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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

INTEGRAR-SE OU DESINTEGRAR-SE, EIS A QUESTÃO: A REPRESENTAÇÃO DE PERSONAGENS HOMOSSEXUAIS EM CONTOS E BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS

Mestranda: Simone de Freitas Sanguebuche Bester Orientadora: Profa. Dra. Luana Teixeira Porto

Frederico Westphalen, setembro de 2016. 2

SIMONE DE FREITAS SANGUEBUCHE BESTER

INTEGRAR-SE OU DESINTEGRAR-SE, EIS A QUESTÃO: A REPRESENTAÇÃO DE PERSONAGENS HOMOSSEXUAIS EM CONTOS E TELENOVELA BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras – Mestrado em Letras, área de concentração em Literatura Comparada, sob a orientação da Profa. Dra. Luana Teixeira Porto, como requisito final para conclusão do curso de Mestrado em Letras.

Frederico Westphalen, setembro de 2016. 3

UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, Aprova a dissertação de mestrado

INTEGRAR-SE OU DESINTEGRAR-SE, EIS A QUESTÃO: A REPRESENTAÇÃO DE PERSONAGENS HOMOSSEXUAIS EM CONTOS E TELENOVELA BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS

Elaborada por Simone Sanguebuche Bester

COMISSÃO EXAMINADORA:

______Profa. Dra. Luana Teixeira Porto – URI (Orientadora)

______Profa. Dra. Ana Paula Teixeira Porto – URI (1ª arguidora)

______Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari – UFSM (2º arguidor)

Frederico Westphalen, setembro de 2016. 4

Dedico este trabalho a Mariane, que soube esperar o colo da mamãe, e a Deus pela força e coragem. Toda honra e glória seja a rei dos reis. 5

AGRADECIMENTOS

Que meus agradecimentos cheguem à forma do mais belo sorriso, abraço e carinho que sinto por cada um de vocês.

Ao meu marido Gerson Bester, pela paciência e dedicação com nossa filha em minha ausência. Obrigada pelo carinho demostrado em suas ações.

Aos meus pais Irene e Francisco Sanguebuche, que estiveram presentes em meus dias com suas orações.

Às irmãs Silvana e Solange Sanguebuche e sobrinha Victória, que, apesar da distância, torciam pela nossa conquista.

Às cunhadas Madalena, Marice e Maria Bester, que cuidaram da Mariane enquanto eu estava ausente. Obrigada pelo exemplo de mães que demonstram em cada olhar e gestos de amor e carinho.

Aos sobrinhos e sobrinhas da família Bester pela torcida e força em todos os momentos desse percurso de estudos.

À minha orientadora professora Profa. Dra Luana Teixeira Porto, pelo exemplo de profissional, pesquisadora e principalmente pela paciência em cada orientação para chegarmos a esse trabalho final. Obrigada pelo amor que transmite pela Literatura e o compromisso que tem para que o ensino seja fonte de humanização. Muito Obrigada!

À minha amiga e colega Alcione Dal Alba Pilger, pelo companheirismo e preocupação que teve em todos os momentos do nosso percurso acadêmico. Não tenho palavras para demonstrar todo carinho que tenho por você e sua família. Obrigada.

À minha amiga e colega Aliete do Prado Martins, pelas longas conversas, trocas de ideias, produções de artigos, pesquisas, sonhos compartilhados. Uma amizade verdadeira. Obrigada pela amizade e comprometimento que teve ao longo de nossos estudos.

A banca examinadora Profa. Ana Paula Teixeira Porto e Prof. Dr. Lizandro Calegari, pelo exemplo de profissionais. Saibam da admiração que sinto por vocês. 6

Deixo também aqui meu agradecimento às colegas da Escola Cecília Meireles e Esquina Aparecida em nome da Professora Eliziane Hermel, que sonha, como eu, que a Literatura é fonte de inspiração.

Aos colegas de turma 2014 a 2016 em nome da colega Jaqueline Pinson Sichelero, meu agradecimento pela amizade e sonhos que compartilhamos como mães.

Agradeço, ao fim, aos demais professores Programa de Pós-Graduação URI, que nos honraram com seus conhecimentos e contribuíram em nossa formação acadêmica.

Agradeço toda força positiva, orações, carinho, amor demonstrado ao longo desse trabalho acadêmico àqueles que me acompanharam desde o princípio. Obrigada por toda força e sabedoria, pois um trabalho como esse não se faz sozinha e existe uma força que nos impulsiona para frente: Deus.

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RESUMO

Este trabalho tem o objetivo geral de discutir a identidade de personagens homossexuais em produções culturais brasileiras contemporâneas a fim de observar se há uma tendência à configuração de estereótipos relativos à sexualidade e à prática homofóbica. A proposta ainda apresenta uma leitura comparatista de objetos culturais distintos: literatura e telenovela, pois entendemos que o cotejo entre objetos contribui para que os estudos sejam ampliados, verificando semelhanças e diferenças entre produções culturais. Nessa perspectiva, buscamos refletir se ocorre a prevalência de estereotipia na configuração de personagens homossexuais. Dessa forma, foram escolhidos para uma análise comparatista contos contemporâneos publicados na coletânea organizada pelo escritor Luiz Ruffato, Entre Nós: contos sobre homossexualidade (2007). Os contos selecionados para exame são: ―Rútilos‖ (2003), de Hilda Hist, ―Moralista‖ (1957), de Dinah Silveira Queirós, e ―Morte de mim‖ (2004), de Cintia Moscovich. Também foram escolhidas duas cenas da telenovela (2015), que é escrita por Rosane Svartman e Paulo Halm, com colaboração de Mário Viana, Claudia Sardinha, Fabrício Santiago e Felipe Cabral. A escolha desses objetos busca comparar obras construídas em gênero e linguagem diferentes e analisar como as identidades foram representadas nos contos literários e telenovela, reconhecendo semelhanças e diferenças da representação do personagem homossexuais. Consideramos em nossa análise as (im) possibilidades de os objetos artísticos estudados oferecerem instrumentos estéticos e temáticos de enfrentamento à exclusão social do sujeito homossexual, discutindo a função social dos textos. Justificamos nossa pesquisa por entendermos que existem poucos estudos acadêmicos que abordam a homossexualidade na literatura e em outras produções culturais que entramos em contato diariamente. Estamos incutidos em uma sociedade que historicamente exclui classes minoritárias (negros, índios, mulheres, homossexuais), ratificando conceitos patriarcais de submissão e preconceito, os quais podem ser percebidos em análises de produções culturais, como as literárias e as televisivas. Para sustentar teoricamente nossa pesquisa e análise, recorremos a considerações teóricas de Michel Foucault, Antonio Candido, Pierre Bordieu, David William Foster, Guacira Louro, Luana Teixeira Porto, Regina Dalcastagnè, entre outros. Observamos que as narrativas curtas contemporâneas em análise apresentam tendências temáticas que abordam a homossexualidade (sugerida, reprimida ou revelada). Nas cenas da telenovela, também constamos as temáticas que abordam o tema em estudo, as quais buscam a representação de personagens homossexuais e os dilemas encontrados para o enfrentamento da homofobia.

Palavras- chave: Contos Contemporâneos; Telenovela Contemporânea, Homossexualidade; Sociedade.

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ABSTRACT

The objective of this study is the discussing about the profile of homosexual characters in contemporary Brazilian cultural productions in order to observe the possible tendencies around the configuration stereotypes of sexuality and the homophobic practice. The proposal is a comparative reading about different cultural objects: literature and telenovela. These objects were selected for a comparative analysis of contemporary short stories who were published in the collection Entre Nós: Contos de Homossexualidade (2007), organized by writer Luiz Ruffato. The selected stories are: Rútilos (2003) of Hilda Hist, Moralista (1957) of Dinah Silveira Queiroz and Ruiva (1978) of Julio Cesar Monteiro Martins. In order to compare this study, It were chosen two scenes of the telenovela Totalmente Outro (2015) that was written by Rosane Svartman and Paulo Halm, with collaboration of Mario Viana, Claudia Sardinha, Fabricio Santiago and Felipe Cabral. From the choice of these different texts we intend to analysis, in a comparative way, different genres and different language in order to understand the profile of the homosexual subject, pointing out similarities and differences in the representation of queer character. We consider, in this analysis, the (im) possibilities of the studied artistic objects offer aesthetic and thematic instruments to confront the social exclusion of homosexual subject, discussing the social function of the texts. We justify the importance of this study because we understand that there are few academic studies about homosexuality in literature and other cultural productions that we have relation. Historically the society excludes minority classes (blacks, Indians, women, homosexuals), confirming patriarchal concepts of submission and prejudice seen in analyzes of cultural productions: like literary and television. To theoretically support this analyses we considered the theoretical studies of Michel Foucault, Antonio Candido, Pierre Bourdieu, David William Foster, Guacira Bay, Luana Teixeira Porto, Regina Dalcastagnè, and others. As in the contemporary short stories, in the telenovela there are thematic about homosexuality (suggested, repressed or revealed).

Keywords: Contemporary Tales; Contemporary Telenovel; Homossexuality; Society.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 10

1 SOCIEDADE E SEXUALIDADE: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO DA HOMOSSEXUALIDADE NA HISTÓRIA ...... 15 1. 1 A vida social e sexualidade: apontamentos teórico- críticos...... 15 1.2 A homossexualidade no Brasil história e representação cultural...... 25 1.3 A identidade homossexual...... 37 1.4 A teoria queer...... 45

2 PERSONAGENS HOMOSSEXUAIS NA LITERATURA E O CONTO BRASILEIRO...... 54 2.1 A homossexualidade na literatura brasileira...... 54 2.2 Personagens homossexuais em contos contemporâneos...... 63 2.3 Contos de Entre Nós: uma leitura sob a ótica da homossexualidade ...... 68

3 A HOMOSSEXUALIDADE NA PRODUÇÃO CULTURAL

CONTEMPORÂNEA ...... 72

3.1.1 Entre nós: homossexualidade sugerida...... 72 3.1.2 Entre Nós: homossexualidade condenada...... 75 3.1.3 Entre Nós: homossexualidade revelada...... 80 3.2. A Telenovela Totalmente Demais...... 85 3.2.1 Uma relação entre sociedade e homossexualidade...... 85 3.2.2 Uma relação entre homossexualidade e família...... 88

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 92

REFERÊNCIAS...... 97

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INTRODUÇÃO

Esta proposta de pesquisa aborda a representação dos personagens homossexuais em produções culturais brasileiras contemporâneas. Analisamos como textos literários e telenovelístico constroem o perfil de personagens homossexuais e sua relação com o contexto social, e, assim, verificando se há ocorrência de formação de estereótipos negativos. O foco da investigação é a identificação de uma possível confirmação, nos objetos culturais estudados, de práticas homofóbicas e configuração de estereótipos negativos aos sujeitos homossexuais, e tais fatores podem estar relacionados, em nossa leitura, a práticas de violência e discriminação sexual observadas no contexto social. Nossa perspectiva de análise põe em relação conto e telenovela, gêneros narrativos construídos com diferentes linguagens, buscando reconhecer nessas produções a vinculação entre personagens homossexuais, e se ocorre o preconceito sexual nas relações sociais constituídas. Este trabalho dissertativo é realizado pela necessidade de reconhecer em vozes minoritárias a representação de sujeitos que não se vinculam a padrões da normatização heterossexual socialmente estabelecidos e pré-determinados por uma sociedade desenvolvida nos moldes patriarcais. Tendo em vista nosso contexto social, observamos que a história brasileira apresenta uma força dominante do sujeito masculino, lançando um olhar de minimização a grupos minoritários (negros, mulheres, índios, crianças, homossexuais), é isso é um dado que motiva a recuperação de vezes que têm sido silenciadas. Além disso, nossa história social sinaliza que regras para a convivência em contexto público e privado, constituídas desde a colonização política, social e religiosa, perpetuam-se, de forma majoritária, na contemporaneidade e alimentam uma demarcação de papel social e sexual do homem e da mulher tal como preconiza a sociedade patriarcal.1 Nossa pesquisa analisa como personagens de conto e telenovela brasileiros contemporâneos que não se encaixam em padrões estabelecidos pela sociedade em relação à sexualidade buscam viver seus conflitos, amores, relações sociais e familiares em um cenário conservador. Esse olhar reflexivo parte de produções

1 Neuma Aguiar (2000) apresenta o significado do conceito de patriarcado no livro Pensamento

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artísticas de textos literários e telenovelístico que sinalizam a presença, direta ou indireta, do tema da homossexualidade. A proposição deste estudo é motivada por várias razões. A primeira delas refere-se ao fato de que, no contexto social e acadêmico, deparamo-nos com poucos estudos sobre representação da homossexualidade na literatura e em outras produções culturais com as quais entramos em contato diariamente. Estamos inseridos em uma sociedade que historicamente exclui as classes minoritárias em relação à sexualidade, ratificando conceitos patriarcais de submissão e preconceito, discriminação e exclusão, os quais podem ser percebidos em análises de produções culturais, como as literárias e as televisivas. Nessa perspectiva, é valido destacar que, algumas produções levantam uma discussão pertinente no que se refere aos relacionamentos homossexuais, permitindo ao público a discussão crítica e coerente sobre o respectivo assunto e, dessa forma, abordar a relevância dos afetos2, independentemente do gênero (masculino ou feminino) dos sujeitos. No que converge aos textos literários, alguns personagens que representam, com uma linguagem conotativa, porém carregada de verossimilhança a representação dos relacionamentos homossexuais, proporcionando aos leitores um repensar sobre as vivências e experiências lançadas no cotidiano. Sendo assim, acreditamos que a algumas produções literárias nos dão o direito primordial de abrir espaços e reconstruir um novo olhar para o sujeito. Dessa forma, em nossa pesquisa, propomos o cotejo entre texto literário e telenovela, reconhecendo, nas entrelinhas destes discursos, o sentido que as falas dos personagens e dos narradores na composição dos enredos para a identificação contexto, de um sistema escravista. As relações de poder na dominação patriarcal fundamentam-se na autoridade pessoal.de identidades e tabus estabelecidos ao longo dos tempos em relação á sexualidade. Ao estudarmos objetos literários, ressaltamos, compartilhando a perspectiva de José Carlos Barcellos (2006, p.16), que a literatura é uma peça fundamental da construção da história e, como tal, inscreve-se nesse intervalo entre ―o que se fez do homem‖ e ―o que ele faz do que fizeram dele‖. Dito de outro modo, a literatura é um exercício de liberdade.

2 Anselmo Alós aborda, em seu artigo ―Sustentabilidade e crítica queer: propor uma ecologia dos afetos‖, ―a discussão no campo da ecologia dos afetos, das teias capilares das relações humanas, de maneira a evidenciar os rastros e resíduos perversos de algumas manobras políticas e de reivindicações no campo dos direitos humanos e das políticas públicas.‖ (2015, p.134) 12

É nesse ambiente de liberdade de produções (literárias e não literárias) que buscamos compreender como se configuram personagens homossexuais em alguns contos contemporâneos do século XX e em uma telenovela produzida no século XXI. Interessa, ainda, discutir se essas configurações confirmam um olhar de menosprezo para os sujeitos homossexuais, acentuando imagens preconceituosas que podem incitar práticas de homofobia e discriminação sexual. Nossa pesquisa parte, no primeiro capítulo, da apresentação histórica sobre sexo, sexualidade e poder, abordada por Michel Foucault, o qual expõe com exemplificações, questões referentes a relacionamentos reconhecidos ao longo dos séculos e que, no decorrer dos períodos históricos tiveram diferentes maneiras de ser concebidos e aceitos, principalmente pela Igreja Católica e pelos próprios governantes. Em um segundo momento, apresentamos considerações pertinentes de João Silvério Trevisan (2007), que faz um apanhado histórico a respeito da homossexualidade do Brasil colônia à contemporaneidade. Trevisan denuncia o olhar preconceituoso dos colonizadores europeus na chegada ao Brasil, pois os índios habitantes dessa terra não apresentavam constrangimentos no que se refere ao modo de convivência em seus relacionamentos hetero e homossexuais. Para os portugueses, isso representava um contraste de realidade com seu país de origem, considerando que a grande maioria da população vivia de acordo com as premissas da Igreja Católica e o jugo do comando real. Conforme Trevisan (2007), nas terras brasileiras, não havia obscuridade no modo de viver os relacionamentos. Assim, os colonizadores sob um olhar estabelecido pela religiosidade descreviam em seus relatos condenatórios o modo de conviver dos nativos, principalmente quando se tratava da homossexualidade. Ainda trazendo as considerações de Trevisan, é possível elencar outras questões sobre homossexualidade no contexto histórico e social. Ainda no capítulo dois, registramos, através da pesquisa de Luis Eduardo Neves Péret, diferentes personagens homossexuais nos produtos televisivos em meados do século XX e início do século XXI, os quais trouxeram com maior ou menor proporção discussões sobre a sexualidade ao público telespectador e à sociedade brasileira em geral. Refletimos também, a partir das considerações de J.J. Domingos e Regina Baracuhy, uma análise dos personagens homossexuais na mídia publicitária, pensando a identidade ex-cêntrica na lógica do patriarcado. 13

No segundo capítulo, nosso fio condutor é o reconhecimento de personagens homossexuais em alguns contos contemporâneos, tendo como base teórico-crítica estudos de Regina Dalcastagnè, Luana Teixeira Porto, entre outros estudiosos. Fazemos uma leitura comparatista sobre a representações dos personagens contemporâneos e os elementos que proporcionam a produção ou não estereótipos de marginalização dos sujeitos homossexuais. Tendo em vista essas abordagens, discutimos como a literatura pode cooperar para pensar a humanização entre os sujeitos. Tendo tais considerações teóricas fundamentais para compor essa pesquisa, desenvolvemos o terceiro capítulo, realizando a análise comparatista entre dois objetos distintos: contos literários e telenovela, ambos contemporâneos. As produções literárias selecionadas para esta pesquisa fazem parte da coletânea de contos contemporâneos, organizada pelo escritor Luiz Ruffato. Trata-se do livro Entre Nós: contos sobre homossexualidade, publicado em 2007, que em suas 19 narrativas curtas que abordam a homossexualidade. Os contos selecionados para esta dissertação são: ―Rútilos‖, de Hilda Hilst, ―A Moralista‖, de Dinah Silveira Queirós, e ―Morte de mim‖, de Cintia Moscovich. A escolha dos contos se deu a partir da análise dos personagens, os quais podem ser exemplificados a partir das tendências propostas pela pesquisadora e professora Luana Teixeira Porto, as quais são apresentadas em três categorias: A homossexualidade sugerida, a homossexualidade condenada e a homossexualidade revelada. Para compor esta análise comparatista, elegemos a novela Totalmente Demais, exibida na emissora Rede Globo no período de 9 de novembro de 2015 a dia 30 de maio de 2016, e escrita por Rosane Svartman e Paulo Halm, com colaboração de Mário Viana, Claudia Sardinha, Fabrício Santiago e Felipe Cabral, sob revisão de texto de Charles Peixoto, com direção de Marcus Figueiredo, Luis Felipe Sá, Thiago Teiteroit e Noa Bressane e direção geral de Luiz Henrique Rios. Contextualizamos a narrativa televisiva e examinamos de modo especial as cenas que foram ao ar nos dias 20 de fevereiro e 05 de abril de 2016, tendo como personagem central Max (Pablo Sanábio), este sofre uma agressão verbal e física por assumir a identidade homossexual. A outra cena que nos possibilita análise é o momento em que personagem Max revela aos seus pais a opção sexual, e estes não aceitam no primeiro, em seguida demonstram a compreensão pela escolha do filho. 14

Vale ressaltar que, ao cotejar dois objetos artísticos de natureza distinta e identificar a postura de personagens em relação à sexualidade, amparando-se em perspectiva histórico-social, este trabalho se insere na linha ―Ficção, história e memória‖, uma vez que é um estudo que analisa o sujeito dentro do contexto social, observando elementos que correspondem tal linha de estudo e a sociedade contemporânea. Entendemos que é necessário comparar obras construídas em gênero e linguagem diferentes, nas quais abordam o perfil do sujeito homossexual, apontando semelhanças e diferenças. Sendo assim, observamos como as produções culturais apresentam seus personagens, e se estes corroboram para uma representação crítica sobre respeito e aceitação entre os sujeitos de mesmo gênero que estabelecem relação afetiva e sexual. Também buscamos refletir sobre as (im)possibilidades de os objetos artísticos estudados oferecerem instrumentos estéticos e temáticos de enfrentamento à exclusão social do sujeito homossexual, discutindo a função social dos textos. Dessa forma, sabemos que a literatura e a telenovela, com sua potencialidade para construção de conhecimento e humanização, garantem ao leitor/espectador o direito de reconhecer e compreender a representação das classes minoritárias e que não são reconhecidas no meio social. Essas formas de ficção trazem elementos de humanização, os quais atingem o leitor/espectador, causando estranhamento, inquietação, provocação e, acima de tudo, reflexão, garantindo um repensar entre os sujeitos, especialmente em relação à homossexualidade. Sabemos que a comparação entre literatura e outras artes, neste caso a telenovela, abre um leque de oportunidades para a problematização de alguns conceitos sobre homossexualidade ainda não estudados, e assim, constituir uma pesquisa que possa estabelecer conexões entre os diferentes textos que circulam na sociedade. Ao final desse trabalho, apresentamos a comparação entre os contos selecionados da coletânea Entre Nós: contos sobre homossexualidade (2007) e a telenovela Totalmente Demais (2016). Destacamos que os personagens das produções trazem marcas evidentes das tendências abordadas (homossexualidade condenada, sugerida ou declarada) pela pesquisadora Luana Teixeira Porto. Além disso, conduzimos nossa análise observando o processo histórico que os 15

personagens estão inseridos, percebendo as marcas da patriarcalismo ainda sob as relações homossexuais contemporâneas. Podemos responder a tema que norteia este trabalho dissertativo: Integrar-se ou desintegra-se eis a questão. E podemos afirmar que é fundamental integrar discussões que corroborem para que as práticas homofóbicas não sejam retratadas em nossas páginas informativas ou em nosso meio social. A integração das opiniões que convergem para humanização é o legado que trabalhos como estes sejam estudos e principalmente ampliados para a formação de uma sociedade mais justa e igualitária.

1. SOCIEDADE E SEXUALIDADE: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO DA HOMOSSEXUALIDADE NA HISTÓRIA 16

1.1 A vida social e a sexualidade: apontamentos teóricos-críticos

A sociedade, ao longo da história, sempre possuiu regras que estabelecem os modos de convivência entre os indivíduos. E, dentro desse apanhado de preceitos, incluem-se questões relacionadas à sexualidade. Conforme Michel Foucault (2009, p. 9), o termo sexualidade surgiu no início do século XIX. O uso da expressão foi colocada em relação a outros fenômenos: à ampliação de campos de conhecimentos diversos, ao estabelecimento de um conjunto de regras e de normas, as quais fortaleciam as instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas e médicas. Dando ênfase para a sexualidade, esta se constituiu no contexto social formado por regras, a qual permite também compreender de que maneira o sujeito se reconhece no que diz respeito à sua opção sexual. Em se tratando de uma área, a sexualidade é pré-definida, e, sendo assim, essas regras prévias deixariam os indivíduos ―obrigados‖ a interagir de acordo com premissas estabelecidas. A respeito disso, cabe salientar que práticas sexuais, no decorrer dos períodos históricos, receberam diferentes maneiras de serem compreendidas e de serem estabelecidas entre os sujeitos. Segundo Michel Foucault (2007, p. 126), a história da sexualidade teve dois momentos primordiais. O primeiro ocorreu no século XVII, quando houve o advento das proibições, a valorização exclusiva das práticas sexuais somente no matrimônio e na vida adulta, a limitação e pudores imperativos da linguagem, que correspondem aos métodos de controle da sociedade. Sendo assim, qualquer conduta que não estivesse amparada no que estava instituído teria uma punição, principalmente, por parte da Igreja. momento ponderado por Foucault diz respeito ao século XX, em que formas de repressão começam a desvincular-se dos tabus que se estabeleceram ao longo dos séculos anteriores e foram perdendo espaço, pois ―passar-se-ia das interdições sexuais imperiosas a uma tolerância a propósito das relações pré- nupciais ou extramatrimoniais, a desqualificação dos perversos teria sido atenuada‖ (2007, p. 126). No entanto, apesar de se estabelecer certa inclinação para novas formas de compreender as relações sexuais entre os sujeitos, uma parcela da sociedade manteve-se exposta a modelos e conceitos definidos patriarcalmente, ou seja, nas 17

relações preponderava a heteronormatividade, em que a prole se confirma a partir do matrimônio. A Igreja foi a instituição que trouxe à tona regras que deveriam ser seguidas, tornando-se uma forma de controle e, assim, excluindo as contrariedades que viessem a se apresentar. Os dogmas doutrinários católicos determinaram a função da sexualidade apenas para a procriação dos filhos. Outros princípios relacionados à sexualidade também foram mantidos, como o caso das confissões dos atos. Os discursos religiosos eram (e ainda são) carregados de ideologias, e, quanto ao sexo, este é visto como pecado, e, dessa forma, deve ser confessado. De acordo com Foucault:

O sexo não deve mais ser mencionado sem prudência; mas seus aspectos, suas correlações, seus efeitos devem ser seguidos até às mais finas ramificações: uma sombra num devaneio, uma imagem expulsa com demasiada lentidão, uma cumplicidade mal afastada entre a mecânica do corpo e a complacência do espírito: tudo deve ser dito. (FOUCAULT, 2007, p. 25)

O autor afirma que, ao longo do século XVIII, a preocupação em compreender as relações entre os sujeitos tornou-se um mecanismo de controle e dominação. Tudo que esse estabelecia entre os pares ficava a cargo do olhar atento. Falar da sexualidade, segundo Foucault (2007, p. 30), tornou-se uma contabilidade, uma análise, tendo-se, assim, a possibilidade de conhecer a vida de cada indivíduo, ou seja, até mesmo sua intimidade. Em um pequeno período, nunca houve tantos discursos sobre sexo, em todos os cantos se falava, ouvia-se e registrava qualquer abordagem sobre o assunto. Conforme Foucault (2007), a sexualidade como uma área de estudo tornou-se formas demográficas, biológicas, médicas, psiquiátricas, psicológicas, morais e políticas, e, sendo uma área, tornou-se algo vigiado e, dessa forma, rigidamente controlado. Para Foucault (2007), apesar de percorrer diferentes áreas do conhecimento humano, falar sobre sexo/ sexualidade até os dias de hoje não é uma atividade que se desenvolve de forma livre, pois há discursos obscuros sobre o tema, e discorrer sob tal assunto parece algo que precisa ficar em ―segredo‖, um assunto que, na maioria das vezes, torna-se desconfortável. No que tange às discussões sobre sexualidade, estas muitas vezes tornam-se nulas em alguns grupos sociais, pois esbarram em preceitos constituídos pela Igreja e Governo como também pela família 18

e sociedade patriarcal. Falar sobre sexualidade requer conhecimento e, principalmente, habilidade para tratar desse assunto, que, na contemporaneidade, ainda é rodeada de barreiras ideológicas. Para Foucault,

O segredo do sexo não é, sem dúvida, a realidade fundamental em relação à qual se dispõem todas as incitações a falar de sexo – quer tentem quebrá- lo o reproduzam a forma obscura, pela própria maneira de falar. Trata-se, ao contrário, de um tema que faz parte da própria mecânica dessas incitações: maneira de formar à exigência de falar, fábula indispensável à economia infinitamente proliferante do discurso sobre sexo. O que é próprio das sociedades modernas não é o terem condenado, o sexo, a permanecer na obscuridade, mas sim terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o como segredo. (FOUCAULT, 2007, p. 41)

No que diz respeito à história da sexualidade, o que contorna a forma de pensar e agir não passa despercebido ao longo dos séculos, num movimento circular e constante, pois o sexo é uma forma de se estabelecer o poder. Conforme Foucault (2007, p. 44), a relação entre os casais é sobrecarregada de regras e recomendações, e qualquer descompasso pré-estabelecido precisa ser confessado de acordo com as exigências católicas. Qualquer forma de relacionamento que foge ao comando das leis eclesiásticas é condenada. Essa marca de condenação e proibição sociais ainda persiste por mais que tenhamos evoluído em teorias e adquirido novos conhecimentos ao longo dos séculos. Nossos discursos muitas vezes continuam a rotular qualquer movimento contrário ao que é nos apresentado como verdadeiro e ideal para supremacia ―do bem comum‖, dito e imposto por quem estabelece os princípios do poder. É nessa vertente de exclusão que qualquer forma de manifestação do prazer sexual fora das normas convencionais torna-se pecado. Pelo percurso histórico apresentado por Michel Foucault, reconhecemos a história humana e sabemos que o controle sob a sexualidade acontece desde o início das civilizações, ou seja, antes de Cristo, e se intensifica depois deste, pois a Igreja Católica tende a impor de maneira religiosa os preceitos cristianizados e toma a sexualidade como um ponto de controle, doutrinando os fiéis principalmente como deveria ser o grupo familiar, e isso percorre o relacionamento do casal até a formação dos filhos. No que se refere às relações estabelecidas da antiguidade, podemos destacar os séculos XVIII e XIX, os quais constituíram períodos que deram indícios 19

de controle total no que diz respeito à vida sexual dos indivíduos, garantindo a legitimação de qualquer ato sexual somente dentro do matrimônio e legitimando a dominação masculina sob a figura da mulher. Para Foucault,

A explosão discursiva dos séculos XVIII e XIX provocou modificações. Em primeiro lugar, um movimento centrífugo em relação à monogamia heterossexual. Evidentemente, o campo das práticas e dos prazeres continua a apontá-la com sua regra interna. [...] o casal legítimo, com sua sexualidade regular, tem direito à maior discrição, tende a funcionar como uma norma mais rigorosa talvez, porém mais silenciosa. Em compensação o que se interroga é a sexualidade das crianças, a dos loucos e dos criminosos; é o prazer dos que não amam o outro sexo; os devaneios, as obsessões, as pequenas manias ou grandes raivas. (FOUCAULT, 2007, p. 45-46)

Essa explosão discursiva sobre sexualidade que se deu nos séculos anteriores (XVIII e XIX) evidencia-se na contemporaneidade, pois ainda vimos diferentes interrogações e julgamentos, e nada passa despercebido do crivo dominante, ou seja, das entidades que fazem o controle social, moral, político e religioso. Nossa forma de se relacionar está de acordo com as normas que nos comandam e estamos expostos ao olhar atento de quem tem o poder da dominação. No que tange à formação da sociedade a partir de preceitos religiosos, entre outros, construídos ao longo dos séculos, notamos que existe na sociedade contemporânea uma força para romper barreiras, ou seja, a possibilidade se de viver de acordo com suas próprias escolhas. Tal rompimento pode ser exemplificado a partir das relações homossexuais, nas quais os sujeitos buscam confirmar sua identidade sexual em uma sociedade que ainda se perpetua por dogmas religiosos e civis. Há uma luta que tem se tornado evidente, através da arte, da literatura, dos grupos organizados que procuram a confirmação da identidade homossexual, buscando espaços, olhares e críticas que consolidam os relacionamentos homossexuais de forma positiva. Verificamos, na sociedade brasileira atual, novos núcleos familiares formados por pessoas do mesmo sexo, no entanto, muitas vezes enfrentam os olhares preconceituosos pautados em normas estabelecidas ao longo dos séculos (religiosas, governamentais), as quais apresentam um valor normativo da heterossexualidade, ―induzindo-nos‖ à rejeição de qualquer escolha diferente da já que foi imposta e sancionada pelas leis controladoras. 20

Para pesquisadora Leticia Sangaletti (2013), tais afirmações se confirmam, preponderando a marca dominadora das identidades:

É possível pensarmos em identidades, que, mesmo não fazendo parte do padrão de conduta incitado pelo patriarcado, propõem em suas relações diversão e prazer, além de destacar a arbitrariedade e artificialidade das normas da sociedade vigente. Nesse contexto, é imprescindível destacarmos que, mesmo com a evolução da humanidade e com uma dinâmica social contemporânea que se modifica intensamente, essa noção de família exemplar, fundamentada no patriarcado e na relação heterossexual, insiste em prevalecer como modelo normativo. Dessa forma, iniciou-se a busca por uma descentralização desse modelo familiar, de modo que ela se construa sobre laços afetivos, independente de sexo. (SANGALETTI, 2013, p. 42)

É na descentralização dos rótulos familiares que encontramos atos de violência que se alastram em grupo social em que a sexualidade/sexo tem uma ótica conservadora e em que a heterossexualidade se impõe como regra geral. O que pensar sobre o sexo feminino? A este tem sido atribuída, historicamente, a obrigatoriedade de procriação, criação e serviços domésticos. Falar sobre sexualidade, seus pudores, desejos, fica apenas resguardado ao imaginário dos sujeitos e, ainda nos dias atuais, percebemos as diferentes organizações que fomentam todos os dias a dominação masculina. Temos vários exemplos no Brasil que perpassam o ―compromisso feminino‖, como algumas , letras de canções, enfim, um aparato textual que poucas vezes abre espaço para o pensar e agir femininos. Ainda temos uma sociedade que trava os caminhos de quem não se estabelece dentro das características sexuais. Nesse cenário, então, o que esperar para os sujeitos homossexuais? A sexualidade, sendo algo ainda complexa de ser discutida na sociedade contemporânea, ficando à mercê de comentários, opiniões contraditórias, desencadeia para uma parcela dos sujeitos contrários ou resistentes a essa escolha práticas de violência, desencadeando um convívio negativo e conflitivo entre os indivíduos que se colocam em posições opostas em relação à aceitação da vivência homoafetiva. Nessa perspectiva, Leticia Sangaletti (2013, p. 38) destaca que um dos motivos de os homossexuais nãoassumirem a sua opção sexual é o medo e a exclusão vivenciados na sociedade, pois ainda existe uma forte influência de princípios patriarcais que asseveram a supremacia da heterossexualidade e a 21

condenação de práticas homossexuais. Tais condicionamentos à heterossexualidade se ratificam a partir das identidades fixas consolidadas pela maioria bases religiosas, as quais consideram como padrão apenas relacionamentos entre homem e mulher, ficando excluídas quaisquer outras formas de relação. (SANGALETTI, 2013, p.38) Para Foucault,

Nas relações de poder, a sexualidade não é um elemento rígido, mas um dos datados da maior instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de apoio, de articulação às mais variadas estratégias. Não existe uma estratégia única global, válida para toda a sociedade e uniformemente referente a todas as manifestações do sexo: a ideia, por exemplo, de muitas vezes se haver tentado, por diferentes meios, reduzir o sexo à sua função reprodutiva, à sua forma heterossexual e adulta e à sua legitimidade matrimonial não explica, sem menor dúvida, os múltiplos objetivos visados, os inúmeros meios postos em ações políticas sexuais que concernentes aos dois sexos, às diferentes idades e às classes sociais. (FOUCAULT, 2007, p. 115)

A padronização dos gêneros desencadeia um processo de identidades que se fragmentam pelas suas escolhas, e pensar na conexão de tais elementos possibilita reorganizar conceitos que garantem um bom convívio entre os sujeitos e o reconhecimento da importância das diferenças e da oportunidade de quebrar regras que permeiam a ostentação da violência e as formas de exclusão na sociedade. Estamos em uma sociedade em que a identidade não passa despercebida nesse cenário, sendo também moldada dentro do um aparado que cria fronteiras que marcam o nosso modo de atuar e refletir. As identidades se estabelecem pelas diferenças e estas fomentam alicerces do poder uma sobre as outras.

É por meio da representação que a identidade e a diferença se ligam a sistemas de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade. É por isso que a representação ocupa um lugar tão central na teorização contemporânea sobre identidade e nos movimentos sociais ligados à identidade. Questionar a identidade e a diferença significa questionar os sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação. Além disso, o autor destaca que no centro da crítica da identidade e da diferença está a crítica das suas formas de representação. (SILVA, 2000, p. 91-92)

E, como sabemos, o poder patriarcal define história que impacta nosso cotidiano, constituindo uma identidade que é manipulada pela ordem do poder e da hegemonia de quem tem a força de definir a representação e defender os interesses 22

dessa parcela dominante, que, em vários casos, tem a forma homogênea fortalecida para corresponder a seus próprios interesses. Ao compartilharmos tais afirmações, deparamo-nos com uma sociedade que se comunica, pensa e agem de acordo com seus relacionamentos sociais, morais, sexuais, religiosos, que são confirmados diariamente, e, assim, tais convivências corroboram para a fixação de uma identidade que diferencia os sujeitos, formando grupos sociais com maior ou menor prestígio na sociedade. Além disso, vivemos uma sociedade que se mantém a partir da dominação patriarcal em quase todas as esferas sociais, e, assim, algumas identidades, como as das mulheres e homossexuais, são desprestigiadas por uma parcela da sociedade que as inferioriza ou as caracteriza como objetos. De uma forma específica, estamos em uma sociedade que carrega os princípios patriarcais e principalmente heterossexuais, em que a figura feminina ou homossexual fica em alguns casos às margens da sociedade. Assim, as constatações levantadas por Michel Foucault nos esclarecem o conjunto de regras que compõem a nossa sociedade, na qual a força dominante é o patriarcalismo. O olhar masculinizado perpetua-se, sendo, na maioria das vezes, o principal articulador das relações sexuais, sociais e afetivas estabelecidas. Tal constatação também é percebível nas ideias levantadas por Pierre Bourdieu (2002, p.18), o qual destaca que ―a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se anunciar em discursos que visem a legitimá-la‖. A dominação masculina é firmada desde o princípio da história como sujeito base para a confirmação das diferentes ações da sociedade, e nesta perspectiva a função da mulher é o contrário, encontra-se na parte de baixo da sociedade, um lugar de submissão, exercendo o papel secundário ao da figura masculina.

A dominação masculina encontra, assim, reunida, todas as condições plenas de seu exercício. A primazia universalmente concebida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em divisão sexual de trabalho e de produção e reprodução de trabalho biológico e social, que confere aos homens a melhor parte. (BORDIEU, 2002, p. 22)

Todavia, no contexto social, grupos minoritários permanecem com o papel secundário ao do homem, e isso é sancionado dentro da própria história das 23

civilizações, e a diferença de poder e de dominação se materializa a partir de características físicas e sociais que homem desempenhou ou desempenha diante da sociedade. E estas marcas de dominação são bem exploradas pela indústria cultural que não cansa de afirmar essa superioridade masculina. Podemos comprovar a afirmação anterior a partir do artigo de Domingos e Baracuhy (2013, p. 53) quando apresentam diferentes anúncios publicitários, os quais são produzidos com e para sujeitos homossexuais. No entanto, os textos midiáticos, os rostos dos sujeitos não apresentados, a obscuridade e o anonimato prevalecem. Destarte, há uma aceitação à homossexualidade fragmentada diante do contexto publicitário. Assim, prevalece o sexo masculino, e, por consequência, quem tem, historicamente, o poder de definir as situações do cotidiano. Para Domingos e Baracuhi,

[...] A exclusão na ordem do discurso da mídia publicitária é como esta organiza e redistribui os temas em torno da homossexualidade: há um jogo de sutilezas a fim de evitar maior ―estranhamento‖ do público diante dessas publicidades, já que as mesmas circulam também em suportes de mídia não exclusivo aos gays (revistas como VIP, VOGUE, GQ). São estratégias que vão desde a escolha do ângulo da foto que captura o casal de costas viradas para o leitor, passando por um leve tom de humor ao suscitar na imagem das duas cuecas no varal, uma memória social do casal, quando namorado, em que um vai, aos poucos, ―esquecendo‖ uma peça de roupa na casa do outro. (DOMINGOS; BARACUHI, 2013, p. 53):

A sexualidade, num contexto de dominação masculina, ainda abriga a repressão sexual, que viabiliza o constrangimento dos indivíduos que discorrem sobre aquilo que não é fixado como o certo. Para Chauí (2016, p.10), a repressão sexual é considerada um conjunto de interdições, permissões, normas, valores, regras estabelecidos histórica e culturalmente para controlar o exercício da sexualidade, pois, como as inúmeras expressões sugerem, o sexo é encarado por diferentes sociedades (e particularmente pela nossa) como uma torrente impetuosa, que se alastra no convívio entre os sujeitos. Porém, a autora chama atenção para o que se refere à palavra ―repressão‖, buscando no dicionário o significado, possibilitando condicionar a esse vocábulo um ato violento, de coibir qualquer tipo de movimento, representando, assim, uma ação que se aplica em estado de dominação plena. Com o valor semântico de tal vocábulo, conseguimos compreender como o ato corrobora para o fortalecimento de 24

atitudes incompreensíveis em nosso contexto social, tornando-se índices temáticos que compõem nossos noticiários e estáticas de violência em nosso país. A repressão é a marca visível do patriarcado, sendo um exercício que se estabelece a partir da uma força impiedosa que corrobora para práticas violentas e que são reconhecidas nas ações diárias nos diferentes gêneros textuais que circulam diretamente na sociedade. Para Marilena Chauí,

Tudo que abrange a força para ir contra a natureza de algum ser. Para ela, a violência abrange manifestações de coação, constrangimento, tortura, brutalizações, violações, sevícias, abusos físico-psíquicos contra alguém, produzindo, de algum modo, opressão, intimidação, medo e terror ―de um contra todos‖, ―de um contra um‖ e ―de todos contra todos‖. (CHAUÍ, 1998, p. 33-34)

O modelo patriarcal, a sexualidade e a violência percorrem um círculo que comanda as ações da sociedade, os quais controlam, mapeiam, intrigam e correspondem a ações que incluem e excluem sujeitos do contexto social. Compõem um jogo de poder, que, para Foucault (2007), dá embasamento para a repressão, a qual surge desde a época clássica e é o modo principal de ligação entre poder, saber e sexualidade. De acordo com Foucault, a sexualidade tem um valor estimável e poderia garantir uma discussão aberta: seria indispensável uma transgressão das leis, uma suspensão das interdições, uma incursão da palavra, ―uma suspensão das interdições, uma restituição do prazer ao real, e toda uma nova economia do poder; pois a menor eclosão da verdade é condicionada politicamente.‖ (FOUCAULT, 2007, p. 11) Dessa forma, a sexualidade é um jogo de poder, que, conforme o ângulo, terá um discurso que a acusa como lícita ou ilícita, e, assim, dita regras que convergem na dominação dos sujeitos, construindo um jogo de interesses que dispensa os interesses pessoais dos próprios sujeitos. Tudo que se estabelece no contexto social passa pelo crivo do patriarcalismo e, daí, surge o julgamento de uma parte da sociedade heterossexual, que muitas vezes, vem moldado pela violência social, psíquica ou moral. Nas palavras de Maria de Fatima Araújo,

Sexualidade é, pois, uma construção social que engloba o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos e nas relações sociais. Ao longo da história, a atividade sexual sempre foi objeto de preocupação moral e, como tal, submetida a dispositivos de controle das práticas e 25

comportamentos sexuais. Como esses dispositivos são construídos com base nos valores e ideologias predominantes na sociedade, eles assumem formas diferentes à medida que a sociedade muda. (ARAÚJO, 2016, p. 3),

Seguindo essa perspectiva, a sexualidade vem ganhando espaço no âmbito social, pois incita diferentes abordagens e discussões nas áreas do conhecimento. Assim, é valido afirmar que, no processo de enunciados sobre determinado tema, não é possível descentralizar as relações heterossexuais dadas à condição primordial entre os sujeitos. É nessa centralidade que relações ―diferentes‖ muitas vezes tornam-se algo fora dos padrões propícios. E, nessa não-aceitação, confirmam-se índices de violência, que se condicionam pela repressão das escolhas reconhecidas como desiguais. Recorrendo ao processo histórico em relação à sexualidade, o qual nos dá condições de compreender como os seres humanos se comportam no que diz respeito à sexualidade, fica evidente que, no desenrolar dos fatos históricos, houve a preocupação em dominar os indivíduos a partir das relações sexuais. Não se verifica nenhuma abertura para modelos que não comportam as regras já vinculadas como certas. A história da sexualidade deixa clara a dominação tangente e eficaz do patriarcado. O controle regido pela igreja, pedagogia, medicina, psiquiatria e outras áreas do conhecimento sustenta ao longo dos períodos as ações dos sujeitos, fazendo com que estes se sintam acuados em não viver de acordo com suas escolhas. Apesar de tais preceitos serem reconhecidos nos séculos anteriores, ainda se confirmam no contexto contemporâneo. A sexualidade, sendo o centro das discussões e principalmente forma de controle sobre os indivíduos, gera diferentes pontos de vista, os quais precisam ser desdobrados em todas as esferas da sociedade, assim fazendo com que os índices de violência tenham saldo negativo. Conforme Araújo (2016), o século XX nos proporcionou um pluralismo sexual, enfatizando compreender o corpo como forma, ao se desviar do paradigma cartesiano (mentalidade mecanicista, categorização normal/anormal), porém existem longas discussões que precisam ser construídas para que a liberdade de agir na sociedade não se vincule apenas a estereotipias ou fique condicionada a uma vida dentro de um círculo de repressão.

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1.2. A homossexualidade no Brasil: história e representação cultural

O livro de João Silverio Trevisan, Devassos no paraíso, traz, em seu primeiro capítulo, o título ―Pareço estar na Sadoma, e pior ainda...‖ e, no compasso de múltiplas interpretações, o texto aborda de maneira eficaz a figura e o olhar dos europeus em terras brasileiras. De acordo com Trevisan (2007, p.63), o escrivão Pero Vaz de Caminha, ao redigir uma carta ao rei de Portugal no descobrimento do Brasil, descreve as terras como sendo um paraíso, no qual tudo poder ser aproveitado, não ficando nem mesmo despercebidos os corpos nus dos índios, que não sentiam receio algum de andar de tal maneira. Porém, a história não demonstra somente a simpatia e o encantamento de Caminha em relação aos corpos dos indígenas, para outros, estes eram seres selvagens, ou piores que as feras. Já os pensadores da Renascença primavam pelo respeito aos índios e seus costumes, no entanto, para os comerciantes, escravistas e missionários, eram sujeitos que precisavam ser doutrinados e meticulosamente domesticados. O que nos prende nesse capítulo de Trevisan (2007, p.65) são os costumes dos ―devassos‖ habitantes desse paraíso tropical, pois nada chocava mais cristãos da época do que a prática do pecado ―nefado‖, sodomia ou ―subjetividade‖ – expressões usadas para indicar a relação homossexual que, segundo o pesquisador Aberlado Romero apud Trevisan (2007), grassava há séculos, entre brasis, como uma doença contagiosa. O percurso histórico aponta para o padre Manoel da Nóbrega, quando, em 1549, sendo um dos primeiros visitantes do Brasil, constatou que muitos colonos tinham índias como mulheres. Em meados de 1587, o português Gabriel Soares de Souza analisava os tupinambás e tupinaés, aqueles com práticas de prostituição masculina e estes últimos com práticas de sodomia. Em 1577, o francês Jean de Lery destacava que os indígenas brasileiros se xingavam de ―tivira‖, que tem como sinônimo o vocábulo ―viado‖. (TREVISAN, 2007, p. 65) O século XIX também traz indícios de homossexualidade entre índios. Conforme Trevisan (2007, p. 66), Carl Von Martiusrelatou identificou, entre índios guaicurus, a existência dos chamados ―cudinas‖, homens castrados. De acordo com os registros, são gêneros masculinos que se vestem como mulheres e se entregam 27

exclusivamente a serviços femininos, como fiar, tecer, fabricar potes. Há indícios históricos que estes também cantavam em óperas, uma vez que tinham um tom de voz que corresponde ao tom feminino, o qual interpretavam em óperas barrocas. Para o autor,

Encontraram-se também relatos, um pouco mais vagos, sobre mulheres indígenas em papéis masculinos - tríbades, termo para-científico muito usado por estudiosos antigos. O padre Pero Correa escrevia, em 1551: Há cá muitas mulheres que assim nas armas como todas as outras coisas seguem o ofício de homens e têm outras mulheres com quem são casadas. Em 1576, o português Pero de Magalhães de Gândavo, que viveu no Brasil, também atestou a existência de mulheres tupinambás com práticas homossexuais. (TREVISAN, 2007, p.67)

Essa visão histórica nos propicia a oportunidade de conhecermos um traço da sociedade que até poucos instantes estava em estado de breu. O descobrimento do Brasil e sua colonização não apresentaram nos manuais históricos dos colonizados e colonizadores a vida interpessoal e sexual destes sujeitos. A história ficou restrita apenas à masculinidade do povo colonizador e à opressão de quem foi corrompido com a nova cultura. Apesar dessa omissão historiográfica, o que queremos destacar é que a homossexualidade existiu e era normal nesse período histórico, contudo, era condicionada às vivências daquela época, longe de qualquer documento histórico. Os bons costumes da fé e do patriarcado eram abalados com estruturas das relações sexuais que os indígenas apresentavam aos colonizadores: ―Diante de tudo isso, que os cristãos consideravam ‗frouxidão de costumes‘ e atribuíam evidentemente ao paganismo, não é de admirar que os portugueses da época identificassem os indígenas como práticos da sodomia‖. (TREVISAN, 2007, p. 68) Porém, Trevisan (2007, p. 68) chama atenção para o fato de que ―estas práticas sexuais conduzidas pelos‖ indígenas eram vistas como um ―pecado nefado‖, o qual fugia de qualquer regra imposta pelo cristianismo europeu, mas, por outro lado, também os colonizadores eram fascinados por esses atos que eram condenados, ―pois se sentiam em terras indígenas a liberação de suas culpas‖. Em país conhecido como ―devasso‖ pelas suas práticas sexuais expressas sem culpa pelos índios no início de nossa colonização, essas práticas foram descritas em diferentes documentos que demonstravam, aos olhos do colonizador, algo promíscuo num país sem qualquer tipo de repressão, já que a sexualidade era vivida sem regras (pré)estabelecidas. Aos olhos dos visitantes descritos nas 28

palavras do pregador calvinista francês Vicente Soler, morador de Recife durante a colonização francesa, viver em uma Sodoma era difícil: ―Pareço estar em uma Sodoma, e pior ainda‖, tal afirmação mostra a inconformidade em estar em país que rompe com os costumes organizados pelas normas patriarcais e religiosas. (TREVISAN, 2007, p. 70) Esses documentos assombradores para o clero e para sociedade conservadora patriarcal mostraram que a homossexualidade se constitui com propriedade ao longo dos primeiros séculos de colonização europeia no Brasil. Ao longo da formação da sociedade brasileira, práticas sexuais reconhecidas como sodoma se faziam presentes no cotidiano das grandes e pequenas cidades, e, dessa forma, não existe uma distinção entre as classes sociais que praticam a liberdade sexual. Para criar uma definição para a homossexualidade, foram dadas diferentes explicações, ou melhor, várias versões que procuram justificar o porquê de tal orientação sexual. Alguns estudos apontavam para versão dos cromossomos, marcas da genética que definiram tal opção em definições genéticas. Segundo Trevisan (2007, p. 33), foi um militante ―uranista‖3 que criou o termo ―homossexualismo‖, visando à legitimação biológica para a determinada vocação. Mas a história proporciona verificar que estes sujeitos eram vistos como seres que precisavam de tratamento, isto é, eram incuráveis num pensamento constrangedor para sujeitos:

O desejo homossexual partilha de uma extrema pluralidade libertária, mas também dos paradoxos da padronização cultural de cada perío do. Nesse exercício de corda-bamba, faz sentido perguntar se é adequado e funcional definir a homossexualidade, outorgando-lhe algo como caráter definitivo e uma natureza compartilhada. (TREVISAN, 2007, p.35-36)

Segundo Luana Pagano Peres Molina (2016, p. 5), o termo ―homossexualismo‖ no Brasil foi utilizado pela primeira vez em 1894 no livro Atentados ao pudor: estudos sobre as aberrações do instinto sexual, de Francisco José Viveiros de Castro, professor de Criminologia da Faculdade de Direito do e desembargador da corte de Apelação do Distrito Federal. Conforme a autora, ser homossexual, ao longo de diferentes contextos sociais, era visto como vergonhoso, porém os movimentos sociais e culturais

3 Como se chamava então o homem que praticava sexo com homem. 29

romperam barreiras e oportunizaram o reconhecimento desses sujeitos. Atualmente, apesar de uma crescente discussão sobre a identidade homossexual, visualizamos algumas produções culturais brasileiras que atrelam ao sujeito homossexual um olhar de inferioridade, seguindo preceitos negativos que foram levantados no século XVIII. Estas considerações podem se confirmadas nas palavras de Lizandro Carlos Calegari:

Assim, no Brasil, a normalização da heterossexualidade, transvestida de uma aparente flexibilidade e aceitabilidade, tem contribuído para o processo de exclusão de determinados grupos e tem, inclusive, restringido e marginalizado a discussão sobre a identidade homossexual. No século XVIII, por exemplo, quando na ausência de um termo que distinguisse as diferenças de sexualidade, a medicina classificava os homossexuais como invertidos. (CALEGARI, 2007, p. 113)

Apesar de termos indícios fortes de homossexualidade em todo processo de formação da sociedade brasileira, somente na metade do século XX, com o advento das evoluções culturais e sociais, o Brasil começa a vincular a presença do homossexual como um sujeito que possui identidade, direitos e autonomia de suas escolhas. Esta abertura se fortaleceu a partir das discussões que ocorriam na Europa no ano de 1968. Movimentos organizaram-se para romper barreiras e traziam em suas discussões a luta contra discriminação contra mulheres e homossexuais. Queriam abolir ideias contraditórias quanto ao modo de conviver que estava impregnado pela história patriarcal. Buscavam a aceitação dos sujeitos independentemente de suas escolhas políticas, sociais e sexuais. Segundo Kerber:

O maio de 68 mudou profundamente as relações entre raças, sexos e gerações naquele país, repercutindo, inclusive, em outros países, inclusive no Brasil, com o diferencial de que, aqui, o viés era mais político. O ano 1968 foi, sem dúvida, um marco histórico mundial, devido ao seu caráter libertário e igualitário. Foi o ano da livre experimentação de drogas, das garotas de minissaia, do sexo sem culpa, da pílula anticoncepcional, do psicodelismo, do movimento feminista, da defesa dos direitos dos homossexuais. (KERBER, 2011, p. 28):

Partindo dos fatos históricos que ocorreram em meados do século XX e que impulsionaram para luta pelos direitos políticos, não só na Europa, mas também aqui no Brasil, os movimentos de 1968 trouxeram ao centro a margem excluída da sociedade (negros, mulheres, pobres, gays, lésbicas) para romper barreiras impostas pelo regime patriarcal e militar em que estávamos vivendo. Dessa forma, 30

alguns textos literários e telenovelísticos, nos anos da ditadura militar no Brasil, trouxeram personagens que mostravam os dilemas de quem vive em um regime ditatorial e busca um espaço social democrático. Em alguns enredos ficcionais, os personagens representavam vivências de sujeitos que rompiam com os padrões considerados como corretos nos anos de chumbo, trazendo de maneira implícita ou explícita um novo olhar para uma sociedade que buscava a soberania popular. Apesar de termos uma abertura para aceitar a homossexualidade dentro de um espaço composto de regras como o Brasil, Trevisan (2007, p. 87) afirma com exemplos que o país que ―confirma e respeita identidades‖ não tolera uma homossexualidade vivida de maneira aberta e livre da imposição de papéis sexuais. A violência acontece a partir da linguagem, fortalecendo o preconceito existente nos diferentes segmentos da sociedade. A confirmação do preconceito, além de estar com frequência nas linguagens informais do cotidiano, recebe um estímulo ainda maior por parte do mercado, ou seja, cria uma linguagem desconfigurada da realidade e atrela para alguns sujeitos uma linguagem informal. O mercado também se utiliza da imagem do sujeito homossexual, apresentando sobre este uma linguagem e uma conduta que nem sempre correspondem a um perfil mais próximo de sua performance. A homossexualidade serve como uma válvula para o mercado, sendo um elemento que pode ser usado como fonte de consumo por uma mídia que manipula com único objetivo: lucro. E nessa gangorra de aceitar ou não homossexualidade, as agências televisivas exploram relacionamentos entre sujeitos do mesmo gênero. É o caso da telenovela A próxima vítima (1995), da Rede Globo, que abordou o tema, pois pesquisas indicaram que o ter um vilão homossexual apresentaria um enorme potencial consumidor, o qual aponta para o crescimento de audiência de ―coisa‖ que não pode ser vista, quer dizer, sem abalroar o público com cenas ―explícitas‖ fartamente mostradas nas produções midiáticas quando se trata de casais heterossexuais. (TREVISAN, 2007, p. 20). Seguindo informações e constatações construídas com exemplos apresentados por Trevisan (2007), vimos índices de pesquisas que apontam investigações realizadas em nosso país que acusam a quebra do estereótipo construído pela indústria cultural, que mostra o brasileiro como um sujeito ―fogoso‖, usando a palavra do autor. O fato de se desconstruir o estereótipo de apreço total 31

pelo sexo fica sancionado através das respostas adquiridas pelos centros de referência. O que se mostra pela cultura brasileira na mídia é discordado pelos entrevistados. ―Num país que transformou a dança do bumbum como mania nacional, 44% dos sujeitos entrevistados confirmaram não terem praticados sexo anal. Outro fato apresentado traz a constatação de que apenas 14% dos homens e 5% das mulheres admitiram já ter tido relações homossexuais, ao lado de tal índice 70% disseram que não sentem nenhuma atração por sujeitos do mesmo sexo. Como afirma Trevisan (2007, p.21), ―vivemos em uma sociedade de aparências.‖ Ainda declara o pesquisador:

Tais constatações estão longe da crença, veiculada pela mídia pressurosa em detectar novas tendências, de que o consumismo resgatou de um modelo definitivo aos homossexuais para a sociedade capitalista. Já se passou a aceitar o bom-mocinho de pessoas com HIV positivas que confessam publicamente essa nova ―qualidade‖ do seu caráter, ou para exotismo da lesbianchic com presença maciça na moda, no cinema e na música. (TREVISAN, 2007, p. 22)

No entanto, apesar de termos certa abertura para uma abordagem sobre a homossexualidade na televisão brasileira, Trevisan (2007, p. 22) entende que ela se inscreve como mais um desses reservatórios impresumíveis, pois constatamos em tramas televisivas personagens que se caracterizam para que o público tenha uma aversão a estes, pois, na maioria das vezes, são representados com estereótipos negativos. Para efeito de investigação, é valido destacar a pesquisa realizada por Leandro Colling (2016), o qual constatou que a emissora Rede Globo,

Em um primeiro momento, associou a homossexualidade com a criminalidade, depois preferiu os personagens estereotipados da ―bicha louca‖ e/ou afetados e afeminados. Nos últimos anos, passou a também representar os personagens homossexuais dentro de um modelo que consideramos heteronormativo. Dialogando com alguns estudos gays, também demonstraremos que a chamada ―narrativa da revelação‖, a partir da década de 90, passou a fazer parte das novelas que continham personagens homossexuais. (COLLING, 2016, p. 10)

O autor ainda aponta que, após a ditadura militar, no auge da liberdade de expressão, o campo artístico não deixou de apresentar a imagem dos sujeitos homossexuais, trazendo nos textos das telenovelas personagens que 32

representavam uma parcela da sociedade, que até o momento era excluída totalmente de qualquer forma de expressão legal nas emissoras de comunicação. Nessa abordagem, que aponta algumas produções que incluem os sujeitos homossexuais na dramaturgia, é possível destacar, de acordo com Perét (2005), várias produções que, a partir dos anos 1970, buscaram, através de uma linguagem que rompia com o conservadorismo, apresentar temas com o foco na homossexualidade e de alguma forma ganhar espaços para possíveis e novas discussões. No que se refere à homossexualidade, segundo Luiz Eduardo Neves Perét (2005, p. 38), foi no ano de 1974 que o primeiro personagem homossexual apareceu na televisão, o qual fazia parte da telenovela Rebu. O enredo do texto telenovelístico foi construído a partir de um assassinato. O personagem ―Conrad Mahler mata a jovem Sílvia por ciúmes dela com seu ‗protegido Cauê‘―. A homossexualidade estreou como tema em telenovela através do crime passional e da dependência financeira de Cauê, que mantinha um relacionamento homossexual com um homem velho, Conrad Malher. Os anos 1970 contribuíram com outras novelas que estampavam, nas cenas diárias, relações homossexuais, como referenciados por Peret (2005, p. 38), em 1977 com O Astro, em 1978 com Dancing Days e em 1979 com Marrom Glacê. Nessas produções, havia personagens secundários que apresentavam em seus diálogos o que era chamado de ―inversão‖ e tinham profissões ―gays‖ – o cabeleireiro Henri, o mordomo Everaldo e os cômicos Waldomiro e Pierre Lafond, concomitantemente. Outro exemplo que Perét (2005, p. 38) nos apresenta é a novela Pai Herói, que estreou na televisão brasileira no ano de 1979 e teve o personagem Benedito da Conceição, que se disfarçava de homossexual para se aproximar de uma mulher casada. Neste mesmo ano, tivemos a telenovela , que apresentou um relacionamento entre a protagonista Paloma e a jovem Renata, porém foi condenado antes mesmo de ir ao ar. Conforme o autor referenciado, foram seis telenovelas em que a homossexualidade foi vivenciada ou imitada ou ficou presa a fragmentos com estereótipos negativos. Seguindo a linha do tempo das novelas globais, chegamos aos anos 1980, em que, de acordo com Perét (2005, p. 39), inaugura-se, na faixa do horário das 18 horas, um enredo apresentando personagens que vivem histórias de amor de 33

sujeitos do mesmo sexo. Exemplos disso são dados na produção Ciranda de Pedra (1981), que apresentava nos discursos dos personagens a representação da homossexualidade, no entanto, este enredo trazia estereótipos negativos para tais personagens. Já no ano de 1986, Perét (2005) destaca a estreia da telenovela , que trouxe em seu enredo o relacionamento entre Mario Liberato e seu assistente Jacinto Donato, porém, o relacionamento era entendido de forma simbólica, não apresentando de forma direta o relacionamento entre os dois homens. Conforme Perét (2005), a novela Mandala, no ano de 1987, também apresentou a abordagem sexual e ―tocou em vários temas polêmicos, como o incesto‖. Em seu enredo, havia um personagem corrupto, Laio, reconhecido como bissexual. A narrativa televisiva mostrou igualmente aos telespectadores o personagem homossexual Argemiro, uma personalidade confusa, mística, não apresentando uma definição religiosa e ainda sendo o vilão do enredo, instalando assim uma imagem desprestigiada pela doutrina espírita e pelos grupos LGBT. (Grupo Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros). Nos anos seguintes tivemos, de acordo com Perét, outras telenovelas que apresentaram personagens homossexuais:

―Bebê a bordo‖ (1988) trouxe a personagem Joana Mendonça, uma mulher masculinizada e cômica com atração não correspondida por outra mulher. Em 1989, ―Pacto de Sangue‖ traz o personagem Bombom, notoriamente afeminado. Mas o grande destaque de 1988-89 foi ―Vale tudo‖, que discute a herança do companheiro homossexual, quando Cecília morre e sua namorada Laís luta para ficar com a pousada que era das duas. Thiago, o sensível e romântico sobrinho de Cecília, guarda sua virgindade para um momento especial e tem as duas tias como confidentes – o que leva seu pai a achar que ele esteja ―se tornando gay por influência delas‖. No fim da trama, César Ribeiro arruma um casamento para seu namorado rico com a sua própria amante. ―Tieta‖ (1989), outro sucesso da telinha, contou com a breve participação da travesti Ninete, representada por Rogéria. Sua aceitação na cidade foi ―comprada‖ pela protagonista e a Censura se preocupava mais com outras questões, dando-lhe pouca atenção. (PERÉT, 2005, p. 39)

Chegamos aos anos 1990, no início da década, quando se abriu uma disputa por audiência entre a Rede Globo e a Rede Manchete, dados estes apresentados pelo autor Perét (2005). Nesse período, as novelas globais não garantiam audiência, pois não atendiam ao gosto do público, deixando a outra emissora, através do 34

romance Pantanal, atingir o pico maior nos índices de audiência nos lares brasileiros. Mas, na busca pelo apreço dos telespectadores, entra em cena uma comédia, intitulada Mico preto (1990), que trouxe José Luis e José Maria, que apresentavam um relacionamento dissimulado, ambos de comportamento exagerado. (PERÉT, 2005, p.39) Outra produção televisiva que confirma a presença de homossexuais é a novela (1993), que trouxe a personagem Buba, pseudo-hermafrodita feminina congênita, que foi confundida pelos personagens com um travesti e teve um relacionamento com José Venâncio. Ela causou polêmica, sendo aceita por uma parcela da população e, no desfecho, seguiu o ―caminho da normalidade‖ ao se operar. (PERÉT, 2005, p. 40) As produções da dramaturgia brasileira não param de configurar e apresentar personagens que retratam homossexualidade, porém parte do público não mostra aprovação. Muitos grupos homossexuais apresentam uma contrariedade para a forma como são vinculados aos enredos. Dessa forma, Perét (2005) indica várias novelas com personagens homossexuais, contudo, estes estabelecem ações negativas em convivência social, deixando os grupos que defendem os direitos dos homossexuais descontes, pois a forma como o enredo se desdobrava criava um ar de menosprezo para uma parte da sociedade. Nas palavras do autor,

Em meados de 1995, em a novela ―A próxima vítima‖, foi exibida durante a discussão sobre o projeto de união civil entre pessoas do mesmo sexo, Sandro e Jéferson são colegas de faculdade cuja relação evolui ao longo da trama – e só era vista pelo discurso oral, sem manifestações de afeto explícitas, mesmo assim só depois que eles ganharam a simpatia do público. Grupos GLBT aprovaram o casal, que teve um final feliz. O mesmo não aconteceu em ―Explode coração‖, do mesmo ano, com o personagem Sarita Vitti, artista que se apresentava em boates gays. Ela não agradou muito ao público, nem aos grupos de ativismo GLBT, por sua aparência e comportamento que não a definiam como homossexual afeminado, travesti, drag queen ou transgênero.(PERET, 2005, p. 40)

No nos anos de 1997, 1998 e 1999, conforme o estudo de Perét (2005, p. 40), foram exibidas três novelas que trouxeram incutidos em seus personagens a homossexualidade e merecem ser consideradas pela estrutura e descompromisso em alguns enredos de representar tal opção com a devida normalidade. As novelas são Por Amor, Torre de Babel e , que trouxeram abordagens que não 35

foram apreciadas pela massa de espectadores, deixando os romances com baixos índices de audiência, uma vez que mostravam um excesso de violência doméstica, assassinatos. Nelas, a homossexualidade feminina é demonstrada como se fosse a válvula de escape para crueldade. Em relação ao último romance televisivo, Suave veneno (1999), a emissora recebeu o Grupo Gay baiano que fez uma representação formal contra a exposição do personagem homossexual, que inspirava comicidade sobre um assunto que deveria ser considerado com maior relevância: as agressões físicas que os homossexuais sofrem, muitas vezes não tendo o devido compromisso das autoridades para solução e repressão de qualquer tipo de violência. Entramos no século XXI com uma explosão gigantesca de personagens homossexuais nas telenovelas. Para Perét (2005, p, 41), os enredos sempre proporcionaram diferentes abordagens, porém a maioria desencadeou um processo de repulsa da sociedade, pois apresentavam estereótipos para o sujeito homossexual, trazendo uma imagem fragmentada destes, não sendo representado pelo núcleo de protagonista dos romances, e que ainda se observa nas produções da atualidade. São sobre questões dessa ordem que Silva (2016, p.14) faz algumas considerações que se entrelaçam nas ideias de Perét:

E assim, acompanhando a evolução enorme que foi o contexto social homossexual desses últimos anos, que as telenovelas abriram cada vez mais espaço para esses personagens, explorando novos ângulos, mas ainda sim estática diante de outros. Personagens gays nas novelas da Globo em horário nobre ficaram cada vez mais comuns, em América (2005), de Glória Perez; Páginas da Vida (2006), de Manoel Carlos; Paraíso Tropical (2007), de Gilberto Braga e Ricardo Linhares; (2007), de Aguinaldo Silva; (2008), de João Emanoel Carneiro; (2009), de Manoel Carlos; Passione (2010), de Sílvio de Abreu; Insensato Coração (2011), de Gilberto Braga e Ricardo Linhares; (2012), de Aguinaldo Silva; (2012), de Gloria Perez, Amor à Vida, de Walcyr Carrasco. Percebe-se então que ano após ano esse assunto é abordado nas teledramaturgias, às vezes com, e às vezes sem nenhum tipo de preocupação social. (SILVA, 2016, p. 14)

As telenovelas atingem um grande público e, nesta perspectiva, seria interessante repensar como esses enredos poderiam ser porta-vozes de um repensar a forma de ver o outro, ou seja, dar oportunidade de dialogar a respeito de etnias, classe social e principalmente escolhas sexuais. Compreendemos que as produções telenovelísticas poderiam abrir caminhos para discussões sobre a sexualidade e que estas tenham saldo positivo, conduzindo 36

a oportunidade de se conviver harmonicamente com diferentes grupos sociais, afastando práticas de preconceito e imagens ridicularizadas daqueles que não seguem um ―modelo‖ de comportamento social historicamente legitimado em relação à sexualidade. Perét (2005, p. 34), ao discutir a representação dos sujeitos, destaca que vivemos em uma sociedade que define os papéis que devem ser seguidos, pois temos uma moldura formada e constituída pela história, e as regras sociais atuam como estâncias reguladoras, o que obriga a todos seguirem suas normas. Além disso, estamos em uma sociedade patriarcal, a qual não permite, em alguns momentos, que se saia dos objetivos prescritos pela história social. Para o autor,

A sociedade tende a pensar em pares de exclusão mútua: positivo/negativo, quente/frio, dia/noite, direita/esquerda, reto/curvo. ―Falo, esperma e ejaculação‖ versus ―sangue menstrual, anatomia da vagina e parto‖ determinam diferenças na reprodução e na hierarquia social. Homens e mulheres são levados a se comportarem segundo diretrizes sociais definidas para esses papéis. (PERÉT, 2005, p. 34)

Nesse cenário social, vemos que a literatura, por sua vez, pode nos oportunizar um olhar crítico no que diz respeito à homossexualidade, assim como a telenovela pode apontar caminhos alternativos ou conservadores também sobre a sexualidade, promovendo, da mesma forma, debates sobre o tema. De modo especial, o texto literário oportuniza um conjunto de ações que produzem a viabilidade de analisar como se configura o conviver dos sujeitos homossexuais na sociedade especialmente quando esse é o tema das produções, mesmo que esta não tenha como autor um sujeito homossexual:

Sobre a produção artística homossexual é válido dizer que tantas são e poderão ser seus desdobramentos estéticos quantas são às possibilidades de existência humana. Assim, tal como na policromia da bandeira do arco- íris, a literatura e a arte homossexual também expressam a diversidade do ser, não podendo assim ser determinada por características a priori, pois não existe nem no mundo heterossexual, nem no gay uma identidade fixa, imóvel, não atravessada por devires. (JOVIANO, 2016, p.4)

A literatura e a telenovela, como produtos culturais, podem problematizar a manutenção de regras, permitindo ao público receptor a capacidade de visualizar representações sobre sujeitos homossexuais. No entanto, algumas produções podem favorecer uma discussão pertinente sobre a identidade homossexual, favorecendo, assim, a oportunidade de repensar alguns conceitos sobre o tema que 37

por um longo período ficou afastado das discussões tanto culturais e sociais quanto acadêmicas. Dessa forma, a literatura e as produções televisivas têm pontos positivos e podem favorecer o apontamento de questionamentos e análises. Considerado tais prerrogativas, é possível acrescentar, a partir das palavras de Barcellos (2006, p. 15), o quanto é primordial ter a literatura como uma fonte de discussão de temas que ficam à mercê das grandes discussões canônicas nos estudos já constituídos. A literatura não deve servir como mero pretexto para se discorrer entre bem ou mal acerca de qualquer assunto mais ou menos relevante. Ela assume imensa responsabilidade ao trazer para os leitores a representação social, garantindo que aspectos ―esquecidos‖ ou velados sejam matéria de discussão e de formação de conceitos positivos no contexto social. Seguindo Barcellos (2006, p. 16), é indispensável afirmar que literatura é uma peça fundamental da construção dessa história e, como tal, inscreve-se nesse intervalo entre ―o que se fez do homem‖ e ―o que ele faz do que fizeram dele, e, dessa forma, a literatura é um exercício de liberdade‖. Adentrando nesse ambiente de liberdade, a literatura que aborda ou apresenta personagens homossexuais se fortalece, trazendo uma perspectiva de debates levantados exclusivamente de espaços conservadores:

O homoerotismo, inicialmente concebido como patologia e perversão, foi lentamente adquirindo um caráter mais discursivo e se firmou como temática, atingindo estruturas moralmente conservadoras. Seu poder de alcance ultrapassou as barreiras aparentemente indissolúveis e penetrou inclusive no campo literário. Dentro desse âmbito, o homossexualismo passou a definir duas categorias distintas: a homoerótica e a gay. (KERBER, 2011, p. 59)

Segundo Kerber (2011, p. 59), estas duas categorias, homoerótica e gay, foram privilegiadas dentro da literatura, sendo que a primeira necessariamente não precisa ser escrita somente para o público homossexual e o escritor pode ter habilidade para escrever textos homoeróticos independentemente de sua identidade sexual. A referida autora apud Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes (2009) enfatiza que a literatura gay traz uma escrita carregada de insinuações que caracterizam ações, expectativas e relacionamentos homossexuais. Para Kerber (2011, p. 60), os estudos literários e culturais legitimaram a literatura homoerótica e gay, sendo que os primeiros se associam ao estudo da literatura homoerótica, os quais observam as tendências que se desvinculam de 38

questões sociais e políticas. Já os estudos culturais tendem a se preocupar com a literatura gay, pois, de acordo com a pesquisadora, esta ainda é uma literatura que envolve classes marginalizadas e, por sua vez, tais estudos culturais seriam uma forma de dar voz aos que ainda estão à margem da sociedade. Parece pertinente destacar que a literatura homoerótica e a gay não se enquadram na linguagem defendida pelo cânone da literatura brasileira, pois este prima por textos literários nos quais estejam presentes o poder e a dominação masculina. Há uma supremacia patriarcal nos relacionamentos: homem e mulher, branco e negro, distanciando qualquer outro tipo de relacionamento, e nessa vertente algumas produções literárias e telenovelísticas trazem à tona tais discussões, as quais corroboram para um novo olhar da sociedade. Já podemos estabelecer que a literatura homoerótica e a gay apresentam uma linguagem aberta, distante do cânone, porém muito próxima da realidade dos grupos minoritários. (KERBER, 2011, p. 60) Fazendo uma leitura de cunho comparatista entre o texto literário e a telenovela contemporâneos brasileiros, sobre os quais levantamos pressupostos teóricos, visualizamos alguns pontos com aproximações e em outros com um grande distanciamento de como estes vinculam as temáticas sobre os relacionamentos homossexuais. Num primeiro momento, percebemos que os dois gêneros textuais incitam a necessidade de discutir a temática, porém, de acordo com os diferentes teóricos e pesquisadores, percebemos que a literatura tem a preocupação de aproximar os personagens da realidade, vinculando uma linguagem própria dos grupos minoritários. No entanto, a telenovela atinge um maior alcance em nossa sociedade, devido a todo o aparato que a ela é permitida pela mídia, mas, quanto a ―conteúdo‖, deixa um vácuo nas discussões que estão atreladas aos relacionamentos homossexuais. Segundo Perét (2005) e Colling (2016), a representação dos sujeitos homossexuais nas telenovelas pesquisadas não corresponde à verdadeira conduta destes no contexto social, persistindo a estes a marginalização na sociedade.

1.3. Identidade homossexual

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A identidade homossexual é um campo ainda minado de prerrogativas que precisam ser reconhecidas dentro do contexto social e acadêmico. Há uma série de informações e estudos que vêm sendo aprofundados, garantindo, assim, uma melhor compreensão sobre a representação do sujeito homossexual. Em uma sociedade patriarcal em que a sexualidade se constitui em um binarismo no que se refere ao gênero masculino e feminino, é evidente que os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo estejam configurados em um espaço de marginalização na sociedade. Adriana Nunan do Nascimento Silva (2007, p. 33) salienta que ―a identidade homossexual tem, pelo menos, duas dimensões: a de como o indivíduo se reconhece (e se identifica com seus iguais) e a de como o indivíduo é visto pela sociedade (e se contrapõe aos grupos diferentes do seu)‖. Ambas dimensões estabelecem relações de oposição e geralmente criam condições de repressão e intolerância a relacionamentos sociais e sexuais que fogem do padrão estabelecido. A identidade diferencia os indivíduos, trazendo uma divisão de classes sociais, sexuais e morais e, nessa divisão, o sujeito homossexual muitas vezes não encontra espaços para divergir sobre suas escolhas, princípios, ou seja, não tem liberdade de se identificar como sujeito crítico em seu círculo de convivência. Vale ressaltar que estas divisões de classes fazem com que se formem grupos estigmatizados, formando identidades fragmentadas, dificilmente com voz de persuasão para impor sua identidade como ―normal‖. Para Janono Júnior et al,

A identidade engloba algumas dimensões da realidade social, as que se situam ao nível de representação ou da influência social. Ela indica como se incorporam esses fenômenos na personalidade, para virem a constituir-se como o núcleo duro do que o indivíduo pensa da maneira como se representa os outros e como avalia a sua própria posição. Assim, a identidade é o produto dos processos interativos operantes entre o indivíduo e o campo social, e não somente um elemento das características individuais. (ZANONI JÚNIOR, et al, 2016)

A identidade individual é construída a partir das relações que se estabelecem na interação com o meio social. Algumas afinidades confirmam o posicionamento dos sujeitos frente aos diferentes assuntos que são abordados no cotidiano. Dessa forma, é a união de conceitos sociais e particularidades que garante a identidade de um determinado grupo social. 40

A diversidade de conceitos identitários conhecidos na sociedade ao longo doa tempos, principalmente no final dos séculos XIX e início do século XX, favoreceu o reconhecimento da identidade homossexual, tornando-se evidente no cenário demográfico do país. Conforme Silva (2007, p. 38), o panorama e a demanda do capitalismo garantiram que houvesse o abandono das propriedades rurais e, com isso, as cidades se construíam, e os sujeitos poderiam de alguma forma expor sua sexualidade. Para o autor,

As condições e demandas do capitalismo também facilitaram o crescimento econômico e geográfico das comunidades homossexuais no século XX. À medida em que as cidades cresciam, um número cada vez maior de indivíduos abandonava a família rural para viver nelas. Este desenvolvimento possibilitou que homossexuais encontrassem outros indivíduos que estavam organizando suas identidades com base em sua sexualidade. Em suma, o capitalismo permitiu que desejos e comportamentos sexuais se transformassem em uma base para identidades distintas, contribuindo, neste sentido, para a formação da identidade homossexual e de movimentos sociais baseados nesta identidade. (SILVA, 2007, p. 38)

Durante esse percurso histórico de expansão das cidades, as identidades homossexuais vão se constituindo, porém, ainda muito tímidas e com certo receio, uma vez que as demandas patriarcais são fortemente consolidadas e confirmam a hierarquia e a função de cada indivíduo na sociedade. Seguindo as ideias de Zanoni Júnior et al (2016, p. 4), vale ressaltar que:

A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geográfica, biológica, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam o seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/ espaço. (ZANONI JÚNIOR et al, 2016, p.4)

Nessa premissa, entendemos que a identidade é formada por um conjunto de ações que permitem que novos grupos identitários se formem e se confirmem diante da sociedade, dispondo de objetivos definidos que transcendem o tempo e o espaço, marcando, assim, a própria história dos indivíduos. A identidade homossexual não fica à mercê de tais características que são constituídas com 41

maior reconhecimento de acordo com as influências sociais a que estamos expostos. De acordo com Silva,

Acreditamos que a identidade gay é um processo em devir que depende das descrições e crenças históricas que temos do assunto. Por outro lado, falar em identidade gay não significa que esta identidade seja onipresente e regule todos os aspectos do sujeito, reduzindo-o à dimensão sexual de sua existência. Não obstante, o lugar social ocupado pelos homossexuais influi em larga escala a construção de sua identidade: ao desempenhar um papel acreditamos que o papel estigmatizado, o indivíduo entra em contato com determinados aspectos da realidade e terá a sua identidade influenciada por essa perspectiva, identidade está ativada apenas em circunstâncias sociais particulares. (SILVA, 2007, p. 33)

Além disso, a identidade homossexual é apenas um dos aspectos da vida dos sujeitos, não ficando limitados somente a este, sendo uma identidade possível, como ser brasileiro, gaúcho, jovem, alto... (SILVA, 2007, p.32), o que indica ser a homossexualidade uma das diversas possibilidades identitárias, não ficando estigmatizado a uma pré-conceito definido por raízes patriarcais. Caminhando ao encontro de definições sobre a homossexualidade, deparamo-nos com dados teóricos que nos abrem possibilidades de compreender como se organiza a identidade homossexual. De acordo com a Silva (2016, p. 39), que traz estudos de Cass (1979, 1984) e Troiden (1985, 1989), autoridades em teorias sobre o referido tema, dentro dessa formação de identidades sexuais, pode- se confirmar positivamente quando o sujeito se define e aceita-se como homossexual. Tal confirmação ocorre em seis estágios definidos, que são: confusão, comparação, tolerância, aceitação, orgulho e síntese, as quais influenciam diretamente na vida dos sujeitos. Vale destacar, ainda de acordo com o estudo apresentado, uma síntese, discorrendo sobre a formação e características da homossexualidade que se vinculam com os seguintes identificadores:

Podemos dizer que os estágios típicos da formação da identidade homossexual incluem: sensibilização (geralmente ocorre antes da puberdade, quando o indivíduo começa a se sentir marginalizado e diferente das outras pessoas), confusão de identidade (frequentemente durante a adolescência, quando pensamentos de uma possível homossexualidade provocam conflito interno e incerteza), identidade assumida (durante ou depois da adolescência, quando a homossexualidade é aceita como identidade de self e identidade de apresentação, sendo revelada a outros homossexuais) e compromisso (adoção da homossexualidade como uma forma de vida, apresentando esta identidade publicamente, apesar do grau com que o indivíduo se assume possa variar). A síntese de identidade 42

ocorreria quando o sujeito se autoidentifica como homossexual, revela esta identidade a outras pessoas e se sente confortável com ela. É possível, ainda, identificar um último estágio no qual a identidade homossexual perde importância e se transforma em apenas uma das várias identidades no autoconceito do indivíduo. (SILVA, 2007, p.39-40)

O estudo garante que, nas mudanças de estágios, ocorre uma variação positiva, ocasionando uma modificação no próprio indivíduo de assumir sua identidade, sendo possível interagir nas diferentes áreas de sua vida. Conforme Silva (2016, p. 40), a condição de manter-se como sujeito que age criticamente e aceita a sua própria identidade garante o bem-estar psíquico, favorecendo o seu próprio bem-estar. Outro fator importante a salientar é que os estágios para a formação da identidade muitas vezes não acontecem da mesma forma entre os indivíduos homossexuais, algumas etapas não são reconhecidas durante o processo de aceitação. É evidente que a própria aceitação e a consolidação da identidade homossexual tornam-se um grande emaranhado de indagações, pois estamos expostos à sociedade patriarcal, na qual a formação social do indivíduo vem impregnada de discursos filosóficos, políticos e religiosos que regulam a vida social. No que tange esse espaço de confirmações conflituoso que estamos vivenciando na contemporaneidade, um grande número de textos midiáticos confirma o sujeito homossexual, e a diversidade de textos demonstra a dificuldade que indivíduos têm para confirmar sua identidade sexual, pois, em muitos casos, as representações ficcionais sinalizam que os personagens homossexuais sofrem agressões físicas, verbais e psicológicas, gerando constrangimentos. Tais ações violentas evidenciam nossa formação social, cultural, política e religiosa. Para Barreto,

Nesse sentido vemos que é comum homossexuais sofrerem exclusão nos dias atuais, como a mídia evidencia diariamente, mostrando que muitos são, inclusive, submetidos a constrangimentos no momento em que expõem sua identidade em determinados locais, ou na presença de determinados grupos, chegando alguns a sofrer até mesmo agressões físicas, e vemos essa exclusão se intensificar nos casos de homossexuais que assumem posturas mais associadas com o feminino, assumindo um gênero discordante com o seu sexo. (BARRETO, 2016, p. 3)

A escolha sexual é algo pessoal, no entanto, isso nem sempre é facilmente abordado entre as pessoas e existe uma grande preocupação em tratar do tema, que se refere à vida privada de cada um: ―Para os homossexuais, assumir a 43

sexualidade em público significa contar justamente o que os outros escondem, isto é, a vida sexual, que em nossa sociedade pertence à esfera privada‖. (SILVA, 2007, p. 44) Dessa forma, as identidades permeiam espaços conflituosos, em que os diferentes conceitos de certo ou errado circulam em um mesmo espaço, e, diante de divergências ou posições iguais, constroem-se identidades que se concretizam a partir das ideias que as unem, ou não, fazendo com que conceitos morais, sociais e sexuais pré-estabelecidos vinculem-se como certos, e assim, estabeleçam ou façam a diferenciação entre os sujeitos. Sabemos que toda aceitação do que é visto como diferente gera momentos conflitantes, pois assumir a homossexualidade muitas vezes torna-se uma tarefa que se constrói no silêncio:

Ao revelar sua identidade gay, o indivíduo está se comportando de acordo com seus princípios e ética pessoal, ao mesmo tempo em que arrisca perdas sociais e a sofrer possíveis agressões físicas. [...] De fato, se a vitimização silenciosa anterior à revelação tem altos custos psíquicos, assumir-se publicamente como homossexual também abre caminhos para uma série de eventos negativos, que podem ir desde reprovação social ao preconceito discriminação. (SILVA, 2007, p. 45)

Na perspectiva de definir a identidade, ocorre a tarefa de definir o seu próprio eu, não estabelecendo a confirmação, tornando-se um sujeito que está com o olhar atento da esfera heterossexual, ou seja, o sujeito permite-se ficar exposto a uma visão preconceituosa e ganha adjetivos que o colocam à margem da sociedade. Anselmo Peres Alós (2007, p.55) confirma tal condição quando destaca o ato de sair do ―armário‖, vocábulo usado para definir quem ainda não confirmou sua opção sexual, a de ser homossexual, a alguém que ainda não tem a certeza de estar seguro da sua própria identidade. Essa expressão alude a um indivíduo que se sente reprimido devido ao contexto que o cerca, pois sabe dos dilemas encontrados os que afirmam sua escolha como homossexual. Esse duelo de aceitação, ou não, é ocasionado a partir das relações dos fatores sociais, morais e sexuais, que habilitam a própria identidade e tornam-se elementos que sustentam a definição de quem ―sou‖, e definindo, assim, sua relação com o mundo. A aceitação ou não da identidade homossexual garante indagações constantes, pois existem conceitos e definições heterossexuais que normatizam as relações, anulando outras formas de convivência, então impor-se e apresentar-se 44

como homossexual depende de um ciclo de fatores que avalizam tal decisão. De acordo com Silva,

O processo de produção de identidade oscila entre dos movimentos: de um lado, estão aqueles processos que tendem a fixar e a estabilizar a identidade; de outro; os processos que tendem a subvertê-la e desestabilizá-la. É um processo semelhante ao que ocorre com os mecanismos discursivos e linguísticos nos quais se sustenta a produção da identidade. Tal como a linguagem, a tendência da identidade é a fixação. Entretanto, tal como ocorre com a linguagem, a identidade está sempre escapando. A fixação é uma tendência e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade. (SILVA, 2000, p. 84)

A identidade é uma constante construção, que acontece nas produções discursivas em todos os momentos, que se articulam, formando uma cadeia de significação, com diferentes sentidos, já que, para Silva (2000, p.80), essas identidades ―tão pouco são fixas, naturais ou predeterminadas.‖ Entendemos a formação da identidade como algo móvel e de constantes modificações, ocasionadas pela importância que a linguagem possui, apresentando um jogo de poder, no qual os enunciados são pronunciados em prol de uma determinada razão, trazendo a supremacia nas relações que se estabelecem. Para Silva,

A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de poder. (SILVA, 2000, p. 81)

Compartilhamos de tais ideias, pois a identidade como se confirma é escorregadia no que tange a sua formação. Os princípios que convergem nas relações buscam garantir sua posição pessoal, social e política, no qual se estabelece um jogo de poder e, assim, permanecem as características que ratificam a identidade do grupo a que pertence(m). Dessa forma, Silva (2003, p.25) destaca que ―a identidade, tal como a cultura, tampouco é um produto fino ou acabado‖. Esta identificação é movimento instantâneo de produção de características que resultam na formação de identidades. Para a autora, ―Os resultados dessa construção, tal como as práticas de significação a que está vinculada, são incertos, indeterminados, imprevisíveis.‖ (SILVA, 2003, p. 25). 45

Em uma sociedade com diferentes identidades, ocorre a imprevisibilidade nas relações, pois são diferentes fatores que nos diferenciam, consolidando expectativas, objetivos e afinidades diferentes. É nesse contexto de diferenciação que encontramos o olhar agressivo apresentado pelo contexto social patriarcal, o qual faz a exclusão dos sujeitos e aprisiona indivíduos, contribuindo para marginalização das relações sociais. Esta visão faz com que o poder, a submissão e a dominação sejam constantes em nosso dia a dia. Porém, apesar de termos uma sociedade masculinizada, a qual possui o grande poder de comandar todos os segmentos sociais, é possível visualizar de forma crescente grupos minoritários, buscando defender seus direitos e deveres expressos na Constituição Federal, pois, independentemente das escolhas sexuais, são cidadãos. Nessa busca incessante de confirmações, diálogos, pesquisas, que se tem um visível rompimento com barreiras políticas, sociais, religiosas que condenam os relacionamentos homossexuais. Os moldes homogêneos da sociedade cedem espaços para a confirmação de identidades homossexuais, uma vez que existe uma grande força para a consolidação da igualdade de direitos. Conforme Silva,

Vivemos em um mundo social, onde novas identidades culturais e sociais emergem, se firmam, fazendo com que fronteiras sejam apagadas, transgredindo proibições e tabus identitários, em um tempo de vários cruzamentos de fronteiras, de um tempo de conexões entre os cruzamentos de fronteiras, de um fascinante processo de hibridização de identidades. (SILVA, 2003, p.7)

Nesse sentido, compreendemos que a hibridização faz uma mescla de conceitos que definem os grupos sociais, os quais têm objetivos delimitadores, ou seja, criam fronteiras, excluindo e incluindo os sujeitos no contexto social, ―em lugares particulares e em momentos particulares‖. (SILVA, 2000, p.15) Seguindo o pressuposto de que a identidade se concretiza na diferença, é valido confirmar a ideia de Silva (2000, p.82) segundo a qual toda movimentação de incluir e excluir cria fronteiras, pois seleciona o que pertence ou não dentro dos termos que são delimitados. Para Silva,

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O processo de classificação é central na vida social. Ele pode ser entendido como um ato de significação pelo qual dividimos e ordenamos o mundo social em grupos, em classes. A identidade e a diferença estão estreitamente relacionadas às formas pelas quais a sociedade produz e utiliza classificações. [...] Dividir e classificar significa, neste caso, também hierarquizar. (SILVA, 2000, p.82)

Entendemos que hierarquização é a garantia e sustentação do binarismo nas relações. Para Silva (2000, p. 83), os movimentos ocasionados pelas identidades garantem dois sentidos, de acordo com as situações, pois de um lado, há o modo negativo, e, do outro, o positivo. É um jogo de poder confirmado em torno de oposições: ―masculino/feminino, branco/negro, heterossexual/homossexual‖. A inquietação na dualidade das posições traz a problematização que se organiza em torno das identidades. Considerando os pressupostos teóricos apresentados, fica evidente o percurso de confirmação que a identidade homossexual desenvolve através da afirmação de conceitos, princípios e objetivos. É um caminho metaforicamente completo de curvas, em um mundo governado pelo pensamento hegemônico, porém heterogêneo em sua formação. Dessa forma, é fundamental abrir nosso olhar sobre como se confirmam as relações que compõem o contexto social. Temos que percorrer uma teoria que nos sustente afirmar que conceitos constituídos pela normatização dominadora se estabelecem somente para a consolidação do poder.

1.4 A teoria queer

A sociedade, ao longo do processo histórico, garantiu alguns princípios morais, sociais, psíquicos que normatizam toda e qualquer relação entre os sujeitos. Vivemos em uma sociedade caracterizada por um contexto regrado pelos princípios do heterossexismo compulsório, o qual não certifica nenhum relacionamento que não esteja vinculado aos padrões das instituições que articulam e comandam as regras de convivência. Sendo assim, ao longo da história, para cada indivíduo são conferidas obrigações, caso contrário, há punição. Isso ocorre em sociedades de base patriarcal. Para aos homens, a tarefa de manter e ser o chefe do lar, às 47

mulheres cabe o papel de serem submissas e executarem tarefas domésticas e zelar pelos filhos e o marido. Para Louro (200, p.1), há um grande número de instituições autorizadas a garantir a normatização das relações, principalmente as sexuais. Tais normas aceitam somente a relação homem e mulher, numa relação de binarismo que não permite aceitação de qualquer relacionamento que não esteja nos moldes pré- definidos pela sociedade dominante. Foucault (2007, p.114) nos esclarece isso, afirmando que a sexualidade é uma relação de poder, no entanto, não é uma elemento rígido, mas um instrumento utilizável com o maior número de manobras, podendo servir de apoio ou de tensão às mais variadas estratégias de dominação. Para entendermos as relações de poder que se comprimem em nossa sociedade, é oportuno discorrer sob a visão de Foucault, pois nos dá condições de compreender como a sexualidade é um jogo de posse, no qual o ―estranho,‖ o que não segue os princípios compreendidos como certo, não faz parte de um contexto social ―normal‖. Nesse contexto de normalidade que regula as relações, fica evidente que precisamos conhecer que tais princípios se vinculam ao contorno e entendimento do que se estabelece como sendo gênero, ou seja, feminino/ masculino, pois é a partir deles que se estruturam os elementos que convergem as relações. Anselmo Peres Alós (2007, p. 44) contribui para a compreensão da questão de gênero, esclarecendo que esta seria uma questão problematizadora ao definir o sexo, o gênero entre os sujeitos, fazendo apenas a diferenciação dos sujeitos a partir de duas posições, ou seja, feminino/ masculino. E nos faz a seguinte indagação: ―Como então reivindicar novas formas e possibilidades de se estar no mundo, novas configurações identitárias de gênero e de sexualidade?‖ Partindo desse ponto de inquietação, recorremos à teoria queer, já que esta que vai ao encontro do estudo das identidades que não estão calcadas em fundamentos de binarismo. Através dessa teoria, conseguimos valorizar e reconhecer identidades que encontramos nas entrelinhas dos discursos diários os quais nos deparamos e nos interrogamos: a sociedade vincula-se apenas a duas características biológicas, feminino/masculino? Os sujeitos que não se configuram a partir do gênero quem são? Para Alós,

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Por um lado, determinadas configurações das identidades de gênero parecem falhas, ou ainda, impossibilidades lógicas que não correspondem ao ideal prescrito pela matriz de inteligibilidade cultural. Por outro, È graças a essa série de falhas, e da proliferação de identidades de gênero descontínuas e subversivas, que se instaura a possibilidade de minar, de questionar e de desestabilizar a lógica heteronormativa, a qual determina a inteligibilidade dos corpos no seio social, na medida em que tais identidades descontínuas. (ALOS, 2007, p. 43)

De acordo com a leitura, a heteronormatividade funciona como pilar para fixar identidades e, assim, exclui outras práticas de relacionamentos que não sejam de gêneros diferentes. Conforme Alós (2007, p.46), vivemos regulados histórica e biologicamente pelas relações de gênero, sexo, criando limites fundadores que demarcam as fronteiras de relacionamentos, ―uma série de crenças pressupostas como autoevidentes e regulamentadas por uma economia erótica e reprodutiva, marcada pelos limites dos gêneros‖. Sendo assim, é nesse limite desconhecido para alguns que surgem a nossa investigação e a nossa inquietação para percorrer o caminho dos limites dos gêneros que fazem com que ainda tenhamos uma repressão de pensar agir, amar e viver em liberdade. Para esse propósito, conhecer a teoria queer nos faz entender os sentimentos que configuram os sujeitos e ficam reprimidos em estereótipos e na estranheza da grande parte da sociedade. Pensar na teoria queer é demonstrar que não estamos presos somente em dois polos centrais de identificação (masculino/feminino), entretanto, somos uma sociedade formada por diferentes identidades que não se restringem apenas a duas características biológicas. No jogo de dominação, no qual vivenciamos as relações familiares, constatamos a multiplicidade entre as relações, ou seja, uma constante modificação e abertura na contemporaneidade para as relações interpessoais. Sabemos, através da linha histórica da sociedade, que relações entre indivíduos do mesmo sexo sempre acontecerem, no entanto, com maior preocupação por parte das organizações, como aborda Louro:

Nos dois últimos séculos, a sexualidade tornou-se objeto privilegiado do olhar de cientistas, religiosos, psiquiatras, antropólogos, educadores, passando a se constituir, efetivamente, numa ‗questão‘. Desde então, ela vem sendo descrita, compreendida, explicada, regulada, saneada, educada, normatizada, a partir das mais diversas perspectivas. Se, nos dias de hoje, ela continua alvo da vigilância e do controle, agora ampliaram-se e diversificaram-se suas formas de regulação, multiplicaram-se as instâncias e as instituições que se autorizam a ditar-lhe as normas, a definir-lhe os padrões de pureza, sanidade ou insanidade, a delimitar-lhe os saberes e as 49

práticas pertinentes, adequados ou infames. Ao lado de instituições tradicionais, como o Estado, as igrejas ou a ciência, agora outras instâncias e outros grupos organizados reivindicam, sobre ela, suas verdades e sua ética. (LOURO, 2001, p. 1)

Esse olhar atento da sociedade geral traz à tona a força masculina como sendo o pilar precursor das normas que são seguidas por grande parcela da sociedade. As instituições dão o aval para que a repressão e dominação patriarcal sejam realmente cumpridas. Mulheres, negros, homossexuais ficam em um patamar inferior ao olhar de quem comanda e, assim, há a monopolização dos costumes. Essa alta concentração de dominação que estamos vivenciando ignora uma parcela da população ou grupos sociais e nela encontramos minorias sexuais, procurando caminhos para viver de acordo com suas expectativas. Nessa perspectiva, para descentralizar e discorrer sobre o que fica fora das normas estabelecidas historicamente, surgem teóricos que abarcam sob a perspectiva das minorias. A teoria queer vem para romper com a ideia de superioridade masculina mantida ao longo da história. A visão queer traz um novo olhar para os grupos sociais que ficam eliminados das fronteiras dominantes, pois sabemos que a força patriarcal confirma identidades fixas com princípios conferidos, difundidos e alimentados de fundamentos históricos ou religiosos. Nesse sentido, Lizandro Carlos Calegari destaca que:

A perspectiva da teoria queer consistiria numa reação ao heterossexismo compulsório, não contra a heterossexualidade em si, pois esta não deixa de ser uma opção entre as outras. A teoria queer inclui não somente questões sexuais ou de desejos sexuais, mas também um amplo quadro de dinâmicas sociais – maneiras de se vestir, aparência corporal, discurso, profissão, formas de ser no mundo, classe social – que é homologamente correlato à sexualidade enquanto discurso dominante na sociedade contemporânea. (CALEGARI, 2007, p. 2)

Os estudos sobre a teoria queer foram impulsionados em decorrência de movimentos sociais ocorridos em maio de 1968 na França e impactaram as estruturas da sociedade patriarcal daquele país. Os movimentos organizados por mulheres e outras classes rotuladas como minorias se uniram em prol de seus direitos. O movimento com princípios fortes garantiu os primeiros passos para agir criticamente na sociedade: 50

A França dos anos 60 era bastante conservadora. Havia muita rigidez e muita disciplina em diferentes aspectos sociais e não havia tolerância e igualdade de direitos. Entretanto, em maio de 1968, surge um movimento, inicialmente liderado por estudantes, que, inconformados com o autoritarismo e com ausência de igualdade de direitos civis, decidiram sair às ruas para protestar. que era para ser um simples protesto estudantil transformou-se numa greve geral que paralisou a França por mais de duas semanas. O maio de 68 mudou profundamente as relações entre raças, sexos e gerações naquele país, repercutindo, inclusive, em outros países, inclusive no Brasil, com o diferencial de que, aqui, o viés era mais político. O ano 1968 foi, sem dúvida, um marco histórico mundial, devido ao seu caráter libertário e igualitário. (SANGALETTI, 2012, p. 34)

A sociedade social construída e conhecida ao longo do século XIX e meados do século XX estabelecia relações pessoais e sociais a partir das diferenças sexuais. E assim o relacionamento aceito era apenas entre homem e mulher, uma postura binária, não se aceitavam os relacionamentos homossexuais. Vivia-se em um mundo organizado por dois polos: feminino/ masculino, negro/branco. Dessa forma, o movimento ocorrido em maio de 1968 garantiu às identidades que pudessem sair das posições concebidas como certas, e isso foi, enfim, uma abertura para confirmação crítica social de seus ideais. É no rompimento com o velho modo de pensar que é possível conhecer a voz de quem fica à margem, e assim a teoria queer confirma esse rompimento, trazendo respostas aos questionamentos sobre o que é taxado como estranho, esquisito, fora dos padrões. Nas palavras de Louro (2006), "a expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres homossexuais‖. A teoria queer não busca instaurar um novo projeto de sujeito, mas consolidar uma abertura para o reconhecimento do que se pensa como fragmentado. (LOURO, 2006, p. 6) Em relação essa nova perspectiva de entender e principalmente reconhecer estilos, atitudes, a teoria queer destaca duas formas de interagir no meio social. De um lado, há os sujeitos que compram tal imagem como positiva para os relacionamentos e, de outro lado, verificamos uma base enraizada nos padrões conservadores que discorda em qualquer circunstância da pluralidade sexual. Conforme Louro destaca estamos com duas visões distintas quando se trata de teoria queer:

Sua visibilidade tem efeitos contraditórios: por um lado, alguns setores sociais passam a demonstrar uma crescente aceitação da pluralidade 51

sexual e, até mesmo, passam a consumir alguns de seus produtos culturais; por outro lado, setores tradicionais renovam (e recrudescem) seus ataques, realizando desde campanhas de retomada dos valores tradicionais da família até manifestações de extrema agressão e violência física. (LOURO, 2006, p. 2),

Tais percepções apenas evidenciam o caráter cultural e não fixo das identidades, e Louro sugere que são necessários estudos sobre as formas de gênero e sexualidade, rompendo com qualquer forma de manipulação e regras já constituídas e que são colocadas para serem seguidas, características como etnia, gênero, geração são elementos que fazem a classificação e hierarquização na sociedade. Segundo Calegari (2007, p. 2), a teoria queer foi adotada no ano de 1990 pela vanguarda dos estudos gays, cujo trabalho, na teoria cultural, vincula-se aos movimentos políticos para liberação dos gays. Para esse autor, tal teoria privilegiou questionamentos não somente para questões sobre sexualidade, mas também abriu um leque para discutir sobre a ―própria cultura, tal como baseada numa negação das relações homoeróticas‖. Para David William Foster (2000), a teoria queer recusa identidades fixas, determinadas pela sociedade autoritária, machista e controladora, a qual tenta impor a heterossexualidade como regra para o comportamento sexual. Assim, os indivíduos que não fazem parte dessa configuração são lançados ao grupo indefinido, no qual gays e lésbicas não são reconhecidos na sociedade, ficando à margem dos processos sociais. A teoria queer dá a oportunidade de abrir caminhos para discussão sobre os grupos que se estabelecem em contextos que não são prestigiados pela sociedade dominante. É na visão queer que vamos reconhecer vozes, culturas, hábitos, ideias, e, assim, fortalecer o diálogo necessário para humanização da sociedade. Como explica Sangaletti,

Entendemos que a teoria queer abre espaço para o indivíduo optar pela pluralidade de relações, constituindo modelos que rompem com o autoritarismo do patriarcado. Assim, pode ser considerada uma busca, uma reconfiguração das identidades sexuais e uma transgressão às regras tradicionais dos relacionamentos estabelecidos pela sociedade, onde predomina o relacionamento homem\mulher. (SANGALETTI, 2011 p. 27)

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A teoria queer não agrega nenhum fundamento patriarcal, deixando livres o pensar e agir dos indivíduos. As relações não se estabelecem apenas pela obrigatoriedade, mas propiciam um agir de forma livre. Conforme Calegari (2007, p.3), a teoria queer ―contempla todo o corpo, procurando extrair dele novas experiências de erotização.‖ Mãos, pés, quadris, olhos, boca, tudo faz parte da relação que está sendo vivenciada. A teoria queer rompe com a ideia de que o sexo deve ser voltado apenas para a procriação, mas também pode ser para o prazer dos sujeitos. Para Calegari,

O queer, conforme se verificou, rejeita as definições fixas de sexualidade elaboradas pela heteronormatividade compulsória. Isso significa que há uma subversão do projeto que elege a relação homem-mulher como a unicamente autêntica e aceitável. O queer, nesse sentido, rompe com o projeto autoritário e excludente e promove um modelo de inclusão social. (CALEGARI, 2007, p.4)

Seguindo as ideias do autor, a teoria queer enfatiza que existe uma liberdade no corpo, da maneira de sentir, de agir e de ter prazer. Os elementos que constroem as relações não estão vinculados ao poder de dominação. De acordo com a teoria queer, descobrimos novos usos para o corpo, de modo que cada um possa estabelecer suas próprias combinações e não há por que supor que existam exceções quanto ao prazer que ele possa oferecer. (CALEGARI, 2007, p. 5) Barcellos (2006, 29) enfatiza que a teoria queer inscreve-se num amplo movimento de questionamento a aspectos da identidade gay, que também se vincula ao estranho, pois, para sociedade que conserva as raízes patriarcais como base para maioria das relações, ser homossexual traz ainda um estranhamento para a sociedade. Porém, a teoria queer fundamenta um repensar que vem ao encontro dos relacionamentos de gêneros sexuais iguais, pois sua base está fortalecida pelo que é desvinculado do que é certo ou reconhecido como ―normal‖. Os estudos sobre a visão da teoria queer preocupam-se com a diversidade ou pluralidade das ações que se fortalecem através das escolhas dos sujeitos. Nessa perspectiva, ser diferente é uma fonte de conhecimento e de estudo. O que foge dos padrões impostos pela combinação dominante é fomentação para a teoria aqui estudada. As ―novas‖ formar de sentir, ver, amar, vestir, olhar traz a constituição da teoria queer. O estranho, o errado é a nossa ferramenta principal de investigação, 53

que não se consolida no cotejo da sociedade patriarcal, todavia, é inspiração para conhecer a diversidade identitária que a sociedade contemporânea nos apresenta, muitas vezes, no silêncio da violência contra o ―anormal‖. Nossa afirmação é confirmada com as palavras de Kerber:

O termo queer é utilizado para definir as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo e reage contra toda carga pejorativa que esse tipo de relação possui. Além disso, a perspectiva queer repudia os conceitos sobre sexualidade apresentados pelo patriarcado e quer desmascará-los. Para os adeptos do patriarcalismo, o movimento se constitui numa transgressão às regras tradicionais, pois o queer busca uma reconfiguração das identidades sexuais, uma vez que não concebe os sujeitos como unificados, pré- definidos e pré-determinados social e historicamente. (KERBER, 2007, p. 30)

Na perspectiva da teoria queer, tudo que se desvincula dos princípios rígidos e difundidos pelas diversas instituições em nossa sociedade é de interesse e, segundo a pesquisadora Kerber (2011, p.31), não somente os relacionamentos homossexuais são de interesse de tal teoria, mas sim qualquer sujeito que não seja reconhecido como ―correto‖ na sociedade. E destaca que a teoria queer não é contra a heterossexualidade, pois também faz parte das relações que permeiam no meio social. A sociedade com heterogeneidade de identidades, crenças, hábitos não pode ser vinculada apenas nas expectativas de ideias que aprisionam a viver conforme o que é estabelecido nas normas de exigências do patriarcalismo. Uma vez que se pensa em dar voz às minorias, é preciso reconhecer a importância da teoria queer, como um enunciado positivo para rompimento dos velhos dogmas que confirmam a violência verbal, física e psicológica. Para Sangaletti,

Para a teoria queer, a homossexualidade não possui uma única causa ou uma única razão. Ela não deve ser encarada como uma doença ou um problema, tendo em vista que a homossexualidade se origina da combinação de aspectos físicos, sociais e biológicos e se caracteriza pela atração erótica entre pessoas do mesmo sexo. Além disso, também deve ser considerada a questão da marginalização, do preconceito e da discriminação enfrentados por aqueles que decidem assumir a sua identidade. (SANGALETTI, 2011, p. 28)

Essa possibilidade de reconhecer a teoria queer nos faz aproximarmos do entendimento das relações entre os sujeitos em uma sociedade controlada patriarcal 54

e autoritariamente, a qual organiza e estabelece regras de convivência. A teoria nos faz reavaliar tais organizações, abrindo caminhos para respeitar e permitir a interação positiva entre os sujeitos. Dessa forma, realizamos uma análise de como se constroem identidades sexuais representadas em narrativas curtas literárias e em telenovela, sabendo que esta última tem a função final o entretenimento, enquanto o texto literário não assume, originalmente, esse propósito. Assim, queremos entender se nessas produções há estereótipos que (des)configuram a identidade dos sujeitos homossexuais.

2. PERSONAGENS HOMOSSEXUAIS NA LITERATURA E O CONTO BRASILEIRO

2.1 A homossexualidade na literatura brasileira 55

No contexto das produções literárias dos séculos XX e XXI, observamos uma preocupação de autores e pesquisadores em trazer ao centro de seus textos uma nova posição para mulheres, negros, índios, homossexuais, cujas vozes passamos a poder ouvir. Isso nos garante uma possibilidade de compreensão e reconhecimento de grupos sociais que ficaram muito tempo presos a amarras de uma sociedade que define o branco, o homem, e as relações heterossexuais como o centro das referências a ser seguidas e como vozes a serem representadas. É no reconhecimento de vozes de minorias que construímos nosso estudo, analisando proposições levantadas por diferentes pesquisadores quanto a relações homoafetivas, pois entendemos que, neste início do século XXI, é necessário apresentar algumas abordagens sobre essa temática, fortalecendo, assim, ações para que humanização entre os sujeitos seja adquirida a partir dos estudos literários comparados. Antonio de Pádua Dias da Silva (2014) aborda a homossexualidade e a relaciona com as artes. Conforme o pesquisador, a literatura e outras artes, ao longo dos tempos, buscaram representar, através de imagens, caricaturas e produções escritas, relacionamentos homossexuais, aproximando a temática das diferentes interpretações que decorram em cada período histórico, pois, como sabemos, a homossexualidade foi entendida com outro olhar, diferente do que reconhecemos atualmente na sociedade contemporânea. Conforme Silva (2014, p. 61), na Grécia antiga, os relacionamentos homossexuais constituíam concepções aceitas entre os indivíduos, pois, para esta sociedade, tal prática era algo pedagógico, e, sendo algo para inserção na sociedade, um jovem precisaria ter sua iniciação sexual com um homem mais velho. Outras sociedades fizeram dessa atividade uma prática visível no contexto cultural, como na Roma antiga, nos movimentos do Renascimento e Arcadismo, nos quais percebemos com maior intensidade as relações afetivas. No ocidente, como afirma Silva (2014), as práticas homoafetivas, também reconhecidas como amizade grega, têm sido uma constante nas representações do campo artístico, ou seja, na literatura, pintura, fotografia ou documentários. E, no que tange aos textos literários, o referido autor enfatiza que, na contemporaneidade, a homossexualidade tem ganhado espaço no campo da literatura, pois há um 56

grande crescimento de pesquisadores interessados nessa temática, aproximando os leitores de produções que a discutem. De acordo com Silva (2014, p. 62), a literatura brasileira dá espaço às vozes que foram (ou são) marginalizadas durante um longo processo sociocultural, e esta abertura possibilita questionar posicionamentos e se colocar frente ao poder dominante da sociedade, ou seja, o patriarcado. Nas palavras do autor, assim, ―repercute o livre trânsito de vozes reprimidas historicamente, e assim, propagam imagens valorizando a si, quando constroem lugares de livre circulação para os iguais‖ (2014, p. 62). É nessa vertente que percebemos a importância da literatura em proporcionar a possibilidade de discutir assuntos que são representados através de vozes dos personagens. Relações homoafetivas são vivenciadas dentro das produções literárias contemporâneas e trazem à tona questionamentos sobre gay, lésbicas, queer, que, por um longo período, estiveram compactados nas entrelinhas da literatura, devido aos requisitos lançados para a sociedade geral que correspondiam à ética, moral religiosa e cultural. Tais preceitos tão recomendados e firmados pela sociedade reguladora geraram em alguns casos o preconceito contra o sujeito homossexual, e, dessa forma, autores de textos literários trouxeram ao leitor a possibilidade de um novo olhar sobre esse tipo de relação afetiva. (SILVA, 2014, p. 63) É valido destacar que, na contemporaneidade e no contexto brasileiro, o tema da homossexualidade ganhou maior relevância no início dos anos 2000, quando discussões em torno da temática garantiram uma possibilidade de rever alguns conceitos que eram apresentados anteriormente com uma menor ênfase. Para Silva,

O homem que amava outros rapazes e outros ensaios, de Lopes (2002) constitui um dos títulos que procurou sistematizar pensamentos títulos que procurou sistematizar pensamentos reunidos em torno da literatura, da cultura e dos pensamentos homoeróticos. Imagem e diversidade sexual e estudos da homocultura, organizado por Lopes et al (2004), referenda uma ampla discussão em torno de teorias, críticas, imagens, literaturas homoeróticas- todos os textos da organização foram resultantes do II Congresso da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura – ABEH. A obra Indisciplinar a teoria – estudos gays, lésbicos e queer, organizada por Cascais (2004) reúne ensaios que discutem, do ponto de vista da literatura, da dramaturgia, da psicologia, da filosofia e de teorias, as aporias em torno dos conceitos ‗gênero‘ e ‗sexualidade‘, priorizando-se o diverso em detrimento das categorias classicamente lidas na relação polarizada ou 57

binária, a saber, unicamente o masculino e feminino heterossexuais. (SILVA, 2014, p. 63)

A partir dessas considerações elencadas por Silva (2014, p.64), a preocupação dos teóricos e pesquisadores é de apresentar ao público leitor uma perspectiva de compreender e aceitar relações homoafetivas, que estão como foco principal em várias produções contemporâneas da literatura brasileira, e, dessa forma, oportunizar aos leitores um novo olhar para os sujeitos, ou seja, um repensar através da obra ficcional. Muitos autores de nossa literatura, como Caio Fernando Abreu, Gilberto Noll, Simone Campos, Lygia Fagundes Telles, Marina Colassanti, entre outros, trouxeram em suas narrativas personagens que se posicionaram através de seus discursos uma maneira de sensibilizar, e principalmente, persuadir para que se estabeleça o respeito entre os sujeitos. Para Silva,

A característica desta demanda é a necessidade de tornar visível, na e pela literatura, a escrita que aborda a temática homoerótica, através de um estilo marcado pela escrita de si, como possiblidade de as alteridades, muitas vezes negadas socialmente, serem também entendidas na e pela cultura brasileira. (SILVA, 2014, p. 64)

Seguindo estas considerações, entendemos a necessidade de aproximar os sujeitos do tema com enfoque a partir da literatura, aproximando, assim, assuntos que não são abordados com mesma intensidade em outras esferas textuais. Contudo, em algumas obras literárias contemporâneas, há uma abertura discursiva que garante aos indivíduos compreender e discorrer sobre os relacionamentos homossexuais de maneira positiva. A literatura com abordagem sobre a relação homossexual vem aproximando a temática para diferentes faixas etárias, desconfigurando um olhar fragmentado e obscuro sobre a relação entre sujeitos do mesmo gênero. Silva (2014) apresenta como exemplos algumas obras que trazem em seus narradores, personagens, espaços a possibilidade de uma abertura para discussão nos diferentes segmentos da sociedade. Podemos destacar alguns exemplos consideráveis neste tempo contemporâneo. A produção A fantástica literatura queer, conforme Silva (2014, p. 65), é o conjunto de quatro volumes, que se diferenciam a partir das capas (vermelho, 58

laranja, amarelo e verde), a qual traz a temática da homossexualidade, demarcando um território para proporcionar aos leitores temas que estão em torno da sexualidade e, principalmente, quando se refere aos sujeitos de sexos iguais. Outras aberturas para a temática foram criando espaços e garantiram, à literatura brasileira contemporânea, obras literárias que deram sustentação para construção de diálogos. Segundo Silva (2014, p. 65), no ano de 2010, tivemos o lançamento das as seguintes produções: Meus dois pais, de Walcyr Carrasco, O gato que gostava de cenoura, de Rubem Alves, O menino que brincava de ser, de Geogirna da Costa Martins, e o Menino que ama menino, de Marilene Godinho, e essas obras foram direcionadas ao público infanto-juvenil. As produções trouxeram personagens jovens e constituíram um enredo que transitava pelos dilemas da sexualidade, proporcionando aos jovens leitores a possiblidade de repensar sobre o tema que durante o percurso histórico da humanidade ficou preso a entranhas do poder patriarcal. Dessa forma, Silva (2014, p. 65) salienta que é necessária uma abertura para discussão entre os pesquisadores, pois temos em nossa literatura contemporânea uma gama de produções que problematizam a temática dos relacionamentos homossexuais e, assim, precisam ocupar o centro das discussões acadêmicas, pois as questões referentes às ―formas de se comportar afetivo-sexualmente das pessoas já estão sendo projetadas na literatura de ficção via personagens‖.

À medida que a intimidade é transformada nas culturas, as literaturas encontram formas de correlacionar as condições de produção àquilo que é plasmado nas páginas da ficção. Longe de subverter ou de querer ser uma literatura à parte, essa produção, pela importância e necessidade, emerge como alternativa ou como possibilidade. Soma-se a toda uma produção já consolidada no cânone e no campo literário brasileiro. (SILVA, 2014, p. 66)

O autor nos diz ainda que, ao abrir caminhos para questões homoeróticas, não quer dizer que se propõe um olhar subestimado para a literatura tradicional. Estamos possibilitando aprofundar interrogações que são presentes no cotidiano do sujeito contemporâneo que vão ao encontro de antigas bases culturais, as quais não possibilitavam o transitar nos entre-lugares 4 da sociedade.

4 Linguagem usada por Santiago (1978) e Bhabha (1998)

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Dessa forma, podemos transitar nestes entre-lugares quando nos deparamos com personagens, como os que podemos conhecer na obra ficcional de Caio Fernando Abreu, ―os monstros‖ como são reconhecidos pelo pesquisador Alexander Meireles da Silva, recebem essa característica, pois são indivíduos que não se compõem das virtudes devidas historicamente. Segundo o pesquisador Alexander Meireles da Silva (2015, p.147), os monstros que se vinculam na literatura de Caio Fernando Abreu são aqueles que estão próximos e também distantes da sociedade, pois estes são reconhecidos como sujeitos subversivos e precisam ser desvendados, mas ao mesmo tempo precisam ficar afastados da sociedade em que estão de alguma forma estão inseridos. É conjunto de interrogações que contribuem para vincular essa característica aos indivíduos que estão nos entre-lugares e, muitas vezes, são marginalizados pela sociedade dominante. Silva (2015, p. 147) utiliza algumas considerações de teóricos que nos esclarecem como o meio social cria fronteiras entre os indivíduos, estabelecendo barreiras as quais favorecem para fixação de identidades. Como salienta Sergio Luiz Prado Bellei apud Silva (2015, p. 147),

o monstro é aquela criatura que se encontra na ou além da fronteira, mas está sempre e paradoxalmente próximo e distante do humano, que tem por função delimitar e legitimar‖ (2000: 11). Mas quais são as dimensões desta fronteira? Os monstros da modernidade subvertem cada vez mais os limites daquilo que é considerado ―normal‖ ou aceitável e se fixam na fronteira do questionável, daquilo que pode ser visto e entendido de diversas formas. Na verdade, o que o monstro pretende realmente é ―pertencer ao humano do que se percebe injusta e brutalmente separado‖.

É a partir de metáforas, como estas, de ser um ―monstro‖, que destacamos os sujeitos que para uma parcela da sociedade são considerados diferentes, devido a suas escolhas, e, nessa vertente, podemos salientar as escolhas no que diz respeito aos relacionamentos homossexuais. Nessa esteira, podemos encontrar na literatura do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu o olhar desviante dos relacionamentos consagrados pelas entidades reguladoras (Igreja – Estado). É em narrativas permeadas de ações que os sujeitos/personagens buscam alicerçar suas escolhas (sociais - sexuais), com indagações que trazem as características de sua própria identidade e de preconceito sexual vivenciado. Obras ficcionais propiciam ao leitor o contato com histórias que, durante um longo período histórico e literário, ficaram 60

distanciados das páginas e da representação em diferentes produções, e essa aproximação oportuniza a humanização dos sujeitos bem como uma reflexão sobre respeito e diferença. Silva (2015) aponta alguns contos de Abreu que sugerem relacionamentos homossexuais, como ―Mergulho I‖ (1977) e ―Terça-feira gorda‖ (1982), nos quais o pesquisador observa um discurso marginal imposto aos homossexuais, para esses a identidade é concebida e constituída de medos, angústias e incertezas. Tais percepções vão conduzindo o leitor interagir no enredo, e assim, reconhecer na narrativa literária os dilemas que os sujeitos vivenciam devido as suas escolhas.

A representação da identidade homoerótica construída por Caio Fernando Abreu, caracterizada pelo signo da marginalidade, apresenta uma estreita relação com o conceito do monstruoso. Afinal de contas, assim como os personagens desajustados e subversores que habitam as narrativas de Caio Fernando Abreu, o monstro encontra no entre-lugar da fronteira o seu (temido) espaço de existência. (SILVA, 2015, p. 148)

Dessa maneira, o espaço ―temido‖ é um ambiente contraditório de aceitações e percepções da própria identidade dos indivíduos que não são reconhecidos pela dominante da sociedade. É na configuração estabelecida pelos personagens que os sujeitos ―desajustados‖ ganham forças, e a partir do enredo nos apresentam ações que fazem refletir sobre o meio social, e, dessa forma, construir um olhar mis humanizado sobre os sujeitos. Silva (2015, p.149) confirma, a partir de suas análises, que os monstros desajustados na sociedade encontram forças de propagar no desenrolar do texto literário sua forma de pensar, agir e defender suas marcas identitárias, e salientam os conflitos que se deparam para ser reconhecido em um mundo provisório e instável. Nas palavras de Silva,

―Mergulho I‖ exemplifica como Caio Fernando Abreu aborda a questão dacrise das identidades através da utilização de imagens e símbolos ligados a líquidos, como a água e o mar, ou outros fluidos, como suor e mesmo o sêmen. A leitura aqui realizada demonstra como estes sujeitos, tomados aqui como ―monstros marinhos‖, apresentam uma fluidez identitária provocada pela pressão da sociedade para que o indivíduo se renda a um sistema normativo rígido, que impõe um tipo de comportamento no qual nem todos os sujeitos se enquadram. (SILVA, 2015, p. 149)

É no desenrolar de uma sociedade fragmentada que a literatura abre caminhos para representar este ambiente de fluidez, em que os sujeitos muitas 61

vezes sentem-se aprisionados pelas condutas estabelecidas de acordo com as normas que permeiam e com certa frequência normatizam os relacionamentos sociais e sexuais. Conforme Silva (2015, p.157), é possível abordar na literatura de Caio Fernando Abreu personagens que questionam a normatização da sociedade, confrontando valores e abrindo os olhos dos leitores para um cotejo entre sociedade manipulada e a sociedade que cada indivíduo buscar viver. É nas sequelas abertas por normas religiosas e governamentais que encontramos as margens sujeitos que lutam para de alguma forma viver seus ideais, os quais não estão baseados nos argumentos da história regrada da sociedade. De acordo com Silva,

A questão da identidade na pós-modernidade ocupa lugar central nos dois contos (Mergulho I e Terça-feira Gorda) analisados aqui através da subversão do monstro à fixidez e à normatização presente no conceito de identidade.Esse é o quadro apresentado em ―Mergulho I‖, cuja estrutura fantástica alicerçada na temática da metamorfose é usada pelo escritor gaúcho para construir (ou desconstruir?) um ser aquático disforme que ao tomar as ruas encontra mais criaturas como ele: desafiadores de fronteiras e de identidades. Retomando assim a visão coheniana do monstro como espelho de nós mesmos, ―Mergulho I‖ permite enxergar em suas páginas uma possível crítica de Caio Fernando Abreu ao fato de que a marginalidade reservada ao homossexual acaba por oprimir também todos que se encontram na modernidade líquida. Esta mesma opressão encontra sua expressão maior em ―Terça-feira gorda‖, em que dois homens em um aberto relacionamento homoafetivo despertam a abjeção nos participantes de um baile de carnaval. Esta abjeção kristevaniana, perturbadora da identidade, da ordem e do sistema, e que leva os dois amantes a serem perseguidos até a praia, também revela o que nos desperta fascínio por ser escondido, sufocado e descartado. Mais uma vez, o medo do monstro esconde na verdade um desejo por ele, pela sua condição subversora das normas e da identidade. Todavia, em ―Terça-feira gorda‖ o medo prevalece e, vendo-se refletidos nas duas criaturas aquáticas de Caio Fernando Abreu, os carnavalescos destroem seu reflexo sufocado. (SILVA, 2015, p.147)

Dessa forma, vamos respondendo indagações: Quem buscamos encontrar na diversidade de produções com as quais nos deparamos em nossos acervos literários? Num espaço de conflitos, vivências, sujeitos com suas singularidades, conseguimos visualizar uma pluralidade na maneira com que os enredos se concretizam os espaços que são representados com propriedade nos textos literários pelos personagens, em tempo contraditório e de constante movimento. A contemporaneidade abre caminhos para que publicações que apresentam ―o estranho‖, o que está fora dos padrões, seja reconhecido como indivíduo com 62

histórias, e estas, pertinentes de análise, e assim, reconhecer em minorias sociais a pluralidade da sociedade, que se forma através das diferenças. É no movimento constante da contemporaneidade que buscamos identificar o perfil dos sujeitos homossexuais na literatura e na telenovela, observando vozes que transparecem ou que são silenciadas nessas produções por sua condição homossexual. Conforme Regina Dalcastagnè (2005, p. 3), em uma pesquisa realizada sobre romances publicados de 1990 a 2004, na maioria deles se verifica a voz do homem branco, heterossexual, urbano de classe média. A autora enfatiza o silêncio dos grupos marginalizados – entendidos em sentido amplo, como todos aqueles que vivenciam uma identidade coletiva que recebe valoração negativa da cultura dominante, sejam definidos por sexo, etnia, cor, orientação sexual, posição social. Porém, em narrativas curtas, conseguimos verificar as vozes dos grupos minoritários, principalmente nos textos concebidos em meados do século XX e início do século XXI. Percebemos a produção literária contemporânea preocupada com essa parcela populacional que fica à mercê de um olhar crítico e visível a sua identidade. Uma literatura que nos dá o direito de compreender mazelas, tristezas, divergências sociais, culturais e sexuais, reconstruindo um pensar sob a perspectiva e opinião do outro. É na multiplicidade da literatura do século XX e XXI que conhecemos, através das peças principais, ou seja, os personagens, o ponto de vista do trabalhador, do pobre, do homossexual, da mulher, do negro, os sujeitos excluídos socialmente. A abertura encontrada pelos autores em representar através de seus personagens as vivências de um mundo globalizado, técnico, individual e fragmentado constitui uma teia, trazendo em cada linha os percalços da vida diária desses indivíduos, e, assim, propiciando ao leitor a verdadeira função da literatura, abrir os olhos para o mundo.

2.2 Personagens homossexuais em contos contemporâneos

No contato com alguns textos literários contemporâneos, conhecemos os diferentes grupos sociais em nossa sociedade e percebemos que alguns destes ficam excluídos do rol principal das relações, os quais têm suas vozes silenciadas, 63

devido a sua etnia, gênero, classe social. Diversas circunstâncias os fazem abrir mão do ouvir, ler, interagir com o mundo. No entanto, a literatura pode entrar em cena, trazendo nas vivências de seus personagens sinais que ecoam o pensar e o agir de sujeitos excluídos socialmente. É no contraste entre o real e o imaginário que vozes tão distantes começam a se fazer presentes em nossos caminhos. Personagens trazem as marcas que os identificam como sujeitos essenciais para a reestruturação da história. Tendo as palavras de Antonio Candido (1999, p. 244) como fio condutor de interpretação, entendemos que a ―literatura está ligada à complexidade da sua natureza, que explica inclusive o papel contraditório, mas humanizador.‖ Contraditório, porque permite a interação do autor, obra e leitor, numa conexão de saberes, reconhecendo nas ações dos personagens um mundo cheio de vivências e experiências que não aparecem em outras produções textuais. A literatura, na confirmação das ações, ―pode ser inofensiva, mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais‖ (CANDIDO, 1999, p.243), e tais problemas nos dão condições para formar nossa personalidade, convertendo o pensar fragmentado em um pensar que interage com a diversidade que encontramos no mundo. ―A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas‖. (CANDIDO, 2003, p. 243), diz Candido. É com esse objetivo que começamos a discorrer sobre personagens homossexuais que muitas vezes se fizeram presentes em textos literários de forma silenciosa, pois somos conduzidos ao longo história pelo regime autoritário e de submissão patriarcal. A literatura brasileira, em diferentes momentos históricos e textos, traz para o contexto social possibilidades para as discussões de temas que contrariam a ideia de patriarcalismo como forma de estabelecimento das relações familiares e sociais. Alguns textos ficcionais contemporâneos têm personagens principais considerados minorias sociais, e, assim, contribuindo um repensar sobre conceitos difundidos como certo. A literatura brasileira contemporânea, constituída como espaço de representação social, permitiu que alguns autores literários trouxessem de forma implícita ou explicita a homossexualidade. Seguindo as informações de Porto (2016), tal representação ganhou espaço em enredos que passaram apresentar nas 64

narrativas que tematizam o referido assunto, ganhando no discurso do narrador maior legitimidade na representação de vivências homossexuais e padrões que não estabelecem o contexto reconhecido como correto.

Em uma sociedade fundada no ideal do patriarcado e sustentada no heterossexismo compulsório, como se configura o contexto brasileiro, a homossexualidade é uma orientação sexual questionada e condenada. Motivo de piadas, deboche, discriminação e exclusão social, sujeitos homossexuais são ainda alvos de violência física e posturas homofóbicas. E essa vivência condiciona, muitas vezes, o sujeito à marginalidade e à marginalização e a adoção de seu status como ―ex-cêntrico‖. (PORTO, 2016, p.80)

A autora esclarece que o status ex-cêntrico é usado para se referir a personagens quando ocorre a descentralização de princípios difundidos como corretos e abrem-se espaços a elementos que ficavam à margem da sociedade. Esses ambientes definidos por diferenças de raça, sexo, orientação sexual, educação e função social são problematizadas na literatura brasileira. É nesse contexto literário que a homossexualidade se faz presente, reconhecida como homotextualidade, e indiscutivelmente precisa ser estudada (PORTO, 2016). Nessa perspectiva, Porto recorre a estudos de Lindo Hutcheon para discutir a necessidade de textos sobre homossexualidade serem estudados e compreendidos como integrantes da cultura literária:

Quando o centro começa a dar lugares margens, quando a universalização totalizante começa a desconstruir a sim mesma, a complexidade das contradiçõesque existem dentro das convenções – como, por exemplo o gênero – começam a ser visíveis. A homogeneização cultural também releva suas rachaduras, mas a heterogeneidade reivindicada como contrapartida a essa cultura totalizante (mesmo que pluralizante) não assume a forma de um conjunto de sujeitos fixos, mas, em vez disso, é concebida com fluxo de identidades contextualizadas: contextualizadas por gênero, classe, raça, identidade étnica, preferência sexual, educação, função social. (HUTCHEON apud PORTO, 2016, p. 80)

Com a descentralização, na abertura para margem, é possível reconhecer narrativas que trazem personagens homossexuais que são condicionados socialmente. Nosso interesse é analisar o perfil destes personagens, verificando se ocorre uma inclinação à homofobia ou exclusão social. Segundo Porto (2016), é possível reconhecer, em algumas narrativas curtas do século XX, elementos que comprovam a temática da homossexualidade de 65

―forma direta ou velada‖, pois trazem vivências que acompanham os momentos sociais do país. De acordo a pesquisadora, o termo homotextualidade configura-se uma produção textual literária que traz como centro as vivências e experiências de relacionamentos homossexuais, trazendo o ex-cêntrico da sociedade, ou seja, aqueles que estão às margens ou são marginalizados por uma parcela da sociedade.

[...] adoção dessa terminologia não implica dizer que existem textos literários que manifestam estilos, gêneros ou recursos estéticos e linguísticos diferentes quando abordam a homossexualidade e tampouco que esses textos sejam agrupados numa literatura tecnicamente especificada, como ―literatura gay‖ ou ―literatura homoerótica‖. O uso da expressão homotextualidade indica apenas a existência de textos literários que tratam de forma mais direta a homossexualidade, dando voz a quem vivencia e a quem a observa. (PORTO, 2016, p. 81)

Conforme a pesquisadora, a homotextualidade oportuniza, em alguns textos, um discurso em primeira pessoa (eu), o qual marca através da fala do narrador uma visão positiva sobre homossexualidade, e outro, que observa, avalia, porém, reprova. O enredo tendo a referida estrutura busca ir contra a heteronormatividade, presente na maioria das produções latinoamericanas. No que se refere à heteronormatividade, Porto traz a visão de David Willian Foster, segundo a qual existe a ―urgencia imperativa de ser heterosexual y de abogar em todo momento y a toda costa por La primacía de heterosexual (entiénda selo que entendiere por este término). ‖ (FOSTER apud PORTO, 2016, p. 81). Esclarecendo o vocábulo heteronormatividade, usamos a definição dada por Calegari:

Por heteronormatividade, entende-se a reprodução de práticas e de códigos heterossexuais, sustentada pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família nuclear. Na esteira das implicações do aludido vocábulo, tem-se o heterossexismo compulsório, sendo que, por esse último termo, entende-se o imperativo no questionado e inquestionável por parte de todos os membros da sociedade com o intuito de reforçar ou dar legitimidade às premissas heterossexuais. (CALEGARI, 2007, p. 2)

As relações heterossexuais manipulam as perspectivas que normatizam a sociedade, desencadeando um processo de exclusão ao sujeito que não se apresenta aos moldes fixados pelas premissas vinculadas como corretas. A 66

homossexualidade torna-se, para a sociedade heterossexual, uma forma de exclusão. Porém, na adversidade da cultura moldada conforme o heterossexismo, alguns autores do século XX, acompanhando a repressão fortemente imposta às condutas de relacionamentos, trazem para o texto literário a prevalência de sujeitos homossexuais. Segundo Porto (2016), há narradores, em alguns contos brasileiros contemporâneos, que insinuam relações homoafetivas, outros anulam as vozes dos sujeitos homossexuais em suas narrativas, constituindo relações sombrias e com a incerteza da aceitação da sociedade. Trazem silenciamentos, características imprecisas e ambíguas, um discurso carregado de insegurança. A autora destaca que temos também uma pequena parcela de narrativas curtas que nos apresentam com clareza o sujeito homossexual. No que tange aos textos literários produzidos no século XX, nesse caso, contos, conforme Porto (2016), é possível encontrar três tendências que podem ser constatadas quando se trata a homossexualidade: a primeira tendência refere-se às narrativas que tratam a homossexualidade sugerida, a segunda é homossexualidade revelada e a terceira corresponde à homossexualidade reprimida/ condenada. Seguindo as ideias de Porto (2016), a primeira tendência de homossexualidade nas narrativas é a forma sugerida, na qual constam envolvimentos amorosos ou sexuais de forma oculta, mas percebíveis no desenrolar da história. A segunda tendência apresenta com clareza as relações homoafetivas, ―ora acentuando a vivência do amor, ora a dificuldade de concretização amorosa entre parceiros, ora destacando o prazer da sexualidade ex-cêntrica.‖ (PORTO, 2016, p. 82) A confirmação dessa relação pode ser analisada a partir do narrador ou pela voz dos personagens. Já na terceira tendência é possível identificar uma repressão ―tanto pelo sujeito homossexual que se autorreprime pela vivência contraria da heteronormatividade quanto pelos outros‖. (PORTO, 2016, p. 82). Seguindo as ideias da autora, o contexto social é representado na história através do narrador ou personagem, que se constituem a partir dos modelos de comportamento autenticados socialmente impõe oposição ao amor e prazer homossexual. A terceira temática, a homossexualidade condenada traz a tendência da sociedade brasileira patriarcal, a qual confirma um contexto social que historicamente impôs de forma doutrinária e repressora ao comportamento dos 67

sujeitos. As ações sociais e sexuais ficam na mira do olhar atento das normas de padrões constituídos pela história patriarcal, condenando assim, os relacionamentos homossexuais. As observações apresentadas pela pesquisadora Porto (2016) nos fazem refletir como a literatura tem o poder de apresentar aos leitores em diferentes ângulos os relacionamentos constituídos muitas vezes, no silêncio, outros reconhecidos nas dúvidas e questionamentos dos outros. Constatamos, a partir de diferentes modos, narrativas construídas a partir da problematização, a qual se inclina para um texto literário de denúncia e questionamentos ao heterossexismo compulsório que resulta na indicação da existência de uma sociedade homofóbica e não preparada para a liberdade sexual e ainda que produz códigos fixos de identidade sexual. É com esse olhar atento no que se refere às tendências sancionadas pela pesquisadora Luana Porto (2016) e demais teóricos e autores que analisaremos os personagens homossexuais, percorrendo em seus discursos suas escolhas ou reconhecendo em suas ações a pressão de uma sociedade que observa e conduz aos valores enraizados pelo patriarcalismo. É na contrariedade que se depara a literatura e contexto social que temos a possibilidade de entendermos as relações entre os sujeitos, as quais convergem com propriedade nos textos literários. É nas entrelinhas de um discurso carregado de sentimentos que vêm à tona indivíduos excluídos socialmente. Mulheres, negros, índios e homossexuais, na maioria das produções, ocupam espaços inferiores e são vítimas de estereótipos que denigrem a autoimagem destes sujeitos. O texto literário, assim como o midiático, abre espaço para que as vozes silenciadas historicamente tenham espaço no diálogo na representação de identidades sancionadas pela historicidade patriarcal como marginais devidos suas escolhas pessoais, sociais e sexuais. Em se tratando de sexualidade, temas como homossexualidade ainda permeiam espaços de conflitos dentro da literatura brasileira, pois ainda temos grandes resquícios do patriarcado. No entanto, surgem textos que nos possibilitam reconhecer discursos implícitos e explícitos que nos trazem o perfil de sujeitos-personagens que muitas vezes foram recriminados pela visão fragmentada sob a sexualidade. A arte de contar e ler literatura nos autoriza a reconhecer determinados grupos sociais e nos permite construir elos entre imaginação e realidade, dialogar, sonhar e 68

resistir à barbárie, ou seja, encontramos caminhos que nos afastam do preconceito homofóbico e nos dão uma visão de igualdade entre os sujeitos. De acordo com Porto (2016):

Cientes dessas lacunas nos estudos e com interesse em desvendar a literatura que aborda a homossexualidade, acreditamos que começar a traçar tendências em narrativas curtas pode ser um meio profícuo para compreender as relações entre literatura, sociedade e homossexualidade em nosso país. (PORTO, 2016, p. 86)

Dessa forma, a literatura nos permite aprimorar o conhecimento e reconhecimento da diversidade cultural, social e pessoal que perpetuam em nosso convívio diário entre os sujeitos. Aprimorar os saberes e reconhecer as diferentes identidades no contexto social abre um leque de possibilidades que a literatura nos capacita para agir de maneira digna e respeitar as escolhas sexuais de cada um. No momento em que a literatura for a porta de entrada ao respeito e ao direito de escolha, teremos uma sociedade com espaços no que todos saberão interagir de maneira igualitária.

2.3 Contos de Entre nós: uma leitura sob a ótica da homossexualidade

Vivemos em uma sociedade onde se criam e mantêm-se estereótipos, garantindo ainda a superioridade masculina, um regime de controle patriarcal, no qual o sujeito que não se vincula a padrões impostos culturalmente é excluído. No entanto, a literatura, com o seu poder estupendo, traz a magia e o encanto, mas a firmeza em confirmar identidades dizimadas por muitos anos em nossa cultura branca, heterossexual e principalmente machista. Luiz Ruffato nos mostra com clareza o papel da literatura:

Parece não haver dúvida de que a literatura, como forma de expressão humana, faculta-nos, para além da fruição estética, meios para uma reflexão a respeito dos costumes, nos tempos e no espaço. Aliás, obra perene é que transcende – ancorada em uma época, submersa numa cultura e contingenciada por uma língua, fala a todas as épocas, culturas e línguas. O escritor, como analista privilegiado da História, restitui uma sociedade a verdade da ficção: a realidade desagrilhoada da hipocrisia. (RUFFATO, 2007, p. 13)

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Nessa perspectiva, reconhecemos nas palavras de Ruffato o compromisso da literatura em nos colocar em um ângulo no qual firmamos nosso olhar sobre as mazelas e dificuldades diárias dos sujeitos condicionados aos problemas sociais que permanecem calcados em nossa cultura. A literatura contemporânea brasileira traz uma bagagem de histórias fictícias, porém, em seu enredo, espaços, tempos e principalmente nos atuantes fundamentais, os personagens, apresenta uma representação de realidade que se confirma em diferentes histórias quando é considerado o contexto social de diversidade sexual e diferença. A preocupação do escritor Luiz Ruffato em trazer para literatura a fala dos sujeitos é constatada na organização da coletânea de contos, Entre Nós, de 2007, a qual apresenta 19 contos de diferentes autores do século XX e XXI, representando em seus dramas indivíduos que sofrem devido a suas escolhas sexuais. São textos literários construídos com a premissa de denunciar os dilemas e a repressão de tais sujeitos. Um compromisso que condiz com papel fundamental da literatura. Luiz Ruffato, em seu discurso na abertura da Feira em Frankfurt, Alemanha, em 8 de outubro de 2013, permite-nos de alguma forma fazer a leitura dos textos por ele selecionados, como o mesmo objetivo: reconhecer nas narrativas que ―tematizam de forma direta ou velada a homossexualidade.‖ (PORTO, 2016, p. 80). Segundo o escritor,

escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século XXI, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças. O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro – é a alteridade que nos confere o sentido de existir, o outro é também aquele que pode nos aniquilar... E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença. (RUFFATO, 2013, p. 1)

É com esse compromisso que lemos e conseguimos constatar, na organização do livro Entre nós, a singularidade dos seres humanos que começam a relacionar-se com o outro, respeitando as diferenças e lidando com os dilemas do outro. Confirmações de aceitação são evidentes, contudo os atos de violência 70

discorrem com um forte impacto no momento da leitura. A literatura tem essa força de nos colocar no lugar que não nos pertence, fazendo com que se reflita de maneira que nos possibilite ver o outro de forma humanizada. Questões como homossexualidade são muito discutidas com reações adversas, no entanto, Ruffato (2007, p. 14) destaca que, o tema da homossexualidade não é assunto do século XXI, mas se faz presente em obras de representativos autores que trazem uma visão de cem anos sobre o assunto, de Machado de Assis (1839- 1908) à escritora Simone Campos (1983). Seguindo a linha de raciocínio do autor Luiz Rufatto, ao tratar o assunto homossexualidade, constatamos em suas palavras a preocupação em propor uma leitura condizente com sua forma de ver o mundo e combater a violência impregnada em nossa sociedade dominada pelos fundamentos do poder patriarcal. De acordo com ele,

Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade. (RUFFATO, 2013, p. 2)

É no rompimento com a violência impregnada em nossa sociedade que identificamos personagens que se estabelecem em narrativas curtas e que compõem a coletânea organizada pelo escritor Luiz Ruffato. Queremos percorrer um caminho obscuro, conhecer as entrelinhas de discursos carregados de sentimentos, vivências, experiências que ficam condicionados a ofícios impostos aqueles que perpetuam o poder na sociedade. Analisar personagens (des) configurados em contos do século XX e comparar com narrativas produzidas no século XXI nos proporciona um leque de indagações. Uma delas são: Quais são as narrativas que constituem aparatos para interagir de forma positiva nas relações interpessoais? Como se estruturam física e psicologicamente os personagens nas narrativas do século XX e XXI no que se refere a sujeitos homossexuais? Abrimos nosso olhar para caminhar na percepção de entender o outro e principalmente respeitar escolhas sociais e sexuais. Queremos romper com qualquer tipo de discurso fundamentalista, no qual se mascaram os preconceitos e se 71

constituem atos de violência. Estamos dispostos em compreender caminhos percorridos por personagens e marcas que ficaram no que tange aos lugares em que protagonizaram suas histórias. Vamos ler os contos organizados por Ruffato, com a mesma ideia salientada por Denilson Lopes (2007, p. 10):

Para compor esta política tão ambígua como nós somos, e que estes contos que vamos ler podem nos ajudar. Nem a homofobia das imagens negativas, nem a idealização das imagens positivas, sobretudo narrativas de afetividades e sexualidades complexas, à deriva em que a literatura possa não só repetir os discursos sociais, mas produzir sua própria política, falar o que nem sempre é o mais óbvio e facilmente percebido.

A homossexualidade um assunto que ainda precisa quebrar tabus, ou seja, precisa entrar em contato com a sociedade de forma efetiva. Nesse sentido as imagens negativas e de repressão poderiam romper e surgir o diálogo e principalmente para a humanização dos sujeitos. Podemos assim afirmar que, a literatura tem o poder de garantir o diálogo entre os sujeitos abrindo caminhos para aceitação sexual, social e política. Os contos trazidos para nossa análise garantem o olhar profundo para aqueles que a sociedade dominante excluiu de sua visão. A literatura abre as portas e propõe a consolidação entre os sujeitos, formando um elo de interpretação e compreensão e principalmente garante o respeito.

3. A HOMOSSEXUALIDADE NA PRODUÇÃO CULTURAL CONTEMPORÂNEA

3.1.1 Entre Nós: homossexualidade sugerida

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Conforme Porto (2016), notamos um grande número de contos publicados no século XX que trazem a temática da homossexualidade, abordando três aspectos: a homossexualidade sugerida, homossexualidade condenada ou homossexualidade revelada. Dessa forma, faremos análise de três contos contemporâneos que trazem em seus enredos indícios que apontam para tais tendências, confirmando, assim, com a leitura dos objetos desta pesquisa, a perspectiva levantada pela pesquisadora. A literatura na contemporaneidade vem configurando um espaço representativo para os sujeitos, oportunizando uma abertura para que vozes silenciadas pela posição social, sexual e política sejam ouvidas. As produções literárias contribuem para se ouvir as vozes intimidadas pelo tempo, pois trouxe elementos que comprovam a representação de um ambiente hegemônico e em certos momentos com atitudes preconceituosos. Na literatura, as vozes dos personagens são (des) configuradas e um novo olhar humanizador é construído, reconhecendo as vivências daqueles que historicamente ficaram à margem da sociedade. O primeiro conto que vamos reconhecer a voz do personagem é a produção literária ―A moralista”, narrativa curta produzida no ano de 1957 pela escritora de Dinah Silveira de Queirós. No texto, o narrador é em primeira pessoa e conta a história de uma mulher reconhecida na pequena cidade de Laterra como sendo pessoa santificada. Para todos os moradores da pequena cidade, ela era considerada com poderes sobrenaturais, pois poderia mudar as atitudes e qualquer pessoa que viesse ter qualquer tipo de desvio. Também era reconhecida como ―padra‖. Em meio a este ambiente, ―consultavam a mamãe a respeito de política, dos casamentos. Como tudo dizia era sensato, dava certo, começaram a mandar-lhe também pessoas transviadas.‖ (QUEIRÓS, 2007, p. 92). Nesse trecho da narrativa, percebemos um ar preconceituoso que parte do narrador-personagem quando se refere a ―pessoas transviadas‖, já que nesse instante chega à casa da mulher reconhecida como santa, um rapaz, levado pela mãe para que as atitudes do moço fossem reconstruídas a partir das regras reconhecidas como corretas pela sociedade. ―Já que os médicos de Santo Antonio não deram jeito? Quero que você me ajude. Acho que ele deve trabalhar... aqui‖. (2007, p. 94) Tais palavras foram proferidas pela mãe do rapaz. Esse enunciado da 73

mãe proferido ao filho leva pensar que ele deveria ser curado de algo, pois havia procurado médicos e estes não haviam dado o resultado almejado. Vale ressaltar que a narrativa não apresenta o nome do jovem, trazendo apenas características que vão dando pistas de como ele era reconhecido pelo grupo social em que está inserido. Seu modo de agir incomodava até os mais próximos. As ações e o estilo que o rapaz tem no desenrolar do conto são reconhecidos pela sociedade como afazeres femininos, e, por esse motivo, sofre os olhares discriminatórios de quem tem como certo as regras impostas pelo patriarcalismo. O jovem que não recebe nome na narrativa fica exposto ao juízo infeliz da sociedade, comprovado nas falas dos personagens que estão a sua volta, vive num ―cenário que imperam o preconceito a sexualidades não hegemônicas e práticas homofóbicas‖. (PORTO, 2016, p. 80). Seguindo o discurso no narrador do conto, vemos:

Tire a mão da cintura. Você já parece uma moça, e assim, então... [...] Até os moleques que, da calçada, apontavam e riam, falavam alto, ficavam sérios e fugiam, mal meu Pai surgisse à porta. E o moço passou muito tempo sem falhar nos jantares. Nas horas vagas fazia coisas bonitas para Mamãe. Pintou-lhe um leque e fez um vaso em forma de cisne, com papeis velhos molhados, e uma mistura de cola e nem sei mais o quê. Ficou meu amigo. Sabia das modas, como ninguém. Dava opinião sobre os meus vestidos. (2007, p.95- 96)

O relato do narrador-observador dá conta de que, aos olhos dos personagens que convergem a cena, o rapaz é homossexual, porém, no desenrolar das ações, isso é confirmado pela fala do personagem central de nossa análise. Assim é possível, a partir do desenrolar da trama, entender que essa narrativa pode ser exemplo de uma das tendências reconhecidas pela pesquisadora Luana Teixeira Porto, a temática da homossexualidade sugerida. Conforme Porto (2016, p. 82), ―a tendência da homossexualidade sugerida refere-se a narrativas que tratam da homossexualidade de forma velada‖, ou seja, os sujeitos que observam admitem que possa existir um relacionamento amoroso entre indivíduos do mesmo sexo. Essa temática da homossexualidade sugerida se confirma com as falas que se estabelecem no conto em análise. A maneira como o rapaz age em seu cotidiano faz com que práticas de repressão sejam proferidas, criando um ambiente contraditório e conflitivo. 74

O rapaz e a moralista estavam sempre juntos. Na cidade de Laterra, os cochichos entre as janelas se mantinha direto, dia após dia. Os comentários que surgiam era que a mulher espiritualizada havia ―consertado‖ o rapaz, pois suas atitudes estavam sendo observadas por outro ângulo, o que permite compreender que o jovem havia se apaixonado pela moralista:

Mamãe, que policiava muito seu modo de conversar já que esquecia que ele era um estranho. E ria muito à vontade, suas gostosas e trêmulas risadinhas. Parece que não o doutrinava, não era preciso mais. E ele deu de segui-la fielmente, nas horas em que estava no balcão. Ajudava-a em casa, acompanhava-a nas compras. Em Laterra, soube depois, certas moças que por namoradeiras tinham raiva de Mamãe, já diziam, escondidas atrás das janela, vendo-a passar:

Você não acha que ela consertou ...demais? (QUEIRÓS, 2007, p. 96)

Percebemos a ausência da voz do personagem, suas ações ficam restritas ao olhar do narrador, que traz uma imagem de acordo com sua percepção, ou seja, ao um olhar fragmentando, e certos momentos transparece no discurso repreensão ao modo como se comporta os personagens. Após os comentários e o juízo da cidade de Laterra, a moralista decidiu tomar uma decisão mandar o jovem embora de sua casa, pois julgava que não era pertinente continuar o convívio entre eles. Sua missão era tornar ―um homem do bem‖, e, sendo assim, seria importante que voltasse a sua família de origem. Então logo que se recuperou de um resfriado foi intimado a deixar a casa da mulher. Uma cena desconfortável, pois, no momento em que todos rezavam, a moralista com uma voz firme ordena que o jovem saia daquele lugar. O rapaz, sem ao menos suplicar os olhos, ausentou-se, lentamente e com um andar discreto ―como mocinha do colégio‖ (2007, p. 98). A reza continuava ainda mais alta e firme, como se daquele ambiente estivesse saindo alguém não qualificado para aquele rito espiritual, ou seja, naquele ambiente, existia a rejeição daquele rapaz:

- Padre Nosso, que estás no céu, santificado seja o Vosso Nome... Dessa vez as vozes que acompanhavam eram mais firmes do que nos últimos dias. Ele não voltou para cidade, onde era a caçoada geral. (2007, p.98).

A atmosfera em que estão nessa última cena mostra o olhar atento alicerçado em alguns momentos na religiosidade que norteia as relações humanas. Aqueles 75

não têm um perfil estabelecido de acordo com as determinações eclesiásticas não fazem parte da normalidade que o momento merece. O narrador-observador sente-se aliviado com a saída do rapaz do seu ambiente familiar. Ficou observando sua partida, um caminho obscuro e incerto. As marcas daquela decisão estavam por vir. E como sentença por ter um perfil que não condiz com o imposto pela sociedade e, sendo para a sociedade um traidor, sua pena é a morte:

Naquela mesma noite, quando saía de Laterra, um fazendeiro viu como que um longo vulto balançando de uma árvore. Homem de coragem, pensou que fosse algum assaltante. Descobriu o moço. Fomos chamados. Eu também vi. Mamãe não. À luz da lanterna, achei-o mais ridículo do que trágico, frágil e pendente como Judas de cara de pano roxo. (QUEIRÓZ, 2007, p. 98)

A figura de Judas nesse trecho da narrativa traz uma ligação com os textos bíblicos, aquele que traiu Jesus e dessa forma por arrependimento suicida-se. Para esse infiel, existe o julgo de quem não segue os comandos eleitos pela religiosidade. Assim, com o mesmo destino do discípulo, o jovem resolve tirar sua própria vida, já que tem a ponderação da sociedade, e, com os mesmos critérios, é alguém que trai as regras determinadas pela religiosidade e principalmente as constituídas pela história social e política do contexto. Tendo em vista o desenrolar da narrativa, verificamos a homossexualidade sugerida, e, por questões de interpretações equivocadas, o rapaz tem um desfecho infeliz, concretizando um exemplo ―ação heterossexista em um país que diz aceitar a homossexualidade‖ ( PORTO, 2016). Essa não aceitação do homossexualidade desencadeia situações que esbarram em atos de violência física, moral e principalmente psicológica.

3.1. 2 Entre Nós: A homossexualidade condenada

O conto ―Rútilos‖, da escritora Hilda Hilst, publicado no ano de 2003, também faz parte da coletânea Entre Nós: contos sobre homossexualidade. A narrativa em análise tem como objeto central o relacionamento entre dois homens, que são personagens que despertam a inquietação e, principalmente, a atenção do leitor. A narrativa traz elementos, que configuram uma estrutura não linear, e os 76

personagens apresentam falas com recordação de passagens do passado que são retomadas em um tempo presente. Outro ponto em destaque no conto ―Rútilos‖ é a referência a textos bíblicos, confrontando concepções religiosas e os fatos que são vividos pelos personagens. Dessa forma, existe uma narrativa que põe em desalinho o ser homossexual e conceitos sagrados, e, assim, evidenciamos dois extremos entre os conceitos religiosos e a homossexualidade. O conto ―Rútilos‖ traz em sua epígrafe a frase ―O amor é duro e inflexível como o inferno‖, e tal referência se liga ao nome do personagem principal Luicius Kod. O primeiro nome Lucius retoma ao nome Lucífer que, nas palavras bíblicas, refere-se ao diabo, aquele que traz o constrangimento, o pecado e a morte. Tal afirmação se confirma no início da narrativa, no momento em que o personagem Lucius, jornalista, 35 anos, está no velório de seu grande amor, Lucas, estudante de história, 20 anos e namorado de sua filha, e que foi morto de forma violenta. As pessoas que fazem parte da cena do funeral olham para o Lucius com ―caras graníticas, ódio mudo, palavras que vêm de longe, evanescentes, mas tão nítidas como fulgentes estiletes, palavras de suposto éticos humanos: Constrangedor Louco Demente Absurdo Intolerável‖ (2007, p. 152). É no olhar e nas falas dos demais personagens que se concretiza a repressão sexual, e assim, os homossexuais recebem um julgamento moral, confirmando a repressão sexual manifestada a indivíduos do mesmo sexo quando estão em relação de amor e/ou sexo. A narrativa ―Rútilos‖ nos apresenta uma mistura de vozes, de olhares, que confirmam o movimento das grandes cidades, dos relacionamentos que convergem da contrariedade imposta pela sociedade contemporânea. A rejeição do relacionamento entre os personagens centrais da narrativa de Hilst se dá a partir do momento em que o pai de Lucius descobre o envolvimento do filho com o namorado da neta. E com o preconceito e com enunciados que consolidam a homofobia são construídas as falas dos personagens que se envolvem nas ações da narrativa. Assim constatamos na discussão de Lucius e seu pai a confirmação do preconceito que impera diante das relações homossexuais:

Desfigurado meu pai na madrugada, o roupão de seda, listas negras, que elegância meu pai na madrugada, o roupão creme de seda e finas listas negra, a boca trêmula apagada no giz da própria cara: então anos de decência e de luta por agua abaixo e eu banqueiro, com que cara você acha que eu vou aparecer diante de meus amigos, ou você imagina que ninguém 77

sabia crápula, canalha, tua sórdida ligação, esse moleque bonito era o namoradinho da minha merda? Fez-se também de mulherzinha com o moção machão? Ele só pode ter sido teu macho porque teve a decência de se dar um tiro na cabeça, mate-se também seu desgraçado mate- se‖(HILST, 2007, p. 152- 153)

É na fala do personagem Lucius com seu pai que se confirma a condenação total por parte do grupo familiar ao relacionamento homossexual que vivia com Lucas, concretizando a confirmação patriarcal da sociedade, que nega qualquer aceitação aos relacionamentos entre sujeitos do mesmo sexo. Quando ocorrem os rompimentos com as regras consolidadas historicamente, dá-se a negação social, moral e psicológica a estes sujeitos. Os conceitos familiares que são expostos nos fragmentos que desdobram a narrativa confirmam momentos de conflitos, em que a linguagem com letras minúsculas, palavras de uso informal constitui constituem as vivências e experiências dos relacionamentos que são condenados e reprimidos por todos. Para Luana Teixeira Porto (2016), o Brasil é reconhecido um país com liberdade sexual ou paraíso, mas, ironicamente, é um cenário em que ainda imperam hegemonia e práticas homofóbicas, uma vez que constatamos um panorama de repressão sexual e o afastamento da aceitação da homossexualidade. A figura dramática Lucius, o ―Lucífer‖ da família, gera com seu relacionamento amoroso e condenável a finalização trágica de uma família, pois o pai que pode ser considerado Deus (aquele que tem a soberania, o inquestionável) reprova tal relacionamento, a estes somente a morte para radicar a paz que por ventura possa retornar: ―escarros na calçada, dedos- garra nos meus antebraços, estico o pescoço, e levanto a cabeça para os céus, escuros e volumosos uma imensa cara, a boca escancarada de nuvens pardas, abro minha boca e grito LUCAS LUCAS‖ (HILST, 2007, p.154). O personagem Lucius mostra três dimensões coerentes da sociedade machista e preconceituosa. A primeira nos transporta para relação do personagem com ele mesmo: o aceitar-se como sujeito homossexual. Num segundo plano, viver um triângulo amoroso com o namorado da filha: um jovem estudante de História, que conhece as premissas desencadeadas pela história da humanidade, as mazelas e as consequências de quem foge das determinações impostas pelo Governo e Igreja. O terceiro ponto de análise parte da visão do pai de Lucius, que, de forma 78

repressora e autoritária, admite em suas atuações a visão negativa ao homossexualismo, como se confirma ao saber que o filho está saindo com Lucas:

mais claro que ando vendo, Lucas e você, afaste-se desse rapaz, me olha, Lucius, me olha, esse rapaz é namorado da tua filha, o que é que, você fala tanto com esse rapazola? amigos meus te viram várias vezes com ele nas ruas, nos bares e então? O rosto do meu pai é neste instante um tecido de púrpura enrugado e repulsivo ofegante se aproxima de mim, torce minha camisa com seus dedos magros, o gesto e rancoroso e abrupto, o habito de cigarro cálido sobre minha cara. (HILST, 2007, p.158)

Desse modo, a narrativa apresenta em todas as ações o ar sombrio e infeliz que perpassam os dias dos personagens. A condenação ao amor de Lucius e Lucas é presente em todos os fatos que se estabelecem no enredo: personagens, ambientes, linguagem. Enfim, há um conjunto de adereços que marcam a violência daqueles que de forma manipuladora e, principalmente, repressora estabelecem as formas impositivas do patriarcalismo e que não abrem espaços para aceitação aos relacionamentos homossexuais, e abrem caminhos para ações violentas. A violência sofrida por Lucas foi gerada pela não aceitação do pai de Lucius, o qual mandou que alguns homens violentassem o jovem sexual e fisicamente até a morte. Uma cena de horror, sangue, olhares indiferentes que permitem reconhecer a homofobia, com todas as suas veias tangendo o ódio, amargura e principalmente o preconceito às relações homossexuais. A violência no conto representa uma forma de repressão sexual e solução do conflito. Conforme Porto (2016) a homossexualidade condenada pode ser conhecida de acordo com a seguinte definição:

A homossexualidade é condenada pelo eu ou outro, ou seja, tanto pelo sujeito homossexual que se autorreprime pela vivência contrária à heteronormatividade pelos outros, a sociedade representada na história através do discurso de narrador ou personagem, que, em atenção a padrões de comportamento legitimados socialmente, impõem resistência ao prazer e ao amor na relação homossexual. (PORTO, 2016, p. 82)

É a condenação da sociedade geral, principalmente do núcleo familiar, que confirma a resistência ao amor nas relações dos sujeitos do mesmo sexo, e dessa forma, admite a violência psicológica dos envolvidos. São ações que perpassam no que os outros vão dizer, e não se averigua como a aceitação pode corroborar para práticas do bem-estar que são fundamentais para um contexto social em que todos 79

ajam com respeito e amor ao próximo, independentemente de suas escolhas políticas, religiosas, morais e sexuais. Os muros que fazem parte do conto ―Rútilos‖ são uma metáfora dos muros que separam os relacionamentos homossexuais. De um lado do muro, amor que se confirma no olhar, nos sentimentos verdadeiros entre os sujeitos. De outro lado da divisória, o rancor, a discriminação, as ideias fundamentalistas religiosas e governamentais. É nessas paredes que se confirma o olhar daquele que tem uma ideia desconfigurada das relações homoafetivas. São muros levantados diariamente e que aumentam índices de violência em nossa sociedade, e, dessa forma, a intolerância levanta muros na história da humanidade e contribui para que as barreiras e a condenação dos indivíduos sejam marcas ainda presentes em nossa contemporaneidade. Os poemas escritos pelo personagem Lucas, dispostos nos muros metaforicamente construídos na narrativa nos fazem refletir esse tempo violento e condenatório àqueles que não se ―encaixam‖ na prática da heterossexualidade:

Muros prisioneiros de seu próprio murar. Campos de morte. Muros do medo. Muros silvestres, de ramagens e ninhos: Os meus muros da infância. Esfacelados. Muros de agua. Escuros. Tua palavra: Um mosaico de vidro sobre o rosto altivo. Devo me permitir te repensar? (VI) Muros castos e tristes Cativos de si mesmos Como criaturas que envelhecem Sem conhecer a boca De homem e mulheres. Muros escuros, tímido: Escorpião de seda No acanhado da pedra. Há alturas soberbas. Danosas, se tocadas. Como a tua própria boca, amor, Quando me toca. (HILST, 2007, p.167)

O poema do personagem reforça a escuridão, o lado sombrio de quem tem uma vida de prisioneiro, e esta se dá por não viver o relacionamento homossexual. Os poemas trazem a voz do poeta, o qual encontra na maneira de contar os dilemas das relações interpessoais. O poeta busca nos versos o enfretamento das escolhas 80

que nem sempre são aceitas, pois os regimes delimitadores são protegidos pelos muros, estes que são construídos com as ―ramagens‖ da sociedade patriarcal. Destacamos que o lado sombrio que os poemas marcam pode salientar a identidade homossexual representada no conto, ou seja, o lado obscuro ou cinzento que os personagens enfrentam ao assumir sua postura sexual, e que, dessa forma, tem uma vida de aprisionada devido suas escolhas. O lado sombrio que os muros representam nos poemas de Lucas, campara- se com o processo histórico e cultural que a identidade homossexual caminha, ou seja, vivemos em sociedade protegida por regras e conceitos delimitadores em que os ―ninhos‖ estão gerenciados pelas normas construídas historicamente.

Perdas, deslumbramentos, catástrofes do espírito, pesadelos da carne, os sentimentos vastos não têm nome boca, fundo de sortunez, mudo desvario, escuros enigmas habitados de vida mas sem sons, assim eu neste instante diante do teu corpo morto. (HILST, 2007, p.151)

Dessa forma, como afirma Cristina Loff Knapp (2014, p.30), a obra de Hilda Hilst confirma uma leitura desafiadora, pois traz em sua narrativa um gênero híbrido com prerrogativas do contexto social contemporâneo com personagens que contrastam para poder assumir, perante aos outros, o que realmente são. Os personagens centrais Lucas e Lucius representam papéis diferentes dentro de uma sociedade incapaz de compreender e aceitar-se em um relacionamento homossexual. A narrativa ―Rútilos‖ constitui caminhos contraditórios entre sociedade, os textos bíblicos e as relações familiares. Um desafio para o leitor, o qual caminha num emaranhado de ações e labirintos enunciativos de um amor proibido e condenado à morte. A palavra ―Rútilos‖ tem a definição no dicionário como sendo algo brilhante, luminoso, porém na narrativa é ofuscado pelo preconceito às relações homossexuais.

3. 1. 3 Entre Nós: A homossexualidade revelada

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O conto ―Morte de mim‖ da escritora Cíntia Moscovich, publicado no ano de 2004, faz parte do livro Anotações durante o incêndio, de 2000, e também faz parte da coletânea Entre Nós: contos sobre homossexualidade (2007). O texto literário em análise apresenta o relacionamento entre duas mulheres. A narrativa de Moscovich é contada em primeira pessoa, tendo personagem-narrador, uma mulher, que apresenta os fatos vivenciados por ela em ambiente que transmite algo monótono. Uma noite de verão em que as horas passavam lentamente:

Naquela noite, portanto, as horas me percorriam. O calor de janeiro fazia desaparecer, lentamente, os cubos de gelo no copo, gelo querendo ser água, as coisas querendo persistir em seu estado, tudo retornado à própria matéria ancestral. Eu, inerte, assistindo ao espetáculo da dissolução, coisa atraindo coisa, até que nada restasse, exceto o suor do copo — água — na superfície transparente. (2007, p. 258)

A cena apresentada pela personagem-narrador mostra como ambiente, na sua percepção, não poderia ser modificado, ou seja, água que havia formado-se gelo estava retornando a sua origem, assim comparava com aquela noite quente e imóvel em que tudo acontecia normalmente e no instante em que surge a mulher as coisas são transformadas. Esse espaço é modificado com a chegada da mulher desconhecida. A personagem-narradora tenta explicar que está no lugar errado, no entanto, essa figura feminina demonstra estar inconformada com algo, um pranto incontrolável, não abre espaço para questionamento, assim, a narradora-personagem fica somente na contemplação daquele momento, modificado em uma noite quente de verão.

Sentou-se numa das cadeiras da sala, junto à mesa sobre a qual pendia a lâmpada amarelada. A luminosidade pardacenta pintava-lhe as faces de cores irreais, embora eu soubesse que era o mais real e inelutável dos seres, aquele que sempre chega aos vivos. De súbito, colocou o rosto entre as mãos e percebi que desandava num pranto novo e doloroso. Talvez chorasse pela ingrata missão, que era a de ser indesejada entre as gentes. O medo que lhe têm faz parte do miolo da vida, e quis consolá-la, estreitando-a junto a mim, num afeto que me surpreendeu e desconcertou. Invertidos os papéis, ajoelhei-me, acomodando a fronte em seu regaço, que transpirava um evanescente perfume de flores, mal e mal se percebia. Sentindo os dedos frágeis nos cabelos, entendi que me ligava à intrusa num amor recém descoberto, e era como se a quisesse desde tempos imemoriais, desde o tempo que a vida e seu desenlace foram criados. (2007, p. 258) 82

Aquela situação inesperada que nasce no momento em que pairava o silêncio da noite, foi transformada pelas ações das personagens construídas. O choro que persiste da mulher fez com que se manifeste um afeto por parte da narradora- personagem, criando um laço de afetividade entre elas. Um relacionamento entre duas mulheres desconhecidas estava sendo confirmado.Um relacionamento homossexual se constitui na proximidade que a cena vai sendo conduzida. A mulher acaricia a personagem-narradora e ocorre um beijo, e neste instante as duas se aproximam e a relação sexual é concebida. O sentimento afetivo entre as mulheres torna-se evidente na narrativa, o relacionamento homossexual é confirmado, um ambiente que se transforma e que pode ser comparado ao início do conto, em que a narradora-personagem usa como exemplo o gelo, algo que consolida, torna-se sólido, um elemento comparativo que se estabelece na narrativa curta em análise.

Ela se diluía no sem cor, borbotões copiosos, água abençoada dos seres, eu e ela querendo ser o que sempre fôramos, poços fundos de anseios, matéria ancestral dos indivíduos, parte indivisível da humanidade. Eu nascia dela; ela, um pedaço fraterno de mim. Ouvi a respiração dificultosa, o tronco alteando-se em contrações, as coxas abraçando-me a cabeça com fúria de desespero. O prazer tornava-a, enfim, humana, ela, a súcuba mensageira, e eu sabia que se gratificava com isso. A mim bastava que submergisse em si mesma, eu, que me afogava no meu futuro, aquele que iria me caber. Agora eu sabia. (MOSCOVICH, 2007, p. 260)

O relacionamento homossexual exposto no conto exemplifica a tendência da homossexualidade revelada. Tendência esta abordada pela pesquisadora Luana Teixeira Porto (2016), destacando que as narrativas curtas acentuam de forma evidente os relacionamentos homossexuais. Dessa forma, para Porto (2016, p.86)

As narrativas que optam pelo registro claro da experiência homoafetiva, ora acentuando a vivência do amor, ora a dificuldade de concretização amorosa entre parceiros, ora destacando o prazer da sexualidade ex-cêntrica. A voz dessa expressão amorosa e/ou sexual pode ser concretizada tanto através do discurso do narrador quanto do personagem.

Os parágrafos extensos e uso constante de vírgulas demonstram a brevidade com que os fatos se constituíram no texto literário, um relacionamento que se consolida em algumas horas, desde o momento das primeiras impressões do silêncio revelado pela personagem narrador, a chegada da mulher e a confirmação 83

da relação sexual. A voz do narrador destaca a intensidade que o relacionamento se concretiza e o anseio amoroso que é materializado naquele relacionamento momentâneo. É nas palavras do narrador confirmamos, como leitores, esse sentimento que estabelece por parte do narrador personagem: ―o amor não cumpre na hora seus deveres‖. (MOSCOVICH, 2007, p. 261) Para narradora do conto ―Morte de mim‖, o relacionamento não confirma o amor que se entendia vivenciar entre as personagens, tudo termina no momento em que mulher desconhecida levanta-se, veste-se e não troca nenhuma troca nenhuma palavra. A narradora tenta convencê-la em que contasse uma nova história, porém o esforço foi em vão, a mulher vai embora sem nenhuma reação. Vivenciamos essa cena da seguinte forma,

vestiu-se lentamente, as roupas avaras escondendo o corpo de demoníacas volições. Tentei mantê-la um pouco mais em meus domínios, quis que me contasse sua antiga história, que me desse o gosto do fingimento; perguntei-lhe: e agora? Mas ela sequer respondeu. Eu tinha consciência de que sentiria mórbidas saudades quando partisse, o amor não cumpre na hora seus deveres. Foi-se, assim como veio, em passos líquidos, mal e mal tocando o chão. (MOSCOVICH, 2007, p.260-261)

Dessa forma, o relacionamento homossexual revelado se desfaz e pode ser comparado como o gelo que diluiu no início da narrativa. ―A liquidez dos passos‖ que se confirmam na passagem anterior do conto, nos transmite como o relacionamento se formou, contudo, retorna a fase inicial: ―as coisas querendo persistir em seu estado, tudo retornado à própria matéria ancestral‖ (MOSCOVISCH, 2007, p. 257). Assim, a relação entre elas é finalizada, retornando ao silêncio, a escuridão da noite que se evidência nas primeiras linhas do conto. Para narradora-personagem as noites foram de espera, para que a ―intrusa‖ retornasse e para que revivessem aquele relacionamento que teve o ponto final com sua partida. A morte expressa no título da narrativa e em algumas passagens do conto, configuram a espera pela mulher que não retornou mais. O relacionamento que viveram nasceu, formou-se como gelo e depois dilui-se com a partida. As ―noites segundo a narradora são ‗inertes, as horas me percorrendo, assistindo ao espetáculo da dissolução‖. (MOSCOVICH, 2007, p. 261) Sendo assim, a homossexualidade revelada no conto narrado em primeira pessoa, representa de forma aberta o relacionamento que se concretiza entre sujeitos do mesmo sexo. Para tal afirmação, usamos a ideia de Porto (2016, p. 85): 84

A narrativa, contada em primeira pessoa através de um discurso objetivo por um dos personagens protagonistas, revela a voz do sujeito homossexual que busca viver seus prazeres de forma livre e sem culpa, o que acentua a ideia de sexualidade como algo que não pode ficar preso a identidades fixas e a concepção de que a vivência da sexualidade independe de dissociação de gênero dos sujeitos envolvidos.

Dessa forma, os três referidos e examinados contos nos trazem com clareza as tendências sobre a homossexualidade referenciadas pela pesquisadora Luana Teixeira Porto (2006): a homossexualidade sugerida, homossexualidade condenada ou homossexualidade revelada. Tais tendências efetivam com pertinência em nossa análise, confirmando, assim, que no século XX e XXI alguns escritores desse período social e literário demarcaram em suas produções as tendências, nos permitindo visualizar a representação de sujeitos que se vinculam a estereótipos na sociedade que se intitula contemporânea e aberta para aceitação das escolhas (sociais, políticas e sexuais) dos sujeitos. Destarte, os contos contemporâneos abrem espaços para discussões sobre a identidade homossexual, oportunizando-nos corrigir opiniões equivocadas e preconceituosas difundidas em um a sociedade que se consolidou em um regime patriarcal. Os contos analisados compartilham da mesma significância, trazer para o público leitor a identidade homossexual, e assim, consolidar uma perspectiva baseada na aceitação. A leitura de narrativas que permitem discutir a identidade sexual oportuniza reconhecer vozes ficcionais que traduzem a homossexualidade, e sendo assim, garantem a importância da literatura na representação daqueles que estão à margem da sociedade. Nessa expectativa, os três contos, ―Rútilos‖, ―A moralista‖ e ―Morte de mim‖, confirmam a importância da literatura para que a obscuridade da sociedade seja rompida e que a humanização seja a base para união e respeito independente das escolhas sexuais.

3.2 A telenovela Totalmente Demais

3.2.1 Uma relação entre sociedade e sexualidade

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A telenovela Totalmente Demais (2016) foi exibida na emissora Rede Globo às 19 horas de segunda-feira a sábado. A trama foi escrita por Rosane Svartman e Paulo Halm, com cooperação de Mário Viana, Claudia Sardinha, Fabrício Santiago e Felipe Cabral, sob revisão de texto de Charles Peixoto; tem direção de Marcus Figueiredo, Luis Felipe Sá, Thiago Teitelroit e Noa Bressane, com direção geral de Luiz Henrique Rios. Baseada na peça teatral Pigmalião, produzida em 1913, por Bernard Shaw (que deu origem ao longa-metragem ), os autores definem a história como uma mistura de Pigmalião 70 e de Top Model. (WIKIPEDIA, 2016). A protagonista da telenovela foi a personagem Eliza (interpretada por Mariana Ruy Barbosa),vende flores na grande cidade. Uma menina simples do interior e que buscava formas de manter-se num ambiente desconhecido. Enquanto vendia as flores, foi descoberta pelo produtor de modas que decidiu investir na simples menina para torná-la uma mulher elegante da sociedade. Na agência de moda, a jovem tem aulas de etiqueta, de moda, fotografia, enfim, um aparato de recursos do mercado da moda. É neste lugar sofisticado que trabalha o personagem Max (interpretado por Pablo Sanábio), o responsável pela vida profissional das modelos. Ele tem a incumbência de revelar as performances do mundo da moda às futuras modelos. O personagem Max é o centro de nossa análise, na qual abordamos questões sobre a homossexualidade, analisando quais as tendências sobre homossexualidade levantadas pela pesquisadora Luana Teixeira Porto (2016) podem ser identificadas na telenovela. Destacamos que as tendências propostas pela pesquisadora são formuladas com base na leitura e análise de narrativas curtas da literatura brasileira. O que propomos é uma extensão do estudo da autora na leitura que realizamos da produção televisiva. Dessa forma, foram eleitas duas cenas da novela Totalmente Demais que foram transmitidas nos dias 20 de fevereiro de 2016 e 05 de abril de 2016, pois estas confirmam a identidade homossexual do personagem Max. É valido destacar algumas características que compõem o personagem Max, uma delas é o figurino, o qual é formado por roupas com estampas coloridas. O ambiente de trabalho é agência de modas que é representado como espaço contemporâneo, sendo assim, os objetos e roupas usadas pelos personagens demonstra irreverência. 86

O personagem Max também se destaca na forma da comunicação com os demais envolvidos na trama. Usa uma linguagem simples, porém é composta por gestos, articulações com as mãos, lábios que se vincula a um estereótipo que busca mostrar ser um personagem homossexual. A trama da novela salienta que Max tem o papel de ser amigo de todos, sendo alguém que garante o sigilo nas conversas. Tem a função de solucionar os problemas que surgem na vida dos personagens principais. O grupo de personagens que fazem parte do contexto em que são conduzidas as cenas, reconhecem e aceitam a opção sexual de Max, sendo algo dentro da normalidade. Também podemos enfatizar que a trilha sonora da novela é formada por vários estilos, como Fank, samba, MPB, conforme a representação de cada personagem. Segundo o site Gshow.com (2016), Totalmente Demais, têm músicas que se destacam como ― batidão de MC Koringa a canções inesquecíveis na voz de Djavan, a lista supereclética conta ainda com clássicos do samba, como 'Acreditar', com Beth Carvalho e 'A mil por hora', com Diogo Nogueira‖. Destacamos que nas cenas em que o personagem Max estava presente, principalmente nas casas noturnas, a música é eletrônica. As imagens a seguir demonstram o figurino do personagem Max e foram recolhidas no site http://gshow.globo.com/Bastidores/noticia/2016/02/pablo-sanabio- comemora-sucesso-de-max-em-totalmente-demais-nunca-tinha-andado-de-salto- alto.html em acesso em 1º de julho de 2016.

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Imagem 1 - – Max caracterizado em sua relação com amigo

Imagem 2 – Max caracterizado com perfil esterotipado

Após uma breve apresentação do personagem principal dessa análise, buscamos analisar as cenas que compõe o trabalho comparativo. Os episódios no dia 20, de fevereiro, de 2016, Max e seu namorado saem de uma casa noturna. Enquanto iam caminhando pela rua, Max tenta pegar a mão de seu companheiro, contudo este recua, não querendo seguir de mãos dadas, pois sente medo de represálias da sociedade. Max não aceita a negação e destaca que vivem no século XXI, e não poderiam sofrer algo. Para este, a sociedade havia mudado, questões homofóbicas eram vistas em séculos anteriores e não poderiam ser vivenciadas na sociedade contemporânea. Nessa ação do personagem Max, observamos uma das tendências abordadas pela pesquisadora Porto (2016), que se refere a homossexualidade revelada. Em uma rua movimentada, com pessoas descontraídas, luminosidade adequada, então Max e seu companheiro caminham descontraídos. A conversa gera vários risos entre ambos. Algo normal numa saída de festa, porém naquele instante surge em surdina um grupo de homens, que pegam pedras e jogam em Max. Tal fato quebra aquele momento de sorrisos prolongados, palavras de carinho que 88

vivenciam. São surpreendidos com violência, ação que configura a prática homofóbica. Max, por instante, acha que pode estar acontecendo algo errado, pois, como havia salientado, no século XXI, condenação aos homossexuais não poderia fazer parte do cotidiano. Foi nesse instante que ouviu as seguintes expressões: ―bicha, boiola, tipo assim tinha que ir parar no inferno‖ (SVARTMAN; HALM, 2016). Max, surpreso e não aceitando atitude que o grupo havia tomado, decide enfrentá-lo, porém seu companheiro decide fugir, com medo de retaliação devido a sua opção sexual. O grupo formado com quatro homens não ouve as explicações de Max e, esses partem para agressões verbais e físicas, destacam que tal atitude era para que Max agisse como homem/ heterossexual, e por isso justificam acometimentos, simbolizando o desprezo e a irracionalidade do homem que age de acordo com premissas reguladoras que balizam práticas homofóbicas como esta presenciada na telenovela. Cenas do dia 20 de fevereiro de 2016 https://globoplay.globo.com/v/4828779/ indicam que Max ao sair da casa noturna é prosseguido por alguns homens e logo em seguida começa as agressões .

Imagem 3- Max sai da casa noturna com seu companheiro 89

Imagem 4- Max começa a ser agredido verbalmente por um grupo.

Imagem 5- Max começa a ser agredido fisicamente

A cena do dia 20 de fevereiro de 2016 tem apenas um minuto de duração, porém é carregada de veracidade, trazendo para discussão em alguns lares o tema homossexualidade e da homofobia. A produção ficcional corroborou para abordar um tema que precisa ser refletido em todos os grupos sociais da sociedade e levar aos lares uma discussão sobre homossexualidade/homofobia pode favorecer possiblidades de repensar uma nova postura ao discutir assuntos como esses. A ação desencadeada nesse capítulo ficcional pode promover diálogos sobre o 90

assunto e de maneira positiva trazer aproximação do elemento temático para muitos que ainda têm o pensamento conservador e heteroxissista. Os abusos sofridos pelo personagem Max foram muitos e somente findaram quando alguém gritou que a polícia estava chegando, foi quando os agressores saíram correndo e desistiram de continuar aquele ato repulsivo para alguns expectadores. O rosto sujo de sangue, com diferentes escoriações é ficcional, porém o texto dramático dos personagens contribui para que assuntos tão pertinentes sobre a homossexualidade façam parte das conversas entre as famílias, sendo, assim, uma oportunidade para que conceitos impregnados do heterossexismo compulsório sejam revistos e que garanta um olhar mais humanizado entre os sujeitos. O personagem Max é socorrido por um amigo e levado ao hospital. Tem atendimento médico e é aconselhado que preste queixa em uma delegacia sobre a prática homofóbica que viveu. Os envolvidos na cena demonstram a necessidade de romper com o medo e discutir, além de confirmar direitos que são indispensáveis no contexto contemporâneo. Sendo assim, a homossexualidade revelada na cena em análise cria um ambiente violento por parte de uma parcela masculina que compõe a trama e que não aceita o relacionamento entre dois homens. A homossexualidade revelada constitui uma nova forma no que diz respeito aos relacionamentos amorosos entre os sujeitos do mesmo sexo, embora estes, no século XXI, ainda encontrem barreiras preconceituosas. Dessa forma, a cena transcrita tem as luzes que junto com a trilha sonora incitam uma reflexão sobre diferença e respeito em relação à sexualidade, buscando uma aproximação televisiva entre obra e telespectador, o que também possibilita a criação de ambiente imagético com recursos positivos para a discussão do tema. No entanto, todo o aparato não atinge a força como o enredo do texto literário pode nos proporcionar um posicionamento sobre o assunto. A literatura garante uma reflexão que aponta marcas da história e podem ser grafadas nos enredos, trazendo a representação da identidade dos indivíduos nas ações dos personagens.

3.2.2 Uma abordagem da relação entre homossexualidade e família 91

A cena da novela Totalmente Demais que foi ao ar no dia 5 de abril de 2016 tem o personagem central Max (Pablo Sanábio), que configura em seus atos as características abordadas nas tendências que dizem respeito a homossexualidade, estas que foram levantas pela pesquisadora Porto (016), a saber, a homossexualidade sugerida, a homossexualidade revelada, a homossexualidade reprimida/condenada. O personagem Max irá receber seus pais, e como é homossexual, decide pedir ajuda para seus amigos para que a homossexualidade não seja revelada. Então, uma de suas amigas fingira que é sua namorada. A trama está toda formada quando os pais de Max chegam à sua casa. Nesse instante, também chega sua amiga/ namorada e os pais de Max surpreendem-se com a nora, pois o pai diz ―acho que existe algo de errado, pois a moça é negra‖ (SVARTMAN; HALM, 2016). O fato preconceituoso gera todo o desenrolar da história ficcional, pois os progenitores de Max reprovam o relacionamento do filho e faz com que o ―namoro‖ seja rompido. A homossexualidade nesse episódio não é a discussão dos envolvidos na cena, porém o preconceito para com as minorias se faz presente, fazendo que alguns telespectadores desprezem as atitudes dos personagens. Logo em seguida, os amigos de Max saem de cena e aparecem apenas os pais em um diálogo que estabelece uma visão preconceituosa, assim, Max fica deprimido e pensativo. Max vê que tal atitude tomada em relação a sua amiga foi de alguma forma preconceituosa também, não sabendo como mudar tal situação, uma vez que sabe que sua família não reconhece as minorias sociais, garantindo uma visão patriarcal da sociedade social e familiar. O personagem Max muda a forma de vestir-se, usa roupas coloridas, e naquela ocasião vestiu-se de acordo com as normas impostas pela visão do homem como macho e viril. O seu modo de falar, agir, pensar é modificado no momento da visita, uma figura distorcida que realmente é no seu cotidiano. Nesse instante, constatamos que ocorre repressão, pois o meio social não garante a aceitação à homossexualidade. Os amigos de Max reúnem-se e decidem contar a Adele (amiga-namorada) os motivos do final do namoro, os quais eram por ela ser negra. Adele toma a decisão de voltar à casa de Max e revelar aos pais o porquê do namoro e obriga 92

Max revelar toda a verdade sobre a opção sexual. A homossexualidade é revelada e nesse mesmo instante ocorre a condenação dos pais diante do filho. O pai culpa a mãe e esta, inconformada com a revelação, decide ir embora. E suas palavras de indiferença ferem o filho, e os dois saem afirmando que nunca mais irão voltar. O personagem central fica desiludido com a situação em que se revela e é condenado pelos pais pela sua escolha sexual. Porém, a cena mostra um ar de alívio diante das revelações. Max tem nos braços de sua amiga Adele o conforto de saber que o grupo social que faz parte aceita suas escolhas. A revelação homossexual tem dois pontos: de um lado a liberdade de agir e viver seus relacionamentos homossexuais; de outro, a certeza de que ainda no século XXI algumas famílias têm uma resistência à aceitação à homossexualidade. Nas cenas ainda do dia 5 de abril de 2016, Max é surpreendido com o retorno da mãe à sua casa. De forma amorosa e com um olhar que transmite doçura, toma os filhos em um abraço e diz que aceita o filho independente de sua opção sexual. Diz que sempre desconfiou de suas atitudes e relacionamentos, no entanto, não queria reconhecer devido às premissas elencadas pela sociedade normatizadora. Nesse momento, o pai entra na sala salienta ao filho que não entende suas escolhas sexuais, mas vai tentar compreendê-las com o passar do tempo. Os pais e Max se abraçam e com uma melodia pacificadora afirmam a partir de um versículo bíblico que só amor é importante: ―Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos se não tivesse amor nada adiantaria.‖ (Coríntios 13: 1). É nas palavras bíblicas que se confirma o amor na cena entre Max e seus progenitores, destacando que qualquer relacionamento e aceitação se confirmam a partir do amor entre os indivíduos. A cena em análise apresenta as tendências que confirmam a homossexualidade, sendo um texto ficcional que mostra com exemplos do cotidiano em que os homossexuais sofrem e enfrentam para revelar-se diante dos seus familiares. O episódio não tem a representação com ênfase que a produção literária possui, todavia pode também corroborar para que na sociedade a televisão também seja um canal de entretenimento e por vezes fonte de informação, reconheça que todos os sujeitos têm direitos sociais, morais e políticos, independente da sexualidade. A novela Totalmente Demais (2016) consolida a afirmação realizada por Péret (2005) segundo a qual a sociedade delega a todos os cidadãos funções a ser 93

seguidas, criando uma moldura formada pela corporação patriarcal. Sendo assim, a sociedade tende a pensar em pares de exclusão mútua: ou seja, é necessário escolher. Nada passa despercebido do núcleo dominante. Entendemos que a mídia tem o compromisso de apresentar ao público telespectador discussões sobre a homossexualidade e que estas tenham o saldo positivo, consolidando a oportunidade de organizar um diálogo sobre o assunto, e, assim, rompendo barreiras construídas pelas estereotipias ou pelas regras da sociedade. Cenas do dia 5 de abril de 2016, disponíveis em https://globoplay.globo.com/v/4936355/, mostram o momento em que conta aos pais que é homossexual.

Imagem 6- Max recebe a visita dos pais e veste-se de modo tradicional e que os agrade. 94

Imagem 7- Os amigos de Max destacam que não pode acontecer discriminação entre relacionamentos, raças e religião.

Imagem 8- Amiga (Adele) de Max pede para que conte aos pais sobre sua identidade sexual. 95

Imagem 9- Max sente-se sensibilizado com as palavras da amiga e decide contar aos pais que é homossexual.

A novela em análise correspondeu nas cenas em destaque à função social de discutir sobre o assunto homossexualidade, assim, abrindo um espaço para que se constituísse um estudo que corrobora para a prática da aceitação e principalmente para o respeito no que converge à sexualidade. Seguindo as ideias de Foucault (2007, p. 114), a sexualidade é uma relação de poder, sendo um elemento de manobras, que pode servir de apoio ou de tensão para a dominação das variadas estratégias. E com essa ideia que se confirma as identidades sexuais na sociedade, um binarismo de condutas e que a novela Totalmente Demais (2016) buscou romper em algumas cenas, mostrando que a sexualidade vista no sentido binário precisa ser rompida, oportunizando as vozes minoritárias o poder para suas escolhas e principalmente garantindo o poder sobre seus direitos como cidadãos. Sendo assim, as cenas da novela Totalmente Demais (2016) examinadas correspondem a algumas inquietações consideradas importantes no encontro com as ideias de Anselmo Alos (2007, p.44) ―Como reivindicar novas formas e possibilidades de ser estar no mundo, novas configurações identitárias de gênero e de sexualidade?‖ Podemos considerar que a novela em análise trouxe para 96

seu enredo as identidades sexuais, garantindo uma discussão pertinente sobre as novas configurações e colocando no centro sexualidade ―periférica‖ justamente por abordar a relação homoafetiva e todos os julgamentos morais e sociais a que está exposta. Deste modo, o século XXI abre um espaço para produções que em certos momentos confirmam a discussão para as identidades sexuais, não mascarando e oprimindo, mas proporcionando um diálogo condizente entre os telespectadores sobre questões que por um longo período estavam presos nas amarras do preconceito. A novela Totalmente Demais (2016) cumpriu seu espaço social, proporcionando uma discussão pertinente e oportunizando material pesquisa e assim, servir de estudos para que prática homofóbica fique nas páginas do passado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto social em que estamos nunca foi tão necessária a discussão sobre o tema homossexualidade. O mundo contemporâneo é regido pelas guerras civis, crimes bárbaros, violência diária nas pequenas e grandes cidades. E muitas vezes tanta violência tem um único vértice: o preconceito seja pelas questões sociais, políticas e sexuais. Deparamo-nos com as páginas dos noticiários com a degradação dos sujeitos, corroborando para os grandes índices estáticos de violência. As causas vão permeando os textos e recheando as páginas com o sangue e lágrimas de quem sofre a dor da agressão. É nesse cenário de mazelas e sofrimento humano que a literatura como peça fundamental da construção da história nas palavras de Carlos Barcellos (2016, p. 97

16) tem o exercício de liberdade. E nesse espaço que abre caminhos para discussão sobre o tema homossexualidade na literatura e outras artes que caminhamos ainda de forma singela um olhar para as correntes minoritárias. A homossexualidade no Brasil, infelizmente, ainda recebe uma olha que a inferioriza por parte de uma grande parcela da sociedade, e, por mais que sejamos considerados um país liberal, ainda somos controlados pelas regras religiosas e civis quando se trata sobre sexualidade. É na vertente das escolhas sexuais que muitos sujeitos ficam às margens da sociedade, e a literatura, por sua vez, como as outras artes, confirma em seus enredos vivências e experiências que precisam ser legitimadas e que nos fazem repensar valores e regras sociais, dando-nos a oportunidade de rever posturas que muitas vezes permitem as práticas homofóbicas e de violência. O olhar para o campo das produções culturais traz ao centro as identidades que são vinculadas como ―estranhas‖, e nesse mesmo intuito que surge os estudos queer que têm a preocupação com de reconhecer naquilo que é visto como algo estranho, identidades diferentes a discussão para modelos patriarcais que se estabeleceram na sociedade. Conforme Lizandro Carlos Calegari,

A perspectiva da teoria queer consistiria numa reação ao heterossexismo compulsório não contra a heterossexualidade em si, pois esta não deixa de ser uma opção entre as outras. A teoria queer inclui não somente questões sexuais ou desejos, mas também um amplo quadro de dinâmicas sociais maneiras de se vestir, aparência corporal, discurso e profissão, formas de ver o mundo, classe social – que é homologamente correlato a sexualidade enquanto discurso dominante na sociedade contemporânea. (CALEGARI, 2007, p.2)

Considerando os estudos queer, escolhemos o corpus de nossa pesquisa verificando nos personagens nos textos literários ―Rútilos‖, ―A moralista‖ e ―Ruiva‖ produzidos em período distinto cultural e socialmente, reconhecendo nesses elementos que comprovam a repulsa para identidades fixas, controladoras. Verificamos que os escritores literários trazem à tona elementos importantes para discussão no que tange a fixação e a padronização os sujeitos. A teoria queer, nas palavras de Guacira Lopes Louro (2006), não busca instaurar um novo projeto do sujeito, a preocupação é romper qualquer forma de manipulação e regras já formadas que são assentadas para serem seguidas, 98

características como etnia, gênero, geração são informações que fazem a classificação e hierarquização na sociedade. O corpus de nossa pesquisa foi ao encontro da teoria em destaque, observando o modo de comportar-se dos personagens, os discursos que vinham consagrando o modo de pensar e consequentemente a forma de agir. A teoria queer é a base sustentadora da nossa pesquisa, pois nos permitiu levantar posições sobre as diferentes identidades que formam nossa sociedade, na qual destacamos que as identidades não são fixas, uma vez que são construídas de acordo com os grupos que se formam, e, dessa forma, não estamos atrelados somente pelas questões biológicas, relacionamo-nos com e nos constituímos como diferentes grupos, cada um com suas características. Podemos afirmar, com base em considerações de Luana Teixeira Porto (2016), que a teoria queer não propôs o combate à heterossexualidade e sim ao ritual social de imposição da heterossexualidade como norma de comportamento sexual, e, com exemplos analisados, podemos constatar que os contos literários e as cenas da telenovela analisados mostram ações dos personagens e atitudes a quebra de preceitos arraigados na cultura de nosso contexto social. Cada conto analisado deixou suas marcas na nossa leitura, porém o que sobressaiu foi a produção literária ―A Moralista‖, a qual mostrou com evidências como a identidade de um sujeito que não segue as premissas da heterossexualidade é visivelmente violentada. Aqui não nos referimos a questões físicas, mas ao olhar, às insinuações, às conversas paralelas que fomentam práticas negativas que se estabelecem em relação à sexualidade ex-cêntrica e em consequência dessas ações ocorre a tragédia. O percurso histórico que traçamos, sem dúvida, assim como os objetos artísticos que examinamos contribuíram para esta pesquisadora entender melhor o ser humano, quebrando paradigmas, conceitos equivocados, olhar limitado. O conhecer as entranhas da história social nos fez percorrer além do fato descrito nas páginas da historicidade e reconhecer o agir dos sujeitos que transpuseram barreiras para viver suas escolhas tanto sociais, políticas ou sexuais. Por isso, a realização deste trabalho já é uma conquista. A literatura, por sua vez, trouxe o olhar humanizador, fez-nos questionar como indivíduo-professora-pesquisadora, quem são os sujeitos que se encontram nas margens da sociedade e precisam ser reconhecidos pela história e pela literatura. 99

Além disso, os contos iluminaram outra questão: Como resgatar na história as memórias daqueles sujeitos diferentes em relação à sexualidade e lançá-las para a leitura como fonte de conhecimento e humanização? Deste modo, fomos respondendo tais inquietações e alicerçando nossa pesquisa, reconhecendo o mundo social através do pensamento de Foucault, Trevisan, entre outros, os quais nos mostraram a importância de reconhecer a história da sexualidade durante diferentes períodos históricos e saber que por muito tempo e quem sabe até os dias de hoje mantemos modelos e conceitos definidos patriarcal e religiosamente. Considerando a história, voltamos para literatura, observando os personagens homossexuais em produções culturais brasileiras contemporâneas a fim de analisar se há uma tendência à configuração de estereótipos relativa à sexualidade e à prática homofóbica. Sendo assim, percebemos que a literatura cria personagens estereotipados como outras produzem, mas os textos literários trazem ao centro os relacionamentos homossexuais, dando a oportunidade de repensar algumas atitudes que se vinculam a práticas preconceituosas e assim possibilita refletir sobre o ser humano, tarefa essa que precisamos afirmar em nossa sociedade. Seguimos nosso estudo, observando o perfil dos personagens homossexuais em sua relação no contexto social, analisamos que nos contos literários apresentaram personagens com grandes dificuldades de relacionar-se com os demais membros do contexto em que viviam, uma vez que não eram aceitos devido suas escolhas. Sofriam as diferentes formas de agressão (física, verbal, psicológica...) e o julgamento da sociedade heterossexista preponderava nas diversas das ações dos personagens. No que se refere aos personagens dos contos analisados, estes fazem parte de um círculo que se organiza em torno de um modelo patriarcal, a sexualidade e a violência percorrem as ações, incluindo e excluindo os sujeitos do contexto social. Sendo a sexualidade algo que proporciona poder, desse modo, as formas de se vivenciar a sexualidade devem estar rigidamente normatizadas pelas autarquias governamentais e religiosas. Aqueles que buscam vivenciar de acordo com suas percepções estão expostos à violência. Da mesma forma, a telenovela Totalmente Demais (2016), obra construída em gênero e linguagem diferentes da literatura, cria um perfil para o sujeito homossexual, que vai ao encontro das perspectivas levantadas pela teoria queer. 100

Dessa forma, a telenovela em um horário de grande audiência apresenta aos telespectadores uma oportunidade de compreender como as práticas homofóbicas desencadeiam diferentes mazelas na sociedade, e para esse público proporcionar uma análise significativa de como práticas de violência nos atingem de alguma forma em nosso cotidiano. A telenovela, apesar de apresentar um perfil estereotipado para os sujeitos homossexuais, tem um saldo positivo, pois traz uma discussão coerente ao apresentar falas que defendem o respeito aos sujeitos homossexuais. A linguagem de fácil interpretação gera um repensar sobre tais atitudes preconceituosas que por ventura podem ocorrer. As cenas em análise corroboram para se estabelecer um elo entre corpus e teoria, constituindo a exemplificação de como os sujeitos homossexuais sofre ao apresentarem a sociedade com os sujeitos que têm uma opção sexual que não é constituída de regras normatizadoras. É possível comparar as obras construídas em gênero e linguagens diferentes quando se trata de homossexualidade. O corpus dessa pesquisa comprova que a união é fundamental para a quebra de preconceitos e principalmente por apresentar instrumentos estéticos e temáticos de enfrentamento à exclusão social do sujeito homossexual, discutindo a função social dos textos. O cotejo dos objetos proporciona discutir a homossexualidade no Brasil, pois sabemos que as análises de tais conceitos garantem apresentar um novo olhar para assunto, que pode consolidar uma abertura para a discussão positiva sobre a homossexualidade. Conhecer a história e proporcionar o resultado das análises dos textos literários e cenas da telenovela garante a humanização e acima de tudo a reflexão como sujeitos, pois independentemente de nossas escolhas sexuais temos nossos direitos civis e religiosos. Consideramos que o comparatismo entre literatura e outras obras artísticas corresponde ao início de grandes debates que precisam ser vinculados ao mundo acadêmico e social, formando, assim, discussão sobre paz, cultura da não violência, do respeito e principalmente construção de um mundo de pluralidades em que as diferenças são fundamentais para uma sociedade fraterna. Esperamos que o tema deste trabalho esteja em contato com o ensino, pensar como subsídio para uma prática de sala de aula, levando para professores e alunos da educação básica proposição didática para que as aulas de literatura seja um espaço de reconhecimento da sociedade e sua diversidade para, assim, agir 101

sobre ela a partir do texto literário e não-literário, como o televisivo. Desejamos que este estudo possa contribuir para reconhecer no texto literário e outras artes um espaço de discussão e possibilidade de reconstrução de um novo olhar, no qual não cabem a estereotipia, o preconceito e a violência quando é abordado o tema da homossexualidade. Integrar-se ou desintegra-se eis a questão: dúvida está que foi sendo esclarecida ao longo desse trabalho acadêmico. Integrar-se é fundamental na formação de uma sociedade humanizada. Pensar assim é corroborar para que discussões e estudos seja o ponto central para que de alguma forma haja uma perspectiva de combate à violência. A literatura, a partir dos contos e a telenovela analisados tiveram em seus textos fictícios a preocupação de através do olhar de seus personagens revelarem de forma distinta o quanto é necessário os sujeitos integram-se e quanto isso custo para sociedade que desintegra aqueles que não seguem os preceitos estabelecidos pela sociedade.

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