A porosidade territorial na fronteira da Amazônia: as cidades gêmeas Tabatinga (Brasil) e Leticia (Colômbia)*

La porosidad territorial en la frontera de la Amazonía: las ciudades gemelas Tabatinga (Brasil) y Leticia ()

Territorial Porosity on the Amazonian Border: The Twin Cities of Tabatinga () and Leticia (Colombia)

Emerson Flávio Euzébio**

Universidade do Estado do Amazonas, - Brasil

Resumo Resumen Abstract

As relações fronteiriças têm sido Las relaciones fronterizas han sido Different approaches have been used estudadas a partir de diferentes estudiadas a partir de distintos to study border relations. Among abordagens, sendo uma contribuição abordajes, siendo un aporte reciente them, the recent analysis based on recente a análise a partir da porosidade el análisis a partir de la porosidad territorial porosity suggests that border territorial que considera que os fluxos territorial, la cual considera que los flujos flows are the result of the current fronteiriços são consequência da atual fronterizos son consecuencia de la actual globalizing trend. The objective of this conjuntura globalizante. O objetivo da coyuntura globalizante. El objetivo study was to understand the territorial pesquisa foi compreender a dinâmica de la investigación fue comprender la dynamics of the subspace of the twin territorial do subespaço das cidades dinámica territorial del subespacio de cities of Tabatinga (Brazil) and Leticia gêmeas Tabatinga (Brasil) e Leticia las ciudades gemelas Tabatinga (Brasil) (Colombia), on the basis of an analysis (Colômbia) a partir da análise da y Leticia (Colombia), a partir del análisis of the norms and laws regulating the densidade normativa que regula os de la densidad normativa que regula border flows and its impact on the fluxos fronteiriços e seus reflexos no los flujos fronterizos y sus reflejos en economic and social development desenvolvimento econômico e social el desarrollo económico y social de la of the region. The study of the legal da região. A verificação do arcabouço región. La verificación del andamiaje framework governing border flows made jurídico fronteiriço permitiu analisar a jurídico fronterizo ha permitido analizar it possible to analyze the evolution of evolução da porosidade territorial e sua la evolución de la porosidad territorial, territorial porosity, its contribuition to contribuição para o desenvolvimento su aporte al desarrollo regional y a la regional development, and the increased regional e para a aproximação das aproximación de las sociedades vecinas. closeness between neighboring societies. sociedades vizinhas. Palavras-chave: Amazônia, cidades Palabras clave: Amazonía, ciudades Keywords: Amazon region, twin cities, gêmeas, fronteiras, porosidade gemelas, fronteras, porosidad territorial, borders, territorial porosity, Tabatinga territorial, Tabatinga e Leticia. Tabatinga y Leticia. and Leticia.

RECEBIDO: 8 DE NOVEMBRO DE 2012. ACEITO: 16 DE JANEIRO DE 2013. Artigo de pesquisa sobre as relações fronteiriças do subespaço entre as cidades gêmeas Tabatinga (Brasil) e Leticia (Colômbia).

* O presente documento resume alguns dos resultados da pesquisa realizada nos anos 2009, 2010 e 2011, que foi o tema da dissertação de mestrado defendida em fevereiro de 2012, na Universidade de São Paulo, USP (Brasil), sob a orientação da Profa. Dra. Mónica Arroyo. ** Endereço postal: Rua Luiz Manoel n.º 15, apartamento 405, Santana, 90040-390 - Porto Alegre - RS, Brasil. Correio eletrônico: [email protected]

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Introdução rede dentro de uma dinâmica global e de uma comple- mentaridade econômica particular. Nas últimas três décadas a estrutura urbana e popu- Variadas metodologias das ciências sociais vem lacional da Amazônia brasileira sofreu modificações sendo empregadas a fim de analisar as relações fron- significativas. A população urbana passou de 59% para teiriças, cada qual debruçada sobre um viés diferente 79% (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e obtendo resultados diversos. A ciência geográfica, - IBGE 2010) e algumas localidades tornaram-se cida- contudo, tendo por objeto o espaço geográfico, o qual des com mais de 501 mil habitantes. Nesse movimento hoje, muito mais do que em qualquer outra época, rece- destaca-se a centralidade que vem desenvolvendo-se be influências do meio técnico-científico-informacional em torno das cidades gêmeas fronteiriças Tabatinga (Santos [1994] 2008), necessita analisar esses arrola- (Brasil) e Leticia (Colômbia). Em 1980 Tabatinga conta- mentos fronteiriços sob as lentes do presente, isto é, va com 17 mil habitantes e em 2010 alcançou 52 mil, um sob as condições sócio-históricas do século XXI, onde a crescimento populacional da ordem de 131%. Leticia, globalização, de uma forma ou de outra, afeta os luga- por sua vez, também demonstrou características simi- res em qualquer ponto do planeta. lares, em 1985 possuía em torno de 24 mil habitantes e Para os Estados Nacionais, acentuar a porosidade em 2010 aproxima-se dos 40 mil, um acréscimo de 65%, territorial de suas fronteiras faz parte da atual conjun- alcançando juntas nesse mesmo ano 90 mil habitantes. tura econômica globalizante e visa facilitar os fluxos Um aporte populacional de 196% em trinta anos. com o exterior. Esses poros, no entanto, são seletivos, Algo justificável se ao menos fossem cidades com abertos segundo os interesses nacionais e em comun- acesso rodoviário ou situadas próximas a algum centro hão com o mercado. Nenhum laço se estabelece, nen- produtivo dinâmico, mas ao contrário, Tabatinga loca- huma fronteira é ultrapassada sem passar antes pelo liza-se no extremo ocidental da Amazônia brasileira, à crivo atento das legislações aduaneiras, de imigração, margem esquerda do rio Solimões, vizinha à cidade de de segurança alimentar, ambiental, saúde, etc. Trata- Leticia na fronteira com a Colômbia, a 1.105 km por via se, dessa forma, de “uma nova regulação e não de uma aérea a oeste de Manaus e 1.090 km ao sul de Bogotá. desregulação”, termo com o qual se vulgarizou esse Conurbadas (Nogueira 2004), apenas divididas por uma processo. “Um território fluido e poroso é a condição fronteira seca (cidades gêmeas), mantendo uma relação necessária para fazer parte do circuito das finanças do tipo “sinapse” (Machado 2005), juntas constituem mundiais no período atual” (Arroyo 2006, 6). um subespaço particular carregado de singularidades Simultaneamente, o território está cada vez mais em sua dinâmica territorial, considerando os aspectos impregnado de próteses destinadas a aumentar a flui- naturais, econômicos, sociais e culturais. dez, a fim viabilizar o ir e vir das pessoas, dos objetos, Cidades diferentes no que se refere à formação da informação e do capital. Trata-se da fluidez territo- socioespacial (Vargas 1999), porém similares quanto rial, aquela “[...] qualidade dos territórios nacionais que ao processo de ocupação e significação econômica do permite uma aceleração cada vez maior dos fluxos que território baseado na exploração do caucho (Domín- o estruturam, a partir da existência de uma base ma- guez Gómez 1985) – borracha (Menezes 2009; Oliveira terial formada por um conjunto de objetos concebidos 1995), mas, sobretudo em suas relações sócio-histórica [...] para garantir a realização do movimento” (Arroyo de nascença indígena anteriores à existência da própria 2001, 105). Dado que a fluidez técnica do território tor- fronteira e gênese de uma horizontalidade transfron- nou-se um imperativo do período atual (Santos e Silvei- teiriça. Desde os anos de 1980 mudanças expressivas ra [2001] 2010), e diferentemente dos outros períodos de cunho político, econômico e social alteraram a vida de históricos, no atual, a fluidez é um suporte da própria relação e a dinâmica interna e externa do subespaço, de competitividade (Santos [1996] 2009). Assim quanto forma que hoje o lugar estabelece relações verticais em mais relacionado o lugar, quanto mais links estabe- lecer, com maior velocidade e capacidade de tráfego, 1 Dos 62 municípios do Estado do Amazonas (Brasil), até quando mais ascender à posição de “hub” (nó) de co- 2010, somente 8 tinham populações superiores a 50 mil ha- nexões dentro da grande rede global, tanto mais possi- bitantes, e Tabatinga atingiu a sétima posição com 54.440 bilidade terá este lugar de relacionar-se/desenvolver-se habitantes nesse mesmo ano. A capital Manaus possui 1,8 milhões (macrocefálica) e a segunda, , conta com economicamente, e consequentemente mais necessita- apenas 103 mil habitantes. rá de normas.

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Essas próteses, contudo, nesses lugares fronteiriços Entende-se dessa forma, que no atual momento interiores, sobretudo na fronteira amazônica, são cirur- histórico reveste-se de importância maior se verifi- gicamente colocados pelos Estados. E, juntamente com car de perto o ordenamento jurídico regulatório das elas, são estabelecidas as normas necessárias a regular fronteiras e postula-se também que tal variável é de seu uso. As pontes, o comércio, as instituições, o espaço fundamental valor para uma análise geográfica mais urbano, os transportes, enfim, o território e as relações aprimorada de relações territoriais envolvendo frontei- sociais são “regulados” pelas normas, sendo sua legis- ras internacionais. lação e execução, prerrogativa dos governos nacionais Nessa senda, para efeito desse artigo, nos interessa e expressão da existência do limite jurídico do Estado verificar o arcabouço jurídico que regula os fluxos de territorial. Assim, a porosidade do território pode ser mercadorias, ordens e pessoas entre as duas cidades regulada pela ação dos governos, podendo estimular ou fronteiriças no intuito de analisar seus efeitos como desestimular certas atividades econômicas com o exte- instrumento regulador da porosidade territorial da rior, a depender das condições políticas dadas. fronteira e seus possíveis efeitos no desenvolvimento Estes lugares, por estarem situados no limite do cerco econômico e social da região. institucional do Estado, estão regidos por leis federais di- O arcabouço teórico-metodológico empregado para retas de ambos os países. Trata-se de um “muro” jurídico a realização desse trabalho apoiou-se nos seguintes que, segundo suas cláusulas, regulam os fluxos entre os conceitos: formação socioespacial (Santos [1979] 2008), dois lados atuando como poros controladores da fluidez. fluidez territorial (Santos [1994] 2008), porosidade te- Essas regras estão alinhadas às políticas externas dos rritorial (Arroyo 2001), faixa de fronteira e cidades gê- países e as conjunturas globais, regionais e nacionais de meas (Machado 2005; Steiman 2002), horizontalidade, segurança, defesa, comércio exterior, integração, desen- verticalidade, lugar e rede (Santos [1994] 2008; Santos volvimento social, e, ainda, muitas fazem parte de acor- e Silveira [2001] 2010). dos internacionais, e/ou binacionais legados ou recentes. Podemos dizer assim, que a densidade normativa Localização da área de estudo dos territórios é constituída pelo arcabouço legal que regula a circulação de mercadorias, pessoas e infor- As cidades gêmeas de Tabatinga (Brasil) e Leticia (Co- mações e interfere diretamente nas relações econô- lômbia) formam um subespaço urbano conurbado com micas, sociais, culturais e políticas, especialmente de cerca de 90 mil habitantes situado à margem esquerda cidades gêmeas fronteiriças. Assim temos que a porosi- do rio Solimões/Amazonas, na tríplice fronteira Brasil- dade territorial é “[...] aquela qualidade dos territórios Colômbia-, interior da floresta amazônica. Sem nacionais que facilita sua relação com o exterior, a par- acesso rodoviário, localizam-se cerca de 1.000 km dis- tir de uma base institucional incumbida da regulação tantes de seus respectivos centros regionais mais próxi- do movimento” (Arroyo 2001, 143). mos: Manaus e Bogotá, respectivamente (figura 1a e 1b).

COLÔMBIA Bogotá Tabatinga 1,090 Km (Brasil) Leticia Manaus (Colombia) 203 Km 1,105 Km Leticia Tabatinga PERU BRASIL Rio Solimões Rio Amazonas

Rio Marañon (Peru)

Figura 1a e 1b. Localização da área de estudo. Fonte: cedido pela Capitania dos Portos de Tabatinga, adaptado pelo autor.

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Porosidade territorial na fronteira cional. A emenda ao tratado foi aprovada em Caracas, Venezuela, em 1998, permitindo o estabelecimento da A proposta do presente texto é divulgar os resultados Secretaria Permanente da OTCA em Brasília. obtidos através da pesquisa realizada acerca do arcabou- A partir desse alicerce jurídico vêm se consubstan- ço jurídico em vigor que regula a circulação de mercado- ciando novos projetos que envolvem a integração física rias, ordens e pessoas no subespaço Tabatinga-Leticia. da região por meio da expansão das redes técnicas de Buscou-se, para tanto, montar um cenário tal que per- transportes multimodais, comunicações e energia, que mita ser visualizado os macro-fatores que delineiam a vão além dos países panamazônicos. A Iniciativa para porosidade territorial nessa fronteira numa sequência a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana histórica baseada na análise dos documentos legais em (IIRSA), por exemplo, corresponde ao empreendimen- vigor os quais estão a seguir apresentados. to dos doze países sul-americanos em estudar projetos com a finalidade da promoção do desenvolvimento da O Tratado de Bogotá (1907) infraestrutura, de forma a permitir a interconexão físi- e o Lozano-Salomón (1922) ca destes países, composta de 10 eixos de integração e O primeiro marco normativo que afetou ao sub- desenvolvimento (EID) que podem abranger conexões espaço em questão foi o próprio estabelecimento dos fluviais, terrestres ou aéreas, enfim, sistemas de eng- atuais limites internacionais entre os três países limí- enharia voltados para o aumento da fluidez do territó- trofes. O Tratado de Bogotá definiu a linha divisória rio (Ministério do Planejamento, Brasil – IIRSA 2002). entre a Colômbia e o Brasil em 1907. O Tratado Lozano- Interessante verificar como a base normativa contida Salomón de 1922, depois ratificado em 1928, concedeu no TCA e revigorada pela OTCA consolidou uma base ju- o Trapézio Amazônico à Colômbia, estabelecendo os rídica tal sobre a região que hoje representa o alicerce limites entre a Colômbia e o Peru. A partir daí vários fundamental às decisões de investimento para o alarga- acordos foram sendo firmados envolvendo os três paí- mento da fluidez territorial sul-americana. ses vizinhos no sentido de aumentar a porosidade te- rritorial fronteiriça viabilizando maiores fluxos. A área de cooperação aduaneira entre a Colômbia e o Peru é estendida (1982) O Tratado de Cooperação Amazônica No início dos anos 1980, por meio da Lei 17, de 20 e seu fortalecimento de janeiro de 1982, os governos da Colômbia e do Peru O Tratado de Cooperação Amazônica — doravante resolveram ampliar o território a que se aplicava o Con- TCA, vigente desde 1978, mesmo não tendo sido de gran- vênio de Cooperação Aduaneira firmado em 1938. Na de poder de dissuasão, foi representativo por ocasião Colômbia o território passou a compreender desde a da Declaração Amazônica (1989) quando se manifestou área da Comissaria Especial del Amazonas e a Intendéncia em defesa dos países amazônicos diante das intenções Nacional del Putumayo, e no Peru o território dos Depar- ventiladas na Cúpula de Haia (1989), que postulava a tamentos de Loreto, San Martin e Ucayali. Estabeleceu criação de uma entidade supranacional para adminis- ainda que os governos pudessem criar portos livres, zo- trar a questão ambiental amazônica, e da mesma forma nas francas e outros regimes aduaneiros mais favoráveis na 2ª Declaração de Manaus (1992), quando se anteci- aos que foram antes acordados (Ministerio de Relaciones pando à Rio-922, pronunciou-se em tom uníssono dian- Exteriores y Ministerio de Hacienda y Crédito Público 1982). te da problemática ambiental amazônica. Por meio desse documento foram exonerados total- Em 1995, os Ministros do Exterior dos países mem- mente os gravames de produtos importados de qual- bros reuniram-se em Lima, Peru, e acordaram em criar quer origem ou procedência e isenção de impostos para a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica qualquer produto destinado ao uso e consumo nos te- — doravante OTCA com o intuito de fortalecer insti- rritórios assinalados, permanecendo as regras relativas tucionalmente o TCA dando-lhe personalidade interna- ao protocolo aduaneiro de mercadorias, pessoas e baga- gens, assinado em 1938. Desde o final do Conflito de Leticia (1934), o Peru e 2 Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), realizada entre 3 e 14 de junho a Colômbia estabeleceram vínculos normativos volta- de 1992 no Rio de Janeiro, Brasil. dos para aumentar a porosidade de suas fronteiras no

UNIVERSIDAD NACIONAL DE COLOMBIA | FACULTAD DE CIENCIAS HUMANAS | DEPARTAMENTO DE GEOGRAFÍA A porosidade teritorrial na fronteira da Amazônia: as cidades gêmeas Tabatinga (Brasil) e Leticia (Colômbia) 113 sentido de fomentar o comércio e melhor atender suas tributária em torno de 40% a 65%. Os benefícios fiscais populações que vivem nessa distante região da flores- estendem-se ainda a tributos federais podendo signi- ta amazônica. Populações estas, predominantemente ficar uma redução de até 9,25% no preço de custo das indígenas, agrícolas e ribeirinhas que desenvolvem mercadorias, e estas, quando destinadas ao consumo, atividades econômicas de subsistência e vivem prati- venda ou industrialização em Áreas de Livre Comércio, camente isoladas, à margem dos rios, ou em pequenos ficam também isentas do Imposto de Importação e do povoados em um nível pré-técnico, caracterizado por Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). tempos lentos (Santos e Silveira [2001] 2010). A Área de Livre Comércio de Tabatinga — doravante Em alguns lugares, porém, onde a atividade gomífe- ALCT, criada em 22 de dezembro de 1989, através da Lei ra teve maior repercussão econômica, núcleos urbanos 7.965, originou-se dos trabalhos nascidos do subprojeto novos ou pré-existentes desenvolveram-se originando Piloto Tabatinga, elaborado pela Secretaria de Assesso- cidades. Iquitos, no Peru, por exemplo, fundada em 1757, ramento de Defesa Nacional, inserido no contexto do torna-se município em 1866, situada à margem esquerda Projeto Calha Norte e pelo Ministério do Interior. O do rio Amazonas, próximo à confluência com o rio Napo, Plano Modelo Tabatinga-Apaporis desenvolvido con- 245 km a oeste de Tabatinga e Leticia, foi um desses nú- juntamente com o Governo colombiano, de acordo com cleos que conta hoje com uma população superior a 400 a diretriz do Governo brasileiro de humanizar a faixa mil habitantes, sendo a capital da Amazônia Peruana. de fronteira e de buscar a fixação do homem na região evitando o fluxo migratório SUFRAMA( 2009). As áreas de livre comércio brasileiras A ALCT constitui-se em uma área de livre comércio buscam promover as cidades fronteiriças de importação e exportação com regime fiscal especial O governo brasileiro a partir de 1989 por meio de tendo a finalidade de promover o desenvolvimento leis federais reconheceu algumas cidades amazôni- da região de fronteira do extremo oeste do Estado do cas como Áreas de Livre Comércio — doravante ALC e Amazonas. Territorialmente ficou situada à margem concedeu benefícios fiscais a territórios que formam esquerda do rio Solimões e sua área envolve o períme- a Zona Franca de Manaus — doravante ZFM, os quais tro urbano da cidade de Tabatinga e integrando a faixa foram sendo gradativamente estendidos a outras cida- de superfície dos rios adjacentes nas proximidades de des da região amazônica sob a forma de Áreas de Livre seu porto observadas as disposições, Tratados e Con- Comércio. venções Internacionais. O regime jurídico-tributário da ZFM foi sendo re- Tais privilégios foram concedidos a produtos en- plicado em várias outras unidades, denominadas ALCs, trados pelo porto, aeroporto ou posto de fronteira da que passaram a ficar sob a tutela da Superintendência cidade de Tabatinga, exigida consignação nominal ao da Zona Franca de Manaus — doravante SUFRAMA, importador estabelecido na ALCT. As mercadorias pro- como órgão fiscalizador da adequação das atividades cedentes da Área de Livre Comércio no que se refere aos produtivas aos requisitos legais necessários ao gozo dos produtos de origem estrangeira passaram a ser desem- incentivos fiscais (Pontes 2009). baraçadas3 com isenção de tributos, observado o limite Além da Zona Franca de Manaus, a cidade de Taba- estabelecido pela ZFM. Armas e munições, perfumes, tinga foi a primeira Área de Livre Comércio (1989); e fumos e seus derivados, bebidas alcoólicas, automóveis nos anos seguintes as cidade de Guajará-Mirim no Es- de passageiros e bens finais de informática não foram tado de Rondônia; Brasiléia e Cruzeiro do Sul no Acre; incluídos no benefício fiscal. no Estado de Roraima, a capital Boa Vista e Bonfim; e Qualquer atividade de exportação de produtos da no Amapá, as cidades de Macapá e Santana. Essas ALCs Área de Livre Comércio de Tabatinga ficou isenta de estão submetidas a um regime tributário privilegiado imposto de exportação e a Secretaria da Receita Federal que favorece o comércio e a indústria, sendo instituídas (SRF) foi encarregada da vigilância das áreas territoriais e regidas por Leis Federais. limites das ALCT, assim como a repressão ao contraban- No que concerne ao Imposto sobre Circulação de do sem prejuízo da competência da Polícia Federal (PF). Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), as ope- rações praticadas por empresas situadas nas Áreas de 3 Designação dada para o trâmite administrativo de liberação Livre Comércio podem obter uma redução final de carga de mercadorias na alfandega.

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As unidades especiais de desenvolvimento o perímetro urbano da cidade de Leticia como uma fronteiriço colombianas (1995) Unidade Especial de Desenvolvimento Fronteiriço, por A mais recente Constituição colombiana promulgada meio do Decreto 2.685 de 28 de dezembro de 1999. Isso em 1991 contemplou o tema das fronteiras nacionais de trouxe uma nova dinâmica econômica à localidade. Pos- forma a possibilitar estratégias para a promoção de seu teriormente em 29 de junho de 2000, o Decreto 1.198, desenvolvimento econômico, integração com o territó- alterou o artigo 459 do Decreto anterior, passando este rio nacional e articulação com os países vizinhos, assim a ter o texto que segue: como concedeu autonomia aos Estados (Departamentos) Artículo 459: Zona de Régimen Aduanero Especial. El fronteiriços a estabelecer acordos binacionais (dentro de régimen aduanero especial establecido en este Título se certos critérios)4 voltados para a melhoria das condições aplicará exclusivamente a las mercancías que se importen de vida e inclusão social dessas comunidades isoladas. por el Puerto de Leticia, el Aeropuerto Internacional Vás- Nesse direcionamento, quatro anos mais tarde, em quez Cobo y el paso de frontera entre Brasil y Colombia 1995, a Colômbia instituiu através da Lei 191, “Ley de sobre la Avenida Internacional, en el Departamento del Fronteras”, as Unidades Especiais de Desenvolvimento Amazonas, para consumo o utilización en el municipio de Fronteiriço — doravante UEDF nos mesmos moldes do Leticia. regime jurídico-territorial denominado pelo governo brasileiro de Áreas de Livre Comércio. Para o governo Essa legislação relativa à Unidade Especial de Des- colombiano esse regime especial seria concedido: envolvimento Fronteiriço foi sendo aprimorada pelo Aqueles municípios, localidades especiais e/ou áreas governo central colombiano nos anos seguintes no metropolitanas localizadas em áreas de fronteira, nos sentido de melhorar sua eficiência e de se adaptar às quais se torna indispensável que sejam criadas condições realidades específicas de cada Unidade. especiais para o desenvolvimento econômico e social me- A exemplo disso, no que se refere aos combustí- diante a facilitação da integração com as comunidades veis, o artigo 100 da Lei 488, de 1998, permitiu que fronteiriças e/ou os países vizinhos, o estabelecimento governadores de Departamentos pudessem celebrar das atividades produtivas, o intercâmbio de bens e ser- contratos de concessão de petróleo para distribuição viços, e a livre circulação de pessoas e veículos. (Ministerio de combustíveis importados de países vizinhos para o de las Relaciones Exteriores 1995) consumo em Zonas de Fronteira e Unidades Especiais de Desenvolvimento Fronteiriço. E da mesma forma, A esse respeito Rodriguez quando se referindo a Ley para os veículos, em 17 de fevereiro de 2005, o governo de Fronteras e as UEDFs, cita que estas têm por finali- colombiano por meio do Decreto 400, regulamentou as dade o: condições para a internação de veículos, motocicletas e Desarrollo económico y el bienestar social de las zo- embarcações fluviais aos residentes nas Unidades Espe- nas fronterizas y una mayor integración con sus inmedia- ciais de Desenvolvimento Fronteiriço (Ministerio de las tos vecinos. [Incluyendo] la protección de los Derechos Relaciones Exteriores et al. 2005). Humanos; el fortalecimiento de la infraestructura; la pre- servación y el aprovechamiento de los recursos naturales; A zona de regime especial fronteiriço […] la creación de incentivos económicos para nuevas para Tabatinga e Leticia (2008) empresas; […] con el fortalecimiento de las entidades te- Em maio de 2008 o governo brasileiro propôs a rritoriales y de los organismos del estado que actúan en criação da Zona de Regime Especial Fronteiriço — do- las zonas fronterizas. (Rodriguez 1997, 7) ravante ZREF para as Localidades de Tabatinga (Brasil) e Leticia (Colômbia). Segundo a proposta, o ingresso e Consubstanciada na Constituição e na Lei 191, de saída de mercadorias ou produtos para consumo não es- 1995, que instituiu as UEDFs, em 1999, Bogotá incluiu tariam sujeitas a registro ou a declaração de importação ou exportação, bastando estas estarem acompanhada 4 Os documentos oficiais colombianos contemplam uma pau- de fatura ou nota fiscal emitida por estabelecimento ta de temas sobre os quais a Embaixada Colombiana em comercial, tal regime beneficiaria os moradores de Ta- Tabatinga pode estabelecer convênios e acordos de peque- batinga e Leticia que poderiam adquirir produtos para no porte com o país vizinho, nesse caso, Tabatinga (Brasil), dentre esses temas estão assuntos relativos à educação, saú- uso familiar sem embaraços com os tributos. O acordo de, segurança pública, transporte e outros. foi celebrado em 19 de setembro de 2008, em Bogotá,

UNIVERSIDAD NACIONAL DE COLOMBIA | FACULTAD DE CIENCIAS HUMANAS | DEPARTAMENTO DE GEOGRAFÍA A porosidade teritorrial na fronteira da Amazônia: as cidades gêmeas Tabatinga (Brasil) e Leticia (Colômbia) 115 aprovado pelo senado colombiano em 8 de junho de cidade do Panamá (Panamá) e/ou Miami (EUA), ou na- 2010 (Ley 196), ratificado pelo governo brasileiro em cionais na Colômbia, como os San Andresitos de Bogotá. 20 de maio de 2010, e segue em tramitação interna na Essa especialização, ainda que possa ser reduzida em Colômbia. A ZREF (2008) veio mais formalizar o que já volume ao se comparar com qualquer outra cidade co- acontecia “ilegalmente” entre as duas cidades gêmeas lombiana mais próxima tida como polo regional, acon- fronteiriças, desburocratizando e legalizando o funda- teceu num período pouco maior que uma década. Em mental comércio transfronteiriço para o consumo in- outras palavras, a UEDF de Leticia tem sido eficiente terno das cidades. e correspondido ao que se propôs e na mesma medi- da tem viabilizado o aumento das relações econômicas A espacialização das normas que com Tabatinga aproveitando-se da complementaridade regulam os fluxos na tríplice fronteira histórica dessas relações. A inclusão de Leticia como Unidade Especial de Esse movimento de adaptação rápida da socie- Desenvolvimento Fronteiriço em 1999, apesar de ter dade local de Leticia às novas tecnologias e possibili- ocorrido 10 anos depois de Tabatinga (1989) ter sido con- dades comerciais inauguradas no final da década de siderada Área de Livre Comércio, formalizou de direito a 1990 demonstra uma psicosfera desenvolvida e apta a relação comercial complementar que já acontecia de fato acompanhar a velocidade da dinâmica do meio técnico- entre as duas cidades vizinhas e trouxe ao território de científico-informacional. Isso é no mínimo curioso, ao Leticia nova dinâmica econômica. Essa inclusão associa- se considerar a situação de isolamento vivido pelos leti- da a uma série de outras modificações de ordem jurídica cianos, ou ao se comparar com o que aconteceu na cida- realizada a partir de 1991, definitivamente mudaram a de brasileira vizinha, onde num período quase o dobro realidade social daquela cidade longínqua no extremo deste, o mesmo não aconteceu. sul do Departamento do Amazonas colombiano. Ao compararem-se as importações para as duas áreas Profundas mudanças de ordem políticas ocorreram de livre comércio (Tabatinga e Leticia) o cenário é contra- na Colômbia a partir do início dos anos 1990, tendo por ditório. Tabatinga constituiu-se em ALC dez anos antes marco inicial a Constituição de 1991. É no bojo dessa de Leticia e apenas em 2010, por incentivo e orientação nova ordem política que Leticia definitivamente recu- da Seção da Secretaria da Receita Federal local, abriu o pera-se do domínio do narcotráfico e se instituciona- primeiro escritório privado de despacho aduaneiro, en- liza com o aporte de fortes investimentos do governo quanto em Leticia já existiam duas empresas locais pri- central colombiano onde se inclui o Plano Colômbia vadas estabelecidas para esse fim e duas empresas de associado a fortes ações militares na região e o revigo- despacho de cargas aéreas também privadas. A figura ramento dos meios técnicos de fluidez. seguinte apresenta um mapa do componente normativo Essa nova normatização territorial em pouco tem- que envolve os três países fronteiriços regulando a poro- po fez com que se intensificassem as importações por sidade territorial entre os mesmos, e em especial, a do parte dos comerciantes leticianos. Essas importações, subespaço Tabatinga-Leticia (figura 2). fiscalizadas pela Dirección de Impuestos Aduaneros Na- A esse respeito, em entrevista realizada com o ins- cionales — doravante DIAN, Seção de Leticia, visavam petor da seção da Receita Federal em Tabatinga, Sr. não apenas ao abastecimento da cidade de Leticia e Claudio D. P. Bastos, o mesmo demonstrou espanto e arredores, mas, em grande parte, reforçar o comércio não soube explicar porque a ALCT, mesmo existindo há com os tabatinguenses. Nesse sentido, uma parte das mais de 20 anos (desde 1989), ainda os tabatinguenses importações passou a incluir bens de consumo envol- não importam ou exportam por Tabatinga, enquanto vendo mercadorias de alto valor agregado como ele- os leticianos vêm se especializando nesse ramo. Tal si- troeletrônicos, computadores, notebooks, máquinas tuação vai de encontro à afirmativa de Pontes (2009, fotográficas digitais, perfumes, brinquedos sofisti- 14) de que é “[...] extremamente atraente para qual- cados, em sua maior parte de marcas consagradas no quer empresário do ramo comercial instalar-se em uma mercado mundial e principalmente estadunidense. Área de Livre Comércio pela considerável redução de Pode-se dizer, assim, que os comerciantes leti- carga tributária de ICMS5 que sofrerão as aquisições de cianos aproveitaram o favorecimento da legislação e especializaram-se na importação a partir de outras 5 Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Áreas de Livre Comércio, sejam internacionais, como a Serviços.

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VENEZUELA

COLÔMBIA

Putumayo

BRASIL ECUADOR Amazonas

Leticia (CO) UEDF-1995 (CO) Santa Rosa (PE) CCAPC-1982 (CO-PE) Loreto ZREF-2008 (CO-BR)

Tabatinga (BR) ALCT-1989 (BR) San Martín

Legenda PERU Ucayali CCACP Convenio de Cooperação Aduaneira (CO-PE) ALCT Área de Livre Comércio deTabalinga (BR) UEDF Unidade Especial de Desenvolvimento de Fronteira (CO) ZREF Zona de Regime Especial de Fronteira (CO-BR)

Figura 2. Espacialização das normas que regulam os fluxos fronteiriços. Dados: Brasil 2008; 2009; Colômbia 1938; 1982.

mercadorias por ele realizadas [...]”, e lembra as pala- Informou, ainda, que para a Colômbia seria interes- vras de Becker ([2004] 2009, 62) “a Área de Livre Co- sante estender essa Área de Livre Comércio até Manaus mércio de Tabatinga só existe no papel”. pelo rio Solimões. Vemos aí uma nítida posição de quem Da mesma forma, no intento de compreender a enxerga plenamente o significado da norma territorial aludida situação realizamos uma entrevista com o Sr. para Leticia e demonstra disposição de investir mais no Pablo S. Lima Pena, funcionário da DIAN, especialista proveito de seu país. A respeito do convênio Colômbia- da Escola de Administração Pública de Colômbia. A res- Peru considerou que “basicamente a relação é limitada peito do regime tributário vigente em Leticia, declarou: às compras de produtos peruanos para o abastecimen- Pode-se afirmar que não fosse isso, Leticia não seria to de Leticia nas mesmas condições aduaneiras”, (taxa como é. Tabatinga e Leticia têm uma excelente relação de importação zero) e que muitas mercadorias de ne- econômica, complementar e harmônica, institucional em cessidades básicas (alimentos e remédios) entram em todos os níveis, comparativamente ao comércio com o Leticia ilegalmente pelo Peru por falta de estrutura das Peru, é muito superior, pois as relações são formais e le- instituições de fiscalização peruanas no Amazonas. gais, em saúde, educação, laser, sociedade e enfim. (2009, Essa contradição nos faz refletir sobre o fator his- tradução nossa) tórico e social envolvido nessas relações horizontais

UNIVERSIDAD NACIONAL DE COLOMBIA | FACULTAD DE CIENCIAS HUMANAS | DEPARTAMENTO DE GEOGRAFÍA A porosidade teritorrial na fronteira da Amazônia: as cidades gêmeas Tabatinga (Brasil) e Leticia (Colômbia) 117 do território, desprezado pelos redatores dos docu- na nova legislação está uma atenção especial voltada mentos mencionados, para os quais o território pare- para a Amazônia, a Faixa de Fronteira e a relação com ce ser considerado algo regular, sem particularidade, os países fronteiriços sul-americanos. sem identidade, como se a generalização fosse possí- vel. O que a situação vivida nesse subespaço trás a luz A política de defesa nacional é exatamente o contrário, corroborando com Milton concentra-se na Amazônia Santos ([2000] 2010, 80) quando defende que: “[…] o Em 30 de junho de 2005, o Decreto 5.484, aprovou território não é um dado neutro nem um ator passi- a PDN, “voltada, preponderantemente, para ameaças vo”, quanto ao valor do lugar. Nesse sentido, se faz ne- externas”, com a finalidade de estabelecer os objetivos cessário a compreensão profunda das especificidades e as diretrizes da Defesa Nacional envolvendo o setor dos lugares, especialmente quando se trata de cidades militar, civil em todas as esferas institucionais. A Polí- gêmeas na faixa de fronteira da Amazônia ocidental. tica posiciona-se como de interesse da sociedade bra- Senão a eficiências das políticas serão sempre peque- sileira, em consonância com a política externa do país nas conformando desperdício. na busca de soluções pacíficas às divergências, fortale- Há de se considerar que Leticia tem tradição no cimento da paz e convoca a todos os brasileiros a nela transporte aéreo de cargas. Contudo, Tabatinga também se envolver por dever. tem tradição no transporte fluvial, e da mesma forma, os Percebe-se um avanço conceitual no que se refere dois municípios têm influência da cultura indígena em ao tratamento do tema, assim como um salto qualitati- sua composição social. Todavia, parece isso não justificar vo institucional quanto à matéria de Defesa Nacional, a melhor adaptação dos leticianos a dos tabatinguenses que passa a estar harmonizada com a política, econo- às novas condições normativas de porosidade territo- mia, integração nacional, instituições e busca uma rial. Ou, visto pelo lado do Estado, a pouca eficiência da aproximação com a sociedade. Parece-nos um novo pa- ALCT comparativamente à UEDF no que diz respeito ao radigma, na medida em que assume uma postura trans- desenvolvimento do comércio internacional e aprovei- parente de amplo diálogo social e articulação entre as tamento dos benefícios fiscais para o lugar. esferas do poder público. Nesse sentido, o próprio en- A busca de respostas nos remete a encontrar a ex- tão Ministro da Defesa, Nelson Jobim afirmou que a plicação nas diferentes formações socioespaciais das Estratégia “tem horizonte para 50 anos” e justificou sociedades envolvidas e aceitar que essas também que nos primórdios a segurança estava circunscrita às desenvolveram diferentes psicosferas, e, logo, a de- questões de confrontação, mas, à medida que a socie- pender disso, a adaptabilidade das comunidades lo- dade se desenvolve, novas exigências foram agregadas, cais às novas condições são diferenciadas. Cada lugar assim urgia a necessidade de atualização da Política de é afetado diferentemente pelas ações e pelo movimen- Defesa Nacional brasileira. to da história, estando relacionado à sua configuração territorial, sua existência material e a existência social A Estratégia Nacional de Defesa que o anima, ou seja, “sua existência real, somente lhe (2008): defesa e desenvolvimento é dada pelo fato das relações sociais” (Santos [1996] Regulamentando a Política de Defesa Nacional, o 2009, 62). Decreto 6.703, de 18 de dezembro de 2008, aprovou a Estratégia Nacional de Defesa (END). Segundo a jus- As fronteiras e a política tificativa da proposta apresentada “O Brasil desfruta, de defesa nacional brasileira a partir de sua estabilidade política e econômica, uma no início do século XXI posição de destaque no contexto internacional, o que exige uma nova postura no campo de Defesa” (Ministé- A legislação de Defesa Nacional vem passando por um rio da Integração Nacional 2008, 4). importante revigoramento desde 2005, quando foi ins- Segundo o documento, “a Estratégia Nacional de tituída a nova Política de Defesa Nacional — doravante Defesa é inseparável da estratégia nacional de desen- PDN. Desde então vem recebendo atenção especial do volvimento. Esta motiva aquela. Aquela fornece escu- governo brasileiro e verifica-se uma nova abordagem do para esta. Cada uma reforça as razões da outra. Em e postura diante da conjuntura econômica e política ambas, se desperta para a nacionalidade e constrói-se mundial, especialmente na América Latina. Embutido a Nação” (Ministério da Integração Nacional 2008, 8).

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A Estratégia encarna uma tese central que conjuga O Livro Branco de Defesa Nacional defesa e desenvolvimento: “Projeto forte de defesa (2010): abra-se o diálogo favorece projeto forte de desenvolvimento”, baseada O LBDN seria um veículo de diálogo entre o Esta- em quatro princípios: independência nacional; apro- do brasileiro, a sociedade nacional, e os demais países veitamento da poupança estrangeira, sem dela de- e interessados no que se refere à Defesa. Recentemen- pender; capacitação tecnológica e autônoma do setor te, em julho de 2012, o atual ministro da Defesa, Celso estratégico; e, independência nacional, “assegurada Amorim, entregou ao presidente do Congresso Nacio- pela democratização de oportunidades educativas e nal brasileiro, as versões preliminares do Livro Branco econômicas e pelas oportunidades para ampliar a par- de Defesa Nacional e as atualizações da Política Nacio- ticipação popular nos processos decisórios da vida po- nal de Defesa (2005) e da Estratégia Nacional de Defesa lítica e econômica do país” (Ministério da Integração (2008). Será o LBDN um documento público inédito no Nacional 2008, 8-9). país, atualizado a cada quatro anos, que já é publicado Da análise das diretrizes da Estratégia, fica explíci- por vários países do mundo voltado a dar transparên- to a priorização da região amazônica, seguido da faixa cia às políticas de defesa das democracias contemporâ- de fronteira bem como das relações com os países li- neas. Os trabalhos para sua elaboração iniciaram-se no mítrofes. Entre as diretrizes, destacamos: o reposicio- início de 2011 e o tema foi discutido em seminários pú- namento do efetivo das três Forças Armadas voltados blicos realizados em várias cidades brasileiras. para a região norte; o adensamento da presença mi- Para o Ministro da Defesa, o LBDN: litar nas fronteiras com o caráter de vigilância e dis- Será uma oportunidade para que a sociedade civil suasão; e, o fortalecimento da capacidade logística na aprofunde seus conhecimentos sobre os temas militares Amazônia. No que se refere ao caráter geopolítico da e passe a compreendê-los num contexto mais amplo, à Amazônia o documento diz que: luz das diretrizes da Estratégia Nacional de Defesa. [...] A defesa da Amazônia exige avanço de projeto de des- O LBDN almeja ser um catalisador da discussão sobre os envolvimento sustentável e passa pelo trinômio monito- temas de Defesa no âmbito da academia, da burocracia ramento/controle, mobilidade e presença [...] O Brasil federal e do parlamento e também um mecanismo de será vigilante na reafirmação incondicional de sua so- prestação de contas sobre a estrutura de Defesa e os obje- berania sobre a Amazônia brasileira e [...] repudiará [...] tivos do poder público para o setor no país. qualquer tentativa de tutela [...]. Quem cuida da Amazô- nia brasileira, a serviço da humanidade e de si mesmo, Entre os assuntos abordados pelo Livro Branco e es- é o Brasil. (Ministério da Integração Nacional 2008, 14) tabelecidos pela Lei Complementar 136, de 25 de agosto de 2010, estão: o cenário estratégico para o século XXI; a Como citado, o desenvolvimento sustentável pas- política nacional de defesa; e as operações de paz e aju- sa a configurar-se na Amazônia, como instrumento de da humanitária (Presidência da República Brasil 2011c). defesa nacional no que se refere à regularização fun- O documento não faz referência específica à Amazônia, diária, e uma das formas de execução das ações na re- no entanto, por se tratar de um veículo de divulgação gião será o fortalecimento do Programa Calha Norte tanto da Política de Defesa Nacional, como da Estra- — doravante PCN (Ministério da Integração Nacional tégia Nacional de Defesa, o temas das fronteiras e da 2008, 45). No que concerne à “vivificação e desenvol- Amazônia estarão intrínsecos. vimento” da faixa de fronteira, o instrumento de ação seria o Programa de Desenvolvimento da Faixa de O Programa Calha Norte (2004): as novas Fronteira (PDFF) associado ao estreitamento da coope- vertentes e a ampliação do escopo ração entre os países vizinhos da América do Sul visto No sentido da execução da Estratégia de Defesa na como entorno estratégico. Outra novidade embutida região norte, o Programa Calha Norte será o instru- nessa reformulação da Defesa é a postura que toma mento mediador das ações, por ser um programa já quanto à transparência de sua gestão, bem como a in- consolidado há mais de 25 anos. O Projeto Calha Norte clusão da participação da sociedade em sua execução. foi concebido no início dos anos 1980 na fase da aber- Nessa direção apresenta-se o Livro Branco de Defesa tura democrática e instituído pelo governo federal em Nacional — doravante LBDN. dezembro de 1985; esteve vinculado a diversos órgãos

UNIVERSIDAD NACIONAL DE COLOMBIA | FACULTAD DE CIENCIAS HUMANAS | DEPARTAMENTO DE GEOGRAFÍA A porosidade teritorrial na fronteira da Amazônia: as cidades gêmeas Tabatinga (Brasil) e Leticia (Colômbia) 119 federais ligados à Presidência da República desde 1999 O PCN continua a ser em grande parte responsável e está subordinado ao Ministério da Defesa. Tem por pela presença do Estado brasileiro na Amazônia seten- objetivo promover a ocupação e desenvolvimento or- trional através das Forças Armadas, tanto nas ações denado e sustentável da região norte. Logo que foi voltadas à infraestrutura como nas sociais de atendi- concebido tinha a Segurança Nacional como principal mento às tribos indígenas e comunidades ribeirinhas vertente, e visava maximizar a ocupação estratégica (Becker [2004] 2009). Quanto à defesa e manutenção da imensa área de fronteira norte (Ribeiro 2006). Hoje das fronteiras, o Programa mantém sua missão de au- “busca contribuir para a manutenção da Soberania xiliar na provisão de meios para a manutenção dos já Nacional, da integridade territorial da região da calha existentes e a instalação de novo Pelotões Especiais de norte e contribuir para a promoção do desenvolvimen- Fronteira. A esse respeito, foi divulgado recentemente, to regional” (Ministério da Defesa 2011, 4). em junho de 2011, o projeto de construção de novos Inicialmente tinha uma abrangência espacial cir- Pelotões na região de fronteira da Amazônia. cunscrita aos municípios do arco norte, situados entre (Tabatinga-AM) e o rio Oiapoque (AP) e a orla ribei- O Programa de Desenvolvimento rinha dos rios Solimões, Amazonas e seus afluentes, da Faixa de Fronteira (2008) incluindo a hinterlândia das terras entre esses dois li- abre os poros da fronteira mites. Em 2004 o Projeto foi reestruturado e transfor- brasileira mado em Programa, sua área de atuação foi ampliada para 194 municípios, 95 dos quais situados na Faixa de O segundo instrumento de ação vinculado à Estratégia Fronteira, em seis Estados da Federação (Acre, Amapá, Nacional de Defesa voltado para a faixa de fronteira que Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima), corresponden- inclui o arco norte da Amazônia é o Programa de Des- do a 32% do território nacional. envolvimento da Faixa de Fronteira — doravante PDFF, Após sua reestruturação, em 2004, passou a receber o qual faz referência à necessidade do estreitamento da verbas maiores e assumiu além da “vertente militar”, cooperação entre os países vizinhos da América do Sul que corresponde à “Manutenção da Soberania e Inte- para o desenvolvimento dessa faixa. gridade Territorial”, a “vertente civil”, que se refere ao O PDFF foi relançado em 2008 e concebe uma nova “Apoio às Ações de Governo na Promoção do Desenvol- “mentalidade no tocante às fronteiras, que não podem vimento Regional” (Ministério da Defesa 2007, 2). Essa mais ser entendidas como áreas longínquas e isoladas, e “vertente civil” voltada ao desenvolvimento local vem sim como uma região com a singularidade de estimular sendo realizada através de convênios com as prefeituras processos de desenvolvimento e integração regional” e envolve sete áreas temáticas de atuação: infraestrutu- (Ministério da Integração Nacional 2008, 2). Entende ra social; infraestrutura de transportes; infraestrutura o novo Programa que “As faixas contíguas dos países econômica; viaturas, máquinas e equipamentos; espor- fronteiriços apresentam vantagens comparativas para tes; educação e saúde e segurança e defesa. provocar o fortalecimento regional, a partir de caracte- O PCN ao longo desses mais de 25 anos tornou-se rísticas políticas e propósitos comuns” (Ministério da um dos principais responsáveis pela instalação dos Integração Nacional 2008, 3). sistemas de engenharia (fixos) básicos nas áreas mais O objetivo principal do PDFF é promover o desen- inóspitas e distantes da Amazônia brasileira, realizados volvimento da Faixa de Fronteira por meio da implan- através das Forças Armadas. Ao redor desses pontos tação de uma estruturação física, social e produtiva, isolados têm se desenvolvido pequenos núcleos urba- com ênfase no aproveitamento das potencialidades lo- nos e contribuindo assim para o desenvolvimento so- cais e na articulação com os países vizinhos. A grande cial e a integração nacional. É possível prever que esses inovação desta política refere-se à abordagem dirigida pontos de “luz” venham a se desenvolver em cidades aos espaços sub-regionais, buscando a dinamização como Tabatinga, que também teve seu embrião urba- econômica destes, através do fornecimento de infraes- no fecundado numa colônia militar. Essa nova situação trutura econômica e social e a melhoria nas condições bem demonstra ao que Becker (1994, 46) se referiu ao de cidadania por meios dos atores locais e o aproveita- dizer que a “fronteira atual já nasce urbana, como uma mento das peculiaridades e potencialidades dos Arran- estratégia de ocupação utilizada pelo Estado”. jos Produtivas Locais (APL).

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A abrangência territorial do Programa envolve toda Comissão de Integração Brasil-Colômbia a Faixa de Fronteira brasileira, caracterizada geografi- e os Comitês de Fronteira (2008) camente por uma faixa de 150 km de largura ao lon- Dentro do contexto dessa nova política, a Comissão go dos 15.719 km de extensão de fronteira terrestre de Integração Brasil-Colômbia instituída em novembro brasileira, abrangendo 11 Estados, 588 municípios e de 1993 está sendo revigorada e alcançou um novo pa- reunindo aproximadamente 10 milhões de habitantes tamar político, assim como os Comitês de Fronteira, (Ministério da Integração Nacional 2008, 11). como já foi colocado anteriormente. A Comissão de In- A nova estratégia voltada para a mudança do pa- tegração Brasil-Colômbia representa o principal foro de drão de intervenção observado nas últimas décadas discussão dos temas fronteiriços entre os países. Reu- reúne: respeito à diversidade regional; associação da niu-se pela primeira vez em Leticia em 1994 e mantém soberania com uma perspectiva de desenvolvimento e reuniões anuais em nível de Vice-Chancelarias, sendo integração da América do Sul; fortalecimento das con- a última reunião realizada em 18 a 19 de novembro de dições de cidadania da população local e organização 2010 em Bogotá. Entre os últimos acordos realizados da sociedade civil; e, articulação do programa com a ou em desenvolvimento, podemos destacar: nova Política de Desenvolvimento Regional (Ministé- Em execução, o ensino de português e espanhol na rio da Integração Nacional 2008). fronteira, em vigor de 2005, que permite professores A estratégia de implementação do PDFF segue três brasileiros ministrarem língua portuguesa nas escolas linhas de ação: desenvolvimento integrado das cidades de Leticia e vice-versa. Em fase de tramitação final, a gêmeas; articulação das prioridades com o desenvolvi- Zona de Regime Especial Fronteiriço para as localida- mento das mesorregiões prioritárias dos programas de des de Tabatinga e Leticia, assinada em setembro de desenvolvimento regional; e, melhoria das condições 2008 na ocasião da XI reunião da Comissão de Vizin- econômicas, sociais e de cidadania das sub-regiões con- hança, tendo sido aprovado pelo Congresso Nacional tidas na Faixa de Fronteira. brasileiro em maio de 2010, aguarda a tramitação bu- Dentre as três linhas de ação postuladas no Programa, rocrática na Colômbia para se efetivar. O regime busca destacamos a primeira, devido a sua relevância corres- aumentar a porosidade territorial no subespaço crian- pondente ao nosso objeto de estudo. Essa linha de ação do condições normativas que favoreçam o aumento da estipula como prioridade o desenvolvimento integrado fluidez por meio da flexibilização dos procedimentos das cidades gêmeas, baseado nas potencialidades locais aduaneiros. que configuram como oportunidades para fortalecer Em fase de elaboração: temos: o Acordo para a per- processos de integração social e institucional em bases missão de residência, estudo e trabalho aos nacionais supranacionais, onde são enumeradas cinco cidades gê- fronteiriços, que visa exatamente facilitar residência, meas prioritárias, sendo Tabatinga-Leticia as primeiras. estudo e trabalho as pessoas daquele subespaço. Pro- Em função da necessidade fundamental de estabele- posta realizada nos moldes do vigente na fronteira com cer acordos com os países vizinhos, o Programa reserva o Uruguai, que concede carteira aos cidadãos frontei- uma vertente internacional articulada pelo Ministério riços. O Acordo foi assinado em setembro de 2010 em das Relações Exteriores destinada a atender necessi- visita do Presidente Juan Manuel Santos ao Brasil; o dades de acordos bi/multilaterais, assim como prevê a Acordo para formação profissional na fronteira. Um criação e/ou fortalecimentos dos Comitês de Fronteira projeto do Serviço Nacional de Aprendizagem Indus- (CF) destinados a identificar e estabelecer os diálogos das trial (SENAI) com o SENA6, que visa oferecer cursos para demandas locais, representando os “ouvidos” federais às a formação profissional em um centro a ser construí- demandas locais fronteiriças. Esses Comitês, segundo o do em Leticia; e, a Comissão binacional assessora de documento, serão copresididos pelo representante con- saúde na fronteira, que prevê a cooperação na área sular brasileiro e do país vizinho respectivo integrado de saúde na fronteira, vigilância epidemiológica, sani- pelas “forças vivas” locais representadas pelos prefeitos, tária e ambiental, saúde intercultural dos povos indíge- vereadores, empresários, associações, representantes nas e portadores do HIV/AIDS, cuja segunda reunião foi militares e das polícias federais, visando o funcionamen- realizada em novembro de 2010. to como fórum de discussão dos problemas locais (Mi- nistério da Integração Nacional 2008). Isso significa dar 6 Servicio Nacional de Aprendizaje (SENA) corresponde ao SE- respaldo político à voz das sociedades fronteiriças. NAI no Brasil. http://www.sena.edu.co

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Considerações finais Trata-se, enfim, de uma “integração por cima” realizada na “esfera política” dos países. Enquanto isso, na “esfe- Da apreciação do atual ordenamento jurídico que regu- ra do cotidiano” a materialização das decisões em ações la os fluxos de mercadorias, ordens e pessoas entre as práticas demanda um retardo normalmente superior a duas cidades fronteiriças (porosidade territorial), per- dois anos, e, em alguns casos, não são realizados devi- cebe-se que este veio sendo construído historicamente do à falta de estrutura física e/ou de pessoal para sua desde o Tratado de Bogotá, e nas últimas três décadas, execução, o que aumenta a possibilidade de ineficiência quando os países entraram na atual fase política, alin- e descrédito da população. Muitas soluções dadas não hados às mudanças advindas da nova ordem econô- logram êxito devido à incompatibilidade da tese com o mica mundial, novos componentes jurídicos foram vivido e à demora em sua execução, o que torna o tra- adicionados com vistas à promoção do desenvolvimen- balho burocrático binacional ineficaz e pífio. to regional e a integração fronteiriça. Da mesma forma, Simultaneamente, há uma “integração por baixo”, as recentes modificações na Política de Defesa Nacio- de forma oposta, caracterizada pela imediatez, pelo nal e as iniciativas dos Programas brasileiros voltados tempo do cotidiano, do agora, muito mais ágil, imediata à Faixa de Fronteira consubstanciam uma significativa e fluída. As populações de Tabatinga e Leticia, na busca mudança diante da geopolítica sul-americana conside- diária de suprir suas necessidades, historicamente se rando que estas afetam os 10 países fronteiriços. apropriam e compartilham do subespaço das cidades Verifica-se também que a política externa brasileira gêmeas, como se uma só fosse, vivendo uma espécie assume uma postura clara voltada para a aproximação de simbiose, um território e cotidiano compartilhado, dos países sul-americanos que inclui o caráter econô- muitas vezes à margem da própria licitude. mico, o estratégico e o de defesa. Assim, estabelece-se, Temos aí a dicotomia da integração por cima (instân- no âmbito externo, uma ressignificação das fronteiras, cia superior) e da integração por baixo (instância infe- concedendo-lhes maior porosidade; ao mesmo tempo, rior), cuja relação carrega um anacronismo intrínseco. no âmbito interno, aparece como um revigoramento do Uma discussão colegiada, envolvendo as autoridades planejamento regional. Trata-se de uma nova camada locais, representantes da comunidade, e das universida- que recobre o “núcleo duro” geopolítico, adequadamen- des, poderia lograr soluções mais ajustadas à realidade te apropriado à nova conjuntura política e econômica cotidiana, que seria exatamente a função dos Comitês mundial, advinda do aprofundamento da globalização de Fronteira previstos no Programa de Desenvolvimen- das últimas décadas. Sendo que no bojo dessa aproxi- to da Faixa de Fronteira, assim como uma maior auto- mação sul-americana está também o reforço político nomia das autoridades locais em assuntos relacionados dos países amazônicos no sentido da defesa estratégica a melhorias das condições de vida das populações aju- conjunta da grande Floresta Amazônica. daria muito para que as ações tivessem maior agilidade Vê-se ainda que os acordos trifronteiriços estabe- temporal e, logo, fossem mais eficientes. lecidos entre Brasil-Colômbia-Peru desde o primeiro Enfim, contudo, é nítido que a vontade política ex- quartil do século XX voltados para promover o aumen- pressada indica o encaminhamento para novas possibi- to da porosidade territorial na região tem corroborado lidades que ainda germinam em termos práticos, porém para o desenvolvimento regional, e os tratados de nave- constituem o primeiro e importante passo à frente. gação e cooperação aduaneira mantêm-se fundamen- Esperamos que a Zona de Regime Especial Fronteiriço tais, lastreando os fluxos atualmente estabelecidos. para as Localidades de Tabatinga e Leticia e o Progra- Por outro lado, há que se examinar o anacronismo ma de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira logrem presente nessa integração, em função da distância que êxito e suas metas sejam atingidas, haja vista que os separa as decisões políticas assinadas no âmbito diplo- meios normativos fundamentais ao aumento da poro- mático e o lapso temporal até sua realização no lugar. sidade territorial foram concedidos, e estes, a nossos Esta se apresenta como uma integração “de gabinete”, olhos, compõem um dos aspectos mais difíceis de se- protocolar, onde o trâmite burocrático manifesta uma rem alcançados caso não houvesse a disposição política inércia tal que por vezes perde-se o fator oportunidade, oportuna. A viabilidade da “integração por cima e por fundamental a atender as necessidades da população baixo” está posta; as cidades gêmeas foram contempla- fronteiriça. Problemas imediatos deixam de ser resol- das como prioritárias; as Comissões de Integração Bi- vidos em curto prazo devido à lentidão institucional. nacionais foram acionadas (instância superior), assim

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como os Comitês de Fronteira (instância inferior - local). diferentes graus de horizontalidade gestados ao longo Observemos a partir de agora, como reagem as dife- do desenvolvimento das formações socioespaciais que rentes psicosferas dos subespaços fronteiriços diante interagem historicamente ao longo dos mais de 15 mil desta oportunidade de aproveitamento imbricados aos km de limites internacionais.

Emerson Flávio Euzébio Geógrafo da Universidade Federal da Bahia, Brasil (2005), Especialista em Educação Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas, Brasil (2008) e Mestre em Geografia Humana da Universidade de São Paulo, Brasil (2012).

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CUADERNOS DE GEOGRAFÍA | REVISTA COLOMBIANA DE GEOGRAFÍA | Vol. 23, n.º 1, ene.-jun. del 2014 | ISSN 0121-215X (impreso) · 2256-5442 (en línea) | BOGOTÁ, COLOMBIA | PP. 109-124 124 Emerson Flávio Euzébio

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