico e mercadológico da arte representa- dos pelas grandes narrativas da história da -histórico”, pois já não há uma narrativa legitimadora que defina os contornos da obra de arte. Sem uma nar- arte e por galerias, centros culturais, museus rativa hegemônica, acontece “que não há uma aparência e etc. O terrorismo poético “não pode servir a específica a ser assumida pelas obras de arte, uma vez que a definição filosófica da arte deve ser compatível nenhum partido ou niilismo, nem mesmo à com todo e qualquer tipo e regra de arte”. Disto, sugiro própria arte” (BEY, 2003, p. 11). Distante dos que, diferente do contexto social de constantes disputas morais e censuras estéticas realizadas pelo Estado e pelas espaços institucionais da arte, se dá a esco- instituições capitalistas, no mundo da arte a circulação lha do espaço público como lugar das ações daquilo que é considerado socialmente vil não somente é permitida, mas se insere num enredo que busca explicar estético-políticas de terrorismo poético. Não por que seria ou não uma obra de arte. Com as atenções por acaso: ali onde os corpos se exibem vesti- voltadas para o problema filosófico “por que é arte?”, dei- xa-se de perguntar “a quem serve?”, ainda que a delimi- dos dos moralismos cristãos e naturalizações tação da primeira pergunta siga necessariamente o jogo médico-jurídicas acontece o embate com as de interesses em questão na segunda pergunta. De modo que o potencial de intervenção combativa às instituições outridades excrementícias que se apropriam e às opressões fica periferizado. do vil e do asqueroso para quebrar o ordiná- 4 A dialética entre sagrado e profano, apresentada no texto rio, bancarrotear as normalizações fixadas “O que é um dispositivo?”, de Giorgio Agamben, pode ser ilustrativa para o contexto de irrestritas possibilidades em nossos corpos. E ainda: apenas no espaço proposto por Arthur Danto. Enquanto o sagrado retira as público a dimensão política da ação assume coisas de seu uso comum, mantendo-as separadas num mundo do divino, a profanação restitui para o mundo sua potência total. Isto porque o “mundo da usual as coisas que teriam sido subtraídas pela religião, arte” torna possível aquilo que é impensável trazendo de volta o valor de uso e de troca financeira para os objetos. Para Agamben, “toda separação contém fora de seus limites. Entretanto, tornar possí- ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso.” E vel3 implica lançar para a margem o potencial é nesta atmosfera teológica em que se concebe algo como arte: retirando do lugar das coisas comuns e tornando-as passíveis de uma consideração diferenciada – ou divina – no mundo da arte. O problema dessa formulação é: se 3 Para Arthur Danto (2006, p. 15), tudo é possível no con- retirados de praça pública para o campo estrito da arte, texto contemporâneo da arte – que ele chama de “pós- não há discussão política possível sem neutralização.

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configuram como resistência à biopolíti- Mi sexo no se autocensura, eso ca ao considerarmos a constituição de um siempre viene desde fuera. Son los poder localizado e instável, articulador de ojos de lxs demás los que me juzgan no apta o incluso peligrosa, no los de complexidades para além das instituições, mis amantes. Y ante esa censura mi comumente introjetado nos corpos como almeja se abre como uma criatura 5 efeito de tecnologias produtivas. Em outras de las profundidades, monstruosa, palavras, são crimes que buscam desencavar mastodôntica, terrorífica. Les doy naturalizações do poder hegemônico sobre motivos para temer. [...] Que mi os nossos corpos, “libertar o desejo de seus sexualidade sea transgressora no grilhões” (BEY, 2003, p. 18). O desejo de liber- es algo que yo haya elegido em um tação é precisamente o que move as ações do principio, pero ya que tiene que ser así y no hay más vueltas, por lo menos quiero Coletivo Coiote. ser dueña de mi gran delito, imprimir É no sentido da libertação de grilhões em ello el toque de mi voluntad, usarlo instituídos sobre os corpos que o terrorismo como arma y como guía. Porque poético se relaciona com o pornoterrorismo: cuando la sociedade te coloca uma em incisões críticas na superfície ordenada etiqueta nunca te pide tu permiso o dos dias e da própria pele. Em um mergulho tu opinión para hacerlo, se trata de no avesso. Invocar o prazer em vez do lucro. um afán classificatório, esa urgência tan típica por ponerle nombre a todo. Escancarar escatologias em praça pública. Así, yo me llamo marimacho, bollera, No livro “Pornoterrorismo” (2013), a perfor- desviada, pervertida, delincuente, mer Diana J. Torres aborda e transvalora blasfema, fea, enferma. [...] yo me a situação de abjeção em que os sexos e as erijo em todo lo que dicen que soy para sexualidades dissidentes são postos nas so- serlo com razón, para serlo más y mejor ciedades patriarcais que tem o heterocapi- cada día, para construir com todo ello talismo como motriz dos padrões de sexo/ esta identidade bastarda hija de mil pecados que finalmente es lo que me gênero. Na lógica do patriarcado hetero- hace ser quién soy y lo que me acerca centrado o corpo feminino cis e os corpos a otrxs monstruxs para estabelecer trans são aqueles que não raro são violados, alianzas. (TORRES, 2013, p. 22-23)6 patologizados e inferiorizados. Assim situa-

dos num campo alheio ao da autonomia, do 6 “Meu sexo não se autocensura, ele sempre vem de fora. prazer autodeterminado, é preciso que esses São os olhos dxs demais que me julgam inapta ou até mesmo perigosa, não os de minhas/meus amantes. E ante corpos destituam o poder que lhes subjulga essa censura minha vulva se abre como uma criatura do através do empoderamento, da apropriação abismo, monstruosa, gigantesca e aterrorizante. Eu os dou motivo para temer. [...] Que minha sexualidade seja e da subversão de códigos e condutas. Nas transgressora não é algo que escolhi inicialmente, mas se palavras de Diana J. Torres: tem que ser assim e não há mais volta, pelo menos quero ser dona do meu grande delito, imprimir nela o toque da minha vontade, usá-la como arma e como guia. Porque quando a sociedade coloca em você uma etiqueta nunca te pedem permissão ou opinião para fazê-lo, se trata de uma urgência classificatória, essa urgência típica de 5 Cf.: Foucault, 2014, p. 101. dar nome a tudo. Assim, eu me chamo mulher-macho,

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Assim, a ação pornoterrorista é cons- heterocentrada. Essa resposta prolifera os truída a partir da apropriação do lugar de prazeres não-normativos nos quais não há abjeto para sê-lo com razão. Esse lugar de um pênis orgânico como referente sexual abjeção reivindicado pelas performativida- supremo. Há multiplicidade de orifícios, pe- des desviantes, como o Coletivo Coiote, é netração anal com dildos sagrados – santos e produtor de estados temporários de ruína satânicos, virgens com cabeças penetrantes, das práticas normativas do sexo e do desejo sangue e escatologias com e sem preservati- de modo que está diretamente relacionado vo. Embaralha-se toda e qualquer fronteira com a construção da cena de choque. Pois, binária do sexo. Trata-se da contaminação ao realocar as sexualidades transgressoras do da economia heterocentrada. lugar de desvio médico-psiquiátrico para um Uma contaminação disposta em práti- campo de batalha onde o corpo é uma arma cas não hegemônicas do sexo e da sexualida- de emancipação política, desestabiliza-se o de, práticas essas que, como afirma Diana J. cisheterocapitalismo. A desestabilização das Torres, são práticas monstruosas. Os mons- normas do sistema de sexo/gênero e sexua- tros são os abjetos do dispositivo de sexuali- lidade aciona o terror. Em outras palavras, o dade burguês. São aqueles que são expelidos terrorismo ocorre no campo simbólico dos e repulsados pela cisheterossociedade.8 Mas valores morais e das crenças. No gesto de são também os que criam estados epidêmicos ativar o devoramento dialógico dos corpos de fragilização do sistema de sexo/gênero he- e dos prazeres desviantes, o pornoterro- gemônico e do próprio dispositivo de sexua- rismo pode ser entendido, inclusive, como lidade. Nessa direção, entendo que o Coletivo uma prática descolonizadora:7 uma resposta Coiote performa monstruosidades pornoter- violenta aos paradigmas sócio-políticos da ristas, ou seja, experiências de contaminação sexualidade promulgados pela burguesia da corporalidade asséptica formulada pela classe burguesa. O corpo monstruoso do por- noterrorismo colapsa a hegemonia do siste- sapatão, desviante, pervertida, delinquente, blasfema, feia, doente. [...] eu me erijo em tudo o que dizem que sou ma de valores burguês cisheterocentrado e para sê-lo com razão, para sê-lo mais e melhor a cada dia, entra no jogo dinâmico de disputa de forças para construir com tudo essa identidade filha bastarda de mil pecados que finalmente é o que me faz ser quem que constitui os desejos e a subjetividade na sou e o que me aproxima de outrxs monstrxs para fazer parcerias.” Tradução minha. 7 Segundo Bonnici (1998, p. 13-14), há uma vinculação ín- 8 Para Butler, o “‘abjeto’ designa aquilo que foi expelido tima entre os estudos pós-coloniais e o feminismo que do corpo, descartado como excremento, tornado aparece sistematicamente na analogia: patriarcado/ literalmente ‘Outro’. Parece uma expulsão de elementos feminismo, metrópole/colônia. Nessa lógica, as corpo- estranhos, mas é precisamente através dessa expulsão ralidades não-normativas estão numa relação estrutural que o estranho se estabelece. A construção do ‘não eu’ de opressão deliberada pelo homem branco europeu do como abjeto estabelece as fronteiras do corpo, que mesmo modo que as colônias estão em relação de domi- são também os primeiros contornos do sujeito. (...) o nação e extermínio pela metrópole. Então, se o homem repúdio aos corpos em função de seu sexo, sexualidade foi colonizado, as mulheres foram duplamente coloni- e/ou cor é uma ‘expulsão’ seguida por uma ‘repulsa’ que zadas e é preciso, no contexto pós-colonial, libertar as fundamenta e consolida identidades culturalmente amarras socioculturais e políticas impostas pelo coloni- hegemônicas em eixos de diferenciação de sexo/raça/ zador, expulsá-las do próprio corpo pessoal-político. sexualidade.” (BUTLER, 2013, p. 190-191)

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materialidade do corpo, sobrepondo o desvio corpo com a vida, o que instaura uma nova ao estado naturalizado de ações no mundo. mobilização dos sentidos e inicia o impro- O colapso é efetivado com êxito quando há a vável. O campo do improvável aberto pelo negação da conformidade social aos moldes Coletivo Coiote se desvincula das natura- dominantes. Recusar tornar-se um cidadão lizações médico-jurídicas para compor no aceitável, um “alguém na vida”, e até mesmo próprio corpo um terreno combativo que recusar tornar-se uma mulher ou um homem se ergue sobre os escombros das violências são recursos que evidenciam um dos objeti- de sexo/gênero. Se “aquilo contra o que lu- vos do pornoterrorismo: a sabotagem ao sis- tamos bem poderia estar alojado, como um tema capitalista, cisheterocentrado e patriar- parasita, dentro de nossos corpos”, como cal (TORRES, 2013, p. 19-21). Essa negação à afirma Diana J. Torres (2013, p. 43, tradução adequação aos modos de vida capitalista e he- nossa), seria, então, necessário realizar um terocentrado aparece em todo o trabalho do movimento purgatório que eliminasse o ini- Coletivo Coiote. É, inclusive, possível dizer migo entranhado. A eliminação do inimigo que o trabalho do Coiote é focado em criação heterocentrado passa pelo reconhecimento de modos de vida resistentes. que seu perímetro de ação atravessa o corpo Para criar modos de vida resistentes ao de modo a anulá-lo, devastando a potência heterocapitalismo ou realizar o tipo de con- ali pulsante. A anulação pode ocorrer tanto taminação que sabota para destruir o sistema pela violência sexual que agride e traumatiza em questão, a apropriação do próprio corpo quanto pela negação ao prazer sexual, que é necessária antes de tudo. Apropriar-se do faz com que mulheres em todo mundo não próprio corpo em uma sociedade cishetero- experimentem o orgasmo. centrada e patriarcal implica ressignificar O perigo contido no exercício livre da certas etiquetas, como aquelas que taxam as sexualidade feminina ou nas amplas formas mulheres de “loucas” ou “lésbicas” simples- de sexualidade dissidentes é o perigo de uma mente por agirem de maneira autodetermi- vagina costurada: além de tornar o pênis inú- nada. Nesta ressignificação, não apenas as til, propõe a experimentação de camadas palavras são apropriadas para serem positi- subterrâneas do prazer. Essa combinação é vadas, mas as práticas sexuais não hegemô- um ato de terrorismo, pois o gozo contra-he- nicas passam a configurar modos de deses- gemônico carrega consigo o peso dos poten- truturação da economia cisheterocentrada tes gozos que nunca ocorreram ou que foram misógina. Essa desestruturação é elaborada frustrados pela cisheterocentralidade. pelo Coletivo Coiote em sua costura vaginal Aliado aos gozos de corpos não hege- ocorrida na festa Xereca Satânik. O ato de mônicos está a sexualização do ânus. Na costurar a vagina como uma intervenção sociedade cisheterocentrada, o ânus existe estético-política para destacar os crescentes apenas como um canal excretor e a penetra- casos de estupro numa região equivale a in- ção anal (seja por um dedo, um dildo, um pê- terromper o fluxo de relações reificadas do nis) carrega consigo a ameaça de conversão

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 189-202, jul/dez. 2017 200 Disponível em: Devir-terror: o inconciliável e o dialógico nas ações estético-políticas do Coletivo Coiote de um homem hétero em uma bicha irre- instalada após uma revolução movimentada mediável. Para a prática pornoterrorista, o por uma massa insatisfeita. Está em questão prazer anal está diretamente associado às a marcação de uma posição não vanguardis- noções de poder e liberdade. O ânus é uma ta que concebe os limites da naturalização passagem de entrada do prazer e a proibição do corpo no tempo dinâmico das múltiplas do prazer anal só ocorre na medida em que forças atuantes no instante de uma ação. esse prazer é perigoso e pode desestabilizar o Acrescida a essa posição está a incitação sistema de sexo/gênero vigente. As relações para guerrear contra o sistema de sexo/ entre o poder, a liberdade e o ânus estão em gênero por meio de práticas de subversão jogo não apenas no pornoterrorismo, mas que reforçam o poder dos desvios. Essa é também na contrassexualidade. Isto porque também uma das proposições do Coletivo o ânus é um território de disputa política: na Coiote quando atenta para o ataque e a des- economia cisheterocentrada há uma mobi- construção da naturalização das práticas lização para que ele seja vetado de seus pos- sexuais e do sistema de gênero. síveis prazeres, na sociedade contrassexual ele torna-se um centro erógeno situado para Referências além do esquema binário de representação sexual. O ânus é um centro erógeno “situado ABRAMO, H. Punks e Darks no espetáculo além dos limites anatômicos impostos pela urbano. São Paulo: Scritta, 1994. diferença sexual”, além de ser uma “zona AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? In: primordial de passavidade” e o trabalho do O que é o contemporâneo? E outros ensaios. ânus não é destinado à reprodução nem se Chapecó: Argos, 2009. baseia numa relação romântica (PRECIADO, BEY, H. CAOS Terrorismo Poético e Outros 2014, p. 32). Crimes Exemplares. São Paulo: Conrad, 2003. O diálogo do Coletivo Coiote com o por- Disponível em: http://www.imagomundi.com. br/cultura/caos.pdf. Acesso em 31/05/2017 noterrorismo e com a contrassexualidade se faz, assim, tanto como exercício político de Bonnici, T. Introdução ao estudo das literaturas dissidência quanto como proposição de um pós-coloniais. Mimesis, Bauru, Universidade do Sagrado Coração, v. 19, n. 1, 1998. projeto a partir do qual os corpos se tornam livres. De acordo com Preciado, a socieda- BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 7ª ed. – Rio de Janeiro: de contrassexual se dedica a “identificar os Civilização Brasileira, 2014. espaços errôneos, as falhas da estrutura do texto (corpos intersexuais, hermafroditas, COLETIVO COIOTE. Coiote, um korpo extraño. Arte e literatura queer. Edição loucas, caminhoneiras, bichas, sapas, bibas, Revista Rosa 5# especial pós-pornô, 2014. Disponível em: butchs, histéricas, saídas ou frígidas, her- https://medium.com/revista-rosa-5 . Acesso mafrodykes...) e reforçar o poder dos des- em 31/05/2017 vios” (PRECIADO, 2014, p. 27). Não se trata COSTA, P. NOGUEIRA, F. Da pornochanchada de uma utopia/distopia disponível para ser ao Pós-Porno-Terrorismo no Brasil: d‘As

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Cangaceiras Eróticas ao Coletivo Coiote. TORRES, J. D. Pornoterrorismo. Oaxaca Revista Rosa 5# Arte e literatura queer. Edição de Juárez, Surplus em colaboração com especial pós-pornô, 2014. Disponível em: Txalaparta, 2013. https://medium.com/revista-rosa-5 . (Acesso em 31/05/2017) Recebido para publicação em 10 abril 2017. DANTO, A. Após o Fim da Arte: A Arte Aceito para publicação em 04 out. 2017. Contemporânea e os Limites da História. Trad. Saulo Krieger. São Paulo: Odysseus Editora, 2006. FOUCAULT, M. A escrita de si. In: Ditos e escritos V - Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. FOUCAULT, M. História da sexualidade 1: A vontade de saber. 1ª ed. – São Paulo: Paz e Terra, 2014. LEPECKI, A. Coreopolítica e coreopolícia. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, V. 13, n.1, jan/jun. 2012. PANAMBY, S. O caso da xereca satânica contra as boas almas inquisidoras. Plataforma Pulso, 2014. Disponível em http://www. plataformapulso.com/#!O-CASO-DAS- XERECAS-SATNICAS-CONTRA-AS-BOAS- ALMAS-INQUISIDORAS/cmbz/516BE4CC- 9DF8-498B-A6C0-766B24D7E2F1 (Acesso em: 30/01/2015) PIMENTEL, M. VASCONCELLOS, J. Coletivo 28 de Maio. O que é uma ação estético-política? (um contramanifesto). Revista VAZANTES, Ceará, Programa de Pós-Graduação em Artes do ICA-UFC, nº 1. No prelo. PRECIADO, B. Manifesto contrassexual. São Paulo: n-1 edições, 2014. PRECIADO, B. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 312, janeiro-abril/2011. RANCIÈRE, J. O dissenso. In: A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 189-202, jul/dez. 2017 202 Disponível em: Doi: 10.5212/Uniletras.v.39i2.0004

Escrita de si, escrita da diferença

Self writing, writing of difference

Mauricio Marques de Souza (Maurin K)*

Resumo: Limites e tensões no interior das possibilidades do queer enquanto estratégia epistemológica e existencial remetem à análise da produção discursiva e impressa que veicula contracondutas sexuais para fora dos limites do aparelho de Estado. A intenção aqui é esboçar uma cartografia a partir do mapeamento da publicação de fanzines (cadernos fotocopiados a partir dos quais informações, traduções livres, ensaios teóricos e literatura são divulgados, indivíduos ou coletividades queer fazem ressoar seus enunciados para fora da política editorial) no Brasil, Argentina e EUA, que fazem da contraconduta de sexo e gênero uma ferramenta de desmantelamento do capitalismo cognitivo e buscam criar territórios existenciais mais fluidos a partir da escrita e da arte. Palavras-chave: cartografias, resistências, queer.

Abstract: Tensions inside the possibilities from queer as epistemological and existential strategy leads to an analysis from the discursive production that circulates sexual counter-conducts far beyond the State apparatus. We intend to outline cartography from fanzines publications (copies and cheap books from which collectivities and queer individuals can divulge your ideas) in Brazil, Argentina and EUA. These groups produce gender and sexual counter-conducts to deconstruct cognitive capitalism and seek to create existential territories through the writing and art. Keywords: cartography, resistance, queer.

* Artista e pesquisador. Atualmente realiza pesquisa de Doutorado pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Ciên- cias Sociais na PUC-SP. E-mail: [email protected]

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contra-territórios queer de diferentes fluxos (fluxos sexo-afetivos, fluxos rebeldes, fluxos teóricos), permitindo Se o queer, como propõe a teoria radical uma síntese entre campos que libera cone- de grupos anarquistas com contracondutas xões antes inauditas. Portanto, por ser uma sexuais1, é uma proposta de dissolver o ca- característica do mapa poder ser revertido, ráter identitário das políticas (e da polícia - desfeito, montado infinitas vezes em dife- pensando o binômio disciplinar a partir de rentes combinações, as redes de conexão en- Foucault), como ele se agencia aos movimen- tre tais grupos e indivíduos, que possibilitam tos de afirmação de identidades periféricas? haver câmbio de informações, táticas, estra- Como esses se desdobram para constituir tégias de combate entre essas subjetividades aproximações e tensões, sobre um território que manifestam contracondutas sexuais, no qual o queer caminha em passos agitados, produzem agenciamentos coletivo de enuncia- numa constante movimentação que o afasta ção no ínterim das relações de cumplicidade dos legalismos e da dialógica relação entre o e de amizade a partir do enfrentamento às aparelho de Estado e os ditos movimentos condutas normalizadoras no interior do ca- sociais? pitalismo planetário. Para tanto, é um mapa fragmentado de Paul B. Preciado no artigo “Cartografías inciativas díspares, ausentes da base do fun- queer” aponta ser necessário, antes de se lan- damento ou de um leitmotiv que os guia na çar à tarefa cartográfica, indagar-se sobre as univocidade, que se revela ao se debruçar so- possibilidades de se produzir uma cartogra- bre o queer enquanto agenciamento coletivo fia numa época que intitula “pós-sexual”. Se ou como constituição de uma manada sexo- a tarefa de produção de uma cartografia se -afetiva rebelde. Assim sendo, ocupo-me em basear na diferença sexual, ou seja, na iden- compreender de que forma se torna urgente tidade sexo-gênero, funcionará apenas como fazer emergir uma cartografia que possibilite uma taxonomia na qual o cartógrafo se abs- produzir um mapa menos disperso dessas, tém de sua posição identitária para produzir, por vezes, inciativas ilhadas pela assimilação a partir de uma suposta neutralidade de seu do aparelho de Estado ou pelos encaixes no locus de enunciação, uma análise distanciada interior dos movimentos sociais. de um objeto qualquer. O que há de perigoso Como ponto de partida, acerca da dis- nessa cartografia é que facilmente pode vi- tinção entre o mapa e o decalque (ou a fo- rar um “ato de vigilância”, convertendo esse tografia), nas páginas dedicadas ao rizoma conhecimento em material para fazer funcio- em Mil Platôs, as considerações de Deleuze nar dispositivos de controle e “convertendo- e Guattari (2011) opõem a produção de um -se em um arquivo de vítimas que mais que mapa à produção de decalques (cópias) na criticar a opressão, termina por estetizá-la” medida em que o mapa se baseia numa expe- (PRECIADO, 2008:3). Até que ponto escapar rimentação real que possibilita a conjugação da recuperação de identidades de sexo e gê- nero e localizá-las em guetos teóricos? Ou, 1 BAROQUE; EANELLI, 2011:9.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 203-219, jul/dez. 2017 204 Disponível em: escrita de si, escrita da diferença ao contrário, como fazer emergir a produção mercantil-editorial e também da política de coletiva de um mapa que não localize, mas difusão de material com reservas de direitos pressinta os rastros de contra-territórios? autorais, o material de pesquisa se organiza a Sabendo de antemão que é a partir da partir de publicações autônomas e autogeri- afirmação da diferença que esses grupos e das — os fanzines, nas quais grupos anarquis- indivíduos queer podem se conjugar em sín- tas e queer, como o Coletivo Coiote (Brasil), teses efêmeras, a investigação dos registros Revista Rosa (Brasil)5, Ludditas Sexxxuales discursivos impressos produzidos no Brasil, (Argentina)6, Manada de Lobxs (Argentina), Argentina e EUA, a partir da publicação de Bash Back! (EUA), entre outros, fazem da fanzines2, pode ser produzido um mapeamen- produção de periódicos, traduções, entrevis- to possível de contra-territórios queer. Ative-me, tas e registros de ações o fogo da difusão de em um primeiro momento, aos zines publica- informações que podem criar sociabilidades dos pela rede estadunidense anarquista Bash libertárias e transterritoriais — encontros Back!, dentre os quais destaco a publicação entre coletivos e subjetividades não organi- Gender Strike que não se encontra mais em zados através da burocracia da militância ou circulação, entretanto, grande parte de seus do gesso institucional dos grupos governa- artigos e textos podem ser encontrados na mentais ou para-governamentais. Essas “afi- antologia Queer Ultraviolence (BAROQUE nidades singulares na diferença” (PASSETTI, & EANELLI, 2011); no Brasil, ao material 2007:88) são conjuradas e se desfazem com Kafeta Trans3, em três volumes. Também fo- rapidez, produzindo rastros que apontam ram peças de minha atenção os impressos para a dissolução da sociedade, inventando do Coletivo Coiote (inumeráveis em muitas constantemente maneiras de se relacionar edições). entre si e com o fora. Nesse âmbito, inscreve- Perseguindo linhas de fuga4 que, a um -se minha própria produção literária, a par- só tempo, saiam da abundante economia tir da organização de pequenos cadernos poéticos, reflexos de minhas investidas nos 2 Espécie de caderno de baixo-custo, ligado ao movimen- escapes possíveis ao sistema sexopolítico, to punk e anarquista, com o principal objetivo de veicular também em caráter experimental a partir da textos informativos e literários que podem e devem ser reproduzidos em vias de aumentar sua circulação fora ingestão dos bloqueadores de testosterona do mercado editorial comercial. Muitos textos são tradu- e da experimentação artística performática ções ou ensaios críticos publicados sem consentimento dos/as autoras e refletem escolhas ético-políticas pelo adjacente, que me inscreveu de outra forma anonimato ou pela negação da propriedade intelectual. no espaço e me fez escrever de outra forma. 3 Material disponível para download em: Kafeta trans #1 - http://www.4shared.com/rar/BKlrouMt/Kafeta_trans_1. html? e Kafeta trans #2 - http://www.4shared.com/rar/ nHxupi3t/Kafeta_trans_2.html? 4 Utilizo o conceito de linha de fuga (DELEUZE; GUATTA- “mil pequenos-sexos” (DELEUZE; GUATTARI, 2012:99). RI, 2012:103) para designar um componente de alguns 5 agenciamentos que escapa do código binário de funcio- http://www.revistarosa.com.br/ Acessado em: 28 de no- namento da sociedade (nas esferas da macropolítica e vembro. da micropolítica). Esse componente nega a codificação 6 http://luddismosexxxual.blogspot.com.br/. Acessado binária dos fluxos, e no caso do sexo-gênero, faz emergir em: 28 de novembro.

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O território pode ser pensado como o apossa. A primeira forma de ocupação do elemento que delimita determinados hábitos espaço-tempo é a fundação. A fundação é a de ação, de vida. O território e o espaço pelo reiteração do presente, a reiteração territo- qual se desloca uma manada em constan- rialidade, de hábitos. O fundamento já nos te devir. A sexualidade pode ser entendida remete a um passado mitológico. Ele sempre no modelo da territorialidade se essa com- esta aí, sempre está dado. As territorialidades preensão abarcar seu caráter processual, que nós criamos definem o curso do tempo; em constante construção. Assim, os territó- o fundamento, de outra forma, faz-se como rios são produções de nossos ritmos vitais e a ordem do tempo. A isso David Lapoujade nisso concernem à vida. São ocupações de (2015) opõe o sem-fundo, já que toda a questão espaços-tempo móveis e ao mesmo tempo por trás do “quem funda” nos remete à sua delineados. O território é aquilo que de fato exterioridade máxima, uma zona para além temos; e se constrói entorno a uma pretensão do fundamento. à propriedade. A partir do território é que se A questão ‘o que funda...?’ tem isso de delineia o sujeito. Em Mil Platôs há um inte- aberrante – ela nos faz remontar para resse latente pela forma correspondente de além de todo fundamento, rumo a organização do território que é a dos povos um ‘desfundamento’, uma dissipação nômades (DELEUZE; GUATTARI, 2012:53). A de todo fundamento, que inevitavel- terra aparece na concepção de território não mente acarreta uma crítica do valor em um sentido político ou filosófico, mas, an- de verdade e da verdade como valor. tes, geológico, de relevo. “O que é a terra?” (LAPOUJADE, 2015:33). transmuta-se em “como funciona a operação Em todo caso, a produção desse mapa do aparelho de Estado que detém a terra?”. se delimitou a partir da escolha de grupos Portanto, um território existencial pode ser brasileiros, argentinos e estadunidenses também habitado por diferentes maneiras que manifestassem contraposicionamentos de experimentar a sexualidade, como quem em combate aos dispositivos de produção e aprende uma nova língua, uma nova possi- manutenção das sexualidades normaliza- bilidade de ocupar o território. das. Foucault, em sua análise sob o conjunto Nesse processo, evidentemente, apare- de técnicas de governo que compunham o cem linhas duras: a primeira apropriação do poder pastoral, circunscreve a conduta em aparelho de Estado é sobre a terra; afirma um campo duplo: conduta é tanto o ato de uma nova legitimidade sobre essa, inventa conduzir (condução), quanto um “se condu- um direito para regê-la. O Estado preten- zir”, maneira de se portar frente ao ato de de ser o fundamento de toda propriedade. condução (FOUCAULT, 2008:257). O pastora- Essa máquina cria o conceito de uma nova do é tomado como uma forma de poder que realidade política que é a terra. A terra como possui a conduta como alvo – produzindo espaço político é o espaço que engloba os um regime de governo sobre ela, e que, por territórios e da qual a maquina-Estado se fim, deixa entrever a ambiguidade acima

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 203-219, jul/dez. 2017 206 Disponível em: escrita de si, escrita da diferença descrita do próprio termo: resistências e partidária, a possibilidade de criar a imagem revoltas inerentes ao movimento pastoral, reificada do “dissidente” e, portanto, daque- que objetivam a criação de outras condutas, le que toma posição consciente (que, ao meu emergem enquanto força reativas (a esse ver, careceria do desenvolvimento de uma respeito Foucault detêm-se no Luteranismo “consciência política”) diante da condução da como uma grande revolta da conduta que o conduta. Foucault vai habilmente demons- Ocidente conheceu). Entretanto, na atualiza- trar que a recusa do termo permite se ater ção do poder pastoral realizada pelas técnicas ao componente central da revolta ao regime de governo político no exercício da governa- das condutas: a contraconduta. Escolho, por- mentalidade, situada no final do século XVII, tanto, utilizar contraconduta ao me referir as conduções de condutas “não vão se pro- às práticas de enfrentamento às condutas de duzir tanto do lado da instituição religiosa, sexo-gênero normalizadoras que me propo- e sim, muito mais, do lado das instituições nho a analisar. políticas” (FOUCAULT, 2008:261).

A utilização do termo “dissidência”, Não à identidade para designar formas de revolta ao controle das condutas sexuais e de gênero em foco, A partir de tais considerações, a luta so- exige um detalhamento. A dissidência não re- cial que se descola da política identitária, ga- coloca em face à conduta normalizadora uma nha novas formas a partir da crítica aos mo- nova conduta (libertadora, transgressiva), delos LGBT. Pautado na conquista de direitos mas, antes, pretende uma recusa generaliza sociais que assegurem a existência de uma de qualquer forma de conduta, permitindo vida em sociedade para essas corporalidades, o aparecimento de um vácuo nas técnicas de os movimentos sociais LGBT se ocupam em governo que não só desestabiliza, mas que formular novos estatutos legislativos para a estabelece uma relação perigosa de efeito com proteção dessas identidades sociais ou para a o poder pastoral. Para Foucault, detendo-se criminalização dos atos de violência direcio- nos enunciados de Soljenitsin a respeito do nados a gays, lésbicas, transexuais, travestis e regime soviético, o abandono do termo “dis- transgêneros, mas que ainda assim mantém sidência” é estratégico, especialmente em um muita distância de uma crítica radical ao fun- momento em que as forças reativas tendem cionamento do Estado e de suas instituições em transformar-se em assimilação ao interior — antes, o sustentam em uma atitude de pro- do jogo político. Para tanto, Foucault propõe funda conformidade política com a demo- a utilização de “contraconduta”. O que me cracia representativa e participativa. Alguns interessa substancialmente na utilização da grupos queer apresentam objetivamente uma palavra (essa um pouco torcida em um neo- disposição anti-estatal ao construírem críti- logismo) é a discussão sobre a possibilidade cas aos programas de assistência destinados do termo abandonado “dissidência”, carre- à população LGBT e seus agenciamentos to- gar em si, inclusive pela tradição militante e talizantes e identitários que não suprimem,

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desde um ponto de vista micropolítico, os um panorama dos avanços em políticas pú- anseios e ambições desses. Mas, especifica- blicas que produzem efeitos de assimilação mente, grupos queers anarquistas procuram no EUA, justamente as quais uma perspectiva associar as opressões de sexualidade e gênero queer anti-estado se ocupa em desmantelar. com os mecanismos da governamentalidade, Assimilacionismo, em um contexto procurando uma associação entre o fim do queer, é representado pelas grandes Estado e a livre expressão dos sexos, sexuali- campanhas, pelas organizações refor- dades e gêneros em miríades de corpos. mistas. (...) Assimilacionismo, então, Esse complexo acontecimento, que procura integração ao capitalismo e conectou ação de controle biopolítico com ao poder estatal em troca de ser leal. O redes de direitos sociais, culminou em me- movimento LGBT é, dessa forma, em ga-eventos financiados pelas economias ca- seu todo, um esforço assimilacionista. pitalistas e seu empresariado, ora pela cri- (BAROQUE; EANELLI, 2011:345). minalização das práticas discriminatórias No final de 2013 foi lançado um breve (homofobia, transfobia, lesbofobia), ora pela balanço do andamento das políticas públi- reificação de determinadas identidades de cas para minoriais sexuais realizado pela sexo e gênero (como o grande exemplo é a Coordenação de Políticas LGBT de São Paulo. Parada da Diversidade ou do Orgulho LGBT No início do documento há um aviso de al- realizada nas grandes capitais brasileiras e teração: a antiga Coordenação de Assuntos planeta adentro. Nesse contexto, insurgem da Diversidade Sexual passou a se chamar os corpos insurgentes que se unem em co- Coordenação de Políticas LGBT. O documen- letividades anônimas em busca de práticas to, assinado por Julian Rodrigues, coordena- subversivas de confronto ao empreendimen- dor da sessão, aponta realizações de eventos to voltado à produção da homossexualidade e medidas legislativas (chamadas de “ações enquanto identidade rentável ao mercado, estruturais”) com dois focos principais: ou ao que chamaram comumente de pink combate à homofobia, através da produção 7 money . Declaradamente, alguns grupos aqui visual a decorar a cidade, e da instalação de contemplados não só assumem práticas an- centros de referência e atendimento LGBT. ticapitalistas, mas também questionam a in- Fica ainda explicitado o apoio do governo serção das demandas de direitos sociais da municipal às edições da Parada do Orgulho chamada “população LGBT” nas agendas de LGBT e ainda a “requalificação” do Largo do direitos de minorias das secretarias de saúde Arouche e adjacências. Esses pontos estavam ou de segurança pública. A esse respeito, os elencados no plano de metas da Prefeitura de artigos críticos publicados na revista esta- São Paulo em consonância com os Objetivos dunidense Pink and Black Attack apresentam Estratégicos da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. 7 Uma tradução literal seria “dinheiro rosa”. Termo que A crítica queer ao LGBT começa por faz alusão ao poder monetário da chamada “comunidade homossexual” e funciona como uma espécie de termô- demarcar uma diferença de terminologia. metro do potencial do mercado consumidor gay.

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Mesmo as instituições políticas do Estado Assim, em 1993, ele aparece descrito vêm adotando a sigla como um grande “guar- como MGL (“movimento de gays e lés- da-chuva identitário” que reúne experiências bicas”) e, após 1995, surge primeira- de sexo, sexualidade e gênero distintas. O mente como um movimento GLT (gays, lésbicas e travestis) e, posteriormente, termo LGBT propõe criar uma estabilidade a partir de 1999, começa a figurar como através da fixação em identidades de gênero um movimento GLBT – de “gays, lés- ou sexuais para criar uma dinâmica repre- bicas, bissexuais e transgêneros”, pas- sentativa que funda, por último, identida- sando pelas variantes GLBT ou LGBT, des políticas afeitas ao governo democráti- a partir de hierarquizações e estraté- co das condutas. Segundo o artigo já citado gias de visibilização dos segmentos. veiculado pela revista anarquista Black and (FACCHINI; FRANÇA, 2009:62/63). Pink Attack, é evidente, através da história No Brasil já há algum tempo a contra- da construção do termo LGBT, que o mesmo cultura gay e lésbica vem desmantelando as pretende ser uma sigla aglutinadora: do GLS engrenagens da máquina binária de produ- (gays, lésbicas e simpatizantes), à adição da ção de corpos. Sem pretender demarcar um bissexualidade e posteriormente à inclusão ponto de eclosão dessas práticas e conside- da transexualidade (LGBT), a mais recente rando que meu contato com práticas radicais atualização conta ainda com transgêneros e dentro do queer se deu desde os acontecimen- travestis se juntando ao “T”. tos da Marcha das Vadias em agosto de 20139, As pesquisadoras Regina Facchini, cola- a partir do qual se desvelou, ao menos para boradora do PAGU-Unicamp, e Isadora Lins mim, um cenário de lutas políticas nôma- França, comentam que a sigla GLS surgiu no des no que se inscreve nas revoltas dentro Brasil no início dos anos 1990 como alternati- do sistema sexo-gênero (mas também um va ao que nos países de língua inglesa se con- ano marcado por intensos confrontos en- vencionou chamar de gay friendly que basica- tre coletivos e indivíduos livres anarquistas mente designava espaços ou serviços em que contrários às medidas políticas do Estado) pessoas gays8 eram bem-vindas. Portanto, o que se ocupam em demarcar seu espaço de GLS tinha uma estreita relação com a criação fora da política representativa e participativa de nichos de mercado para a comunidade gay e que permitisse a incorporação de um pú- blico heterossexual “moderno” sem grandes 9 A Marcha das Vadias é um movimento organizado por feministas que atua desde 2011 em Toronto e teve sua problemas. Muitas metamorfoses acompa- versão brasileira no mesmo ano. Promove a discussão nharam a sigla que designa o sujeito político sobre abusos sexuais e violências de gênero que incidem sobre os corpos femininos, criticando a “cultura do estu- do movimento, sendo notáveis os momentos pro” e outras violações machistas. Em 2013, no decorrer de incorporação: da marcha no Rio de Janeiro, membros do Coletivo Coio- te realizaram uma “ação pornô-terrorista” utilizando imagens sacras que repercutiu de forma ampla midiati- camente e apontaram para outros caminhos de combate ao sistema sexo-gênero. O registro audiovisual da perfor- 8 No caso da língua inglesa o termo gay designava não mance pode ser acessado aqui: .

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adotada pela maior parte de organizações em em posturas de identidades marginais que defesa dos direitos LGBTTT. À sigla LGBT, fizeram o queer cruzar com as questões de somam-se mais fragmentos identitários raça e da racialização da subalternidade, que provem a unificação da singularidade: das políticas de migração, do pensamento travestis e transgêneros. A experiência da pós-colonial e da miséria social. O Coletivo diferença é politicamente comprimida pela Coiote, bem como o trabalho da artista e pes- necessidade da localização de um “eixo co- quisadora Jota Mombaça podem sem com- mum” que coloque lutas distintas em um preendidos como esforços nesse sentido de mesmo campo de ação. tornar o queer mais kuír (essa proposta de Esses acontecimentos não demarcam Jota Mombaça pode ser encontrada em seu um início ou alguma eclosão dessas práticas e “Kurso Kuir – Perspectivas Mestiças”). pensamentos sobre a radicalidade assumida

Capa do primeiro volume do zine “BORRA Interior do primeiro volume do zine “BORRA queer”. Coletivo Coiote, Rio de Janeiro, 2011. queer”. Coletivo Coiote, Rio de Janeiro, 2011.

Durante o ano de 2013 conheci, em um como uma plataforma nômade de produ- evento na moradia estudantil da USP, alguns ção de performances artístico-políticas em membrxs do Coletivo Coiote, que funciona vias de dissolver normalizações sexuais e de

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 203-219, jul/dez. 2017 210 Disponível em: escrita de si, escrita da diferença gênero. Elxs se organizam de forma descen- letivo a primazia da utilização de conceitos tralizada, produzindo fanzines e manifestos e referências teóricas advindas dos EUA ou queer, vídeo-performances e entrevistas, além da Europa faz de alguns performers e artistas da presença física coletiva que remonta às ligados ao queer enquanto contraconduta gangues gays de Nova Iorque, mostradas no política (utilizo como exemplo o trabalho de filme-documentário Paris Is Burning (1990), Jota Mombaça12) apontarem as produções de de Jennie Livingston10. O Coiote esteve saber contemporâneas, nas quais os intelec- presente nos principais eventos acadêmi- tuais e acadêmicos acabam por reproduzir o cos e artísticos que remetiam ao queer no esquema de dominação política ao não visua- Brasil (Desfazendo gênero [UFBA, 2015], lizarem seu lugar de fala enquanto sujeitos SSEXBBOX [São Paulo, 2015], etc.,) além da produtores de conhecimento e assim silen- organização de performances e ações artísti- ciando a fala subalterna. Essa discussão está co-políticas como na Virada Cultural de São amplamente ligada ao trabalho de Gayatri Paulo em 2014 e na ação Xerecas Satânicas na Spivak (1992), como o trabalho de Mombaça Universidade Federal Fluminense (UFF) em aponta, que ao explorar os lugares de enun- Rio das Ostras em 2014, organizando uma ciação das populações dos países que passam espécie de programação paralela ao evento ou passaram por processos imperialistas de que tangenciavam, sempre ressaltando o ca- colonização, permitiu pensar os centros de ráter elitizado das discussões teóricas sobre produção teórica e sua crítica como disposi- gênero e sexualidade. tivos de silenciamento: O Coletivo Coiote se utiliza de uma Dada a divisão internacional do tra- transvaloração daquilo que denominam balho em países imperialistas, é com- “estética da violência”, fazendo aqueles que preensível que a melhor do universo sofrem as violências do Estado em maior in- ético-político-social europeus, deva tensidade, seja por exibirem corporalidades vir do Atlântico Norte. Mas o que iro- subalternas ou por optarem por modos de nicamente no pós-colonialismo é que a vida resistentes, deslocar-se da condição de crítica encontra seu melhor palco fora vítimas para retomar a ação ativa. O Coletivo do Atlântico Norte, no desfazer do im- Coiote, em suas vivências enquanto bando perialismo (SPIVAK, 1992:54). de queers periféricos insere uma crítica ao A organização de grupos radicais, que caráter colonizador dos conhecimentos no se munem de diferentes instrumentos para 11 campo das dissidências sexuais . Para o co- criar formas de subjetivação não sujeitadas

10 O filme pode ser assistido em: https://www.youtube. ocupação da Aldeia Maracanã, na qual, entre xs detidxs, com/watch?v=hedJer7I1vI . umx integrante do Coletivo Coiote comenta que só que- 11 É possível visualizar a crítica pós-colonial em muitos de ria “morar e conhecer seus parentes” – indígenas. seus trabalhos artístico-políticos e também nos escritos 12 Em especial seus trabalhos artísticos com performan- compilados em fanzines. Por exemplo, no zine “Coiote, um ce e o texto “Pode um cu mestiço falar?” (disponível em: corpo extraño” há um texto relatando a invasão em 22 de https://medium.com/@jotamombaca/pode-um-cu-mes- março de 2013 da tropa de choque da PMERJ durante a tico-falar-e915ed9c61ee#.754t4xva4).

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- como a produção de fanzines, a exibição de Essas coletividades trabalham em sinto- um cinema queer não-assimilado, a prepara- nia com princípios anarquistas, como a críti- ção de performances públicas pornô-terroris- ca radical à política da participação cívica, ao tas13, desloca o funcionamento dos dispositi- voto, ao alistamento militar, aos dispositivos vos de produção e regulação da sexualidade de catalogação e registros sociais, apoiando no interior daquilo que Guattari chamou de ações autogestionadas, ocupações, rádios li- Capitalismo Mundial Integrado, visto que as vres, etc. Enquanto anarquistas, não se atém formas de subjetivação não escapam de sua à tradição da história de tal movimento polí- determinação. A despeito de grupos queer an- tico, adotando uma perspectiva de investigar ticapitalistas, como o Coletivo Coiote, deslo- rastros mais do que o da busca por uma ori- camentos promovidos no modo de vida ca- gem, fazendo do presente seu maior campo pitalista, como o nomadismo, o freeganismo14, de construção de éticas libertárias de vida. o amor-livre (livre associação entre amigos-

-amantes), etc, tendo em vista que escrita de si, escrita da diferença

A ordem capitalística produz os modos Ao acompanhar a trajetória de Paul B. das relações humanas até em suas re- Preciado (outrora Beatriz Preciado) em Testo presentações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado, Yonqui – um certo diário de campo combina- como se ama, como se trepa, como se do com prontuário médico sobre sua expe- fala, etc. Ela fabrica a relação com a pro- riência com a injeção de testosterona em gel, dução, com a natureza, com os fatos, alguns caminhos se abriram para a produção com o movimento, com o corpo, com de uma escrita de si a partir das experimen- a alimentação, com o presente, com tações de transformação da materialidade o passado e com o futuro- em suma, do gênero. Em certo sentido, “não se trata ela fabrica a relação do homem com o de passar de mulher para homem ou de ho- mundo e consigo mesmo (GUATTARI; mem para mulher, mas sim de infectar as ROLNIK, 1999:42). bases moleculares da produção da diferen- ça sexual” (PRECIADO, 2008:110). Portanto, desprogramar o fundamento da diferença

13 O Pornoterrorismo é uma linguagem artística fundada sexual, e com isso certamente implodir cate- pela performer Diana Torres que mescla poesia, ensaio, gorizações que serviram à corrente do femi- ação-direta, vídeo e ativismo virtual. Desde 2006 a artista tem através de suas performances e outras ações artís- nismo essencialista, por meio da utilização ticas questionando os lugares normais da sexualidade e de hormônios, “paródias políticas de gênero” do gênero normativo. Tive oportunidade de conhecer seu trabalho e presenciar uma de suas performances por oca- é uma tarefa micropolítica e macropolítica sião do II Seminário Internacional Desfazendo Gênero simultaneamente. Nas primeiras linhas de em 2015. Informações disponíveis em: http://pornoterro- rismo.com/about . Testo Yonqui, Preciado afirma que o livro se 14 Do inglês Freeganism. Remete às práticas políticas de trata de uma espécie de diário, um protocolo, obtenção de bens duráveis e alimentos dos dejetos do uma narração de um processo de hormoni- sistema de consumo, coletando dos lixos das metrópoles aquilo que não poderiam pagar. zação fazendo uso de testosterona sintética,

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 203-219, jul/dez. 2017 212 Disponível em: escrita de si, escrita da diferença no qual o próprio corpo da pesquisadora jogo a materialidade corpórea em detrimento vem a se tornar seu maior campo de experi- da identidade política designada. Pensar a mentação e escrita. Corpo-escritura. Corpo, bicha, no caso de Zamboni, como um modo primeira superfície sobre a qual vai imperar de vida e não enquanto uma tipologia é ur- um regime de signos sobrecodificados cons- gente para eclodir a experimentação singular tantemente pelo aparelho de Estado e pelas da diferença, esquivando-se da concepção da máquinas do capitalismo cognitivo. sexualidade enquanto demarcação do sujeito Traçar pontos que demarquem os des- que inaugura uma diversidade de conheci- locamentos produzidos nas resistências mentos e regulações decorrentes, armadilha de grupos queer15 na atualidade situa, uma que mesmo a produção de cartografias deve transvaloração das categorias de identidade atentar. de sexo-gênero, a partir de uma perspecti- Ao considerar que a utilização das ca- va rebelde em relação a essas, e revela em tegorias médicas para a produção de iden- conjunto a intenção de implodir a ideia de tidades quaisquer funciona como um siste- identidade para que outros territórios exis- ma de produção de subjetividades sexuais tenciais possam ser criados, ativando zonas esquadrinhadas entre o normal e o abjeto, e regiões corporais ainda não acessíveis. O inscreve em cada corpo uma determinação queer, em especial as práticas sexo-afetivas identitária específica que age sobre ele en- que suscitam, desloca a imagem da homos- quanto um dispositivo de poder. Indivíduos sexualidade do campo da normalização iden- queer, organizados em coletividades ou sós, titária. Anteriormente ao aparecimento do ocupam-se em agir anonimamente para dar queer enquanto corrente teórica nos EUA du- vasão a seus projetos por uma vida autên- rante os anos 1990, a partir das pesquisas em- tica na construção política de seus corpos: preendidas pelo gender studies, outras práticas não mais identidade, não mais luta pela sexo-dissidentes operaram modificações na igualdade de direitos ou ainda pela diver- construção de uma pacificação gay a partir sidade sexual, confortavelmente localizada do surto epidêmico do HIV antecedente. O na agenda política representativa. Numa ati- trabalho de uma cartografia bicha, experi- tude nietzschiana17 de afirmação da vontade mento teórico de Jésio Zamboni16, propõe de potência que realiza a afirmação de suas que o corpo sexuado da bicha insurja contra forças a partir da diferença, queers radicais a normalidade da identidade gay e coloca em procuram fazer da negação uma potência se- cundária, e não permitir espaço ao niilismo

15 No prefácio da antologia da rede de ação Bash Back! consta uma definição possível do termo: “Nós vemos 17 Em sua análise de conceitos nietzschianos, Deleuze queer como a dissolução das identidades sexuais e de gê- (2009) opõe forças ativas, que afirmam e subjugam, das nero. Queer é a negação de identidades fixas. É uma guer- forças reativas, que se adequam e provocam regulações. ra contra todas as identidades. Em consonância com a As primeiras, próprias da vontade de potência são contrá- tendência Bash Back!, para os usos dessa antologia queer rios ao niilismo reativo e a negação como primeira ins- significa trans porque o binarismo de gênero é inerente- tância de um posicionamento livre. Ao contrário, é na mente opressivo” (BAROQUE; EANELLI, 2011: 9). afirmação da vontade que essas forças ativas encontram 16 ZAMBONI, 2013. sua maior vasão.

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reativo do ativismo revolucionário. O desejo multidão queer um espaço como um “reser- de reinventar seus modos de vida é perpassa- vatório” das experiências de transgressão ou do pela urgência de reinventar seus corpos. levando-as a ocupar um espaço de oposição Portanto, as forças ativas de criação de outros às propostas políticas identitárias. modos de vida pode ser o fator que inaugura É preciso admitir que os corpos não são o desejo queer de perpassar espaços fora da mais dóceis. ‘Desidentificação’ (para normalidade, opondo-se a essa apenas em retomar a formulação de De Lauretis), caráter causal. identificações estratégicas, desvios das As experimentações corporais e sensi- tecnologias do corpo e desontologiza- tivas que desafiam o sistema sexo-gênero e ção do sujeito da política sexual são seus dispositivos normalizadores, inscrevem- algumas das estratégias políticas das -se a partir da potência de se experimentar multidões que. (PRECIADO, 2011:15). outros territórios existenciais e ativar aquilo Para tanto, o processo de escrita (es- que Suely Rolnik (2006:4) denominou de cor- crita-corpo, escrita como registro dos acon- po vibrátil. Esse corpo que não mais se funda tecimentos corpóreos) é um campo em que pela percepção identitária do mundo e de si essa potência criadora pode se exercer e vir mesmo experimenta a potência criadora do a constituir um corpo vibrátil. Em Artaud a novo, pois as representações que dispomos própria sexualidade é uma língua. E como não mais satisfazem. De uma forma ou outra, tal, sujeita aos códigos binários e normali- esse é o empreendimento de multidões queer zadores. A sexualidade é “uma inimiga para no que tange à criação de novas formas de se Artaud, na medida em que ela é igualmente afetar, novas linguagens corporais através uma forma de vida organizada, manipulada das quais de comunicar, novas danças-revol- e controlada” (UNO, 2012:39). E, em coro à tas como estratégias de ataque às bases do entrevista de Paul Preciado18, se a sexualida- sistema sexo-gênero imperante. Essas mul- de é de fato uma língua, é possível aprender tidões a que se refere Preciado, retomando outra sexualidade como se aprende uma nova genealogicamente os movimentos franceses língua; é preciso desterritorializá-la, fazê-la dos anos 1970 como a Frente Homossexual de delirar e falar como um judeu em Praga ou Ação Revolucionária (FHAR), o Movimento de um cachorro que faz seu buraco (DELEUZE; Liberação das Mulheres (MLF) e as terroristas GUATTARI, 2014:39), para que ela possa de- Guoines Rouges, e também o volume 12 da re- senrolar em campos não conhecidos e expe- vista Tout e da edição recolhida pelo gover- rimentar movimentos únicos. no francês da Recherches (Trois milliards de Quando Artaud investe sua pesquisa pervers), são a primeira experiência de uma na e pela experimentação de um corpo sem ofensiva dos chamados anormais. As multi-

dões queer devem se esquivar de duas inter- 18 Entrevista concedida para o jornal El País em 13 de pretações que podem assimilá-las ao contex- Junho de 2010 e elaborada por Luz Sánchez-Mellado. Disponível em e acesso em: 26 de março de 2016.

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órgãos, travava uma luta mais intensa no como atuam no interior das sociedades de con- campo de deixar de se “tocar com as mãos”, trole essas redes de produção de enunciações de “ver com os olhos”, do que propriamente coletivas. Muitos fanzines adotam o anonima- aniquilar essas funções ou mesmo os apare- to ou os pseudônimos como ferramenta po- lhos que as produzem. O corpo que tocamos lítica de dessubjetivação: ao inaugurar uma é uma produção posterior dos sentidos que escrita marcada por outro nome, um novo outrem imprime em sua superfície. Só po- nascimento se opera e aquilo que Deleuze e demos fazer nascer um novo corpo quando Guattari chamaram de literatura menor nasce são outras as mãos que nos tocam e fazem precisamente da exterioridade em relação ao surgir pedaços invisíveis que solitariamente autor-autoridade (o que se expressa em um não poderiam ser percebidos; a experiência coeficiente de desterritorialização (DELEUZE; sexo-afetiva revela possibilidades corporais GUATTARI, 2014: 35) próprios dessa maneira infinitas (FOUCAULT, 2013:16). de se “desfazer” a literatura). Para tanto, a arte e as técnicas de si, es- Os fanzines queer produzidos por corpo- pecialmente a escrita (FOCAULT, 2006:146), ralidades em risco que demandam práticas desempenham a função de conectar as pala- de enfrentamento cotidianas, que são por si vras a uma ética (e aqui, nesse caso especí- mesmas processos de escritura desviantes, fico, conduz a outra estética da existência) utilizam-se do pseudônimo como possibili- muito pessoal, sobre a qual nossas ações, dade de reinventar outro corpo; para criar nossas contracondutas podem ter vazão novas maneiras de se habitar o corpo, con- total e possam, num plano micropolítico, siderando que os elementos nos povoam e alterar sensivelmente o território no qual se movem em nossa subjetividade são tribos habitamos. Nesse sentido, em minhas pró- nômades e não sociedades densamente es- prias experimentações de desregramento de tratificadas e estáticas. Aqueles que passam gênero cotidianas, produzir outros territó- pelo aprimoramento do corpo para a consti- rios existenciais sem referências e, como o tuição de uma máquina de guerra (DELEUZE; deslocamento do agrupamento nômade, não GUATTARI, 2012, p.16), pensando que a expe- contar com nenhuma baliza predefinida. A riência da transgressão do normal só assim poesia e a escrita de uma literatura menor em pode se efetivar se permanece desconhecida, grupos e indivíduos queer transborda suas abdicam de seus antigos nomes para assim performances diárias na medida em que o poderem fazer de seus passados identitá- corpo se torna superfície de escritura e a es- rios nada mais que um rastro a ser apagado crita superfície corpórea. pela afirmação do novo que se sobrepõe a O interesse da pesquisa se inscreveu jus- memória. tamente nesse campo de análise, pretenden- Destaco os fanzines produzidos por dis- do se cercar de publicações independentes de sidentes sexuais no Brasil a partir do encon- coletivos gays, lésbicos e queer nos Estados tro Monstruosas: subpolíticas e descolonialidades, Unidos, no Brasil e na Argentina, pensando realizado em Recife em agosto de 2015. Em

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sua descrição19 os organizadores do evento nes e a reedição de alguns exemplares20 que apontam que se trata de um encontro para co- já haviam se esgotado. Reforçam, no texto de nectar geografias afetivas e espaciais nas quais abertura do encontro, que é a partir de uma o corpo desempenha o papel de ferramenta perspectiva das práticas de “autogestão anti- política e de resistências. Dentre as atividades -especistas, contraletradas e nômadas como de sua programação, contando com relatos de horizontes de potência revolucionária” que singularidades sexo-dissidentes da América suas atividades se desenrolaram. Os fanzines Latina (“Pornífero Festival de Arte Pós-Pornô”, produzidos e reeditados pelo encontro foram de Lima - Peru), a realização do “Kurso Kuir circulados amplamente nas redes gays e queer, – Perspectivas Mestiças” de Jota Mombaça e chegando em minhas mãos na Bahia, através uma atividade denominada “Dançando em re- do II Seminário Internacional Desfazendo volta”, que fazia, segundo os próprios realiza- Gênero (UFBA), que ocorreu uma semana dores, “a pista de dança se converter em campo após o Monstruosas e no qual muitos integran- de guerra, o corpo como arma bélica e a dança tes e ativistas queer estavam presentes minis- como movimento emancipatório”20 Também trando oficinas, realizando performances e foi realizado uma produção coletiva de fanzi- comunicações.

Capa e contracapa do zine “Coiote, um corpo extraño”. Coletivo Coiote, Rio de Janeiro, 2015.

19 Disponível em https://monstruosas.milharal. 20 Texto acessado a partir do site do evento. Disponível org/2015/08/02/vem-ai-monstruosas-subpoliticas-e-des- em: https://monstruosas.milharal.org/2015/08/02/vem- colonialidades-21-e-22-de-agosto-em-recife/. Acessado -ai-monstruosas-subpoliticas-e-descolonialidades-21- em: 22 de abril de 2016. -e-22-de-agosto-em-recife/

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 203-219, jul/dez. 2017 216 Disponível em: escrita de si, escrita da diferença

Alguns dos zines do coletivo coiote, es- seu primeiro postulado, que determina sua pecialmente o “Coiote, um corpo extraño” característica intrínseca: a noção de exte- (2015), foram reeditados durante o evento, rioridade. Exterioridade sempre relacional, desde o qual um selo de publicação chamado colocado em planos assimétricos e comple- Monstruosa: dissidência sexual, políticas nôma- mentares que constrói um fora dos meca- des e anti-humanismo surgiu. Na contracapa nismos de poder articulados. A produção de do zine do coletivo coiote é possível ler “A um saber contraletrado, como sugerido pelo propriedade é um roubo, inclusive a inte- texto-manifesto desses dissidentes sexuais21, lectual. Distribua e modifique este material exterioriza-se da produção narrativa do sa- livremente”. Atesta assim um compromisso ber instituído, fazendo uma teoria autônoma com a dissolução das propriedades (que é, ao que se utiliza do conhecimento acadêmico fundo, uma dissolução do próprio sujeito), apenas transversalmente. fazendo de seus escritos algo que existe para além daqueles que escrevem. A assinatura perde sua centralidade, e mesmo o coletivo coiote se transforma em um grupo difícil de catalogar na medida em que apresenta um fluxo de participantes esporádicos espalha- dos pelo Brasil. A escrita do fanzine enquanto produção de um agenciamento coletivo de enunciação é, portanto, uma maneira de tornar audível uma fala, uma enunciação das denominadas minorias de sexo/gênero, para a linguagem do estado e da grande política. Essas corpo- ralidades que procuram constituir uma má- quina de guerra o fazem através da escrita quando essa se transmuta em espaço para a produção de outras subjetividades, que não sujeitadas, e de onde possa emergir uma escritura-corpo ainda não traduzível. É no sentido de compreender a produ- ção contraletrada (como o texto de abertura do Monstruosas citado acima revela) que o conceito de máquina de guerra pode ser útil 21 A “dissidência sexual” se pauta na concepção da hete- como ferramenta teórica. Partindo do pri- rossexualidade como um regime político de autoritaris- meiro axioma que norteia as investigações mo que se impõe aos corpos que estão em dissidência da normalidade heterossexista. (extraído do texto . Acessado em 24 de abril de 2016).

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39,n. 2, p. 203-219, jul/dez. 2017 Disponível em: 217 Mauricio Marques de Souza (Maurin K)

Poesia de Maurin K que compõe o livro Canteiro Referências a ser publicado pela Editora miríada +k BAROQUE, Fray; EANELLI, Tegan. Queer Ultra Violence: Bashback! Anthology. Ardent Press, 2011. BRAIDOTTI, Rosi. Diferença, Diversidade e Subjetividade Nômade. In: labrys, estudos feministas, n.1-2, julho/dezembro, 2002. DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Lisboa: edições 70, 2009. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 1. São Paulo: editora 34, 2011b (2ª edição). ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 3. São Paulo: editora 34, 2012 (2ª edição). ______. Kafka: por uma literatura menor. Tradução: Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora Lins. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento LGBT brasileiro. In: Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latino-americana, n.3, p. 54-81, 2009. FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos Vol. V: Ética, sexualidade e política. Tradução: Elisa Monteiro e Inês Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. ______. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ______. O corpo utópico, as heterotopias. Tradução: Salma Tannus Muchail. São Paulo: n-1 Edições, 2013. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2012. LAPOUJADE, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. Tradução de Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 Edições, 2015.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 203-219, jul/dez. 2017 218 Disponível em: escrita de si, escrita da diferença

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Doi: 10.5212/Uniletras.v.39i2.0005

Feminismos quir: arte e ativismo na américa latina nos vestígios das ditaduras

Quir feminism: art and activism in latin america in the remnants of dictatorships

Bárbara de Oliveira Ahouagi*

Resumo: O presente artigo apresenta uma reflexão crítica de ações que permeiam a arte, o ativismo e questões relevantes aos múltiplos feminismos que, cuja condição marginal aproximam-se da perspectiva quir1. Para no morir de hambre en el arte, 1979, feita pelo Colectivo Acciones de Arte (CADA) do Chile; a obra Cristo (1988) e duas fotoperformances da argentina Liliana Maresca; e a atuação de Indianara Siqueira na Marcha das Vadias em 2013 no Rio de Janeiro, nos permitem conjugar um conjunto orgânico e interligado pelas imagens do leite, do sangue e dos seios que configuram o universo feminino, ou mesmo dos femininos contemporâneos, bem como sua própria falência. O exercício tem como base estrutural autores que abordam estudos estéticos decoloniais e feministas. Palavras-chave: Arte latino-americana, arte e política, arte feminista

Abstract: This article presents a critical reflection about art, activism and relevant issues to multiple feminisms whose marginal condition’s approach the quir’s perspectives. Para no morir de hambre en el arte, 1979, Collective Art Acciones (CADA) of Chile; two Liliana Maresca’s photoperformances and the work Christ (1988; and Indiaara Siqueira’s presence in 2013 protest Marcha das Vadias no Rio de Janeiro, allow us to combine an organic and interconnected set by the image of milk, blood and breasts that make up the female universe, or even of contemporary women and their own bankruptcy. This exercise has a structural based in authors that address decolonial and feminist aesthetic studies. Keywords: Latin-american art, art and politics, feminist art.

1 O termo queer, de origem inglesa, foi substituído neste texto pela corruptela quir, visando adaptar o termo à língua portuguesa e desconectá-lo irônica e poeticamente de sua origem em uma intenção simbólica decolonialista. Alguns autores de países periféricos também tem utilizado a grafia cuir, com a mesma intenção. * Bárbara Ahouagi, doutoranda em Artes pela EBA/UFMG e pesquisa violência de gênero na arte brasileira. Email: bo- [email protected]

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 221-232, jul/dez. 2017 Disponível em: 221 Feminismos quir: arte e ativismo na América Latina nos vestígios das ditaduras Bárbara Ahouagi

son las acciones revolucionarias As idiossincrasias que permeiam a histó- que llevan a situaciones revolucionarias ria e crítica da arte fundadas por narrativas genealógicas hegemônicas, especialmente A maior fuga bem sucedida de presos a partir da segunda metade do século XX, do mundo foi protagonizada pelo grupo corroboram para invisibilizar as culturas guerrilheiro uruguaio Tupamaros que, se- politicamente periféricas e possiblidades gundo Luiz Camnitzer, tinham como teoria novas de diretrizes estéticas e narrativas a epígrafe que inicia o presente texto. No dia sobre as mesmas. Propõe-se então aqui 06 de setembro de 1971, cento e onze presos2 estruturar uma breve análise de ações po- escaparam da penitenciária de seguran- líticas com forte teor estéticos e trabalhos ça máxima de Punta Carretas. A operação, artísticos nas conceituações categóricas da cuidadosamente orquestrada, teve início na arte de gaveta. Situamos o foco nas ques- noite anterior, quando várias explosões si- tões identitárias, alguns paradoxalmente multâneas de veículos aconteceram nos bair- encontram-se à margem mesmo dos estu- ros de Montevidéu, ocupando assim a quase dos quir pertencentes às esferas múltiplas totalidade das forças armadas locais. Aliado do feminismo6. às estratégias comuns aos grupos guerrilhei- Este terreno é acidentado e explosivo, ros de esquerda da época, como sequestros e especialmente dentro do campo elitista das roubos, o grupo aplicava de forma incisiva as academias e do mercado da arte. No Brasil ideias da “propaganda armada”3. Cada pes- apenas 4% da população se identifica como soa engajada em uma ação coletiva estudava, latino-americana. Historicamente natura- chegando mesmo a ensaiar, o papel de mais lizamos essa não-identificação com nossos um ou dois companheiros. As ações carre- vizinhos ampliada pela precarização cultural. gavam forte teor estético4 e “levou” como Há também um grande muro que separa as aponta Camnitzer, “observadores como Belas Artes, em caixa alta, das artes popula- Régis Debray a se referirem aos Tupamaros res, caixa baixa, geralmente feitas em barro como um ‘fenômeno cultural’ ao invés de um nas cidades quase sem nome, por artistas militar”5. igualmente desconhecidos7. Nesse espa- É possível dizer que toda a arte latino- ço popular também se situam os trabalhos -americana produzida nos períodos pós di- tatoriais e nos períodos de transição se refi- 6 Num esclarecimento inicial de leitura, onde temos fe- ra às questões políticas vividas no Cone Sul, minismo ou mesmo mulher, o texto parte da premissa da seja pela referência direta, pelas alusões multiplicidade e complexidades de mulheres e de femi- nismos. Por ser um tema já muito diverso, optou-se por poéticas ou pelo recalque e pela negação. convergir nessa palavra que, pelas constantes tentativas de invisibilidade e silenciamentos históricos, não encon- tra excesso ou incompletude ao ser dita. 2 Eram 105 presos políticos e 6 presos comuns. 7 Obviamente uso aqui de ironia hiperbólica para me referir às diversas dimensões em que a arte reproduz a 3 CANMITZER, 2008, p. 70. Tradução da autora. estrutura colonial de subjugação e invisibilidade cultural 4 Idem. aos quais Jessé de Souza se refere como “violência sim- 5 Id. bólica”.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 221-232, jul/dez. 2017 222 Disponível em: Feminismos quir: arte e ativismo na América Latina nos vestígios das ditaduras sociais, os ativismos e as manifestações ar- Organizada em diversas etapas e com vária tísticas que trafegam nesses espaços. Em um ações simultâneas, o trabalho começou com estudo sobre a arte feminista no Brasil, Silvia a distribuição de 100 saquinhos de leite para Amélia Souza destaca o comentário do artista moradores de um bairro simples na cidade Paulo Herkenhoff para a exposição Manobras de Santiago. Aludia diretamente a um pro- Radicais8, que resume sucinta e objetivamen- jeto implementado por Salvador Allende te como essas manifestações ocupam a his- de distribuição de leite para a população, toriografia da arte no país: interrompido pela ditadura de Pinochet, ao mesmo tempo em que propunha a arte O Brasil é refratário à discussão das como uma fonte proteica. Falava-se do aces- diferenças no campo da arte: mulher, homem, negros, índios, brancos, japo- so e da negação do direito à alimentação. neses, judeus, muçulmanos, homosse- Os Tupamaros chegaram a fazer ações de xuais, colonialismo interno, pluralida- distribuição de alimentos em povoados po- de cultural, estrutura de classes. É cool bres, roubando carregamentos e armazéns rejeitar de antemão. Nesse sentido, o e distribuíam para as pessoas, ganhando sistema de arte brasileiro não é “poli- a simpatia da população e divulgando as ticamente incorreto”, mas antidemo- ideias políticas9. crático. (SOUZA, 2012, p. 61). Após o consumo do leite, as embala- Como uma linha genealógica propo- gens foram enviadas para 100 artistas que sitalmente matriarcal, os conceitos do lei- interfeririam criativamente nas mesmas que, te, do sangue e dos seios, com suas devidas em seguida foram expostas e retornaram à conexões imanentes, enunciam uma linha população: de permanência da violência simbólica que converge na figura da mulher. E muito embo- ra o devir, o ser, o tornar-se mulher se trans- formem constantemente na ficção social do gênero, as formas de opressão quer se modi- fiquem ou não, permanecem.

O leite

Para no morir de hambre en el arte, do Colectivo Acciones de Arte (CADA), foi uma ação artística realizada em 1979, em Santiago, no Chile, em Bogotá e em Toronto.

9 Camnitzer narra o episódio de 1963 quando os guerri- lheiros disfarçaram-se para atacar um comerciante e 8 A exposição teve curadoria de Herkenhoff em parceria distribuir o alimento em um bairro pobre na véspera do com Heloísa Buarque de Holanda, em 2006 no Centro Natal, enfatizando a preocupação do grupo em distribuir Cultural Banco do Brasil de São Paulo. muitos doces naquela data de celebração. (2008, p.72).

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 221-232, jul/dez. 2017 Disponível em: 223 Feminismos quir: arte e ativismo na América Latina nos vestígios das ditaduras Bárbara Ahouagi

Figura 1: Para no morir de hambre en el arte. Grupo CADA, 1979, Chile. Fonte: , acesso em 16 abr. 2016.

Figura 2: Sacos de leite com intervenções. Para no morir de hambre en el arte. Grupo CADA, 1979, Chile. Fonte: , acesso em 16 abr. 2016.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 221-232, jul/dez. 2017 224 Disponível em: Feminismos quir: arte e ativismo na América Latina nos vestígios das ditaduras

A questão da fome real coexiste com Há ainda as questões do mercado as países obesos como reflexo de uma condição quais não podemos ignorar: foi em 1965 que geopolítica injusta. Além da condição corpó- a Nestlé lançou o leite Ninho e, em 1969, o rea, a desnutrição é uma forma de violência Nanon, uma fórmula feita para “assemelhar-se social, psicológica e simbólica. Cientes da ao leite materno” da mãe ocupada no mercado condição periférica, o grupo definia que a de trabalho. A atividade da amamentação ga- “sobreposição simultânea dessas carências nhou no Brasil recente polêmica com as insur- nas suas relações sucessivas, constitui o gências conservadoras e hipócritas que agora campo dividido no qual a obra deve ser lida consideram um ato indecente. Agregada às (...) no espetáculo de sua própria marginali- questões trabalhistas e ao desenvolvimento dade, de sua precariedade”10. Outra questão das pautas pós-feministas, a referência ao ato influencia ainda mais o processo de forma- de amamentar nos dias de hoje incorpora uma ção nutricional é o acesso da criança ao leite crítica ao biopoder e às políticas disciplina- materno, afetado tanto pela saúde das mães res de corpos que ditam, por exemplo, quanto como pelas condições sociais e de trabalho tempo uma mulher pode amamentar o filho, em que estas se inserem. No Chile, em 197911 ou mesmo acerca do consumo de leite na vida a o coeficiente de mortalidade de crianças adulta e à exploração animal. menores de um ano era de 38,7 e no Brasil, No mesmo dia em que foi distribuído no mesmo ano, era de 9012. o leite, dia 03 de outubro, o grupo ocupou E é justamente quando as questões re- uma página inteira da revista chilena Hoy e lacionadas à infância se tornam aterradoras, de outro periódico local, trazendo ao centro tendo em vista os altos índices de mortalida- da página em branco os seguintes dizeres: de infantil nos países periféricos do mundo Imaginar esta página completamente até os dias de hoje, que se manifesta a maior branca. das abjeções. Segundo Julia Kristeva, isso se configura pelo seu caráter mais aterrador no Imaginar esta página branca qual um símbolo de vida torna-se referente acessando todos os rincões do Chile como o leite diário. ao caráter finito da matéria. Isso, sem apro- fundarmos nas relações com o parto e com o Imaginar cada rincão do Chile controverso mundo das secreções femininas. Privado do consumo de leite diário Como páginas brancas a serem preenchidas.

10 Disponível em: < http://archivosenuso.org/ Naquele dia também foram postas em três cada/accion#para_no_morir_de_hambre_en_el_ galerias de arte das cidades onde ocorreram as arte=&viewer=/viewer/71%3Fas_overlay%3Dtrue&js=>. Acesso Tradução da autora. ações, foram colocados sessenta sacos de leite 11 SZWARCWALD, LEAL, 1996. e uma cópia do manifesto que o grupo deixou 12 SZWARCWALD, CASTILHO, 1995. Nas últimas duas nas sedes da ONU desses lugares. Em frente a décadas, o índice brasileiro vem diminuindo progressi- vamente. Segundo dados do Governo Federal, de 1990 a cada um dos prédios um saco de leite foi jogado 2015, o índice reduziu em 73% graças a programas sociais para o alto e caiu ao chão, sob o céu azul. implementados como o Bolsa Família.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 221-232, jul/dez. 2017 Disponível em: 225 Feminismos quir: arte e ativismo na América Latina nos vestígios das ditaduras Bárbara Ahouagi

O vírus A obra foi feita no ano em que se ce- lebrou pela primeira vez, o Dia Mundial de É uma fotografia velha, não antiga, Luta pela Aids, um ano depois de seu diag- marcada por pequenos ciscos e alguns nóstico como soropositiva. O que é absoluta- arranhões, tudo que resta como registro do mente interessante, no entanto, não é o fato trabalho Cristo (1988, aproximadamente 40 de ser uma das poucas artistas mulheres a cm) da artista argentina Liliana Maresca. A abordar a temática em si, apesar de ser um memória fotográfica nos destaca o lado di- raro caso de narrativas artísticas sobre o ví- reito, por onde vemos acoplada ao braço da rus pelo protagonismo feminino, mas o não cruz, uma bolsa hospitalar que leva sangue ao afetar-se, vitimizar-se numa obra posterior, corpo flagelado do Cristo que pende a cabeça, “Maresca se entrega todo destino” (1993), na qual sangrando em chagas, provavelmente morto. trata da questão erótica um ano antes de sua morte. Susan Sontag em A doença e suas Figura 3: http://www.pagina12.com.ar/fotos/ las12/20141212/notas_12/fm3.jpg Metáforas, escrito em 1978, distinguia o uso metafórico das doenças como a tuberculose e o câncer como instrumentos para controle social sugerindo “um profundo desequilíbrio entre o indivíduo e a sociedade” (2007, p. 64). Uma década depois, Sontag ressaltava em A Aids e suas metáforas (1998), a probabili- dade de o vírus já existir bem antes da década de 1980, provavelmente nas florestas africa- nas. Contudo, ela apoia a argumentação de que à notoriedade midiática e simbólica que a epidemia adquirira se deviam não neces- sariamente à sua taxa de mortalidade, mas especialmente por atingir todos os tipos de pessoas. Apesar disso, anos depois do sur- gimento da Aids, ainda recai à ideia de ex- posição ao vírus o estigma dos “grupos de risco”, na “a ideia arcaica de uma comuni- dade poluída para a qual a doença parecia uma condenação” (2007, p. 114). Na poesia de , o prazer transmuta-se em risco de vida. Para Sontag, o perigo ocorre em via dupla, podendo ser considerado tanto um suicídio, como um assassinato (2007, p.134).

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 221-232, jul/dez. 2017 226 Disponível em: Feminismos quir: arte e ativismo na América Latina nos vestígios das ditaduras

Figura 4: Maresca se entrega todo destino. Fotoperformance, 1993. Disponível em: . Acesso em 16 abr. 2016.

Liliana Maresca criou uma fotoperfor- demonstrava a possibilidade de resistir aos mance, meio recorrente em sua carreira, na estigmas direcionados aos soropositivos que qual se dizia estar disponível “a todo destino” geralmente delineavam uma sentença de e foi publicada como anúncio da revista El morte física, social e política à pessoa. Libertino com seu telefone pessoal para con- Outro trabalho em sintonia com as pos- tato. As quatorze fotos nas quais se oferece, teriores teorizações ditas quir, foi feito em são de uma sensualidade irônica, o texto 1983, quando Maresca realizou uma série de do anúncio enfatiza que a escultora é dona fotoperformances registradas por Marcos de seu corpo acima de tudo. Apesar de haver López na casa da artista. Por vezes segura- forte relação simbólica entre o amor e a va pedaços de móveis, restos de manequins morte nas imagens poéticas das obras sobre sobrepostos como máscaras ou próteses. A o HIV, especialmente nas duas últimas dé- interação anatômica e as visíveis dissonân- cadas do século XX, o trabalho de Maresca cias propõem a ideia de desfragmentação é paradigmático. O sarcasmo ululante nos e completude que se sabe finita. Feita para permite desvelar uma marca ainda mais se- uma exposição chamada La beleza-fealdad de cular de exploração histórica e radical: a que lo cotidiano, a obra acerca-se de enunciações recai sobre todos os corpos femininos. O que normativas da estética do corpo que de forma salta aos olhos são as questões que a artista compulsória remete a uma ficção de femini- antecipava, muito antes de virar modinha e nidade à qual Maresca nunca se ajustou. A

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 221-232, jul/dez. 2017 Disponível em: 227 Feminismos quir: arte e ativismo na América Latina nos vestígios das ditaduras Bárbara Ahouagi

imagem oscila entre o dadaísmo de Man Ray da nudez, afinal, o sol é para todos. Este fato e a um devir pós-humano, um androide de que nos parece atual ocorrera em fevereiro um futuro periférico e precário. de 198013 e até hoje os mamilos femininos permanecem enclausurados nas praias do Figura 5: http://www.artribune.com/wp-content/ Brasil, de preferência sem que se manifes- uploads/2012/06/Liliana-Maresca-con-sus-obras- tem em relevos provocantes. 1983-in-collaborazione-con-Marcos-Lopez-2.jpg Mais de meio século depois, os seios de outra mulher, ou como dito por ela mesma, mulher de peito e de pau, desafiou a cons- tituição brasileira na Marcha das Vadias14 de 2013. Foi nas mesmas areias douradas de Ipanema que Indianara Siqueira15 desfilou sem camisa, com seus seios fartos e abun- dantes à mostra, de braços abertos para uma sociedade que se mostra, cada vez mais con- servadora. Indianara não recebeu pedras, nem latas de cerveja, mas foi imediatamente presa por policiais militares sob a acusação de atentado ao pudor. Após recompor seu descabelo, junto a um advogado, colocou a seguinte questão: uma vez sendo um homem,

Peitos poderia, por lei, mostrar o peito, destacando que para a justiça, o gênero importa: homens Num verão tropical, uma brisa úmida e mulheres não são iguais. De outro modo, e o som da bossa irradiavam o frescor do considerada como mulher, e culpada pelo sonho de uma democracia depois de duros despudoramento, a decisão judicial abriria anos de chumbo no Brasil. Dentre as “garo- tas de Ipanema”, uma estava tão feliz e livre que quis sentir a brisa também em seus seios, 13 O grupo que organizou a reação à agressão ao topless, era o coletivo de artistas cariocas GANG. A ação foi deno- afinal, somos um país sensual, jovem e livre. minada “Topless Literário” e dois anos depois organiza- Pouco tempo depois, mais de cem homens ram as ações como “Pelo strip-tease da arte”. As ações do grupo também ficaram conhecidas como “Arte Pornô”. ofendidos com o gesto da garota, arremessa- 14 “Vadia”, assim como “travesti” ou mesmo “queer”, são ram contra ela, latas cheias de areia e cerveja. originalmente adjetivos depreciativos, cujos nomes fo- ram e são ressignificados e apropriados como expressão Alegremente, os “meninos do Rio” cantaram de luta e resistência contra a normatização de gêneros uma canção de para a musa e corpos. A Marcha das Vadias começou em Toronto, Canadá, em 2011 e reverberou em vários locais do globo, agredida: “Joga pedra na Geni, joga bosta na repetindo anualmente também em vários estados brasi- Geni”. Poucas semanas após a agressão, em leiros. resposta ao ato, um grupo de artistas organi- 15 Este é o nome social usado por Indianara. Por não ter feito a transgenitalização, a lei brasileira não permite zou um protesto poético em prol do topless e que o nome seja alterado.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 221-232, jul/dez. 2017 228 Disponível em: Feminismos quir: arte e ativismo na América Latina nos vestígios das ditaduras jurisprudência para que outras travestis e coberto ou não, o que é silenciado nos corpos transexuais pudessem modificar também binários, o que não é dito, mas se mantêm seus nomes civis sem passar pelos proces- alicerce de toda organização social vigente: sos médicos exigidos pela lei, entre eles a ci- o patriarcado e a normatização disciplinar rurgia de redesignação sexual. De qualquer dos corpos. A recusa da justiça brasileira em modo, manter-se-ia a distinção entre os ho- julgar o caso, obscurece ainda mais a dis- mens e mulheres diante da lei. O processo foi cussão e distancia a sociedade de uma dis- considerado pela juíza “muito complicado” cussão madura sobre a questão do gênero. e arquivado. Indianara repetiu o ato pouco A imagem de uma mulher com pênis é tão tempo depois e, após ser presa novamente, chocante quanto a de qualquer mulher que não foi julgada e foi liberada. Mas Indianara mostre seus seios. Seu caso pode tanto abrir a quer ser julgada. jurisprudência para facilitar a troca de nome A ação problematiza as questões de civil para pessoas transexuais, como também gênero e dos corpos em diversos aspectos: para permitir que a igualdade jurídica abar- social, médico, político e jurídico. Seu corpo que todos os corpos. ontologicamente desviado nos permite ver,

Figura 6 - Indianara Siqueira, Marcha das Vadias, 2013. Disponível em: . Acesso em 16 abr. 2016.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 221-232, jul/dez. 2017 Disponível em: 229 Feminismos quir: arte e ativismo na América Latina nos vestígios das ditaduras Bárbara Ahouagi

No mesmo ano em que apedrejaram a organizaram as ações como “Pelo strip- “Geni” de Ipanema, um grupo de jornalis- -tease da arte” durante a qual caminharam tas, críticos e escritores brasileiros, como pelo Posto 9 em Ipanema, completamente João Antônio Mascarenhas, Aguinaldo Silva nus, com palavras de ordem que exaltavam e João Silvério Trevisan, se juntaram para for- a pornografia e a liberdade dos corpos, numa mar o jornal “Lampião”, que logo em segui- celebração aos 60 anos da Semana de Arte da se tornou “Lampião da Esquina”. Naquele Moderna de 1922. O grupo não chegou a ser vento leve que insinuava novos tempos de preso como Indianara, o que é sintomático liberdade, distribuía-se o primeiro jornal se pensarmos que, naquele ano, ainda não gay brasileiro. Ainda que composto apenas estávamos oficialmente vivendo um estado por homens cisgêneros16, o jornal abordava democrático de direito como em tese vive- temas relacionados às diversidades sexuais, mos agora. Os trabalhos da GANG integram como religião, questões de raça e classe so- um conjunto que a arte brasileira passou a cial, entre outros que carregam no âmago as chamar “Arte Pornô”. Seus textos eram ex- marcas do machismo. Durante os anos de plicitamente sexuais, no entanto o repertório ditadura no Brasil, a violência de gênero foi se mantinha restrito ao binarismo de gênero praticada, não somente pelos torturadores e às práticas normativas do sexo. Tendo em que representavam o Estado17, mas tam- vista o aumento recente das forças conserva- bém dentro da própria esquerda, onde se doras, especialmente ligadas à determinadas repetiam os mecanismos discriminatórios e crenças religiosas, a cada dia a nudez torna- opressivos que existiam na sociedade. Depois -se mais transgressora. de um hiato enorme, em que a liberdade de

imprensa foi ocupada menos pela luta por Ondas direitos que por entretenimentos variados, hoje reverberam publicações feministas, Os trabalhos apresentados em ordem transfeministas, queer, especialmente nos cronológica refletem as demandas das agen- meios digitais, que permitem trocas de in- das políticas das lutas feministas e relativas formações descentralizadas. às questões de gênero em cada época. As O grupo que organizou a reação à relações da maternidade e dos direitos tra- agressão ao topless de 1980 foi o coletivo de balhistas carregam até hoje grandes marcas artistas cariocas GANG. A ação foi denomi- das forças do patriarcado. Desde as primeiras nada “Topless Literário” e dois anos depois imagens do período escravagista brasileiro, as negras escravas, amas de leite eram retra- tadas anonimamente: os pintores, em grande 16 Termo utilizado para se referir ao indivíduo que se parte, registravam apenas os pequenos be- identifica com o gênero biológico designado ao nascer. bês senhores, cujos descendentes modernos 17 O capítulo 10 do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade brasileira trata das questões de gênero e das bravejam por defender a disparidade salarial crianças e adolescentes que foram diretamente e indi- entre os gêneros em decorrência da materni- retamente afetadas pela violência nos equipamentos do Estado. dade e contra as políticas de cotas.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 221-232, jul/dez. 2017 230 Disponível em: Feminismos quir: arte e ativismo na América Latina nos vestígios das ditaduras

Apesar de todas as conquistas históricas KRISTEVA, J. Los poderes de la perversión. das mulheres, as complexas engrenagens dos Buenos Aires: Siglo XXI Editores AS, 1988. mecanismos de opressão patriarcais, per- SONTAG, S. Doença como metáfora, AIDS e meiam até mesmo as ilustrações das teorias suas metáforas. São Paulo: Companhia das quir, do debate18 e dos espaços de protagonis- Letras, 2007. mos que se propõe desafiar os paradigmas SOUZA, J. Ralé brasileira: quem é e como vive. socialmente impostos. A ruptura necessária Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. para novas formulações requer uma quebra SOUZA, S. A. N. Mulheres, arte e domesticidade: na estrutura de certos postulados nos quais entre a arte feminista e o Dicionário do Lar. essas engrenagens ainda se apoiam. Dissertação. UFMG. Belo Horizonte, 2012. A experiência das ditaduras latino- COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. -americanas, somada à maneira com a qual Relatório, v. I, dez. 2014. Disponível em: o capitalismo se desenvolveu nesses locais, . Acesso em: 16 abr. 2016. que afetam igualmente as culturas e as subje- MUSEO NACIONAL CENTRO DE ARTE REINA tividades diversas. Nas palavras de Mignolo, SOFIA, Perder la forma humana: Una imagen sísmica de los años ochenta en América Latina. Opressão e negação são dois aspectos Madrid, 2013, 284p. Catálogo de Exposição. 25 da lógica da colonialidade. O primeiro out. 2012-11 mar. 2013. Museo Nacional Centro opera na ação do indivíduo sobre o ou- de Arte Reina Sofia. tro, em relações desiguais de poder. O segundo recai sobre os indivíduos, na CASTILHO, E. A; SZWARCWALD C.L. maneira em que negam o que no fundo Estimativas da mortalidade infantil no Brasil, sabem. (GOMES et al., 2014. p.36). década de oitenta: proposta de procedimento metodológico. Rev. Saúde Pública, São Paulo, Essa lógica estrutural permanece na v.29, n.6. 1995. Disponível em: . Acesso em: 16 abr. 2016.

Referências: LEAL, M.C.; SZWARCWALD C.L. Evolução da mortalidade neonatal no Estado do Rio de GÓMEZ, P.P. et. al. Arte e estética em la Janeiro, Brasil, de 1979 a 1993. 1 - Análise por encrucijada descolonial II. Buenos Aires: grupo etário segundo região de residência. Ediciones del Signo, 2014. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v.30, n.5, out. CAMNITZER, L. Didática de la liberación: 1996. Disponível em: . Acesso em: 16 abr. 2016. PORTAL BRASIL. ONU: Brasil cumpre meta de redução da mortalidade infantil. Disponível 18 Devidamente espetacularizado e capitalizado.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 221-232, jul/dez. 2017 Disponível em: 231 Bárbara Ahouagi

em: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e- justica/2015/09/onu-brasil-cumpre-meta-de- reducao-da-mortalidade-infantil. Acesso em: 16 abr. 2016. ARCHIVOS EN USO. < http://archivosenuso. org/cada/accion#para_no_morir_de_hambre_ en_el_arte>. Acesso em: 16 abr. 2016. CENTRO CULTURAL RECOLETA. < http:// www.cvaa.com.ar/02dossiers/maresca/05_ crono_1980_1.php>. Acesso em: 16 abr. 2016.

Recebido para publicação em 27 mar. 2017. Aceito para publicação em 30 set. 2017.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 221-232, jul/dez. 2017 232 Disponível em: Doi: 10.5212/Uniletras.v.39i2.0006

(Re)lendo gêneros, sexualidades e estado normativo em pelo malo

(Re)reading genders, sexualities and normative state in pelo malo

Claudia Mayer*

Resumo: Pensar o cuír decolonial como projeto epistemológico na América Latina nos permite abordar uma gama crescente de questões urgentes acerca dos gêneros e sexualidades, que impactam fortemente as experiências não - e antinormativas, especialmente em contextos nacionais historicamente controlados por estados normativos. Neste trabalho, apresento uma análise da relação entre o estado normativo e a experiência da sexualidade dissidente no filme venezuelano Pelo Malo (2013), dirigido por Mariana Rondón. Para isso, fundamento minha análise na proposta de decolonização epistemológica constituída nos trabalhos de Gloria Anzaldúa, Walter Mignolo e Aníbal Quijano. Busco, através dessa análise, construir uma crítica à normatividade do Estado como é representado no filme para assim contribuir com o fortalecimento dos projetos de libertação epistemológica do Sul Global frente aos violentos avanços neoliberais. Palavras-chave: cuír, decolonial, América Latina, heteronormatividade, racismo.

Abstract: To think decolonial cuír as an epistemological project in Latin America allows us to address an ever growing range of urgent matters concerning genders and sexualities, which impact heavily on non- and counter-normative experiences, especially in national contexts historically controlled by normative States. In this essay I present an analysis of the Venezuelan film Pelo Malo (2013), directed by Mariana Rondón. For that, I ground my analysis on the idea of epistemological decolonization constituted in the works of Gloria Anzaldúa, Walter Mignolo, and Aníbal Quijano. This analysis aims at constructing a critique of the normativity of the State as it is represented in the film in order to contribute to the strengthening of epistemological liberation of the Global South in relation to current neoliberal advances. Keywords: cuír, decolonial, Latin America, heteronormativity, racism.

* Doutora em Estudos Literários e Culturais pela Universidade Federal de Santa Catarina. Co-coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Perspectivas Queer em Debate (PPGI/UFSC – Cnpq). Editora voluntária e integrante do conselho editorial da Editora Monstro dos Mares. Email: [email protected]

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 233-241, jul/dez. 2017 Disponível em: 233 Claudia Mayer

Introdução do em Pelo Malo, como se acometido de um mal tão difícil de ser vencido quanto o câncer Neste artigo, revisito a análise do filme do presidente3, o “cabelo ruim” aparece múl- venezuelano Pelo Malo (dir. Mariana Rondón, tiplas vezes representando a patologização e 2013) que realizei em minha tese de doutora- a marginalização de diversas performances do1. Esse filme se utiliza do cabelo como local não-normativas que se entrecruzam. Assim, de convergência de muitos processos margi- a simbologia atrelada ao cabelo cria um es- nalizantes. Sobre ele pairam muitos significa- paço fronteiriço onde o cuír é “ferida aberta” dos, já começando pelo título: “cabelo ruim”2. (ANZALDÚA 1987, p. 25) pelos processos histó- De quem é, ou melhor, o que é esse “cabelo ricos de colonização, emancipação, expansão ruim”? O que ele faz e, principalmente, por do capitalismo, socialismos, golpes de Estado, que ele é tão ruim? Os processos de significa- ditaduras, novas Repúblicas e neoliberalismo. ção do cabelo vão surgindo de vários conflitos Doutora em Estudos Literários e Culturais desenvolvidos no decorrer do filme: do desejo pela Universidade Federal de Santa Catarina. infantil de fantasiar-se para tirar uma foto- Ecoa a concepção de que o cabelo é ruim, grafia ao esfacelamento de uma identidade porém maleável: pode-se alisá-lo, arrumá-lo nacional revolucionária contra o capitalismo; e até extingui-lo por completo, assim como das hierarquias racistas e heteronormativas a empreitada colonizatória assumiu como em operação na sociedade venezuelana ao possível e, principalmente, legítimo o poder prenúncio de uma homossexualidade latente de exercer dominância sobre os povos e sobre e patologizada; da colonização e normalização cada indivíduo. Junto a isso, o filme também dos corpos à performance da resistência cuír. abre espaço para se ressignificar as sujeições No Estado entre a vida e a morte representa- que o cabelo vem a representar nas relações entre questões supostamente pessoais e irre- 1 Tese intitulada “Troubling Queer Metronormativity in dutivelmente biológicas com o grande con- Latin American Contexts: Intersectionality in Madame Satã, XXY, e Pelo Malo defendida em fevereiro de 2017 na texto das identidades nacionais, o Estado Pós-Graduação em Inglês da Universidade Federal de normativo e a formação do conhecimento Santa Catarina, na área de Estudos Linguísticos e Cultu- rais, sob a orientação da Prof. Dra. Eliana de Souza Ávila. hegemônico sobre os gêneros, as sexualida- 2 O original “Pelo malo”, que se tornou “Bad Hair” em tra- des, os processos de racialização, projetos dução literal para o inglês, perde muito de seu sentido na tradução do título em português para “Cabelo rebelde”. econômicos e posicionamentos ideológicos. A expressão “cabelo ruim” existe no português brasilei- Por tudo isso, em Pelo Malo o cabelo se torna ro e se relaciona diretamente com o termo em espanhol, e por isso é perfeitamente pertinente aos temas desen- uma alegoria bastante representativa das vá- volvidos no filme. A escolha do título em português ecoa rias maneiras como a manutenção do Estado eufemismos racistas de presença inegável na sociedade atual, além de tirar a força da apropriação que o filme faz executa e desenvolve relações de dependên- da expressão pejorativa ao manter ares de “politicamente cia com o controle dos nossos corpos. correto” quando, na verdade, a expressão “cabelo ruim” continua a ser utilizada para perpetuar o racismo. Por que a escolha brasileira carrega esses eufemismos per- manece uma questão interessante a ser explorada. Por 3 Chávez morreu em cinco de março de 2013, meses an- tudo isso, escolho neste trabalho utilizar o título do filme tes do filme ser lançado no Festival de Toronto em 7 de no original em espanhol. setembro de 2013.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 233-241, jul/dez. 2017 234 Disponível em: (Re)lendo gêneros, sexualidades e Estado normativo em Pelo Malo

Meu objetivo neste artigo é prosseguir das identidades de gênero e sexualidade. com a elaboração acerca da relação entre o Todo esse trabalho em reorganizar e ressig- Estado normativo e performances diver- nificar os corpos das pessoas, os locais, e as sas de gêneros e sexualidades. Tomo como culturas foi o que fez funcionar a colonização ponto de partida o modo como os gêneros dos povos e culturas não-Europeias. Pelo Malo e as sexualidades são representadas no fil- nos mostra detalhes do quanto esses quatro me de Rondón, procurando por traços da eixos continuam interligados no momento colonialidade do poder nas relações entre geopolítico contemporâneo, e também quão três personagens, Junior (Samuel Lange complexos são seus mecanismos internos e Zambrano), Marta (Samantha Castillo), e implicações subjacentes. Por isso, ao anali- Carmem (Nelly Ramos). Isto é, em minha sar a relação entre gêneros, sexualidades, e (re)leitura, procuro observar como se ma- o Estado, é imprescindível levar em conta as nifesta a herança colonial nos eixos que se intersecções entre o que vemos como e a par- referem ao controle do trabalho, ao proces- tir do cuír e como a colonialidade do poder so de racialização dos povos, à formação de vai aparecendo. um mercado global(izado), e a imposição da Visto que a formação dos Estados lógica heteronormativa. Torna-se cada vez Nacionais se dá nos choques, nas rupturas mais urgente que tais conexões sejam expli- e nas reconstruções constituídas nas rela- citadas, visto que o levante conservadorista ções colônia/Metrópole, é importante tam- que percebemos emergir nas relações nacio- bém ter em mente a distinção que Enrique nais e transnacionais se baseia fortemente Dussel (1977) faz das noções de “libertação” no perpetuamento das relações hierárquicas e “emancipação”, sendo esta última aquela à forçosa e violentamente estabelecidas quan- qual Walter Mignolo (2007) adiciona os pro- do das empreitadas colonizatórias. cessos de decolonização. Enquanto processos A colonialidade, que segundo Aníbal emancipatórios mantêm as estruturas so- Quijano (2000) está presente na estrutu- ciais, econômicas, culturais e de governo da ra do poder hegemônico contemporâneo, metrópole, a decolonização busca despren- se estabelece sobre quatro eixos: a ideia de der-se, desligar-se da colonialidade do ser, do raça e suas hierarquias, o controle sobre o poder e do conhecimento a fim de produzir trabalho, a formação de um mercado global, alternativas à retórica da Modernidade, que e a construção das noções de gênero e sexua- se constitui através de um relacionamento lidade (Lugones, 2007). Isso quer dizer que dialético entre a Europa e seu(s) Outro(s) e, se criou uma diferenciação específica das por isso, seguirá sempre lógicas e hierarquias pessoas do mundo, que as organizava em binárias, excludentes e violentas. Por isso, hierarquias de valor ao redor de suas raças e quando falo em decolonização cuír, não me era fator determinante sobre a distribuição refiro a “desfazer” a significação de gênero dos trabalhos disponíveis e do produto desse e sexualidade coloniais e substituí-la por trabalho, assim como sobre as distribuições outra “mais abrangente” (ou assimilatória)

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ou proveniente de tentativas de resgatar explorado por outro em troca de riqueza e passados que não podemos mais alcançar, outros privilégios. tão eficaz a destruição de culturas não-Eu- Além disso, ao evocar a figura de ropeias. Falo em esforços que visam re-fazer Bolívar, Chávez alimenta uma persona mes- o tecido de nossas relações a partir de uma siânica, capaz de “libertar” aquelas pessoas crítica ao que as constitui e define, buscando cujas vidas são precarizadas pelo capitalis- nas alternativas hegemonicamente conside- mo. Entretanto, seu governo, como é repre- radas anormais, doentes, ou estranhas possi- sentado no filme, não aponta para a “liberta- bilidades de aliança para a desconstrução de ção”, muito menos para alternativas além do padrões violentos, excludentes e totalitários. binarismo colonial. Pelo Malo; ao invés disso, A narrativa em Pelo Malo se passa duran- pode-se ler na crítica ao governo durante o te um período crítico da Venezuela Chavista, filme que sem a emancipação da própria ló- quando a população fica sabendo que o en- gica de poder binária, o destino da assim cha- tão presidente Hugo Chávez4 está com câncer mada liberdade acaba sendo a decrepitude (que o levaria à morte pouco tempo depois). daquela mesma sociedade que se almejava Nesse contexto, parte da população encena salvar. Notadamente ausente do filme como demonstrações de apoio ao presidente, ras- personagem visível e ativo, mas pesadamente pando seus cabelos em praça pública como presente nas consequências de seu governo, o um gesto de solidariedade. A representa- (des)materializado Hugo Chávez de Pelo Malo ção de tais manifestações traz para o filme faz ecoar a miseravelmente frustrada retó- a força do populismo do governo Chávez, rica salvacionista da modernidade e, assim, que uniu sua imagem à do líder nacionalis- repete a lógica da colonialidade (Mignolo, p. ta venezuelano Simón Bolívar para mobili- 463-4). Substituir um polo do binário por ou- zar a população a favor de seu propósito de tro não representa garantia de solução para tomar o governo anterior e estabelecer um os grandes problemas sociais do país. regime próprio, baseado nos ideais boliva-

rianos. Se Bolívar lutou pela independência Resistência cuír no entrelugar do da Venezuela, da Bolívia, do Equador, do filme Peru, da Colômbia e do Panamá, tirando- Tal como Chávez está ausente da nar- -os do controle colonial espanhol, Chávez rativa, também o está a possibilidade de per- buscava estabelecer um governo que favore- formatividade cuír, já que durante o filme cesse as classes venezuelanas empobrecidas tais performances são interrompidas brus- pela corrupção e exploração da elite política. camente. Cada vez que Marta percebe que Nota-se nas duas situações que, ocorrendo Junior está tentando alisar o cabelo, quan- em momentos diferentes contextual e tem- do ele fala sobre isso, canta uma música poralmente, permanece a compreensão do no ônibus, ou tira do bolso uma fivela que poder binário colonial, em que um grupo é pegou da amiga, ela entra em pânico homo- fóbico. Para ela, certas particularidades do 4 Hugo Chávez governou a Venezuela de 1999 a 2013.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 233-241, jul/dez. 2017 236 Disponível em: (Re)lendo gêneros, sexualidades e Estado normativo em Pelo Malo comportamento do menino são indicativas Marta e Carmem, avó do menino, as mulhe- de efeminação e homossexualidade. Pela ma- res demonstram saber sobre a precariedade neira que Marta reage, a homossexualidade da vida de meninos efeminados. A violência (ou a sexualidade de maneira geral, como va- homofóbica está nas ruas, nas gangues, no mos percebendo no decorrer do filme) é algo Estado, e deve estar na escola também, o es- que complicaria bastante as coisas. É possível paço que Junior está prestes a recomeçar a imaginar que, na visão que Marta desenvol- frequentar. São perigos que se equivalem: ou veu devido às suas experiências, a experiên- Junior raspa o cabelo para eliminar a vontade cia livre da sexualidade apresente perigos à de alisa-lo e os significados desse alisamento, sobrevivência. Por exemplo, por ser mulher, ou fica fora da escola, o que pioraria ainda ela não consegue sustentar as duas crianças mais sua situação em relação ao trabalho. O e não vê muitas perspectivas para si mesma, racismo, a homofobia, e as relações trabalhis- a não ser se prostituir para o ex-chefe para tas se entrelaçam de tal maneira que a ideia conseguir algum dinheiro e seu emprego de de meritocracia5 que se propaga atualmente volta. Tal situação demonstra que o mercado se desmancha com facilidade. Em seu lugar de trabalho é, inegavelmente, generificado. destaca-se a intrincada rede de poder que Se no começo ela resistia e procurava encon- constrange as possibilidades de vir a ser e as trar um emprego por seus próprios méritos, distribui diferencialmente entre as pessoas. após uma evidente ocorrência de machismo Sem entrar na importante questão da ao ser recusada como segurança em um lava- homossexualidade como um “vício burguês” -carros, é patente para ela e para nós que o que chega furtivamente como importação gênero é parte integrante dos mecanismos cultural indesejada das nações imperialistas, que controlam a distribuição do trabalho e, como já foi vista em outros governos totali- consequentemente, do capital financeiro tários de esquerda na América Latina6, me para manter a vida. pergunto sobre a total ignorância acerca da Observando a trajetória de Marta bus- homossexualidade que impera entre as per- cando um emprego, pode-se notar que não sonagens. Tal ausência toma um ar neolibe- são os “méritos” que alguém possa vir a ter que ral quando pensamos que, como argumento regem o mercado de trabalho. Se prestamos em minha tese, o filme silenciosamente e atenção à intersecção da homossexualidade com o mercado de trabalho, penso que não 5 Vale lembrar que o termo “meritocracia” surge em 1958, há o que se estranhar na descrença de Marta, em obra uma de ficção distópica escrita pelo sociólogo britânico Michael Young intitulada The rise of the merito- seu desespero frente à possibilidade de ter cracy. Na obra de Young, a meritocracia ajuda a manter um filho efeminado ou não-hetero. Além da o desequilíbrio social ao ignorar os privilégios que dão suporte àqueles considerados portadores de mais méri- dificuldade em arrumar um emprego por ser tos. Tal visão fictícia não está muito longe do atual apaga- uma mulher, as poucas opções disponíveis mento de privilégios praticado pelos grupos que defen- dem a meritocracia, assim reforçando o silenciamento são muito restritas. O que restaria ao meni- de injustiças históricas. no efeminado? Durante uma conversa entre 6 Ver, por exemplo, o que diz acerca de Cuba Lourdes Martínez-Echazábal em artigo publicado neste dossier.

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por contraste projeta a solução para a eco- A resistência cuír aparece em Pelo Malo nomia destruída sobre uma nova economia quando o filme acaba e os créditos finais co- de mercado, mais aberta, que o atual governo meçam a aparecer. Nesse entrelugar do filme, barrou. Assim, ao manter o neoliberalismo a diegese se fragmenta e coloca simultanea- de fora, ficam fora também os progressos mente na tela a artificialidade do filme em acerca do pensamento sobre a homossexua- forma dos créditos finais e um retorno ao lidade. Há uma conflação dessas duas partes mundo de Junior; não aquele do filme, que em uma lógica simples em que o fim daque- lhe coloca em “modo de espera” a descoberta le modelo de estado e a instauração de um da própria performance, mas um em que seu mais aberto, instaurado na e pela narrativa desejo se realiza e ele está vestido de cantor de progresso do neoliberalismo, tornam-se a em um estúdio, cantando a música de Henry solução que vai trazer benefícios econômicos Stephen7. Por um lado, a localização des- e culturais. Mais uma vez, podemos notar a se momento fora do filme pode contribuir lógica salvacionista emergindo – desta vez, para o seu tom determinista, por outro lado a salvação vindo como o neoliberalismo; no a fantasia de Junior é feita possível junto à filme, uma salvação frustrada. comunidade de nomes que se forma em tor- Há que se notar também a ausência de no dele, aquela comunidade de pessoas reais quaisquer outros personagens que desafiam (quer dizer, que não são personagens fictí- a norma heterossexual; ao menos, não há ne- cios) que produziu o filme e o tornou visível nhum que o faça abertamente. A impressão internacionalmente, chamando atenção para que se tem é de que a violência policial e a as questões LGBT na Venezuela. Os limites exclusão social imposta a transformistas e entre realidade e fantasia se complementam outras pessoas LGBT, como aponta Marcia para construir uma potencialidade cuír num Ochoa (2014) realmente exterminaram essa movimento de decolonização da produção fíl- população e, por isso, Junior conta apenas mica, que está além das possibilidades epis- com modelos heteronormativos de sexo e temológicas do mundo apresentado no filme. gênero para espelhar. Então, quando ele se olha no espelho e imita várias expressões cor- porais, Junior reproduz a noção binária de Cuidado e (in)capacidades gênero automaticamente, pois não há nada Dentre as mulheres, Carmem é a única além dela em seu horizonte de possibilida- que parece ter dinheiro suficiente para ga- des. Nesse contexto em que só há o gênero rantir certo conforto. Seus poucos bens, que masculino e o gênero feminino, não há as incluem o “luxo” de um secador de cabelos, transformistas venezuelanas de quem fala Ochoa, por exemplo, pois o filme apresen- 7 Henry Stephen é um dos primeiros roqueiros Venezue- ta uma noção de gênero binária e fixa. Da lanos e se tornou famoso na carreira solo com a canção mesma forma, o filme apresenta uma noção “Limón, Limonero”, que Junior canta no filme. Será in- teressante problematizar em trabalhos futuros o fato de binária e fixa de sexualidade, funcionando que Henry Stephen representa uma cultura importada, no binário hetero/homo. cria do imperialismo cultural que universalizava, à épo- ca, o rock and roll.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 233-241, jul/dez. 2017 238 Disponível em: (Re)lendo gêneros, sexualidades e Estado normativo em Pelo Malo parecem representar relíquias de uma época vê a “inadequação” de Junior de maneira dife- passada e melhor, quando havia mais con- rente. Como ele não pode ocupar nem o lugar forto e discos de artistas que copiavam o que do soldado, nem o de pai de família devido a era moda nos Estados Unidos, como Henry todos os fatores que o “cabelo ruim” simboli- Stephen. A caracterização de Carmem e seu za, Carmem se coloca à disposição para cria- apartamento constitui um espaço semissus- -lo junto com ela em seu refúgio, prometendo penso no tempo que evidencia as distinções a ele uma vida um pouco melhor, na qual ele entre o passado e o presente e apresenta a pudesse viver uma versão de sua cuiridade frustração do projeto desenvolvimentista adaptada ao doméstico, ao cuidado – usual- imaginado para a República Bolivariana da mente, atividades destinadas às mulheres. Venezuela nos primeiros tempos da revolução. Marta ainda tem a idade e o corpo em que se No passado, talvez o marido de Carmem deve continuar tentando virar-se sozinha, ser tenha sido soldado e isso lhe tenha garan- autônoma, mesmo que evidentemente neces- tido algum status e estabilidade financeira, site de auxílio e Junior represente uma pos- quando a revolução ainda ardia. A imagem sibilidade no futuro; já Carmem está velha, do soldado, o herói nacional revolucionário, precisa de cuidados na velhice e vê em Junior reaparece no garoto negro que serve como alguém que pode dedicar-se a isso. Essa seria um dos modelos de perfomance de gênero uma existência confinada à casa da avó, já disponíveis para garotos no estúdio do fotó- que a rua representa muitos perigos para a grafo. Mas os tempos são outros, os heróis do sobrevivência cuír. passado estão mortos ou morrendo – tanto Mesmo assim, a casa da avó também o marido de Carmen, quanto o de Marta; o apresenta seus riscos, como o da assimilação presidente Chávez em estágio terminal – e e domesticação, tanto no sentido de perten- há meninos que não querem ser soldados, cer ao ambiente da casa quanto ao de passar mas se arrumar e dançar. Há muito menos a obedecer ordens e normas de comporta- dinheiro, não apenas para pequenos luxos e mento dentro de uma lógica patriarcal. Em distrações, como ouvir música ou usar pro- troca dessa aceitação condicionada, a cuiri- dutos de beleza, como também para a própria dade é (re)posicionada como assunto privado sobrevivência. e aprisionada em casa, em nome da garantia Compreende-se por que Marta se sin- de uma “sobrevida” que, ao mesmo tempo, ta tentada pela ideia de vender o filho a reinscreve a cuiridade como incapacidade de Carmen, a avó que incentiva o alisamento sobreviver sem auxílios normatizantes e/ou do cabelo e costura a “roupa de cantor” que assimilacionistas. Junior quer usar. Para Marta, a efeminação Nota-se que a distribuição de cuida- de Junior é um perigo para ele mesmo, uma dos que pode ser observada nas decisões ameaça à sua sobrevivência; por isso, se es- que Marta e Carmem querem tomar acer- força em heterossexualizá-lo, colocá-lo na ca de Junior segue a lógica colonial hete- escola, aproximá-lo das normas. Já Carmem ronormativa ao reinscrever os cuidados

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com os integrantes do núcleo familiar às incorporadas ao imaginário hegemônico, po- mulheres e sua manutenção financeira como rém em versões suavizadas, que lhes esvazia responsabilidade de seus integrantes do sexo o potencial político. Relações entre Estados masculino. Mesmo que essa responsabilida- também entram em dinâmicas patologizan- de não seja exclusiva dos homens, o mercado tes, seja na forma de auxílios financeiros in- de trabalho é para eles menos desafiador do ternacionais, seja no envio de tropas a áreas que para mulheres e para performances de de conflito. Se a ideia de cuidado se baseia gênero dissidentes. Os cuidados também na dinâmica binária entre quem precisa de não são papel do Estado, ao que tudo indica: cuidado e quem pode dispensá-lo, então es- não há provimento de auxílio para pessoas tamos articulando a lógica colonial que traz desempregadas como Marta, não há creches consigo os significados de dívida, depen- para as crianças nem cuidados para idosos. dência, controle, progresso, normalização, Além disso, também não é papel do Estado silenciamento, que adoecem as pessoas e representado no filme a garantia de segu- suas formas de governo. rança para as presenças cuír nas ruas e nas

instituições. É, entretanto, necessário que os Considerações finais indivíduos satisfaçam alguma das posições hetero e/ou homonormativas disponíveis nas Pelo Malo apresenta um complexo re- representações de identidade nacional a fim trato social que demonstra como a cuirida- de que o Estado exista, e isso é imposto aos de relaciona a raça, a posição geopolítica, e indivíduos. a performance de sexo e gênero de alguém. Pelo Malo representa um Estado omisso Não podemos discuti-los separadamente e quebrado, um Estado criticamente doente porque se entrecruzam; além disso, nós as e incapaz de cuidar de seus próprios cida- excedemos o tempo todo, o que torna esta- dãos, mesmo que imponha como seu papel belecer contornos bem definidos bastante regular sua materialização. As instituições complicado. O desligamento da lógica bi- que deveriam cuidar das pessoas (e ao mes- nária não é, de fato, a substituição de uma mo tempo normalizá-las de acordo com os forma de pensar por outra nem a inversão ideais do Estado) estão caindo aos pedaços e de hierarquias, pois vemos que na prática os só sobrevive nelas o preconceito impregnado binários sustentam uns aos outros e estão em nas estruturas e nas práticas, tensionadas ao constante recriação. Por algum tempo, eu li o máximo para se manter dominantes frente filme como determinista, fechado à possibili- ao próprio esfacelamento. Decolonizar a lógi- dade cuír. Marta, por exemplo, é uma perso- ca dos cuidados e da sobrevivência se mostra nagem forte, ciente de estar com as mãos ata- mais uma questão urgente, pois a distribui- das por ser mulher. Saber disso, no entanto, ção das responsabilidades segue normas não dá a ela o poder de deixar de reproduzir desiguais e opressivas. As (in)capacidades, as normas que a oprimem, de criar novas re- as diferenças e a diversidade podem até ser lações com sua família e vizinhança. Junior, em outro exemplo, abre mão do cabelo para

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 233-241, jul/dez. 2017 240 Disponível em: (Re)lendo gêneros, sexualidades e Estado normativo em Pelo Malo entrar na escola, simbolicamente deixando OCHOA, Marcia. Queen for a Day: o cuír de lado. Após a análise que apresento transformistas, beauty queens, and the neste artigo, começo a pensar que as perso- performance of femininity in Venezuela. nagens resistem tentando repetir as normas, Durham: Duke University Press, 2014. porque se pararem de repeti-las vão deixar Pelo Malo. Dir. Mariana Rondón. Sudaca Films, de existir simbólica e materialmente. Além 2013. disso, a repetição exaustiva dessas normas QUIJANO, Aníbal. Modernidad, colonialidad y expõe sua arbitrariedade e absurdo, e essa é América Latina. Neplanta. Views from South, a única arma da qual as personagens dispõe. v. 1, n. 3. A diversidade vem sendo assimilada e destituída de conteúdo político, tornando-se Recebido para publicação em 29 out. 2017. mais uma estratégia para continuar moven- Aceito para publicação em 17 nov. 2017. do o sistema capitalista de consumo. Apesar de presente no imaginário hegemônico, essa é uma diversidade posta em ordem por regras de convivência e r(a)epresentação. Então, por mais que não nos vejamos em um contexto como o de Pelo Malo, onde não há nenhuma forma de “diversidade” com a qual Junior possa se identificar, estamos muitas vezes lidando com imagens midiáticas ra- sas da diversidade, que ao invés de expor as marginalizações, as esconde sob o véu da normalização. É preciso que a resistência à assimilação e ao apagamento das diferenças seja constante, e que nos envolvamos em práticas alheias à lógica colonial a fim de reconstruirmos a autonomia sobre nossas identidades.

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands / La Frontera. 3ª ed. São Francisco: Aunt Lute Books, 1987. MIGNOLO, Walter D. Delinking. The rhetoric of modernity, the logic of coloniality and the Grammar of de-coloniality. Cultural Studies, v. 21 n. 2-3, Mar/Abr 2007.

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Doi: 10.5212/Uniletras.v.39i2.0007

Cuba: (im)possibilidades cuír1 na era da tolerância

Cuba: queer (im)possibilities in the age of tolerance2

Lourdes Martínez-Echazábal*

Resumo: Este trabalho aborda o ostracismo e o ativismo LGBT em Cuba após a Revolução de 1959; especialmente, o impacto social, econômico e cultural dos desenvolvimentos trazidos pela dissolução da USSR sobre a população LGBT cubana. À medida que Cuba começa sua virada Neoliberal, abraçando a economia de mercado misto em meados de 1990, testemunhamos uma mudança significativa no enquadramento dos direitos LGBT na ilha. O que causou essa mudança discursiva e institucional dos direitos LGBT nas últimas duas décadas? Como a circulação transnacional de ideias sobre gênero e sexualidade influenciaram o ativismo e os estudos LGBT em Cuba, que esteve relativamente isolada dos movimentos e da produção acadêmica globais até recentemente? É possível imaginar a cuiridade como algo além do modelo de governança binário heteronormativo que, desde os princípios da Revolução, marcou o modelo estatal? Como artistas responderam a essas mudanças? Essas são algumas das questões exploradas neste ensaio. Palavras-chave: cuíridade, Estado Socialista Cubano, Direitos LGBTQI

Abstract: This essay approaches the ostracism and the LGBT activism in Cuba after the Revolution of 1959; particularly the social, economic, and cultural impact of the developments brought by the dissolution of the USSR on Cuba’s LGBT population. As Cuba begins its Neoliberal turn, embracing a mixed-market economy in the mid-1990s, we witness a significant change in the political framing of LGBT rights in the island. What triggered this institutional and discursive change of LGBT rights in the last

1 Nota da tradutora: os termos queer e queerness são de difícil tradução, pois não há correspondente direto na língua por- tuguesa. Nem poderia haver, por se tratar de uma expressão carregada de significados múltiplos e (geo)politicamente localizados. Nesta tradução, optei pela americalatinização “cuír”/”cuiridade”, que mantém a sonoridade do original em inglês e é marcada por uma grafia consoante com as línguas latinas. 2 Traduzido por Claudia Mayer, Doutora em Estudos Literários e Culturais pela Universidade Federal de Santa Catarina. Tradução autorizada pela autora. * Professora de Estudos latino-americanos e latinos na University of Califórnia, Santa Cruz. Sua pesquisa centra-se prin- cipalmente em questões de raça, gênero e sexualidade na literatura, cinema e cultura da América Latina. Ela é autora do estudo pioneiro Para una semiótica de la mulatez, 1990, editora de Homenaje a Manuel Granados (2005) e co-editora de Gene- alogies of Displacement. Between Migration and Exile (2005), e de vários artigos e capítulos de livro. Atualmente dedica-se a preparar a publicação do livro Readings on Cuban Racial Politics, Sexuality and Affect. Email: [email protected]

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two decades? How the transnational circulation of ideas about gender and sexuality influenced the activism and LGBT studies in Cuba, which has been relatively isolated from the movements and academic production until recently? Is it possible to imagine queerness as something beyond the binary heteronormative model of governance that, from the beginnings of the Revolution, marked the State’s model? How did artists respond to those changes? These are some of the issues explored in this essay. Keywords: queerness, Cuban Socialist State, LGBTQI Rights

De maneira geral, este ensaio é mo- de reabilitação (conhecidas como Unidades vido pelo meu próprio desejo de encontrar Militares de Ajuda à Produção, ou UMAP), uma resposta - ou respostas - à abrangen- foram-lhe negados direitos de cidadania, e / te questão: a cuiridade é possível em Cuba ou transformadas em “forasteiras” dentro de hoje? Por “cuiridade” me refiro a uma pos- seu próprio país. Nessas unidades de reabili- tura anti-normativa em relação às normas tação ou fazendas, muitas dessas pessoas fo- sexuais e de gênero, e, mais amplamente, ram submetidas a métodos cruéis de tortura contra as concepções binárias e coloniais de e tratamento psicológico, bem como abuso fí- identidade. Nas páginas seguintes, abordo a sico, além de um sistema intenso de mão-de- questão reunindo duas paixões distintas: 1) a -obra agrícola.3 Como consequência, algumas montagem de uma narrativa histórica enga- se esconderam ainda mais fundo no armário jada (neste caso, como forma de reunir meus para evitar o ostracismo social e profissional; compromissos pessoais e acadêmicos com outras tornaram-se informantes do governo Cuba, o lugar onde eu nasci, cresci e abracei e muitas deixaram o país ou foram forçadas pela primeira vez a minha própria cuiridade ao exílio, como, por exemplo, durante o in- num momento exasperado da história LGBT fame Êxodo de Mariel, em 1980, o primeiro pós-1959 na ilha) e 2) o exercício da investi- êxodo cubano diretamente ligado a pessoas gação crítica, como forma de interrogar e LGBT, que se tornou manchete internacional. discutir os discursos oficiais e acadêmicos e Quase três décadas depois, porém, o Estado de compreender as recentes narrativas ati- cubano, por meio do Ministério da Saúde vistas LGBT. e de sua agência auxiliar, o Centro Nacional Apesar do silenciamento administrado de Educação Sexual (CENESEX), tornou-se o de maneira eficaz pelo governo cubano há principal interlocutor da população cada vez décadas, é de conhecimento público que, du- mais visível de lésbicas, gays e transexuais de rante as duas primeiras décadas da Revolução (as décadas de 1960 e 1970), homossexuais e pessoas de gênero variante foram ativamen- 3 A quem tiver interesse sobre a história da UMAP e sobre as fazendas de trabalho forçado e reabilitação, ecomendo te perseguidas e frequentemente processa- a leitura de uma obra excepcional de Reinaldo Arenas, El das pelo governo. Algumas pessoas foram central, escrita em 1970 e publicada em 1990, assim como o artigo recente de Abel Sierra Maderos (2016), e outros enviadas a fazendas de trabalho forçado ou escritos testimoniais citados ao final deste trabalho.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 243-255, jul/dez. 2017 244 Disponível em: Cuba: (im)possibilidades queer na era da tolerância

Cuba, situando-se, institucionalmente, como ponto as pessoas LGBT têm realmente acesso promotora e guardiã dos direitos LGBT. à justiça, ao projeto redistributivo em vigor O CENESEX, dirigido por Mariela desde meados dos anos 90 e, por extensão, a Castro, filha do presidente Raúl Castro e da uma melhor qualidade de vida? Por que ago- falecida Vilma Espín, sobrinha do falecido ra, especialmente desde meados da década de Castro, é a principal agência estatal voltada 2000, vemos uma mudança significativa no para os direitos LGBT, e praticamente todos enquadramento político dos direitos LGBT os grupos LGBT do país têm algum tipo de na ilha? Como a circulação transnacional de relacionamento institucional e / ou político idéias sobre gênero e sexualidade influenciou com o CENESEX. Sua missão, como afir- o ativismo cubano, que de certa forma tem es- ma em seu site oficial, é contribuir para “o tado relativamente isolado dos movimentos desenvolvimento de uma cultura de sexua- globais de direitos LGBT até recentemente? lidade plena, prazerosa e responsável, bem É possível, em última instância, imaginar a como promover o pleno exercício dos direi- cuiridade como algo além do modelo binário tos sexuais.”4 Entre outras ações, o CENESEX heteronormativo de governança que marcou tem sido fundamental na obtenção de cirur- tanto o quadro estatal histórico em que a famí- gias gratuitas de redesignação sexual para lia revolucionária heterossexual tradicional, transexuais, no lançamento de campanhas na juntamente com as/os “Novas/os Mulheres/ mídia para aumentar a conscientização sobre Homens Socialistas”, foi considerada a base questões LGBT e na promoção da tolerância, do progresso revolucionário nacional/socia- condenando a homofobia e a transfobia. O lista? É possível existir, criar e participar ple- centro também supervisiona vários tipos de namente na sociedade cubana abraçando a organização LGBT, incluindo grupos de lés- cuiridade e / ou alguma versão de identidade bicas negras, pessoas trans, homens gays e trans*5 que, de certa forma, situaria os indi- grupos mistos de vários tipos. Em quase seis víduos no reino da indeterminação e da não- décadas, o Estado revolucionário, que antes -normatividade (política e outras)? Colocando via as pessoas homossexuais como “pequena em palavras outras palavras, é essa aparente burguesia”, “produtos do excesso e decadên- mudança nas políticas e práticas oficiais em cia capitalista”, “contrarrevolucionários”, e/ relação às pessoas LGBT uma forma de repa- ou “escória”, passou a abraçá-las, até um cer- ração ou uma estratégia de pinkwashing? to ponto, como camaradas na revolução. Não obstante as mudanças significati- vas mencionadas acima, uma miríade de per- 5 O autora deste artigo deve ter usado o termoTrans* (com asterisco) por considerar que esse é um termo guntas permanece (se bem que nem todas as abrangente que pode se referir a uma variedade de iden- questões aqui colocadas podem ser respon- tidades dentro do espectro da identidade de gênero. Dessa forma, evidencia-se um esforço em incluir, sem didas neste trabalho). Por exemplo, até que limitar-se, transexuais, travestis, genderqueer, gêneros fluidos, não-binarismo de gênero, genderless, agen- der, não-gênero, terceiro gênero, two-spirit, bigender, 4 Consulte https://en.wikipedia.org/wiki/Cuban_Natio- transhomens, transmulhres, entre outros/as. (Nota do nal_Center_for_Sex_Education editor do dossiê)

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Da exclusão à inclusão e celebração os transexuais, bem como as questões rela- cionadas a esses grupos deveriam ser abor- Se a Cuba dos anos 60, 70 e, de certa dadas e percebidas pelo Estado e pelo povo forma, da primeira metade dos anos 80, cubano nos anos seguintes. A década de 90 testemunhou o ostracismo oficial e a exclu- tornou-se a década da reconciliação e o iní- são de homossexuais cujo comportamento cio da tolerância patrocinada pelo Estado, e estilo de vida não se conformavam à éti- e representa uma virada na retórica oficial ca revolucionária e à moralidade socialis- em relação à homossexualidade e à trans- ta atribuída à/ao nova/o Mulher/Homem, generidade na ilha. A década de 1990 teste- após a queda do muro de Berlim em 1989 e munhou o lançamento do filme aclamado a dissolução final da URSS em 1991, o Estado internacionalmente Fresa y Chocolate, 1993, cubano necessariamente teve que mudar uma alegoria nacional sobre a necessidade seu tom triunfalista e dançar ao som de de reconciliação, como observou Enrico um ritmo diferente, se quisesse sobreviver Mario Sant´I. Simultaneamente, os litera- como um Estado socialista tardio em uma tos, músicos e artistas, em geral, começaram ordem global pós-Socialista (e Neoliberal). a lidar com a homossexualidade, a travesti- Os anos 90 cubanos são sinônimo dos anos lidade e a transexualidade de forma mais difíceis do Período Especial em Tempos de ampla em suas obras. Além das expressões Paz, mas, inversamente, também represen- artísticas, e sob a benção do CENESEX, uma tam uma pausa após décadas de repressão bandeira de arco íris de 10 metros levada e isolamento; de fato, durante os primeiros por ativistas LGBT dos EUA e por mulheres anos do Período Especial, a infraestrutura trans cubanas abriu o desfile anual de maio cubana ficou praticamente parada, mas em 1995. Dado que o CENESEX é uma orga- tudo sobre ela estava queimando e mudan- nização governamental oficialmente ligada do rapidamente. O advento do turismo, os ao Ministério da Saúde Pública (MINSAP), investimentos estrangeiros, o empreende- estas e outras iniciativas patrocinadas pelo dorismo doméstico e a dolarização da eco- CENESEX sinalizaram uma mudança nas nomia, entre outras mudanças econômicas atitudes do governo em relação à homos- e políticas significativas ocorridas na déca- sexualidade. Igualmente importante, a dé- da de 90, emparelhadas com a extrema es- cada também testemunha o surgimento de cassez de alimentos, doenças relacionadas espaços de sociabilidade LGBT, incluindo à deficiência de vitaminas, falta de água e bares e festas privadas (as famosas festas de petróleo, apagões, aumento da corrupção 10 pesos)6 que atendem a população LGBT. governamental e o retorno do crime e da Nos últimos anos, os estudiosos que prostituição, trouxeram mudanças irrever- escreveram sobre gênero e sexualidade em síveis em todos os domínios da vida cubana. Cuba (Negrón-Muntaner 2008, Hamilton A década de 1990 também sinalizou o alvo- 2012, Sierra Madero 2014, Stout 2014, entre recer de mudanças significativas no que se refere às formas como os homossexuais e 6 Ver Morad, 2014.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 243-255, jul/dez. 2017 246 Disponível em: Cuba: (im)possibilidades queer na era da tolerância outros) lidaram com algumas dessas mudan- encarregados de dar uma nova face ao ças. Negrón-Muntaner (2008), por exemplo, corpo político nacional e sobreviver à considera este “um ambicioso processo de atual crise de legitimidade. (NEGRÓN- transformismo” (p. 164), de “mariconería de MUNTANER, 2008, p.164) Estado” (p. 164). Sierra Madero (2014) o rotula Da mesma forma, para Sierra-Madero de “travestismo de Estado” (p. 1), enquanto (2014), travestismo de Estado consiste em Hamilton (2012) questiona se estas trans- uma série de políticas e discursos destinados formações devem ser interpretadas “como a limitar o surgimento de um verdadeiro mo- um sinal de ‘progresso’ e retificação de erros vimento de direitos ao promover mecanis- passados ou como uma estratégia deliberada mos de assimilação e normativização (p. 2). para limpar a imagem de Cuba — ou ambos” De acordo com sua interpretação, o objetivo (p. 175). Seja qual for o caso, o que é inegá- do CENESEX, e do Estado cubano em geral, vel é que a crescente visibilidade pública e o seria produzir “diversidade controlada” (p. 2) reconhecimento oficial das questões LGBT e um espetáculo de “multiculturalismo lúdi- em Cuba desde meados da década de 1990 e co” segundo o qual, de acordo com sua lógica, para o novo milênio marcam uma mudança a inclusão da alteridade tem um propósito significativa da representação e das políticas instrumental e utilitário e visa principalmen- oficiais repressivas dos anos 60, 70 e início te um público estrangeiro (p. 4). dos anos 80. Assim, gostaria de voltar à per- Mais recentemente, ao estudar o co- gunta feita no começo deste ensaio; ou seja, mércio de sexo gay na Cuba pós-soviética, como explicar que um Estado abertamente Noelle M. Stout (2014) também ressalta “as heteronormativo e homofóbico como Cuba, campanhas oficiais de tolerância gay que que por mais de duas décadas tentou aberta- surgiram após meio século de políticas ho- mente erradicar a dissidência sexual, surge mofóbicas” (p. 29). Mas, ao contrário de na década de 2000 como promotor e guar- Negrón-Muntaner e Sierra Madero, Stout dião dos direitos LGBT? liga o aumento da tolerância gay aos esfor- Ecoando a noção de “simulação” de ços governamentais mais abrangentes (e, em Sarduy, de hacer como si, que caracterizou a sua opinião, sinceros) de preservar o “frágil travesti (diferente da transexual), Negrón- sucesso revolucionário durante a transição Muntaner considera que, para o socialismo de mercado misto” (p. 29), A transição da homofobia para a homo- enquanto reconhecendo simultaneamente filia ou da crise de Mariel para o sorriso “os tons normativos da representação queer” de Mariela pode ser melhor entendida (p. 34). como uma forma de “transformismo” Incorporando minhas próprias re- político. Nesse processo, o Estado flexões sobre a mudança nas atitudes do cubano está disposto a conceder di- Estado em relação aos problemas e direitos reitos e reconhecimento a grupos que LGBT em Cuba em um contexto mais global, no passado foram perseguidos e, por- eu acho algumas das críticas implantadas tanto, permanecem simbolicamente

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pelos acadêmicos baseados nos EUA quanto do Estado cubano mas também, e igualmen- ao uso de campanhas de relações públicas te importante, uma consequência direta pelo Estado de Israel em relação aos di- da virada neoliberal desigual de Cuba em reitos LGBT+ muito perspicazes.7 Embora resposta ao imperativo econômico causa- uma comparação política entre os Estados do pela perda de apoio econômico do Bloco de Cuba e Israel possa parecer absurda para Soviético no início do Período Especial e, a maioria, algumas das críticas às políticas mais recentemente, do decrescente apoio da e práticas LGBT de Israel parecem provoca- Venezuela pós-Chavez, tomada pela crise.8 tivas o suficiente para que lhes prestemos Por mais de duas décadas, Cuba foi alguma atenção e / ou as utilizemos como compelida a lentamente acomodar reformas base de comparação ao especularmos sobre econômicas neoliberais e a promover refor- as atuais políticas e práticas LGBT de Cuba. mulações neoliberais de espaços políticos e Assim, a questão proposta anteriormente meios sociais que levaram a uma re-enge- neste ensaio, implora: é a mudança para nharia do velho modo socialista de gover- uma atitude favorável a pessoas, questões, nança. Evidentemente, essas reformas estão práticas e direitos LGBT uma forma de re- produzindo uma sociedade que complica as parar o pinkwashing, isto é, uma maneira reivindicações fundamentais (e utópicas) da de apresentar o Estado como amigável aos Revolução não só em termos de classe e raça, LGBT para expurgar alguns dos erros an- como outros já discutiram (DE LA FUENTE; teriores, ou, como Hamilton (2012) coloca- SAWYER, 2006, PERRY, 2015), mas também ria, “erros passados” (p. 175) cometidos pela de gênero e sexualidade. Revolução em nome da moral conservadora Ao visitar Havana em dezembro pas- socialista, como a perseguição, a acusação, sado (2015), tive a oportunidade de assistir o ostracismo e a tortura (moral e outras) ao discurso televisado de Raúl Castro ao de pessoas LGBT durante os vinte e cinco Parlamento cubano, na véspera do 57º ani- primeiros anos da Revolução, entre muitos versário do triunfo da Revolução em 1º de outros? Certamente, observando a história janeiro de 1959. Fiquei particularmente im- estratificada daquelas primeiras décadas, pressionada com a frase de encerramento na é tentador interpretar a aparente homo e qual ele afirma “nossos esforços para cons- transfilia do CENESEX como uma forma de truir um socialismo próspero e sustentável” pinkwashing para reparar não as vidas das (29 de dezembro de 2015).9 Enquanto pensa- pessoas LGBT em Cuba, mas sim a imagem pública do Estado. Eu, no entanto, ousaria 8 Em 2016, a economia cubana encolheu pela primeira dizer que a posição atual do Estado não é vez em vinte e três anos, apesar do aumento no turis- apenas uma forma de pinkwashing e um es- mo. Ver, http://www.foxnews.com/world/2016/12/28/la- cking-venezuelas-aid-cuban-economy-shrinks-for-first- forço por uma mudança de imagem da parte -time-in-23-years.html Consulte também, https://www. usnews.com/news/world/articles/2015-12-29/raul-cas- tro-prepares-cuba-for-tough-year-despite-us-opening 7 Ver, por exemplo, o trabalho de J. Puar and S. Shulman, 9 Para uma cópia do discurso acima mencionado con- citados no final deste ensaio. sulte: http://www.minrex.gob.cu/en/closure-national-

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 243-255, jul/dez. 2017 248 Disponível em: Cuba: (im)possibilidades queer na era da tolerância va na caracterização que Raúl fazia do tipo de alguns dos membros mais vulneráveis de​​ um Socialismo que Cuba está produzindo, o con- grupo ou classe, aqueles a quem Negrón- ceito de Aihwa Ong de “neoliberalismo como Muntaner se refere como “politicamente exceção” (2006) me veio à mente como uma maltratados, mas simbolicamente carrega- lente útil para observar “a interação entre as dos” (neste caso, as locas, travestis, lésbicas e tecnologias de governar e de disciplinar, de gays da classe trabalhadora, e profissionais inclusão e exclusão, de dar valor ou negar do sexo) de modo a dar-lhes algum senso de valor à conduta humana” (p. 5) em jogo na auto-estima e direito, e, no processo, assegu- construção de tal tipo de socialismo na Cuba rar sua lealdade - “¡Gracias, Fidel!” foi a fra- socialista tardia. se que simbolizou o sentimento de gratidão É bem possível que o Estado cubano que emergiu das massas na década de 1960; tenha abraçado "exceções" econômicas e so- agora, suponho, seria “¡Gracias, Mariela!” E, ciais para, como Stout colocaria, preservar assim como no passado, o Estado hoje abor- "os frágeis sucessos revolucionários obtidos da esse resgate com “todas as armadilhas da durante a transição para o socialismo de visualidade”. (Quiroga, correspondência pes- mercado misto" (p. 29), ao reformular um soal, 5 de janeiro de 2016). sistema datado e transformá-lo em um mais Mas, por que desconfiar tanto do "próspero e sustentável"10. Não obstante, tam- Estado? O Estado, de fato, sempre se envol- bém gostaria de propor que vejamos essas veu em processos de reforma e moderniza- desconcertantes mudanças societárias que ção da economia e outras áreas de interação ocorrem hoje em Cuba, incluindo a defesa social. Em princípio, o Estado cubano pode- dos direitos LGBT pelo Estado e o discurso ria simplesmente estar implantando suas a favor da tolerância sexual e contra a homo tecnologias usuais de governo e governança e transfobia, como exemplos da adoção, da para se situar, neste caso, como líder global parte do Estado, de exceções neoliberais e da no avanço dos direitos dos homossexuais, reformulação do social como um mecanismo como já era em relação à alfabetização, cui- para garantir a sustentabilidade e a prospe- dados de saúde ou igualdade racial e social. ridade da elite tecno-corporativa-militar do No entanto, o que é bastante irônico é que, regime e seu direito de governar. ao se situar na vanguarda dos direitos ho- Em termos de suas reformulações so- mossexuais, o Estado, ao adotar a exceção ciais e, especificamente, em relação às pes- neoliberal, está simultaneamente criando a soas e questões LGBT, parece que o Estado condição de possibilidades para o surgimen- está fazendo o que sempre fez, isto é, resgatar to de uma sociedade socialmente estratifi- cada onde as classes sociais, em particular a

-assembly-speech-president-cuba-raul-castro pequena burguesia, deveriam ter sido apagadas 10 A pergunta aqui seria: “próspero e sustentável para pelo socialismo. quem?” Pois não há duvidas que a introdução de exceções Ironicamente, o Estado cubano sem- neoliberais criou uma sociedade profundamente dividi- da em classes sociais e aumentou a discriminação racial pre associou “homossexuais” com o excesso e econômica no seio da sociedade cubana.

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capitalista e o pequeno burguês, e agora, como parte da assim chamada “oposição leal.”12 Por por uma virada do destino - ou de ismo - a outro lado, se possível, alguns sairão da ilha nova economia de mercado misto socialis- e, como Calibán, irão expor e amaldiçoar as ta promove indiretamente o surgimento de tecnologias de governança e disciplina do uma pequena burguesia, que, em sua maior Estado. parte, está longe de ser homossexual ou Atualmente, o Estado cubano está mesmo queer no sentido amplo do termo. produzindo sujeitos LGBTQ pelo próprio Então, quem são as pessoas LGBTQ cujos processo de incorporação (da diferença) e direitos são promovidos e protegidos pelo neutralização. Isto é feito através das várias Estado? A questão é importante porque, nes- campanhas de validação no que se refere às ta situação particular, como em muitos dos diferenças sexuais e de gênero, discursos seus primeiros trabalhos de política social, de tolerância e inclusão, ou seja, através o Estado trabalhou de forma muito eficiente de reformulações neoliberais do social. A ao tentar resgatar alguns dos ​sujeitos LGBT imagem abaixo, realizada em um evento mais vulneráveis, seja alguém que vive em patrocinado pela CENESEX, é um exemplo El fanguito,11 alguém com disforia de gêne- visual da fusão de dois poderosos marcado- ro, gay, negra/o, pobre, profissional do sexo res de identidade e cultura que, até os últi- ou uma combinação de alguns ou todos os mos anos, eram mutuamente conflitantes: itens acima. Uma vez resgatado, o Estado expressões de gênero dissidentes e a nação. capacita esses indivíduos através de um pro- Na imagem, para complicar as coisas ainda cesso de reconhecimento social e político, e mais, essa fusão está sendo incorporada por nesse processo garante sua lealdade. O di- uma mulher trans, ou, mais provavelmente, lema enfrentado pelo Estado, assim como uma Drag Queen. pelas/os beneficiárias/os de suas exceções é que, uma vez empoderadas/os, alguns desses sujeitos leais “que já se beneficiaram da ge- nerosidade da Revolução,” particularmente se expostos a comunidades e ativismos LGBT do exterior, irão muito provavelmente “en- contrar-se frustradas/os pelos mecanismos específicos do Estado” (Quiroga, correspon- dência pessoal, 5 de janeiro de 2016), e irão contra-atacar de dentro, a partir dos espa- ços fornecidos pela Revolução, tornando-se

11 El fanguito é um bairro muito precário ao longo da mar- gem do Rio Almendares, ao lado do histórico afluente Ve- 12 Para uma discussão do conceito de “Oposição leal”, con- dado, em Havana. sulte Dilla Alfonso.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 243-255, jul/dez. 2017 250 Disponível em: Cuba: (im)possibilidades queer na era da tolerância

Figura 1 - Essa imagem foi replicada em diversas páginas de internet ao redor do mundo, inclusive na página para o público latino da foxnews: http://www.lgl.lt/en/?p=12637

Assim, podemos considerar a gestão e do queer como camp, o fez por meio de um incorporação de diferenças do CENESEX - processo de subjugação que, em termos, e, por extensão, do Estado cubano - em re- rompe sua capacidade de emergir como uma lação à observação de Judith Butler de que epistemologia capaz de produzir uma práxis “’subjeção’ significa o processo de se tornar de mudanças estruturais duradouras nas es- subordinada/o pelo poder e também o pro- truturas sociais e políticas. Em outras pala- cesso de se tornar um sujeito” (2). Portanto, vras, a cuiridade como posição anti-norma- o próprio processo que está criando sujeitos tiva e anti-ordem social não poderia existir LGBT em Cuba também está subordinando- “dentro da Revolução,”, que, desde o discurso -os e neutralizando sua “capacidade de rup- de Castro em 1961, “Palavras aos Intelectuais,” tura” (HALL, 1977, p. 182, FERGUSON, p. 162), foi vista como o único lugar plausível para a capacidade crítica para queerizar o status o exercício de agência política e o ativismo quo oficial. Assim, pergunto se nessas condi- em Cuba.13 ções a cuiridade como gênero anti-normativo e forma política de diferenças, pode emergir 13 Foi em seu ubíquo discurso “Palavras aos intelectuais” e prosperar em Cuba. No momento, minha (1961) que Castro explicitou as fundações de um mode- lo binário de governo e governança que moldou não só resposta é mista: sim e não. O “não” deriva a cultura política e política cultural de Cuba, mas todos do fato de que, enquanto o Estado através do os aspectos da vida na ilha desde então. Estando ou não ciente da longa e ampla influência de suas “Palavras” ao CENESEX criou a condição de possibilidade definir o tom das políticas e práticas que informaram a vida em Cuba nos últimos cinquenta e oito anos, o fato

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 243-255, jul/dez. 2017 Disponível em: 251 Lourdes Martinez-Echazábal

Simultaneamente, não há dúvida de que vinte e cinco anos. Tolerâncias sexuais e re- expressões queer são abundantes nas artes ligiosas, duas das formas mais lucrativas de - o que é notável dada a capacidade da arte acumulação de capital para o setor popular para criar críticas sociais afiadas e pungen- da sociedade cubana que vive nas margens tes. Mas apesar da arte como um meio eficaz do socialismo, no entanto, foram duas das para a realização da crítica, a questão ainda formas mais visíveis de tolerância sanciona- continua em relação à capacidade da arte de das pelo Estado durante o Período Especial e efetuar mudanças políticas estruturais que além - particularmente em contraste com a levem a novas formas de governança (no sen- intolerância das décadas anteriores. De fato, tido foucaltiano da palavra), seja sob regimes em geral, a tolerância regulada pelo Estado se Socialistas, Capitalistas ou Neoliberais, ou, tornou a válvula de escape da Cuba Socialista no caso de Cuba, um híbrido desses regimes. tardia - assim como o mulato se tornou “a vál- Esta, suponho, continua sendo a questão vula de escape” (Deglar 1986) das sociedades central em relação ao potencial da arte para de plantação coloniais e neocoloniais. implementar mudanças sistêmicas. Na década de 1990, Cuba, como o perso- Sob um “socialismo próspero e sus- nagem shakespeariano (Hamlet), enfrentou tentável” em processo de construção, a tole- uma grave situação: “ser ou não ser”, conti- rância e a normatividade se tornaram parte nuar a existir ou perecer; Cuba escolheu o integrante das reformulações neoliberais do primeiro. Mas para fazê-lo, para continuar social, e também da nova governança socia- a existir, teve de se transformar, refazer-se lista e, junto a outros elementos da reforma e re-comercializar-se tanto em termos eco- neoliberal do mercado, passou a assinalar nômicos e ideológicos para sobreviver na a partida de Cuba do Estado de bem-estar nova ordem mundial pós-socialista - sem os Socialista pré-1989. Certamente, tolerância amplos subsídios fornecido pela ex-URSS, à homossexualidade e ao dimorfismo sexual sem entregar-se grandemente aos projetos não são os únicos descendentes desse affair - capitalistas dos EUA e, mais recentemente, também há a tolerância econômica, a tolerân- sem a ampla ajuda da Venezuela. O que o cia religiosa, a tolerância artística e cultural, e futuro promete à luz das transformações até mesmo a tolerância ideológica que leva ao mencionadas anteriormente pode apenas que alguns se referem como “oposição leal.” ser especulado. O resultado dessas mudanças é confirmado Entretanto, muito antes do Período pelos desenvolvimentos visíveis e palpáveis Especial, Cuba se orgulhava de ser a sobre- que aconteceram na ilha durante os últimos vivente heroica do imperialismo dos EUA e de outros acontecimentos mundiais. Como é que em seu discurso ele efetivamente construiu uma Juan, o personagem principal do recente e tipologia rígida – alguém é revolucionário ou contrar- revolucionário – e topografia – alguém está “dentro da premiado filme Juan de los muertos, 2012 (João Revolução” ou está “contra [for a] da Revolução”. Esse pa- dos mortos) - uma comédia brilhante que não radigma não deixa espaço para nenhum tipo público de posição ou possibilidade de sujeito no entrelugar, trans* poupa nada nem ninguém, exceto talvez sua ou queer.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 243-255, jul/dez. 2017 252 Disponível em: Cuba: (im)possibilidades queer na era da tolerância própria mistura cativante (sancocho) de so- a comida e bens essenciais. E, claro, outro bras socialistas com despojos nacionalistas êxodo em massa como aquele no porto de - repete continuamente no filme: “Eu sou um Mariel seria impensável, mesmo quando sobrevivente. Eu sobrevivi ao Mariel, sobrevi- Cuba continua a ser uma ilha que foge (una vi a Angola, sobrevivi ao Período Especial, e isla en fuga), sangrando seu capital humano aquilo que veio depois, e eu também sobrevi- nos pontos cardeais todos os dias. verei a isso [referindo-se ao apocalipse zumbi Honestamente, não tenho uma res- que nos é apresentado como espectadores do posta. Após a concatenação de desastres filme].” Assim, sobrevivência é a palavra fun- proporcionada pelos países do antigo Bloco damental (tanto para os atores quanto para Soviético, da Ásia e da América Latina sob os espectadores desta comédia política), so- governos de direita e esquerda neolibe- brevivência a todo o custo. Na verdade, em rais e, mais recentemente, pelo advento do nome de sua própria sobrevivência, o Estado Trumpismo nos Estados Unidos, sugerir que cubano e sua elite governante criaram seu aquilo de que Cuba realmente necessita é um próprio tipo de neoliberalismo socialista “retorno à democracia” - como quer que o ter- tardio. Nessa nova ordem híbrida, tolerân- mo seja compreendido vulgarmente no mun- cia, como o companheiro afetivo do modelo do de hoje - ou para alguma forma de ordem político e econômico, tornou-se o paliativo social e econômica pré-1959, é uma discussão das pessoas, e também um conceito estra- que se estende além do escopo deste artigo tégico que sustenta sua autocentrada elite e da minha experiência profissional, porque dominante no poder e facilitou a emergên- não sou treinada com política nem economis- cia da elite militar e ex-militar , assim como ta - além disso, como indivíduo, eu conheço os membros do aparato de inteligência do aquilo a que me oponho, mas neste momento Estado, como empresários e que se tornaram mundial, eu não tenho certeza do que apoio jogadores proeminentes no mercado global – além da igualdade e justiça social e econô- de produtos, política, riqueza e influência. mica. Como uma pessoa que exerce crítica Poderíamos lamentar a adoção de reformas cultural e sabe alguma coisa sobre a história econômicas neoliberais, com seus projetos e a cultura de Cuba e da América Latina, en- sociais e políticos por parte de Cuba, mas, tretanto, eu arrisco que, talvez, o único meio qual seria a alternativa? viável para que as pessoas LGBTIQ tenham No que diz respeito às práticas e políti- acesso a justiça e participem de um projeto cas LGBT atuais, eu acho difícil de acreditar redistributivo de sucesso em Cuba, é cons- que cubanos LGBT voltariam para o armário, truir e nutrir uma sociedade verdadeiramen- nem poderia imaginar uma versão do século te revolucionária, uma que pudesse se erguer 21 do UMAP mais do que eu poderia imagi- contra a colonialidade do poder ainda incor- nar a restauração de um regime de trabalho porada ao Estado cubano pós-1959, desafiar a voluntário compulsório, ou o desenterrar do normalidade e o modelo binário de agência cartão de ração como único meio de acesso

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 243-255, jul/dez. 2017 Disponível em: 253 Lourdes Martinez-Echazábal

ratificado pelas palavras de Castro em 1961, e Referências ainda sustentadas por seu sucessor. ALFONSO, Haroldo Dilla. La Oposición cubana Em suma, justiça LGTB e outras formas leal? Havana Times, Havana, 10 jun. 2013. de justiça só podem prosperar em uma socie- http://www.havanatimes.org/sp/?p=86471 dade que ofereça aos seus cidadãos a possi- ______. ¿Opocisión leal? Cuba Encuentro, bilidade de seleção de afiliação política, de Havana, 29 jul. 2014. http://www. participar do tipo de ativismo popular que cubaencuentro.com/opinion/articulos/ não seja impulsionado pelo mercado, de dar Oposicion-leal-319491 voz a críticas e questionamentos, uma socie- Conducta Impropia. Internos Nestor dade revolucionária que iria garantir a suas Almendros e Orlando Jiménez Leal. Distribuição cidadãs e cidadãos a liberdade de associação, do Cinevista, 1984. Video juntamente com livre e expansiva criativida- FERGUSON, Roderick R. Administrar a de e dissidência e, mais importante, respeito. sexualidade; Ou o novo à institucionalidade. Tolerância é uma palavra barata e um concei- Radical History Review, v. 100 (208), p. 158-169. to vexado, que, no final, leva a falhas e con- HALL, Stuart. The Local and the Global. In: frontos, nós precisamos abraçar o respeito e Anne McClintock, Aamir Mufti e Ella Shotat jogar a tolerância na lixeira. E, certamente, (Eds.). Dangerous Liasons: Gender, Nation, and uma sociedade que cuida do bem-estar (en- Postcolonial Perspectives. Minneapolis: University tendido não apenas como “ajuda às pessoas of Minnesota Press, 1977. necessitadas”, mas também, e especialmente, HAMILTON, Carrie. Sexual Revolutions in como bem-estar no seu sentido holístico) de Cuba. Passion, Politics, and Memory. Capela seus cidadãos, em vez de criar as condições Hill: A University of North Carolina Press, 2012. de possibilidade para a emergência de desi- HERNNADEZ BUSTO, Ernesto. 50 años de los gualdade e injustiça como ocorre atualmente campos de internamiento cubanos, de 2016. em Cuba. Disponível em: http://www.elespanol.com/ Se Cuba vai ou não ser capaz de se tor- opinion/20160328/113108690_12.html nar essa sociedade, isso ainda está por vir. Juan de los muertos. Interno Alejandro Brugés. Mas seja como for, não será suficiente ques- Distribuição do Metrodome, 2012. Vídeo. tionar e queerizar raça, gênero, e sexualida- NEGRÓN-MUNTANER, Francis. Mariconerías de, entretanto; a Realpolitik também deve ser de Estado. Mariela Castro, Homosexuales and questionada e queerizada, juntamente com Cuban Politics. Nueva Sociedad 218 (2008): 163 as fundações da “razão patriarcal” - empres- – 279. tando o termo da filósofa espanhola Celia PUAR, JABIR. Puar, Jasbir (1 July 2010). Israel’s Amorós - se desejamos uma epistemologia gay propaganda war. The Guardian. queer e suas possibilidades de fazer emergir Retrieved March, 22, 2014. e dar suporte a uma práxis queer em um fu- QUIROGA, José. Correspondência pessoal. 5 turo não tão distante em Cuba e além. de janeiro de 2016.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 243-255, jul/dez. 2017 254 Disponível em: Cuba: (im)possibilidades queer na era da tolerância

SANTÍ, Mario Enrico. Fresa y Chocolate: A retórica de reconciliação cubana. MLN v. 113, n.2, p. 407-425, 1998. SHULMAN, S. Israel and Pinkwashing. Disponível em: http://www.nytimes. com/2011/11/23/opinion/pinkwashing-and- israels-use-of-gays-as-a-messaging-tool.html SIERRA MADERO, Abel. Del Hombre Nuevo al Travestismo de Estado. Disponível em: http://www.diariodecuba.com/ Cuba/1390513833_6826.html. ______. Academias para producir machos en Cuba. Cuban Studies 44. Disponível em: http://www.letraslibres.com/espana-mexico/ politica/academias-producir-machos-en- cuba?page=full STOUT, Noelle T. After Love. Queer Intimacy and Erotic Economies in Post Soviet Cuba. Durham: Duke University Press, 2014.

Recebido para publicação em 11 jun. 2017. Aceito para publicação em 17 nov. 2017.

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Doi: 10.5212/Uniletras.v.39i2.0008

Lundu, padê, apocalipse cuír - entrevista com tatiana nascimento dos santos.

Marcelo Spitzner*

Essa entrevista foi realizada através da troca de imeios, iniciou em 04/03 e terminou no dia 23/04 – dia de Ogum, que como bem lembra a tate é o orixá da tecnologia como instrumento de trabalho, e também de afetos, mesmo quando os corpos estão deslocados no espaço. Foram em torno de 30 trocas de imeios enriquecidos por respostas, trocas de ideias e experiências. A publicação dessa conversa com Tatiana realiza um desejo de compartilhar espaços de escritura1 com essa pessoa cheia de afetos, forte e desafiadora, como boa filha de Iansã! Além de filha de Iansã, Tatiana Nascimento, a tate, é doutora em Estudos da Tradução (UFSC). Licenciada em Letras - Português (UnB). Poeta; tradutora; copidesque. Editora-fundadora da padê editorial. Compositora, cantora, slammer. Suas áreas de interesse e atuação vão desde poesia, produção textual, culturas negras afrodiaspóricas passando pela tradução, educação antirracista, sapatonice/lesbiandade, transfeminismo.

1- (Marcelo Spitzner) - tate, você baixo em bandas de/com mulheres (“toda dor poderia nos contar um pouco de sua do mundo” e depois “silente”, com alguns trajetória, na militância e nos estudos acadêmicos, na produção artística. projetos paralelos menos frutíferos no meio). esse começo de atuação feminista marcou (Tatiana Nascimento) - hoje é 04 de mar- também minha produção como publicadora ço de 2017. o mês de março é muito simbólico - eu já era zineira desde os 17, fazia um zine pros movimentos sociais por causa do dia 08 que hoje vejo como meio gótico, meio literá- - “internacional das mulheres”. eu comecei rio, que se chamava lathspell (sim, eu adoro a atuar em coletividades políticas de luta no a coleção do tolkien). mas quando comecei a ensino médio, e tive a sorte de conhecer o me envolver com outras ativistas questionan- feminismo anarquista pela cena hardcore do os lugares destinados a mulheres na pro- de brasília, antes de entrar na universidade, dução cultural do df é que comecei a escrever com uns 20, 21 anos, quando comecei a tocar zines mais meus, com mais textos autorais,

1 Esse desejo vem desde 2013, quando fizemos uma disciplina no Programa de Pós-graduação em Inglês da UFSC e a professora Claudia de Lima Costa nos pediu que resenhássemos juntes o livro Gaga Feminism, de J. Jack Halberstam. Chegamos a pensar de pedir autorização a Halberstam para publicarmos a resenha com uma tradução do Manifesto Gaga, que encerra o livro. Quem sabe um dia! * Professor de Estudos Literários da Universidade Federal Rural da Amazônia, Campus de Tomé-Açu. Email: marcelos- [email protected].

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 257-268, jul/dez. 2017 Disponível em: 257 Marcelo Spitzner, Tatiana Nascimento

e fazer esses zines circularem - eu e alice ga- contrahegemônicas. em 2014, na defesa do briel, minha parceira de banda na época (isso doutoramento, eu ouvi a acusação de que era o começo dos 2000) montamos uma cole- minha tese não era acadêmica. benzajah a tiva chamada la carnissa que tinha um zine banca era muito crítica e comprometida com de mesmo nome. a coletiva aliás ganhou for- a demolição dos muros acadêmicos, seu her- ça por causa do zine, que veio primeiro. daí metismo, suas formas caducas, e a tese foi veio o corpuscrisis, que foi um outro espaço aprovada, aplaudida, questionada de forma muito importante e maior, com mais alcance frutífera y construtiva... mas eu já tinha ouvi- nacional e intergalático (rio muito escreven- do isso antes, ˜você é muito panfletária e aqui do isso mas era essa nossa megalomania, e é a academia˜. assim como já ouvi em movi- na real a coisa correu-mundo mesmo), meu mento social que sou muito academiqueira. contato com o ativismo lésbico feminista e enfim, o chapéu de exu tem me servido. não com o movimento de mulheres negras, e no é um lugar cômodo de ocupar, a academia. meio disso tudo a poesia. que tava lá fazia nem prazenteiro. e é pouco interessante. mas tempo. mas precisei caminhar essas jornadas eu sou um ser pensante, reflexivo, aquariano, de fortalecimento entre coletividades pra analítico. sempre fui. achar que uma tradição publicar, compartilhar, falar em público. curriculista, catedrática, formalista pode en- hum, sim, e no meio disso tudo, tam- quadrar isso é vão, pra mim. eu quero que os bém, em 2004 mais precisamente, comecei a sistemas formais de escolarização derretam. cursar português na unb, na primeira turma desmanchem. então ocupei a academia como de cotas étnico-raciais, e isso foi um outro uma agitadora (e ainda ando ocupando, de giro. inclusive de me colocar em um deslugar quando em vez; agora no segundo semestre estranho, que desde então me acompanha, de 2017 vou ministrar, de novo, feminismos de me sentir vestindo aquele chapéu de duas e teoria queer, no campus de planaltina da cores de exu. eu me entendo, e me intento, unb, que é mais relacionado à educação do e me exercito me experimento como uma campo, que fica na periferia do distrito fe- intelectual muito agitada. e uma agitadora deral, que tem agrupamentos de estudantes muito cabeçuda. mas tentei umas outras três quilombolas, sem-terra.) graduações antes de conseguir concluir essa,

que levou seis anos longos, difíceis, confli- 2- (M.S) - você tem trabalhado tuosos, de muito enfrentamento; não só por bastante com poesia e performance... ser negra de pele clara num sistema recém- tem produzido livros artesanais. Como foi que você começou e o que tem -inaugurado de cotas, não só por ser lésbica motivado o seu trabalho em termos ativista, não só por esboçar produzir conhe- estéticos, temáticos? Há uma proposta cimento (fazer pesquisa) a partir desses sina- política nesse trabalho ou apenas uma motivação artística? lizadores de raça, sexo-gênero: mas porque algumas subjetividades contrahegemônicas (T.N) - o que eu tenho alcançado hoje são talhadas com textualidades igualmente pelo trabalho com poesia e performance, que

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 257-268, jul/dez. 2017 258 Disponível em: lundu, padê, apocalipse cuír - Entrevista com Tatiana Nascimento tá misturado cada vez mais fundo com o de protagonismo não-negro, protagonismo de publicação desde que sonhei a padê editorial narrativas não-negras sobre a negritude in- com a bárbara esmenia em 2015 (finalmente clusive (o que é a antropologia no brasil, a tra- fundada em 2016 e hoje com 4 títulos lindos dicional, se não esse constante falar do outro e 2 a caminho pra julho/2017), é kármico, pra não-branco por bocas brancas?), o povo pre- mim. que a gente recebe aquilo que oferece. to na diáspora é que tem que escrever sua que existe retribuição e reconhecimento pra- história. seja que história for. nesse sentido quilo que é feito com amor. eu sou um bicho pagode anos 90, pra mim, é político demais, selvagem na maior parte do tempo: calada, porque os grupos chamavam soweto, raça introspecta, sonho de vulcão mesmo. poesia é negra, só pra contrariar, e falavam de amor. um jeito que achei de me comunicar, de mos- quando passamos 300 anos sendo exploradxs trar a pérola que tinha ficado ali sendo for- sexualmente, com fazendas de estupro, pra jada pela concha. é uma doidera que quanto homens negros estuprarem mulheres negras mais eu faça poemas maravilhosos menos eu pra produzirem mais escravizadxs. então não fale, mas é assim mesmo que tem sido e vai é político falar de amor? é sim (e óbvio não que mude logo, por enquanto está. que che- isento de crítica esse falar - que muito hete- gue em outras pessoas recebido com afeto, rocêntrico, que muito românticocêntrico). e com reconhecimento, valorização, remune- nesse sentido há alguma forma de fazer arte ração às vezes, é um alívio: responde o in- sem motivação política? mesmo que essa seja tuito comunicador que eu tenho com minha de reforçar as estruturas invisíveis da política poesia. mas antes de comunicar eu já tava hegemônica? tem não. o que tem motivado envolvida com as palavras que se amontoam meu trabalho estética e políticamente (uma de um jeito específico, como é a poesia (“um coisa misturada pra mim) é reinventar mi- amontoado de palavras”, pra alice gabriel de nha linguagem de pessoa preta na diáspora quem falei ali em cima), faço poesia desde desde a dissidência sexual. buscar um jeito os 10, 11 anos. ganhei concursinho de poesia de me escrever, minhas histórias percepções na escola, fama de escrevedora-de-cartas- as histórias que o vento me sopra que uma -de-amor-entre-amigas na mesma época. senhora conta no ônibus que alguém me en- na adolescência os temas mudaram do afeto trega num sonho que uma notícia de jornal sentido dentro do peito sobre quem me ro- esconde, bonitamente no espaço, sintetica- deia pro tudo que rodeia, como rodeia, como mente-sintaticamente, geometricamente- não toca, como não muda, como machuca, -fonologicamente, metaforicamente, silen- “poesia política”. mas hoje vendo muita obra ciosamente. a palavra é uma tecnologia que de poesia negra que é condenada como não- me impressiona. me movimenta (com toda -poesia porque tem um compromisso de sua precariedade, pretensão de diferenciar denúncia imprescindível eu fico pensando. pessoas humanas de não-humanas... é uma tanto tempo de colonialidade, 300 anos de ferramenta, enfim). escravização física, mental, meio milênio de

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 257-268, jul/dez. 2017 Disponível em: 259 Marcelo Spitzner, Tatiana Nascimento

3- (M.S) - Você narrou sobre sua e especialmente o trampo do , trajetória em algumas coletividades, que foi a porta pra começar a pensar formal- começando pelo feminismo anárquico, passando pelo ativismo lésbico e pelo mente os sistemas de opressão, e como tão movimento de mulheres negras... conectados. no começo da graduação, sen- você poderia nos contar sobre essa do da primeira turma de cotas étnico-raciais diversidade de coletividades, suas pautas específicas e em que partilham de uma federal no brasil (2004 na unb), um de projeto político e epistemológico? professor que eu já conhecia de ativismos Ao mesmo tempo, qual a importância do anteriores (no corpuscrisis, uma coletiva sentido de pertença e dos afetos para a transformação do mundo? de micropolítica feminista muito pulsante, radical, simples, afetiva também de brasília) (T.N) - eu comecei mesmo no movimen- ofereceu uma disciplina em homenagem à to estudantil do ensino médio (na época era primeira turma de cotas e a ementa era ba- segundo grau), e tive contato com um coleti- sicamente de autoras negras. aí eu conheci vo marxista internacionalista. por causa dis- algumas obras, como a de audre lorde, e tive so fui pra cuba num evento de juventude em mais contato com a bell hooks, uma autora que aprendi muito sobre autonomia, sobre que eu já conhecia de ser rata de uma biblio- riqueza e pobreza, sobre direitos fundamen- teca grande em brasília na qual minha mãe, tais e garantia estatal, e sobre: gente preta bibliotecária, trabalhava. na diáspora. eu nem chamava assim na real, enfim, a linha cronológica tá meio ba- mas me lembro de ficar impressionada com gunçada e tô ressaltando algumas descober- a quantidade de pessoas negras em havana, tas teóricas porque fortaleceram um pensar como eu nunca tinha visto alguma coisa as- das ressonâncias que existem entre as sub- sim nos meus então 16 anos de vida em uma jetividades dissidentes, sejam elas negras, brasília extremamente segregadora racial e ou desde a dissidência sexual, anticapitalis- espacialmente. na real só ia encontrar tanta tas... o encontro desses pensamentos é que gente preta de cabeça erguida assim como alimentou o pensar criticamente minhas prá- vi em cuba quando fui pra salvador pela pri- ticas, minhas inserções, meu lugar de classe, meira vez, em 1999. também o ano em que de raça, de sexo, de escolaridade. porque eu entrei no vegetarianismo como modo vida. e já tava uns anos antes em práticas ativistas só anos depois fui entender o que essas duas sem sacar direito o que é que me incomodava cidades tinham a ver com ancestralidade ne- em alguns espaços, o que era a sensação de gra de um jeito mágico que, enfim, cabia em despertencimento ou angústia quando al- outra prosa. guma coisa racista acontecia num contexto mas ao longo da caminhada é que fui anticapitalista, por exemplo, e eu ainda não me conectando com essas outras coletivida- tinha conseguido eu mesma elaborar uma des já mencionadas e uma formação como linguagem que me permitisse apontar a an- alfabetizadora na EJA primeiro, e depois gústia naquilo, produzir uma resposta crítica na licenciatura da unb, conheci algumas e/ou propositiva que não fosse me afastar da coisas importantes de pedagogia crítica

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 257-268, jul/dez. 2017 260 Disponível em: lundu, padê, apocalipse cuír - Entrevista com Tatiana Nascimento coletividade (especialmente quando penso entender depois que inventamos esse trem no comecinho do meu rolet autônomo, cena de linguagem né? hardcore, tocar com outras minas em espa-

ços de domínio heterossexista pra caram- 4- (M.S) - Você poderia falar um ba...) - algumas experiências tão doloridas a pouco mais a respeito da ocupação dos ponto de expulsar as pessoas ofendidas da espaços universitários de maneira a aparecer outras textualidades, outras coletividade, ao invés de surgir como opor- epistemologias... como você vê o tunidade de repensar aquela comunidade, contexto acadêmico? O que isso tudo tem aqueles laços, os privilégios subjacentes que a ver como a ideia de decolonialidade, de pensar outros saberes? Algo mudou construíam as diferenças como abismos ao desde o seu ingresso na UnB até sua invés de pontes, sabe? defesa de doutoramento? algumas vezes as insistências no privi- (T.N) - eu estou afastada da academia légio rompem a força do afeto. isso é triste. há uns três anos... e meio. sei que tem algu- a máquina política-externa-social atropela mas brechas, que há programas de literatura o coração, o vínculo. tenho pensado mui- em que é possível produzir teses-romances, to nisso na real, porque esse tem sido um tem o programa conexão de saberes na unb momento (por controverso que pareça) de que tem feito um trabalho lindo de abertura muita solidão pra mim, ao mesmo tempo em do cânone universitário à produção epistê- que tô tão figura pública, a coisa da palavra mica dxs mestras e mestres de saberes tradi- (como poeta, como cantora1, como editora) cionais, e acho que deve ter muito mais coisa me conectando com tantas outras pessoas. linda acontecendo. tipo, gosto muito da ideia não sei bem como responder essa pergun- de mestrado profissional (a ufrb tem um em ta hoje, exatamente hoje, tive um dia bem educação do campo que parece cheio de pos- frutífero com muitas presenças amadas pra sibilidades importantes de transformação, e fazer projetos (esses públicos) maravilhosos, tem um diálogo lindo com a luta pela refor- mas ao mesmo tempo foi um dia de não ter ma agrária, pelo que vejo nas notícias sobre com quem conversar sobre como meu cora- o curso). além de demandar um envolvimen- ção bateu mais forte com um determinado to necessário com uma realidade externa à encontro. eu só sei que somos mamíferxs academia de forma extensionista permite né? tenho aprendido muito com outrxs ma- também que o produto final seja outra coisa míferxs que essa classe de seres é gregária. que não um texto em prosa acadêmica: pode costuma se cuidar. costuma formar laços de ser um documentário, pode ser material di- amor, comensalidade, território, erotismo, dático... isso é massa demais! mas não sei parentalidade. inclusive interespécie! tal- se essas exceções ameaçam a regra não, viu? vez isso esteja nos dizendo alguma coisa há nos 10 anos em que fiquei na academia for- algum tempo, que tenhamos esquecido de malmente matriculada, de 2004 a 2014, algo muito importante mudou: a quantidade de 1 Ver tatiana nascimento performando aqui: https:// energia que eu tinha pra trocar com esses www.youtube.com/watch?v=gXsjYxbFNcU (NdE)

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 257-268, jul/dez. 2017 Disponível em: 261 Marcelo Spitzner, Tatiana Nascimento

ambientes diminuiu (é verdade, y é quase destruir. des-cons-tru-ir, como lá diz. num uma piada!), e eu aprendi (rapidão eu apren- esqueço nas ocupações contra a pec do fim di isso, na real) que o espaço ganha mais com do mundo em novembro de 2016: teve assem- as nossas presenças (pesquisadorxs sapatão, bleia estudantil na faculdade de comunica- viado, pretx, trans, mentes insubmissas y ção da unb pra decidir pela ocupação ou pela corpos que incomodam as normas, gente greve (ou o quê), e olha em 2004 a faculdade com ritmo de aprendizado diferente do es- de comunicação era muito branca, um curso perado, corpos indomáveis) do que ganha- majoritariamente de elite, de gente branca. mos do espaço – mesmo quando bolsistas! pois nessa assembleia com 200 e tantxs, 300 mesmo assim. estudantes, mais da metade era negrx, e a tenho acompanhado com muita alegria coordenação da assembleia era majoritaria- o aumento vertiginoso de debates anticolo- mente negrx, lgbt, periférica! isso foi uma niais e/ou da decolonialidade mais através coisa inédita nos meus anos de unb e acho das produ-sãs de amigxs que tão nas univer- que nos anos da unb toda, na real... muito sidades e produzindo desde aí, acho inspi- impressionante mesmo. rador o trabalho do wanderson flor na unb, então isso também mudou: quando o da aline matos na ueg, nina ferreira que saiu quilombo ocupa a casa-grande, ao menos os do df há uns meses foi pra sampaulo, ange- móveis vão mudar de lugar. e sempre tem a la donini no rio, sara elton panambi que sei possibilidade de fogo no horizonte. sempre. lá por onde anda agora, viviane vergueiro e as cotas não são um mecanismo de inclusão tito carvalhal em salvador, kika sena na unb, de corpos dóceis. não são uma medida de re- magô tonhon em sampaulo, jota mombaça pensar disparidades criadas por inacessos viajando por tantos cantos, trabalhos que econômicos (e aqui importante lembrar que também tão dinamitando os muros da aca- a fundação da pobreza no brasil é a consti- demia desde dentro, inspirador e lindo e apo- tuição do racismo escravocrata, ou seja, o ra- calíptico: porque aponta que alguns aspectos cismo inventa sim a pobreza no brasil e não o desse mundo têm que ser destruídos mesmo contrário). são uma jeito de dizer que os dias pra que outras coisas possam nascer. é a dan- de casa-grande acabaram. que ou escrevemos ça trimúrti do universo né? vishnu dá lugar nossa história, pensamos nossos processos, a shiva que dá lugar a brahma que dá lugar teorizamos nossas cosmovisões, ou os livros a vishnu que dá lugar a shiva que dá lugar... vão alimentar o fogo (acho que tô meio shi- (tão importante que a gente não se perca nes- vaísta hoje). se movimento: ele não é só shivaísta)

tenho pensado muito nas outras vias. 5- (M.S) - Por falar em seu doutorado, a academia é meio vishnu, conservadora né. eu lembro que nos conhecemos em uma perdeu faz tempo o que quer que tenha de disciplina na UFSC e que aprendi muitas coisas com você... eu lembro de você brahmânica, de criativa. e quem tava fora faz falar a respeito de tradução feminista, tempo entrou viradx em shiva mesmo: pra de letramento... ou melhor, da tradução como política de letramento lésbico

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negro Feminista. Enfim, poderia nos mas porque reconhece nele uma ferramenta falar sobre tradução, letramento... que de autoconhecimento poderosa. conceito de tradução você trabalha e qual a importância da tradução para as colei também na proposta de sonia alva- políticas feministas, para os/as sujeitas/ rez da tradução feita em abya yala (américa os racializadas/os e das sexualidades latina y caribe) como tráfico de informações dissidentes? Poderia localizar o debate ou os debates específicos que passaram entre subjetividades feministas, na forja a formar parte da sua agenda teórica de uma estratégia anticolonial de produzir e política, os termos chaves em torno conhecimento, fazer esse conhecimento dos quais gira seu projeto atual de redefinição das dinâmicas de gênero, circular. e a primeira teórica de tradução fe- raça, sexualidade. minista que me encantou muito foi bárbara godard, que já passou desse plano, e escre- (T.N) - marcelo, a temporada na ufsc me veu sobre a tradução como uma poética da trouxe três grandes amizades com pessoas- diferença, do encontro entre tradutora y -humanas, uma sendo você! com quem, além traduzida, ressaltando em como, nesse en- de ter um respiradouro de afeto numa cidade contro, mulheres* reelaboram linguagem, que pode ser muito difícil em termos de rela- uma coisa que tinha sido roubada dessas ções humanas interraciais, aprendi também sujeitas. eu mesmo colando na wittig quan- coisas acadêmicas muito importantes, espe- do diz que as lésbicas não são mulheres, que cialmente sobre tradução cultural. essa era estamos fora da economia hetero(cis)sexista uma abordagem da qual eu não tinha ouvido da subserviência ao masculino, admiro mui- falar antes. e isso me alargou um pouco os ho- to essa pensada da godard, de mirar o que é rizontes pra pensar de forma mais séria/me- que tem de possível e de específico na tra- todológica a tradução como um processo bem dução feita por mulheres, que remodelações maior que os textos escritos mesmo, processo textuais, infrações, invenções, isso pede: na que pode ter uma reverberação política e cul- falta de uma linguagem que não seja aquela tural transformadora. minha tese foi nessa do heterocispatriarcado. pegada, de juntar as três paixões teóricas que isso foi na época da pesquisa né, agora eu tinha na época (teoria feminista lésbica mais recentemente tenho tido a alegria y sor- negra, tradução feminista e os novos estudos te de encontrar teorização desde a diáspora do letramento) pra pensar minha trajetória pra pensar as especificidades dos projetos como ativista-tradutora no compartilhar de negros de tradução, e a importância disso na textualidades lésbicas negras entre pares, o vastidão transatlântica - denise carrascoso, alcance disso, as possibilidades de transfor- na UFBA, é uma das teóricas que tenho lido, mação, a constituição de espelhos subjetivos e também a jess oliveira, que tá estudando pela evocação dessas referências: daí minha na UFSC agora e já produzindo teoria linda, pira da metáfora da tradução como o abebe, preta, transfeminista! pra mim, que consti- o espelho em que Oxum se mira não porque tuí muito da minha performance de sapatão é vaidosa, como as leituras hegemônicas he- poeta a partir da leitura de teoria em prosa y teronormativas dos itans costumam sugerir,

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em poesia de pensadoras como audre lorde, (M,S) - tate, ficamos no aguardo desse cheryl clarke, e mais recentemente dionne mini-dicionário ou zine! Certeza que será brand, a tradução sempre foi um espelho muito eficaz para todas/os nós. das possibilidades: de onde me enxergar.

de onde enxergar as lesbiandades negras 6- (M.S) - Bom, chegando ao final em diáspora. uma escola de subjetividade de nossa entrevista, que começou na mesmo. e cada vez mais só me faz sentido semana do dia das mulheres (08/03), passou pela semana do dia de combate à pensar a diáspora desde a dissidência sexual discriminação racial (21/03) e termina e vice-versa, porque tô metida em comunida- no dia de Jorge, de Ogum (23/04), o des negras lgbtqi, me envolvo com projetos senhor da guerra, o ferreiro (acho providencial entrelaçar nossa conversa com/pra essas comunidades, me interesso com essas datas), gostaria de pedir para pelo que tá sendo escrito, desenhado, cine- você falar um pouco sobre o surgimento da Padê Editorial, do seu livro Lundu, matografado por essas comunidades (jota das coleções que homenageiam as Yabás. mombaça, michelle matiuzzi, marissa lobo, Como ocorre o processo de construção njideka stephanie, porsha o., wanderson de estéticas negras, diaspóricas, lésbicas dentro da sua composição e das flor, denise botelho, aline matos são algu- pessoas que compartilham com você esse mas dessas inspirações poéticas/políticas/ projeto poético-político? Enfim, por que epistêmicas). escrever e o que a escritura expressa no contexto das subaltenidades? Ao mas eita que difícil essa última parte da te fazer essa pergunta, passa-me pela pergunta. difícil de ser tão precisa. “localizar cabeça o texto da Audre Lorde (Poetry o debate ou os debates específicos que passa- is not a luxury) e o texto da Gloria Anzaldúa ( To(o) queer the Writer)... ram a formar parte da sua agenda teórica e política, os termos chaves em torno dos quais (T.N) - Ogum é orixá que rege as tec- gira seu projeto atual de redefinição das di- nologias né? o ferreiro, e o agricultor tam- nâmicas de gênero, raça, sexualidade.”? bém: nesse caso também provedor, também alguns termos-chave são cura; autoa- alimenta. a padê (é em minúsculas mesmo) mor; água limpa; reforma agrária baseada veio de um sonho partilhado, que começou na agricultura familiar e produção orgânica; quando ganhei de um amigo um livro de uma compartilhamento de nossas experiências de cartonera, a eloísa cartonera. no brasil conhe- prazer e resistência; antirracismo transfe- ci duas outras editoras que fazem livros com minista; antiespecismo anticapitalista; auto- capa de papelão reciclado, em cooperativas -organização e organização popular na base de catadoras/es: a abadia catadora, do df, do faça-você-mesmx, abaixo, e à esquerda; que fica na cidade estrutural; e a dulcineia caminharmos pelo planeta sem estragar tudo catadora, de sp. há outras, mas não conheci pra nossa espécie nem pras outras. pelos livros, ainda. essas duas sim. daí en- alguns. mas acho que na próxima vez contrei bárbara esmenia no df, ela é poeta faço um mini-dicionário. ou um zine! também, bem no dia em que ganhei o livro. mostrei pra ela, sonhei alto “vamo montar

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 257-268, jul/dez. 2017 264 Disponível em: lundu, padê, apocalipse cuír - Entrevista com Tatiana Nascimento uma editora assim?”, ela topou e tamos aí: o tentáculo virtual do corpuscrisis e agora é o 4 títulos publicados, quase 1000 exemplares que restou dessa coletiva que foi tão potente, feitos (contando todos eles), mais dois títu- tão importante). http://kk2011.confabulando. los artesanais a serem lançados em 2017, e o org/index.php/Main/Traduzidas, pra quem primeiro impresso em gráfica. lundu, (com quiser ler a vírgula mesmo, e em minúsculas também) por que escrever? por que não né? eu foi o segundo livro da padê, lancei em março às vezes acho que escrevo porque não sei de 2016. tô começando a imprimir a segunda desenhar. mas só às vezes. em geral eu sei, tiragem, vai ter capa diferente (era gravura, de sentir, que escrevo porque é assim que vai ser serigrafia). juntei os poemas mais aprendi a construir história, e a me consti- amados que tinha feito em 2014/2015, deve tuir enquanto sujeita. pensante. o projeto da ter algum do comecim de 2016 no meio, al- padê, que é estético-político-afetivo mesmo guns de 2009, que é um ano muito impor- como você ressaltou, é um projeto de cone- tante pra mim, pra minha poesia, por ser o xão de escrituras desde a dissidência, e nessa ano em que por primeira vez falo um poema reinauguração que tem rolado de uma mi- pra um público majoritariamente negro, rada da diáspora como ponto de partida né, num curso de extensão na unb promovito ampliando o sentido primeiro do tráfico e da pela profa. Denise Botelho (que agora tá na exploração, às vezes até questionando esse UFRPE), com participação de Lúcia Xavier; sentido: como diz a Dionne Brand, a diáspo- também ano em que começo a namorar a ra como esse lugar-nenhum que tem que ser primeira mulher com quem namorei (e fica- feito lugar. e temos feito, eu acho. com a pala- mos juntas cinco anos), então acho que esse vra compartilhada principalmente. a produ- livro foi... a reunião de uma... melhor: foi... ção de textos desde sujeitxs subalternizadxs a primeira declaração impressa sistemati- cria um mundo de referências, cria novos zada de minha obra enquanto poeta negra espelhos, constitui uma linguagem nossa, na diáspora e na dissidência sexual. assim, o a partir da qual nos reelaboramos pra fora livro num tem só poemas sobre ser sapatão do confinamento que a empreitada racista, nem só sobre ser negra né, e isso me lembra heteropatriarcal, cisnormativa, capitalista muito aquele texto da gloria anzaldúa (aliás tem elaborado aqui há meio milênio. não só Claudia falou que a tradução sai publicada rompe o silenciamento, força que as escutas esse ano!!), o que é um texto lésbico? o que mudem. que os ouvidos ouçam, que os olhos é um texto negro? tenho pra mim que tudo leiam, que os dedos toquem, que algumas bo- que eu escrevo é lésbico y negro porque eu cas se calem e reaprendam a falar antes de sou uma sapatão negra, afinal. lembro mui- continuar falando. a padê é um tentaculinho to também da Witig naquela discussão do nesse cefalópode gigante que é a reelabora- “ponto de vista: universal ou particular?”, e ção narrativa, epistêmica, estética de comu- ela falando da Djuna Barnes... esse da Wittig nidades subalternizadas. e olha que depois tá traduzido no site do confabulando (que era de ler a queda do céu, de Davi Kopenawa, eu

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passei a questionar bastante a importância que os gritos de briga diminuírem um pouco. do gravado em peles-de-imagens viu? mas né? assim aparece o cuíer na minha poética: continuo publicando. acho autopublicação como uma brecha terceromundista, infla- uma parada imprescindível pra questionar mada, apaixonada, vulcânica, de se montar, as mega-estruturas: da publicação, da narra- talvez de se desmontar-pra-se-remontar, dei- tiva, da autoria. todo mundo pode escrever. xando tudo meio esquisito. tirando do lugar. qualquer coisa pode ser publicada. inclusive, trabalho de Exu, que nem naquele itan que ou principalmente, as que vêm sendo escon- ouvi uma vez, que depois que Orunmilá cria o didas, clandestinizadas. mundo e cada coisa tem seu nome, Exu troca o nome de todas as coisas, dando início ao

7 - (M.S) - Para terminar mesmo... Eu movimento - pela bagunça, pela desestabili- tenho lido muitas das suas poesias, zação. o que é isso se não a poesia né? chamar acompanhado sua página no facebook, cada coisa de um nome outro, fazendo ele o Palavra Preta2, seus vídeos de performances. Aliás, adorei o próprio daquilo, ali, naquele contexto. torcer “Apocalipse Queer”3 ( como aparece o e distorcer os sentidos. o “cuíer A.P.” é um queer na sua poética?). Você poderia lado de um prisma, que em outro lado tem nos deixar uma poesia para selar nossa conversar? E diga para nós: Como “lundu” (o poema que dá título), tem “queer- conseguir os livros da Padê? Como lombismo” que depois virou “cuíerlombis- publicar na Padê? mo”, e que finalmente tem “cuíer paradiso”, e (T.N) - como linguagem importa pra vai ter outros mais. cuíer na minha poesia às mim e pra você, vou insistir nisso aqui: a vezes é tema, às vezes inspiração, às vezes só página é palavrapreta, tudo junto e em mi- o chão mesmo de onde parto porque sou essa núsculas, e o poema chama “cuíer A.P (ou pessoa: e o chão de onde partimos é tão im- ‘oriki de shiva’)”, não é queer. é cuíer. eu portante. a firmeza do movediço, no caso de sinceramente acho esse poema OK. gosto desestabilizar identitariamente y de bagun- muuuuuuito mais de outros poemas meus. çar a linguagem também, essa certeza frágil mas ele tem um apelo muito forte pra esse que temos como a única e mais especial coisa momento político desconstrutivo que tamos que nos difere de pessoas não-humanas. mas vivendo né? que é um momento bem shivaís- veja aí os pássaros todos voando, as águas ta mesmo. e tudo bem. mas me interessa pen- todas correndo, o vento todo soprando, cada sar também no que vamos plantar, porque coisa em seu lugar. e a gente se debatendo tem muita terra preta embaixo de todo con- com os termos, com os significados, será que creto. como vamos nadar. porque tem muito é uma coisa tão importante assim, mesmo? rio afogado embaixo de asfalto. como vamos pra publicar na padê tem que emocionar dançar. porque vai ter muita música depois as editoras, que somos eu e bárbara. a gente publica o que A M A, o que mexeu muito ler. então geralmente convidamos as pessoas 2 https://www.facebook.com/palavrapreta/ que publicamos. algumas pessoas enviaram 3 https://www.youtube.com/watch?v=KAcdmfd7psM&t=3s

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 257-268, jul/dez. 2017 266 Disponível em: lundu, padê, apocalipse cuír - Entrevista com Tatiana Nascimento imeio com manuscritos, e amamos também, no si puede bailar e vai rolar: [email protected] la partitura dá pra pedir os livros por imeio também. blanca ou pela página no facebook. e nos próximos meses vamos inaugurar nosso site, quando quem ia correr o risco de esquecer vai ser publicada a entrevista? acho que até o próprio destino, Odú – olhos lá já dá tempo de divulgar esse link também transbordantes de Irê – jejejejejeje gracias marcelo pela prosa! te vejo esquecer na floresta? Orunmilá vindo até aqui pra ensinar o tambor? asaana, ou: sobreviver o fel (tecnologia ancestral de re

mientras los ojos de criança destilavam compor) ódio esquecer o pacto: é se aprendido no ventre, perder. aprendizes do vento encruzilhavam monocromias penta pero a eso mira, mira la niña / su odio tônicas, entoando uma velha contra nosotres / su miedo de la gente canção escrava: scharwzen / su rabia de ensuciarse / la ciudad tan limpia es vieja y imperial / la “hoje linea del autobus tiene una topografía não tem boca pra se beijar colonial / la arquitectura espectral de las não tem alma pra se lavar calles mira nem tem vida pra se viver mira a todo eso, cariño, y luego olvidate, mas tem dinheiro pra se contar no te ubicas en la de terno e gravata, seu pai agradar levar sua filha pro mundo perder dolor: é o céu da boca do inferno esperando a boca da criança escorria você” veneno aprendido no ancestral (o tempo) os sêmen continente escur tão temprano! os corações inquebrantáveis a pele y eu contra minhas têmporas sentindo herdada mas desaprendendo o ódio por ela mas (um presente) staring back sabem que: o ônibus cheio, você vestia ralé não dança valsa vienense, Funfun, o dia Dudu,

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 257-268, jul/dez. 2017 Disponível em: 267 Marcelo Spitzner, Tatiana Nascimento

sua mão me amaciava os caminhos, Odú: amor, (no te preocupes.) amor o que se tinha de beber contraquele nó na garganta: “asaana?” “asaana!” “contregum contresses ritmo”: sádico – 500 anos de garantia, pode provar: asaanaé mergulhar (y cuidate, cariño).

[pra amoako boafo, junho de 2016, viena]

Recebido para publicação em 30 nov. 2017. Aceito para publicação em 20 jan. 2018.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 257-268, jul/dez. 2017 268 Disponível em: Doi: 10.5212/Uniletras.v.39i2.0009

Resenha

Translocalities/Translocalidades: Feminist Politics of Translation in the Latin/a Américas. (2014). Durham: Duke University Press, 2014.

Thaís Ribeiro Bueno*

Em 2014, o projeto coletivo Feminist Politics of Translation in the Latin/a Translocalities/Translocalidades: Feminist Américas têm suas bases seminais nas ativi- Politics of Translation in the Latin/a dades desenvolvidas a partir do Hemispheric Américas gerou, como resultado de mais de Dialogues, projeto criado no Chicano/ uma década de trabalhos desenvolvidos no Latino Research Center da Universidade campo das teorias feministas articuladas da Califórnia em Santa Cruz, nos Estados por e para mulheres provenientes de etnias Unidos. Formado da parceria entre diversas minoritarizadas e países periféricos, o volu- autoras e teóricas feministas, como Sonia me Translocalities/Translocalidades: Feminist E. Alvarez, Claudia de Lima Costa, Norma Politics of Translation. Publicada pela Duke Klahn, Lionel Cantú, Verónica Feliu, Patricia University Press, a coletânea apresenta uma Zavella, Lourdes Martínez-Echazábal e série de artigos que exploram as possibilida- Teresa Carillo, o grupo de pesquisa desen- des de entendimento e análise do campo das volveu, em mais de uma década, inúmeras teorias feministas como lugar a partir do qual atividades e encontros com o objetivo de questões relativas a gênero, sexualidade, raça estabelecer discussões e análises para um e etnia são problematizadas, a partir de uma olhar crítico sobre questões transversais abordagem que se utiliza do conceito de tra- relativas ao feminismo. Ao longo dos anos, dução cultural como práxis possibilitadora as atividades desenvolvidas se ampliaram, de diálogos trans-hemisféricos. tanto em escopo quanto em geografia, o Os trabalhos desenvolvidos no âmbito que permitiu uma perspectiva e um olhar do projeto Translocalities/Translocalidades: não apenas transnacional, mas também

* Doutora em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp. E-mail: thais.escrevedoria@ gmail.com

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 269-273, jul/dez. 2017 Disponível em: 269 Thaís Ribeiro Bueno

trans-hemisférico, estabelecendo diálogos o conceito de traveling theory, elaborado por entre autoras estabelecidas em comunidades Edward Said (1983)), elementos reforçadores latinas nos EUA (ou terceiro-mundo-dentro- de políticas nacionalistas são subvertidos por -do-primeiro-mundo). movimentos de deslocamento, imigração e Algumas das autoras que participaram transgressão para articulação entre as diver- das atividades desenvolvidas nos anos ini- sas delimitações do espaço geográfico (sejam ciais do grupo de pesquisa estão presentes elas locais ou globais) e as diferentes possi- no volume como autoras e/ou organizadoras, bilidades de pertencimento e representação sendo que estas últimas atuam em diversas que constituem sujeitos traduzidos. áreas teóricas: Sonia Alvarez leciona políticas Nessa proposta, a tradução é entendi- e estudos latino-americanos na Universidade da como prática cultural que possibilita tais de Massachusetts em Amherst e é diretora movimentos, não nos termos definidos tradi- do Center for Latin American, Caribbean, cionalmente (tradução unidirecional, de uma and Latino Studies, na mesma universida- língua nacional A para uma língua nacional de; Claudia de Lima Costa atua como pro- B, de natureza inter-nacional, ou entre na- fessora na Universidade Federal de Santa cionalidades), mas como fluxo que atravessa Catarina (UFSC), dedicando-se a temas como as próprias redes de discursos e se constitui teoria literária, teorias feministas e estudos como local privilegiado para a (re)leitura e culturais; Verónica Feliu é professora de (re)escrita desses discursos. E, por meio da espanhol na City College of San Francisco, adoção de um olhar que privilegia marcas de na Califórnia; Rebecca J. Hester leciona no heterogeneidade dentro das comunidades Institute for the Medical Humanities, da terceiro-mundistas nos EUA e dos movimen- Universidade do Texas; Norma Klahn é pro- tos de resistência política na América Latina, fessora de estudos literários na Unversidade a coletânea (cuja heterogeneidade já se ma- da Califórnia em Santa Cruz; Millie Thayer é nifesta na própria polissemia e no caráter hí- professora de sociologia na Universidade de brido expressos no título) revela um projeto Massachusetts em Amherst e também filia- de pesquisa que herda de autoras como as da ao Center for Latin American, Caribbean, chicanas Gloria Anzaldúa e Cherríe Moraga and Latino Studies. uma concepção híbrida e multidirecional de Assim, contando com um diversificado feminismo, já celebrada no clássico volume corpo de organizadoras e autoras, a obra parte This Bridge Called my Back – Writings by Radical de uma abordagem transversal para discutir Women of Color (1981). as formas pelas quais teorias e práticas femi- Apresentados por duas introduções nistas viajam através de fronteiras nacionais – uma referente ao volume como um todo, e limites hemisféricos, bem como os efeitos escrita por Sonia Alvarez, e outra mais espe- discursivos e epistemológicos causados por cificamente relativa aos debates desenvolvi- esse tráfego de teorias. Nesses movimentos dos em torno dos movimentos de tradução, de tradução cultural (em consonância com de autoria de Claudia de Lima Costa –, os

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 269-273, jul/dez. 2017 270 Disponível em: Translocalities/Translocalidades: Feminist Politics of Translation in the Latin/a Américas. ... capítulos da coletânea são organizados em da descrição de sua experiência de traduzir quatro partes temáticas: “Mobilizations/mobi- a poetisa dominicana Yrene Santos para o lizing theories, texts, images”; “Mediations/natio- inglês. Concluindo a primeira parte, a mexi- nal/transnational identities/circuits”; “Migrations cana Maritza Belausteguigoitia propõe uma disrupting (b)orders”; e “Moviments/feminist/ abordagem tradutória baseada no concei- social/political/postcolonial”. to cunhado como pedagogy of the double [em Já na primeira parte, abordam-se os português, “pedagogia do duplo”] e oferece efeitos da mobilidade e do deslocamento o exemplo de uma estratégia de leitura que (por intermédio do tráfego de teorias e prá- articula os escritos de Gloria Anzaldúa e do ticas de “translocamento” dentro do processo líder zapatista Subcomandante Marcos. de leitura) para a forma como as teorias fe- A parte II do volume apresenta escri- ministas são conduzidas em um eixo trans- tos que abordam as dinâmicas e estruturas -hemisférico norte-sul. No primeiro capítulo, discursivas que afetam os trânsitos trans- a chicana Norma Klahn faz uma recupera- -hemisféricos de ideias e teorias feministas. ção da produção feminista que emergiu dos No sexto capítulo, Claudia de Lima Costa movimentos políticos da década de 1970 nos apresenta sua experiência como editora da Estados Unidos, revelando e problematizan- Revista de Estudos Feministas, publicada pela do as múltiplas tensões que perpassavam ma- Universidade Federal de Santa Catarina, e nifestações artísticas criadas nesse contexto, discute o papel do periódico como mediador como questões de raça, etnia, sexualidade e cultural de um fluxo constante de teorias, por nacionalidade. Na sequência, o capítulo 2, de via da tradução. No capítulo 7, a antropóloga autoria de Ana Rebeca Prada, propõe a per- mexicana Márgara Millán dá continuação ao gunta desafiadora a respeito das possibilida- eixo temático, abordando os casos dos pe- des de tradução da chicana Gloria Anzaldúa riódicos feministas Fem, Debate Feminista e para o público boliviano, e descreve casos de La Correa Feminista e analisando como tais tentativas de tradução de obras da feminis- revistas contribuíram para diálogos que fa- ta chicana para o contexto político e social vorecessem a discussão da condição e da re- boliviano, bem como enormes desafios que presentação da mulher indígena no México, tal empreitada representa. Já no capítulo 3, tendo como pano de fundo o Movimento a brasileira Simone Schmidt analisa o con- Zapatista mexicano. No oitavo capítulo, texto dos feminismos no Brasil e evidencia Rebecca J. Hester analisa, a partir da expe- a complexidade das relações entre questões riência de mulheres indígenas na Califórnia, de gênero e raça, sobretudo em decorrên- o papel de diversas instituições de saúde na cia do passado escravocrata e patriarcal construção de discursos que determinam a do país. No quarto capítulo, a dominicana relação das mulheres com seu próprio cor- Isabel Espinal põe em relevância as possibi- po e as suas práticas relativas ao corpo e à lidades de se tomar da tradução como tática saúde. No capítulo 9, Kiran Asher apresenta para transformação e justiça social, a partir o exemplo das mulheres afro-colombianas

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 269-273, jul/dez. 2017 Disponível em: 271 Thaís Ribeiro Bueno

como ponto de partida para uma crítica de capítulos seguintes discutem relações entre discursos que se apoiam em lógicas binárias gênero, raça e representação feminina na tradicionais para limitar as possibilidades de relação de mulheres com seus corpos: no ca- articulação e discussão das condições de vida pítulo 13, Suzana Maia analisa a experiência de mulheres no Terceiro Mundo. Concluindo de dançarinas brasileiras em clubes eróticos a segunda parte, Macarena Gómez-Barris de Nova York e a forma como as negociações explora, no décimo capítulo, o trabalho per- de identidade e representação que determi- formático da artista chilena Moyeneí Valdés nam suas relações com o próprio corpo são como ferramenta de promoção de debates atravessadas por discursos que reforçam a em torno do feminismo e da subversão de condição da mulher brasileira como resul- práticas racistas em contextos de opressão tado de uma “mistura racial” e como objeto política. de desejo e satisfação sexual. Já no capítulo Na sequência, a terceira parte do vo- 14, Adriana Piscitelli analisa o contexto do lume apresenta discussões e análises que turismo sexual em Fortaleza, no Ceará, e as complementam as duas primeiras partes, estratégias performáticas de autorrepresen- concentrando-se, agora, especificamente tação e adaptação a uma demanda de consu- no “movimento de/através de corpos e fron- mo que se apoia em discursos opressivos que teiras marcados por gênero, sexualidade, se baseiam em perspectivas sexualizantes da classe e raça que possibilitam translocali- cultura brasileira. dades e traduções”1 (ALVAREZ, 2014, p. 12). Por fim, a quarta e última parte do vo- Nesse contexto, Teresa Carrillo tece uma lume se dedica a explicar “como e por que crítica aos discursos dominantes postos em teorias e discursos específicos são ou não são prática pelos governos dos EUA e de países traduzidos nas práticas políticas e culturais terceiro-mundistas no que concerne à impor- de feministas latinas nos EUA e feministas tação e exportação do trabalho doméstico de- da América Latina” (ALVAREZ, 2014, p.14). sempenhado por mulheres imigrantes, e as No capítulo 15, Maylei Blackwell parte da formas pelas quais tais discursos colaboram noção de translenguajes (translínguas) para para uma desvalorização desse trabalho. De uma análise das possibilidades de articula- forma análoga, Verónica Feliu apresenta, no ção de diferentes movimentos feministas: o capítulo 12, a questão da desvalorização do movimento das mulheres indígenas, o mo- trabalho doméstico desempenhado no Chile vimento das mulheres lésbicas no México e por mulheres indígenas e por imigrantes pe- o movimento das feministas chicanas nos ruanas e do “silêncio feminista” identificado EUA. Já no capítulo 16, Pascha Bueno-Hansen nas tensões relativas a raça e classe que atra- analisa como a tradução e o deslocamento vessam as relações entre empregadas domés- de termos-chave como lesbianas e queer têm ticas e mulheres de classe média. Já os dois o potencial de abertura de espaços de nos quais assimetrias de poder político podem

1 Esta e outras traduções de trechos do livro foram reali- ser negociadas, na medida em que fluxos zadas por mim.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 269-273, jul/dez. 2017 272 Disponível em: Translocalities/Translocalidades: Feminist Politics of Translation in the Latin/a Américas. ... transculturais possibilitam alianças entre Com efeito, a articulação conceitos e movimentos de feministas lésbicas e queer análises que emergem de forma crítica a nos dois hemisférios do continente ameri- partir de das quatro diferentes perspecti- cano. No capítulo 17, Ester R. Shapiro explora vas que compõem o volume – movimentos a prática tradutória – mais especificamente, de deslocamento que permitem diferentes sua experiência como organizadora de um perspectivas em torno de questões identi- projeto de adaptação de uma obra represen- tárias; discursos, instituições e outros tipos tativa das discussões feministas em torno da de checkpoints que podem favorecer ou obs- saúde para o espanhol – como lugar privile- truir fluxos de teorias feministas através de giado para a prática de políticas feministas fronteiras nacionais; a experiência migrante de ação coletiva e solidariedade. No capítulo através das fronteiras nacionais; e a efetivi- 18, Victoria M. Bañales analisa diferentes ex- dade da tradução de teorias feministas como periências de tradução do volume I, Rigoberta possibilidade de articulação e aliança entre Menchu: An Indian Woman in Guatemala, bem movimentos de resistência localizados no como as controvérsias geradas em torno des- norte e no sul da América – oferece, neste sas empreitadas de tradução, para propor volume, um vasto e rico panorama a partir do questões relativas aos motivos pelos quais qual se aprofundam discussões em torno dos determinados marcadores e elementos re- feminismos no continente e se vislumbram ferentes ao gênero são pouco explorados nes- novas possibilidades de aliança política. Mais ses movimentos de tradução, em comparação especificamente, esta obra, enquanto resul- a dimensões como raça, classe e etnia. Já no tado de um trabalho crítico, desenvolvido de capítulo 19, Agustín Lao-Montes e Mirangela forma brilhante por esse grupo de feminis- Buggs analisam como discursos e práticas tas (autoproclamadas translocas), em diversos antirracistas emergentes em movimentos momentos avança e dá continuidade à dis- de afro-latin@s constituem práticas liber- cussão proposta por Cherríe Moraga e Gloria tadoras em relação ao passado histórico da Anzaldúa na década de 1980, com This Bridge diáspora africana nas Américas e a discursos Called My Back, apresentando, de forma úni- opressivos e patriarcais que se constroem em ca na literatura dos estudos e das teorias de torno de conceitos de latinidade. Concluindo tradução, uma extensa e ampla discussão da a parte IV e o volume, Millie Thayer parte, no tradução enquanto lugar de ação política fe- capítulo 20, de suas experiências e tentativas minista. Dessa forma, o volume se revela uma de tradução de grupos feministas transnacio- fonte inesgotável de reflexões e questiona- nais para o público acadêmico para eviden- mentos que pode beneficiar não apenas pes- ciar o potencial da tradução cultural como quisas relacionadas aos estudos feministas, ferramenta de ruptura com discursos opres- mas também estudos do campo de tradução sivos e de elaboração de alianças entre movi- que buscam superar os tradicionais mode- mentos políticos feministas transnacionais. los tradutórios provenientes do século XIX, a partir de perspectivas e práticas transversais

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 269-273, jul/dez. 2017 Disponível em: 273 e multidirecionais como as propostas pelas autoras desta obra.

Referências

ALVAREZ, Sonia E.; COSTA, Claudia de Lima; FELIU, Verónica; HESTER, Rebecca J.; KLAHN, Norma; THAYER, Millie. Translocalities/ Translocalidades: Feminist Politics of Translation in the Latin/a Américas. Durham: Duke University Press, 2014. MORAGA, Cherríe; ANZALDÚA, Gloria. This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color. New York: Kitchen Table – Women of Color Press, 1983. SAID, Edward. ‘Travelling Theory,’ in The Edward Said Reader, eds. BAYOUMI, Moustafa; RUBIN, Andrew. London: Routledge, 1982.

Recebido para publicação em 10 abril 2017. Aceito para publicação em 15 de out de 2017. Tema livre

Doi: 10.5212/Uniletras.v.39i2.00010

Um estudo enunciativo de rachel de queiroz à luz do hipergênero histórias em quadrinhos

An enunciative study of rachel de queiroz in the light of the hypergenre comics

Ivan Vale de Sousa*

Resumo: O Modernismo Brasileiro representou uma transformação na efetivação das obras dos escritores brasileiros, inserido outras linguagens artísticas ao movimento, bem como a função da mulher como escritora. Nesse sentido, os objetivos deste trabalho são: apresentar o contexto do Modernismo Brasileiro; destacar a proposta inovadora do movimento e a inserção da mulher no campo literário; realizar um estudo enunciativo da escrita de Rachel de Queiroz e refletir a relevância na adaptação literária de O Quinze, de Rachel de Queiroz para o hipergênero Histórias em Quadrinhos. Assim, espera-se que estes apontamentos contribuam na efetivação do processo leitor dos cânones literários na escola. Palavras-chave: Modernismo Brasileiro. Rachel de Queiroz. Histórias em Quadrinhos.

Abstract: The Brazilian Modernism represented a transformation in the effectiveness of the works of the Brazilian writers, inserted other artistic languages to the movement, as well as the role of the woman as a writer. In this sense, the objectives of this work are: to present the context of Brazilian Modernism; to highlight the innovative proposal of the movement and the insertion of women in the literary field; to carry out an enunciative study of the writing of Rachel de Queiroz; to reflect the relevance in the literary adaptation of Rachel de Queiroz The Quinze to the hypergenre Comics. Thus, it is expected that these notes contribute in the effectiveness of the reading process of the literary canons in the school. Keywords: Brazilian Modernism. Rachel de Queiroz. Comics.

* Mestre em Letras pelo Instituto de Línguística, Letras e Artes da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNI- FESSPA). Especialista em Gramática da Língua Portuguesa: reflexão e ensino pela Faculdade Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas pelo Instituto de Artes da Uni- versidade de Brasília (IdA/UnB). Especialista em Planejamento, Implemtação e Gestão da Educação a Distância pelo Laboratório de Novas Tecnologias da Universidade Federal Fluminense (LANTE/ UFF). Professor de Língua Portuguesa na Escola Novo Horizonte, em Parauapebas, sudeste do Pará. Email: [email protected]

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 277-291, jul/dez. 2017 Disponível em: 277 Ivan Vale de Sousa

Introdução a criação de um estilo modernista que valo- rizasse o nacionalismo, lançasse olhares ao Desde as origens da Literatura Brasileira cotidiano, surgia, nesse sentido, com a SAM, que a produção masculina tem se destacado o Modernismo Brasileiro e, com ele, novos no contexto literário com a representação escritores passaram a ser conhecidos no con- de poemas, sonetos e romances, visto que, texto literário. os grandes expoentes literários nacionais O movimento resumia-se em uma for- foram representados por exímios escritores ma de expressão libertária no campo dos na leitura e na apreciação das obras. As ino- nossos registros e das produções literárias vações no campo da literatura estavam, aos que começava a se firmar, mesmo diante dos poucos, começando a mostrar-se, sobretudo desafios e descrença por boa parte da elite com a realização da Semana de Arte Moderna paulistana. O Modernismo previa o rompi- (SAM), ocorrida entre os dias 11 a 18 de feve- mento com o que os escritores chamavam reiro de 1922, no Teatro Municipal, na cidade de tradicionalismo e, ao mesmo tempo, pro- de São Paulo, conforme evidenciam docu- punham inovações a partir dos pontos nor- mentos que retratam os acontecimentos de teadores do movimento literário: liberdade uma nova etapa no campo literário nacional. estética, utilização do humor na estruturação dos Mesmo sendo protestada por alguns versos, valorização do cotidiano, entre outras renomes da nossa literatura, entre eles, características. José Bento Renato Monteiro Lobato, a SAM, Alguns méritos são direcionados às pri- como ficou conhecida, ou Semana de 22, meiras mulheres que trilharam um caminho possibilitou o ingresso de novos escritores até então percorrido pela produção masculi- e a inserção de outras linguagens artísticas, na, entre elas, Cecília Meireles, que se firmou como as obras plásticas, por exemplo. Os como escritora intimista e, ao mesmo tempo, acontecimentos ocorridos pós-Semana de espiritualista, destacando-se na produção da Arte Moderna permitiram, ainda, a inclusão poesia. Contudo, é com a chamada “Geração atuante e feminina na recepção das produ- de 30” que o romance ganhou destaque na ções literárias, oferecendo espaço para que produção de Rachel de Queiroz com o pseu- algumas mulheres demonstrassem seus ta- dônimo de “Rita de Queluz” e, aos poucos, as lentos literários e viessem a ocupar os mes- mulheres começavam a demonstrar talentos mos lugares na imortalidade de suas obras, artísticos na literatura. como parte dos nossos clássicos. Rachel de Queiroz firma-se como escri- Em busca da nacionalidade, a Semana tora com a produção de O Quinze que a insere de Arte Moderna representou o ponto de de forma contundente no cenário literário e a partida para que as inovações ocorressem no voz da autora ecoa por meio da obra relatan- campo das nossas letras. Os dias que simbo- do as mazelas oriundas da seca. Assim sendo, lizaram o despertar do pensamento moder- após sua consagração na literatura e na com- nista não foram os mais silenciosos possíveis posição da Academia Brasileira de Letras, o como muitos acreditam; eles direcionaram

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 277-291, jul/dez. 2017 278 Disponível em: Um estudo enunciativo de Rachel de Queiroz à luz do hipergênero histórias em quadrinhos surgimento e a recepção de outras escritoras Moderna, em 1922. Durante os dias de even- são bem-vistas pelo Modernismo Brasileiro. to, isto é, da SAM, encontramos os primeiros Enaltece-se que a escritora em repre- registros da intervenção feminina na pro- senta, sobretudo um dos grandes expoen- dução literária. Assim, o início deu-se com a tes na valorização da escrita feminista no exposição da artista plástica Anita Malfatti, contexto das inovações rebuscadas pelo que suscitou as maiores discussões durante Modernismo Brasileiro e, de tal modo, este a Semana de 22, entre as 20 telas expostas, trabalho, projeta a relevância de Rachel de O homem amarelo foi a que mais provocou os Queiroz no contexto literário nacional, desde mais acalorados debates, além disso, há re- sua estreia às possíveis influências, por isso, gistros de outra representante na área mu- o presente estudo divide-se em dois tópicos. sical, Guiomar Novaes. No primeiro, alguns apontamentos do clás- Outra obra que rendeu duras críticas sico O Quinze são apresentados, bem como a de Monteiro Lobato foi o quadro O torso, de inserção de Rachel na literatura. O segundo, Malfatti, que apesar do posicionamento con- por sua vez, propõe uma releitura da adapta- trário do escritor à artista e ao movimento, ção da obra à luz das histórias em quadrinhos deixou-a bastante chateada pela dureza na (HQs) com base em dois recortes, elucidando colocação das palavras emitidas ao jornal a relevância das adaptações na ampliação do O Estado de S. Paulo, no ano de 1922, o que processo formativo de leitores no âmbito das não deixou de ser uma oposição à obra e ao aprendizagens. movimento que estava despertando e se fir- mando como novo movimento vanguardista

O nordeste e a escrita de Rachel de literário e, de certo modo, a visualidade da Queiroz na literatura SAM teve seu estopim mediante as críticas de Lobato que, de alguma maneira, contribuiu O contexto literário brasileiro tem sido para que a sociedade paulista se voltasse ao marcado pela produção e pela voz mascu- movimento. lina desde a Literatura de Informação ao A seguir, é possível observar uma das Pré-Modernismo, conforme os registros primeiras manifestações de cunho femi- afirmam. O campo da literatura nacional, nista no campo literário e no contexto das nesse contexto, sempre foi um espaço em artes plásticas em prol da consolidação do que o escritor expressava seus sentimentos, Modernismo, o quadro que rendeu duras crí- além de retratar costumes e valores da épo- ticas de Monteiro Lobato e que trouxe as de- ca, localizando-os por meio dos fatos e vultos vidas atenções ao movimento de vanguarda. históricos. A modernidade e a inclusão femini- na na escrita tiveram seu apogeu com a implantação do movimento vanguardista escola Modernismo que teve início desde o planejamento à realização da Semana de Arte

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 277-291, jul/dez. 2017 Disponível em: 279 Ivan Vale de Sousa

Imagem 1: O torso, de Anita Malfatti vista sob um olhar poético e, ao mesmo tem- po, estético. A prosa da escritora é categoriza- da no romance de 1930 e buscou refletir acerca das crises, das transformações sociopolíticas e econômicas do nosso país em voga no perío- do, contudo a relevância da autora começava a despontar no cenário literário nacional. A gênese de Rachel de Queiroz é, ori- ginalmente, cearense e de influência literá- ria notória do escritor José Martiniano de Alencar pertencendo ao Romantismo, de um talento, inegavelmente, admirado. Acredita- se que a escritora tenha herdado algumas das qualidades de José de Alencar, poeta india- nista, na sua forma de escrever.

Fonte: Disponível em: . Acesso: 10 jun. 2016. no Ceará, em 17 de novembro de 1910. Descendente de José de Alencar, o cé- lebre autor de O Guarani e Iracema, e fi- O Modernismo Brasileiro trouxe entre lha de professores, cresceu cercada por outras inovações, a inclusão da figura femi- livros e literatura. Em 1917 sua família nina na divulgação e publicação das obras li- se viu obrigada a fugir da seca, migran- terárias. Mesmo com desconfiança por parte do para o Rio de Janeiro e depois para dos escritores, no interior do Ceará, despon- Belém do Pará. Mais tarde, retornou ao tava de maneira tímida, uma escritora que Ceará e, em 1925, formou-se no curso retratou a realidade de sua comunidade: sur- Normal. Em 1927, com o pseudônimo gia a produção literária de Rachel de Queiroz de Rita de Queluz, começou a escrever para jornais, até que, em 1930, aos 19 marcada, fortemente, pelo regionalismo em anos, escreveu o romance O Quinze, que o estado do Ceará e suas especificidades responsável por inseri-la no rol dos foram referências no romance; a linguagem grandes escritores do Brasil. A partir da escritora, nesse sentido, apresentava-se de então, Rachel entrou em contato fluente, cercada de diálogos de fácil com- com intelectuais e comunistas, pas- preensão o que resultou em uma narrativa sando a sofrer perseguição política. marcada pela dinamicidade. Em 1977, tornou-se a primeira mulher Os pontos de partida na escrita de eleita para a Academia Brasileira de Rachel de Queiroz são os aspectos de cunho Letras. Em 2003, Rachel faleceu dei- xando uma herança de sete romances social, visto que uma das preocupações do (entre eles, Memorial de Maria Moura, Modernismo era trazer à baila essas ques- As três Marias e Dora, Doralina), além de tões para a produção literária, a cotidianidade obras infanto-juvenis, peças de teatro,

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 277-291, jul/dez. 2017 280 Disponível em: Um estudo enunciativo de Rachel de Queiroz à luz do hipergênero histórias em quadrinhos

crônicas, livros didáticos, etc., publica- personagem, pois, o ponto norteador de sua dos com grande repercussão no Brasil produção literária foram as condições e as e no exterior. (LEITE, 2013, p. 82, grifos reflexões possibilitadas pelos horrores seca. do autor) O cotidiano do povo nordestino ganha Embora a escritora tenha produzido destaque na produção de Rachel. A autora textos e os tenha publicado em livros de crô- cria na sua narrativa um mosaico social da nicas é com a obra O Quinze, de 1930, que se região nordestina, ao passo que relata, tam- destaca na efetivação do movimento literário bém denuncia as precárias condições vividas modernista. O romance apresenta caracterís- pelos sertanejos. Assim, a inserção da escrito- ticas de uma escrita contundente e enxuta, ra passa a ser admirada e, inclusive, influen- a estruturação dinâmica no campo da nar- ciando outros autores do Modernismo, como rativa retrata um pouco das situações viven- é o caso de Graciliano Ramos que “compro- ciadas na sua infância, sobretudo as mazelas vadamente leitor de Rachel de Queiroz, pode oriundas da seca e o romance é desenvolvido ter sido influenciado por temas e ideias pre- a partir da duplicidade dos planos: social e viamente trabalhados pela escritora em suas amoroso. A atribuição de título à obra deu- obras, independente da qualidade estética -se em decorrência de uma devastadora seca dessa influência” (SCHLECHT, 2010, p. 52). ocorrida em 1915, considerada como uma das A revelação de Rachel de Queiroz deu-se mais terríveis pelos sertanejos. a partir da escrita de O Quinze. Com a obra O mote narrativo, nesse sentido, de- começava a surgir uma escrita de cunho so- senvolve-se a partir da seca vivida na infân- cial e preocupada com as questões sociais cia e na jovialidade da escritora, na fazenda em um campo que desde as origens da nos- Quixadá, localizada no sertão cearense. A sa Literatura tinham sido percorridas pela escrita de Rachel pode ser considerada uma produção masculina. representação das dificuldades da poetisa, Entre os 19 e os 20 anos de idade, ma- que em 1917, mudou-se com a família para a grinha, a jovem Rachel preocupa os cidade do Rio de Janeiro deixando para trás pais, pelo perigo de que venha a ado- os horrores da seca, na expectativa de dias ecer de tuberculose. É quando come- melhores. ça a escrever um livro sobre a seca, à As peculiaridades na escrita de Rachel mão, em cadernos escolares – durante de Queiroz, na obra O Quinze, certamente, a noite, deitada no chão, à luz de uma lamparina a querosene, para que a representou uma renovação na ficção regio- suponham em sonho profundo, e não nalista que elucidou as mazelas provocadas encher folhas pela madrugada afora. pela seca e, de modo igual, obrigava ao ser- Será O Quinze, cujos primeiros leitores, tanejo tornar-se um retirante. A maestria da Dona Clotilde e Dr. Daniel, resolvem autora foi muito bem representada, corre- pagar dois contos de réis a uma gráfi- lacionando os aspectos sociais de maneira ca de Fortaleza pela impressão de mil harmônica com o estado psicológico de cada exemplares. (CAMINHA, 2010, p. 10)

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A importância da produção literária em É possível, ainda, identificar que houve Rachel de Queiroz é ampla por representar fortes influências da escritora na produção um marco no âmbito literário brasileiro, além de Graciliano Ramos demonstrando certas disso, há fortes indícios de que tenha servido semelhanças no foco narrativo que se concre- como inspiração para que outras obras fos- tizaram a partir da dualidade na inspiração. sem pensadas no Modernismo. É nesse estilo Há, nesse sentido, um consenso de respeito e literário que a presença feminina começou a de valorização como o outro enxerga de ma- despontar no cenário nacional; ela representa neira sensível a realidade que o cerca e con- a precursora no contexto da literatura, sobre- seguir transpor isso, esteticamente, para a tudo no romance, deixando rastros para que literatura requer, de certa maneira, ousadia. outras escritoras viessem a contribuir com A primeira semelhança que se pode seus escritos e fortalecer a nova e inclusa fase destacar é o fato de ambos fazerem literária em vigência no país. parte da chamada “geração de 30”, Além disso, o que nos parece de certo que revigorou a literatura brasileira modo é que a influência de Rachel de Queiroz, ao incorporar algumas das conquistas isto é, da forma de provocar o encadeamen- formais do Modernismo de 1922 e in- to da narrativa pode ser observada em duas tensificar a pesquisa da realidade do obras de autoria de Graciliano Ramos, con- país, compromissada com a denún- forme evidenciada no excerto seguinte. cia das precárias condições sociais do Nordeste. Em segundo lugar, há de Como se sabe, os dois romances de comum entre eles a denominação, até Graciliano Ramos em questão são pos- certo ponto redutora, de escritores “re- teriores aos de Rachel de Queiroz. O gionalistas”, por serem ambos prove- Quinze é de 1930; Vidas Secas, de 1938. Já nientes da região Nordeste do Brasil e João Miguel é de 1932 e Angústia, de 1937. por seu mundo ficcional se concentrar Com isso fica patente, que Graciliano nessa região. (SCHLECHT, 2010, p. 56, foi leitor das obras de Rachel de grifos da autora) Queiroz bem antes de escrever Vidas Secas e Angústia, o que dá reforço à afir- O Nordeste tem sido a principal maté- mação de que Rachel tenha sido fonte ria-prima para boa parte dos escritores do de temas que o escritor iria retomar em Modernismo, como também da consolidação seus romances. Esses romances podem de Rachel de Queiroz no cenário literário. As ser agrupados da seguinte maneira: O contribuições da autora extrapolaram o con- Quinze e Vidas Secas aproximam-se pela texto literário e sua luta em prol de reconhe- temática da seca e por tratarem da mi- cimento e habilidade inquestionável em se gração forçada de famílias de sertane- firmar no ambiente até então ocupado pela jos em condições miseráveis de vida no sertão nordestino. (SCHLECHT, 2010, presença masculina o que não foi tão sim- p. 68, grifos da autora) ples assim. Por meio da linguagem simples e, ao mesmo tempo, dinâmica, soube retra- tar na obra que a consagrou, merecimento

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 277-291, jul/dez. 2017 282 Disponível em: Um estudo enunciativo de Rachel de Queiroz à luz do hipergênero histórias em quadrinhos e destaque na composição da Academia presença e os ideais de Rachel. Coube, nes- Brasileira de Letras como primeira mulher se sentido, à autora a missão de preparar o a ocupar uma cadeira na Academia. terreno na receptividade às escritoras, tais A singularidade em O Quinze está, justa- como: , Lígia Fagundes mente, na proposição dialógica com a terra Telles, entre outras, que tivessem visibilida- natal, além disso, nota-se que a “maneira de de e aceitação no estilo literário em pauta. representar a mulher é diferenciada de ou- Embora os registros da produção de Cecília tros escritores regionalistas, visto que, ob- Meireles se categorizem na segunda geração serva a ligação existente entre a mulher e a modernista, a chamada fase de consolidação, terra, ou seja, o dinheiro na vida mulher, a sobretudo da poesia, também foi expoente presença do feminino na vida dos homens” importante da função feminina na literatu- (PAGANUCCI; FREITAS, 2012, p. 7). ra, entretanto é com Rachel que a produção É notória, ainda, que a influência de romanesca tem seu apogeu no que diz res- Rachel de Queiroz a permitiu construir ami- peito à escrita feminina voltada às questões zades com boa parte dos escritores moder- sociais. nistas e o que mais nos desperta atenção na Ainda sobre a influência de Rachel na sua produção é a forma como a simplicidade obra de Graciliano nos é permitida fazer e a valorização da realidade que envolve seu outra comparação que indica fortes caracte- cotidiano se materializam. Em outras pala- rísticas da escritora na produção do autor. vras, o que nos parece, é que Rachel é con- Tal suposição pode ser observada entre os siderada a precursora ao estrear e se firmar romances João Miguel, de Rachel e Angústia, em um espaço desbravado e ocupado por de Graciliano, que “também guardam gran- escritores. des semelhanças. Ambos são histórias de ciúmes e assassinato, em que a psicologia É nesse contexto que se insere Rachel das personagens principais ganha destaque” de Queiroz, que, juntamente com José Américo de Almeida, com A bagaceira (SCHLECHT, 2010, p. 69). (1928), foi a precursora do romance Das escritoras supracitadas, cabe desta- chamado regional nordestino, daí a car que Cecília Meireles se vale da poesia mais sua importância e posição privilegia- intimista e filosófica; em Clarice Lispector, da na literatura brasileira do final dos há a predominância da introspecção e da ca- anos de 1920 e, principalmente de 1930. racterística psicológica que explora o mundo A partir de então, abre-se o universo interior das personagens, sua produção é, de literário regional e social para auto- certo modo, atemporal por não haver uma res de peso, como José Lins do Rego, preocupação com a unidade de começo, meio Graciliano Ramos e, posteriormente, Guimarães Rosa. (SCHLECHT, 2010, e fim. Já em Fagundes Telles, há a divulgação p. 60, grifo da autora) dos gêneros literários conto e romance. A seca como temática foi a responsá- A produção literária caracterizada pelo vel por inserir Rachel no cenário literário chamado “romance de 30” contou com a

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modernista brasileiro. Entre outras obras da e cheia de nuances, Rachel e Graciliano estão autora, há o resgate da brasilidade que se re- interligados pela dimensão social, dramática vela a partir do regionalismo utilizado como e psicológica. característica da geração na qual pertencia.

O que nos leva a compreender na literatura A obra O Quinze à luz das histórias em uma forma de dizer e, ao mesmo tempo, des- quadrinhos dizer, ou seja, é o presente que se encontra A leitura das obras literárias na íntegra ausente por meio das figuras de linguagens é essencial para a compreensão contextual que na concepção da autora utiliza as figu- em que foi pensada. Além de contribuir com ras de retórica como forma de denunciar as a formação do leitor reflexivo e crítico no mazelas sertanejas. espaço escolar e fora dele, os clássicos da Assim, a literatura nas concepções femi- Literatura Brasileira mostram suas funcio- ninas não representa apenas uma “simples nalidades no processo de ensino-aprendi- transgressão das leis que lhes proibiam o zagem nas formas de possibilitar o acesso e acesso à criação artística. Foi, muito mais do despertar o interesse das novas gerações à que isso, um território liberado, clandestino. leitura, que remonta aos fatos históricos e Saída secreta da clausura da linguagem e de uma dessas possibilidades é adaptá-los às ne- um pensamento masculino que as pensava cessidades dos interlocutores. Nesse sentido, e descrevia in absentia” (FREITAS, 2002 apud a “leitura exige do agente leitor a capacidade PAGANUCCI; FREITAS, 2012, p. 18). de desenvolvimento da habilidade de com- Rachel de Queiroz é realmente um dos preensão com o mundo que o cerca” (SOUSA, grandes nomes do Modernismo Brasileiro 2016a, p. 25). na categoria romanesca e sua imponência na A adaptação de uma obra literária e con- escrita caracterizou a literatura como espa- sagrada, neste caso, O Quinze, não é uma ta- ço também feminino, além disso, assumiu refa fácil, porém, constitui-se de um grande diferentes funções que a levaram a ocupar desafio em manter a essência do texto literá- lugar de destaque no contexto literário, entre rio. Entre todas as vantagens na adequação elas, a de tradutora, cronista, romancista e de um texto é importante que os leitores co- dramaturga. nheçam a narrativa no seu contexto amplo. As reflexões elucidadas, dessa forma, A arte de adaptar, por não ser uma tarefa de mostraram que a influência da autora no fácil execução, merece toda a nossa admira- cenário literário brasileiro com sua estreia ção e, nesse sentido, o autor destacado, no e notoriedade na geração de 1930, de certa excerto a seguir, evidencia um pouco de sua maneira, preparou o acolhimento para que trajetória com o trabalho de adaptação para outras escritoras pudessem fazer ecoar a voz os quadrinhos. feminina na singeleza das palavras que além de influenciar em parte características na es- Francisco José de Souto Leite, o Shiko, crita despojada, seca, direta, sutil, expressiva nasceu em Patos, no sertão paraibano, onde viveu até os 20 anos. Mudou-se

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para a capital, João Pessoa, mas reside, A adaptação na vertente de uma obra temporariamente, na Itália. Começou literária para as histórias em quadrinhos fa- sua carreira com os quadrinhos: desde cilita o acesso aos clássicos, o que significa, 1997 desenha e publica o Marginal-zine, em parte, a utilização de outras referências, com frequentes adaptações de obras como das ilustrações, por exemplo. Diante de escritores como , Augusto dos Anjos, Eduardo Galeano disso, adaptar surge como sinônimo de uma e Xico Sá, entre outros. (LEITE, 2013, nova ambientação para as personagens, vis- p. 82) to que viabiliza tanto a discussão quanto a compreensão do enredo. É por isso que a A singularidade no processo de adapta- adaptação na literatura a “figura do leitor ção literária de modo que desperte a vontade apresenta-se mais determinante ainda mais de conhecimento da obra, mantém estreita para a realização do processo de criação, uma relação com a utilização das ilustrações. Estas vez que a intenção é atingir um público com precisam, de fato, ser atraentes em confor- um perfil bastante delimitado e é essa repre- midade com o enredo do clássico adaptado. sentação que orienta a reescrita de uma obra” O ato de ilustrar cumpre a função de atingir (CARVALHO, 2006, p. 17). públicos específicos, além de auxiliar no en- A relevância na adaptação literária está tendimento da narrativa, a ação ilustrativa em associar o texto às imagens e isso possibi- possibilita a reflexão de forma ampliada para lita ao leitor dois tipos de leitura: a textual e a interiorizar o que está sendo lido, bem como imagética. Essa relação no contexto da obra permitir a inventividade autoral. diminui de maneira significativa o tempo de As ilustrações na perspectiva da adap- realização da leitura e, projetar um clássico tação devem contribuir com a revelação da para as histórias em quadrinhos permite aos compreensão textual, porque se constituem leitores uma afinidade com o texto e tanto como fontes inesgotáveis de informação a narrativa literária quanto a história em acerca da sociedade, da cultura e coopera na quadrinhos são artes eficazes e capazes de ampliação de saberes. Ilustrar os aconteci- representação de momentos sociais e histó- mentos de um clássico literário é autorizar o ricos nos quais foram produzidas. mergulho do leitor nas particularidades in- O processo de adaptação de uma obra seridas no enredo e na narratividade. Diante na perspectiva dos quadrinhos não objetiva disso, compete-se ao ilustrador/adaptador, a substituição da leitura da narrativa ori- o objetivo de mediar e, ao mesmo tempo, de ginal, representa apenas outras formas de “reorganização do que incluiria, inicialmen- acesso ao conhecimento do clássico. As HQs te, autor, obra e leitor para um novo formato representam, nesse sentido, vias de acessi- através do adaptador; a história se reconstrói bilidade ao texto integral, entre outras van- para incluir novos elementos. Remodela-se tagens do hipergênero histórias em quadri- para voltar ao ciclo de autor, obra e leitor” nhos apresentam excelência alternativa às (VIEIRA, 2010, p. 29). informações destacadas na obra primária.

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Do mesmo modo, a quadrinização do foco adaptador/ilustrador divide a primeira cena narrativo de uma obra é uma proposta que em cinco requadros, apresenta as caracterís- merece atenção, desde que se almeje o aces- ticas a partir dos detalhes que permitem ao so e o direcionamento ao conhecimento da leitor a compreensão do contexto de produ- integralidade textual. ção do clássico.

A narrativa das HQs é apre- Imagem 2: adaptação inicial de o quinze à luz das hqs sentada em uma sequência que às vezes se alterna entre a linguagem verbal escrita e a não verbal, os elementos gráficos. A característica vi- sual do enredo é desenvolvi- da a partir dos elementos que compõem essas histórias, tais como, a posição dos balões, as expressões das personagens, a utilização das onomatopeias, Fonte: Leite (2013) etc. (SOUSA, 2015, p. 964)

É preciso correlacionar o texto com as Os elementos gráficos dialogam com imagens que o ilustrador de conhecimento a linguagem verbal destacada nos balões, amplo atribuiu à obra. Uma adaptação con- porém, outra característica que desperta a siderada de qualidade é capaz de manter um atenção é a expressividade das personagens diálogo entre o texto e os elementos gráficos, por meio dos traços que destacam os dese- que vai desde a organização dos requadros jos emitidos no foco narrativo. O principal ou vinhetas ao formato dos balões, das nuan- artifício que toma a dimensionalidade da ces das cores utilizadas na caracterização das cena e mostrada no hipergênero em pauta é personagens e no enriquecimento do texto a religiosidade, além disso, outros detalhes, destinado à receptividade maior do público por exemplo, a mão calejada, rememora e apetecido. Dessa forma, os “quadrinhos não remonta a luta do sertanejo no contexto da podem ser vistos pela escola como uma espé- obra. A cena retratada é simples, porém, inci- cie de panaceia que atende a todo e qualquer siva ao retratar a natureza temática e compo- objetivo educacional” (VERGUEIRO, 2010, p. sicional que envolve o leitor, despertando-lhe 27), mas como alternativa de acessibilidade para o conhecimento integral da adaptação ao desenvolvimento da habilidade leitora. e, adaptar, nesse sentido, é uma vertente da Os elementos utilizados na produção tradução. das histórias em quadrinhos e elucidados por As adaptações de uma narrativa que Sousa (2015) podem ser observados na página acompanha gerações no entendimento do inicial da obra O Quinze, de Rachel de Queiroz, contexto social em que a autora se debruçou na imagem abaixo. Nela é perceptível que o

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 277-291, jul/dez. 2017 286 Disponível em: Um estudo enunciativo de Rachel de Queiroz à luz do hipergênero histórias em quadrinhos como é o caso de O Quinze traz na perspec- onomatopeias, das interjeições, do jogo de tiva das HQs a funcionalidade que o enredo cores que cria uma atmosfera entre as perso- rebusca do profissional que se submete à arte nagens da narrativa. É hipergênero também de adaptar. Ele se encontra em meio aos de- porque aproxima as linguagens dos diferen- safios de agregar valores estéticos ao desen- tes leitores em estágios diversificados, além volvimento do foco narrativo, colabora com de propiciar leituras e análises semióticas de a acessibilidade à leitura, desperta e amplia contextualização da narrativa. o desejo de tornar conhecíveis outras obras. A adaptação do clássico, doravante, apresentada mostra-se bem-feita, pois, cor- Assim, as histórias em quadrinhos são relaciona texto e imagens, além disso, uti- recursos visuais e gráficos que permi- tem aos leitores decodificarem a men- liza as nuances das cores que reproduzem sagem por meio da sequência narrativa um mosaico no contexto da obra de Rachel criada pela imagem (leitura imagética) de Queiroz. Ainda assim, há que se destacar e pelo texto (produção escrita). Cabe, a forma como o autor reorganiza os requa- ainda, pontuar que uma das principais dros e a disposição dos balões, ao passo que, características das HQs é o predomí- a riqueza de detalhes na expressividade das nio da imagem sobre as palavras; em personagens agrega características à arte de alguns casos essas figuras conseguem adaptar. inferir ao leitor os pressupostos da O processo de adaptação é significativo, temática evidenciada, em outros, é necessária a junção entre imagem e porque permite a reescrita da obra, manten- palavra (texto) e, neste caso, o uso do do as inferências e as interpretações que di- texto é de fato uma referência à leitura. recionam o foco narrativo, pois, a principal (SOUSA, 2015, p. 967) função reprodutiva de um texto para os qua- drinhos está em não omitir as ideias princi- O conhecimento de um clássico consa- pais do clássico. grado no contexto da adaptação propõe ao A escolha da versão em HQs justifica- leitor a realização interpretativa dos fatos -se pela representação que Rachel de Queiroz narrados, correlacionando-os com a supre- atribui à geração de 1930 na efetivação do macia das imagens. A visualidade de uma Modernismo por apresentar uma linguagem adaptação mantém relação dialógica com o de fácil compreensão e manter relação que vai texto que orienta o desenvolvimento do en- desde a tradição à inovação. Tradição porque redo, porque apresenta de maneira receptiva a obra representou um marco na nossa litera- o conjunto da obra inferindo às ilustrações tura e, sobretudo pelo destaque feminino em a função de auxiliar o leitor na compreensão um contexto visitado, dominado pela produ- do texto. ção e presença masculina. Inovação porque As histórias em quadrinhos são exem- permite que as novas gerações conheçam por plos de hipergênero porque correlacionam meio da organização adaptável do hipergêne- outros recursos gráficos além da escrita, ro histórias em quadrinhos o diálogo criado como o uso dos balões, das vinhetas, das

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pelo processo, a partir do despontar da voz um enredo, uma sequência narrativa feminina no contexto literário responsável que deve ser semelhante ao original, por projetar novos horizontes para que outras a fim de que o leitor reconheça visu- escritoras tivessem espaço para se firmarem almente a relação com obra literária. (NASCIMENTO, 2014, p. 250) no contexto literário brasileiro. A sensibilidade do ilustrador é co- Imagem 3: Adaptação de o quinze à luz das hqs locada em jogo na transposição de uma nova roupagem ao clássico adaptado sem perder o foco narrativo, tampou- co omitir as características que subsi- diaram a produção do texto original. Uma adaptação de qualidade é a que consegue manter um equilíbrio entre duas vertentes diferentes: a primeira refere-se ao texto direcionador que Fonte: Leite (2013) será o ponto de partida para se pensar de que forma o enredo se organiza na efetivação adaptativa das HQs; a segunda As adaptações de quaisquer textos na corrobora na disposição das imagens e como projeção das HQs assumem características essas mantêm relação dialógica com a nar- lúdicas, por isso, precisam estar em prol da rativa construída no clássico, sobretudo no acessibilidade à leitura e das ações comunica- emprego da linguagem. tivas. Desse modo, o principal desafio dessa Compreendendo as histórias em qua- arte metodológica é correlacionar a narrativa drinhos nessa concepção, entendemos com as imagens que não são próprias da obra também elas são vistas e utilizadas como máster e permitir que a atmosfera imagéti- recursos “pedagógicos acessíveis à promo- ca criada pelo adaptador/artista/ilustrador ção de práticas de leitura e escrita mediante cumpra a função de enriquecer o desenvol- as intervenções docentes no fazer pedagó- vimento da obra em uma perspectiva inova- gico, além disso, desperta a criatividade, a dora. A semiótica, neste caso, traduz-se por sociabilidade e instrumentaliza os alunos a meio das visualidades contidas na adaptação compreenderem as mudanças nos diversos singular em tornar conhecível e acessível o contextos” (SOUSA, 2016b, p. 147). clássico ilustrado. Tais qualidades podem ser observadas A adaptação para os quadrinhos re- na adaptação do clássico, corpus deste estu- quer prática e técnica, pois a literatura do, conforme mostrados, anteriormente. em quadrinhos procura transformar Houve uma preocupação por parte do artista as palavras em imagens. Essa tarefa em construir uma linearidade das imagens não é mecânica e requer criativida- com o texto norteador, cujo objetivo principal de do adaptador, porque deve haver

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 277-291, jul/dez. 2017 288 Disponível em: Um estudo enunciativo de Rachel de Queiroz à luz do hipergênero histórias em quadrinhos dessas visualidades enriquece a narrativa e espaço podendo ser ouvidas, lidas, critica- demonstra ao leitor outras possíveis formas das e apreciadas pela classe de intelectuais entendíveis da obra até porque o adaptador da época. reproduz, reformula e recria o texto alocan- As manifestações contrárias ocorridas do-o em outro gênero. na Semana de Arte Moderna, de certo modo, Há com isso a representatividade de um centralizaram as atenções ao movimento, texto em outro texto. As linguagens comple- bem como serviram de estopim às ideias ino- mentam-se no processo de reorganização vadoras tanto na forma de escrever quanto dos acontecimentos apresentados para os na recepção de outras linguagens artísticas, novos leitores de forma atrativa e prazero- como as obras plásticas da precursora Anita sa, embora isso não desvincule a necessidade Malfatti que mostraram e propuseram ao de conhecimento do clássico na sua integra- movimento de artistas a vontade de renova- lidade. De tal modo, a adaptação necessita, ção no fazer literário no país. continuamente de uma ideia-gênese e pro- O romance no período modernista teve piciadora na elaboração da arte de revisitar como mote a preocupação com as questões da narrativa ilustrada e adaptada. sociais, ao passo que os autores entendiam Assim, é preciso pensar de que formas que a literatura deveria estar a serviço do podem ser reinventadas as finalidades empre- ser humano nas maneiras de transpor as gadas nos clássicos e reorganizadas pelos ilus- mazelas para o campo literário de modo que tradores que também assumem a função de a produção fosse, ao mesmo tempo, poética, leitor e têm a incumbência de direcionar novos de cunho realista, mas sem deixar de lado sua leitores na compreensão e conhecimento da função estética. obra a partir de seu contexto original. Adaptar Diante desses pressupostos, o é, pois, refazer uma releitura considerando a Modernismo dividiu-se em fases tentan- essência utilizada pelo autor da Obra-base. do categorizar um grupo de escritores que apresentavam semelhanças na produção de

Considerações finais seus clássicos. É exatamente na chamada “Geração de 30” que se alardeava a função de Os desafios encontrados pelas escrito- denunciar as mazelas que o país se encon- ras na efetivação do Modernismo Brasileiro trava (e por que não dizer, encontra-se?), em foram muitos. Adentrar um contexto que que Rachel de Queiroz soube, perfeitamente, até então era primazia da produção literária transpor isso para o contexto de seu clássico masculina constituiu-se como processo de por apresentar uma escrita dinâmica e carre- resistência, reconhecimento e inclusão. Com gada de significações e intenções: surgia com as inovações preconizadas pelo movimento e no romance de Rachel um espaço promissor modernista, posteriormente, pela receptivi- para que outras vozes femininas ecoassem dade desse período literário às vozes femi- nacionalmente. ninas, permitiu que as mulheres ganhassem

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A influência de Rachel de Queiroz é Referências notória e digna de reconhecimento, porque CAMINHA, Edmílson. Rachel de Queiroz: simbolizou e, ainda, representa um dos prin- a senhora do não me deixes. Rio de Janeiro: cipais expoentes na produção do romance Academia Brasileira de Letras, 2010. brasileiro, por isso foi digna de prestígio o CARVALHO, Diógenes Buenos Aires. A que a condecorou com a receptividade na adaptação literária para crianças e jovens: Academia Brasileira de Letras. Suas obras, Robinson Crusoé no Brasil. (Tese de doutorado). aos poucos, vão sendo conhecidas, elogiadas Porto Alegre: PUCRS, 2006. Disponível em: e adaptadas para outros gêneros como é o . Acesso em: 28 jun. 2016. nhos. E se toda forma de leitura é bem-vinda LEITE, Francisco José de Souto. Adaptação de na escola e orientada com fins específicos é O Quinze - Rachel de Queiroz: roteiro e arte preciso também reconhecer que as adapta- Shiko. São Paulo: Ática, 2013. ções revelam outras maneiras de enxergar e NASCIMENTO, Gabriela Cristina Teixeira apreciar um mesmo texto com seu processo Netto. Clássicos da literatura em quadrinhos: de imbricação nas múltiplas linguagens. uma análise do ponto de vista da tradução Ao reverberar que o estudo apresentado intersemiótica. In: Cultura & Tradução. João se inseriu na lógica da enunciação, objetivou- Pessoa, v. 3, n. 1, p. 247-259, 2014. Disponível em: . Acesso a expressa necessidade que há muito tempo em: 13 jul. 2016. já era carente na literatura brasileira: liber- PAGANUCCI, Jeanne Cristina Barbosa; dade de expressão e oportunidade. E à luz do FREITAS, Zilda Oliveira. Rachel de Queiroz hipergênero histórias em quadrinhos, reite- e autoria feminina: leitura literária e leitura rou-se o enaltecimento com a aproximação cultural. In: IV SEPEXLE – Seminário de entre o objeto da enunciação, o texto, neste Pesquisa e Extensão em Letras. Universidade caso, a obra O Quinze, na intenção do enun- Estadual de Santa Cruz, Campus Soane Nazaré ciador com o enunciatário. de Andrade, 21 a 23 de maio de 2012. Disponível Destarte, o processo de adaptação e em: . Acesso é relevante desde que induza aos leitores o em: 25 jun. 2016. desejo de conhecer também a obra original, SCHLECHT, Cristiane de Vasconcellos. Olhares a semente que gerou a árvore e abanou os divergentes: Rachel de Queiroz e Graciliano muitos frutos tanto no enriquecimento das Ramos. (Dissertação de Mestrado). Campinas, SP: Instituto de Estudos da Linguagem/ aprendizagens quanto na diversificação do Universidade Estadual de Campinas, 2010. ser mediador e leitor, pois a síntese do movi- Disponível em: . insere-se na ótica da inclusão, ampliação dos Acesso em: 10 mai. 2015. olhares e na abertura de horizontes reflexivos

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SOUSA, Ivan Vale de. As histórias em quadrinhos no ensino fundamental: uma abordagem reflexivo-prática no resgate de valores. In: Congresso Internacional da Abralin. Anais do IX Congresso Internacional da Abralin. Belém: ABRALIN: PPGL. UFPA, 2015. Disponível em . Acesso em: 15 mar. 2016. ______. Mediação pedagógica e concepções de leitura. In: Ribanceira – Revista do Curso de Letras da UEPA. Belém. Vol. VII, num. 2, jul/ dez., 2016a. Disponível em . Acesso em: 08 abr. 2017. ______. Histórias em quadrinhos e mediação pedagógica no resgate de valores éticos no ensino básico. In: SOUSA, Ivan Vale de. (Org.). Compilação Linguística. Curitiba: PR: Atena, 2016b. VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2010. VIEIRA, Gabriela de Oliveira. Adaptação para novos leitores: como a literatura clássica adaptada fornecida às escolas do ensino público e utilizada pelos professores no processo de ensino estimula a leitura de obras originais. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação/ Departamento de Ciências da Informação, 2010. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2016.

Recebido para publicação em 10 abr. 2017. Aceito para publicação em 30 out. 2017.

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Doi: 10.5212/Uniletras.v.39i2.0011

Dona de casa ou dona de si? Um estudo sobre a representação feminina em produtos de limpeza e alimentícios

Housewife? Or owner of you? A study on female representation in cleaning and food products

Ricardo Santos David*

Resumo: Este trabalho visa discutir a imagem do feminino, com base no percurso da mulher e suas conquistas na sociedade e no mercado de trabalho. Assim sendo, nosso objetivo principal é compreender o papel da mulher na publicidade, ou seja, a construção da identidade feminina em propagandas antigas e atuais, em anúncios publicitários de produtos de limpeza. Para análise, portanto, selecionamos sete propagandas impressas desde os anos 50 até os anos 2000, que utilizam a imagem da mulher para a divulgação comercial dos produtos de limpeza. A investigação é baseada nos pressupostos teóricos de Priore (2000), Strey (1997) e Confortin (2003) para o levantamento do percurso histórico da mulher, suas conquistas e evoluções na sociedade, no mercado de trabalho, em casa e, principalmente, no universo feminino. Para as análises discursivas, utilizamos a perspectiva do Círculo de Mikhail Bakhtin sobre dialogismo e gêneros do discurso, em particular, a concepção de estilo. No que se refere à publicidade e propaganda, baseamo-nos nos estudos de Iasbeck (2002) sobre o slogan e de Baudrillard (2002) que vincula sociologia à semiologia. Desse modo, buscamos compreender a finalidade da utilização da imagem da mulher veiculada nas propagandas de limpeza, assim como os diálogos presentes e as diferentes vozes inseridas numa análise de propagandas que apresentam temáticas reiteradas ou diversas a cada década. Palavras-Chave: Identidade feminina, Dialogismo, Anúncio publicitário, Gêneros publicitários, Figura feminina, Produtos de limpeza e alimentícios, Ethos.

Abstract: The aim of this research is to discuss the female image based on the path of woman and their achievements in society and the labor market. Hence, our main objective is to comprehend the role of woman in publicity genre, in other words, the construction of female identity in former and current advertisements for cleaning

* Pesquisador, Professor, Orientador, Coordenador Ciências da Língua (gem). Pós - Doutorado em Educação: Psica- nálise. Doutor e Mestre em Comunicação e Educação. Uniatlántico. IESLA. FCU - EUA. UCAM. UNOESTE. Revisor de Textos. Analista de Comunicação e Redator. Email: [email protected]

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products. For analysis, therefore, we selected seven print advertisements from the50s to the 2000s, that use the image of woman for commercial dissemination of cleaning products. The research is based on theoretical assumptions of Priore (2000), Strey (1997) and Confortin (2003) who support the historical path of woman, their achievements and developments in society, in the labor market, at home and mainly, in the female universe. For the discursive analysis, we use the reflections of Bakhtin’s Circle on dialogism and discourse genres, specially, the conception of style. In relation to publicity and advertising, our research was based on the studies of Iasbeck (2002) about the slogan and of Baudrillard (2002) who links sociology to semiology. Therefore, we seek to comprehend the purpose of use of the image of woman in cleaning products advertisements, as well as the dialogues and the different voices inserted in the analysis of advertisements that present thematic reiterated or diverse themes in each decade. Keywords: Female identity, Dialogism, Advertisements, Publicity genres, Female figure, Cleaning products and foods, Ethos.

Introdução: é a partir desse momento, que as primeiras agências de propagandas foram instaladas Na sociedade, desde os tempos mais no Brasil (CONFORTIN, 2003). Houve uma antigos até a atualidade, existiram grande grande repercussão nesse período, pois diferenças apresentadas entre o homem e grande parte das propagandas tratavam da a mulher. O termo “sexo” era utilizado para imagem feminina ou se dirigia como foco distinguir o homem da mulher, mas com o principal. Os anúncios buscavam introduzir passar do tempo essa atribuição foi dada ao hábitos da higiene, saúde, beleza e cuidados gênero que tem como função tratar a identi- com o lar, sendo voltados para o público femi- dade atribuída a uma pessoa de acordo com nino com o intuito de tratar a modernidade seu caráter biológico, sendo o gênero femini- e praticidade, como propagandas comerciais no para a mulher e masculino para o homem. de cosméticos, cigarros, produtos de limpe- A mulher, como já apresentamos anterior- zas e eletrodomésticos. mente, sempre foi considerada um ser me- Durante o processo da “criação da iden- nos privilegiado que o homem, teve menos tidade feminina”, a publicidade teve e tem um direitos e até mesmo foi tratada como um ser papel fundamental, pois apresentou valores, inferior em relação ao homem, ou seja, deve- mudanças e desenvolvimento da imagem fe- ria ser completamente submissa e destinada minina desde tempos antigos até a atualidade. somente ao lar com o papel de esposa/mãe. Com a propaganda, a mulher passou a Entretanto, com passar do tempo, a fi- ser público-alvo de consumo, devido às novas gura feminina ganhou espaço e foi se modi- tecnologias que eram oferecidas e apresen- ficando pouco a pouco. tadas, facilitando, assim, sua vida por meio A partir dos anos 50, iniciaram-se os dos produtos oferecidos e tornando-a uma primeiros movimentos feministas com a pro- mulher moderna da época. Tudo começou pagação da mulher no mercado de trabalho e,

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 293-309, jul/dez. 2017 294 Disponível em: Dona de casa ou dona de si? Um estudo sobre a representação feminina em produtos de limpeza e alimentícios quando o ferro a vapor passou a ser substi- buscavam mostrar tudo o que as mulheres tuído pelo ferro elétrico, o fogão preparado desejavam ou que faltava em sua vida e por a lenha pelo fogão a gás, a batedeira, a ence- meio do poder de persuasão atingiam o pú- radeira, o liquidificador, o tanquinho, seca- blico com grande facilidade. Esses discursos dor de cabelos, aspirador de pó, panelas de eram apresentados de forma comovente ou pressão e os produtos de embalagens plásti- direta, apresentando ao consumidor o por- cas trouxeram à vida das donas de casa um quê daquele determinado produto não poder grande conforto e praticidade. Por meio da fica fora de sua vida: inserção de novos produtos e da tecnologia, A vida da mulher se transformou muito as mulheres passaram a ganhar mais tempo de quarenta anos para cá. Se na década e espaço no mundo, pois foi nessa época que de 60 ela cuidava dos filhos e da casa, a mulher conquistou mais espaço no merca- hoje faz isso e muito mais. Trabalha ga- do de trabalho, deixando, assim, de ser ape- nha seu próprio dinheiro, tem poder de nas a mulher dona de casa e se tornando ao consumo para comprar sua casa, seu mesmo tempo, a dona de casa, mãe, mulher carro... Porém, ainda existe uma cul- moderna, trabalhadora. Outros produtos que tura machista no Brasil. A publicidade tiveram papel fundamental no crescimento reproduz essa cultura frequentemente (GARBOGGINISIQUEIRA, 1995, p. 141). da identidade feminina foram os de limpeza. Com o surgimento do sabão em pó, deter- Por volta da década de 60, quando sur- gente, amaciante e esponjas de aço, as donas giu a revista Claudia, a mulher brasileira de casa se sentiram muito mais satisfeitas também começou a demonstrar os seus pri- com os resultados, pois agradavam a todos meiros passos de mudanças. A própria revista os membros da família com a casa arruma- promovia debates ao tratar de temas polêmi- da e roupas perfumadas, porém com um cos como divórcio, pílulas anticoncepcionais, diferencial, suas atividades eram realizadas sexo, aborto, crescimento profissional, dicas com mais facilidades e em menor tempo de de maquiagem, moda e emagrecimento entre produção. Além da limpeza e do trabalho, a outros temas considerados como modernos e mulher passou a se preocupar mais com a inovadores. A meta da revista era despertar estética, ou melhor, dizendo, a mulher pas- desejo por transformações que levassem à sou a ter tempo para se preocupar com a apa- mulher realizadora e ativa. rência e também com o vestuário. Produtos Porém muitas vezes os artigos destas como cremes, pó de arroz, batom, blush e publicações eram escritos por homens, já rímel tornaram-se fundamentais para a va- que as mulheres ainda não estavam inseri- lorização da imagem feminina e também das no mercado de trabalho. Por isso, os te- passaram a serem objetos de consumo in- mas abordados eram quase sempre machis- dispensáveis. Todos esses tipos de produtos tas ou voltados para a felicidade conjugal. foram inseridos no cotidiano feminino, por As revistas femininas de 1950 e 1960 expressa- meio da publicidade, pois as propagandas vam pontos de vista masculinos sobre como

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as mulheres deveriam agir. As publicações fe- o mercado de trabalho, aumentando, assim, mininas brasileiras abordavam o amor entre a sua participação no poder econômico. As os casais e as obrigações das mulheres para empresas começaram a focar-se no papel que manter o casamento. a mulher tinha na sociedade e a investir em publicidade que se adequasse e encaixasse ao perfil feminino. Os anúncios enfatizavam essa Veja abaixo exemplos de frases daquela época publicados na revista: função como benéfica e como uma conquista feminina, pois mostravam a imagem da mu- “A mulher deve estar ciente de que di- lher feliz ao manusear um eletrodoméstico ou ficilmente um homem pode perdoar uma um produto de limpeza. Em outro, exibiam a mulher por não ter resistido às experiências mulher perfeita ao utilizar o cosmético pro- pré-nupciais, mostrando que era perfeita posto pela propaganda, configurando a ima- e única, exatamente como ele a idealizara. gem de uma mulher independente e mais (Revista Claudia, 1962). feminina (CONFORTIN, 2003). Ainda assim a busca pela liberdade, desenvolvimento profissional e intelectual eflexões sobre êneros do iscurso também começou por meio de movimentos R G D na perspectiva bakhtiniana feministas do mundo ocidental. A partir des- se momento, as mulheres emanciparam-se Os gêneros, de modo geral, contribuem e conquistaram maior liberdade de deci- para estabilizar, classificar e ordenar as ati- são, maior espaço, passaram a se preocupar vidades comunicativas pertencentes ao dia a mais com a aparência e com o bem-estar de dia das pessoas são enunciados que podem si próprias, sem deixar de lado seus afazeres modificar com o tempo ou até mesmo de- e deveres. Assim, construiu-se, aos poucos a saparecerem em função das necessidades e imagem dessa mulher mais independente e das diferentes esferas da utilização da língua. retratada na publicidade. Segundo (BAKHTIN, 2003, p. 262), “cada enun- Como o passar do tempo, a mulher rea- ciado particular é individual, mas cada campo de lizou outra conquista, passou a ser símbolo utilização da língua elabora seus tipos relativamen- representativo de marketing, trabalhando te estáveis de enunciados, os quais denominamos em propagandas e anúncios. gêneros do discurso”. Nesse contexto, os gêneros As propagandas, muitas vezes, cons- do discurso são infinitos, pois a variedade da truíram a imagem feminina, como a mulher atividade humana é inesgotável, e cada esfera esposa, mãe, dona de casa (doméstica) e tra- dessa atividade comporta um repertório de balhadora, pois passou a ter o direito de tra- gêneros do discurso que vai diferenciando-se balhar e obter seu próprio salário, ou com a e ampliando-se, à medida que a própria esfera imagem da mulher jovem, solteira e bela que se desenvolve e fica mais complexa. não era apenas considerada como um padrão As propagandas de produtos de limpe- de beleza e também como ícone importante za, na maioria das vezes, colocou a mulher que cativava grande parte do olhar masculino. como público-alvo principal. Sua participa- Como já mencionamos, a mulher entrou para ção era e ainda é de grande importância para

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 293-309, jul/dez. 2017 296 Disponível em: Dona de casa ou dona de si? Um estudo sobre a representação feminina em produtos de limpeza e alimentícios esse tipo de publicidade, pois é a responsável dogmas, era marginalizada, discriminada e pelas tarefas de limpeza e de manutenção da vítima de preconceitos. Desde a infância, as casa, e que ainda está, em grande proporção, mulheres eram preparadas para o casamen- a cargo delas, tornando, assim, símbolo de to, aprendendo muito cedo a cozinhar, cos- representação para esse tipo de mercado e turar, limpar e a ser uma boa esposa. A mãe comércio. Mesmo na atualidade, em que, em era responsável por ensinar e “moldar” sua(s) alguns casos, as despesas e as tarefas domi- filha(s), de acordo com os padrões exigidos ciliares são divididas entre marido e esposa, e instituídos, além de “vigiá-las” para manter a mulher ainda é considerada fundamental e a virgindade que, na época, era considerada até mesmo insubstituível, para lavar, passar, como um status da noiva. cozinhar, limpar e pela organização geral. Era esse o tipo de perfil feminino retra- Durante muito tempo, a mulher passou tado na publicidade da década de 50. A ima- a ser objeto de posse do homem e necessi- gem apresentada era a figura feminina que tava cumprir os padrões exigidos da época, se dedicava apenas aos cuidados da casa e para ser considerada a esposa ideal, tendo família, que não tinha muitas vaidades com como função restrita ao mundo doméstico, a aparência física, pois estava focada apenas ou seja, era submissa ao seu marido e filhos. nos membros familiares. Quando alguma mulher quebrava esses

Fonte: https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-748655081-propaganda-antiga-sabo-em-po-omo- 1962-detergente-roupas-1-_JM

NOVO OMO é diferente – E o mais aperfeiçoado que existe! 03 bons punhados formam um molho de espuma abundante, que lava montanhas de roupas e dá brilho à brancura! Lave com NOVO OMO – para maior limpeza economia! ↕“Brilhe como dona-de-casa”! Modernize econo- micamente, seu sistema de lavar roupas. Mude hoje para o NOVO OMO, o moderno detergente!

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O produto apresentado na propaganda representando a voz da mulher consumidora foi um dos sabões em pó a chegar ao Brasil, a do produto, a própria dona de casa questio- primeira marca nacional de sabão em pó que nando a possibilidade de se lavar sem utilizar também era fabricado pela Unilever, a atual sabão. Em sequência, há a resposta do enun- fabricante dos produtos OMO. ciador da propaganda: “NOVO OMO! Lava Segundo o Unilever (2014, online), as roupas no mesmo molho e dá brilho à brancura”. iniciais do sabão em pó OMO significa: “Old Evidencia-se, desse modo, a atitude res- Mother Owl”, conhecido como Velha Mãe ponsiva ativa concebida por Bakhtin, pois, Coruja, termo utilizado para representar e como todo enunciado requer uma resposta. assimilar as qualidades do animal ao zelo e Nesse caso, há um possível questionamento ao carinho maternal. A ave chegou a ser uti- de uma consumidora e, em sequência, a res- lizada como símbolo de representação do posta do enunciador desse discurso, deno- produto, na Inglaterra, no início do século tando um diálogo. Por meio desses enuncia- 20 chegou a ser estampada em diversas em- dos, antecipa-se a possível reação da mulher, balagens, porém essa versão nunca chegou ou seja, sua surpresa diante da constatação ao Brasil. dos efeitos do produto veiculado. Com a chegada da marca OMO no país, O estilo considerado como escolhas grande parte das donas de casa passaram a linguísticas no enunciado: “NOVO OMO é di- utilizá-lo por oferecer em uma única emba- ferente e o mais aperfeiçoado que existe! 03 bons lagem um produto 04 em 01, que lava, alveja, punhados formam um molho de espuma abun- quara e dá brilho ao mesmo tempo. O produto dante, que lava montanhas de roupas e dá brilho multi-funções ficou muito conhecido, por ob- à brancura!” que significa que não é comum, ter sua cor azul tanto no produto quanto nas que é extraordinário e que realiza milagres. embalagens. Sua difusão foi muito grande no Enuncia-se, portanto, que OMO é capaz de país, ao facilitar a vida das brasileiras que, limpar como se fosse um milagre, pelo fato de com o seu surgimento, deixaram de usar o facilitar todo o procedimento de lavar roupas, conhecido anil, usado para alvejar as roupas. pois anteriormente, era possível somente por A cor azul utilizada tanto no produto, quanto meio do sabão comum (em pedaços, de pedra). nas embalagens, é considerada como marca Afirma-se ainda que OMO seja melhor registrada e como estratégia de marketing, que os demais, tornando estes antiquados, pois sempre que se pensa em sabão azul logo ou seja, ultrapassados. Esse discurso revela vem à imagem do produto OMO. a necessidade de convencer o consumidor, No anúncio, há uma frase de destaque mostrando-lhe características inovadoras de levando o leitor a pensar nessa hipótese de um produto recente no mercado, reafirman- lavar roupas sem sabão, como sendo uma do, assim, a concepção bakhtiniana de que o ideia quase impossível. Pela concepção dia- enunciado está sempre situado em um deter- lógica da linguagem, é possível afirmar que minado contexto histórico-social, atendendo há uma voz feminina presente, no enunciado às necessidades enunciativas do momento.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 293-309, jul/dez. 2017 298 Disponível em: Dona de casa ou dona de si? Um estudo sobre a representação feminina em produtos de limpeza e alimentícios

De outro, OMO que também é um sa- liquidificador, o tanquinho, secador de cabe- bão, mas diferente, pois, por meio das esco- los, aspirador de pó, panelas de pressão e os lhas lexicais tais como “diferente, abundante, produtos de embalagens plásticas trouxeram e dá brilho à brancura”, sobrepõe suas carac- à vida das donas de casa um grande conforto terísticas, alcançando as concepções de um e praticidade. produto superior, avançado, o “milagre azul”. Podemos considerar que a cor azul do Há também as afirmações de que o produto OMO simboliza a água, que é transparente, contém todos os valores positivos agregados. límpida e pura, sendo capaz de limpar todos O enunciatário é instado durante todo os resíduos e impurezas, deixando sempre o anúncio, por meio do emprego do impe- tudo mais claro e harmonioso. O emprego rativo “Brilhe”, juntamente com os verbos do imperativo em “Brilhe” tem a função de “modernize” e “lave”, conjugados no modo sugerir o uso do novo “produto milagroso”, imperativo, evidenciando a intenção de con- enquanto o verbo “modernizar” evidencia que vite, desafio ou de sugerir que a prova seja quem utilizar o produto, torna-se uma dona feita e que o consumidor possa visualizar de casa atualizada, avançada. No anúncio, há essa limpeza por meio desse novo produto. também a imagem destacada da embalagem, Os anúncios buscavam introduzir hábitos pois a propaganda está em preto e branco, da higiene, saúde, beleza e cuidados com o e apenas a caixa está na cor azul, destacan- lar, sendo voltados para o público feminino do a simbologia cromática da empresa e do com o intuito de tratar a modernidade e pra- produto. ticidade, como propagandas comerciais de Podemos considerar que o anúncio se cosméticos, cigarros, produtos de limpezas mantém nas cores preta e branca, como co- e eletrodomésticos. res prevalentes não por ser uma propagan- Durante o processo da “criação da iden- da antiga, mas para reforçar a imagem do tidade feminina”, a publicidade teve e tem um produto, focalizando, desse modo, a clareza papel fundamental, pois apresentou valo- das roupas, deixando-as “mais limpas” e mais res, mudanças e desenvolvimento da ima- atraentes ao olhar do enunciatário. As cores gem feminina desde tempos antigos até a parecem mais escuras sobre o branco, mais atualidade. claras sobre o preto, pois o branco e os tons Com a propaganda, a mulher passou a claros intensificam as tonalidades que estão ser público-alvo de consumo, devido às novas sobre elas e o preto, enquanto os tons escu- tecnologias que eram oferecidas e apresenta- ros absorvem e reduzem a potência das cores das, facilitando, assim, sua vida por meio dos que são superpostas. A imagem da mulher, produtos oferecidos e tornando-a uma mu- dona de casa segurando “toalhas” brancas lher moderna da época. Tudo começou quan- toda contente e feliz, constrói a ideia de que do o ferro a vapor passou a ser substituído a utilização do produto garante a alegria nes- pelo ferro elétrico, o fogão preparado a lenha se afazer doméstico devido a seu resultado pelo fogão a gás, a batedeira, a enceradeira, o final, tornando este trabalho mais prazeroso.

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Ainda, a mulher que não sabia realizar Ela era ousada e insubmissa, questio- os afazeres domésticos e que não possuía nou o sistema imposto da época, pois a Igreja nenhum dote, não era digna de um bom ca- não concordava com o fato de estudar assun- samento ou respeito de marido, caso conse- tos que não fossem religiosos. guisse algum. Assim, é possível verificar, por meio das Percurso histórico da mulher ações dessa mulher, a busca pela liberdade Antigamente, as mulheres não tinham o e pela igualdade feminina. E, em especial direito de se expressar, eram submissas, no Brasil, no século XX, o direito ao voto foi deviam se casar, serem mães e dedicavam- alcançado pelas brasileiras em 1932, sendo -se totalmente ao lar. Essa vocação era um que as mulheres que lutavam pela igualdade, traço fundamental da feminilidade da época, conseguiram alcançá-la por volta dos anos era um processo de educação das mulheres. de 1979 e 1985. Na metade dos anos 80, no Desde a infância, a mulher era comandada campo político, surgiram vários grupos de e tinha seus atos decididos pelo pai, em se- mulheres trabalhadoras, organizações sin- guida pelo marido e, por fim, pelos filhos, dicais, associações feministas que, devido à tendo que, muitas vezes, suportar o descaso preocupação de melhoria das condições de da sociedade. Hábitos como aprender a co- vida, lutavam também pela divisão sexual do zinhar, lavar, passar, costurar, bordar, cons- trabalho. Com isso, conseguiram cargos que truir e preparar o enxoval, ouvir os sermões antes eram ocupados por homens, como nos do padre, acompanhar a mãe às compras, sindicatos, na política, nas associações etc. ao varejo e à missa eram muito comuns na No meio rural, as mulheres também lutaram construção educacional da mulher (PRIORE, por seus direitos, pois não havia uma divisão 2000). Ao se tornarem jovens, passavam a vi- entre as atividades do lar e do trabalho, além ver sob uma constante vigilância da família e, da educação dos filhos e a vida social. Ainda principalmente, da sociedade, pois era neces- nesse sentido, o pai ou o marido extrapola- sário manter os bons costumes para garantir va dentro do lar e se impunha, negando a uma boa imagem e também a ética e moral da participação das mulheres em decisões em família e da jovem. A evolução das mulheres qualquer ramo. aconteceu, por meio de muitas lutas em prol Entretanto, as mulheres frequentavam de direitos e ideais, sendo que, a partir do a Igreja Católica e, nela, era considerada século XVII, iniciaram os primeiros movi- como o mais importante meio de solidarie- mentos feministas. Um grande exemplo de dade, reagindo contra a injustiça social e rea- revolução da mulher é a Sóror Juana Inés de firmando as condições da mulher ser esposa, la Cruz y Arbaje (México, 1651 – 1695), que não mãe e do lar. Nesse contexto, determinados quis se submeter ao casamento e à materni- grupos de mulheres não se esqueceram de dade, pois gostaria de se dedicar aos estudos suas atividades, como também lutaram pela e, assim, conseguiu seu objetivo, destacando- solução dos problemas rurais, como o víncu- -se por seus próprios méritos de escritora. lo a terra, dando força aos produtores. Nos

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 293-309, jul/dez. 2017 300 Disponível em: Dona de casa ou dona de si? Um estudo sobre a representação feminina em produtos de limpeza e alimentícios anos 80, muitas mulheres tornaram-se sin- que a mulher era capaz de assumir respon- dicalistas ativas e reivindicaram pela saúde, sabilidades iguais as dele, por outro lado, a pela educação, pela melhoria dos serviços mulher deveria romper com os traços da sub- coletivos municipais, organizando debates, missão, que seria conquistada pelo espaço abaixo-assinados, encontros e manifesta- da igualdade. Mesmo com esses sindicatos, ções. Entraram para essa luta também as ainda havia o machismo praticado pelos professoras, enfermeiras, assistentes sociais homens, pois, no fundo, entendiam que as e médicas. Devido a esses movimentos, nos mulheres não tinham capacidade suficiente anos 80, começou-se a reformular a visão que para assumir os cargos relacionados à políti- se tinha da mulher por meio de discussões ca. Mesmo assim, as mulheres não se deixa- sobre as modificações culturais e jurídicas. ram intimidar e continuaram na batalha por Já as mulheres da zona urbana começaram as seus direitos. Quando as mulheres começa- reivindicações, (PRIORE, 2000) a partir dos ram a frequentar as escolas, a partir do ano anos 60, participando de vários movimen- de 1871, puderam ser professoras, pois antes tos existentes, como por exemplo, em 1968, somente os homens podiam estudar. Nos do “Movimento Nacional contra a Carestia”; em anos 80, muitas mulheres contribuíram nos 1970, do “Movimento de Luta por Creches”, sindicatos, dentre elas, as professoras aju- em 1975, criaram os “Grupos Feministas” e os daram nessa reformulação. Na Constituição “Centros de Mulheres”. Nesses grupos, questio- de 1988, surgiram vários direitos trabalhistas navam sobre os papéis das mulheres em seus para ambos os sexos. lares, mas nem sempre tratavam da discrimi- Além de ter ampliado o tempo de licença nação no mercado de trabalho. maternidade, introduziu-se a licença pater- Tiveram papéis importantes para a nidade, limites diferentes de idades para a redemocratização de códigos jurídicos e aposentadoria de ambos os sexos, direito à leis mais coerentes em relação à vida eco- mulher ser chefe de família, reciprocidade no nômica e social da mulher, além disso, lu- casamento e igualdade entre eles, além de a tavam contra a violência e a discriminação mulher ter o direito de registrar em seu nome feminina. Surgiu também o grupo chamado títulos de propriedades de terra. Também co- “Movimentos de Mulheres Trabalhadoras”, em meçaram a mostrar as discriminações que que se evidenciava a vontade de cuidar dos sofriam: os assédios sexuais nos locais de dois mundos: do trabalho e do lar. Essas tra- trabalho, o acesso aos cargos empregatícios balhadoras acreditavam que havia a necessi- não eram somente por ter baixa escolaridade dade de reformular o conceito de feminilida- ou não ter especialização adequada, as dife- de e, consequentemente, o da masculinidade, renças salariais marcantes entre os sexos, a combatendo o machismo. As sindicalistas menor participação feminina em atos públi- rurais também lutavam pela igualdade dos cos etc, todos por meio de dados estatísticos sexos. Portanto, o homem deveria modificar (PRIORE, 2000). sua concepção sobre o machismo e aceitar

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 293-309, jul/dez. 2017 Disponível em: 301 Ricardo Santos David

O gênero feminino nas propagandas A tríade retórica Na sociedade, desde os tempos mais antigos O processo argumentativo pressupõe até a atualidade, existiram grande diferenças uma organização de imagens mútuas que apresentadas entre o homem e a mulher. O vão sendo construídas ao longo de todo dis- termo “sexo” era utilizado para distinguir o curso entre locutor e alocutário. Verifica-se homem da mulher, mas com o passar do tem- na publicidade a construção dos efeitos de po essa atribuição foi dada ao gênero que tem sentido, proporcionando uma eficácia dis- como função tratar a identidade atribuída a cursiva a partir do funcionamento dos três uma pessoa de acordo com seu caráter bioló- elementos da retórica grega: O ethos, o páthos gico, sendo o gênero feminino para a mulher e o lógos. Assim, o ethos é o caráter que o ora- e masculino para o homem. A mulher, como dor deve assumir para inspirar confiança no já apresentamos anteriormente, sempre foi auditório, pois sejam quais forem seus ar- considerada um ser menos privilegiado que o gumentos lógicos, eles não obtêm sem essa homem, teve menos direitos e até mesmo foi confiança. Acrescenta (SANTANA NETO, tratada como um ser inferior em relação ao 2005, p.21): “O ethos visa à influência afetiva, homem, ou seja, deveria ser completamente pretendida e exercida pelo locutor sobre o alocu- submissa e destinada somente ao lar com o tário, com a finalidade de nele exercitar afetos sua- papel de esposa/mãe. Entretanto, com passar ves, visando obter a benevolentia”. Dessa forma, do tempo, a figura feminina ganhou espaço ele deve preencher as mínimas condições de e foi se modificando pouco a pouco. A partir credibilidade, mostrar-se sensato, sincero e dos anos 50, iniciaram-se os primeiros mo- simpático. Ethos é um termo ético, moral, a vimentos feministas com a propagação da imagem que o orador deve ter diante do au- mulher no mercado de trabalho e, é a partir ditório, mesmo que não seja a “verdadeira”. O desse momento, que as primeiras agências ethos será o caráter psicológico e não moral, de propagandas foram instaladas no Brasil que o orador deve assumir. Já o páthos, segun- (CONFORTIN, 2003). Houve uma grande do (REBOUL,2004, p.48): “[...] É o conjunto de repercussão nesse período, pois grande par- emoções, paixões e sentimentos que o orador deve te das propagandas tratavam da imagem suscitar no auditório com seu discurso.” Nesse feminina ou se dirigia como foco principal. contexto, a análise dos sentimentos e das Os anúncios buscavam introduzir hábitos paixões é derivada da retórica. Assim, ao fa- da higiene, saúde, beleza e cuidados com o lar de ethos, fala-se de orador, ao se falar em lar, sendo voltados para o público feminino páthos, fala-se de auditório e, por fim, ao se com o intuito de tratar a modernidade e pra- falar em lógos, diz-se respeito à argumenta- ticidade, como propagandas comerciais de ção do discurso. cosméticos, cigarros, produtos de limpezas O lógos tem visibilidade nas referi- e eletrodomésticos. das propagandas, indicado pelo argu- mento dos verbos: “Aproveite”, “Participe”, “Incentive” e “cesse”, a palavra procura mostrar

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 293-309, jul/dez. 2017 302 Disponível em: Dona de casa ou dona de si? Um estudo sobre a representação feminina em produtos de limpeza e alimentícios imparcialidade, mas durante todo o percurso Nas propagandas alimentícias vemos demonstra o contrário. E, assim, para obter ao longo dos anos que as mulheres não são o assentimento do auditório, utiliza estraté- mais as mesmas de antes, hoje elas ganham gias para persuadir, apelando para a razão, destaque em produtos como cerveja, ante- em toda a sua dimensão de palavra pensa- riormente a mulher vinha ao lado do produ- da. A propaganda publicitária, por exemplo, to de alimento para cozinhar para o marido que remete a um contexto atual, ao qual a ou filhos, nos dias atuais, isso já não se vê imagem feminina era algo quase inatingível, com muita frequência, até em produtos diet difícil de ser alcançado, justificando o ofe- e light as mulheres ganham espaço não só recimento oportunidades. Hoje, talvez com como um símbolo de mulher guerreira que novo panorama histórico, as instituições da cuida de casa de toda a família, mas também indústria e marketing abordam outros inte- como dona de si, ela experimenta e dá dicas resses para despertar e persuadir o público- de saúde. Para outras mulheres, o que pode- -alvo que antes era menos valorizado talvez mos concluir nos produtos alimentícios é que pelo simples machismo da sociedade. hoje a mulher não serve apenas a família, e sim é dona de si, sabe o que quer e o melhor

Praticidade e modernidade: A união para ela. Abaixo vamos fazer uma breve análi- perfeita! se de produtos alimentícios e de limpeza im- portantes em todo o Brasil e que ganharam As propagandas de produtos de limpe- destaque ou pela marca do produto ou quem za, na maioria das vezes, colocou a mulher foi à mulher da propaganda. como público-alvo principal. Sua participa- ção era e ainda é de grande importância para esse tipo de publicidade, pois é a responsável Análise da Peça Publicitária - Garnier Fructis pelas tarefas de limpeza e de manutenção da casa, e que ainda está, em grande proporção, a cargo delas, tornando, as- sim, símbolo de representa- ção para esse tipo de mer- cado e comércio. Mesmo na atualidade, em que, em alguns casos, as despesas e as tarefas domiciliares são divididas entre marido e es- posa, a mulher ainda é con- siderada fundamental e até mesmo insubstituível, para lavar, passar, cozinhar, lim- Fonte: http://www.tetereinaldim.com.br/blog/2014/10/resenha- par e pela organização geral. creme-de-tratamento-apaga-danos-garnier-fructis/

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O pathos e o ethos da retórica aristo- inteligente e uma ótima jogada de uma mar- télica estão presentes na figura da Bruna ca que há muito tempo não era tão comenta- Marquezine. O primeiro atinge o público da e procurada no Brasil. por conta do carisma da atriz, que é queri- da por boa parte dos brasileiros, e, portanto, Análise de Peça Publicitária - Seara com a imagem dela na propaganda, as pessoas vão analisar melhor a proposta da marca. O segundo en- contra-se na confiança que a figura de Marquezine passa, por ser uma personalidade que está constante- mente na mídia e representar atual- mente um padrão de beleza no país. Isso influencia a atitude do público com a sua recomendação do produ- to. E, além da confiança passada por Bruna, muitas mulheres gostariam de ter um cabelo como o seu, e acre- Fonte: http://grandesnomesdapropaganda.com.br/anunci ditam que comprando os cosméticos da marca, alcançarão esse objetivo. Logo, este é também um argumento emocional que A peça publicitária a ser analisada cor- atinge o público feminino. responde à propaganda da linha de produ- O logos encontra-se na seguinte de- tos alimentícios da marca Seara. A partir claração de Bruna “Fructis mudou e eu mudei do ponto de vista da Retórica Aristotélica, para Fructis”. Isso pode convencer o público encontramos o Ethos, pois a marca Seara é a experimentar a nova linha da marca, mes- famosa, e é reconhecida mundialmente por mo que já tenha usado e não aprovado, pois sua qualidade. Além, é claro, de a oradora ser mostra que o produto melhorou a ponto de Fátima Bernardes, uma jornalista e apresen- Marquezine escolhê-lo para usar, em meio tadora de Programa de Televisão com muita a tantos outros. Nessa campanha, há tam- credibilidade, reafirmando, assim, a real qua- bém a presença do maravilhoso, já que faz lidade dos produtos. O Logos, o argumento- as mulheres acreditarem que terão uma vida -lógico da peça, está presente no momento próxima à da atriz se utilizarem os produtos da escrita da propaganda: “Experimente os da linha Apaga Danos e que independente do produtos Seara. A qualidade vai te surpreender”. cabelo que têm, podem deixá-lo impecável e Em relação aos mecanismos de persuasão, sem sinal de danos como o da foto apenas encontram-se argumentos emocionais, na usando os itens da marca. medida em que o anúncio mostra a frase bem A ideia de colocar Bruna Marquezine construída, a garota-propaganda (Fátima como garota propaganda foi muito Bernardes), e a imagem do produto já feito,

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 293-309, jul/dez. 2017 304 Disponível em: Dona de casa ou dona de si? Um estudo sobre a representação feminina em produtos de limpeza e alimentícios despertando irracionalmente a fome no pú- a marca intenta um despertar emocional blico. A cor avermelhada do anúncio prevale- no público-alvo, o que torna perceptível o ce, alinhando-se a do logotipo da marca, afir- PATHOS. Feita com mulheres jovens, a cam- mando, assim, a disposição dos elementos panha retrata a mulher independente, susci- verbais. Há uma identificação com a marca, tando sentimentos favoráveis, que facilitam pois o público analisa o produto de acordo a aceitação da tese presente no slogan. O ar- com Fátima Bernardes, que transmite uma gumento sensibiliza o consumidor e quebra imagem de uma mulher séria. resistências, uma vez que o faz refletir sobre a importância de ser mulher moderna. Ainda Peça Publicitária - “Porque se sujar faz bem” - mostram jovens comemorando a entrada na OMO Universidade Pública. E o que mais importa neste momento não é o que elas usam, porque OMO limpa toda a sujeira. É simplesmente uma passa- gem feliz e elas sabem que faz parte da vida. Vemos mais mulheres (jovens) felizes, pois conquistaram seu espaço na sociedade e em breve no mercado de trabalho. Por um tempo, as campanhas da mar- ca eram voltadas para o quesito funcional do produto, mas o foco mudou e passou a sensibilizar o coração das consumidoras. Dando ênfase à importância do brincar, a OMO firmou uma preocupação com a edu- cação, o que culminou no “Projeto Entrar na Faculdade”, entre outras iniciativas da marca, que demonstram responsabilidade Fonte: http://www.historiaunilever.com.br/ social e dá maior credibilidade ao produto, unilever/timeline/produto/omo eis o Ethos. O Logos está nesse ideal “ousado” de Em 1957, a marca OMO, de origem in- permitir a sujeira. Encarado como reflexo glesa, foi lançada no Brasil pela Lever, nome de uma sociedade que na época é 2004 e já adotado pela filial da Unilever no País até mostra que mulheres conquistaram e estão 1960. A campanha“Porque se sujar faz bem”, conquistando mais espaço em Universidades lançada em 2004, pela OMO MULTIAÇÃO, no mercado de trabalho. Recheada de brin- apresenta os critérios da retórica aristotélica, cadeira e diversão, o argumento é forte, já assim como mecanismos de persuasão para que a fase do vestibular e aprovação, todos atingir o público alvo. Nas peças analisadas, sabem que é uma passagem árdua, mas os

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resultados veem depois e todas ficam feli- O leitor sabe também que, nos gran- zes, de fato, uma ligação com a moderni- des vestibulares, é cada vez mais comum a dade e tecnologia, com o discurso do novo. exigência da capacidade de percepção dos As cores, a colocação das frases no canto da mecanismos de construção e dos efeitos de imagem, dando ênfase à fotografia, são re- frases como a da publicidade do sabão em pó. cursos estilísticos que tornam perceptível a Vamos aos fatos, pois. Qual é o sentido forte presença do argumento emocional. A que logo se depreende da frase em questão? frase: “NOVO OMO PROGRESS, PORQUE SE Não é difícil perceber: um jovem ou uma jo- SUJAR FAZ BEM” que, além do slogan está na vem se suje ao passar no vestibular Mas, a peça, gera uma identificação, pois aproxima coisa não para por aí, visto que, por trás desse o público ao afirmar que a marca quer, assim sentido que se percebe de imediato, há outro, como os pais, que seu filho (a) ultrapasse bar- em que o “se” deixa de ser pronome reflexivo reiras e tenha um futuro promissor. Quem (“se sujar” = “sujar a si próprio”) e passa a ter hoje é mãe ou pai, com certeza, vai pensar a valor de conjunção condicional (“se sujar” = infância que teve e, consequentemente, sobre “caso suje”). a infância que quer que seu filho (a) tenha, É evidente que, para que se materialize pois sabe que isso refletirá na vida adulta o segundo sentido, é preciso supor que o de- dele (a). tergente em pó esteja implícito como sujeito A sujeira da roupa toma a forma das ado- da forma verbal “faz”. Alguém talvez diga que lescentes é um estímulo aos sentidos (nesse essa segunda interpretação é forçada, já que, caso a visão). Uma vez que ativa a percep- para que a frase de fato tivesse o segundo ção do público, a imagem traz um conteúdo sentido, seria necessária a presença de duas implícito que remete novamente ao slogan, vírgulas (“Porque, se sujar, faz bem”). Convém e ajuda a enfatizar outra frase presente no lembrar que, nesse tipo de linguagem, não anúncio: “Saia da brancura e entre na sujeira”. necessariamente se obedece às regras orto- Com peças publicitárias leves, a campanha, doxas da sintaxe. A linguagem publicitária de forma bem sucedida, associa cuidado e está mais próxima da literária do que da incentivo e faz adolescentes, mulheres e jo- formal. vens comemorar uma nova etapa da vida. Didático-pedagógica, a peça publicitária faz a apologia do fora do comum “Saia da bran- cura” e relação das adolescentes com a frase “entra na sujeira”. Bem, o que me interessa como sempre, é o aspecto linguístico da questão. O leitor habitual deste espaço sabe que não raro ana- liso frases publicitárias, muitas das quais são inteligentes e bem arquitetadas.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 293-309, jul/dez. 2017 306 Disponível em: Dona de casa ou dona de si? Um estudo sobre a representação feminina em produtos de limpeza e alimentícios

Análise da peça do “O Boticário” a seguir: as idades e sexos. Suas campanhas buscam beleza, leveza e atingir seu públi- co alvo: A classe média e alta da população. A linha MAKE B. (retratada no anúncio) busca atingir mulhe- res através da moda (você linda e na moda). O anúncio analisado segue a identidade dessa linha que utiliza como base os valores da cultura contemporânea e traz a valorização da mulher e sua pré-disposição para moda e bem estar. Fonte: http://www.revistafatorbrasil.com.br/ver_noticia. A peça atinge seu objetivo php?not=276932 por manter firme a relação entre os valores que, realmente, passam Ao visualizar a peça publicitária acima, e os que desejam passar. Além disso, os tex- é possível identificar e correlacionar algumas tos que aparecem no anúncio confirmam a sensações que possuem relação com a identi- identidade da marca. A cor amarela utilizada dade do produto à mostra. A alegria, femini- nas letras que formam os nomes da marca e lidade e liberdade são apresentadas através da linha garante leveza e alegria. Esse anún- da expressão facial da modelo e das cores cio é veiculado em revistas cujo público alvo abertas. Ao optar por uma modelo jovem, a engloba o público da marca. A logo fica loca- marca atingiu jovialidade. A figura da mulher lizada no final da página direita para se fixar e a pose fotografada conferem sensualidade, na mente do consumidor que foca seu olhar felicidade ousadia e beleza. Um tropicalismo final para essa região do anúncio. se nota pela mistura de cores tropicais e pelo desenho de folhas e temas florais no plano de Considerações finais. fundo do anúncio. Essa mudança e mistura A mulher destacou-se e ainda continua das cores fazem com que a peça seja versátil. se destacando devido às grandes conquistas Esse conjunto de características, que na sociedade, seja nos afazeres cotidianos, são transmitidas aos consumidores, condi- seja no mercado de trabalho. Anteriormente, zem com os valores que a marca quer apre- a mulher não possuía direito às escolhas, não sentar e isso contribui, positivamente, para tinha voz social, pois, na maioria das vezes, efetividade da peça. A marca (O Boticário) era submissa ao homem, dedicando-se ape- é conhecida por ter um compromisso com nas aos afazeres domésticos e cuidados com a beleza, e por fabricar produtos para todas

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a família. As mulheres eram educadas des- somente eram feitas por homens. Assim, o de a infância para se tornarem, no futuro, enunciador dos anúncios de produtos de excelentes donas de casa, pois aquelas que limpeza e alimentícios tem como intuito dis- não soubessem cozinhar, lavar, passar, não cursivo conquistar a confiança das mulheres haveriam de arranjar bom marido e bom e, para isso, utilizam recursos verbo-visuais casamento. diversos como imagens, textos explicativos A publicidade reflete essas mudan- e expressões, visando persuadi-las por meio ças, pois, nas propagandas mais antigas, o da valorização de sua imagem ou das facili- foco principal eram os afazeres destinados dades proporcionadas pelos produtos. Por ao lar. Após as lutas contra o preconceito, o outro lado, é comum ainda a concepção da machismo, a violência, os abusos sexuais nos mulher ligada aos trabalhos domésticos, em locais de trabalho, conquistaram seu espaço pleno século XXI. Porém isso vem deixando na sociedade, sendo mais reconhecidas e va- de lado aos poucos. lorizadas por suas funções, principalmente

no campo profissional. A partir da década de Referências 80, tiveram mais oportunidades de estudar, dando-lhes, assim, condições para entender ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. e discutir sobre vários assuntos, como a polí- Tradução Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1959. tica e o futebol, por exemplo, temas esses que eram considerados pertencentes ao universo ______. Retórica das paixões. Tradução e masculino. notas de Ísis Borges B. da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2003. A mulher, na publicidade, é retratada, primeiramente, como a mãe que cuida do lar BAHKTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. e dos filhos e que precisa ter menos tempo In: ______. Estética da criação verbal. 04. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Cap. III, p. nos afazeres domésticos. Por isso, há a inten- 261-306. ção de convencê-las sobre os valores e capaci- dades do produto anunciado em relação aos BRAIT, Beth. Estilo. In: ______(Org.). Bakhtin: Conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2007. demais existentes no mercado desde então. p. 79 - 102. Portanto, a mulher mãe do lar é diferenciada BAUDRILLARD, Jean. . nas propagandas. Posteriormente, o discurso O sistema dos objetos São Paulo: Perspectiva, 2002. publicitário passou a mostrar a mulher que cuida de si mesma, dona de si e possui me- BERTOMEU, João Vicente Cegato. Criação . São Paulo: Futura, nos tempo ainda para os afazeres domésti- da propaganda impressa 2002. cos, pois tem de trabalhar, cuidar da família e de si mesma. A partir das propagandas da DEL PRIORE, Mary (org.) História das crianças no Brasil. 06. ed. São Paulo: Contexto, 2007. década de 90, as mulheres são retratadas como batalhadoras por seus ideais, exercen- CONFORTIN, Helena ET AL. Discurso e gênero: do diferentes funções no trabalho que, antes, A mulher em foco. In: GHILARDILUCENA.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 293-309, jul/dez. 2017 308 Disponível em: Dona de casa ou dona de si? Um estudo sobre a representação feminina em produtos de limpeza e alimentícios

Maria Inês (Org.). Representações do feminino. 01. ed. São Paulo: Átomo, 2003. GARBOGGINI-SIQUEIRA, Flailda. A mulher margarina. Uma representação dominante em comerciais de TV nos anos 70 e 80. 1995. Dissertação (Mestrado em Multimeios). Campinas, UNICAMP, 1995. LUCENA, Maria Inês Ghilardi (Org.). Representações do feminino. Campinas: Átomo, 2003. OMO. Unilever, Histórias das marcas, Centro de histórias Unilever, 2001. Disponível em: Acesso em 20 Jun. 2014. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. SANTANA NETO, João Antonio de. Processos argumentativos: Estudo retórico de textos didáticos. Salvador: Quarteto, 2005. SIGNIFICADO da cor azul. Significados.com. br. Disponível em: Acesso em 03 Ago. 2014. SIGNIFICADO da cor amarela. Significados. com.br. Disponível em: Acesso em 31 Ago. 2014. SIGNIFICADO da cor vermelha. Significados. com.br. Disponível em: Acesso em 31 de ago. 2014. STREY, Marlene Neves (Org.). Mulher, estudos de gênero. São Leopoldo: Unisinos, 1997.

Recebido para publicação em 8 abr. 2017. Aceito para publicação em 30 set. 2017.

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Doi: 10.5212/Uniletras.v.39i2.0012

Aprender e ensinar a escrita: contribuições dos novos estudos do letramento na formação inicial de professores de língua

LEARNING AND TEACHING THE WRITING: CONTRIBUTIONS OF THE NEW LITERACY STUDIES IN THE INITIAL FORMATION OF LANGUAGE TEACHERS

Giselle Cristina Smaniotto*

Resumo: Este artigo tem como objetivo promover uma reflexão teórica a partir dos Novos Estudos do Letramento, relacionando as discussões sobre as práticas sociais da escrita no ambiente acadêmico e suas implicações para a formação dos professores de língua materna. Para tanto, resgata estudos de Street (2006 [1994]) e de autores brasileiros, entre eles, Rojo (2009), Kleiman (2001, 2008), Oliveira (2006), Guedes-Pinto (2012), que discutem conceitos como letramento ideológico, letramento pedagógico, formação de professores de línguas e identidades docentes. Tais estudos ressaltam que as práticas formadoras devem estar fundamentadas em práticas sociais, situadas sócio-histórica e ideologicamente, que oportunizem a participação dos sujeitos em práticas de letramentos acadêmicos e de letramentos pedagógicos de modo a promover a constituição das identidades de aluno do ensino superior e de professor para ensinar a escrita na Educação Básica. Palavras-Chave: Letramentos. Formação docente. Escrita.

Abstract: This article aims to promote a theoretical reflection based on the New Literacy Studies, relating the discussions about the social practices of writing in the academic environment and its implications for the development of mother language teachers. In order to do so, it rescues studies of Street (2006 [1994]) and Brazilian authors, among them, Rojo (2009), Kleiman (2001, 2008), Oliveira (2006), Guedes-Pinto, which discuss concepts such as ideological literacy, pedagogical literacy, language teachers training and teacher identities. Such studies emphasize that the training processes must be based on social practices, situated socio-historically and ideologically, that allow the participation of the subjects in academic and pedagogical literacy practices

* Docente do Departamento de Pedagogia na área de Alfabetização e Língua Portuguesa. Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Linguística – Universidade Federal de Santa Catarina. Email: [email protected].

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in order to promote the development of the students’ identities of higher education and teachers to teach writing in Basic Education. Key Words: Literacy. Teacher training. Writing.

Considerações iniciais podem contribuir para pensarmos o ensino e a aprendizagem da escrita na formação ini- É comum ouvirmos queixas, no am- cial de professores de língua materna - no biente universitário, sobre as dificuldades âmbito dos cursos de Pedagogia e Letras - e em leitura e escrita dos acadêmicos, seja da seu posterior ensino na Educação Básica? parte dos professores formadores ou dos pró- Para tanto, esse trabalho tem como objetivo prios estudantes que, muitas vezes, sentem- promover uma reflexão teórica a partir dos -se despreparados e aquém das expectativas Novos Estudos do Letramento, relacionan- desse contexto. Essa preocupação se inten- do as discussões sobre as práticas sociais da sifica quando esse acadêmico é um futuro escrita no ambiente acadêmico e suas impli- professor de língua materna (acadêmico/a cações para a formação dos professores de dos cursos de Letras e Pedagogia), pois se ele língua materna. apresenta “dificuldades” com a escrita como Para isso nos ancoramos na perspectiva poderá ensiná-la na Educação Básica? da Linguística Aplicada e buscamos apresen- Esse texto se propõe a refletir sobre a tar estudos e pesquisas que se fundamentam relação do futuro professor com a escrita nos Novos Estudos do Letramento. Partimos na universidade e sobre sua formação para das proposições de Street (2006[1994]) e re- ensiná-la a partir de conceitos dos Novos latamos reflexões teóricas e resultados de Estudos do Letramento (NEL) que nos au- pesquisas de autoras brasileiras como Rojo xiliam a rejeitar o “discurso da defasagem” e (2009), Kleiman (2001, 2008), Fiad (2011), compreender que este sujeito está em pleno Guedes-Pinto (2012) entre outras, que discu- processo de letramento em novas práticas tem a escrita na universidade e os letramen- sociais. Além disso, queremos refletir sobre tos acadêmicos, como também pesquisas como o futuro professor, ao participar das que consideram a formação e constituição práticas de letramento em sua formação ini- docente do acadêmico, especialmente, dos cial, constitui sua identidade profissional e cursos que preparam para o ensino da língua. assume-se como aquele que (vai) ensina(r) a Diante do exposto, primeiramente, fa- escrita na Educação Básica. zemos uma breve discussão sobre o conceito Desse modo, perguntamos: Como os de letramento, evidenciando as diferenças Novos Estudos do Letramento, consideran- de abordagem dos seus modelos autônomo e do a sua vertente dos Letramentos Críticos1, ideológico. Também abordamos a relevância

1 “O desdobramento pedagógico, por assim dizer, da ado- ção dos NEL na educação é amplamente divulgado como Letramento Crítico”. (BALADELI, 2014, p. 230)

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 311-320, jul/dez. 2017 312 Disponível em: Aprender e ensinar a escrita: contribuições dos novos estudos do letramento na formação... das variadas práticas de letramento em con- usam a escrita, como sistema simbólico e textos múltiplos, e sua relação com a forma- como tecnologia, em contextos específicos, ção de identidades, em contraponto à (falsa) para objetivos específicos” (p.18-19, grifos ideia de um letramento único e dominante. nossos). As expressões em negrito nas cita- Na seção seguinte, apresentamos algumas ções acima procuram destacar que a ênfase considerações reflexivas a respeito das con- ao pensarmos em letramentos recai sobre as tribuições dos estudos do(s) letramento(s) práticas sociais nas quais a escrita é a tec- para a formação dos professores. nologia mediadora. Dessa forma, ressalta- mos a importância de utilizarmos a escrita

Letramentos na universidade para nos inserirmos e participarmos de diferentes práticas sociais que nos consti- O termo e o conceito de letramento tuem como sujeitos sociais com identidades 2 chegam ao Brasil na década de 80 . Desde próprias. sua primeira aparição no livro de Mary Kato Partimos dos estudos de Brian Street 3 (1986) este conceito tem sido discutido e tem que, em 1984, inaugura os Novos Estudos do passado por revisões que ampliam sua abran- Letramento (NEL) e descortina uma nova gência e importância. Neste trabalho assumi- percepção sobre o letramento, passando a mos uma concepção de letramento tal qual falar em letramentos, no plural, pois são múl- exposta por Rojo (2009, p. 98) ao diferenciá-lo tiplos e situados social, histórica, cultural, po- de alfabetismo: lítica e ideologicamente. O autor propõe uma o termo letramento busca recobrir os divisão entre um enfoque autônomo e um usos e práticas sociais de linguagem enfoque ideológico do(s) letramento(s). No que envolvem a escrita de uma ou de modelo autônomo de letramento as práticas outra maneira, sejam eles valorizados com a escrita são individuais e autônomas, ou não valorizados, locais ou globais, são vistas pelo viés técnico e são entendidas recobrindo contextos sociais diversos como “neutras”, independente do contexto (família, igreja, trabalho, mídias, esco- social. Espera-se que o letramento por si só la etc.), numa perspectiva sociológica, promova a transformação da sociedade. Rojo antropológica e sociocultural. (2009, p. 99) acrescenta que o modelo autô- Kleiman (2001 [1995]) corrobora com nomo em sua versão fraca é “(neo) liberal e essa concepção. Para a autora o letramento estaria ligada a mecanismos de adaptação é “[...] um conjunto de práticas sociais que da população às necessidades e exigências sociais do uso da leitura e da escrita, para funcionar em sociedade”. 2 Soares (2004) apresenta um histórico do surgimento do termo e do conceito no Brasil. SOARES, M. Letramento e No modelo ideológico, defendido pelo alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Edu- autor e ao qual nos vinculamos, considera-se cação, n. 25, p. 5-17, Jan./Abr. 2004. Disponível em: http:// www.scielo.br/pdf/rbedu/n25/n25a01.pdf. a relação intrínseca das práticas de leitura 3 KATO, M. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolin- e escrita às estruturas culturais e de poder guística. São Paulo: Ática, 1986.

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de diferentes contextos. Street (2006 [1994], O pesquisador destaca a relação entre p. 466), mencionando trabalhos anteriores, letramento(s) e identidade(s). Para o autor ao defender a modalidade ideológica do as práticas de letramento são constitutivas letramento, da identidade e da pessoalidade: “quaisquer que sejam as formas de leitura e escrita que reconhece uma multiplicidade de letra- mentos; que o significado e os usos das aprendemos e usamos, elas são associadas práticas de letramento estão relaciona- a determinadas identidades e expectativas dos com contextos culturais específi- sociais acerca de modelos de comportamento cos; e que essas práticas estão sempre e papéis a desempenhar” (p.466). Logo, há a associadas com relações de poder e necessidade de pensarmos na especificidade ideologia: não são simplesmente tec- da escrita no contexto acadêmico e na sua nologias neutras. (STREET, 1985, 1993). relação com a formação de identidades, pois Na versão forte do letramento ideoló- é nas práticas letradas da esfera acadêmica gico, Rojo (2009) afirma que, contrariamen- que o estudante das licenciaturas passa a de- te à adaptação do cidadão às demandas da senvolver suas identidades, de estudante do sociedade (como no modelo autônomo), se ensino superior e de futuro professor. promove sua emancipação, de modo crítico, Os Novos Estudos do Letramento po- revolucionário e empoderado. É importante dem nos ajudar a (re)pensar as relações do lembrar que para Street “o modelo ideológico universitário com a escrita na esfera acadê- não ignora a importância de aspectos técni- mica. Ensinar a escrita no ensino superior cos dos letramentos, [...] mas sustenta que não se limita a identificar as características esses aspectos decorrem de interações em linguísticas e discursivas dos gêneros traba- práticas sociais específicas, com relações de lhados, pois a interação com a escrita nesse poder e ideologias”. (COLAÇO, 2015, p. 29) contexto exige o vislumbrar das práticas so- Street (2006 [1994]) exemplifica com ciais que os originam e as relações que ali inúmeras pesquisas que as práticas de letra- se estabelecem. Juchum (2014) cita alguns mentos independem do contexto escolar e dos principais estudiosos da área dos NEL estão presentes em todas as culturas e con- (STREET, 1994, 2003; BARTON, 1994; GEE, textos. Dessa forma, há múltiplos letramen- 1996) que “propõem que as práticas de letra- tos e o letramento dominante é apenas uma mento, como práticas sociais que são, têm das variedades de letramento que se tornou caráter situado, ou seja, têm significados padrão por uma questão de poder, por isso é específicos em diferentes instituições e gru- apresentado como único (p.472). Entretanto, pos sociais” (p. 112). Dessa forma, a especifi- as diferentes práticas de letramentos são cidade da escrita universitária necessita ser apropriadas e desenvolvidas pelas pessoas, considerada e estudada à luz dos estudos dos de acordo com os contextos culturais, e são letramentos. Várias pesquisas têm demons- permeadas por ideologia e poder. trado a relevância dessa abordagem.

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 311-320, jul/dez. 2017 314 Disponível em: Aprender e ensinar a escrita: contribuições dos novos estudos do letramento na formação...

Juchum (2014) argumenta a partir de práticas sociais de produção desses gêneros, suas pesquisas que os alunos reconhecem proporcionando a sua análise, compreensão suas dificuldades e até apreensões em relação e produção, já que eles são insiders nessa es- às práticas de escrita na universidade e dei- fera e é nela que aprenderão a participar das xam explícito que escreviam outros gêneros e práticas que ali se constituem. que na academia terão de aprender a escrever Ao considerarmos a atuação desse aca- textos que desconhecem e com linguagem dêmico como futuro professor de línguas na específica. Entretanto, isso não significa que Educação Básica, os estudos críticos sobre sejam iletrados, mas sim que necessitam par- os letramentos também se revelam impor- ticipar de práticas de letramento até então tantes, pois desconhecidas para apropriarem-se de novas a proposição de práticas pedagógicas formas de interação. Na mesma direção, Fiad críticas que mobilizem não só conhe- (2011) ao apresentar resultados de análise da cimentos escolares, mas também ques- escrita de universitários, abordando o que tões socioculturalmente relevantes à eles dizem sobre suas escritas, mais especi- formação crítica do aluno, tornam-se ficamente, como suas escritas são vistas em indispensáveis para a compreensão confronto com o que é esperado no contexto das relações de poder e da influên- acadêmico, afirma que “Se, antes, era possível cia cultural dos grupos dominantes. ver o desempenho na escrita como habilida- (BALADELI, 2014, p.228) des individuais de ler e escrever, adquiridas Em estudo que também analisa a es- principalmente na escola, hoje é necessário crita de universitários, mas com o objetivo situar qualquer prática envolvendo a leitura de investigar como eles “projetam seu papel e a escrita em um contexto sócio-histórico- como graduandos e futuros professores que -cultural específico” (p. 360). trabalham(rão) em contexto caracterizado Esses estudos, entre tantos outros, por (novas) práticas de leitura e escrita.” (p. mostram que os alunos universitários, mui- 9), Frota (2013) analisa 53 produções textuais tas vezes, assumem-se como receptores dos de acadêmicos de um curso de Licenciatura textos escritos pelos produtores mais expe- em Letras de uma universidade pública. O rientes e não se sentem capazes de produzir pesquisador constatou, baseado na argu- os gêneros que circulam na academia, além mentação dos textos, entre outros resultados, de muitos formadores acreditarem que não que o universitário vive um conflito “entre o é necessário explicitar/ensinar as especifi- que a instituição acadêmica oferece e aquilo cidades dos gêneros trabalhados. É clara e de que ele necessitaria em sala de aula” (p. explícita a relação entre escrita e poder no 9), ou seja, prevalece o discurso de que a ins- contexto acadêmico. Dessa forma, alerta tituição não prepara adequadamente o pro- Botelho (2016), que cabe ao professor (con- fissional para sua atuação na escola. Outro siderado como aquele que “tem o poder”) resultado que nos chama a atenção, e que se promover a aproximação dos estudantes às relaciona com o que estamos discutindo, é

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que o universitário não estabelece um diá- engajada, antropologicamente antena- logo com o discurso acadêmico-científico, da, plural em seu foco, para incluir os distanciando-se da instituição, mesmo du- estudos de letramento, os estudos so- rante sua formação. bre multilinguismo com as questões de intercompreensão e de práticas trans- Portanto, cabe aos formadores promo- língues, os estudos sobre transcultura- ver, além das práticas sociais próprias ao am- lismo. (grifos nossos) biente acadêmico, a discussão de conceitos dos NEL que contribuirão para a formação do Oliveira (2006) discute a relação teoria- futuro docente e sua atuação, na busca por -prática e identidades na formação de profes- processos de ensino e aprendizagem mais sores de língua. A autora reconhece a impor- críticos e relevantes. tância dos estudos que valorizam os saberes da prática (epistemologia da prática), entre- tanto, questiona sua supervalorização em Letramentos e a formação do docente de língua materna detrimento ao reconhecimento da impres- cindibilidade dos conhecimentos científicos, Estudos de diferentes áreas, entre eles o que pode resultar em um praticismo. Dessa os NEL, são fundamentais para pensarmos a forma, há a necessidade de se redimensionar formação de professores de línguas, pois ela a teoria, reconhecendo-se a sua importância não pode ser estritamente relacionada ao do- para a análise da prática e vice-versa, “sem mínio dos conhecimentos linguísticos, mas, criar um abismo entre o mundo da ciência e como afirma Cavalcanti (2013, p. 212), envolve o mundo da vida” (p. 105). Para a pesquisa- “enfatizar a formação de um professor po- dora trata-se, enfim, de estabelecer um diálo- sicionado, responsável, ético, leitor crítico, go constante entre teoria e prática e rever os com sensibilidade à diversidade e pluralidade currículos dos cursos de Letras, pois, como a cultural, social e linguística etc.” Uma forma- maioria se apresenta, acaba por formar uma ção nessa perspectiva implica a interface com identidade do professor como “transmissor outros campos de saber e aí vislumbra-se o de conhecimentos”, identidade que é rejei- papel da Linguística Aplicada a partir da tada, pois se refere a práticas ultrapassadas. problematização crítica dos currículos dos (p.107) cursos de formação docente, de maneira que Somente com uma formação ampliada a educação linguística amplie-se na direção e que considere os estudos de letramento, de que todo o uso linguístico seja compreen- poderemos abandonar o “discurso da crise” dido em suas práticas sociais, permeadas de em relação à leitura e à escrita na universi- implicações políticas, ideológicas e culturais. dade (cf. JUCHUM, 2014; FIAD, 2011, entre Para Cavalcanti (2013, p. 226): outros) e promover situações de ensino e A educação linguística do professor de aprendizagem baseadas em práticas so- língua não pode ser somente linguís- ciais autênticas e relevantes para a (trans) tica, ela precisa ser sofisticadamente formação de identidades de alunos a pro- inter- e transdisciplinar, socialmente fessores. Para tanto, o foco na formação

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 311-320, jul/dez. 2017 316 Disponível em: Aprender e ensinar a escrita: contribuições dos novos estudos do letramento na formação... docente deve estar na prática social e nos Assim, acreditamos ser possível dizer letramentos acadêmicos que promovam não que é o professor familiarizado com as só o aprender a usar a escrita, mas também práticas de letramento acadêmicas (en- o aprender a ensiná-la. Dessa forma, os gê- tre outras) quem determina quais são os limites e as possibilidades dos sabe- neros discursivos que serão mobilizados res teóricos que subsidiam sua discipli- atenderão as demandas das práticas nas na de ensino. Sem os demais saberes, quais os sujeitos estiverem envolvidos. Essa perceberá constantemente os limites forma de estruturar o ensino é defendido dos saberes especializados; munido de por Kleiman (2008, p. 508): outros saberes, multiplicará as possibi- lidades acenadas pelo saber teórico, em A estruturação do ensino em torno da função da segurança decorrente de seu prática social é uma estratégia de dida- conhecimento sobre o funcionamen- tização que, na nossa experiência, tem to da linguagem. Portanto, em última se mostrado eficiente e relevante na instância, somos nós, os formadores formação de professores, fornecendo dos professores, que demarcamos os um modelo que pode, depois, ser re- limites, mas, sobretudo, as interfaces contextualizado pelo professor na sua potencializadoras dos saberes teóricos esfera de atividade, do ensino escolar. e a prática social no ensino da língua Kleiman (2008) defende o ensino ba- escrita.” (KLEIMAN, 2008, p. 512) seado nas práticas sociais e também destaca Colaço (2015) também reconhece a im- a importância dos saberes pedagógicos, ou portância dos saberes para a prática e os no- seja, além de saber usar a escrita e de conhe- meia de letramento pedagógico: “Todo esse cer a especificidade da matéria pela qual será conjunto de textos [pedagógicos], saberes, responsável na escola, o professor precisa atitudes, valores que um professor precisa desenvolver saberes para ensiná-la, e só as ter constituem os letramentos pedagógicos” teorias linguísticas são insuficientes, por isso (p. 38). Ela ressalta que as práticas de letra- a autora defende um letramento para o/no mento pedagógico ao inserirem os sujeitos trabalho. Ela enfatiza a necessária inserção nas salas de aula da Educação Básica, promo- dos “futuros professores de língua escrita, vendo a interação desses com as ideologias na prática social acadêmica, quando estão e relações de poder ali presentes, propiciam na universidade, e da exploração e resgate a formação das identidades de professor. (p. das práticas de letramento nas atividades de 50) A pesquisadora acrescenta ainda que nas seu cotidiano [...]” (KLEIMAN, 2008, p. 510) leituras e escritas dos sujeitos, tanto em seu A pesquisadora também ressalta que o trân- letramento acadêmico como no letramento sito por práticas de letramentos acadêmicos, pedagógico, ficam as marcas de suas (trans) “pela via da ação em diversas práticas sociais” formações na constituição de suas identi- (p. 510), são mais importantes na formação dades como docentes. Essa afirmação de do professor de língua materna do que o raso Colaço confirma a indissociabilidade entre conhecimento de teorias.

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letramentos e identidade, tal como defendi- precisa vivenciar tais práticas, refletir sobre do por Street (2006 [1994]). elas para constituir sua identidade docente a Na esteira da discussão sobre o papel das fim de que em suas futuras ações no ensino práticas de escrita no contexto de formação da língua escrita na Educação Básica possa inicial dos professores de língua, Guedes- assumir posturas críticas, que tenham como Pinto (2012), em consonância com as autoras foco as práticas sociais e o trabalho a partir supracitadas reforça que “A discussão sobre a dos múltiplos letramentos. produção escrita de estudantes universitários

requer que ela seja atrelada ao seu contexto, Considerações (quase) finais às suas demandas específicas.” (p. 140) A auto- ra também ressalta a importância da inserção Os Estudos dos Letramentos a partir de no ambiente de trabalho para o processo de conceitos como o modelo ideológico do(s) formação docente. A partir de pesquisa rea- letramento(s), as práticas (plurais) de letra- lizada com seus próprios alunos, a autora re- mento em oposição a um letramento único lata como as produções de relatórios e textos e dominante, a especificidade dos letramen- reflexivos dos estudantes após a experiência tos acadêmicos e dos letramentos pedagó- de inserção no cotidiano escolar contribuiu gicos, têm importantes implicações para a para a formação docente desses estudantes, formação do docente de língua materna. proporcionando a construção de uma iden- Desde Street, passando por outras pesquisas tidade não mais de aluno, mas de professor. desenvolvidas dentro e fora do Brasil, espe- Conforme a autora: “Ao sistematizarem suas cialmente as que aqui arrolamos, mostram dúvidas, dificuldades e conflitos protagoniza- a relevância de considerarmos os estudos dos com os sujeitos da escola, trazem à tona críticos do letramento na especificidade da o desafio de se posicionarem e de refletirem esfera acadêmica. sobre a profissão docente.” (p. 147) Notadamente nos cursos de formação Portanto, o trabalho com a escrita, tan- de professores de língua, além da conside- to na formação do futuro docente quanto ração dos letramentos acadêmicos em seu em sua atuação na Educação Básica, preci- contexto ideológico e de poder, as práticas sa estar pautada numa concepção de língua de letramento pedagógico são necessárias como prática social e por isso os estudos dos para a formação docente e para a constitui- letramentos são fundamentais. Finalizamos ção da identidade profissional. As práticas essa discussão reafirmando a importância e sociais que constituem a identidade do su- necessidade de como formadores levarmos jeito na universidade e sua identidade como a efeito práticas de letramentos acadêmi- docente são perpassadas por usos da escrita cos e de letramentos pedagógicos para a e cabe aos formadores na relação com o futu- formação do futuro professor de línguas. ro docente promover práticas de letramento Também reconhecemos, assim como os au- que oportunizem sua formação para usar a tores aqui mencionados, que o estudante escrita e para ensiná-la. Tais conceitos viven- ciados na formação inicial contribuem para

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 311-320, jul/dez. 2017 318 Disponível em: Aprender e ensinar a escrita: contribuições dos novos estudos do letramento na formação... que o docente tenha segurança e convicção Referências para ensinar a escrita na Educação Básica BALADELI, Ana Paula Domingos. Questões numa perspectiva crítica e relevante para a de identidade em sala de aula: que sentidos formação do sujeito-cidadão. de brasilidade apresentam os livros didáticos. Consideramos a relevância dessa dis- In FERREIRA, A. de J. (Org.) As Políticas do cussão para formadores e professores em Livro Didático e Identidades Sociais de Raça, formação, de maneira que estejam aptos a as- Gênero, Sexualidade e Classe em Livros sumir uma postura crítica frente às práticas Didáticos. Campinas, SP: Pontes Editores, de escrita durante os processos de formação 2014. p. 225-242. inicial, no que diz respeito à (re)construção BOTELHO, Laura Silveira. Práticas de de conhecimentos das diversas áreas e, em Letramentos Acadêmicos na escrita da especial, para o desenvolvimento de conhe- monografia: relações de poder na Academia. cimentos necessários ao ensino da escrita e à 2016. 274f. Tese (Doutorado em Linguística) ampliação dos letramentos junto aos alunos Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de da Educação Infantil ao Ensino Médio. Fora, 2016. Diante disso, julgamos importante fu- CAVALCANTI, Marilda C. Educação linguística turas pesquisas que se ocupem do estudo dos na formação de professores de línguas: currículos dos cursos de Pedagogia e Letras intercompreensão e práticas translíngues. no que diz respeito à abordagem aos estu- In: MOITA LOPES, L. P. (Org.) Linguística dos dos letramentos e o ensino da escrita na Aplicada na modernidade recente. São Paulo: Educação Básica. Também entendemos que Parábola Editorial, 2013. p. 211-226. tais estudos são necessários à formação dos COLAÇO, Silvania Faccin. A travessia do formadores desses cursos, independente de ser aluno para o ser professor: práticas de letramento pedagógico no PIBID. 2015, 212f. sua área de atuação, já que todos promovem Tese (Doutorado em Letras) Universidade e participam de práticas de letramentos Católica de Pelotas (UCPEL), Pelotas, 2015. acadêmicos que propiciam a constituição FIAD, Raquel Salek. A escrita na universidade. do profissional da educação. Esse seria um Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, outro viés da pesquisa, de modo a investi- p. 357-369. 2ª parte, 2011. gar, analisar e problematizar junto aos pro- FROTA, Joyce Almagro Squinello. Letramentos fessores formadores como as práticas sociais Acadêmicos e o processo de representação dos com a escrita em suas respectivas disciplinas graduandos em Letras na contemporaneidade. têm promovido a aproximação com a escrita 2013, 150f. Dissertação (mestrado) Universidade acadêmica e a ampliação das habilidades de Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, escrita nos gêneros próprios a essa esfera; e Instituto de Biociências, Letras e Ciências também como tais práticas podem promover Exatas, São José do Rio Preto, 2013. a constituição da identidade docente e a for- mação para o ensino da escrita.

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GUEDES-PINTO, Ana Lúcia. Práticas de escrita no ensino universitário e suas relações com a formação docente. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 16, n. 30, p. 137-149, 1º sem. 2012. JUCHUM, Maristela. A escrita na universidade: uma reflexão com base no que os alunos dizem em seus textos. Horizontes de Linguística Aplicada, ano 13, n. 1, p. 107-129, 2014. KLEIMAN, Angela B. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: ______. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática da escrita. Campinas, SP: Mercado dos Letras, 2001 [1995], p.15-64. ______. Os estudos de letramento e a formação do professor de língua materna. Linguagem em (Dis)curso, v. 8, n. 3, p. 487-517, set./dez. 2008. OLIVEIRA, Maria Bernadete Fernandes de. Revisitando a formação de professores de língua materna: teoria, prática e construção de identidades. Linguagem em (Dis)curso, v.6, n.1, p.101-117, 2006. ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. STREET, Brian. (Tradução de BAGNO, M.). Perspectivas interculturais sobre o letramento. Filologia e Linguística Portuguesa, n. 8, p. 465- 488, 2006 [1994].

Recebido para publicação em 21 ago. 2017. Aceito para publicação em 17 out. 2017

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English teachers’ identities concerning their knowledge of slang

Identidades de professores de inglês sobre o conhecimento de gírias

Fábio Henrique Rosa Senefonte*

Abstract: Underpinned by a postmodern perspective of (teacher) identity, which characterizes it as unstable, multifaceted, unfinished, complex, dynamic, fluid, constructed in relation with others (BAUMAN, 2005; BOHN, 2005; HALL, 2006; BEIJAARD et al, 2011 among others), this qualitative research aims at exploring English language teachers’ identities concerning their knowledge of slang. For this purpose, a semi-structured, audio-recorded interview was conducted with three English teachers, from the three main language institutes in Cornelio Procópio, state of Paraná. Results reveal that teachers consider themselves to be fluent in English and confident of their language and teaching skills, despite their knowledge of slang being somewhat limited. Additionally, geographical boundaries are perceived as a hindrance to address such topic in class. Keywords: Identity; English Teachers; Slang.

Resumo: Com base em uma perspectiva pós-moderna de identidade (de professores), que a caracteriza como instável, multifacetada, inacabada, complexa, dinâmica, fluida, construída na relação com o outro (BAUMAN, 2005; BOHN, 2005; HALL, 2006; BEIJAARD et al, 2011 entre outros), o presente artigo objetiva explorar a identidade de professoras de inglês em relação ao conhecimento de gírias. Para isso, uma entrevista semiestruturada, gravada em áudio, foi conduzida com três professoras de inglês, dos três principais institutos de idiomas da cidade de Cornélio Procópio, no estado do Paraná. Os resultados revelam que as professoras se julgam fluentes em língua inglesa e confiantes em relação às suas habilidades linguísticas e pedagógicas, apesar do conhecimento de gírias ser de alguma forma limitado. Também a barreira geográfica é vista como um obstáculo para a abordagem do tópico em sala. Palavras-Chave: Identidade; Professor de Inglês; Gírias.

* UENP (Universidade Estadual do Norte do Paraná, campus Cornélio Procópio). Email: [email protected]

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Introductory Notes for being non-native speakers nor for the knowledge of slang). Topics germane to identity tend to be After exposing some introductory broad and intricate, given that the formation notes, I illustrate the structural organization of one’s identity encompasses professional of this paper: introduction; the second and personal factors. Hence, the context section covers theoretical considerations in which one acts socially is crucial for the on English teacher identity. Then, some constitution of identity. In this regard, Block methodological issues are discussed; the (2007) contends that there are several types fourth section provides the data analysis of identities: gender, religious, ethnic and and finally, some conclusions are detailed so forth. Bearing this in mind, this research in the last section. focuses on professional identity, particularly English teachers’ professional identity concerning their knowledge of English slang Foreign Language Teacher Identity in Brazil. Inasmuch as identity is a social In light of a postmodern perspective, phenomenon, teacher identity is shaped identity is understood as an unfinished, in daily interactions with people from the fragmented, dynamic and multifaceted same or different social spheres. Therefore, phenomenon (BEIJAARD et al, 2011 and identity is developed in relation to the other. others); it is constituted by a confrontation So, it is a social, not a biological phenomenon. with the other in a certain context. This way, identity is a continuous and That being said, this investigation contextualized process; it is heterogeneous, is centered on two research questions: a) fragmented, unstable, unfinished, dynamic, How do English teachers evaluate their individual and collective at the same time knowledge of slang? b) What challenges, if (BOHN, 2005; BEIJAARD et al, 2011; CALVO, any, do teachers face when they address such 2011; MARECO; SILVA, 2011; QUEVEDO- topic in class? In line with these questions, CAMARGO et al. 2011). Apropos such the goal of this study is to explore teachers’ characterization of identity, Senefonte (2015, identity concerning their knowledge of slang p. 5) explicates: in English. In order to undertake this research, (...) It is heterogeneous/ fragmented, since identity is constituted by a three English teachers, from three language multiplicity of interactions with institutions, were interviewed. Findings different individuals. Unstable and suggest that teachers consider themselves unfinished as one is in constant daily fluent and are confident of their language/ interactions within a certain social teaching abilities. Moreover, despite sphere, therefore identity is not fixed. acknowledging some limitations as to their In this regard, identity is individual, knowledge of slang, they do not exhibit any however is socially (collectively) remnant of inferiority complex (neither constructed.

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Furthermore, identity is a process in preschool and kindergarten) and for a lifetime. Hence, during one’s life, having a serious stance. Even the numerous identities (concomitant or not) way teachers dress is stereotyped can arise, which are inherently associated (ALSUP, 2006). Additionally, the with innumerable social roles one plays: teaching profession is seen as a wife/ husband, son/daughter, neighbor, boss, low-paying jog, including long customer, passenger and so on. and exhausting working hours Taking the above-mentioned tenets into and with limited perspectives for consideration, the next sections of this paper career ascension, therefore it is not seek to shed some light on the following a prestigious job. Moreover, there is questions: What factors contribute to the a consolidated discourse claiming formation of English teachers’ identity in that the teaching profession is Brazil? What is such identity like? “easy” (licentiates’ degrees are not hard to accomplish, neither

Factors that Influence the Formation is getting a job as a teacher) of English Teacher Identity (LORTIE, 1975a, 1975b; SHULMAN, 1986, 1987; HUBERMAN, 1989; Due to countless complexities vis-a- FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, vis the formation of identity, this section 2009). Unfortunately, despite the does not attempt to consider all variables fact that some assumptions do not for identity construction (which would be hold true in numerous contexts, an insurmountable task). As said earlier, the discourse that upholds such the context is vital for identity construction. tenets is generalized, powerful and Taking into account that identity is influential. constituted by a confrontation with the other (who is always different), I seek to list b. Expectations from other entities the major factors that may contribute to the (school, government, students and formation of English teacher identity. In this their parents, and others): These respect, I list 7 factors: expectations, apart from the ones listed above, indicate that teachers a. Images society has created of teachers: should have some attributes, such images are germane to such as: love, vocation, empathy, certain expectations concerning patience, content and pedagogical how a teacher should be or behave knowledge, good language skills (BARBARA & SARDINHA, 2005; and so on (SHULMAN, 1986, BOHN, 2005; CELANI, 2006; 1987; CELANI, 2006; FUNDAÇÃO BEIJAARD, 2011). Images of the CARLOS CHAGAS, 2009). Here, I teaching profession are stereotyped, deem relevant to stress that teachers as teachers are alluded to as being predominantly females (especially

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are constantly pressured in order to understanding, this is one of the meet such social standards. most influential factors for teacher c. Life experiences and personal ideologies identity, since teachers’ practices and beliefs: Through narratives, hinge on such variables. self-reflections, representations, g. Personal life: it comprises friends, teachers can find who they really partners and family (BEIJAARD, are and resignify their identities 2011 and others). These people are (NÓVOA, 1995; ALSUP, 2006; active participants in the formation BEIJAARD, 2011). This is exactly the of teacher identity, as they can focus of this paper (representation of influence on decision-making and teachers1). other issues. d. Sources of knowledge: professional With this brief overview, I listed socialization (class observation, some variables that encompass historical, from teaching practices, self- sociological, psychological, cultural study and others) (LORTIE, 1975a; and political elements involved in the SHULMAN, 1987). construction of a teacher’s identity. e. School subject: teacher identity can be highly influenced by the subject they English Teacher Identity in the teach (BEIJAARD, 2011). Apropos Brazilian Context of English, I consider imperative This section provides some discussions to highlight that the current status on the English teacher identity in Brazil. As of the language in the world also said in the previous sections, such identity is has some impact on the formation the result of both: they way teachers perceive of the English teacher professional themselves and the way they are perceived identity, given that such status by others. may lead teachers to reflect upon From the other’s perspectives (students, the importance of the language in students’ parents, government, etc.), we can a globalized world. assume some representations of English f. Educational Context: school, teachers in Brazil, as follows: educational policies, interactions a. English teachers are influenced by with students, colleagues and their former teachers (CALVO, 2011; others (BEIJAARD, 2011). From my among others). Such assumption is also exposed in North-American 1 Moscovici (2003) asserts that there are several types of re- studies (LORTIE, 1975a, ALSUP, presentations, the one fostered in this study is the social representation, which in turn is the set of ideas, beliefs 2006). and ideologies that contribute to the conceptualization of b. Teachers are mostly females, something. In this study, representations (beliefs, ideolo- gies) teachers have about themselves contribute to their white, from lower classes, with identity construction, that is, from their own perspective.

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low academic performance fragmented, uncertain and (FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, temporary (BOHN, 2005). 2009; CALVO, 2011). Once again, a International investigations seem very strong stereotype that has been to corroborate these findings perpetuated over time. (BAUMAN, 2005; HALL, 2006). c. Professional engagement is From teachers’ own perspectives temporary (FUNDAÇÃO CARLOS (corollary of ideologies constructed in social CHAGAS, 2009). This finding is interactions), some factors seem to prevail: also found in international studies a. Professional identity is marked (SEDLAK, 1992; HUBERMAN, 1989). by insecurities, fear, conflicts d. The other’s representations/ and uncertainties. Insecurities expectations from English teachers: regarding English proficiency they should have patience to teach, and resistance to learning the vocation, interest, admiration for language (BOHN, 1995; GAMERO, the career, should be proud to share 2011; QUEVEDO-CAMARGO et knowledge, and should master al., 2011 entre outros). Moreover, the foreign language (experience there seems to exist certain abroad is an advantage) and other competitiveness with the native- attributes (CARLOS CHAGAS, 2009; speaker (frustrations for not MARECO; SILVA, 2011; CALVO, 2011 having the same language abilities entre outros). as a native-speaker may lead some e. The teaching profession is teachers to experience an inferiority undervalued. Additionally, it is complex (TOMAZONI; LUNARDI, seen as a boring, bad, tiring, and 2011). low-paying profession (CARLOS b. Teachers understand their roles CHAGAS, 2009; CALVO, 2011). as mediators. Furthermore, they North-American research has recognize the importance of convergent results (LORTIE, 1975a, mastering the foreign language, 1975b). However, for university teaching culture and providing professors, who hold a PhD critical reflections (GAMERO, 2011; degree, the teaching profession QUEVEDO-CAMARGO et al., 2011). is substantially more prestigious. c. In their own representations, (BARBARA & SARDINHA, 2005; teachers have divergent standpoints CALVO, 2011). apropos different educational f. Professional identity is problematic, contexts (public and private schools, because of the fluidity in language schools and others). contemporary societies. Hence, such identity is decentralized,

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Teachers tend to prefer teaching in did not provide any result. Nonetheless, private or language schools. there was one study on non-native teachers that covered somewhat topics as to slang Since identity is not fixed, the above- (TOMAZONI; LUNARDI, 2011). mentioned assumptions can be revisited, Studies on non-native teachers have especially when new participants and addressed slang (learning/ teaching), contexts are investigated. somehow (MEDGYES, 1999 apud TOMAZONI; LUNARDI, 2011). This way, such authors can English Teachers’ Conceptions of support the theoretical framework employed Slang in this paper. According to Tomazoni e Scarce attention has been placed on Lunardi (2011, p. 221): “oral production is the empirical research on teacher’s conceptions most difficult part to be mastered and slang of slang. By searching2 databases such is particularly problematic, since many non- as Google Scholar and ERIC3, employing native teachers can involuntarily use slang the terms: “English teacher’s perceptions/ that is considered outdated”. conceptions”, “slang”, only one result was The findings of Tomazoni e Lunardi’s found: Senefonte (2014). study reveal that teachers are insecure Senefonte (2014) undertook a concerning their knowledge of slang. In this qualitative study on English teachers’ respect, Medgyes (1999) apud Tomazoni e perceptions of slang. The participants were Lunardi (2011) contends that a large number 4 high school teachers in public schools. By of English teachers suffer from an inferiority interviewing them, the author concluded complex, because they perceive their language that teachers’ perceptions of slang are skills as inferior, compared to native-speaking ambivalent. On the one hand, they seem standards. According to the afore-mentioned to agree on the importance of slang in author, such teachers (non-native speakers) the teaching-learning process of foreign aspire to meet such standards in order to languages, on the other, slang is still seen become “superior” or better. as inappropriate vocabulary, given that it Once the theory of this study was can be vulgar and offensive. discussed, the next sections comprise the In the Brazilian context, apart methodology adopted and data analysis. from Google Scholar, I searched another database: CAPES4 (with the same search Methodology terms in Portuguese). This new database This is a qualitative study, as I observe a particular social reality (VIDICH; LYMAN, 2 No time period was delimited. 3 Education Resource Center Information < https://eric. 2006) in order to explore English teachers’ ed.gov>. identities in a certain context. 4 Coordination for the Improvement of Higher Educa- In line with the tenets of identity tion in Brazil < http://bancodeteses.capes.gov.br/banco- -teses/#/>. defended in this paper, the ontology adopted

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 321-339, jul/dez. 2017 326 Disponível em: English teachers’ identities concerning their knowledge of slang for this research draws on a critical realism (appendix 2)6, that was fully transcribed as (LINCOLN; GUBA, 2006), whereas the shown in appendix 3. Such interviews were epistemology is interpretive, which in turn conducted from September to November of validates human subjectivity in knowledge 2016. construction on the one hand, and on the Drawing on discourse studies other, considers some objectivity of such (FOUCAULT, 1978, 1997, 2009), I stress that process (SCHWANDT, 2006). With such representations of teachers about themselves methodological framework in mind, I are the corollary of numerous ideological can take into consideration the historical constraints. Hence, such representations moment of this investigation, without are socially constructed and the socio- jumping to generalized conclusions, thus historical contexts play a crucial role in this my interpretations are always prone to being construction. Bearing this in mind, the next questioned or resignified. section provides the data analysis of this In order to preserve the physical and investigation. emotional integrity of the participants in this study, some ethical recommendations were Data Analysis considered: Resolution No. 196 (Oct 10, 1996) and British Education Research Association As said before, I selected the most (BERA, 2011). Therefore, an informed experienced teachers (from 12-38 years consent was prepared (appendix 1), showing of experience) who teach all levels: from participants all the process of this study, beginners to advanced. Analyzing qualitative ethical commitment and my appreciation. research implies a categorization of data. My ethical commitment concerned identity This way, after examining each line of the anonymity, the right to withdraw consent transcripts, some analytical categories without any penalty, access to the study, emerged, as follows: prevention of risks and so forth. As displayed in the table above, 7 To achieve my research goals and analytical categories emanate from the data questions, I chose the three major5 language examined and each category is subsumed schools in Cornélio Procópio, Paraná. As under one of the 4 dimensions. In this regard, a criterion to delimit the participants, I categories and dimensions are intertwined selected the most experienced teachers (one in a way that the latter entails a broad idea of from each school). For ethical reasons, the the fact and the former narrows down such participants will be referred to as teacher A, idea. In other words, such connectedness B and C resembles a hyponymy- hyperonym The tool for data generation was a semi- interaction (SENEFONTE, 2014; REIS, 2011). structured and audio-recorded interview 6 My eternal thanks to Dr. Simone Reis, associate profes- sor at State University of Londrina (Graduate Program in Language Studies) for her valuable contributions to the 5 In terms of number of students. interview questions.

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Table 1: Analytical Dimensions and Categories Participants Teaching of Language Fluency Knowledge of Slang Use of Slang Slang Dimension *Attitudes *Conceptualization *Evaluation (scale) (positive) (intelligibility) *Source *Purpose Teacher A *Difficulties (formal and (pedagogical) *Self-Assessment (geographical informal) (positive) boundaries) *Conceptualization *Evaluation *Purpose *Attitudes (sociolinguistics) (scale) (sociopragmatic (positive) Teacher B *Self-Assessment *Source and *Difficulties (positive) (informal) pedagogical) (contextual) *Conceptualization *Evaluation *Attitudes (cognitive) (scale) (positive) Teacher C *Source *Absent *Difficulties *Self-Assessment (formal and (geographical (positive) informal) boundaries) Source: the author (based on Senefonte 2014)

That being said, under the dimension when you are totally able to communicate in Language Proficiency, teachers conceptualize the language with confidence.” (teacher C, what they seem to understand by proficiency. lines 99-100). For teacher A, such conceptualization is In addition to the conceptualization, subordinated to the notions of intelligibility: the participants assess their own proficiency “Being fluent means expressing ourselves in English, and this self-assessment indicates in a spontaneous and intelligible way, a positive perception of their language using an appropriate pronunciation and proficiency: intonation, so that you can communicate I think throughout these years I fit in normally.” (lines 8-9). Teacher B draws on a the concept of fluency I mentioned in sociolinguistic perspective: “hmm, it’s when the previous question (teacher A, lines you are able to use it in any situation […]” 11-120). (line 58). Apparently, this conceptualization Yes, I am fluent, because I am able is influenced by the Principle of to communicate normally, using the Appropriateness (BEAUGRANDE; English language in different contexts. DRESSLER, 1981), which entails language (teacher B, lines 60-61). adequacy to a certain context. The last I consider myself fluent in the participant includes a cognitive dimension language I teach, because I have great to her conceptualization: “Well, in my knowledge of grammar, vocabulary conception, being fluent in a language is and conversation in English. (teacher C, lines 102-103).

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 321-339, jul/dez. 2017 328 Disponível em: English teachers’ identities concerning their knowledge of slang

From the dimension Knowledge of to teach to my students during the classes. Slang, two categories were derived. First, (teacher A, lines 28-29) and “I use them with teachers evaluate their knowledge of slang. my friends, colleagues, family and students Both teachers A and B seem to evaluate their from more advanced levels, in classes knowledge imagining a scale (a lot- a little, focusing on speaking. The purposes? I think good-bad and so forth): “[…] it’s not exactly it makes the conversation more relaxed, the object of study in any language school I informal” (teacher B, lines 72-74). In addition know, so my knowledge is not deep.” (teacher to the pedagogical dimension, we can notice A, lines 14-15) and “Hmm, maybe intermediate that teacher B adds a sociopragmatic purpose level? I know, but not deeply.” (teacher B, line for the use of slang. Furthermore, teacher A 66). The negative form of the word ‘deep’ may brings out some important issues regarding indicate that teachers’ knowledge of slang is the conceptualization of slang: it is a group somewhat limited. This is corroborated by language and it functions as an identification teacher C: “I have good knowledge of slang, of such group (PRETI, 2000, 2005). but I think I need to improve my vocabulary Nevertheless, this category (purpose) in this field.” (lines 107-108). has not been found for teacher C: “Because, Apropos the source of knowledge (of slang), I don’t see any necessity of using this kind of teachers A and C assert that this knowledge language, having in mind the methodology I emanates from formal and informal work with.” (lines 116-117). This result seems education: “Well…language schools, search, to convey a lack of prestige for slang, from the slang dictionaries […]” (teacher A, line 23) and part of the participant, both in and outside “I learned it during my studies at {language the classroom. In this respect, Foucault (1978, school names’ suppressed}, listening to 1997, 2009) emphasizes the extent to which international songs, also watching American society has silenced certain topics. films and talking with friends who live From the last dimension Teaching abroad” (teacher C, lines 110-111). On the of slang, all the participants have a positive other hand, teacher B learned slang only attitude when they are asked questions through informal education: “songs, movies, (regarding slang) they do not know: series, things like these” (line 68). Such data Despite my experience and knowledge corroborate the existing literature, which I have acquired during these 38 years, bespeaks a gap in formal education vis-a-vis of course there are some words or slang (SENEFONTE, 2014). expressions that I don’t know, so I say The dimension Use of Slang provided the truth when they ask me something only one category, purpose of such use. I don’t know, but I always tell them Both teachers A and B signal a pedagogical I will search that and provide the purpose for using slang: “Hmm, slang is like information in another class. (teacher an identity for some groups […] age, social A, lines 33-36). groups, it is related to culture. I only use them I search for the meaning of the word. I say I will search and bring the

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information in the next class. I try correct context to use each slang. It’s to see the context where the slang difficult when a student is not native, was used to get to a correct answer. you know? The student doesn’t have (teacher B, lines 79-80). the contact with the country where the I have a natural reaction […] I tell them slang is from, so it’s difficult to use this that I don’t know, but I will search for kind of language correctly. (teacher A, the meaning of it. (teacher C, lines lines 40-45) 119-120). ah, ok. I think living abroad, in a country where English is spoken would The teachers’ answers uncover a natural help in the learning of slang. (teacher and honest stance when they do not have a C, lines 125-126) prompt answer for an inquiry, even though this type of situation might be embarrassing Hence, the mastery of slang is perceived to some professionals, since there is as being constrained by geographical barriers; considerable pressure on teachers as to such assumption is found in the literature knowing the subject they teach (SHULMAN, in this topic (TOMAZONI; LUNARDI, 1986, 1987). Hence, these results unveil that 2011; SENEFONTE, 2014 and others). the teachers investigated in this study seem Unfortunately, it is well known that an not to demonstrate any inferiority complex, experience abroad is a very remote possibility as found in other studies, such as Tomazoni for the vast majority of Brazilian students. and Lunardi (2011). Furthermore, it is imperative to stress that Concerning the last category ‘difficulties’ an experience abroad is not a requirement in teaching slang, the context plays a for language proficiency, especially if we fundamental role, since it is primordial for take into consideration the exponential the use and grasp of slang, Teacher B claims advent of technology in the globalized world. that some difficulty teaching slang lies in the Moreover, as English has moved more and contextual fact: “hm, hard to say. I think it all more towards paramountcy, reaching a depends on the contact you have with this lingua franca status, such geographical kind of language, within a certain context, boundaries tend to be weakened. where they are used. Also, it depends on the interest to use them” (teacher B, lines 83-85). Final Considerations Whereas teachers A and C attribute such As stated in the first lines of this paper, difficulty to geographical boundaries: identity has been influenced by the so-called Understanding the right situations postmodern world. In this sense, one may to express ourselves through slang or consider identity as unstable, multifaceted, idiomatic expressions needs a complete unfinished, dynamic, individual and immersion, living abroad, having the collective and it is constructed in relation to daily activities, in that region, with the other. Additionally, professional identity that group, you see? […] the user can understand the circumstances, the is formed/ shaped taking into account

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 321-339, jul/dez. 2017 330 Disponível em: English teachers’ identities concerning their knowledge of slang one’s own representations (focus of this in this topic and, most importantly, I hope investigation). this study may enable teachers to reflect With this in mind, I bring back the critically over their process of identity research questions and goal in order to construction, content knowledge, teaching conclude this part of the study: practices and so many others variables that a. How do English teachers evaluate their embrace the teaching profession. knowledge of slang? Teachers evaluate Being cognizant of discourses (and their their knowledge of slang envisaging a ideologies) that surround us is of paramount scale ranging from high-low, advanced- importance so that we understand the extent beginner and so forth. On account of to which they can shape us as human beings the predominant negative form of the and, principally, as teaching professionals. word ‘deep’, it seems they perceive their

knowledge of slang as somewhat limited. References b. What challenges, if any, do teachers face ALSUP, J. Teacher Identity Discourse. when they address such topic in class? Malwash, New Jersely: Lawrence Earlbaum Teachers believe that mastery of slang in Associates, Inc., 2006 English is constrained by geographical BARBARA, L.; SARDINHA, T. B. Professor: A boundaries, which is perceived as a imagem projetada na imprensa. Investigações: potential hindrance to the teaching of Linguística e Teoria Literária, Recife: UFPE, slang. v17, n.2, p.115- 126, 2005. Regarding my research goal (explore BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto teachers’ identity concerning their Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. knowledge of slang in English), the teachers BEAUGRANDE, R. A.; DRESSLER, W. U. interviewed consider themselves fluent and Introduction to text linguistics. London; New are confident of their language/ teaching York : Longman, 1981.270p. abilities, since they do not get uncomfortable BEIJAARD, D; MEIJER, P. C., VERLOOP, when asked slang words they do not know. N. Reconsiderando a pesquisa sobre a Despite acknowledging some limitations as identidade profissional de professores. to their knowledge of slang, they do not seem Tradução de Lautenai A. Bartholamei Jr., to demonstrate any remnant of inferiority Simone Reis e Lincoln P. Fernandes. Título complex (neither for being non-native original: Reconsidering research on teacher’s speakers nor for the knowledge of slang). Professional identity. In: REIS, Simone; Based on these facts, slang seems not to be a VAN VEEN, Klaas; GIMENEZ, Telma. (Org.). requirement for language fluency. Identidades de professores de línguas. As shown earlier, scant attention has Londrina: Eduel, 2011. been placed on slang (concerning empirical BERA. Ethical Guidelines for Educational research and didactic materials). So, I believe Research. 2011. Available at accessed on 05/05/12

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 321-339, jul/dez. 2017 Disponível em: 331 Fábio Henrique Rosa Senefonte

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Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 321-339, jul/dez. 2017 332 Disponível em: English teachers’ identities concerning their knowledge of slang

PRETI, D. A gíria na língua falada e na escrita: TOMAZONI, P. C.P.; LUNARDI, V. U. Reflexões uma longa história de preconceito social. In: sobre a identidade do professor de inglês não PRETI, Dino. (org.) Fala e Escrita em Questão. nativo. In: REIS, Simone; VAN VEEN, Klaas; São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 2000. GIMENEZ, Telma. (Org.). Identidades de QUEVEDO-CAMARGO, G; EL KADRI, M. S.; professores de línguas. Londrina: Eduel, 2011 RAMOS, S. M. Identidade do Professor de VIDICH, A.; LYMAN, S. M. Métodos Língua Inglesa: um levantamento eletrônico Qualitativos: sua história na sociologia e das pesquisas no Brasil. In: REIS, Simone; antropologia. In.: DENZIN,N. K.; LINCOLN,Y.S. VAN VEEN, Klaas; GIMENEZ, Telma. (Org.). (Eds.) Planejamento da Pesquisa Qualitativa. Identidades de professores de línguas. Porto Alegre: Artmed, 2006. p.49-90. Londrina: Eduel, 2011. REIS, S. Análise Qualitativa de dados verbais. Recebido para publicação em 21 set. 2017. Curso de Extensão. Projeto de Pesquisa Aceito para publicação em 30 nov. 2017 Letramento Crítico na Educação de Professores de Inglês. Universidade Estadual de Londrina, 2011. SENEFONTE, F.H. R. Puro x Impuro / Sagrado x Profano: Percepções de Professores sobre Gírias nas Aulas de Inglês. 2014. 171 fls. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2014. SENEFONTE, F.H.R. Colaboração no Ensino e Aprendizagem de Inglês no Contexto Brasileiro. Revista L@el em (Dis) curso, n 1, v.7, 2015, p.3-22. SCHWANDT, T. A. Três posturas epistemológicas para a investigação qualitativa: interpretativismo, hermenêutica e construcionismo social. In.: DENZIN,N. K.; LINCOLN,Y.S. (Eds.) Planejamento da Pesquisa Qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2006. p.193- 217 SHULMAN, L. S. Knowledge and teaching foundations of new reform. Harvard Educational Review. Cambridge, MA, v. 57, n. 1, p.1 -22, 1987. SHULMAN, Lee S. Those who understand: Knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Washington, v. 15, n. 2, p.4-14, 1986.

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APPENDICES

Appendix 1: Informed Consent

Informed Consent

You have been invited to participate in the research entitled: “English Teachers’ Identity Concerning their Knowledge of English”, supervised by professor Fábio Henrique Rosa Senefonte, from the State University of Northern Paraná (UENP). The research focuses on English teacher identity concerning their knowledge of slang. The results of such study may be published in scientific events or journals (subject to peer review). Once you have agreed to participate in the afore-mentioned research, you will undergo a semi-structured and audio-recorded interview, conducted in English. Respecting some ethical observations, should you accept this invitation, your identity will be kept anonymous during the whole process of the study. Additionally, your participation is voluntary, which entitles you to the right to withdraw your consent at any time, without any penalty or consequences. Moreover, you are entitled to access to the results of the study. In case you interested, please provide your contact information (phone, address or email address). Furthermore, you will neither have any kind of financial cost nor have risks of any kind. Your participation is very important and will contribute to the literature in the afore-mentioned topic. Thank you for considering my request.

______XXXXX (researcher) State University of Northern Paraná (UENP) [email protected]

I,______, identity number______, declare that I am fully aware of the content of this term and also that I have received a copy of this term, dated and signed by both parts.

Cornélio Procópio, ______, 2016. ______Participant email

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 321-339, jul/dez. 2017 334 Disponível em: English teachers’ identities concerning their knowledge of slang

Appendix 2: Interview

Institution you work at: ______Gender: ______Age:______Date:_____/_____/______Levels you teach: ______

Interview 1- Where did you study English? 2- How long have you been using the language? 3- How long have you been teaching the language? 4- What is your conception of language fluency? Do you consider yourself fluent? Why?

5- How much do you know of slang in English? 6- (for affirmative answers in 5) How do you evaluate your knowledge of slang? 7- (for affirmative answers in 5) How and where did you learn it? 8- Do you use slang in English? If so, * In what contexts? * For what purposes? *How do you feel using slang inside and outside the classroom? (- For negative answer in 8) Why not? 9- What is your reaction when students ask you slang words you do not know? 10- What challenges, if any, do you face when you address such topic in class?

Appendix 3: Transcripts

Teacher A

Researcher: So, let’s start. Where did you learn English? Teacher A: At {language school’ name suppressed} and at {university’s name suppressed} Researcher: How long have you been using the language? Teacher A: Hm, let me think […] for about 38years, I guess Researcher: How long have you been teaching English? Teacher A: for 35 years

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 321-339, jul/dez. 2017 Disponível em: 335 Fábio Henrique Rosa Senefonte

Researcher: What’s your conception of language fluency? Teacher A: Being fluent means expressing ourselves in a spontaneous and intelligible way, using and appropriate pronunciation and intonation, so that you can communicate normally. Researcher: Do you consider yourself fluent? Why? Teacher A: I think throughout these years I fit in the concept of fluency I mentioned in the previous question. Researcher: How much do you know of slang in English Teacher A: Hm, hard question {laughter}, it’s not exactly the object of study in any language school I know, so my knowledge is not deep. Researcher: How do you evaluate your knowledge of slang? Teacher A: Han […] when I teach slang or swear words in English or Spanish, because I teach Spanish as well, I tell my students that there are some expressions naturally associated with the language, but also with culture as well and the use of slang, swear words or idiomatic expressions is related to the context and culture of a certain region, which makes the use of this type of language very difficult, especially to foreigners. Researcher: How and where did you lean it? Teacher A: Well…language schools, search, slang dictionaries, because I need to teach these things to my students, right? Researcher: Do you use slang in English? Teacher A: Yes! Researcher: In what contexts and for what purposes? Teacher A: Hmm, slang is like an identity for some groups […] age, social groups, it is related to culture. I only use them to teach to my students during the classes. Researcher: How do you feel using slang inside and outside the classroom? Teacher A: I almost never use slang outside the classroom, I use more idiomatic expressions. Researcher: What is your reaction when students ask you slang words you don’t know? Teacher A: {laughter] Despite my experience and knowledge I have acquired during these 38 years, of course there are some words or expressions that I don’t know, so I say the truth when they ask me something I don’t know, but I always tell them I will search that and provide the information in another class. Researcher: what challenges, if any, do you face when you address slang in class? Teacher A: Let’s see, using slang or idiomatic expression is not easy at all, because this kind of language meets a cultural demand, I think. And sometimes it is contextual, in a specific region, related to social groups. Understanding the right situations to express ourselves th- rough slang or idiomatic expressions needs a complete immersion, living abroad, having the daily activities, in that region, with that group, you see? […] the user can understand the circumstances, the correct context to use each slang. It’s difficult when a student is not native,

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 321-339, jul/dez. 2017 336 Disponível em: English teachers’ identities concerning their knowledge of slang you know? The student doesn’t have the contact with the country where the slang is from, so it’s difficult to use this kind of language correctly. Researcher: Ok, anything else? Teacher A: Hm, no, I think that’s it. Researcher: Thank you so much! Teacher A: not at all, whenever you need…

Teacher B

Researcher: Ok, can we start? Where did you learn English? Teacher B: I learned at {language school’s name suppressed}, in {town suppressed} Researcher: how long have you been using English? Teacher B: Well, I finished my course in 2004, so 12 years, right? {laughter}. But I already used it, before I started teaching Researcher: How long have you been teaching the language? Teacher B: I guess, about 10 years. Researcher: What is your conception of language fluency? Teacher B: hmm, it’s when you are able to use it in any situation. Yes, that’s it. Researcher: Do you consider yourself fluent? Why? Teacher B: Yes, I am fluent, because I am able to communicate normally, using the English language in different contexts. Researcher: How much do you know of slang in English? Teacher B: hmm, I know some slang words well, but I don’t use them a lot, they don’t apply to my job, you know? I use more in more relaxed situations. Researcher: How do you evaluate your knowledge of slang? Teacher B: Hmm, maybe intermediate level? I know, but not deeply. Researcher: How and where did you learn it? Teacher B: Let’s me see […] songs, movies, series, things like these. Researcher: Do you use slang in English? Teacher B: yes, I do. Researcher: In what contexts and for what purposes? Teacher B: I use them with my friends, colleagues, family and students from more advanced levels, in classes focusing on speaking. The purposes? I think it makes the conversation more relaxed, informal. Researcher: How do you feel using slang inside and outside the classroom? Teacher B: Actually, I don’t use much neither in English, nor in Portuguese, so, my use is not frequent. Researcher: What is your reaction when students ask you slang words you don’t know?

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 321-339, jul/dez. 2017 Disponível em: 337 Fábio Henrique Rosa Senefonte

Teacher B: I search for the meaning of the word. I say I will search and bring the information in the next class. I try to see the context where the slang was used to get to a correct answer. Researcher: What challenges, if any, do you face when you address this topic in your classes? Teacher B: hm, hard to say. I think it all depends on the contact you have with this kind of language, within a certain context, where they are used. Also, it depends on the interest to use them Researcher: Would you like to add anything? Teacher B: well, I think it’s a very interesting study and I want to know the results later {laughter}. Researcher: Certainly. Thank you very much for your participation. Teacher B: You’re welcome.

Teacher C

Researcher: So, we can start. Where did you learn English? Teacher C: At two language schools {names suppressed}, with friends who live in Canada and the USA. Researcher: How long have you been using English? Teacher C: Gee, I don’t know. 18 years, maybe. Researcher: How long have you been teaching the language? Teacher C: about 15 years. Researcher: What’s your conception of language fluency? Teacher C: Well, in my conception, being fluent in a language is when you are totally able to communicate in the language with confidence. Researcher: Do you consider yourself fluent? Why? Teacher C: I consider myself fluent in the language I teach, because I have great knowledge of grammar, vocabulary and conversation in English. Researcher: How much do you know of slang in English? Teacher C: Well, I think I have a good vocabulary about slang. Researcher: How do you evaluate your knowledge of slang? Teacher C: I have good knowledge of slang, but I think I need to improve my vocabulary in this field. Researcher: How and where did you learn it? Teacher C: I learned it during my studies at {language school names’ suppressed}, listening to international songs, also watching American films and talking with friends who live abroad […] Canada, the USA, and so on. Researcher: Do you use slang in English? Teacher C: No. I don’t Researcher: Why not?

Uniletras, Ponta Grossa, v. 39, n. 2, p. 321-339, jul/dez. 2017 338 Disponível em: English teachers’ identities concerning their knowledge of slang

Teacher C: Because, I don’t see any necessity of using this kind of language, having in mind the methodology I work with. Researcher: What is your reaction when students ask you slang words you don’t know Teacher C: {laughter} I have a natural reaction […] I tell them that I don’t know, but I will search for the meaning of it. Researcher: What challenges, if any, do you face when you address such topic in class? Teacher C: Sorry? Researcher: Challenges, what challenges, if any, do you face when you address slang in class? Teacher C: ah, ok. I think living abroad, in a country where English is spoken would help in the learning of slang Researcher: Is there anything else you would like to say. Teacher C: No. Researcher: Ok, so thanks for your participation in this study Teacher C: You’re welcome, it was a pleasure.

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