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O CAMINHO DE CAMARÃO E O DESBRAVAMENTO DO SUL ALAGOANO

SILVA, Fábio Barbosa da1 LIRA, Maria Tarcyelma2

RESUMO

Este trabalho é resultado de estudos sobre o seiscentista Caminho de Camarão, aberto no século XVII cortando o extremo Sul da então Capitania de Pernambuco. O mesmo estudo visa investigar possíveis contribuições da Ocupação Holandesa no Nordeste (1630-1654) para o desenvolvimento espacial do Sul do atual território alagoano. Ao registrar este caminho em mapa de 1643, George Marcgraf permite que se faça uma leitura do espaço que atualmente compreende o Sul de ainda no século XVII. A metodologia utilizada neste trabalho consiste na comparação entre o mapa de Marcgraf e imagens atuais do programa Google Earth. Como resultado da pesquisa, foi possível constatar que o referido caminho, ao ligar a Região das Lagoas a possibilitou a intensificação do tráfego entre estes dois pontos pelo interior, servindo como alternativa às antigas vias de acesso pelo litoral. Tal contribuição, mesmo não correspondendo a ação direta e intencional dos invasores batavos, permite inscrever o período holandês em um quadro de descobertas e intervenções por parte dos colonizadores para além do litoral no recorte espacial estudado. Pode-se ressaltar aqui o papel deste caminho para o desenvolvimento da economia local, sobretudo da pecuária.

Palavras-chave: Alagoas. Caminho de Camarão. Ocupação Holandesa.

Introdução

1 Graduado em História pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL. Especialista em Metodologia do Ensino de História pela Faculdade de Ensino Regional Alternativa – FERA. e-mail: [email protected] 2 Mestre em História pela Universidade Federal de Alagoas (2015), com graduação e especialização cursadas na mesma instituição de ensino, membro participante de projetos de pesquisa voltados a pesquisa histórica. Atuando principalmente no seguinte tema: Imaginário, Sertanejo, Cultura e Violência. Orientadora deste trabalho. e-mail: [email protected]

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Em 1643, George Marcgraf fez um trabalho detalhado de mapeamento do Nordeste Brasileiro sob o domínio holandês. O mesmo trabalho foi editado quatro anos depois por Joan Blaeu, que reuniu os mapas de Marcgraf em um pôster que recebeu o nome de Brasiliae Pars Paret Belgis. Caspar Barléus publicou o mapa posteriormente em um livro sobre o Brasil Holandês, por esta razão muitas vezes o mapa é referido como sendo de Barléus. Por se tratar de uma junção de mapas diferentes, as partes recebem nomes que as distinguem. O trecho intitulado Praefecturae Paranambucae Pars Meridionalis corresponde à área do atual território alagoano, nela está representado o Caminho de Camarão. Uma das particularidades deste caminho está no fato de cruzar uma área pouco habitada e distante do litoral. Entendendo que o Caminho de Camarão pode ter sido a primeira via de contato pelo interior entre os dois extremos de Pernambuco, é possível admitir que a sua existência, assim como o período histórico em que ele surgiu, pode ter influenciado no processo de reconhecimento e mesmo apropriação do espaço por ele cortado. Permite ainda defender que, de alguma forma, o Caminho de Camarão relegou ao espaço atual algumas peculiaridades inerentes à ocupação holandesa. A principal preocupação deste trabalho é situar o Caminho de Camarão como uma primitiva via de acesso entre a região das lagoas e o São Francisco. Não há intenção de pormenorizar os pontos cruzados por este caminho, e sim, apontar seu curso aproximado visando situá-lo em um espaço marcado por uma área com significativa concentração populacional nos dias atuais, característica que pode ter sido influenciada pelo referido caminho. Constatar a presença de um caminho ligando dois pontos tão distintos das Alagoas permite que se possam desenvolver discursos explicativos para o desbravamento e futuro povoamento do atual Sul do Estado, antes mesmo do surgimento e intensificação da atividade açucareira na região, o que só veio a ocorrer no inicio do século XIX. A metodologia utilizada para situar o Caminho de Camarão com base em pontos referenciais atuais depende, sobretudo, de análise e intervenção nas imagens de satélite disponibilizadas pelo programa Google Earth. Para tanto, foi considerado pontos referenciais permanentes, como as montanhas e os cursos de água registrados por Marcgraf e que ainda podem ser observados no cenário físico atual.

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O Caminho de Camarão no Praefecturae Paranambucae Pars Meridionalis

O Praefecturae Paranambucae Pars Meridiolis é o trecho da grande obra de Marcgraf na qual se encontra registrado o Caminho de Camarão. Dentre os aspectos mais salientes deste caminho, vale ressaltar a significativa distância do litoral, assim como a sua grande extensão se comparado às demais vias que cortavam o extremo Sul da então Capitania de Pernambuco no século XVII. Os dois primeiros séculos da colonização do Brasil foram marcados por tentativas constantes por parte dos donatários de Pernambuco de expansão do território em direção ao Sul. “A tendência de todos esses povoadores era evidentemente o rio de São Francisco” (ABREU, 1996, p. 57). Quando a Espanha embargou a Holanda nas relações comercias com o açúcar do Brasil, os holandeses revidaram invadindo o Nordeste brasileiro. Esta operação alcançou seu maior êxito em 1630. De acordo com Abreu (1996, p.57) “A invasão Hollandeza sustou o avanço. Bagnoulo, Camarão, Henrique Dias. Vital, Barbalho, abriram caminhos que lhes permittiram passar longe do mar de um a outro extremo de Pernambuco”. Estava lançada a sorte do espaço para além do litoral. A origem, e mesmo os rumos do Caminho de Camarão divergem entre alguns autores. Segundo Mello (2007, p. 274) “é plausível que o caminho mandado abrir por Bagnuolo até o São Francisco correspondesse ao que registra o mapa citado como „Caminho de Camarão‟”. Para autor, o caminho recebe este nome por ter sido a via percorrida por Felipe Camarão em sua retirada para a Bahia, assim como em suas excursões contra os invasores holandeses. Se esta afirmativa for considerada, o caminho que no mapa de Marcgraf cruza o rio Cenembi em N. S. d‟Aiunda e se estende até N. S. d‟Aurade, nas margens do Cururui, se trata de uma extensão do mesmo Caminho de Camarão, uma vez que este caminho também foi aberto por Bagnuolo. Câmara Cascudo (1956, p.169) constatou com base em observações do mapa de Marcgraf, que três caminhos partiam de Penedo em meados do século XVII. Dentre eles “mereceu as honras do registro” o Caminho de Camarão que:

São setenta léguas de trajeto [...] passando quase pelos extremos do Piassabuçu, do Piauí, do Cururuí (Cururipe), Giquiá (ou Jequiá), Urubutinga, alto S. Miguel, atravessava os campos férteis de Nhumanhu (Inhauns), onde se voltava para o Sul, cortando o Potimiri, o Potiguaçú, o Subaúna, o Itinga, o Salgado, passando pela

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povoação de Nossa Senhora do Rosário onde uma variante o levava à de Sant‟Amaro, baixando para “Velho”, atual cidade do Pilar, engenho de Gabriel Soares da Cunha, primeiro Alcaide Mor de Madalena (Alagoas) quando, em 1633, os holandeses atacaram e que pertencia então a Domingos Rodrigues de Azevedo. A seguir, Nossa senhora d‟Anunciação, S. Grauiel (Gabriel) e, abaixo, o Quartier militar, já citado no relatório de Walbeeck, em outubro de 1643. (CASCUDO, 1956, p. 169-170)

Desde a Lagoa do Sul até Penedo os únicos pontos referenciais cortados pelo Caminho de Camarão são elementos naturais, como os rios ou montanhas, como mostra a Figura 1. “Mato” e “Campinas” dominam a paisagem no curso do caminho que, aparentemente liga também os currais do alto São Miguel àquele localizados nas imediações do São Francisco.

Figura 1 – Trecho de Praefecturae Paranambucae Pars Meridionalis com destaque para o Caminho de Camarão

Fonte: Alagoas Turismo. Intervenções do autor do artigo.

Durante o século XVI a principal via de acesso entre o Norte de Pernambuco e Penedo era o oceano, ou um caminho que quase não se afastava do litoral. Por este caminho teria percorrido Knivet em fins do século XVI (KNIVET, 2008) e o Conselheiro Bullestraet (MELLO, 2007) já durante a ocupação holandesa. Este último teria enfrentado, dentre outros problemas, o alto volume de água próximo a foz de rios como o e o Poxim, o que o obrigou a esperar a vazante. O fato de os rios apresentarem maiores volumes de água próximo à foz justifica a necessidade de abertura de vias mais distantes do litoral, onde os rios são menos volumosos e a vegetação menos densa.

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A princípio, a ameaça dos nativos hostis pode ter frustrado qualquer tentativa de interiorização, seja dos núcleos populacionais ou mesmo das vias de acesso. Os principais produtos explorados no Brasil, o pau-brasil e o açúcar, eram recolhidos ou produzidos no litoral, onde as populações ainda no século XVII se encontravam quase estacionadas “nas Fraldas do mar” (BRANDÃO, 1930, p. 28). Os conflitos promovidos pela ocupação holandesa se localizaram, sobretudo, nas zonas produtoras de açúcar, o que obrigou a dispersão das populações nelas instaladas. O Caminho de Camarão é fruto desta necessidade de alternativas de vias distantes do litoral, e que ligassem o Norte e o Sul da então Capitania de Pernambuco.

Refazendo o Caminho de Camarão

No mapa de Marcgraf, a pouca quantidade de elementos registrado em torno do Caminho de Camarão impossibilita uma definição exata da linha correspondente ao que seria seu curso nos dias atuais. Como já apresentado, os únicos pontos marcados na maior parte do caminho são os rios e algumas montanhas, que em alguns pontos não permitem que sejam identificadas com precisão. Diferente do espaço em torno das Lagoas Mundaú e Manguaba, entre Penedo e a atual cidade de Anadia o caminho não corta nenhum engenho, povoações ou outro ponto que pudesse ainda hoje servir como referencia. Neste trecho, os únicos pontos marcados pelo cartógrafo em torno do Caminho, e que constam em sua Notularum explicatio3, são os currais do alto São Miguel e Piracaba, e uma nascente ou “olho d‟agua” entre os rios Coruripe e Piaui. Ainda assim, a comparação do mapa seiscentista com as imagens disponibilizadas pelo Google Earth permite identificar o curso aproximado do Caminho. A reprodução do mesmo sob as imagens do território atual são suficientes para fundamentar um discurso que atenda a proposta deste trabalho de associar o referido caminho, assim como o período histórico em que ele surgiu, ao desbravamento do Sul do atual território alagoano a partir do século XVII. É válido notar que parte do antigo Caminho de Camarão se desenvolveu transformando-se

3 Notularum explicatio é o termo utilizado pelo cartógrafo para designar a legenda por ele desenvolvida para a leitura dos símbolos presentes no mapa.

89 em importantes vias que ligam grandes fluxos populacionais, incluindo o centro urbano de alguns municípios do Sul de Alagoas conforme mostra a Figura 2.

Figura 2 - O Caminho de Camarão sob Intervenção em imagem do Google Earth

Fonte: Google Earth. Intervenção do autor do artigo.

Entre o forte Mauritios, em Penedo, e o ponto em que cruza o rio Piracaba o caminho segue pelo ponto mais alto, desviando os afluentes dos rios Piracaba e Piaçica, os atuais Porucaba4 e Boacica. O fato de não ser registrado a travessia de nenhum riacho neste trecho justifica a afirmativa. A comparação entre o contorno que o caminho faz no mapa de Marcgraf e as intervenções no Google Earth permitem observa que parte do Caminho de Camarão corresponde à parte da atual rodovia Al 110 ligando Penedo a São Sebastião. Na reprodução cartográfica do século XVII, uma grande lagoa se destaca no rio Piaçica, era a Upabuçu ou Lagoa Grande. Atualmente esta lagoa já não existe, porém, as imagens de satélite do Google Earth identificam uma “massa de água” no Boacica próximo ao centro urbano de Igreja Nova. Trata-se de um vasto alagado onde atualmente é cultivado arroz. Não há dúvidas de que este alagado formava, pelo menos em parte do ano, a lagoa registrada no século XVII. Neste trecho Marcgraf registrou ainda um curral por onde o caminho passava, o mesmo é identificado como Belch Alvarez. Se tratava de um dos currais de “Belchior Alvarez Camelo, 1º Alcaide-Mór de Penedo, latifundiário do São Francisco”

4 Trata-se do rio Perucaba registrado no Google Earth como Porucaba.

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(CASCUDO, 1956, p. 162). De acordo com Cascudo (1956), este Belchior além de sesmarias, era um grande criador de gado, responsável, inclusive, por transportar o gado do conde Nassau desde Recife até os seus currais no São Francisco. Após a travessia do Porucaba o caminho cruzava dois pequenos riachos, afluentes do mesmo rio, na extremidade de um deles uma pequena lagoa se encontrava próxima ao curral de Antonio d‟Serra. O formato dos riachos associado ao sentido do Porucaba permite identificá-los como sendo os dois pequenos regatos que nascem nos arredores do centro urbano de São Sebastião. Após abandonar o curral de Antonio d‟Serra o caminho atravessava o rio Piaui. Neste ponto é possível identificar alguns equívocos do cartógrafo holandês. A vertente identificada como Piaguí se trata possivelmente de uma das vertentes do Riacho do Meio, afluente do Piaui. Os seguintes cortados pelo caminho não podem ser afluentes primários do Piaui, e sim vertentes do mesmo Riacho do Meio. Dentre as razões que justificam esta afirmativa, pode-se destacar o fato de que nenhum outro riacho, senão este possui neste trecho extensão suficiente para ser associado àqueles representados por Marcgraf. As pequenas curvas do caminho coincidem, assim como na maior parte do mapa, aos desvios de pequenos córregos. Do mesmo modo, a cadeia de pequenas montanhas que marca a travessia dos riachos coincide ainda com aquelas identificadas no alto curso do Riacho do Meio, nos arredores de São Sebastião. As Figuras 3 e 4 ilustram a associação deste trecho do Caminho de Camarão no mapa de Marcgraf e nas intervenções do Google Earth. Do mesmo modo que a Upabaçú e a pequena lagoa do afluente do Porucaba não passam atualmente de alagados, as vertentes do Riacho do Meio parecem ser bem maiores no século XVII, o que leva a crer que também tenham sofrido grandes transformações e redução do fluxo de água nos últimos três séculos e meio. Se possuíssem os mesmos volumes que atualmente, provavelmente teriam sido desviadas durante a abertura do caminho e por isso seu registro teria se tornado irrelevante.

Figura 3 – Destaque para o trecho entre o Forte Mauritius e o rio Piaguí

Fonte: Alagoas Turismo. Intervenções do autor do artigo.

Figura 4 - Intervenção em imagem do Google Earth entre Penedo e o rio Piaui

Fonte: Google Earth. Intervenção do autor do artigo.

No trajeto entre o Piagui e os Campos de Nhaunhû, Cascudo (1956) registrou que o Caminho de Camarão passava pelos extremos dos rios Piaui e Coruripe. De fato, a observação do mapa de Marcgraf deixa a impressão de que o caminho atravessa os dois rios já próximos de suas nascentes. Na verdade, é possível que o cartógrafo não tenha seguido o rio para muito além do caminho, além do mais, no século XVII, qualquer ponto separado do litoral já era considerado “sertão” dado o pouco conhecimento que se tinha do interior do Brasil. Prova disso é que o mesmo Cascudo, ao tratar de termos das doações de sesmarias na região, fala de propriedades que iam do litoral até o sertão, quando na verdade algumas não passavam de quatro léguas a partir do mar. Um dos elementos imprescindíveis para localizar o Caminho de Camarão no trecho entre os rios Piaui e Coruripe é uma pequena cadeia de montanha, onde 91

uma, nas margens do Piaui recebe até nome próprio, o Blaeuwe berg. O único conjunto de montanhas com traços semelhantes aquelas registradas por Marcgraf são as montanhas nos limites de e , o Blaeuwe berg, é, possivelmente, o Alto do Cruzeiro, em Junqueiro onde anualmente pela Quaresma ocorre a encenação da Paixão de Cristo através da qual a cidade é conhecida. Pereira (2015) defende hipótese semelhante quanto à localização das montanhas. A travessia do rio Coruripe apresenta dois elementos que acabam divergindo. O primeiro é uma curva onde o Caminho aparece como que desviasse algo. Um pronunciado alargamento do vale no local onde se localiza a fazenda São Matheus parece justificar essa curva, é o ponto onde o vale do Coruripe apresenta o maior alargamento no médio curso. Porém, em 1912 o Bispo de Alagoas ao criar a paróquia de Junqueiro se referiu ao local como a gruta do Matheus, onde notificou a existência de uma lagoa, atualmente um brejo e uma lagoa artificial onde são descartados parte dos dejetos industriais da usina Seresta. Possivelmente, assim como as outras lagoas já trabalhadas, a do rio Coruripe já existisse no século XVII, se de fato o Caminho cruzasse o rio naquele ponto, uma lagoa teria sido registrada. Outro aspecto da representação do caminho no mapa sugere que o mesmo cruzava o Coruripe um pouco a cima deste ponto. No mapa, quem percorresse o Caminho de Camarão deveria atravessar o rio Coruripe três vezes em seguida antes de seguir seu curso pelos tabuleiros. O ponto que melhor justifica esta travessia tripla fica entre o Sitio Passagens e o Gerais, em Teotônio Vilela, onde o rio encravado entre ladeiras íngremes faz curvas acentuadas. Depois do rio Coruripe, seguindo para o riacho Cabatá, o caminho segue quase reto, não cruza ou desvia riachos, o que sugere que seu curso ficava acima das nascentes dos riachos Escorrega e Baixa d‟Água. O Cabatá de Marcgraf é o complexo formado pelos riachos Caboatã, Manibú e Mandante. Na travessia do Jequiá o cartógrafo representou montanhas dos dois lados do rio. Nenhuma formação que possa ser associada àquelas registradas foi observada, o que leva a crer que se tratava de saliências dentro do próprio vale do rio Jequiá. A presença do riacho Urubutinga no Mapa seiscentista aponta a qualidade do trabalho de Margraf. O mesmo riacho quase não aparece registrado mesmo em mapas posteriores. No entanto está claro que ouve um equivoco do cartógrafo, pois, o Urubutinga não possui extensão suficiente para ser cortado pelo Caminho de

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Camarão paralelo ao Caboatã. Deste modo, a travessia do Urubutinga pode ser na verdade a travessia de algum dos riachos afluentes do Jequiá e paralelos a ele. As Figuras 5 e 6 mostram em destaque a cadeia de montanhas registradas por Margraf entre os rios Piaui e Coruripe, mostra ainda o ponto provável onde o Caminho faz a travessia tripla do rio Coruripe. Próximo ás montanhas o cartógrafo registrou um símbolo que representa uma “nascente ou olho d‟água”, o ponto coincide com a localização do povoado Olho D‟água, em Junqueiro. Possivelmente a mesma nascente observada por Marcgraf tenha dado nome ao povoado.

Figura 5 - Trecho entre o rio Piaguí e o Figura 6 - Intervenção em imagem do Urubutinga com destaque para o Blaeuwe Google Earth com destaque para Teotônio berg e o rio Cururui Vilela e Junqueiro

Fonte: Alagoas Turismo. Intervenção do autor Fonte: Google Earth. Intervenção do autor do do artigo. artigo.

O trecho entre o Jequiá/Urubutinga e os campos de Nhuanhú – Nhumahu – se encontra completamente dominado pelas plantações de cana de açúcar. Uma vez que os canaviais obedecem a regras próprias de aberturas de vias, se torna muito difícil identificar qualquer estrada neste trecho como um fragmento do Caminho de Camarão. No entanto, uma carta topográfica de 1820, de José da Silva Pinto, apresenta evidencias que apontam o uso desse caminho ainda no século XIX. A mesma carta evidencia que outros caminhos ligados ao Caminho de Camarão ainda eram utilizados quase 200 anos depois de Marcgraf registrá-los. Cascudo (1956) defendeu que o mesmo caminho não fosse utilizado habitualmente, porem, conforme mostram as Figuras 7 e 8, a comparação entre os trabalhos de Marcgraf e Silva Pinto permite afirmar-se que o Caminho de Camarão que ligava pontos estratégicos ao Sul das lagoas no século XVII, era o mesmo que ainda ligava importantes centros populacionais e comerciais na então Capitania de

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Alagoas, no século XIX. Neste trecho, as vias entre o Nhuanhû e Nossa Senhora d‟Aiuda de Marcgraf possuem, claramente, os mesmos traços daquelas que ligam Anadia a São Miguel dos Campos em Silva Pinto.

Figura 7 - Destaque de Caminhos Figura 8 - Caminhos em torno do rio juntos ao Caminho de Camarão em São Miguel na Carta Topográfica da torno do rio Cenembi Capitania das Alagoas de 1820

Fonte: Alagoas Turismo. Intervenções do autor Fonte: Biblioteca Nacional do . do artigo. Intervenções do autor do artigo.

Seguindo seu curso, o Caminho de Camarão cruza o rio Cenembi, o São Miguel, em um ponto marcado por uma lagoa. Este ponto seria os atuais alagados entre o centro urbano de Anadia e o rio São Miguel. Após cruzar o rio, o caminho ligava pelo menos três currais antes de atravessar um conjunto de pequenos afluentes que nascem aos pés da grande cadeia de montanha que, por sua vez, contorna o interior do continente desde o Çobauna - o Sumaúma - até o São Francisco. Dos três afluentes do rio São Miguel, Marcgraf identificou com nome o Potimiri e o Potiguçu. Possivelmente o cartógrafo queria escrever Potiguaçu. Pode-se traduzir os dois termos como Camarão Pequeno e Camarão Grande, este último era o nome de Felipe Camarão antes de ser batizado (RODRIGUES, 1954). Pereira (2015) defende que esses riachos são os atuais Camarão Preto e Camarão Branco

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nas Proximidades do centro urbano de . Os dados disponibilizados pelo IBGE no Mapa Municipal Estatístico de Boca da Mata permitem observar que os traços de Macgraf coincidem como esses dois riachos. O terceiro riacho, que não recebeu nome no mapa de Marcgraf, é, por sua vez, o atual Nossa Senhora. As Figuras 9 e 10 possibilitam a comparação entre o Mapa seiscentista e a atual configuração deste trecho em intervenção das imagens de satélite do Google Earth.

Figura 9 - Trecho do Caminho de Figura 10 - Intervenção em Imagem do Camarão entre Nhuanhú e o riacho Google Earth de Anadia à Boca da Potiguaçú Mata

Fonte: Google Earth. Intervenções do autor o Fonte: Alagoas Turismo. Intervenções do autor artigo. do artigo. A partir da montanha Taybu Guaçu, a primeira montanha da já referida grande cadeia, nas imediações de Boca da Mata, o Caminho de Camarão segue para a região das Lagoas, já amplamente habitada em meados do século XVII. O Sumauma era cruzado junto á alguns afluentes. O nome de alguns cursos d‟água do mapa de Marcgraf não coincide com os atuais, sobretudo neste trecho em torno das lagoas. Porém, a admirável qualidade da obra de Marcgraf permite identificar desde grandes rios a pequenos riachos, levando-se em consideração o sentido e algumas curvas que se destacam tanto no Praefecturae Paranambucae Pars Meridionalis quanto nas imagens do Google. As Figuras 11 e 12 apresentam este trecho desde a Taybu Guaçu até a Lagoa do Sul, dentre os topônimos identificados neste trecho, vale destacar o Engenho Velho que, segundo Cascudo (1956), corresponde à atual cidade do Pilar.

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Figura 11 - Trecho entre o riacho Figura 12 - Intervenção em imagem do Potiguaçú e o Norte da Paraigera ou Google Earth de Boca da Mata e a Lagoa do Sal Lagoa Manguaba

Fonte: Alagoas Turismo. Intervenções do autor Fonte: Google Earth. Intervenções do autor do do artigo. artigo.

Em torno da Mundaí, ou Lagoa do Norte, o Caminho passa por Santa Luzia, atual e segue para o rio Mundaú, que cruza depois de um de seus afluentes, o Potiguaçutiba. A julgar pelas principais curvas e localização, o Potiguaçutiba é o atual Riacho Caboclo descrito no Mapa Municipal Estatístico de . O local onde se encontra o centro desta cidade também era cortado pelo Caminho de Camarão. O riacho Carrapato, descrito por Marcgraf, não coincide com a localização de nenhum outro riacho na margem Norte da Lagoa Mundaú. O ponto provável de sua localização é marcado apenas por alagados, para justificar sua existência é possível levantar duas hipóteses. A primeira, e considerada por este trabalho, é a de que ele se trate do riacho Carrapatinho, localizado entre Satuba e Maceió, a segunda é de que sua foz esteja localizada nas imediações do Bairro Santa Amélia em Maceió. O espaço que o Caminho de Camarão corta do riacho Carrapato até o litoral coincide com a zona Urbana de Maceió. A intensa transformação do espaço dificulta qualquer afirmativa concreta quanto o seu rumo neste trajeto, o certo é que ele encontra o mar ao sul do rio Doce depois de uma bifurcação. O trajeto possível marcado no Google Heart considera os pontos em que o caminho não precisaria

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cruzar riachos desde o Carrapato até o mar. Este espaço coincide em parte com algumas das principais ruas de Maceió, conforme apresentam as Figuras 13 e 14.

Figura 13 - Trecho entre a Mondaí ou Lagoa do Norte e um dos extremos do Caminho de Camarão

Fonte: Alagoas Turismo. Intervenção do autor do artigo.

Figura 14 - Intervenção em Imagem do Google Earth entre a Lagoa Mundaú e o litoral de Maceió

Fonte: Google Earth. Intervenções do autor do artigo.

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Aparentemente alguns riachos entre a lagoa Mondaí e o riacho Garça Torta foram ignorados por Marcgraf. Caso o Caminho encontrasse o mar ao lado do Garça Torta, inevitavelmente outros riachos teriam sido cruzados pelo caminho, o que não é registrado pelo cartógrafo. A despeito de qualquer equívoco, seja de Marcgraf, seja de interpretação dos mapas e imagens de satélite, é evidente que um dos extremos do Caminho de Camarão se localizava onde hoje se encontra o centro urbano de Maceió.

Conclusão

Não há evidencias que apontem para o desenvolvimento de núcleos populacionais na área estuda que estejam diretamente vinculados à ocupação holandesa. O Caminho de Camarão, assim como as demais vias registradas no mapa estudado, não pode ser interpretado como obra de mãos holandesas. De acordo com Cascudo (1956, p.29), “Povo de navegadores, o Holandês enjoava em terra”. Ao que tudo indica, os holandeses encontraram e deixaram o Sul de Alagoas praticamente desabitado. A estadia dos holandeses no Nordeste esteve para o comercio de açúcar e não para o povoamento. Ainda assim, é inevitável associar a ocupação holandesa à intensificação do tráfego e reconhecimento do espaço entre as Lagoas e o São Francisco. A evacuação das populações do Norte devido à guerra, e as constantes investidas rumo ao São Francisco, permitiu maior interação entre os colonizadores, os invasores e o espaço estudado que funcionou, de certa forma, como espaço tampão, encravado entre o Norte de Pernambuco, reduto dos invasores, e a Bahia, um dos principais núcleos da resistência. Situar o Caminho de Camarão não só rememora o papel da ocupação holandesa na revelação do espaço estudado como pode ajudar á fundamentar aspectos e relatos envolvendo os holandeses e o período holandês na formação sócio espacial do Sul de Alagoas.

REFERÊNCIAS

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