Revista de Sociologia e Política ISSN: 0104-4478 [email protected] Universidade Federal do Paraná Brasil

Silva, Ricardo V. Uma ditadura contra a república: Política econômica e poder político em Roberto Campos Revista de Sociologia e Política, núm. 27, noviembre, 2006, pp. 157-170 Universidade Federal do Paraná Curitiba, Brasil

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Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto ARTIGOS REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 27: 157-170 NOV. 2006 UMA DITADURA CONTRA A REPÚBLICA: POLÍTICA ECONÔMICA E PODER POLÍTICO EM ROBERTO CAMPOS

Ricardo V. Silva

RESUMO

O artigo examina o pensamento político de Roberto Campos entre meados das décadas de 1950 e 1970. Neste período, além de importantes funções governamentais, Campos dedicou-se intensamente à luta de idéias, publicando grande quantidade de artigos e ensaios. Será desenvolvida a hipótese de que o seu pensamento político aponta para a institucionalização de um sistema político de tipo autoritário como o mais adequado às condições culturais e políticas da sociedade brasileira. A principal característica deste tipo de sistema consiste na hipertrofia do poder Executivo estatal, sob comando de militares e tecnocratas, relativamente aos demais poderes da República. A função primordial do poder Executivo hipertrofiado são a elaboração e a implementação de reformas institucionais e de políticas econômicas “racionais”, contra as resistências pretensamente particularistas e irracionais dos diferentes setores da sociedade brasileira. Essa hipótese colide frontalmente com a sugestão de Campos de que o regime instituído após o movimento de 1964 seria uma espécie de atualização, nas condições da sociedade brasileira de então, do instituto da “ditadura comissária” da antiga República romana, pelo qual se permitia a eleição de um ditador por um curto período de tempo para debelar eventuais ameaças às instituições republicanas. PALAVRAS-CHAVE: pensamento político brasileiro; autoritarismo; ditadura comissária; Roberto Campos; República.

I. INTRODUÇÃO ca econômica formuladas pelo autor? O principal objetivo deste artigo é analisar o A tentativa de resolução deste problema de- pensamento político do economista Roberto Cam- ver-se-á guiar pela hipótese de que o pensamento pos, a partir de seus textos publicados entre mea- político de Campos aponta para a dos da década de 1950 e meados da década de institucionalização de um sistema político de tipo 1970, período de intensas transformações econô- autoritário como o mais adequado às condições micas, políticas e sociais no Brasil. O foco neste da sociedade brasileira. A principal característica período explica-se pelo interesse em iluminar um deste tipo de sistema político consiste na hipertrofia momento menos conhecido do pensamento polí- do poder Executivo estatal relativamente aos de- tico do autor, momento anterior ao da intensa pre- mais poderes da República; sendo a função desse gação neoliberal que marcou as últimas décadas poder Executivo hipertrofiado, a ser capitaneado de sua atividade intelectual. Ademais, o período pelos militares e, especialmente, pela tecnocracia em questão coincidiu, em grande parte, com o econômica, a elaboração e implementação de re- momento em que Campos envolveu-se diretamente formas institucionais e de políticas econômicas com as atividades de planejamento e gestão da “racionais”, contra as resistências pretensamente política econômica estatal, primeiro, no governo particularistas e irracionais dos diferentes setores Kubitschek, como presidente do Banco Nacional da sociedade brasileira. Nossa hipótese colide de Desenvolvimento Econômico (BNDE), e de- frontalmente com a sugestão de Campos de que o pois como ministro do planejamento do governo regime instituído após o movimento de 1964 seria Castelo Branco. Partiremos da formulação do se- uma espécie de aggiornamento, nas condições da guinte problema: Que ideal de sistema político sociedade brasileira de então, da “ditadura encontra-se: 1) subjacente à visão de Campos comissária”, instituto previsto na Lei Curiata da sobre as características socioculturais do Brasil e antiga República Romana, isto é, uma ditadura 2) em consonância com as proposições de políti- provisória e destinada à salvação da própria Re-

Recebido em 25 de abril de 2006 Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 27, p. 157-170, nov. 2006 Aprovado em 22 de agosto de 2006 157 UMA DITADURA CONTRA A REPÚBLICA pública. O intuito de Campos de ditar as normas da política econômica estatal é, em nosso entender, O artigo divide-se em três seções. A primeira o que confere unidade àquela miríade de peque- dedica-se à caracterização do estilo da obra de nos artigos e ensaios. Em outras palavras, seus Roberto Campos, destacando as peculiaridades de textos são melhor compreendidos quando toma- suas interpretações das noções de “racionalidade” dos como parte de sua atividade prática, como e de “pragmatismo”, ambas subjacentes às suas instrumentos, recursos de poder. Não é casual que reflexões sobre política econômica. Em seguida, o autor prefira a grande imprensa às revistas téc- examinaremos a visão do autor sobre as caracte- nicas para apresentar por escrito seu pensamen- rísticas socioculturais do Brasil, enfatizando sua to, nem que escolha proferir seus discursos e análise das influências de tais características na conferências em centros estratégicos de poder, arena política estatal. Na última seção, serão como o fazia freqüentemente na Escola Superior investigadas as afinidades eletivas entre suas pro- de Guerra e nas associações empresariais. postas de política econômica e seu ideal de um sistema político adequado às condições Antes de ingressar no serviço público, Cam- socioculturais e políticas da sociedade brasileira, pos passou vários anos de sua mocidade em se- buscando-se, com isso, revelar a inconsistência minário jesuíta, formando-se em Filosofia aos de sua tentativa de caracterizar como uma ditadu- dezessete anos de idade e em Teologia aos vinte. ra republicana e constitucional o regime pós-1964. Sua larga formação teológica refletia-se também em seu estilo e no modo pelo qual, em seu ideal II. RACIONALISMO, PRAGMATISMO E PO- “apostólico”, procurava sempre ressaltar a luta DER entre o bem e o mal, indicando aos virtuosos as Concebidos, na sua maior parte, na forma de “tentações” a serem evitadas e aos “viciados”, os artigos jornalísticos, os escritos de Roberto Cam- “sacrifícios” indispensáveis para alcançarem a vir- pos publicados entre as décadas de 1950 e 1960 tude. Alertava ainda para a perdição total e irreme- versam sobre os mais variados temas, tais como diável (o inferno) que poderia advir da progressão teoria econômica, política externa, cultura brasi- dos vícios2. leira, homenagem a amigos, combate aberto ou Mas o binômio bem-mal tem uma tradução velado a adversários e outros. secular em Campos. O bem é representado por A produção intelectual de Campos jamais se tudo o que é “racional” e o mal pela limitou ao plano estrito da contenda acadêmica, o “irracionalidade”, por tudo que é “instintivo”. Daí que torna pouco proveitosa a empreitada de dis- sua obsessão pelo planejamento, pela organização, tingui-lo como um mero sistematizador de qual- não só no que se refere a si próprio, mas princi- quer ideário particular. A mobilização de idéias ser- palmente aos outros, como ele mesmo reconhe- via a Campos como um procedimento instrumen- ce: “Esse diabo de racionalismo me tem persegui- tal para o exercício de poder; mais precisamente, do como uma sombra que não consigo pisar. Gil- para sua incansável busca de controle da política econômica, denunciando “erros” ou “desvios” na sua condução, formulando alternativas “realistas” dente do BNDE durante o governo Kubitschek (1956- e “viáveis” (quando fora do governo), justifican- 1960), quando capitaneou a equipe de planejadores do bem do suas próprias políticas (quando no governo) e, sucedido Plano de Metas e do malogrado Plano de Estabi- sobretudo, colocando-se ele próprio diante dos lização Monetária de 1958. Após o golpe militar de 1964, governantes como alguém que “como funcioná- tornou-se Ministro do Planejamento no governo Castelo rio de carreira (concursado, por sinal), entendia Branco (1964-1967), quando foi um dos principais que servir-lhes era uma questão de disciplina e formuladores do PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo – 1964-1967) e do ambicioso Plano Decenal não uma opção política. Pelo menos até o ponto (1967-1977), que jamais foi posto em prática. Sobre os em que julgava possível, nos momentos de oti- experimentos de política econômica e suas vicissitudes no mismo, fazer o bem, e, nos momentos de pessi- contexto político que vai do Pano de Metas do governo mismo, impedir o mal” (CAMPOS, 1967a, p. Kubitschek ao Plano Trienal do governo Goulart, ver Silva LXXXVIII; sem grifos no original)1. (2000). 2 Uma análise da influência da retórica religiosa no pensa- 1 Campos foi um dos principais formuladores de política mento de Campos encontra-se em Moraes (1987, p. 211- econômica nos 1950 e 1960. Foi Superintendente e Presi- 215).

158 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 27: 157-170 NOV. 2006 berto Amado me fez certa feita, quando fui secre- planejador é despojado em relação ao poder, Cam- tário da Organização das Nações Unidas (ONU), pos argumenta que “num país instintivista, em que a mais percuciente e justa das acusações: ‘O Cam- a teoria não é tida como a cristalização da prática pos é um bom sujeito, mas padece de moléstia e sim como moléstia nervosa, em que o tapeador grave e incurável: não se contenta em organizar desperta a mais frenética admiração, a racionalidade seu pensamento, adora organizar o pensamento de atitudes e decisões não é exatamente a receita alheio. É isso mesmo. Tal qual’” (CAMPOS, do sucesso político” (CAMPOS, 1967a, p. 1967a, p. LXXXVI). LVXXXVI). A não ser que, poderíamos acrescen- tar, os poderosos sensibilizem-se ante a exatidão Ser racional é planejar, adequar os meios para cartesiana das soluções técnicas e predisponham- a consecução dos fins. Estes últimos, não inte- se a reprimir os “instintos” que lhes são opostos. ressa quais sejam, nem como e por quem são fi- xados. Ao economista, atento à escassez de re- Todavia, disso não se deve depreender que a cursos, restaria apenas a tarefa de otimizar a com- neutralidade das soluções técnico-econômicas binação desses recursos escassos de modo a con- advogadas por Campos, neutralidade derivada da ferir racionalidade técnica à ação dos reais deten- pretensa objetividade da ciência econômica, cons- tores de poder. Assim, Campos procura apresen- titua-se em obstáculo para uma atitude resignada tar o trabalho do economista-planejador como algo diante das circunstâncias. Um pouco de mais que a busca e o exercício do poder, argu- racionalidade é melhor do que nenhuma. E se o mentando que “para o político, assim como para técnico não pode fazer o que deve, isso não deve- o militar, e quiçá mesmo para o jurista, o poder ria impedi-lo de fazer aquilo que pode. Esta flexi- nacional é uma categoria intuitiva: a busca do po- bilidade, esta transigência para com a realidade, der, um postulado existencial [...]. Para o econo- tão comum não só em Campos como nos demais mista, entretanto, o poder é apenas um dos obje- economistas-tecnocratas de sua espécie, só é pos- tos de escolha e ação racional, ao serviço do qual sível graças ao pragmatismo que anima seu pen- podem ser ordenados meios econômicos” (CAM- samento e sua ação3. É este elemento da práxis POS, 1964a, p. 35). Note-se que o economista de nosso autor que lhe permite prescrever o que aparece como um simples instrumento dos reais não faz ou escrever coisas diferentes sobre o detentores de poder. O técnico não possui recur- mesmo problema, “adaptando-se” às novas situa- sos próprios de poder; possui, entretanto, um “sa- ções. Por isso, e com alguma razão, Campos sur- ber” que lhe permite apresentar-se como um es- preende-se com a atitude de muitos de seus críti- toque de recursos científicos cristalizados num cos: “De onde provirá minha reputação de teórico indivíduo. Indivíduo despersonalizado, despreten- e dogmático, incapaz de humildade ante os fatos, sioso quanto ao poder, porquanto não possui a impermeável à dúvida, rebelde à retratação dos palavra final sobre o uso das técnicas que conhe- erros? Eu que me considero céptico em Filosofia, ce ou produz. “A ciência econômica é, essencial- eclético em Economia, relativista em História, mente, uma disciplina de meios e não uma doutri- empírico como receita de comportamento social” na de fins” (ibidem). Ou ainda: “as teorias econô- (idem, p. XCI-XCII). Com efeito, a caracteriza- micas chamadas ortodoxas, como quaisquer ou- ção de neoliberal ortodoxo, freqüentemente atri- tras, se compõe de um aparelho de análise e de buída a Campos, não parece dar conta dos múlti- um sistema de relações; traduzem-se em equa- plos aspectos e fases de sua obra, que, vista deste ções de comportamento, que permitem deduzir ângulo, apareceria permeada de contradições normas de política econômica” (CAMPOS, 1964b, inexplicáveis, senão pela incoerência do autor. Ao p. 35). contrário, tomando-o como um pragmático (ou “realista”, como muitas vezes se autodenominava) Também o planejamento econômico, aplica- o foco privilegiado para a análise de sua obra des- ção prática da ciência econômica, é apresentado como uma técnica independente dos fins que per- segue, podendo prestar-se às mais diversas finali- dades dos governantes de plantão, pois “num sen- 3 Esse aspecto “pragmático” do pensamento de Roberto tido geral, o planejamento é, em si mesmo, politi- Campos, no período aqui considerado, não escapou às aná- camente neutro” (CAMPOS, 1979, p. 50). lises de Perez (1999) e de Gennari (1990). Este último caracteriza como uma espécie de “ecletismo dinâmico” esse Para demonstrar o quanto o economista traço do pensamento de Campos.

159 UMA DITADURA CONTRA A REPÚBLICA loca-se da discussão acerca de sua filiação à eco- Mas se é verdade que não há, efetivamente, nomia neoliberal para uma análise que considere universos socioculturais completamente incom- seus escritos à luz de sua atividade prática como patíveis com o desenvolvimento econômico, “há um homem do poder. O pragmatismo é a linha da culturas que são mais e outras que são menos reconciliação entre o “pensador” e o político em adequadas ao desenvolvimento” (idem, p. 106). Campos, no período histórico considerado neste Assim, o tipo cultural representado pelo “homem artigo. Não é casual sua admiração pelo dito de econômico”, próprio dos países anglo-saxônicos, Brecht que recomendava “o costume de refletir corresponde, para Campos, àquele que mais fa- de modo novo em cada situação nova” (idem, p. vorece o desenvolvimento. E o Brasil? Que ele- XC). mentos socioculturais impulsionam (ou inibem) seu desenvolvimento? III. CULTURA BRASILEIRA, SUBDESENVOL- VIMENTO E POLÍTICA Aqui surge o segundo tipo cultural que habita o pensamento de Campos. Conforme o autor, “as Dois tipos culturais habitam o pensamento de raças (sic) mediterrâneas em geral parecem ter Campos. O primeiro assemelha-se ao homem eco- um vezo hedonístico a que não escapamos. [...] nômico da economia burguesa: frugal, predispos- Registramos uma grande capacidade de imitar to a acumular, utilitarista e racional. Aquele que formas de consumo, sem igual capacidade de atribui mais importância à eficácia do que à esté- copiar hábitos de produção. É bem provável con- tica e que se impõe o sacrifício do trabalho como quanto não demonstrável, que o nosso investidor meio de acumulação de riquezas4. É esse o tipo seja algo mais hedonista que os calvinistas e puri- cultural mais compatível com o desenvolvimento tanos” (idem, p.112). Esta excessiva propensão econômico, embora o autor admita que tal com- ao consumo constitui-se no principal obstáculo patibilidade encontra-se também presente em ou- que a cultura brasileira antepõe ao desenvolvimen- tras culturas, pois só existiriam duas culturas in- to, pois este exige acumulação de capital que, para compatíveis com o desenvolvimento econômico: Campos, é inconcebível sem o prévio acúmulo de “a sociedade dos ascetas e a sociedade dos poupança. Note-se que, neste aspecto, o pensa- bacantes. A primeira seria incompatível com o mento econômico de Campos é pré-keynesiano, desenvolvimento econômico porque não teria ca- uma vez que insiste na identidade entre o ato de pacidade de consumir, isto é, o seu esquema de poupança e o ato de investimento. Também dá valores não incluiria a propensão ao progresso pouca importância ao crédito no financiamento material [...] A segunda não teria capacidade para da produção e o efeito multiplicador do gasto es- acumular, isto é, a vontade de economizar”. Mas tatal. Sequer tangencia o chamado “paradoxo o autor lembra que tais tipos são “culturalmente kaleckiano”, segundo o qual os capitalistas ganham irrealizáveis em sua forma pura” (CAMPOS, o que gastam. Conforme observou corretamente 1964a, p 105). Madi (1985, p. 49), a concepção de Campos so- bre o financiamento da acumulação é anacrônica, 4 Este tipo cultural corresponde também ao homem imbu- visto que baseada na figura do capitalista indivi- ído da ética protestante de Weber. No entanto, vale lembrar dual do século XVIII e da primeira metade do sé- a discordância de Campos com relação a Weber. Para Cam- culo XIX pos, a Reforma protestante, embora pudesse ser conside- rada um momento de expansão do ethos capitalista, não Isso não é tudo. Outro “vício” deveria ser concebida como a causa, mas, sim, como o re- antidesenvolvimentista de nossa cultura é a prefe- sultado de tal expansão. Por outro lado, situa em outro rência pela estética, ao invés de cultivarmos a efi- momento histórico (no período renascentista) a verdadeira cácia. Descobrimos, com Campos, que temos eclosão daquilo que Weber supunha ter acontecido com a Reforma. “Esta [a Reforma] não foi a causa do surto do verdadeira aversão ao comportamento racional e ethos capitalista, senão que resultou de uma tensão uma indisfarçável tendência ao emocionalismo. institucional crescente radicada precisamente no vigor Vejamos as palavras do autor. “Persistem em nos- estuante do avanço capitalista”. E isso porque “o impacto sa cultura e em nosso caráter elementos sociocultural da Renascença e a portentosa mutação eco- antagonísticos ao desenvolvimento. O primeiro nômica trazida pelas Descobertas e pela revolução dos pre- desses elementos é o baixo nível de racionalidade ços geraram pressões novas, que não podiam ser contidas nos lindes da estrutura institucional da Igreja. Foi como de nosso comportamento, associado talvez ao tipo resultado dessas pressões que despontou a Reforma” de educação beletrista e memorativa. A capacida- (CAMPOS, 1964a, p. 33-34). de de exteriorizar emoções é mais prezada que a

160 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 27: 157-170 NOV. 2006 capacidade de resolver problemas [...] Esse baixo Assim, aprendemos que a formulação de um nível de racionalidade se expressa na enunciação “projeto” poderá modificar nosso caráter, livran- absolutamente tranqüila de objetivos incompatí- do-nos de traços secularmente consolidados em veis, no descompasso entre a seleção dos proble- nossa cultura. Mas quem formulará o projeto? Que mas e a escolha dos instrumentos, no vício de meios serão utilizados? Enfim, quais as diretrizes querer os fins sem querer os meios” (CAMPOS, de tal projeto? A resposta a estas questões requer 1968, p. 294)5. o exame das racionalizações político-econômicas de Campos e do tipo de sistema político que está Há ainda um terceiro elemento cultural anta- implícito (às vezes explícito) em tais racionaliza- gônico ao desenvolvimento: o comportamento ções. Este será o tema da próxima seção deste anticompetitivo, ou a “propensão antidarwinista”. artigo. No momento, basta assinalarmos que o Conforme argumenta: “O Darwinismo postula a projeto idealizado por Campos deveria ser elabo- seleção do mais apto na competição biológica. Nós rado e executado pelos centros de poder político. temos horror à competição como instrumento de Caberia à tecnocracia que comanda o poder Exe- apuração da eficiência. O paternalismo, o cutivo estatal a tarefa de indicar o caminho da clientelismo, o ‘jeito’, o excessivo protecionismo reforma de nosso caráter. em que se enclausuram diversos grupos, e a vil deturpação do belo conceito de nacionalismo para Antes de desenvolvermos o ponto acima, ve- proteção de privilégios e ineficiências – todos tes- jamos de que forma Campos interpreta a influên- temunham nossa fundamental aversão ao cia do elemento sociocultural sobre as atitudes dos Darwinismo no campo político e social” (CAM- atores presentes na cena política brasileira nas POS, 1968, p. 294). décadas de 1950 e 1960. Não é difícil perceber que tal influência aparece como determinante na Tendências hedonísticas, baixo grau de construção dos tipos políticos apresentados por racionalidade no comportamento e propensão Campos. O “nacionalista xenófobo”, o antidarwinista. Eis aí a catalogação de nossos “ví- “paternalista estatizante”, o “distributivista preco- cios” antidesenvolvimentistas. Mas Campos não ce”, os “clérigos excitados”, a “juventude obsole- nos deixa desesperar. Há ainda uma esperança, ta” etc. são personagens cuja participação na cena pois todo “viciado”, desde que se submeta à ad- política só é possível graças à sedimentação vici- ministração de amargos remédios e esteja dispos- osa da cultura brasileira. Isso sem falar nos “so- to a suportar o difícil período de crises de absti- cialistas” e “comunistas”. Estes, embora “estra- nência, conta com a possibilidade de cura. Desse nhos” ao nosso meio cultural, acabariam benefi- modo, embora conclua que “a circunstância cul- ciando-se do “caos” gerado pela irracionalidade tural brasileira é ineficiente como clima de desen- das ações conjugadas dos demais atores políti- volvimento”, também ressalva que “a realização cos. dessa situação existencial não tem, no entanto, a fatalidade da Moira, do lado clássico. É suscetí- Essencialmente, a invectiva de Campos con- vel de superação. Mas a superação exige um pro- tra esses atores procura ressaltar a incompatibili- jeto consciente baseado na análise do nosso re- dade de suas atitudes com a realização de uma pertório de possibilidades culturais” (CAMPOS, política econômica “racional”. No campo especí- 1964a, p. 112). fico do debate econômico, a crítica dirige-se às teses da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e do Instituto Superior 5 Convém notar que esse juízo altamente negativo sobre o de Estudos Brasileiros (ISEB)6. Campos rejeitava grau de racionalidade dos brasileiros é algo que acompanha nosso autor até sua obra de maturidade, que pode ser con- siderada, em muitos sentidos, mais como continuidade do que como ruptura em relação aos escritos do período foca- 6 Referir-nos-emos à conjuntura do início dos anos 1960, lizado neste artigo. Com efeito, em seu caudaloso livro de já que na década anterior o debate de Campos com a Cepal memórias, o autor continua insistindo no “irracionalismo pode ser compreendido mais como um diálogo entre paren- do comportamento brasileiro” (CAMPOS, 1994, p. 159, tes próximos do que como uma disputa entre antagonistas 225). Ainda depois disso, pode-se ler, em texto de 1996, ferrenhos. O fato é que nos anos 1950 Campos estava que Campos continuava considerando uma “raridade en- integralmente voltado às tarefas de desenvolvimento, como contrar um brasileiro remotamente capaz de ligar causa e presidente do BNDE e formulador (juntamente com Lucas efeito” (CAMPOS, 1996, p. 317). Lopes) do plano de metas do governo Kubitschek. Nesse

161 UMA DITADURA CONTRA A REPÚBLICA a noção de que as causas da inflação fossem basi- que o autor tinha clareza de que se tratava de uma camente de origem estrutural e também que o fe- disputa política e não exclusivamente técnica. Daí nômeno inflacionário tivesse qualquer função sua solução conciliadora para o conflito: “A iden- catalisadora para o crescimento econômico. En- tificação de estrangulamentos é evidentemente de quanto os “estruturalistas” procuravam vincular grande utilidade para que a política fiscal e mone- o combate aos desequilíbrios a um programa de tária tenha um papel ativo ainda mais útil: e esta é reformas, no qual despontavam a reforma agrária a linha de reconciliação entre os ‘monetaristas’ e e a reforma fiscal, Campos e todos os demais os ‘estruturalistas’” (idem, p. 92). “monetaristas” não admitiam que qualquer com- Mas nem todos os antagonistas visualizados bate sério à inflação pudesse prescindir de dar por Campos na cena política brasileira merece- prioridade aos instrumentos clássicos de controle ram a mesma “consideração” que os seus adver- monetário e fiscal. sários “técnicos”. Quando as críticas deslocavam- Em oposição à tese estruturalista, que define se do campo “técnico” para o campo propriamente como essencialmente passivo o comportamento político o tom do discurso deixava de ser polido e das autoridades monetárias e fiscais, ou seja, como “conciliador” para tornar-se sarcástico e conta- “mecanismos de propagação” das tensões estru- minado de desprezo pelo adversário. Não se tra- turais, os monetaristas afirmam que é o compor- tava mais de denunciar e “corrigir” os erros de tamento irracional das autoridades, emitindo mo- economistas “inquietos” com mania de “inventar” eda em excesso para cobrir os crescentes gastos teorias e com pouco trato na condução de políti- estatais, a real causa do desequilíbrio inflacioná- cas, mas, sim, de calar vozes estridentes e peri- rio. Advertiam que, mesmo muitos dos chamados gosas, plenas de potencial de “subversão”, num estrangulamentos, inelasticidades da oferta ou ten- ambiente cultural como o nosso. sões estruturais seriam antes produtos do que Exemplo típico desse tratamento depreciativo causa da inflação. Como lembra Campos, “é per- observa-se nas referências de Campos aos nacio- feitamente possível, com base na experiência lati- nalistas, essas “figuras grotescas”, “animais pré- no-americana, demonstrar que grande parte dos lógicos”. O potencial de veto desses atores a po- mencionados estrangulamentos foram original- líticas econômicas “racionais” e, sobretudo, sua mente induzidos pela inflação, embora numa eta- própria capacidade de influência, gerando políti- pa posterior possam incentivar a inflação” (CAM- cas “irracionais”, é a maior preocupação do au- POS, 1967b, p. 87). Inversão de argumento típi- tor: “coisa que me inquieta é a irracionalidade nas ca do estilo do autor que, neste ponto, estava um decisões econômicas – o culto do mito – a que se passo adiante dos demais monetaristas, menos vem entregando os nossos ‘nacionaleiros’” (CAM- hábeis em assimilar o esforço intelectual dos ad- POS, 1964b, p. 43). versários e subjugá-los aos seus propósitos. Cam- pos argumentava que “até certo ponto as duas Para Campos, a irracionalidade nas decisões opiniões em conflito são menos diferentes do que econômicas pode ser apenas a contraface de uma pode parecer, suas divergências são mais de mé- espécie de racionalidade subversiva: “Há muito todo e ênfase do que de substância. Há, contudo, tempo venho matutando para descobrir porque um núcleo de disputas em torno, principalmente, nossos comuno-nacionalistas são tão reticentes da utilidade das medidas monetárias e fiscais bem no combate à inflação. Só descubro dois moti- como da relação entre fatores estruturais e do pró- vos. O primeiro é o aguçamento da tensão social, prio processo inflacionário” (idem, p. 82). Vê-se como caldo de cultura para a revolução. O segun- do é o alargamento da intervenção do Estado, como prelúdio ao socialismo integral. Num ambiente in- momento, acentuar a prioridade absoluta de políticas res- flacionário, nenhum serviço ou atividade básica tritivas de combate à inflação não seria uma boa a atitude pode sobreviver por longo tempo em mãos priva- para quem pretendia manter-se no centro de controle da das. Espremido entre preços rígidos e custos cres- política econômica. Não devemos esquecer também que centes, o empresário privado deixa de investir, Campos foi um dos fundadores do ISEB. Somente no final deteriora-se o serviço ou se estanca a produção: dos anos cinqüenta, com a crise da ideologia desenvolvi- mentista e a reorientação das teses da Cepal para a questão surge o Estado como ‘Deus ex-machina’, e se das reformas de base, é que Campos passa a insistir na implanta o socialismo pelo atalho da inflação” questão da estabilidade. Ver, a respeito, Bielshowski (1995). (idem, p. 34).

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O desprezo de Campos, entretanto, não se li- democrático, e não uma causa da crise política” mita aos atores políticos imbuídos de idéias soci- (CAMPOS, 1969b, p. 18-19). É importante reter alistas e estatizantes. No limite, parece estender- desta afirmação a suposta incompatibilidade entre se a todos aqueles que procuram manifestar-se democracia e “disciplina social”, pois constitui-se politicamente, aproveitando nosso “baixo grau de num elemento de definição negativa do projeto de racionalidade” para falarem de assuntos sobre os Campos. quais não teriam o mínimo de conhecimentos, Mas é preciso ter cuidado na interpretação da como, por exemplo, de política econômica. Este passagem acima. Tudo depende do que o autor é o cerne do juízo de Campos sobre a “classe entende por “disciplina social”. Não encontramos política”: “Em sua grande média a nossa ‘classe uma definição exata para essa noção, porém pare- política’ permanece prisioneira de preconceitos, ce possível reconstruir seu significado à luz dos irrealista no trato de problemas econômicos, emo- elementos de que já dispomos. Considerando as cional no debate político, inorgânica na formula- disquisições de Campos sobre a cultura e o pano- ção de um projeto nacional” (idem, p. 30). rama político brasileiro, podemos afirmar que a Não é preciso ir mais longe para perceber: pri- disciplina social é quebrada quando os elementos meiro, a complementaridade entre a cultura brasi- “viciados” do nosso caráter conseguem ecoar com leira e as atitudes dos atores políticos (ambas ei- intensidade nas arenas políticas. Os atores políti- vadas de “vícios” e “irracionalidades”). Segundo, cos visualizados por Campos, na crise dos anos a incompatibilidade entre tais atitudes políticas e o sessenta, nada mais são do que a expressão polí- sistema político idealizado por Campos para a so- tica da irracionalidade, do hedonismo e da aver- ciedade brasileira. Saliente-se que este sistema, até são à competição. Daí a intolerância do autor para este ponto de nossa argumentação, encontra-se com estes atores: “Detesto a promessa fácil do ainda implícito. Trataremos de explicitá-lo a se- demagogo [...] Detesto o paternalismo do Estado guir. cartorial [...] Detesto o falso nacionalista” (CAM- POS, 1967a, p. XC). IV. “DITADURA COMISSÁRIA” OU ESTADO AUTORITÁRIO? Na crise brasileira do início dos anos 1960, quando grupos e classes sociais dominados pas- Os textos de Campos posteriores ao golpe de saram a vocalizar suas demandas e estas começa- 1964 passam a apresentar mais explicitamente o ram a ocupar o centro do debate político, o cam- que se poderia considerar um projeto de reforma po de arbítrio do tecnocatra estreitou-se consi- do sistema político brasileiro. Como buscaremos deravelmente, na proporção em que se dava a demonstrar, a diretriz básica desse projeto con- “publicização” do conflito de classes. siste na institucionalização de um sistema político de tipo autoritário, que combina um conjunto de Saliente-se, porém, que tal “publicização” dos regras institucionais destinadas, por um lado, à conflitos de classes ocorria de forma ainda muito desmobilização e à contenção dos movimentos de embrionária. Trabalhadores do campo e da cida- oposição, e, por outro, à hipertrofia dos poderes e de apenas principiavam a tarefa de organizar-se à ampliação da liberdade de movimentos da para vocalizar autonomamente seus anseios. O tecnocracia do Executivo estatal. debate político era ainda essencialmente controla- do pelas elites políticas tradicionais. Isso resulta- Para isso, vejamos inicialmente como este au- va numa clara desconexão entre os movimentos tor justifica a intervenção militar no processo po- sociais emergentes e a interpretação das deman- lítico brasileiro. Campos argumenta que, no caso das destes movimentos por parte daqueles que brasileiro, a intervenção das forças armadas está tradicionalmente ocupavam as arenas políticas. ligada a uma “função” em que, “graças ao seu maior grau de coesão institucional e organizacional, Com isso em mente, pode-se inferir que a [as forças armadas] são ocasionalmente chama- “indisciplina social”, para Campos, corresponde das a exercer: a restauração da disciplina social, ao processo de emergência política dos trabalha- após impasses políticos, que levariam à socieda- dores do campo e da cidade. Em outras palavras, de ao imobilismo institucional ou ao radicalismo corresponde à politização dos conflitos de clas- subversivo. Nessa hipótese, a intervenção militar ses. É claro que o autor em questão não a define seria um resultado do fracasso do instrumental nestes termos, recorrendo antes às interpretações

163 UMA DITADURA CONTRA A REPÚBLICA de seus próprios adversários acerca daquele pro- dinamismo e eficiência na execução de seu Plano cesso para formular suas racionalizações. Afinal, de Metas. Esta solução traz implícita certa resig- várias facções de elite da esquerda nacionalista nação dos tecnocratas em relação à inevitável con- acreditavam sinceramente que a mobilização dos vivência com os setores considerados depositári- setores populares representava o prelúdio de uma os da irracionalidade e da ineficiência. revolução socialista no Brasil. Com o golpe de 1964 e o retorno de Campos Em seu exame das idéias políticas de Roberto para o núcleo decisório da política estatal – tor- Campos, em contraposição às de , nando-se Ministro do Planejamento do governo Reginaldo Moraes chama a atenção para duas al- de Castello Branco –, os recursos que antes lhe ternativas de organização do sistema político ide- pareciam escassos ampliaram-se consideravel- alizadas por Campos para o caso brasileiro. “A mente. A partir de então, suas propostas políticas primeira delas implicava uma espécie de ‘ditadura aproximam-se mais do ideal do Estado autoritá- comissária’, regime estabelecido pela força, mas rio. A segunda alternativa política de Campos, a justificado pelas emergências da ‘guerra santa “ditadura comissária”, pertence a esse momento. contra o atraso’. A segunda (que não exclui ne- Aqui, porém, é necessário que avancemos com cessária e integralmente a primeira) reivindica re- redobrado cuidado. Em nosso entender, a noção formas institucionais que colocassem a verdadei- da “ditadura comissária” não fornece uma ima- ra administração dos recursos a salvo da luta po- gem adequada para compreender o projeto políti- lítica, sobretudo da influência perniciosa dos vo- co de Campos, em toda a sua complexidade. tantes, vistos como uma clientela sôfrega e pron- Embora se possa admitir que haja um lugar para ta a ser corrompida pelas promessas irresponsá- algo análogo à instituição da “ditadura comissária” veis de demagogos e oportunistas” (MORAES, em seu projeto político, este lugar é bem mais 1995, p. 95). restrito do que as próprias palavras do autor su- A segunda alternativa remete às idéias de Cam- gerem. Com efeito, em 1967, ao término de sua pos desenvolvidas durante a primeira metade dos “profícua” atividade reformista no primeiro Mi- anos 1950, quando o autor estava envolvido nas nistério da ditadura militar, Campos afirmava: tarefas imediatas de elaboração dos projetos ofi- “Com notável instinto de preservação, que lhe ciais de desenvolvimento, na qualidade de presi- garantiu três séculos de história, façanha não des- dente e superintendente do BNDE. Esta alternati- prezível, a “Lex Curiata” da República Romana va política foi a que vigorou durante o governo admitia regimes transitórios de exceção para a Kubitschek, criando as condições para a solução de crises. Eram a dictadura rei gerundae implementação do Plano de Metas. O próprio causa – a ditadura para fazer as coisas – e a BNDE e os “grupos executivos” representavam dictadura seditionis sedandae – a ditadura para as principais instituições da “administração para- debelar a sedição. Nossos Atos Institucionais, lela” do governo Kubitschek, detentoras dos po- cujos objetivos foram essencialmente semelhan- deres de fato na elaboração e implementação da tes – quebrar um impasse institucional e expungir política econômica. a subversão –, nada mais são do que uma versão cabocla da lei curiata” (CAMPOS, 1968, p. 87). No entanto, esta alternativa política seria logo abandonada por Campos, principalmente após sua Em nosso entender, a imagem da ditadura saída, em 1959, do BNDE e, conseqüentemente, comissária é mobilizada por Campos a fim de jus- do núcleo decisório da política econômica do go- tificar o golpe de Estado de 1964 e a atividade dos verno. Além disso, deve-se notar que a alternativa governos militares, principalmente do governo política consubstanciada na “administração para- Castello Branco, no qual Campos tivera papel de lela” não representava a alternativa política ideal destaque. Trata-se de uma racionalização, com- para a tecnocracia capitaneada por Campos. Tra- preendida aqui como “uma estratégia através da tava-se de uma solução de “compromisso” qual o produtor de uma forma simbólica constrói (LAFER, 1970). Na impossibilidade de realizar uma cadeia de raciocínio que procura defender, uma reforma administrativa integral, que desalo- ou justificar, um conjunto de relações, ou institui- jasse do poder institucional os setores clientelistas, ções sociais, e com isso persuadir uma audiência Kubitschek optou por inflar o poder dos órgãos de que isso é digno de apoio” (THOMPSON, 1995, da administração paralela, de modo a obter maior p. 82-83).

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No entanto, esta racionalização não resiste ao suprimindo leis, principalmente se isto visasse “to- cotejo com a teoria política, com os fatos históri- lher a autoridade do Povo e do Senado”, como cos e, nem mesmo, com a própria lógica do con- afirma Maquiavel. junto da argumentação de Campos. Presta-se ape- Tendo como parâmetro os elementos destaca- nas à tentativa ardilosa de atribuir um pouco de dos acima, podemos avaliar o grau de justeza da dignidade ao que é intrinsecamente indigno. Os racionalização apresentada por Campos para gol- romanos antigos aceitavam a legitimidade da dita- pe o militar de 1964, nos termos da ditadura dura e consideravam-na um bem para a Repúbli- comissária. Em primeiro lugar, não constava da ca, mas sabiam muito bem distingui-la da tirania. Constituição brasileira de 1946 nenhum dispositi- Maquiavel esboça, com notável clareza, o es- vo que permitisse aos militares a deposição do sencial da ditadura romana: “O ditador era nome- presidente da República. Tampouco os militares ado por um período e não perpetuamente, e ape- foram nomeados ou eleitos pelo povo ou por seus nas para corrigir a causa mediante a qual tinha representantes para assumirem a função de dita- sido criado; sua autoridade estendia-se em poder dores. A corporação, por assim dizer, auto-inves- deliberar por si mesmo os remédios para aquele tiu-se das funções ditatoriais, ferindo, já em sua urgente perigo, fazer tudo sem consulta e punir origem, um dos princípios fundamentais da dita- sem apelação; mas não podia fazer nada que im- dura antiga. plicasse a diminuição do Estado, como seria por Em segundo lugar, destaque-se que jamais os exemplo tolher autoridade do Povo e do Senado” militares ou os tecnocratas fixaram com clareza, (Maquiavel apud BOBBIO, 1987, p. 160; sem em qualquer das centenas de leis que criaram, grifos no original). quanto tempo exatamente iria perdurar a ditadura. Podem-se destacar três elementos essenciais Os romanos fixavam o limite de seis meses, mas constitutivos da ditadura romana, surgidos no es- Castello Branco içara-se ao poder falando em dois boço de Maquiavel. Primeiro: o ditador é nomea- ou três anos, sendo que, ao fim das contas, o do, não dispondo do direito de auto-investidura. regime autoritário perdurou por duas décadas. Sua nomeação cabia a um dos cônsules, sendo Em terceiro lugar – e aqui reside o ponto prin- este um mecanismo previsto na constituição da cipal em que os fatos históricos contradizem a República romana e não fruto de uma conspira- racionalização de Campos – os militares e os ção contra a Constituição. Segundo: o prazo de tecnocratas não se limitaram a governar acima da permanência no cargo deveria ser transitório. Os constituição de 1946, pois se lançaram à tarefa de romanos levavam a sério o instituto da transitori- substituí-la inteiramente por outra, na verdadeira edade, o que explica a fixação, na Constituição, “fúria legiferante” do governo Castello Branco. de um período bastante específico para a vigên- Ainda mais: o espírito das reformas institucionais cia da ditadura. “O ditador era nomeado apenas desse período apontava justamente para o para a duração do dever extraordinário que lhe tolhimento da autoridade das assembléias e do fora confiado e, de todo modo, por um período povo, o principal pecado do ditador romano. Se, não maior do que seis meses e não maior do que a portanto, quisermos manter alguma analogia com permanência em cargo do cônsul que o havia no- o vocabulário dos antigos para fornecer uma ima- meado” (BOBBIO, 1987, p. 159)7 . Terceiro: o gem fiel aos fatos históricos pós-1964, devemos ditador desfrutaria de poderes extraordinários, substituir a noção de ditadura comissária pela no- podendo governar acima das leis estabelecidas, ção de tirania. É matéria do saber introdutório da mas não podia alterar a Constituição, criando ou ciência política o fato de que, para os romanos, “o homem que tomasse o poder ou que, mesmo tendo recebido do grupo dominante, alterasse com- 7 Examinando a ditadura romana, Rousseau também cha- pletamente o corpo jurídico do Estado, era co- mou a atenção para a necessidade dos romanos fixarem um prazo bastante restrito para a vigência da ditadura. “Seja nhecido como tirano e não como ditador” qual for o modo por que se confere este importante encar- (SPINDEL, 1985, p. 10). go, é preciso fixar sua duração num prazo bastante curto, Só se poderia admitir a transitoriedade do que em nenhum caso possa ser prolongado. [...] Uma vez passada a necessidade urgente, a ditadura torna-se tirânica autoritarismo, em Campos, no caso de também ou vã” (Rousseau apud BOBBIO, 1987, p. 161). se admitir o pressuposto de que um telos demo-

165 UMA DITADURA CONTRA A REPÚBLICA crático regula suas idéias. O autoritarismo seria de reformas institucionais rumo à consolidação apenas um meio de chegar-se à verdadeira demo- do que Campos chamava de “economia associativa cracia (ou de salvá-la de seus algozes). Mas tal de mercado”8 . pressuposto contraria tanto os fatos políticos do As políticas destinadas ao combate à inflação século recém-findado, quanto a teoria democráti- seguiam essencialmente o receituário ortodoxo. ca contemporânea. A história do século XX evi- Ao diagnosticar a inflação, como resultado do denciou que, quando governantes autocratas as- excesso de demanda, propunha medidas como o cendem ao topo do Estado prometendo ao povo corte nos gastos públicos, a limitação do crédito bens como grandeza e liberdade futura em troca e, principalmente, a contenção salarial, as quais, de um momento transitório de concentração de em conjunto, resultavam numa sensível redução poderes, a tarefa a que mais ardorosamente se da demanda global. Apenas uma diferença em re- lançam, na verdade, é a de manter-se no poder, lação aos planos propostos pelo Fundo Monetário justamente ao custo da permanente humilhação Internacional (FMI): procurava diluir o impacto do povo pela castração de suas liberdades. Por dessas medidas ao longo de três anos, optando outro lado, a teoria democrática contemporânea por um tratamento gradualista ao invés do tradi- tem-se insurgido cada vez mais contra o falacioso cional tratamento de choque9. argumento de que é possível a realização de fins democráticos por meios autoritários. Conforme Este conjunto de medidas restritivas seria, se- argumenta Robert Dahl, a idéia de uma oposição gundo Campos, incompatível com a vigência dos entre resultados substantivos e o processo demo- processos eleitorais, pois “na presente conjuntura crático é completamente espúria. O processo de- da vida brasileira, em que existe ainda um proble- mocrático exige e somente ele viabiliza direitos e ma cirúrgico de extirpação do câncer inflacioná- bens substantivos como “o direito do povo ao rio, seria perigosa a eleição de líderes populistas, autogoverno e a distribuição do poder” (DAHL, sem coragem para enfrentar o duro e solitário in- 1989, p. 175). verno da contenção salarial, que antagoniza as grandes massas, da contenção de crédito que Assim, portanto, se aceitássemos a idéia de antagoniza o empresário, da contenção de despe- “ditadura comissária” para a caracterização do sas públicas e subvenções, que antagoniza os po- projeto político de Campos, permaneceríamos cir- líticos” (CAMPOS, 1969b, p. 34). Percebe-se que cunscritos à racionalização apresentada pelo au- as políticas antiinflacionárias formuladas por Cam- tor para o regime de 1964. O que se depreende de pos, supostamente indispensáveis e suas propostas não é um regime de força tempo- insubstituíveis10 , servem como veículo para a jus- rário destinado à salvação da República, mas a institucionalização definitiva de um sistema políti- co autoritário. Se não, vejamos. 8 “A economia associativa de mercado é o modelo institucional que tem presidido satisfatoriamente ao cres- Em primeiro lugar, é importante observar que cimento recente do mundo não socialista. Nesta, diferentes as idéias de Campos acerca da institucionalização grupamentos, como as empresas e os sindicatos, interpõe- do autoritarismo não estavam plenamente desen- se entre o mercado, de um lado, e o poder público, de outro. volvidas até o limiar da fase de “descompressão” Difere assim, quer da economia de mercado, característica do sistema, em meados dos anos 1970, embora do capitalismo liberal, quer do planejamento centralista, alguns indícios dessas idéias estivessem presen- característico do estado socialista. Na economia associativa o Estado tem função orientadora, co-participante e tes, implicitamente, nas propostas de política eco- intervencionista, porém não monopoliza os bens de pro- nômica formuladas pelo autor imediatamente de- dução nem entrega todo poder político às elites pois do golpe de Estado. planejadoras” (CAMPOS, 1979, p. 211). Como ministro do planejamento no governo 9 Vale notar que a opção de Campos por um tratamento Castello Branco, Campos foi o principal respon- gradualista de combate à inflação, a despeito das recomen- sável pela formulação e implementação do Plano dações rigidamente monetaristas do Fundo Monetário In- ternacional (FMI) de um tratamento de choque, deve-se de Ação Econômica do Governo (PAEG). O PAEG antes à sua convicção da inviabilidade política da receita sintetizava as propostas político-econômicas de- ortodoxa do que à superioridade técnica do tratamento senvolvidas até então pelo autor. Tendo como pri- gradualista. oridade cronológica absoluta a redução gradual da 10 “A verdade crua é que nenhum programa sério de com- inflação, procurava também iniciar um processo bate à inflação pode dispensar a coordenação de três ele-

166 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 27: 157-170 NOV. 2006 tificação da interrupção dos processos democrá- ração da vida partidária. Nenhum desses proble- ticos. mas é fácil; os dois são urgentes” (CAMPOS, 1969a, p. 283). Mas, se a política antiinflacionária era priori- dade cronológica do PAEG, sua importância subs- A busca de um caminho para a tantiva maior residia no processo de reformas institucionalização de um sistema político autori- institucionais que procurava desencadear, como tário é correlata à desconfiança explicitada por reconhece o próprio autor: “A importância do Campos com relação à eficácia do regime demo- PAEG reside menos na implementação de metas crático para a viabilização de políticas econômi- específicas de redução da inflação e aceleração cas “racionais”. Não é casual que Campos dedi- do crescimento do que no esforço concentrado que boa parte de seus artigos pós-1964 a comba- que se fez na direção de reforma institucional e ter todas as propostas de restauração do regime modernização. Em realidade, o PAEG incorpora a democrático, como no caso da Frente Ampla, maior parte das políticas básicas, e enumera a capitaneada por Goulart, Lacerda e Kubitschek. maior parte das reformas institucionais e instru- “Postulada como a postula a Frente Ampla, a mentos de ação, que vieram a constituir o ‘mode- ‘redemocratização’ trar-nos-ia de volta à oscila- lo brasileiro’” (CAMPOS, 1979, p. 63). Estas re- ção catastrófica entre o imobilismo institucional e formas institucionais não se limitavam ao plano a radicalização subversiva. Sem dúvida os políti- econômico, atingindo também os planos social e cos convencionais têm grande capacidade de co- político11. municação com o povo. Apenas lhe transmitem os sinais errados” (CAMPOS, 1969b, p. 23). Conquanto tenha obtido um elevado êxito no plano econômico e razoável êxito no plano social, Conforme já mencionamos, a política econô- a “Revolução”, segundo Campos, ao completar mica defendida por Campos representava uma seis anos, ainda não havia logrado obter sucesso espécie de racionalização para um poder autocrá- no plano político. “Reabrem-se, hoje, candentes, tico, a ponto de o autor afirmar que “a nova Cons- no seio militar, os dilemas que afligiram Castello tituição brasileira [...] foi concebida como um Branco e que ele esperava ter dirimido ao insistir austero instrumento desinflacionário e na distinção entre a Revolução como ideário, que desenvolvimentista” (CAMPOS, 1968, p. 89). deve ter continuidade, e a Revolução como pro- Referia-se à Constituição de 1967 cuja não cesso, que deve buscar institucionalizar-se em institucionalização Campos lamentava profunda- termos constitucionais. Os dois problemas políti- mente. É na análise retrospectiva da tentativa frus- cos fundamentais da Revolução continuam sendo trada de institucionalização da Constituição de 1967 a legitimação do seu ideário, pela inscrição que Campos explicita o que considera ser o siste- institucional, e a participação popular, pela restau- ma político ideal para o Brasil. O principal elemento desse sistema era a insti- mentos – contenção do déficit do governo, contenção de tuição de um “Executivo forte”. O poder Executi- salários e contenção de crédito - que são os três elementos vo deveria estar armado de maiores prerrogativas formadores do excesso de procura monetária” (CAMPOS, 1968, p. 121). legislativas, o que se tornou possível com a cria- ção do “decreto-lei”. Vejamos a justificativa de 11 “Pode-se de um modo geral diferenciar quatro tipos de Campos. “Os dispositivos da nova Constituição reforma: as de natureza propriamente econômica, como as várias reformas fiscais, a implantação do novo código tri- brasileira, que facultam ao Executivo expedir de- butário, a lei do mercado de capitais, a revisão da legislação cretos-leis sobre segurança nacional e finanças do comércio exterior, do código de minas e da legislação públicas [...] não são rombudos detritos da ca- sobre eletricidade; as de caráter econômico-social como a serna, mas aceitável mobiliário de uma sociedade criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e do em desenvolvimento, cuja vida política sofre agres- Programa de Integração Social, a fundação do Banco Naci- sões ideológicas, e cuja vida econômica exige onal de Habitação, a reforma do ensino e a reforma agrária; as reformas instrumentais, como a criação do Banco Cen- mutações rápidas e decisões técnicas complica- tral e do Ministério do Planejamento, e a reforma adminis- das” (idem, p. 87). trativa; as reformas políticas, como o reforço da autoridade Completando ainda a instrumentação desse do poder Executivo, a eleição indireta para Presidente da República, a instituição de um regime bipartidário e a poder “Executivo forte”, Campos refere-se à Lei reformulação das funções e poderes do Legislativo” (CAM- de Segurança e à Lei de Imprensa. Conforme ex- POS, 1979, p. 45-46). plica o autor, “na primeira, ampliou-se o conceito

167 UMA DITADURA CONTRA A REPÚBLICA de segurança nacional, para abranger, além da fi- jeto digno de consideração. Por isso o autor mo- gura tradicional da agressão externa, as notáveis biliza uma vez mais a imagem da “ditadura modalidades de desafio interno às instituições, atra- comissária”, a qual aparece como “figura de Di- vés da subversão e da guerra revolucionária. Na reito” sob designação de “estado de emergência”: segunda, [...] procurou-se compatibilizar o direi- “O mecanismo de declaração do estado de emer- to à liberdade de expressão com o reconhecimen- gência [...] destina-se a atender a um dos requisi- to da responsabilidade dos meios de comunica- tos clássicos da ditadura constitucional, a saber, ção, que não se deveriam transformar em veícu- que a identificação de uma situação crítica, confi- los de propaganda subversiva, incitação ao pâni- gurada como estado de emergência não seja ex- co econômico e aviltamento das instituições” clusivamente do Chefe Executivo e seu gabinete, (CAMPOS, 1979, p. 241). mas envolva a participação de representantes do [poder] Judiciário e do [poder] Legislativo. A obri- A contrapartida de um Executivo forte é o es- gação de informar o Congresso sobre as medidas vaziamento do poder Legislativo, que teria muitas tomadas visa indiretamente a atender ao segundo de suas atribuições deslocadas para o poder Exe- requisito, a saber, que as limitações do ‘estado de cutivo, passando a funcionar como um mero direito’ não se prolonguem indefinidamente, o que fórum de debates – sem real poder decisório – transformaria a ditadura constitucional em dita- acerca das iniciativas governamentais. Ademais, dura inconstitucional” (idem, p. 284; sem grifos mesmo na tarefa de apreciação dos decretos do no original). Aqui, a imagem da ditadura comissária Executivo, o Congresso passava a ter um prazo seria mais plausível, não fosse o fato de ela surgir predeterminado para a votação. Vencido este pra- no âmbito de um sistema político em que já não zo, o projeto era aprovado por “decurso de pra- há mais qualquer indício de sobrevivência da in- zo”. Ainda com relação ao Legislativo, Campos dependência de poderes e da vigência das liberda- assinalava a importância da instituição do des que caracterizam a ordem republicana12. bipartidarismo, cujo principal mérito seria o de evitar a “anarquia partidária” e propiciar “uma ati- Se, mesmo com todos os controles do siste- tude mais programática e menos personalista, ou ma político autoritário, a “disciplina social” viesse regionalista, dos partidos”. O autor também elo- a ser ameaçada, a decretação do “estado de emer- giava a drástica mudança introduzida no mecanis- gência” funcionaria como a garantia absoluta da mo eleitoral, cuja novidade residia na eleição indi- manutenção da ordem autoritária. Vale concluir reta para presidente da República, por meio de registrando que é uma espécie de visão catastró- um colégio eleitoral congressual. Esta mudança fica do conflito de classes que se encontra no era justificada por Campos de acordo com a ne- núcleo das preocupações pelas quais Campos jus- cessidade de se evitar “o caráter extremamente tifica o estado de emergência, sua muito peculiar divisionista das eleições presidenciais, a paralisia administrativa resultante das longas campanhas eleitorais, o resíduo de animosidade dos pleitos, a 12 competição demagógica dos candidatos, porfian- Recentemente, inúmeros estudiosos têm-se dedicado à reconsideração do republicanismo enquanto uma tradição do-se em promessas inviáveis” (idem, p. 245). de pensamento voltada para a defesa e valorização da liber- Estes, em suma, são os principais elementos dade em termos distintos da tradição liberal. Enquanto o liberalismo conceitua liberdade exclusivamente como “não- do sistema político advogado por Campos, todos interferência” de forças externas (especialmente do Estado) eles previstos na Constituição de 1967. Não há na esfera privada dos indivíduos, o republicanismo inter- dúvida de que se trata de um sistema político de preta a liberdade como independência e “não-dominação” corte autoritário, cuja institucionalização seria pro- de determinados indivíduos ou grupos de indivíduos sobre fundamente conflitante com a manutenção de uma outros na sociedade. Deste ponto de vista, não há necessá- ordem política minimamente democrática. Assim, rio antagonismo entre liberdade e lei, como querem pensa- dores liberais tais como Isaiah Berlin (2002). Desde que a o autor chega a admitir explicitamente que “no lei seja formulada com a participação ou anuência dos cida- atual contexto histórico, um certo grau de dãos e esteja voltada para inibir a possibilidade da domina- autoritarismo parece inevitável” (idem, p. 224). ção na sociedade ela não somente é compatível, mas até mesmo necessária à liberdade republicana. Claro está que Mas isso não é tudo. Mesmo com todos esses estamos nos referindo a um conceito normativo de liberda- controles, Campos não se sente devidamente guar- de. Na literatura internacional, merecem destaque os estu- necido. Há ainda um último elemento de seu pro- dos de Pettit (1997), Skinner (1999) e Viroli (2002).

168 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 27: 157-170 NOV. 2006 versão de ditadura comissária: “É preciso reco- de sistemas ideológicos criam novos e sutis desafi- nhecer francamente que os conflitos de classe nas os [...]. É a essas novas realidades que o ‘estado sociedades industriais modernas e a confrontação de emergência’ se destina a atender” (idem, p. 254).

Ricardo Silva ([email protected]) é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campi- nas (Unicamp) e Professor no Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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169 UMA DITADURA CONTRA A REPÚBLICA

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