PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATOLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

O REALISMO METAFÍSICO DO FAROESTE E SUAS MUTAÇÕES NA DÉCADA DE 1960: UMA ANÁLISE DE , POR UM PUNHADO DE DÓLARES E OS DEUSES E OS MORTOS

FRANCISCO ETRURI PARENTE

SÃO PAULO 2020 FRANCISCO ETRURI PARENTE RA: 00216314

Dissertação apresentada ao programa de Pós- graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo para a obter o título de Mestre em Comunicação.

Área de concentração: Teoria do Cinema.

Orientadora: Prof.ª. Dr.ª Maria Lucia Santaella Braga

SÃO PAULO 2020

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Nome: Francisco Etruri Parente

Título: Mutações do Gênero Faroeste na Década de 1960

Dissertação apresentada ao programa de Mestrado em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo para a obter o título de Mestre em Comunicação.

Aprovado em: ___/___/___

BANCA EXAMINADORA

Orientador: Prof.ª Dr.ª______

Instituição: ______Assinatura: ______

Prof. Dr.______

Instituição: ______Assinatura: ______

Prof. Dr.______

Instituição: ______Assinatura: ______

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente aos meus pais, que sempre acreditaram em mim e apoiaram meus projetos, sem vocês nada disso seria possível. Agradeço a minha amada noiva Nathalia, além de todo apoio emocional também teve a árdua tarefa de corrigir esta dissertação. Agradeço a minha orientadora Lucia Santaella que me possibilitou a realização esta pesquisa. Agradeço a generosidade da professora Leda que me incluiu no seu grupo de pesquisa e me ensinou a escrever artigos científicos. Agradeço aos professores Juan Droguett e Marcelo Prioste pelo direcionamento sábio dado a este projeto. Por fim, agradeço a todos os meus colegas e professores que enriqueceram e iluminaram meu caminho com toda a sua sabedoria.

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Epígrafe

"Cinema não é para entreter, é para fazer sonhar. " (Wim Wenders)

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RESUMO

O trabalho pretende analisar as mutações estéticas e narrativas que o gênero cinematográfico do Faroeste sofreu na década de 1960 a partir de três obras que possuem narrativas muito similares: Yojimbo (1961) de , Per un Pugno di Dollari (1964) de Sergio Leone e Os Deuses e Os Mortos (1970) de Ruy Guerra. E desta maneira demonstrar o potencial do gênero cinematográfico como objeto de estudos para a interpretação da história do cinema. Para realizar tal análise o trabalho buscará definir as características principais que constituíram o gênero de seu nascimento dos anos 1900 até a década de 1960 a partir das concepções de André Bazin e Jean Louis Rieupeyrout. A partir da definição do gênero baseada na nova crítica francesa, o trabalho se dedicará a estudar a influência que o cinema hollywoodiano tem sobre a obra de Akira Kurosawa e como este cineasta ressignificou o gênero japonês Jidaigeki (gênero cinematográfico que se dedica a explorar o Japão feudal como ambiente principal para os acontecimentos dramáticos) ao estabelecer um diálogo com o western norte-americano, o filme que servirá de base para essa comparação será Yojimbo. Depois o trabalho se dedicará a estudar o revisionismo do “faroeste espaguete” ao trabalhar o filme Per un Pugno di Dollari de Leone, que foi uma refilmagem não oficial de Yojimbo. Por fim o trabalho irá analisar a desconstrução do gênero e das narrativas dos dois filmes já citados ao estudar a obra Os Deuses e Os Mortos de Ruy Guerra, e a partir deste confronto explorar as reações do cinemanovismo brasileiro contra o cinema comercial produzidos em países de primeiro mundo.

Palavras-chave: Gênero, Kurosawa, Leone, Guerra, Faroeste

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ABSTRACT

The work aims to analyze the aesthetic and narrative mutations that the western cinematographic genre suffered in the 1960s from three works that have very similar narratives: Yojimbo (1961) by Akira Kurosawa, Per un Pugno di Dollari (1964) by Sergio Leone and Ruy Guerra's Of Gods and the Undead (1970). And in this way to demonstrate the potential of the cinematographic genre as an object of studies for the interpretation of the history of cinema. To carry out such an analysis, the work will seek to define the main characteristics that constituted the genre of his birth from the 1900s to the 1960s, based on the conceptions of André Bazin and Jean Louis Rieupeyrout. Based on the definition of the genre based on the new French criticism, the work will be dedicated to studying the influence that Hollywood cinema has on Akira Kurosawa's work and how this filmmaker has re-signified the Japanese genre Jidaigeki (film genre dedicated to exploring Japan feudal as the main environment for dramatic events) when establishing a dialogue with the North American Western, the film that will serve as the basis for this comparison will be Yojimbo. Then the work will be dedicated to studying the revisionism of the “western spaghetti” by working on Leone's film Per un Pugno di Dollari, which was an unofficial remake by Yojimbo. Finally, the work will analyze the deconstruction of the genre and narratives of the two films already mentioned when studying the work Os Deuses e Os Mortos by Ruy Guerra, and from this confrontation explore the reactions of Brazilian cinemanovism against commercial cinema produced in countries of first World.

Key words: Genre, Kurosawa, Leone, Guerra, Western

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LISTA DE FIGURAS

Figura. 1 The Great Train Robbery, plano médio de Justus D. Barnes...... 19 Figura 2. The Battle At Elderbush Gulch, plano médio de Sally (Mae Marsh) ...... 21 Figura 3. Imagem do filme The Battle At Elderbush Gulch, plano subjetivo de Sally...... 22 Figura 4. Os Bandeirantes, plano geral do acampamento dos pioneiros...... 27 Figura 5. Filme Cavalo de Ferro, plano geral deserto...... 28 Figura 6. John Wayne no filme Nos Tempos das Diligências...... 31 Figura 7. Plano do delegado Will Kane (Gary Cooper), abraçando sua esposa Amy (Grace Kelly)...... 35 Figura 8. Plano Conjunto de Shane (Alan Ladd) e Joey (Brandon deWilde)...... 37 Figura 9: Cartaz do filme Humanidade e Balões de Papel...... 46 Figura 10: Plano conjunto de Morito Endo e lady Kesa...... 51 Figura 11: Toshiro Mifune em Yojimbo...... 57 Figura 12: Toshiro Mifune em Yojimbo...... 57 Figura 13: Toshiro Mifune em Yojimbo...... 58 Figura 14: Plano médio de Unosuke, Ushitora e Inokishi...... 58 Figura 15: Plano conjunto do ronin solitário (Toshiro Mifune)...... 58 Figura 16: Plano geral de Ringo (John Wayne) e ao fundo a gangue que assassinou seu irmão ...... 60 Figura 17: Plano Conjunto de Ringo (John Wayne) prestes a duelar com os assassinos de seu irmão...... 60 Figura 18: Plano conjunto dos bandidos indo ao encontro de Ringo...... 60 Figura 19: Plano médio de Tatsuya Nakadai, Kyū Sazanka e Daisuke Katō em Yojimbo. . 61 Figura 20: Plano médio de Mifune em Yojimbo...... 62 Figura 21: Mifune, Nakadai e Sazanka em uma cena de Yojimbo...... 62 Figura 22: Plano médio de Tatsuya Nakadai em Yojimbo ...... 62 Figura 23: Plano médio de Mifune em Yojimbo...... 63 Figura 24: Mifune e Nakadai em uma cena de Yojimbo...... 63 Figura 25: Plano médio de Tatsuya Nakadai em Yojimbo...... 63 Figura 26: Mifune e Nakadai em uma cena de Yojimbo...... 64 Figura 27: Tatsuya Nakadai em Yojimbo...... 64 Figura 28: Mifune e Nakadai em uma cena de Yojimbo...... 64 Figura 29: Toshiro Mifune em Yojimbo...... 65 Figura 30: Toshiro Mifune em Yojimbo...... 65

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Figura 31: Plano americano de Clint Eastwood Por um Punhado de dólares ...... 75 Figura 32: Primeiro plano de Clint Eastwood em Por um Punhado de dólares...... 76 Figura 33: John Wells e Clint Eastwood em uma cena de Por um Punhado de dólares. ... 79 Figura 34: John Wells em uma cena de Por um Punhado de dólares...... 79 Figura 35: Primeiro plano de Antônio Prieto em Por um Punhado de dólares...... 79 Figura 36: Primeiro plano de Benito Stefanelli Por um Punhado de Dólares...... 80 Figura 37: Primeiro plano de Antônio Prieto em Por um Punhado de dólares ...... 80 Figura 38: Clint Eastwood em Por um Punhado de Dólares...... 80 Figura 39: Primeiro plano de John Wells em Por um Punhado de Dólares...... 81 Figura 40: Primeiríssimo primeiro plano de John Wells em Por um Punhado de Dólares. . 81 Figura 41: Plano médio de John Wayne em Rastros de Ódio...... 82 Figura 42: John Wayne e Jeffrey Hunter em Rastros de Ódio...... 82 Figura 43: Plano médio de Jeffrey Hunter em Rastros de Ódio ...... 82 Figura 44: Plano médio de John Wayne em Rastros de Ódio...... 83 Figura 45: Imagem do filme Rastros de Ódio...... 83 Figura 46: John Wayne, Jeffrey Hunter e Natalie Wood em Rastros de Ódio...... 83 Figura 47: Plano americano de Jeffrey Hunter em Rastros de Ódio...... 84 Figura 48: Imagem do filme Rastros de Ódio...... 84 Figura 49: Plano detalhe de arma sendo disparada em Por um Punhado de Dólares ...... 85 Figura 50: John Wells em uma cena de Por um Punhado de Dólares ...... 85 Figura 51: Plano detalhe de arma sendo disparada em Por um Punhado de Dólares...... 85 Figura 52: Plano detalhe da arma e ao fundo John Wells e os atores que compunham sua gangue em Por um Punhado de Dólares ...... 86 Figura 53: Imagem do filme Por um Punhado de Dólares ...... 87 Figura 54: Imagem do filme Os Fuzis ...... 94 Figura 55: Fredy Kleemann e Monsueto Menezes em uma cena de Os Deuses e Os Mortos ...... 110 Figura 56: Othon Bastos e Nelson Xavier em uma cena de Os Deuses e Os Mortos...... 110 Figura 57: Ruy Polanah e figurantes em uma cena de Os Deuses e Os Mortos...... 111 Figura 58: Ruy Polanah e figurantes em uma cena de Os Deuses e Os Mortos...... 111 Figura 59: Ruy Polanah e figurantes em uma cena de Os Deuses e Os Mortos ...... 111 Figura 60: Othon Bastos e Norma Bengell em uma cena de Os Deuses e Os Mortos ..... 112 Figura 61: Vera Bocaiúva e figurantes em uma cena de Os Deuses e Os Mortos ...... 112 Figura 62: Ítala Nandi e Othon Bastos em Os Deuses e Os Mortos...... 112 Figura 63: Imagem de Os Deuses e Os Mortos ...... 114 Figura 64: Vinícius Salvatori e figurantes em Os Deuses e Os mortos...... 114

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ...... 4 RESUMO ...... 6 ABSTRACT ...... 7 LISTA DE FIGURAS ...... 8 SUMÁRIO ...... 10 INTRODUÇÃO ...... 11 1. O NASCIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO FAROESTE...... 14 2. ANÁLISE DOS FILMES YOJIMBO E POR UM PUNHADO DE DÓLARES...... 40 2.1. SURGIMENTO, ANÁLISE E REPERCUSSÕES DE POR UM PUNHADO DE DÓLARES ...... 69

3. ANÁLISE DO FILME OS DEUSES E OS MORTOS ...... 91 CONCLUSÃO ...... 122 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 125 FILMOGRAFIA ...... 127

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INTRODUÇÃO

Os filmes de gênero são o modo mais democrático de acesso ao que a sétima arte tem de melhor, agradando tanto o público leigo como a crítica especializada, diferente de filmes complexos e monótonos que pretendem conquistar um público mais intelectualizado e afrontar as expectativas do consumidor médio de cinema, as obras de gênero conseguem produzir um conteúdo que funciona como entretenimento e como objeto de reflexão, exploram a linguagem cinematográfica com qualidade sem deixar que o ritmo do divertimento se perca. É claro que não são todas as produções cinematográficas de gênero que conseguem essa cadência descrita acima, muitas caem no esquema óbvio e superficial incentivado por produtoras que estão mais interessadas em lucrar com filmes rápidos e baratos do que com a realização de uma boa obra cinematográfica. Mas esta lógica industrial não pode soterrar a percepção da existência de bons filmes de gênero que foram e são importantes para a história do cinema e para a cultura dos seus países de origem, tornando relevante pesquisas como esta que visa ressaltar seu valor. O debate que circunda gêneros narrativos é muito anterior ao cinema, podemos dizer que o texto mais antigo sobre teoria literária que temos conhecimento no ocidente é justamente uma obra que se propõe a discutir o gênero da tragédia na poesia grega, Poética de Aristóteles daria início a essa corrente de pesquisa que continuaria seu desenvolvimento nas mãos de grandes teóricos como Horácio, Hugo, Todorov, Wellek, Warren, Barthes e Propp. Esta corrente de pesquisa literária já estava em um grau de desenvolvimento avançado quando encontrou o cinema no século XX, possibilitando a construção de um estudo sobre gêneros cinematográficos baseado nas teorias literárias desenvolvidas até então (ALTMAN, 2000, p. 33). Mas isso não significa que as teorias sobre gêneros cinematográficos se limitam a adaptar os estudos literários, o cinema enquanto objeto de análise tem características particulares que exigem reflexões para além do que foi definido pelos literatos. De forma extremamente genérica podemos dizer que todos os gêneros cinematográficos têm quatro características centrais: um esquema básico que baliza a produção da obra, uma estrutura estética e narrativa que pauta a construção do filme, uma etiqueta fornecida pelos exibidores e distribuidores para filmes com características semelhantes e um pacto entre público e produtor sobre as expectativas da obra que se consome (ALTMAN, 2000, p. 35). 11

Mas para além destas 4 características genéricas que podem se aplicar a qualquer gênero cinematográfico, uma definição mais específica para cada gênero exigirá caminhos diferentes, por exemplo, não podemos usar os mesmos critérios para definir o terror e a comédia pastelão, ou os filmes de drama histórico e os filmes policiais. Cada gênero exigirá debates distintos sobre sua definição. No nosso caso que é o western, usaremos o primeiro capítulo para construir sua definição a partir das principais características dos filmes mais marcantes do gênero até o início da década de 1960, a escolha das obras será baseada nas considerações dos teóricos André Bazin, Jean-Louis Rieupeyrout e Fernando Simão Vugman. Nossa abordagem terá essa demarcação histórica pois as três obras que serão o objeto principal desta dissertação foram produzidas no decorrer da década de 1960. Talvez o western seja o mais marcante, complexo e influente gênero cinematográfico que já existiu, sua história é marcada por momentos de glória, decadência, contradição, revisão, desconstrução e renovação, muito diferente da maioria dos gêneros ou subgêneros que tem sua ascensão e queda em períodos históricos muito específicos, como o musical, o noir, os filmes de capa e espada, as aventuras mitológicas e os filmes de artes marciais. Poderíamos listar uma série de razões que explicassem esse fenômeno, tanto no âmbito cinematográfico, como no âmbito comercial, mas este texto irá focar na capacidade de mutabilidade e adaptação do gênero a outras formas de realização cinematográfica que não a hollywoodiana, chamando atenção para seu caráter de mescla e sua impureza como fatores importantes para a sobrevivência de sua relevância enquanto gênero cinematográfico. É claro que trabalhar as adaptações do western em contextos internacionais também é discutir a relação que parte da produção cinematográfica destes países tinha com relação a Hollywood, se sua postura era combativa a hegemonia de suas produções ou se tentava usar de suas formulas para conquistar um lugar no mercado nacional e mundial se colocando como um competidor. Essa dissertação se dedicará a investigar o modo como o western sofreu mutações em três contextos cinematográficos diferentes, porém em um período temporal próximo, a partir dos filmes Yojimbo (Yojimbo – O Guarda Costas, 1961, Kurosawa), Per un Pugno di Dollari (Por um Punhado de Dólares, 1964, Leone) e Os Deuses e Os mortos (1970, Guerra). As três obras foram escolhidas pois trabalham o faroeste de modos distintos a partir de uma estrutura narrativa semelhante, que seria

12 a narrativa de um forasteiro desconhecido que chega a uma pequena cidade que está dividida em uma guerra de duas pequenas milícias locais, o forasteiro decide pôr fim ao confronto e eliminar as duas facções. Tal investigação pretende mostrar a força que o gênero cinematográfico tem enquanto objeto de estudos para a compreensão da história do cinema em uma relação de contextos cinematográficos distintos que se mesclam e se confrontam. Desta maneira poderemos compreender melhor o resgate que Akira Kurosawa promove sobre o Jidaigeki a partir de uma releitura baseada no western norte-americano; o modo como Sergio Leone ressignifica o gênero criando o spaghetti western partindo de um diálogo direto com o filme Yojimbo; e o cinemanovismo reativo de Ruy Guerra que se nega a fazer uma produção que perpetua o discurso do cinema comercial dominante ao desconstruir o faroeste em sua instância narrativa e estética. No segundo capítulo nós iremos trabalhar a trajetória que o gênero histórico do Jidaigeki teve no cinema japonês até ser trabalhado por Kurosawa, nesta retomada nós definiremos as tendências narrativas mais marcantes de sua história e a dicotomia entre filmes que romantizavam o passado imperial japonês e os filmes de Kurosawa que retomava o estilo produzido nas décadas de 1920 e 1930 com um estilo que remete diretamente aos faroestes norte-americanos, principalmente os de John Ford. Na segunda parte deste mesmo capítulo nos entenderemos em que situação a indústria cinematográfica italiana se encontrava no início dos anos 1960 e o porquê de o filme Por um Punhado de Dólares ser um ponto de virada para a indústria italiana e para o faroeste, a partir da adaptação de Yojimbo. No terceiro capítulo nós estudaremos o surgimento e a queda do movimento cinematográfico do Cinema Novo para entendermos o contexto em que o filme Os Deuses e Os mortos foi produzido e sua proposta que segue na contramão das grandes produções norte-americanas, usando do faroeste como objeto de desconstrução para afirmar sua proposta cinemanovista e tropicalista. A partir destes três filmes nós construiremos a argumentação que visará sustentar a importância do gênero cinematográfico como objeto fundamental para a compreensão da história do cinema e como objeto de valor para a investigação da cultura no âmbito popular.

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1. O NASCIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO FAROESTE.

O western enquanto gênero narrativo está atrelado diretamente a formação da nação dos EUA no século XIX, após a guerra de independência contra a Inglaterra, os estadunidenses lutavam pela construção da unidade do seu país. Após os anos iniciais de nação independente, os Estados Unidos da América precisavam definir o modelo republicano a ser adotado. Depois de tanto tempo em conflito e por ser formado por inúmeras regiões distantes não apenas geograficamente, mas também nos costumes e nas práticas econômicas, o país precisava encontrar unidade para que o governo fosse capaz de dar conta de tantas diferenças. A guerra contra a Inglaterra tinha unido as colônias, mas sem ter criado, de fato, uma nação homogênea e bem integrada. Os interesses locais eram predominantes e poucos estavam dispostos a abrir mão deles para formar algo que ainda era uma novidade: os Estados Unidos da América. (FERNANDES e MORAIS, 2007, p. 101) A expansão para o oeste surgia como uma possibilidade, está conquista da fronteira seria marcada como uma empreitada nacionalista e republicana que uniria a recém-nascida nação americana. [...]Jefferson já havia demonstrado interesse nas terras localizadas a oeste, estimulando viagens de reconhecimento pelas regiões do Missouri e das Montanhas Rochosas com vistas à posterior ocupação do “território selvagem”. A “marcha para o Oeste” nasceu, portanto, como símbolo de expansão do modo de vida da nova república nacionalista dos norte- americanos. (FERNANDES e MORAIS, 2007, p. 103) A conquista do Oeste não se tratava apenas de ocupar as regiões selvagens com o povo norte-americano e ampliar o poder da nação, mas também havia um projeto religioso de conversão da cultura pagã e o estabelecimento de uma sociedade protestante. Posturas e concepções presentes nos movimentos religiosos, como a ideia de que existem povos escolhidos e abençoados por Deus, passariam a povoar o imaginário coletivo da nação que se acreditava eleita para um destino glorioso. A fé nas instituições livres e democráticas também se intensificava. A partir disso, desenvolveu-se a ideia de “destino manifesto”: seria uma missão espalhar a concepção de sociedade norte-americana para as regiões vistas como carentes e necessitadas de ajuda. Argumento semelhante de superioridade étnica estava sendo utilizado pelos europeus no movimento neocolonialista na Ásia e na África do século XIX: o homem branco seria responsável por levar a civilização e o progresso às outras nações “selvagens” e “atrasadas”. Entre os norte-americanos, no discurso que justificava o imperialismo, junto de “civilização e progresso”, lia-se “democracia e liberdade”. (FERNANDES e MORAIS, 2007, p. 125) A narrativa dicotômica da conquista de um Oeste selvagem e bárbaro por uma sociedade civilizada e puritana seria reforçado com a construção de linhas ferroviárias

14 que atravessavam os EUA de leste a oeste, o trem parecia representar o mais alto grau de progresso até então. As estradas de ferro proporcionaram grande impacto nos meios de transporte. Implantadas entre as décadas de 1840 e 1850, elas conseguiram aumentar a eficiência da locomoção de pessoas e mercadorias. No início da segunda metade do século XIX, foram completadas as grandes linhas que ligavam o Leste ao Oeste e, em 1860, o país já contava com cerca de cinquenta mil quilômetros de ferrovias. Os trens representavam um grande avanço e mudaram a concepção de velocidade e distância da maioria das pessoas. Além disso, até mesmo o seu modo de funcionamento parecia representar algo: pesados, barulhentos como uma fábrica, cheios de engrenagem e maquinarias, carregavam em si mesmos os sinais visíveis da indústria e da tecnologia; seguindo sempre em linha reta e para frente, as locomotivas se tornavam fortes símbolos de progresso, linear e contínuo, que ia sempre adiante, sem obstáculos. As ferrovias carregavam a ideia de que tudo era possível e de que os homens haviam finalmente alcançado o progresso. (FERNANDES e MORAIS, 2007, p. 108) Por conta desta nova ferramenta de locomoção a conquista das fronteiras se acelerou em um grau muito maior do que o esperado, dobrando a capacidade de colonização do território oeste. A ponta de lança desse último impulso de conquista da fronteira não foi nem o ouro, nem o gado, mas as estradas de ferro, maiores vendedoras de terra para colonos, uma vez que tinham interesse em fomentar o assentamento de populações nas áreas que serviam às ferrovias transcontinentais. Nos últimos trinta anos do século XIX, mais terra foi colonizada do que em toda a história americana anterior. (FERNANDES e MORAIS, 2007, p. 163 – 164) O trem como elemento simbólico apareceria com frequência nas narrativas de western, o primeiro curta-metragem de faroeste The Great Train Robbery esta máquina já aparece com protagonismo, onde os homens da lei devem defender o progresso social simbolizado por esta máquina de bandidos locais. O filme The Iron Horse de John Ford também expressaria toda a potência simbólica do trem como uma forma de materialização do progresso americano como veremos. Neste cenário conturbado de constantes conflitos contra índios, mexicanos e os próprios americanos entre si, começaram a surgir histórias e lendas de heroísmo que marcaram a cultura popular. Heróis eram criados, a partir, é claro, de referências na realidade. Eles se tornavam símbolos de uma geração de pessoas, por conter, em suas imagens, traços, trajetórias, valores que de algum modo se ligavam à grande maioria. Esse foi o caso, por exemplo, de Daniel Boone, explorador e caçador que, no final do período colonial, percorreu o famoso caminho “Wilderness Road”, no atual estado de Kentucky, fundando o primeiro povoado a falar inglês na região. Durante a Guerra de Independência lutou para defender o território contra os ataques indígenas, cristalizando uma imagem de herói: aquele que defende os EUA (uma projeção futura, dado que, na época de Boone, sequer o país existia) do inimigo. (FERNANDES e MORAIS, 2007, p. 127)

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Romantizado ou não este período foi muito explorado pela cultura americana a partir de diversos meios, o faroeste não serviu apenas para a construção de uma identidade nacional, mas também seria usado como forma de apresentar a história heroica do povo americano para todo o mundo. Seja como for, o legado óbvio desse último Oeste foi, com seus vigilantes, xerifes de fronteira e associações de criadores de gado, a criação de uma tradição de justiça rude. Junto da violência, um dos traços mais evidentes da lenda da fronteira foi a idealização de uma terra de liberdade individual e de igualdade. Até hoje, em filmes que trabalham com ideias do senso comum, as pessoas que querem liberdade fazem uma viagem pelo Oeste, percorrendo suas estradas desertas, pradarias e parando em cidades em que há um bar que reúne todos os tipos de gente e onde a lei é levada pelas “mãos dos justos”. (FERNANDES e MORAIS, 2007, p. 164) O gênero do faroeste surge, segundo André Bazin, como o encontro da mitologia da conquista do oeste dos Estados Unidos da América, durante o século XIX, e um meio para expressá-lo (BAZIN, 1985, p. 201). Portanto, sua existência é anterior ao cinema, como o teórico do cinema Jean-Louis Rieupeyrout descreve em seu trabalho “Western ou o Cinema Americano por Excelência”, ao falar sobre a literatura e as canções populares que já trabalhavam o tema no século XIX: Fadas e elfos, gnomos e feiticeiras, seres sobrenaturais e lendas douradas continuam o apanágio de países antigos. Mas um país novo imortaliza suas lembranças. O povo decide sobre a glória a ser concedida a seus heróis, bons ou maus. Elevados a esse posto, por uma transcendência incompreensível a nossos espíritos europeus, os turbulentos personagens que acabamos de citar, ocupam hoje seu nicho na Galeria dos Ancestrais. Billy The Kid é tão imortal quanto Abraham Lincoln. ‘São os santos dos primeiros dias da religião americana, os profetas de um mundo novo. ’ Encarnação moderna do herói antigo ou medieval, o vilão do pior western, assassino desavergonhado, não nasceu espontaneamente da imaginação delirante de um cenarista de Hollywood. Antes dele, as experiências de seus velhos mestres alternavam com a evocação da rude existência dos homens do Velho Tempo (Old Time) na canção e na literatura populares. (RIEUPEYROUT, 1963, p. 28) Portanto, segundo Rieupeyrout, o faroeste enquanto gênero, é a construção de um folclore estadunidense a partir do contexto descrito acima. O autor confere ao cidadão médio do período referido, como o autor das canções que imortalizavam do cotidiano aos fatos mais notórios: Todo Oeste revivia nas canções dos minstrels (do francês: ménestrels) do último século. Trovadores nascidos do povo, primeiros criadores das sagas, tinham deixado um testamento lírico sobre a américa das planícies, a das marchas e da colonização lenta. Saltimbancos de coração ligeiro transbordando amor pela nova terra, bardos de palavras aladas, sua improvisação irregular vertia da fonte. (RIEUPEYROUT, 1963, p. 28) Estas canções influenciaram o período cinematográfico dos Westerns, tanto no que diz respeito a trilhas sonoras de filmes, como à construção imagética e temática, Rieupeyrout descreve: “As baladas do Velho Oeste são uma das chaves essenciais

16 do Western, talvez uma das fontes de inspiração mais sólidas dos cenaristas e também dos músicos especialistas de partituras destinadas ao gênero” (1963, p. 29). Neste cenário, surgem os escritores como um grupo de pioneiros regionalistas que estavam registrando as aventuras de seus compatriotas e o surgimento de um novo mundo, prossegue o teórico francês: Chegava o instante de se revelarem os pioneiros de uma nova literatura que, instruídos sobre o novo mundo no qual avançavam seus compatriotas, o descrevessem nas suas cores cruas, sem se preocupar com embelezamentos para leitores de poltrona, a jovem odisseia de todo um povo. (RIEUPEYROUT, 1963, p. 33) O verdadeiro protagonista destas narrativas era o momento histórico do desbravamento do oeste norte-americano, a ficção era meramente ilustrativa, não conseguia superar a fascinação que os leitores tinham por esse ambiente do oeste selvagem. Nesses livros nem tudo provinha apenas de ficção porque, sob exteriorizações menos austeras do que os diários de exploradores ou dos volumes consagrados à História do Oeste, a informação aí tinha um lugar pela qual, hoje, saturados de filmes westerns, ainda, temos interesse. A ficção aí não é senão uma cortina amavelmente colorida. Não é necessário mais do que entreabri-la para que descubramos uma realidade histórica que não deixa, muitas vezes, de divertir, comparada à gravidade do cerimonial venerável que envolve a história pública do Velho Mundo. (RIEUPEYROUT, 1963, p. 34) Vugman também nos lembra da influência das narrativas do cativeiro da segunda metade do século XVII, que narravam os males suportados por mulheres brancas ao serem sequestradas por índios, até seu resgate por um homem branco. Como universo mitológico, o Western é herdeiro de uma produção de narrativas mitológicas que tem início na segunda metade do século XVII com as narrativas do cativeiro, que contavam as provações enfrentadas por mulheres brancas raptadas por índios. A estrutura básica dessas narrativas consistia, segundo Slotkin, em "um indivíduo, geralmente uma mulher, suportando passivamente os golpes do mal, esperando ser resgatado pela graça de Deus" (1996, p. 94) por um homem branco. Dessa estrutura, emergia a mulher branca como símbolo dos valores da civilização cristã - a repressão sexual, o casamento monogâmico heterossexual e o direito à propriedade. Em termos míticos, ela é o que Slotkin denomina a "mulher redentora" (1998, p. 206), casta, dócil, compreensiva, confiável e bastião da civilização; dali, também emerge a significação mítica do homem branco. Nessas narrativas, ele domina as artes da guerra e da sobrevivência na selva, alcança o cativeiro, mata os índios e conduz a mulher de volta para a colônia. Sua ação violenta e individual é justificada pelo resgate simbólico dos valores mais elevados da civilização cristã e ele encontra sua redenção. Outro aspecto que surge das narrativas do cativeiro é o de apresentar o indígena e a natureza como obstáculos na construção de uma sociedade superior, calcada no puritanismo. (VUGMAN, 2006, p. 161) Vugman resgata a obra The Mythology of the American Frontier, 1600-1860 do historiador Richard Slotkin para nos explicar o tripé alegórico que sustentava está

17 narrativa, a figura da frágil mulher representada como a pureza e esperança de um mundo cristão; o homem representado como o protetor desta civilização que está se construindo e o índio seria o símbolo da natureza e barbárie que atrapalha o surgimento desta nova sociedade superior e puritana. Esta dualidade irá estar presente nos filmes de Western até o momento do pós-guerra, fase em que a figura do cowboy heroico passou a ser representado de maneira mais realista, ao ressaltar suas contradições. O que mais vai caracterizar a evolução do Western é o gradativo enfraquecimento dessa visão otimista. Assim, tanto as comunidades da fronteira, como os elementos e personagens que simbolizam e sustentam valores moralistas vão sendo representados de forma cada vez mais complexa, ambígua e pouco positiva. Nesse sentido, a transformação dos EUA em um país eminentemente urbano e industrial torna cada vez mais esmaecida a imagem de uma nação sem limites físicos, substituída pela sensação de opressão da exploração capitalista do indivíduo e pela necessidade da competição acirrada entre vizinhos. (VUGMAN, 2006, p. 171) Inspirado no realismo do filme Attack On A China Mission (1900) de James Williamson, Edwin Porter faz o primeiro faroeste da história do cinema em 1903, The Great Train Robbery, que narra a história de um assalto a um trem e a perseguição e morte do bando criminoso. Entretanto, este curta-metragem não foi concebido como uma obra de gênero, ou seja, não havia convenções narrativas, estéticas, de produção e de distribuição a serem seguidas na construção da obra, Porter estava fazendo a dramatização de um crime real, pois o oeste americano dos anos 1900 ainda seguia a lógica daquele ambiente que será explorado de modo mitológico pelo gênero do western, inclusive há filmes do gênero que se passam neste período. Rieupeyrout cita a obra Histoire d’un Art: Le Cinéma de Georges Sadoul para explicar melhor esta influência do realismo dentro do western: Importados da Inglaterra, a sequência e a montagem (ataque de uma missão na china, J. Williamson, 1900) logo dotaram a narrativa cinematográfica de uma vida própria, que Georges Sadoul descreve: ‘este estilo que se opõe totalmente ao de Méliès, abre caminhos aos grandes filmes de aventura, principalmente aos westerns’ (RIEUPEYROUT, 1963, p. 42) Este realismo é definido por Roland Bergan como: O realismo é um rótulo de conveniência anexado a uma infinidade de filmes que reivindicam verossimilhança com a vida real. Particularmente, refere-se a filmes que, como seus antecessores literários do século XIX, enfatizavam a descrição e saboreiam os detalhes do cotidiano. (BERGAN, 2010, p. 74) Portanto, o nascimento do gênero cinematográfico do faroeste é marcado pelo realismo, evitando qualquer tipo de escapismo ou abordagem fantástica. Esta tendência se manteria neste gênero, mas com um peso histórico maior até o pós- guerra, como veremos. 18

A abordagem realista não seria a única influência do curta-metragem de Porter, do ponto de vista técnico, também houve avanços significativos para a época, além de estabelecer as características estéticas dos faroestes vindouros. O crítico e jornalista Ian Haydn Smith descreve sua importância: O faroeste de Edwin S. Porter marcou o início do cinema moderno, com tomadas em locação, movimentos de câmera e montagem paralela [...] o grande roubo do trem apresenta todos os recursos de linguagem que definiram o gênero faroeste... (HAYDN, 2011, p. 22) É claro que um dos fatores de sucesso do realismo cinematográfico foi o público, maravilhados com a maneira verossímil e suave que a narrativa se desenvolvia, nascia um entretenimento próximo de suas realidades e intrigante de se acompanhar: O público queria realismo: Porter transportou sua câmera ao longo de uma via férrea, alugou um trem verdadeiro e, no fim de 1903, o grande roubo do trem estava pronto. Sabemos o sucesso que encontrou nos nickelodeons (cinco cents o lugar). O público maravilhado tinha a impressão de ser verdadeiramente testemunha de um drama cujo lado emocional Porter não tinha amesquinhado: cinco cadáveres escalados durante a ação preparavam os espectadores à luta final onde, naturalmente, os perseguidores triunfavam sobre os ladrões depois de uma confusão homérica junto ao chefe dos bandidos, o terrível Barnes, ameaçando – em grande plano – a sala com seu revolver: este desafio altaneiro parecia significar para os entusiastas, futuros sustentáculos do gênero, a determinação fria e irredutível daqueles que, no western, escolheriam, no futuro, os caminhos da ilegalidade. (RIEUPEYROUT, 1963, p. 43 – 44)

Figura. 1 Imagem do filme The Great Train Robbery, plano médio de Justus D. Barnes (bandido) disparando contra a plateia, geralmente essa cena era exibida ao final da trama do filme The Great Train Robbery, como descrito acima por Rieupeyrout.

Fonte:https://www.moma.org/learn/moma_learning/edwin-s-porter-the-great-train-robbery-1903/ (acesso: 03 / 09/2019)

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Assim iniciou-se uma série de faroestes que seguiram a receita de Porter, buscando o realismo como uma forma documentária de retratar a vida ao oeste dos EUA. O Oeste pairava sobre o Leste, transformava-se em espetáculo e literatura para o burguês, salpicado de tiroteios, de índios gritando, de exotismo. [...] também o western dos primeiros tempos entregou-se, utilizando a receita de Porter, a uma espécie de educação do público com relação à vida do oeste selvagem. Assim nasceu uma série de western de inspiração documentária [...] o western aperfeiçoado de hoje permanece, em suas grandes linhas gerais, o daquela época: um filme onde a aventura apaixona, se o documentário instrui. (RIEUPEYROUT,1963, p. 45) A evolução do gênero até a década de 1920 confirma o que André Bazin proferiu no prefácio do livro “o western ou o cinema americano por excelência” de Jean-Louis Rieupeyrout, sobre o faroeste e sua relação intrínseca com o próprio desenvolvimento da linguagem cinematográfica, “o western é o único gênero cuja origens se confundem com as do cinema...” (Bazin, 1963, p. 7). O faroeste foi um verdadeiro laboratório para os cineastas David Griffith e Thomas Ince, na virada da década de 1900 para 1910, para o desenvolvimento de uma linguagem mais complexa do que foi feita por Porter. Quando David W. Griffith e Thomas H. Ince começaram a trabalhar com westerns, o gênero já sofria críticas por apenas repetir tudo o que já havia sido feito. Na verdade, tanto tem sido escrito sobre a contribuição inovadora de Griffith como gênio do cinema norte-americano, que chega a passar despercebido o importante papel por ele desempenhado no desenvolvimento inicial do western. Entre 1908 e 1913, ele realizou alguns dos melhores westerns de um rolo jamais filmados, período em que experimentou novas formas de expressão e gramática fílmica, especialmente com as possibilidades de aumentar a tensão por meio de recursos de montagem. Por exemplo, o close-up, já introduzido por outros realizadores, é aperfeiçoado por Griffith, que também criou e desenvolveu outros aspectos da narração cinematográfica. Uma de suas principais contribuições é o emprego da montagem paralela, desenvolvida para dar o máximo de tensão aos melodramas e para aumentar a carga dramática das sequências de salvamento na última hora. Embora esse recurso seja elementar nos filmes atuais, sua introdução foi um lance ousado na época, se considerarmos que nele está envolvida a manipulação do tempo e do espaço para uma plateia ainda pouco alfabetizada na linguagem do cinema. (VUGMAN, 2006, p. 164 – 165) No trecho acima podemos observar a considerável evolução que o cinema enquanto linguagem e o faroeste enquanto gênero, ganharam com os filmes de Griffith, a montagem não era usada pelo diretor como um simples recurso técnico para juntar as partes do filme, ou exibir situações que ocorrem paralelamente (no caso da montagem paralela), como usado por Porter em The Great Train Robbery, onde a montagem serve apenas para nos situarmos passo – a – passo no que está acontecendo na trama. No filme de Griffith The Battle at Elderbush Gulch (1913), a 20 batalha entre índios e colonos é mostrada do ponto de vista de Sally (Mae Marsh), uma garota indefesa que está dentro do forte e observa a batalha pelas frestas do muro, assim o cineasta estabelece uma montagem paralela e dramática entre os índios do lado de fora da base e os colonos que estão se protegendo do lado de dentro, ao mesmo tempo acompanha o medo da protagonista. Como se não bastasse estabelece um terceiro ponto paralelo que é a cavalaria do exército que tenta chegar no local o mais rápido possível, explorando o potencial dramático das cenas de ação, inserindo o público na cena a partir da subjetividade de Sally, nosso foco narrativo. Deleuze define a montagem paralela de Griffith como orgânica, uma vez que esta estabelece uma relação dramática de contrastes que é inerente entre as imagens que compõem o filme. Griffith concebeu a composição das imagens-movimento como uma organização, um organismo, uma grande unidade orgânica. Foi essa sua descoberta. O organismo é antes de tudo uma unidade no diverso, isto é, um conjunto de partes diferenciadas: há os homens e as mulheres, os ricos e os pobres, a cidade e o campo, o norte e o sul, os interiores e os exteriores etc. Estas partes são tomadas em conexão binária que constituem a montagem alternada paralela, na qual a imagem de uma parte sucede à outra de acordo com o ritmo. Mas é preciso, em conexão, que a parte e o conjunto também entrem, eles próprios, em conexão, que permutem suas dimensões relativas: neste sentido a inserção do primeiro plano não opera apenas a ampliação de um detalhe, mas acarreta uma miniaturização do conjunto, uma redução da cena. [...] e, de maneira mais geral, ao mostrar o modo como as personagens vivem a cena da qual fazem parte, o primeiro plano confere ao conjunto objetivo uma subjetividade que o iguala ou até supera. [...] finalmente, é preciso ainda que as partes ajam e reajam umas sobre as outras para mostrar simultaneamente como entram em conflito e ameaçam a unidade do conjunto orgânico, e como superam o conflito ou restauram a unidade. (DELEUZE, 2018, p. 56 – 57)

Figura 2. Imagem do filme The Battle At Elderbush Gulch, plano médio de Sally (Mae Marsh), de dentro do forte observando a batalha que ocorre do lado de fora

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=drpnwnnspsk imagem do minuto 22:37 (acesso: 04/09/2019)

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Figura 3. Imagem do filme The Battle At Elderbush Gulch, plano subjetivo de Sally observando a batalha.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=drpnwnnspsk imagem do minuto 22:41 (acesso: 04/09/2019)

A lógica binária está nas raízes do cinema orgânico americano construído por Griffith a partir de sua montagem, pois a estrutura do filme é definida pela sua montagem, uma vez que esta dita as maneiras de como as imagens se relacionam e criam significado. O western foi construído enquanto gênero em paralelo com este modo orgânico de montagem, pois à medida que este método de fazer cinematográfico era desenvolvido, o faroeste foi ganhando suas características mais essenciais. Já Ince teve uma contribuição maior com relação as logísticas de produção, como descreve Vugman: A grande contribuição de Ince para o cinema foi o desenvolvimento de um eficiente método de filmagem; além de reescrever parte dos roteiros dos filmes que supervisionava, ele enfatizava a importância daquilo que chamara de roteiro de filmagem, em que incluía de antemão os diálogos para todos os personagens, uma descrição completa do cenário, das expressões faciais desejadas, dos tons a serem usados, uma listagem dos diferentes sets de filmagem, junto com os números das cenas identificadas com cada set específico. Se hoje em dia tais providências e recursos são comuns, foi ince quem reconheceu sua utilidade e desenvolveu ao máximo o potencial do uso do roteiro durante as filmagens. (VUGMAN, 2006, p. 165) O filme de David Griffith, The Birth of a Nation (O Nascimento de uma Nação, 1915), é a obra que marca a constituição do realismo americano, do ponto de vista narrativo e estético. O filme não traz novidade alguma, mas reúne com uma maestria ímpar o que já havia sido desenvolvido, inclusive nos filmes de faroeste pelo próprio Griffith. No que se refere à técnica e narrativa, o filme é uma maravilha dos primórdios do cinema. Outros diretores podem ter brincado com o potencial dos filmes e ajudado a forjar uma linguagem básica, porém foi Griffith quem a transformou em uma sintaxe cinematográfica ao reunir todas as técnicas já existentes, o que lhe permitiu expandir seus horizontes ao contar a história de duas famílias divididas pela guerra civil. (SMITH, 2011, P. 30) 22

Embora Ince e Griffith tenham mudado o modo de fazer cinema nos EUA com seus westerns, o realismo iniciado por Porter e o maniqueísmo vindo das narrativas de cativeiro continuavam presentes neste gênero. Os cenários eram importantes para a identidade visual do gênero, que está necessariamente atrelado a uma geografia específica. Vale notar que um tema recorrente em seus westerns acabou por se tornar um motivo do gênero: a luta simbólica entre o bem e o mal, representada pela aliança dos heróis com a igreja e dos vilões com o saloon. De todo modo, o que há em comum entre os filmes de Griffith e os de ince é o grande realismo do cenário, graças às locações no sopé das montanhas da Califórnia, que, na época, eram ainda parte do velho oeste. (VUGMAN, 2006, p. 165 – 166) Mas o faroeste não dependia apenas desta linha realista com pretensões documentais da história dos EUA, também havia cineastas interessados em fazer tramas menos pretensiosas, com atores que retornavam as telas com certa frequência para reviver personagens semelhantes, como Tom Mix, Bronco Billy e William Hart. O realismo dos filmes de Porter e Griffith revelavam certa preocupação com a documentação histórica de um período de expansão das fronteiras nacionais, ao passo que outros realizadores investiram no desenvolvimento de convenções mais próximas do espetáculo, abrindo caminho para que o gênero se afastasse das preocupações documentais e assumisse cada vez mais a função de narrativa mitológica. Nessa linha, destacam-se William S. Hart, juntamente com Bronco Billy e Tom Mix. (VUGMAN, 2006, p. 166) Buscando complementar o realismo histórico de Rieupeyrout, Bazin defende que há westerns que não têm a pretensão de recontar a história americana, mas sim construir um folclore puramente idealizado, que acabava por entrar em conflito com a história real. J.L. Rieupeyrout nos mostra perfeitamente a gênese da idealização épica a partir de uma história relativamente próxima, mas é possível que, preocupado em lembrar o que é comumente esquecido ou ignorado, seu estudo, dedica- se sobretudo aos filmes que ilustram sua tese, deixa implicitamente no escuro a outra face da realidade estética. Entretanto ela lhe dará duas vezes razão. Pois as relações da realidade histórica com o western não são imediatas e diretas, mas dialéticas. Tom Mix é o oposto de Abraham Lincoln, mas ele perpetua, à sua maneira o culto e a lembrança dele. Em suas formas mais romanescas ou ingênuas, o western é o contrário perfeito de uma reconstituição histórica. Hopalong Cassidy não difere, é o que parece, de Tarzan se não por suas roupas e pelo quadro de suas proezas. Contudo, se quisermos nos empenhar para comparar essas histórias encantadoras, mas inverossímeis, para superpô-las, como se faz em fisiognomia moderna com vários negativos de rostos, veremos aparecer por transparência um western ideal feito das constantes comuns a todas elas: um western composto unicamente de seus mitos em estado puro. (BAZIN, 1985 p.202) Os personagens interpretados por Tom Mix, ou o personagem fictício Hopalong Cassidy, são pura fantasia, que tentam ressignificar os verdadeiros sujeitos históricos que são usados como base para a sua criação, e usá-los como instrumento ideológico

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(para construção identitária), ao inserir os valores norte-americanos do início do século XX em suas representações. Sendo estas narrativas fílmicas realistas ou fantasiosas, todos estes filmes seguiam o que Burch chamou de Modo Institucional de Representação (MIR), que seria um método narrativo cinematográfico que se guia a partir do princípio do ilusionismo, ou seja, fazer com que o público sinta que a narrativa que está acontecendo na tela é de fato verdadeira, e por conta disso seja tomado por fortes emoções durantes toda a experiência fílmica. O sonho burguês de reprodução perfeita oferecia um impulso rumo a um objetivo. A escola de Brighton, Porter, Griffith, DeMille e outros pioneiros do MIR buscava uma ilusão total que incorporasse movimento, profundidade, cor, som e a sensação da presença humana. Outros fatores, porém, tornaram o avanço mais enviesado. Por exemplo, as primeiras peças retratando a Paixão marcam um avanço por ligar planos em uma narrativa; porém, ao copiarem pinturas famosas, os cineastas tendiam a encher o quadro com detalhes que distraíam a atenção. (BORDWELL, 2013, p. 140) Esse novo modo de representação nascido nos Estados Unidos destoava do que era feito até então na Europa onde os filmes tinham uma linguagem mais primitiva e apareciam como partes de shows de mágica, de circos, de Vaudevilles, de palestras entra outras formas de apresentação (BRODWELL, 2013, p. 140). Até aqui pudemos perceber que o faroeste foi construído como uma interpretação mitológica (no sentido barthesiano como veremos abaixo) da história americana, a qual naturaliza e simplifica a complexidade dos acontecimentos históricos e confere ao povo uma posição heroica de conquistadores da fronteira, do limite, aqueles que venceram a barbárie e construíram sua pátria. Ao lançarmos um olhar panorâmico sobre o gênero, notamos que ele retrata um mundo em que as forças da civilização travam uma batalha sem fim com as forças da natureza (com os índios também, como "elementos da natureza"). Como ritual fundador dos estados unidos, o western projeta um cenário de recursos naturais infinitos e de paisagens sem limites visíveis, numa opção estética que "naturaliza" (no sentido de Roland Barthes, em que o mito transforma o ideológico em algo aparentemente natural) as políticas oficiais de expansão e conquista territorial e do destino manifesto. [...] e é nessas extensas paisagens de pequenas e isoladas comunidades que o embate mitológico entre o civilizado e o selvagem se desenrola. São várias as oposições a expressar esse embate: cultura versus natureza, leste versus oeste, o verde e o deserto, a América e a Europa, a ordem social e a anarquia, o indivíduo e a comunidade, a cidade e as terras selvagens, o cowboy e o índio, a professorinha e a dançarina/prostituta do saloon etc. (VUGMAN, 2006, p. 162 – 163) O revisionismo histórico, em suas diversas nuances, tinha o objetivo político de apresentar os EUA para o mundo, o gênero foi usado como a construção de identidade de um povo.

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Ilustrar as histórias que procedem da história, no sentido mais vasto da palavra. Através dele, a américa mostrava ao mundo, pela película, o rosto múltiplo de seu passado próximo e o público não detestava uma epopeia tão vigorosamente exaltada. (RIEUPEYROUT,1963, p. 57) Neste cenário o faroeste acaba se consolidando como um gênero cinematográfico sólido, se sustentando em quatro pilares fundamentais para a definição de qualquer gênero:  Gênero como esquema ou fórmula básica que precede, programa e configura a produção da indústria;  O gênero como estrutura ou forma sobre a qual os filmes são construídos;  Gênero como rótulo ou nome de uma categoria fundamental para as decisões e comunicações de distribuidores e expositores;  O gênero como contrato ou posição espetacular que todo filme de gênero exige de seu público. (ALTMAN, 2000, p. 35)1 O western agora tinha um esquema de produção prévio onde locação e cenário deveriam ser ou parecer com as regiões oeste do rio Mississipi, a norte do rio Grande e ao Sul da fronteira com o México, ambientado entre a segunda metade do século XIX até os primeiros anos do século XX (período contemporâneo aos cineastas deste período), os figurinos e objetos de cena deveriam construir este ambiente rural e histórico, os atores deveriam seguir o perfil das pessoas da região, além do surgimento de uma equipe técnica especializada neste tipo de produção; o gênero também desenvolveu uma estrutura narrativa e estética que se sustentava entre maniqueísmos óbvios e confrontos bélicos; se consolidou o rótulo “western” que facilitava as estratégias de distribuição e exibição, considerando que os filmes com este rótulo seguiam um padrão específico que combinava mais ou menos com determinados tipos de público; e havia um contrato com o público que já era capaz de escolher consumir ou não a obra a partir do rótulo que indicava a existência de uma formula que se repetia nos filmes. Deste modo o faroeste se caracteriza como gênero cinematográfico para os produtores, para os realizadores, para os distribuidores, para os exibidores e acima de tudo para o público. A década de 1920 foi marcada por dois longas-metragens importantes para o gênero, The Iron Horse (O Cavalo de Ferro, 1924, John Ford) e The Covered Wagon

1 Tradução livre: el género como esquema básico o fórmula que precede, programa y configura la producción de la indústria; el género como estrutura o entramado formal sobre el que se construyen las películas; el género como etiqueta o nombre de uma categoria fundamental para las decisiones y comunicados de distribuidores y exhibidores; el género como contrato o posición espectatorial que toda película de género exige a su público.

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(Os Bandeirantes, 1923, James Cruze), ambos com forte teor histórico e epopeico, que se adequam fielmente a definição de Bazin sobre a estética do faroeste, “o western ignora praticamente o close, quase totalmente o plano americano; ele se prende, em compensação, ao travelling e à panorâmica, que negam os limites da tela e restituem a plenitude do espaço.” (BAZIN, 1985, p. 206). Os Bandeirantes narra a história de duas caravanas que saem do que é hoje Kansas City e vão para o oeste na direção de Oregon. Neste percurso os viajantes enfrentam a escassez do deserto, o frio do inverno e os furiosos ataques indígenas. Paralelamente a esta viagem, acompanhamos um triângulo amoroso entre Molly (Lois Wilson) que precisa escolher entre Will (J. Warren kerrigan), o protagonista e o capitão Sam (Alan Hale), o vilão, que usa de métodos imorais e cruéis para conseguir seus objetivos. No final do filme tudo acaba bem, as caravanas chegam a Oregon, Molly fica com Will e Sam é morto por Willian (Ernest Torrence) durante uma emboscada para matar Will. Como de costume com os faroestes da época, o filme inicia com um texto que situa o espectador sobre o contexto e pretensão da obra, neste caso é: “O sangue da américa é o sangue dos pioneiros – o sangue de homens e mulheres de coração de leão que esculpiram uma esplêndida civilização em um deserto desconhecido”2, a partir de então já somos introduzidos ao tom heroico e histórico da obra, a qual reconstituirá a importância que os pioneiros tiveram na fundação dos estados unidos, ao esculpi-lo em uma terra selvagem, como diz a frase. Assim, encontramos na origem do western uma ética da epopeia e mesmo a tragédia. O western é épico, pensa-se geralmente, pela escala sobre-humana de seus heróis, pela extensão de suas proezas. Billy The Kid é invulnerável como Aquiles, e seu revolver, infalível. O cowboy é um cavalheiro. Ao caráter do herói corresponde um estilo de mise-em-scène, em que a transposição épica aparece desde a composição da imagem, sua predileção pelos vastos horizontes, os grandes planos conjuntos, que sempre lembram o confronto do homem e da natureza. (BAZIN, 1985 p.206)

2 Tradução livre: the blood of america is the blood of pioneers - the blood of lion-hearted men and women who carved a splendid civilization out of an uncharted wilderness 26

Figura 4. Imagem do filme Os Bandeirantes, plano geral do acampamento dos pioneiros está prestes a ser atacado por índios. As características estéticas esta foto correspondem a análise de André Bazin acima, embora numerosas, as carruagens são pequenas nesta vasta terra hostil, os pioneiros lutam pela sua sobrevivência e para construir uma nação sólida e prospera em meio a terra selvagem.

Fonte:http://captainhistory.com/wordpress1/2018/01/28/historic-nevada-epic-movie-to-receive-special- treatment/ (acesso: 05/09/2019)

Cavalo de ferro conta a história da construção da primeira ferrovia transcontinental dos EUA, em meio a esta gigantesca obra, que contava com a mão de obra de diversos estrangeiros como chineses, italianos e finlandeses, acompanhamos a trama de Davy (George O’Brien), que acompanhou seu pai até o Monument Valley para estudarem um bom lugar onde o trem poderia passar, mas foram atacados por índios e seu pai foi morto, quando cresceu, Davy continuou com o sonho de seu pai e ingressou na da enorme ferrovia. No decorrer da obra acompanhamos os diversos desafios que foram superados pelos construtores, em meio a um clima hostil e ataques recorrentes de indígenas. A ferrovia é retratada como o maior projeto da nação americana até então, começando com a aprovação de Abraham Lincoln, e terminando com os homens do povo construindo-a. Sem dúvidas o grande protagonista da obra é o trem que irá percorrer a ferrovia transcontinental americana, o veículo simboliza de modo concreto o progresso desta nação em desenvolvimento, o filme é uma mescla entre ficção e documentário, ao mesmo tempo que temos o desenvolvimento de uma trama fictícia, nós também assistimos ao relato de como eram a vida dos trabalhadores que construíram a ferrovia e de acontecimentos que marcaram está difícil trajetória, construindo uma epopeia complexa e didática sobre a união dos EUA. Os carroções e as estradas de ferro se fatigam e arfam na tela como, nos tempos antigos, tinham feito na realidade. O mérito essencial desse período, submergido em produções menores com cowboys em série (excetuando-se 27

W.S. Hart, Tom Mix e George O`Brien) fica sendo a revelação do jovem e seguro talento de John Ford. O gênero afirmava, pois, uma nova vitalidade artística. Com J. Ford a epopeia, menos gigantesca do que Griffith e Ince, os secessionistas, parecia tomar um caminho distante da grandiloquência, próximo, porém antes de uma fidelidade aos fatos do que aos homens, fidelidade característica que se reencontra vinte anos depois em sua obra. (RIEUPEYROUT,1963, p. 61)

Figura 5. Imagem do filme Cavalo de Ferro, plano geral deserto que o trem de ferro está percorrendo, saindo do sentido lente rumo ao oeste, levando a civilização e o progresso as terras selvagens e não exploradas da nação.

Fonte: https://obscuretrainmovies.wordpress.com/2016/03/03/the-iron-horse-1924/ (acesso: 05/09/2019)

Em 1928 é iniciada a era dos filmes sonoros. Durante a década de 1930 houve certa resistência à sonorização, mas logo foram encontradas características sonoras que se adequavam ao gênero, como descreve Vugman: A maior novidade dos anos 1920 foi a sonorização dos filmes a partir de 1928, embora o western sofresse uma retração durante a transição para o momento em que os filmes sonoros se tornaram absolutos. Para um gênero de pura ação, a chegada do som e a tendência a encher os filmes de diálogos pareceram, inicialmente, de pouco valor. Ainda em 1930, alguns filmes eram lançados tanto em versão sonorizada quanto na versão silenciosa. Mas, passada a hesitação inicial, os westerns logo percebem que, se os diálogos eram de menor importância, a trilha sonora, com os sons do estouro da manada, dos tiroteios e das canções folk típicas do país aumentavam em muito o impacto sobre o espectador. (VUGMAN, 2006, p. 168 – 169) Sons de tiroteio, cavalgadas, canções folk, entre outras, passaram a ser elementos estéticos tão marcantes para o gênero como grandes planos gerais no deserto (figuras 4 e 5) e a customização dos cowboys. É na década de 1930 que surge o subgênero dos “westerns musicais”, uma mescla entre os musicais e os faroestes, figuras como Roy Rogers e Gene Autry marcaram o subgênero. Este subgênero também foi marcado pela participação mais 28 ativa das mulheres, se afastando das aparições comuns onde estas eram apenas retratadas como donzelas indefesas e obedientes. Os westerns musicais aumentaram a participação da mocinha, tornando-a mais uma parceira do que a costumeira protagonista recatada e obediente. Apesar dessa tendência ter se acentuado nas duas décadas seguintes, é nos anos 1930 que ela aparece, em vários filmes de Roy Rogers e Gene Autry. (VUGMAN, 2006, p. 169) Stagecoach (No Tempo das Diligências, 1939, John Ford), foi um marco para o gênero, pois conferiu maior densidade psicológica e social aos temas e elementos dramáticos que geralmente compunham um faroeste, como escreve Rieupeyrout: Mas no tempo das diligências marca uma data e uma etapa decisiva na história do western. Respeitando todos os elementos consagrados pelo uso, conservando os tiroteios e as galopadas e em suma, todos os temas dramáticos do gênero, John Ford enriqueceu-os com um conteúdo moral, social e psicológico que, sem desnaturá-lo, lhes confere uma dignidade intelectual e artística com a qual, até então, o western não se preocupara. Por isso no tempo das diligências anuncia uma evolução para um western mais cerebral, consciente de seus temas e de sua significação [...] (RIEUPEYROUT,1963, p. 78) O filme conta a história de uma diligência para Lordsburg, Novo México que transporta a prostituta Dallas (Claire Trevor) e o médico alcoólatra Doc Boone (Thomas Mitchell), que foram expulsos da cidade pela “liga da moral”. No veículo também estão o banqueiro corrupto Henry Gatewood (Berton Churchill), o cavalheiro do Sudeste Hatfield (John Carradine), Lucy Mallory (Louise Platt) que é a esposa grávida de um oficial da cavalaria, o vendedor de uísque Samuel Peacock (Donald Meek), o delegado Curly Wilcox (George Bancroft) e o condutor, Buck (Andy Devine). No meio do caminho eles encontram o cowboy Ringo Kid (John Wayne), que fugiu da cadeia após ser condenado injustamente pelo assassinato de seu irmão. Ringo é mantido sob a custódia de Curly. Vugman descreve a obra como uma reflexão sobre uma sociedade que tem dificuldade para estabelecer padrões verdadeiramente sólidos de justiça e ordem, para a construção de uma nação, com personagens egoístas que estão mais preocupados com sigo mesmos do que com o projeto social, menos Ringo Kid, que enfrenta a própria justiça vigente para restabelecer o equilíbrio moral de seu mundo. A composição do grupo que segue viagem condensa e expressa os conflitos e angústias enfrentados na construção do país: um xerife com um firme código de justiça, um condutor covarde, um médico alcoólatra, um banqueiro corrupto, uma prostituta de bom coração, um jogador Afetado, uma dama criada no Leste e o herói (John Wayne), um condenado da justiça que busca, simultaneamente, uma chance

29 para vingar o assassinato do irmão e escapar de uma condenação injusta. Nesse filme, como na maioria dos westerns, os conflitos no interior da comunidade refletem e intensificam os existentes entre a comunidade e seus arredores selvagens. A intensidade dramática, aqui, não parte da personalidade do herói, cuja situação antissocial de condenado não é um traço básico seu, mas resultado justamente da dificuldade da sociedade em impor verdadeira ordem e justiça. Na verdade, Ringo Kid, o personagem de Wayne, é um homem simples e de sólidos princípios morais, que acaba por tomar para si a tarefa de reequilibrar o grupo social e moralmente, enquanto todos se encontram isolados em um entreposto, impossibilitados de seguir viagem em virtude da aproximação dos índios. Apesar da história simples, no tempo das diligências se diferencia da produção anterior pelo conjunto de indivíduos de alguma forma marginalizados, pela complexidade de cada personagem e das relações entre eles e por trazer à tona valores e contradições básicos para a sociedade contemporânea. Mesmo assim, Ford permite uma visão mais otimista para o futuro daquele projeto inicialmente apresentado de forma tão negativa. (Vugman, 2006, p. 170 – 171) Durante o percurso os passageiros enfrentam uma série de provações que visam sua redenção moral, o médico bêbado supera sua embriaguez para fazer o parto da senhora Mallory; Hatfield, o cavalheiro egoísta e arrogante, durante o ataque indígena guarda sua última bala para matar a senhora Mallory e evitar que ela sofra na mão dos índios; o delegado Wilcox deixa a justiça de lado para dar um voto de confiança em seu amigo Ringo e permite que ele se vingue dos verdadeiros assassinos de seu irmão, e ele o faz; por fim a prostituta Dallas inicia um namoro com o cowboy Ringo, abandonando a vida de pecados que ela levava. No tempo das Diligências foi considerado como um exemplo do apogeu do desenvolvimento do faroeste até então. Bazin justifica tal grandiosidade pelo fato da obra ter atingido o equilíbrio perfeito entre temas mais complexos e as fórmulas narrativas recorrentes. Nas vésperas da guerra, o western havia chegado a um certo grau de perfeição. o ano de 1940 marca um patamar para além do qual uma nova evolução devia fatalmente se produzir, evolução que os quatro anos da guerra simplesmente atrasaram, e depois desviaram, sem no entanto determiná-la, no tampo das diligências (1939) é um exemplo ideal desta maturidade de um estilo que alcançou o classicismo. John Ford atingia o equilíbrio perfeito entre mitos sociais, a evolução histórica, a verdade psicológica e a temática tradicional da mise-en-scène western. Nenhum desses elementos fundamentais levava vantagem sobre o outro. No tempo

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das diligências evoca a ideia de uma roda tão perfeita que ela permanece em equilíbrio no seu eixo em qualquer posição que a coloquemos. (BAZIN, 1985 p. 209)

Figura 6. John Wayne no filme Nos Tempos das Diligências (Stagecoach), sendo enquadrado no plano americano, enquadramento que recorta a pessoa dos joelhos para cima. Também percebemos outra característica técnica do faroeste nesta imagem, a projeção de fundo, ou seja, o ator está em um estúdio e a imagem de fundo simula o ambiente que ele ocupa no filme.

Fonte:https://lightroombrasil.com.br/planos-de-enquadramento-parte-3/ (Acesso: 7/11/2018)

Durante o período em que os EUA atuaram na segunda guerra mundial houve uma queda brusca nas produções de faroeste por conta da demanda de filmes de guerra propagandísticos. Isso acabou por desacelerar o desenvolvimento do gênero, como disse Bazin acima, mas também possibilitou que surgissem faroestes que tentavam ultrapassar a tradição estabelecida até então. O hebdomadário Colliers diz, em seu número de 8 de dezembro de 1945: “Durante a guerra, a realização de westerns diminuiu bastante, porque os estúdios tinham que produzir filmes de propaganda; por outro lado, os filmes de guerra constituíram dura concorrência para os westerns. Os estúdios ganhavam tanto dinheiro que não tinham mais necessidade de recorrer ao western. Projetavam-se os velhos que também dava lucro” [...] O período aberto em 1940 se caracteriza por um duplo aspecto: de um lado, um western tradicional, sem qualquer filme particularmente notável; de outro, um superwestern que marca uma tentativa de ultrapassar a tradição na forma e no conteúdo, tentativa da qual se pode esperar muito e que é necessário considerar atentamente. Esses filmes, no entento, são indicativos de divórcio entre as produções em série e os westerns de qualidade, divórcio que não existia, parece, até à guerra. (RIEUPEYROUT,1963, p. 81) Portanto, o superwestern é uma tendência iniciada na década de 1940 com a pretensão de superar a tradição estabelecida desde o nascimento do gênero, a produção desenfreada de faroestes tradicionais não davam liberdade para seus realizadores experimentar novas fórmulas. 31

Desde Ince até John Ford de No Tempo Das Diligências tratam essencialmente dos mesmos temas que a produção corrente: sem dúvida mais seriamente, com realismo e verossimilhança material ou piscológica, mas com tanta convicção e sinceridade senão “ingenuidade”. As engrenagens podem ter sido mais complexas, sua colocação mais precisa, mas os recursos e os princípios do mecanismo eram os mesmos. Em outros termos, um western da série A não era mais do que um western Z evoluído e aperfeiçoado (RIEUPEYROUT,1963, p. 82) Para Rieupeyrout, o único caráter que diferenciava as produção de faroeste até o início da década de 1940, era o nível da produção, pois os temas e a forma dos filmes eram as mesmas. Bazin escolhe outro termo para se definir aos faroestes desta época: Chamarei por “metawestern” o conjunto das formas adotadas pelo gênero depois da guerra. Mas não procurarei dissimular que a espressão vai encobrir, por necessidade da exposição, fenômenos nem sempre comparáveis. Ela pode, entretanto, justificar-se negativamente, por oposição ao classiscismo dos anos 1940 e, sobretudo, à tradição de que é a finalização. Digamos que o “metawestern” é um western que teria vergonha de ser apenas ele próprio e procuraria justificar sua existência por um interesse suplemenar: de ordem estética, sociológica, moral, pisicológica, política, erótica... em suma, por algum valor extrínseco ao gênero e que supostamente o enriqueceria. (BAZIN, 1985 p. 210) A definição que nos interessa do prefixo de meta- seria: “2 ‘além de’: metafísica” (HOUAISS, 2009, p. 501), por tanto, para Bazin os filmes de western do pós-guerra têm o objetivo de abandonar a tradição construída até o final da década de 1930, e usar o gênero de como uma escada para tratar de temas que estão além de sua forma e temática. Mas o metawestern só está presente nos filmes de grande produções, filmes de menores categorias ainda estão aprisionados às convenções do faroeste comum. O problema fundamental do western contempoâneo está sem dúvida no dilema da inteligência e da ingenuidade. Hoje, o western só pode, no mais das vezes, continuar a ser simples e, conforme a tradição, vulgar e idiota. Toda uma produção de segunda categoria persiste nessas bases. É que, desde Thomas Ince e Willian Hart, o cinema evoluiu. Gênero convencional e simplista em seus dados primitivos, o western deve, no entanto, tornar-se adulto e ficar inteligente se quiser se situar no mesmo plano que os filmes dignos de serem criticados. Assim apareseram os westerns psicológicos, com tese social ou mais ou menos filosófica, os westerns com uma significação. (BAZIN, 1985 p. 220 - 221) O metawestern vai além da superação de convenções do faroeste tradicional, como o conceito de superwestern defende. Bazin interpreta que a produção do pós- guerra utiliza do western como um pano de fundo para tratar de temas mais profundos do que eram trabalhados nos filmes convencionais, a tradição do faroeste já não se sustenta por ela mesma, é necessário uma suplementação temática de diversas ordens. Portanto, o superwestern seria a construção de um novo faroeste que

32 reinterpreta as temáticas e as formas trabalhadas pela tradição estabelecida até a década de 1930, já o metawestern seria o abandono da tradição do faroeste, e a utilização do gênero como uma ferramenta para tratar de temas diversos. Mas de uma maneira ou de outra, Vugman demonstra que a unanimidade está na desintegração do otimismo característico do faroeste, em decorrência do avanço industrial e urbano, o público e os realizadores não se contentavam mais com um retrato ingênuo e otimista do progresso americano. O que mais vai caracterizar a evolução do Western é o gradativo enfraquecimento dessa visão otimista. Assim, tanto as comunidades da fronteira, como os elementos e personagens que simbolizam e sustentam valores moralistas vão sendo representados de forma cada vez mais complexa, ambígua e pouco positiva. Nesse sentido, a transformação dos EUA em um país eminentemente urbano e industrial torna cada vez mais esmaecida a imagem de uma nação sem limites físicos, substituída pela sensação de opressão da exploração capitalista do indivíduo e pela necessidade da competição acirrada entre vizinhos. (VUGMAN, 2006, p. 171) Esta mudança de paradigma estaria mais presente na figura do protagonista, ele não seria mais encarado de forma ingênua, suas contradições seriam ressaltadas e exploradas por essa nova fase de filmes. Nessa nova realidade, o papel ambíguo do herói do Western vai se tornando mais e mais evidente e insustentável. A contradição de seu papel original como homem simultaneamente conhecedor da natureza e promotor da civilização se intensifica. Se antes ele podia surgir do meio natural para salvar/ organizar a comunidade, apesar de seu próprio código de honra estar em conflito com as regras da civilização, isso se dava pela possibilidade de cavalgar rumo ao pôr-do-sol, ao fim de sua missão. Essa metáfora, entretanto, vai se tornando insustentável diante de um público cujo cotidiano é marcado por horários e disciplina e cujos horizontes são interrompidos por edifícios e fábricas. Ademais, se o western sempre manteve contato com a civilização e a natureza, o mesmo ocorria com as próprias comunidades onde ele aparecia como agente restaurador. Mas, conforme esta comunidade se torna mais institucionalizada, capitalista e corrupta, vai perdendo a ligação com o mundo selvagem de onde surgiu. A função mediadora do western fica cada vez mais complexa e contraditória, com seu código de honra cada vez mais distante das regras de uma civilização crescentemente isolada e egoísta. Chega-se ao ponto em que o que resta é apenas o esforço para permanecer fiel ao próprio código de honra. (VUGMAN, 2006, p. 171) Questionamentos morais começam a ser feitos sobre a violência empregada por pistoleiros solitários, a qual lugar da sociedade eles pertenceriam, os modos de sobrevivência deles e a maneira que estes se relacionam com as comunidades que os hospedam. Foram temas centrais de algumas produções da época, os dois melhores expoentes segundo Bazin são High Noon (Matar ou Morrer, 1952, de Fred Zinnemann) e Shane (Os Brutos Também Amam, 1953, de George Stevens). “Mas, os dois filmes que melhor ilustram essa mutação do gênero, como consequência da consciência que ele adquiriu, a um só tempo, de si mesmo e de seus limites, 33 continuam a ser, evidentemente, Matar ou Morrer e Os brutos também amam. ” (BAZIN, 1985 p. 212). Matar ou Morrer se passa no último dia de trabalho do delegado Will Kane (Gary Cooper) que acaba de se casar com Amy Fowler (Grace Kelly) e esta se preparado para mudar de cidade e se aposentar do cargo, quando descobre que Frank Miller (Ian MacDonald), um bandido que ele havia prendido, saiu da cadeia e está vindo para a cidade para se vingar do delegado, os capangas de Miller estão esperando ele chegar na estação de trem ao meio-dia. Então o delegado Kane tenta reunir cidadãos da cidade para ajuda-lo nesta empreitada contra o bando de mal feitores, mas é abandonado por todos, alguns por medo e outros por considerar Frank Miller um problema pessoal do delegado, e acabam por encorajar que ele saia da cidade ao invés de cumprir com sua obrigação, mas Will Kane se mantem firme ao seu código moral e enfrenta o bando sozinho. No final do confronto acaba tendo a ajuda de sua esposa Amy que mata pelas costas o último capanga restante, ela é feita de refém por Miller, ao tentar escapar de seus braços que a seguravam acaba por distrair o bandido que é morto pelo delegado que aproveita da oportunidade. Resolvido o conflito, Kane joga a estrela de delegado no chão e vai embora com sua esposa da cidade. A partir desta sinopse, podemos perceber que a sociedade americana já não é mais retratada como um grande grupo de pessoas que se ajudam com o objetivo de construir uma civilização ideal para se viver, mas sim como uma comunidade egoísta e covarde, enquanto que a figura de Kane representa o herói típico dos filmes de faroeste, que se sacrificava pelo bem comum, até perceber no final do filme que não vale ingressar em um pseudoprojeto coletivo que encobre desejos egoístas de benefício individual, ao rejeitar a estrela de lata, símbolo da ordem nos filmes de western, Kane está trocando a coletivismo pelo individualismo. Assim, os chamados Westerns "psicológicos" do final da década de 1940 e início da década de 1950 vão se concentrar nas neuroses do western, que surgem de sua crescente incompatibilidade com a civilização, bem como do peso crescente das expectativas de um projeto de sociedade cujas contradições se revelam cada vez menos sustentáveis. Um bom exemplo dessa crescente tensão entre o herói (em crise quanto a seus valores) e a comunidade e do desencanto com o simbolismo das comunidades da fronteira é Matar ou morrer (1952), de Fred Zinnemann. É um filme que pergunta como o mocinho, moralmente correto e socialmente autônomo, podia continuar a defender uma sociedade repressiva, institucionalizada, covarde e ingrata, sem enlouquecer. (VUGMAN, 2006, p. 172).

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Outra característica marcante deste filme é que a câmera se encontra muito mais próxima dos personagens, pois a história contada reflete apenas dilemas morais e tensões psicológicas, muito diferente de filmes como Cavalo de Ferro e Os Bandeirantes que narravam a epopeia do povo estadunidense e abusavam de planos gerais, Matar ou Morrer é um drama com proporções pequenas.

Figura 7. Primeiro Plano do delegado Will Kane (Gary Cooper), abraçando sua esposa Amy (Grace Kelly), após o confronto com o bando criminoso, percebemos em seu rosto a decepção com a população que protegeu anos e o alivio de ter sobrevivido ao confronto, o que importa neste filme é a subjetividade do protagonista, e não as conquistas da nação americana.

Fonte:https://ufmg.br/comunicacao/eventos/faroeste-com-grace-kelly-e-gary-cooper-tera-exibicao-no- centro-cultural (Acesso: 11/09/2019)

Os Brutos Também Amam (1953), conta a história de um pistoleiro solitário chamado Shane (Alan Ladd), que recém-chegado a uma região rural de em um vale do Wyoming, faz amizade com Joe Starrett (Van Heflin), um pequeno proprietário de terras e passa a trabalhar para ele, tentando deixar a vida de pistoleiro, porém o embate entre os trabalhadores e o latifundiário de terra Ryker (Meyer) acaba por chamar a atenção de Shane. O conflito se intensifica quando Ryker contrata Wilson (Jack Palance) um pistoleiro profissional que mata um dos pequenos proprietários de terra para fazer com que eles deixem a região para Ryker, no final do filme Shane duela com Wilson e o mata, assim como mata Ryker e um de seus capangas. Ao final Shane vai embora da cidade sozinho, assim como chegou. Bazin declara que a mitologia do faroeste é o tema central do filme, sendo assim Os Brutos Também Amam representaria o cúmulo da evolução dos faroestes do pós- guerra.

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O cúmulo dessa evolução é justamente representado por Os Brutos Também Amam, western em segundo grau, no qual a mitologia do gênero é conscientemente tratada como tema do filme. Como beleza do western é proveniente da espontaneidade e da perfeita inconsciência da mitologia dissolvida nele, como o sal no mar, essa destilação laboriosa é uma operação contra a natureza, que destrói o que revela. (BAZIN, 1985 p. 221) Quanto a Os Brutos também Amam, ele constitui o suprassumo da “metawesternização”. Com efeito, George Stevens propor-se a justificar o western pelo... western. Os outros se empenhavam para fazer surgir, dos mitos implícitos, teses bem explicitas, mas a tese de Os Brutos Também Amam... é o mito. Stevens combina dois ou três temas fundamentais do gênero, sendo o principal deles o do cavalheiro errante em busca do Graal: e, para que ninguém ignore isso, ele o veste de branco. A brancura do traje e do cavalo era outrora óbvia no universo maniqueísta do western, mas compreendemos que o do traje de Shane (Alan Ladd) possui toda a pesada significação do símbolo, quando não passava, em Tom Mix, de um uniforme de virtude e da audácia. Desse modo o círculo de fecha. A terra é redonda. O “metawestern” levou tão longe sua “superação” que volta a se encontrar nas Montanhas Rochosas. (BAZIN, 1985 p. 212) A reflexão central do filme aborda o espaço que o cowboy clássico dos filmes de faroeste tem em uma sociedade comum, Shane tenta abandonar sua vida de violência e ingressar em um cotidiano mais pacato, mas não consegue, pois sabe que a morte e a violência sempre estarão em seu caminho, e ele sempre habitará a marginalidade da sociedade por conta disso. O julgamento de Marian Starrett (Jean Arthur), esposa de seu amigo Joe, sobre a influência negativa que Shane pode ter sobre seu filho Joey Starrett (Brandon deWilde), evidencia o confronto de valores entre os pistoleiros e a sociedade, condenando estes a marginalidade. Nesta obra o deslocamento não é representado de modo heroico, como o final clássico do cowboy cavalgando em direção ao pôr do sol, ao invés disso, temos um final melancólico, pois sentimos o peso da solidão que Shane carrega, ao ir embora e deixar seus amigos para traz, enquanto que a ingenuidade de acreditar que estes dois mundos podem coexistir sem conflitos é incorporado por Joey, que chama por Shane constantemente, sem entender o porquê da separação.

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Figura 8. Plano Conjunto de Shane (Alan Ladd) e Joey (Brandon deWilde), Shane está ensinando Joey a atirar, após muita insistência do garoto, logo após este evento a mãe de Joey aparece e repreende Shane, assim se inicia um debate sobre as armas e o potencial de segurança ou periculosidade que elas podem trazer para a sociedade. Marian acredita que todas as armas são perigosas, e que o mundo seria um lugar melhor sem elas, quanto que Shane defende que elas são um instrumento como outro qualquer, o uso para o mal ou o bem dependem unicamente de seu usuário.

Fonte:http://filmstillsfromwesterns.org/category/actors/alan-ladd/ (acesso: 12/09/2019)

Na década de 1960, o gênero entrou em crise, pois a nova geração já não se identificava tanto com ele, além de estar desgastado enquanto linguagem e conteúdo, por conta da reutilização constante das mesmas formas. Na década de 1960, os Estados Unidos se tornaram um país em fraca transformação. A guerra do Vietnã alterou a perspectiva do heroísmo de fronteira, bem como as noções morais de bem e mal. Numa época de cinismo, o discurso patriótico do western perdeu força. O gênero entrou em declínio, mas foi mantido pelo olhar nostálgico e duro de Sam Peckinpah e pelos chamados ‘spaghetti westerns’ italianos. (BERGAN, 2010, p. 93) Talvez o filme que expresse com mais força este espírito antiquado que o gênero adquiriu na década de 1960 seja The Man Who Shot Liberty Valance (O Homem que Matou o Facínora, 1962, Ford), nesta obra vemos o embate entre Tom Doniphon (John Wayne) que representa os cowboys que conquistaram o oeste e Ransom Stoddard (James Stewart) representante das instituições democráticas do país, que vai até o oeste para conscientizar os moradores rurais das lógicas políticas do país a partir da constituição. O motivo do confronto estaria no fato de os Estados Unidos terem alcançado um patamar de desenvolvimento civilizatório que não precisaria mais de pessoas como Doniphon que ajudaram a construir a nação a partir de métodos violentos contra a selvageria do Oeste, ao passo que figuras como Stoddard passariam a ganhar mais notoriedade neste período por agirem a partir da 37 lógica de instituições formais e democráticas do país. Nesta obra nós acompanhamos a queda do modelo de herói representado por Wayne no cinema hollywoodiano e a ascensão deste novo homem letrado, educado e frágil na figura de Stewart. O filme de John Ford delimita uma situação histórica para o cowboy dos faroestes clássicos e problematiza sua figura quando confrontada com um mundo de fato civilizado, demonstrando que seus valores e comportamentos não podem ser a referência para os EUA da democracia, colocando estes heróis como personagens atropelados pela história (XAVIER, 2014, p. 192). O gênero passou a ser sustentado nos EUA por faroestes que tinham a perspectiva de ir além das normas clássicas estabelecidas do gênero, seguindo a tendência do pós-guerra e na Itália com o revisionismo do spaghetti western. Outra questão importante para o declínio do gênero foram as séries televisivas. O faroeste de Hollywood começou a declinar no final da década de 1950. O inimigo das comunidades que forjavam para si uma nova vida na grande fronteira não era mais o pistoleiro vestido de negro nem o índio saqueador, mas o espectador da televisão que oferecia ao público séries baratas como Gunsmoke e Bonanza (SMITH, 2011, p. 310) É neste cenário de decadência do western, entre as décadas de 1950 e 1960 que começam a surgir releituras do gênero em outras partes do mundo, como o revisionismo dos italianos, mas neste trabalho também abordaremos a construção do cinema samurai de Akira Kurosawa a partir da influência dos faroestes americanos e também abordaremos a desconstrução cinemanovista no Brasil feita por Ruy Guerra. Após esta retomada histórica, como podemos definir o faroeste enquanto gênero? O crítico Edward Buscombe define o western como um gênero atrelado necessariamente a uma identidade visual, sem necessariamente estar ligada a um tipo de enredo específico Parece ser extremamente difícil arguir que existe uma similaridade significativa entre o enredo de western diferentes, por exemplo. Existe, é claro, um número de enredos que sempre aparecem, filme após filme. Temos aquele em que um oficial da cavalaria, preconceituoso e geralmente disciplinado, é advertido para não começar uma “guerra final contra os índios”. Ou, então, aquele em que um pistoleiro aposentado (ou um ex-xerife) é persuadido, relutantemente, a aceitar a responsabilidade de “limpar” a cidade. Mas usar tais estruturas como base para a definição de gênero acabaria levando não a um único gênero chamado western, mas a um número quase infinito de subgêneros. Alguns poderão argumentar que isso é o melhor que se pode fazer. Entretanto, ao que parece, esses filmes têm algo mais em comum, algo que faz com que os tipos de histórias mencionados acima sejam parte do mesmo gênero. Uma vez que estamos lidando com um meio visual, temos que buscar nossos critérios de definição no que efetivamente vemos na tela. (BUSCOMBE, 2005, p. 306) 38

Logo, o que define o western para Buscombe são suas características visuais, como os cenários das pequenas cidades, as montanhas, as armas, a caracterização de cowboys, prostitutas, mulheres comportadas, ou juízes e banqueiros, personagens que identificamos a partir das vestimentas. Sendo assim, o gênero não depende necessariamente de uma relação com a história estadunidense, como por exemplo, Matar ou Morrer que nada tem de histórico. Existem vários motivos pelos quais é necessário resistir à tentação de falar sobre westerns apenas em termos de história. Em primeiro lugar, acaba-se falando de Ford, que, com certeza, é mais preocupado com isso do que a maioria. Mas Ford não é o western. Em segundo lugar, se é isso que representa o western, é difícil entender por que a metade da população do planeta deveria perder tempo assistindo a esse tipo de filme. Em terceiro, e de modo mais significativo, definir westerns como filmes a respeito de um certo período do passado dos Estados Unidos é não entender a natureza e o significado dos gêneros e como funcionam. (BUSCOMBE, 2005, p. 311) A definição dos gêneros cinematográficos não pode levar em conta a obra de um diretor em específico, deve ser entendida a partir de uma relação com o público e que gêneros em geral são usados para tratar de diversos temas a partir de uma determinada estrutura estética ou narrativa que se repete. O faroeste é um gênero que é necessariamente ambientado no oeste dos Estados Unidos do século XIX, mas que não trata, obrigatoriamente de temas históricos e nacionais, embora tenha sido utilizado durante anos, como vimos a cima, principalmente, entre os anos 1910 – 1930. Durante as décadas de 1940 – 1950 observamos a diversidade temática que o western podia ser usado para abordar, e na década de 1960 observaremos releituras sobre o gênero.

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2. ANÁLISE DOS FILMES YOJIMBO E POR UM PUNHADO DE DÓLARES

Akira Kurosawa mesclou o faroeste com o estilo de Jidaigeki produzido nas décadas de 1920 e 1930, e realizou filmes de época japoneses com a temática samurai que influenciaram na produção de westerns da década de 1960, tanto nos filmes norte-americanos como no movimento italiano revisionista do western spaghetti (GOODWIN, 1994, p. 6). Para compreendermos o contexto do surgimento do filme Yojimbo (Yojimbo – o Guarda Costas, 1961, de Akira Kurosawa) devemos entender as características do cinema Jidaigeki E a situação da indústria cinematográfica japonesa após a ocupação norte-americana em meados da década de 1950. Em termos genéricos, o cinema japonês se divide em dois tipos de filme, o Gendaigeki, que são filmes com enredos que se passam no período moderno e o Jidaigeki, que suas narrativas se desenvolvem no período feudal japonês (GOODWIN, 1994, p. 5), este segundo foi um gênero que estava presente desde os primórdios do cinema japonês, mas sua solidificação enquanto gênero cinematográfico que conhecemos hoje em dia só foi ocorrer no início da década de 1920, Mitsuhiro Yoshimoto nos ajuda a compreender os fatores culturais que contribuíram para sua solidificação: Para entender a especificidade de Jidaigeki, devemos examinar dois desenvolvimentos na cultura popular no início dos anos 20: o surgimento da literatura popular (taishu bungaku) e o surgimento de Shinkokugeki (Novo Teatro Nacional) como forças culturais dominantes. Shinkokugeki era uma nova escola de teatro popular fundada em 1917 por Sawada Shojiro. Embora seu repertório dramático fosse rico em variedade, Shinkokugeki era mais conhecido por suas lutas de espadas realistas (tate) ou brincadeiras de espada (Kengeki). E é esse estado que jindaigeki se apropriou avidamente e aperfeiçoou ainda mais. [...] A literatura popular, ou mais especificamente taishu bungaku, começou a tomar forma como uma nova força cultural no início dos anos 20, sob a forte liderança do escritor Shirai Kyoji. Em 1924, saiu a edição inaugural da popular revista King e, nos anos seguintes, foi iniciada a primeira pequena revista focada exclusivamente na literatura popular, Taishu bungei. […] Embora incluísse marginalmente ficção de detetive e outros tipos de gêneros populares, taishu bungaku era esmagadoramente ficção de chambara ou Jidai shosetsu (romance de época), compartilhando assim o mundo narrativo quase idêntico ao filme de Jindaigeki. Alguns escritores de taishu bungaku, principalmente Naoki Sanjuro, estiveram ativamente envolvidos no negócio do cinema. Em meados da década de 1920, taishu bunganku e o filme de Jidaigeki estimularam mutuamente o desenvolvimento um do outro. Jidaigeki confiou no apelo em massa de taishu bunganku como matéria-prima, e taishu bunganku expandiu sua esfera de influência à medida que Jidaigeki

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transformava seus heróis em ícones culturais. (YOSHIMOTO, 2000, p. 213- 214)3 Portanto o estilo realista e popular dos filmes Jidaigeki se deve a influência dos enredos da literatura popular (taishu bungaku) publicada em revistas e do teatro Shinkokugeki que também eram fontes de inspiração para os combates com espadas, mas além destes 2 pilares culturais, este gênero também teve influência do cinema de ação norte-americano, como Donald Richie nos relata ao falar sobre um dos primeiros filmes que marcam o início da renovação deste gênero: Um dos primeiros Jidaigeki novos, baseado em um trabalho popular de Shinkokugeki, "O Capuz Roxo: o Artista de Gravura" (Muraski zukin: Ukiyoehi, 1923, s / n) foi importante para determinar o futuro do gênero. O filme foi dirigido por Shozo Makino, que havia terminado com o matsunosoke Onoe e fundou a Makino Motion Pictures, e foi escrito por Rokuhei Suzukita, um jovem diretor e dramaturgo de Shingeki cujos roteiros subsequentes se tornariam o cinema definitivo da década de 1920. A grande contribuição de Suzukita para o gênero foi a aplicação do que ele chamou de princípios "realistas" ao cinema da época: "Diga a Makino um roteiro cheio de violência real, cenas de brigas reais, completamente realistas. Ele disse que eles teriam que ser feitos. com armas autênticas (...) quão feliz me senti. Alguns atores foram realmente feridos pelas espadas. " Os roteiros de Suzukita e os filmes subsequentes dirigidos pelos dois Makinos (Shozo e seu filho Masahiro) logo se tornaram populares; eles foram igualmente inspirados por filmes de ação americanos e romancistas locais como Kaizan Nakazato e Shin Hasegawa. (RICHIE, 2005, p. 63)4

3 Tradução livre: To undertand the specificity of Jidaigeki, we must examine two developments in popular culture in the early 1920s: the rise of popular literature (taishu bungaku) and the emergence of Shikokugeki (New National Theater) as dominant cultural forces. Shinkokugeki was a new school of popular theater founded in 1917 by Sawada Shojiro. Although its dramatic repertoire was rich in variety, Shikokugeki was best known for its realistic sword fights (tate) or swordplay (Kengeki). And it is this tate that jindaigeki avidly appropriated and further refined. […] Popular literature, or more specifically taishu bungaku, began to take shape as a new cultural force in the early 1920s under the strong leadership of writer Shirai Kyoji. In 1924 the inaugural issue of the popular magazine King came out, and in the following years, the first little magazine exclusively focused on popular literature, Taishu bungei, was started. […] Even though it marginally included detective fiction and other types of popular genres, taishu bungaku was overwhelmingly chambara fiction or Jidai shosetsu (period novel), thus sharing almost the identical narrative world with the Jindaigeki film. Some taishu bungaku writers, most notably notably Naoki Sanjuro, were actively involved in the moviemaking business. In the mid-1920s, taishu bunganku and Jidaigeki film mutually stimulated each other’s development. Jidaigeki relied on the mass appeal of taishu bunganku as its raw material, and taishu bunganku expanded its sphere of influence as Jidaigeki transformed its heroes into cultural icons. 4 Tradução livre: Uno de los primeros de estos nuevos Jidaigeki, basado en una popular obra Shikokugeki, “La capucha púrpura: el artista grabador” (Muraski zukin: Ukiyoehi, 1923, n.s.) fue importante para determinar el futuro del género. La película fue dirigida por Shozo Makino, que entonces había roto com matsunosoke Onoe y había fundado Makino Motion Pictures, y la escribió Rokuhei Suzukita, un joven director y dramaturgo shingeki cuyos siguientes guiones llegarían a ser los que definieran el cine de los años veinte. La gran contribuición de Suzukita al género fu ela aplicación de lo que él llamó princípios “realistas” al cine de la época: “Di a makino um guión lleno de violencia real, escenas de combates reales, completamente realistas, Dijo que se tendrían que hacer com armas auténticas (...) Qué contento me sentí. Algunos actores resultaron heridos de verdad por las espadas”. Los guiones de Suzukita y las consecuentes películas dirigidas por los dos makinos (Shozo y su hijo Masahiro) fueron pronto populares; se inspiraban a partes iguales en el cine de acción norteamericano y en novelistas locales de capa y espada como Kaizan Nakazato y Shin Hasegawa. 41

Como podemos observar no parágrafo acima, a tríade que compunha o novo Jidaigeki estava se solidificando, construindo como características principais do gênero o realismo e os confrontos formais entre guerreiros: Essa combinação de "emoção realista" e confrontos formalizados distinguiu o gênero ao longo de sua existência. Os filmes de época de Daisuke Ito, Sadao Yamanaka e Akira Kurosawa podem ser comparados e os filmes a esse respeito são semelhantes. (RICHIE, 2005, p. 63)5 Além de uma montagem paralela com ritmo acelerado como podemos perceber nas cenas de combate do filme Chukon Giretsu: Jitsuroku Chushingura (Os Quarenta e Sete Ronins: A Narração Verdadeira, 1928, de Shozo Makino), o cinema estadunidense também influenciou na construção da persona dos samurais, que muito se assemelhavam aos cowboys, pois os protagonistas do novo Jidaigeki estavam distantes de serem guerreiros que serviam a clãs samurai sem questionamentos, pelo contrário, preservavam sua individualidade e seu inconformismo como o motor de suas ações. A atuação consistiu em muitos gestos faciais, além de inflexões de William S. Hart, honesto e alto, e do ousado e atrevido Douglas Fairbanks. Esse novo samurai esgrimista era uma espécie de vaqueiro individualista, até mesmo não-conformista, de quimono, como Toshiro Mifune descreveu em uma de suas últimas aparições, no Yojimbo de Akira Kurosawa (1961). (RICHIE, 2005, p. 64)6 Os samurais do Jidaigeki dos anos 1920 e 1930 se assemelhavam ao personagem Ringo (John Wayne) em Nos Tempos das Diligências, acusado injustamente de ter matado seu irmão, o cowboy errante busca por justiça, essa situação o configura como um personagem marginal e por isso é rejeitado por figuras respeitadas da sociedade na cena do jantar na taberna mexicana, nesta ocasião Ringo se senta ao lado da outra rejeita que é a prostituta Dallas (Claire Trevor), a única que o aceita. Por este motivo os espadachins que protagonizavam estas obras não eram figuras institucionalizadas, eram ronins, ou seja, samurais sem mestre, sem um guia que pudesse definir os caminhos certos e errados. A imagem popular do jovem samurai sem mestre (ronin), rebelde, intrépido e sofrido, rapidamente se consolidou. Este tipo foi identificado como tateyaku, um termo retirado do kabuki para caracterizar o samurai idealizado, guerreiros que não são apenas vitoriosos em combate, mas também homens astutos, com uma vontade forte e determinação para sobreviver. Embora

5 Tradução livre: Esta combinación de “emoción realista” y enfrentamientos formalizados distinguió al gêmero durante toda su existência. Se pueden comparar las películas de época de Daisuke Ito, Sadao Yamanaka y Akira Kurosawa y se las películas de a este respecto, similanres. 6 Traduçãi livre: La actuácion consistia en montones de gestos faciales más inflencias del William S. Hart ecuánime y alto de miras, y el osado y descarado Douglas Fairbanks. Este nuevo samurai esgrimista era individualista, incluso inconformista, uma espécie de vaqueiro en kimono, tal como lo calificó Toshiro Mifune em una de sus últimas apariciones, en yojimbo (1961) de Akira Kurosawa. 42

corajoso e às vezes vitorioso, ele começou a duvidar do código de conduta idealizado que ele próprio havia criado. (RICHIE, 2005, p. 64)7 Assim como as cenas de ação passaram a se tornar fundamentais para os filmes de faroestes, nos filmes Jidaigeki o combate entre armas brancas passou a ter o mesmo peso, e os cineastas exploravam tais momentos do filme buscando potencializar ao máximo a emoção que aqueles combates poderiam passar por meio de técnicas cinematográficas desenvolvidas no ocidente, como: primeiros planos que buscavam detalhar as coreografias de luta, uma montagem acelerada para valorizar o ritmo do combate, composições imagéticas rebuscadas e movimentos de câmera como panorâmicas e giros (RICHIE, 2005, p. 67). Na década de 1910, os samurais eram representados como figuras muito fiéis aos seus votos feitos para seus mestres, existiam na medida que eram uteis para a preservação de suas casas, mas na reformulação do gênero, estas figuras ficariam adormecidas até a retomada dos filmes Jidaigeki após a ocupação norte americana. Os primeiros ronin, por exemplo, os "Os Quarenta e Sete Ronin" (1912), de Shozo Makino, estavam vinculados por horríveis juramentos a seus ex- senhores. Mas o ronin dos filmes da década de 20 não era leal a ninguém. Não apenas eles não tinham fé feudal, mas parecia que eles não tinham fé. O caso é que Orochi (1925), escrito por Suzukita e dirigido por Buntaro Futagawa, e interpretado por Bando, foi aplicado o termo "niilista". Neste filme, o ronin, um homem solteiro contra toda gangue de samurais, vive uma vida que ninguém entende. Investiga incessantemente se há justiça neste mundo, e a resposta é sempre não. De fato, aparecem sinais no começo e no final do filme que garantem que "não há justiça, a sociedade julga apenas pelas aparências, é um mundo de mentiras". Isso poderia muito bem-estar refletindo a situação em um Japão em que um governo igualmente autoritário e irracional estava ressurgindo. (RICHIE, 2005, p. 65)8 Assim como Siegfried Kracauer estuda o modo como o cinema alemão das décadas de 1920 e 1930 percebeu a guinada que a sociedade alemã dava em direção a ideologia nazista em sua obra De Caligari a Hitler: Uma História Psicológica do

7 Tradução livre: Se consolidó rápidamente la imagen popular del joven samurai sin maestro (ronin), rebelde, intrépido y sufriente. Este tipo se há identificado como el tateyaku, un término tomado del kabuki para caracterizar al samurái idealizado, guerreiros que no solo son victoriosos en el combate sino, además, hombres sagaces, com una fuerte voluntad y la determinación de sobrivivir. Aunque valiente y en ocasiones victorioso, había comenzado a dudar del idealizado código de conducta que él mismo había crado. 8 Tradução livre: Los primeros ronin, por ejemplo los de “Los cuarenta y siete ronin” (1912) de Shozo Makino, estaban atados por horribles juramentos a sus anteriores señores. Pero los ronin de las películas de los años 20 no eran leales a nadie. No solo carecían de fe feudal, sino que parecia que carecían de cualquier fe. El caso es que a Orochi (1925), escrita por suzukita y dirigida por Buntaro Futagawa, e interpretada por Bando, se el aplico el término “nihilista”. En esta película, el ronin, un solo hombre contra toda uma banda de samuráis, vive uma vida que nadie comprende. investiga sin cesar si hay justiça em este mundo, y la respuesta siempre es no. De hecho, aparecen unos rótulos al principio y al final de la película que aseguran que “no hay justicia, la sociedade juzga solo por las apariencias, es un mundo de mentiras”. Esto muy bien pudiera estar reflejando la situación de un Japón em el que volvia a surgir un gobierno igualmente autoritário e irracional. 43

Cinema Alemão (KRACAUER, 1988, p. 7), Richie também chama nossa atenção sobre como os filmes Jidaigeki perceberam a ascensão de um governo totalitário e irracional, este embate também se encontra entre os cineastas e os tradicionalistas, que encaravam com desconforto o fato de heróis marginais estarem sendo protagonistas em um mundo corroído pela corrupção. Enquanto os tradicionalistas (incluindo os do governo) criticaram e até censuraram e baniram os trabalhos de Mimura e outros com protagonistas anti-sociais, esses personagens obviamente estavam voltados para um público maior. A popularidade do novo Jidaigeki foi tal que o papel do protagonista cresceu para incluir apenas o samurai e o ronin, mas também os jogadores vagabundos (supostamente os ancestrais remotos da atual yakuza, a máfia japonesa) e vários bandidos que perambulavam pelas margens da sociedade. (RICHIE, 2005, p. 64)9 Sadao Yamanaka é considerado o maior diretor deste movimento, embora apenas três de seus filmes tenham chegado até nós (RICHIE, 2005, p. 69), seu último filme talvez seja o melhor expoente que podemos ter deste período, Ninjo Kamifuse (Humanidade e Balões de Papel, 1937) narra o dia a dia do ronin Unno Matajuro (Chojuro Kawarazzari) e o seu vizinho cabelereiro Shinza (Kanemo Nakamura) que vivem na periferia cidade de Tóquio no século XVIII, após a morte do pai de Unno, ele e sua esposa (Shizue Yamagishi) vivem de fazer balões de papel, mas Unno tenta entregar uma carta de seu pai para o mestre Mouri (o antigo mestre do seu pai) para que ele o contrate, mas Mouri não tem interesse algum em contrata-lo e por isso o humilha constantemente tentando afasta-lo a todo custo, rejeitado e humilhado por Mouri, Unno se entrega ao alcoolismo e mente para a esposa dizendo que sua relação com Mouri é boa e que a carta foi entregue a ele. Enquanto isso seu vizinho Shinza sequestra a mulher que estava prometida para o samurai Yatagora e a esconde na casa de Matajuro (com o seu consenso), mas o cabelereiro é descoberto e é intimado a devolver a noiva do guerreiro. O impasse é resolvido pelo senhor de Shinza (proprietário do cortiço) que negocia a entrega da mulher em troca de dinheiro, após o resgate da noiva prometida, toda a comunidade descobre que está ela estava escondida na casa de Unno, motivo de grande vergonha para um samurai. O filme conclui com Shinza sendo convidado para um duelo contra Yatagora, que usa sua

9 Tradução livre: Mientras que los tradicionalistas (incluyendo los que estaban em el gobierno) criticaban y hasta llegaron a censurar y a prohibir las obras de Mimura y otros en las que salían los protagonistas antisociales, esos personajes se dirigían evidentemente a los públicos más grandes. La popularidade del nuevo Jidaigeki fue tal que el papel del protagonista creció para incluir solo al samurái y al ronin, sino además a los jugadores vagabundos (supuestamente los ancestros remotos de la actual yakuza, la máfia japonesa) y diversos gamberros que holgazanean por los márgenes de la sociedad. 44 espada contra a navalha do cabelereiro, e a mulher de Matajuro descobre a farsa do marido ao encontrar em seu bolso a carta de seu pai que deveria estar com o mestre Mouri. Com essa grande decepção a mulher decide cometer Sepukko (suicídio samurai) nela e em seu marido enquanto ele dorme embriagado, no dia seguinte os dois corpos são encontrados. No mundo construído por Yamanaka o único modo de tentar obter a honra samurai é o suicídio, pois esta instituição está polarizada em duas formas de existência, clãs que agem como gangues mafiosas e ronins miseráveis, que são obrigados a penhorar suas Katanas (espadas samurai) para poderem sobreviver, como a cena de abertura nos mostra. Na primeira sequência, um ex-samurai cometeu suicídio. Seus vizinhos falam sobre a morte e um disse: “Mas ele se matou, como um comerciante. Onde estava o espírito bushido daquele homem? Por que ele não se estripou como um verdadeiro samurai? A que outro responde: "Era que ele não tinha mais uma espada: ele a vendeu outro dia em troca de arroz". É sobre a morte, o tema inicial do filme, tão típico do drama convencional da época, com sua referência ao bushido, "o caminho do samurai". Mas há uma enorme diferença. No produto convencional, o protagonista teria um final glorioso. Não é assim, porém, neste filme crítico, contemplativo e contemporâneo. A espada, que deveria simbolizar a vida de um samurai, foi vendida para que, com grande ironia, o samurai possa viver. (RICHIE, 2005, p. 70)10 É uma sociedade que tenta sobreviver a falência dos modelos tradicionais, os senhores de terra são exploradores cruéis de seu povo, os servos são jogados a miséria e os samurais são covardes e sádicos, pois no filme uma Katana tem apenas duas serventias, serem penhoradas ou serem instrumento de injustiça, como na icônica batalha, não mostrada no filme, entre a espada samurai e a navalha do cabelereiro. Shinza é o agente do caos para esta sociedade injusta, aquele que vai subverter a ordem ao raptar a noiva prometida de um samurai, pela primeira vez impõe sua existência acima de sua condição social e enfrenta a ordem social mesmo que isto custe a sua vida. A morte de Shinza não é mostrada no filme, não há espetacularização na heroica, trágica e marginal morte deste cabelereiro.

10 Tradução livre: En la primera secuencia se há suicidado um antigo samurái. Sus vecinos hablan de la muerte y uno disse: “Pero se colgó, como un comerciante. ¿Dónde estaba el espíritu bushido de ese hombre? ¿Por qué no se destripó a sí mismo como un auténtico samurái?” A lo cual otro responde: “Es que ya no tenía espada: la vendió el outro día a cambio de arroz”. Se trata de la muerte, el filme tema de comienzo, tan típico del drama convencional de época, com su referencia al bushido, “el caminho del samurái”. Pero hay una enorme diferencia. En el producto convencional, el protagonista habría tenido um final glorioso. No así, sin embargo, en esta película crítica, contemplativa y contemporânea. La espada, que se supone que simboliza la vida de un samurái, há sido vendida para que, em gran ironia, el samurái pueda vivir. 45

Unno Matajuro e sua esposa personificam a falência da tradicionalidade, uma vez que deveriam ocupar uma posição de prestígio na sociedade por conta de fazerem parte de um grupo social nobre, mas por condições financeiras acabaram por viver igual aos servos, a nobreza que representam está morta, o que tem valor nesta sociedade são relações materiais concretas, os samurais e os senhores de terra não ocupam suas posições por serem naturalmente nobres, mas por usarem de seus poderes bélicos para explorarem as massas, o poder das elites é representado pelo mestre Mouri e o proprietário do cortiço. Matajuro não entendeu esta lógica social, e pagou com sua vida, Shinza por outro lado se revoltou contra ela, e obteve o mesmo destino.

Figura 9: Cartaz do filme Humanidade e Balões de Papel.

Fonte: https://filmow.com/humanidade-e-baloes-de-papel-t68944/ (acesso: 17/02/2020)

Podemos perceber uma grande queda na produção de filmes Jidaigeki entre o final da década de 1930 até o início da década de 1950, isso se deve por dois períodos de censura na produção cinematográfica, o primeiro seria o estado totalitário e belicoso que conduziu o Japão durante a segunda guerra mundial, e o segundo seria a ocupação americana no pós-guerra.

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A partir do ano de 1937 com a invasão do Japão à China o estado japonês começou a interferir no mercado cinematográfico para transformá-lo em uma máquina de propaganda estatal. As tentativas de tornar o cinema individualista desapareceram no final da década de 1930. O governo havia tomado uma direção que obstruiria a liberdade de expressões pessoais como essa por um tempo. Um membro de alto escalão do governo disse: "Os filmes são nossas balas e não deixaremos um frame de filme para o setor privado" (RICHIE, 2005, p. 94)11 Além de sufocar o individualismo estilístico cinematográfico dos cineastas, a estética deveria fugir de qualquer tipo de estrangeirismo, mesmo que as influências ocidentais estivessem presentes na maioria das produções japonesas, neste período de guerra a indústria cinematográfica japonesa buscou explorar ao máximo um estilo genuinamente japonês. O estilo 'nacional' era agora tão completamente um amálgama de influências internacionais que qualquer tentativa de recuperar uma visão puramente 'japonesa' ou de proibir importações estilísticas não poderia ser bem- sucedida. No entanto, havia no cinema de guerra do Japão poucos cortes rápidos e muitos poucos movimentos de câmera por si só. […] essa série de quadros de fato se assemelha ao filme japonês de trinta anos antes, exceto que suas aparentes simplicidades são as de sofisticação, conhecimento e intenção. (RICHIE, 1990, p. 39) 12 Além da tentativa de construir uma estética genuinamente nacional, os filmes deveriam inspirar valores patrióticos, e deixar de lado qualquer tipo de discussão que desafiasse as autoridades do estado, neste momento surgia um novo gênero para o cinema japonês, os filmes de guerra. “Agora que um gênero de guerra era aspirado, o espectro do sacrifício necessário e a disciplina necessária deveriam ser enfatizados. A guerra teve que ser apoiada sem divergências. ” (RICHIE, 2005, p. 95)13. Esta conjuntura faz contraponto direto com tudo o que o novo Jidaigeki era, o estado de guerra japonês suprimiu as influências ocidentais do gênero e sufocou qualquer tipo de pensamento crítico que poderia vir de seus enredos que trabalhavam a dicotomia entre personagens marginalizados e uma sociedade corrompida. A

11 Tradução livre: Los intentos de hacer un cine individualista se desvanecieron hacia finales de los años 30. El gobierno se había orientado em uma dirección que iba a obstruir la liberdad de expresiones personales como esa durante un tiempo. Un membro de alto nivel de ese gobierno dijo: “Las películas son nuestras balas y no hay que dejar un pie de película al sector privado” 12 Tradução livre: The ‘national’ style was by now so completely an amalgam of international influences that any attempt to regain a purely ‘Japanese’ vision or to proscribe stylistic imports could not be successful. None the less there was in japan’s wartime cinema not much fast cutting and very little camera movement for its own sake. […] This series of tableaux does indeed resemble the Japanese film of thirty years before except that its apparent simplicities are those of sophistication, knowledge and intent. 13 Tradução livre: Ahora que se aspiraba a um género bélico, se suponía que se subrayaría el especto del sacrificio necessario y la disciplina requerida. Había que apoyar la guerra sin fissuras. 47 injustiça e irracionalidade combatida e alertada pelos cineastas havia tomado conta da nação. Após a rendição do Japão para as forças aliadas, as condições impostas ao cinema japonês no período de guerra foram destruídas, e agora os Estados Unidos estavam ocupando o país com a intenção de integrá-lo no panorama internacional democrático (RICHIE, 2005, p. 105). As condições impostas pelo Comandante Supremo das Forças Aliadas (SCAP) proibia que os filmes tratassem de: Qualquer (filme) que contenha militarismo, vingança, nacionalismo ou sentimento anti-estrangeiro; distorção da história; aprovação de discriminação racial ou religiosa; parcialidade ou aprovação da lealdade feudal; tratamento excessivamente leve da vida humana; aprovação direta ou indireta de suicídio; aprovação da degradação ou opressão das esposas; admiração por crueldade ou violência injusta; opinião não democrática; exploração de crianças; e oposição à declaração de potsdam ou qualquer ordem SCAP. (RICHIE, 2005, p. 105)14 Como podemos perceber acima, um dos tópicos que era defendido pelos sensores norte-americanos era o afastamento de qualquer tipo de lealdade ou aprovação ao estado feudal japonês, colocando mais uma vez o Jidaigeki em uma situação desconfortável, uma vez que seus filmes se passavam no período feudal. Mesmo que o novo Jidaigeki apresentasse uma postura mais crítica ao estado japonês que antecedeu a ocupação norte-americana, os sensores tinham medo que estes filmes reacendessem o espirito feudalista e colocasse a baixo seu trabalho cultural, o que os ocupantes queriam do cinema japonês eram filmes Gendaigeki ao estilo americano, filmes rápidos, modernos e otimistas, que pintariam com cores brilhantes o futuro democrático do país (RICHIE, 1990, p. 43). Embora o Jidaigeki não fosse visto com bons olhos pelos sensores americanos, alguns filmes importantes do gênero foram feitos no período da ocupação, como Utamaro Wo Meguru Gonin No Onna (Utamaro e Suas Cinco Mulheres, 1946, Kenji Mizoguchi) e Rashômon (Rashomon, 1950, Akira Kurosawa). Neste período os filmes japoneses de época se concentravam primordialmente em questões humanas, longe de qualquer tipo de reflexão histórica.

14 Tradução livre: Cualquiera que contuviera militarismo, venganza, nacionalismo o sentimiento antiextranjero; distorsíon de la historia; aprobación de la discriminación racial o religiosa; parcialidade hacia o aprobación de la lealtad feudal; tratamiento excessivamente ligero de la vida humana; directa o indirecta aprobación del suicídio; aprobación de la degradación o de la opresión de las esposas; admiración hacia la crueldade o la violencia injusta; opinión antidemocrática; explotación de los niños; y oposición a la declaración de potsdam o a cualquier ordem del SCAP. 48

O fim da ocupação em 28 de abril de 1952 iniciou uma era de grande liberdade e criatividade no cinema japonês, uma vez que muitos cineastas como: Kurosawa, Kinoshita, Ichikawa, Imai Tadashi e Shindo Kaneto, estavam interessados em experimentar novas fórmulas baseadas principalmente no modelo hollywoodiano de produção. (RICHIE, 1990, p. 44) Os jovens diretores, especialmente depois do fim da Ocupação, aprenderam a língua franca do cinema, o que foi chamado de "os códigos de Hollywood", assistindo filmes estrangeiros. Isso, juntamente com as novas liberdades causadas pelo fim da Segunda Guerra Mundial e pela Ocupação, deu origem a novas atitudes, novos argumentos e novos gêneros (ou a revisão dos antigos gêneros). (RICHIE, 2005, p. 133)15 Este momento fez com que eles revisassem gêneros que já estavam estabelecidos e explorassem universos não convencionais dentro das tradições cinematográficas do seu país. Entre estes novos gêneros três se destacam: a comedia do pós-guerra, o Jun-Bugaku (pura literatura) e os Shakai-mono (temáticas sociais). (RICHIE, 2005, p. 133). O Jidaigeki sofreu fortes transformações com a saída dos sensores americanos os cineastas estavam livres para explorar o seu passado sem a necessidade de um enfoque relações pessoais e tensões psicológicas, os cineastas optaram por retratar seu passado de forma romantizada e ingênua. [...] contudo, o Jidai-geki há muito degenerou-se, tornando-se um gênero romântico ambientado historicamente. Exceção feita a alguns filmes de época de Mizoguchi, Kobayashi e Kurosawa, o gênero carece de vitalidade. Os filmes tornam-se excursões bastante coloridas, mas sem significado, como Samurai de Inagaki e Chushingura do mesmo diretor, ou Portal do Inferno de Kinugasa. (RICHIE, 1984, p. 116). Jigokumon (Portal do Inferno, 1953, Teinosuke Kinugasa) conta a história de um triangulo amoroso entre o samurai Morito Endo (Kazuo Hasegawa), a lady Kesa (Machiko Kyo) e seu marido e samurai Wataru Watanabe (Isao Yamagata). Durante uma guerra entre reinos o samurai Morito resgata a lady Kesa de uma emboscada, anos após o término da guerra os dois se encontram e Morito Endo se apaixona perdidamente pela dama, mas esta já está comprometida com o samurai Wataru Watanabe. Morito tenta conquistá-la, mas a Lady resiste as suas investidas, então desesperado o samurai a ameaça e toda sua família caso Kesa não se entregue para ele. Sem confiança na proteção do seu marido e com o medo de que Endo faça o pior,

15 Tradução livre: Los jóvenes directores, en especial después de acabada la Ocupación, aprendieron la lengua franca del cine, lo que se ha llamado “los códigos de hollywood”, viendo películas extranjeras. Eso, junto com las nuevas liberdades ocasionadas por el fin de la Segunda Guerra Mundial y de la Ocupación, dio lugar a nuevas actitudes, nuevos argumentos y nuevos géneros (o a la revisión de los viejos géneros). 49 a Lady arma uma emboscada que faz Morito matá-la pensando que estava matando Wataru, ao descobrir que tinha assassinado sua amada, Morito Endo abdica de sua posição samurai e passa a vagar como um indigente. Na partir da sinopse descrita acima, podemos perceber o distanciamento de qualquer aspiração crítica ao passado japonês, o roteiro defende as instituições tradicionais ao colocar o problema deste mundo sendo justamente a quebra do código de honra por causa de interesses particulares, o honrado samurai Morito Endo destrói sua vida social por não conseguir controlar seus desejos, o momento em que ele comete um suicídio simbólico desfazendo seu coque samurai chega a ser mais trágico do que a triste morte de Lady Kesa, pois ela se entregou a morte para salvar a vida de seu marido, um outro ser humano que um dia morrera, mas Morito destruiu seu legado, sua linhagem samurai nunca mais voltará a existir, é o assassinato de uma tradição. Este filme do ano de 1953 tem a peculiar característica de ser colorido, e suas cores foram utilizadas para romantizar ao máximo este Japão feudal, cores muito chamativas e diversas compõe o que eram as paisagens desta terra antes dos avanços da modernidade, o figurino e cenografia exploram ao máximo a riqueza estética da tradição. Acima de uma obra cinematográfica, o filme tenta ser uma exposição de inúmeras pinturas que ressaltam o grandioso passado japonês, ao traçar um paralelo direto entre a narrativa que acompanhamos e a abertura do filme, que é uma pintura retratando este período e uma narração em off, como se nós entrássemos neste quadro e passeássemos por um passado grandioso que não existe mais, sem dúvida alguma a nostalgia é o elemento principal desta obra.

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Figura 10: Plano conjunto de Morito Endo (Kazuo Hasegawa) e lady Kesa (Machiko Kyo), Endo está escondendo a Lady Kesa após fugirem da invasão sofrida pelo seu reino. As vestes coloridas dos personagens ressaltam a imponência de suas posições sociais, na mesma medida que as cores do ambiente remetem a bucolidade do Japão tradicional.

Fonte:https://www.planocritico.com/critica-portal-do-inferno-1953/ (acesso: 17/02/2020)

Kurosawa se destaca por ser um dos cineastas que mais trabalha o Shakai- mono: O diretor que fez um cinema Shakai-mono de uma maneira mais especial foi Akira Kurosawa. Em sua longa carreira, ele fez um total de trinta e um filmes, e todos, de uma maneira ou de outra, lidam com questões sociais. O interesse de Kurosawa é retratar e interpretar sua sociedade. Pode-se dizer que esse objetivo é dado como certo em outros países, mas no Japão não é o diretor médico normal que está interessado em problemas sociais. (RICHIE, 2005, p. 164)16 É notável a diversidade de temas sociais que Kurosawa aborda em suas obras, como a corrupção em grandes empresas no filme Warui yatsu bodo yoku nemuro (O Homem Mal Dorme Bem, 1960), o pavor da destruição atômica em Ikimono no kiroku (Crônica de um Ser Vivo, 1955) e a ascensão social a partir de um crime em Kumonosu-jo (Trono Manchado de Sangue, 1957). Estas temáticas estão presentes tanto em obras Gendaigeki como em obras Jidaigeki, entre tanto, Kurosawa tinha um interesse especial em renovar as narrativas de época: Há muito tempo vinha querendo fazer um verdadeiro Jidaigeki, um verdadeiro filme de época. Muito embora nesse período a metade dos filmes produzidos fossem Jidai-geki, os “verdadeiros” eram raríssimos. A maioria era (como é agora) chambara, simplesmente filmes de lutas de espada. Os críticos japoneses gostam de comparar o chambara com o Western americano (o seibu-geki) e é uma comparação cabível. Mas assim como há Westerns

16 Tradução livre: El director que hizo um cine Shakai-mono de modo más especial fue Akira Kurosawa. En su larga carrera hizo um total de trainta y una películas, y todas, de um modo u outro, tratan temas sociales. El interés de Kurosawa es retratar e interpretar su sociedade. Se podría decir que esse objetivo se da por seguro en otros países, pero en Japón no es el director médio normal el que se interesa por los problemas sociales. 51

significativos (The Covered Wagon, Cimarron, No Tempo das Diligências) também há Jidai-geki significativos. Aliás, pode-se traçar o desenvolvimento dos “verdadeiros” filmes de época japoneses a partir dos primeiros filmes de Daisuke Ito e Manasaku Itami, passando por Sadao Yamanaka e Kenji Mizoguchi até Masaki Kobayashi e o próprio Kurosawa. Esses são “verdadeiros”, pois não se limitam à simples reconstrução histórica, habitada por personagens –padrão (o que vale para os filmes de época no mundo inteiro), mas insistem na validade do passado e no significado contínuo do histórico. Que a regra seja o contrário no Japão (tão famoso por ser um museu onde nada se joga fora, quase notório por seu respeito ao passado, praticamente infamado por seu senso histórico) é algo surpreendente, mas é assim. O Jidai-geki comum não tem mais ligação vital com o passado do que qualquer épico de Steve Reeves. (RICHIE, 1984, p. 97). O que não significa que Kurosawa descartasse cenas de ação em seus filmes, o diretor sempre buscou explorar os combates samurai da forma mais impactante possível, afinal o filme também deveria buscar ser divertido (RICHIE, 1984, p. 97), mas de forma dosada, para que o foco dos Jidaigeki continuasse sendo questões sociais que atravessam a história do Japão. Dado este contexto, a seguir analisaremos o filme Yojimbo a partir de quatro características que remetem diretamente a tradição do western: 1- A cenografia da cidade que remete imediatamente a pequenas cidades de filmes de faroeste; 2- O duelo final entre o forasteiro e o gangue de Ushitora e como sua decupagem e suas semelhanças com as sequências desenvolvidas em muitos filmes de faroeste; 3 -O ronin forasteiro (Toshiro Mifune) e sua relação com a figura do pistoleiro solitário e implacável dos metawesterns; 4- O conflito entre o ronin forasteiro e Unosuke (Tatsuya Nakadai), como uma forma de comparação entre as figuras fílmicas do cowboy e do samurai. Yojimbo narra a história de uma pequena cidade dividida entre dois lados igualmente maus, a disputa tem como único objetivo o controle da cidade, até que um ronin desconhecido e habilidoso surge na cidade e resolve o conflito eliminando ambos os lados. “Já há muito tempo”, disse Kurosawa, “eu vinha querendo fazer um filme realmente interessante. E por fim acabou sendo esse. A história é tão idealmente interessante que me surpreende que ninguém tenha pensado nela antes. A ideia é de rivalidade entre dois lados, ambos igualmente maus. Todos sabemos o que é isso. Aqui estamos, numa posição fraca, espremidos no meio dos dois, sendo impossível escolher entre dois males. Eu mesmo sempre quis de alguma forma pôr fim a essas batalhas sem sentido entre o mal e o mal, mas somos todos mais ou menos fracos - eu nunca consegui. E por isso o herói desse filme é diferente de nós. Ele é capaz de se colocar exatamente no meio e parar a luta. E é nisso - nele - que eu pensei primeiro. Esse foi o começo do filme na minha cabeça. ” (RICHIE, 1984, p. 148). O filme se passa no Japão da segunda metade do século XIX, inicia com o ronin (Toshiro Mifune) caminhando solitariamente em meio a um vasto campo, até que 52 ele se depara com uma encruzilhada e decide seu caminho na sorte, ao jogar um pedaço de pau para cima e seguir para direção que o objeto apontar quando este estivesse no chão, decidido o caminho, o samurai errante se aproxima de uma pequena casa onde uma família está discutindo, o filho do casal (Yosuke Natsuki) de idosos quer se juntar aos bandidos da cidade em busca de dinheiro e fama, enquanto seus pais o advertem sobre a brevidade desta vida criminosa, mas o filho retruca: “E quem vai querer uma vida por aqui comendo arroz? Quero uma vida curta e emocionante. ” E sai em direção à cidade. O ronin bebe um pouco da água do poço da família e também parte rumo a cidade, em um primeiro momento parece que a vila está abandonada, ninguém está nas ruas, um cachorro passa carregando uma mão em sua boca, o forasteiro estranha toda aquela situação, é ameaçado por alguns bandidos que juram matá-lo se ele não for embora da pequena cidade, até que Gonji (Eijirō Tōno) o dono da taberna convida o visitante para uma refeição, e aproveita para explicar para ele a situação da cidade: Tazaemon (Kamatari Fujiwara) é o prefeito da cidade e também produz e vende seda, mas era manipulado pelo mafioso Seibei (Seizaburo Kawazu) o dono do bordel da cidade, então Tokuemon (Takashi Shimura) o fabricante de saque se auto proclama o novo prefeito da cidade, e é protegido por Ushitora (Kyū Sazanka) ex-capanga de Seibei que agora quer começar seu próprio negócio, e desde então a cidade vive uma longa guerra, que atrai mercenários de todos os cantos. Diante deste cenário o ronin decide que tentara acabar com essa guerra eliminando aos dois lados, ao mesmo tempo que tentará ganhar dinheiro fácil com isso. O personagem de Mifune retorna ao espaço público e desafia os três bandidos que o insultaram para um duelo, após matar os três chama a atenção de toda a cidade, então Seibei decide contratá-lo por um alto preço, e convoca uma batalha contra a gangue de Ushitora ao meio dia, mas perto do grande confronto o solitário ronin ouve a Seibei, sua esposa Orin (Isuzu Yamada) e seu filho Yoishiro (Hiroshi Tachikawa) tramando seu assassinato após a vitória. Então quando os exércitos de mercenários estão frente a frente o forasteiro declara que está rompendo com Seibei, pois não confia mais nele, e se retira para uma torre no centro da cidade, onde pode assistir com segurança o confronto entre os mafiosos, mas quando estavam perto de lutar uma voz anuncia que o inspetor estava chegando na cidade e ambos desistem do confronto.

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No dia seguinte descobrimos que Seibei e Ushitora fizeram um pacto de paz, mas o ronin desconfia deste pacto, ao mesmo tempo temos a notícia da chegada de Unosuke (Tatsuya Nakadai), irmão mais novo de de Ushitora e Inokichi (Daisuke Katō), Unosuke está voltando do Ocidente e traz consigo um revólver, arma desconhecida no Japão desta época, por este motivo é considerado uma grande ameaça para os inimigos de sua família, até mesmo para o ronin recém chegado. Um agente do governo é assassinado em uma cidade distante e isso requer a atenção do inspetor que deixa a cidade, então o ronin descobre que foram dois matadores de Ushitora que cometeram o crime, sequestra os dois e os entrega para Seibei, logo em seguida conta a Ushitora que Seibei está com seus matadores e o mafioso logo ordena que sequestrem Yoishiro, o filho de Seibei. Após o sequestro ambos os lados negociam uma troca de prisioneiros, mas Unosuke trapaceia e mata os dois capangas de seu irmão, Seibei ja havia previsto esta manobra então mostra Nui (Yoko Tsukasa) feita de refém, a moça era casada com um fazendeiro, mas como este não tinha dinheiro para pagar suas dívidas de jogo, Seibei a aprisionou em seu bordel, mas Unosuke era apaixonado por ela, e agora o família de Ushitora estava interessada na troca de prisioneiros. No dia seguinte durante a realização da troca dos prisioneiros, a família de Nui estava na taberna de Gonji, e seu filho começa a chorar pela mãe, ela corre para seu filho e seu esposo, mas logo a corta que ela estava sendo amarrada é passada para o outro lado e ela é puxada na direção de Ushitora, ao mesmo tempo que Yoishiro vai para sua família. O ronin de Mifune acaba simpatizando com a família de Nui e decide libertar a moça do seu cativeiro. Durante a noite ele e Inokichi estavam andando perto do cativeiro até que o ronin percebe uma cabana e chama a atenção de Inokichi para o fato do marido de Nui estar nela, então o irmão de Ushitora vai até lá para espancar o homem e afasta- lo de lá, até que o ronin interrompe o ato de violência e avisa para Inokichi que a prisioneira não está mais no cativeiro, além de todos os guardas estarem mortos. Inokichi corre para avisar seu irmão, então Mifune aproveita da situação para invadir o cativeiro, matar todos os guardas e libertar a moça, após salvá-la e entregá-la para sua família o ronin destrói o lugar para parecer que houve um confronto mais violento que envolvesse vários homens. A família de Nui tenta agradesse-lo mas ele insiste para que eles fujam antes que os homens de Ushitora apareçam. A família se vai e

54 logo aparece Ushitora e seus homens perguntando sobre o ocorrido, o ronin joga a culpa no seu rival Seibei, e acaba por desencadear uma verdadeira guerra na cidade, a fábrica de seda é queimada e os reservatórios de saquê são destruídos, corpos são encontrados por todos os lados. Gonji entrega uma carta da família de Nui para o ronin, mas este não quer lê- la, até que Unosuke e seu irmão Inokichi entram na taberna para conversar com o ronin e acham a carta em cima da mesa, Unosuke saca sua arma e pega a Katana do samurai, que é feito de refém pelos capangas de Ushitora que o espancam para que ele diga onde está Nui, mas o ronin não diz nada. Depois de apanhar muito o ronin consegue fugir de modo sorateiro, e se refugia na taberna de seu amigo, quando os capangas da família de Ushitora passam lá para perguntar por ele, Gonji declara que o ronin está escondido no prostíbulo de Seibei, então Ushitora descide queimar o lugar e matar toda a gangue. Gonji e o fabricante de caixões (Atsushi Watanabe) estão tirando o ronin em um caixão, mas este pede para os dois pararem de caminhar para que ele veja a ação contra a gangue de Seibei. A casa estava em chamas e todos os que saiam de lá eram mortos, incluindo Seibei, sua esposa e seu filho. Com o término do massacre o fabricante de caixões fugiu e Gonji estava sozinho, então viu que Inokichi estava andando pela rua em sua direção e decidiu pedir ajuda para ele, mas antes entregou de forma discreta uma faca para o ronin, caso algo desse errado, Inokichi o ajudou a carregar o caixão para longe da cidade e depois voltou a procurar o ronin nas redondezas. Passados alguns dias, o ronin estava escondido em uma cabana na floresta enquanto se recuperava enquanto treina arremesso de faca em um papel que voa pelo ambiente por causa do vento, até que o fabricante de caixões lhe entrega a notícia de que Gonji foi visto levando comida para o ele e por isso foi sequestrado pelos capangas de Ushitora, que o fazem de refém na cidade enquanto o esperam para o confronto final, então o ronin decide ajudar seu amigo, mas antes o fabricante de caixões o entrega uma katana para ajuda-lo neste confronto. Mifune surge solitário em uma das extremidades da cidade, enquanto que a gangue que o aguarda está no lado oposto, ambos se aproximam lentamente, no cenário de destruição e guerra, Unosuke saca seu revolver e aponta para o ronin, mas este arremessa sua faca direto no braço do atirador que recua ferido, logo o samurai

55 saca sua espada e mata quase toda a gangue, com exceção do filho do fazendeiro que aparece no começo do filme, o garoto está em pânico gritando pela sua mãe, então joga sua espada no chão e corre para casa, ai o ronin de Mifune diz: “É... uma vida longa comendo papa de arroz é o melhor.” Após a batalha Tazaemon ataca e mata seu adversário Tokuemon, mas como Tazaemon está visivelmente enlouquecido pela guerra de gangues, os cidadãos sobreviventes o ignoram. O ronin declara que agora a cidade poderá recomeçar em paz e vai embora, o filme acaba. A influência do faroeste na obra de Kurosawa é evidenciada pelo próprio diretor: A semelhança desse filme com o western americano já foi observada muitas vezes. O próprio Kurosawa comentou: “Todos gostam de um bom western. Como os humanos são fracos, gostam de ver gente boa e grandes heróis. Westerns têm sido feitos sem cessar e nesse processo desenvolve-se uma espécie de código. Eu aprendi com esse código do western. ” (RICHIE, 1984, p. 148) O primeiro paralelo que iremos observar é a semelhança imagética e cenográfica entre a pequena cidade onde tudo se passa em Yojimbo e as cidadezinhas que aparecem de modo recorrente nos filmes de faroeste, “A cidade assemelha-se muito a um daqueles locais esquecidos por deus no meio de lugar nenhum que lembramos dos filmes de Ford, Struges, de Conspiração do Silêncio ou Matar ou Morrer. ” (RICHIE, 1984, p. 148). A cidade de Yojimbo é composta de uma única rua, onde cada uma das gangues inimigas se encontra em um dos extremos, gerando um sentimento claustrofóbico no espectador pela ausência da possibilidade de fuga, a geografia da cidade é explorada a todo momento como um palco onde duas forças estão prestes a colidir. Embora as pequenas cidades que apareçam nos filmes de western não sejam tão pequenas como a de Yojimbo, o princípio do confronto na rua principal aparece com frequência, a dicotomia entre os personagens e a possibilidade iminente de confronto é ressaltada pelo posicionamento de direções contrarias na rua principal.

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Figura 11: Plano Geral do personagem interpretado por Mifune assistindo o confronto entre as duas gangues, aqui podemos observar o início ou fim da rua que compõe a cidade.

Fonte: https://www.planocritico.com/critica-yojimbo-o-guarda-costas/ (acesso: 02/03/2020)

Figura 12: Plano Geral do personagem interpretado por Mifune assistindo o confronto entre as duas gangues, aqui podemos observar o outro lado da cidade.

Fonte:http://www.adorocinema.com/filmes/filme-6434/fotos/detalhe/?cmediafile=21378088 (acesso: 02/03/2020)

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Figura 13: Plano geral do ronin forasteiro (Toshiro Mifune) e ao fundo seus opositores, prontos para o duelo final.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=zCjsazHO0c0&t=62s (acesso: 02/03/2020)

Figura 14: Plano médio de Unosuke (Tatsuya Nakadai) no meio, Ushitora (Kyū Sazanka) à esquerda e Inokishi (Daisuke Katō) à direta, e sua gangue, partindo para o combate contra o ronin.

Fonte:https://filmmusiccentral.com/2018/02/28/my-thoughts-on-yojimbo-1961/ (acesso: 02/03/2020)

Figura 15: Plano conjunto do ronin solitário (Toshiro Mifune) caminhando na direção da gangue de Ushitora para o duelo final.

Fonte: https://www.phoenix.org.uk/blog/to-japan-and-back/ (acesso: 02/03/2020)

As figuras acima ilustram o modo como Kurosawa usa da cenografia para trabalhar as dicotomias do filme, de modo que a decupagem sempre acabe trabalhando com dois planos que se antagonizem e se complementem nesta lógica dramática do duelo permanente que se materializa na arquitetura da cidade.

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Outros dois elementos urbanos preservados por Kurosawa são o bar e o prostíbulo, neste filme aparecem como a taberna de Gonji e a casa de prostituição de Seibei. Assim como nos filmes de faroeste a taberna fica no centro da pequena cidade, e é um lugar de isenção onde qualquer pessoa possa frequentar, mas diferente do que geralmente aparece nos filmes norte-americanos, ao invés de ser um lugar grande e movimentado, aparece como um pequeno comércio vazio e sem vida. O prostíbulo e as prostitutas são elementos que aparecem no filme, mas sem a mesma potência que nos westerns norte-americanos, onde estas personagens geralmente desempenhavam um papel de antagonismo moral com as mulheres casadas, como nos filmes Matar ou Morrer, Paixão dos Fortes e Nos Tempos das Diligências. Em Yojimbo o local se destaca mais por ser a casa onde a família e gangue de Seibei vivem do que pelas prostitutas, que são tidas como escravas que não desempenham nenhuma função dramática importante, a não ser ressaltar a maldade de Orin. Outros elementos urbanos recorrentes nos faroestes como o estábulo, a delegacia, hotéis para viajantes e as fazendas, são ignorados por Kurosawa por não terem nenhuma serventia dramática para esta trama, uma vez que este filme gira em torno de conflitos constantes e não solucionáveis, os únicos elementos arquitetônicos do faroeste que se destacam são a rua, por ser o palco principal do confronto e a taberna onde nosso protagonista pode se refugiar da batalha e se abrir para Gonji e o público sobre suas verdadeiras intenções. Estes dois ambientes se complementam por desempenharem a função narrativa de tensão e alívio, dando ritmo confortável a obra. Agora iremos nos concentrar no segundo paralelo, que é a semelhança entre o duelo final e os duelos presentes nos faroestes. Abaixo temos figuras que estabelecem um diálogo direto entre este aspecto de Yojimbo e No Tempo das Diligências:

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Figura 16: Plano geral de Ringo (John Wayne) e ao fundo a gangue que assassinou seu irmão, estão prestes a duelar na rua principal da cidade

Acesso: https://www.youtube.com/watch?v=ThmHlwFPAXU (Acesso: 02/03/2020)

Figura 17: Plano Conjunto de Ringo (John Wayne) prestes a duelar com os assassinos de seu irmão.

Acesso: https://www.youtube.com/watch?v=ThmHlwFPAXU (Acesso: 02/03/2020)

Figura 18: plano conjunto dos bandidos indo ao encontro de Ringo.

Acesso: https://www.youtube.com/watch?v=ThmHlwFPAXU (Acesso: 02/03/2020)

A partir das figuras acima podemos encontrar relação direta entre os duelos finais dos dois filmes, a composição das figuras 13 e 16; 14 e 18; 15 e 17, são muito semelhantes, assim como Ford, Kurosawa abre a sequência com um plano geral para entendermos onde cada coisa se encontra no espaço representado e depois divide os dois grupos em planos que mostram cada um deles se deslocando em direção ao

60 embate final. Mas no momento do duelo, Ford não mostra a cena de violência e apenas nos deixa ouvir os tiros, para construir um suspense sobre o destino de Ringo e Kurosawa nos revela toda a ação. O duelo final de Yojimbo vai além de um combate entre samurais, pois o revolver de Unosuke transforma a sequência em um confronto misto entre um samurai, um pistoleiro do velho oeste americano e a gangue de bandidos, dividindo esta ação em duas partes, a primeira muito semelhante a um faroeste, onde a velocidade do saque e a precisão do projétil, são fundamentais para decidir o vencedor deste embate, a morte de Unosuke se deve ao fato de ele não ter sido tão rápido no gatilho o suficiente ao ponto de impedir que o ronin arremessasse uma faca no seu braço. A segunda parte do confronto é realizada por um embate entre as espadas dos bandidos e a do ronin. No primeiro momento do duelo, entre Unosuke e o ronin, a edição é acelerada para que seja criado um suspense sobre quem irá acertar quem primeiro. Depois de impossibilitar que Unosuke o acerte, o ronin saca sua espada e Kurosawa mantém o padrão de decupagem de cenas de luta japonesas, fazendo toda a sequência em um plano aberto.

Figura 19: A primeira parte da sequência de ação inicia com Unosuke ordenando que o ronin fique parado.

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Figura 20: O ronin tenta desviar da mira de Unosuke.

Figura 21: Os dois tentam achar um angulo bom para o ataque.

Figura 22: Unosuke mira no ronin e se prepara para atirar.

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Figura 23: O ronin se prepara para lançar sua faca em Unosuke.

Figura 24: Unosuke dispara contra o ronin e este arremessa sua faca em direção ao adversário.

Figura 25: A faca acerta no braço do pistoleiro e o impossibilita de atirar.

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Figura 26: Vemos que o ronin não foi atingido e está pronto para seu ataque.

Figura 27: O atirador tenta desesperadamente arrancar a faca do seu braço.

Figura 28: Agora tem início a segunda parte da sequência, a qual o samurai errante inicia seu ataque contra Unosuke e a gangue do seu irmão, agora os planos rápidos cessam e tem início o plano sequência que irá guiar o resto da ação.

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Figura 29: O plano sequência continua até o ronin matar todos os criminosos de modo rápido e habilidoso.

Figura 30: Com o fim do plano sequência e do confronto, vemos que o último membro da gangue é o filho do fazendeiro que fugiu de casa no início do filme, o ronin decide poupá-lo.

Fonte das figuras 19 a 30: https://www.youtube.com/watch?v=zCjsazHO0c0&t=62s (acesso: 02/03/2020) Esta cena final é o grande clímax do filme, a todo o momento a obra vai se encaminhando para a guerra iminente que deverá vir dos dois extremos da cidade, neste momento todos os elementos vindos do western ganham o máximo de força possível e Kurosawa quase nos transporta para um filme norte-americano de faroeste, e a obra revela-se mais do que uma comédia grotesca, ela se torna uma grande mescla entre o Jidaigeki e o faroeste. A terceira ponte de diálogo entre este filme de Kurosawa e o western é o protagonista da trama, primeiramente podemos traçar uma semelhança simétrica entre o ronin interpretado por Mifune e a figura do cowboy solitário presentes em muitos westerns, principalmente da fase pós-guerra, o samurai errante e solitário, tem um passado misterioso, um homem de poucas palavras e é extremamente habilidoso em combates, todas as características que podemos achar em Shane (Alan Ladd) em Os Brutos Também Amam, a jornada de ambos os personagens é parecida, os personagens surgem solitários em meio a um vasto campo, chegam a uma pequena comunidade, se envolvem com seus problemas locais, enfrentam sozinhos os vilões 65 que atormentam a pequena população e quando eliminam todo o mau, partem novamente para sua trilha solitária. Assim como Shane faz oposição aos xerifes que vigiam as comunidades ao mesmo tempo conseguem conviver com elas, como nos filmes Frontier Marchal (A Lei da Fronteira, 1939, Allan Dwan) e Rio Bravo (Onde Começa o Inferno, 1857, Howard Hawks), o ronin de Mifune faz contraponto direto aos samurais honrados e servis dos Jidaigeki romantizados de sua época, em Yojimbo o protagonista não é melhor ou pior do que os algozes que combate, em diversos momentos do filme se comporta como um homem sádico e cruel, usa a vilania dos gangsters da cidade como pretexto para mata-los sem sentir culpa e ganhar dinheiro com isso, Mifune não interpreta um personagem que representa virtudes abstratas, este forasteiro desconhecido tem todas as contradições de um ser humano comum, ao mesmo tempo que se preocupa com Nui, faz piadas após decepar o braço de um dos capangas de Ushitora (RICHIE, 1971, p. 222). Desta forma Kurosawa resgata a linha dos Jidaigeki das décadas de 1920 e 1930, onde acompanhamos figuras marginais como ronins, ou ladrões que vagueiam por um mundo afogado na corrupção e no vício, para o cineasta os verdadeiros guerreiros que honram o código samurai, são ronins, que não tem esperança alguma nesta instituição, ou em qualquer outra, são heróis céticos que lutam contra o mau sem esperar nada em troca, como em Shichinin no Samurai (Os Sete Samurais, 1954), nesta obra sete ronins se reúnem para ajudar uma pequena vila sem pagamento nenhum em troca. Mifune (tal qual Alan Ladd ou Gary Cooper) é o forasteiro que chega e depois vai embora - como em Shane, um filme extraordinariamente popular no Japão. Os habitantes da cidade (como os de Matar ou Morrer) não são dignos de serem salvos e, portanto, as ações do herói se tornam absurdas, gratuitas - salvo pelo fato de que Mifune, diferente de Cooper, está bastante disposto a levar algum dinheiro. (RICHIE, 1984, p. 148). A moral tem um peso muito maior sobre Shane e o delegado Will Kane (Gary Cooper em Matar ou Morrer), do que para o ronin errante que protagoniza a obra de Kurosawa, embora a jornada entre estes personagens seja parecida, podemos dizer que o personagem de Kurosawa chega a ser um verdadeiro niilista em alguns momentos do filme, se não fosse por um ambiente tão esquisito onde quase todos os habitantes da cidade são maus e grotescos, certamente nós teríamos problemas de empatia com o personagem. Uma mostra disso são os habitantes da cidade. Eles são uma galeria de gente grotesca, um congresso de monstros. Os mercadores de saquê e de seda são maus, maus, maus [...] mas também são burlescos. A mulher de Kawazu 66

(Isuzu Yamada) é uma megera, uma víbora. O filho deles (Hiroshi Tachikawa) é totalmente covarde. O segundo irmão de Sazanka (Daisuke Kato) é um animalzinho feroz com dentes de javali. Ambos os lados são compostos de gente marcada a ferro, tatuada, anões e gigantes. O mal - finalmente - se tornou grotesto. (RICHIE, 1984, p. 149). O foco narrativo se concentra totalmente no personagem de Mifune, o filme começa com a câmera seguindo o personagem de costas, como se estivéssemos esbarrado nele no meio do caminho e decidimos por segui-lo, durante toda a trama nós acompanhamos todos os acontecimentos do seu ponto de vista, e ao final saímos da cidade junto com ele. Mas não é apenas em Mifune que podemos encontrar uma relação direta com os pistoleiros do western, Unosuke também desempenha este papel, por ser uma mistura entre um pistoleiro e um samurai, esta será nossa quarta ponte com o faroeste. Unosuke surge no início do segundo ato do filme e marca um ponto de virada na história, com o revólver que trouxe do ocidente é o único guerreiro que faz frente ao ronin recém-chegado. Unosuke é a sátira do progresso ocidental, a todo momento mostra seu revólver como sinal de sua superioridade bélica, ignora completamente suas habilidades samurai, pois agora detém uma ferramenta superior as armas de corte japonesas, foi para o ocidente como um espadachim e retornou como um pistoleiro. Unosuke aparece como um representante do progresso inevitável que chegará ao Japão, sua vitória sobre Mifune seria o fim da era samurai, a superação histórica de toda uma cultura que mudará de rumo por conta dos avanços tecnológicos. Assim kurosawa dialoga diretamente com as propostas teleológicas de conquista da fronteira dos westerns, mas para o diretor não há caminho a ser traçado, esta novidade tecnológica não fará o mundo melhor ou pior, a colonização cultural não alterará a essência dos humanos, e a maldade praticada pelo clã de bandidos Ushitora será feita com ou sem revólver. No final Unosuke é vencido, sua crença na tecnologia é vencida pela sagacidade do ronin. A temática social do filme gira em torno da corrupção dos jovens pelo crime organizado, a primeira coisa que vemos ao chegar na cidade é um jovem abdicando de sua vida de fazendeiro para virar um mercenário, e a última coisa que presenciamos antes de sair da cidade é o mesmo jovem desistindo desta vida, por

67 entender que o crime não compensa ao se confrontar contra o forasteiro, a frase dita por Mifune: “É... uma vida longa comendo papa de arroz é o melhor. ” Sintetiza a mensagem que Kurosawa. Esta, então, é a “mensagem” do filme, uma mensagem excepcionalmente convencional na medida em que seu contexto dentro do filme é total anarquia social. Com tudo, Kurosawa já disse muitas vezes que considera sua única audiência no Japão como vinda dos jovens: isto é, são esses jovens as pessoas que ele tenta atingir, tenta aconselhar. Didática certamente não é um dos fortes do diretor, mas aqui a mensagem é dita em alto e bom som. A cidade horrorosa de Yojimbo é o Japão contemporâneo e a escolha do filho do fazendeiro é aquela com a qual se defrontam os jovens de hoje. (RICHIE, 1984, p. 152). A corrupção dos jovens também está presente na figura de Yoishiro, filho de Seibei e Orin. A todo momento é colocado em uma situação desconfortável, onde seus pais o obrigam a cometer crimes para que um dia substitua seu pai nos negócios criminosos da família. Em contrapartida temos o jovem Unosuke, irmão mais novo de Ushitora, este já está entregue a maldade, até trouce do exterior um revólver, para fortalecer a facção criminosa de seu irmão a partir da vantagem bélica. Logo, para Kurosawa, o futuro da sociedade japonesa poderia estar comprometido, caso as instituições sociais como a família, o estado e a segurança pública continuassem sendo dissolvidas por indivíduos corruptos que colocam seus interesses acima do bem comum. Mesmo que o ronin estivesse interessado em ganhar dinheiro matando mercenários da cidade, ele também se comprometeu em ajudar a população local a se livrar dos gângsteres que estavam destruindo a cidade, o altruísmo é o único remédio para esta situação de decadência moral. Dessa forma Yojimbo usa de elementos surgidos e desenvolvidos no western para dar nova cara ao estilo de Jidaigeki dos anos 1920 e 1930, construindo uma reflexão histórica e social ao mesmo tempo que entretém o público retrabalhando fórmulas já cristalizadas no cinema. Agora analisaremos o modo como Yojimbo influenciou o surgimento do Spaghetti Western, e como esta nova tradição teve impactos sobre os faroestes norte- americanos. Por sua vez, Yojimbo contribuiu para uma influente variação de Sergio Leone na criação do subgênero “spaghetti western”. A violenta celebridade de filmes de Leone como A Fistful of Dollars (1964) e For a Few Dollars More (1965) influenciou outras permutações ao gênero em produções de Hollywood como The Wild Bunch (1969), de Sam Peckinpah. (GOODWIN, 1994, p. 6)17

17 Tradução livre: In its turn, Yojimbo contributed to an influential variation os Sergio Leone in the creation os the “spaghetti western” subgenre. The celebraty violence of Leone films like A Fistful of 68

2.1. SURGIMENTO, ANÁLISE E REPERCUSSÕES DE POR UM PUNHADO DE DÓLARES

Antes de traçarmos os paralelos entre Yojimbo e Por Um Punhado de Dólares e analisarmos o impacto do filme japonês sobre o revisionismo de Leone sobre a tradição do faroeste iremos contextualizar o surgimento da obra italiana. Entre as décadas de 1950 e 1970 Roma havia se tornado uma região muito movimentada para o setor cinematográfico, muitos produtores estrangeiros, incluindo os norte-americanos se interessavam pela região, o que gerou grande demanda de profissionais do cinema para trabalharem nestas coproduções, um ótimo ambiente para cineastas iniciantes (GUAZZELLI, 2014, p. 17). O constante intercâmbio com os americanos teve grande impacto entre os italianos, que passaram a adotar não somente diversos recursos técnicos, estilísticos e narrativos dos filmes de gênero de Hollywood, mas também a forte racionalização da produção típica dos estúdios norte-americanos. (GUAZZELLI, 2014, p. 18) Os estúdios italianos aproveitavam os itens de produção deixados pelos americanos para utilizar nos seus filmes, o que baixava muito o custo de produção, barateando e agilizando as produções italianas. Um exemplo disso são os filmes de aventuras mitológicas que ganharam força no final dos anos 1950. Sergio Leone foi um dos cineastas iniciantes que se beneficiaram com este frutífero sistema de coproduções: Leone tinha uma longa experiência no Cinecittà e outros estúdios romanos, onde trabalhou como assistente em mais de 50 filmes italianos e americanos, entre os quais os blockbusters Ben-Hur (dir. William Wyler, 1959), Sodoma e Gomorra (Sodom and Gomorrah, dir. Robert Aldrich, 1962) e uma série de filmes de Mario Bonnard, amigo de seu pai com grande experiência em direção desde o período do cinema mudo, que o apadrinhou e introduziu na indústria. (GUAZZELLI, 2014, p. 18) Até 1963 havia dirigido dois filmes, em 1959 junto com Mario Bonnard Gil Ultimi Giorni di Pompei (Os Últimos Dias de Pompéia) e em 1962 Il colosso di Rodi (O Colosso de Rodes), quando foi ao cinema ver Yojimbo por indicação de um amigo, e decidiu fazer um faroeste com a mesma narrativa. Com modesto orçamento a coprodução italiana, espanhola e alemã foi filmada no deserto da Espanha, como uma tentativa de se aproximar dos cenários desérticos do norte do Texas. A despeito das adversidades e da precariedade nas condições de filmagem, o filme dirigido por Leone estreou nos cinemas italianos em 12 de setembro de 1964, com resultados de bilheteria espantosamente animadores. As salas de cinema lotavam sessão após sessão, os ganhos das produtoras

Dollars (1964) and For a Few Dollars More (1965) influenced further permutations to the genre in Hollywood productions such as Sam Peckinpah´s The Wild Bunch (1969). 69

envolvidas na realização do filme subiam exponencialmente e Clint Eastwood foi alçado ao status de estrela maior na Itália. Por Um Punhado de Dólares se tornou o maior fenômeno de bilheteria nas salas de exibição italianas em 1964, com vendas de ingressos estimadas em um total de 5,2 milhões de dólares apenas na Itália (ou três bilhões de liras, o que corresponde a 39,2 milhões de dólares em valores corrigidos,), contra um investimento de 200.000 dólares para a produção do filme (produzindo para os estúdios investidores um lucro na ordem de 2700%). Tais valores fizeram com que um faroeste de baixo orçamento, lançado sem gastos com divulgação, superasse os dois maiores resultados de bilheteria do ano, Mary Poppins (dir. Robert Stevenson, 1964) e Minha Bela Dama (My Fair Lady, dir. George Cukor, 1964). Quando o filme estreou nos Estados Unidos em 1967, manteve o desempenho excepcional, com vendas que superaram os 3,5 milhões de dólares, apesar da classificação indicativa X. (GUAZZELLI, 2014, p. 21 e 22)

Por Um Punhado de Dólares marcava o início de uma nova era para os faroestes italianos, até então eram cópias superficiais dos westerns americanos, não traziam nada de novo para o público, ao ponto dos cineastas italianos se creditarem com nomes americanos para forjar a origem do filme (GUAZZELLI, 2014, p. 18). Estas produções também compactuavam com o otimismo presente nas obras norte- americanas. O fim do fascismo, o advento do consumo de massas e o forte discurso progressista e libertário, aliado à imagem positiva do americanismo na Itália - popularizada graças ao Programa de Recuperação Europeia (Plano Marshall) – funcionaram como avalistas de um discurso apologético sobre a América, que se materializava em sua forma mais pura na produção de westerns pelas editoras italianas e, posteriormente, também pelo Cinecittà. Nos últimos anos da década de 1950 e início da década de 1960 os faroestes italianos nos revelam representações que majoritariamente prestam tributo ao americanismo, refletindo o momento de otimismo, crescimento econômico e aumento de poder de consumo decorrentes da adoção do modelo liberal sistematicamente propagandeado na Itália do pós-guerra, momento conhecido como ‘milagre econômico italiano’. (GUAZZELLI, 2014, p. 32) Leone rompe completamente com este otimismo baseado nas teleologias de progresso dos westerns clássicos e cria uma atmosfera violenta e amoral, que se desenvolve com sua “Trilogia dos dólares”, que além da obra já citada também consta com Per Qualche Dollaro In Pù (Por Um Punhado de Dólares a Mais, 1965) e Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo (Três Homens em Conflito, 1966), e inicia uma nova tendência revisionista da tradição do faroeste americano que posteriormente acabaria influenciando as produções hollywoodianas. Um dos motivos que explica tamanho sucesso entre os italianos foi a falta de crença no projeto desenvolvimentista que os EUA tinham tentado implementar na Itália. A racionalidade sistêmica, a gestão burocrática, a crescente impessoalidade das relações humanas e utilização de meios técnicos cada vez mais modernos na repressão estatal – elementos diretamente ligados ao projeto 70

civilizador da Ilustração – passam, nos anos 1960, a ser criticados ferozmente, citados como elementos desumanizadores, castradores da volição e inibidores das faculdades humanas. A crença otimista na modernidade e no progresso ainda sofre novos abalos com a Guerra do Vietnã, as ditaduras na América Latina, e os movimentos sociais que varrem a Europa (HOBSBAWM, 1995; GENNARI, 2009). Na Itália, o advento da sociedade de consumo e a rápida industrialização trouxeram benefícios apenas para a população do norte do país e alguns redutos esparsos no Sul, como Nápoles, Catani e Palermo. Para o restante da população, a realidade do milagre econômico era o êxodo rural para periferias urbanas degradantes e violentas, sem saneamento básico ou energia. A democracia italiana, pouco mais de uma década após sua implantação, distanciou-se da sociedade civil, tornando-se crescentemente corrompida pela influência da máfia na cúpula do poder, pautando-se pelo jogo partidário e corroendo os recursos públicos em uma gestão corrupta (PRUDENZI, 2006). O ingresso dos socialistas na formação do governo em 1963 deu à população esperanças de uma guinada laica e de uma reaproximação dos gestores estatais com seu eleitorado, o que de fato não ocorreu. Na Itália, o parlamento construiu-se sob uma lógica obtusa em que a sobrevivência dos grupos e partidos políticos tornou-se mais importante do que a própria governabilidade do país, resultando em sucessivas crises econômicas e levantes sociais (DI PALMA, 1977). (GUAZZELLI, 2014, p. 33)

Neste cenário Por Um Punhado de Dólares surge como a antítese de toda a esperança das promessas não realizadas do projeto liberal e democrático dos EUA, ganhando o público por cessar com as fábulas ingênuas que prometiam um final feliz inalcançável. Mas esta nova tendência cinematográfica não foi bem recebida pelos críticos norte-americanos, o tremo spaghetti western era usado de modo pejorativo: Quase sempre ostracizados ou destroçados pela crítica, especialmente no mundo anglófono, os faroestes italianos passaram a ser chamados pejorativamente de spaghetti westerns por críticos dos Estados Unidos como forma de depreciá-los, deslegitimando a contaminação do gênero nacional americano pelos italianos, denominação que se manteve mesmo após a revisão crítica pela qual os faroestes italianos passaram a partir da década de 1980. A denominação spaghetti western, conforme aponta Eleftheriotis (2001, p. 92), explicita a natureza híbrida por excelência dos faroestes italianos. O termo não conota somente a inferioridade e a natureza estrangeira do objeto que designa, mas também a contaminação de um gênero legítimo pela sua contraparte degenerada. (GUAZZELLI, 2014, p. 37) É fundamental entender que a desconstrução do otimismo norte-americano feita por Sergio Leone está atrelada a características narrativas que surgiram no Jidaigeki dos anos 1920 e 1930 e estavam presentes em Yojimbo como já vimos, e esta influência oriental, por meio de Leone e Eastwood causará grande impacto na construção dos protagonistas de filmes de ação vindouros (CARREIRO, 2012). A análise que realizaremos terá duas partes, a primeira será compreender como a adaptação de Yojimbo contribuiu para a criação de um novo estilo narrativo de faroeste, para isso iremos focar nos seguintes tópicos: 1- desconstrução do

71 protagonista como uma figura heroica; 2- a construção de um mundo entregue a maldade, com pouquíssima ou nenhuma possibilidade de redenção. A segunda parte é relacionar estas características narrativas com as novas tendências estéticas que surgiram com Por Um Punhado de Dólares: 1- presença maior de primeiros planos e planos detalhe; 2- utilização de zoom in; 3- decupagem com maior número de planos; 4- montagem mais ágil; 5- representação realista da violência; 6- trilha sonora composta por ruídos ambiente e guitarra elétrica. O filme começa com um forasteiro solitário e maltrapilho (Clint Eastwood) chegando a uma pequena cidade que fica no meio de um deserto, ele vai até um poço para beber água e presencia uma cena de violência, uma criança (Nino del Arco) corre em direção a uma casa para ver sua mãe (Marianne Koch), mas é expulso por pistoleiros que o chutam e atariam em sua direção, então o pai da criança (Daniel Martín) aparece para proteger o menino e é espancado pelos bandidos, Marisol a mãe da criança, assiste a tudo horrorizada, o forasteiro observa com indiferença, quando ele e Marisol cruzam os olhares ele sorri para ela, como uma tentativa de seduzir a moça que fecha a janela com força. Ao entrar na cidade vê um cadáver em cima de uma mula, com a placa “adios amigo”, todos os moradores estão escondidos dentro de suas casas, até que Juan de Dios (Antonio Moreno) aparece dando avisos sobre a periculosidade da cidade e a possibilidade de se fazer dinheiro por lá através da violência, o pistoleiro recém chegado o ignora e continua seu caminho, até que quatro mercenários o insultam e atiram para assustar seu cavalo, o pistoleiro se refugia no bar de Silvanito (José Calvo), que explica para ele o conflito que divide a cidade entre duas famílias de contrabandistas, de um lado os Baxter que contrabandeiam armas e do outro os Rojos que contrabandeiam bebida. Tendo consciência desta situação o forasteiro que Silvanito chama de “Joe” decide ganhar dinheiro trabalhando como mercenário para ambos os lados. Com o plano de impressionar os dois lados, Joe desafia os 4 mercenários que assustaram seu cavalo para um duelo e mata a todos, Baxter aparece para cobrar a morte de seus homens e anuncia ser o xerife da cidade, Joe ignora e vai oferecer seus serviços aos Rojo. Don Miguel Rojo (Antonio Prieto) aceita sua colaboração e pede para que ele durma na sua casa junto com os outros mercenários, mas Joe ouve uma conversa entre Dom Miguel e seu irmão Esteban Rojo (Sieghardt Rupp), na conversa Esteban diz que pretende matar o forasteiro recém-chegado para recuperar o dinheiro

72 dado a ele por seu irmão, então Joe decide voltar para o bar de Silvanito. No dia seguinte uma caravana militar mexicana que esta transportando ouro passa pela cidade, e Joe imagina que os soldados estão sujeitos a uma emboscada por parte de alguma das duas facções da cidade, decide seguir a expedição militar e presencia um massacre feito por Ramón Rojo (Gian Maria Volonté), que rouba o ouro e foge com seus capangas. O forasteiro retorna à cidade e é apresentado formalmente a Ramón durante um almoço na casa de Don Miguel, Ramón se diz invencível com seu rifle winchester e neste momento se instaura um clima de rivalidade entre os dois. Os Rojo anunciam que querem fazer as pazes com os Baxter e pretendem chamá-los para um jantar naquela mesma noite, desconfiado desta iniciativa de paz Joe arma um plano com Silvanito para ganhar dinheiro e fazer com que as facções continuem em uma guerra declarada. Nosso protagonista rouba dois corpos de soldados abatidos por Ramón e coloca-os em um cemitério distante da cidade, ao fazer isso vende a informação de que dois soldados haviam sobrevivido do ataque a diligência militar, para os dois lados, os Baxter estão interessados em encontrar os soldados como testemunha contra os Rojo, e estes querem silencia-los. As duas gangues vão pegar os “sobreviventes” do massacre ao mesmo tempo e isso gera um grande tiroteio entre os dois lados. Enquanto isso Joe entra na casa dos Rojo em busca de ouro escondido e acaba nocauteando Marisol por tê-la confundida com um segurança noturno, então aproveita da situação para entregá-la aos Baxter, que em troca pagarão um bom dinheiro. No retorno do confronto descobrimos que além de Ramón ter conseguido “matar” os dois soldados “sobreviventes” os Rojo também sequestraram Antônio Baxter (Bruno Carotenuto) o filho do xerife. Então as duas partes decidem fazer uma troca de prisioneiros no dia seguinte. Na manhã seguinte durante a troca de prisioneiros Joe e Silvanito presenciam o filho e o marido de Marisol indo a seu encontro, quando esta estava no meio da cidade caminhando na direção da casa dos Rojo, então Ramón mando um de seus homens matar o marido, mas o dono do bar de Joe protege o homem, o forasteiro ordena que Júlio pegue seu filho e vá embora, Marisol é escoltada até os Rojo. Silvanito explica que Ramón é completamente apaixonado por Marisol, e para tê-la ele acusou injustamente Júlio de ter roubado dele nas cartas, e por isso tomou sua esposa. Naquela noite Joe vai até o cativeiro de Marisol, mata todos os seguranças e liberta a moça que foge com sua família, mas antes perguntam a Joe o

73 motivo pelo qual estão os ajudando, e ele afirma que um dia conheceu alguém que precisou mas que ninguém estava lá para ajudá-lo. O forasteiro é descoberto e capturado pelos Rojo, que o torturam para que ele diga onde Marisol está, mas Joe não diz. O forasteiro consegue fugir do cárcere e se refugiar e pôr fogo na residência dos Rojo, que enfurecidos atacam a casa dos Baxter na busca por Joe, os mexicanos é incendiam a casa para que todos saiam de lá, conforme os inquilinos escapam das chamas são fuzilados pela gangue de Dom Miguel. Toda facção dos Baxter é morta, incluindo Consuelo (Margarita Lozano), a esposa do xerife. Joe assiste a tudo de dentro de um caixão enquanto o fabricante de caixões (Joe Edger) o transporta para fora da cidade. Enquanto Joe se recupera em uma mina desativada ele treina sua pontaria em uma enorme placa de aço, e percebe que suas balas não conseguem penetrá-la, então ele serra um pedaço desta placa e utiliza dela como um escudo por debaixo do seu poncho. Quando recebe a notícia que sequestraram seu amigo Silvanito, ele vai ao encontro dos Rojo, usa de dinamites para criar fumaça e poder se aproximar sem que eles o vejam. Ao se aproximar Ramón acerta um tiro no seu peito, mas Joe se levanta, então Ramón descarrega todos seus tiros em Joe, mas este resiste, até que tira a placa de aço debaixo do poncho. Ramon está sem balas, o conflito se estabelece entre Joe, Don Miguel e seus capangas, então o forasteiro saca seu revólver e mata a todos, menos Ramón, este último Joe desafia para um duelo justo, seu revólver contra a winchester do mexicano. Joe vence o duelo e mata Ramón. Quando achamos que tudo está acabado Silvanito dispara contra uma janela e Estebam Rojo cai de lá morto com uma espingarda na mão, ele ia matar Joe pelas costas. O Barman diz que os governos do México e dos EUA virão para a cidade em busca do ouro, mas o forasteiro se nega a permanecer no confronto e sai da cidade com seus dólares adquiridos no confronto, o filme acaba. O primeiro paralelo que trabalharemos entre Yojimbo e sua adaptação é a figura do protagonista, Leone e Clint Eastwood constroem um personagem que se assemelha as figuras marginais que protagonizavam o Jidaigeki dos anos 1920 e 1930, Joe é um guerreiro solitário e habilidoso que não tem filiação com nenhum tipo de instituição ou projeto, seus únicos objetivos são sua sobrevivência e o lucro fácil

74 como um fim em si mesmo. O personagem de Eastwood não tem nenhum tipo de relação histórica com o Oeste estadunidense, não é baseado em nenhum personagem histórico que tenha vivido ou atuado na região, a concepção deste personagem parece vir do estereótipo do cowboy errante e violento que foi se consolidando no imaginário popular com o decorrer dos anos de atividade deste gênero nas salas de cinema. A caracterização de Joe é um dos elementos que faz antagonismo direto com o modelo de cowboy que temos nas figuras 6 e 8, ao ver este personagem estranho se aproximando da cidade não somos capazes de saber qual é sua nacionalidade, pois o poncho mexicano vai de contraponto ao que estabelecido como figurino do cowboy, subvertendo a convenção do gênero de usar da customização estereotipada para atribuir ao personagem uma série de características dramáticas. Joe (Clint Eastwood), protagonista de Por um Punhado de Dólares, tem uma caracterização distinta do herói típico dos westerns norte-americanos. Embora compartilhe com eles a perícia no uso de armas de fogo e o distanciamento emocional em relação à comunidade, todo o resto é diferente. Joe é irônico e amoral. A cena de abertura destaca essa diferença. Ele é mostrado cavalgando em direção a um vilarejo humilde. Não sabemos quem ele é, mas sabemos que é diferente do herói americano: a montaria e o figurino demarcam distância considerável do western tradicional. Joe cavalga uma mula–amontaria revisa ironicamente um código do western. A roupa é maltrapilha: calças velhas, poncho e chapéu sujos, tudo coberto de poeira. (CARREIRO, 2012, p. 5 e 6)

Figura 31: Joe (Clint Eastwood) ameaçando o xerife John Baxter após matar seus homens.

Fonte:https://streamondemandathome.com/a-fistful-of-dollars-streaming-vod-blu-ray-dvd/ (acesso: 05/03/2020)

A cena de abertura também apresenta a visão de mundo de Joe, ao mostrar sua indiferença diante uma covardia. Ao parar para beber água, Joe vê uma criança ser expulsa de dentro de uma casa a chutes e tiros, por dois homens que espancam o pai do garoto. Ele observa tudo com expressão impassível, dá de ombros e vai embora. Não é problema dele. A atitude de Joe demarca uma distância considerável entre ele e os protagonistas dos westerns americanos, onde a moralidade que se 75

concretizava no código de honra compartilhado por bandidos e heróis praticamente exigiria que o herói reagisse àquela ação. (CARREIRO, 2012, p. 6) Assim com o ronin que protagoniza Yojimbo, Joe é amoral e irônico, se diverte com todo caos que cria na cidade, enxerga o mundo de forma niilista, e tem dificuldade para criar laços afetivos, pois ele é um produto do mundo violento onde vive, durante uma conversa com Ramón Rojo afirma não conhecer a paz. Tem semelhanças com os protagonistas do superwestern, como a solidão e o fato de ser implacável contra seus adversários, mas não sente nenhuma culpa moral, não se importa com o julgamento das comunidades por onde passa. Mesmo assim Joe não é tão mal como os outros matadores da cidade, o forasteiro tem sua redenção ao libertar Marisol e devolvê-la a sua família, e quando questionado sobre o motivo de sua ajuda ele responde: “Eu conheci alguém como você, mas não tinha ninguém para ajudar.”, Sugerindo uma possível relação entre seu passado e a situação atual do filho de Marisol, esta situação teria feito Joe se tornar um mercenário que perpetua o ciclo da violência do mundo, ao restaurar a união da família nuclear, Joe está impedindo que surja um novo pistoleiro, dando fim ao ciclo violento. Outro acontecimento dramático que vai na contramão da típica jornada do herói dos faroestes é a sequência em que Joe é brutalmente torturado pelos Rojo, o rosto do protagonista não é um elemento intocável como no star system, a feiura e a deformação podem ser consequências neste universo.

Figura 32: Joe (Clint Eastwood) fugindo do seu cativeiro após ser torturado.

Fonte:https://www.youtube.com/watch?v=pZJLt9- fTvw&fbclid=IwAR2O5DBazy_XqgdO23__QnV2JfZ_nmDOPqbUkD5c4R9sQ0vA8eMU-dIrt_U (Acesso: 09 /03/2020)

No duelo final contra Ramón, Joe dá a seu adversário a oportunidade de duelarem como iguais, ele poderia matar Ramón, uma vez que este estava 76 desarmado, mas Joe quer provar para si mesmo que consegue abater seu inimigo sem nenhum tipo de trapaça ou privilégio, a adrenalina da aventura é o que mantém o forasteiro vivo, este duelo não é por honra, os seguranças que protegiam Marisol no cativeiro foram assassinados em uma emboscada, Joe quer provar sua superioridade. Inspirado na irreverência sarcástica e despojada construída por Mifune, o protagonista de Por um Punhado de Dólares irá virar grande referência para novas gerações de cineastas da década de 1960. O sucesso do primeiro western de Leone, por um Punhado de Dólares, estabeleceu a nova caracterização do herói (ou anti-herói) como uma das marcas narrativas mais reconhecíveis do ciclo popular de faroestes italianos. Muitos outros diretores do período replicaram essa caracterização violenta, amoral e individualista, aos protagonistas dos filmes que realizaram. (CARREIRO, 2012, p. 12) Agora podemos migrar para o segundo tópico, que é a construção de mundo feita em Yojimbo e adaptada por Leone. Aqui, mais uma vez, o estilo de Jidaigeki retomado por Kurosawa se encontra presente, podemos observar semelhanças entre Por um Punhado de Dólares e Humanidade e Balões de Papel como a construção de um retrato pessimista da sociedade e dos indivíduos que a compõe, se dividindo entre os detentores do poder e as vítimas incapazes de mudar a situação, até Joe encontra seu limite de ação quando descobre que o conflito pode se estender para um confronto bélico entre México e EUA. Em ambos os filmes o foco narrativo são personagens marginais, permitindo a construção de um ponto de vista conflitante com o sistema responsável pela degeneração da sociedade. Esta representação pessimista do Oeste americano como um lugar hostil e infrutífero faz contraponto direto ao otimismo presente em grande parte dos westerns norte-americanos, em Leone os desbravadores da fronteira não são os pioneiros de uma civilização superior que pretendem vencer a natureza e a barbárie para construírem uma sociedade onde sua cultura possa florescer. Na obra italiana não há projeto ou teleologia a ser cumprida, existem apenas indivíduos que tentam sobreviver nesse ambiente sem leis, assim como em Yojimbo, todas as instituições são ineficazes, o xerife é contrabandista, o exército pode ser derrotado por facções criminosas, as famílias ou estão separadas ou se comportam como máfias. Sergio Leone não faz uma representação estereotipada e preconceituosa dos personagens mexicanos, como podemos encontrar em muitos filmes de faroestes norte-americanos como Fort Apache (Sangue de Herói, 1948, de John Ford) e Onde Começa o Inferno. Por um Punhado de Dólares não privilegia os estadunidenses na 77 sua representação, nesta obra, todos tem o mesmo peso e narrativas patrióticas não significam nada, Joe e John Baxter não tem nenhum tipo de solidariedade entre si por serem americanos, sua relação se dá unicamente pelo viés financeiro. Geralmente os westerns produzidos nos EUA tem uma relação orgânica com a história ou geografia do país, são elementos explorados tanto pela narrativa como pela forma do filme, mas na obra italiana estas preocupações estão ausentes, o local e o período são irrelevantes, pois a narrativa do forasteiro desconhecido que se envolve nos conflitos de uma cidade dividida entre duas facções não necessita desta relação orgânica que podemos observar em Rio Vermelho ou The Searchers (Rastros de Ódio, 1956, John Ford), histórias dificilmente adaptáveis a outros contextos. A mesma narrativa trabalhada por Leone e Kurosawa podemos encontrar no contexto da exploração do cacau no nordeste brasileiro no início do século XX em Os Deuses e Os Mortos e no contexto da lei seca norte-americana no filme Last Man Standing (O Último matador, 1996, Walter Hill). Diferente de Yojimbo que tem uma mensagem muito clara para ser passada a partir da construção do seu mundo como uma metáfora para um Japão corrompido que pode comprometer a formação moral da geração vindoura, a obra de Leone não tem uma mensagem clara a ser passada, seu maior valor está na subversão das convenções do gênero. Agora iremos continuar a análise dos elementos baseados em Yojimbo traçando sua relação com as inovações estéticas introduzidas por Leone ao gênero. As quatro primeiras características que iremos nos debruçar é a maior presença de primeiros planos, a utilização do Zoom in, a maior complexidade da decupagem e a velocidade da edição neste filme, já vimos que Bazin chega a dizer que os westerns abdicam de planos próximos, pois estariam mais preocupados em engrandecer as jornadas heroicas dos pioneiros que conquistaram o Oeste. Mas Leone e o diretor de fotografia Massimo Dallamano usam o recurso de aproximação com maior frequência, deixando os grandes planos gerais com menos importância. O recurso aparece como um modo de nos deixar mais próximos da subjetividade dos personagens, suas emoções ganham mais destaque que seus papéis históricos. Neste sentido o zoom in e a edição veloz ajudam a intensificar as emoções, o zoom in pelo seu movimento de constante aproximação que ressalta de modo gradual

78 as expressões dos personagens e a montagem por dar ritmo entre os acontecimentos gerais e as impressões de cada personagem.

Figura 33: Ramón atira em Joe, e ele cai baleado.

Figura 34: Ramón e seu capanga sorriem por terem “matado” Joe.

Figura 35: Don Miguel também sorri.

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Figura 36: O capanga percebe que algo deu errado e Joe não morreu.

Figura 37: Don Miguel também percebe algo estranho.

Figura 38: Joe se levanta.

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Figura 39: Início do zoom in que ressalta o susto de Ramón por descobrir que seu adversário não está morto.

Figura 40: Fim do zoom in, além da expressão de susto também somos capazes de ver melhor a ação que aquele ambiente quente e insalubre tem sobre Ramón.

Fonte das figuras 33 à 40:https://www.youtube.com/watch?v=pZJLt9- fTvw&fbclid=IwAR3kFmupPCOD5kcaTNiX5otTpc9dwU_Ylopt5HaS7LFc1h3pdHp4HLfMEAU (Acesso: 09 /03/2020)

Na curta sequência acima podemos perceber o peso que Leone dá aos planos próximos do rosto, a todo momento a subjetividade dos personagens é ressaltada, como se suas impressões ditassem o ritmo dos acontecimentos. O grau de detalhes abrangidos pelo diretor nas sequências de ação é muito maior do que nós temos nos westerns norte-americanos, Sergio Leone permite que o espectador sinta as emoções dos dois lados do conflito, colocando os personagens em igualdade de destaque, como se não fizesse diferença sobre quem ganhará o conflito uma vez que compreendemos e sentimos as motivações de ambas as partes. Não há maniqueísmos na direção de Leone. Podemos perceber que o zoom in funciona como uma técnica que visa radicalizar o efeito dos primeiros planos, o zoom é usado só em Ramón, pois sua reação é a mais importante, considerando que ele é o atirador. A partir da comparação com a cena a seguir de Rastros de Ódio nós poderemos perceber melhor as inovações trazidas pelo diretor italiano.

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Figura 41: Ethan (John Wayne) manda Martin (Jeffrey Hunter) se afastar para que ele possa matar Debbie (Natalie Wood) sua sobrinha.

Figura 42: Martin entre na frente de Debbie.

Figura 43: Martin saca seu revólver.

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Figura 44: Ethan se aproxima para atirar.

Figura 45: Um índio da tribo de Debbie atira uma flecha contra Ethan.

Figura 46: Ethan leva uma flechada e não consegue atirar em Martin e Debbie.

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Figura 47: Martin atira contra o índio.

Figura 48: o índio é baleado por Martin e cai do cavalo.

Fonte das figuras 41 a 47: https://www.youtube.com/watch?v=KAByPJJecxQ (Acesso: 09/03/2020)

Nos westerns de Ford as posições históricas e sociais dos personagens são muito mais importantes que suas subjetividades, o diretor visa construir uma cena que tem como objetivo o entendimento da ação dos personagens, suas emoções estão em segundo plano, o índio surge como um elemento narrativo genérico e sem identidade, sua ação de proteger a mulher da sua tribo vale muito mais que sua relação pessoal com Debbie. John Ford opta por uma decupagem simples com planos abertos, facilitando a compreensão dos acontecimentos por parte do público. Leone foge deste modelo simples e efetivo de apresentar os acontecimentos para o público, o italiano usa de cortes rápidos, movimentos de zoom in e planos próximos dos rostos e objetos para enriquecer a descrição e intensificar a ação, não é difícil imaginar que a mesma sequência dirigida por Ford teria uma complexidade maior se abordada por Leone. Nas suas outras obras Sergio Leone passa a dar mais importância aos duelos, fazendo uma construção de camadas ainda maior através da trilha sonora e de flashbacks como nas obras Por um Punhado de Dólares a Mais e Once Upon a Time in the West (Era uma Vez no Oeste, 1969).

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Os planos detalhes do revólver durante as cenas de troca de tiro fariam com que a arma ganhasse protagonismo durante a ação, se tornando o foco narrativo que guiaria a sequência, a montagem ajudaria a compor este ambiente com uma montagem paralela entre a arma e seu alvo, como o exemplo abaixo nos mostra:

Figura 49: a câmera sai de um plano médio de Joe e rapidamente foca no seu revólver que começa a disparar.

Figura 50: A espingarda de Ramón é atingida e cai no chão.

Figura 51: Voltamos a ver o revólver sendo disparado.

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Figura 52: Um plano misto que se divide entre um plano detalhe do revólver e um plano conjunto das vítimas, todos estão mortos, menos Ramón que será desafiado para um duelo singular

Fonte das figuras 49 à 52:https://www.youtube.com/watch?v=pZJLt9- fTvw&fbclid=IwAR3kFmupPCOD5kcaTNiX5otTpc9dwU_Ylopt5HaS7LFc1h3pdHp4HLfMEAU (Acesso: 10 /03/2020)

Se compararmos a sequência acima com a cena conduzida por Ford em Rastros de Ódio, podemos perceber que Leone explora a iconicidade do revólver para compor a estética e a narrativa da cena, todo confronto é mostrado do ponto de vista da arma, desta forma o revólver passa a ser um dos elementos de protagonismo do filme. Já em John Ford, o revólver não é um elemento inerente ao modo de representação fílmico da sequência, se substituíssemos por outra arma utilizada por cowboys naquele período a cena não teria alteração alguma. Portanto estas características estéticas da fotografia e da montagem aparecem me Por um Punhado de Dólares como elementos de intensificação de momentos dramáticos que sempre estiveram presentes no gênero cinematográfico do faroeste, Leone passa a valorizar mais os dramas humanos do que as jornadas teleológicas do povo norte-americano. Agora iremos migrar para a características mais marcantes da direção de arte do filme, a representação realista da violência. Primeiro devemos ressaltar que Sergio Leone, diferente dos cineastas de Hollywood, não tinha nenhum tipo de limitação legal sobre o quesito da representação da violência, o que possibilitou que o cineasta a trabalhasse de modo até então inédito para o gênero. Nos anos 1960, representar a violência de maneira realista era proibido em Hollywood pelo Código Hays. O sucesso de bilheteria de Por um Punhado de Dólares nos Estados Unidos, aliado à irreverência típica da contracultura da época, incentivou jovens diretores americanos a desafiar o sistema de autocensura. No ano seguinte ao lançamento do filme de Leone nos EUA, o Código Hays foi extinto. A emergência da nova geração e a queda da autocensura abriu caminho para a introdução dos anti-heróis amorais e individualistas no cinema de gênero americano. (CARREIRO, 2012, p. 13)

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A representação realista da violência não combinava com a figura do herói clássico do western, a imagem de um corpo fuzilado e ensanguentado poderia trazer problemas de identificação entre o público e o protagonista, pois a imagem estabeleceria uma contradição entre o discurso otimista do protagonista e a consequência dos seus atos em prol de um mundo melhor. Em contrapartida a representação da violência realista não gerava desconforto com a figura do anti-herói, uma vez que consequências violentas eram esperadas dos seus atos inglórios. A forma de representar da violência que surge com Por um Punhado de Dólares ganharia eco e intensificação com o desenvolvimento do spaghetti western e com os cineastas da nova Hollywood, Django (1966, Corbucci) iria além do que foi feito por Leone ao ressaltar os aspectos mórbidos e grotescos da violência e The Wild Bunch (Meu Ódio Será Tua Herança, 1969, Penckinpah) se destacaria no cinema hollywoodiano pelo seu retrato pessimista da américa e por cenas de ação que mesclam características estéticas iniciadas por Leone com o recurso adicional da câmera lenta que permitia melhor desfrute das sequências. A atmosfera de Por um Punhado de Dólares é violenta, o destaque das armas de fogo nas cenas de ação e os personagens agonizando antes de morrerem contribuem para esta construção, nas figuras 32 e 53 podemos ver como a direção de arte se aproxima de ferimentos reais.

Figura 53: Um dos mercenários dos irmãos Rojo é atravessado por um facão e agoniza até a morte.

Fonte:https://www.youtube.com/watch?v=pZJLt9- fTvw&fbclid=IwAR3kFmupPCOD5kcaTNiX5otTpc9dwU_Ylopt5HaS7LFc1h3pdHp4HLfMEAU (Acesso: 10 /03/2020)

Baseado neste modo realista de representar a violência o filme de Sergio Leone traz novos elementos visuais que se tornam característicos do gênero, promovendo a violência do western em um elemento necessário para a constituição do gênero, e não 87 mais como um recurso de entretenimento secundário. As cenas de violência passam a ser os momentos mais importantes para a narrativa do filme, prova disso é que os faroestes influenciados por Por um Punhado de Dólares costumavam a acabar logo após o duelo final, pois não havia mais o que ser narrado. Observamos estas características em Django, Meu Ódio será Tua Herança, Por Um punhado de Dólares a Mais e Bring Me the Head of Alfredo Garcia (Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia, 1974, de Sam Peckinpah). Por fim nos concentremos na trilha musical de Ennio Morricone que foge completamente do que era feito nos westerns norte-americanos, Morricone abdica do uso de grandes orquestras que produziam músicas caricatas para alguns tipos de personagens ou momentos específicos do filme. A trilha composta pelo italiano mesclava sons ambiente de sinos, chicote, tiros, galopadas e assovios com instrumentos variados como guitarra elétrica, flauta e trompete, que geralmente executavam solos semelhantes um após o outro e ao fundo uma base musical baixa. As trilhas de Por um Punhado de Dólares são simples, enérgicas, repetitivas, divertidas e fáceis de serem memorizadas, por isso são marcantes. A pluralidade de instrumentos que se mesclam com os sons ambiente se casam perfeitamente com esse novo ambiente violente e veloz construído por Leone. Sendo assim as canções populares do oeste norte-americano que geralmente estavam presentes como uma forma de expressão da cultura local foram completamente ignoradas por nesta renovação do faroeste que dava mais importância a enredos violentos do que questões históricas e culturais dos EUA. Por Um Punhado de Dólares é a concretização do mal-estar diante do faroeste norte-americano, esta postura foi percebida e apoiada pelo público: O público em geral não demonstra essas preferências argumentando ou escrevendo críticas e tratados. Ele demonstra essas preferências consumindo. Se uma pessoa consome filmes feitos a partir determinada ‘fórmula’ continuamente, é porque ela extrai prazer daquilo, identifica-se com aquilo. O consumo é a crítica das massas. Se os spaghetti westerns se tornaram um filone tão longevo e exitoso globalmente, é bastante razoável arguir que há algo neles que impactou o público, que foi de encontro aos anseios e às angústias do público, que por sua vez (o público) transforma o cinema em uma forma de exorcizá-las. (GUAZZELLI, 2014, p. 40) O sucesso do filme fez com que a parceria entre Leone e Clint Eastwood se prolongasse em mais dois filmes com o mesmo protagonista, dando origem a ‘trilogia dos dólares’ que teve influência importante sobre o cinema italiano e hollywoodiano. As produções italianas começaram com produções semelhantes que foram taxadas

88 de modo pejorativo de spaghetti westerns, estas produções iriam se dividir em três vertentes: A partir da ‘trilogia dos dólares’, é possível discernir no interior da indústria italiana de filmes western outras três derivações fundamentais. Em primeiro lugar, os faroestes inaugurados com Sergio Corbucci e seu Django (1966), que se distanciam do realismo grotesco típico dos westerns lançados na Itália entre 1964 e 1965 e optam por uma paródia gótica e fantástica do gênero hollywoodiano, repleta de motivos fúnebres e com um protagonista virtualmente invencível. [...] A segunda derivação é a dos Zapata westerns, que têm como grande referência o roteirista de esquerda Franco Solinas, responsável pelo roteiro Uma Bala Para o General, (Quien Sabe? Damiani Damiani, 1966), entre outros faroestes feitos na Itália. Esses filmes se inserem no contexto maior do cinema político italiano que ganha força a partir de A Batalha de Argel (Gilo Pontecorvo,1966), também roteirizado por Solinas. Enquanto nomes como Gilo Pontecorvo e Marcelo Mastroianni dirigiam filmes que buscavam dialogar especialmente com a pequena burguesia urbana das grandes cidades, diversos cineastas e roteiristas ligados aos filmes de entretenimento passaram a utilizar o cenário western ambientado no México revolucionário como base para um cinema que, apesar de popular, não se furtava a abordar problemas políticos abertamente.[...] Em terceiro lugar, temos na Itália uma vertente de comédias ambientadas em um cenário western, produzidas a partir do enorme sucesso de Trinity é o Meu Nome (Lo chiamavano Trinità..., dir. Enzo Barboni, 1970), que aposta no humor slapstick (pastelão), distanciando-se das abordagens mais sérias prevalentes após 1966 e dando origem a uma derivação de spaghetti westerns que se sustentavam não mais na relação paródica com os westerns americanos, mas com outros spaghetti westerns, uma auto referencialidade que poucos anos depois esgotaria a indústria de filmes de faroeste na Itália, levando-a ao seu fim. (GUAZZELLI, 2014, p. 23, 25 e 26) Em Hollywood sua maior influência estaria sobre o modo de representação da violência e a diminuição do moralismo nos faroestes (PRINCE, 1998), junto com produções da nouvelle vague e do Neorrealismo italiano também influenciaria no aumento de anti-heróis como protagonistas. Em sua pesquisa, David Bordwell enxerga em diretores modernistas europeus (sobretudo Godard, Fellini e Antonioni) o papel de introdutores do novo herói, em filmes como Acossado (Jean-Luc Godard, 1960) ou A Noite (Michelangelo Antonioni, 1961). Mas os personagens egoístas e violentos de Leone ajudaram a constituir um alicerce narrativo sobre o qual muitos diretores trabalharam a caracterização de seus personagens–sobretudo os diretores ligados ao cinema de gênero. (CARREIRO, 2012, p. 4) Esta construção de protagonistas baseados no forasteiro de Leone persiste até hoje no cinema de gênero norte-americano. Outro exemplo é John McLane (Bruce Willis), personagem que apareceu pela primeira vez em Duro de Matar (John McTiernan, 1988). Sozinho, ele enfrenta uma quadrilha de terroristas internacionais. Não o faz por razões altruístas. Tem um objetivo menos nobre e individualista: salvar a ex-mulher de um sequestro. Até mesmo 007, o refinado agente secreto inglês James Bond, com sua licença para matar, ganhou traços afetivos mais humanos e motivações individualistas nos filmes mais recentes da série, como Cassino Royal (Martin Campbell, 2006). E todos eles agem de modo

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ultraviolento. A contribuição dos filmes de Sergio Leone nessa trajetória do herói nas telas de cinema foi importante. (CARREIRO, 2012, p. 14) Concluímos este capítulo chamando atenção para o seguinte fato: as características narrativas dos filmes Jidaigeki dos anos 1920 e 1930 resgatadas por Kurosawa em Yojimbo e adaptadas por Leone em Por um Punhado de Dólares foram elementos fundamentais para a renovação do gênero na década de 1960, fazendo com que ele não perdesse seu potencial comunicativo. Agora iremos nos concentrar em como esta narrativa do forasteiro desconhecido junto a tradição do faroeste foi trabalhado pela produção brasileira Os Deuses e Os Mortos de Ruy Guerra.

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3. ANÁLISE DO FILME OS DEUSES E OS MORTOS

O filme de Ruy Guerra, Os Deuses e Os Mortos, de 1970 surge em uma fase tardia do movimento cinemanovista, representando o crepúsculo do cinema novo, tanto na sua instância ideológica com um retrato pessimista sobre as possibilidades de construção de um futuro democrático e livre para o Brasil (GUIMARÃES, 2019, p. 133), como no quesito estético ao incorporar elementos tropicalistas (DESBOIS, 2016, p.179). O faroeste também diverge do modo como foi trabalhado pelos cineastas brasileiros até então, que se dividiam entre os produtores de nordestern, filmes sobre o cangaço que se baseavam na narrativa e na estética do western norte-americano (RODRIGUES , 2013, p.48), o maior expoente desta tradição é O Cangaceiro (Barreto, 1953) e do outro lado nós temos a desconstrução promovida por Glauber Rocha com os filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), que buscava a desromantização do sertão e dos cangaceiros através de uma linguagem marcada por fortes influências do neorrealismo italiano, da montagem Eisensteiniana e do teatro Brechtiano. Veremos que em Os Deuses e Os Mortos o gênero norte-americano aparece de modo semelhante ao de Yojimbo, ou seja, sua influência reside sobre a construção do ambiente onde os acontecimentos da trama irão acontecer, além de colocar em xeque, assim como os filmes de faroeste spaghetti faziam na época, a teleologia civilizatória. O Cinema Novo surge em um momento em que o cinema mundial estava retomando a tendências modernistas do período pré-guerra onde os cineastas buscavam alternativas estéticas e narrativas distintas do formato comercial estabelecido pelo cinema americano que se tornava cada vez mais hegemônico. Em contraste, um candidato óbvio ao modernismo cinematográfico era o renascido movimento de cinema experimental na Europa, no Canadá e nos Estados Unidos. Alguns cineastas de vanguarda eram aparentados a tradições pré-guerra do cinema pur ou do dadaísmo e do surrealismo; tendências mais distintamente inseridas no pós-guerra incluíam o desenvolvimento de Brakhage do “cinema lírico”. No todo, a maioria dos vanguardistas do pós-guerra via-se em oposição a uma eficiência elegante e habilidosa tipificada pelo cinema hollywoodiano. Nos anos 1960, quando as vanguardistas começaram a formar cooperativas para distribuir seus filmes, fortaleceu-se a percepção de que a vanguarda era uma alternativa enérgica ao cinema comercial. (BORDWELL, 2013, p. 127 – 128) Essas novas vanguardas se caracterizavam por fazer frente ao cinema comercial a partir de um jogo dialético que continham elementos como “ilusão e a materialidade, absorção e a distância contemplativa, a representação e a crítica da

91 representação” (BORDWELL, 2013, p. 127), a partir desta estratégia as características que compunham o cinema de entretenimento eram inseridas e discutidas nos filmes de vanguarda, como veremos em Os Deuses e Os mortos sobre a narrativa do faroeste. Essas novas formas de se fazer cinema foram beneficiadas por alguns governos que defendiam tais produções como um bem cultural legítimo de seu país, combatendo o domínio comercial do cinema hollywoodiano (BORDWELL, 2013, p. 128). Está tendência que percorreu o mundo tem origem no neorrealismo italiano e no cinema de Bergman: A concepção de modernismo cinematográfico no mundo fundamentava-se em boa parte no corpo de trabalho que vai de fins do neorrealismo, e do Bergman inicial, passando pelos filmes de Antonioni, Bresson, Fellini e Buñuel, até os “Cinemas Jovens” dos anos 1960, mais notavelmente a Nouvelle Vague francesa. O ideal de objetividade de Bazin e a mise-en-scène sóbria e elegante exaltada pelos Cahiers foram confrontados por um cinema de fragmentação, ambiguidade, distanciamento e efeitos estéticos flagrantes. (BORDWELL, 2013, p. 128) O Cinema Novo faz parte destes Cinemas Jovens da década de 1960, a maioria dos cineastas que o compuseram eram iniciantes, chegando a desenvolver seu estilo próprio no decorrer do movimento, por conta desta inexperiência a primeira fase do movimento é marca por fortes influências das vanguardas europeias, que foram usadas como base como fuga do estilo hollywoodiano: Inspirados pelo despojamento do neorrealismo italiano, pelas inovações da Nouvelle Vague francesa e, mais proximamente, pelo cinema independente brasileiro dos anos 1950, os cinemanovistas não queriam – nem poderiam – fazer filmes nos padrões do tradicional cinema narrativo de “qualidade”, americano em sua maioria, que o público brasileiro estava acostumado a ver. O cinema que pretendiam fazer deveria ser “novo” no conteúdo e na forma, pois seus novos temas exigiriam também um novo modo de filmar. (CARVALHO, 2006, p. 290) Este novo modo de fazer cinema incorporava o subdesenvolvimento brasileiro na sua produção com o intuito de representar as contradições sociais brasileiras, e desta forma construíram um discurso que fazia frente ao cinema comercial padrão nas suas instâncias mais particulares, assim se consolidou a “estética da fome”. Faz parte, portanto, de um processo de legitimação do cinema novo, enquanto “barbarismo”, enquanto cinema não afinado às convenções do Outro – a indústria internacional. Nesta lógica, é uma proclamação de que o cinema novo quer se afirmar pela sua violência aos padrões dessa indústria, pela negação de um conceito vigente, pela liberação frente aos seus cânones. Enfim, pelas operações que implicam o repúdio veemente à imitação da arte “civilizada”. (XAVIER, 2007, p. 184) Está proposta estética está mais presente na primeira fase do cinema novo que duraria até o golpe militar de 1964, que daria início a perseguição dos cineastas e de 92 censura de suas obras, como filmes expoentes deste primeiro momento do movimento cinematográfico nós temos a trilogia do sertão: Deus e o Diabo na Terra do Sol, Vidas Secas (1963, Santos) e Os Fuzis (1964, Guerra). Além da coletânea de curtas- metragens que se intitula 5 vezes favela com as obras: Um Favelado (1962, Farias); Zé da Cachorra (1962, Borges); Couro de Gato (1962, Andrade); Escola de Samba, Alegria de Viver (1962, Diegues); Pedreira de São Diogo (1962, Hirszman). Para uma melhor compreensão desta vanguarda estética iremos analisar Os Fuzis, que conta a história de um pequeno grupo de soldados que protege um armazém de comida que está em uma cidade pobre onde sua população miserável passa fome, no decorrer do filme é instaurada uma tensão entre os soldados e Gaúcho, caminhoneiro ex-soldado (Átila Iório) que não se conforma com o cumprimento cego das ordens por parte do grupo militar que impede que a população carente consuma a comida do armazém que está prestes a estragar, enquanto isso a população local deposita suas esperanças no boi sagrado que fará chover no sertão. Ao final da trama Gaúcho se revolta e rouba a arma de um dos militares, iniciando um confronto armado pela liberação da comida, mas logo é fuzilado pelos soldados, enquanto isso o povo da cidade está cansado de esperar a força divina do boi agir e decidem por mata-lo e devora-lo em uma das sequencias mais escatológicas do cinema brasileiro. A estética da fome se manifesta na documentação da miséria feita pelo cineasta, buscando denunciar as contradições econômicas do Brasil, e evidenciar os conflitos sociais existentes entre as classes. O filme se constitui como uma mescla entre a representação ficcional e documental, pois ao mesmo tempo que acompanhamos uma trama fictícia conduzida por atores, também nos deparamos com a verdadeira miséria local, ao ponto de a ficção cessar para dar espaço para entrevistas reais com a população local.

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Figura 54: Moradora local entrevistada e não creditada no filme, esta imagem busca a representação realista da miséria, como uma falha social e política do país, que são materializadas no rosto sofrido e envelhecido desta mulher pobre do sertão.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Lmpn4nzdiYA&t=192s (acesso: 09/04/2020)

Esta dicotomia também é trabalhada entre os polos urbano e rural: Os Fuzis, colocava em seu centro a confrontação dos retirantes (místicos famintos, com seus deuses, sua mentalidade “arcaica”) e dos citadinos (policiais protetores dos armazéns e choferes de caminhão que transportavam as mercadorias para outros cantos). Toda a cena se desenvolvia em Milagres, e Ruy Guerra demarcava muito bem as áreas de conflito, deslocando o centro do drama para a esfera dos que vieram da cidade. Os soldados chegavam para proteger a propriedade e não estabeleciam contato com a massa faminta, ameaçadora, sob observação. Traziam um único interesse: cumprir o dever profissional. Quem precipitava o conflito final era um chofer de caminhão (ex-soldado) cujo protesto isolado gerava a troca de tiros e sua própria morte. A catarse da luta ecoava no universo dos retirantes que matavam um boi, considerado santo, para comer. O dado essencial, no entanto, era o fechamento do ciclo de intervenção dos soldados que tinham vindo para manter separadas a esfera do povo e a do proprietário das mercadorias. Missão cumprida, a invasão não se consumava; o povo e a religião permaneciam em seus lugares, os impasses adiados neste confronto entre o arcaico e o moderno. (XAVIER, 2003, p. 49) Embora o filme pareça pessimista, pelo fato dos soldados terem conseguido concluir sua missão de impedir que a população da cidade se alimentasse da comida do armazém, o final da trama com a morte do boi sagrado simboliza a superação das massas frente a religiosidade alienadora que impede a possibilidade da tomada da ação revolucionária, dando a entender que esse enredo de injustiça que compõe a trama do filme não irá mais se repetir. Além dos confrontos sociológicos expressados na obra, também devemos nos atentar a visão que Jean-Claude Bernardet defende em seu livro Brasil em Tempo de Cinema, para o teórico, a produção cinematográfica brasileira da primeira metade dos anos 1960 era uma tentativa da classe média expressar seu posicionamento político, uma vez que o cinema seria um fenômeno cultural consumido majoritariamente pela classe média:

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Por seu conteúdo, por suas personagens, por seu estilo, por ter escolhido o passado, por sua identificação com a cultura oficial, o cinema feito nos últimos anos no Brasil é um cinema tipicamente de classe, que visou equacionar a problemática da classe média e encontrar para ela uma saída e, ao fazer isso, já começou a criar-lhe uma tradição cultural no campo cinematográfico. Essa parece ser a mais válida tradição cultural e crítica que a classe média possa atualmente elaborar. Isso foi feito com a cobertura da ideologia oficial promovida pelos governos que se sucederam de 1956 a 1964. Essa foi a preocupação exclusiva de nosso cinema. Pensar que foi popular é uma ilusão. Hoje, esse cinema encontra-se diante de quatro problemas fundamentais: Levar adiante a temática da classe média; enfrentar no plano policial e cultural os novos rumos tomados pela sociedade brasileira; resolver o problema do público (sendo um cinema classe média, não sensibiliza o povo, e sendo um cinema crítico, a classe média o rejeita, o que faz com que esteja atualmente cortado do público); encontrar uma estabilidade econômica, sendo esse item um problema em si e sendo também relacionado com o item anterior. Este livro teve a pretensão de contribuir para desmascarar uma ilusão, não apenas cinematográfica: o cinema brasileiro não é um cinema popular; é o cinema de uma classe média que procura seu caminho político, social, cultural e cinematográfico. (BERNARDET, 2007, p. 184) Nesta proposta cinematográfica de encontro do local de discussão social da classe média, uma estrutura narrativa se repetia em alguns filmes da primeira fase do cinema novo: havia um confronto entre a massa injustiçada, mas incapaz de fazer frente a elite opressora, e neste contexto aparecia um sujeito que não servia as elites, mas também não era vítima da superstição religiosa alienadora das massas, estabelecendo para si a missão de fazer o povo enxergar sua potência revolucionária e mudar o rumo da sociedade, definindo assim, o papel da classe média como a guiadora do povo para a construção de um futuro melhor para o país. Além de Os Fuzis, esta estrutura se repete nos filmes: Barravento (1962, Rocha), Bahia de Todos os Santos (1960, Neto), Deus e o Diabo na Terra do Sol, A Grande Feira (1961, Pires) e Sol Sobre a Lama (1963, Viany). No filme de Ruy Guerra o personagem Gaúcho encarna a indignação social que a classe média deveria ter: Aposição de Gaúcho é puramente ética e verbal: não propõe nem levar a nenhum tipo de ação, nem para si, nem para os outros. Embora sua inquietação seja provocada pelos esfomeados, sua principal preocupação é relativa aos soldados: sem serem donos do armazém, sem que, portanto, se beneficiem das vantagens decorrentes, eles os defendem contra quem precisa comer; moralmente, é indefensável. Tal atitude angustiada, sem perspectiva de ação, leva Gaúcho a se fechar sobre si e a estourar numa ação incontrolada e desesperada. Gaúcho é semelhante ao intelectual que sem saber onde se encaixar na realidade, sem saber como agir, um belo dia, para se desrecalcar, lança uma bomba caseira numa repartição pública. (BERNARDET, 2007, p. 94) O apogeu desta representação seria encarnado na figura de Antônio das Mortes de Deus e o Diabo(...), o matador de cangaceiros libertaria a consciência das massas (Manuel e Rosa) ao demolir as esperanças da redenção social através de

95 uma narrativa religiosa (a morte de Sebastião e seus fiéis) e na desmistificação do banditismo cangaceiro (morte de Corisco), permitindo ao povo a possibilidade de construir um Brasil que supere a fome e o subdesenvolvimento. Mas este projeto cinematográfico sofreria transformações com a ascensão dos militares ao poder com o golpe de 1964: A produção do Cinema Novo ficou quase paralisada até o ano seguinte, quando aos poucos os cineastas começam a encontrar brechas para possíveis realizações, mais ou menos provocadoras. Os cinemanovistas são obrigados a redefinir seus projetos para adaptar o movimento estética e tematicamente às circunstâncias impostas pelo regime militar. Assim, entre 1965 e 1967, cada um dos componentes do grupo filma um longa-metragem, em circunstâncias diferentes, mas tentando manter certa coerência com o ideário do movimento, ainda que uma dura lição tenha sido aprendida - seus filmes não tinham força nem poder para transformar a realidade como chegaram a crer. Por isso, restava voltarem-se sobre o processo que engendrara o próprio Cinema Novo para entender o que acontecera e, sobretudo, abrir outros caminhos possíveis para sua expressão. (CARVALHO, 2006, p. 298) A segunda fase do Cinema Novo é marcada por filmes urbanos, com protagonistas da classe média que encarnam o alter ego dos cineastas, figuras melancólicas que buscam entender os motivos que não levaram a revolução a acontecer, os filmes mais marcantes deste período foram: O Desafio (1965, Saraceni), Terra em Transe (1967, Rocha), A Falecida (1965, Hirszman), A Grande Cidade (1966, Diegues) e O Bravo Guerreiro (1968, Dahl). Essas duas obras são, portanto, conduzidas por personagens próximos à realidade vivida pelos próprios cineastas - um jornalista-escritor tornado impotente pela ditadura para a produção literária e até para o amor, em O desafio; e um jornalista-poeta dividido por ligações afetivas e ideológicas opostas, um homem dilacerado entre a poesia e a política, em Terra em transe. Esses personagens representariam posições de artistas e intelectuais brasileiros diante do regime imposto pela força. O escritor rende-se aos fatos, ao passo que poeta seria um de seus amigos mortos pela repressão militar. (CARVALHO, 2006, p. 301) Longe das locações periféricas a “estética da fome” dava espaço para dramas existenciais e políticos, permitindo aos cineastas iniciantes se afastarem da proposta estética inicial do movimento e aperfeiçoarem suas propostas estéticas, dando mais maturidade para seus filmes ao mesmo tempo que firmavam sua autoria. A situação dos cinemanovistas ficaria mais difícil ainda em 1968, com o AI-5 e o fechamento do congresso o regime militar consolidaria sua força repressiva, afastando mais ainda propostas culturais que discutiam política e sociedade, levando os cineastas a repensarem suas próprias propostas cinematográficas (CARVALHO, 2006, p. 305). O tropicalismo surgiria como uma guinada cultural que afetaria o Cinema Novo: 96

Muitos artistas passaram do realismo à metáfora, optando pela fábula e pela alegoria, até mesmo o conto filosófico. Outros fatores intervieram nessa evolução. Por volta de 1967-8, teatro, música e cinema redescobrem no tropicalismo, vindo da canção, as teses do movimento modernista de Mário de Andrade, que preconizava uma cultura autenticamente nacional, e as do movimento antropofágico de Oswaldo de Andrade: Daí o qualificativo “canibal-tropicalista” às vezes atribuído a esta terceira e última fase do Cinema Novo. (DESBOIS, 2016, p. 198) O tropicalismo consistia em críticas políticas que partiam de uma construção estética que mesclava diversos elementos culturais presentes no cotidiano brasileiro: Se o Antropofagismo Modernista tentou tomar todas as influências culturais na vida brasileira da década de 1920 e degluti-las, buscando uma síntese que fosse esteticamente produtiva, o tropicalismo, por sua vez, com forte influência dos antropofágicos modernistas, desenvolveu uma leitura re- interpretativa da sociedade brasileira e de seus inúmeros símbolos, costumes e afetos. Ambos os movimentos buscaram compreender os vários pontos da vida cultural brasileira e utilizá-los enquanto materiais estéticos específicos, para a construção crítica de um estilo de arte “tropical”, que fosse produtiva tanto do ponto de vista artístico como político. No entanto, o Tropicalismo se torna um movimento extremamente mais crítico da sociedade e do momento político brasileiro de sua época do que a idealização ainda romântica dos modernistas. Também, tomo aqui como “identidade cultural nacional” a identificação com uma nação que é definida através de aspectos culturais, acreditando que a identificação pessoal com um determinado país se dá por meio das teias de significações na qual um sujeito está ligado culturalmente. (RODRIGUES, 2014, p. 98)

Obras do movimento tropicalista podem ser caracterizadas esteticamente como uma grande mescla de elementos culturais onde a coerência das pontes que ligavam estes elementos ficava em segundo plano: Assim sendo, o mecanismo tropicalista é o mecanismo de inventariar representações e ir tencionando-as, relacionando-as, estilhaçando-as. A partir do momento, em que se vê tantas representações tão diferentes umas das outras e tão abrangentes, nota-se que elas não se ligam coerentemente e que o acúmulo se destina à explosão. Parece que há uma assemblage proposital de referências culturais com o intuito de nos fazer pensar. (RODRIGUES, 2014, p. 100) O que é interessante de observarmos na nossa pesquisa é que a larga abrangência de conteúdo nas obras tropicalistas que possibilita uma vasta quantidade de interpretações por parte do público, como se ele moldasse sua interpretação a partir de sua capacidade de dialogar com este mosaico de referências estéticas, vai de contra ponto a proposta dos gêneros cinematográficos, que se caracterizam pelo alto índice de previsibilidade estética, narrativa, e as vezes discursiva, construindo uma relação de fidelidade com seu público a partir da repetição. Estabelecendo, portanto, uma situação de contrários, onde uma obra não pode ser tropicalista e de

97 gênero. O filme de Ruy Guerra, diferente das obras aqui analisadas de Kurosawa e Leone, não se constitui como um filme de gênero, pois é uma obra tropicalista, mas não podemos ignorar a existência de elementos do faroeste e da estrutura narrativa semelhante à dos dois filmes analisados anteriormente que estão presentes em Os Deuses e Os Mortos e o modo tropicalista como se mesclam com o teatro trágico, o cinemanovismo e o teatro épico para compor uma alegoria do subdesenvolvimento Brasileiro. Neste cenário caótico e criativo para o cinema brasileiro surge o que Laurent Desbois classificou como a Trilogia da Alegoria, composta por: Os Herdeiros (1970, Diegues), O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro e Os Deuses e Os Mortos. Embora não tenham sido pensados para compor uma trilogia, as três obras apresentam alegorias que buscam interpretar a situação Brasileira da época a partir de um recuo histórico, que retrata a decadência de grandes famílias. O tema da decadência na representação da experiência de grandes famílias ligadas à propriedade da terra e à monocultura ganhou relevo no cinema brasileiro do final dos anos 60, início dos 70. Os Herdeiros (Carlos Diegues, 1969) focaliza a crise dos barões do café; A Casa Assassinada (Saraceni, 1971) traz a crônica da decadência patriarcal no interior de Minas, e O Dragão da Maldade (Glauber Rocha, 1969) inclui a questão do declínio do mundo doméstico dos coronéis do sertão na representação dos conflitos já presentes em Deus e o Diabo. Em Os Deuses e os Mortos (1970), de Ruy Guerra, o discurso sobre um mundo em desintegração assume papel central na composição dramática. Esta focaliza os conflitos entre a tradição dos proprietários de terra e a intervenção dos comerciantes na zona do cacau, sul da Bahia, no período da Primeira República. (XAVIER, 2003, p. 45) Antes de entrarmos na análise propriamente dita iremos revisar o enredo do filme de Ruy Guerra. O filme começa em 1970 com um grupo de trabalhadores, mortos e divindades (São Jorge, Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição) ouvindo ao discurso de um caminhoneiro que compara as situações sociais do Nordeste e do Sudeste brasileiro, defendendo a migração nordestina pelos caminhões, na cena seguinte os retirantes, os mortos, os caminhoneiros e as divindades estão no posto Shell prestes a viajarem, em um cena de transição para o recuo histórico do filme vemos um grupo de divindades e mortos aglomerados em torno de algo que não podemos enxergar. Agora estamos entre os anos 1910 – 1920, Primeira República, na mesma região de milagres, dois jagunços estão lendo as anotações de um padre esquerdista que acabaram de assassinar, quando percebem que um forasteiro desconhecido (Othon Bastos) se aproxima, um deles decide mata-lo por diversão e dispara contra o

98 andarilho, a cena muda e nós vemos Sereno (Ítala Nandi) fugindo de sua casa pegando fogo, com uma arma na mão, uma criança chorando no braço e arrastando seu marido morto, com dificuldade ela consegue colocar tudo em um pequeno barco e fugir, voltamos a ver o andarilho, ele está baleado com sete tiros, e enquanto vomita sangue declara sua ambição de ter todas as coisas, então desmaia (ou morre). Sereno está na casa do coronel Santana da Terra (Jorge Chaia) pedindo para que ele ataque os D`Água Limpa pelo que estes fizeram com sua família, mas o banqueiro avisa ao coronel que não irá financiar uma guerra, e que não vale a pena entrar em um conflito bélico desta proporção por conta de uma mulher pobre, o coronel então decide em não entrar em guerra, Sereno ainda suplica para que a terra de seu marido passe a ser sua, mas Santana nega momentaneamente este direito a mulher. No prostibulo da cidade o forasteiro está em uma banheira sendo lavado por prostitutas, mas ainda está inconsciente, a cafetina entra na sala e declara ter andado por todo o mundo, e neste percurso ter visto de todo o tipo de violência, mas por traz de toda a violência estava a ganância. No armazém dos D`Água Limpa o político Venâncio diz que não conseguiu empréstimo do banco para a sua campanha, Urbano D`Água Limpa diz que eles devem achar algum meio para eleger Venâncio, pois sua eleição pode enfraquecer o domínio que Santana da Terra tem na região, além de existir uma guerra iminente para acontecer, Valu D`Água Limpa (Nelson Xavier) questiona se é valido esta guerra, mas o pai se mantem intransigente, ao fundo Aurélio D`Água Limpa com uma espingarda na mão diz “tá na bíblia”, validando a postura belicosa do pai com um suposto fundamento religioso. Urbano ainda diz que são muitos os inimigos que eles enfrentarão para tomar as terras de cacau. Vemos um homem de terno, gravata e chapéu sentado em uma cadeira, comendo uma melancia e acariciando uma prostituta ajoelhada aos seus pés, em um ambiente com muitas plantas e sons de pássaro, uma representação estereotipada do homem de negócios em um país tropical. O banqueiro explica a situação do mercado de cacau no cenário mundial, e dos interesses estrangeiros no mercado brasileiro, introduzindo a ideia de que a produção de cacau vai muito além de uma disputa regionalista. Na cena seguinte vemos o representante do mercado estrangeiro (Fredy Kleemann) e seu guarda costas chegando à cidade de milagres, que está completamente vazia. Aurélio D`Água Limpa está fazendo sua vigília armado pelo território de sua família quando encontra peças de roupas jogadas na mata, ele começa a seguir a

99 trilha e chega até Sereno, que termina de se despir para ele, seduzido pela mulher, Aurélio começa a beijá-la, mas ela a mata durante o ato sexual. No prostibulo o forasteiro já se encontra recuperado e andando, com curativos nos seus ferimentos, Sereno entra na casa de prostituição com arma da sua vítima e diz que acabou de matar Aurélio D`Água Limpa, na sequência Urbano, Valu e um capataz chegam no bordel a procura do assassino, então o forasteiro começa a narrar uma história genérica que narrava a sina das mulheres da região, perdiam toda a família pela guerra do cacau, mas tinham resistir a essa tragédia e continuar sobrevivendo (como prostitutas). A narrativas dá a entender que embora as mulheres sejam fortes por sobreviverem nesta terra violenta, elas não seriam assassinas, pondo fim a busca da suposta assassina no prostibulo. Na cena seguinte vemos as cerimonias do enterro do marido de Sereno pela Família de Santana e de Aurélio pelos D`Água Limpa. Agora vemos uma mulher mística (Dina Sfat) andando pelo meio do matagal e interagindo com os deuses e os mortos, a mulher está grávida, e perturbada pelas entidades que a certam, quando de repente está tem uma visão de Santana, Urbano e Valu mortos. A cena muda para Sereno contando o dinheiro após se prostituir para o guarda costas do representante comercial estrangeiro, apenas metade de sua cara está maquiada, uma metáfora para sua estratégia de se fingir de prostituta para esconder suas verdadeiras intenções vingativas. O forasteiro caminha pela cidade carregando um porco vivo, os moradores olham para ele com certa estranheza, agora mudamos de cenário e Venâncio está fazendo um discurso político para um pequeno grupo de pessoas (prostitutas e seus empregados), de modo retórico o político faz um discurso populista visando sua eleição, enquanto isso o representante estrangeiro ouve notícias do jornal inglês no rádio. Voltamos para o forasteiro, que faz um ritual de sacrifício e mata o porco, agora ele se chama Sete Vezes, pois foi sete vezes baleado, com esta oferenda mística Sete Vezes declara que começará a pôr seu plano ganancioso em prática. Sete Vezes convida Valu para uma conversa, o filho de Urbano declara todo o ódio que tem por toda a guerra do cacau, o forasteiro o perturba até convencê-lo de matar Santana da Terra e acabar com o conflito. A vidente grávida caminha entre os mortos na selva e declama que irá parir sangue, prevê grande matança em breve. Valu e Sete Vezes invadem a casa de Santana da Terra, quando Valu surpreende seu alvo para matá-lo Sete Vezes o ataca com uma navalha e o mata, salvando a vida do

100 coronel. Urbano D`Água Limpa lamenta a morte do seu filho, interpretando o acontecimento como o fortalecimento de Santana que é aliado dos ingleses que exploram o cacau brasileiro, Urbano pretende travar uma guerra pelo protecionismo econômico do país. Santana da Terra está na casa refletindo sobre a situação trágica que vive, onde a único momento de glória possível é na violência do conflito, declara que está pronto para defender seu império do conflito inerente contra os D`Água Limpa, ao seu redor estão deuses, mortos, Sete Vezes, sua esposa Soledade (Norma Bengell) e sua filha Jura (Vera Bocaiúva) que convulsiona ouvindo o discurso do pai. No dia seguinte Urbano está esperando os homens de Santana no centro da cidade com seus jagunços, todos estão armados e calados. Durante o tiroteio nós acompanhamos a uma conversa entre o representante dos interesses comerciais estrangeiros e Venâncio, ambos discutem sobre os rumos do conflito, o representante pede para que Venâncio abandone a proposta nacionalista dos D`Água Limpa e ceda aos interesses da economia mundial, o futuro do conflito depende desta conversa, colocando todo confronto armado em segundo plano. Voltamos ao conflito bélico no seu final, todos os jagunços estão mortos ou agonizantes no chão, apenas Urbano está vivo, obcecado pela ideia de vencer Santana neste conflito. Santana é atraído para o meio da mata por Sete Vezes, sabendo que vai morrer o coronel diz que sua morte é irrelevante, pois seu império do cacau ainda viverá, e que seu substituto é o que vale a partir de sua morte. Sereno mata-o. No armazém de cacau Soledade e Sete Vezes discutem, a viúva diz que irá se vingar pelo marido morto, mas o forasteiro a persuade se colocando como um pretendente que não irá tira-la de sua posição de poder dentro deste império, preservando sua liberdade de mata-lo se ela assim quiser, e alertando sobre as intenções de Urbano de destitui-la do império do cacau. Os dois se beijam e selam uma aliança. Urbano chega até a casa de Santana da Terra para matá-lo, mas é morto por Sete Vezes que atira pelas suas costas. Na casa do coronel Sete Vezes comemora sua vitória, até que percebe a presença do representante dos interesses comerciais estrangeiro, este lhe informa que suas terras foram compradas pelos comerciantes estrangeiros, Sete Vezes ameaça de matar o representante para defender seu império, mas o comerciante diz que o império do cacau faz parte de um império muito maior e mais poderoso, invalidando qualquer tipo de ação de Sete Vezes.

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Vestido como Santana, o forasteiro caminha pela mata acompanhado de Deuses, mortos, Soledade e Jura e começa a cantar a música A Cachoeira de Milton Nascimento. Sete Vezes de repente tem um colapso e morre, é levado pelas divindades e pelos mortos para o fundo da mata, lá ele é amarrado e se encontra encolhido, as entidades ficam ao seu redor imóveis, agora sabemos que no início do filme ele estava no centro da aglomeração dos seres sobrenaturais, como se fosse um refém, o filme acaba. A análise que faremos sobre o modo como o gênero western e a narrativa do forasteiro sem nome de Kurosawa e Leone foi trabalhado por Guerra neste cenário de crepúsculo do cinema novo irá se dividir em duas etapas, os elementos narrativos e os elementos estéticos: Elementos narrativos: 1-pequena cidade dividida entre duas famílias em guerra; 2-desconstrução do heroísmo por parte do forasteiro; 3- desconstrução da fragilidade feminina; 4-violência como elemento compositor do ambiente; 5- retrato pessimista da teleologia civilizatória. Elementos estéticos: 1- decupagem de planos sequência longos e muitos movimentos de câmera; 2- montagem minimalista; 3- quebra da quarta parede. O primeiro paralelo narrativo que iremos analisar é o conflito bélico e político entre as duas famílias que dividem a cidade de milagres. Assim como nos filmes Yojimbo e Por um Punhado de Dólares, o filme de Ruy Guerra parte de uma situação aparentemente inconciliável entre dois pólos de poder, mas diferente dos dois filmes estrangeiros onde a justificativa do confronto se encontrava unicamente na ganancia dos algozes, em Os Deuses e Os Mortos percebemos mais duas motivações importantes para os personagens, o embate de uma dicotomia política entre um projeto econômico protecionista defendido por Urbano D`Água Limpa e a aliança econômica internacional por parte de Santana da Terra. A outra motivação seria o confronto iminente entre as duas partes por conta de uma compreensão trágica da existência onde o destino conduziria as duas famílias a se auto destruírem. Logo na primeira cena em que Urbano D`Água Limpa e seus filhos Aurélio e Valeriano (Valu) aparecem discutindo com o político Venâncio nós entendemos que além do desejo de possuir as terras do cacau há um interesse político e um sentimento de ódio entre as famílias que justifica o confronto, ao ser informado por Venâncio sobre a falta de empréstimos financeiros por conta da baixa do cacau na bolsa de Londres, Urbano diz “O monstro está escancarando a goela, Venâncio nós vamos ganhar isso

102 de qualquer jeito, nem que eu venda a roupa a preço de banana você vai ter dinheiro para a campanha, se você vencer a eleição no município e a guerra tomar posse na Bahia, o Santana da Terra cai. Ele está botando toda essa região a chumbo e fogo, se apoderando da mata, do cacau, dos outros e da lei. ” A resposta de Urbano evidencia os dois pilares principais do confronto, eleger Venâncio para que este faça leis protecionistas que sufoquem a aliança do coronel Santana e seus aliados ingleses e a guerra que destruirá seu adversário e colocará fim ao confronto familiar. A linguagem bíblica também está presente nas falas do coronel Urbano, como na metáfora do monstro, ou quando diz que “ao fogo respondemos com fogo e ao ferro com ferro”, sugerindo que sua missão de combater Santana e os estrangeiros parte de princípios morais transcendentes, reconhecido por seu filho Aurélio que defende seu pai contra o discurso cético do irmão Valu ao dizer “tá na bíblia”. Sem perceberem, as duas famílias são sabotadas pelo forasteiro recém- chegado e por Sereno (algo semelhante aos filmes de Kurosawa e Leone), o que as leva a uma guerra iminente após a morte dos dois filhos de Urbano. O último D`Água Limpa lamenta em sua casa sobre a morte de seus descendentes, em um monólogo anuncia que antes de morrer irá matar seu grande adversário, obcecado pelo confronto final ele convoca um exército de jagunços e continua sua fala: “Os D`Água Limpa rasgarão o futuro, matando quem mata de faca, de promessa ou de banco. Venâncio, só poderemos respirar quando o preço do cacau for feito aqui, e não nos ingleses, eles subiram os preços, e nós plantamos todo esse horizonte verde... agora, querem nos afogar no nosso próprio cacau, no nosso próprio dinheiro. Ganhe as eleições Venâncio! E traz novas leis distintas do Santana da Terra e dos seus aliados. Ou nós os matamos, ou eles vão ser a causa da nossa morte... e da morte do Brasil. Quando o galo cantar não é mais um novo dia que vai anunciar, mas uma nova guerra. ” Agora Urbano está com uma postura menos metafísica do que no início do filme, sua luta é além de uma vingança, uma forma de salvar o Brasil das garras dos exploradores estrangeiros, mas quando ouvimos Santana da Terra, as questões econômicas se tornam secundárias. O coronel Santana da Terra está em um jantar em família, onde também estão presentes deuses e mortos, e o patriarca inicia um monólogo que incorpora a tragicidade cósmica que condena o homem a se submeter as leis divinas, “O destino do homem é tentar escrever a grandeza dentro do círculo traçado pelos deuses”, e

103 sobre a necessidade de defesa do seu império como algo que vale por si, sem qualquer tipo de lógica política ou econômica que justifique sua existência, o que vai na contra mão do pensamento de seu adversário. Na sequência seguinte nós verificamos o modo como Santana da Terra e Urbano D`Água Limpa são impotentes diante dos interesses econômicos internacionais, Xavier escreve: O grande teatro está montado, mas o plano-sequência só vai representar o clima de guerra, não suas ações. Os jagunços, de arma na mão, formam a disposição simétrica por todo o perímetro da praça retangular, sentados à espera do grande confronto. No centro da praça, de pé, Urbano D’Água Limpa, o comandante. A câmara “passa em revista” os jagunços imóveis, fazendo desfilar os rostos deste exército de pobres à espera da morte. Em meio à expectativa e o silêncio, nosso olhar salta para dentro de um armazém de cacau, onde o comerciante, sempre de terno branco e impecável, explica os mecanismos mais amplos do poder e da conjuntura nacional para o candidato dos D’Água Limpa. Ouvem-se os tiros da batalha. O comerciante comenta os desmandos locais, o colapso da economia e a intervenção federal inevitável. Pede que o candidato abandone as eleições: “...não é um conselho nem uma ameaça. Melhor do que ninguém o senhor sabe que a lei sem a força é uma abstração e que o dever de um líder é vencer. O lugar dos Urbano e dos Santana da Terra está sendo aberto nesta praça. Mas a vitória passa por esta sala. O senhor pode e deve escolher. Longe de mim, Dr. Venâncio, o heroísmo aproxima o homem da morte. ” Dada a explicação e feita a proposta, voltamos à praça para deparar com os exércitos de jagunços dizimados e com Urbano a manifestar sua consciência trágica do caráter inelutável da mútua destruição, do colapso de uma época. Na opção por este paralelismo praça/armazém/praça, temos a interpolação que nos sonega a imagem da luta de sangue para sobrepor a lição do capital. Os acontecimentos da praça correspondem a uma ordem segunda circunscrita por uma lei maior. Os lances da guerra não poderiam se representar com o dinamismo de uma ação épica, pois o objetivo do filme é marcar sua “excentricidade” face ao movimento decisivo da riqueza. Se o velho Santana, num certo momento, diz que “os homens traçam os destinos de grandeza dentro do círculo estabelecido pelos deuses”, a fala do comerciante poderia responder: o deus é o ouro e o destino quem circunscreve é o mercado. (2003, p. 64 – 65) Diferente dos filmes de Kurosawa e Leone, que a disputa se restringia apenas a pequena cidade, Ruy Guerra constrói um ambiente de maior complexidade que não se restringe a uma compreensão maniqueísta, os dois polos de poder da cidade são uma pequena parte de uma engrenagem ainda maior. Ao final da guerra os dois coronéis são mortos, mas antes de morrer Santana exalta o fato de os indivíduos não valerem nada se comparado ao império, sua morte e a de Urbano são irrelevantes, pois o império continuará de pé, e fará de outros homens seus líderes e empregados: “O homem que sou já não importa, o homem que vêm é o que vale, e será sempre um Santana da Terra, mesmo que mude de nome, que mate, que saqueie, que roube ou que chore, porque o império é mais forte que o homem, e fará dele o seu homem.”

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O embate entre os dois coronéis é uma alegoria para a dicotomia política brasileira, de um lado representado por Santana da Terra temos um discurso conservador que aceita a submissão aos interesses econômicos estrangeiros para continuar no poder, do outro lado temos a esquerda revolucionária representada por Urbano D`Água Limpa, sua proposta é superar o subdesenvolvimento brasileiro ao romper com a exploração estrangeira, mas para isso é necessário um confronto armado e político, a guerra ocorre, mas fracassa, e Venâncio que conduziria a trajetória política se rende ao mercador de cacau, traindo sua causa com Urbano. Esta representação coloca a esquerda em uma situação de desamparo bélica e política, e a direita como o único caminho aceito pelo capitalismo global, por legitimar a exploração estrangeira em um país subdesenvolvido como o Brasil. As duas obras estrangeiras terminam com a derrota do mal e a promessa de um novo começo para a cidade, enquanto na obra brasileira desde o princípio sabemos que o motivo da decadência da cidade ainda estaria longe de acabar, pois o filme abre com uma sequência no presente, o recuo histórico é para nos explicar sobre a impossibilidade de derrotar o sistema complexo e poderoso capitalista. Os coronéis do filme não são a ameaça principal, são apenas piões que acreditam serem reis em um tabuleiro tão grande que nem o filme sabe nos apontar quem são as peças principais. Podemos afirmar com segurança que Sete Vezes não tem o mesmo grau de protagonismo que os dois heróis dos filmes estrangeiros, que dominam o foco narrativo da obra do início ao fim, as obras começam com a chega do forasteiro e terminam com sua saída, enquanto que Sete Vezes surge pela primeira vez aos 8:13 minutos de filme e passa a ganhar importância dramática apenas aos 44:00 minutos quando faz o ritual de sacrifício. O personagem de Othon Bastos é mais um dos elementos que compõe o trágico contexto de exploração do cacau no sul da Bahia, sem destaque especial. Logo que Sete Vezes surge em tela é baleado pelos jagunços que assassinaram o padre, ironicamente sua entrada é diametralmente oposta aos heróis dos filmes italiano e japonês, Sete Vezes é ferido sem poder reagir, mas antes de ficar inconsciente declara seu desejo de possuir tudo: “quero rei, quero rainha, quero palácio, quero engenho, quero a cana, quero bagaço, quero pai, quero mãe, quero filho, quero o tampo da cumbuca do balaio. ” O forasteiro não esconde sua ambição,

105 chegou na cidade para dominá-la, sendo assim não podemos esperar o final corriqueiro dos faroestes em que o pistoleiro solitário caminha sozinho em direção ao horizonte como em Os Brutos Também Amam. Após se recuperar no bordel da cidade, o forasteiro decide fazer o ritual sacrificial para renascer mais forte: Voltamos a Sete Vezes, ou melhor, à imagem de uma poça barrenta onde ele mergulha as suas mãos, vistas em primeiro plano, e as retira amarelas para se dirigir ao porco do mato, amarrado junto ao solo. Ele esfaqueia o animal e se dirige à poça onde mergulha o bicho agonizante, de modo a que o sangue e a lama se misturem, o vermelho e o amarelo; eleva, em seguida, o animal para que o sangue lhe caia sobre o rosto ainda cheio de feridas. A música de Milton Nascimento assume em toda a cena uma conotação litúrgica e prepara o clima para a oração de Sete Vezes, iniciada após cumprir a primeira etapa da cerimônia: “Não tenho nome, o que pouco ou nada importa/andei nas aventuras do mundo, o que também não basta/Na cabala dos sete eu levei agora o chumbo que guardo na carne, não por vontade minha ou de Deus mas por vontade do mais forte que manda no fogo e na ferida/ Para quem traz as mãos nuas de ferro e sangue as ideias se perdem no som das palavras de protesto/ Sete Vezes me chamo até onde pode a memória e de sete caminhos vou chegar a destino que não aceito e não nego/Das misérias engoli a lama, esterco, urina/Guardei o corpo e o pensamento imaculado como uma vestal—agora basta/De meus dez dedos vou fazer outros caminhos de vitória/ As tatuagens de sangue que me deram os poderosos são os sinos de minha bandeira/Não quero saber o porquê/Se a lei é o sangue e o jogo é o ouro, no sangue e no ouro vou buscar resposta.” (XAVIER, 2003, p. 61) A partir desta passagem podemos perceber um contraste fundamental entre Sete Vezes e a grande maioria dos protagonistas de western, enquanto que estes eram baseados em figuras históricas que combatiam o pensamento mágico e o misticismo para construir uma sociedade com valores burgueses e cristãos, Sete Vezes incorpora a prática mágica como um instrumento de poder que possibilitará seu êxito, o personagem de Bastos não traz com sigo a narrativa teleológica progressista, ele está preso na “lei do sangue” que domina a região, ele não compreende a complexidade do sistema capitalista, é um fruto legitimo da cultura supersticiosa e violenta da cidade de milagres, não há teleologia a ser cumprida, apenas um lugar de privilégio a ser ocupado, no caso o lugar dos coronéis. A fala de Santana da Terra para Sete Vezes durante o jantar que antecede a guerra entre as duas famílias confirma o que foi descrito a cima: “Você me ajudou homem, mas de cada navalhada no corpo de Valeriano D`Água Limpa, brotava mais sangue dentro de mim e do seu próprio corpo. Você me ajudou homem, e isso me basta. Não lhe pergunto quem és, de onde vens, nem o que buscas, porque és meu hospede.... Talvez por que conheça as respostas? ”

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Outra característica de Sete Vezes que vai de contraponto aos heróis de western é sua covardia, suas duas vítimas foram mortas pelas costas, sem possibilidade de defesa, a honra do duelo tão caro aos cowboys é irrelevante ao personagem de Bastos. Sua feiura e morbidez (figura 60) exteriorizam a degeneração de seu espírito cruel, covarde e ganancioso, formando contraposição direta aos valores e aos aspectos físicos dos heróis de faroeste como vimos a cima, Sete Vezes não tem motivações nobres para viver ou morrer, busca apenas satisfazer sua incompletude através da matança que o levará ao topo do império (XAVIER, 2003, p. 68). Quando finalmente conquista o império do cacau, Sete Vezes acredita ter atingido o poder total que almejava conquistar desde o início da trama, mas o Deus ex machina do Capital o informa do contrário: No terreno da ordem neocolonial, a derrota de Sete Vezes se consuma quando ele, na sala maior da Casa Grande, já um Santana e patriarca legitimado pelas mulheres, faz seu discurso de posse com o “agora sou e assumo”, mas se surpreende com uma visita, o burguês de terno branco, sentada à sua própria mesa. Este traz uma nova lição de economia política: em função das dívidas contraídas pelos Santana da Terra, o cacau pertence agora ao capital londrino que ele representa; os papéis em cima da mesa assim o dizem. Despossuído, Sete Vezes reitera a oração do início do filme— “sou o rei, quero palácio, quero rainha, quero a cana...” —e esboça o ataque armado de faca. Pequena pistola à mão, o burguês conclui: “mesmo que você me matasse não destruiria a cabeça; está fora do meu corpo...as lutas deixaram o Império vazio; você é dono de um império oco dentro de outro império maior. ” (XAVIER, 2003, p. 70) Agora que tem consciência de sua verdadeira condição frente ao grande Capital, Sete Vezes se veste com as mesmas roupas de Santana da Terra e segura sua galinha preta, assumindo o posicionamento conservador e subserviente como seu antecessor. Ao som de A Cachoeira cantada por Jura, o novo coronel sucumbe a uma convulsão e morre: Esta canção fala de “violência e tristeza”, tematiza pela última vez a questão colonial, o espaço da derrota de Sete Vezes: o paradigma da canção é a pirataria inglesa, a diplomacia dos canhões, o saque direto que antecedeu as manobras comerciais; de modo solene e irônico, presta homenagem à máscara de melancolia de seus agentes, a fome e a “tristeza indefesa” do “capitão calado, o que leva o ouro-cacau” desta mata”. No final da canção, nos afastamos da melancolia do império maior que absorve, além-mar, a riqueza; e mergulhamos de vez no mundo dos fantasmas que se desenham como almas penadas a repetir o ciclo das dores da terra. Há um corte que nos afasta do rio, de Jura, e nos leva à mata onde reencontramos a ordem simbólica do mundo do cacau. Os deuses e os mortos formam um círculo em torno de Sete Vezes; este nu, amarrado, está caído de cara no chão, como um feto de bruços, na mesma posição em que o vimos lá no início entre os trilhos da estrada de ferro, caçado pelos jagunços. Fecha-se o círculo da morte adiada. (XAVIER, 2003, p. 73)

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Podemos interpretar o aprisionamento de Sete Vezes por parte dos deuses e dos mortos, como o controle da vingança sanguinária que perpetua o ciclo de mortes pelo cacau encarnada nesta entidade viva e morta que é Sete Vezes, mas isso ainda não é o suficiente para mudar a condição da cidade. Embora tenha sido inspirado nos pistoleiros solitários, misteriosos e implacáveis dos faroestes, o personagem de Othon Bastos traça uma trajetória oposta, enquanto um representa a vanguarda de uma civilização ascendente o outro seria fruto do mundo místico e bárbaro combatido pelo primeiro. Mesmo que o ronin de Mifune e o matador de Eastwood sejam anti-heróis, é presente em ambas as narrativas o elemento da empatia para com o Outro, que influência nas decisões morais de ajudar a cidade e seus cidadãos, dando uma bússola moral para a obra, elemento que não existe no filme de Ruy Guerra, Sete Vezes é a perpetuação da situação trágica, e mesmo que não fosse, o Capital não permitiria seu êxito. Agora iremos nos focar na personagem Sereno e como ela rompe com as possibilidades dramáticas pré-estabelecidas pelo gênero. A comparação mais marcante com Yojimbo e Por um Punhado de Dólares neste quesito seria a trajetória da personagem Sereno com relação a Nui e Marisol. Nos filmes estrangeiros as duas mulheres exercem a função padrão para o gênero, despertam sentimentos nobres nos protagonistas que os impelem a agir corretamente (XAVIER, 2007, p. 163), mas em Os Deuses e Os Mortos Sereno assume o protagonismo na luta contra a opressão dos coronéis e rompe com o mundo reservado as mulheres que se divide na prostituição ou no casamento: As prostitutas do bordel e as mulheres da família Santana da Terra—a madrasta Soledade, a filha Jura—definem os polos antitéticos da estratificação social e da destinação feminina naquelas paragens. Elas compõem peças de lugar definido no processo de reposição de ordem: umas, objeto de posse no circuito da continuidade da estirpe, da legitimidade e da herança; outras, no circuito da vida presente, do prazer, da transgressão que garante o equilíbrio do sistema. Sereno, enquanto viúva de posseiro pobre, sem propriedade, sem nome de família, estaria destinada aos engodos do Coronel e à vida no bordel. Na avaliação do banqueiro, ela “não vale uma guerra” e, por conta dos Santana da Terra, sua degradação estaria inserida na ordem natural das coisas. No entanto, ela termina por ser uma figura de desequilíbrio, pois não espera a ação dos poderosos, recusando a passividade da mulher-objeto, protegida. Embora o bordel marque o seu roteiro, não a retém, pois ela se recompõe antes de cair na zona limítrofe em que a perda de tudo e da dor poderiam radicalizar um trajeto em direção à loucura, em direção à personagem de Dina Sfat. (XAVIER, 2003, p. 57) Sereno se vinga dos D`Água Limpa matando Aurélio, o membro mais belicoso da família que sempre andava armado, semelhante a Ramón e a Unosuke, a moça o

108 seduz e o atrai para o meio da mata onde assassina sua vítima, tomando a dianteira da ação vingativa. Seu segundo assassinato é o coronel Santana da Terra que não se vingou pelo empregado assassinado, além de negar a ela as posses do marido. Diferente de Sete Vezes, Sereno não tem nenhum objetivo maior para alcançar, após se vingar de ambas as famílias a personagem diz: “você mata o corpo depois eles vivem em você, eu mato o que eles são. Meu nome é Sereno agora eu digo, sereno é meu corpo, matei Aurélio, Santana, e outros vou matar. Olha o meu rosto e tenta esquecer, você não vai conseguir porque ele vai mudar. ” E se fasta lentamente do corpo do coronel Santana e de Sete Vezes (figura 62), não volta a aparecer no filme, mas segue como uma força vingativa contra as famílias latifundiárias. Convencionalmente o contato com a violência é restrito aos personagens masculinos, como vimos no primeiro capítulo, essa tendência surge na literatura de cativeiro que justificava a violência dos cowboys pela finalidade de libertar as donzelas que sofriam nas mãos das tribos indígenas. Sereno incorpora a violência pelo viés da vingança e da loucura, no assassinato do coronel Santana da Terra onde vemos uma aliança horizontal entre ela e Sete Vezes, o forasteiro controla a mulher que não cessa de dar estocadas no corpo já sem vida do coronel, demonstrando o sadismo como válvula de escape para a perturbação da viúva. Outro ponto importante de se ressaltar é o modo como lida com sua sexualidade, diferente da construção feminina padrão do gênero onde a castidade é elemento fundamental de pureza e moralidade, Sereno explora o próprio corpo para poder sobreviver no bordel e se vingar dos D`Água Limpa, sexo não é um tabu para a personagem de Ruy Guerra, é um instrumento de poder fundamental nesta terra devastada pela exploração do cacau. Agora entramos em um dos pilares que mais marcam a relação de Os Deuses e Os Mortos com o western, que é a metafísica da violência como elemento que compõe o ambiente de confronto, no caso do faroeste, seria o maniqueísmo entre heróis e vilões (XAVIER, 2007, p. 147), mas diferentemente em Os Deuses e Os Mortos, a violência assume uma densidade histórica e sociológica ligada a colonização brasileira, portanto, os atos violentos não são justificados pelo progresso da civilização, não há heroísmo no confronto, o duelo final entre as duas famílias é decidido em uma conversa entre o político Venâncio e o comerciante de cacau, a violência não tem potencial algum de transformação de mundo, aparece como

109 consequência da exploração do capital em terras subdesenvolvidas, onde a própria população se confronta por conta dos males do subdesenvolvimento. Essa violência aparece em elementos visuais como paisagens, cenários, objetos de cena ou personagens que suscitam o iminente confronto que provavelmente será o ápice da narrativa fílmica (BUSCOMBE, 1988, p. 232). Abaixo temos exemplos imagéticos de como o filme expressa esta violência colonial:

Figura 55: Comerciante estrangeiro de cacau (Fredy Kleemann) chegando à cidade de milagres junto com seu capataz, ele caminha pela praça que será palco do grande confronto entre as duas grandes famílias de coronéis.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=eXscs1k_ahY&t=3878s (Acesso: 22/04/2020)

Figura 56: Sete Vezes (Othon Bastos) Convencendo Velu (Nelson Xavier) a matar o coronel Santana, a faca surge como o instrumento de execução da vingança sobre a morte de seu irmão Aurélio D`Água Limpa.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=eXscs1k_ahY&t=3878s (Acesso: 22/04/2020)

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Figura 57: Urbano (Ruy Polanah) e seus jagunços espetando os mercenários de Santana da Terra para o confronto final entre as duas famílias na praça principal da cidade.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=eXscs1k_ahY&t=3878s (Acesso: 22/04/2020)

Figura 58: Coronel Urbano (Ruy Polanah) no meio dos seus jagunços mortos ou agonizantes após a batalha contra Santana.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=eXscs1k_ahY&t=3878s (Acesso: 22/04/2020)

Figura 59: Urbano D`Água Limpa (Ruy Polanah) chegando à casa de Santana da Terra para matar seu rival, ao fundo Sete vezes (Othon Bastos) o espera para uma emboscada.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=eXscs1k_ahY&t=3878s (Acesso: 22/04/2020)

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Figura 60: Sete Vezes (Othon Bastos) convencendo Soledade (Norma Bengell) a reinarem juntos no império do cacau, seu aspecto mórbido encarna a violência colonial pelo cacau.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=eXscs1k_ahY&t=3878s (Acesso: 22/04/2020)

Figura 61: Os mortos na casa de Santana da Terra aparecem como cicatrizes históricas da violência colonial no Brasil, continuam presos a terra onde morreram como uma maldição eterna.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=eXscs1k_ahY&t=3878s (Acesso: 22/04/2020)

Figura 62: Sereno (Ítala Nandi) recua após matar Santana da Terra, seu olhar frio e obcecado por vingança junto ao modo como estático como segura a faca contém o lado mais perturbador da violência, fruto da loucura.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=eXscs1k_ahY&t=3878s (Acesso: 22/04/2020)

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A violência está presente em todos os momentos do filme de formas variadas: mortos que seguem os vivos, pessoas armadas, pessoas mortas, assassinatos, as feridas de Sete Vezes, nos discursos políticos e econômicos proferidos pelos verdadeiros vilões do subdesenvolvimento. Todo esse ambiente também é fruto das diversas linhas vingativas que o roteiro constrói, quase todos os personagens têm algum alvo para matar, como um ciclo eterno de mortes onde não sabemos delimitar seu início e seu fim. Não há personagem que se sacrifique pela purificação deste mundo, heróis que estão disposto a morrer pelo bem maior, todas as figuras são conflitantes, Xavier escreve: Na terra do cacau, tal cadeia é dado de estrutura, horizonte do colapso que, favorecido pelo influxo externo da pressão comercial, pode realizar todo o seu potencial de destruição sob o olhar cúmplice dos deuses e dos mortos. Na deflagração do processo, o que vemos é uma crise das diferenças: a identidade das famílias inimigas chega ao paroxismo; Sereno ultrapassa as barreiras e se põe como um sujeito da violência; Sete Vezes rompe as relações de mando e as separações de classe social; a fronteira entre os vivos e os mortos, entre o homem e a natureza, se dissolve, e a violência se desenha como lepra em todas as figuras, peste que contamina tudo; o fluxo do sangue se mostra em toda a sua impureza, mesclado à lama, não havendo lugar para um sacrifício purificador apto a cortar o fluxo e estabilizar a sociedade. (2003, p. 67) Sete Vezes poderia desempenhar a função de personagem sacrificado que romperia com o ciclo de destruição, assim como nas outras duas obras estrangeiras que analisamos onde os protagonistas estavam dispostos a se sacrificar pelo bem comum, mas o personagem de Othon Bastos acaba por desempenhar a função oposta, é o agente desestabilizador (Xavier, 2003, p. 68). Como já foi dito, a honra que envolve o duelo está distante deste universo, os personagens triunfam pela covardia e a crueldade, todas as habilidades marciais dos protagonistas que vimos em Yojimbo e Por um Punhado de Dólares são ignoradas neste contexto, pois a violência do filme de Guerra não tem a finalidade de entreter, ela é aterrorizante. A morte demorada e agonizante de Valeriano D`Água Limpa pela navalha de Sete Vezes aparece como uma tortura ao público que assiste ao homem correndo e gritando ensanguentado, diferente das mortes em filmes de western que geralmente eram rápidas (mais um modo que o gênero tem de exaltar o aparato técnico da arma de fogo pela sua precisão e letalidade). A representação da violência se dá de maneira crua e objetiva, não há a construção emocional a partir de técnicas cinematográficas que ressaltam ou estendem determinados momentos da ação (figuras 19 à 30, figuras 39 à 42),

113 observamos o horror como se estivéssemos presentes, experienciando os acontecimentos (figuras 58 e 61). É interessante notarmos que toda destruição e decadência da cidade de milagres é substituída por um cenário ingênuo, bucólico e tropical quando temos personagens que representam a civilização colonizadora visitando a região. Temos maior presença de cores, a câmera é estática, a cenografia e o figurino estão todos arrumados, ouvimos pássaros cantando e o ambiente como um todo sugere a fertilidade da terra pronta para ser desfrutada por comerciantes ambiciosos que irão desenvolvê-la rumo ao progresso.

Figura 63: Banqueiro explicando o comércio do cacau enquanto come uma melancia e acaricia uma prostituta.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=eXscs1k_ahY&t=3878s (Acesso: 23/04/2020)

Figura 64: Venâncio discursando sobre suas propostas políticas para seus empregados e para prostitutas.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=eXscs1k_ahY&t=3878s (Acesso: 23/04/2020)

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A decadência, a morte e a crença são os pilares de toda barbárie que vimos na cidade de milagres, sem qualquer tipo de possibilidade emancipatória por parte de propostas políticas e economias que acabam se consolidando como um mundo à parte. Em suma, no filme de Ruy Guerra o universo mágico-religioso mostra a sua efetividade, mas se mostra um sincretismo sem contorno claro, tal como se verifica no ritual de Sete Vezes onde o sacrifício do animal fica à procura de deuses que o consagrem ou de um preceito comunitário que lhe defina o sentido. Há uma deliberada estranheza neste “teatro da crueldade” feito de forças que atingem diretamente os corpos, deixam marcas, como uma doença. Permeado de grotesco, o filme confia no poder sedutor do abjeto ou no poder de atração da violência repulsiva que deixa entrever um terreno sagrado onde ganham sentido seus banhos de sangue, para além da lógica implacável da economia. Sua alegoria trabalha a ordem simbólica num registro que preserva espaços de enigma e se faz uma fonte de interrogações talvez mais sedutora do que o forte didatismo no tratamento da questão econômica. Tudo se configura como uma espécie de missa negra da história, festival de “violência e tristeza” de um mundo periférico sem lugar para um discurso épico de conquistas ou caminhos de salvação. A justaposição entre passado e presente ressalta realidades que atravessam o tempo, seja a economia onde a migração de mão de obra é dado estrutural, seja a tradição religiosa transportada junto com os pobres nos caminhões para as plantações de cacau ou as cidades do sul. Se o tempo presente é observado num relance, apenas na abertura do filme, isto basta para compor a moldura que indica as permanências, deixando claro que o processo de dissolução de todo um esquema de poder não instaurou mudanças substanciais do ponto de vista de quem trabalha e se dirige aos campos de cacau. (XAVIER, 2003, p. 74 – 75) O mundo civilizado e a barbárie do subdesenvolvimento existem em pólos separados que dificilmente se encontram, os personagens de ambas as esferas tem dificuldade de comunicação e compreensão ampla, enquanto que as grandes famílias latifundiárias se destroem pelo cacau e justificam sua luta por forças trágicas do destino, os políticos, economistas e comerciantes enxergam números e estatísticas de lucro sobre a matéria prima explorada. Sendo assim o progresso desenvolvimentista do pacto de colonizados e colonizadores se revela uma falácia, o movimento migratório do início do filme representa a falha do projeto. Neste cenário o filme de Ruy Guerra condena o ideal de progresso tão caro aos faroestes. Em Os Deuses e Os Mortos o próprio ideal de progresso cinemanovista é jogado de escanteio, Carolina Guimarães relaciona a abordagem pessimista com o endurecimento do regime militar em 1968: Assim, entende-se que já nas primeiras cenas de Os Deuses e os mortos a imagem dos trabalhadores é inserida em um movimento de repetição do mesmo – cá, nos anos 1970, tanto quanto lá, no começo do século XX, a situação de quem trabalha nas plantações de cacau é precária, seja sob a dominação do capital inglês, mediada por famílias tradicionais decadentes, seja projetando-se sobre um posto de gasolina da Shell. Depois desta constatação inicial, as imagens do trabalho praticamente somem do filme, 115

que se lança a encenar o pesadelo do fim das possibilidades de um país mais livre e democrático, encenação carregada de uma agressividade proporcional ao ímpeto de mudança que o Cinema Novo projetou um dia, antes da terra arrasada de 1968. (2019, p. 133). O filme marca o crepúsculo da proposta de superação da fome do Cinema Novo por apontar a proposta como algo não realizável concretamente, a submissão ao capital é eterna, pois não há forças capazes de vencê-lo, grande parte por não haver possibilidade de diálogo entre o mundo civilizado e o bárbaro. Esta dicotomia é reforçada por montagens paralelas que de modo dialético contrapõe os dois mundos, assim como nas sequências que intercalam guerra/armazém/guerra e sacrifício/discurso político/sacrifício. Nesta segunda nós temos o confronto de duas perspectivas de ação no mundo, de um lado as práticas mágicas de Sete Vezes e do outro o discurso retórico de Venâncio. Sete Vezes faz uma oferenda as divindades com objetos concretos e palpáveis, enquanto Venâncio busca convencer os ouvintes com termos abstratos e raciocínios lógicos (XAVIER, 2003, p. 62). Assim como o polo civilizado tem economistas e políticos que usam de sua racionalidade para esclarecerem os acontecimentos e antecipar seus rumos, no polo bárbaro a figura da vidente desempenha função semelhante, a partir de suas previsões e seu estado de transe ela é capas de prever a grande matança que acontecerá na região que resultará na morte dos dois coronéis. A partir deste embate inconciliável entre civilização e barbárie Ruy Guerra condena a teleologia do progresso, a narrativa não aponta para nenhuma direção de possível mudança do cenário trágico do terceiro mundo explorado por empresas privadas estrangeiras, o filme nos mostra um pequeno recorte do que é o eterno retorno de um país condenado a colonização, as guerras internas não afetam os exploradores estrangeiros, que como deuses decidem o destino do país e seus habitantes. Em um primeiro momento o diretor parece defender que a única maneira que a população do sertão tem para mudar de vida é migrar para o sul do país, mas sua produção seguinte A Queda (1976) revela os males da exploração na cidade grande, a partir de injustiças trabalhistas sofridas por pedreiros que anos antes foram os soldados que protegeram o armazém de comida na cidade de milagres em Os Fuzis. Portanto, Os Deuses e Os Mortos dialoga com o faroeste ao construir uma estrutura narrativa com elementos semelhantes ao do gênero, mas que são subvertidos, promovendo a desconstrução de sua fórmula, fazendo o movimento 116 contrário de muitos filmes nacionais que usam das fórmulas estrangeiras para tentar ter lucro na bilheteria (BERNARDET, 2007, p. 12), ao subverter as convenções que formam a estrutura do western Ruy Guerra está desestruturando a ideologia da tradição narrativa que está de trás dos faroestes (como vimos no primeiro capítulo), o progresso da civilização, a castidade feminina, o heroísmo do homem protetor, a violência justificada por valores transcendentes e o controle do homem sobre seu próprio destino, são completamente demolidos pela obra, de modo que esta subversão nega o status deste gênero enquanto mercadoria por passar uma mensagem dura e desconfortável ao público. A desconstrução promovida por Guerra destoa da forma que Yojimbo e Por Um Punhado de Dólares trabalharam o gênero no âmbito narrativo, as duas obras e os faroestes influenciados por elas ressignificaram o gênero para um novo público que não se identificava mais com o modelo narrativo constituído até os anos 1950, trazendo à tona a figura do anti-herói que comete atos imorais (e se diverte com eles), mas que ao final da obra o público recebe uma mensagem moralista que preserva valores como família, altruísmo e a punição do mal. Sendo assim a nova linhagem de western iniciada sobre influência de Kurosawa e Leone se mantem como mercadorias agradáveis de serem consumidas pelo público, ao passo que Ruy Guerra freia a tradição suprimindo completamente os elementos narrativos que constituíram o gênero enquanto mercadoria até então. Como nossa análise estética continuará traçando a comparação entre Os Deuses e Os mortos com Yojimbo, Por um Punhado de Dólares e o modo como o gênero do faroeste se constituiu até os anos 1960, a primeira coisa que nos salta os olhos no filme de Guerra é o modo como ele rompe com o Modo Institucional de Representação (MIR), descrito por Noel Burch como o estilo de construção cinematográfica do cinema narrativo comercial: Para que esse mundo se torne real, o MIR deve tornar a técnica “invisível” ou “transparente”. O estilo de grau zero atacado em Práxis do cinema agora é descrito historicamente, como nascente de uma ideologia do ilusionismo. O MIR cria imagens reconhecíveis (“icônicas”) que possuem composições simples, facilmente entendidas. Esses planos são ordenados de uma espacial e temporal linear. Os atores são encorajados a não olhar para a câmera, já que isso sugeriria que o mundo narrativo não está mais isolado do olhar do espectador. Da pintura, o MIR empresta truques para sugerir três dimensões – iluminação modelada, sets com perspectiva e posições de câmera oblíquas. Mesmo os códigos de montagem que surgiram ao longo das duas primeiras décadas do meio sustentam a ilusão de profundidade. O corte para uma cena, especialmente com uma mudança de ângulo, cria a sensação de um espaço “háptico”, tridimensional. (BORDWELL, 2013, p. 137)

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Estas características podem ser observadas nas seguintes sequenciais: Nos Tempos das Diligências (figuras 16 – 18), Rastros de Ódio (figuras 41 – 48), Yojimbo (figura 19 – 30) e Por um Punhado de Dólares (figuras 33 – 40 e 49 – 52). Ruy Guerra usa da técnica de longos planos sequência que alterna entre planos mais próximos dos atores e planos distantes, permitindo aos atores mais mobilidade e deixando sua performance mais teatralizada que o comum para um filme. Este circundar entre os atores e a câmera coloca o espectador como uma testemunha dos acontecimentos, praticamente durante todo o filme a câmera se mantem em um ângulo de visão normal, sem muitos ângulos altos ou baixos. A montagem desempenha um papel muito pontual e minimalista, apesar de ditar as construções simbólicas do filme a partir do choque dialético de ideias, o recurso do corte é utilizado majoritariamente para a transição de cenas, a decupagem das cenas é contida inteiramente nos planos detalhe, sem uso de edição. A ideia de que o espectador é representado pela câmera que acompanha os acontecimentos do filme de perto é reforçado pelo elemento da quebra da quarta parede onde os atores interagem com a câmera como se soubessem que estão sendo observados (figuras 58 e 60) e fazem monólogos extremamente didáticos que explicam ao público sobre suas motivações ou o contexto (cósmico ou econômico) em que atuam. Outro elemento que rompe com a construção de mise-en-scène estabelecido pelas normas clássicas é a circulação de mortos e divindades no mesmo ambiente que os outros personagens (figura 61). Esta característica dos longos plano-sequência é presente em outras obras de Ruy guerra, Os Deuses e Os mortos parece ser o ponto de transição entre uma mise- en-scène ensaiada e precisa que aparecem em Os Fuzis para a mise-en-scène improvisada e caótica de A Queda. Esta tendência rumo a desconstrução da perfeição é explicada por Cardenuto: Em meados dos anos 1970, coincidindo com reflexões lançadas pelo cineasta cubano Júlio García Espinosa no manifesto “Por un Cine Imperfecto” (1969), Guerra acabou se afastando dos procedimentos outrora empregados em Os fuzis, voltando-se para a elaboração de uma experiência estética que fosse assumidamente imperfeita. Não é improvável que uma das questões lançadas por Espinosa nas entrelinhas de seu texto, de que a impecabilidade técnica servia sobretudo à elitização da atividade cinematográfica, padronizando as representações do mundo, também tenha mobilizado Guerra a optar, em A queda, por um método criativo a contrapelo do tratamento primoroso da gramática e da fotografia cinematográfica. Se o Brasil da década de 1970 era um país corrompido pelo autoritarismo militar, pela opressão massificada do povo e pelo colapso das crenças utópicas do passado, talvez o meio mais acertado de mostrar esse universo decaído 118

fosse assumir uma construção formal suja e imperfeita, composta por técnicas ruidosas que condissessem organicamente com o lamaçal da História. Na contracorrente das perfeições técnicas, que carregam consigo prazeres sensoriais associados ao embelezamento estético, a imperfeição formal, quando disruptiva de fato, pode gerar potentes representações abjetas, estabelecendo uma crítica radical de mundo que transborda a partir dos sons e das imagens. Contra as negociações com a beleza, contra o «bom gosto», lançar mão da sujeira formal tão repudiada pelo conservadorismo e pelo cinema de herança industrial. (2017, p. 14) Sendo assim, o desconforto não estava apenas no conteúdo da obra, mas também na sua forma, ao negar a perfeição técnica tão cara ao cinema comercial. Podemos dizer que em parte a proposta de Ruy Guerra estava de acordo com o que Burch descreveu como Modo Primitivo de Representação (MPR), uma tendência que se desenvolveu na história do cinema entre 1894 – 1914, em um primeiro momento de modo não intencional este estilo rompia com as características do MIR: Pode-se considerar que muitas características do MPR antecipam as “desconstruções” divisoras de águas dos códigos ilusionistas. As narrativas abertas e não psicológicas dos primeiros filmes não se concentram na ação humana individualizada, tão central para o MIR. Os enquadramentos distantes e externos (para não mencionar as condições perturbadoras da atenção em que os filmes eram feitos) oferecem uma ausência de envolvimento quase brechiana. [...] Enquanto o MIR investia de tridimensionalidade o espaço ficcional, as tomadas internas do cinema primitivo apresentavam imagens comparativamente planas. Os atores moviam-se perpendicularmente ao eixo da câmera, atuavam frontalmente e se distribuíam como roupas penduradas em um varal. (BORDWELL, 2013, p. 147) As semelhanças com o MIR podem ser observadas nas figuras 55, 57, 58, 59, 61, 63 e 64. É claro que podemos identificar uma série de referências estéticas em Os Deuses e Os Mortos, principalmente no campo do teatral (DESBOIS, 2016, p. 179 e 180), mas as características estilísticas desenvolvidas por movimentos cinematográficos europeus que marcaram as obras do cinema novo (DESBOIS, 2016, p. 206) tem menos relevância neste filme, Ruy Guerra não permite que sua obra seja engolida pelas referências que a construíram, fazendo uma obra autoral que é capaz de refletir questões genuinamente brasileiras, marcando a transição do Cinema Novo para o Tropicalismo. Se compararmos Os Deuses e Os Mortos com Os Fuzis perceberemos que o tema do povo é trabalhado de modos diferentes nos dois filmes, ambas as obras são marcadas pela influência do neorrealismo italiano por representar a população da cidade de milagres de modo documental, mas no filme de 1964 a importância que as massas tem é muito superior ao papel que desempenham no filme de 1970, que as mostra com distância e caladas, são simples massa de manobra, não

119 temos entrevistas com o povo como em Os Fuzis (figura 54). A influência nouvellevagueana de realizar filmagens externas com equipamentos leves já se mantém de forma diferente como já analisamos acima. Ismail Xavier observa na apresentação de Sereno e Sete Vezes a tendência que a montagem tem de interromper uma sequência com inserções de cenas distintas e depois retornar a mesma sequência: Exposta a nova situação, voltamos à cena anterior, dentro de um procedimento comum em Os Deuses e os Mortos. O privilégio é dado ao plano-sequência; minimiza-se a montagem dentro da cena e, quando esta se desdobra, faz-se uso de inserções paralelas que separam as várias fases de uma mesma ação. Entre os tiros e a queda do forasteiro, entre o campo e o contra/campo, o hiato do incêndio e da mulher em fuga (o que estabelece uma conexão entre estas personagens). (2003, p. 52) A montagem também desempenha a função de colocar os opostos em confronto, não só nos polos bárbaro e civilizado como já analisamos, mas também entre Santana da Terra e os D`Água Limpa que sempre aparecem em choque na edição, esta estrutura se mantem na apresentação das duas famílias, e nas cenas que antecedem a guerra final entre as famílias. Também temos a oposição entre Venâncio e o comerciante de cacau que representam interesses políticos e econômicos opostos, após a cena do discurso de Venâncio para um pequeno público (figura 64), temos na cena seguinte o comerciante de cacau ouvindo notícias sobre a bolsa inglesa, o contraste entre as duas figuras feitas pela montagem ressalta o confronto entre o projeto político de defesa econômica da nação que Venâncio tem com os planos que o comercio internacional tem para as terras de cacau. Essas são as características centrais que compõe a estética do filme, com uma proposta que vai de contramão a espetacularização e ao rebuscamento técnico, encarnando a decadência do subdesenvolvimento do terceiro mundo em sua estrutura para negar qualquer forma fílmica que remeta ao estilo de filme comercial “bem feito” despolitizado. Diferentemente de Yojimbo e Por um Punhado de Dólares que retrabalharam o gênero ao ponto de influenciar uma nova geração de cineastas que seguiriam por caminhos próximos, Os Deuses e Os Mortos não conseguiu o mesmo grau de impacto, hoje em dia esta obra parece estar esquecida, é claro que a efervescência criativa do cinema brasileiro da década de 1970 provavelmente tenha contribuído para seu ofuscamento, uma vez que nós tivemos dois movimentos que seguiram caminhos diferentes do cinemanovismo, o primeiro e já citado é o Tropicalismo no cinema que

120 ganhava cada vez mais força na sua proposta de unir um pouco de tudo visando construir uma proposta genuinamente brasileira, e o segundo seria o Cinema Marginal que rompeu radicalmente com o Cinema Novo: No material promocional de O pornógrafo, em 1970, intitulado Manifesto do Cinema Cafajeste, o cineasta João Callegaro define alguns pontos de uma verdadeira estratégia: abandonar “as elucubrações intelectuais, responsáveis por filmes ininteligíveis, e atingir uma comunicação ativa com o grande público, aproveitando os cinquenta anos de mau cinema americano devidamente absorvido pelo espectador”. Esse cinema escolheu a via dos filmes de aventura locais e de sexo barato para rentabilizar o investimento financeiro e esteve na base da pornochanchada. Foi a estratégia de um grupo de São Paulo, que se erigiu contra a linguagem europeia e elitista do Cinema Novo. Tratava-se de romper de forma radical com os predecessores. (DESBOIS ,2016, p. 237) O grau de desconstrução da estrutura do faroeste promovido por Guerra raramente voltou a ocorrer na história do cinema, e por ter sido uma obra deixada de lado pela história na maioria dos debates sobre o modo como este gênero circulou no Brasil acabaram ignorando a contribuição que Ruy Guerra fornece sobre esta questão, ou seja, de pensarmos a teleologia do progresso e seus arquétipos sustentados pelo western a partir da uma perspectiva do terceiro mundo, colonizado, subdesenvolvido e bárbaro.

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CONCLUSÃO

Ao longo desta dissertação nós discutimos o modo como o estilo de faroeste constituído até o início da década de 1960 sofreu mutações em três contextos cinematográficos distintos, tais mutações promoveram tanto sua ressignificação para um novo público alvo do gênero, como sua problematização e desconstrução por parte de um cinema reativo a indústria cinematográfica dominante do primeiro mundo que ocupava as salas dos países de terceiro mundo. Desta forma percebemos que a sobrevivência de um gênero cinematográfico depende de seu caráter impuro, ou seja, de sua mescla e diálogo com outras formas de construção da sétima arte. Mesmo que a gramática do gênero tenha se desenvolvido para dialogar especificamente com as narrativas que relatam acontecimentos no oeste dos Estados Unidos da América durante século XIX, sua potência poética vai além desta temática narrativa, permitindo sua adaptação em propostas distintas. O gênero aparece como um modo de promover a reflexão sobre diversos temas que podem ser abordados pela obra, a partir de uma forma pré-constituída sobre a gramática fílmica, como Kurosawa que discute a degradação da sociedade japonesa em Yojimbo, Leone que encarna a desilusão do povo italiano frente a teleologia liberal norte-americana em Por um Punhado de Dólares e Guerra que escancara as contradições sociais promovidas pelo colonialismo em Os Deuses e Os Mortos. Para além desta questão presente na dissertação, também devemos chamar atenção para a discussão do impacto que a estrutura narrativa do Jidaigeki preservado por Yojimbo e adaptada ao contesto do oeste norte-americano por Por um Punhado de Dólares teve sobre a renovação do western, a representação de um mundo decadente e imoral sob a ótica de uma figura marginal e niilista veio como uma resposta direta a insistência dos estúdios no modelo clássico e impopular da narrativa do gênero onde víamos com otimismo a construção de uma sociedade civilizada e cristã pela ótica do bom-mocismo do cowboy que aparecia como o protetor deste projeto. Os intensos acontecimentos mundiais e sociais da década de 1960 favoreceram a adesão do público ao primeiro modelo, a sociedade estava mais receptiva para críticas mais ácidas e menos ingênuas, as contradições do sonho americano tinham se mostrado insustentáveis. O filme Once Upon a Time in Hollywood (Era Uma Vez em... Hollywood, 2019, de Tarantino) demonstra o embate geracional através da crise do faroeste, de um lado nós temos um ator conservador 122 que tem um olhar nostálgico para os filmes de western em que atuava, e uma resiste para aceitar o novo spaghetti western que aborda o gênero de modo mais violento e pessimista, do outro lado nós temos o desinteresse dos jovens estadunidenses marcados pela contracultura com relação ao faroeste das décadas anteriores, chegando a considerá-los violentos e imorais. Vimos que Kurosawa e Leone foram fundamentais para uma nova onda de faroestes que surgiriam e que durariam até o final da década de 1970, mas o caminho percorrido por essa nova leva de filmes que inclui as ramificações do faroeste spaghetti, o modo como a Nova Hollywood revisou o gênero para melhor se comunicar com a sociedade americana e os motivos que levaram a sua decadência para o início de um novo ciclo é tema para um outro trabalho. Nesta dissertação nos limitamos a discutir as mutações que o gênero sofreu ao ser trabalhado por contextos cinematográficos distintos, porém em um período histórico próximo e seus impactos sobre o western. Os Deuses e Os Mortos surge nesta dissertação como um modo de resgatar uma grande obra do cinema brasileiro que parece estar esquecida, e enfatizar a relação que o filme de Ruy Guerra estabelece com o faroeste, a partir da problematizando a noção de teleologia civilizatória pelo olhar dos colonizados e pela desconstrução total dos elementos estéticos e narrativos que constituíram o faroeste até então, tentando esgotar ao máximo o discurso do gênero ao confrontá-lo com a realidade brasileira, o cinemanovismo e o teatro trágico, ao invés de tentar renová-lo como Leone fez. É importante que esta obra seja lembrada pela sua postura inconformista e reativa diante de um mercado cinematográfico injusto que ocupava mercados de países estrangeiros e sufocava sua produção cinematográfica interna. Quando se fala sobre faroeste e Cinema Novo o primeiro nome que nos vem a cabeça é Glauber Rocha, mas esta dissertação também chama a atenção para o modo como Ruy Guerra trabalhou esse gênero, ao invés de discutir a figura do cangaceiro no noroestern, Guerra preferiu tratar dos embates entre civilização e barbárie na exploração capitalista, desconstruindo a ideologia central de progresso que pautou o western desde seu surgimento na literatura. O monitoramento feito nesta dissertação sobre as diferentes mutações que o gênero americano teve na década de 1960 nos revelou importantes leituras culturais no âmbito cinematográfico como expressão de um mundo que passava por

123 transformações políticas e sociais marcantes, assim pudemos entender melhor quem eram essas novas gerações de cinéfilos e cineastas, colocando o gênero cinematográfico como elemento fundamental para a compreensão da história do cinema, ao invés de um fenômeno puramente comercial que tem uma potencialidade interpretativa limitada por “não ter” nenhum trabalho estético mais rebuscado e inovador, ou por ser um acontecimento datado que marca Hollywood na primeira metade do século XX. Caso os acadêmicos brasileiros continuem ignorando a relevância do gênero cinematográfico enquanto objeto de pesquisa, teremos um oco nos estudos audiovisuais realizados no Brasil.

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FILMOGRAFIA

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Cavalo de Ferro. Direção de John Ford. Estados Unidos da América: 20th Century Fox, 1924. 1 DVD (133 min).

Attack On A China Mission. Direção de James Williamson. Reino Unido: Kinematograph Company, 1900. 1 DVD (4 min).

The Battle at Elderbush Gulch. Direção de D. W. Griffith. New York: Biograph Company, 1913. 1 DVD (29 min).

O Nascimento de uma Nação. Direção de D. W. Griffith. Estados Unidos da América: David W. Griffith Corporation, 1915. 1 DVD (190 min).

Os Bandeirantes. Direção de James Cruze. Estados Unidos da América: Paramount Pictures Corporation, 1923. 1 DVD (98 min).

No Tempo das Diligências. Direção de John Ford. Estados Unidos da América: United Artists Corporation, 1939. 1 DVD (96 min).

Matar ou Morrer. Direção de Fred Zinnemann. Estados Unidos da América: United Artists Corporation, 1952. 1 DVD (85 min).

Os Brutos Também Amam. Direção de George Stevens. Estados Unidos da América: Paramount Pictures Corporation, 1953. 1 DVD (118 min).

O Homem que Matou o Facínora. Direção de John Ford. Estados Unidos da América: Paramount Pictures Corporation, 1962. 1 DVD (123 min).

Yojimbo. Direção de Akira Kurosawa. Tókio: , 1961. 1 DVD (110 min).

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Os Quarenta e Sete Ronins: A Narração Verdadeira. Direção de Shozo Makino. Japão: Makino Film Productions, 1928. 1 DVD (64 min).

Humanidade e Balões de Papel. Direção de Sadao Yamanaka. Tókio: Toho, 1937. 1 DVD (86 min).

Utamaro e Suas Cinco Mulheres. Direção de Kenji Mizoguchi. Tókio: , 1946. 1 DVD (107 min).

Rashômon. Direção de Akira Kurosawa. Japão: Daiei, 1950. 1 DVD (88 min).

Portal do Inferno. Direção de Teinosuke Kinugasa. Japão: Daiei, 1953. 1 DVD (86 min).

O Homem Mal Dorme Bem. Direção de Akira Kurosawa, Tókio: Toho, 1960. 1 DVD (151 min).

Crônica de um Ser Vivo. Direção de Akira Kurosawa, Tókio: Toho, 1955. 1 DVD (103 min).

Trono Manchado de Sangue. Direção de Akira Kurosawa, Tókio: Toho, 1957. 1 DVD (110 min).

Por um Punhado de Dólares. Direção de Sergio Leone, Munique: Constantin film, 1964. 1 DVD (99 min).

Os Últimos dias em Pompeia. Direção de Sergio Leone e Mario Bonnard, Itália: Cine- Produzioni Associate, 1959. 1 DVD (93 min).

O Colosso de Rodes. Direção de Sergio Leone e Mario Bonnard, Itália: Cine- Produzioni Associate, 1961. 1 DVD (127 min).

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Por um Punhado de Dólares a Mais. Direção de Sergio Leone, Munique: Constantin film, 1965. 1 DVD (132 min). Três Homens em Conflito. Direção de Sergio Leone, Estados Unidos da América: United Artists Corporation, 1966. 1 DVD (161 min).

Sangue de Herói. Direção de John Ford, Estados Unidos da América: Argosy Pictures, 1948. 1 DVD (84 min).

Rastros de Ódio. Direção de John Ford, Estados Unidos da América: CV Whitney Pictures, 1956. 1 DVD (119 min).

O Último Matador. Direção de Walter Hill. Califórnia: New Line Cinema, 1996. 1 DVD (101 min).

Era uma Vez no Oeste. Direção de Sergio Leone, Estados Unidos da América: Paramount Pictures Corporation, 1968. 1 DVD (165 min).

Django. Direção de Sergio Corbucci, Itália e Espanha: BRC Produzione Srl e Tecisa, 1966. 1 DVD (91 min).

Meu Ódio Será Sua Herança. Direção de Sam Peckinpah, Califórnia: Warner Bros., 1969. 1 DVD (145 min).

Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia. Direção de Sam Peckinpah, Estados Unidos da América: Optimus Films, 1974. 1 DVD (112 min).

Os Deuses e Os Mortos. Direção de Ruy Guerra, Brasil: Companhia Cinematográfica de Filmes Brasileiros, 1970. 1 VHS (99 min).

O Cangaceiro. Direção de Lima Barreto, São Paulo: Companhia Cinematográfica Vera Cruz, 1953. 1 DVD (105 min).

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Deus e o Diabo na Terra do Sol. Direção de Glauber Rocha, Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 1964. 1 DVD (120 min).

O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Direção de Glauber Rocha, Rio de Janeiro: Mapa Filmes, 1969. 1 DVD (100 min).

Vidas Secas. Direção de Nelson Pereira dos Santos, Rio de Janeiro: Luiz Carlos Barreto Produções Cinematográficas, 1963. 1 DVD (103 min).

Os Fuzis. Direção de Ruy Guerra, Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 1964. 1 DVD (103 min).

5 Vezes Favela. Direção de Miguel Borges, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Marcos Farias e Leon Hirszman, Rio de Janeiro: Centro Popular de Cultura da UNE, 1962. 1 DVD (92 min).

Barravento. Direção de Glauber Rocha, Bahia: Iglu Filmes, 1962. 1 DVD (78 min).

Bahia de Todos os Santos. Direção de José Hipólito Trigueirinho Neto, Bahia: Trigueirinho Neto Produções Cinematográficas, 1960. 1 VHS (100 min).

A Grande Feira. Direção de Roberto Pires, Bahia: Iglu Filmes, 1961. 1 VHS (91 min).

Sol Sobre a Lama. Direção de Alex Viany, Brasil: Guapira Filmes, 1963. 1 VHS (90 min).

O Desafio. Direção de Paulo César Saraceni, Rio de Janeiro: Mapa Filmes, 1965. 1 VHS (81 min).

Terra em Transe. Direção de Glauber Rocha, Rio de Janeiro: Mapa Filmes, 1967. 1 DVD (111 min).

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A Falecida. Direção de Leon Hirszman, Rio de Janeiro: Herbert Richers Produções Cinematográficas, 1965. 1 DVD (90 min).

A Grande Cidade. Direção de Carlos Diegues, Rio de Janeiro: Luiz Carlos Barreto Produções Cinematográficas, 1966. 1 DVD (82 min).

O Bravo Guerreiro. Direção de Gustavo Dahl, Brasil: Saga Filmes, 1968. 1 VHS (99 min).

Os Herdeiros. Direção de Carlos Diegues, Rio de Janeiro: Luiz Carlos Barreto Produções Cinematográficas, 1970. 1 DVD (110 min).

A Queda. Direção de Ruy Guerra, Brasil: Zoom Cinematográfica, 1978. 1 VHS (120 min).

Era uma Vez... em Hollywood. Quentin Tarantino, Los Angeles: Columbia Pictures, 2019. 1 DVD (161 min).

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