UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

O QUE A ESCOLA FAZ COM O QUE O POVO CRIA: até a entrou na dança!

CESAR AUGUSTUS SANTOS BARBIERI

São Carlos - SP Agosto de 2003

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO — ÁREA: FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO

O QUE A ESCOLA FAZ COM O QUE O POVO CRIA: até a Capoeira entrou na dança!

Cesar Augustus Santos Barbieri

Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação do Centro de Educa- ção e Ciências Humanas da Universidade Fe- deral de São Carlos, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Educa- ção. Linha de Pesquisa: Fundamentos da Edu- cação.

São Carlos - SP Agosto de 2003

Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária/UFSCar

Barbieri, Cesar Augustus Santos. B236ef O que a escola faz com o que o povo cria: até a capoeira entrou na dança! / Cesar Augustus Santos Barbieri. -- São Carlos : UFSCar, 2003. 311 p.

Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de São Carlos, 2003.

1. Educação. 2. Fundamentos da educação (segundo grau). I. Título.

CDD: 370 (20a)

ORIENTADORES

Prof. Dr. Paolo Nosella Universidade Federal de São Carlos/SP

Prof. Dr. Silvino Santin Universidade Federal de Santa Maria/RS

BANCA EXAMINADORA

TITULARES

Prof. Dr. Amarílio Ferreira Júnior Universidade Federal de São Carlos/SP

Profª Drª Ester Buffa Universidade Federal de São Carlos/SP

Prof. Dr. José Luís Vieira de Almeida Universidade do Estado de São Paulo/São José do Rio Preto-SP

Prof. Dr. Roberto Rodrigues Paes Universidade Estadual de Campinas/SP

SUPLENTES

Prof. Dr. Dorgival Gonçalves Fernandes Universidade Federal de Campina Grande/Cajazeiras-PB

Profª Drª Marisa Bittar Universidade Federal de São Carlos/SP

São Carlos, 28 de agosto de 2003

Aos homens e mulheres, de todas as idades, que, desde a invasão portuguesa de 1500, nestas terras localizadas abaixo do Equador, têm sido explorados, submetidos e escravizados pelas classes dominantes.

Agradeço à todos que, a mim, têm dispensado o seu cuidado!

SUMÁRIO

Resumo ...... viii

Riassunto ...... x

O X do problema ...... 01

Vista, assim do alto ...... 06

Uma questão de peso e medida! ...... 38

O mesmo pé que dança o ...... 112

Com que roupa eu vou? ...... 196

Não se aprende no colégio? ...... 273

Tá legal eu aceito o argumento ...... 323

Bibliografia ...... 358

RESUMO

Este estudo desenvolve uma reflexão sobre o processo de escolarização de um bem cultural, no caso, a Capoeira, levantando os sentidos a ela atribuídos no

âmbito do sistema público de ensino do Distrito Federal, apontando para o processo de assepsia ao qual é submetida quando colocada sob os ditames da Escola. Um quadro referencial de orientação fenomenológica modula o olhar que perscruta os temas elencados na argumentação, criando matrizes de pensamento de orientação humanista, que defendem um processo de Educação direcionado para o desenvolvimento do pensamento crítico, da criatividade e da autonomia do homem. É nestas bases que se vai questionar os significados reais da Capoeira nas suas acepções de luta, divertimento, esporte, sabedoria etc. Através de pesquisa bibliográfica, o autor apresenta uma análise comparativa, em perspectiva histórica, que permite levantar os sentidos engendrados em determinados contextos de produção de conhecimento, úteis à problematização do tema, como a Filosofia, a

Escola e a própria Capoeira. As diferentes variáveis que compõem formas de ver e expressar as relações homem-mundo, nestes espaços, foram minuciosamente descritas e interpretadas, optando-se pela visão fenomenológico-existencial- hermenêutica, que se fundamenta na intersubjetividade e na busca da compreensão do homem e sua realidade como partes de um só fenômeno — ser-no-mundo — conceito elaborado por Heidegger, que sustenta o método aqui utilizado para a apreensão do fenômeno da escolarização. Entrevistas com alunos e profissionais de nove estabelecimento de ensino da rede pública de ensino do Distrito Federal foram pensadas, encaminhadas e interpretadas segundo uma abordagem qualitativa de base hermenêutica, buscando entender as transformações impostas à Capoeira

com vistas a adaptá-la ao contexto escolar. O estudo permitiu relacionar a Capoeira com o contexto social onde se insere, descobrindo-a, na Escola, alicerçada numa racionalidade moderna que lhe impõe significados e novas funções, sustentadas em padrões culturais da elite educacional, numa lógica científico-tecnológica, que a veste com a imagem do denominado Esporte de Rendimento, demarcada por métodos, regras, eficiência e resultados. Ao apontar para os aspectos de alienação e adestramento que regem o processo de escolarização do ensino e da prática da

Capoeira e propor o início, efetivo, de um conjunto de ações que promovam a capoeirização da Escola, este estudo permite pensar as práticas educacionais de maneira crítica e consciente, ao mesmo tempo em que aprofunda o conhecimento de uma produção cultural autêntica, acentuando suas raízes afro-brasileiras como um dos elementos constitutivos da formação do homem brasileiro.

RIASSUNTO

Questo studio svilluppa una riflessione sull’incorporazione nella istituzione scolastica di un bene culturale, nel caso la Capoeira, mettendo in luce i sensi ad essa attribuita nell’ambito del sistema pubblico dell’insegnamento del Distretto

Federale, denunziando il processo di assepsia al quale é sottomessa quando sottoposta alle regole della scuola. Un quadro teorico di orientazione fenomenologica modula lo sguardo che scruta i temi elencati nell’argomentazione, creando matrici di pensiero di orientazione umanista, che difendono un processo di Educazione diretto per lo sviluppo del pensiero critico, della creativitá e dell’autonomia dell’uomo. In queste basi si questionano i sgnificati reali della Capoeira nelle sue accezioni di lotta, divertimento, sport, sagezza ecc. Attraverso la ricerca bibliografica, l’autore presenta un’analisi comparativa, in perspettiva storica, che permette di mettere in evidenza i sensi prodotti in determinati constesti della ricerca, utili al problema del tema, come la Filosofia, la Scuola e la propria Capoeira. Le differenti variabili che compongono forme di vedere e di esprimire le relazioni uomo-mondo, in questi spazi, sono state minuziosamente descritte e interpretate, dando preferenza alla visione fenemenologica-esistenziale-ermeneutica, che si fondamenta nella intersoggetivitá e nella ricerca della comprensione dell’uomo e della sua realtá come parti del fenomeno “essere-nel-mondo” — concetto elaborato da Heidegger — che sostiene il metodo qui utilizzato per la comprensione del fenomeno “scuola”. Interviste con alunni e professionali di nove scuole della rete pubblica dell’insegnamento del

Distretto Federale sono state aggiunte e indirizzate e interpretate secondo un’orientacione qualitativo di base ermeneutica, cercando di intendere le

trasformazioni imposte alla Capoeira col fine di adattarla al contesto scolastico. Lo studio há permesso di comparare la Capoeira al contesto sociale dove si inserisce, constatando que nella escuola essa assume una razionalitá moderna che le impone significati e nuove funzioni, sostenute in modelli culturali tipici dell’elite educativa, in una logica scientifica-tecnlogica che la riveste con l’immagine del denominato “sport di rendimento”, pieno di metodi, regole, efficienza e risultati. Nel denunciare gli aspetti di alienazione e addestramento che reggono il processo scolastico dell’insegnamento e della pratica della Capoeira nella Scuola e nel proporre l’inizio di un conjunto di azioni concrete que stimolino la capoerizzazione della Scuola, questo studio permette pensare alle pratiche educative di maniera critica e cosciente, allo stesso tempo in cui approfondisce la conoscenza di una produzione culturale autentica, mettendo in evidenza le sue radici afro-brasiliane come uno degli elementi constitutivi della formazione dell’uomo brasiliano.

“Batuque na cozinha Sinhá não quer, Por causa do batuque eu queimei meu pé” João da Baiana

INTRODUÇÃO

“Num mundo interligado pela Internet, não faz mais sentido ser ‘contra’ todos os importadores de consciência enlatada! Não podemos mais ser ‘contra o Padre Vieira’, ‘contra Goethe’, ‘contra a memória’, isto é, a história. Não podemos ser apenas ‘contra’.” José Castelo

O x do problema ?

“ Nasci no Estácio Não posso mudar minha massa de sangue Você pode crer que palmeira do Mangue Não vive na areia de Copacabana”1

Em 1549, junto com Tomé de Souza, o primeiro Governador-Geral, que trazia, embaixo do braço, uma Constituição para a Colônia, aqui desembarcaram, também, pela primeira vez, os polêmicos padres e irmãos jesuítas, os quais, tendo como missão oficial catequizar e educar os colonos e, principalmente, os gentios, foram, como afirmou Gilberto Freyre, “puros agentes europeus de desintegração de valores nativos”, tendo em vista ter sido o missionário, mais ainda do que o leigo, “o grande

2 destruidor de culturas não européias, do século XVI ao atual” ! Neste momento, sem dúvida, é instalado o processo (lento e duradouro) de escolarização, nas terras chamadas Brasil.

Vão-se e vêm jesuítas; vão-se estrangeiros e chegam novos colonizadores; vão-e-vêm holandeses e franceses, dentre outros; grita-se por autonomia política; na impossibilidade de ser conclamada, proclama-se a República, aguardando-se, indefinidamente, por sua aclamação popular; instalam-se ditaduras tidas como novas e redentoras; redemocratiza-se, por várias vezes, o país, até chegar-se a um novo milênio e, segundo alguns, ao momento de reconstruir a sociedade “sem medo de ser feliz”; mas, o fato é que a Escola, na grande maioria dos casos, até os dias

1 O X do Problema, , 1936 2 Cf. Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala. , Record, 2.000, p. 179- 180

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atuais, continua a exercer a sua função de aparelho ideológico de Estado3 e a desempenhar o seu papel de agência de inculcação dos valores e significados da classe dominante4, branca e letrada.

Não por acaso, certamente, junto com o desenvolvimento de ações objetivando, como concebe Werneck Sodré, transplantar a cultura européia5, inicia- se a implantação desse processo de Educação que, dentre outros valores elitizados e elitizantes, atribui ao fenômeno Cultura o sentido de ser uma “necessidade” a ser suprida pelo “trabalho da instrução”, concepção essa que, na interpretação de Ecléa

Bosi, “condenam à morte os objetos e as significações da cultura do povo, porque impedem ao sujeito a expressão de sua própria classe”6.

Por certo, como alerta Luiz Edmundo Wanderley, conforme venha a ser definido o conceito de povo, assim surgirão diferentes e importantes práticas e implicações teóricas. Por isso, neste estudo, “povo” é compreendido como sendo “as classes populares cuja visão de mundo e consciência de classe permanecem marcadas pela hegemonia da classe dominante”7, ou seja, de uma classe que é constituída, dentre outros segmentos, por trabalhadores rurais, por operários, pelas populações marginais, desprovidas de posse, títulos, recursos ou, ainda, concebido como sinônimo de massa que deverá ser dirigida e educada pelas elites ou, como define o senso comum, formada por homens e mulheres não civilizados e inferiores8.

Ao lidar com esse conceito de povo, não foi esquecido que, como já afirmou Octávio

Ianni, as atuais relações sociais de produção, tanto na cidade como na zona rural,

3 Cf. Louis Althusser, Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1985 4 Cf. Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, Rio de Janeiro , Francisco Alves, 1982 5 Cf. Nelson Werneck Sodré, Síntese de história da cultura brasileira, São Paulo, DIFEL, 1983 6 Cf. Ecléa Bosi, Problemas ligados à cultura das classes pobres, in: VALLE, E; QUEIRÓZ, José J. (org.), A cultura do povo, São Paulo, Cortez , Instituto de Estudos Especiais, 1988, p. 128 7 Cf. Luiz Eduardo W. Wanderley, Luiz Eduardo W. Apontamentos sobre educação popular, in: VALLE, E; QUEIRÓZ, José J. (org.), op. cit., p. 63 8 Idem, ibid., p. 59-60

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têm causado a “dissolução deste povo dos nossos amores, da nossa ilusão”, ilusão esta criada, muitas vezes, por intermédio de uma visão romântica do relacionamento homem-mundo-fenômeno, por ocasião do desenvolvimento da criação da Cultura, aqui concebida, como interpreta Marilena Chauí, “como uma ordem simbólica que exprime o modo pelo qual homens determinados estabelecem relações determinadas com a natureza e entre si”9, bem como a maneira pela qual interpretam e representam tais relações.

Ao realizar este estudo de como a Escola tenta apropriar-se de uma criação do povo, das classes populares ou subalternas; de como, no caso, a classe dominante tenta dominar, escolarizar, a Capoeira — ação essa que ocorre como um dos frutos do processo de sua “descaracterização” (como admitem alguns) ou de sua “modernização” (como defendem outros) — encontra-se suporte, também, no entendimento de que, como afirma Carmen Macedo, o foco principal da questão encontra-se no fato de que “elementos culturais passam a ser consumidos cada vez mais intensamente por uma população que não participa da elaboração de seus significados simbólicos”10.

Desta forma, a produção cultural, como define Carmen Macedo, é “o resultado de condições objetivas de inserção no sistema social”11, sistema esse que, por ser capitalista, determina que tais relações sejam sempre relações entre classes e que sejam orquestradas pela elite, a qual, como aponta Marilena Chauí, “está no poder, acredita-se, não só porque detém a propriedade dos meios de produção e o aparelho de Estado, mas porque tem competência para detê-los, isto é, porque

9 Cf. Marilena Chauí, Cultura do povo e autoritarismo das elites, in: VALLE, E; QUEIRÓZ, José J. (org.), op. cit., p.122 10 Cf. Carmem C. Macedo, Algumas observações sobre a questão da cultura do povo, in: VALLE, E; QUEIRÓZ, José J. (org.), op. cit., p. 37 11 Idem, Considerações finais, in: VALLE, E; QUEIRÓZ, José J. (org.), op. cit., p. 142

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detém o saber”12. E, detém, um saber, um conhecimento, que é, indubitavelmente, conquistado, adquirido, principalmente, na Escola.

A Capoeira é uma das manifestações culturais (re)criadas pelo povo que, nos

últimos vinte anos, mais chamou atenção da classe dominante (e principalmente da

Escola) quanto ao seus valores pedagógicos, quanto à possibilidade de sua utilização como um dos meios de educação de crianças e adolescentes das mais variadas populações, das diversas esferas sócio-econômicas, haja vista a atenção dispensada, principalmente, pelos meios de comunicação de massa; por estudantes de cursos de pós-graduação, do Brasil e do exterior; por revistas especializadas, de várias áreas (como por exemplo da sociologia, da psicologia, da antropologia, da cultura, da educação e da filosofia) que, cientificamente e/ou noticiosamente, trazem ao público, em geral, e ao público acadêmico, especificamente, informações detalhadas sobre seus atributos; por um grande número de revistas especializadas em Capoeira e por vários sítios eletrônicos (páginas e listas de discussão) que, das mais variadas formas, veiculam os mais diversos tipos de informação; por programas e projetos governamentais nas áreas da Justiça, da Assistência Social, da Saúde e, destacadamente, do Esporte e da Educação, que vão desde a simplicidade e acanhamento do projeto “Alfabetização pela Capoeira”, realizado pela professora

Nely Cabral e Jorge Francisco Ferreira (o Poeira), em 1984, na comunidade de

Padre Miguel, na cidade do Rio de Janeiro, até os que pretendiam, em 1999, “após três anos de experiência de sucesso” como aula de Educação Física em escolas da rede municipal de ensino, de Nilópolis (RJ), criar a Escola Municipal de Capoeira de

Nilópolis, com capacidade para atender setecentos alunos13.

12 Cf. Marilena Chauí, Cultura do povo e autoritarismo das elites, in: CHAUÍ, Marilena, Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas, São Paulo, Cortez, 2000, p. 49 13 Cf. Alexandre Medeiros, A escola da ginga, Revista Época, Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1999, p. 91

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É inegável, portanto, a importância que o fenômeno Capoeira vem adquirindo, não apenas no âmbito das classes populares ou subalternas, e nisso também reside a importância deste estudo que descreve, compreende e interpreta o que acontece quando uma criação, secular, do povo, como esta — que desde a sua origem se manifesta como uma estratégia de resistência, de contestação da ordem estabelecida e como uma linguagem polissêmica, um processo de Educação

Emancipatória, um jeito brasileiro de aprender a ser-no-mundo — a partir, sorrateiramente, do final do final da década de 1920 e, declaradamente, nas últimas décadas do mesmo século, sofre a ação avassaladora da Escola e do processo de escolarização.

Por certo, a Capoeira como uma manifestação cultural do povo, ao ser submetida ao processo de institucionalização escolar, o qual, como se sabe, apoderou-se do saber, do conhecimento, dos valores e atitudes que, ainda, não tinham sido “matriculados” na Escola, sofrerá significativas transformações!

Certamente, modificações profundas acontecem quando, insistentemente, tenta-se cultivar uma palmeira do mangue nas areias de Copacabana!

“Já fui convidada Para ser estrela do nosso cinema Ser estrela é bem fácil Sair do Estácio é que é O X do problema”

Noel Rosa

“Invento um cais E sei a vez de me lançar!”

Nascimento&Bastos

CAPÍTULO I

“O mundo é uma totalidade aberta ao horizonte de um número indefinido de perspectivas” Merleau-Ponty

Vista assim, do alto ...

“Vista assim, do alto Mais parece um céu no chão Sei lá ...”1

Contam, no chamado Mundo do Samba, que certa vez , um dos mais ilustres portelenses2, ao sobrevoar, à noite, o morro da Mangueira, na cidade do Rio de Janeiro, foi desafiado, por alguns mangueirenses3, que teriam proporcionado tal sobrevôo e também o acompanhavam, a explicar o que via... Não se sabe, segundo os que narram esse episódio, qual teria sido a sua resposta, mas o fato é que, algum tempo depois, surge o irreparável samba afirmando que, a

Mangueira, “vista assim, do alto, mais parece um céu no chão, sei lá ...”.

Segundo o autor, para entender-se a beleza daquele lugar, é preciso compreender que “a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais”. Esse mais que, isoladamente, “os olhos não conseguem perceber, que as mãos não ousam tocar, que os pés recusam pisar”; esse mais que faz a Mangueira ser “tão grande, que não cabe explicação”. Ser tão grande, por certo, não é apenas um superlativo enunciado referindo-se às dimensões de seus limites geográficos, mas sim à complexidade do existir, à percepção do mundo ! “Sei lá, sei lá não sei não”, diz o poeta em seu samba apontando-nos para o fato de que é preciso vivenciar, é preciso estar no mundo da Mangueira para que se possa, não explicá-la, mas compreendê-la!

1 Sei lá, Mangueira, Paulinho da Viola & Hermínio Bello de Carvalho, 1968. 2 Como são chamados aqueles que são admiradores, amantes, torcedores do Grêmio Recreativo e Escola de Samba , fundado como bloco em 1923, transformando-se em Escola de Samba em 1932. 3 Como são chamados aqueles que são admiradores, amantes, torcedores do Grêmio Recreativo e Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, fundado em 1928.

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O verdadeiro episódio, no entanto, não é o que foi aqui relatado ! O fato é que a letra do referido samba é de autoria de Hermínio Bello de Carvalho, mangueirense inconfundível, que, certa vez, ao mostrar seu poema a Paulinho da Viola, este, em apenas quinze minutos, compôs a preciosa melodia que embala a interpretação do poeta sobre a Mangueira. Hermínio, então, inscreveu o samba (melodia-poema), sem a autorização de Paulinho, no IV Festival de Música Popular da TV Record, de

São Paulo, e, mesmo tendo sido brilhantemente defendida por Elza Soares, não chegou a sagrar-se como uma das canções vencedoras, porém, rapidamente, consagrou-se pelo gosto popular4.

Importa, no momento, não é saber quem tenha sobrevoado o morro da

Mangueira e nem as razões pelas quais tal fato tenha acontecido ou, ainda, porque a origem desse samba tenha sido dessa forma divulgada... Certamente, o morro da

Mangueira, ou a Escola de Samba, nada, ou muito pouco, tem a ver com este estudo. O que ressalto é que o poeta, inegavelmente, não se contentou apenas com o sobrevôo, pois conhecedor de que um acorde de violão, por mais simples que seja, é formado, constituído, por várias notas que, em cada uma delas, contém o sentido, ou sentidos, que o tocador lhe atribui — e também o sentido, ou sentidos, atribuídos por quem escuta —, não só agradou aos mangueirenses (e não mangueirenses), mas, principalmente, em sua linguagem simples de sambista, demonstrou, mais uma vez, que a questão fundamental não é explicar (tentar esclarecer reduzindo a leis gerais) um fenômeno (tudo aquilo que se manifesta a nossa consciência, a nossa percepção), mas sim compreendê-lo (apreendê-lo em seu significado); que um fenômeno é, em sua constituição, mais do que se possa notar imediatamente.

4 Cf. Nova história da música popular brasileira: Paulinho da Viola, São Paulo, Abril Cultural, 1976.

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Querer explicar o mundo, as coisas/os fenômenos, sabemos bem, é uma ocupação que, no mundo ocidental, já no século VII antes de Jesus de Nazareth, aproximadamente, atraia alguns, hoje ainda famosos, pensadores.

Em estudo realizado anteriormente5, abordando a história da filosofia ocidental, identifico três visões, interpretações, acerca da relação (ou relações) entre o homem, o mundo e os fenômenos, quais sejam: uma visão metafísico-realista, centrada na “coisa em si” e tentando explicar “o que é” o homem, o mundo, o fenômeno; uma visão metafísico-idealista, que concebe a “coisa para si”; e, complementando as anteriores, uma visão dialético-fenomenológica, que, fundamentada na instersubjetividade e desenvolvendo-se a partir do mundo percebido, repleto de sentidos atribuídos pelo homem e, portanto, nas diversas interpretações possíveis quanto ao mundo/a realidade, ao fenômeno/as coisas e ao homem, concebendo-os como uma construção deste no mundo, realizada por intermédio de sua experiência vivida, muda, assim, o foco da busca quanto ao “o que é o que é”, para a compreensão de “para quem é o que é”.

As visões, acima citadas, traduzem as concepções de um grande número de pensadores/filósofos que, além de fazer a própria história da filosofia, influenciaram

(e ainda influenciam) o pensamento ocidental. Por certo, tendo em vista o objetivo deste estudo, não cabe, neste momento, deter-me no esforço de apresentar uma nova versão da História da Filosofia, no entanto, algumas dessas concepções tornam-se importantes de serem destacadas, por entendê-las como marcos referenciais nas abordagens filosóficas que, ao longo dos séculos, vêm buscando

“explicar” a(s) relação(ções) entre o homem, o mundo e os fenômenos.

5 Cf. Cesar Barbieri, Esporte Educacional: uma possibilidade de restauração do humano no homem, Canoas, Editora da ULBRA, 2001.

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Em muitas outras ocasiões, tenho recorrido ao exemplo de Kilpatrick, quando se refere à questão da “autoridade externa”, apontando a influência exercida por

Aristóteles, durante um período da Idade Média, relatando-nos que

“foi por isso [pela a autoridade de Aristóteles] grande a perturbação de muitos conservadores, quando GALILEU, tendo reinventado o telescópio, achou manchas no Sol. O Sol era um corpo celeste e, conseqüentemente, espiritual. Parecia repugnante à constituição do pensamento que um corpo celeste pudesse ter manchas. Muitos se recusaram a observar. Outros olharam, viram e divulgaram a nova perturbadora. Nessa época, um velho conservador escrevia a outro dos que se haviam perturbado com a notícia: ‘Não se alarme. Acalme os temores. Li o ARISTÓTELES todo, três vezes, e em parte alguma ele se refere a manchas no Sol. Pode ficar tranqüilo; tal coisa não existe’.”6

Este não é um dos momentos em que tal “autoridade” seja o elemento indispensável para que, qual a um evangelho, algumas “verdades absolutas” sejam reveladas ou impostas ou apontadas, como apraz a alguns; tampouco pretendo realizar uma análise que tenha como objetivo o confronto entre as “idéias”,

“posturas”, “atitudes”, “coerências” entre várias correntes do pensamento, como disso se ocupam outros; mas sim, sem maiores pretensões, exemplificar as diferentes visões identificadas, por intermédio das concepções de tais pensadores/filósofos que, espero, possam elucidar a instância de onde falo.

Isto posto, não havendo unanimidade, principalmente, desde o século VII antes de Jesus de Nazareth até hoje, as concepções sobre o mundo/a realidade, o

6 Cf. W.H. Kilpatrick, Educação para uma civilização em mudança, São Paulo, Melhoramentos, 1970, p. 19-20.

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homem e as coisas/os fenômenos se nos apresentam com algumas diferenças e semelhanças que julgo serem significativas para a construção desta incursão.

Assim, considerando que cada leitor, interessado e conhecedor do pensamento filosófico ocidental, saberá identificar outros pensadores/filósofos que, por suas formas de ver o mundo, possam contribuir, ainda mais, para a compreensão da relação do “jogo da filosofia”, do “jogo da interpretação”, com este estudo, passo, a seguir, a apresentar as concepções que reputo como fundamentais, tendo em vista o caminho a percorrer, neste e nos próximos capítulos.

Para Anaximandro de Mileto (sec. V a.C., aproximadamente), por exemplo, no contexto da Cosmologia, o mundo tem sua origem na guerra estabelecida entre os contrários, a qual, pela separação destes, dá surgimento às coisas individualizadas que, por penitência, devem retornar ao ilimitado, ao ápeiron e, para Heráclito (akmé em 504/503 a.C. aproximadamente), ainda no âmbito da Cosmologia, o mundo é eterno, uno, plural, não tendo sido criado, pois é phýsis e como tal é a sua própria origem e o receptáculo de tudo o que existe, apresentando-se como uma corrente de todos os seres em mudança, mesmo que por nossa percepção o tenhamos como estável, e só pode ser conhecido por intermédio do pensamento; as coisas, os fenômenos, se transformam constantemente em seu estado contrário (o devir), têm sua origem e fim na phýsis e são mortais; o homem, como todas as coisas, tem sua origem na phýsis, também se transforma constantemente e só pode conhecer o mundo por intermédio do pensamento.

Demócrito de Abdera (460/459 a.C., aproximadamente) outro importante pensador Pré-Socrático, concebe também, que o mundo seja phýsis, porém é constituído por átomos e, como admitem Anaximandro e Heráclito, só pode ser conhecido, verdadeiramente, pelo pensamento. Os fenômenos, as coisas, também

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são originados na phýsis, são conhecidos apenas pelo pensamento e são, na verdade, configurações diversificadas dos átomos, tendo suas qualidades atribuídas pelo homem, o qual é também uma das configurações do átomo e, da mesma forma que as coisas, ele é originado na phýsis, só podendo conhecer o mundo por intermédio do pensamento, pois assim consegue chegar ao átomo (o invisível) e, por meio de convenções, é que estabelece as qualidades das coisas.

De forma semelhante aos três pensadores citados, na concepção de Sócrates

(470-399 a.C.), o mundo e as coisas são idéias, são conceitos encontrados pelo pensamento e o homem é um ser racional que, pela reflexão, pode conhecer a si próprio e, só assim, conhecer todas as coisas, concepções essas que, indubitavelmente, fundamentaram o pensamento de Platão (428-347 a.C.) que admite ser o mundo, criado pelo Bem, subdividindo-se em mundo sensível (das aparências) e no mundo das idéias (a verdade), concebendo, também, que as coisas são matérias corpóreas que, pertencendo ao mundo sensível, são cópias, imitações das idéias, sendo, portanto, mutáveis e contraditórias, uma vez que as formas imateriais, encontradas no mundo das idéias, são imutáveis, universais e verdadeiras.

Como resultado da busca do equilíbrio entre “o mundo das idéias” e “o mundo sensível”, na interpretação de Aristóteles (383-322 a.C.), o homem, pela sensação, só pode conhecer as coisas sensíveis, e, pelo pensamento, a verdadeira realidade. O mundo, foi criado por um ser divino, como relembra

Marilena Chauí, “por uma realidade suprema e primeira da qual todo o existente procura aproximar-se imitando sua perfeição imutável”7; é finito, pleno, único, eterno, está em constante movimento; é um conjunto

7 Cf. Marilena Chauí, Convite à filosofia, Rio de Janeiro, Ática, 1995, p. 28

13 hierarquicamente organizado, indo dos seres mais imperfeitos aos mais perfeitos; possui muitas formas, muitos sentidos. Não havendo separação entre o mundo sensível e o mundo inteligível, existem, sim, três tipos de realidade: o mundo sublunar - o mundo sensível da matéria e dos seres que têm matéria e forma; o mundo celeste - constituído dos seres que têm matéria muito especial e forma; o “Primeiro Motor Imóvel”, que é forma pura. As coisas, os seres, passando de forma em forma, existem em três classificações: os que são imóveis, sem qualquer matéria e apenas com forma; os que trazem o princípio do movimento e do repouso, possuindo matéria e forma, que são os seres do mundo sensível; e, finalmente, o “Ser enquanto Ser”. O homem, tal como o mundo, foi criado por Deus e é constituído de forma e matéria; é um ser vivo, como as plantas e os animais, que têm em sua forma o seu princípio vital, a sua alma (ou suas almas: nutritiva, reprodutiva, locomotora, sensitiva e racional); é político e obedece a phýsis, atuando pautado na sua finalidade e atualizando as suas potências, tendo em vista atingir a sua forma.

Dando um salto no tempo, no processo de construção do pensamento ocidental, sem contudo deixar de registrar a importante influência de Tertuliano,

Orígenes, Santo Ambrósio, São Gregório Nazianzo, São João Crisóstomo e Santo

Agostinho, considerados como os principais pensadores da denominada Filosofia

Patrística, o mundo, as coisas, para David Hume (1711-1776), não existem em si mesmos, independentes do homem, sendo seus conceitos, como outros, apenas nomes gerais com os quais ele nomeia e identifica suas associações. O homem, por ter o hábito de associar impressões, sucessiva e regularmente, é que faz com que

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tudo exista, tema que se reafirma em Kant (1724-1804), para quem o mundo é o que existe para nós, é estruturado por nossa razão, havendo, assim, duas formas de realidade: a que é dada na experiência e a coisa em si, o nôumeno. Desta forma, o fenômeno é tudo aquilo que se oferece ao homem por intermédio da experiência, é a coisa para nós e o homem, assim, jamais poderá conhecer a realidade, independentemente dele próprio, mas sim por intermédio da razão pura que é uma faculdade a priori.

Conhecer a “coisa em si”, mesmo que os Sofistas — estabelecendo uma polêmica com os pensadores da Grécia Antiga, a qual ainda, vez em quando, nos deparamos, direta ou indiretamente, com ela —, já tivessem tentado minimizar a sua importância e declarado a sua impossibilidade, é um desejo, uma tentativa, que persiste, como se pode perceber com a breve retrospectiva aqui realizada, durante os séculos. No entanto, é principalmente a partir de Husserl (1859-1938), em seus primeiros escritos, que, tendo em vista suas intenções de fazer da fenomenologia uma nova forma de fazer ciência — a qual deveria manter a capacidade de abrangência da metafísica, sendo também rigorosamente científica — e de constituir-se em um método de investigação que preenchesse as lacunas deixadas, principalmente, pelo racionalismo exacerbado do positivismo e respondesse às dúvidas criadas pela própria metafísica, tenta construir, como afirma André

Dartigues, “um novo método de conhecimento positivo”8, fundamentando-se, dentre outros pressupostos, em sua teoria quanto à intencionalidade da consciência, fazendo surgir, assim, uma nova perspectiva para a busca do conhecimento da relação homem-mundo-fenômeno.

8 Cf. André Dartigues, O que é a fenomenologia, São Paulo, Moraes, 1992, p. 29.

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Desta forma, o foco das discussões e investigações centrado, então, na premissa da existência da “coisa em si” é transferido para o entendimento de que o que existe é, sim, a “coisa para si”, ou seja: se a consciência é “consciência-de- alguma-coisa”, dirigida a um “objeto-para-uma-consciência”, para um sujeito, jamais poderia haver um fenômeno “em si”, mas algo que é percebido, pensado, imaginado por uma consciência, por alguém.

Neste chamado período idealista de Husserl, compreendido entre a publicação do primeiro tomo das “Idéias Diretrizes”, em 1913, e a obra “Meditações

Cartesianas”, em 1929, a pedra fundamental de suas concepções é o entendimento de que é o sujeito que possui uma consciência que é constituinte de sentido e, por ser “uma consciência transcendental”, a priori, deve a ela se conectar. Busca-se, desta forma, analisar profundamente a consciência e sua intencionalidade para que seja possível chegar ao como os sentidos dos fenômenos são produzidos por ela, tornando-se, a fenomenologia, “o estudo da constituição do mundo na consciência ou fenomenologia constitutiva”9.

Seguindo os passos de Kant, Husserl desenvolve sua teoria a partir da consciência reflexiva (do sujeito do conhecimento), como fonte primeira da significação da realidade, que explicada pela relação causa/efeito, enquanto estrutura e atividade universal e indispensável ao saber, é concebida como

Consciência Transcendental ou Sujeito Transcendental.

Para se conhecer um fenômeno, há que se descobrir a sua essência e esta é encontrada, na visão de Husserl, por intermédio do que chamou de “redução eidética”, ou seja: sucessivas reduções do fenômeno até que seja encontrada a sua essência; o ser fundamental; aquilo que não pode ser suprimido sem que o próprio

9 Idem

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fenômeno também não o seja; aquilo que a consciência não consegue constituir de outra forma, processo esse que se desenvolve por uma “redução fenomenológica”, ou como diz Husserl, ao se colocar, o fenômeno que se quer estudar, “entre parênteses” da realidade; apartado do que concebe o senso comum por realidade, considerando “tão-somente a vivência da consciência como fonte de significações”10, deixando-nos claro que, para ele, a essência está no fenômeno e é desvelada por intermédio da consciência.

A partir, porém, do segundo Husserl — aquele que se apresenta em seus

últimos escritos sob forte influência de Heidegger (um de seus mais proeminentes alunos), o mundo/a realidade, as coisas/os fenômenos e o homem, em suas profundas inter-relações, passam a ser entendidos como sendo o resultado da correlação existente entre a consciência e o mundo: o “ser-no-mundo”. O “ser-no- mundo” é, portanto, o pano de fundo, o “campo fenomenológico”, o contexto no qual deve desenvolver-se o processo de compreensão do fenômeno e, para que se possa melhor entender o seu sentido, é necessário revisitar Martin Heidegger (1889-

1976).

Heidegger, na interpretação de Stein11, exercitando-se na “experiência especulativo-hermenêutica” da linguagem, parte da intenção de encontrar qual é o objeto primordial que a Filosofia deve experimentar e como deve dizê-lo, fato esse que, pela forma por ele utilizada para o tratamento das questões abordadas

(elaboração de perguntas, demolição do que já está estabelecido e provável resposta), nem sempre é possível entender-se, de imediato, apenas em uma leitura.

10 Cf. João Carlos Nogueira, Heidegger ou novos caminhos da filosofia, Campinas, PUCC, 1976, p.27. 11 Cf. Ernildo Stein em suas notas na tradução dos textos de Heidegger , Heidegger: conferências e escritos filosóficos, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1999

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No entanto, como já afirmado, o conceito de “Dasein” (o ser-no-mundo), elaborado por Heidegger, torna-se fundamental para a fenomenologia atual, não apenas como uma filosofia, mas também como um método para a compreensão da realidade e, assim, é que discorro, a seguir, sobre alguns aspectos do pensamento heideggeriano, tendo em vista a sua importância para a fundamentação do estudo que, no momento, apresento.

Heidegger tem como principal ocupação a reflexão sobre o problema do Ser que, levada ao extremo de suas raízes, revela-se no que denominou de “problema da transcendência”12 e, especificamente, a condição transcendental do homem. Em seu texto “Que é Metafísica ?” — preleção pública feita na Universidade de Freiburg, em 1929 e, posteriormente, ampliado (1943 e 1949) — é possível identificar um primeiro sentido do “ser aí”, qual seja: aquele que é encontrado no pensamento metafísico; o que na linguagem metafísica é chamado de existência de um ente, porém um ente dentre outros entes; o ente enquanto ente, dando-nos a impressão de que a metafísica, não dando conta de responder à questão da “verdade do ser”, torna-se “a barreira que impede que o homem atinja a originária relação do ser com o ser humano”13, tendo em vista que tal procedimento (ou “acontecimento”, como

Heidegger classifica) revela a ausência da relação, intrínseca, entre o ser e a essência do homem. Para ele, pois, o “ser aí” da metafísica, de forma simplificada, significa atualidade, realidade, objetividade, denotando a existência de um “ser aí humano”, haja vista, como já foi apontado, ser apenas uma constatação do homem como um ente entre outros entes.

12 Cf. Martin Heidegger, Sobre a essência do fundamento, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1999, p. 120. 13 Idem, Que é metafísica, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1999, p. 80.

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Existe, para Heidegger, uma diferença básica entre a sua concepção de “ser- aí” e o respectivo conceito metafísico, pois, em sua interpretação, não se trata apenas de um dos sinônimos para consciência, como foi entendido por alguns, por ocasião de sua obra “Ser e Tempo”.

Ao esclarecer os equívocos quanto ao que seja “consciência” e “ser-aí” surgidos com a interpretação de alguns estudiosos sobre “Ser e Tempo”, Heidegger, afirmando que o “ser-aí” de que fala busca reunir a revelação de ser com a essência do homem, bem como expressar “a referência fundamental do homem à abertura

(‘aí’) de ser enquanto tal”14, ou seja, a referência com o mundo, com as diversas possibilidades do homem, admite que àqueles que se referenciam no conceito metafísico, no qual “ser-aí” designa, em geral, existência, certamente será impossível compreender o sentido heideggeriano da palavra. E, ao responder às indagações e críticas sobre a questão, Heidegger, negando a simples substituição de palavras, acima referida, de forma lapidar, esclarece a sua concepção ( um outro sentido de “ser aí”) dizendo que “com o ‘ser-aí’ é designado aquilo que, pela primeira vez aqui, foi experimentado como âmbito, a saber, como o lugar da verdade do ser e que assim, deve ser adequadamente pensado.”15

O “ser-aí”, portanto, é o cenário, o contexto, o âmbito da existência do homem, existência essa que é concebida por Heidegger como “a caracterização do ser do homem”, na qual, em suas palavras, ”se revela a ‘essência’ do ser-aí, em cuja abertura o ser se revela e oculta, se oferece e subtrai, sem que esta verdade do ser no ser-aí se esgote ou se deixe ao modo do princípio metafísico: toda objetividade é enquanto tal, subjetividade.”16

14 Idem, ibid. p. 81 15 Idem, ibid. p. 82 16 Idem

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A palavra existência, para Heidegger, é um modo de ser, próprio daquele ente que está receptivo à manifestação do Ser, na qual está situado e lhe dá sustentação; e, sendo assim, existir, é uma peculiaridade e exclusividade do homem. Sobre tal questão, assim fala o autor:

“O ente que é ao modo da existência é o homem. Somente o homem existe. A árvore é, não existe. O anjo é, mas não existe. Deus é, mas não existe. A frase: ‘Somente o homem existe’ de modo nenhum significa apenas que o homem é um ente real, e que todos os entes restantes são irreais e apenas uma aparência ou a representação do homem. A frase: ‘O homem existe’ significa: o homem é aquele ente cujo ser é assinalado pela in-sistência [está inserido na existência] ex-sistente [a existência lhe dá sustentação] no desvelamento do ser a partir do ser e no ser. A essência existencial do homem é a razão pela qual o homem representa o ente enquanto tal e pode ter consciência do que é representado.”17

O homem, pois, como o ente que encontra o sentido de ser em sua existência, está em busca da transcendência, transcendência essa que não é significada, por Heidegger, como uma simples transposição de um obstáculo ou a mudança de um lugar para o outro. É, sim, uma ultrapassagem que, em sua interpretação, não significa ultrapassar

“(...) uma ‘barreira’ posta adiante do sujeito, obrigando-o a permanecer dentro de si (imanência) nem um ‘precipício’ que separa o sujeito do objeto. Os objetos — os entes, objetivados — também não são, porém, aquilo em direção do que (horizonte)

17 Idem, ibid. p. 82-83

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se dá a ultrapassagem. O que é ultrapassado é justamente unicamente o ente mesmo (...)”18

A palavra dasein para Heidegger, não significa apenas estar, ter vindo, mas sim, como interpreta Dartigues, ao expressar-se por intermédio de Dasein, o autor, atribui-lhe novo sentido: “o homem é o aí (Da) onde o Ser (Sein) se coloca como questão, de modo que se trata no homem de muito mais do que o homem”19, ou, como interpreta Nogueira, é o espaço no qual o homem pode revelar-se e, concomitantemente, ocultar-se.20

A transcendência, portanto, é o âmbito no qual a essência do fundamento do

Ser se manifesta. Desta forma, Heidegger, apresenta uma nova concepção de fundamento, que não mais está presa às razões, causas, como concebiam

Aristóteles e Kant, dentre outros, mas sim, intrinsecamente relacionada com a existência, o “ser-aí”, transformando todo o conteúdo da ontologia tradicional em conteúdo fenomenológico e, assim, “a ontologia se torna fenomenologia”.21 O horizonte ao qual o homem, enquanto “ser-aí”, se dirige ao transcender-se é o mundo e, desta forma, Heidegger, designa tal transcendência como “ser-no-mundo”, de forma que “ser-aí” e mundo se misturam como elementos constitutivos de sua existência. Assim, Heidegger, se expressa: “o ser-aí não é um ser-no-mundo pelo fato de, e apenas pelo fato de, existir faticamente; mas, pelo contrário, somente pode ser como existente, isto é, como ser-aí, porque sua constituição reside no ser- no-mundo.”22

18 Idem, Sobre a essência do fundamento, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1999, p.122 19 Cf. André Dartigues, op. cit., p. 130 20 Cf. João Carlos Nogueira, op. cit., p. 36 21 Cf. Ernildo Stein, op. cit. , nota 8, p. 114-115 22 Cf. Martin Heidegger, Sobre a essência do fundamento, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1999, p. 124-125

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Desta forma, Heidegger, apresenta sua interpretação quanto ao “problema da transcendência”, ou melhor, quanto à questão da transcendência do homem:

“A proposição: o ser-aí fático está no mundo (ocorre entre outros entes) se trai como uma tautologia que nada diz. A enunciação: faz parte da essência do ser-aí o fato de estar no mundo (de também ocorrer ‘ao lado’ de outros entes) se mostra falsa. A tese: da essência do ser-aí como tal faz parte do ser- no-mundo contém o problema da transcendência.”23

O mundo é, pois, o âmbito no qual o “ser-aí” se manifesta e se dá a conhecer; que lhe permite exercitar o seu “poder-ser”, oferecendo a possibilidade não apenas para que o homem exista “em-vista-de-si-mesmo”, mas também “em-vista-de-ti”,

“em-vista-dele”, “em-vista-disso” ... 24

É importante ressaltar, ainda, que não apenas a concepção de “ser-no- mundo” faz do Dasein heideggeriano um pressuposto fundamental para a compreensão da questão da relação homem-mundo-fenômeno. É indispensável lembrar que um de seus principais (quiçá o principal) “modos existenciais” juntamente com o cuidado (cura), a estrutura fundamental do ser-ai, é a compreensão, fenômeno esse que, na interpretação de Heidegger, é o “modo fundamental“ de seu ser25, pois se “toda pre-sença é o que ela pode ser e o modo em que é a sua possibilidade”26, compreender é o “ser existencial” do Dasein, do

23 Idem, ibid., p. 125 24 Idem, ibid., p. 136 25 Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 198 26 Idem, ibid., p. 199. Em nota explicativa (nº1, p. 309 da edição consultada) é justificada a opção de traduzir “Dasein” por “pre-sença”.

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próprio “poder-ser da pre-sença de tal maneira que, em si mesmo, esse ser se abre e mostra a quantas anda o seu próprio ser”27.

O Dasein, portanto, como afirma Ricoeur, não é apenas “um sujeito para quem há um objeto”, mas sim “o lugar onde a questão do ser surge, o lugar de sua manifestação”, “um ser no ser”28! Não se trata, pois, da compreensão “vinculada à comunicação com outrem”, mas sim “em relação do ser com o mundo”29, tendo como primeira função orientar-nos numa situação, dirigindo-se não à apreensão de um fato, mas à de uma possibilidade de ser30.

Para Heidegger, “na compreensão subsiste essencialmente, o modo de ser da pre-sença enquanto poder-ser”31, sendo capaz de “propiciar aberturas”, aberturas essas que, como constituintes da compreensão, permitem que esta sempre alcance

“toda a constituição fundamental do ser-no-mundo. Como poder-ser, o ser-em é sempre um poder-ser-no-mundo”32. É, pois, “na compreensão que a pre-sença projeta seu ser de possibilidades”33.

Por que conhecer o pensamento de Heidegger, quanto à relação homem- mundo-fenômeno, se torna tão importante neste estudo ? Ele é fundamental não só porque tenha dado um forte impulso à fenomenologia de Husserl; ou porque oferece maiores possibilidades para se entender a razão, o fundamento, que levou Bello de

Carvalho a admitir que o morro da Mangueira, para ser compreendido, deva ser vivenciado, ser considerado como o âmbito no qual aquele que sobre ele quer se expressar deva mergulhar, inserir-se, relacionar-se, intrinsecamente; mas, e principalmente, porque interpreta o ser-no-mundo (como ser de compreensão e de

27 Idem, ibid., p. 200 28 Cf. Paul Ricoeur, Interpretação e ideologias, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988, p. 30 29 Idem, ibid., p. 31 30 Idem, ibid., p. 32 31 Cf, Martin Heidegger, Ser e tempo, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 198 32 Idem, ibid., p. 200 33 Idem, ibid., p. 204

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poder-ser, de possibilidades) como o contexto, o locus, da realização da sua existência e, portanto, uma relação constitutiva, sui generis, genuína, consigo próprio, com o mundo/a realidade, as coisas/os fenômenos, que, certamente, por ser este estudo elaborado a partir de um olhar humano sobre tais relações, torna-se fundamental buscar a sua compreensão para referenciá-lo.

A visão metafísico-realista ou a visão metafísico-idealista, como é possível perceber, não atendem às características deste estudo, sendo, pois, na visão dialético-fenomenológica que encontro o suporte necessário para a sua realização.

A fenomenologia, portanto, é a abordagem filosófica escolhida para dar suporte ao estudo sobre a relação que se dá, nos dias de hoje, entre os fenômenos escola, capoeira e escolarização, ou, como ultimamente tem sido denominado,

“escolarização da Capoeira”. Contudo, ainda um pouco mais deve ser esclarecido sobre as concepções a respeito de tal (tais) relação (relações), das quais me sirvo para, como faróis, iluminar o processo realizado na exposição de como, no meu entender, tem acontecido a Capoeira no contexto da escola.

Um farol, sabemos, apresenta, no mínimo, duas funções que podem ser classificadas como básicas: uma, de indicar o local onde está o que se procura, e assim orientar, também, a direção a ser seguida para o alcance de nosso objetivo

(os holofotes utilizados nos aeroportos, nos momentos de serrada neblina). Outra função, a de além de ser um ponto de referência, de indicação, também, ao mesmo tempo, iluminar o caminho a ser percorrido, não apenas para facilitar a procura do ponto de destino das nossas intenções, mas, sobretudo, para que, nesse trajeto, equívocos sejam evitados — não só aqueles decorrentes por não se visualizar algumas armadilhas e obstáculos do caminho, como aqueles que advêm do fato de

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ter-se optado pela direção errada — (os faróis de um automóvel, ou uma lanterna, por menor que esta seja, ou ainda, o farol utilizado pela navegação marítima, principalmente).

Assim, sirvo-me da fenomenologia para, em cada uma dessas funções (cada qual no momento adequado) realizar o presente estudo. No entanto, ainda, algumas candelas devem ser incorporadas a esses faróis, as quais encontro nas concepções de Merleau-Ponty (1908-1961).

Merleau-Ponty (marxista inconfesso, fenomenólogo não assumido, existencialista não declarado, pois não admitia e nem se submetia a rotulações), não apenas coloca em xeque o pensamento de Husserl (principalmente o primeiro

Husserl), como também enriquece o pensamento de Heidegger (nos aspectos aqui citados), e reforça o entendimento de que sujeito e objeto, consciência e mundo, pensamento e ação, não existem separadamente, entendimento esse que, como bem lembrou Ivo Tonet, Marx (1818-1883), neste período recente da história da

Filosofia, já havia retomado34, mas, principalmente, coloca, com propriedade, a questão sobre a manifestação da essência do fenômeno (seja ele o mundo ou as coisas) na existência do homem, no ser-no-mundo, a qual é constituída e constitutiva, ou seguindo as pegadas de Heidegger, o homem é in-sistente e ex- sistente.

Merleau-Ponty, portanto, recoloca, por intermédio “da sua fenomenologia”, a essência na existência, explicitando, sem titubeios, sua premissa de que só é possível compreender o homem e o mundo a partir de sua “facticidade”35. Dessa premissa, então, decorrem duas concepções fundamentais a respeito do homem e do mundo, no contexto de suas relações, das quais passo a discorrer.

34 Comunicação oral realizada durante Seminário de Fundamentos de Educação I, realizado em 27/05/98, durante o curso de doutorado em Educação. 35 Cf. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1994, p.1

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O mundo, não é um objeto, um fenômeno, que, concebido pela ótica cartesiana-newtoniana, positivista e fragmentadora, está distanciado do homem e que, assim aceito, passa a ser um de seus “objetos de estudo”, do qual estabelecer- se-á suas leis universais de constituição e funcionamento. Tampouco, pode ser estudado, observado, pesquisado, como mundo “em si”, como induz o paradigma metafísico. O mundo, nos diz Merleau-Ponty, “não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas”36.

O mundo, portanto, não é algo que, como um voyeur, acoitado por pressupostos e premissas ditas científicas, busco, à distância, desvendar os seus segredos ou, ainda, algo que tenho, qual um caçador, em minha mira, um alvo de minhas especulações, pesquisas, elucubrações, para que, por intermédio do pensamento, teça as minhas conclusões, tidas como definitivas, quanto à sua essência, estrutura e funcionamento. Desta forma, “o mundo está em torno de mim, e não diante de mim”37. Em sendo assim, conclui, Merleau-Ponty, “o mundo não é aquilo que penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável.”38

Desta forma, o pensamento de Merleau-Ponty vem também ter influência na concepção deste estudo e iluminar os caminhos para sua realização, principalmente, quando afirma que “não é preciso perguntar-se se nós percebemos verdadeiramente o mundo, é preciso dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos.”39

Esta premissa não é, certamente, uma afirmação que poderia ser interpretada como

36 Idem, ibid. p. 6 37 Idem, O olho e o espírito, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1984, p. 100 38 Idem, Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1994, p. 14 39 Idem, ibid. p. 13-14

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idealista, na qual estariam contidos indícios de uma concepção de mundo “para si”, pois, o mundo percebido, em suas palavras,

“(...) não é o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha”.40

Concordando com Merleau-Ponty quando afirma que “todo saber se instala nos horizontes abertos pela percepção”41 é importante ressaltar que não se trata, pois, de perguntar o que é a Capoeira ? O que é a Escola ? O que é o processo de escolarização? Mas sim, descrever, compreender e interpretar, neste estudo, a

Capoeira percebida nos contextos da Escola, da chamada Educação Formal, da

Educação institucionalizada.

A “facticidade” do mundo, do homem, enfim dos fenômenos, apenas pode ser compreendida a partir da premissa de que já foi superado o entendimento de que existe a dicotomia sujeito e objeto (à qual Pierre Weil identifica como sendo a origem do que chama de “neurose do paraíso perdido”42), que se desdobrou em outras dicotomias, tais como: subjetivismo e objetivismo, idealismo e empirismo, metafísica e positivismo, homem e mundo, pensar e fazer, ser e estar, e outras mais, como, por exemplo, a tricotomia ensino/pesquisa/extensão que se instalou em nossas universidades, a qual o professor Walnir Chagas denomina de “o bolero do Ensino

40 Idem, ibid. p. 18 41 Idem, ibid., p. 280 42 Cf. Pierre Weil, A neurose do paraíso perdido: proposta de uma nova visão de existência, Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1987

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Superior”43. Tal dicotomia originária (sujeito/objeto), como afirma Merleau-Ponty, foi reforçada pelo “pensamento de sobrevôo” da filosofia tradicional, convertendo “o mundo em representação do mundo” e, pelo pensamento, também de sobrevôo, da ciência positivista, no final do milênio passado e início deste, ainda recusa aceitar a relação intrínseca entre o que se denominou sujeito e objeto.44 Nessa perspectiva, o sobrevôo citado por Merleau-Ponty, é a metáfora básica para demonstrar a apartação, o distanciamento imposto entre o homem e o mundo, situação essa que, também, Bello de Carvalho aponta como impossível, caso se pretenda compreender a relação homem-mundo-fenômeno.

A “facticidade”, a qual Merleau-Ponty se refere, só é possível entendê-la, ao considerar-se o estado de ser-no-mundo, e, certamente, compreendendo que o homem nele é-está, não como um ente que habita um corpo, o qual, à luz do behaviorismo, por exemplo, se comporta como o resultado de um processo fundamentado no mecanismo de relação causa e efeito45, tampouco, como afirmava

Paulo, o apóstolo, ser, o corpo, “o templo do Espírito Santo”46, ou ainda, numa visão cartesiana, como algo apartado do ser do homem, fato esse também reafirmado por

Merleau-Ponty, ao dizer que

“um cartesiano não se vê no espelho: vê um manequim, num ‘exterior’ (...). A sua ‘imagem’ no espelho é um efeito da mecânica das coisas; se ele se reconhece nela, se acha ‘parecido’, é seu pensamento que tece esse vínculo, a imagem especular nada é dele.”47

43 Comunicação oral realizada durante o desenvolvimento da disciplina Ensino de Primeiro e Segundo Graus, no Curso de Mestrado em Educação, na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, 1987 44 Cf. Merleau-Ponty, O olho e o espírito, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1984, p. 86 45 Idem, A estrutura do comportamento, Belo Horizonte, Interlivros, 1975, p. 33-78 46 I Coríntios 6:19 47 Idem, O olho e o espírito, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1984, p 94

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O entendimento de que consciência, pensamento e corpo são inseparáveis; que “eu não tenho um corpo, mas sou um corpo” é fundamental não só porque neste estudo abordo a questão da Capoeira, mas, principalmente, porque esclarece que é a única forma possível do homem ser-no-mundo, pois sendo a corporeidade a forma de “ter acesso às coisas”, torna-se possível compreender que na construção, dialética, da realidade, as questões relacionadas ao corpo do homem, e da mulher, são tão importantes quanto àquelas que, via de regra, são tratadas como menos importantes, quer se trate das questões relativas ao trabalho, à linguagem ou à qualquer outro aspecto da existência do ser humano. É por intermédio da corporeidade, entendida como a “forma integrada pela qual o homem existe no mundo, permitindo-lhe o acesso a todas as coisas e experiências diversas, de forma a tornar-se significativo a si mesmo e aos outros e, assim, vivenciar a sua humanidade”48, que se torna possível qualquer tipo de ação ou reação, quer seja no sentido da manutenção do status quo, quer no da transformação do mundo, estando o homem, ou a mulher, na condição de ator-construtor da realidade49.

À essa interpretação sobre o mundo percebido precede a concepção de que o homem, como um elemento constitutivo da natureza, está-no-mundo, é-no-mundo, existe-no-mundo ou como ainda concebe , está com o mundo, com os outros, não lhe cabendo, portanto, o entendimento de que a ele não se vinculam os acontecimentos do mundo. A presença do homem no mundo se realiza, também, por intermédio da “luta para não ser apenas objeto, mas sujeito da História”. Jamais o homem será, na ótica da metafísica, pois, é de sua natureza, estar sendo, tornando-

48 Cf. Cesar Barbieri et. al., Currículo de educação física para o Ensino Médio, Brasília, SE/FEDF, 1999, p. 96 49 Cf. Karel Kosik, Vieira Pinto, Paulo Freire, nas obras relacionadas na bibliografia.

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se “Presença no mundo, com o mundo e com os outros” 50, ou seja, como nos aponta Kosik, aqui já referido e considerado como um dos pensadores do marxismo fenomenológico51, o homem é, concomitantemente, ator e construtor do mundo, da realidade. Ator no sentido que, não sendo determinado mas condicionado, como diz

Paulo Freire, há de, em alguns momentos, seguir um determinado roteiro, mesmo que não seja o seu autor, contudo, como construtor, tem a possibilidade de escrever um outro roteiro, ou interferir, significativamente, em um já existente, pensamento este que vem clarear, um pouco mais, a concepção de Heidegger ao referir-se sobre o homem e suas possibilidades ...

Quanto ao fenômeno, na interpretação de Merleau-Ponty, este “se oferece como a soma interminável de uma série indefinida de perspectivas; cada uma das quais lhe diz respeito e nenhuma o esgota”52, não sendo, portanto, uma verdade absoluta, universal, que é dada à todos os seres humanos de maneira indistinta, mas sim “uma totalidade aberta ao horizonte de um número indefinido de perspectivas”.53 Merleau-Ponty, ainda nos aponta para um certo paradoxo existente em nossa percepção de um fenômeno, pois ao mesmo tempo em que o que é percebido não é algo estranho a quem o percebe (imanência), também comporta, sempre, algo mais do que é imediatamente manifesto (transcendência), paradoxo esse (imanência/transcendência) que é notado na percepção de Bello de Carvalho, já referido, quando descreve o morro da Mangueira e, ao mesmo tempo, admite que existe algo mais ainda a ser percebido.

50 Cf. Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, São Paulo, Paz e Terra, 1996 51 Cf. Raymond A. Morrow e Carlos Alberto Torres, Teoria social e educação: uma crítica das teorias da reprodução social e cultural, Porto, Edições Afrontamento, 1997, p. 128 52 Cf. Merleau-Ponty, O primado da percepção e suas conseqüências, Campinas, Papirus, 1990, p. 47 53 Idem, ibid. p. 48

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Os pressupostos até aqui alinhavados remetem-me para uma fenomenologia existencial-hermenêutica que desvela o mundo como o lugar da produção de sentidos. Como já afirmou Merleau-Ponty, há sentido e sentidos! Remete-me, também, à consideração do fato de que as diferentes ideologias, em suas funções de integração, de dominação ou de deformação, como classifica Paul Ricoeur

(1913)54, interferem, sobremaneira, no processo de atribuição de sentidos aos fenômenos, ao mundo e ao homem e, de que o evento da interpretação, quer como

“recolhimento do sentido” ou como “exercício da suspeita”55, configura-se como

“uma estrutura intencional que não consiste na relação do sentido com a coisa, mas numa arquitetura do sentido, numa relação do sentido com o sentido, do sentido segundo com o sentido primeiro”56, na qual o primeiro dissimula ou revela o segundo, posto pertencer “organicamente ao pensamento simbólico e a seu duplo sentido”57.

Assim sendo, partindo das concepções de Merleau-Ponty, a práxis fenomenológica é, antes de tudo, um estilo, que pode ser considerado, também, como um método, porém, um método intrinsecamente relacionado com a atitude filosófica correspondente, conforme concebe Antonio Rezende, ou seja:

“(...) não é um método indiferente aos conteúdos (como parece ser o estruturalismo), a tal ponto que as variações na compreensão de um estão intimamente relacionadas com as variações na percepção do outro. Digamos que a fenomenologia pretende ser um método adequado ao estudo do fenômeno, entendido da maneira como ela o compreende e não de outra.”58

54 Cf. Paul Ricoeur, Interpretação e ideologia, p. 67-75 55 Dentre outros estudos sobre a interpretação, ver Paul Ricoeur, Interpretação e ideologias, p. 56 de Da interpretação: um ensaio sobre Freud, p. 28-39 56 Paul Ricoeur, Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro : Imago, 1977, p. 26 57 Idem 58 Cf. Antonio Muniz de Rezende, Concepção fenomenológica da educação, Cortez, São Paulo, 1990, p.13

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A fenomenologia é, pois, também um método para o estudo do fenômeno, porém, entendendo-o da forma que “ela o compreende, e não de outra”59, ou seja, uma “estrutura de estruturas”, como concebe Merleau-Ponty, como “estrutura reunindo dialeticamente na intencionalidade o homem e o mundo, o sujeito e o objeto, a existência e a significação”60, de forma que tanto a estrutura do homem quanto a do mundo não são concebidas como exteriores uma à outra, mas sim reunidas dialeticamente; reunidas, no entanto, por uma dialética polissêmica, não unidirecional, que não acolhe nenhum tipo ou forma de dogmatismo. Desta forma, a fenomenologia, em sua abordagem existencial-hermenêutica, torna-se uma “filosofia da ambigüidade”, certamente não por ser ambígua, mas, como declara Antonio

Rezende, por fundamentar-se no entendimento de que

“(...) a estrutura fenomenal é propriamente simbólica, uma estrutura de estruturas, cujo sentido circula e se articula em todos os sentidos, de maneira abstrata mas concreta, pois se trata, precisamente, do sentido da existência vivido, de fato, no mundo.”61

O fenômeno, portanto, quer a partir da estrutura do sujeito, como a partir da estrutura do mundo, manifesta-se, na interpretação de Muniz Resende, tanto na dimensão subjetiva — centrada na condição corporal do homem, na corporeidade, concebendo o “comportamento humano” como “uma experiência típica do humano, caracterizado, precisamente, pelo aparecimento da forma simbólica e sua capacidade de estruturar as demais”; na dimensão social — pois a existência é, por

59 Cf. Antonio Muniz de Rezende, op. cit. , p.34 60 Idem, ibid. p. 34-35 61 Idem, ibid. p. 38

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certo, uma experiência da intersubjetividade, uma co-existência a que corresponde uma “com-ciência”; na dimensão histórica — pois sendo consciência é também uma história, sendo seus períodos as diversas “manifestações de uma mesma existência, individual e coletiva, ‘episódios de um mesmo drama’ “ ; que sincrônica e diacronicamente, estruturam um discurso histórico; como, por último, na dimensão do mundo — concebendo o mundo constituído de “um sentido que transparece na intersecção das experiências tanto individuais como coletivas, e na inter-relação que se estabelece entre diversos lugares dessa mesma experiência “; um mundo, portanto, que não é apenas um conjunto das “coisas” existentes ou de objetos produzidos pelo ser humano.

O presente estudo, como já afirmado, tem como objeto principal descrever, compreender e interpretar o fenômeno da “escolarização da capoeira”, referenciado nas dimensões acima citadas e no entendimento de que compreender um fenômeno

é “efetuar o caminho de manifestação em sentido inverso, retomar o processo de vinda ao manifesto, vincular o manifesto ao seu princípio”62, ou ainda, como interpreta Merleau-Ponty,

“(...) é reapoderar-se da intenção total — não apenas aquilo que são para a representação as ‘propriedades’, as ‘idéias’ introduzidas pela doutrina — mas a maneira única de existir que se exprime nas propriedades da pedra, do vidro ou do pedaço de cerca, em todos os fatos de uma revolução, em todos os pensamentos de um filósofo.”63

62 Cf. Jean Ladrière. Filosofia e prática científica, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1978, p. 23 63 Cf. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1994, p. 16

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Afirmar, contudo, que este estudo tem como lastro os fundamentos de uma abordagem filosófica; que esta abordagem não é outra que não a fenomenologia existencial-hermenêutica; e, que abarca as dimensões subjetiva, social, histórica e de mundo, já citadas, ainda parece-me não ser suficiente. Torna-se necessário, portanto, discorrer um pouco mais quanto ao método utilizado.

Método, conforme os mais simples manuais de pesquisa, é um meio para se atingir um objetivo, para chegar-se ao destino desejado, no entanto, como diz o dito popular, “vários caminhos levam à Roma” ! Na perspectiva da fenomenologia, porém, não basta apenas saber que desejo ir à Roma, mas, também identificar em qual Roma desejo estar ! Na Roma dos Cesares? Na Roma de João Paulo II ? Na

Roma de Mussolini ? Na Roma cidade ou Estado ? A Roma do Coliseu ? A Roma da Fontana de Treve ? A Roma da Máfia ? A Roma da Cicciolina ? Enfim, não se trata apenas da máxima contida no ditado popular, mas como já referido, é preciso um método que permita a maior aproximação possível com o fenômeno estudado.

Pelo exposto, neste estudo, o método da fenomenologia é o que maiores possibilidades me oferece, tendo em vista as características que, seguindo as observações de Muniz de Rezende64, passo a apresentá-las.

O método da fenomenologia, não apenas “define” as essências, mas é, sobretudo, discurso, pois se refere, não a um simples conteúdo conceitual, mas à

“significação de uma essência existencial, que como tal deve ser descrita”, pois, como já tratado anteriormente, a fenomenologia se atém a interpretar “em que sentido há sentido, e mesmo em que sentidos há sentidos”, ou ainda, a permitir que seja possível perceber “que há sempre mais sentido além de tudo aquilo que podemos dizer”. Não basta o sobrevôo, é preciso aterrisar, pois como afirma

64 Cf. Antonio Muniz de Rezende, op. cit., p. 17-33

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Merleau-Ponty, “olhar o objeto é entranhar-se nele”65. É preciso, como dizia o professor Geraldo Tonaco66, em suas magistrais aulas de filosofia, primeiro mergulhar no lago para poder falar sobre ele, poder interpretá-lo. É preciso olhar o fenômeno entranhando-se nele67, “vir habitá-lo e dali apreender todas as coisas segundo a face que elas voltam para ele”68. Ou ainda, saber que, como sempre dizia o Mestre Paulo dos Anjos69, “quem sabe contar da estrada é quem viaja”70.

O discurso fenomenológico, como tal, busca a “encarnação do sentido em seus diversos lugares de manifestação, através da história” e, portanto, é recorrendo a ele que a aproximação à densidade do fenômeno se torna possível. Desta forma, apoiado, ainda, em Muniz de Rezende, apenas como um recurso didático, são apresentadas, a seguir, as características desse discurso:

• é uma descrição significante — concebendo-se que descrever, de forma adequada, é “numerar todos e somente aqueles aspectos que são indispensáveis para ficarmos sabendo ‘que fenômeno é este’;

• é uma descrição pertinente — aquela que não omite nenhum dos aspectos que constituem a estrutura significativa do fenômeno, afastando-se, assim, dos equívocos, ou “vícios”, cometidos pelo reducionismo e pelo funcionalismo, haja vista ser o fenômeno não uma idéia, mas sim, “uma existencialização do sentido, que por sua vez se encarna em vários lugares”;

• é uma descrição relevante — pois, para que seja significante, uma descrição deve ser, ao mesmo tempo, pertinente e relevante, ou seja: referir-se à situação concreta de sua estrutura, ou melhor dizendo, de sua história, haja

65 Cf. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1994, p.104 66 Geraldo de Oliveira Tonaco, filósofo, profundo conhecedor da fenomenologia, professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. 67 Cf. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1994, p.104 68 Idem, ibid., p. 105 69 José Paulo dos Anjos, um dos renomados Velhos Mestres da Capoeira Angola da Bahia, falecido prematuramente, em 70 Cf. Cesar Barbieri, Um jeito brasileiro de aprender a ser, Brasília, GDF/DEFER, 1994, p. 72

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vista que “é no acontecimento que o sentido emerge como fenômeno”;

• é uma descrição referente — apontando as relações existentes “tanto no interior da estrutura fenomenal, entre diversos aspectos, como entre a estrutura e seu contexto”, ou seja: entre o fenômeno e o mundo;

• é uma descrição provocante — pois, o ato de descrever “é sempre uma tentativa de dizer a estrutura fenomenal como estrutura semântica que reúne o homem e o mundo, a existência e a significação”, não se contentando, portanto, em explicar como “estão sendo dadas as repostas, mas de que outras maneiras elas poderiam ou deveriam ser dadas”;

• é uma descrição suficiente — por ser recursivo (importa dizer e redizer, de forma que jamais se tenha a impressão de que tudo foi dito), “descreve uma espiral em torno do núcleo central que é a existência, de sorte que se torna indispensável completar ao menos uma volta, percorrendo os diversos lugares de manifestação do sentido”, pois as outras que virão, certamente, “permitirão ver ainda melhor o que a primeira começou a revelar”;

• é um discurso compreensivo — pois a fenomenologia busca a compreensão do fenômeno, mesmo que tenha a “certeza de que nunca a alcançará em sentido pleno”, utilizando-se da interpretação, da hermenêutica, “como sendo a atitude que de fato corresponde à busca da verdade”, haja vista que interpretar “é tentar desvelar, no sentido em que o desvelamento é possível”;

• é um discurso interpretativo — pois tanto o fenômeno, quanto o discurso, pertencem a “ordem do símbolo”, sendo pois uma tentativa de “acompanhar a polissemia característica desse mesmo fenômeno”, por intermédio da tentativa de “acompanhar a estruturação dos diversos sentidos no interior do símbolo”.

Merleau-Ponty, ao abordar a questão do mundo percebido, já apontou para o fato de que vivenciamos o mundo não como um conjunto de relações que determinam, totalmente, cada acontecimento, mas sim, “no sentido de uma

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totalidade aberta cuja síntese não pode ser acabada”71. Desta forma, o estudo que apresento pretende ser, portanto, um discurso descritivo, compreensivo e interpretativo do fenômeno da escolarização, que foi constituído por intermédio de:

• leitura e interpretação de documentos oficiais que dispõem sobre a inclusão da Capoeira como uma das atividades escolares, no sistema de ensino da rede pública do Distrito Federal;

• leitura e interpretação de entrevistas gravadas em fitas, depoimentos gravados em vídeo, entrevistas publicadas em livros, jornais e revistas, bem como de livros, artigos de jornal, periódicos especializados que contêm as diversas interpretações sobre a Capoeira, a escola e sobre a questão da “escolarização da Capoeira”;

• entrevistas, semi-estruturadas, realizadas por mim, com Mestres de Capoeira, professores e diretores de escolas da rede pública de ensino do Distrito Federal, dentre outros profissionais da educação que atuam nos sistemas de ensino, bem como estudiosos do campo da educação, da Capoeira e de campos afins;

• entrevistas, semi-estruturadas, realizadas por mim, com alunos da rede oficial de ensino que estejam participando, efetivamente, das atividades de Capoeira na Escola, bem como com os que, por qualquer motivo, delas não desejam participar;

• visita e observação participante nas escolas onde a Capoeira está inserida como um dos componentes do currículo, ou como as ainda chamadas “atividades extra-classe” ou “extra-curriculares”.

Devo ainda ressaltar que, ao optar pela abordagem filosófica da fenomenologia existencial-hermenêutica, pela fenomenologia como método de realização de investigação e, principalmente, pelos pensadores nos quais busco a fundamentação teórica deste estudo, certamente, devo admitir que existem outras fontes de iluminação. No entanto, qual um treinador de futebol na escolha dos jogadores que julga serem os melhores para a disputa de uma partida; como o

71 Cf. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1994, p.296

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crédulo que para alcançar um determinado objetivo recorre a Santa Therezinha, a

Santo Expedito ou a São João Bosco, Santa Luzia e Santo Antônio, conforme a natureza do pedido e a correspondente competência atribuída ao Santo a ser solicitado; ou, ainda, lembrando que, como traduz o dito popular, é necessário observar o fato de que deva estar “cada macaco no seu galho”, encontro nos pensadores citados o suporte, a luminosidade, os ensinamentos que me são indispensáveis para construir e relatar minha compreensão quanto à capoeira no contexto da escola, compreensão essa aqui apresentada com o título O que a

Escola faz com o que o povo cria: até a Capoeira entrou na dança!

“Você diz que eu sou covarde, Diz até que eu tenho medo. Galinha de um olho só, Procura o poleiro cedo”

Mestre Paulo dos Anjos

“Eu tô aqui. Pra quê? Será que é para aprender? Ou será que é pra aceitar, me acomodar e obedecer? Tô tentando passar de ano pro meu pai não me bater Sem recreio de saco cheio porque eu não fiz o dever”

Gabriel O Pensador

CAPÍTULO II

“Minha avó queria que eu me educasse, por isso jamais me deixou ir à escola” Margaret Mead

Uma questão de peso e medida !

“O que dá pra rir, dá pra chorar Questão só de peso e medida Problema de hora e lugar...”1

Para melhor abordar a questão da escolarização da Capoeira, seguindo os pressupostos e premissas que, no capítulo anterior, indicam a direção do desenvolvimento e realização deste estudo, é necessário, no momento, aprofundar a reflexão sobre o sentido, ou sentidos, que é (são) atribuído(s) ao fenômeno Escola e, também, sobre a própria ação de escolarizar.

O fenômeno da escolarização (ato ou efeito de escolarizar), certamente, “por si só”, não é algo que seja bom ou ruim, válido ou não válido, conveniente ou inconveniente, desejado ou indesejado. Por isso, ao realizar este estudo, é importante ter como premissa básica que, por não haver a escolarização “em si” e a

Escola “em si”, os significados lhes atribuídos, os sentidos que lhes são conferidos, é que devem ser inicialmente identificados e conhecidos.

Não se trata, é certo, de realizar aqui uma nova História da Educação, ou uma

História da Escola — ainda que se tenha que revisitar alguns momentos de seu processo histórico —, mesmo porque tais iniciativas já foram desenvolvidas e com bastante sucesso. No entanto, para o estudo proposto, torna-se de fundamental importância abordar, neste capítulo, os principais sentidos atribuídos à Escola tendo em vista o seu papel (ou papéis) e função (ou funções) na relação entre educação

1 Canto Chorado, Billy Blanco, 1968

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e sociedade, bem como a significação do fenômeno da escolarização, enquanto estratégia de manutenção e consolidação dessa mesma relação.

De modo geral, superficialmente, num primeiro contato, num primeiro olhar sobre o fenômeno da escolarização, rapidamente, identificamos os adjetivos escolar e escolarizável, e o verbo escolarizar, os quais induzem ao entendimento de que alguns objetos, fenômenos e pessoas são concebidos como “próprios” , “relativos”,

“destinados” à escola — como o material escolar, a idade escolar, a merenda escolar —; outros se encontram nas condições, no momento, de ser tornado escolar

(escolarizado) — como o menino, ou menina, que se torna um escolar ou uma escolar; a educação, que é concebida e desenvolvida seguindo os princípios e pressupostos da escola, tornando-se assim uma educação escolar, ou ainda, dentre outros aspectos, o comportamento das pessoas vinculadas à escola que, a partir do momento em que este vínculo se estabelece, devem comportar-se segundo os pressupostos desta.

Aparentemente, “visto assim do alto”, torna-se corriqueiro falar em “educação escolar”; classificar-se um menino(a) como “o escolar”, ou ainda, aceitar-se que os comportamentos, atitudes e valores do “homem civilizado” sejam aqueles que foram transformados, inculcados, formados pela escola (e, aceitos como corretos, inevitáveis ou naturais). Indiscutivelmente, muitos são os pais, mães, professores (e todos os demais que formam, principalmente, a sociedade industrial e pós-industrial, a “sociedade civilizada” ) que, como se não bastasse a aceitação (na maioria das vezes irrefletida) de tais designações e atributos, ainda têm a educação escolar, a educação escolarizada, a educação tornada da escola, a educação regida pelas concepções, princípios e filosofia da escola, como um objetivo a ser alcançado por todos, um valor a ser cultuado como um patrimônio do mundo do homo-sapiens.

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De qual escola, afinal, estou me referindo neste estudo ? Refiro-me à Escola de Samba? À Escola de Aprendizes Marinheiros ? Às escolas parnasiana, romântica ou barroca de nossa pintura ou literatura ? À conhecida, no campo da sociologia,

Escola de Frankfurt ? À escola como corrente de pensamento, como afirmação de um determinado estilo ou, ainda, como forma de conceber determinado fenômeno, como, por exemplo, a economia, a sociedade ou a educação ?

Refiro-me, sim, a essa instituição para qual, no meu tempo, as crianças deveriam ser mandadas aos sete anos de idade para que pudessem ser alfabetizadas, aprendessem a contar, a fazer as quatro operações e também a ler.

Essa instituição, na qual, como afirmaram Armando Cavalcanti e Klecius Caldas, em sua conhecida marchinha carnavalesca, interpretada por Dalva de Oliveira, a “Maria

Escandalosa não dava bola e só aprendia o que não era da lição”! Essa instituição que, alguns poucos, depois que nela se iniciam, continuam anos e anos em suas salas de aula, em seus bancos e carteiras, buscando cada vez mais adquirir conhecimentos atuais e subir na escala hierárquica de suas titulações. A instituição que para alguns, ao falar dela, traz ao presente a figura meiga, delicada, carinhosa da “professorinha que me ensinou o bê-á-bá”, como saudosamente recordava

Ataulfo Alves em seu antológico samba. A mesma instituição na qual, uma minoria da população, com muito sacrifício, ao final de esforçados anos de estudo, consegue receber das mãos de “um Reitor careca” o seu canudo de papel, como no final da década de 60 nos falava Martinho da Vila2. Refiro-me a essa instituição que faz com que muitas crianças, em tenra idade, ao serem obrigadas à freqüentá-la, chorem, esperneiem ao terem que se separar de suas mães para ir ter com seus professores e demais coleguinhas, ou que tenha, na noite anterior, lhes causado o muitas vezes

2 Cf. , Pequeno Burguês, RCA Victor, 1030008, lado l, faixa 3, 2:57 min, 1969

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incompreendido e famoso “xixi na cama”. É, pois, essa escola que, neste capítulo, abordarei.

A escola não foi inaugurada, fundada ou criada, com dia, hora, mês e ano para serem celebrados e comemorados, pelos séculos e séculos. Disso nós sabemos!

Sabemos, também, conforme já apontado no capítulo anterior, que não existe

“a escola”, mas sim escolas, tanto no que se refere à instituição escola, como quando a referência é feita ao estabelecimento de ensino. Assim, por exemplo, quando nos referimos à Escola Pública Brasileira, certamente estamos enfocando o seu aspecto institucional, ao passo que quando se exige dos governantes “mais escolas para os brasileiros”, quase sempre a ênfase é colocada na cobrança para que sejam construídos mais prédios escolares, mais estabelecimentos de ensino.

Encontra-se, assim, os dois sentidos identificados, com maior facilidade, em nosso cotidiano: a escola instituição e a escola estabelecimento de ensino.

Afinal, “o que é” a escola ? Quando a mãe (geralmente é ela) chama o seu filho (ou filha), pela manhã (muitas mães preferem esse horário), para levá-lo (a) à escola, essa mãe está levando esse menino (a) para onde ? Será que, nessas circunstâncias, para aquele que é levado, ele estará indo para o mesmo destino que aquela que o conduz pensa estar levando ? Será que mãe e filho(a) têm a mesma percepção do que seja a escola ? A escola ainda será “risonha e franca”, como dizia minha avó, ou continua sendo o que sempre foi: essa instituição que, conforme interpreta Varela & Alvarez-Uria, é rigidamente ordenada e regulamentada e tem por objetivo domesticar uma massa de crianças e adolescentes, os quais, involuntariamente ficam sujeitos “à autoridade de quem rege, durante uma parte

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importante de suas vidas, seus pensamentos, palavras e obras” 3? Será a escola que, na ótica do velho Gepetto, poderia transformar o boneco Pinocchio no menino que ele tanto sonhava, ou será aquela que, como concebe Reimer, “é a maior empresa do mundo” e que “tornou-se o templo universal da sociedade tecnológica”4?

Em qualquer desses sentidos, o único fator que é semelhante em todos eles, é o fato de que esse filho(a), menino(a), adolescente ou até mesmo os adultos, estão sendo submetidos, camufladamente, ao processo de escolarização!

Diversas interpretações podem ser elaboradas sobre a escola. Diversos sentidos, significados, são a ela atribuídos durante esse seu percurso, ou seja: durante esse processo que, aos poucos, foi formando, constituindo, o que hoje chamamos de escola.

O vento que venta lá ...

Numa primeira tentativa de aproximação do(s) sentido(s) da escola, encontramos uma interpretação mais superficial, mais próxima do senso comum, que nos aponta que escola, etimologicamente, tem suas raízes no latim schola e no grego scholé, que significam “repouso”, “descanso” de outras atividades para que haja dedicação exclusiva aos estudos. Neste sentido, portanto, a escola está intrinsecamente relacionada com o ensino, com o estudo e com a designação, momentânea, do tempo para que aquele que de suas atividades participa, de seus

3 Cf. Julia Varela & Fernando Alvarez-Uria, A maquinaria escolar, Teoria & Educação, Porto Alegre, Pannonica Editora, n° 6, 1992, p. 91-92 4 Everett Reimer, A escola está morta: alternativas em educação, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1983, p. 20-26

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serviços é usuário, venha fazê-lo de forma que nada possa atrapalhar-lhe. A escola, assim, é o lugar que, apartado de outros que uma sociedade possa ter, permite a dedicação exclusiva, um intenso submetimento, a um processo de ensino que, supõe-se, requer, fundamentalmente, estudos não menos intensos de determinados conteúdos; é uma “casa de ensino”, um estabelecimento de ensino sistemático e coletivo, público ou privado.

Certamente essa “definição” de escola não basta para formar o alicerce deste estudo. Desta forma, não a desprezando por inteiro, mas deixando que dentre outras definições também paire sobre ele, traçarei, dentro dos limites da sua importância, com breves pinceladas, o percurso da institucionalização da escola, da escolarização do saber, do conhecimento, dos valores e atitudes etc. etc. etc.

Relendo o estudo crítico intitulado Cuidado, Escola!, elaborado por Babette

Harper e outros três educadores que na época compunham a equipe permanente do

Instituto de Ação Cultural-IDAC5, reencontro uma fotografia de uma tribo africana onde homens, mulheres e crianças, aparentemente, aprendem-ensinam a arte de caçar com lanças e arco-e-flecha. Ao lado da foto (que infelizmente não traz o nome de seu autor e nem outro tipo de identificação) aparece o seguinte texto:

“Não havia professores. Todo adulto ensinava. Aprendia-se a partir da própria experiência e da experiência dos outros. Aprendia-se fazendo, o que tornava insepa- rável o saber, a vida e o trabalho”6

5 Um centro de pesquisa e intervenção em educação popular fundado por Paulo Freire, em Genebra, em 1971 6 Cf. Babette Harper e outros, Cuidado , Escola! : desigualdade, domesticação e algumas saídas, São Paulo, Brasiliense, 2ª ed.

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Tal foto e texto ilustram o tema que está sendo tratado, no momento, pelos autores, que é o fato de que, “antigamente”, existiam sociedades nas quais o processo de educação fundamentava-se na “com-vivência” de todos os integrantes da tribo e tinham como “processo pedagógico” , principalmente, a tradição oral e o quefazer das atividades cotidianas da comunidade. Não havia professores, segundo os autores, e também, não havia escolas, certamente !

Além do processo de educação — um processo do ser humano aprender a ser no mundo — desenvolver-se como descrito na legenda citada, ainda acresce o fato de que, na interpretação de Ponce, nas já conhecidas Cerimônias de Iniciação realizadas nas chamadas “comunidades primitivas” é que encontramos a origem do que hoje chamamos de escola. Tais cerimônias, para ele, lideradas por magos e sacerdotes (inicialmente apenas meros depositários e transmissores do saber e, depois, os donos do saber das tribos), trazem consigo as raízes da escola, uma escola que, na visão do autor, já está a serviço de uma determinada classe social, pois nelas “os sacerdotes explicavam aos mais seletos dos jovens da classe dirigente o significado oculto desses mitos e a essência dessas tradições”7.

Partindo de premissa semelhante, Everett Reimer, atribui à devoção religiosa e ao governo os dois principais fenômenos que deram origem à educação, tendo o templo como seu “primeiro lar” e os sacerdotes especializados como os seus primeiros praticantes. Atribuindo ainda, a esses sacerdotes, a possível criação da linguagem escrita, categoricamente, o autor afirma que “curandeiros e sacerdotes estão na espinha dorsal não só do desenvolvimento de professores e escolas, mas da própria evolução humana.”8

7 Cf. Anibal Ponce, Educação e luta de classes, São Paulo, Cortez, 1981, p.27 8 Everett Reimer, op. cit., p. 74

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Um outro ponto de referência é o entendimento de que na sociedade ocidental, na Antigüidade, em Esparta e Atenas, conforme aponta a grande maioria dos historiadores da educação9, encontra-se o prenúncio, a forma rudimentar, do que conhecemos hoje como escola, ou seja uma instituição que tem por objetivo, declarado, a “preparação” de crianças e adolescentes, para o futuro. Sabe-se, por exemplo, que na Academia (para os filhos dos “atenienses puros”) e no Cinasargo

(para os “mestiços”), localizados fora dos muros da cidade, entre bosques e jardins, os jovens atenienses, em estreito contato com os mais velhos e por intermédio de jogos e de diversas discussões sobre temas de ordem social e política, durante dois anos, preparavam-se para serem aceitos como legítimos cidadãos atenienses.

Muitas são, por certo, as teorias que podem auxiliar na compreensão do fenômeno da institucionalização da escola, da escolarização, no entanto, tendo em vista a natureza deste estudo, é imprescindível que se recorra, neste momento, à teoria sociológica, a qual, conforme também declara André Petitat, em suas principais expressões que abordam a questão da educação ou do processo de ensino-aprendizagem, tem como base de sua construção os princípios da reprodução, da manutenção da dominação e do equilíbrio social10. Desta forma, concordando com Petitat, delineiam-se duas grandes correntes teóricas, quais sejam: as teorias funcionalistas e as teorias do conflito. As teorias funcionalistas têm como principal foco de estudos a questão da integração social e da reprodução do equilíbrio e do consenso; já as teorias do conflito têm como alicerce a questão da luta de classes, como reprodução da dominação e da ideologia.

É importante ressaltar que a sociedade, numa interpretação funcionalista, é um sistema harmônico, equilibrado, integrado, constituído de elementos que

9 Dentre os principais, encontram-se Manacorda, Morroe e Marrou 10 Cf. André Petitat, Produção da escola/produção da sociedade: análise sócio-histórica de alguns momentos decisivos da evolução escolar no ocidente, Porto Alegre, Artes Médicas, 1994, p. 11

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mutuamente se completam e que têm como função a manutenção do sistema social e de seu equilíbrio. A sociedade enquanto fenômeno possui muita semelhança com os organismos vivos, e assim, a existência de diversas instituições podem ser comparadas com os diversos órgãos do corpo humano, por exemplo, cuja função principal de cada um desses órgãos é a de trabalhar em conjunto para que o correto funcionamento do organismo como um todo mantenha o seu padrão de eficiência e, assim, no caso das instituições da sociedade, possa manter a ordem social e, como conseqüência, sobreviver.

Torna-se importante, também, neste momento, compreender que, como explica Durkheim , “o termo função é utilizado de duas maneiras bastante diferentes.

Umas vezes, designa um sistema de movimentos vitais, abstração feita das suas conseqüências, outras vezes, exprime a relação de correspondência que existe entre esses movimentos e algumas necessidades do organismo”. Na perspectiva durkeimiana, portanto, perguntar qual a função da escola, da educação, da religião etc., é, como ainda indica o “pai do funcionalismo”, procurar qual a necessidade da sociedade a ser suprida pela instituição correspondente, ou seja, a que está ligada cada uma dessas instituições ?, a qual necessidade prioritária se vincula para que o equilíbrio, a estabilidade do sistema, do organismo, da sociedade seja mantido ?.11

Da mesma forma que se indaga o que fazem o coração e os pulmões em benefício do perfeito funcionamento do corpo humano, pergunta-se o que fazem a escola e a educação à favor do pleno desenvolvimento dessa sociedade idealizada.

Essa lente funcionalista para compreender o mundo, a sociedade, a educação e a escola, dentre outros fenômenos, na concepção de Coakley, enquanto um sistema de interpretação da realidade, necessita para a sua sobrevivência, de

11 Cf. Émile Durkeim, A divisão do trabalho social, Lisboa, Editorial Presença, 1984, v.1, p.63

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mecanismos que garantam “a manutenção do padrão e controle da tensão” — conseguidos por intermédio de métodos que se destinam a fazer com que as pessoas apreendam os valores básicos e as regras inerentes ao sistema; “a integração social” — por intermédio de uma rede de relações sociais que sustentem o funcionamento harmonioso do sistema; “o estabelecimento e realização de metas”

— por intermédio de mecanismos que possam explicitar e convencer as pessoas das metas que são importantes para as suas vidas, bem como ensinem os métodos socialmente aceitos para a sua consecução; “a adaptação” — por intermédio de estratégias e instrumentos que permitam a manutenção do consenso e da solidariedade quando das mudanças no contexto social12, pressupostos esses coerentes com o pensamento de Durkheim que, ao tratar a questão da escola e da educação, na interpretação de Torres&Morrow, “defendia que o sistema educativo moderno vinha substituir a Igreja como instituição integradora central da sociedade e como fator fundamental de manutenção da ordem social através de suas funções de socialização.”13

De forma semelhante, Everett Reimer, afirma-nos que, tendo em vista o poder de infiltração que a escola, como uma das instituições dominantes da vida do homem moderno, exerce no processo de formação da personalidade daqueles que a ela são submetidos, os sistemas escolares tornaram-se, “assustadoramente, em menos de um século, o principal mecanismo de distribuição de valores de toda

12 Cf. Jay J. Coakley apud Carlos Fernando Jr. , Sociologia e Educação Física, in: Faria Jr. et. al. (org) , Uma introdução à educação física, Niterói, Corpus, 1999, p. 182-183 13 Cf. Carlos Alberto Torres e Raymond A. Morrow, Teoria Social e Educação: uma crítica das teorias da reprodução social e cultural, Porto, Edições Afrontamento, 1997, p. 26

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espécie entre os povos do mundo, substituindo em grande parte a família, a igreja e as instituições.”14

Reforçando, ainda mais, a premissa da não existência de conflitos na sociedade, a escola, vista sob a óptica funcionalista, afirma Torres,

“(...) em si mesma reflete a sociedade e há uma solidariedade orgânica, há um conjunto de valores comuns compartidos de tal modo que a passagem pela escola reforça esse conjunto de valores comuns e não os interpela, não os modifica e não os põe em crise.”15

Nessa visão funcionalista, apontada por Torres, portanto, a escola é concebida como sendo neutra, não estando a serviço de nenhuma estrutura de poder e, por isso, é independente de qualquer grupo de influência ou de poder, sendo os seus usuários “virtualmente iguais em termos de seus esquemas valorativos”.16

É importante lembrar, ainda, que essa instituição tida como igualitária e desconectada ideologicamente, veicula um processo de educação que, para

Durkeim, enquanto fenômeno eminentemente social, trata-se claramente de uma ação

“exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na

14 Cf. Everett Reimer, op. cit. , p. 36-38 15 Cf. Carlos Alberto Torres, Sociologia Política e Educação, São Paulo, Cortez, 1993, p. 21-22 16 Idem, ibid., p. 32

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criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine.”17

Durkeim não acredita na existência da sociedade sem que exista uma certa homogeneidade entre os elementos que a constituem, e a educação, certamente com o aparato do sistema escolar, é a responsável por sua perpetuação, reforçando e fixando, “na alma da criança certas similitudes essenciais, reclamadas pela vida coletiva”.18

Não havendo, portanto, conflitos na sociedade, a educação, certamente por intermédio da escola, também, além de dar conta da questão da homogeneidade, acima referida, deve assegurar a existência da “diversidade necessária, diferenciando-se, ela própria, e permitindo especializações”19, pois há que atender as demandas originadas pela divisão do trabalho, considerando-se que, em verdade, seguindo as pegadas de Platão, nem todos podem ocupar o mesmo lugar e exercer as mesmas funções na sociedade. Para Durkeim, “o homem que a educação deve realizar, em cada um de nós, não é o homem que a natureza fez, mas o homem que a sociedade quer que ele seja; e ela o quer conforme o reclame a sua economia interna, o seu equilíbrio”20

Por intermédio do estudo de Henri-Irénée Marrou sobre a educação na

Antigüidade, é possível identificar não apenas como a educação, partindo da não institucionalização, chega a ser intrinsecamente vinculada à escola mas, também,

17 Émile Durkeim, Educação e Sociologia, São Paulo, Edições Melhoramentos, 1978, p. 41 18 Idem 19 Idem 20 Idem, ibid., p. 81

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como os pressupostos funcionalistas, antes referidos, estão presentes nesse processo de consolidação da escola como instituição. Assim, vejamos!

Marrou afirma-nos que na Grécia, após Aristóteles e Alexandre, a escola, no seu processo de consolidação como instituição, vai substituindo, lentamente, os procedimentos e estratégias fundamentados na relação entre velhos e moços, fazendo com que a educação se torne cada vez mais livresca, desenvolvendo-se no sentido que Marrou denominou de “educação de escribas”21.

É possível afirmar que, com esse movimento, a educação começa a ser submetida ao processo de escolarização, principalmente, como nos indica Marrou, com o surgimento, em Alexandria, Pérgamo e Atenas, de estabelecimentos destinados à realização de pesquisas e altos estudos, dentre os quais se destacou o

Museu. A educação começa a ser institucionalizada ...

É também na Antigüidade que surge, em Esparta e em Creta, os primeiros esboços de educação pública, de “instrução pública” e de sistema de ensino, composto por escolas, ginásios e principalmente pela efebia, a qual — inicialmente destinada ao desenvolvimento do processo de adaptação do jovem às normas e costumes da sociedade, preparando-os, prioritariamente, para exercer seus deveres e direitos enquanto soldado-cidadão — , com o passar do tempo, torna-se um dos luxos atenienses destinado aos nobres e ricos, visando, agora, à preparação para os prazeres de uma vida “alegre e elegante”, chegando a ser, no período helenístico e romano, mais “aristocrática do que cívica e mais esportiva do que militar”22.

Ainda seguindo o estudo de Marrou, é possível identificar o surgimento do que hoje chamamos de “sistema de ensino” ao nos depararmos, nas cidades mais populosas da Grécia Antiga, com um grande número de ginásios que, multiplicando-

21 Cf. Henri-Irénée Marrou, História da educação na antigüidade, São Paulo, E.P.U., 1975, p. 153- 154 22 Idem, ibid. , p. 165-174

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se sempre, vão se especializando por idade e classe, e, supõe-se, pela complexidade de sua organização, vão requerendo a existência de “magistrados” que devem encarregar-se do controle, direção e de sua manutenção, aparecendo assim os cargos e funções de “chefe do ginásio”, “guardião da ordem”, “hipo ginasiarca”, “cosmeta” , “sub-cosmeta” , “controladores da sabedoria”, “sofronista” ,

“sub-sofronista” , “pedótriba” , “chefe dos efebos” , funções e cargos esses que, é possível inferir, obedeciam a uma hierarquia semelhante ao que hoje podemos encontrar na estrutura de nossos sistemas de ensino, os quais apresentam “na base” o professor-regente e no “cume” o secretário de educação, ou ministro de

Estado. Importante também ressaltar que apenas a efebia, os ginásios, eram públicos, ou seja, fundados e mantidos pela comunidade; as escolas, com seus mestres-escolas, encarregados apenas do ensino da leitura, eram particulares, isto

é, mantidas pelas contribuições pagas diretamente aos mestres pelos alunos, numa transação com características estritamente comerciais.23 É possível afirmar que nesse momento instala-se a polêmica entre aqueles que desejam uma escola pública gerida pela comunidade (ideal esse buscado intensamente, nos dias de hoje, por um grande número de educadores) e aqueles que defendem a escola particular que, por certo, é constituída e gerida seguindo as diretrizes, objetivos e finalidades estritamente particulares, mesmo que esta seja mantida pelos governos federal, estadual ou municipal.

No mesmo período histórico, em Roma, as escolas, no que se refere, principalmente, aos seus programas, métodos e recursos humanos, segundo

Marrou, eram meras imitações das escolas gregas, e o processo de educação torna-

23 Idem, ibid., p. 176-232

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se, cada vez mais, restrito ao ensino escolar. Cada vez mais, então, a educação

“verdadeira” é aquela institucionalizada, escolarizada.

Em Roma, escola é o lugar, o estabelecimento, onde o mestre-escola, o instrutor, ensina. Existiam as escolas que podemos denominar de escola primária, classificadas como ludus litterarius — aquela destinada às crianças livres — e o pedagogium — reservada para as crianças e jovens escravos, tendo como finalidade orientá-los com relação à realização de seus serviços; a escola secundária — à qual nem todas as crianças tinham acesso, destinada exclusivamente à aristocracia, como um dos privilégios da elite; e, finalmente, a escola superior — também destinada à elite, tendo como principal atividade o ensino da oratória, por intermédio de um mestre especializado denominado rhetor ou orator.

O papel precípuo da escola, em Roma, na interpretação de Marrou, é ser um espaço privilegiado para a implantação de uma política, consciente e deliberada, de romanização, política essa que atingia inclusive as crianças “dadas como reféns pelos notáveis dos países recém-submetidos”24, durante o processo de expansão do

Império Romano. As classes populares e a população do meio rural ficaram sempre alijadas do processo, mesmo que existisse uma grande rede de escolas que permitiam a atuação de muitos mestres-escolas, gramáticos e retores, principalmente nos grandes centros.

Mesmo com essa grande rede de escolas, acima citada, seguindo os estudos de Marrou, não chegou a existir, na Roma Antiga, um sistema hierárquico de cargos e funções como ocorreu na Grécia. A relação do Estado romano com os seus professores, de então, é uma relação direta, sem intermediários, concedendo-lhes, na maioria dos casos, isenções fiscais e, em alguns, remuneração em dinheiro,

24 Idem, ibid., p. 450-453

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como aconteceu no período de Vespasiano ao ser designada uma verba anual, paga pelos cofres do Império, às “cátedras oficiais de retórica latina e grega.”25

Apesar do grande interesse dos cidadãos em relação à educação escolar — pois, como relata Marrou, toda cidade considerada importante possuía escolas públicas, fundadas, mantidas e supervisionadas pela municipalidade —, ainda permaneceram as escolas privadas, escolas essas estruturadas na livre concorrência, passando, apenas com Juliano (361-363 d. C.), a existir como regra um maior controle do Estado sobre as escolas. Desta forma, a partir de Juliano, o

Estado chama para si a tarefa de supervisionar o ensino em todo o Império e fazendo surgir, quiçá, o primeiro concurso público para professores, ao determinar que para poder ensinar, “o professor deveria ter sido aprovado por um decreto baixado pela municipalidade e referendado pelo Imperador”.26

Esse processo de intervenção do Estado no trajeto da educação escolar vai num crescendo até o ano 425 d.C. , com Teodósio II, ao criar em Constantinopla uma Universidade estatal, cujos professores eram proibidos de ministrar aulas particulares. Tinham que manter um regime de “dedicação exclusiva”, já naqueles tempos ...

Após Diocleciano (284-305 d. C.), como aponta-nos Marrou, o Estado romano tornou-se uma monarquia burocrática e, passando a ser um governo que valorizava os escribas, coube às escolas o papel de preparar, de suprir o governo, com os recursos humanos necessários, ou seja: os administradores e secretários. Desta forma, com o crescente acesso a altos cargos do governo, por aqueles que estavam

“preparados”, “instruídos”, para as funções burocráticas governamentais (como por exemplo, com grande ênfase, os estenógrafos), instala-se, certamente, o

25 Idem, ibid., p. 460 26 Idem, ibid., p. 467-470

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pressuposto da importância da escola no processo de mobilidade social, pois altos cargos no governo eram ocupados por ex-alunos dos retóricos e, também, pelos estenógrafos, sem contar, por certo, com os que optavam pela carreira eclesiástica, os quais, com freqüência, de pobres pastores, poderiam alcançar altos cargos no núcleo de poder do clero.

Nessa toada funcionalista, outros autores poderiam ser citados e seus pensamentos explicitados detalhadamente, não fosse outro o objetivo deste estudo.

No entanto, é inevitável falar, mesmo que rapidamente, do pensamento de Parsons que, com sua teoria, por ele denominada de estrutural-funcionalismo, concebe a escola como sendo um lugar para se forjar — por intermédio da inculcação de normas, valores e conhecimentos — os membros de uma sociedade, lugar esse de

“exercício”, de “ensaio”, de convivência e aceitação da hierarquia social, na medida que aceita e vivencia a hierarquia da escola. A escola é, pois, o principal mecanismo de inculcação da lealdade de cada um devotada à coletividade, e de aceitação das escalas de estratificação e de prestígio sociais.

Para Parsons, na interpretação de Petitat, tanto o Estado quanto a escola são duas das exigências de unificação da sociedade e, no caso do ensino,

“a seleção de valores e dos conhecimentos, a divisão por faixa etária e a avaliação e seleção dos indivíduos são entendidas como uma expressão das exigências de solidariedade e integração, e não produto de grupos em conflito, ligado a condições sócio-históricas determinadas.”27

27 Cf. André Petitat, op. cit. , p. 18

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Finalizando, pois, essa abordagem sobre a visão funcionalista da sociedade, da educação e da escola, registro ainda a concepção de Sorokin, para quem a escola, juntamente com várias outras instituições, faz as vezes de uma agência de triagem e de importante canal de mobilidade social.28

Para Sorokin, nas palavras de Petitat,

“dividir, triar, repartir; unir, integrar e cimentar com valores universalizantes. Estas são as duas funções básicas que comandam a seleção dos conteúdos simbólicos enfocados na escola, das práticas pedagógicas e dos próprios indivíduos. A análise funcional da escola é um aspecto particular de um problema mais geral, o do consenso sobre o qual se apóia uma sociedade com divisão de trabalho complexa. O a priori fundamental desta análise admite um sistema educacional orientado para a reprodução de uma ordem social funcional.”29

Certamente, não apenas as teorias funcionalistas, com seus pressupostos e premissas, dão suporte à atribuição de sentidos à escola. Opondo-se a elas, colocam-se na “outra margem do rio”, as teorias conflitualistas. Se a sociedade, para os funcionalistas, é um sistema integrado, ou destinado a ser assim, constituído de elementos que mutuamente se complementam, para a corrente conflitualista, opostamente, a sociedade é uma unidade constituída de elementos que se contradizem, que se opõem, estando a sua desejada estabilidade alicerçada sob a manutenção das relações de dominação.

28 Cf. Pitirim Sorokin, apud André Petitat, op. cit. p. 20 29 Cf. André Petitat, op. cit. , p. 20-21

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Vista a sociedade capitalista como sendo uma unidade, contraditória, de trabalho assalariado e capital, cuja estabilidade depende, fundamentalmente, da manutenção das relações de dominação, dominação essa que se mantém por intermédio de uma sistemática e intensa doutrinação ideológica, a escola, como aponta-nos Petitat, encontra-se dentre os principais mecanismos de “difusão da ideologia burguesa e, portanto, de reprodução de sua dominação”.30

Com base na premissa de que, para as teorias marxistas, o desenvolvimento dos vários segmentos da sociedade e áreas do conhecimento, principalmente a educação, precisa estar assentado na dominação de classe, Petitat, identifica dois

“conjuntos de análises” com relação ao binômio escola-sociedade, quais sejam:

a) o conjunto que tem como pressuposto o fato de que a escola “não é absolutamente a expressão da sociedade como um todo, mas um meio institucionalizado de manutenção da hegemonia burguesa”, corrente essa que enfatiza a participação da ideologia dominante no sistema escolar, fazendo com que a escola se dedique a “produzir determinadas condições para a reprodução da dominação de classe”;

b) o conjunto que enfoca, prioritariamente, a participação, efetiva, da escola no processo de reprodução da divisão do trabalho, para, em segundo plano, ter como objetivo a instrução ou a formação de seus alunos.31

30 Idem, ibid., p. 22 31 Idem

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Torna-se necessário, neste momento, revisitar alguns dos principais estudiosos da educação que, por seus relatos e interpretações, ilustram e referendam os dois “conjuntos de análises” acima citados.

Ao referir-se à Antigüidade, Manacorda aponta-nos que, na Grécia Antiga, já encontramos a diferenciação, inclusive, dos processos educativos conforme as diferentes classes sociais da época. Desta forma, considerando que tal diferenciação não era tão rígida como nos dias atuais e que, até, podemos identificar um certo movimento no sentido da instalação de um processo democrático de educação,

Manacorda assim revela que existia

“para as classes governantes uma escola, isto é, um processo de educação separado, visando preparar para as tarefas do poder (...); para os produtores governados nenhuma escola, inicialmente, mas só um treinamento no trabalho (...): observar e imitar a atividade dos adultos no trabalho, vivendo com eles. Para as classes excluídas e oprimidas, sem arte e nem parte, nenhuma escola e nenhum treinamento mas, em modo e graus diferentes, a mesma aculturação que descende do alto para as classes subalternas”.32

Manacorda, ainda, ao discorrer sobre a educação em Roma, séculos mais tarde, relembrando as ironias de Horácio, observa que a escola de gramática e de retórica era destinada às classes privilegiadas, pois, como afirmava Juvenal, a eloqüência era algo muito raro de ser encontrado nos pobres esfarrapados. Por essas razões, na interpretação do autor, foi que a escola “tornou-se de interesse

32 Cf. Mario Manacorda, História da educação: da Antigüidade aos nossos dias, São Paulo, Cortez, 1996, p. 41

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público e conseguiu o apoio direto do poder político”33 que, como já foi citado anteriormente, não apenas fez concessões aos mestres, como pagou seus salários e também chegou a fundar escolas.

Valorizada a escola, como nos aponta Manacorda, surge o fato de que alguns trabalhos de escravos também exigiam conhecimentos específicos e habilidades próprias, os quais somente poderiam ser adquiridos na escola, local esse no qual, por indicação de Varrão, os escravos que ocupavam cargos de responsabilidade nas fazendas deveriam ser enviados para que aprendessem a ler e escrever. Na interpretação do autor, tal fato, no entanto, era

“(...) um costume que vinha sendo praticado, para melhor explorar o trabalho servil, por parte dos patrões mais empreendedores: não somente para utilizar estes escravos qualificados diretamente no próprio serviço, mas também como investimento ‘de capital’, para alugá-los ou vendê-los a um preço bem mais alto”.34

Na Idade Média, segundo Petitat, três fatores importantes contribuíram para a existência de mudanças significativas para o ensino:

1) começa a existir uma grande mobilidade por parte dos habitantes das cidades, tendo em vista a liberdade de ir-e-vir e, assim, poderem buscar os melhores lugares para progredirem economicamente (possuir e acumular bens) e, principalmente, dispor de seus conhecimentos e tecnologias,

33 Idem, ibid., p. 97 34 Idem, ibid., p. 104

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dando assim maior consistência aos alicerces das corporações de aprendizes e às universidades;

2) surge a necessidade de formação específica para as atividades jurídicas e médicas;

3) o comércio e o artesanato se destacam das demais atividades, tornando-se profissões independentes e exigindo a alfabetização e outros conhecimentos.35

Desta forma, a escola absorveu as atividades antes desenvolvidas pelas diversas corporações profissionais, quer nas corporações ou nas guildas, nas quais o aprendiz era admitido por intermédio de um contrato (a princípio oral) entre o mestre e seu pai (ou tutor), no qual estava estipulado os direitos e deveres de ambas as partes, a duração “do curso” e, certamente, os custos desse processo. Selado o contrato, o aprendiz ainda deveria prestar um juramento perante alguns outros mestres, como se fosse uma “banca examinadora” dos dias atuais, e só então era oficializada a entrada de um novo membro naquela corporação, conforme relata

Petitat.36

Surgem, na Idade Média, as escolas Monástica, Episcopal e Presbiterial, as quais, na interpretação de Marrou, foram o único meio de aquisição e transmissão de cultura, apresentando como principal objetivo, se não o único, formar monges e clérigos.37 No entanto, segundo Petitat, a escola elementar religiosa, latina, não supria as necessidades dos comerciantes, tornava-se necessária uma escola que no lugar do ensino literário e erudito, ensinasse a leitura, a escrita, o cálculo e um pouco de latim, conteúdos esses que correspondiam ao atendimento das demandas da

35 Cf. André Petitat, op. cit. , p. 50-51 36 Idem, ibid., p. 51 37 Cf. Henri-Irénée Marrou, op. cit. , p. 512

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vida comercial. Assim, quiçá inaugurando a polêmica que gira em torno da questão escola confessional versus escola laica, em 1253, os burgueses obtêm a autorização para abrir as suas próprias escolas, dando início a um processo que permite, já no século XIV, em Flandres e na Itália, em cidades importantes comercialmente, a existência de escolas privadas e municipais, que completavam o ensino da leitura e da escrita com “cursos comerciais”, destinadas à formação de “futuros balconistas, caixas, responsáveis por sucursais, banqueiros, comerciantes etc.”38

Pelo exposto até aqui, e como também é possível apreender das interpretações de David Hamilton, torna-se óbvio que o processo de escolarização, mesmo que geralmente, no senso comum, passe despercebido, é uma construção histórica e, como tal, dinâmica e ambígua. Sendo assim, nada há de se estranhar ao se encontrar, no período medieval, basicamente, um duplo sentido atribuído à escola, quais sejam: “um grupo de pessoas ou um recinto no qual a instrução tinha lugar”, ou como já afirmado, uma instituição e uma edificação, um prédio, um estabelecimento de ensino ...

Como espaço físico, segundo Hamilton, durante o século XIII, muitos

“colégios” foram fundados, por benfeitores, com o objetivo principal de dar acolhida a

“escolares pobres”, sendo conhecidos, tais estabelecimentos, como “hospícios” ,

“pedagogias” e “casas”, como por exemplo a Casa de Sorbone, fundada em 1257.

Não eram, por certo, grandes instalações como as construídas no século XX, mas de pequeno porte, como por exemplo o mais antigo deles, fundado em 1180, o qual tinha apenas 18 alunos.

Quanto ao sentido atribuído à escola como um grupo de pessoas, torna-se necessário ressaltar que, ainda conforme Hamilton, tratava-se fundamentalmente

38 Cf. André Petitat, op. cit., p. 55-57

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“de uma relação educacional”, relação essa estabelecida entre um professor e um grupo de alunos, porém estabelecida individualmente, considerando os diversos níveis de competências, aptidões e conhecimentos de cada um.39

Ainda na Idade Média, é importante registrar a participação das universida- des, as quais surgem, na concepção de Petitat, sem qualquer inspiração em organizações anteriores. Para o autor, tais instituições de ensino, mantidas por associações corporativas de professores, “reproduzem a forma dominante de organização das atividades urbanas”.40

Concluindo suas observações e análise sobre o sistema de formação educacional na Europa medieval, Petitat, afirma que:

• tendo em vista a prevalência da escrita sobre a oralidade, os praticantes da tradição oral vão, aos poucos, sendo considerados ignorantes; • “a cultura do texto se apresenta como dominação cultural, como expressão da dominação das elites urbanas em plena expansão”; • a escola segue a secularização da escrita e, como conseqüência, “aparece onde as atividades sociais precisam recorrer ao texto, seja ele de lei ou livros de contas”; • “são somente as atividades comerciais e aquelas vizinhas ao poder que recorrem à escrita” e, desta forma, são essas mesmas que se utilizam da escola como instrumento de formação; • na Idade Média, a escola se torna, “antes de mais nada, um local para transmissão de signos, de valores, de símbolos que se apóia na escrita e

39 Cf. David Hamilton, Sobre as origens dos termos classe e curriculum, Teoria & Educação, Porto Alegre, Pannonica, n° 6, 1992, p. 33-38 40 Cf. André Petitat, op. cit. , p. 59

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surge em função de atividades que operam com signos, símbolos etc.”.41

Do Renascimento à ante-sala da Revolução Industrial, o colégio, segundo

Petitat, não apenas por sua criação, mas também pela sua rápida e eficiente disseminação, foi o acontecimento mais marcante da história da escola, enquanto instituição.

Os colégios, seguindo os estudos de Petitat, surgem, com maior poder de influenciação, no princípio do século XVI e já em 1550/1570 estavam disseminados, disseminação essa que ocorreu em conseqüência da disputa instalada entre a religião católica e o movimento da Reforma. Tanto os reformadores, quanto os jesuítas, desde logo perceberam que só poderiam alcançar a consolidação de seus respectivos propósitos se contassem com o apoio das escolas e, por isso, dedicam- lhes atenção especial, fazendo com que, ainda no século XVI, a reflexão pedagógica acompanhasse de perto a nova organização dos colégios, partindo, também, de novos pressupostos sobre a infância e a adolescência.

Nesse período, os colégios adotam medidas e estratégias que até hoje, muitas vezes, ainda nos deparamos com elas, medidas essas que são incluídas em seus procedimentos “administrativo-pedagógicos”, tais como:

• relógios e sinetas, para marcar o início, intervalos e

final das aulas. O conhecido “sinal” dos nossos dias;

• os alunos possuem agora um período de tempo, pré-

determinado, para que possam aprender e

41 Idem, ibid., p. 68-69

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comprovar esse aprendizado, por intermédio dos

trabalhos escolares e exames;

• surgem os prêmios concedidos aos alunos, tendo

em vista os seus respectivos desempenhos,

acompanhados, porém, das censuras e

recompensas para os alunos “brilhantes” e

“preguiçosos”;

• anualmente os tidos como “bons” alunos são

promovidos e os considerados “maus” são

rebaixados ou até eliminados da escola;

• a “seleção escolar”, então, “passa a ser munida de

bases institucionais, do enquadramento temporal e

as relações de imposição necessárias a seu

desdobramento progressivo e contínuo”.42

Ressalta-se, na ótica de Petitat, a participação, nesse período, dos jesuítas que selecionam, com muita rigidez, os conteúdos das matérias a serem ensinadas; inauguram a literatura de “trechos escolhidos” , que na verdade eram os textos clássicos após terem sido submetidos aos cortes e adaptações da censura jesuítica; usam os prêmios, recompensas, apresentações públicas dos trabalhos, acirramento da competição no interior das classes, tendo em vista manter a assiduidade dos alunos, bem como criam uma hierarquia interna entre eles, criando cargos honoríficos conjugados com certos poderes sobre os demais alunos; e, estruturam

42 Idem, ibid, p. 79

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os colégios como a Companhia de Jesus, fundamentada hierarquicamente sobre os princípios da autoridade e da obediência.

Prosseguindo em sua análise, Petitat ainda afirma-nos que “esta maneira de inculcar esquemas de ordem e de submissão se prolonga numa disciplina do corpo e dos movimentos, que se relaciona a uma corrente da época, atenta às boas maneiras e a atitudes convenientes(...)”43

Os grandes espaços físicos destinados às aulas vão gradativamente se reduzindo, chegando até às salas de aula, as quais enclausuram, cada uma, apenas uma série com o seu respectivo professor, deixando de ser, o colégio, apenas uma instituição e passando a ser também um prédio. Como informa G. C. Mir, é somente em 1509, no programa de Mantaigu, que pela primeira vez, em Paris, se tem notícia da existência de uma divisão, precisa e explícita, de alunos em classes44 , organização essa que, com o passar do tempo, cada vez mais, na interpretação de

Petitat, vem se tornando no “local de uma atividade coletiva marcada por regulamentos, o local fechado onde ocorre uma classificação permanente dos alunos, onde são comparadas as performances, eliminados os ‘fracos’ e promovidos os ‘fortes’.”45

Aquela criança, aquele adolescente, considerado um adulto em miniatura, que vivia no meio dos adultos, dos velhos, participando de suas festas, de seus trabalhos, de sua cultura, passa então, sistematicamente, a partir do século XVI, a ser enviado para locais determinados, especializados nos mistérios da arte de ensinar, para instituições que tem como objetivo a sua socialização, a sua adaptação ! Certamente, esse é o caso da criança e do jovem da elite, pois, os outros ainda permanecem convivendo com os adultos.

43 Idem, ibid. , p. 82 44 Cf. David Hamilton, op. cit. , p. 39 45 Cf. André Petitat, op. cit. , p. 90

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Os colégios, então, tornam-se uma instituição burocrática, com seus diretores nomeados pelas chamadas instâncias superiores; o professor perde o poder de sua ação individual, sendo visto como uma pequena parte de um corpo docente; a participação do professor é apenas a de ocupar um determinado horário e desenvolver um determinado programa de ensino, sendo o seu trabalho avaliado, periodicamente, pela direção; os alunos perdem os seus direitos em benefício da instituição, até mesmo o de organizarem-se em associações ou de designar seus representantes.46

No estudo realizado por Rosa de Souza, percebe-se bem o processo, aprimorado no século XIX, pelo qual a escola foi sendo construída como uma organização burocraticamente organizada, tendo como pontos referenciais critérios de racionalidade que incluíam elementos tais como horários, diários de classe, planejamentos, surgindo nesse período, conforme a interpretação de Giollito, a preocupação quanto a uma possível correlação entre a idade do aluno e a série escolar. Nesse processo, ainda, surgem o conceito, cada vez mais polêmico, de

“repetência” e também, conforme avalia a autora, “o que a educação ainda possui de mais perverso: a sublimação do indivíduo em prol do coletivo e a individualização que seleciona e pune”.47

É nesse contexto indicado por Rosa de Souza que surge a concepção de

“escola primária graduada”, ou de “escola central” ou ainda, do bem conhecido por nós, “Grupo Escolar” , como uma das estratégias de organização do ensino elementar que, permitindo maior racionalização do processo e uma padronização de métodos e procedimentos, era capaz de atender a um grande número de crianças e,

46 Idem, ibid., p.93 47 Cf. Rosa Fátima de Souza, Espaço da educação e da civilização: origens dos Grupos Escolares no Brasil. In: Templos de civilização: a implantação da escola primária no Estado de São Paulo, 1890-1910, São Paulo, Ed. Unesp, 1998, p. 28-29

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assim, atingir o objetivo de alcançar uma “escolarização em massa” e de atender “às necessidades da universalização da educação popular”.48

Nessa “(re)invenção” da escola primária, como interpreta a autora citada, algumas mudanças significativas aconteceram, tendo em vista as novas finalidades atribuídas à escola, o surgimento de uma outra concepção educacional e uma nova organização do ensino. Dentre tais mudanças, Rosa de Souza, assinala que

“o método individual cedeu lugar ao ensino simultâneo; a escola unitária foi, paulatinamente, substituída pela escola de várias classes e vários professores, o método tradicional cedeu lugar ao método intuitivo, a mulher encontrou no magistério primário uma profissão, os professores e professoras tornaram-se profissionais da educação.”49

É certo que além do surgimento dessa diferente concepção educacional e dessa forma nova de organizar o ensino, também uma profunda mudança se processou na relação mestre-aprendiz. Tal relação, deixando o seu aspecto individualizado, fundamentado no ritmo individual de cada um dos aprendizes, contemplando as diferenças inerentes a cada um e as diversas habilidades e potencialidades, passa a ser uma estratégia de massificação do saber-fazer específico de cada atividade a ser aprendida, alicerçando-se na ação empreendida por um professor (agora um “profissional da educação”) sobre um grupo grande de alunos, de cada vez, haja vista a função homogeinizadora, presente cada vez mais no sentido atribuído à escola.

48 Idem, ibid. p. 20 49 Idem, ibid., p. 21

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Nessa toada de massificação, o Grupo Escolar, assume um lugar de destaque nos diversos processos de transformação social e cultural empreendidos durante os séculos XIX e XX, no mundo ocidental, tendo em vista, principalmente, o sentido que lhe foi atribuído como um poderoso instrumento no processo destinado

à moralizar, civilizar e consolidar a ordem social. Tal crença na escola, torna-se, então, “a justificativa ideológica para a construção dos sistemas estatais de ensino”.50

Ainda seguindo os estudos de Souza, temos como decorrência dessa

“moderna organização da escola primária” a disseminação, durante o século XIX, do conceito de “organização pedagógica”, o qual é definido pelo Dicionário de

Pedagogia e Instrução Primária, organizado na França por F. Buisson, como sendo

“um conjunto de regras que determinam racionalmente e de forma precisa o modelo de funcionamento das escolas, a saber : as condições de admissão e o emprego do tempo a consagrar a cada uma das matérias que estes programas comportam.”51

O sentido de organização burocrática — destinada à escolarização em massa, tendo em vista o objetivo de moralização e civilização desses alunos face ao propósito de perpetuar a ordem social vigente, principalmente na Europa do século

XIX —, atribuído à escola, se fortalece ainda mais com esse entendimento sobre o que seria uma “organização pedagógica” e, desta forma, dá origem ao entendimento, por parte dos pedagogos da época, conforme nos relata Giolitto, de que tal organização

50 Idem 51 Idem, ibid, p. 22

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“(...) visava estabelecer para cada escola uma classificação uniforme, em função da idade, mas sobretudo, em função do nível de conhecimento; determinar o máximo de conhecimento que dever-se-ia ensinar aos alunos durante a escolaridade elementar, isto é, o estabelecimento de um plano de estudos geral, pressupondo a distribuição do volume de conhecimento global entre os diversos cursos da escola primária e, por último, o emprego do tempo, o que implicava fixar a divisão diária das lições e dos exercícios.”52

Chegando, nessa trajetória da institucionalização da escola, ao período contemporâneo, além do trabalho elaborado por André Petitat, principalmente no que se refere à questão dos sentidos atribuídos à escola nos tempos atuais, pós

Revolução Industrial, ressaltam-se algumas interpretações de outros estudiosos, não menos importantes, sobre essa questão.

Para Torres, a teoria da reprodução social, como uma alternativa ao funcionalismo, é constituída por várias vertentes, por uma nuança característica e própria das questões humanas e sociais, principalmente. Assim, em sua interpretação, a vertente da “correspondência ou isomorfismo”, corrente essa que tem como expoentes Samuel Bowles e Herbert Gintis, os quais, fundamentados na premissa de que a educação capitalista reflete o processo de acumulação capitalista que ocorre no mercado de trabalho, concebe que a escola é a responsável pelo desenvolvimento do processo de aquisição, por parte dos alunos, das habilidades e competências exigidas pelo trabalho e, também, é um dos mecanismos para que a

52 Idem

70

força de trabalho aceite, sem resistência, a posição a ser ocupada por esse aluno, bem como a sua prática, quer ele venha a ser um funcionário, operário ou administrador, nesse mercado.

A escola, para Bowles&Gintis, contribui para a reprodução social, não pela instrução escolar que realiza, mas sim, afirma Torres, pelo processo de aprendizagem de condutas que desenvolve, tendo em vista os diversos setores sociais que ela traz para dentro de seus muros, na busca de promover a integração desse aluno no contexto das relações de produção. Para os autores, o sistema educacional é “uma instituição que serve para perpetuar as relações sociais da vida econômica, através do qual aqueles padrões de relações são estabelecidos, facilitando uma integração suave da juventude na força de trabalho.”53

Existe, na concepção de Bowles&Gintis, uma íntima correspondência entre as relações sociais existentes no local de trabalho e as relações do sistema educacional. A escola, portanto, refletindo as relações de produção, age no sentido de reproduzi-las, de mantê-las!

Destacando a função repressivo-ideológica face a função econômica da escola, segundo Carnoy, para Bowles&Gintis, a reprodução acontece em duas vertentes, quais sejam: a reprodução da força de trabalho (“pela distribuição de mão de obra habilitada através dos diferentes níveis de hierarquia baseada na origem de classe social do aluno”) e a reprodução das relações de produção54.

Torna-se importante registrar, para uma melhor compreensão da questão desse tipo de reprodução, que Bowles&Gintis utilizam os conceitos de força de trabalho e relações de produção no sentido expresso por Marx que, na interpretação de Althusser, concebe força de trabalho como sendo

53 Cf. Bowles&Gintis, apud Martin Carnoy, Educação, economia e estado, São Paulo, Cortez, 1984, p. 61-62 54 Cf. Martin Carnoy, op. cit., p. 62-63

71

“o conjunto das diferentes formas de dispêndio de atividade (física e outra) do conjunto dos agentes dos processos de trabalho, portanto, dos indivíduos tecnicamente aptos a utilizarem os Meios de Produção existentes das formas exigidas de não-cooperação ou de cooperação”55,

e ainda, no sentido atribuído por Althusser, ao indicar que as relações de produção,

“não são relações puramente técnicas, mas relações da exploração capitalista, inscritas como tais na vida concreta da produção inteira (...). As relações de produção não são relações jurídicas, mas algo completamente diferente: colocam em questão as relações de classes, no próprio âmago da produção”.56

Bowles&Gintis, ao apontar a correspondência entre a escola e o mercado de trabalho, ainda afirmam em seus estudos, dentre outros pontos também importantes, que

“muito concretamente, as relações de autoridade e controle entre os administradores e os professores, os professores e os alunos, o aluno e os alunos, os alunos e o seu trabalho, são réplicas da divisão hierárquica do trabalho que domina o local de trabalho. O poder

55 Cf. Louis Althusser, Sobre a reprodução, Petrópolis, Vozes, 1999, p. 48 56 Idem, ibid., p. 68

72

organiza-se ao longo de linhas de autoridade verticais, da administração ao corpo docente e aos estudantes; os estudantes detêm um certo grau de controle sobre os seus currículos, um grau comparável ao que o trabalhador possui sobre o conteúdo do seu trabalho.”57

Outro importante significado atribuído à escola é o de ser um Aparelho

Ideológico de Estado, como assim concebeu Althusser, e como tal, é um local onde aprende-se alguns poucos “saber-fazer”, certas técnicas elementares e um pouco de algum saber “científico”, porém,

“(...) aprende-se na Escola, as ‘regras’ das boas maneiras, isto é, da convivência que todo agente da divisão do trabalho deve observar, segundo o posto que lhe é ‘destinado’: regras de moral e consciência profissionais, o que significa dizer, de forma clara, regras de respeito à divisão social-técnica do trabalho e, no final das contas, regras da ordem estabelecida pela dominação de classe.”58

Luís Antonio Cunha, apontando-nos que numa formação social não encontramos apenas um saber, e sim os “saberes dominantes” (próprios da classe dominante) e os “saberes dominados” (referentes às classes dominadas), vai um pouco além nessa questão sobre o que é ensinado na escola, afirmando que “todo

57 Cf. Carlos Alberto Torres, Teoria social e educação: uma crítica das teorias da reprodução social e cultural, Porto, Edições Afrontamento, 1997, p. 160 58 Cf. Louis Althusser, op. cit., p. 75

73

ensino, operando necessariamente por meio de um aparelho escolar, propõe-se a ministrar um saber dominante, mas não todos saberes dominantes.”59

Nessa mesma linha de interpretação, Reimer, aponta um dos pontos de grande importância para a compreensão desse significado de agência reprodutora da ideologia dominante, qual seja o de que as escolas possuem um “currículo secreto” , o qual, na verdade, é muito mais importante do que aquele que é divulgado como oficial. Tal currículo, na interpretação do autor, tem como propósito, não explícito,

“propagar os mitos sociais” , mitos esses que se referem, principalmente, à dita

“igualdade de oportunidades, à liberdade, ao progresso e à eficiência.”60

Para Althusser, dentre todos os aparelhos ideológicos que dão sustentação ao

Estado, a escola ocupa uma “posição dominante” , a qual, nos dias de hoje, substitui a Igreja, de tempos atrás. Comparando a atuação dos Aparelhos Ideológicos de

Estado, como a de uma orquestra que executa um concerto, no caso o “concerto” da reprodução das relações de produção, a reprodução das relações de exploração capitalista, o autor afirma que “no entanto, nesse concerto, um Aparelho Ideológico de Estado desempenha efetivamente o papel dominante, embora ninguém ou quase ninguém preste atenção à sua música, tão silenciosa ela é! Trata-se da Escola”.61

Althusser, ainda, explicita como, em sua concepção, a escola age para que a reprodução das relações citadas aconteça:

“Ora, é pela aprendizagem do que se reduz, no final das contas, a alguns ‘savoir-faire’ definidos, revestidos pela inculcação maciça da ideologia da classe dominante que são, por excelência, reproduzidas as relações de produção de uma

59 Cf. Luiz Antônio Cunha, A universidade temporã : o ensino superior da Colônia a Era Vargas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p. 15 60 Cf. Cf. Everett Reimer, op. cit. , p. 61 61 Cf. Louis Althusser, op. cit., p. 168

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formação social capitalista, isto é, as relações de explorados com exploradores e de exploradores com explorados.”62

Com concepções semelhantes as de Bowles&Gintis, quanto à escola como um mecanismo de reprodução da sociedade capitalista, e também às de Althusser, que a concebe como um Aparelho Ideológico de Estado, Cristiam Baudelot e Roger

Establet, na interpretação de Luiz Cunha, concebem que a escola, enquanto um aparelho destinado à reproduzir as relações sociais de produção, presta a sua contribuição por intermédio, principalmente, da repartição material dos indivíduos em duas massas desiguais, conforme a divisão social do trabalho, bem como pela inculcação da ideologia dominante e pela “formação” da força de trabalho de acordo com as necessidades do capital.63

Para Baudelot&Establet, ao derrubarem o mito de que existe uma unidade escolar, uma escola única, aberta a todos e à qual todos têm acesso, apontam-nos que, ao contrário, “a escolarização capitalista, em última análise, reparte materialmente os indivíduos pelas posições antagônicas da divisão social do trabalho, seja do lado dos explorados, seja do lado da exploração”.64

Um outro importante significado atribuído à escola também é necessário ser, neste estudo, registrado, qual seja: a escola é o locus onde, por intermédio da violência simbólica, por imposição de um acervo cultural pertencente às classes dominantes, ao mesmo tempo que sanciona as desigualdades sociais, as reproduz.

Desta forma, mesmo correndo o risco de um possível reducionismo, é possível sintetizar o sentido atribuído à escola e, por extensão, aos sistemas de ensino,

62 Idem, ibid., p. 169 63 Cf. Luiz Antônio Cunha, Uma leitura da teoria da escola capitalista, Rio de Janeiro, Achiamé, 1980, p.24-25 64 Cf. Baudelot & R. Establet, apud Luiz A. Cunha, op. cit. p. 14

75

declarados por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, que em seu estudo, partem da premissa de que:

“todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor significação e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de força”.65

A escola, portanto, ao exercer uma ação pedagógica que impõe e inculca determinados significados e valores pertencentes à classe dominante, reproduz “a estrutura das relações de força, numa formação social” , ou seja, conforme os autores, impõem um arbitrário cultural, por intermédio de um poder também arbitrário. Assim,

“numa formação social determinada, o arbitrário cultural que as relações de força entre os grupos ou classes constitutivas dessa formação social colocam em posição dominante no sistema dos arbitrários culturais é aquele que exprime o mais completamente, ainda que sempre de maneira mediata, os interesses objetivos (materiais e simbólicos) dos grupos ou classes dominantes.”66

Pela abrangência e objetivo deste estudo, que não pretende discutir as diversas teorias sobre o fenômeno da reprodução no âmbito da educação, tampouco estabelecer um paralelo entre os diversos teóricos aqui citados, creio que é

65 Cf. Bourdieu&Passeron, A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982, p. 19 66 Idem, ibid., p. 23-24

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necessário, no momento, ainda registrar que, na óptica de Bourdieu&Passeron, a escola, de um modo geral, enquanto uma instituição

“ (...) deve as características específicas de sua estrutura e de seu funcionamento ao fato de que lhe é preciso produzir e reproduzir, pelos meios próprios da instituição, as condições institucionais cuja existência e persistência (auto-reprodução da instituição) são necessários tanto ao exercício de sua função própria de reprodução quanto à realização de sua função de reprodução de um arbitrário cultural do qual ele não é o produtor (reprodução cultural) e cuja reprodução contribui à reprodução das relações entre os grupos ou classes (reprodução social).”67

Nesse continuum de sentidos atribuídos à escola, que apresenta como um de seus pólos a escola neutra e isolada do contexto social no qual está inserida e de outro a escola como um instrumento (dos mais eficazes) de reprodução, efetiva, da classe dominante, um outro significado, ainda, se destaca. Trata-se da escola como um espaço possível para a transformação social, um espaço de contra-hegemonia.

Ao abordar esse sentido de escola, é interessante ressaltar que, como aponta

Barbara Freitag, Antonio Gramsci não tem a escola como sua preocupação central, no entanto sua contribuição é fundamental para esse tema, tendo em vista, principalmente, ser o autor que atribuiu à escola (e a outras instituições) a característica de, dialeticamente, “conservar e minar as estruturas capitalistas”.68

67 Idem, ibid., p. 64 68 Cf, Barbara Freitag, Escola, estado e sociedade, São Paulo, Moraes, 1980, p. 37

77

Gramsci, concebendo que “o homem é sobretudo espírito, isto é, criação histórica”69 e rechaçando a “mentalidade dogmática e intolerante criada no povo italiano pela educação católica e jesuítica”70, apresenta — discorrendo sobre a dicotomia “escola clássica/escola profissional até então existente e sobre o surgimento da “escola técnica” —, como solução para a crise que se instala a

“escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre equanimemente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual.”71

Não abrindo mão da formação geral e nem da formação profissional, desenvolvida unindo-se teoria e prática, após essa modalidade de escola, para

Gramsci, “através de repetidas experiências de orientação profissional”, viria uma das escolas especializadas ou o trabalho produtivo.72

A escola, pode-se inferir do pensamento de Gramsci, deveria ser um misto de escola tradicional e “círculo de cultura”, à exemplo da redação de algumas revistas do tipo “Político-Crítica”73. A estratégia do círculo de cultura, permitiria que, de modo colegiado, a crítica sobre a vida de cada elemento constitutivo da escola (quer fosse quanto a sua conduta, posturas face ao mundo, sua produção acadêmica etc. etc. etc. ) feita por intermédio de “sugestões, conselhos, indicações metodológicas”,

69 Cf. Antonio Gramsci, Socialismo e cultura, in: Escritos políticos, Lisboa, Seara Nova, 1976, p. 83 70 Idem, Para uma associação de cultura, in: Escritos políticos, Lisboa, Seara Nova, 1973, p. 178 71 Idem, Os intelectuais e a organização da cultura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988, p. 118 72 Idem 73 Idem, ibid., p. 176

78

pudesse ser, efetivamente, uma “crítica construtiva e voltada para a educação recíproca”.74

Para Antonio Gramsci, a escola unitária, dentre outros aspectos, requereria:

• que o Estado assumisse todas as despesas, inclusive as que são realizadas pelas famílias; • ampliação, significativa, dos estabelecimentos de ensino, bem como do suprimento de materiais de ensino-aprendizagem, do corpo docente etc.; • que a relação professor-aluno, no que se refere ao número de alunos por professor, fosse radicalmente diminuída, tendo em vista o aumento da qualidade de ensino; • que os estabelecimentos de ensino, pudessem ter dormitórios, refeitórios, bibliotecas especializadas, auditórios etc. como se fossem uma “escola-colégio”.75

A escola, na interpretação de Gramsci, deveria ser um espaço pedagógico no qual fossem desenvolvidos, principalmente, a autonomia e a criatividade dos alunos.

Assim, segundo ele, a escola unitária

“deveria ser organizada como colégio, com vida coletiva diurna e noturna, liberta das atuais formas de disciplina hipócrita e mecânica, e o estudo deveria ser feito coletivamente, com a assistência dos professores e dos melhores alunos, mesmo nas horas de aplicação chamada individual, etc.”76

74 Idem, ibid, p. 120 75 Idem, ibid., p. 121-122 76 Idem, ibid. p. 123

79

Gramsci, ao conceber e reivindicar uma escola para o proletariado, com muita clareza, a concebe como sendo

“(...) uma escola desinteressada. Uma escola que dê à criança a possibilidade de se formar, de se tornar homem, de adquirir aqueles critérios gerais necessários para o desenvolvimento do caráter. Uma escola humanista, em suma, assim como a entendiam os antigos e mais próximos homens do Renascimento. Uma escola que não hipoteque o futuro do garoto, nem obrigue sua vontade, sua inteligência, sua consciência e informação a se mover na bitola de um trem com estação marcada. Uma escola de liberdade e livre iniciativa e não uma escola de escravidão e de mecanicidade (...)”77

Nosella, concentrando sua atenção nas concepções de Gramsci sobre a escola, assim interpreta a sua obra e o seu pensamento sobre a questão:

“(...) Gramsci sintetiza, no ideal da escola moderna para o proletariado, as características da liberdade e livre iniciativa individual com as habilidades necessárias à forma produtiva mais eficiente para a humanidade de hoje. Para ele, esses dois pólos são organicamente interde- pendentes.”78

77 Cf. Antonio Gramsci, apud Paolo Nosella, A escola de Gramsci, Porto Alegre, Artes Médicas Sul, 1992, p. 20 78 Cf. Paolo Nosella, op. cit. , p. 10

80

A escola, para Gramsci, deveria ser “desinteressada”, ou seja, segundo

Nosella, que se opusesse ao interesse imediato e utilitário, devendo ser formativa, ao mesmo tempo que está “ancorada ao trabalho” e engajada politicamente. Deve tratar-se, portanto,

“de uma escola da liberdade, isto é, de uma escola onde se ensina a ser livre. Esta liberdade, assim como a fantasia, não é abstração, mas é historicamente determinada (...) É a liberdade forjada no e pelo trabalho moderno, controlado pelo próprio trabalhador o qual produz e define a política de produção e distribuição (...)”79

Conforme interpreta Freitag, o pensamento gramsciano possibilita-nos pensar dialeticamente a questão da educação e a concepção, estrutura e funcionamento da escola. “Somente ele permite a conceituação de uma pedagogia do oprimido e uma educação emancipatória institucionalizada”, ainda afirma a autora, estimulando e apresentando instrumentos para, com o auxílio também da escola, pensar e realizar uma nova formação social.80

Nas palavras de Freitag, que se seguem, é possível identificar o cerne dessa concepção de escola :

“Os dinamismos que regem — como revelou Bourdieu e denunciaram os althusserianos — o funcionamento da escola capitalista como reprodutora das relações materiais, sociais e culturais de produção dessa formação histórica

79 Idem, ibid., p. 124-125 80 Cf. Barbara Freitag, op. cit., p. 39-40

81

podem ser explorados em sua contradição interna, para corroer não só sua própria funcionalidade, mas a da própria estrutura capitalista em questão. A contra-ideologia, na forma de uma ‘pedagogia do oprimido’, pode apoderar-se do AIE escolar, corroendo-o, refuncionalizando-o, destruindo-o, ao mesmo tempo em que a nova pedagogia nele se institucionaliza para divulgar sua nova concepção de mundo.”81

Tem-se, até aqui, os sentidos julgados mais relevantes encontrados nos principais estudos realizados, por autores de renome internacional, no âmbito das ciências sociais e humanas aplicadas à educação. Como afirmado, no início deste capítulo, não esgotam o assunto sobre os significados atribuídos à escola e nem, tampouco, escrevem uma outra História da Educação ou da Escola.

... é o vento que venta cá!

Uma importante pergunta, no entanto, ainda deve ser respondida, qual seja: especificamente, no Brasil, quais os principais significados que têm sido atribuídos à escola ? Ou melhor, quais sentidos de escola têm orientado as relações estabele- cidas entre essa instituição e a sociedade brasileira ?

Formulada, pois, a pergunta, seguem algumas considerações e os sentidos tidos por mim como os mais relevantes para este estudo sobre a escolarização da

Capoeira. Assim, vejamos. Ao considerarmos o Brasil no seu período colonial ( sec.

81 Idem, ibid., p. 40

82

XVI/XVIII) a grande maioria dos estudiosos da Educação Brasileira82, invariavelmente, tem ressaltado a importância da ação implacável dos jesuítas e da

Companhia de Jesus, desembarcados que foram, junto com Tomé de Souza, no Ano da Graça de 1549, aqui, nestas terras abaixo do Equador.

A Companhia de Jesus, é de conhecimento geral, tinha como uma de suas principais, e confessáveis, finalidades, a conversão dos povos considerados pagãos, finalidade essa que pretendia atender os seus compromissos com a Santa Sé e com o governo português. Desta forma, não titubeava: em cada povoado que chegava

(antigo ou recém-fundado), imediatamente construía uma igreja e uma escola!

No que se refere, estritamente, as suas atividades consideradas como educacionais, os jesuítas, como relata Luiz Antônio Cunha, tinham como principal atividade a catequese dos índios, mantendo, como atividades de suporte da ação missionária, nos centros urbanos mais desenvolvidos, os colégios, que se destinavam ao ensino de primeiras letras, ao ensino secundário e superior, cumprindo, assim, a sua tríplice função, qual seja:

“(...) de um lado, formar padres para a atividade missionária; de outro, formar quadros para o aparelho repressivo (oficiais da justiça, da fazenda e da administração); de outro, ainda, ilustrar as classes dominantes no local, fossem os filhos dos proprietários de terras e de minas, fossem os filhos dos mercadores, metropolitanos aqui residentes.”83

82 Destaco Luiz Antônio Cunha, Fernando Azevedo, Otaíza Romanelli, Maria Luíza Ribeiro, Demerval Saviani, Ester Buffa, Vanilda Paiva, Paolo Nosella, Maria M. C. Carvalho, Jamil Cury, Anísio Teixeira, dentre tantos outros estudiosos brasileiros. 83 Cf. Luiz Antônio Cunha, A universidade temporã: o ensino superior da Colônia a Era Vargas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p. 23-24

83

Desta forma, ressaltando que não se tem registro de nenhum índio ou negro, nessa época, que tenha se ordenado padre, como é possível inferir das afirmações de Cunha, a escola jesuítica era uma agência de propagação e consolidação das

“ideologias e práticas letradas”, inerentes à classe dominante, aos membros da burocracia estatal e da própria Companhia, na medida que as faziam constar, obrigatoriamente, dos currículos desenvolvidos em seus colégios — destinados ao público externo — e seus seminários — internatos destinados à formação de seus sacerdotes.

A colonização, sabemos, fundamentalmente se constituiu em uma ação de gerenciamento de uma economia emergente para complementar a da metrópole.

Nesse processo, a escola, comandada pelos jesuítas até 1759, quando foram expulsos de Portugal e de suas colônias, era uma agência a serviço daquele país na exploração da Colônia, organização essa que teve, na pessoa do Pe. Manuel da

Nóbrega (um “gênio político” e “grande apóstolo da instrução”, na opinião de

Fernando de Azevedo), um dos mais importantes arquitetos de um plano de ação destinado a “levantar sobre os alicerces do ensino toda a obra de catequese e de colonização”.84

Uma escola com tais finalidades, certamente, não apenas atendia as expectativas da comunidade político-econômica européia, em geral, como do governo português, em particular, e dos membros de suas classes privilegiadas, pois como afirma Fernando de Azevedo, os jesuítas não tinham “vocação” para com a educação popular (primária ou profissional) mas sim, entusiasticamente, para “com a educação das classes dirigentes, aristocrática, com base no ensino de humanidades

84 Cf. Fernando de Azevedo, A cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura no Brasil, São Paulo, Edições Melhoramentos, 1964, p. 504

84

clássicas”85 , mas que também, por outro lado, atingindo ao mesmo tempo índios, brancos e mestiços, foi, essa escola, o locus do processo de imposição de uma certa “unidade política de uma nova pátria”.86

Afirma ainda, José Veríssimo, que foram os jesuítas os criadores do ensino público no Brasil e, por dois séculos lideraram, quase que absolutos, sua manutenção, amparados que eram pelos Regimentos entregues à Tomé de Souza, antes de sua viagem à Bahia, por D. João III, nos quais constava, expressamente, a orientação de que a conversão dos indígenas, habitantes da Colônia, far-se-ia pela catequese e pela instrução.87 No caso do Brasil, certamente, origina-se aí, nessas ordens reais, a constituição da escola como uma agência de divulgação e inculcação dos valores das classes dominantes.

Essa “vocação” dos jesuítas para as coisas da elite, apontada por Azevedo, pode ser comprovada ao tomar-se conhecimento de que os colégios eram freqüentados por filhos de funcionários públicos, de Senhores de Engenho, de criadores de gado, de mecânicos e, já no século XVIII, também por filhos de mineiros, clientela essa que, para Luiz Antonio Cunha, “representava no Brasil a nobreza e a burguesia européia”, mesmo que, tais classes, não tivessem a mesma origem e formação européia, num Brasil ainda embrionário.88

Submetida, como afirma Eduardo Prado, a um “método de colonização católico”89, a antes denominada Ilha de Vera Cruz, alicerçada que era num modelo

85 Idem, ibid, p. 533 86 Idem, ibid., p. 507 87 Cf. Ramos de Carvalho, Ação missionária e educação, in: Hollanda, S. B. História geral da civilização brasileira, tomo 1, vol. 1, livro 3°, São Paulo, Diefil, 1961, p. 138 e, do mesmo autor, ver A educação e seus métodos, na mesma obra organizada por Hollanda, tomo 1, vol. 2, livro 2°, p. 76-87 e, com maior riqueza de detalhes, As reformas pombalinas da instrução pública, Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, São Paulo, 1952 88 Cf. Luiz Antônio Cunha, A universidade temporã: o ensino superior da Colônia a Era Vargas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p. 29 89 Cf. Américo Jacobina Lacombe, A igreja no Brasil Colonial, in: Hollanda, S. B. História geral da civilização, brasileira, tomo 1, vol. 2, livro 3°, cap. I, p. 75

85

econômico agro-exportador dependente90, e funcionando como uma receita orçamentária complementar de Portugal, possuía apenas o complexo de escolas estruturado pelos jesuítas como a única coisa, na visão de Jacobina, “realmente organizada” por estas bandas. No entanto, certamente por sua organização e função de propagação da ideologia dominante da época, tal complexo de escolas foi o primeiro alvo a ser “torpedeado” pela metrópole, tendo em vista as mudanças que surgiram nos contextos político e econômico internacional, as quais atingiram diretamente Portugal em suas relações com os outros países e, também, com a

Igreja. É, então, confiada ao Marquês de Pombal (na segunda metade do século

XVIII) a condução do processo de modernização das terras lusitanas, processo esse fundamentado em uma política que, como atesta Luiz Antonio Cunha, visava, principalmente, implementar medidas que proporcionassem a implantação da industrialização no país e nas colônias (como já acontecia na Inglaterra), de forma que fosse possível, ao obter recursos econômicos de grande magnitude, sair do pesado jugo bretão.91

Nesse cenário, tendo como um dos itens principais das diretrizes pombalinas a “substituição de ideologias orientadas para uma sociedade feudal”, como era a da

Igreja, por outras que fossem direcionadas ao desenvolvimento de uma sociedade capitalista, os jesuítas, mesmo que tivessem tido grande participação no processo de tornar a população da Colônia submetida a uma mesma Coroa e a uma mesma fé, foram o principal obstáculo a ser removido, dando espaço ao surgimento de uma escola que, utilizando-se de um outro método de ensino, pudesse atender aos

90 Cf. Maria Luíza Santos Ribeiro, História da educação brasileira: a organização escolar, Campinas, Autores Associados, 1993 91 Cf. Luiz Antônio Cunha, A universidade temporã : o ensino superior da Colônia a Era Vargas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p. 39

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interesses da burguesia, principalmente no que se referia “à formação de uma força de trabalho dotada das qualificações necessárias”.92

A partir do momento da expulsão dos jesuítas, mesmo que não houvesse uma política escolar a ser implantada por Pombal, a escola da Colônia deveria atender às necessidades básicas da burocracia estatal, quais sejam: a existência de funcionários que soubessem ler e escrever, em português, e dominassem o cálculo aritmético, bem como poder completar os seus quadros administrativos com canonistas, advogados, médicos, filósofos e teólogos, funcionários esses que deveriam possuir uma formação prévia em humanidades, a qual deveria ter, obrigatoriamente, o latim como disciplina básica.93 Porém, como interpreta Fernando de Azevedo, não houve nenhuma medida político-administrativa eficaz objetivando preencher o espaço criado com a “destruição pura e simples de todo o sistema colonial do ensino jesuítico” ou, pelo menos, alguma ação que pudesse “atenuar os efeitos ou reduzir a sua extensão”94. Para o autor, a desorganização e a decadência do ensino colonial se dá, justamente, no período compreendido entre 1759, a partir da saída dos jesuítas, até 1808, com a chegada de D. João VI.95

Com Napoleão em seus calcanhares, transferindo a sede do governo português para cá, chega, em clima de festa, D. João VI e, com ele, acreditam os reinóis que o acompanhavam e grande parte dos colonos que o recebiam, é a própria Europa que une o seu frio e cinzento território às ensolaradas e coloridas costas brasileiras, desejando fazer daqui “um imenso Portugal” ! Na bagagem, dentre outras novidades para a Colônia, traz a Escola Superior, como uma das estratégias para a consolidação desse Reino-Tropical, sendo criados, logo de início,

92 Idem, ibid. p. 47 93 Idem. 94Cf. Fernando de Azevedo, A cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura no Brasil, São Paulo, Edições Melhoramentos, 1964, p. 553 95 Idem, ibid., p. 539

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os cursos que, de imediato, pudessem responder à demanda de formação de

“burocratas para o Estado e especialistas na produção de bens simbólicos” para a burguesia e, como subproduto, que pudessem formar os profissionais liberais.96

Desta forma, para atender às necessidades apresentadas pelo hospitais militares, criou-se os cursos de medicina e cirurgia, para supri-las de médicos e cirurgiões; para corresponder à demanda de consumo das classes dominantes, foram criados os cursos superiores de desenho, história e música; para atender às necessidades relacionadas à questão estrutural e econômica, criaram-se os cursos de mineração, química e construção, no âmbito da Academia Militar, bem como outros destinados a suprir à burocracia do Estado, tais como o de arquitetura, desenho técnico, economia política e agronomia. Como é possível notar, mantêm- se, em sua estrutura básica, o sentido da escola para as classes dominantes, alicerçado na manutenção das relações de poder para a dominação das classes populares.

O positivismo de Comte chega por intermédio de brasileiros que estudaram na Escola Politécnica de Paris se estabelece como a base da ideologia dominante, conforme relata Cunha, e, com a participação também de professores das escolas secundárias, agrava-se a resistência às doutrinas propagadas pela Igreja Católica, surgindo também severas críticas aos regimes monárquico e escravocrata.97

A escola, não estando mais, sua organização, dentre as atribuições administrativas da Igreja e sim sob a responsabilidade e gerenciamento da burocracia estatal, desde a época pombalina, cada vez mais, sob influência dos positivistas, vai cedendo ao processo de sua secularização, seguindo assim os interesses não apenas do Estado, como também da burguesia industrial e mercantil.

96 Cf. Luiz Antônio Cunha, A universidade temporã : o ensino superior da Colônia a Era Vargas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p. 62 97 Idem, ibid., p. 63-64

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Como ressalta Fernando de Azevedo, “quase toda a obra escolar de D. João VI, impelia pelo cuidado de utilidade prática e imediata, pode-se dizer que foi uma ruptura completa com o programa escolástico e literário do período colonial.”98

Bonaparte é derrotado e confinado, no meio do Atlântico, na ilha de Santa

Helena. O quadro da política internacional é alterado, quadro esse que não contou com uma tinta portuguesa mas que, no entanto, permitiu o retorno, triunfal, de D.

João VI, reinstalando em Lisboa a sede de seu Reino. E quais modificações podem ser registradas como importantes com relação a escola e seu(s) significado(s) ?

Mesmo sendo, no Império, a religião católica a religião de Estado (como determinava a Constituição da época, devendo, até, os funcionários do governo, dentre eles os professores, prestar juramento de fé católica e, com este ato, ficarem sujeitos a serem punidos por perjúrio), na escola secundária ( de “estudos menores”) ainda continuava prevalecendo como predominante o caráter religioso, porém, quanto à escola superior ( de “estudos maiores” ), estatal, muitas foram criadas totalmente secularizadas, tornando-se, tal fato, um marco importante para o futuro sistema de ensino independente que, nesta oportunidade, era gerenciado pelo

Estado Nacional, conforme interpreta Luz Antonio Cunha. Importante também registrar o surgimento da escola particular que, opondo-se a escola estatal, vinha como o resultado da transformação da escola religiosa que agora se abria para aqueles que não desejavam seguir a carreira religiosa.99

Após o já bem conhecido “Grito do Ipiranga”, no Império, a escola, conforme afirma Fernando de Azevedo, não estava voltada à educação das classes populares, mas sim à educação aristocrática destinada à elite, pois era para os ginásios e

98 Cf. Fernando de Azevedo: A cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura no Brasil, São Paulo, Edições Melhoramentos, 1964, p. 563 99 Cf. Luiz Antônio Cunha, A universidade temporã : o ensino superior da Colônia a Era Vargas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p. 77-78

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escolas superiores para onde se encaminhavam os “rapazes do tempo com possibilidades de fazer os estudos”. A escola, principalmente a superior, na interpretação do autor, passa a desempenhar um papel selecionador, de “agência de seleção e de distribuição”, contribuindo, assim, para a crença no mito da ascensão social por intermédio da escolarização, de um título, que funcionaria como uma chave-mestra para abrir, dentre outras, as portas de acesso aos cargos administrativos e às atividades políticas, continuando, no entanto, a “preparar não para a vida, em suas manifestações diversas, mas somente para as profissões liberais”. 100

Enfatizando esse sentido elitista da escola, Valnir Chagas, ao interpretar o desenvolvimento da educação brasileira no Império, ressalta que nessa união entre a maçonaria e a Igreja católica, que caracterizou esse período histórico de nossa formação social, à escola era atribuído um “sentido ornamental”, destinada que era

“à mera qualificação das elites” e por sofrer fortes influências do contexto sócio- cultural, contexto esse que apresentava uma vida cultural que, mesmo com as tendências liberais-positivistas da época,

“seguia como antes o modelo europeu, já então predominantemente francês, e conservava o mesmo sentido bacharelesco e retórico de suas origens. Pouca ciência experimental, nenhuma técnica, muito verbalismo; poucos Mauás, muitos letrados”.101

100 Cf. Fernando de Azevedo, As origens das instituições escolares, in: A cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura no Brasil, São Paulo, Edições Melhoramentos, 1964, p. 572-577 101 Cf. Valnir Chagas, Educação brasileira: o ensino de 1° e 2° graus : antes, agora; e depois ?, São Paulo, Saraiva, 1982, p. 14

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É possível inferir, dos estudos dos vários autores consultados102, que no

Império, mesmo de forma velada, é atribuído à escola o sentido de estabelecimento comercial, com maior ênfase agora do que na Colônia e com D. João VI. Tal fato se faz notar pelos esforços constantes para que fosse obtida a autorização definitiva para o funcionamento da escola particular, autorização essa que vem por intermédio da Lei de 10 de dezembro de 1823. Permitindo grande disseminação dessas escolas

(ou das “aulas avulsas”, no ensino secundário), essa lei autorizativa será ratificada pelos dispositivos legais do Ato Adicional à Constituição do Império, de 1834, o que, na interpretação de Maria José Werebe, “consumou o desastre para o nosso sistema educacional”.103

O Império deixa como herança, segundo Maria Werebe, uma escola primária, precaríssima; uma escola secundária que, mantida em sua maior parte por particulares, destinava-se às classes dominantes; uma escola superior desvirtuada de seus objetivos. Na visão da autora, nesse período,

“em todos os níveis da nossa organização escolar ministrava-se um ensino pobre de conteúdo, desligado da vida, sem qualquer preocupação filosófica ou científica e que somente conseguiu fazer de alguns, indivíduos alfabetizados, de poucos, conhecedores de Latim e Grego, e, de pouquíssimos, ‘doutores’.”104

102 Vide bibliografia 103 Cf. Maria José Garcia Werebe, A educação, in: Hollanda, S. B. História geral da civilização brasileira, tomo 2, vol. 4°, cap. III, p. 376-377. Ver também sobre essa questão, Afranio Peixoto, Noções de história da educação, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1933, p. 219-235 104 Idem, ibid. p. 382-383

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Nada parecida com a bela e jovem mulher que, pelo desenho, pintura ou escultura, querem, ainda, simbolizar, chega, meio que atabalhoadamente105, a

República, tão esperada por alguns e fruto de um golpe de Estado arquitetado, principalmente, por Rui Barbosa (um liberal), Benjamim Constant (um positivista) e

Deodoro da Fonseca (um monarquista magoado). Dentre os principais problemas, a serem enfrentados pelo novo Regime, e as mais calorosas discussões, nas quais se confrontavam as diferentes correntes do pensamento político-econômico da época, encontrava-se a educação.

Mas por que a educação e a escola tornaram-se um tema importante nas discussões e reivindicações surgidas logo após Deodoro, no Campo de Santana, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, ter anunciado o novo regime? Conforme avalia Luiz Antônio Cunha, trata-se de uma decorrência da necessidade, que no momento se fez imperiosa, de aumentar o número de trabalhadores com alto nível/grau de escolaridade, bem como pela influência, crescente, do positivismo; decorre, também, do fato que tanto a burocracia pública quanto a privada, fizeram crescer a demanda por profissionais que, para desempenhar as novas funções, deveriam ser escolarizados; os latifundiários, por sua vez, desejavam filhos

“doutores”, tendo em vista as questões ligadas à projeção política e distinção familiar; e, por outro lado, os trabalhadores também viam na escola um meio de seus filhos ingressarem na segura carreira burocrática.106 Sendo assim, já na Primeira

República, pode-se afirmar, começa a se delinear dois tipos diferentes de escola para clientelas também diversas, uma escola para a elite e uma escola para a classe

105 Cf. José Murilo de Carvalho, As proclamações da república, Ciência Hoje, Rio de Janeiro, SBPC, vol. 10/n° n59, n° 59, novembro de 1989, p. 26-33 106 Cf. Luiz Antônio Cunha, A universidade temporã : o ensino superior da Colônia a Era Vargas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p. 132-146

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média, destinada à preparação de mão de obra para atender ao mercado de trabalho, da época.

Um outro aspecto importante sobre o significado atribuído à escola neste período que, vacilante, se inicia é abordado por Marta Carvalho que, ao realizar o seu estudo sobre as relações da escola com a República, assim afirma ter sido a escola, no imaginário republicano, signo da instauração da nova ordem, arma para efetuar o Progresso”. No entanto, segundo a mesma autora, a escola, sendo ainda um privilégio de poucos, passaria a “ser considerada uma ‘arma perigosa’, exigindo a redefinição de seu estatuto como instrumento de dominação”107

Pela importância atribuída à escola, enquanto um instrumento de instauração da nova ordem, não apenas foram muito valorizadas as grandes festas escolares destinadas à comemoração da fundação de cada estabelecimento de ensino, como foram superdimensionados e supervalorizados os próprios edifícios escolares, os quais pela sua imponência mais pareciam verdadeiros monumentos, como por exemplo o prédio do Instituto de Educação da cidade de São Carlos (SP) que, construído entre 1913 e 1915 e inaugurado em 1916, como Escola Normal Superior, com alguns metros cúbicos de cimento a mais em sua estrutura, poderia ser comparado ao que foi erigido, entre 1885 a 1911, na Praça Veneza, em Roma, em homenagem a Vittorio Emanuele II, principalmente pelo impacto que deve ter causado na São Carlos do início do século passado. Têm-se, assim, uma escola que não apenas deveria iluminar, aos seus alunos, “o caminho promissor” do conhecimento e do saber, mas que também deveria ser vista e, como afirma Marta

Carvalho, surgem “os edifícios necessariamente majestosos, amplos e iluminados, em que tudo se dispunha em exposição permanente”. Era necessário, na concepção

107 Cf. Marta M. Chagas de Carvalho, A escola e a República, São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 7

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da autora, que tudo fosse “dado a ver de modo que a conformação da escola aos preceitos da pedagogia moderna evidenciasse o Progresso que a República instaurava”108.

O progresso torna-se, cada vez mais, a meta a ser conquistada, impreterivelmente, e a escola, portanto, deveria realizar “um ensino inteiro, completo, de base científica”, por ser uma condição sine qua non para chegar-se à cidadania plena, intenção essa que era entendida como a principal tarefa republicana. Como avalia Marta Carvalho,

“a importação de moldes norte-americanos, com que o darwinista Caetano de Campos anelava implantar não só uma nova escola, mas uma nova sociedade, é homóloga ao movimento de transplantar para o país novas populações, construindo com elas o tão almejado e luminoso Progresso”.109

Muda-se o regime político, cria-se “uma nova ordem”, ambiciona-se uma

“nova escola”, mas esta continua sendo destinada a atender aos interesses das classes dominantes e um privilégio de poucos. Na interpretação de Marta Carvalho, para os contemporâneos de Caetano de Campos, “a escola instituída se exibiria como demarcação de dois universos — o dos cidadãos e dos sub-homens — funcionando como dispositivo de produção/reprodução da dominação social.”110

Nesse dinâmico processo de atribuição de sentidos à escola, é importante ressaltar que, após o importante relatório elaborado, em 1918, por Oscar Thompson, sobre a evolução do ensino público em São Paulo, relatório esse que aponta o

108 Idem, ibid., p. 23-25 109 Idem, ibid., p. 38 110 Idem.

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grande número de crianças analfabetas, as quais, segundo o relator, constituir-se- iam em “elementos negativos do nosso progresso”, um novo perfil do brasileiro passa a ser considerado. De homem letrado, conhecedor da ciência, passa a ser, como afirma Marta Carvalho, “um brasileiro doente e improdutivo, peso morto a frear o Progresso”, um Jeca-Tatu, de Lobato, um caipira que muito pouco conhecia além da cozinha da casa-grande, e, indiscutivelmente, era com ele, apenas, que era possível contar para realizar a nobre e monumental empreitada de “ordem e progresso”, pois os emigrantes, antes considerados uma esperança de aprimoramento da raça, agora eram tidos como uma grande “ameaça ao caráter nacional”. A escola, então, torna-se agora um instrumento indispensável para a alfabetização da população, pois tal tarefa era considerada como “a questão nacional por excelência”, conforme se expressava Sampaio Doria, o ideólogo da

Liga Nacionalista Paulista.

Não houve, no entanto, na década de 20, unanimidade quanto a essa função atribuída para a escola, pois com a fundação da Associação Brasileira de Educação-

ABE, no Rio de Janeiro, em 1924, seus associados entendiam que era preciso valorizar como sua principal atribuição o desenvolvimento do que denominavam de

“educação integral”, combatendo radicalmente o que chamavam de “fetichismo da alfabetização intensiva”. A escola, então, deveria, conforme o discurso da ABE, transformar esse homem “doente e indolente, apático e degenerado” em um brasileiro “laborioso, disciplinado, saudável e produtivo”111. Alfabetizar era importante, porém a escola deveria realizar um processo de “educação do sentido, dos gestos, do corpo e da mente”112, isto é, de “educação integral”, educação essa que, na óptica de Fernando de Azevedo, criaria uma nova humanidade que, por

111 Idem, ibid., p. 41-56 112 Idem, ibid, p. 59

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intermédio da escola, estabeleceria, definitivamente, a paz tão almejada por todos e, conforme Lourenço Filho, seria “um instrumento indispensável ao progresso social do país”113. Uma educação a ser desenvolvida, conforme preconizava A. A. Sodré ao tratar do problema da educação brasileira, em “uma escola moderna que instrui e moraliza, que alumia e civiliza”114, ou ainda, como queria Fernando Magalhães (um dos componentes da ala católica da ABE), numa escola que, pela ação de professores “devidamente instruídos no culto às tradições nacionais — dentre elas a religião católica”, poderia ser concebida como “uma escola de patriotismo”115.

Nessas concepções tidas como progressistas, nos anos que antecedem a

Segunda República, uma expressão muito veiculada é de singular importância no processo de atribuição de sentidos à escola, qual seja: organização do trabalho que, aplicada à escola, segundo Carvalho, “designa medidas de racionalização do trabalho escolar segundo o modelo de fábrica, constituindo-se como crivo principal da incorporação das idéias da ‘moderna pedagogia’ : sua maior eficiência em maximizar resultados com o mínimo de dispêndio de esforço”116.

A escola, então, passa a ser concebida como uma fábrica, como uma usina, que por intermédio de testes e da constituição homogênea das classes, dentre outros aspectos, se utilizava de procedimentos fundamentados no que Lourenço

Filho denominou de “taylorismo educativo” e que permitiam, por essa forma de organizar o trabalho da escola, como interpreta Marta Carvalho, “estruturar o sistema escolar em moldes que refletissem e reproduzissem uma sociedade rigidamente hierarquizada, formando ‘elites’ condutoras e ‘povo’ conduzido”.117

113 Cf. Marta Maria C. Carvalho, Notas para reavaliação do movimento educacional brasileiro, Cadernos de Pesquisa, São Paulo (66) : 4-11, agosto 1988, p. 6 114 Idem, ibid, p. 7 115 Idem, ibid. , p. 8 116 Idem, ibid., p. 9 117 Idem, ibid. p.10

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Os sentidos atribuídos à escola, nesse período, segundo a autora, podem ser sintetizados como se segue:

• para a escola primária — como um instrumento para a formação de um cidadão trabalhador, ordeiro e saudável;

• para a escola secundária — sendo de caráter propedêutico para a escola superior, seria a agência formadora de uma elite que podemos denominar de “intermediária”, pois deveriam liderar grandes massas sem necessitarem de grande compreensão de grandes questões, atuando como elo entre a elite universitária e o povo (que, por certo, se restringiria a escola primária), buscando, nessa relação, a hegemonia da ideologia das classes dominantes;

• e, para escola superior — a formação da “nata da sociedade”, da elite propriamente dita, que seria a responsável pelos grandes programas (políticos, sociais e econômicos) para o desenvolvimento da nação.

Na visão de Jorge Nagle, tendo sua origem na Reforma Benjamim Constant

— em 1890, com princípios positivistas, de âmbito federal, atingindo a escola secundária — e na Reforma Caetano de Campos — em 1892, com princípios democrático-liberais, de âmbito estadual, voltada para a escola primária e normal — o sentido atribuído à escola é o de ser ela um dos principais aparelhos que deveriam atuar no processo de “republicanização da República”, desenvolvido no período de

1915 a 1917, principalmente.118

Alicerçado, também, no que Nagle denomina de “entusiasmo pela educação” e “otimismo pedagógico”119, à escola foi atribuído o significado de ser uma instituição

118 Cf. Jorge Nagle, A educação na Primeira República, in: Hollanda, S. B. História geral da civilização brasileira, tomo III, vol. 3, livro 3°, capítulo VII, São Paulo, Diefil, 1961, p. 261-262 119 Idem, Ibid. p. 262-264

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destinada à combater a ignorância reinante no país, pois a “educação do povo é a base da organização social”, por ser um processo de regeneração do homem e, conseqüentemente, da sociedade; uma instituição que, seguindo os princípios e filosofia da corrente educacional denominada de “Escola Nova”, deveria colocar o aluno, “o educando”, no centro das atenções e das atividades, tendo em vista os objetivos de “ensinar a viver em sociedade e trabalhar em cooperação”, como declarou Fernando de Azevedo, ao tratar dos propósitos dessa “nova escola”. Nesse mesmo contexto delineado por Nagle, também é importante registrar o sentido de agência voltada ao processo de nacionalização e de regionalização, chegando-se até a pensar a escola como “um instrumento de fixação do homem no campo”, como uma estratégia para a “formação de uma mentalidade de acordo com a ideologia do

Brasil, país essencialmente agrícola”.120

Dentre as polêmicas121 existentes com relação ao Movimento da Escola Nova no Brasil (instalado no período de 1920 a 1930, movimento esse fundamentado nas idéias liberais que vinham, principalmente dos Estados Unidos da América do Norte, tendo como um de seus principais mentores, o conhecido John Dewey e, como seus principais divulgadores no Brasil, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Lourenço

Filho), cabe ressaltar o sentido de escola que orientou a experiência pioneira, coordenada por Anísio, no então Distrito Federal, quando, na interpretação de

Nagle, a escola passa a ter “uma nova finalidade pedagógica e social”, significado esse construído sobre a base dos princípios de “escola única”, “escola do trabalho” e

“escola-comunidade”.122

120 Idem, Ibid., p. 272-273 121 Dentre outros autores, ver Dermeval Saviani, Escola e democracia, São Paulo, Cortez/Autores Associados, 1986, p. 46-68 e Clarice Nunes, História da educação brasileira: novas abordagens de velhos objetos, Teoria & Educação, Porto Alegre, Pannonica Editora, n° 6, 1992, p. 151-182. 122 Cf. Jorge Nagle, op. cit. , p. 286

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No princípio “escola unitária”, está implícita a concepção social-democrata de que a escola, a educação, deva ser uma só, para todos, obrigatória e gratuita, sendo assim “uma poderosa instituição de ‘aprendizagem da vida coletiva’, de ‘realização da unidade nacional’.” O princípio da “escola trabalho”, tendo em vista que, no entendimento da época, a organização social é o principal suporte para o desenvolvimento da sociedade, faz com que a escola tenha a atividade como um indispensável meio de educação, de aprendizagem, e se transforme “num instrumento de reorganização econômica”. Finalmente, o princípio “escola- comunidade”, valorizando sempre o trabalho cooperativo, fundamenta a ação, já citada, de “ensinar a viver em sociedade e trabalhar em cooperação”.123

A escola, na ótica de Cury, chega até a Segunda República, ainda como um

“ornamento cultural”, como um caminho de acesso aos cargos da burocracia estatal e como forjadora de profissionais liberais, num contexto onde “a educação atende exclusivamente as elites”, e os tradicionais setores da oligarquia se juntam à Igreja fazendo com que, por intermédio da Revolução de 30, esta se torne uma das principais peças, a favor do Estado, no jogo político liderado por Getúlio Vargas.124

Necessário se faz relembrar que nesse contexto político-econômico que serviu como pano de fundo para o que ficou conhecido como Era Vargas, ou

Segunda República, duas políticas educacionais surgiram, opondo-se mutuamente.

Uma foi a política educacional liberal que, tendo iniciado sob a liderança de

Fernando de Azevedo, apresentou uma tendência elitista, mas que a partir de 1932, começou a ceder espaço a um liberalismo igualitarista, liderado, no âmbito da educação, por Anísio Teixeira, a qual coadunava-se com os interesses das classes

123 Idem 124 Cf. Carlos Roberto Jamil Cury, Ideologia e educação brasileira: católicos e liberais, São Paulo, Cortez/Autores Associados, 1984, p. 16-18

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média e trabalhadora. A outra, implantada a partir de 1937, foi uma política educacional totalitária, seguindo as orientações fascistas e parafascistas oriundas da

Europa, divulgadas no Brasil por intermédio da Ação Integralista Brasileira, liderada por Plínio Salgado, e que contou, no campo da educação e da escola, com a importante participação de Francisco Campos.

Com esse cenário, Cury interpreta, considerando a visão da Igreja, a visão do

Estado e a visão dos Pioneiros da Escola Nova, os sentidos atribuídos à escola, da forma que, resumidamente, ressalto:

Do ponto de vista da ideologia católica, a escola, sendo uma instituição complementar à família, naturalmente, não deve divergir desta, pois se assim o fizer, estará prejudicando o ser humano. Desta forma, ao convergi-la aos interesses e valores da família, trará enormes benefícios ao Bem Comum, na medida que, sendo continuação da família, também, “participa da natureza do Estado enquanto coopera com a formação física, intelectual, moral e religiosa da pessoa”. A escola, além de ser um dos veículos de restauração da ordem cristã na sociedade, é, ainda, “o grupo intermediário entre a Família e o Estado e segundo a ordem das coisas ela deve se plasmar de acordo com o modelo da família de preferência ao modelo do

Estado”125

Pelo enfoque da ideologia dos Pioneiros da Escola Nova, a escola é um micro universo que reflete a sociedade na qual se insere, tendo como um de seus mais nobres papéis ser “um instrumento consciente do aperfeiçoamento social inteligente das novas funções”.126

125 Idem, ibid. p. 59-60 126 Idem, ibid., p. 68

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A escola é a base de desenvolvimento da sociedade, uma vez que, sendo um local privilegiado da educação, contribui ao máximo para a realização humana na medida que é “um centro onde se vive e não um centro onde se prepara para viver”127, tendo como tarefa primordial “integrar o indivíduo dentro dos novos fins de formação científica, técnica e democrática, garantindo a formação do espírito, o equilíbrio social e a paz entre os povos”.128

No que se refere, especificamente, à escola pública, concebem os Pioneiros que esta deve ser “o veículo de socialização adaptadora e aparelho de transformação social frente às necessidades da sociedade política”.129

Pela ótica da ideologia do Estado, pós Revolução de 30, a família já não dá conta de mostrar o quão complexo é o processo de formação social, principalmente no que se refere às questões de ordem econômica, e assim, a escola torna-se a “única agência educacional” competente para tal.130

O fim último da escola, na concepção da burocracia estatal, como declara

Francisco Campos na Exposição de Motivos do Decreto que reintroduziu, em 1931, o ensino religioso nas escolas públicas, “é não só instruir mas educar, não só habilitar técnicos senão também formar homens que, na vida doméstica, profissional e cívica sejam cumpridores de todos os seus deveres”.131

Sintetizando os significados atribuídos à escola, nesse período, e concordando com a interpretação de Luiz Antonio Cunha, temos uma escola que, para os liberais

127 Idem, ibid., p. 70-89 128 Idem, ibid., p. 90 129 Idem, Ibid., p. 91 130 Idem, Ibid., p. 100-104 131 Idem, ibid., p. 108

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“é vista como tendo a função de despertar e desenvolver talentos e as vocações dos indivíduos na medida de suas características inatas, de modo que eles possam se posicionar na sociedade conforme suas aquisições e não conforme a herança de dinheiro ou títulos”.132

Para os adeptos do totalitarismo, a escola é um aparelho que deve realizar um processo de educação escolarizada, chamada de educação escolar, que seja

“um dos meios pelos quais os intelectuais fazem ‘irradiar’ sobre todo o povo as idéias e aspirações dele mesmo sublimadas, vale dizer, é um dos mecanismos, se não o único, pelo menos o mais sistemático de inculcação da ideologia do Estado autoritário”.133

Alegando ser “a única resposta para a crise criada pela imanência de uma guerra civil e da guerra mundial”134, Getúlio institui o Estado Novo. O modelo econômico nacional-desenvolvimentista, com base na industrialização, vai se expandindo e a escola profissional é o sentido mais importante atribuído no período, que, sendo destinada às classes “menos privilegiadas” (conforme determinava o Art.

129 da Constituição de 37), é apontada como o caminho mais eficaz para a preparação de mão de obra, tendo em vista o mercado capitalista em expansão.

132 Cf. Luiz Antonio Cunha, A universidade temporã : o ensino superior da Colônia a Era Vargas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p. 229 133 Idem, ibid., p. 250 134 Cf. Darcy Riberio, Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu, Rio de Janeiro, Guarnabara Dois, 1985, versículo 893

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Ainda como dispositivo Constitucional, as indústrias e sindicatos deveriam, obrigatoriamente, criar escolas para que os filhos de seus funcionários e filiados tivessem o aprendizado nas respectivas áreas de especialização.

À escola é atribuído o significado de formadora de mão de obra, pois, dado o início do período de mudanças para um modelo econômico que deveria substituir nossas importações por produtos fabricados no país, tornava-se necessário, como afirmou Gustavo Capanema (então Ministro da Educação), criar, com os jovens que freqüentavam essas escolas, um “exército de trabalho” em benefício da nação.135

É importante ressaltar que, como interpreta Freitag, a escola profissional, técnica, não interessava aos jovens da classe dominante — constituída pela aristocracia rural, pela burguesia financeira e pela, recém-surgida, burguesia industrial, em fase de ascensão —, pois, para eles havia as “escolas de elite”, em sua grande maioria, particulares. Não interessa, também, aos que se enquadram nas camadas médias e baixas da burguesia e da pequena burguesia, que estão na escola secundária como uma estação obrigatória de uma caminhada até conseguir um título acadêmico qualquer e “ascender” socialmente. Aos jovens da zona rural, nem passa por suas cabeças uma possibilidade dessa natureza ... Nessas circunstâncias, são, pois, os jovens da classe operária os escalados para compor esse “exército industrial de reserva”. Desta forma, a escola profissional, a escola técnica, torna-se, falsamente, “a única via de ascensão permitida ao operário” ; torna-se, “a escola para os filhos dos outros”!136

Findo o Estado Novo, com a deposição de Vargas, em 1945, e terminada a

Segunda Grande Guerra, inicia-se uma fase “populista-desenvolvimentista” que, para Barbara Freitag, alicerçando-se em uma instável aliança entre o empresariado

135 Cf. Barbara Freitag, op. cit., p. 51 136 Idem, ibid., p. 53

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nacional e setores populares, interessados em maior participação na vida política e econômica do país, se estabelece face a tentativa de combater as oligarquias tradicionais e de tentar manter um modelo econômico agonizante, que se esgota nos primeiros anos da década de 60137. Tem início, sorrateiramente, a época do know- how, das multinacionais, dos “50 anos em 5”, do gerenciamento da economia pelo denominado “modelo associado de desenvolvimento econômico”.

No período compreendido entre 1945 e 1964, a escola brasileira já se encontrava organizada em um sistema educacional, em um sistema de ensino, um pouco mais estruturado do que anteriormente estava, clara e explicitamente subdividido em subsistemas federal, estadual e municipal. Após um processo decisório turbulento, têm-se uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sancionada em 1961, que mesmo atribuindo à escola o sentido de ser uma instituição neutra e igualitária, esta vem a selecionar os “melhores alunos” conforme critérios relativos ao seu “nível de inteligência”, sua capacidade de trabalho, seus níveis de desempenho etc. etc. etc. Desta forma, conforme interpreta Freitag, a escola — tanto a primária, quanto a escola secundária e a superior —, enquanto um aparelho de reprodução da ideologia da classe dominante, “não só reproduz e reforça a estrutura de classes, como também perpetua as relações de trabalho que produziram essa estrutura ou seja, a divisão de trabalho que separou o trabalho manual do trabalho intelectual”.138

A partir de 1964, com o golpe militar, com a “revolução de 1° de abril”, a burguesia nacional se submete, sem o menor constrangimento, à burguesia internacional, a fim de, protegidos pelas armas dos militares, manter seus interesses e privilégios de classe, fazendo deste país, dentre outras “mudanças necessárias”,

137 Idem, ibid., p. 54-73 138 Idem, ibid., p. 66

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um mar de “altas e atuais” tecnologias. O Estado, definitivamente, assume o comando das decisões quanto à estrutura, funcionamento e objetivos da escola no país, em face dos interesses das classes dominantes, no que se refere, fundamentalmente, à promoção do desenvolvimento capitalista internacional. A escola, como concebe Freitag,

“foi, por isso, totalmente reestruturada e redefinida para funcionar em toda a sua eficácia nas várias instâncias como divulgadora da ideologia dominante, como reprodutora das relações de classe, como agente a serviço da nova estrutura de dominação e como instrumento de reforço da força de trabalho.”139

Nessa rápida recordação dos principais sentidos de escola, prevalecem, sem dúvida, aqueles que a instituem como um instrumento, um aparelho, um mecanismo, uma agência de reprodução dos interesses e privilégios das classes dominantes, de reprodução das relações sociais de uma sociedade capitalista. No entanto, como afirma Antonio Joaquim Severino, “o esforço do homem como sujeito de práxis social e como agente da história é requerido para a transformação das relações do sistema social humano”140. Sendo assim, surgem, principalmente nas

últimas décadas do século XX, outros sentidos que a significam, de uma maneira ou de outra, como uma importante organização humana no processo de contra- hegemonia, de contra-ideologia, dentre os quais, a seguir, destaco os que julgo mais relevantes no momento.

Paolo Nosella, admitindo que ainda prevalece a dicotomia escola secundária/superior, para a elite, e escola primária/profissional, para as classes

139 Idem, ibid., p. 129 140 Cf. Antonio Joaquim Severino, Educação, ideologia e contra-ideologia, São Paulo, EPU, 1986, p. 97

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trabalhadoras141, é um dos entusiastas mais vibrantes do sentido de “escola unitária” atribuído àquelas instituições que têm como eixo estruturador de seu currículo o binômio “trabalho social moderno”/“homem trabalhador em busca de liberdade para todos”142. Para o autor, que não desconsidera a existência predominante da escola da burguesia, a escola unitária é aquela

“onde se ensina a radicalização e a universalização do processo de liberdade do operário e do assalariado, a partir do estudo da fábrica, da máquina moderna e da industrialização em geral concebidas histórica e politicamente; isto é, concebidas como momento histórico de evolução das forças materiais de produção e como crítica à atual relação de prioridade que elas representam e que hoje constitui um verdadeiro bloqueio da libertação universal do homem”143.

Na intenção de chegar à compreensão do fenômeno escola, a partir da reflexão sobre a própria condição humana, Maria Elisa Ferreira, ao fazer uma leitura considerando a óptica dos paradigmas emergentes (ressaltando o paradigma holístico), concebe que

“a escola não poderá se restringir a mera transmissora de conhecimentos, mesmo que sólidos, perfeitamente definidos dentro de cada área científica. Para se situarem

141 Cf. Paolo Nosella & Ester Buffa, Artes liberais e artes mecânicas: a difícil integração, in: NOSELLA, P. , Qual o compromisso político? Ensaio sobre a educação brasileira pós-ditadura, Bragança Paulista, IFAN-CDAPH : EDUSF, 1998, p. 79 142 Idem 143 Cf. Paolo Nosella, O diretor de escola: como ser mestre-de-obras na construção de uma Torre de Babel, in: NOSELLA, P. , Qual o compromisso político? Ensaio sobre a educação brasileira pós- ditadura, Bragança Paulista, IFAN-CDAPH : EDUSF, 1998, p. 98

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no mundo, no seu mundo, para saberem em que se ater, os jovens precisam estabelecer relações entre as diversas áreas da ciência, entre estas e as tradições e representações culturais e entre tudo isso e suas existências”.144

Finalmente, ainda na direção oposta aos sentidos atribuídos à escola pelas classes dominantes, é importante registrar o significado atribuído à escola como um dos principais instrumentos no processo de formação do homem e da cidadania, processo que dá origem e fundamentação ao crescente número de projetos e programas (muitos deles na esfera governamental)145, que a concebem como

“escola cidadã”. Mesmo que essa questão do exercício crítico da cidadania, e da conquista desta, não seja tão simples como possa parecer, como muito bem abordam-na Ester Buffa e Nilda Teves146, dentre outros autores, destaco, ainda, a concepção de Moacir Gadotti e José Romão que, considerando o sentido de escola cidadã como sendo o resultado de um processo histórico de renovação da educação, afirmam que qualquer escola pode tornar-se cidadã, desde que realize uma concepção de educação voltada para:

• “a formação para a cidadania ativa: (...) a escola pode incorporar milhões de brasileiros à cidadania e deve aprofundar a participação da sociedade civil organizada nas instâncias de poder institucional;

144 Cf. Maria Elisa de Mattos Pires Ferreira, A escola: uma leitura na ótica de paradigmas emergentes, in: SERBINO, R.V. & LIMA GRANDE, M. A. R de (org.), A escola e seus alunos: estudos sobre a diversidade cultural, Piracicaba, UNESP Editora, 1995, p. 132 145 Dentre outros destacam-se os projetos Escola Plural, desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte/MG, no início da década de 1990, e Escola Candanga, proposto pela Secretaria de Educação do Distrito Federal, no período de 1994 a 1998. 146 Cf. Ester Buffa, Educação e cidadania burguesa, In: BUFFA, Ester et. al. Educação e cidadania: quem educa o cidadão?, São Paulo, Cortez, 1999, p. 11-29 e Nilda Teves Ferreira, Cidadania: uma questão para a educação, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993

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• a educação para o desenvolvimento: (...) a educação é condição sine qua non para o desenvolvimento auto-sustentado do País. A educação básica é o bem muito precioso e de maior valor para o desenvolvimento, mais do que as suas riquezas naturais”.147

Para Gadotti, deve-se ressaltar, a escola autônoma é aquela que é “curiosa, ousada, buscando dialogar com todas as culturas e concepções de mundo”, fundamentada que está na compreensão de que pluralismo não se trata de um mero ecletismo, “um conjunto amorfo de retalhos culturais” e sim, um processo de “diálogo com todas as culturas, a partir de uma cultura que se abre às demais”.148

Ao tratarmos dos diversos sentidos atribuídos à escola, certamente, é possível identificar com relativa facilidade que os mesmos também relacionam-se, ainda que não de forma declarada, com outros tantos significados atribuídos à educação.

Mesmo não sendo objeto de preocupação, neste momento, o estudo dos diversos sentidos atribuídos a este fenômeno, deve-se levar em consideração que, sendo a escola o lugar onde, também, o fenômeno da educação acontece e a relevância desta questão para o estudo da escolarização da capoeira, tais sentidos se aglutinam em três abrangentes visões de educação, as quais também permeiam este meu trabalho. São elas:

147 Cf. Moacir Gadotti & José Eustáquio Romão, Escola cidadã: a hora da sociedade, in: BRASIL, MEC/SEED, Construindo a escola cidadã: projeto político pedagógico, Brasília, MEC/SEED, 1998, p. 23 148 Cf. Moacir Gadotti, Escola cidadã: uma escola, muitas culturas, in: BRASIL, MEC/SEED, Construindo a escola cidadã: projeto político pedagógico, Brasília, MEC/SEED, 1998, p. 82

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• uma visão tradicional-modeladora - que, fundamentada nos objetivos e estratégias de uma elite nobre, aristocrática, admite a necessidade de preservar o seu status quo, por intermédio da manutenção do modelo de sociedade existente, e, para tal, modelar o homem conforme os valores e significados dessa mesma elite;

• uma visão moderno-domesticadora - que, tendo em vista os elementos constitutivos da visão modeladora, concebe como necessário impedir as tentativas de acesso à educação e de ascensão das outras classes sociais, admitindo, também, a necessidade de preservar o seu status quo, por intermédio da manutenção no modelo de sociedade e do desenvolvimento de processos de alienação, adestramento e domesticação, principalmente dos homens que constituem as classes populares; e,

• uma visão emergente-emancipadora - que, em oposição às duas outras visões, concebe como fundamental o desenvolvimento da autonomia do homem, de sua emancipação, de seu pensamento crítico, de sua criatividade, de sua participação efetiva na construção do mundo em que está, de seu entendimento de pertencimento a esse mesmo mundo, admitindo a possibilidade de sua transformação149.

Ressalto, ainda, que um dos principais sentidos atribuídos à escolarização é o da institucionalização, ou seja, o ato ou efeito de institucionalizar, principalmente, a educação, o conhecimento, o saber, os valores e atitudes. Importante observar também que, nesse processo, encontramos dois objetivos principais: um deles é a

149 Cf. Cesar Barbieri, Esporte Educacional: uma possibilidade de restauração do humano no homem, Canoas, Editora da ULBRA, 2001

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tentativa de tornar a escola uma organização indispensável à sociedade, não apenas enquanto um estabelecimento de ensino, mas também no que se refere à estrutura e funcionamento dos sistemas escolares, denominados também de

“sistema de ensino oficial” (tanto de caráter público, como privado); o outro objetivo é o de ter a função de estabelecer padrões de interesses e de valor que, na maioria das vezes, são internalizados por todos e, desta forma, como conseqüência, determinam as várias formas de interação e organização social. É importante não esquecer, também, que, conforme concebe Reimer, tal instituição,

“como tutora de um número cada vez maior de pessoas pelas proporções sempre crescentes de seu período de vida, por um número cada vez maior de tempo e interesses, está prestes a juntar-se aos exércitos, prisões e asilos de loucos, como uma das instituições totais da sociedade”150

Pelo exposto, até aqui, é possível identificar que nessa relação entre a instituição e as pessoas que compõem uma determinada comunidade, ou uma determinada formação social, circunstância essa que, como afirma Julieta

Desaulniers, indica ser a escolarização um fato institucional151, os sentidos de escola apresentados podem ser aglutinados em núcleos diferenciados de conteúdo que constituem três visões específicas do fenômeno escola, quais sejam:

150 Cf. Everett Reimer, op. cit., p. 36 151 Cf. Julieta B. Ramos Desaulniers, Instituição e evolução da escolarização, Teoria & Educação, Porto Alegre, Pannonica Editora, n° 6, 1992, p. 97-98

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• uma visão neutro-constituinte — que, fundamentando- se nos pressupostos funcionalistas e estruturo-funcionalistas de sociedade, concebe-a como apartada do contexto social, tendo como papel constituir, criar, formar a sociedade, ao lado de outras instituições, e, tendo como função, contribuir para o equilíbrio e sobrevivência dessa mesma sociedade;

• uma visão sistêmico-reprodutora — que, fundamentando-se na premissa da inexistência de conflitos entre as classes sociais, concebe-a como parte integrante do sistema social, tendo como papel ser um dos aparelhos, mecanismos, instrumentos de manutenção da hegemonia da classe dominante, e, como função, reproduzir os pressupostos e ideologia da sociedade capitalista;

• uma visão estratégico-transformadora — que, fundamentando-se na natureza dialética dos conflitos existentes nas relações sociais, concebe-a como parte constitutiva da sociedade civil, tendo como papel ser um espaço de realização da contra-ideologia da classe dominante, e, como função, participar efetivamente do processo de contra- hegemonia necessário à transformação e recriação da estrutura e funcionamento de nossa formação social.

É oportuno lembrar aqui a interpretação de Paulo Freire, ao fazer a apresentação do estudo dos professores do IDAC, já citado, quando assim coloca a questão sobre o significado da escola:

“enquanto categoria abstrata, instituição em si, portadora de uma natureza imutável da qual se diga é boa, é má, a escola não existe. Enquanto espaço social em que a educação formal, que não é toda

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educação, se dá, a escola na verdade não é, a escola está sendo historicamente. A compreensão do seu estar sendo, porém, não pode ser lograda da compreensão de algo mais abrangente que ela — a sociedade mesma na qual se acha”.152

Ao tratar, principalmente, da questão sobre o que a Escola faz com o que o povo cria, tendo como exemplo a Capoeira, também é preciso ter em mente que, seguindo as palavras de Paulo Freire, acima citadas, e as de Billy Blanco, em epígrafe, “é tudo uma questão de peso e medida, de hora e lugar”, questão essa que, com relação ao fenômeno Capoeira, também, é possível identificar, como mostrar-se-á no próximo capítulo.

152 Cf. Paulo Freire in: Babette Harper et. al., op. cit., p. 8

“A Capoeira é como o mar, as ondas vão e vêm”

Mestre João Grande

CAPÍTULO III

“Conhecemos de perto esse processo de degradação da identidade própria, do recalcamento dos valores, do flagelar a auto-estima, que tem suas falsas compensações, isto é, a ilusão de ser aceito no ‘mundo dos brancos’, especialmente na mídia” Marco Aurélio Luz

O mesmo pé que dança o samba...

“O mesmo pé que dança o samba, se preciso vai à luta: capoeira !”1

É óbvio, hoje, que o Brasil não foi achado, encontrado, muito menos descoberto, mas sim, como de forma apaixonada nos aponta , ele emerge como conseqüência do desenvolvimento de um processo de formação social que tem a sua origem no confronto inicial entre invasores e nativos de Pindorama, processo esse que prosseguindo com a participação, anos mais tarde, de negros africanos, principalmente, instalou-se, com a atuação de “brasilíndios”, “afro- brasileiros”, “neobrasileiros”, brasileiros e de um grande número de homens e mulheres de outras culturas, de outras etnias, de outras nações, que vêm realizando, efetivamente, a sua constante (re)construção2.

Mesmo que, ainda nos dias de hoje, encontrem-se os que, por várias razões, ainda reforcem o mito fundador da visão do paraíso e da origem e constituição de nossa história “como a realização do plano de Deus”3 e os que, pelas mesmas razões, acreditam na “fábula das três raças”4, divulguem-na e dela se utilizem como um dos meios para a busca da consolidação da ideologia dominante, é óbvio, também, que tal processo de formação social não se desenvolve, do seu início até

1 Viola enluarada, Paulo&Marcos Valle, 1968 2 Cf. Darcy Ribeiro, O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1995 3 Cf. Marilena Chauí, Brasil: o mito fundador. Caderno Mais, n° 424, 26 de março de 2000, Folha de São Paulo, São Paulo, Folha de São Paulo, 2000 e, também, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo, Editora da Fundação Perseu Abramo, 2.000 4 Cf. Roberto DaMatta, Relativizando: uma introdução à antropologia social, Rio de Janeiro, Rocco, 1987, p. 67-70

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os dias atuais, na mais perfeita harmonia, como um sonhado congraçamento entre os povos de todo o mundo, como um encontro pacífico entre as diversas etnias e suas respectivas culturas, gerando um contexto de “democracia racial”, como interpreta, equivocadamente, Gilberto Freyre5, contexto esse irreal, no qual, para ele, questões como a do racismo, segregação e discriminação sócio-cultural não têm lugar.

Em todos os períodos, tradicionalmente estabelecidos pelos estudiosos da história desse processo de construção de nossa formação social, encontramos, de uma forma ou de outra, direta ou indiretamente, registros de interpretações que indicam a rica e complexa polissemia que caracteriza as diversas interpretações sobre “o que é” a Capoeira.

Por certo, no processo de ser-no-mundo, realizando o Dasein, definido por

Heidegger, ao qual me referi no primeiro capítulo, é que alguns dos vários sentidos atribuídos, também, à Capoeira vêm, ao longo dos anos (ou melhor, dos séculos), perdendo a sua força e ficando quase que esquecidos; outros revigorando-se e, quase sobrepujando os demais, tornando-se uma referência; e, ainda, outros tantos novos sentidos surgindo, a cada dia que passa, como é possível identificar ao abordar-se as diversas interpretações desse fenômeno.

Como já admitiu Viriato Corrêa, é quase impossível descobrir as origens do fenômeno Capoeira, pois “nasceram com a cidade. Cresceram, aperfeiçoaram-se á

5 Dentre a extensa obra do autor, destacam-se, sobre esse tema, Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso, constantes da bibliografia deste estudo.

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proporção que a cidade foi evoluindo e crescendo”6 e, tampouco, tal tentativa de descoberta está contida dentre os objetivos deste estudo. Ao buscar, porém, compreender o fenômeno Capoeira por intermédio da visão dialético- fenomenológica da relação homem-mundo-fenômeno, tendo em vista fortalecer a concepção materialista-dialética da realidade, faz-se necessário que sejam considerados os diversos sentidos atribuídos a Capoeira, tais como luta, dança, arma, brinquedo, defesa pessoal, atividade criminosa, arte, jogo, esporte, arte marcial, terapia, Educação Física, movimento político-social. Assim, com base, principalmente, nos pressupostos heideggerianos quanto à existência e ao ser-no- mundo e as concepções de Merlau-Ponty quanto à manifestação do fenômeno e ao mundo percebido, vejamos algumas das suas mais significativas perspectivas!

Mesmo que o vocábulo capoeira tenha sido registrado pela primeira vez em

1712, por Rafael Bluteau, em seu “Vocábulo Português e Latino”, apenas é em

“Iracema” (1865) e no “O Gaúcho” (em 1870) que José de Alencar propõe estar a sua origem na Língua Tupi7. Importante ressaltar que, durante esses mais de dezoito anos que, com afinco, dedico-me ao estudo da Capoeira, encontro, até o momento, tal proposição alencariana, como a única unanimidade, nos dias de hoje, existente no Campo da Capoeira.8 “Capoeira é um vocábulo derivado do Tupi”, afirma, convictamente, a grande maioria de seus atores sociais. Além dessa afirmativa, tudo mais é um mar de interpretações que, como tal, nem sempre são convergentes ou banham as mesmas praias, a começar, por exemplo, pela discordância sobre qual

6 Viriato Corrêa, Casa de Belchior, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1936, p. 37 7 Cf. Waldeloir Rego, Capoeira Angola: ensaio sócio-etnográfico, Salvador, Itapuã. 1968, p. 17 8 Ao utilizar o conceito de campo, faço-o seguindo a concepção de Campo Social, de Bourdieu. Para aprofundamento do assunto, os interessados devem consultar, dentre outras estudos, Bourdieu, P. O campo científico, in: Pierre Bourdieu: sociologia, Renato Ortiz (org.), São Paulo, Ática, 1983, p. 122; O mercado de bens simbólicos, in: A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Perspectiva, 1987, p. 99-181; Algumas propriedades dos campos, in: Questões de sociologia, Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983, p. 89-94 e também Carlos Benedito Martins, Estrutura e ator: a teoria da prática em Bourdieu, Brasília, UnB, (mimeo), 1987

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étimo do Tupi teria dado origem ao nosso vocábulo capoeira: seria caa-apuam-era

(Alencar/1865) ? Teria sido có-puera (Baurepaire Rohan/1879) ou caá-puêra

(Macedo Soares/1880) ? Será que não foi caapoêra (J. Barbosa Rodrigues/1890 e

Visconde de Porto Seguro s/d) ou cocûera (Montoya/1640) ou, ainda, kopûera

(Edeweiss/1955) ? Hoje em dia, a origem aceita pela maioria dos estudiosos do assunto é o vocábulo caá-puêra que é formada pela junção de caá — mato, floresta virgem — com puêra — o que foi, o que não existe mais —, donde, conforme define

Macedo Soares, caá-puêra “significa mato virgem que já não é, que foi botado abaixo, e em seu lugar nasceu mato fino e raso”.9

Ainda discorrendo sobre o termo capoeira, Waldeloir Rego apresenta mais duas versões sobre a sua origem, as quais, também, são consideradas, por alguns poucos, como verdadeiras. Uma delas refere-se ao fato de que, conforme afirma

Antenor Nascentes, os movimentos realizados pelos que jogam capoeira são semelhantes aos executados pelo macho de uma ave, do mesmo nome, encontrada em várias regiões do Brasil, ao defender o seu território dos ataques de seus rivais e, assim, preservar a posse de sua fêmea. A outra, advém da correlação feita entre alguns negros que levavam galináceos (capões), em grandes cestas (), para vender no mercado e o jogo, constituído de “exercícios de destreza corporal”, que realizavam enquanto este não abria, ficando, assim, brincando (era essa a intenção inicial) e divertindo-se com tal jogo.

Waldeloir Rego, em seu clássico estudo sobre a Capoeira, referindo-se à questão semântica, ainda apresenta, após a consulta a diversas obras de vários autores, as acepções que se seguem:

9 Cf. Waldeloir Rego, op. cit., p. 17-22

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• espécie de cesto feito de varas, onde se guardam capões, galinhas e outras aves; • local onde fica a criação; • carruagem velha; • tipóia; • termo de fortificação, designando a escavação no fundo de um poço seco, guarnecida de um parapeito com seteiras e de um teto de franchões, sobre que se deita uma grossa camada de terra; • espécie de cesto com que os defensores duma fortaleza resguardam a cabeça; • uma peça moinho; • mato que foi cortado; • lenha que se retira da capoeira, lenha miúda; • uma ave (Odontophus capueira, Spix), também conhecida pelo nome de Uru; • o que pertence ao jogo da capoeira; • indivíduo desordeiro; • ladrão de galinha; • espécie de veado existente no Nordeste; • matuto, indivíduo na capoeira; • espécie de jogo atlético10

Na manifestação do fenômeno Capoeira, mais uma vez o homem e a ação se complementam no processo de ser-no-mundo e essa inter-relação é tão intensa que se encontra, em qualquer das perspectivas de sua origem, a mesma denominação atribuída tanto ao seu praticante como ao próprio fenômeno!

É importante ressaltar, também, que os negros escravos que fugiam de seu cativeiro, buscavam, na maioria das vezes, como seu primeiro abrigo os “capões de

10 Idem, ibid., p. 27-28

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mato” que, por sua constituição, os escondiam de seus donos e capatazes, donde o

“negro fujão” passa a ser chamado como “negro das capoeiras”, “negro de capoeira”,

“negro capoeira”, “capoeira”! Assim define Renato Almeida:

“Quanto ao nome — capoeira — parece uma metonímia. Os negros fugidos à perseguição dos capitães-de-mato, se ocultavam nas capoeiras, matos enfezados, nascidos onde se fez derrubada da floresta virgem. Quando esses escravos eram descobertos, não dispondo de armas, defendiam-se com um jogo agilíssimo e violento que, sendo travado nas capoeiras, ficou com esse nome”.11

De forma semelhante, considerando que capoeira é também o nome que é dado a uma pequena clareira na mata (caá-puêra) e, conforme relatam os estudiosos do período da escravidão, era para lá que os negros fugitivos atraíam seus perseguidores procurando (e muitas vezes conseguindo) vencê-los por intermédio de uma luta corporal que, com extrema coragem, inimaginável agilidade, surpreendente astúcia, aplicavam, como relata Annibal Burlamaqui, “um jogo extranho de braços, pernas, cabeça e tronco, com tal agilidade e tanta violência, capazes de lhe dar uma superioridade estupenda”12, o que leva, alguns poucos

Mestres de Capoeira, a afirmar, confiante e romanticamente, que “foi Zumbi dos

Palmares, exímio capoeirista como todo o seu exército”13.

Esse mesmo “jogo extranho”, citado por Burlamaqui, Donald Pierson a ele se refere afirmando que “era uma forma de combate altamente complexa,

11 Cf. Renato Almeida, Tablado Folclórico, São Paulo, Ricordi Brasileira, 1961, p. 125-126 12 Annibal Burlamaqui, Gymnastica Nacional (Capoeiragem): methodisada e regrada. Rio de Janero, o Autor, 1928, p. 12 13 Antonio Batista Pinto (Zulu), Idiopráxis de capoeira, Brasília , o Autor, 1995, p. 3

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originariamente desenvolvida pelos escravos fugitivos, estamos informados, a fim de se adestrarem para lutar mais eficientemente com os armados capitães-do-mato

(...)”14

Relato semelhante é feito por Johann Moritz Rugendas, no início do século

XIX, com a introdução, em sua obra intitulada Viagem Pitoresca Através do Brasil, de duas gravuras que têm como tema a Capoeira, sendo que uma delas traz o título de

Jogar Capöeira ou Danse de la guerra, acompanhada do comentário que se segue:

“Os negros têm ainda outro folguedo guerreiro muito mais violento, a capoeira, que consiste em dois contendores se jogarem um contra o outro, como dois bodes, procurando dar marrada no peito do adversário, para derrubá-lo. Neutralizam o ataque por meio de paradas, ou fogem-lhes com o corpo em hábeis saltos. Por vezes, entretanto, acontece chocarem-se terrivelmente as cabeças e, não raro, a brincadeira degenera em conflito sangrento”.15

Não é possível deixar de inferir que tal tipo de clareira, surgida após a queima, proposital ou não, do mato alto ali existente, fosse, com segurança, utilizado, também, como lugar para a realização de atividades de cunho religioso, político ou de lazer, as quais não alcançariam seus objetivos caso acontecessem na mata cerrada ! A Capoeira, desta forma, era não apenas espaço de luta pela sobrevivência como também, dentre outras possibilidades, lugar de celebração, comemoração, diversão e doutrinação !

14 Cf. Donald Pierson, Brancos e pretos na Bahia: estudo de contacto racial. São Paulo, Editora Nacional, 1971, p. 285 15 Cf. J. M. Rugendas, Viagem pitoresca através do Brasil, São Paulo, Martins Fontes, 1954, p. 197

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Cabe aqui ressaltar que, contrariando a opinião de alguns atores do campo da

Capoeira, os negros escravos tinham, sim, os seus momentos de folga, de lazer.

Sabe-se desse fato por intermédio, dentre outros estudiosos, de Gilberto Freyre quando afirma que os Senhores de Engenho, bem conhecidos como um dos principais sustentáculos do regime de escravidão do negro africano no Brasil,

“tiveram um arremedo de taylorismo” e, assim, administravam a força de trabalho de forma a obter “o máximo de força útil e não simplesmente o máximo rendimento”, principalmente pelo alto custo de cada “peça” de escravo16. Desta forma, nada mais lógico que, seguindo essa premissa, os donos de escravos ao administrar a relação

“máximo esforço útil/máximo rendimento”, não apenas autorizassem, ao negro cativo, o acesso a uma alimentação “farta e reparadora” como também permitissem a realização de festas e divertimentos, ocasiões essas — que, hoje, podemos ironicamente chamar de tempo “livre” — nas quais, então, aproveitavam o máximo do Lundu, da Capoeira, do Samba-de-Roda, do Jongo etc.17 Quanto a um desses momentos, Gilberto Freyre, assim relata:

“No dia da botada — primeiro dia de moagem das canas — nunca faltava o padre para benzer o engenho; o trabalho iniciava-se sob a benção da Igreja. O sacerdote primeiro dizia a missa; depois dirigiam-se todos para o engenho, os brancos debaixo de chapéus de sol, lentos, solenes, senhoras gordas, de mantilha. Os negros contentes, já pensando em seus batuques à noite”18.

16 Cf. Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro , Record, 2.000, p. 116 17 Idem, ibid. p. 158 18 Idem, ibid., p. 488

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Considerando que os escravos eram “as mãos, e os pés do senhor de engenho; porque sem elles no não he possível fazer, conservar, e augmentar fazenda, nem ter engenho corrente”, de forma semelhante relata João Antônio

Androni (sob o pseudônimo de André João Antonil) em sua obra intitulada Cultura E

Opulência Do Brasil Por Suas Drogas e Minas, publicada em Lisboa em 1711, ao afirmar, no capítulo intitulado Como Se Ha De haver O Senhor Do Engenho Com

Seus Escravos, que

“negar-lhes [aos escravos] totalmente os seus folguedos, que são o único allivio do seu captiveiro, he querel-los desconsolados, e melancholicos, de pouca vida, e saúde. Portanto não lhes extranhe os senhores o criarem seus reis, cantar, e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do anno, e o alegrarem-se honestamente à tarde depois de terem feito pela manhã suas festas de N. S. do Rozario, de S. Benedicto, e do orago da capella do engenho, sem gasto dos escravos, acodindo o senhor com sua liberalidade aos juizes, e dando-lhes algum premio do seu continuado trabalho”.19

Informação semelhante encontramos em Luís Edmundo, ao comentar sobre os folguedos populares e diversão nas ruas do Rio de Janeiro, no início do século

XIX: “Que faziam os negros escravos após o labor que os matava, a surra do

19 Cf. José Ramos Tinhorão, Música popular de índios, negros e mestiços, Petrópolis, Vozes, 1972, p. 36. Quanto à ocupação do tempo livre do trabalho do negros escravos, e seu gosto pelas festas, ver também, do mesmo autor, Os sons dos negros no Brasil: cantos, danças, folguedos, São Paulo, Art Editora, 1988 e As festas no Brasil colonial, São Paulo, Editora 34 Ltda., 2000

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vergalho, ao viramundo e a polé, pelo terreiro das senzalas, quando dormiam os feitores ? Cantavam! Dançavam!”.20

Importante também é o relato que Charles Ribeyrolles faz, em meados do século XIX, em sua obra intitulada Brasil Pitoresco, apontando mais um dos sentidos atribuídos à Capoeira:

“No sábado, à noite, finda a última tarefa da semana, e nos dias santificados, que trazem folga e repouso, concedem-se aos escravos uma ou duas horas para a dança. Reúnem-se no terreiro, chamam-se, agrupam-se, incitam-se e a festa principia. Aqui é a capoeira, espécie de dança pírrica de evoluções atrevidas e combativas, ao som do tambor do Congo. Ali é o batuque, com suas atividades frias ou lascivas, que o urucungo acelera ou retarda. Mais além é uma dança louca, com a provocação dos olhos, dos seios e das ancas. Espécie de convulsão inebriante a que chamam lundu”.21

Pela transmissão oral dos acontecimentos e fatos históricos que permeiam o fenômeno Capoeira, tanto em sua constituição como em sua manifestação, Carybé, transcrevendo o que ouviu dos Velhos Mestres da Bahia, atribui, também, a esses momentos de folga a ocasião em que, camuflando, os negros escravos praticavam a

“luta da capoeira” como uma forma de dança, acompanhada de música e de pantomimas. Assim relata o famoso artista plástico:

“Formavam rodas em que os lutadores se exercitavam ao som dos e das palmas. O feitor passava, apreciava os negros

20 Cf. Luís Edmundo, Recordações do Rio Antigo. Rio de Janeiro, Conquista, 1956, p. 93-94 21 Cf. Jair Moura, Capoeiragem: arte & malandragem, Salvador, Secretaria Municipal de Educação e Cultura/Departamento de Assuntos Culturais/Divisão de Folclore, 1980, p. 17

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‘brincando Angola’. Achava bonito. Batia palmas também, e os jogadores continuavam suas pantomímas, jogavam-se no chão, olhavam-se de cabeça para baixo, riam e dansavam uma dansa exquisita de gingados e pulos, ou rolavam no chão que nem cobras. Os Senhores e Sinhás gostavam de ver”.22

Por serem os negros escravos os primeiros a serem vistos, pelos “Senhores e

Sinhás”, praticando a Capoeira, muitas afirmações sobre a sua origem africana foram veiculadas, precipitadamente, não apenas pela elite branca que os apreciava nos dias de festa, ou pelos capitães-do-mato e capatazes que os enfrentavam nas pequenas batalhas pelo seu resgate, de um lado, pela sua liberdade, de outro. Não apenas ouve-se, através dos anos, que a “Capoeira é africana”, tanto de seus praticantes, dos mais ingênuos aos mais críticos, como também de algum repórter menos avisado23, ou de alguns estudiosos de renome que, direta ou indiretamente, atuam, interferem, interagem no Campo da Capoeira. Dentre esses “africanistas” destacam-se Edison Carneiro, Câmara Cascudo, Inezil Penna Marinho, Mestre

Pastinha (no início, pois, em entrevista concedida a Antonio Tourinho, em 1963, o

Mestre nega a origem africana da Capoeira, declarando: “os meus Mestres nunca disseram que na África tinha capoeira”)24, Mestre Noronha, João Lyra Filho,

Fernando de Azevedo, Alceu Maynar de Araújo25.

Subjaz percebe-se, a essa afirmação sobre a origem africana da Capoeira, a concepção cartesiana da dicotomia corpo/mente que, também, se realiza com relação ao negro africano, na condição de escravo no Brasil e, assim, as

22 Carybé, O jogo da capoeira. Coleção Recôncavo, n°3. Salvador , Livraria Progresso Editora, 1955, p. 3 23 Exemplo disso é Márcia Lobo que divulga sua “reportagem” intitulada Capoeira: a revolta dos negros, no Livro de Cabeceira do Homem, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968, p. 183197 24 Cf. Antonio Tourinho, Tipos e coisas da Bahia, Diário de Notícias, Salvador, 27 de outubro de 1963 25 Consultar os títulos constantes na bibliografia.

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manifestações culturais surgidas nos momentos de festa, de ócio, de celebração ou comemoração, são concebidas, pelos brancos dominadores, da época, e estudiosos do assunto, de hoje — não só os brancos e nem tão dominadores assim ... —, como importantes tentativas do encontro corpo-mente. José Bonifácio, o moço, por exemplo, concebe tal sentimento de fragmentação do ser humano, de tentativa de separação do corpo da consciência, como demonstrado em seu poema intitulado

Lamento do Escravo, que se segue:

“Nas minhas carnes rasgadas, Nas faces ensangüentadas Sinto as torturas de cá; Deste corpo desgraçado Meu espírito soltado Não partiu — ficou-me lá!

Naqueles quentes areais, Naquela terra de fogo, Onde livre de cadeias Eu corria em desafogo ...

Lá nos confins do horizonte ... Lá nas planícies ... no monte ... Lá nas alturas do Céu ... De sobre a mata florida Esta minha alma perdida Não veio — só parti eu.

A liberdade que eu tive Por escravo não perdi-a; Minh’alma que lá só vive Tornou-me a face sombria.

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O zunir do fero açoite Por estas sombras da noite Não chega, não, aos palmares Lá tenho terra e flores ... Minha mãe ... os meu amores ... Nuvens e céus ... os meus lares.”26

Desta forma, para muitos que concebem ser a Capoeira africana, dentre outros motivos políticos mais profundos (os quais não cabe aqui, por hora, citá-los), afirmam que a sua origem está em uma ou outra dança religiosa, de caráter litúrgico, ou de lutas usadas em suas tribos no cotidiano guerreiro e religioso de além mar, ou, ainda, como uma forma de evitar o banzo e buscar, nos dias de folga e de festa, revigorar sua identidade e resgatar “a alma perdida”, de que fala o poeta. Porém, se tais afirmações são verdadeiras, emerge uma dúvida, até hoje não esclarecida satisfatoriamente: por que, então, não temos conhecimento da manifestação da

Capoeira em todos os locais, sem exceção, onde existiam negros africanos no

Brasil?

Ultimamente, no entanto, cada vez mais percebe-se que, como afirma

Waldeloir Rego, “deve-se andar com bastante cautela” ao tratar da questão sobre a origem de manifestações que trazem em sua constituição a presença do negro africano, pois, como se sabe, “os africanos uma vez livres e os que retornaram às suas pátrias, levaram muita coisa do Brasil”27. Levaram, desde 1835 após a Revolta dos Malês, não apenas suas criações e recriações, mas também muito do que aprenderam com os índios e com o branco, como é possível tomar conhecimento, com detalhes, por intermédio do estudo sobre o fluxo e o refluxo do tráfico de

26 Cf. Manuel Querino, A raça africana e os seus costumes, Salvador, Livraria Progresso Editora, 1955, p. 136-137 27 Cf. Waldeloir Rego, op. cit., p. 30-31

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escravos no Brasil, realizado por Pierre Verger28, fato esse que, dentre outros fatores, concordando com Waldeloir Rego (e mesmo que ainda, vez por outra, meio que na contra-mão da História, surja um novo africanista29) leva-me a conceber a

Capoeira como uma (re)criação do negro africano no Brasil.30

Certamente, a profunda identificação entre o Capoeira e a Capoeira não pode ser compreendida como sendo apenas uma metonímia explicada e definida pela

Gramática, como concebe Antenor Nascentes (em carta a Waldeloir Rego)31, mas admitindo que se trata, sim, de uma peculiaridade da existência-do-homem-no- mundo, da relação dialética que se estabelece entre o homem, o mundo e as coisas; de uma decorrência de sua corporeidade, como forma integrada pela qual o homem existe no mundo, permitindo-lhe o acesso a todas as coisas e experiências diversas, de forma a tornar-se significativo a si mesmo e aos outros e, assim, vivenciar a sua humanidade32; que se trata de um dos desdobramentos ocasionados pelo fato de o homem, como concebe Merleau-Ponty (já referido no primeiro capítulo deste estudo), não ter um corpo, mas ser um corpo; de tratar-se de uma conseqüência do processo cultural que, segundo os pressupostos de Vieira Pinto sobre a Teoria da

Cultura, faz também da Capoeira, concomitantemente, um bem de consumo e um bem de produção33; de uma decorrência de ser a Capoeira um fato histórico que além de, ao mesmo tempo, definir-se e definir o todo é, também, produtora e

28 Cf. Pierre Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX. São Paulo, Corrupio, 1987 29 Cf. Berbardo Conde, Os donos da rua: as maltas de capoeira no século XIX, Motus Corporis: revista de divulgação científica do Mestrado e Doutorado em Educação Física, v. 8, nº 1, Rio de Janeiro, Universidade Gama Filho, 2001, p. 34-35 30 Cf. Cesar Barbieri, Um jeito brasileiro de aprender a ser. Brasília, GDF/DEFER, 1994, p. 24 31 Cf. Waldeloir Rego, op. cit. p. 25 32 Cf. Cesar A. S. Barbieri et. al. Currículo de educação física para o Ensino Médio, Brasília, SE/FEDF, 1999, p. 91 33 Cf. Vieira Pinto, Ciência e existência : problemas filosóficos da pesquisa científica. São Paulo, Paz e Terra, 1985, p.

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produto; é reveladora, decifra e determina a si mesma e conquista o seu próprio significado autêntico, ao tempo em que confere um sentido a algo mais34.

Tal relação intrínseca entre o homem e a ação é possível perceber, principalmente, quando nos reportamos às interpretações de importantes estudiosos e literatos que, ao descreverem, julgarem ou, apenas, noticiarem a manifestação do fenômeno Capoeira, não deixam de focalizar o homem (o Capoeira) como um importante evento sinérgico de sua constituição e de seu surgimento. Exemplo desse fato encontra-se na narrativa contida no texto de Mello Moraes Filho, tido, segundo Waldeloir Rego35, como o mais antigo que se tem notícia.36

Mello Moraes Filho comparando a Capoeira à febre amarela, que “tem merecido perseguição sem descanso”, concebe-a como uma “luta nacional” e inicia seu relato sobre sua manifestação, no Rio de Janeiro, e sobre seus principais protagonistas, afirmando que “entre as nossas classes populares a dos capoeiras avultou sempre neste país, assombrando nos primeiros tempos costumes de uma torrente de imigração africana, e depois uma herança da mestiçagem, nos conflitos das ruas”37.

A Capoeira, cuja prática na cidade do Rio de Janeiro, no Império e na

Primeira República, popularizou-se como capoeiragem — termo que até hoje traz consigo, ainda, os significados pejorativos e aversões inerentes à vadiagem, crimes, contravenções e marginalidade —, para Mello Moraes Filho é também “uma ginástica degenerada em poderosos recursos de agressão e pasmos auxílios de

34 Cf. Karel Kosik, Dialética do concreto, São Paulo, Paz e Terra, 1985, p. 40, ao tratar do conceito de “fato histórico”. 35 Cf. Waldeloir Rego, op. cit., p. 33 36 Em 1888, Mello Moraes Filho, lança a primeira edição, pela B. L. Garnier, Rio de Janeiro, contendo 174 páginas e intitulado Festas Populares do Brasil. Waldeloir refere-se, certamente, ao caráter descritivo do texto, haja vista que a crônica de Machado de Assis, referindo-se aos Capoeiras, data de 1885. 37 Cf. Mello Moraes Filho, Festas e tradições populares do Brasil, Revisão e notas de Luiz da Câmara Cascudo. Rio de Janeiro, F. Briguiet & Cia Editores, 1946, p. 443

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desafronta”38, atividade essa na qual o Capoeira iniciava-se, “educava-se”, entre os dez e doze anos de idade, o que lhe dava absoluta intimidade com os seus recursos e segredos. Tal intimidade, sem dúvida, era-lhe de extrema valia, pois, quando

“colocado em frente a seu contendor; investe, salta, esguia-se, pinoteia, simula, deita-se, levanta-se e, em um só instante, serve-se dos pés, da cabeça, das mãos, da faca, da navalha, e não é raro que um apenas leve de vencida dez ou vinte homens”39.

Para Mello Moraes Filho, a “degeneração” da Capoeira em assassinatos e outras ações caracterizadas, naquele período da história de nossa formação social, como crime, contravenção ou, simplesmente, desordem, não lhe tira o valor enquanto um “instrumento de defesa”, uma “luta própria do Brasil” e, por isso, em substituição à cerrada perseguição em busca de exterminá-la, a ação dos poderes constituídos deveria ser voltada à prevenção, pois, “os jogos de destreza e de força são regulados em seu exercício, disciplinados pela arte, não havendo quem se oponha senão aos abusos”40, a exemplo do que, nessa mesma época, acontece na

Inglaterra onde os jogos que surgidos nas mais baixas classes sociais são praticados pela aristocracia e tornam-se atividades tão importantes quanto foram os

Jogos Olímpicos para os gregos e as lutas para os romanos, havendo “famílias de remadores, de jogadores de sôco; de indivíduos que se distinguem por atividades motoras que desenvolvem, que exercitam desde a infância, e que os tornam notáveis pela força muscular”41.

No mesmo sentido atribuído por Mello Moraes Filho, na interpretação de

Manuel Querino, em 1916, também percebemos essa profunda inter-relação entre a

38 Idem, ibid., p. 444 39 Idem 40 Idem, ibid., p. 443 41 Idem

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Capoeira e o Capoeira, uma vez que ambos apresentam, basicamente, as mesmas características e qualidades fundamentais. Para ele, a Capoeira “era uma espécie de jôgo atlético, que consistia em rápidos movimentos de mãos, pés e cabeça, na agilidade de saltos para a frente, para trás, para os lados, tudo em defesa ou ataque, corpo a corpo”42 e o Capoeira, um negro Angola, o seu introdutor na Bahia, era tido como “pernóstico, excessivamente loquaz, de gestos amaneirados, tipo completo e acabado do capadócio”, além de ser “um indivíduo desconfiado e sempre prevenido” 43. Ainda relata Querino que

“no ato da luta, tôda a atenção se concentrava no olhar dos contendores pois que, um golpe imprevisto, um avanço em falso, uma retirada negativa poderiam dar ganho de causa a um dos dois. Os mais hábeis capoeiras logo aos primeiros assaltos, conheciam a fôrça do adversário; e, neste caso, já era uma vantagem, relativamente ao modo de agir”.44

Um outro exemplo tem-se em Luiz Edmundo que, ao tratar dos principais aspectos das ruas e da cidade do Rio de Janeiro, no período em que tivemos a presença dos Vice-Reis45, traça o perfil daquele que foi um dos maiores temores da população daquela época:

“Falla forte. Gargalha. Cheira a aguardente e discute. É o capoeira. Sem ter do negro a compleição athletica ou siquér o ar rijo e sadio do reinol, é, no entanto, um ser que toda gente

42 Cf. Manuel Querino, A Bahia de outrora. Salvador, Livraria Progresso Editora, 1955, p. 73 43 Idem 44 Idem, ibid., p. 74 45 Período iniciado em 1763, com D. Antonio Alvares da Cunha e finalizado, em 1888, com o Conde dos Arcos e com a chegada da família real ao Brasil

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teme e o proprio quadrilheiro da justiça, por cautela, respeita. Encarna o espírito da aventura, da malandragem e da fraude; é sereno e arrojado, e na hora da refrega ou da contenda, antes de pensar na choupa ou na navalha, sempre ao manto cosida, vale-se de sua esplendida dextreza, com ella confundindo e vencendo os mais armados e fortes contendores”.46

Na interpretação de Luís Edmundo, tanto a Capoeira como o Capoeira são frutos das contingências e conjunturas sócio-econômicas que formam o contexto no qual está inserido. O Capoeira, diz o autor, mesmo que tivesse como amigos, companheiros e parceiros alguns dos piores tipos que circulavam pela cidade, “no fundo, elle é mau porque vive onde há o commercio do vicio e do crime. Socialmente

é um cysto, como poderia ser uma flor”.47 É um defensor dos fracos; é religioso, trazendo sempre junto ao corpo um escapulário e sempre recorrendo ao santo nome de Maria ou de Jesus; com sua alma de Dom Quixote, é um verdadeiro cavalheiro com as mulheres, porém na hora da luta,

“o homem franzino e leve transfigura-se. Atira longe o seu feltro chamorro, seu manto de saragoça e aos saltos, como um simio, como um gato, corre, recua, avança e rodopia, agil, astuto, cauto e decidido. Nesse manejo inopinado e célebre, a creatura é um ser que não se toca, ou não se pega, um fluido, o imponderavel. Pensamento, Relampago. Surge e desapparece. Mostra-se de novo e

46 Cf. Luís Edmundo, O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis. Rio de Janeiro, Athena Editora, s/d, p. 38 47 Idem, ibid. , p. 39

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logo se tresmalha. Toda a sua força reside nessa dextreza elastica que assombra, e deante da qual o tardo europeu vacilla e, attonito, o africano se trastroca”.48

Ainda tendo como foco a figura do Capoeira como a principal referência da constituição do fenômeno Capoeira, encontramo-lo em Gilberto Freyre quando, este, referindo-se à inegável contribuição do negro africano à cultura brasileira, afirma, categoricamente, que dentre as heranças deixadas por eles que expressam vigor e beleza, tais como “as mulatas, as baianas, as crioulas, as quadraronas, as oitavonas”, bem como os cabras de engenho, os capangas, os fuzileiros navais, os estivadores, os jagunços e os cangaceiros, encontra-se o Capoeira49 e, por certo, conseqüentemente, a Capoeira.

A Capoeira, aponta Freyre, como divertimento, não fazia parte apenas do cotidiano do negro escravo, pois o senhor de engenho, dando asas ao sadismo cultivado em sua infância e adolescência, quando adulto, além de mandar surrar e arrancar os dentes do escravo tido como ladrão de cana, incluía, junto com a briga de galo e de canário, para seu entretenimento, a luta de Capoeiras. Vale notar que não se tratava apenas de simples divertimento, mas sim, como declara o autor, de uma conseqüência do fato de que “a tradição conservadora do Brasil sempre se tem sustentado no sadismo do mando, disfarçado em ‘princípio de Autoridade’ ou ‘defesa da Ordem’.”50

Gilberto Freyre, ao relatar a mudança ocorrida no panorama social do Brasil patriarcal, durante o século XVIII, dentre o surgimento de novas comidas, novos

48 Idem, ibid. , p. 38 49 Cf. Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro, Record, 2.000, p. 116 50 Idem, ibid., p. 122-123

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quitutes e doces, que a senhora do engenho começou a criar, com as sobras do açúcar produzido pelo engenho do marido e com as frutas, até então desconhecidas, que “os colomins e mais tarde os mulequinhos apanhavam no mato, pelo sítio, pelo quintal”51, enriquecendo assim o cardápio da cozinha brasileira, e de outros acontecimentos também importantes para a constituição de nossa formação social, vem à tona, de forma impressionante, no final do século XIX — contexto em que o sobrado veio substituir a casa-grande e os mucambos as senzalas e no qual

“a Praça venceu o Engenho” —, a figura do Capoeira como a “expressão do ódio do preto livre ou do mulato pobre — e também livre — ao branco rico; de gente da terra ao europeu; da população dos mucambos à dos sobrados”.52 O negro agora não apenas brinca e se diverte no terreiro dos engenhos em frente às senzalas mas canta, dança e joga Capoeira nas praças; não apenas luta no interior das matas, nas caá-puêras, contra os capitães-do-mato, mas luta Capoeira nas ruas e becos contra os policiais, principalmente, constituindo-se, como concebe o autor, num “curioso tipo de negro ou mulato de cidade, correspondendo ao dos capangas e cabras dos engenhos”.53

Por uma questão de sobrevivência, segundo a visão de Gilberto Freyre, os escravos, na maioria os negros de ganho e carregadores de fardo, impedidos que foram de usar armas de fogo, espadas, bengalas de estoque (que eram armas de fidalgos, senhores e de brancos), tornaram-se peritos, principalmente “nas cabeçadas, nos rabos-de-arraia e nas rasteiras da capoeiragem”.54 Mais de uma vez, ressalta o autor, a prática da Capoeira, permite-lhes suprir a falta das armas proibidas, safando-se dos entreveros por intermédio dos “movimentos de corpo que

51 Idem, Sobrados e mucambos, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1968, p. 36 52 Idem, ibid., p L 53 Idem, ibid., p. 43-44 54 Idem, ibid., p. 510

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eram quase movimentos de dança”55. Nitidamente, é possível identificar, os sentidos de arma, de defesa pessoal, que são atribuídos à Capoeira, sentidos esses que, prosseguindo na leitura do relato de Gilberto Freyre, somam-se, transmutam-se, confundem-se com os da dança. Assim informa o autor:

“Dançando, esses brasileiros da capoeiragem enfrentaram com pés ligeiros, pequenos, delicados, às vezes quase de moça, e como os das baianas geralmente calçados de chinelas orientalmente enfeitadas, soldados armados, nórdicos vigorosos, marinheiros ingleses, portugueses machões e cheios de si, europeus de pés grandes e bem calçados, destroçando-os e, de algum modo, desmoralizando-os”.56

Ao ilustre pernambucano, autor de Sobrados e Mucambos, não passa desapercebida, também, a importante perspectiva do fenômeno Capoeira, considerada por muitos uma “degeneração” — como no caso, descrito por Aluízio de Azevedo, em 1890, no qual é utilizada no entrevero, liderado por Porfiro, após o cruel assassinato de Firmo, chefe da malta Cabeça-de-Gato, entre esta e a malta dos Carapicus57, que só terminou, ou melhor, foi adiado, por conta de um incêndio que começou no barraco 8858 — que serve de motivo ou de desculpa para chegar a ser contemplada com um dos capítulos do Código Penal do mesmo ano59. Para ele, essa mudança é interpretada como sendo uma resposta dos negros às

55 Idem, ibid., p. 511 56 Idem 57 Na interpretação de Carlos Eugênio Líbano Soares, tal descrição, de Aluízio de Azevedo, trata-se de “uma alegoria dos Guaiamus e Nagoas, que por tanto tempo dominaram a Corte”, op. cit., p. 11 58 Cf. Aluízio de Azevedo, O cortiço. Rio de Janeiro, Otto Pierre Editores, 1979, p. 216-217; 249; 273; 276-278 59 Cf. BRASIL. Decreto n° 847, de 11 de outubro de 1890 - Promulga o Codigo Penal . In: BRASIL, Decretos do Governo Provisorio da Republica dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, Decimo Fasciculo, 1890, p. 2734-2735

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perseguições sofridas, desde 1808, e, como estratégia para se resguardarem, na maioria das vezes da ação da polícia, exigiu-lhes que se constituíssem em maltas, as quais levaram o pânico e a insegurança à população, principalmente no Rio de

Janeiro60, fazendo com que deixasse “de se desenvolver num jogo caracteristicamente afro-brasileiro para degradar-se em crime ou pecado como que nefando”61, ou, na interpretação de Carmen Nícias de Lemoine, ao discorrer sobre as tradições do Rio de Janeiro, do século XVI ao XIX, “o Rio teve uma flor nas mãos, teimando em cultivar espinhos ...”62, ou, ainda, como resume Oswald de Andrade:

“— Qué apanha sordado ? — O quê ? — Qué apanha ? Pernas e cabeças na calçada”63

Instala-se a República e com ela, dentre outras novidades, também chega o water-closet, complementado pelo bidet, em substituição a latrina de barril, ao penico e ao “tigre”; os cemitérios às zonas rurais; o casamento civil; a liberdade de cultos; o hotel; os esportes de origem britânica; o desprezo pela arte popular regional e

60 Entre outras obras e estudos que tratam do assunto, aconselha-se consultar Carlos Eugênio Líbano Soares, A negregada instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro 1850/1890, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação, Divisão de Educação, 1994; Mello Barreto Filho e Hermeto Lima, História da polícia do Rio de Janeiro: aspectos da cidade e da vida carioca, Rio de Janeiro, Empresa A Noite , v. 2 (1942) e também o v. 3 (1943); Marcos Luiz Bretas, Navalhas e capoeiras: uma outra queda, Ciência Hoje, v.10, n° 59, Rio de Janeiro, Sociedade Brasileira Para O Progresso da Ciência-SBPC, 1989, p. 56- 60 e Thomas H. Holloway, O saudável terror: repressão policial aos Capoeiras e resistência dos escravos no Rio de Janeiro no século XIX, Cadernos Cândido Mendes (n° 16, Estudos Afro- Brasileiros, Rio de Janeiro, 1989), p. 131; O crime legal, Revista Vida Policial, Rio de Janeiro, anno I, n°2, 1925, p. 22-23; Capoeiragem e os seus principais cultores: a ação da polícia, de Vidigal a Sampaio Ferraz, Revista Vida Policial, Rio de Janeiro, anno I, n°, 1925, p. 20-21. 61 Cf. Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1968, p. 519 62 Cf. Carmen Nícias de Lemoine, Tradições da cidade do Rio de Janeiro: do século 16 ao 19, Rio de Janeiro, Editora Pogetti, 1965, p. 230 63 Cf. Oswald de Andrade, O Capoeira in: Obras Completas: poesias reunidas, v. VII, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971, p. 32

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tradicional face a valorização da arte erudita européia; a valorização do espírito de solidariedade com os países americanos, principalmente os Estados Unidos da

América do Norte, como parceiros no futuro republicano e industrial; o positivismo; e, de forma sistemática e cruel, a perseguição à prática da Capoeira.64

Na interpretação de Gilberto Freyre, a perseguição à Capoeira é, também, uma das ações realizadas com o intuito de instalar, definitivamente, no Brasil, o regime republicano e, principalmente, destruir o pouco de união e empatia existente entre negros e brancos, construídas por ocasião da Guerra do Paraguai. Para tal, um grupo de “ioiôs privilegiados”, elegeram, dentre outras estratégias, a

“desvalorização de traços da cultura afro-brasileira que vinham sendo assimilados, desde a campanha paraguaia, pela cultura brasileira em geral: um deles, a arte da capoeiragem”65, prática essa considerada, segundo Freyre, pela elite republicana instalada no poder, como “a mancha da civilização brasileira”66, mesmo que “figuras ilustres” delas fossem adeptos e dedicados aprendizes, tais como Coelho Neto,

Duque Estrada, o capitão Ataliba Nogueira, os tenentes Lapa e Leite Ribeiro, o aspirante-de-marinha Antônio Sampaio, o Barão do Rio Branco e o poeta Plácido

Abreu67, dentre outros tantos mais... Essa perseguição iniciada ainda no Império, com o major Vidigal — um misto de inquisidor policial e caçador de criminosos, como descreve Manuel Antonio de Almeida68 —, chega ao seu auge, no Rio de

Janeiro, já com os primeiros ecos republicanos, liderada por Sampaio Ferraz,

64 Cf. Gilberto Freyre, Ordem e progresso, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1962, p. CXXXVII-CXLIV 65 Idem, ibid., p.14 66 Idem, ibid., p. 15 67 Idem, ibid., p. 14-15 e também Coelho Neto, Bazar, Porto, Livraria Chardon, de Lello & Irmão, L.da editores, 1928, p. 136 68 Cf. Manuel Antonio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1963, p. 23. Ver também o n° 3 da revista Vida Policial, do Rio de Janeiro, anno I, de 28 de março de 1925, p. 44-46.

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principalmente como uma forma de punição aos que participaram da famosa

“Guarda Negra”, em defesa da Coroa e da Monarquia69.

Não fosse a citada perseguição, na interpretação de Gilberto Freyre, a

Capoeira poderia ter sido absorvida pela própria polícia, com o propósito de torná-la mais eficaz no combate às desordens urbanas e pelas Forças Armadas, para o treinamento físico de seus soldados e oficiais e, também, para aplicação, quando necessário, em confrontos internacionais, tornando-os “soldados ao mesmo tempo modernos e ecologicamente nacionais”70, e não ter se amesquinhado nas ações de

“simples meninões turbulentos: mulatos que navalham ventres de portugueses por puro sadismo de adolescentes pobres contra adultos ricos”71.

Esse sentido de ação criminosa, realizada por marginais, atribuído, também, por Freyre, à Capoeira, encontra-se, de forma um pouco diferente, em Machado de

Assis quando, concordando de certa forma com Mello Moraes Filho72, em suas crônicas publicadas em periódicos do Rio de Janeiro, no final do século XIX, também interpreta o Capoeira, não apenas concebendo-o como um dos protagonistas do processo de “nacionalização do esporte” (da mesma forma como se constatou “que a ‘poesia nacional’ estivesse no caboclo”73), mas também afirmando, com toda a convicção, tratar-se de um grande equívoco crer-se que tais homens agiam, como agiam, por simples prazer74. Não que Machado compreendesse o fenômeno

Capoeira como uma contradição da sociedade, ao contrário, suas restrições e rejeições evidenciam-se em um de seus artigos de 1887, ao criticar um de seus

69 Cf. Gilberto Freyre, Ordem e Progresso, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1962, p. 310 70 Idem, ibid., p. 311 71 Idem, ibid., p. 475 72 Cf. Mello Moraes Filho, op. cit., p. 51 73 Cf. Machado de Assis, A Semana (Crônica do dia 20 de agosto de 1893), Obras completas de Machado de Assis, vol. 26, Rio de Janeiro, W. M. Jackson Inc., 1972, p. 362-363 74 Idem, Balas de Estalo (Crônica do dia 14 de março de 1885), Obras completas de Machado de Assis, v. 25, Rio de Janeiro, W. M. Jackson Inc., 1972, p. 216

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praticantes estrangeiros, o grego Manuel Rotas75 ou ao declarar que a atitude e comportamento dos Capoeiras tratavam-se apenas de uma estratégia para ocuparem as notícias dos jornais, indicando como “remédio” contra “os nossos

Achiles”, a completa desqualificação de tais atos, ignorando-os e não publicando uma linha sequer76!

Considerando a nomeação de Sampaio Ferraz como “uma medida acertadíssima”, Assis Cintra inclui a Capoeira, com seus praticantes, dentre os coadjuvantes dos principais escândalos da Primeira República, tais como a descoberta de que a “Questão Militar” — uma série de conflitos que se sucederam entre as autoridades governantes do Império e os oficiais militares no período de

1883 a 188977 — fora a principal causa da deflagração do ato da proclamarão da

República; a constatação de que a rebelião militar, ocorrida em 15 de novembro, originou a conhecida proclamação, a qual constituiu-se em uma grande surpresa para o povo que, ao tomar conhecimento do ocorrido, “ficára, nesse dia,

‘bestializado, attonito, surprezo’, sem saber o que significava aqquelle movimento de tropas, dirigidas pelo general Deodoro da Fonseca”78; a ação repressora, realizada pelos militares, em 29 de novembro de 1890, contra o jornal A Tribuna, na cidade do

Rio de Janeiro, “por ordem de patentes superiores do exército”, que resultou, além da morte de um dos seus funcionários, no “empastellamento do diário

75 Idem, ibid., Gazeta de Holanda (Artigo n° 40, publicado no dia 14 de dezembro de 1887), Obras completas de Machado de Assis, v. 25, Rio de Janeiro, W. M. Jackson Inc., 1972, p. 434-437 76 Idem, ibid., Balas de Estalo (Crônica do dia 14 de março de 1885), Obras completas de Machado de Assis, v. 25, Rio de Janeiro, W. M. Jackson Inc., 1972, p. 215-219 77 Como observa José Murilo de Carvalho, na obra indicada na bibliografia, dentre os principais conflitos ocorridos, o primeiro se dá com a elevação das contribuições para o Montepio Militar e com a proibição das manifestações de militares sobre questões internas do Exército na imprensa; o segundo com a exoneração do tenente-coronel Sena Madureira do cargo de comandante da Escola de Tiro do Campo Grande; e, o terceiro, com a descoberta de desvio de material militar, no Piauí, pelo coronel Cunha Matos. Os sucessivos conflitos, levam, em fevereiro de 1887, mais de 200 oficiais a se reunirem com Deodoro (herói da Guerra do Paraguai e figura de grande prestígio no Império) em busca da anulação das punições. 78 Cf. Assis Cintra, Os escandalos da 1ª República, São Paulo, Empresa Editora J. Fagundes, 1936, p. 25

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opposicionista”79; o golpe de Estado de 1891, dado por Deodoro, “na ansia de não ser contrariado, no delírio de ser obedecido por todos, no hysterismo do poder”80, dissolvendo, em 3 de novembro, daquele ano, as Câmaras da República.

Mesmo não sendo o objeto principal desse estudo buscar a compreensão das causas do desenvolvimento desse processo de perseguição à Capoeira (à sua prática e aos seus praticantes), que no decorrer de sua história acontece com maior ou menor ênfase, é importante que se reflita, com a profundidade que o momento permite, sobre as interpretações de Roberto Kant de Lima e Magali Alonso de Lima com relação a essa questão.

Lima&Lima, concebendo a Capoeira como “uma técnica de expressão corporal, de luta, mas ao mesmo tempo de construção de significados culturais próprios às camadas culturalmente inferiorizadas da sociedade” da época, ressaltam a importância de levar-se em consideração, ao realizar-se qualquer tipo de estudo sobre ela, o fato de que ela também constitui-se em “um locus de produção de uma visão de mundo” e, por atuar como “modeladora de corpos, transformando-os em instrumentos de luta ou veículos de uma expressão corporal característica, ocupa papel fundamental na definição de uma identidade negra alternativa” — dois bons motivos, pode-se inferir, para as verdadeiras causas desse referido processo de perseguição, os quais os historiadores, cronistas e estudiosos da época, e muitas vezes contemporâneos, sequer buscam qualquer tipo de aproximação81.

É importante, ainda, ressaltar que, para os referidos autores, a Capoeira é um fenômeno que se manifesta como “dança, luta, jogo desobediente que se impõe como prática cultural característica numa sociedade que, ao consagrar a falta de

79 Idem, ibid., p. 58-60 80 Idem, ibid., p. 86 81 Cf. Roberto Kant de Lima e Magali Alonso de Lima, Magali Alonso, Capoeira e cidadania: negritude e identidade no Brasil Republicano, Revista de Antropologia. São Paulo, USP, n° 34, 1991, p. 165

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prática da igualdade entre seus membros, condena-a à marginalidade, por achar

‘feio tudo o que não é espelho’.”82

Nesse contexto, na ótica de Cintra, foi que se deu, na agora capital da

República, a perseguição e a quase extinção da Capoeira, fenômeno esse que tinha como seus protagonistas desordeiros contumazes, muitos dos quaes eram facinoras que, impondo-se pelo terror, dominavam varios antigos bairros da cidade e, quando queriam, o proprio centro da Côrte83. No entanto, a dar-se crédito, também, a Viriato

Correa, não apenas os bandidos, delinqüentes ou subversores da ordem e dos bons costumes faziam parte dessa legião de simpatizantes e praticantes da Capoeira. A cidade do Rio de Janeiro, aos olhos de Viriato, era a “cidade da desordem” e “a mentalidade brasileira se havia turvado tanto que criaturas de gravata lavada: funccionarios publicos, medicos, advogados, escriptores, politicos, não se pejavam de gabar as suas habilidades na ´rasteira´, na ´cabeçada´, e no ´rabo de arraia´.”84

Importante lembrar, também, da sua presença, já no Império, sem disfarces, nos quadros da polícia da época, fato esse que Joaquim Manuel de Macedo, em 1878, aponta em sua narrativa, ao discorrer sobre a história e estórias da Rua do Ouvidor, na cidade do Rio de Janeiro (desde quando chamava-se “Desvio do Mar”, por volta de 1570, aproximadamente, até meados do século XIX), referindo-se à figura do

Marquês de Lavradio, então Vice-Rei, e ao seu viés de “conquistador famoso” e aos seus ardis, dos quais se utilizava “quando tinha de pescar por devoção ao belo sexo”. Dentre tais ardis, o que mais ficou conhecido e famoso foi de passar-se, nessas noites de devotadas aventuras amorosas, por seu oficial de milícias, “o

Tenente João Moreira, conhecido pela alcunha de Amotinado pelos fáceis

82 Idem, ibid., p. 180 83 Cf. Assis Cintra, op. cit., p. 86 84 Cf. Viriato Correa, op. cit., p. 144

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arrebatamentos de seu gênio ardente e desordeiro”, homem que era de “prodigiosa força, de ânimo inflamável e talvez mais antigo capoeira do Rio de Janeiro”85.

A Capoeira, no Rio de Janeiro, para Viriato Correa, desde o período da

Regência até o reinado de Pedro II, nunca mereceu, na verdade, a devida atenção das autoridades do Governo, a ponto de sofrer uma perseguição sistemática e eficaz, pois ou havia “o perigo da pátria que ameaçava a desmembrar-se” ou o perigo e a preocupação maior representavam os políticos (já os daquela época) e, por isso, o seu praticante atuou com tamanha liberdade que chegou a fazer parte da

“physionomia da cidade como o Pão de Assucar, o Corcovado, a fonte da Carioca, as cadeirinhas, as rotulas, o viatico”86, porém, a partir dos primeiros ecos da proclamação da República, entrou em decadência ou quase desapareceu.

Desta forma, nos primeiros anos do século xx, quando a República, proclamada por Deodoro, dava ainda os seus primeiros passos, um “distincto official do exercito brazileiro”, reconhecendo as profundas modificações sofridas pela

Capoeira, e concebendo-a como sendo a “Gymnastica Brazileira”, sem identificar-se, publica um “Guia do Capoeira”, com o propósito de, nivelando-a como singularidade pátria, ao soco inglez, á savatta franceza, á luta alemã, as corridas e jogos tão decantados em outros paízes87, resgatá-la e renová-la, ou como diz o autor,

“levantar a Gymnastica Brazileira do abatimento em que jaz”88, haja vista alguns acontecimentos criminosos e atos de violência (pancadaria, brigas, lesões corporais, assassinatos etc.) que foram a ela relacionados.

Para o “distincto official”, tal “degeneração”, que aconteceu de forma “lenta e sucessiva”, deveu-se, no Rio de Janeiro, à ausência dos mais importantes mestres

85 Cf, Joaquim Manuel de Macedo, Memórias da Rua do Ouvidor, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1988, p. 37 86 Idem, ibid., p. 137 87 O. D. C., Guia do Capoeira ou Gymnastica Brazileira, Rio de Janeiro, Livraria Nacional, 1907 88 Idem

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de Capoeira, da época, tais como Chico Carne Seca, Manduca da Praia, Chico

Cafôfo, Mamede Armador, Lopes Músico, Faria Cadete, Balbino Bordado e tantos outros mais. Semelhante à opinião de Machado de Assis, já referida, sobre a índole e comportamento dos temidos Capoeiras que atuavam na Corte, no final do século

XIX e na capital da Primeira República, na interpretação do autor do “Guia do

Capoeira”,

“o Capoeira de outr’ora, celebre pela riqueza de seus variados movimentos — offensivos e deffensivos — era dependente e amigo da ordem: estas qualidades essenciaes sobravam ainda mais nos maiores valentes denominados — Terrores, Vungis, Bonzes”89.

Essa visão sobre a Capoeira, como “Gymnastica pátria”, segundo o autor do referido “Guia”, fundamenta-se nas concepções, regras e orientações formuladas pelos citados Terrores e constitui-se na primeira tentativa de metodizar e regrar a sua prática e o processo de sua aprendizagem.

Convém ressaltar que a Capoeira, concebida como Ginástica, confunde-se com o sentido de Esporte, de Educação Física, de Defesa Pessoal e, muitas vezes, com o de Arte Marcial. Desta forma, como um desdobramento do pensamento do citado autor anônimo que publicou o “Guia do Capoeira”, em 1907 — motivado pelo fato de que “nossa briosa mocidade hoje desconhece pela mor parte, os trabalhos e têrmos da arte antiga”90 — Annibal Burlamaqui, conhecido também por Zuma (um de seus sobrenomes), concebe-a como uma luta que tem a sua origem com os negros escravos, “como uma arma terrível contra os ‘senhores’ e os ‘capitães do matto”,

89 Idem 90 Idem

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quando “num assomo de repulsa, sacudiam as cadeias e fugiam, embrenhados nas florestas, embrenhando-se na estonteante luxuria da vegetação, irmanando-se com os animaes (...)” e a classifica como uma “gymnastica puramente nacional”91.

Para Burlamaqui, a Capoeira, mesmo que na época se encontrasse “um pouco confusa e mal definida”, contém, encerra, comporta, é constituída por

“elementos de uma cultura physica perfeita” e, tendo em vista que com o surgimento da “capoeiragem nasceu o primeiro esforço para a liberdade dos captivos no Brasil”, sua origem, portanto, deve ser “santificada”92!

Um dos aspectos práticos encontrados, por Burlamaqui, na Capoeira é o

“valor inegualavel que, este bello jogo contêm para a defesa pessoal do homem”93, valor esse que deveria ser reconhecido pelas famílias brasileiras, pois só assim seria possível reverter a aversão que sentiam e, certamente, “os brasileiros futuros seriam respeitados, temidos, fortes e orgulhar-se-iam de saber os segredos do jogo mais sabio até hoje conhecido”94.

Burlamaqui, chamando para si a responsabilidade de realizar algo de útil para o seu país, pretende, com o seu conjunto de regras, elevar o nível de aceitação e de reconhecimento da Capoeira, fazendo dela um “sport, um exercício, um jogo enfim”95. No seu entusiasmo, dedicação e afinco com que buscou metodizar e regrar a Capoeira (atitudes essas identificadas com facilidade no decorrer da sua proposta), assim declara:

“Ah! que bello seria se todos os verdadeiros brasileiros tivessem a iniciativa de aprendel-a, estudando os

91 Cf. Annibal Burlamaqui, Gymnastica Nacional (Capoeiragem): methodisada e regrada, Rio de Janeiro, o Autor, 1928, p. 11-13 92 Idem, ibid. p. 13 93 Idem, ibid., p. 15 94 Idem 95 Idem

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menores segredos que este jogo puramente brasileiro tem, fazendo-a uma arma, uma defesa própria, um sport como os demais, orgulhando-se de possuir a melhor arma, o mais bello jogo o mais intelligente sport”96.

Mesmo tendo conhecimento sobre o comportamento violento de alguns adeptos da “capoeiragem”, principalmente nos dias de Carnaval quando,

“entre os diabos e os velhos de cabeça grande, iam capoeiras de fama, nagôs e guayamús, e, de repente, fechava-se o tempo, luzia navalhas e o bando espalhava- se e eram rasteiras, rabos de arraia, cabeçadas e golpes que estripavam os ageis parciaes das duas maltas, terror da cidade e desmancha prazeres em todas as festas”97,

o sentido educativo, de processo educacional, de meio de formação do ser humano, atribuído à Capoeira, também está presente na interpretação de Coelho Neto, na sua crônica de 28 de outubro de 1923.

Ao concordar com os pressupostos de Gomes Carmo, revelados em correspondência endereçada ao Correio do Povo, de Porto Alegre, e transcrita, por

A. Gomes Carstuc, no jornal O Paiz, em 22 de outubro de 1923, que conclama todos os brasileiros a cultivarem o Jogo da Capoeira — “um jogo elegante, proprio para a defeza individual, jogo de destreza nobre e não brutal e aviltante” e que poderia ser,

96 Idem, ibid., p. 15 97 Cf. Coelho Neto, op. cit., p. 230-231

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certamente, adotado oficialmente pela “nossa marinha de guerra” — e a execrarem o boxe — um jogo no qual

“duas feras, ridiculas nas suas formas inestheticas, nem bem quadrupede, nem bem bimano, quasi reptil, quasi mono; as duas feras se esmurram, quebram-se mandibulas, esmigalham-se dentes, cegam-se a murros, assassinam-se com pesados socos, diante dos seus semelhantes, embriagados com tanta estupidez”98,

Coelho Neto, tem a convicção de que a Capoeira poderia e deveria

“ser ensinada em todos os collegios, quarteis e navios, não só porque é excellente gymnastica, na qual se desenvolve, harmoniosamente, todo o corpo e ainda se apuram os sentidos, como também porque constitue um meio de defesa individual superior a todos quantos são preconisados pelo estrangeiro e que nós, por tal motivo apenas, não nos envergonhamos de praticar”99.

Quanto aos fatos amplamente divulgados pela imprensa, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, que se referiam (exageradamente ou não,

98 Cf. A. Gomes Carstuc, Cultivemos o jogo de capoeira e tenhamos asco pelo da boxa. O PAIZ, Edição Extraordinária, anno XL, n° 14.246, 1ª página, Rio de Janeiro, segunda-feira, 22 de outubro de 1923 99 Cf. Coelho Neto, op. cit., p. 133-134

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tendenciosamente ou não, nas linhas e nas entre-linhas) à violência, ao “instinto assassino” e arruaceiro dos Capoeiras, bem como à nefanda e nefasta manifestação cultural, Coelho Neto, com a perspicácia que lhe era inerente, esclarece o seu ponto de vista sobre o assunto, afirmando que

“como os leões são sempre acompanhados de chacaes, nas maltas de taes valentes immiscuiam-se assassinos cujo prazer sanguinario consistia em experimentar sardinhas em barrigas do proximo, deventrando-as. O capoeira digno não usava navalha: timbrava em mostrar as mãos limpas quando sahia d’um turumbamba”100

Concordando com Coelho Neto, quase quarenta anos depois, o etnólogo

Waldeloir Rego, oferece mais um indicador para a compreensão da manifestação do fenômeno Capoeira e da relação, intrínseca, de sua prática com o seu praticante, por ser-no-mundo, ao afirmar que “o capoeirista não era um mau caráter. O seu comportamento na comunidade social era ditado pelas circunstâncias, que se lhe impunham e pelas pressões e desmandos dos que então detinham o poder”101.

Como outros autores, já citados, Coelho Neto não tinha dúvidas quanto ao fato de que “o que matou a capoeiragem entre nós foi ... a navalha” e afirmava, sem titubear, que “essa arma, entretanto, subtil e covarde, raramente apparecia na mão

100 Idem, ibid., p. 137 101 Cf. Waldeloir Rego, op. cit., p. 279

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de um chefe de malta, de um verdadeiro capoeira, que se teria por deshonrado se, para derrotar um adversário, se houvesse de servir do ferro”102.

A admiração de Coelho Neto pela Capoeira era de tal ordem que, em parceria com Germano Haslocher e Luiz Murat, em 1910, chegou a elaborar um Projeto de

Lei, que não foi encaminhado à Mesa da Câmara dos Deputados, no qual instituía a obrigatoriedade de seu ensino nas escolas oficiais e nos quartéis, proposta essa que, segundo o autor, foi abandonada por encontrar sérias resistências — por parte, principalmente, da grande maioria dos que compunham o legislativo, da época —, por tratar-se o objeto do citado Projeto de uma atividade, genuinamente, brasileira !

Dentre os que, referenciando-se no entendimento de que fora a Capoeira uma

“terrível luta com que no Brasil e especialmente no Rio de Janeiro se faziam temidos os desordeiros, pela violência inesperada de seus golpes decisivos”103, no início do século XX, repudiaram a Capoeira e condenaram a sua prática, principalmente, por crianças e adolescentes, surge, em 1920, a forte crítica de Fernando de Azevedo, na qual afirma que se a ele, “pois que não a outros, coubesse em sorte traçar um plano brasileiro de educação física, havia de refugar das escolas a capoeiragem”104, sendo favorável, no entanto, ao seu aprendizado na “força pública entre os esportes de combate”. Para ele, ainda que a Capoeira não apresentasse, esteticamente, a

“elegância do boxe francês” e sendo, pelo contrário, “o mais deselegante gênero de luta”, mesmo assim, no âmbito das forças armadas, poder-se-ia desenvolvê-la, “ao lado do boxe, do jiu-jitsu, da luta romana e da esgrima de sabre, de florete, de espada e baioneta”105.

102 Cf. Coelho Neto, op. cit., p. 134-135 103 Cf. Fernando de Azevedo, Da Educação Física: o que ela é, o que tem sido e o que deveria ser. (Obras Completas, vol. 1), São Paulo, Edições Melhoramentos, 1960, p. 288 104 Idem, ibid., p. 290 105 Idem, ibid., p. 288-290

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Em contraposição à Fernando de Azevedo, ressaltando as perspectivas de

Ginástica, de Esporte, de Educação Física, principalmente, Inezil Penna Marinho106, apoiado nos estudos realizados por Edison Carneiro e Manuel Querino107, afirma que, tendo sido “trazida para o Brasil pelos negros bantus, procedentes principalmente de Angola”108, a Capoeira, após a destruição do Quilombo dos

Palmares, veio, “já agora nitidamente como recurso de ataque e defesa, para as fazendas, os povoados e cidades”109.

Para Penna Marinho, a Capoeira é “um elemento de folclore nacional” não apenas porque sua prática iniciou-se com os “nossos ímolas”, mas sim, porque constituiu-se num “excelente meio de defesa aos capitães do mato” que, como é do conhecimento de todos, iam à captura dos escravos que conseguiam fugir dos seus algozes, de seus donos e da escravidão que os degradava, mesmo que fosse por um curto período de tempo. Na interpretação de Inezil, a Capoeira, ainda, “foi arma dos brasileiros”, arma essa tão temida pela classe dominante na Colônia, no Império e, principalmente, na Primeira República110.

Certamente, caminhando ao sopro dos ventos do Estado Novo, concebendo a Capoeira como semelhante ao samba, considerando-os como duas manifestações de nossa cultura, admite que a primeira, “exprimirá as possibilidades do nacional

106 Os textos, elaborados pelo Prof. Inezil Penna Marinho, sobre a Capoeira, encontram-se, de forma quase idêntica, em várias de suas obras. Assim, para facilitar a tarefa de identificação das fontes, usarei, em correspondência com as obras, as seguintes siglas : ST (Subsídios para o estudo da metodologia do treinamento da capoeiragem. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde/Departamento Nacional de Educação, Divisão de Educação Física, 1945); SB (Subsídios para a história da capoeiragem no Brasil. Rio de Janeiro, Gráfica e Editora Tupi Ltda., 1956); GB (A ginástica brasileira (Resumo do projeto geral). Brasília, s/ed., 1ª ed., 1980) IF (Introdução ao folclore brasileiro. Brasília, Horizonte, 1980); e FE (Introdução ao estudo da filosofia da educação física e dos desportos. Brasília , Horizonte, 1984). 107 Obras citadas na bibliografia. 108 Cf. Inezil Penna Marinho, SB p. 11, IF p. 62, GB p. 23, ST p. 13-14 e FE p. 156 109 Idem, SB p. 11, IF p. 67, ST p. 18, FE p. 158 e GB p. 13-14 110 Idem, SB p. 11, IF p. 67, ST p. 18, FE p. 158, GB p. 26

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para enfrentar, à mão desarmada, estrangeiros que usem meios de ataque e defesa forjados de acordo com a sua índole”111.

No relato de Penna Marinho, como no de outros autores e estudiosos do assunto, percebe-se com facilidade, que a “luta dos escravos”, “do negro fujão”, a

“arma do oprimido”, com o passar do tempo e com as mudanças conjunturais, atinge, no Brasil, o seu “apogeu” no século XIX, no entanto, tendo em vista a atuação e influência da classe política, da época, também em muito desvirtuou-se,

“principalmente após a proclamação da República, quando surgiu interesses eleitorais”112. No momento em que faz essa afirmação (1945), a Capoeira, para ele, havia desaparecido no Recife; era uma efêmera demonstração, um espetáculo estilizado, na Cidade do Salvador113; e, no Rio de Janeiro, a única referência era a de que o paulista (radicado no Rio de Janeiro desde 1908),

(conhecido por Sinhozinho) mantinha, na zona sul, “uma academia no Ipanema, destinada aos moços grã-finos que desejavam ter algum motivo para se tornar valentes”114, “transformações” essas (na Bahia e no Rio de Janeiro) que indicam, sem dúvida, algumas das múltiplas perspectivas do fenômeno Capoeira.

Na mesma década de 40, do século passado, Roger Bastide115, dentre os estudos que no Brasil desenvolveu, ao discorrer sobre a festa de Yemanjá — observada por ele na Cidade do Salvador, Estado da Bahia —, aponta-nos os sentidos de diversão, de vadiação, de brincadeira, de dança, de brinquedo, de

111 Idem, ST p. 8

112 Idem, IF p. 69, ST p. 13 113 Certamente o nobre professor ainda não havia tomado conhecimento de Mestre Bimba e da vertente Capoeira Regional e nem, tampouco, demonstra afinidade com a Capoeira Angola e conhecimento das concepções e da obra de Mestre Pastinha. 114 Idem, ST p. 30 115 Notável intelectual francês que junto com Lévi-Strauss veio, como professor convidado, a integrar o corpo docente da Universidade de São Paulo, ministrando aulas de Sociologia, no período de 1934 a 1942.

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divertimento, atribuídos à Capoeira. Bastide, implicitamente, reconhece mais esses aspectos contidos na manifestação do fenômeno Capoeira, junto com o Candomblé e o Samba, naquelas “ruas mornas”, onde “homens ágeis fazem da luta uma nova espécie de dança, em que a brutalidade se transforma em ritmo, numa série de voltas onde os corpos vêm a ser apenas uma música de músculos”116. Da mesma forma, encontramos, tais sentidos, nos relatos de Odorico Tavares, publicados, primeiramente, na revista O Cruzeiro, no final dos anos 40 e início dos 50, quando em suas “impressões sobre a Bahia”, o autor registra a presença constante da

Capoeira, quer fosse na festa da Conceição da Praia — quando os alunos do

“ortodoxo Juvenal” e do “eclético Bimba” jogavam entre si como se estivessem na

Roda, os próprios mestres; quer fosse na festa do Senhor dos Navegantes — quando, entre “pandeiros, cavaquinhos, violas, harmonicas, berimbaus e palmas cadenciadas”, a Capoeira acontecia ao lado dos Batuques e ; quer fosse, ainda, na festa de Nossa Senhora da Boa Morte das Negras de Cachoeira — quando no adro da Igreja, assistidos por um grande número de populares que até tarde iam-se renovando, inclusive no consitório, “ao som do , capoeiras riscavam, dançavam de velho, e davam aús e rasteiras”117. Relata, também, José

Valladares que, mesmo sendo jogada o ano inteiro, em Salvador, “em casas especiais, verdadeiras academias do gênero”, retiradas do centro da cidade, a

Capoeira, essa “meio dansa meio luta”, no início da década de 50, só podia ser vista

“com facilidade nas grandes festas populares, sobretudo Conceição da Praia”, quando, “formada a roda, os contendores se lançam nas mais incríveis cabriolas, podendo machucar mas não machucando, fazendo acrobacias dignas de um circo,

116 Cf. Roger Bastide, Imagens do nordeste místico em branco e preto. Rio de Janeiro, Empresa Gráfica “O Cruzeiro” S. A., 1945 117 Cf. Odorico Tavares, Bahia: imagens da terra e do povo. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1951, pp. 25-26; 29-30; 223-224

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pilheriando para fazer pouco do adversário, e prestando uma atenção enorme para não se deixar apanhar”118.

Esse aspecto festeiro do fenômeno Capoeira também encontra-se registrado no estudo de Waldeloir Rego, em sua afirmativa de que esta se fazia presente, antigamente, “onde havia uma quitanda ou uma venda de cachaça, com um largo bem em frente, propício ao jogo. Aí, aos domingos, feriados e dias santos, ou após o trabalho se reuniam os capoeiras mais famosos, a tagarelarem e jogarem capoeira”119. Tais afirmativas são confirmadas pelo depoimento de Daniel Coutinho, o Mestre Noronha (1909/1977), aluno de Mestre João Cândido Pequeno, ao informar que havia Capoeira na Festa da Conceição da Praia (de 1 a 8 de dezembro); na

Festa de Nossa Senhora Santa Bárbara (de 1 a 4 de dezembro), na Baixa dos

Sapateiros; na Festa de Santa Luzia, padroeira do Pilar (13 de dezembro); na Festa das Tabaroas, na Barra (1° de novembro); na Festa da Cabeceira da Ponte de São

João Cabrito; na Festa do Rio Vermelho (2 de fevereiro); na Festa do Sr. do Bonfim, padroeiro da Bahia (18 de janeiro) e na Festa da Segunda Feira Gorda da Ribeira120; e, também confirma-se, pelo relato de Ruth Landes, ao descrever, com detalhes, o jogo entre Samuel Querido-de-Deus e Onça Preta, que assistiu, ao lado de Edison

Carneiro, numa daquelas calorentas tardes de Salvador121, bem como pelo depoimento de Renato Almeida ao relatar que:

“Na viagem à Bahia, em 1941, pude assistir em minha cidade natal — Santo Antônio de Jesus — a um brinquedo de capoeira, como lá se chama. Em geral, é

118 Cf. José Valladares, Bêabá da Bahia: guia turístico. Salvador, Livraria Turista Editora, 1951, p. 102 119 Cf. Waldeloir Rego, op. cit., p. 37. Ver também, Edison Carneiro, Sabedoria popular. Rio de Janeiro, MEC/INL, 1957, p. 198-205 120 Cf. Daniel Coutinho (Noronha), ABC da capoeira angola: os manuscritos do Mestre Noronha. Brasília, DEFER, 1993, p. 19-22 121 Cf. Ruth Landes, A cidade das mulheres, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, p. 112-121

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feito em terreiros ou praças e esse se realizou num grande armazém de fumo, a cujo centro se colocaram os capoeiras em semi-círculo. Durante o jogo, houve sempre cantoria e o instrumento predileto é o berimbau, havendo ainda pandeiros e ganzá.”122

“Quando para a cantoria, corre a pinga. O jogo começa de novo, mais esquentado ainda, com outros dois camaradas. O desenvolvimento é empolgante e, em pouco tempo, uma torcida apaixonada e vibrante, a que ninguém pode fugir, anima e encoraja os seus prediletos, que aplicam golpes freneticamente.”123

Ao tratar dos dois sentidos que mais são ressaltados, ao abordar-se as diversas interpretações do fenômeno Capoeira (dança e luta), Waldeloir Rego, declara, com toda segurança, que ela “foi inventada com a finalidade de divertimento, mas na realidade funcionava como faca de dois gumes. Ao lado do normal e do quotidiano, que era divertir, era luta também no momento oportuno”124, reforçando assim a concepção de “dança pírrica”, como afirmou Ribeyroles125, ou dança da guerra, como interpreta Júlio Cesar Tavares126 e Rugendas, ou de dança de guerra, como concebe Jair Moura127, dentre outros estudiosos e praticantes.

Nesse cenário onde os sentidos atribuídos à Capoeira convergem, divergem e, muitas vezes, se interpenetram, torna-se indispensável atentar-se para as interpretações de Edison Carneiro que, desde a década de 30, do século XX, como é

122 Cf. Renato Almeida, op. cit., p. 126 123 Idem, ibid., p. 129-130 124 Cf. Waldeloir Rego, op. cit., p. 35 125 Cf. Jair Moura, Capoeiragem: arte & malandragem. Salvador, Secretaria Municipal de Educação e Cultura/Departamento de Assuntos Culturais/Divisão de Folclore, 1980, p. 17 126 Cf. Júlio Cesar Tavares, Dança da guerra: arquivo-arma. Dissertação apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília para obtenção do título de Mestre em Sociologia. Brasília, UnB, 1984 127 Filme de longa metragem intitulado Dança de Guerra, produzido e dirigido por Jair Moura em 1969

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possível constatar por intermédio de suas cartas endereçadas à Arthur Ramos128, já a elegera como um dos principais objetos de seus estudos, de sua observação e investigação, informado que era por Samuel Querido de Deus129, chegando até, por seu envolvimento com o Campo da Capoeira, a propor e a tentar viabilizar, sem sucesso, a fundação da “União dos Capoeiras da Bahia, com os melhores capoeiristas da terra”130.

Em janeiro de 1936, portanto, após visita à Cidade do Salvador, Edison

Carneiro, supõe que a Capoeira tenha a sua origem na cufuinha131, de Luanda, e relata, em carta datada de 27 de novembro, ter identificado em seus cânticos,

“coisas muito interessantes”, tais como: a presença forte do totemismo; heróis

“daomeizados”; recordações da África; o sincretismo religioso; a constante presença do mar.132

Edison Carneiro, também, atesta que a Capoeira é um “divertimento velho no

Brasil”, tão velho quanto o tráfico negreiro, e que, chamada essa luta de vadiação, pelos capoeiras da Bahia, “e, tal como, ella se realiza nas festas populares da

Cidade, a capoeira não passa disso. Os negros se divertem, fingindo lutar, embora cantem: no jogo da capoeira quem não joga mais apanha!”133. Para o autor de

Negros Bantus, a Capoeira é, também, “uma demonstração da prodigiosa agilidade

128 Cf. Cartas de Édison Carneiro a Artur Ramos: de 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. Organização de Waldir Freitas Oliveira e Vivaldo da Costa Lima. São Paulo, Currupio, 1987 129 Idem, ibid., Nota n° 2, de Vivaldo da Costa Lima, para a Carta n° 2, de 27 de janeiro de 1936, p. 93 130 Idem, ibid., Carta n° 12, de 12 de dezembro de 1936, p. 131 131 Uma das danças guerreiras julgadas, por Arthur Ramos, em 1932, como das mais interessantes entre os povos de Luanda. Cf. Arthur Ramos, O folclore negro do Brasil, Rio de Janeiro, Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1954, p. 121 132 Cf. Cartas de Édison Carneiro a Artur Ramos: de 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. Organização de Waldir Freitas Oliveira e Vivaldo da Costa Lima. São Paulo, Currupio, 1987, p. 89 133 Cf. Edison Carneiro, Negros bantus: notas de etnographia religiosa e de folk-lore. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1937, p. 148

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do angola, que executa os movimentos corporaes mais difficeis sem nem-um esfôrço, sorrindo. E a luta solicita todo o corpo”134.

Considerando a Capoeira, junto com o Samba, o Maracatu, o Frevo, o

Bumba-meu-boi, dentre outras, como uma das manifestações populares em que a influência do negro foi decisiva135 e concordando com os historiadores que julgam ter o governo da Bahia, na época, se aproveitado da Guerra do Paraguai para

“afastar da Cidade os capoeiras e batuqueiros que começavam a constituir um problema”136, Edison Carneiro também reconhece, ainda, que o preconceito (de classe, de cor e de religião, principalmente) alijou o negro do processo de construção de sua cidadania, de sua identidade, por intermédio da perseguição às suas manifestações culturais — tais como o Candomblé, o Batuque e a Capoeira

—, haja vista que

“com seus grandes quitutes de fama nacional, com os seus não menos famosos Candomblés (...), com seus pano da costa, os seus camisus, os seus torsos, com as sua rodas de samba, de capoeira e de batuque, com seus ganhadores e as suas mulheres-de-saia, o negro da Bahia modificou o panorama geral da Cidade”.137

Reconhecendo que o negro, principalmente o angola, resistiu com galhardia,

“com decisão e bonomia”, às diversas e intensas perseguições empreendidas pela elite branca do país e que o Samba e a Capoeira são “as maiores diversões de

134 Idem, ibid., p. 150 135 Idem, Antologia do negro brasileiro. Rio de Janeiro : Editora Tecnoprint S.A. , s/d, p. 10 136 Idem, Ladinos e crioulos: estudos sobre o negro no Brasil, Rio de Janeiro , Civilização Brasileira, 1964, p. 69-71 137 Idem, ibid., p. 70

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procedência africana”138, Edison Carneiro constata que, devido à enorme migração de brasileiros para a cidade do Rio de Janeiro, na época capital do Brasil, o

“panorama folclórico” da cidade transformou-se, tendo em vista que esses que recorriam às novas oportunidades de sobrevivência e, junto com a pequena bagagem, com o grande número de filhos, com seus sonhos e expectativas, quase nunca realizados, traziam também “elementos folclóricos antes completamente desconhecidos no Distrito Federal ou a reabilitação de outros, que daqui foram banidos em passado não muito remoto”. Dentre esses elementos, segundo

Carneiro, encontravam-se a Folia de Reis, o Frevo, o Afoxé e a Capoeira, esse “jogo de destreza” com o qual os “moleques de Sinhá” tanto trabalho deram à polícia local, agora transformado em “luta leal”, em “diversão de amigos”, manifestação essa que mais de 50 anos depois “retorna ao teatro das façanhas de Manduca da Praia” e que

“trazida pelos baianos”, porém, “nada tem de agressiva, nem constitui ameaça à ordem pública”139.

Desta forma, em seus últimos estudos sobre o assunto, afirmando que para a manifestação da Capoeira, como jogo, são requeridos um círculo de pessoas (a

Roda) e o acompanhamento de berimbaus e pandeiros, Edison Carneiro afirma que, recomendada por muitos como Esporte ou Luta Nacional, tal fenômeno

“era antes uma forma de luta, muito valiosa na defesa da liberdade de fato ou de direito do negro liberto, mas tanto a repressão policial quanto as novas condições sociais fizeram com que, há cerca de cinquenta anos, se tornasse finalmente em jogo, uma vadiação entre amigos. Com esse caráter inocente a capoeira permanece na Bahia”140.

138 Idem, Sabedoria popular. Rio de Janeiro, MEC/INL, 1957, p. 76 139 Idem, ibid., p. 107-109 140 Idem, Capoeira. Coleção Cadernos de Folclore n° 1, Rio de Janeiro, MEC/Funarte, 1975, p. 3-5

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Cinqüenta e nove anos antes dessa interpretação de Edison Carneiro, é importante ressaltar, Manuel Querino já havia afirmado que a Capoeira, também na

Bahia, encontrava-se, em muito, diferente daquela que se costumava apreciar nas festas de largo, tendo se transformado em “uma verdadeira capoeira de salão”141.

Carlos Otti é outro estudioso das coisas da Bahia que, afirmando ser a questão da sua origem, ainda (1955), uma das grandes polêmicas, “tanto por falta de maior bibliografia africana como por falta de informações antigas da Bahia que mencionassem a capoeira”, concebe-a como sendo uma atividade vinculada aos jogos e esportes populares, mesmo deixando claro em sua narrativa a polissemia existente no fenômeno, como é possível notar na descrição que se segue:

“Outro esporte, apreciadíssimo pelo povo, é a capoeira. Dentro da Cidade como nos subúrbios se encontram barracões, às vezes cobertos apenas de palhas de coqueiro, onde durante toda a tarde dos domingos ouve- se a música monótona do berimbau e melodias freqüentemente parecidas às que se entôam nos candomblés. Tive ocasião de assistir à capoeira na Estrada da Liberdade (Pero Vaz) e fiquei admirado da destreza desses homens fortes, tendo, às vezes, dois metros de altura e 40 anos de idade, brincarem à maneira de gatos, onças ou leões, um passando por cima do outro, lançando suas pernas compridas pelo ar, sem nunca bater no adversário nem nos espectadores, sentados alíi junto. Tem-se a impressão de engalfinharem-se gatinhos, num jogo de músculos, ao mesmo tempo, grandioso e ingênuo. No barracão da Pero Vaz na Liberdade, poucas vezes, o jogo passava à luta corporal; e quando isso acontecia, tendo os jogadores

141 Cf. Manuel Querino, A Bahia de outrora. Salvador, Livraria Progresso Editora, 1955, p. 73

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‘facões’ de madeira nas mãos, não passava de luta disfarçada. Um golpe em falso, porém, podia causar um desastre, o que de fato não aconteceu. Mas, ao que parece, acontece, pois no fim da luta, ouvi um rapaz dizer ao que tinha dado os ‘facões’: ‘Como voçe poude dar este pau a fulano para lutar com um pai de família?’”142

“Os movimentos essenciais do jogo, sem dúvida, foram copiados das brincadeiras de animais da raça felina: muitas tribus africanas estão em relações totêmicas com os leões e as onças, de sorte que os movimentos característicos de seus ‘parentes’ deviam ser-lhes bem familiares. Em favor disso fala também o cunho religioso que, até hoje, conservou a capoeira, como pude observar na Liberdade e que também não desapareceu da capoeira do mestre Bimba: refiro-me ao fato de os dois lutadores ou capoeiristas, antes de iniciar a luta ou jogo, ajoelharem-se diante da banda de música e cantarem da mesma maneira como as filha de Santo, nos candomblés bahianos, antes de começarem as dansas. Nos dois casos, os músicos assumem certo caráter sagrado pois transmitem as melodias ou os sons característicos das divindades.”143

Certamente, nem todos os que atuam, de alguma maneira, no Campo da

Capoeira aceitam como verdadeira essa característica de, no mínimo, dualidade, de bipolaridade ou bivalência em sua constituição e manifestação. Um exemplo disso

142 Cf. Carlos B. Otti, Formação e evolução étnica da Cidade do Salvador: o folclore bahiano, Salvador, Tipografia Manú Editora Ltda., 1955, p. 151-152 143 Idem, Ibid., p. 157

157

encontra-se nas concepções e interpretações de Júlio Carlos Melo, o Vinte Nove, aluno de Mestre Bimba144 na década de 60, do século passado.

Vinte Nove, dando vazão à emoção e apoiando-se na premissa de que as danças guerreiras “nasceram primeiro”, acredita que a Capoeira é, pois, originária de tais danças e, para justificar e fundamentar sua convicção de que ela jamais poderia ser uma dança, faz o questionamento “Como se pode aprender dança que usa rasteira, vingativa, martelo, queixada, benção, escorão, calcanheira, açoite de braço

[golpes da Capoeira Regional] que podem até matar o agredido? Dança agressiva é uma incoerência”.145

Ao fazer também um alerta quanto aos perigos que decorrem do fato de conceber-se a Capoeira como dança ou folclore, Vinte Nove declara, convictamente, que ela é uma luta, um “esporte do ramo pugilístico” que pelo motivo de ser luta é que foi perseguida e proibida pelas autoridades constituídas. Como é possível perceber, de forma bem particular e sustentada por premissas que constituem o senso comum existente nesse Campo Social, afirma, ainda, que ela é

“(...) filha de DANÇAS GUERREIRAS, não sendo dança porque o principal objetivo não é cultuar os DEUSES GUERREIROS, é um desvio dos pais ou da mãe (DANÇA GUERREIRA) para a sua única TAREFA PRIMORDIAL — DEFESA PESSOAL — que utilizavam os escravos contra as perseguições escravocratas, tanto no colonialismo, imperialismo e no início da República.”146

144 (1900/1974), criador da vertente da Capoeira conhecida como Capoeira Regional. 145 Cf. Júlio Carlos Melo, Capoeira: dança ou luta ? Salvador, o Autor, 1984, p. 46 146 Idem, ibid., p. 34

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Distanciando-se, e muito, das afirmações de Vinte Nove, têm-se as interpretações de Muniz Sodré, o Americano (também aluno de Mestre Bimba, em

1963), que levando em consideração as estratégias de resistência utilizadas pelos negros africanos, escravos, no Brasil, concebe que, sendo

“uma luta com aparência de dança, dança que aparenta combate, fantasia de luta, vadiação, mandinga, a capoeira sobreviveu por ser jogo cultural. Um jogo de destreza e malícia, em que se finge lutar, e se finge tão bem que o conceito de verdade da luta se dissolve aos olhos do espectador e — ai dele — do adversário desavisado”.147

Atribuindo à mandinga (a malícia) o valor de ser um dos elementos-chave dessa “arte-jogo” que é a Capoeira, Sodré, ainda, ressalta a precisa capacidade do negro, escravo, que ao criar, “em questão de segundos” um nova atitude, consegue

“contornar a ideologia ocidental do corpo”, ideologia essa que está contida nas várias prescrições para “o uso do corpo”, bem como nas diversas representações sobre ele e nos hábitos adquiridos e cristalizados.148

Muniz Sodré, ainda, ressalta o valor do que ele chama de “Capoeira Negra”, ao afirmar que esta é “um jogo sem leis”, portanto, “sem método”, no qual a perfeita avaliação do momento e das oportunidades que se apresentam é de fundamental importância para que “cada novo instante seja preenchido por um novo gesto”, permitindo, assim, que o Capoeira, que é “senhor de seu corpo”, possa improvisar sempre e, criar, como um artista, nesse encontro de “sinergias musculares com

147 Cf. Muniz Sodré, A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro, Codecri, 1983, p. 206 148 Idem, ibid., p. 212

159

imperativos de resistência cultural”, fazendo do “jogo da capoeira uma extraordinária diferença cultural”!149

A Capoeira é uma manifestação cultural, uma (re)criação do negro africano no

Brasil que é transmitida, de geração a geração, até por volta dos últimos anos da década de 30, do século XX, pela transmissão oral, principalmente, e que, para

Muniz Sodré, não apresenta nenhum segredo metodológico, como afirmou Mello

Moraes Filho, ou que se realiza “maçonicamente”, como declarou Gilberto Freyre150, mas sim é um processo que conta com a indispensável e importantíssima participação do “mestre capoeirista negro” que, com notoriedade e notavelmente,

“não ensina a seu discípulo — pelos menos de maneira como a pedagogia ocidental entende o verbo ensinar, ou seja, o mestre não verbaliza nem conceitua o seu saber para doá-lo metodicamente ao aluno. Também não interroga, nem decifra. Ele inicia: cria as condições de aprendizagem (formando a roda de capoeira) e assiste a elas. É um processo sem qualquer intelectualização, em que se busca um reflexo, corporal comandado, não pelo cérebro, mas por algo indeterminado resultante dessa iniciação do corpo”.151

Buscando inspiração nos princípios filosóficos do Zen, que fundamenta também a arte oriental, Muniz Sodré associa à Capoeira, praticada e “ensinada” pelos Velhos Mestres da Bahia, a concepção zenista de jogo, que o define como

“um caminho para contornar o artificialismo cultural na percepção do mundo e a

149 Idem, ibid., p. 212-214 150 Cf. Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1968, p. 44 151 Cf. Muniz Sodré, A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro, Codecri, 1983, p. 212

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alcançar a iluminação e a afirmação individual”152. Sendo assim, a dupla face de luta e dança/jogo que, concomitantemente, “traz uma mensagem simultânea de paz e de guerra”, leva-o a concebê-la (distanciando-se da concepção ocidental de jogo, de luta ou de dança) como uma “arte brasileira do corpo”, na qual, não existindo esquemas e planos pré-concebidos, o corpo é livre, “solto em seu movimento, entregue a seu próprio ritmo, que encontra instintivamente o seu caminho”153. Um corpo que não é definido por sua anatomia, mas por sua “capacidade de refletir a sua experiência particular no mundo”, um “corpo espiritual”154. Uma arte, “sentido ampliado de jogo”, que, antes de tudo, é “expressão, no sentido de transmissão deliberada de valores da vicissitude constitutiva da identidade brasileira”155, uma das mais importantes formas da “sabedoria afro-brasileira do corpo”156.

A Capoeira, para Muniz Sodré, é essa arte-jogo, na qual há “um envolvimento emocional, um sentimento de raiz e tradição, ausentes do esporte puro e simples”157, qualidades essas que por certo foram algumas das principais razões que levaram o seu personagem Santugri a identificar a magia existente em sua prática, confessando que a razão pela qual gostava tanto assim de uma Roda de

Capoeira era o fato de que “a roda não tem começo nem fim. Começo, fim, a mesma coisa, é nada e tudo. Gosto, moço. Nela, meu corpo é meu — parece que

152 Idem, O Brasil simulado e o real: ensaio sobre o quotidiano nacional. Rio de Janeiro, Rio Fundo Ed., 1991, p. 13 153 Idem, ibid., p. 15 154 Idem, Capoeira e identidade. In: SOUZA E SILVA, J. E. F. (org.) Esporte com identidade cultural: coletânea. Brasília, INDESP, 1996, p. 64 155 Idem, ibid., p. 68 156 Idem, Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis , Vozes, 1999, p. 227 157 Idem, A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro, Codecri, 1983, p. 214

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nele nem corre sangue, corre mel”158, momento esse que definiu como

“camaradagem de homens livres, compadrio de amigos”159.

Eis a “Arte-jogo”, luta, jogo, que Jorge Amado coloca nos cenários de suas obras como uma manifestação importantíssima da cultura popular da Bahia, como por exemplo ao fazer do Pelourinho uma Universidade e da Tenda dos Milagres, sua

Reitoria; Pedro Arcanjo, como seu Reitor; e, como seus professores, todos aqueles que atuavam “em cada casa, em cada tenda, em cada oficina”, homenageando o legendário Mestre Pastinha160, com seu personagem Budião e sua “escola de capoeira”161.

Jorge Amado, também, em sua obra literária, concebe a Capoeira como

“arma de defesa, nascida nas senzalas, criação dos escravos bantos”162, arma essa que foi preservada pelos seus antigos mestres — “artífices da cultura brasileira” —, os quais foram relembrados pela figura de Querido de Deus ao ensinar a “lutar capoeira”, os personagens Gato, João Grande e Pedro Bala — adolescentes marginalizados que aprenderam com ele, no trapiche ou no pequeno espaço que havia nos fundos da Porta do Mar, os meandros do “jogo da capoeira Angola”163, essa luta que tanto projetou, desde Santo Amaro da Purificação, a figura polêmica e temida de Besouro Mangangá164.

Ao convidar a todos para que conhecessem a Bahia com os seus inconfundíveis e inesquecíveis encantos, Jorge Amado recomendou que seus visitantes não deixassem de apreciar “o extraordinário espetáculo que é Mestre

158 Idem, Santugri: histórias de mandinga e capoeiragem. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1988, p. 15 159 Cf. Jorge Amado, O sumiço da santa: uma história de feitiçaria. Rio de Janeiro, Record, 1988, p. 295 160 Vicente Ferreira Pastinha (1899/1985), o mais importante divulgador e representante da vertente da Capoeira denominada de Capoeira Angola. 161 Cf. Jorge Amado, Tenda dos milagres. Rio de Janeiro, Record, 1987, p. 13-17 162 Idem, O sumiço da santa: uma história de feitiçaria. Rio de Janeiro, Record, 1988, p. 291 163 Idem, Capitães da areia. São Paulo, Livraria Martins Editora, s/d, p. 17, 32 e 197 164 Idem, Mar morto. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1965, p. 122

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Pastinha no meio do seu salão jogando a capoeira, ao som do berimbau. E quando ele não está lutando, não vai descansar. Toma de um berimbau, puxa as cantigas”165.

Identifica-se, com facilidade, que, também na interpretação de Jorge Amado, ao fenômeno Capoeira atribui-se, concomitantemente, vários sentidos, pois para ele,

“às quintas-feiras e domingos ‘brinca-se’ na Escola” de Mestre Pastinha; o Mestre

Pastinha é “o mais perfeito lutador de capoeira angola da Bahia”; o Capoeira conhecido por Traíra era um exímio bailarino e “vê-lo brincar” era um “verdadeiro prazer estético”; os Capoeiras, nas Rodas, lutam cantando versos; a Capoeira foi uma dança, depois virou luta e, hoje, é a “nossa luta nacional”, a “mais bela luta do mundo e feliz de vós se um dia puderes ver o Mestre Traíra e Pastinha num desafio de capoeira”166.

Dentre os vários significados atribuídos à Capoeira, abordados até o momento, ressalta-se, a partir, principalmente, da década de 70, do século passado, o seu sentido de Esporte, enfatizado, com veemência e, pode-se dizer, com um notório grau de preconceito, por João Lyra Filho, que, em uma abordagem impregnada pelas premissas de um evolucionismo social descabido, em seu estudo sobre os aspectos sociológicos e antropológicos do Esporte, mesmo concordando, em parte, com os fatores sócio-econômicos que interferiram, sobremaneira, na construção de seus significados, concebe-a como uma manifestação cultural que poderia deixar de ser um simples jogo — no qual os negros e mulatos, “sem a luz com que o espírito se governa”, passaram a aplicar “os recursos primários dos

165 Idem, Bahia de todos os santos. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1967, p. 211 166 Idem, ibid., p. 212-214

163

instintos”167 —, para ser valorizada pela sociedade, em geral, como “desporto”168, haja vista que, além desses motivos explicitados, para ele, um jogo, “em sentido lúdico, não tem potenciais para criar ou desenvolver”, fato esse que não acontece com o Esporte, com a competição, que é “o jogo levado a sério”169.

Nessa contribuição que Lyra Filho julga ter dado ao Seminário de

Tropicologia, promovido pela Universidade Federal de Pernambuco e organizado por

Gilberto Freyre, o autor classifica a Capoeira “dentro da cultura nacional do Brasil como um jogo folclórico de origem primitiva”170, que mobiliza recursos de natureza física, anímica e espiritual171, faltando-lhe, no entanto, “a institucionalização indispensável a qualquer desporto”, para que possa, assim, constituir-se em

“desporto brasileiro culturalmente útil ao povo e, especialmente, às forças armadas do país”172.

Essa perspectiva de Esporte que, considerada como uma modalidade de luta esportiva, começa a dominar o Campo da Capoeira durante, principalmente, o período do Estado Novo, é abordada com detalhes por Jair Moura, aluno de Mestre

Bimba desde 1951. Como uma das fontes que lhe deram origem, depreende-se dos estudos de Jair, tem-se a Luta Regional Baiana, criada por Mestre Bimba, a partir de

1926, inspirando-se na vertente denominada, posteriormente, de Capoeira Angola e no Batuque173. Tal criação, desenvolvida por intermédio de um processo que tem, até hoje, gerado muita polêmica, haja vista o relato de muitos autores, alunos e

167 Cf. João Lyra Filho, Introdução à sociologia dos desportos. Rio de Janeiro, Bloch Editores S. A., 1973, p. 59 168 Idem, ibid., p. 71 169 Idem, ibid., p. 17 170 Idem, ibid., p. 246 171 Idem, ibid., p. 315 172 Idem, ibid., p. 319 173 Cf. Jair Moura, Capoeira Regional da Bahia. Cadernos Antonio Vianna. Salvador, Comissão Baiana de Folclore, 1976, p. 19

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praticantes174 que afirmam ter, o seu criador, acrescentado à sua obra (após visita, na década de 50, ao Rio de Janeiro) golpes pertencentes a outras lutas alienígenas, tais como Jiu-Jitsu, Karatê, , Chatch-a-catch-can e o Boxe, estabeleceu-se com o nome de Capoeira Regional.

Na interpretação de Jair Moura, porém, o desvirtuamento de “suas características tradicionais e primordiais” foi levado a efeito por Mário Aleixo que, identificando (como também o fez Burlamaqui) “lacunas, deficiências e falhas” na

Capoeira, acrescentou alguns golpes de lutas estrangeiras na intenção de revigorá- la175, atitude essa considerada nefasta, tendo em vista que o conjunto de golpes genuínos “são suficientemente vigorosos e demolidores para assegurar à luta sua superioridade, dispensando acréscimos inúteis que concorrem para despojá-las dos seus fundamentos, artimanhas e recursos seculares e inconfundíveis”176.

Essa polêmica177 continua até os dias de hoje e, parece-me, tão cedo não terminará! No entanto, apenas como um pequeno exemplo de seu potencial para levantar discussões e acirrar ânimos (pois não é esse o objeto deste estudo), nota- se que das observações de Jair Moura sobre o chamado desvirtuamento de “suas características tradicionais e primordiais” causado por Mário Aleixo, dois pontos merecem ser considerados, mais detidamente: em primeiro lugar, Jair Moura, não esclarece a qual Capoeira ele se refere como sendo possuidora de “fundamentos, artimanhas e recursos seculares”; certamente não se trata da Capoeira Regional,

174 Dentre muitos outros, encontram-se Muniz Sodré, Jorge Amado, Waldeloir Rego, Lyra Filho, Edison Carneiro, Pereira da Silva e Daniel Coutinho. Sobre o processo de criação da Capoeira Regional e a forte influência de Mestre Bimba, dentre outros autores, é indispensável a leitura de Angelo Decanio Filho, Jair Moura, Frede Abreu, Raimundo Cesar A. de Almeida (Mestre Itapoan) e Luiz Renato Vieira, nos títulos indicados na bibliografia.. 175 Cf. Jair Moura, Evolução, apogeu e declínio da capoeiragem no Rio de Janeiro. Cadernos Rioarte (Caderno Ouro), Ano I, n° 3, Rio de Janeiro, Instituto Municipal de Arte e Cultura, 1985, p. 93 176 Idem 177 Por sua importância, cabe aqui, neste estudo, abrir-se um pequeno parêntese para, rapidamente, abordá-la.

165

pois esta foi criada, por Mestre Bimba, a partir de 1926, portanto não poderia ainda ser considerada como secular; em segundo lugar, esqueceu-se, também, de que já afirmara que Mestre Bimba, ao criar a Regional, “aperfeiçoou” a Capoeira existente na época. Ora, se Mestre Bimba, o criador da Capoeira Regional pôde, meritoriamente, ser comparado, por ele, com Carlos Lecour, o criador do boxe- francês (que é a mistura do boxe-inglês e a savate)178, por introduzir novos elementos na Capoeira e, assim, otimizá-la, por que, então, as atitudes de Mário

Aleixo e de Burlamaqui devem ser condenadas?

O fato, portanto, que interessa diretamente a este estudo é que, com o aparecimento de Mestre Bimba (considerado por alguns como dissidente da

Capoeira tradicional, da Capoeira dos ancestrais ou, como classificou Carybé, “uma espécie de Lutero da capoeira”179), principalmente nos anos 30, com o crescente nacionalismo estimulado por Vargas e, mais ainda, no Estado Novo, cada vez mais se bipolarizaram os significados mais abrangentes atribuídos à Capoeira, ou seja foram surgindo duas importantes correntes de praticantes e defensores da Capoeira, quais sejam, num pólo, encontra-se a Capoeira Regional — que, tendo como principal articulador Mestre Bimba e, como disseminadores, seus fiéis discípulos e, até hoje, “escudeiros”, é a vertente da Capoeira que enfatiza, super dimensiona os seus significados de luta-esportiva, de instrumento de defesa pessoal, de esporte institucionalizado, metodizado e regrado, desenvolvendo-se, por intermédio da sistematização, técnico-científica, de seu processo de aprendizagem, como parte constituinte do conjunto de conhecimentos que formam a Educação Física e o

Esporte, enquanto campos do saber; no outro pólo, a Capoeira Angola — que, tendo como referências o Mestre Pastinha e outros importantes Velhos Mestres da

178 Cf. Jair Moura, Capoeiragem: arte & malandragem. Salvador, Secretaria Municipal de Educação e Cultura/Departamento de Assuntos Culturais/Divisão de Folclore, 1980, p. 17 179 Cf. Carybé, op. cit., p. 4

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Bahia, é a vertente da Capoeira que ressalta os seus significados de dança pírrica, de dança-guerreira, de brincadeira e de brinquedo, de vadiação, de jogo, de folclore, desenvolvendo-se por intermédio, principalmente, do aprimoramento das qualidades criativas e intuitivas de seus praticantes. Tal bipolarização, pode ser percebida, com facilidade, ao refletir-se sobre as palavras de Frede Abreu, ao indicar, com a modéstia que lhe é peculiar, as principais características dos referidos pólos e dos dois principais mestres que, de um forma ou de outra, os referenciam: “na Capoeira, o Mestre Bimba é o tal; ‘seu’ Pastinha, o Tao”. Mas essa questão, como dizia minha avó, são outros quinhentos mil réis!

Voltando às interpretações de Jair Moura, é possível identificar que, como outros autores já citados que não chegam a manter o mesmo vínculo estabelecido entre ele e o Mestre Bimba ou com sua obra, concebe a Capoeira como sendo, no passado e no presente, um dos melhores esportes, principalmente no que diz respeito à atividade muscular180, tendo como sua essência a negaça, a ginga, a dissimulação.

Carlos Senna, outro dos antigos alunos de Mestre Bimba, desde 1950, e um dos maiores articuladores, divulgadores e defensores da Capoeira como Esporte institucionalizado, da Capoeira codificada como “arte marcial brasileira”, fundamenta- se na premissa de que ela “não surgiu, não veio, não apareceu” mas “simplesmente brotou dos quilombos”, produzida que foi pela “situação psicofísica” na qual o negro naquele tempo, vivia181, ou seja, existindo em perfeito contato com a natureza e assimilando

180 Cf. Jair Moura, Capoeira: a Luta Regional Baiana. Cadernos de Cultura n° 1. Salvador, Prefeitura Municipal de Salvador/Secretaria Municipal de Educação e Cultura/Departamento de Assuntos Culturais/Divisão de Folclore, 1979, p. 9 181 Cf. Carlos Senna, A vida vegetativa da capoeira. Revista Brasileira de Educação Física e Desportos, ano 10, n° 38, jul/set. Brasília, MEC/DED, 1978, p. 78

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“as qualidades naturais de sobrevivência de quatro espécies de nossas matas: o macaco, a onça, a raposa e a aranha, nos quais se inspirou para criar os conjuntos de movimentos de defesa e ataque, formadores de conteúdo belicoso da luta-revide de nossos escravos, a arte marcial brasileira”182.

A belicosidade da Capoeira, quiçá a principal característica dessa arte marcial brasileira, da mesma forma como se observássemos a ação da aranha diante de sua presa que acabou de cair em sua teia, pode ser percebida, na interpretação de Senna, quando o que luta

“procura, em forma circular, criar os espaços que conduzam à possibilidade de enlaçar, pela força ‘hipnótica centrífuga’, o companheiro, e possa, sem o mesmo perceber o que vai acontecer, como uma fórmula mágica, produzir uma espécie de energia ‘espiral centrípeta’ que atue no adversário de forma a atraí-lo, envolvendo-o num todo para se servir da maneira belicosa que julgue mais interessante”183.

Com essa visão bélica da Capoeira, significando-a como “esporte-luta” e admitindo sua origem de defesa pessoal, constitutiva de uma “cultura física completa”, cultura essa que “dá ao CORPO HUMANO a suavidade da garça, a

182 Idem 183 Idem, ibid., p.79

168

agilidade e destreza dos felinos, a resistência dos ruminantes”184, Carlos Senna, de modo sui generis, assim a define:

“CAPOEIRA — Arte da negaça que tem nos pés seus pontos básicos e nas mãos o seu coadjuvante. O seu princípio é dos líquidos, podendo ser dos gasosos, ou seja, a água e seu vapor, que num estado ajeita-se e em outro é imperceptível, dando jeito de passar por onde precisa, traiçoeira com aqueles que querem ignorar o seu poder”185.

Considerando que a ordem máxima, a disciplina rígida, o respeito absoluto e a moral ilibada são os valores e requisitos indispensáveis para a formação do ser humano para viver em sociedade, para a formação ética de qualquer cidadão, e também, necessariamente, para a formação do capoeirista, Carlos Senna propõe o seu “Regulamento da Capoeira”, abordando as normas gerais para o seu desenvolvimento, organização e aprendizado, como alicerce para a constituição e oficialização da Capoeira como Arte Marcial Brasileira. Tais normas referem-se, dentre outros aspectos, ao comportamento dos capoeiristas; suas saudações; hierarquia; questões disciplinares, direitos, deveres e punições; sistema de graduação; organização administrativa; normas de seleção e treinamento de capoeiristas/atletas, bem como de competições e arbitragem; e, indumentária do capoeirista.186

184 Idem, Capoeira: arte marcial brasileira (Ante-projeto de regulamentação). Salvador, Secretaria Municipal de Educação e Cultura/Departamento de Assuntos Culturais/Divisão de Folclore, 1980, p. 11 185 Idem 186 Idem, ibid., p. 19-64

169

Na ótica de Carlos Senna, portanto, a “belicosidade brasileira exercitada com arte, amor, respeito, elegância, equilíbrio mental e físico interpreta-se como Arte

Marcial, e chama-se CAPOEIRA”187.

Na interpretação de Angelo Decanio Filho, o Dr. Decanio (outro dos antigos alunos de Mestre Bimba, desde 1938), do “encontro dum descendente de africanos

[o Mestre Bimba] com um acadêmico cearense [Sisnando], de ascendência portuguesa”, surge a Capoeira Regional, com um “vocabulário humilde, de um semi- analfabeto, enriquecido pela linguagem, castiça, dum estudante de medicina”188 e com ela, pode-se inferir, são dados os primeiros passos para a sua concepção e desenvolvimento como Esporte institucionalizado. Como conseqüência, cria-se, mesmo que informalmente, uma Academia de Capoeira, em 1932, oficializada em

1937 (a primeira do Brasil)189, além de uma série de normas e regras para o seu ensino e para a sua aprendizagem, dentre as quais, além de outros quesitos, inclui- se um sistema de graduação de alunos, em diferentes níveis de aprendizado e de desempenho, “como indicador do grau técnico dos capoeiristas”190 e a padronização da nomenclatura dos golpes utilizados.

Como declara Decanio, a Capoeira, para Mestre Bimba, era uma “luta, embora praticada disfarçada como ‘jogo’ ou ‘vadiação’ (brincadeira)”191, atividade essa que o Mestre, como afirma Raimundo Cesar, o Itapoan (seu aluno desde

1964), julgou que tivesse, com o passar do tempo, “se folclorizado, assim como a

Bahia, degenerado-se, passando a servir de ‘prato do dia’ para ‘pseudos

187 Idem, Capoeira: percurso. Salvador, Senavox , Rasteira, 1990, p. 7 188 Cf. Angelo Decanio Filho, A herança de Mestre Bimba: filosofia e lógica africanas da capoeira (Coleção São Salomão n° 1). Salvador, Edição do autor, 1996, p. 178 189 Cf. Lamartine P. da Costa e José Maurício Capinussú, Administração e marketing nas academias de ginástica, São Paulo, IBRASA, 1989, p. 23 190 Cf. Angelo Decanio Filho, A herança de Mestre Bimba: filosofia e lógica africanas da capoeira (Coleção São Salomão n° 1). Salvador, Edição do autor, 1996, p. 78 191 Idem, ibid., p.112

170

capoeiristas’, que a utilizavam unicamente para exibições em praças e, por ter eliminado seus movimentos fortes, mortais, deixava muito a desejar em termos de luta”192, razão pela qual, segundo suas palavras, ele foi “inventando e aperfeiçoando novos golpes”, contando a sua criação, ao final desse processo desenvolvido no período entre 1918 a 1928, com 120 golpes, contrastando com a Capoeira Angola com os seus, eficazes, 9 golpes, processo esse no qual, na interpretação weberiana de Luiz Renato Vieira, o Luiz Renato (aluno de Mestre Zulu), é possível evidenciar, como resultado do confronto entre o que chamou de “ética da malandragem” com a

“imposição de uma ordem racional”193, a “incorporação da capoeira a uma mentalidade racional, em que o jogo progressivamente define-se enquanto prática desportiva institucionalizada e, em alguns casos, voltada para competições”194.

Como um bom exemplo para entender-se o perfil de Mestre Bimba e o porquê resolveu “recuperar a característica de luta” da Capoeira, tem-se o relato de

Ubirajara Almeida (o Acordeon, aluno de Mestre Bimba desde 1958) sobre um dos muitos conselhos que o Mestre dava a seus alunos:

“Capoeira é luta que nêgo escravo usava pra escapá, meu fio. Quando sortá um martelo, bota pra quebrá o pé; quando largá um galopante, dê pra quebrá a mão; e quando jogá alguém de cabeça no chão, abra um buraco no cimento que é pra acalmar o indivíduo!”195

192 Cf. Raimundo Cesar, A saga do Mestre Bimba. Salvador, Ginga Associação de Capoeira, 1994, p. 16. 193 Idem, ibid., p. 9 194 Cf. Luiz Renato Vieira, O jogo da capoeira: corpo e cultura popular no Brasil. Rio de Janeiro, Sprint, 1998, p.10. Para o aprofundamento dessa questão da competição e da divulgação da Capoeira Regional, os interessados devem ler, além do estudo de Luiz Renato, principalmente, de autoria de Frede Abreu, “Bimba é bamba”: a capoeira no ringue. Salvador, Instituto Jair Moura, 1999; de autoria de Raimundo Cesar (Itapoan), dentre outros textos, Bimba: perfil do mestre. Salvador, Centro Editorial e Didático da UFBa, 1982 e A saga do Mestre Bimba. Salvador, Ginga Associação de Capoeira, 1994; e, de Esdras Magalhães dos Santos (Damião), Conversando sobre capoeira ... São José dos Campos, o Autor, 1996 195 “Cf. Ubirajara G. Almeida, Água de beber, camará!: um bate-papo de capoeira. Salvador, EGBA, 1999, p. 52

171

Para esclarecer, ainda mais, o sentido atribuído ao fenômeno Capoeira em sua perspectiva de Esporte institucionalizado, de Esporte de Rendimento, destaco mais um aspecto da interpretação de Luiz Renato, relacionado à Capoeira Regional, quando este, ao admitir que “a Capoeira Regional de Mestre Bimba reflete a penetração dos princípios militaristas do Estado Novo na sociedade civil brasileira”196, a vincula, ao sistema político da época, como uma estratégia para alcançar o objetivo de “ampliar a inculcação dos princípios da obediência, disciplina, organização e respeito à ordem, procurando formar o ‘cidadão-soldado’, que seria a base da almejada segurança nacional”197.

Por certo, nessa “obra de civilização” da Capoeira, como denomina Letícia

Vidor Reis198, as características de racionalidade instrumental; da minimização do potencial dialógico do jogo da Capoeira; a supressão da ludicidade; de instrumento disciplinador de comportamentos e de assepsia social, por intermédio da esterilização das manifestações populares; de eficiência, eficácia e de rendimento e produção; de treinamento desportivo, de sistematização e metodização do processo de aprendizagem; de objeto de estudo de várias disciplinas e de campo de aplicação de conhecimentos científicos interdisciplinares, que podem ser identificadas nas interpretações de Luiz Renato e Dr. Decanio, principalmente, sobre a Capoeira

Regional, não são exclusivas dessa vertente mas sim, são aspectos constitutivos do sentido da perspectiva de Esporte chamada de Esporte de Rendimento, ou, como denomina Roberto Paes, de Esporte Profissional ou Esporte Institucionalizado, atribuído, também, ao fenômeno Capoeira.

196 Idem, ibid., p. 158 197 Idem 198 Cf. Letícia Vidor de Souza Reis, O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil, São Paulo, Publisher, 1997, p. 17

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Desta forma, encontra-se também na interpretação de Valdenor Silva dos

Santos (o Valdenor, aluno de Mestre José de Andrade e atleta de Mestre Gladson) algumas críticas, sugestões e recomendações para que a Capoeira possa tornar-se um Esporte de reconhecido valor, como por exemplo a recomendação para que exista “um programa de treino, com alguns procedimentos básicos comuns a todas as associações”; que exista um conteúdo programático único para todos os alunos de Capoeira, semelhante as propostas, já superadas, na área da Educação, de currículo único, obrigatório; que seja estabelecida uma idade mínima para que o aluno possa ser considerado como “aluno formado”; que sua prática seja organizada

“por meio de entidades representativas e dirigentes, como as Federações”199.

Para Valdenor, além de ser uma manifestação cultural importante e diversificada em sua realização ela é, acima de tudo, Esporte que, em breve, poderá ser reconhecido como Olímpico. A Capoeira, afirma ele,

“é cultura, é arte, mas é também esporte e por esta razão tem e deve ter regras. Ela é arte/cultura, só que em arte e cultura não se gradua e não se simboliza por cordões os estágios alcançados. Ela é além de tudo esporte e como tal deve possuir todos os procedimentos inerentes a sua estruturação.”200

No que se refere, ainda, ao sentido de Esporte de Rendimento, de Esporte institucionalizado, cabe ressaltar que a organização esportiva que durante mais de

20 anos foi a responsável pela direção e normatização da Capoeira enquanto uma modalidade esportiva inserida no denominado Sistema Desportivo Nacional-SDN, a

Confederação Brasileira de Pugilismo-CBP, a definia como “uma luta eminentemente

199 Cf. Valdenor dos Santos, Conversando “nos bastidores” com o capoeirista, São Paulo, o Autor, 1996, p. 43-136 200 Idem, ibid., p. 75

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brasileira, de raízes folclóricas”, incluída no “ramo pugilístico” como uma de suas modalidades, devendo, por isso, sua prática e o seu processo de aprendizado, submeterem-se às regras e preceitos previstos no Regulamento Técnico oficializado por ela201.

Esse processo de significação do fenômeno Capoeira como Esporte

(primeiro como uma manifestação popular e depois como institucional), como foi visto, inicia-se, principalmente, nos primeiros anos do século XX, com as propostas do anônimo “distincto official” (O.D.C.) e as de Burlamaqui, chegando a consolidar- se, no final do mesmo século, com a sua inclusão, em 1972, na Confederação

Brasileira de Pugilismo e, finalmente, com a fundação, em 1994, da Confederação

Brasileira de Capoeira.

No entanto, não é possível definir-se rigidamente os limites do fenômeno

Capoeira em suas perspectivas de Esporte popular ou institucionalizado; de dança ou luta; de luta ou esporte; de defesa pessoal ou briga; de arte marcial ou atividade criminosa etc. Vejamos mais um exemplo de sua polissemia nos destaques das interpretações de alguns dos principais Velhos Mestres da Capoeira da Bahia, que apesar de semi-alfabetizados, de possuírem apenas níveis elementares de escolarização, prescindindo da “linguagem castiça” a que fez referência Angelo

Decanio, demonstram grande sabedoria na arte de ser-no-mundo e que, pela profundidade de suas concepções, dispensam qualquer tipo de comentário:

201 Cf. Confederação Brasileira de Pugilismo, Regulamento Técnico, Rio de Janeiro, Grupo Palestra Sport, 1987, p. 4

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Assim falou Mestre Noronha202 :

“A CAPOEIRA É UM ESPORTE POPULARISSIMO NO BRASIL ADTADO EM TODAS AS CLASSES ESPECIALMENTE NOS GINASIOS COLEGIOS UNIVERSIDADES E NOS GRANDES ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS E INDUSTRIAIS COMO EDUCAÇÃO FÍSICA NA POLÍCIA, EXERCITO E MARINHA É PRATICADO PARA USO REAL CRESCENTE POPULARIDADE (...) ”203

“(...) SEMPRE PROCUREI BOTAR ESTA GRANDE RODA CAPOEIRA NESTA CIDADE DO INTERIOR DA BAHIA, CACHOEIRA SANTO AMARO PORQUE É ONDE TEN ESTA FESTA TRADICIONAL” 204

“(...) DEI ALGUMA NAVALHADA PORQUE FUI ACALTADO POR UM MARGINAL É ESTA A ORIGEM QUE O CAPOEIRISTA ANDA NA MARDADE PARA ESTE FIM NÃO QUE ELE CEIJA DIZORDEIRO TODOS CAPOEIRISTA SÃO OPERARIO E NÃO VAGABUNDO”205

“(...) NÃO SOU CONTRA DE UM MODO GERAL CONTRA A FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE CAPOEIRA ANGOLA ELA TEM QUE EXISTIR PARA CONGREGAR AS CADEMIAS DO ESTADO DA BAHIA E OUTROS ESTADO DO BRASIL POREM O QUE NÃO SE PODE É DEIXAR DE TER COMUNICAO COM A FEDERAÇAO BRASILEIRA DE CAPOEIRA ANGOLA (...)”206

“(...) DESTE GRANDE ESPORTE QUE É SUA DEFEIZA PROPIA (...)”207

202 Para compreender-se bem a representatividade e a personalidade de Mestre Noronha, é indispensável a leitura das notas explicativas e dos comentários, elucidativos, de Frede Abreu, incluídos na publicação dos manuscritos do Mestre, às páginas 9-11 e 111-125 203 Cf. Daniel Coutinho (Noronha), op. cit., p. 39 204 Idem, ibid., p. 41 205 Idem, ibid., p. 42 206 Idem, ibid., p. 45 207 Idem

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“ESTE ESPORTE QUE É BARULHO PARA AQUELE QUE SABE BRIGAR COM SUA SABIDORIA QUE APRENDEU COM CEUS VELHO MESTRE DO PASSADO (...)”208

“(...) ESTE GRANDE ESPORTE MALICIOSO (...)’209

“(...) A CAPOEIRA ANGOLA É UM ESPORTE DI GRANDE UTILIDADE NO EXERCITO MARINHA GINASIOS E OUTRAS CORPORASÃO É UM ESPORTE DE ALTA ADIMIÇÃO PARA O VIZITANTE DO MUNDO INTEIRO (...)”210

“(...) ESTE ESPORTE QUE E A MAE DE TODO ESPORTE DO MUNDO (...)”211

Assim falou Mestre Pastinha :

“Os golpes mais perigosos são aplicados com os pés e podem ser mortais, dependendo do local atingido”212.

“Mas, Capoeira Angola é, antes de tudo, luta e luta violenta”213.

“A Capoeira ou é ‘jogada’ p’ra valer, com suas sérias consequências, saindo dos limites esportivos, ou para demonstrações onde os golpes, em movimento mais ou menos lento, passam perto, raspando, ou são freiados perto do alvo escolhido”214.

208 Idem, ibid., p. 47 209 Idem, ibid., p. 48 210 Idem, ibid., p. 56 211 Idem, ibid., p. 57 212 Cf. Mestre Pastinha, Capoeira Angola. Salvador, Escola Gráfica N. S. de Lorêto, 1964, p. 29 213 Idem, ibid., p. 30 214 Idem

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“(...) a Capoeira Angola se assemelha a uma graciosa dança onde a ‘ginga’ maliciosa mostra a extraordinária flexibilidade dos capoeiristas”215.

“É meio de defesa e de ataque, possuindo grandes recursos, graças à fôrça muscular, flexibilidade de articulações e extraordinária rapidez de movimentos que a sua prática proporciona”216.

“A tendência atual é considerar a Capoeira Angola como a modalidade nacional de luta o que, honrosamente, a coloca em posição privilegiada, valendo como uma consagração definitiva desta modalidade esportiva”217.

“Mas, a Capoeira Angola é, ainda, folclore nacional. Os serviços de turismo, na Bahia, colocam como ponto obrigatório, em seus programas, uma visita às academias de Capoeira”218.

“(...) um magnífico meio de manter um perfeito estado físico e prolongar a juventude”219.

“O que eu gosto de lembrar é que a capoeira apareceu no Brasil como luta contra a escravidão”220.

“Angola, Capoeira Mãe!”221.

215 Idem 216 Idem, ibid., p. 29 217 Idem, ibid., p. 33 218 Idem 219 Idem 220 Cf. Mestre Bola Sete, A Capoeira Angola na Bahia. Salvador, EGBA/Fundação das Artes, 1989, 152 221 Idem, ibid., 15

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“Mandinga de escravo em ânsia de liberdade; seu princípio não tem método; seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista”222.

“Capoeira Angola só pode ser ensinada sem forçar a naturalidade da pessoa, o negócio é aproveitar os gestos livres e próprios de cada qual. Ninguém joga do meu jeito, mas no dêles há tôda a sabedoria que aprendi. Cada um é cada um”223.

“Eles sabiam que eu jogava Capoeira”224.

“Pois capoeira é luta, sim, mas é folclore e tradição bonita também”225.

“(...) de voltas no corpo que lhe dá, de fato, uma maravilhosa impressões, sem saber si é, ou não, si é samba, porque ao mesmo tempo vê-se a impressão de luta: ação do corpo, tem relações com sua natureza; ciência, eu sei que tem na capoeira, é fruto da nossa inteligencia, e tudo lhe cerca, o meio e o ambiente”226.

“(...) quando se trata desse esporte de dança, luta, arte, defeza (...)”227

“Hoje isso é comum esporte, arte de defeza pessoal, até hoje ninguem pode definir-se ela é chea de malice, é

222Cf. Roberto Freire, É luta, é dança, é Capoeira. Revista Realidade, São Paulo, Editora Abril, ano 1, n° 11, fevereiro de 1967, p. 79 223 Idem, ibid., p. 81 224 Idem, ibid., p. 82 225 Idem, ibid., p. 80 226 Cf. Mestre Pastinha, Quando as pernas fazem mizerer (Manuscritos e desenhos de Mestre Pastinha). Salvador, (mimeo), s/d, p. 72a 227 Idem, ibid., p. 75a

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artemanha, tem possibilidade para tudo que pençar de bom na vida”228.

“(...) a capoeira é espiritualizada e materializada no eu de cada qual, ela tem arte, ela fez parte da coletividade de todos os esportes (...)”229

Assim falou Mestre Canjiquinha:

“O único esporte brasileiro é a Capoeira”230.

“A Capoeira é uma dança. É uma Educação Física. Se tem berimbau e pandeiro, ela se torna folclore. Mas se tem instrumento (pau, navalha, facão) ela é uma luta”231.

“A pior luta do mundo é a Capoeira. Eu sei disso porque já lutei boxe, já lutei luta livre”232.

“Capoeira é esporte, lazer. Uma luta quando não tem berimbau”233.

“A capoeira de antigamente era uma coisa bonita. Tinha muita malícia. Você jogava de calça, paletó, chapéu, gravata e não sujava. O cara não machucava o outro. Ele só levava o pé na hora certa”234.

228 Idem, ibid., p. 75b 229 Idem, ibid., p. 81b 230 Cf. Mestre Canjiquinha, Canjiquinha: a alegria da capoeira. Salvador, Editora Rasteira, 1989, p. 21 231 Idem, ibid., p. 55 232 Idem, ibid., p. 32 233 Idem, ibid., p. 82 234 Idem, ibid., p. 22

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Assim falou Mestre Waldemar da Pero Vaz:

“É uma dança-luta, como um esporte como outro qualquer...”235

“(...) é um esporte que eu estimo, é essa luta Angola”236.

Assim falou Mestre João Grande:

“A Capoeira é como o mar: as ondas vão e vêm !”237

Numa perspectiva que poder-se-ia chamar de “mais politizada”, de “mais

crítica”, sem a postura que poderia ser classificada como alienada, de alguns dos

atores do Campo da Capoeira, e sem o chamado “romantismo” ou “ingenuidade”

que alguns poucos identificam nas concepções como as que foram citadas acima,

dos Velhos Mestres, os quais se fundamentam nos conhecimentos que lhes foram

transmitidos oralmente (tradição) por seus Mestres, que por sua vez ouviram de

seus ancestrais, e nas suas respectivas experiências vividas, que lhes permitem

obter a sabedoria de ser-no-mundo, como ator-construtor de sua existência, Almir

das Areias, aluno dos Mestres Luís Medicina e Suassuna, interpreta a trajetória

do fenômeno Capoeira, até as últimas décadas do século XX, como um processo

que teve como principal momento uma grande mudança de rumo que fez com

que o Capoeira fosse deixando de ser “um artista, tornando-se apenas um

competidor, um comerciante ou um mero prestador de serviços” e, a Capoeira,

235 Cf. Cesar Barbieri, op. cit.., p. 40 236 Idem 237 Comunicação pessoal, em julho de 1989

180

também fosse deixando de ser “festa e expressão” para “ser apenas uma simples

mercadoria para o consumo da violência238.

Na visão de Almir, esse “desvio” acontece porque, tal como os Capoeiras

do passado, alguns capoeiristas de influência (durante a ditadura militar instalada

em 1964), colocaram-se, e colocaram-na, a serviço das “autoridades oficiais, cujo

objetivo era reunir e integrar a Capoeira e os seus mestres à ideologia vigente no

país”, fundando, na cidade de São Paulo, em 1972, a Federação Paulista de

Capoeira239. Para ele, a Capoeira, distanciando-se do sentido reducionista de

Esporte a ela atribuído, “é música, poesia, festa, brincadeira, diversão e, acima de

tudo uma forma de luta, manifestação e expressão do povo, do oprimido e do

homem em geral em busca da sobrevivência, liberdade e dignidade”240.

A Capoeira, para Almir, acima de tudo é um movimento, político, de luta

para a conquista da liberdade e dignidade dos homens oprimidos, que ainda

encontram-se esmagados pelas elites econômicas241. Em sua história, passou por

quatro fases, a saber : a fase da escravidão, a fase dos quilombos, a fase da

clandestinidade (da “Abolição” até a Primeira República) e a fase da liberação

(após a Era Vargas), fases essas que lhe permitem afirmar que a Capoeira pode

ser comparada a um camaleão que, como é de conhecimento de todos, muda,

voluntária ou instintivamente, a sua cor, conforme o ambiente e a situação.

No mesmo sentido atribuído à Capoeira, por Almir das Areias (e, também, por Roberto e Magali Lima) Reginaldo Costa (o Squisito, aluno de Mestre Tabosa),

238 Cf. Almir das Areias, O que é capoeira. São Paulo, Brasiliense, s/d., p. 79 239 Idem, ibid., p. 76-77 240 Idem, ibid., p. 8 241 Para o aprofundamento deste tema, os interessados devem tomar contato, principalmente, com o texto de Letícia Vidor (citado na bibliografia) que discorre sobre os grupos Capitães d’Areia, liderado por Almir das Areias e Grupo Cativeiro, liderado por Miguel Machado, bem como, principalmente, os elaborados pelo Grupo Angola Pelourinho (GCAP).

181

em suas reflexões sobre o que denominou de eficiência e eficácia da Capoeira, dentre vários aspectos que compõem sua abordagem, assim concebe:

“A Capoeira tem em sua insígnia a luta pela liberdade e pela igualdade. É uma luta contra a opressão a quem quer que seja”.242

“A Capoeira é uma chance para o povo brasileiro não esquecer sua identidade”.243

“A Capoeira é um caminho lúcido para a sobrevivência de nossa cultura, oferecendo um braço forte para resistir nossa alienação de nós mesmos. A Capoeira é o braço da História com a cultura popular, para resgatar nossa condição de povo”.244

“A Capoeira é um grito de guerra. Sua guerra é contra a opressão e contra o tédio, contra a invasão de nosso espaço cultural por uma cultura enlatada de baixo nível de globalização, no seu sentido bizarro”. 245

Com esse “jeito Squisito de ser”, como observa Mestre Itapoan, outros significados, ainda, são atribuídos, por Squisito, à Capoeira tais como: “luta, lazer, cultura”; “luta-arte-consciência”; “arte-luta-cultura”, denominando-a, em algumas passagens, como “capoeira-luta” e “esporte-luta”.

242 Cf. Reginaldo da Silveira Costa (Mestre Squisito), Capoeira: o caminho do berimbau, Brasília, Thesaurus, 1993, p. 133 243 Idem, Ibid., p. 139 244 Idem, Ibid., p. 140 245 Idem, ibid., 2ª ed., p. 119

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Essas concepções de Almir das Areias, sobre a Capoeira, além das interpretações de Mestre Pastinha, reveladas na entrevista realizada em 1967, é que despertam a atenção de Roberto Freire quanto ao seu valor como instrumento auxiliar no seu processo de terapia denominado de Soma, chegando a incorporá-la

“como elemento terapêutico bioenergético sobre o soma bloqueado dos participantes dos grupos”, tendo em vista a sua origem como “luta libertadora” que poderia “estimular os potenciais energéticos e políticos das pessoas na luta contra a neurose, fruto da perda de sua liberdade”246.

Vendo o mundo por uma janela diferente daquela que Sócrates utilizou ao recomendar, em seu diálogo com Glauco, a ginástica para o corpo e música para a alma247, Roberto Freire, considerando que “antes, pois, da neurose localizar-se no corpo das pessoas, ela expressa-se ideologicamente em seu comportamento político”, encontra na Capoeira Angola a vivência anarquista apropriada para constituir o seu método terapêutico, haja vista ser essa vertente, “menos violenta que a Regional e mais completa em sua função bioenergética”248.

Ao explicar e justificar porque a Capoeira é uma das pedras que compõem o alicerce da Somaterapia, Jairo Amorim e Virgínia Batista, discípulos de Freire, declaram de forma inequívoca que

“(...) para a Soma, a neurose e a psicose são produzidas pelo autoritarismo dos sistemas autoritários, sobretudo através das famílias. A Capoeira também tem claro esse objetivo, e pelo que pude ver e experimentar, sinto ser a

246 Cf. Roberto Freire, Soma: uma terapia anarquista. A arma é o corpo, Rio de Janeiro, Editora Guanabara Koogan S. A., vol. 2, 1988, p. 62 247 Cf. Platão, A república. Tradução de Albertino Pinheiro, São Paulo, Atena Editora, v. 1, 1959, p. 122-127 248 Cf. Roberto Freire, Soma: uma terapia anarquista. A arma é o corpo. Rio de Janeiro, Editora Guanabara Koogan S. A., vol. 2, 1988, p. 77

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Capoeira um modo de expressar a vida essencialmente anarquista”249.

Esse sentido atribuído, por Roberto Freire, à Capoeira e incorporado à

Soma, está bem próximo de uma outra compreensão do que seja Arte Marcial, cuja prática fundamenta-se na busca da paz interior, por intermédio do equilíbrio corpo- mente; buscando, os seus adeptos, a não violência, “conscientes de que na luta, ainda quando se sai vitorioso, sempre se recebe um dano físico ou moral diretamente ou, indiretamente, pelo dano causado ao outro”; e, finalmente, tornando- se “um precioso meio de auto-controle e autodomínio físico e psíquico, produto da observação que faz o homem de seu entorno ecológico, das leis da natureza e da sua inserção e realização na mesma”250.

De forma semelhante, Fernando Sanchez, aponta para a necessidade de que os “filósofos retornem à Acrópole” e que, por intermédio do “estudo comparativo de todas as fontes artísticas, científicas, políticas, filosóficas, religiosas e as leis inexploradas da natureza”, possam resgatar, renovar, revigorar, “ressuscitar” a

Capoeira que, a cada dia, para ele, está “perdendo a sua essência”. Para que isso ocorra de forma satisfatória é necessário, também, que o seu praticante tenha

“consciência de que a capoeira está em íntima relação com o seu interior”251. Na interpretação de Fernando Sanchez, “a capoeira como toda arte marcial foi criada com a finalidade de melhorar o indivíduo, de fazer com que ele controle suas

249 Idem, ibid., p. 151 250 Cf. Jose L. Paniagua. Artes marciais: el equilibrio cuerpo-mente, Madrid, Miraguano, 1987, p. 39 251 Cf. Fernando Barros Sanchez, A magia da capoeira. Revista Nova Acrópole. São Paulo, Editora da Organização Internacional Nova Acrópole do Brasil, ano II, n° 8, 1988, p.38-39

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debilidades, defeitos e se torne melhor, mais justo, generoso, honesto, prudente em toda a sua vida”.252

Nesse ponto da compreensão do processo de manifestação do fenômeno

Capoeira, é possível perceber que, se de um lado, se colocam os Velhos Mestres da

Capoeira, principalmente os adeptos da Capoeira Angola, com seus discípulos e seguidores, valorizando, ao extremo, a tradição, a transmissão dos conhecimentos específicos e princípios filosófico-existenciais que lhes dão suporte, bem como a relação mestre-aprendiz, na qual, dia-a-dia, por intermédio da experiência vivida, chega-se à sabedoria e à compreensão do mundo, das coisas e dos fenômenos; de outro lado, encontram-se aqueles que, tal como os criadores e disseminadores da

Bossa Nova253, inventam novas tradições, enfatizando, principalmente, o seu sentido de Esporte, atribuindo-lhe novos significados que, pela forma reducionista com que tentam compreender o fenômeno, criam uma nova vertente, com várias denominações semelhantes, desprezando muitas das principais raízes culturais que dão sustentação e alimentam o seu desenvolvimento, em nome da modernidade, da eficiência e da universalização da sua prática, chegando até (alguns poucos) a elaborar propostas de processos de aprendizagem nos quais a presença do Mestre no processo de aprendizagem é minimizada, em sua importância, ou não é nem citada, como por exemplo, a de Lamartine Pereira da Costa ao informar, na introdução de seu livro “Capoeira Sem Mestre”, que seu objetivo é o de “oferecer meios aos interessados na arte da defesa pessoal, para aprenderem e praticarem a luta da capoeiragem”, esclarecendo que “o iniciante deverá seguir rigorosamente,

252 Idem, ibid., p. 39-40 253 “Movimento musical” que, conforme declarações da “sua musa”, Nara Leão, foi “um movimento da classe média, da burguesia de Ipanema que, tendo como líderes um arquiteto (Tom Jobim) e um diplomata (Vinícius de Moraes), não estava satisfeita com a música brasileira do momento e nem queria subir o morro”, então inventaram, a princípio, para o seu próprio deleite, uma nova forma de compor e interpretar canções que ficou conhecida como Bossa Nova.

185

em seus estudos e práticas, a seqüência das movimentações e golpes pela ordem de apresentação”254; a de Burlamaqui, já citada; a de Augusto José Fascio Lopes (o

Anzol, aluno de Mestre Bimba em 1967 ) em seu livro “Curso de Capoeira em 145 figuras”; a de Nestor Sezefredo dos Santos Neto (o Nestor Capoeira, aluno de

Mestre Leopoldina, na década de 60), em seu livro, dirigido para iniciantes, intitulado

“O Pequeno Manual do Jogador de Capoeira” ou aqueles que apostam no que concebem como autodidatismo.

“Capoeira Estilizada”, “Capoeira Contemporânea”, “Capoeira Anglo-

Regional”, Capoeira-Espetáculo”, “Arte-Luta”, “Capoeira-terapia”, “Capoeira-do-

Abraço”, são algumas das novas vertentes ou propostas que, como afirma Letícia

Vidor, ao comentar sobre a Capoeira em São Paulo, pretendem, como se fosse possível, fazer uma mesclagem da Capoeira Angola com a Capoeira Regional — como também é o caso de Adyjolvã Anunciação Couto, o Zoião (aluno de Mestre

Bimba no início da década de 60), que seguindo a orientação de seu Mestre, dada a ele por intermédio de uma comunicação sobrenatural, após a sua morte, quando se encontrava “em um estado de sonolência”, busca “integrar”, fundir, “unificar as artes da capoeira Angola e Regional”255, ou ainda os chamados “estilos de capoeira” que incorporam “ataques e esquivas de algumas artes marciais e também alguns movimentos da ginástica olímpica (como o flip-flap e o kipe, por exemplo) e do balé clássico (como o spakate)”256.

Um desses novos idealizadores, inventores, criadores de novas vertentes da

Capoeira, é Antonio Batista Pinto (o Zulu, declarado como autodidata) que cria,

“resgatando seletivamente, para o momento psicossocial atual, os valores, os princípios, o simbolismo e a gestualidade da capoeira”, à qual chama de “Vertente

254 Cf. Lamartine Pereira da Costa, Capoeira sem mestre, São Paulo, Ediouro, s/d, p. 7 255 Cf. Adyjolvã A. Couto, Arte e Capoeira: história e filosofia, Salvador, Edição do Autor, 1999, p. 10 256 Cf. Letícia Vidor, op. cit., nota 18, p. 235

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Arte Luta”; e que, segundo suas palavras, “é uma concepção e opção da prática da capoeira, cujas bases formam um corpo teórico que lhe dá características e identidade, e cuja denominação é Ideário de Capoeira Arte-Luta”257. Assim, explica, justifica ou tenta esclarecer Zulu:

“Dentro dessa perspectiva e possibilidade de ‘criação arbitrária da liberdade’ e da minha condição de agente e produtor de história, senti-me no direito de reinventar, resgatar, redimensionar a capoeira e por isto eu fiz de acordo com a minha maneira de ver e interpretar a realidade do povo brasileiro, as suas relações e a sua história”258

Zulu, dessa forma, acredita que, ao formular o Ideário e idealizar a Capoeira

Arte-Luta, está criando “um bem cultural brasileiro que sintetiza o belo e a eficiência no seu manifesto”, além de ser “instrumento coadjuvante na construção da inteligência e de um comportamento crítico, criativo e transformador”259. Um instrumento, ainda, que é constituído pelas dimensões antropológica, sociológica, filosófica, preparativa, estética, lúdica, educativa e pedagógica, das quais, pela natureza deste estudo, destaco as duas últimas, transcrevendo as definições do seu autor:

“Educativa — propõe contribuir para educar crítica e criativamente a unidade viva indissociável corpo-mente- espírito através do movimento, da instrução e do

257 Cf. Mestre Zulu, Idiopráxis de capoeira. Brasília, o Autor, 1995, p. 9 258 Idem, ibid., p. 10 259 Idem, ibid., p. 11

187

esquema simbólico do meio, sob a égide do construtivismo.

Pedagógica — compõe-se de métodos e processos adotados para educar e instruir através da capoeira. Vivencialmente usamos educativos, fundamentos, segmentos solitários, segmentos duplos, formas de jogos, modalidades de competições, rodas, apresentações e exibições; operativamente adotamos a oralidade informal, leituras, discussões dirigidas, palestras, cursos, seminários, simpósios e congressos.”260

Com uma visão bem diferente da apresentada por Zulu, Anselmo da Silva

Accurso (o Ratinho, aluno de Mestre Vadinho), ao defender o resgate e a preservação das raízes culturais da Capoeira, também, como outros estudiosos, a concebe como luta, dança, expressão corporal etc., enfatizando que esta deva “estar a serviço das necessidades básicas de nossa gente, nos aspectos físicos, psíquicos e culturais”, como um dos instrumentos de educação das massas, principalmente porque, “por representar uma cultura de resistência, com sua história, com sua linguagem própria, é sem dúvida um instrumento precioso para a conscientização de mudanças sociais”261.

Considerando, ainda, a manifestação do fenômeno Capoeira no horizonte da

Educação, no âmbito do processo de aprender-se a ser-no-mundo, concebendo-a como um jeito brasileiro de desenvolvê-lo, em pesquisa etnográfica, realizada no período de 1985 a 1993, identifico os seus principais pressupostos que, transmitidos pela prática e pela visão do mundo dos principais Velhos Mestres da Capoeira da

260 Idem, ibid., p. 23 261 Cf. Anselmo Accurso, Capoeira: um instrumento de educação popular, São Leopoldo, , 1990, p.141

188

Bahia, reminiscentes e legítimos representantes da Capoeira Angola, destaco a seguir:

• desenvolve-se como um momento de encontro entre

dois educadores, no sentido que dão à relação, professor-

aluno, mestre-aprendiz, educador-educando, Paulo Freire e

Vieira Pinto, no qual o mais importante é a interação que

leva a ambos aprenderem um com o outro alguma coisa;

• que o contexto em que se desenvolve essa

aprendizagem se dá no sentido de uma comunidade de

aprendizagem, como nos diz Ana Quiroga, onde os

praticantes se colocam numa posição de parceiros na

descoberta e aperfeiçoamento do Jogo da Capoeira e do

estar-no- mundo;

• não existe a verdade absoluta, o conhecimento

definitivo, a última palavra a ser dada quer pelo Mestre,

quer pelos Aprendizes;

• a heterogeneidade é elemento real e fundamental no

desenvolvimento do processo de fazer-se no mundo que se

realiza por intermédio, principalmente, da interação entre

seres humanos “mais vividos” e seres humanos “menos

vividos”;

• o respeito à individualidade de cada um e ao seu ritmo

próprio é uma constante no cotidiano do processo

189

educativo, não havendo referências externas aos seus praticantes como parâmetro de avaliação;

• não pode haver distinções — políticas, econômicas, sociais, religiosas, enfim, qualquer tipo de preconceito ou limitações impostas por qualquer tipo de ideologia;

• a prática é a base do desenvolvimento e consolidação do processo educativo, realizando-se em situações concretas, valorizando o vivido como o principal elemento dessa aprendizagem;

• não existem modelos metodológicos que devem ser adotados por todos, é necessário a liberdade para que se possa criar e (re)criar métodos, técnicas, procedimentos, tendo em vista ser cada aluno, ou grupos de alunos, únicos e particulares;

• é fundamental, para o processo educativo, facilitar que venha à tona os conhecimentos já existentes em cada um, fruto da sua história de vida, sendo a experiência vivida o referencial mais profundo para que este aflore;

• o professor, mestre, educador, seja qual for a denominação a ele dada, é um animador desse processo de aprender a ser-no-mundo, fazendo vibrar o anima, a vida, que “resgata a Alma das sepulturas onde ela se encontra soterrada”, como diz Rubem Alves, citado por

Marcelino, em sua Pedagogia da Animação;

190

• a relação de consideração entre mestre e aprendiz,

professor e aluno, educador e educando, é um dos

sustentáculos insubstituíveis no processo do homem

aprender a ser-no-mundo, havendo, à medida que os laços

de respeito, amizade, lealdade vão se estreitando, uma

consideração fraterna entre ambos;

• o processo de educação deve se desenvolver, sem

interrupção, de geração em geração, ou seja, a exemplo

dos Mestres citados, contínua e permanentemente, ao

longo da vida.262

O convívio, intenso, com esses Velhos Mestres da Bahia e as experiência de aprendizado vivenciadas, diariamente, principalmente com Mestre João Grande

(aluno de Mestre Pastinha), permitiram-me identificar, também, os seus princípios fundamentais, quais sejam:

Totalidade - fortalecimento da unidade do homem

(consigo, com o outro e com o mundo), considerando a

emoção, a sensação, o pensamento e a intuição como

elementos indissociáveis desta mesma unidade,

favorecendo o desenvolvimento do processo de auto-

conhecimento, auto-estima e auto-superação, visando a

preservação da biodiversidade e de sua individualidade em

262 Cf. Cesar Barbieri, Um jeito brasileiro de aprender a ser, Brasília, GDF/DEFER, 1993, p. 82-105

191

relação às diversas outras individualidades, tendo em vista o contexto uno e diverso no qual está inserido.

Co-educação - concepção da Educação que, como um processo unitário de integração e modificação recíproca, considerando a heterogeneidade (sexo, idade, nível sócio- econômico, condição física etc.) dos atores sociais envolvidos e, fundamentando-se nas experiências vividas de cada um dos participantes e estruturando a atuação pedagógica apoiada na ação e reflexão, tem na relação mestre-aprendiz, como o encontro entre dois aprendizes, o seu alicerce.

Emancipação - busca da independência, autonomia e liberdade do homem, fundamentando-se num processo de educação no qual o ser humano é estimulado a ser autônomo; a conhecer-se profundamente, indagando e explorando todos os meandros do vivido e buscando seus significados; a conhecer as fronteiras que lhes são impostas; a perceber os seus limites e possibilidades, oportunizando, assim, o desenvolvimento, por intermédio da criatividade e da autenticidade, da capacidade de discernir criticamente e elaborar genuinamente as suas próprias razões de existir.

192

Participação - valorização do processo de interferência do homem na realidade na qual está inserido, fundamentada nos princípios de co-gestão, co-responsabilidade e integração e que, favorecendo seu comprometimento, como ator-construtor dessa mesma realidade, propicia o gerenciamento das questões de seu interesse, tendo em vista o processo de organização social decorrente do exercício de seus direitos e responsabilidades.

Cooperação - união de esforços no exercício constante da busca do desenvolvimento de ações conjuntas para a realização de objetivos comuns, fundamentada no potencial cooperativo e no sentimento comunitário de cada um dos participantes do processo, estreitando, assim, os laços de solidariedade, parceria e confiança mútua, de forma a fortalecer as habilidades em perseverar, em compartilhar sucessos e insucessos, em compreender e aceitar o outro, como elementos constitutivos do processo de co-evolução do homem.

Regionalismo - respeito, proteção e valorização das raízes e heranças culturais, como sinergias constitutivas do todo, considerando a singularidade inerente aos diversos mundos culturais, surgidos da relação intrínseca entre seus

193

elementos, de forma a resgatar e preservar a sua

identidade cultural, no processo de construção do coletivo.

A Capoeira como um fenômeno com profundas raízes sócio-culturais, dentre outras características já abordadas, é também uma linguagem polissêmica que, como aponta Heloisa Bruhns, tem seu trajeto (semelhante ao Samba e ao contrário do Futebol), originando-se nas camadas populares e chegando até a elite263 e, nessa peculiar e longa trajetória, como é possível identificar neste capítulo, várias e diferentes interpretações foram elaboradas sobre esse fenômeno e outras tantas, certamente, ainda poderiam ser abordadas. No entanto, é preciso ter bem claro que esses sentidos atribuídos à Capoeira não surgem de um processo linear que se estabelece ao ser buscada uma utilização “mais apropriada”, ou “eficaz”, ou “mais racional”. Tais sentidos, surgem concomitantemente, num contexto de acentuada polissemia, no qual seus atores sociais também significam a si mesmos, os outros, o mundo, ao tempo que a (re)elaboram, constantemente, como linguagem. Desta forma, dada a abrangência deste estudo, sua natureza e considerando, ainda, a premissa formulada por Merleau-Ponty de que no mundo existem sentido e sentidos, defino, face aos diversos significados aqui identificados, três importantes visões acerca do fenômeno Capoeira, quais sejam;

• uma visão tradiconal-popular — que, considerada por

alguns, poucos, como ingênua e/ou romântica, concebe-a

como uma manifestação cultural cujos fundamentos,

263 Cf. Heloisa T. Bruhns, Futebol, carnaval e capoeira: entre as gingas do corpo brasileiro, Campinas, Papirus, 2000. Leitura indispensável, também, sobre o assunto é o texto de Rosemiro Magno da Silva e Luiz Carlos Vieira Tavares, A Capoeira no contexto histórico nacional, Cadernos Cultart de Cultura, Aracaju, Ufs/PROEX,CULTART,CIMPE, novembro de 2000

194

oriundos da sabedoria popular, em seu dinamismo, são

transmitidos, de geração a geração, no âmbito da relação

mestre-aprendiz, considerando, principalmente, as suas

perspectivas de luta, dança, defesa pessoal e ginástica,

as quais se realizam, respeitando a heterogeneidade de

seus participantes, por intermédio do jogo, em momentos

de diversão, de ócio, como brinquedo e brincadeira ou

nos momentos de busca pela sobrevivência, como arma;

• uma visão moderno-esportiva — que, surgindo no

âmbito da classe média (principalmente entre aqueles

simpatizantes e adeptos do militarismo) e alimentada pela

pretensão da realização de uma assepsia social e de

esterilização das “exóticas” manifestações populares,

fundamenta-se nos pressupostos e premissas do

chamado Esporte Moderno e, concebendo-a como uma

de suas modalidades de luta, preconiza a sua

padronização, por intermédio de normas e regras

universais “cientificamente” elaboradas, refletindo, assim,

os valores e ideais da sociedade burguesa;

• uma visão existencial-compreensiva — que

compreendendo suas manifestações como eventos

sinérgicos que refletem e contêm o todo, fundamenta-se

no princípio da intersubjetividade e, enfatizando a sua

195

perspectiva de Educação, como o processo de aprender a

ser-no-mundo, utilizando-se de uma pedagogia da

existência, concebe-a como uma linguagem polissêmica,

por intermédio da qual o seu praticante significa a si

mesmo, o outro e o mundo.

Como é possível identificar, neste capítulo, a Capoeira, é uma manifestação cultural (re)criada pelo negro africano no Brasil, que, como já foi dito, nos capítulos anteriores, “vista, assim do alto”, pode ser interpretada equivocadamente.Tal como o fenômeno Escola, que, segue, também, a máxima veiculada pela canção, quando afirma que “o que dá pra rir, dá pra chorar; é tudo uma questão de peso e medida”, a Capoeira, não é apenas um momento em que “o mesmo pé que dança o samba, se preciso vai a luta”, mas sim um fenômeno que se manifesta, em suas múltiplas perspectivas, permitindo que o ser humano, enquanto corporeidade, possa não só lutar, quando necessário, mas também dançar a sua existência, ou como diz Roger

Garaudy, “dançar a vida” !264

Ainda, no entanto, é preciso saber como o fenômeno Capoeira chegou até a instituição Escola? Como se desenvolveu o processo de sua institucionalização, de sua escolarização? As respostas a essas perguntas, serão o conteúdo a ser abordado no próximo capítulo!

264 Cf. Roger Garaudy, Dançar a vida, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980

“A Capoeira é tudo que a boca come e tudo que o corpo dá”

Mestre Pastinha

CAPÍTULO IV

“Se, para a classe dominante, a alienação vivida e exercida é fonte de autoconservação e de legitimação, para os dominados é fonte de paralisia histórica” Marilena Chauí

Com que roupa eu vou ?

“Agora vou mudar minha conduta Eu vou pra luta, Pois eu quero me aprumar. Vou tratar você com a força bruta Pra poder me reabilitar”1

A Capoeira, como mostrado anteriormente, com mais de quatro séculos de existência, manifesta-se, portanto, como um fenômeno que decorre, por certo, de um processo de aprendizagem, não apenas de movimentos corporais físicos, de gestos explícitos ou intenções dissimuladas, mas também de valores, atitudes, concepções do mundo etc. Dessa forma, desde o início, esse processo de aprender a ser-estar no mundo encontra-se fundamentado, principalmente, no encontro entre um Mestre

(alguém mais vivido, mais experiente) e um Aprendiz (alguém não tão vivido, não tão experiente assim). Fundamenta-se, pois, como já indicado no capítulo anterior, dentre outros princípios, naquele que denominei de Co-educação, o qual tem como alicerce o encontro entre Mestre e Aprendiz, o encontro de dois educadores, ou melhor, de dois aprendizes, chegando até, em alguns casos mais recentes dos quais se tem conhecimento (como por exemplo a relação entre Mestre Bimba e Decanio, entre Mestre Bimba e Manoel Rosendo, ou entre Mestre Paulo dos Anjos e

Amâncio), a se estabelecer como as relações existentes nas velhas corporações,

1 Com que roupa ?, Noel Rosa, 1929

198

onde “os mestres e seus aprendizes e jornaleiros formavam uma só família”, partilhando, cotidianamente, “das mesmas privações e confortos”2.

Dentre outros Capoeiras, assim aconteceu também com Mestre Bimba — que aprendeu, aos doze anos de idade, com o velho negro africano Bentinho, que era Capitão da Companhia de Navegação Bahiana3, em 1912; com Besouro

Mangangá (Manuel Henrique) — que aprendeu, ainda menino, com o velho escravo Tio Alípio, na rua do Trapiche de Baixo, em Santo Amaro da Purificação4 e que, eventualmente, no “calor da luta, tirava um pouco de ‘tinta’ nos ‘praça’, mas nunca matou ninguém”5; com Mestre Gato (José Gabriel Góes) — que, com 5 anos de idade, começou o seu aprendizado com o conhecido Eutíquio, seu pai, considerado por seus contemporâneos um exímio capoeirista6; com Mestre Cobrinha

Verde (Rafael Alves França) — que, com 04 anos de idade, aprendeu, escondendo-se várias vezes da polícia, com o célebre Besouro e, posteriormente, com outros mestres de Santo Amaro da Purificação, do quilate de Licurí, Siri de

Mangue, Neco Canário Pardo, Espinho Remoso, dentre outros Capoeiras de renome da Bahia7; com Mestre Canjiquinha (Washington Bruno da Silva) — que, mesmo contrariando sua mãe, em 1935, no Matatu Pequeno de Brotas, na Baixa do Tubo, em frente a uma quitanda próxima do banheiro de Otaviano, ficava aos domingos a apreciar os jogos que faziam Onça Preta, Rosendo, Chico Três Pedaços, Zé de

Brotas, Silva Boi, Dudu, Maré e Aberrê, tendo sido, certa tarde, convidado por este

2 Cf. Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1976, p. 102 3 Cf. Raimundo Cesar A. de Almeida (Itapoan), Bimba: perfil do mestre, Salvador, Centro Editorial e Didático da UFBa, 1982, p. 13 4 Cf. Anísio Felix, Bahia, pra começo de conversa, Salvador, 1982, p. 91 5 Cf. João Moniz, De Wildeberger a ´Besouro´, in: MOURA, Jair, Capoeira: arte & malandragem, Salvador, Secretaria Municipal de Educação e Cultura/Departamento de Assuntos Culturais/Divisão de Folclore, 1980, p. 60 6 Comunicação pessoal, em junho de 1991 7 Cf. Marcelino dos Santos, Capoeira e mandingas: Cobrinha Verde, Salvador, A Rasteira, 1991, p.12

199

para fazerem um jogo e, pelo seu desempenho inicial, fruto de sua constante observação, foi imediatamente admitido como seu aluno8; com Mestre João

Pequeno (João Pereira dos Santos) — que, ainda adolescente, teve com Juvêncio, na fazenda São Pedro, em Mata de São João, interior da Bahia, a sua “primeira aula de Capoeira”, prosseguindo seu aprendizado com Barbosa, já na Cidade do

Salvador, em 1943, com 25 anos de idade; e, também, com Mestre Pastinha, que, em 1967, assim relata:

“Quando tinha uns 10 anos — eu era franzino — um outro menino mais taludo que eu tornou-se meu rival. Era só eu sair na rua — ia na venda fazer compra, por exemplo — e a gente se pegava em briga. Só sei que acabava apanhando dele, sempre. Então eu ia chorar escondido, de vergonha e tristeza. Um dia, da janela de sua casa, um velho africano assistiu a uma briga da gente. Vem cá, meu filho, ele me disse, vendo que eu chorava de raiva depois de apanhar. Você não pode com ele, sabe, porque ele é maior que você e tem mais idade. O tempo que você perde empinando raia vem aqui no meu cazuá [casa, residência] que vou lhe ensinar coisa de muita valia. Foi isso o que o velho me disse e eu fui. Então ele me ensinou a jogar capoeira, todo dia um pouco, e aprendi tudo (...) O velho africano chamava-se Benedito, era um grande capoeirista e quando me ensinou o jogo tinha mais idade do que eu hoje [68 anos].”9

Os processos de aprendizagem vivenciados pelos Velhos Mestres da

Capoeira não diferem em muito uns dos outros, como é possível inferir ao tomar-se contato, dentre outros, com o relato de Mestre João Pequeno, informando que:

8 Cf. Washington Bruno da Silva (Mestre Canjiquinha), Canjiquinha: a alegria da capoeira. Salvador, Editora Rasteira, 1989, p. 9-12 9 Cf. Roberto Freire, É luta, é dança, é Capoeira. Revista Realidade, São Paulo, Editora Abril, ano 1, n° 11, fevereiro de 1967, p. 81

200

“nesse tempo não havia academia, as pessoas aprendiam em rodas de capoeira, na rua ou com alguns mestres que tinham roda de Capoeira ou numa sede, como no caso de Cobrinha Verde, Rafael, primo de Besouro (...). Nos dias de domingo à tarde o finado Barbosa formava um grupo de amigos e a gente ia para a roda de capoeira de Cobrinha Verde que era feita num bairro da Barra, chamado Chame-Chame. Ali tinha um pé de mangueira grande e lá debaixo faziam as rodas de Capoeira”.10

De forma semelhante, no final do século XIX, no âmbito das maltas de

Capoeiras na cidade do Rio de Janeiro, também realizava-se esse processo de aprendizagem quando “os capoeiras de mais fama serviam de instrutores àqueles que começavam”11. Tais instruções aconteciam também de forma coletiva, como divulga o Diário do Rio de Janeiro de 5 de março de 1872, ao reportar que José

Leandro Franklin — um Capoeira mais antigo, mais experiente, mais vivido — ensinava “as artes e agilidades da capoeiragem” ao novato Albano, tendo como platéia “muitos colegas, e talvez aspirantes”, no Largo da Sé12, ensinamentos esses que se concretizavam como “cursos regulares”, sendo os mais conhecidos “o da praia do Flamengo, o do morro da Conceição, o da praia de Santa Luzia, não faltando nas torres das igrejas”13.

10 Cf. Luiz Augusto Normanha Lima, Mestre João Pequeno: uma vida de capoeira, São Paulo, edição do autor, ano 2000, p. 4-5 11 Cf. Plácido Abreu, Os Capoeiras, Rio de Janeiro, Tipografia da Escola de Serafim José Alves Editor, 1886 , p. 4 12 Cf. Carlos Eugênio Líbano Soares, A negregada instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro 1850/1890. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação, Divisão de Educação, 1994, p. 83 13 Cf. Alexandre Mello Moraes Filho, Festas e tradições populares do Brasil, Rio de Janeiro, F. Briguiet & Cia Editores, 1946, p. 30

201

Ao resumir a trajetória da Capoeira até a sua chegada aos salões das

Academias de Ginástica da atualidade, Marco Antonio Bechara interpreta-a como um processo de aprendizagem que, transmitido informalmente de geração a geração, e liderado pelos “mais velhos e os mais experientes” que “ensinavam seus movimentos aos mais novos, que incorporavam às suas próprias características”, chega até o final do século XIX e o início do século passado, na clandestinidade, permanecendo “dentro da estrutura familiar ou quando um jovem tinha como companheiro em suas aventuras, capoeiristas”14. Pelo exposto, é possível inferir que até as primeiras décadas do século XX aprendia-se Capoeira como nas tribos

“primitivas”, quando, conforme relata Babette Harper e seus colaboradores, não havia escolas, não havia professores (em sua concepção atual) e “aprendia-se a partir da própria experiência e da experiência dos outros”15.

Ao se tomar conhecimento do desenvolvimento de algumas danças brasileiras ou estrangeiras, como o Minueto — inserido na corte francesa por Luiz

XIV, em 1653, e durante o seu reinado ensinado aos nobres da época pela Académie de la Danse; a Gavota — que, adotada pela corte francesa também no reinado de

Luiz XIV e prolongando-se até o reinado de Luiz XV, generalizou-se entre a aristocracia16; o Lundu — originário do Batuque, dos negros escravos, e dançado nos salões em sua versão denominada de Lundu de Salão ou Lundu Canção, após ter sido modificado por espanhóis e portugueses17; o Fandango — uma seqüência determinada de danças que, formando um conjunto específico, eram dançadas

14 Cf. Marco Antonio Bechara, A trajetória da capoeira até chegar às academias, in: Homo Sportivus (Coleção Especial de Educação Física e Desportos), v. 4, Rio de Janeiro, Palestra Edições, 1987, p. 92 15 Cf., Babette Harper et. al. Cuidado, escola ! : desigualdade, domesticação e algumas saídas, São Paulo, Brasiliense, 2ª ed., p. 25 16 Cf. Maria Amália Correa Giffoni, Caderno de Cultura nº 2. São Paulo, MEC/DED, 1974, p. 6-12 17 Cf. Alceu Maynard Araújo, Folclore nacional: danças, recreação, música, São Paulo, Edições Melhoramentos, v. II, 1964, p. 193

202

pelas “classes elevadas” até 184018; o Maxixe — oriunda do Batuque e do Lundu,

dentre outras danças populares, só aceita nos salões brasileiros após as

modificações decorrentes de sua introdução nos salões europeus, em 189019;

identifica-se que a Capoeira percorre trajeto semelhante, pois tendo a sua origem

nas classes populares como uma de suas mais autênticas manifestações, também,

cada vez mais, tem sido praticada por um grande número de pessoas das classes

privilegiadas.

Assim, dos escravos, do século XVI, aos artistas, doutores, grandes

comerciantes, empresários bem sucedidos e outros integrantes da pequena

burguesia e da burguesia brasileira do século XXI; da caá-puêra, às escolas da

Educação Básica, às modernas Academias de Ginástica e à Universidade; dos

terreiros defronte às senzalas, às ruas, aos largos, às praças e aos salões — não,

por certo, por intermédio de um percurso linear, progressivo, ascendente —, a

prática da Capoeira, hoje, pode ser constatada em diferentes espaços que lhes são

disponibilizados, permitidos, autorizados, ou ainda, como querem alguns, por ela

conquistados. Importante, aqui, ressaltar que tais espaços, principalmente a rua, a

praça e o salão, não são, como interpreta Roberto DaMatta, apenas delimitações

geográficas, mas constituem-se em “esferas de significação social”; são esferas que

“contêm visões de mundo de éticas particulares”; esferas que “constituem a própria

realidade e que permitem normalizar e moralizar o comportamento por meio de

perspectivas próprias”20; são um dos principais âmbitos nos quais o homem constrói

a sua existência, onde realiza-se o Dasein, citado no primeiro capítulo, gerando,

pois, comportamentos diferentes e diversas interpretações de um mesmo fenômeno.

18 Cf. Maria Amália Correa Giffoni, op. cit., p. 32 19 Idem 20 Cf. Roberto DaMatta, A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil, Rio de Janeiro, Guanabara Kogan, 1991, p. 53

203

Um dos principais espaços, “esferas de sentido”, âmbitos, nos quais é

possível encontrar a prática da Capoeira tem sido, sem dúvida, a Escola, pois, sabe-

se que no mundo ocidental, principalmente, esta tem tido papel decisivo no chamado

processo civilizatório, desde a Roma Antiga na época do Império, com a sua

intenção de romanizar o mundo, como afirma Lorenzo Luzuriaga21, e por ser uma

das agências mais importantes no processo de transmissão de cultura, por

intermédio do ensino, conforme concebe Werneck Sodré :

“A transmissão da cultura se processa através de meios sistemáticos e de meios não sistemáticos; o meio sistemático mais usado e mais desenvolvido é a forma de educação denominada ensino; em todos os tempos e em todos os lugares, com desenvolvimento que acompanhou o desenvolvimento das sociedades, exigiu sempre, maior ou menor, um aparelho de transmissão sistemática dos conhecimentos, uma estrutura de ensino; sociedades complexas, como as do capitalismo, demandam complexos aparelhos de ensino, estruturas complexas de ensino; tais aparelhos e estruturas são, no todo ou em parte, peças do aparelho de Estado; transmitem, assim, a cultura oficial, aquela que obedece à característica social de que a cultura dominante é a cultura das classes dominantes”.22

Como já afirmado, o processo de escolarização da Capoeira, principalmente

em seu início, desenvolve-se, de modo geral, entrelançando-se muitas vezes com o

21 Cf. Lorenzo Luzuriaga, História da educação e da pedagogia, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1984, p. 63 22 Cf. Nelson Werneck Sodré, Síntese de história da cultura brasileira, São Paulo, DIFEL, 1983, p. 122-123

204

de sua esportivização. Desta forma, como elementos integrantes da sinergia de sua constituição, se nos apresentam cada um dos eventos ocorridos no final do século

XIX e início do XX, já relatados no capítulo anterior, eventos esses que vão desde simples opiniões veiculadas por intermédio de crônicas literárias ou notícias, nos principais periódicos da época, até estudos um pouco mais detalhados dessa

“gymnastica brazileira”, desse “esporte nacional”, dessa nossa “Educação Física”.

No entanto, para se compreender o processo de escolarização da Capoeira, é preciso perceber que tais eventos, mesmo que tenham sido importantíssimos para o seu desenvolvimento, que tenham se constituído em suas principais raízes, não foram certamente os fatores que conseguiram, efetivamente, impulsioná-lo. Tal impulso, indubitavelmente, surge entre o final da década de 20 e final dos anos 40, principalmente, com o Mestre Bimba.

Para o entendimento desse momento do processo é preciso, portanto, que se compreenda, primeiramente, o perfil desse homem chamado Manoel dos Reis

Machado que, desde o seu nascimento, traz consigo o cognome: Bimba. Um perfil, como bem o define Muniz Sodré, é formado por “linhas que se esbatem sobre um fundo de circunstâncias”23, e, assim, é preciso que não apenas sejam observadas as particularidades desse homem, mas também o contexto histórico do período citado, bem como as relações sociais por ele vivenciadas e as influências sofridas, principalmente, no que se refere às manifestações culturais, sobretudo, das classes populares; o pano de fundo donde sobressai, no momento, tal perfil, pois, sabe-se,

“as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias”24.

23 Cf. Muniz Sodré, Mestre Bimba: corpo e mandinga, Rio de Janeiro, Manati, 2002, p. 20 24 Cf. Marx&Engels, A ideologia alemã (I-Feuerbach), São Paulo, Hucitec, 1987, p. 56

205

Mesmo não sendo objeto deste estudo o aspecto psíquico-antropológico de

Mestre Bimba, torna-se necessário, porém, ressaltar que por certo ele não foi um

Prometeu afro-brasileiro, decantado por alguns, apoderando-se da sabedoria dos brancos e redistribuindo-a aos seus pares, nem tampouco um negro Pai-João, ingênuo e manipulado pelos integrantes da classe dominante, como querem outros, ou, também, um outro Calabar que, acusado de negar as suas raízes culturais e trair os seus conterrâneos, substituiu os seus valores pelo da pequena burguesia branca e letrada, no papel de agente de um “peleguismo cultural”, muito menos, ainda, um

Pedro Ivo, um Lampião ou um Antonio Conselheiro, negro-baiano, que, liderando uma causa, insurgiu-se contra o poder instituído. Não! Nascido, em 1900, oito dias depois da recém-instalada República completar o seu primeiro aniversário e pouco tempo após a promulgação da chamada Lei Áurea, Bimba teve uma infância pobre, suportando as vicissitudes dos novos tempos, aprendendo a sobreviver, a cada dia, e a lutar contra os obstáculos lhe apresentados pela sociedade baiana, do início do século XX.

Filho de Luiz Cândido Machado, um negro considerado excelente lutador de

Batuque, mesmo criado no candomblé de Vidal, seu padrinho, no fim de linha do

Engenho Velho de Brotas, em condições precárias, após a partida de sua irmã

Vitória, em 1909 (aproximadamente), para o Rio de Janeiro, Bimba alcançou uma forte compleição física, com 1,90m de altura (estatura acima da média dos homens baianos da época), “90 quilos de músculos bem-distribuídos, pescoço curto e grosso”25 e com uma admirável envergadura, atributos de uma complexão corpórea que a muitos causou impacto, como, por exemplo, a Itapoan, no primeiro instante

25 Idem, ibid., p. 55

206

que o avistou, em 196426; a seus adversários nas lutas no ringue montado no

Parque Odeon, na década de 1930, ou nas ruas de Salvador; a Atenilo, seu aluno desde 1929, que comenta sobre a sua excepcional agilidade combinada à sua estrutura física27, a Bule-Bule, conhecido repentista, poeta popular e cantador baiano que compara o seu aspecto físico a “uma rocha escarpada”28 e, também, a Ubirajara

Almeida (Acordeon) que, em uma de suas músicas, afirma que ele “era forte como um tronco/um tronco de árvore cupuda” e, quando estava a ensinar, “tinha uma faca no olhar/que cortava a gente de cima a baixo”29.

Com essa estrutura física, conjugada à alma de um guerreiro e à postura de um gladiador, esse “descendente de africano na dinâmica social brasileira”30, como enfatiza Muniz Sodré, convive com estigmas há muito prevalecentes, tais como o de serem, tais descendentes, trabalhadores servis, resistentes e dóceis, porém preguiçosos e malandros31, os “maiores ladrões e depredadores e perturbadores da paz pública”, como, segundo Pierre Verger, declarara o cônsul britânico na Bahia, em 181532, tornando-se, apesar dos pesares, auxiliado por sua valentia e perseverança, um temido lutador; um Mestre da Capoeira, exercendo liderança carismática33; uma “atração turística só comparada, na Bahia, à Igreja do Bonfim e

26 Cf. Raimundo Cesar Alves de Almeida (Itapoan), Mestre “Atenilo”: o relâmpago da Capoeira Regional, Salvador, Centro Editorial e Didático da UFBa, 1988, p. 10-11 27 Idem, ibid., p. 26 28 Cf. Bule-Bule, Bimba espalhou capoeira nas praças do mundo inteiro, Salvador, Filhos de Bimba, Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, 1992, p.1 29 Cf. Raimundo Cesar A. de Almeida (Itapoan), Bimba: perfil do mestre, Salvador, Centro Editorial e Didático da UFBa, 1982, p. 127 30 Cf. Muniz Sodré, op. cit., p.19 31 Idem, ibid., p. 33 32 Idem, ibid., p.42 33 Cf. Cesar Augustus S. Barbieri, A capoeira e os tipos de dominação de Weber, Brasília, 1987, inédito.

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às suas praias”34, como afirma Itapoan; “uma das últimas grandes figuras do que se poderia chamar de ciclo heróico dos negros da Bahia”. 35

Tendo o Candomblé como a sua religião, desde os 14 anos, como afirma D.

Alice36, (uma das suas tantas mulheres37), era filho de Xangô, tornando-se, já adulto,

Ogã-de-faca (como afirma Itapoan e Decanio) ou Ogan-Alabê (como afirma Muniz

Sodré), no Terreiro de Mãe Alice, no Alto da Santa Cruz38 e, exercendo diversas profissões, tais como as de marceneiro, carroceiro e carvoeiro, Bimba busca a notoriedade, a fama, o sucesso, o reconhecimento popular nos ringues e nas competições pugilísticas, chegando a sagrar-se campeão, em 1936, ocasião em que lhe é prometido, como reconhecimento de seu valor como lutador, um Cinturão de

Ouro.

Tamanha era a sua obsessão pelo reconhecimento de suas qualidades e valor como cidadão e lutador que, segundo revela Angelo Decanio a Itapoan, por não haver recebido o Cinturão prometido, valendo-se de um velho cinto do fardamento do Exército Brasileiro (cedido por Decanio) e algumas tachas de sapateiro, confecciona, ele mesmo, o seu troféu, a sua insígnia, o seu galardão39!

Mesmo sendo um bom batuqueiro, como declarou Atenilo40; um respeitado Ogã,

34 Cf. Raimundo Cesar Alves de Almeida (Itapoan), Bimba: perfil do mestre, Salvador, Centro Editorial e Didático da UFBa, 1982, p. 67 35 Cf. Muniz Sodré, Mestre Bimba: a morte de um filho de Zumbi, Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 11/2/1974 36 Cf. Muniz Sodré, Mestre Bimba: corpo e mandinga, Rio de Janeiro, Manati, 2002, p. 94 37 Segundo informações prestadas por D. Nair, em 13 de dezembro de 1989, na cidade de Goiânia (GO), a Itapoan, Mestre Bimba tinha várias mulheres, concomitantemente. D. Nair lembra-se apenas do nome de Alice, Francisca e Berenice. Atenilo, também se refere à Alice, Nair, Helenita, Anita , Cf. Raimundo Cesar Alves de Almeida (Itapoan), Mestre “Atenilo”: o relâmpago da Capoeira Regional, Salvador, Centro Editorial e Didático da UFBa, 1988, p. 28 38 Cf. Raimundo Cesar Alves de Almeida (Itapoan), Bimba: perfil do mestre, Salvador, Centro Editorial e Didático da UFBa, 1982, p. 68 39 Idem, ibid., p. 16. Segundo Decanio, tratava-se não de um cinto mas de um talabarte que usara por ocasião de seu estágio de Aspirante a Oficial, no III Batalhão do 18º Regimento de Infantaria. Cf. Angelo Augusto Decanio Filho, A herança de Mestre Bimba: filosofia e lógica africanas da capoeira (Coleção São Salomão n° 1), Salvador, Edição do autor, 1996, p. 68 40 Cf. Raimundo Cesar Alves de Almeida (Itapoan), Mestre “Atenilo”: o relâmpago da Capoeira Regional, Salvador, Centro Editorial e Didático da UFBa, 1988, p. 58

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como testemunhou Nenel41; é por intermédio da Capoeira que ele alcança a sua maior projeção nos campos esportivo, educacional, artístico e cultural, já tendo, anteriormente, tentado sem sucesso conquistar o título de campeão nos exercícios de barra fixa, competição essa, segundo informações de Itapoan, promovida por um dos principais periódicos de Salvador e realizada no Dique do Tororó. Tal desejo de notoriedade, de tornar-se famoso e reverenciado pelos demais, faz lembrar Machado de Assis, ao tecer os seus comentários sobre o que chamou de “erotismo de publicidade” e a atração exercida pela imprensa sobre os Capoeiras da época, pois, segundo ele, nos jornais

“(...) o nome da gente, em letra redonda, tem outra graça, que não em letra manuscrita; sai mais bonito, mais nítido, mete-se pelos olhos dentro, sem contar que as pessoas que hão de ler, compram as folhas, e a gente fica notória sem desprender nada”.42

Bimba é bamba!, exclamava a platéia que compareceu ao Largo da Sé, no

Parque Odeon, para assistir, no dia 06 de fevereiro de 1936, a luta entre Bimba e

Henrique Bahia43, julgamento esse que, estampado em uma da manchetes do jornal

O Estado da Bahia, que circulou no dia seguinte, se popularizou e contribuiu, significativamente, às vésperas da decretação do Estado Novo, para a consolidação do processo, já em franco desenvolvimento, de sua mitificação.

41 Comunicação pessoal, em novembro de 1988, de Manoel Nascimento Machado, filho de Bimba com D. Bena (Berenice), mas criado até a adolescência por D. Alice, na Capoeira, por seu pai, como Pererê, sendo, porém, conhecido, hoje, por Nenel. 42 Cf. Machado de Assis, Balas de Estalo (Crônica do dia 14 de março de 1885). Obras completas de Machado de Assis, v. 25, Rio de Janeiro : W. M. Jackson Inc., 1972, p. 217-218 43 Cf. Frederico José de Abreu (Frede). “Bimba é bamba”: a capoeira no ringue, Salvador, Instituto Jair Moura, 1999, p. 54

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O contexto no qual Bimba vive a sua infância e adolescência está impregnado de insatisfações decorrentes do término do regime escravocrata e da monarquia brasileira; carregado de preconceitos quanto às suas raízes, à sua origem negro- africana e afro-baiana, não apenas no que se refere à estética corporal (cor da pele, traços fisionômicos, cheiro etc.), mas também quanto às suas manifestações culturais, quer as herdadas de seus ancestrais africanos, quer as (re)criadas por ele nesse grande caldeirão etno-cultural que foi, e ainda é, a Bahia; um contexto tecido nebulosamente pela hipocrisia da elite branca, católica, letrada e dominante em tensão com a resistência e determinação dos negros, recém-alforriados, na busca esperançosa da conquista de sua cidadania, exigindo-lhe, desta forma, extrema correção no cumprimento das normas estabelecidas e um caráter sem jaça, além de indubitável competência em seu quefazer! Com relação aos seus valores morais, contam os seus alunos mais antigos que, certa vez, após uma das muitas excursões que fez com seus alunos, um deles apoderou-se, como souvenir, de um cinzeiro do hotel no qual se hospedaram, fato esse que foi um dos motivos principais computados pelo Mestre para afastar o referido aluno de sua Academia, pois para ele, tal ato, não tinha nada a ver com “recordações de uma viagem” e sim, com roubo!

Sua juventude não é vivida em ambiente diverso daquele existente nas etapas anteriores de seu desenvolvimento, pois, as primeiras décadas da Primeira

República, como se sabe, têm como característica, dentre outros aspectos, por um lado, a luta, objetivando a manutenção do status quo, empreendida pelas oligarquias, constituídas pelos mais expressivos representantes da elite sócio- econômica da época, e, por outro, o fato de que, conforme concebe Werneck

Sodré, se no campo da política, a burguesia, em busca do controle do poder,

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procura cooptar a pequena burguesia e a, vigiadíssima classe trabalhadora, no campo cultural, paralelamente, essa “luta ascencional” deveria concretizar-se por intermédio do “rompimento com os velhos padrões de criação” e do acolhimento, certamente conveniente, da “crescente necessidade de incorporação de amplas camadas da pequena burguesia à cultura”. Essa “subversão burguesa”, como denomina Werneck, na esfera da cultura, ocorre concomitantemente ao Tenentismo

(movimento que “reflete, com a força crescente da classe média, as inquietações represadas”44) e é liderada pelos intelectuais da época (principalmente os artistas e escritores), constituindo-se , as ações empreendidas, no Modernismo que, como um dos fatores que impulsionaram as conquistas da emergente burguesia brasileira da

época, apresenta “elementos de conciliação e estímulos a razões populares”, proporcionando, até, como conseqüência, o aparecimento no palco de integrantes da classe trabalhadora, especificamente do proletariado45 (no caso de Bimba não o palco, no início, mas o ringue de lutas, em praça pública), processo esse que,

“colocando-se a pequena burguesia como vanguarda ousada, rompendo obstáculos e desprezando preconceitos, receptiva às mudanças, descompromissada com a sacralidade de valores estabelecidos”46, teve, na Revolução de 1930, o seu coroamento, propiciando, conforme afirma Célio Cunha, o desenvolvimento de um processo de “reflexão madura”, permitindo que “a inteligência nacional se libertasse de alguns modelos importados que estavam impedindo uma interpretação mais correta de nossa realidade, em seus aspectos econômicos, sócio-culturais e políticos”47.

44 Cf. Nelson Werneck Sodré, Introdução à revolução brasileira, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, p. 176 45 Cf. Nelson Werneck Sodré, op. cit., p. 56 46 Idem, ibid., p. 60 47 Cf. Célio Cunha, Educação e autoritarismo no Estado Novo, São Paulo, Cortez, 1981, p. 58

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Cabe também ressaltar que tal elite intelectual ainda encontrava-se embevecida pelos costumes estrangeiros, vinculados aos valores europeus, principalmente, e, por outro lado, pela realização de esforços em busca da construção da identidade brasileira e da consolidação de nossa nacionalidade, “de afirmação nacional; de busca de identidade telúrica”48, abordando, dentre outros, temas tais como “abrasileirar o Brasil” e “pensar em brasileiro”49. Tupy or not tupy, that is the question50, afirmava o Manifesto Antropófago elaborado em 1928 pelo iconoclasta Oswald de Andrade, manifesto esse concebido no seio do chamado

Movimento Modernista (o qual Bruno Tolentino chamou, pejorativamente, de “a segunda gritaria do Ipiranga”51) que, sendo deflagrado por “figuras tradicionais”, pertencentes à burguesia paulista, e por artistas também contaminados pela cultura européia, principalmente, conseguiu deixar, como legado, “a liquidação do formalismo tradicional (...), o acolhimento a formas populares, a aproximação com os motivos nacionais”52, tornando-se um forte impulso para abalar a estabilidade de alguns preconceitos e discriminações e que, como afirmou Mário de Andrade ao conferenciar na Casa dos Estudantes do Brasil, em 1942, foi o “prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional”53.

Na interpretação de Jorge Nagle, cabe aqui ressaltar, o Movimento

Modernista, no Brasil, além de ter representado uma significativa “perturbação da ordem estética”, como afirmara Mário da Silva Brito, foi, concomitantemente, “uma corrente de idéias e um movimento político-social” que, por intermédio também das

“tentativas de formulação de novos princípios estéticos”, caracterizou-se como “um

48 Idem, ibid., p. 49 49 Cf. Jorge Nagle, Educação e sociedade na Primeira República, São Paulo, EPU; Rio de Janeiro, Fundação Nacional de Material Escolar, 1976, p. 83 50 Cf. Oswald de Andrade, A utopia antropofágica, São Paulo, Globo, 1995, p. 47 51 Cf. Bruno Tolentino, Banquete de ossos, Bravo!, São Paulo, D’Avila Comunicações Ltda., Ano 1, nº 8, maio de 1998, p. 19 52 Cf. Nelson Werneck Sodré, op. cit., p. 58-59 53 Cf. Célio Cunha, op. cit., p. 52

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movimento mais amplo de renovação cultural”, lutando, principalmente, contra o romantismo, o realismo, o parnasianismo e o regionalismo prevalecentes na

época54, pois, como dissera Menotti del Pichia, “a vida tomou novos aspectos que estão a solicitar novos símbolos”55.

Desta forma, chegava-se à resposta da questão shakespeariana transplantada, por intermédio do “discurso-manifesto de Oswald de Andrade”, como classifica Nagle, para o contexto brasileiro das primeiras décadas do século XX. A opção feita por uma parcela de influentes intelectuais, principiando um escandaloso processo de “formação da opinião pública”, de contra-ideologia, de estabelecimento de um novo senso comum sobre a questão da afirmação de nossa identidade cultural, foi a de não apenas ser “tupy”, mas em aceitar, valorizar e orgulhar-se em ser brasileiro, “mulato e inzoneiro”, como concebeu , e, principalmente,

“expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte”56.

Assim, além do Movimento Modernista, agitando (a favor ou contra) os diversos segmentos da sociedade, principalmente, no eixo Rio-São Paulo, liderado por Mário de Andrade, surge, como seu desdobramento, no Recife, em 1923, sob a liderança de Gilberto Freyre, um movimento de renovação literária e cultural que constituir-se-á na “tendência regionalista e tradicionalista do modernismo brasileiro”57. Juntos, o movimento paulistano e o movimento recifense, mesmo com divergências e oposições entre ambos, “foram, também, movimentos de combate à

54 Cf. Jorge Nagle, Educação e sociedade na Primeira República, São Paulo, EPU; Rio de Janeiro, Fundação Nacional de Material Escolar, 1976, p. 76-84 55 Cf. Mário da Silva Brito apud Jorge Nagle, Educação e sociedade na Primeira República, São Paulo, EPU; Rio de Janeiro, Fundação Nacional de Material Escolar, 1976, (nota 5) p. 323 56 Cf. Oswald de Andrade, op. cit., p. 52 57 Cf. Jorge Nagle, Educação e sociedade na Primeira República, São Paulo, EPU; Rio de Janeiro, Fundação Nacional de Material Escolar, 1976, p 77

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fácil e superficial imitação de moldes estrangeiros; introduziram, nas suas produções, a ambiência e a realidade humana brasileiras”58.

Importantes para a interpretação da composição do quadro de circunstâncias que na época influenciaram, estimularam e deram suporte ao surgimento da Luta

Regional Baiana (primeiramente) e da Capoeira Regional (posteriormente) são, também, as idéias preconizadas pelo movimento conduzido por Gilberto Freyre que, considerando o Brasil uma “vítima, desde que é Nação, das estrangerias que lhe têm sido impostas” e defendendo, enfaticamente, a luta pela “reabilitação de seus valores e tradições”, principalmente as nordestinas, esclarece, no Manifesto

Regionalista59, de 1926, que “o regionalismo não deve ser confundido como o

‘simples esnobismo tradicionalista’, mesmo porque aproxima-se do povo e ‘desce a raízes e a fontes da vida, da cultura e de artes regionais’”60, representando, assim, mais uma importante sinergia para que Bimba emerja, no campo cultural, como um exemplo da força, da garra, da coragem e da eficácia do brasileiro (e do nordestino) e, mais ainda, como uma inegável comprovação da veracidade e pertinência das premissas, princípios e pressupostos que animavam esse processo de renovação cultural que se instalava, criando, na concepção de Mário de Andrade, “um estado- de-espírito revolucionário” e “um sentimento de arrebentação”61.

Do arquétipo de Pery e Iracema62 — representando o “bom selvagem” das terras americano-tropicais —, ao epíteto do “homem cordial”63, passando, no início da República, pelo estigma do Jéca Tatu — “um piraquára do Paraíba, maravilhoso

58 Idem, ibid., p. 78 59 Manifesto concebido em 1926 mas escrito e publicado apenas na década de 50, conforme esclarece Lucia Helena in: Modernismo brasileiro e vanguarda, São Paulo, Ática, 1986, p. 75. 60 Cf. Jorge Nagle, op. cit., p. 79 61 Cf. Mário de Andrade apud Jorge Nagle, Educação e sociedade na Primeira República, São Paulo, EPU; Rio de Janeiro, Fundação Nacional de Material Escolar, 1976, p 82 62 Cf. José de Alencar, Iracema: lenda do Ceará. São Paulo, Editora Egrégia Ltda., 1979 e O Guarani. São Paulo, Editora Ática S. A., 1992 63 Cf. Sergio Buarque de Holanda, op. cit., p. 101-112

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epítome de carne onde se resumem todas as características da espécie”64 —, denunciado, já em 1918, por Lobato, o homem brasileiro deveria espelhar-se, agora, no exemplo de Policarpo Quaresma65, em seu patriotismo e consideração às suas raízes culturais e no de Macunaíma, que, mesmo sendo um “preto retinto e filho do medo da noite”66 e não tendo nenhum caráter, é tido como um herói que deve ser reverenciado por sua autenticidade e copiado em sua tendência antropofágico-cultural. Contrariando os padrões concebidos e divulgados, principalmente, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ao veicular os feitos dos heróis da raça branca, cultivados pela elite oligárquica, como interpreta Carlos

Guilherme Mota67, nos anos 20 e 30, do século passado, tanto o Aba-Poru (de

Tarsila do Amaral), como A Boba (de Anita Malfati), ou ainda As Cinco Moças de

Guaratinguetá (de Di Cavalcanti, o “menestrel dos tons velados”) e os Dois Meninos

(de Lasar Segall), também atestam que inicia-se, nesse período, uma profunda transformação dos sentidos que constituem a nossa estética-existencial, indicando, também, que o nacional, fundamentalmente, deve prevalecer, revigorando, renovando os sentimentos nacionalistas que decorrem, como interpreta Werneck

Sodré, da “necessidade de compor um novo quadro, conjugando interesses de classe, reduzindo-se a um denominador comum mínimo, para a luta em defesa do que é nacional em nós”68. Estrangeiro sim, desde que digerido, ruminado e regurgitado em bem cultural de produção brasileira !

64 Cf. Monteiro Lobato, Urupês, São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 147 65 Cf. Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma, São Paulo, Ática, 2000 66 Cf. Mário de Andrade, Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, Belo Horizonte, Itatiaia, 1984, p. 9 67 Cf. Célio Cunha, op. cit., p. 54 68 Cf. Nelson Werneck Sodré, Introdução à revolução brasileira, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, p. 181

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É, também, importante ressaltar que, como interpreta Abguar Bastos, após a já bem conhecida Semana de Arte Moderna, de 1922, chamada por ele de “a revolta dos anjos”, as forças que compunham o modernismo brasileiro dividiram-se:

“as reacionárias formaram o ‘verdeamarelismo’ preciosista e enfestonado, atolaram-se na bandeira, danaram-se no nacionalismo militarista e acabaram afundando no integralismo. Da outra banca, o grupo democrático esquerdista da frente moderna errava pelo pau-brasil, pela anta, pela antropofagia (...) até culminar no romance-social e na impregnação comunista”69.

Desses dois troncos principais, apontados por Abguar Bastos, surgiram vários subgrupos, dentre os quais destaco o Pau-Brasil (depois Antropofagia) e o Verde-

Amarelo (depois Anta)70 e deles, reputo como mais significativo para a composição do cenário no qual nasce e se desenvolve a Luta Regional Baiana e, posteriormente, a Capoeira Regional, as concepções disseminadas pelo verdeamarelismo que, tendo como suas raízes constituintes, por um lado, as concepções e ideais da oligarquia cafeeira paulista e, por outro, o movimento modernista71, vem constituir-se no Integralismo, tornado público, ao tomar-se a divulgação do Manifesto Integralista como referência, em outubro de 1932.

Nas palavras de Plínio Salgado, a quem Decanio (um dos mais antigos alunos de Mestre Bimba), emocionadamente, atribui um carisma excepcional e uma retórica

69 Cf. Abguar Barros apud Jorge Nagle, Educação e sociedade na Primeira República, São Paulo, EPU; Rio de Janeiro, Fundação Nacional de Material Escolar, 1976, p 82 70 Cf. Jorge Nagle, Educação e sociedade na Primeira República, São Paulo, EPU, Rio de Janeiro, Fundação Nacional de Material Escolar, 1976, p 81 71 Idem, ibid., p. 85

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de fenomenal poder de comunicação72, o momento era de, voltando as costas à

Europa, “sentir e compreender o Brasil”73 para buscar uma solução nacionalista para o problema : “ou coordenamos as linhas mestras da nossa nacionalidade, ou falhamos como povo masculino (...) Seremos uma Nação que falhou para a virilidade”74. Naqueles dias conturbados, como interpreta Nagle, era necessário que, antes de qualquer outra posição a ser tomada, o brasileiro tivesse coragem de confessar-se brasileiro!75

Se, no campo da Arte, principalmente na pintura, na escultura e na literatura, inicia-se uma rebelião contra a idéia de que a arte seja apenas reprodução do Belo, como afirmou Mário de Andrade76; se o Sacy Pererê e o Curupira, principalmente, são personagens que foram libertados pela estética, agora possível, podendo ser mostrados para a mais frágil e inocente criança e seus feitos relatados, com entusiasmo e detalhes, para introduzi-las nos caminhos que as levariam para os braços de Morfeu; por que, então, no campo do Esporte, da Educação Física, das chamadas manifestações populares, das festas de largo, não haveria espaço para o negro Bimba — carvoeiro, carroceiro, lutador invencível, guerreiro destemido, um

“filho de Zumbi” —, não tão bizarro quanto os outros citados heróis lendários, porém, da mesma forma, excêntrico ?

Na esfera da cultura popular é que Bimba, canibalescamente (como afirmam uns) ou integralisticamente (como acusam outros), elabora a sua Luta Regional

Baiana e a sua Capoeira Regional, mas é, porém, no âmbito da Educação formal

72 Declaração de Decanio, em entrevista realizada em 20 de julho de 2002, ao contar da sensação, quase de transe, sentida por ele ao ouvir, certa vez, Plínio Salgado em uma de suas tantas conferências. 73 Cf. Plínio Salgado apud Jorge Nagle, Educação e sociedade na Primeira República, São Paulo, EPU; Rio de Janeiro, Fundação Nacional de Material Escolar, 1976, p 89 74 Idem, ibid., p. 87 75 Cf. Jorge Nagle, Educação e sociedade na Primeira República, São Paulo, EPU; Rio de Janeiro, Fundação Nacional de Material Escolar, 1976, p 87 76 Idem, ibid., p. 76

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que ele, inclusive, repetindo momentos de diversão exótica oferecidos pelos seus antepassados aos Senhores de Engenho e às autoridades constituídas da Colônia ou do Império brasileiros, estimulado pela receptividade que a Capoeira, ele e seus alunos tiveram após “uma demonstração inicial e reservada para o Interventor Ten.

Juracy Montenegro Magalhães, que se encantou com apresentação e passou a patrocinar a Luta Regional Baiana ab initio”77, com a cumplicidade de seus alunos brancos e letrados, vai buscar, com o auxílio do Dr. Sisnando (seu aluno “que privava da intimidade do Interventor Juracy Magalhães, de cuja guarda pessoal tomava parte”78) o seu alvará, a sua autorização, a sua permissão, porém, agora, procurando definitivamente a sua alforria. Tal objetivo é, por certo, conquistado, não pela sedução empreendida pelas manifestações populares ou pelo clima favorável criado pelos intelectuais da época (modernistas, principalmente) e nem, tampouco, apenas pelo caminho percorrido “através de Sisnando que chegou a Juracy, que conduziu Bimba e seus alunos a Getúlio”79 (o que hoje poderia ser chamado de

“tráfico de influências”), mas sim (há indícios) pela estratégia político-nacionalista de

Vargas que, dentre outras ações, por intermédio do Decreto 22.213, de 14 de dezembro de 1932, ao aprovar e adotar, como “Consolidação das Leis Penais”, o trabalho do desembargador Vicente Piragibe, intitulado “Código Penal Brasileiro”, revoga o Código Penal de 189080, no qual os Capoeiras estavam, comparados aos vadios, sujeitos, no mínimo, à “prisão cellular por dous a seis mezes”81, ou, ainda que, como bem interpreta Esdras Magalhães dos Santos (o Damião, aluno de

Mestre Bimba desde 1947), seguindo o princípio do Direito pertinente à tipicidade do

77 Declaração de Angelo Decanio, em correspondência datada de 24 de abril de 2002 78 Idem 79 Idem 80 Cf. Decreto nº 22.213, de 14 de dezembro de 1932, Art. 1º, publicado no Diário Oficial em 17 de dezembro de 1932 81 Cf. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, Capítulo XIII, Artigos 401, 402, 403 e 404

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crime, o qual estabelece que “não há crime sem a lei anterior que o defina”, aponta que o referido Código Penal (Art. 402) criminalisava a prática da Capoeira “nas ruas e praças públicas” e não em recinto fechado82. Sem contar o fato de que Juracy

Magalhães, um dos simpatizantes do Tenentismo, por ser cearense, tenente e interventor na Bahia, indiscutivelmente, segundo Decanio, “precisava de popularidade” e, por esta razão, facilitou a vida dos Capoeiras da Bahia, acochambrou a vigilância e a proibição, já desgastada, “exigindo que, por intermédio do pagamento, na delegacia de polícia, de uma taxa de vinte mil réis, as festas, comemorações, atividades, tais como o samba, o candomblé e a Capoeira, pudessem ser realizadas até às 22 horas (mesmo que Bimba pagasse, não se sabe o porquê, apenas dois mil réis)”83. Tal conquista, posteriormente, se fortalece pelas duas edições do Congresso Afro-Brasileiro, realizadas respectivamente em 1934, no

Recife, e em 1937, na Cidade do Salvador e, no Estado Novo, quando, mais uma vez, Getúlio Vargas utiliza-se também da Capoeira, junto a outras manifestações culturais, ditas populares, como parte do que se pode chamar hoje de seu projeto de marketing político, tendo em vista, principalmente, “legitimar [o regime e a si mesmo] nas camadas populares urbanas”84.

Seguindo, certamente, a estratégia da conciliação entre as classes sociais, como “palavra de ordem do Estado Novo”85, nesse momento de sua gestação, o encontro entre a Capoeira e a legalidade acontece, oficialmente, com a conquista de um título de registro, concedido pela Secretaria de Educação, Saúde e Assistência

Pública, por intermédio da Inspetoria do Ensino Secundário Profissional, ao “Curso de Educação Phisica”, requerido por seu Diretor, o Sr. Manoel dos Reis Machado (o

82 Comunicação pessoal em 10 de julho de 2002 83 Informação prestada por Angelo Decanio, em 20 de julho de 2002, em sua residência, em Salvador, Bahia. 84 Cf. Antonio Pedro Tota, O Estado Novo, São Paulo, Brasiliense, 1994, p.38 85 Idem, ibid., p. 45

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Mestre Bimba), que recebeu o Certificado pretendido (de nº 111) em 09 de julho de

193786. Esse fato histórico se dá, por certo, após a constatação de não se tratar daquela Capoeira, sobejamente conhecida pelo Catete e pelas autoridades policiais, desde os primórdios da colonização e, principalmente, no final do Segundo Reinado, mas sim, uma atividade agora regrada e metodizada que, como esporte, como ginástica, como Educação Física, como luta nacional, segue, assepticamente, os princípios e diretrizes aceitos e preconizados pela Educação, pela Escola e que é referendada, como concebe o senso comum, pela máxima de que tudo aquilo que pode estar na escola é bom para os “homens de bem” !

Não apenas o campo social da Cultura estava em ebulição. No campo da

Educação, também, o período compreendido entre o final da década de 20, do século passado, caracterizado pelo “otimismo pedagógico” e por um superficial

“entusiasmo pela educação”87, já comentados no segundo capítulo, e os primeiros anos da década de 30, foi um tempo de contrastes e confrontos, surgindo, entre outros eventos sinérgicos, um dos principais debates e impasses da nossa História da Educação, com a disputa estabelecida entre os defensores ferrenhos dos fundamentos católicos para a Educação e os integrantes do chamado Movimento da

Escola Nova. Influenciados profundamente pelos pressupostos escolanovistas concebidos, principalmente, na Europa e Estados Unidos da América do Norte, apresentavam, dentre outras reivindicações, tidas como inovadoras, a oficialização de uma Educação laica, centrada nos aspectos bio-psicológicos do chamado

“educando”, cientificamente concebida e realizada, culminando, tal processo reivindicatório, no surgimento, em 1932, do conhecido Manifesto dos Pioneiros da

86 Cf. Waldeloir Rego, Capoeira angola: um ensaio sócio-etnográfico, Salvador, Editora Itapuã, 1968, p 283 87 Cf. Jorge Nagle, A educação na Primeira República, in: Hollanda, S. B. História geral da civilização brasileira, tomo III, vol. 3, livro 3°, capítulo VII, São Paulo, Diefil, 1961, p. 261-262

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Educação Nova88, um dos resultados das discussões e propostas realizadas durante as Conferências Nacionais de Educação (realizadas pela Associação Brasileira de

Educação-ABE, a partir de 1927), e gerado, dentre outros estímulos, por uma solicitação de Getúlio Vargas, então Chefe do Governo Provisório, que durante a realização da IV Conferência Nacional de Educação, realizada no Rio de Janeiro, em dezembro de 1931, solicitara aos seus participantes um “plano para a reorganização do sistema de educação nacional”89. Nesse manifesto, no qual, segundo Valnir Chagas, “encarava-se a Educação como o instrumento por excelência de uma reconstrução nacional a expressar-se na formação da ‘hierarquia democrática, pela hierarquia das capacidades recrutadas em todos os grupos sociais’”90, recrutamento esse que, é possível inferir, permite que Getúlio Vargas, agora Presidente da República, “numa época de exaltação cívica nacional, autorize a emissão do título de Instrutor de Educação Física para o Sr. Manoel dos Reis

Machado”91, assinado por Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Saúde de

1934 a 1945.

Nesse período, é de conhecimento de todos, na manhã do dia 10 de novembro de 1937, o País amanhece sob a vigência de uma nova Carta Magna! É a chamada “Polaca” que, redigida às escondidas por Francisco Campos, dá suporte legal à decretação do Estado Novo, o qual fundamenta-se, principalmente, no

Nacionalismo que, como interpreta Werneck Sodré, “representa o ideal democrático

88 Cf. Fernando de Azevedo, A educação entre dois mundos: problemas, perspectivas e orientações, São Paulo, Melhoramentos, 1958, p. 41-95 89 Idem, ibid. p. 86 90 Cf. Valnir Chagas, Educação brasileira: o ensino de 1° e 2° graus: antes, agora; e depois?, São Paulo, Saraiva, 1982, p. 45 91 Interpretação e informação prestadas, por Angelo Decanio Filho, em correspondência datada de 24 de abril de 2002 e confirmada em entrevista, no dia 20 de julho de 2002. Cabe ressaltar que, mesmo Decanio afirmando que tal documento ficasse exposto na Academia, pregado na parede, outros antigos alunos de Mestre Bimba desconhecem-no, porém, em uma longa entrevista ao periódico A Tarde, de Salvador, em 07 de fevereiro de 1946, o Mestre declara-se “professor registrado de Educação Física”, fato esse que ndica, certamente, a veracidade da afirmação de Decanio, quanto a existência do documento em questão.

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só esposado pelas classes em ascensão” e, por isso, “precisa mais do que tudo, do apoio popular”92.

A Educação, não é admitida fora dos interesses do Estado e, assim, constitui- se em um instrumento para o alcance dos seus objetivos, conforme declara

Humberto Grande, em estudo realizado, a convite do Departamento de Imprensa e

Propaganda, o bem conhecido DIP, sobre a pedagogia concebida nesse período, pedagogia essa que é

“a educação dirigida, capaz de renovar e organizar uma sociedade pela cultura; é a pedagogia da disciplina e da autoridade que quer formar no espírito das novas gerações uma mentalidade vigorosa e confiante, desejando esclarecer a inteligência brasileira para a compreensão exata dos grandes problemas nacionais”93.

Defendendo uma ampla e eficaz campanha educacional, Humberto Grande, ainda, reputa ser a Educação o “problema básico para reformar a vida de um povo”, e, desta forma, o “Brasil Novo” estaria a necessitar uma “educação nacional, ao mesmo tempo, nacionalista e nacionalizadora”; uma educação que se constituísse em “um sistema orgânico” que, tornando-se profundamente significativo, pudesse orientar a “nossa cultura, pela primeira vez, por princípios objetivos e realísticos”; uma pedagogia que, aspirando “formar uma mentalidade construtiva no espírito juvenil, de acordo com os interesses nacionais”, pudesse ser reconhecida,

92 Cf. Nelson Werneck Sodré, Introdução à revolução brasileira, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, p. 180 93 Cf. Humberto Grande, A pedagogia no Estado Novo, Rio de Janeiro, Gráfica Guarany Ltda., 1941, p. 7

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principalmente por Getúlio Vargas, como uma “filha do Estado Novo, capaz de transformar o nosso povo em robusta nacionalidade, cada vez mais esclarecida e consciente”94. Supõe-se que, tendo em vista terem sido tais concepções veiculadas com a aprovação do DIP, o reconhecimento, enfatizado pelo autor, tenha sido alcançado!

Por certo, tais acontecimentos na área da Educação nenhuma relação direta têm com o menino, o adolescente e o jovem Manoel dos Reis Machado, a não ser, é claro, o fato de ter sido uma das vítimas dos processos de exclusão e de elitização que alijaram dos bancos escolares um sem número de crianças e adolescentes, desde o Período Colonial, como 70% da população negra do início do século XX95, haja vista a sua condição de analfabeto, ou semi-alfabetizado, como afirmam alguns96. No entanto, inegavelmente, os rumos e os sentidos atribuídos ao processo de desenvolvimento da Educação, contribuíram, indiretamente, para a constituição do pano de fundo no qual o futuro Mestre Bimba iria destacar-se, pois essas discussões, temporizações, ajustes e acordos, vinculados, intrinsecamente, às questões políticas da época, trouxeram não apenas uma concepção de Educação diferente da existente no Império, mas a partir de 1930, enfaticamente, abriram espaço para a forte intervenção do Estado nas questões culturais, esportivas e educacionais, principalmente no Estado Novo, considerado “um evento pouco alvissareiro para o desenvolvimento das atividades culturais e científicas. Sobretudo no plano cultural onde o governo passou a ter maior poder de controle”97.

94 Idem, ibid., p. 8-10 95 Cf. Luiz Alberto Oliveira, Negros e educação no Brasil in: TEIXEIRA LOPES, Eliane Maria (org.) et. al., 500 anos de educação no Brasil, Belo Horizonte, Autêntica, 2000, p. 325 96 Foi o Dr. Ruy Gouveia, um dos seus alunos do início da década de 1930, segundo seu próprio depoimento, que ensinou o Mestre a escrever o seu nome e, segundo Decanio, Mestre Bimba conseguia ler, pelo menos, as manchetes dos jornais. 97 Cf. Célio Cunha, op. cit., p. 61

223

Na esfera do Esporte, institucionalizado, metodizado e regrado, no Brasil, o período conhecido como Segunda República, principalmente nas décadas de 30 e

40, é constituído, também, por eventos sinérgicos que, direta ou indiretamente, influenciaram no processo de (re)criação ou de surgimento da Luta Regional Baiana, primeiramente, e da Capoeira Regional, posteriormente, realizado (como afirmam alguns) ou co-realizado (como interpretam outros) por Mestre Bimba, como o seu principal ator-construtor.

Cabe, aqui, ressaltar que o fenômeno Esporte, em sua manifestação conhecida como Esporte de Rendimento ou Esporte de Alto Nível, é planejado, realizado, controlado e avaliado conforme os pressupostos decorrentes de uma visão moderno-competitiva do fenômeno Esporte, visão essa que, fundamentada nos valores que originam o individualismo e nos pressupostos constitutivos da ideologia capitalista, valoriza apenas a prática esportiva que objetive o rendimento máximo, a quebra de recordes, aceitando como “naturais”, “normais”, próprios dessa prática, a hipercompetitividade, a seleção darwiniana, a eliminação do outro, a vitória a qualquer preço98, e é caracterizado, principalmente, por sua concepção fundamentada na competição ferrenha entre seus participantes; por sua organização em clubes e associações municipais, federações e confederações nacionais e federações, associações e comitês internacionais; por apresentar regulamentos, normas e regras que possam ser seguidas por qualquer um de seus praticantes, em qualquer lugar do planeta Terra.

Se, como citado no segundo capítulo, no âmbito da Escola, no início da década de 1920, surge o que Lourenço Filho chamou de “taylorismo educativo”, também na área do Esporte começa a vigorar o pressuposto da “organização do

98 Cf. Cesar Augustus S. Barbieri, Esporte Educacional: uma possibilidade de restauração do humano no homem, Canoas, Editora da ULBRA, 2001, p. 127

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trabalho”, da racionalização das atividades, a busca de maiores resultados com um mínimo de esforço despendido, a valorização e o emprego da racionalidade técnica, instrumental, seguindo, também aqui no Brasil, mesmo que rudimentarmente, os pressupostos enfocados por Weber, em sua interpretação sobre o princípio da conduta ascética e a ética protestante, quando revela que:

“o esporte seria aceito se ele servisse a um propósito

racional, o da recuperação necessária à eficiência física.

Mas como meio de expressão espontânea de impulsos

indisciplinados, era lhes suspeito; e a medida que fosse

apenas um meio de diversão, de estímulo ao orgulho, de

despertar de baixos instintos ou do instinto irracional da

aposta, era obviamente condenado”.99

A manifestação chamada de Esporte de Rendimento, é preciso esclarecer, alicerçada nessa racionalidade apontada por Weber, configura-se em uma das perspectivas do fenômeno Esporte que, como interpreta, com propriedade, Pierre

Bourdieu, teve sua origem na transformação de alguns jogos populares, ocorrida, no interior “das grandes escolas reservadas às ‘elites’ da sociedade burguesa, nas public schoois inglesas”, atribuindo-lhes novos significados e impondo-lhes novas funções, como aconteceu, também, com algumas danças populares, fazendo com que “o esporte, que nasceu dos jogos realmente populares, isto é, produzidos pelo

99 Cf. Max Weber, A ética protestante e o espírito capitalismo, São Paulo, Editora Martin Claret, 2002, p. 121

225

povo, retorne ao povo, como a folk music, sob a forma de espetáculos produzidos para o povo”100.

Ressalta-se, também, que como desdobramento, certamente, das concepções de Aníbal Burlamaqui, em 1928, e do misterioso oficial do Exército

Brasileiro, autor anônimo do “Guia do Capoeira ou Gymnastica Brasileira”101, divulgado em 1907, já referidos suficientemente no capítulo anterior, em 1933 a

Federação Carioca de Boxe (“reorganizada em 3 de agosto de 1935, sob o nome de

Federação Brasileira de Pugilismo e constituída em Confederação em 14 de abril de

1941”102) com sede na cidade do Rio de Janeiro, como destaca Frede Abreu, inclui a

Capoeira entre as lutas sob a sua jurisdição, sob a sua responsabilidade e direção, submetendo-a, como modalidade esportiva, às suas normas e regulamentação103, iniciando, oficialmente, o polêmico e interminável processo de sua pretensa uniformização, de sua padronização, tendo em vista a realização de confrontos entre lutadores de origem, formação e treinamento heterogêneos, constituindo, sem sombra de dúvidas, um dos instrumentos necessários para a consolidação do processo de assepsia social, na época, em desenvolvimento104.

Nesse contexto de valorização do denominado Esporte de Rendimento, do

Esporte institucionalizado, nesse “fundo de circunstâncias”, aqui, pelo objetivo do estudo, rapidamente apresentado, e como resultado de sua antropofagia (ou

100 Cf, Pierre Bourdieu, Questões de sociologia, Rio de Janeiro,Editora Marco Zero Limitada, 1983, p. 139-144 101 Segundo depoimento de Jair Moura, em entrevista realizada na Cidade do Salvador, em 19 de julho de 2002, há indícios que tal proposta de regulamentação tenha sido elaborada por Garcia Palhares, um oficial da Marinha, no Rio de Janeiro. 102 Cf. Estatuto da Confederação Brasileira de Pugilismo, Capítulo I, Fundação – Direção – Fins, Art. 1º, aprovado em Assembléia Geral, realizada em 13 de janeiro de 1978 103 Cf. Frederico José de Abreu (Frede), op. cit., p. 49 104 Sobre o papel e função do Esporte na Era Vargas, recomenda-se a leitura de Mário Ribeiro Cantarino Filho, Educação Física no Estado Novo: história e doutrina (Dissertação de Mestrado em Educação), Brasília, Universidade de Brasília/FE, 1982; Amarílio Ferreira Neto, A pedagogia no Exército e na Escola: a educação física brasileira (1880-1950), Aracruz, FACHA, 1999; Eduardo Dias Manhães, Política de esportes no Brasil (Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais /Política), Rio de Janeiro, UFRJ, 1985, dentre outros estudos e autores.

226

simplesmente obedecendo a inevitável dinâmica do processo cultural105), o carroceiro e lutador Bimba torna-se, não da noite para o dia, o Mestre Bimba; assume uma efetiva liderança nesse processo histórico que no momento deflagrara e conduzia; passa a representar, como afirma Muniz Sodré, no âmbito da Capoeira,

“um divisor de águas” 106 no curso das manifestações negro-africanas na Bahia; transmuta-se, como afirmou Frede Abreu, de tabu em totem107.

Nessa trajetória da Capoeira da rua para o salão, é importante ressaltar o fato de que Bimba, em 1932, quando exercia a profissão de carvoeiro, é procurado por

José Sisnando, um estudante de medicina cearense, para que lhe ensinasse a

Capoeira, seguido mais tarde (em 1935) por Ruy Gouveia (convidado por Galba e

Deusimar, também alunos do Curso de Medicina) e outros acadêmicos. As aulas, segundo Ruy Gouveia, eram no porão da casa de Galba, e, posteriormente, foi fundada a primeira escola de Capoeira, na Roça do Lobo (na Rua Bananal nº 04 –

Tororó)108, para os treinos aos sábados e domingos, pois, como afirma Decanio, “o ensino era domiciliar”, e, para o grupo pioneiro de alunos, realizado na casa de Dr.

Ferrer, pai de Asclépio, na Rua do Bangala109, posteriormente denominada, jocosamente, por esses alunos, como “Club de União em Apuros”110 passando, em seguida, a ensinar também (não sem antes enviar, como “monitor”, o seu aluno Ruy

105 Segundo Agnaldo Farias, ao comentar sobre os 70 anos do “Manifesto Antropófago”, tem sido muito comum, nos dias de hoje, deparar-se com interpretações simplistas que, equivocadamente, tomam “o movimento geral da cultura” pelo “apanágio da antropofagia”. Cf. Agnaldo Farias, Fetiche e mistificação, in: Bravo!, São Paulo, D’Avila Comunicações Ltda., Ano 1, nº 8, maio de 1998, p. 26 106 Cf. Muniz Sodré, Mestre Bimba: a morte de um filho de Zumbi, Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 11/02/1974 107 Comunicação pessoal, em dezembro de 1989, numa tarde ensolarada, no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia 108 Declaração do Dr. Ruy Gouveia, em entrevista concedida a Itapoan, em 12 de dezembro de 1989, na cidade de Fortaleza, Ceará. 109 Informações de Decanio, em correspondência datada de 01 de agosto de 2002. 110 Cf. Raimundo Cesar Alves de Almeida (Itapoan) A saga do Mestre Bimba, Salvador, Ginga Associação de Capoeira, 1994, p. 17-18 e 136.

227

Gouveia, para “testar os alunos”111) em outras residências particulares de “pessoas de bem” que não queriam se expor publicamente.

Nessa mesma época, Bimba desenvolve o seu “Curso de Capoeira” no

Centro de Preparação de Oficiais da Reserva-CPOR (no curso destinado à formação de oficiais da reserva), por intermédio do seu Grêmio de Alunos, levado por Milton

Freire de Carvalho (o Onça-Tigre). Por ser “paisano”, Bimba, para contornar os regulamentos militares, desempenhava, oficialmente, a função de auxiliar de Onça-

Tigre, que era seu aluno e Oficial do Exército, prestando serviço no CPOR112, oportunidade essa que, é possível inferir, é facilitada e admitida (mesmo Bimba não sendo militar) pela extrema importância atribuída, na época, pelo Governo Vargas, à questão das condições físicas da população brasileira e a estratégia de convocar os vários segmentos da sociedade para participar de mais uma ação conjunta com o

Governo, objetivando a melhoria das condições de saúde e de aptidão física da população. Exemplo disso tem-se nas palavras do General Dutra, Ministro da

Guerra, do Governo Vargas, por ocasião da palestra proferida no Palácio Tiradentes, em 12 de dezembro de 1940, ao afirmar que o Exército Brasileiro ainda precisava de homens fortes e sadios e, ressaltando a importância da Escola de Educação Física do Exército, cujas “portas jamais fecharam para qualquer brasileiro que ai queria educar seu físico e robustecer seu corpo”113, e, assim, apontando a já existente participação do Governo na parceria proposta, conclamou:

111 Declaração de Ruy Gouveia na citada entrevista a Itapoan. 112 Segundo Decanio, em entrevista realizada em 20 de julho de 2002 (em sua residência em Paripe, Salvador, Bahia) o referido “Curso de Capoeira”, mesmo tendo contado com o endosso do General Onofre Aleixo, então Comandante da 6ª Região Militar (conforme declara Onça-Tigre, em entrevista realizada em 25 de março de 1993), foi extinto, em 1938, pelo Major Freitas, Comandante do Curso. 113 Cf. Gen. Dutra, O exército em dez anos de governo do Presidente Getúlio Vargas (1930-1940. In: BRASIL, Ministério da Guerra, Biblioteca Militar. A República dos Estados Unidos do Brasil e o Exército Brasileiro: 1930-1940 (volume avulso), Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1941, p. 57-58

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“Coadjuvai conosco, todos que nos ouvis; colaborai da melhor maneira para o revigoramento de nossa gente, fornecendo-nos homens sãos, com alguma instrução, pois tanto carece o Exército (...) As inspeções de saúde rejeitam anualmente para o serviço das armas, por incapacidade física, mais de 50% dos nossos jovens patrícios! É lamentável esse estado de cousas. Semelhante situação apouca o nosso poder militar. A oficialidade luta denodadamente para transformar anualmente os conscritos em robustos soldados, capazes de todos os esforços que a preparação militar exige. Tão grave situação requer a meditação e o esforço de todos que possam atuar em proveito da elevação do nível de robustez do nosso povo”114

Nesse mesmo período, as aulas do “Curso de Capoeira” de Mestre Bimba também acontecem na pensão do “seu” Ziza, na Rua do Bispo nº 27, onde residiam estudantes de medicina, contando com a colaboração de José Soares Azevedo (o

Moreno), ao treinar os “alunos novos nas aulas num quarto vago no segundo andar”115. O encontro entre Mestre Bimba e Sisnando e, como conseqüência, com seus colegas universitários, no início da década de 1930, possivelmente seja o primeiro passo para o desenvolvimento do processo de escolarização da Capoeira e o primeiro momento do duradouro encontro entre o Mestre e jovens da pequena burguesia, branca e letrada, encontro esse que, sem dúvida, influenciou, sobremaneira, o processo de constituição (filosofia, princípios e metodologia), de

(re)criação da denominada, inicialmente, Luta Regional Baiana e, posteriormente,

Capoeira Regional, sendo esse acontecimento, como afirma Itapoan, o momento no

114 Idem, ibid., p. 57 115 Declaração de Angelo Decanio, por ocasião da mesma entrevista

229

qual “a Capoeira entrou pela primeira vez no meio universitário”116. Apresentações eram realizadas, pelo Mestre e seus melhores alunos, também em Estabelecimentos de Ensino, objetivando divulgar a sua proposta e “recrutar” praticantes e adeptos, a exemplo da assistida por Jair Moura, em 1947, no Ginásio Carneiro Ribeiro, convidado que foi pelo Grêmio Lítero-Esportivo Carneiro Ribeiro117, ou, ainda, em clubes, como a que Carlos Senna (o Senna, seu aluno desde 1950) apreciou no

Clube Israelita da Bahia, em 1949, a qual contava com a participação de Adib

Andraus118. Tais encontros e apresentações, por certo, constituem o início do

“processo de legitimação junto às camadas sociais médias e superiores”119 da sociedade baiana, haja vista, por exemplo, que “tornou-se elegante modismo a freqüência pelos acadêmicos das Escolas Superiores de Salvador”120 às aulas de

Mestre Bimba. Na longa lista de “ilustres alunos” apresentada por Senna, destacam- se os nomes do general Juracy Magalhães, do desembargador Décio Seabra, do Dr.

Antonio Carlos Magalhães, do banqueiro José de Sá Neto, do engenheiro Aquiles

Gadelha, do empresário Júlio Alban, do cirurgião-dentista Geraldo Lessa, do arquiteto Rafael Grimaldo, dentre outros121. Como um instrumento para selecionar os seus alunos não estudantes, como declara Carlos Senna, o Mestre optou pelo

“expediente de exigir carteira de trabalho àqueles que o procuravam para serem ensinados”122.

116 Cf. Raimundo Cesar Alves de Almeida (Itapoan) A saga do Mestre Bimba, Salvador, Ginga Associação de Capoeira, 1994, p. 18 117 Segundo Jair Moura, em entrevista realizada em 19 de julho de 2002, essa apresentação foi o estímulo para que ele, em seguida, procurasse a Academia de Mestre Bimba para iniciar-se no aprendizado da Capoeira. 118 Declaração de Carlos Senna, em entrevista realizada em sua acolhedora residência em Vilas do Atlântico, no dia 20 de julho de 2002. 119 Cf. Luiz Renato Vieira, O jogo da capoeira: corpo e cultura popular no Brasil, Rio de Janeiro , Sprint, 1998, p. 16 120 Cf. Angelo Augusto Decanio Filho, A herança de Mestre Bimba: filosofia e lógica africanas da capoeira (Coleção São Salomão n° 1), Salvador, Edição do autor, 1996, p.115 121 Cf. Carlos Senna, Capoeira: percurso, Salvador , Senavox , Rasteira, 1990, 37 122122 Idem, ibid, p. 36

230

O contexto (político, cultural, educacional, econômico e esportivo, dentre outros aspectos) oferece fortes estímulos para o início e concretização do processo de escolarização da Capoeira, engendrado por Mestre Bimba, estímulos esses originados nas premissas e concepções da época que contribuíram para a formação do senso comum de então, e permitiram o surgimento das estratégias nacionalistas e populistas idealizadas, como por exemplo, por Francisco Campos — o redator da

Constituição de 1937, que apregoava a ditadura das massas e a Educação como meio para a implantação do Estado Novo, atribuindo a este a “promoção da disciplina moral e do adestramento da juventude, de maneira a prepará-la ao cumprimento de suas obrigações para com a economia e a defesa da Nação”123; por

Azevedo do Amaral — grande admirador de Getúlio Vargas que, sendo “um crítico intransigente de ideologias importadas”, defendia e propagava, autoritariamente, os princípios constitucionais de 37, fundamentados em “um nacionalismo que estivesse nas raízes do povo brasileiro”124; por Lourenço Filho — que, comparando (e igualando em importância) a Educação com a Segurança Nacional, estabelecia, como decorrência, profunda vinculação entre o Ministério da Educação e o, então,

Ministério da Guerra e acreditava na união de propósitos contidos na “voz dos educadores e dos soldados, unidos num mesmo anseio de força e perfeição”, voz essa que haveria de “ensinar ao Brasil de amanhã a sua grandeza e a sua glória”125; por Gustavo Capanema — que, mesmo sendo considerado, aparentemente, um humanista, concebia que a Educação deveria “tomar partido”, “adotar uma filosofia e seguir uma tábua de valores”, regida pelo “sistema de diretrizes morais, políticas e econômicas, que formam a base ideológica da Nação”126. Esse é, pois, o campo

123 Cf. Célio Cunha, op. cit., p. 103 124 Idem, ibid., p. 104 125 Idem, ibid., p. 109 126 Idem, ibid., p. 114

231

fértil no qual a Capoeira começa a ser praticada de forma sistematizada, “regrada e methodisada”, como queria Burlamaqui, Coelho Neto e outros, num outro espaço, numa nova esfera de significação: o salão, a Academia de Capoeira, a Escola de

Capoeira, os Estabelecimentos de Ensino, do sistema formal, e a instituição Escola.

Desta forma, como interpreta Muniz Sodré, Mestre Bimba, “escolarizando o jogo da capoeira”, cria as condições “de ampliação do relacionamento com a classe média branca e de valorização social daquilo que os negros também chamavam de ‘a brincadeira’”127, ou, ainda, como aponta Waldeloir Rego, tendo como conseqüência a modificação profunda de seu status quo, “tira a capoeira dos terreiros e a põe em recinto fechado, com nome e caráter de academia, onde os ensinamentos passaram a ter um cunho didático e as exibições possibilitaram a presença de outras camadas sociais superiores”128.

O cenário, no qual a Capoeira (nascida na rua, tal como o Lundu e o Maxixe) com o nome de Luta Regional Bahiana, primeiramente, e Capoeira Regional, posteriormente, começa a ser aceita nos salões (não impunemente, certamente), é aquele em que a “cultura transplantada”129, como denominou Werneck Sodré, do período colonial, já enfraquecida, começa a ceder espaço (oportunidade de

(re)significação) aos ditames de uma pequena burguesia que, com o advento da

Revolução de 30 e o conseqüente início do capitalismo no Brasil, vai, na toada do racionalismo e de uma pretensa autonomia econômica, política e cultural, principalmente, se estabelecendo, permitindo, também, que a Capoeira, como

127 Cf. Muniz Sodré, Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis , Vozes, 1999, p. 227 128 Cf. Waldeloir Rego, Capoeira angola: um ensaio sócio-etnográfico, Salvador, Editora Itapuã, 1968, p. 361 129 Cf. Nelson Werneck Sodré, Síntese de história da cultura brasileira, São Paulo, DIFEL, 1983

232

interpreta Alejandro Frigerio, se transforme de “arte negra em esporte branco”130, ou, ainda, seja recodificada e incorporada a “uma perspectiva marcializante”, absorvendo “um jeito branco e erudito de ser” e, “substimando suas origens étnicas negras”, chegando a “desafricanizar-se e dessacralizar-se”, como afirma José Luiz

Cirqueira Falcão (o Falcão, aluno de Mestre Zulu)131.

Assim, ao longo dos anos, como atestam, principalmente, Angelo Decanio,

Itapoan e Hélio Campos (o Xaréu, aluno de Mestre Bimba desde 1967) , dentre outros praticantes da Luta Regional Baiana e da Capoeira Regional, Mestre Bimba, que, relembrando, era “tido como uma espécie de Lutero da capoeira”132, organiza, estrutura, sistematiza, como autor ou co-autor, uma Capoeira que:

• não era praticada (ensinada e aprendida) regularmente na rua e

sim em recinto fechado (Unidades Militares, Estabelecimentos de

Ensino, residências particulares, teatros, palácios, clubes sociais

e esportivos etc.);

• sofreu um processo de assepsia, eliminando “tudo o que era

porcaria”133 da Capoeira praticada até então, ou, como afirmou

Decanio, “libertando a Luta Regional Baiana dos vícios da

Capoeira”134;

• metodizada e regrada, teve o seu processo de ensino

centralizado em apenas um Mestre (Bimba) como o seu principal

130 Cf. Alejandro Frigerio. Capoeira: de arte negra a esporte branco, Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 10, vol. 4, junho de 1989, p. 85-98 131 Cf. José Luiz Cirqueira Falcão (Falcão), A escolarização da capoeira, Brasília, ASEFE, Royal Court, 1996, p.39 132 Cf. Carybé (Hector Bernabó). O jogo da capoeira. Coleção Recôncavo, n°3. Salvador : Livraria Progresso Editora, 1955, p. 6 133 Cf. Raimundo Cesar Alves de Almeida (Itapoan), Mestre “Atenilo”: o relâmpago da Capoeira Regional, Salvador, Centro Editorial e Didático da UFBa, 1988, p. 40 134 Informação prestada em entrevista concedida, em Salvador, no dia 20 de julho de 2002

233

elaborador, divulgador e professor, pois o ambiente de uma

Academia de Capoeira, na concepção de Mestre Bimba, relatada

por Decanio, é como casa de família, só tem lugar pra um

homem, pra um chefe135, razão pela qual, é possível inferir que

seguindo essa premissa, já em 1939, Jacynto e Augusto de São

Pedro, dois de seus alunos, foram expulsos da Academia porque

arvoraram-se a ensinar independentemente136;

• para aprendê-la, de forma diferente daquela utilizada pelos

mestres antigos, dentre as suas etapas, fases ou períodos de

aprendizado, o aluno devia, primeiramente, submeter-se a um

Exame de Seleção que era composto, no início, por uma

“gravata” que o Mestre aplicava no pescoço do candidato (à qual

o aluno deveria resistir por um período de, no mínimo, três

minutos), e a uma conversa, na qual Bimba, como afirma

Onça-Tigre, indagava sobre os objetivos do pretendente com

relação ao aprendizado da Capoeira. Conforme declara Itapoan,

por causa da natureza e execução de tal “teste de seleção”, o

Mestre “perdeu muitos alunos e dinheiro com isso, porém

justificava que a sua Academia só queria machos”137. Nos anos

60, tal “exame de seleção” tinha sido reduzido a alguns poucos

“testes” relacionados à flexibilidade da coluna vertebral, ocasião

em que, o Mestre, detectava e avaliava a potencialidade do futuro

aluno. À medida que os alunos da pequena burguesia, branca e

135 Cf. Angelo Augusto Decanio Filho, A herança de Mestre Bimba: filosofia e lógica africanas da capoeira (Coleção São Salomão n° 1), Salvador, Edição do autor, 1996, p. 129 136 Idem, em entrevista no dia 20 de julho de 2002 137 Cf. Raimundo Cesar Alves de Almeida (Itapoan) A saga do Mestre Bimba, Salvador, Ginga Associação de Capoeira, 1994, p. 61

234

letrada, foram se aproximando, os cuidados com a integridade

física dos mesmos, a partir do momento da seleção, foram

aumentando e sendo aperfeiçoados, como por exemplo, no caso

de Jair Moura que, por suas características físicas, lhe foi

solicitado que trouxesse, como requisito para o início do processo

de seu aprendizado, uma carta de autorização assinada por seu

pai138;

• sendo ensinada em uma Academia, em uma escola (que para

Waldeloir Rego, foi a “matriz que originou as demais, existentes

no presente”139), estava disponível ao aluno somente após a sua

inscrição ter sido anotada em um Livro de Matrícula, livro esse

que também servia como livro contábil, pois na frente do nome do

aluno “o Mestre marcava com uma cruz toda vez que o aluno

pagava”140 a sua taxa mensal;

• deixa de ser uma prática corporal popular, relativamente livre da

rigidez de regras formais estáveis, e torna-se uma instituição com

normas explícitas de comportamento, aplicáveis tanto no

ambiente de aprendizagem (a Academia) como fora dele,

contando com um Livro de Atas141 para o registro das principais

decisões, tanto as relacionadas ao processo de aprendizagem

138 Na entrevista anteriormente citada, Jair Moura ainda declara que, certamente, ele não conseguiu, “por motivos óbvios”, a autorização de seu pai, fato esse que o incentivou a freqüentar, mesmo sem o conhecimento de seus familiares, as Rodas de Rua, no Cais do Porto, principalmente, até que em 1951, conseguiu matricular-se, finalmente, na Academia de Mestre Bimba. 139 Cf. Waldeloir Rego, op. cit., p. 283 140 Cf. Raimundo Cesar Alves de Almeida (Itapoan) A saga do Mestre Bimba, Salvador, Ginga Associação de Capoeira, 1994, p. 62 141 Idem

235

quanto as que eram pertinentes à vida interna da Academia, as

apresentações do grupo etc.;

• em seu processo de aprendizagem (e de sua divulgação) teve

como um dos seus suportes o registro de suas principais

músicas (quadras e corridos) e toques, exclusivos, de berimbau

(São Bento Grande, Santa Maria, Idalina, Banguela, Amazonas,

Cavalaria e Iuna), gravados em um disco fonográfico142 (LP) que

é acompanhado por uma pequena cartilha contendo as 10

“lições” que compõem o Curso de Capoeira Regional, o

Regulamento que “norteia a prática e o ensino” na Academia,

além da biografia do Mestre (assinada por Wilson Ribeiro) e

algumas letras de quadras e corridos, sob o título de “Folclore da

Capoeira”143;

• era ensinada conforme um Programa de Ensino, no qual estão

previstas as diversas aulas e seus respectivos conteúdos, os

quais obedecem a uma organização pedagógica que abrange

desde os conteúdos considerados mais fáceis até os de maior

complexidade144;

• conforme o processo de aprendizado estabelecido por Mestre

Bimba, o aluno iniciante, chamado de Calouro, tinha a sua

primeira aula com o Mestre (quando tomava conhecimento dos

princípios do fundamento técnico chamado “ginga”) e em

seguida, durante algumas semanas, separado dos alunos mais

142 Cf. Mestre Bimba, Curso de Capoeira Regional: Mestre Bimba. Salvador : RC Discos/Fitas, Long Play, 33 rpm, RC-101, 1989 143 Idem, Curso de Capoeira Regional, Salvador, JS Discos, s/d 144 Idem

236

velhos (chamados de Formados), com auxílio de um (ou mais)

destes, designado e supervisionado pelo Mestre (tal como um

tutor, como aconteceu com Carlos Senna que foi “adotado por

João Flores, Demerval Gusmão e Atenilo”145), aprendia (conhecia

e treinava) os principais golpes que a compõem, em forma de

“uma seqüência de golpes e contra-golpes, didaticamente

elaborada, como se fosse uma série de “exercícios educativos”,

de uma “progressão pedagógica”, denominada Seqüência de

Ensino;

• só era jogada, pelo aluno iniciante, na Roda e ao som do

berimbau, ao término dessa primeira fase do processo de

aprendizado (a fase da “Seqüência de Ensino”), após o seu

“batismo” — quando o aluno jogava na Roda pela primeira vez,

por indicação do Mestre, com um Aluno Formado, o qual, então,

tornava-se seu Padrinho —, momento esse em que lhe era

atribuído um Nome de Guerra e ratificada a sua participação no

grupo como aluno. Depois de ter um certo número de alunos

recém-batizados, no domingo mais próximo, era realizada a

Festa do Batizado com a presença de alguns Ex-alunos, dos

Alunos Formados, familiares dos alunos e algumas outras

pessoas da comunidade convidadas pelo Mestre;

• via de regra, nas aulas, era jogada, no momento da Roda, ao

som de, apenas, um berimbau (que sempre era tocado pelo

Mestre), e nas apresentações, com o acréscimo de dois

145 Informação prestada por Carlos Senna, durante a entrevista citada.

237

pandeiros146, instrumentos esses que se tornaram obrigatórios e

oficiais numa Roda de Capoeira Regional, não sendo permitida a

utilização de nenhum outro além dos citados.

Percebe-se, com relativa facilidade, que os termos-chave empregados pelos praticantes e adeptos da Capoeira Regional são aqueles advindos de uma “esfera de significação” branca e letrada, formada, principalmente, no interior da Escola, no

âmbito do catolicismo e na vida da caserna. Nessa trajetória da prática e ensino, desde 1918, da Luta Regional Baiana (primeiramente) e da Capoeira Regional

(posteriormente), o local, considerado “adequado”, por alguns, para aprendê-la, deixa de ser a rua, o largo, a praça pública, o descampado, a caá-puêra e passa a ser a Academia de Capoeira, ou seja uma Escola de Capoeira, com um professor (o

Mestre Bimba) e um “auxiliar de ensino”147, como se auto-denominou Decanio (um

Contra-Mestre), tendo em substituição à Roda de Rua, protegida pelas suas paredes, uma “sala de aula”148 que possuía, inclusive, uma lousa!

É possível identificar que, antes de, pioneiramente, na Bahia, a Capoeira chegar à Escola (ao ser praticada, ensinada e aprendida, mesmo que extra- oficialmente, no CPOR), ela vai, aos poucos, sendo submetida a um processo de escolarização, tornando-se semelhante, principalmente quanto a sua concepção, objetivos e procedimentos, às disciplinas que integram os diversos currículos do ensino formal (de modo especial o Ensino Superior, na visão de alguns), semelhança essa que, como interpreta Decanio, “só aparece depois de Sisnando, quando o candidato passa a ser submetido a um exame de seleção para verificar

146 Cf. Angelo Augusto Decanio Filho, A herança de Mestre Bimba: filosofia e lógica africanas da capoeira (Coleção São Salomão n° 1), Salvador, Edição do autor, 1996, p. 146 147 Idem, ibid., p. 68 148 Idem, ibid., p. 69

238

suas condições físicas e esclarecer sua condição financeira”149. Ressalta-se, também, que nesse processo de (re)criação da Luta Regional Baiana

(primeiramente) e da Capoeira Regional (posteriormente), cooptado ou não por seus alunos brancos e letrados, da pequena burguesia, Bimba, o “primeiro disciplinarizador e pedagogo da capoeira”150, como interpreta Letícia Vidor, introduzindo inovações no Campo da Capoeira, institui:

• a Formatura — ocasião em que o aluno deveria

mostrar, numa cerimônia pública (divulgada, pelos formandos,

obrigatoriamente, pelo jornal151) suas qualidades e competências

aprendidas na Academia, momento em que, após comprovada as suas

habilidades e ouvido o discurso do Orador, o Paraninfo da Turma

entregava ao formando o seu diploma — uma medalha que era

presa do lado esquerdo da camiseta de malha (contendo ao centro o

escudo da Academia, concebido a partir do Signo de Salomão152) que

compunha o uniforme para aquele dia — e a sua madrinha

(geralmente a namorada ou uma pessoa da família) entregava-lhe o

seu certificado de formado (um lenço de seda azul, que deveria ser

colocado em volta do pescoço), com direito a ser fixado, na parede da

Academia, um quadro de formatura com a fotografia de todos da

turma.

149 Idem, ibid., p. 105 150 Cf. Letícia Vidor de Souza Reis, O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil., São Paulo, Publisher, 1997, p. 129 151 Como exemplo, ver a matéria intitulada “Bimba forma ‘doutores’ em capoeira domingo que vem” publicada no jornal “A Tarde”, do dia 3 de junho de 1966 152 Cf. Raimundo Cesar Alves de Almeida (Itapoan) A saga do Mestre Bimba, Salvador, Ginga Associação de Capoeira, 1994, p. 101-104

239

Concebendo-a como “um rito introduzido por Bimba”,

que era realizado a cada 6 meses, aproximadamente, Frede Abreu

assim interpreta mais essa inovação no Campo da Capoeira:

“Através da imitação desse rito do processo pedagógico branco, que contava como era de costume com a presença dos familiares dos formandos, representantes da ‘sociedade’, a capoeira mostrava que possuía (ou adquiria) status de sistema educativo, assim procurando eliminar a sua identificação social pelo estigma da marginalidade”153 ;

• o Curso de Especialização — curso, secreto,

realizado só para alunos formados pelo Mestre Bimba, que incluía, na

fase final, exercícios realizados na mata da Chapada do Rio Vermelho,

à semelhança das provas próprias das “Pistas de Reação” e dos

exercícios de “Combate em Localidade” realizados nos cursos e

treinamentos, principalmente, do Exército Brasileiro, com direito

também ao “quadro de formatura” e a receber, como “certificado de

especializado”, um lenço de seda vermelho;

• um Sistema de Graduação — que inicialmente

classificava, de acordo com os conteúdos aprendidos e o desempenho

apresentado, tal como a seriação no ensino formal e o sistema de

promoção de uma série à outra, os alunos como “Formados” (Lenço

153 Cf. Frede Abreu, op. cit., p. 39

240

Azul), “Especializados” (Lenço Vermelho)154, sendo que, apenas aos

alunos Decanio, Jair Moura, Edinho e Miranda, em 1966, foi outorgado

o título de “Mestre da Capoeira Regional”, simbolizado pelo até então

inédito Lenço Branco155, símbolo esse que, por ter sido conferido

apenas a esses quatro alunos, representa hoje uma raridade,

conferindo-lhes importância singular no campo da Capoeira Regional;

• um Método de Ensino — “que pudesse levar a

Capoeira a ser ensinada de forma técnica e metódica”156, como explica

Senna, e, ao contrário daqueles utilizados, até então, tinha como

principal referência a figura do Mestre (no caso, de Bimba),

fundamentava-se nos pressupostos da dedução e, partindo da

premissa de que é o Mestre quem tem uma informação que deve ser

transmitida aos alunos, à medida que estes tornem-se maduros para

recebê-la e valorizá-la157, tinha a “Seqüência de Ensino” como uma das

estratégias para compreender e aprender, analiticamente, a Capoeira,

decompondo-a em 8 séries de exercícios dos principais golpes e seus

respectivos contra-golpes, com o objetivo de condicionar, o aluno

iniciante, a aplicar, sempre que atacado, uma defesa e um contra-

ataque158, ou, como define Jair Moura,

154 Itapoan, é o único dos ex-alunos de Mestre Bimba que, por ter participado de dois Cursos de Especialização (em 1966 e em 1967), recebeu um “Certificado” a mais do que os seus contemporâneos: o Lenço Amarelo. Cf. Raimundo Cesar Alves de Almeida (Itapoan), Mestre Bimba, eu e a Capoeira Regional, Revista Negaça, Ano I, nº 2, Salvador, 1994, p. 24 155 Idem 156 Cf. Carlos Senna, Capoeira: percurso, Salvador, Senavox, Rasteira, 1990, p. 34 157 Cf. Augusto Pila Teleña, Educacion Físico Deportiva, Madrid, Editorial Augusto E. Pila Teleña,, 1981 158 Cf. Raimundo Cesar Alves de Almeida (Itapoan), Bimba: perfil do mestre, Salvador, Centro Editorial e Didático da UFBa, 1982, p. 83

241

“uma série de exercícios físicos completos e organizados em um número de lições práticas e eficientes, a fim de que o principiante em Capoeira, dentro do menor espaço de tempo possível, se convença do valor da luta, como um sistema de ataque e defesa”159.

A “Seqüência de Ensino de Mestre Bimba” ou, popularmente,

“Seqüência de Mestre Bimba”, “Seqüência”, tornou-se, pois, a principal

referência para a aplicação e estudo do método (re)criado pelo Mestre.

Dada a importância que conquistou no âmbito da Capoeira Regional e a

polêmica instalada no Campo da Capoeira, transcrevo, a seguir, a

peculiar interpretação de Decanio sobre a mesma:

“... de movimento em movimento...... o aluno contemplava o aprendizado da ‘seqüência’...... conjunto dos elementos fundamentais de ensino ...... e continuava praticando sem o berimbau ...... durante o período necessário ao aprendizado ...... dos movimentos básicos da regional ...... a obra prima do Mestre ...... foi a concepção genial ...... desta seqüência de movimentos ...... fundamental ou de ensino ...... que permite ensinar e difundir a capoeira ...... em tempo incrivelmente curto ...... em apenas 6 meses ...... consegue preparar um capoeirista de boa formação ...... pronto para entrar numa roda ...... sem passar vergonha ... sem apanhar muito!”160

159 Cf. Jair Moura, apud., Raimundo Cesar Alves de Almeida (Itapoan), Bimba: perfil do mestre, Salvador, Centro Editorial e Didático da UFBa, 1982, p. 84 160 Cf. Cf. Angelo Augusto Decanio Filho, A herança de Mestre Bimba: filosofia e lógica africanas da capoeira (Coleção São Salomão n° 1), Salvador, Edição do autor, 1996, p. 167

242

Certamente, a inovação metodológica introduzida por Mestre

Bimba no processo de aprendizagem da Capoeira não se resume, como

já salientado, apenas na criação e utilização da “Seqüência de Ensino”,

mas sim, trata-se da concepção e implantação de um processo bem

orquestrado de sua escolarização, não apenas enfocando a questão

pedagógico-metodológica mas também abrangendo aspectos

administrativo-gerenciais e de desenvolvimento organizacional, como é

possível identificar por intermédio da declaração de Xaréu, ao afirmar

que

“com a Regional, Bimba suscitou uma nova abordagem pedagógica da Capoeira: montou academia, estabeleceu aulas, lições, turmas e alunos com horários preestabelecidos. O método não mais se baseava, exclusivamente, na oralidade, mas já se utilizava da escrita em avisos, lembretes, códigos e gravuras, auxílios pedagógicos que compunham sua técnica de ensino”161.

“(...) desenvolveu um modelo administrativo e promocional, mantendo livros de matrículas, recibo e controle de pagamentos, livro-caixa, de pagamento de pessoal, quadros de aviso, regulamento, programa de aula, programa de apresentações de grupos folclóricos em convênio com agências de turismo, participação em simpósio etc.”162

161 Cf. Hélio Campos, Capoeira na universidade: uma trajetória de resistência, Salvador, SET, EDUFBA, 2001, p. 103 162 Idem, ibid., p. 106

243

Desta forma, escolarizando a Capoeira, dotando-a de uma lógica interna e de uma pedagogia fundamentada, mesmo que camufladamente, nos pressupostos e premissas do ensino formal, Mestre Bimba, interpretando os sinais do seu tempo, consegue incorporar à sua Luta Regional Baiana (inicialmente) e à sua Capoeira

Regional (posteriormente) as “novas” tendências surgidas no cenário político-cultural e educacional que agitaram a Bahia e o Brasil na primeira metade do século XX, e estabelece uma nova órbita para o desenvolvimento desse fenômeno social, destacando-se, dentre outros indicadores de sua escolarização, o fato de que, conforme interpreta Letícia Vidor, o Mestre,

“avança em relação a Coelho Neto, ao implantar uma pedagogia de ensino para a capoeira. A Regional estabelece uma formalização do saber e de sua transmissão que, tornados explícitos, possibilitaram a ampliação do espectro de praticantes”.163

Foi, pois, a Capoeira Regional, produto da escolarização e esportivização da

Capoeira até então praticada, que ultrapassa, transpõe, os muros da Escola, em

1955, quando Carlos Senna é convidado pelos proprietários do Colégio Pernalonga, uma Escola de Educação Infantil, para ministrar aulas de Capoeira aos seus alunos, como uma atividade “extra-classe”, em substituição à Educação Física164 e também, em 1956, por intermédio de seu aluno Milton Gesteira Diniz Gonçalves (aluno de

Mestre Senna, classificado como Fita Verde)165, no colégio João e Maria, outra escola de Educação Infantil localizada na avenida Centenário. Anos mais tarde, em

163 Cf. Letícia Vidor de Souza Reis, op. cit., p. 135 164 Declaração de Carlos Senna, por ocasião da entrevista citada. 165 Cf. Hélio Campos, op. cit., p. 80

244

1975, Senna começa a ministrar aulas de Capoeira no Colégio Militar de Salvador, como “adendo à Educação Física”, dando continuidade até 1985166.

Seguindo os ensinamentos de Mestre Bimba, Carlos Senna (o primeiro aluno do Mestre a ensinar, independentemente) desenvolveu o seu curso de Capoeira sob a ótica de Arte Marcial, do chamado Esporte de Rendimento, do Esporte institucionalizado, concebendo que a sua importância, no contexto educacional, reside no fato de que na Escola é possível um “reforçamento cultural”, já que “os políticos, no Brasil, não são nacionalistas, e a oligarquia tem horror do Brasil”167, isto

é,

“como Arte Marcial, organizada de maneira que possa haver competições entre uma escola e outra, a Capoeira permite resgatar nossas raízes culturais e, por intermédio de aulas, acompanhadas por manuais oficiais e ministradas por professores que saibam a sua filosofia, o aluno aprende, desde cedo, a conquistar e dominar o seu espaço”168.

Os alunos de Mestre Senna, em seu Centro de Pesquisa, Estudo e Instrução de Capoeira Senavox, criado em 1955, na Rua Carlos Gomes, ou em outros locais onde ensinava169, são classificados segundo um “sistema de graduação representado por um conjunto de fitas, de várias cores, cada uma representando um nível de aprendizado e de competência técnica — tendo em vista que a fita é a elitização da Capoeira, é um título nobiliárquico”170. De forma mais sofisticada do que

166 Conforme revelou na entrevista citada 167 Idem 168 Idem 169 Lamentavelmente, Mestre Senna faleceu no dia 6 de novembro de 2002, quatro meses após, gentilmente, ter concedido a citada entrevista. Atendendo ao seu desejo, suas cinzas foram lançadas ao mar da Bahia de Todos os Santos ... 170 Afirmação de Mestre Senna durante a entrevista.

245

aquela classificação que utilizava como referência os três lenços de seda, elaborada

(ou co-elaborada) por Mestre Bimba, os alunos da Senavox são distinguidos, classificados, hierarquizados por um “sistema de graduação”, que estabelece, conforme o previsto no Art. 24 da Proposta de Regulamentação da Capoeira elaborada por Carlos Senna, que

“os capoeiristas quanto aos seus quadros poderão ser: O capoeirista Subalterno, que vai de Fita Branca a Verde; o professor, compreendido entre o Fita Verde-Branca e Verde-Lilás, e o Capoeirista Superior, compreendido entre os Fitas Verde, MESTRE DE CAPOEIRA, de Fita Verde- Azul e Verde-Branca. O título de capoeirista honorário pode ser concedido até o Fita Verde e Abóbora”171

Além dos níveis/estágios de desenvolvimento apresentados, Carlos Senna, ainda, admite a existência de um grau muito especial de capoeiristas: os Fitas

Verdes de Carreira, definindo-os como sendo

“aqueles que após anos constantes e efetivos de batalhas, exercitamentos, pesquisas, treinamentos, ensino, testes, exames, concluíram o aprendizado e glorificaram-se no cumprimento de missões, e, alcançaram vitórias em diversas competições, e assim, conquistando por mérito essa honrosa classificação. São aqueles considerados aptos para, circunstancialmente, serem obrigados a testar

171 Cf. Carlos Senna, Capoeira: arte marcial brasileira (Ante-projeto de regulamentação), Salvador, Secretaria Municipal de Educação e Cultura/Departamento de Assuntos Culturais/Divisão de Folclore, 1980, p. 51

246

sócio-esportivamente o dote adquirido em algumas notáveis ações belicosas em defesa da moral e da ordem, saem-se com a competente galhardia de um toureiro na arena”.172

Carlos Senna e Aristides Pupo Mercês (o Aristides, aluno de seus irmãos

Paulo Grande, que foi aluno de Mestre Bimba e de Cavaleiro, que foi aluno de

Mestre Pastinha) foram os primeiros capoeiristas a ministrarem aulas de Capoeira como atividade regular e sistematicamente desenvolvida no sistema escolar de ensino da Bahia e na Escola brasileira do século XX. Como relata Hélio Xaréu,

Aristides, tendo iniciado suas atividades como professor de Capoeira na Escola

Tomaz de Aquino, em 1964, e, em 1965 na Escola Parque, na Cidade do Salvador,

é, com certeza, “um dos precursores da Capoeira na Escola e o principal responsável pela disseminação de seu ensino na pré-escola e no 1º Grau [hoje

Educação Infantil e Ensino Fundamental] no Brasil”173. Além desse seu pioneirismo,

Aristides cria mais uma vertente da Capoeira com a denominação de Arte-Luta e, como um dos momentos desse seu processo de criação, em 1990, finalmente, divulga o seu Programa do Curso de Capoeira, com o objetivo de “levar ao conhecimento dos alunos do Curso de Capoeira da ACAL [Associação de Capoeira

Arte Luta] o conteúdo de cada Etapa ou Cordão e o Sistema de Avaliação para

Campeonatos e Exames de Cordão”174.

Nesse Programa do Curso de Capoeira, elaborado por Aristides, é possível encontrar aquela qualidade característica de um complemento para as aulas de

Capoeira, ressaltado por Senna, ou seja, um “manual oficial” que contém os

172 Cf. Carlos Senna, Capoeira: percurso, Salvador, Senavox , Rasteira, 1990, p. 47 173 Cf. Hélio Campos, op. cit., p. 80 174 Cf. Aristides Pupo Mercês, Programa do Curso de Capoeira ACAL, Salvador, Grupo ACAL, 1990, p. 5

247

objetivos e a previsão do período no qual desenvolver-se-á o Curso; definições e orientações quanto aos Exames de Cordão e à realização de Campeonatos; definição do interstício entre um Cordão e outro e das Categorias de Alunos, conforme a respectiva idade cronológica (Mirim, Infantil, Infanto-Juvenil, Juvenil e

Adulto); nomenclatura e descrição, sucinta, dos principais golpes e contra-golpes da

“Capoeira Regional como Esporte e Luta”; estabelecimento dos conteúdos a serem ministrados aos alunos, nas diversas Categorias e nos diferentes níveis (Cordões); orientações para a realização do Curso de Especialização, com duração de um ano, e os conteúdos a serem ministrados em cada Categoria; os objetivos do

Departamento Médico da ACAL e o Regulamento para Exame de Cordão, com os critérios específicos para cada Categoria de Alunos. De forma semelhante, no final da década de 1990, elabora uma Cartilha de Capoeira para a Federação Baiana de

Capoeira, quando, de modo ainda mais sistemático e minucioso, define, para cada

Categoria e Nível (cordão), os conteúdos a serem ministrados: Conteúdo Teórico,

Conteúdo Prático, Conteúdo Musical, Jogo de Capoeira, incluindo os modelos de

Súmula de Competição (individual e em duplas) e de Súmula de Exame de

Capoeira175. Tal documento, é possível identificar, assemelha-se àqueles, já ultrapassados, que estabelecem os “Conteúdos Programáticos”, como desdobramento dos Currículos Oficiais e/ou Propostas Curriculares para os diversos níveis da Educação Básica.

Ainda no âmbito da Educação Básica, Xaréu, no início da década de 70

(1970/1976), introduziu a Capoeira, como conteúdo das aulas de Educação Física que ministrava, no Colégio Estadual Manoel Devoto, seguindo, como ele mesmo afirma, “a metodologia do Centro de Cultura Física Regional” (a Escola de Capoeira

175 Cf. Aristides Pupo Mercês, Cartilha de Capoeira para a Federação Baiana de Capoeira, Salvador, Grupo ACAL, s/d, p. 1-50/60-61

248

de Bimba, oficializada em 1941) e utilizando, “como ponto central do ensino/aprendizagem, a Seqüência de Ensino de Mestre Bimba, porém adaptada ao nível escolar, dividindo-a em partes para melhor assimilação e compreensão dos alunos”176, ratificando, assim, os pressupostos da dedução e da análise, como bases metodológicas, e o próprio método, (re)criado ou co-elaborado pelo seu Mestre.

Hélio Xaréu, formado em Educação Física pela Universidade Católica do

Salvador-UCSAL, na década de 70, praticante também do Atletismo e um entusiasta da Ginástica, não apenas ministra suas aulas de Capoeira nas Escolas em que atua como professor de Educação Física, mas, também, em 1986, participa efetivamente da elaboração do Programa Curricular de Educação Física para os Ensinos de

Primeiro e Segundo Graus do Estado da Bahia, responsabilizando-se pelo desenvolvimento das indicações, observações, sugestões e recomendações referentes à Capoeira como uma modalidade esportiva e como conteúdo das aulas de Educação Física na rede oficial de ensino. Tal proposta curricular, fundamentada, segundo o diagnóstico realizado, na constatação das sérias deficiências dos cursos de formação de profissionais de Educação Física, as quais ocasionam uma fraca atuação técnico-pedagógica desses profissionais e, também, na verificação de que um dos principais estrangulamentos da ação docente encontra-se no fato de que os professores não conseguem organizar didaticamente o conhecimento acumulado nessa área do saber, não sendo capazes de “sequenciar suas aulas a partir da pré- escola até o 2º grau, respeitando as individualidades fisiológicas do educando”177, tem como finalidade precípua “subsidiar os referidos profissionais nas suas ações

176 Cf. Hélio Campos, op. cit., p. 82 177 Cf. Hélio Campos, Proposta Curricular de Educação Física para o Ensino de Primeiro e Segundo Graus, Salvador, Secretaria da Educação e Cultura, Departamento de Educação Física e Recreação, 1986, p.1

249

técnico-pedagógicas de planejamento e acompanhamento, onde serão respeitadas as diferenças e características geoeconômicas deste grande Estado”178.

Adotando “princípios pedagógicos que garantissem o ajustamento das atividades à faixa de desenvolvimento do educando”, tais como considerar as

“etapas evolutivas do educando”, “totalidade”, “naturalidade e espontaneidade”179, a proposta, além de conter os conteúdos específicos e algumas sugestões de atividades, estabelece, para a modalidade esportiva Capoeira, os objetivos que se seguem:

“1. Evidenciar conhecimentos da capoeira como desporto nacional. 2. Desenvolver habilidades para execução da ginga em diferentes ritmos. 3. Desenvolver habilidades para execução dos movi- mentos básicos defensivos. 4. Desenvolver habilidades para execução do gesto desportivo dos golpes de ataque (ofensivos). 5. Executar pequenas seqüências com os movimentos aprendidos. Executar a Seqüência de Mestre Bimba. 6. Desenvolver habilidades para o uso dos instrumentos básicos na prática da capoeira. Conhecer os cânticos relacionados com a prática da Capoeira. 7. Conhecer as regras oficiais da CBP [Confederação Brasileira de Pugilismo], quanto à prática da capoeira. 8. Participar de grupos folclóricos e de competições escolares, demonstrando as habilidades adquiridas.”180

178 Idem 179 Idem, ibid., p. 13-14 180 Idem, ibid., p. 33

250

Anos mais tarde, em 1990, Xaréu apresenta uma nova proposta de implantação da Capoeira como uma “atividade desportiva e educativa dentro da disciplina Educação Física”, nas Escolas do Ensino Básico, concluindo, após “vinte e dois anos de prática da Capoeira”, que as aulas podem ser concebidas, planejadas e ministradas, consoante dois de seus mais divulgados significados:

“(...) sendo a Capoeira incluída na parte da aplicação desportiva dos métodos de ginástica, tais como o Método Natural Austríaco, o Método da Desportiva Generalizada e o Método Padrão, ou mesmo como parte principal das aulas de Educação Física; (...) como prática desportiva (...), tendo como principal objetivo iniciar os alunos na Capoeira como um desporto”181.

Seguindo, certamente, a lógica do processo de escolarização, Xaréu ainda estabelece a “indumentária” a ser usada pelos alunos — composta de “calça branca meia perna e camiseta branca e descalço” — ou, como opção, o uso do uniforme de Educação Física adotado pelo respectivo estabelecimento de ensino, e, como certamente não poderia faltar, os critérios para a constituição das turmas, assim definidas:

“Pré-infantil — 10 a 11 anos Infantil — 12 a 14 anos Infanto-juvenil — 15 a 16 anos Juvenil — 17 a 18 anos”182

181 Cf. Hélio Campos, Capoeira na Escola, Salvador, Presscolor, 1990, p. 15 182 Idem, ibid., p. 24

251

Enfatizando a utilização da Capoeira como meio de desenvolvimento das chamadas “qualidades físicas básicas”, pois a sua prática “envolve de uma forma magistral todos os músculos do corpo, as articulações e as grandes funções”, em especial os sistemas cardiovascular e cardiopulmonar, Hélio Xaréu, na toada da

“baianização do currículo” (processo assim batizado por Edivaldo Boaventura183), além da utilização da “Seqüência de Ensino de Mestre Bimba” e da “Cintura

Desprezada”184 como os principais elementos constitutivos da metodologia indicada, também estabelece o conteúdo a ser obrigatoriamente ensinado: os golpes da

Capoeira Regional e “informações sobre a sua origem, seu significado como um componente autêntico da cultura brasileira e especialmente baiana”185, organizado em quadros de planejamento, de 5ª a 8ª séries, do então 1º Grau, contendo objetivos, conteúdos e sugestões de atividades186.

Ainda no âmbito da Educação Básica, é importante destacar que, como conseqüência da disseminação de sua prática nos sistemas oficiais de ensino em todo o Brasil, a Capoeira chega a ser uma das modalidades disputadas nos Jogos

Escolares Brasileiros-JEBs, no período de 1985 a 1990. Contando, em alguns anos, com a participação, nesses jogos, de equipes representativas de todas a Unidades da Federação, compostas por alunos e alunas, crianças e adolescentes, no período de 1987 a 1989 tal evento esportivo não seguiu as regras oficiais da Confederação

Brasileira de Pugilismo, como em 1985, ou, realizou-se por intermédio da Roda de

Capoeira, como em 1986, mas, tendo os Velhos Mestres da Capoeira da Bahia como jurados, substituindo-se a figura do atleta de Capoeira pelo aluno que praticava Capoeira, deixou de valorizar apenas a performance atlética para valorizar

183 Cf. Edivaldo Boaventura, em artigo veiculado pelo jornal A Tarde, de 8 de janeiro de 1988, apud Hélio Campos, Capoeira na Escola, Salvador, Presscolor, 1990, p. 41 184 Uma seqüência de balões, também de autoria (ou co-autoria) de Mestre Bimba. 185 Cf. Hélio Xaréu, Capoeira na Escola, Salvador, Presscolor, 1990, p. 28 186 Idem, ibid., p. 31-39

252

aspectos na área da cognição, da criatividade, da socialização, sendo estruturado e realizado conforme 5 momentos, a saber:

“1º Momento: Roda — Jogo da Capoeira, como na Roda, sendo obrigatória a sua realização nos ritmos de São Bento Grande (da Capoeira Regional) e São Bento Pequeno (da Capoeira Angola);

2º Momento: Coreografia — dada a vertente artística da Capoeira, as equipes mostraram, sem confronto direto com os alunos de outras equipes, pequenas apresentações, como se fossem mini-shows;

3º Momento: Concurso de Ladainha — cada equipe apresentou uma Ladainha, inédita, criada pelo próprio grupo;

4º Momento: Seminário — cada equipe apresentou um trabalho, com exposição oral, individual ou em grupo, elaborado pelos próprios alunos, versando sobre temas relativos à Capoeira, tais como: história, figuras importantes da Capoeira, o ‘estado da arte’ da Capoeira nos respectivos Estados etc.;

5º Momento: Conferência com os Mestres — momento em que os Velhos Mestres — Mestre João Pequeno, Mestre Paulo dos Anjos e Mestre Itapoan, dentre outros — fizeram pequenas palestras aos alunos participantes da competição, contando fatos históricos da Capoeira, experiências pessoais, comentários sobre a participação dos alunos, avaliações individuais etc. como retorno, em forma de diálogo, da opinião dos Velhos Mestres sobre aquela competição, o nível de aprendizado dos alunos,

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informações específicas sobre a Capoeira Angola e a Capoeira Regional, orientações aos Mestres responsáveis pelas equipes etc. etc. etc. (...)”187

Na esfera do Ensino Superior, como afirma Hélio Xaréu, as primeiras manifestações favoráveis à Capoeira, como uma atividade importante e apropriada para o processo educacional, surge, em 1971, na Bahia, com a sua inserção nas ações desenvolvidas pelo Programa de Melhoria do Ensino Nacional, o conhecido

PREMEN, realizado pela Faculdade de Educação da Universidade Federal da

Bahia-UFBa188. Com esse início, na perspectiva da interpretação de Edivaldo

Boaventura, “conquistou o espaço universitário”189, ou seja, conseguiu, por intermédio de um processo longo e persistente, a “grande vitória” de ser aceita nessa “esfera de significação” chamada Ensino Superior ou Ensino Universitário, principalmente, pela oportunidade criada pela legislação, na época em vigor190, que tornou obrigatória a prática da Educação Física, nesse grau de ensino. Desta forma, em 1978, a Capoeira é incluída no elenco das disciplinas a serem oferecidas como

Prática Desportiva, aos alunos dos diversos cursos da UFBa, compondo-se, assim, as quatro primeiras turmas (duas femininas e duas masculinas), com 40 alunos cada uma191.

O curso de Capoeira para os alunos da UFBa, conforme consta de seu plano de ensino, tinha por objetivo “proporcionar ao aluno iniciar o referido curso sem

187 Cf. Cesar Augustus S. Barbieri, A capoeira nos JEBs (pequeno histórico e algumas considerações), in: BARBIERI, Cesar A. S. (org.), Capoeira nos JEBs, Brasília, Programa Nacional de Capoeira, 1995, p. 16-17 188 Cf. Hélio Campos, Capoeira na universidade: uma trajetória de resistência, Salvador, SET, EDUFBA, 2001, p. 93 189 Idem, ibid., p. 9 190 Decreto-Lei nº 69.450, de 1 de novembro de 1971 e a Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968. 191 Cf. Hélio Campos, Capoeira na universidade: uma trajetória de resistência, Salvador, SET, EDUFBA, 2001, p. 89

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nenhum conhecimento da atividade e sair jogando Capoeira na roda”192. Seguia também a filosofia, princípios e procedimentos da Capoeira Regional, cujo conteúdo, considerando “uma melhor organização e rendimento do aprendizado”193, era ministrado para dois níveis de alunos, quais sejam:

“Nível 1 — alunos iniciantes, ou seja, aqueles que nada sabiam de Capoeira, principalmente, referente aos seus movimentos; Nível 2 — alunos mais adiantados, aqueles que tinham noção ou mesmo já eram capoeiristas”194.

A duração de cada Curso foi estabelecida em trinta horas-aula (para cada turma, de cada nível) por semestre, com freqüência obrigatória de 75% das aulas ministradas, equivalendo a um crédito do currículo dos diversos cursos da

Universidade e o seu conteúdo constituído de informações técnicas e exercícios práticos, tendo como complementação a realização de “aulas teóricas, discussões, debates e seminários, versando sobre os assuntos inerentes à Capoeira”195.

Nessa trajetória, da caá-puêra ao campus, tem participação decisiva o professor Josevaldo Lima de Jesus (o Sacy, aluno de Mestre Bimba desde 1964), que introduz a Capoeira como uma das disciplinas obrigatórias, com carga horária de sessenta horas-aula, no currículo do Curso Superior de Educação Física, da

Universidade Católica do Salvador, em 1982. Apenas, porém, em 1988, a Capoeira chega ao Curso de Licenciatura em Educação Física, mantido pela Universidade

192 Idem 193 Idem, ibid., p. 91 194 Idem, ibid., p. 89 195 Idem, ibid., p. 91

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Federal da Bahia, e, seguindo os paradigmas do ensino formal, é estruturada em duas disciplinas, intituladas de Capoeira I e Capoeira II.

Como disciplina obrigatória, com carga horária de sessenta horas-aula, constituindo três créditos, a Capoeira I exigia como pré-requisito a disciplina

Dimensão Estética da Educação196 e tinha como objetivo “apresentar a Capoeira de uma forma geral, dando ênfase a sua parte técnica, básica e fundamental própria para a iniciação deste Esporte”, sendo o seu primeiro programa, elaborado por

Mestre Itapoan, constituído de:

“ Programa Teórico

01) Histórico: - Origem (hipóteses). - Tráfico de Escravos (atividades dos escravos na sociedade da época). - Quilombos (fugas). - Castigos (penas, leis, decretos, o Código Penal). - Repressão aos Capoeiras (Império e República). 02) Os grandes Mestres da Capoeira (Perfis) 03) Academias, Rodas, Atividades com Capoeira. 04) Estilos: Angola e Regional. 05) O Berimbau e seus toques para a Capoeira. - Instrumentos outros relacionados com a Capoeira. 06) Capoeira Esporte - Decretos, Leis. - Regulamentos de Competição (Tipos) - Associações. - Federações. - Confederações. - Entidades de Classe.

196 Idem, ibid., p. 92

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07) Palestras com Professores Convidados. - Elaboração de Seminários, Congressos e Jornadas de Capoeira. - Pesquisas (Incentivo) - Testes : Teórico e Prático

Programa Prático

01) Fundamentos Básicos a) Ginga (Negaça) – O porquê de tal movimento e sua técnica. b) Movimentos (golpes) básicos. c) Seqüência de Ensino do Mestre Bimba. d) Movimentos Traumatizantes da Seqüência de Ensino do Mestre Bimba. e) Movimentos Desequilibrantes da Seqüência de Ensino do Mestre Bimba. 02) Movimentos da Capoeira Angola. 03) Jogo da Capoeira (Tipos) Tradição. 04) Seminário elaborado pelos alunos: três (03) temas. 05) Encerramento (“Batizado”) – Roda de Capoeira: Alunos e Mestres convidados”197

A disciplina Capoeira II, concebida como “de aprofundamento de

conhecimentos” e, portanto, de caráter optativo, com carga de 75 horas-aula,

equivalendo a 3 créditos e tendo a disciplina Capoeira I como pré-requisito,

conforme as exigências do processo de escolarização, seguia o conteúdo:

197 Cf. Raimundo Cesar Alves de Almeida, Programa da Disciplina Capoeira I (EDC 238), Salvador, s/d (mimeo)

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“seminário e apresentações de trabalhos monográficos organizados pelos próprios alunos, e ainda atividades extramuros, que contemplam visitas às academias tradicionais e modernas, com a finalidade de conviver mais diretamente como os segmentos da Capoeira. Nesta oportunidade, os alunos entrevistam Mestres e capoeiristas e participam ativamente das rodas”198

Esse processo de escolarização da Capoeira (iniciado, nas primeiras décadas do século passado, por Mestre Bimba) chega, para alguns, ao seu ápice, ao ser outorgado, em 12 de junho de 1996, não um Cinturão de Campeão, mas o título de

Doutor Honoris Causa (Post-mortem), pela Universidade Federal da Bahia, a Manoel dos Reis Machado (o Mestre de Capoeira, Bimba), título esse que, merecendo o destaque, é

“uma comenda honorífica às ilustres personalidades fora do quadro da Universidade (...) que reconhecidamente tenham contribuído de modo relevante para o engrandecimento da Universidade e que tenham se distinguido em atividade em prol das Ciências, Letras, Educação, Cultura e Artes, no cenário internacional, nacional e especialmente baiano”199.

A consolidação do processo de inclusão da Capoeira na esfera da Educação

Superior, no meio universitário, portanto, tem sido exaltada por muitos, como por

198 Cf. Hélio Campos, Capoeira na universidade: uma trajetória de resistência, Salvador, SET, EDUFBA, 2001, p.92 199 Idem, ibid., p. 101

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exemplo por Carlos Senna, para quem tal aceitação representa um momento no qual

“a CAPOEIRA popular encontrará o seu equilíbrio, pois atingindo a consciência universitária, resgatará a sua Certidão de Nascimento, obterá a sua Carteira de

Identidade e autenticará o seu glorioso certificado de Arte Marcial Brasileira”200

Com a verve, que lhe corria nas veias e o animava, e com o entusiasmo e a retórica de um orador, de qualidade como poucos, ainda Carlos Senna (um dos alunos de Mestre Bimba que participou da famosa apresentação para Getúlio

Vargas, em 1953) teceu, sobre a questão da Capoeira na Universidade, a seguinte consideração:

“A partir deste toque universitário, a CAPOEIRA terá obtido o seu salvo conduto para a prática das competições, o que gerará seu aperfeiçoamento técnico, o reconhecimento das suas atividades terapêuticas e o entendimento do gingado como uma das características do comportamento psicofísico do brasileiro”201

A inclusão da Capoeira no espaço, “na esfera de significação”, da Educação

Superior, por certo, não é um processo isolado, que aconteceu apenas na Cidade do

Salvador ou na Bahia. Pelo estudo realizado por Hélio Campos, é possível tomar conhecimento de seu desenvolvimento, também, no Rio de Janeiro — tendo início em 1972, por intermédio de Augusto José Fascio Lopes (o Anzol, aluno de Mestre

Bimba desde 1967), na Universidade do Estado da Guanabara-UEG (hoje UERJ), estando presente ainda nas Universidades Estácio de Sá, Gama Filho, Bennet,

200 Idem, ibid., p. 16 201 Idem, ibid., p. 16

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Federal Rural e Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); no Rio Grande do Sul — na

Escola Superior de Educação Física do Instituto Porto Alegre e na Escola Superior de Educação Física da Universidade de Santa Cruz do Sul; em Pernambuco — na

Universidade Católica de Pernambuco, há 15 anos como projeto de extensão universitária, e na Universidade do Estado de Pernambuco, como disciplina optativa no Curso de Educação Física; em São Paulo — na Universidade de São Paulo, como disciplina no Curso de Licenciatura em Educação Física e como prática desportiva e/ou projeto de extensão, em seus diversos cursos e nos vários campis, como por exemplo, em Bauru, São Carlos, Ribeirão Preto e Pirassununga, dentre outros, e, ainda, nas Universidades Mackenzie, UNICAMP, São Judas Tadeu,

UNESP (Rio Claro) e outras.

Cabe ressaltar, ainda, que no Rio de Janeiro, anos antes, no início da década de 60, o professor Lamartine Pereira da Costa, quando ainda era 1º Tenente da

Marinha, servindo no Centro de Esportes da Marinha, praticante que era da

Capoeira, “durante quase três anos”, com os Mestres Arthur Emídio (em

Bonsucesso) e Djalma Bandeira (em Olaria) 202, já havia percebido a sua importância no campo da Educação e identificado que, mesmo sendo a nossa “ginástica nacional”, não se encontrava, “dentre nossas escolas e faculdades, mesmo as de desportos, uma só que ensinasse a luta nacional”, tampouco, ela estava presente nos famosos “Estágios Internacionais” que durante algum tempo foram promovidos pela Divisão de Educação Física do MEC. Em sua interpretação, a Capoeira sobrevivia “apenas nas exibições comerciais” e era “identificada quase que exclusivamente pelo aspecto folclórico”203, constatação essa que o levou, então, a elaborar o seu estudo, baseando-se no aprendizado com os seus mestres, “na

202 Correspondência, enviada por correio eletrônico, datada de 24 de janeiro de 2002 203 Cf. Lamartine Pereira da Costa, Capoeiragem: a arte da defesa pessoal brasileira, edição do autor, 1963 [?], p.9

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tradição oral e nos ensinamentos de antigos capoeiras, ainda sobrevivendo nos redutos históricos da Capital e do Interior Baiano204, e a publicá-lo, com seus próprios recursos, com o título de “Capoeiragem: a arte da defesa pessoal brasileira”, sendo, anos depois, publicado com o título de “Capoeira sem mestre”.205

O professor Lamartine, tendo realizado, também, o curso de licenciatura em

Educação Física, pela Escola de Educação Física do Exército206, chegou a organizar, no Centro de Esportes da Marinha, um curso de Capoeira que, segundo suas declarações, foi o primeiro curso de Capoeira nas Forças Armadas207, tendo como alunos policiais militares de Minas Gerais, do Ceará e até de outros países sulamericanos e, como afirma, na 1ª edição do seu estudo,

“as várias formas da luta, os métodos medievais de ensino e os segredos bem guardados de alguns golpes para evitar a concorrência, obrigaram-me a formular um novo método pedagógico baseado em dois anos de prática e observação.”208

Ao término da introdução que faz ao seu estudo, o professor Lamartine

Pereira da Costa, afirmando que a sua obra “é a primeira do gênero, sob o ponto de

204 Idem 205 Segundo Lamartine Pereira da Costa, em correspondência, enviada por correio eletrônico, datada de 27 de janeiro de 2002, o novo título acrescentando “sem mestre” foi uma exigência da editora. 206 Esse curso era destinado a formação de monitores e instrutores de Educação Física, para as Forças Armadas. Os diplomas expedidos pela Escola de Educação Física do Exército foram, em 1943, equiparados aos diplomas de professores licenciados em Educação Física, por intermédio do Decreto-Lei n° 5.343, assinado, no dia 23 de março, por Getúlio Vargas e Gustavo Capanema e publicado no Diário Oficial da União, no dia 27 do mesmo mês. 207 Segundo o professor Gladson de Oliveira Silva, em 1961, a Capoeira já havia sido introduzida, como modalidade esportiva, no currículo de ensino da Polícia Militar do Estado da Guanabara. Cf. SILVA, Glason de Oliveira, Capoeira: do engenho à universidade, São Paulo, edição do Autor, 1993, p. 23 208 Cf. Lamartine Pereira da Costa, Capoeiragem: a arte da defesa pessoal brasileira, edição do autor, 1963 [?], p.10

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vista técnico” e que “dará a praticabilidade necessária a difusão do ensino da luta nacional”, expressa a sua expectativa e esperança “num futuro reencontro popular com a luta que nasceu das reais tendências atléticas e psicológicas de nossa gente”209.

Ainda no Rio de Janeiro, na Universidade Gama Filho, além de ser uma disciplina do Curso de Graduação em Educação Física, a Capoeira, até o momento, também foi submetida ao máximo à ação de escolarização, ao ser incluída no rol dos

Cursos de Especialização, por ela oferecidos, com um total de 360 horas de carga horária, com aulas realizadas aos sábados e domingos, de 8 as 18 horas (uma vez por mês), intitulado “Bases Metodológicas Fisiológicas Aplicadas à Capoeira”, com o seguinte Programa de Ensino:

“DISCIPLINAS

− História da Capoeira I Escravidão africana nas Américas; Escravidão Urbana; A Capoeira crioula; A guerra do Paraguai; Nagoas e Guaymuns.

− História da Capoeira II Capoeira Angola; Capoeira Regional; A ‘Ginástica Nacional’.

− Capoeira I (Capoeira Regional) Mestre Bimba; Ritmos. Regional, Benguela e Iuna; Tradições e rituais; Golpes, movimentos e seqüências.

− Capoeira II (Capoeira Angola) O ritual n’golo; Rituais da Capoeira Angola; Filosofia e fundamentos.

− Capoeira III (Capoeira na Atualidade) O atual contexto da Capoeira; Análise crítica dos ‘caminhos’ da Capoeira; Da Capoeiragem aos dias de hoje.

209 Idem

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− Didática Planejamento; Tendências Pedagógicas; Planos de Curso e ensino.

− Psicologia Aplicada Motivação; Conflitos; Conscientização; Qualidade do trabalho X Qualidade do indivíduo.

− Traumas de lesões Acidentes nas aulas; Possíveis lesões; LER.

− Preparação Física Aplicada Periodização; Os Princípios do treinamento; Anabolismo X catabolismo

− Folclore Maculelê; Jongo; Samba de Roda; Puxada de rede.

− Didática Aplicada Práxis pedagógicas; Domínio de conteúdos; Estudo de caso.

− Orientação Elaboração de um artigo; Estudos dirigidos; Reflexões.

− Capoeira Infantil Ludicidade; Brincadeiras Cantadas; Jogos populares”.210

Em São Paulo, destaca-se a atuação de Gladson de Oliveira Silva (o

Gladson, aluno, desde 1969, de Mestre Airton Onça, que foi aluno de Mestre Bimba no início da década de 60) que, ao som do berimbau e das cantigas da Capoeira, consegue transpor, desde 1972, os muros da USP e, como ele mesmo afirma,

“levar aos seus diversos segmentos a oportunidade de promoverem o bem-estar geral e de tornar a prática da atividade motora um hábito de vida também favorecido pelos movimentos da capoeira”211. Desta forma, na Universidade de São Paulo, é que a Capoeira começa a ser conhecida e praticada, oficialmente, por intermédio da

210 Cf. www.phorte.com.br/cursos/gama/bases.html, consulta feita em 30/9/2002 211 Cf. Gladson de Oliveira Silva, op. cit., p. 29

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realização de cursos regulares oferecidos pelo Centro de Práticas Esportivas, como

“Prática Desportiva” (disciplina obrigatória, na época, com o código EPG-640), aos alunos universitários e à comunidade em geral, conforme as definições e classificação inerentes ao processo de escolarização, contidas nas ementas que se seguem:

“CAPOEIRA I — destinado a pessoas interessadas em vivenciar experiências na modalidade, com aulas que visam a contribuir para a melhoria das qualidades físicas através dos movimentos característicos da capoeira e seu ritmo. A prática regular faz a introdução os movimentos básicos, desenvolvendo habilidades elementares, para posterior execução dos princípios técnicos de ataque e defesa e habilidades aos saltos, giros e acrobacias que enriquecem a parte folclórica da capoeira. O desenvolvimento do programa promove a orientação correta da capoeira como meio educacional, cultural e social. São evidenciadas noções da história e introdução à parte rítmica instrumentada, que coordena as diferentes formas de jogar capoeira.

CAPOEIRA II — aperfeiçoamento e enriquecimento dos movimentos, técnicas e ritmos aprendidos, melhorando o domínio corporal. Oferece conhecimento e oportunidade de análise e interpretação das regras nacionais de competição. Estimula a leitura, o estudo, a realização de trabalhos e atividades folclóricas e as técnicas inerentes à prática da capoeira. Treinamento de seqüências pré-estabelecidas para melhor desempenho dos movimentos desequilibrantes e traumatizantes. Domínio dos diversos tipos de esquivas, aperfeiçoamento dos toques de berimbau, canto e outros instrumentos inerentes à capoeira. Início das avaliações para as primeiras graduações.

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CAPOEIRA III — aperfeiçoamento e treinamento objetivando outras promoções da graduação oficial e seleção da USP. Neste estágio, as aulas são prático-teóricas, com trabalhos orientados, que realizados em grupo ou individualmente, permitem aos alunos apresentar e discutir problemas relativos à capoeira. A apresentação de recursos audiovisuais prevê a utilização de ‘slides’, filmes, cartazes e outros recurso indispensáveis ao esclarecimento dos alunos sobre o conteúdo programático. Participação em atividades extra- classe, elaborando trabalhos práticos e escritos, individualmente e através de estudo em pequenos grupos, e nos cursos ministrados pelo professor da modalidade. Leituras dirigidas e pesquisas bibliográficas. Participação direta e indireta em competições oficiais e particulares, entrevistando autoridades, dirigentes esportivos e capoeiristas competidores. Visitas à associações, clubes de capoeira e departamentos especializados, mantendo-se também sessões de treinamento extra-classe”212

Ainda na “terra dos bandeirantes”, da “bandeira das treze listras”, como a ela se refere o poeta Guilherme de Almeida, à exemplo das pretensões de Coelho Neto, em 1910, quando tem a intenção de encaminhar um Projeto de Lei à Mesa da

Câmara dos Deputados213, destaca-se, dentre outras iniciativas semelhantes, o

Projeto de Lei nº 01- 0333/95, de autoria do vereador Mohamad Said Mourad, que propõe a inclusão do ensino da Capoeira, integrando “o currículo da disciplina de

212 Idem, ibid., p. 29-31 213 Cf. Coelho Neto, COELHO NETO, H. M. Bazar, Porto, Livraria Chardon, de Lello & Irmão, L.da editores, 1928, p. 139

265

Educação Física nas Escolas Municipais da Cidade de São Paulo214, e o Projeto de

Lei nº 66/96, de autoria do vereador André Raposo, aprovado pela Câmara

Municipal de Pindamonhangaba, em 17 de junho de 1996, incluindo, também, o ensino da Capoeira nas “atividades de Educação Física nas Escolas Municipais”215.

Exemplo, ainda relevante, da Capoeira no âmbito do Ensino Fundamental, tem-se no relato da pesquisa realizada por Luis Silva Santos (o Camburão, aluno de

Luiz Antônio Oliveira Rocha, Mestre Medicina, ex-aluno de Mestre Bimba), que aponta para a sua importância “como uma atividade psicomotora que deve ser reconhecida como sendo uma alternativa para o desenvolvimento das estruturas das crianças, mais especificamente no período escolar primário”216, além do fato de ser, para ele, um esporte de origem brasileira que deve ser compreendido como “uma atividade histórico-sócio-política e cultural, onde sua expressão se faz através do canto, dos instrumentos musicais e dos próprios movimentos corporais e respectiva simbologia”217 e, por isso, também, ser incorporada ao elenco dos conteúdos específicos da chamada Educação Física Escolar, pois,

“como educação do movimento favorece o desenvolvimento físico correto e harmônico do corpo, aumenta a capacidade de esforço do organismo e o potencial de trabalho para fazer frente às exigências das atividades escolares ou extra-escolares, favorecendo a evolução normal dos processos morfológicos funcionais além de fortalecer a saúde e toda a musculatura. Trabalha o indivíduo na expansão de sua liberdade, com o convívio

214 Cf. Valdenor Silva dos Santos, Conversando “nos bastidores” com o capoeirista, São Paulo , edição do Autor, 1996, p. 161-163 215 Idem, ibid., p. 165 216 Cf. Luiz Silva Santos, Educação, Educação Física, Capoeira, Maringá, Fundação Universidade Estadual de Maringá, Imprensa Universitária, 1990, p. 12 217 Idem, ibid., p. 27

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grupal e social. Estimula o valor da lealdade, responsabilidade e do compromisso com a ação crítica”218.

Ao término de sua pesquisa, realizada em 1986, em estabelecimentos de ensino da rede pública do Estado do Rio Grande do Sul, localizadas no município de

Porto Alegre, o professor Luiz dos Santos conclui que houve uma grande influência da Capoeira no desenvolvimento psicomotor das crianças que a praticaram sistematicamente, em comparação com as demais crianças observadas, tanto as que foram submetidas à prática de atividades físicas seguindo os métodos tradicionais ou àquelas que não foram submetidas à prática alguma, de nenhuma atividade física; a Capoeira deve fazer parte do currículo do ensino fundamental

(Primeiro Grau, na época), tendo em vista o seu potencial em prevenir, eliminar ou compensar algumas deficiências psicomotoras e porque “traz consigo justificativas de ordem social (...), cultural (...), econômica (...) e pedagógica”; e, entre outras justificativas, o Jogo da Capoeira é “mais uma opção de educação física de primeiro grau”219.

No Distrito Federal, o locus do desenvolvimento deste estudo, a Capoeira chega à Brasília por intermédio do já citado Onça-Tigre que, em 1964, na Cidade

Satélite de Taguatinga, à QNA 14 Lote 10, começa a ensinar no cerrado e, assim, tem-se a primeira Escola de Capoeira de Brasília220, porém, apenas é introduzida na rede pública de ensino, extra-oficialmente, em 1972, no Colégio Agrícola de Brasília, e, oficialmente, em 1982, por intermédio de Antonio Batista Pinto (o Zulu, que, em algumas ocasiões, se intitula autoditada, mas que, conforme também declara, iniciou o aprendizado com Luiz Sérgio Lacerda, em 1967, e, em 1970, no campus da

218 Idem, ibid., p. 37 219 Idem, ibid., p. 67-68 220 Cf. Milton Freire (Onça-Tigre) na entrevista já citada.

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Universidade de Brasília, aprimorou seus conhecimentos como aluno de Hélio

Tabosa de Moraes, o Mestre Tabosa)221 que, como professor de química, ministrava suas aulas nesse importante estabelecimento de ensino da Cidade Satélite de

Sobradinho.

Zulu, desde o tempos do Colégio Agrícola, segundo afirma, vinha formulando a sua proposta, conceitual e metodológica, de desenvolvimento da Capoeira e, como o baiano Aristides e o paranaense Aristeu Oliveira dos Santos222 (o Mestrinho, aluno de Mestre Sergipe em 1976), denomina-a de Capoeira Arte-Luta, vertente essa que, como conseqüência de um tipo de assepsia social, de esterilização cultural, de uma visão metafísico-idealista223 do homem, do mundo e dos fenômenos, tendo em vista a sua vivência nesse campo social e sua compreensão do fenômeno Capoeira,

“descarta a idéia de resgate da pureza, da autenticidade, da tradição e da gestualidade primitiva, com vistas à repetição ou simples reprodução” e, como resultado de um processo de “resgate seletivo das características e valores da capoeira”,

“exclui a possibilidade da experimentação da força pura e do corpo a corpo empregados nos fundamentos de projeções; exclui o uso dos fundamentos de bloqueios, para os quais exige-se maior peso corporal do executante e redunda numa ação violenta e dolorosa pelos choques dos corpos ou de seus segmentos; exclui os fundamentos de chaves e torções nos quais perde-se a continuidade, a descontração e a possibilidade de confrontação com mais

221 Cf. Antonio Batista Pinto (Zulu), Idiopráxis de capoeira, Brasília, edição do autor, 1995, p. xiv e 9 222 Cf. Aristeu Oliveira dos Santos, Capoeira: arte-luta brasileira, Curitiba, Imprensa Oficial do Estado, 1993 223 Cf. Cesar Augustus S. Barbieri, Esporte Educacional: uma possibilidade de restauração do humano no homem, Canoas, Editora da ULBRA, 2001, p. 60

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de um oponente; exclui os fundamentos de manejos, de armas de fogo, armas brancas e porretes”224

A Capoeira que é introduzida na rede pública de ensino do Distrito Federal é, pois, essa “nova” perspectiva do fenômeno que foi construída sob a influência dos pressupostos da Educação Física, do Esporte institucionalizado, do denominado

Esporte de Rendimento225, de premissas extraídas do construtivismo, recorrendo às interpretações superficiais de Lauro Oliveira Lima quanto às concepções de Piaget.

Desta forma, Zulu, elaborando o que chamou de Ideário de Capoeira Arte-Luta — um conjunto de idéias, concepções, processos, estratégias, classificações e critérios, regras e normas que direcionam o desenvolvimento da vertente Capoeira Arte-Luta

—, busca sistematizá-la e criar um “processo de ensino-aprendizagem nas linhas de desenvolvimento vivencial e operativo”, ou como ele mesmo afirma, um processo no qual “a aprendizagem da capoeira se dá vivencialmente através da ‘educação pela arte’ e operativamente através da ‘educação pela inteligência’.”226 Tal Ideário de

Capoeira, o próprio Zulu declara, tem como objetivo

“resgatar seletivamente, para o momento psicossocial atual, os valores, os princípios, o simbolismo e a gestualidade da capoeira, revestindo-os com a ciência, nossa vivência e a nossa experiência, além de tentarmos buscar uma melhor compreensão dos momentos psicossociais e histórico-culturais pelos quais passou a capoeira”227.

224 Cf. Antonio Batista Pinto (Zulu), Idiopráxis de capoeira, Brasília, edição do autor, 1995, p. 26 225 Principalmente, contando com a decisiva atuação de Inezil Penna Marinho, com suas concepções sobre a Capoeira, já abordadas no capítulo anterior. 226 Cf. Antonio Batista Pinto (Zulu), Idiopráxis de capoeira, Brasília, edição do autor, 1995, p. 19-22 227 Idem, ibid., p. 19

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Como conseqüência do processo de escolarização da Capoeira, desenvolvido por Zulu, a vertente Arte-Luta, de sua (re)criação, também possui um sistema de classificação, de hierarquização, de distinção dos seus praticantes, chamado de

Sistema Ideário de Graduações que, segundo seu elaborador, foi fundamentado

“nos aspectos vivenciais e esotéricos do negro em reconhecimento à importância de seu legado sócio-histórico-cultural”228. Com esses pressupostos e, na sua estruturação, misturando concepções e crenças próprias do Candomblé e da

Umbanda, tal Sistema de Graduação possui, “como insígnia do mérito capoeirístico”, um número determinado (onze) de “cordas de graduações”, hierarquicamente distribuídos, de cores diferentes e, segundo Zulu, “acercadas de uma mística contextualizada no acervo cultural do negro e no esquema simbólico do Ideário da

Capoeira Arte-Luta”229.

As cordas devem ser amarradas em torno da cintura, seguindo orientação específica, chamada de “laçada unitiva”, que é , inexplicavelmente, localizada de acordo com o sexo do praticante: se do sexo masculino, as pontas da corda devem ficar penduradas do lado direito do corpo do praticante; se do sexo feminino, as pontas deverão ficar do lado esquerdo. Suas cores são: azul, marrom, verde, amarelo, roxo, vermelho e branco que, para preencher os onze níveis de classificação, são assim distribuídas: azul, a primeira corda/nível; azul e marrom, a segunda corda/nível; marrom, a terceira corda/nível; marrom e verde, a quarta corda/nível; verde, a quinta corda/nível; verde e amarela, a sexta corda/nível, amarela, a sétima corda/nível; amarela e roxa, a oitava corda/nível; roxa, a nona corda, que simboliza o grau de “contramestre”; vermelha, a décima corda, representando o grau de “mestre edificador”; branca, a décima primeira corda,

228 Idem,. ibid., p. 77 229 Idem, ibid., p. 81

270

correspondente ao grau de “mestre dignificador”, cordas essas que são concedidas aos alunos conforme os “critérios e processos específicos” que se seguem:

“a) cumprimento de carga horária mínima de treinamento; b) qualidade técnica-estética de execução de golpes e movimentos; c) qualidade técnica-estética de execução dos segmentos solitários e duplos; d) qualidade técnica-tática de execução das formas-de- jogos; e) nível de desempenho técnico-tático em roda e em competição; f) freqüência e performance na participação em intercâmbios técnicos; g) nível de domínio da instrumentação e das cantigas de capoeira; h) abrangência do conhecimento teórico sobre a capoeira e seus pré-requisitos; i) exercícios de função de coordenador, de conselheiro ou de ajutor; j) exercício de monitoria e docência de capoeira.”230

Em estudo realizado em 1994, José Luiz Cirqueira Falcão (o Falcão) interpreta o processo de escolarização da Capoeira, não apenas o iniciado por Zulu, mas todas as iniciativas semelhantes empreendidas em diversos Estados brasileiros, como “um esforço de valorização das manifestações da cultura popular brasileira”, valorização essa que aconteceu, segundo ele, a partir (e por intermédio) das

“instituições escolares”, certamente, como uma estratégia de “cooptação da

230 Idem, ibid., p. 82

271

Capoeira pelas classes dominantes”231, mesmo que tal análise, em sua opinião, seja dificultada pelo fato de que no Brasil exista “uma grande articulação das manifestações culturais com o mercado capitalista”232.

Falcão, que em seu estudo, percorre um caminho sinuoso, ora tocando as margens da metafísica e ora do materialismo histórico e do materialismo dialético, tem como principais hipóteses de sua pesquisa que:

− a Capoeira, como “instituição cultural” pode estar

passando por um processo de recodificação,

desenvolvido na Escola;

− a Capoeira, mesmo tendo o potencial para tornar-se

uma atividade denunciadora da opressão exercida pela

sociedade brasileira, estaria sendo significada “apenas

como mais uma modalidade técnica do conteúdo da

Educação Física”, em detrimento do que ele chama de

suas “características essenciais”;

− a Capoeira, ao ser vinculada à Educação Física, como

um de seus conteúdos, estaria “incorporando os

códigos e os valores” predominantes nesse campo da

Educação233.

231 Cf. op. cit., p. 11-13 232 Idem, ibid., p. 33 233 Idem, ibid., p. 13-14

272

Neste momento, vem à memória a concepção de Almir das Areias sobre a

Capoeira, comparando-a a “um camaleão, que muda de cor conforme a situação”234 e também a justificativa que, certa vez, Mestre Paulo dos Anjos (aluno de Mestre

Canjiquinha) deu para o uso de um “Cordão de Mestre”, em sua cintura : “é preciso, para ser aceito no salão!”235

Assim, impondo-se à Capoeira uma conduta inerente às lutas, às artes marciais, a uma “luta nacional”; colocando-a no interior de uma camisa de força, oferecida pelas “novas metodologias”, fundamentadas em princípios científico- tecnológicos e concebidas como próprias da modernidade acadêmica; vestindo-a com a imagem do chamado Esporte de Rendimento, do Esporte institucionalizado, da Educação Física; submetendo-a à força de Regimentos Internos, Estatutos, Atas,

Sistemas de Graduação, Regras e Normas, de estabelecimentos de ensino, de natureza diversa e de tipos diferentes, é, pois, como foi constituído, em nome da

“sua reabilitação”, o trajeto desse fenômeno social que, originário da caá-puêra, no século XVI, manifesta-se, também, na Escola do século XXI.

“Valha-me Deus, Sinhô São Bento Buraco velho Tem cobra dentro”236

234 Cf. Almir das Areias, O que é capoeira. São Paulo, Brasiliense, s/d., p. 8 235 Comunicação pessoal, em janeiro de 1990, em conversa no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia 236 Versos de domínio público cantados, tradicionalmente, nas Rodas de Capoeira Angola

“Eis aqui este sambinha Feito numa nota só Outras notas vão entrar Mas a base é um só”

Jobim&Mendonça

CAPÍTULO V

“O quase monopólio das indústrias culturais, por parte de uma minoria de países, e a difusão de sua produção pelo mundo inteiro, junto de um público vastíssimo, constituem poderosos fatores de erosão das especificidades culturais” Jacques DeLors

Não se aprende no colégio ?

“Batuque é um privilégio Ninguém aprende samba no colégio Sambar é chorar de alegria É sorrir de nostalgia Dentro da melodia”1

Tendo início com as pretensões de Joaquim José da Silva Xavier (o conhecido Tiradentes) de mudar a capital brasileira do Rio de Janeiro para a cidade de São João Del Rey, instala-se, em 1749, com a elaboração da “Carta de Goiás e das Capitanias Próximas”, de autoria do cartógrafo italiano Francisco Tossi

Colombina, o movimento nativista de transferência da capital do litoral para o interior.

Após a alternância de períodos com muitas discussões políticas sobre o assunto e de períodos de quase total esquecimento dele, vencendo as propostas, motivadas pelas disputas de parlamentares mineiros e goianos, de sua instalação em Paracatu

(MG), Monte Alto (BA), Luziânia (GO), é fundada, em 1960 (utilizando-se, principalmente, do artifício da “invenção do sonho de Dom Bosco”2), a terceira capital do país, com o nome Brasília, como já havia sugerido José Bonifácio de

Andrada e Silva, no ano de 18233.

Certamente, com o processo de construção, fundação e desenvolvimento da nova Capital, surgem as preocupações, das mais diversas, com a questão da

1 Feitio de Oração, Noel Rosa, 1933 2 Adaptação tendenciosa do sonho-visão do educador italiano João Bosco feita, em 1956, sob a influência de Segismundo de Araújo Melo, para convencer Israel Pinheiro e outros mineiros quanto ao local para a instalação da nova capital. 3 Cf. Jarbas Silva Marques, O sonho de Dom Bosco, Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, Brasília, IHGDF, ano III, nº3, 2000, p. 95-103

275

Educação de seus habitantes e da organização e implantação de um sistema de ensino que fosse o mais adequado às características políticas e sócio-culturais da emergente metrópole. Desta forma, o sistema de ensino oficial do Distrito Federal, concebido e planejado por Anísio Teixeira, com a estrutura básica, incluindo a rede física dos estabelecimentos de ensino, definida por Lúcio Costa, em seu premiado memorial descritivo para o Plano Piloto de Brasília (em seu item seis4), teve o seu primeiro núcleo implantado com a criação, em 1956, na estrutura organizacional da

Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil-NOVACAP, do Departamento de Educação e Saúde (posteriormente, em 1959, denominado de Departamento de

Educação e Difusão Cultural) que tinha como objetivo “promover atividades educacionais até a implantação definitiva do Sistema Educacional do Distrito

Federal” e com a inauguração, em 1957, do Grupo Escolar Número Um, GE-1

(depois denominado de Escola Classe Júlia Kubitschek5), com cinco professores e cento e cinqüenta alunos, tendo em vista a chegada dos familiares (principalmente os filhos) dos operários e dos demais funcionários do setor burocrático da

NOVACAP.

Em 1959, por intermédio de Decreto Presidencial, nº 47.472, acatando a

Exposição de Motivos do Ministro da Educação e Cultura, Clovis Salgado, foi instituída, no mesmo Ministério, a Comissão de Administração do Sistema

Educacional de Brasília-CASEB, com sede no Rio de Janeiro e constituída do Diretor

Geral do Departamento Nacional de Educação, que a presidia; do Diretor do

Departamento de Administração do Ministério; pelo Diretor do Instituto Nacional de

Estudos Pedagógicos-INEP; dos Diretores do Ensino Secundário, do Ensino

4 Cf. A origem do sistema educacional de Brasília: criação da CASEB, 22/12/1959, Brasília, Departamento de Planejamento Educacional, 1984, p. 9 5 Idem, p. 18

276

Comercial, do Ensino Industrial; e, ainda, de um representante da NOVACAP6, conforme definido no Art. 2º do decreto citado, e com recursos financeiros, para a construção e manutenção do Sistema de Ensino, alocados no Orçamento da União.

Desta forma, constituída de uma Comissão Deliberativa e de uma Direção Executiva, a CASEB, portanto, tinha por finalidade “organizar e administrar o ensino primário e os ensinos de grau médio em Brasília, e incrementar as atividades culturais da nova

Capital”7.

Contando a rede pública, em 1959, com dois mil cento e trinta e quatro alunos, doze “Escolas Primárias”, dois “Jardins da Infância”, uma “Escola

Profissional” (do “Ensino Médio”) e sessenta e sete professores, ao Sistema de

Ensino do futuro Distrito Federal ainda eram vinculadas oito escolas do “Ensino

Primário”, com mil novecentos e noventa e seis alunos e duas escolas de “Ensino

Médio”, com setecentos e oito alunos8, da rede particular. Como suporte às atividades desenvolvidas no campo da Educação em Brasília, ainda existiam, nesse mesmo ano, duas bibliotecas públicas (uma delas aberta até as vinte e duas horas e trinta minutos); um curso de línguas, com turmas que tinham duas aulas por semana de inglês, francês, italiano, espanhol e alemão; uma “Escolinha de Cerâmica”, destinada às crianças e uma “Escola de Teatro Infantil, ballet, coro polifônico, percussão musical etc.”9.

Ainda, antes da inauguração da nova Capital, a CASEB é substituída, em 4 de março de 1960, pela Fundação Educacional de Brasília que, criada, por

6 Conforme o Boletim da CASEB, elaborado em 1960, seguindo a ordem, os componentes da Comissão eram: Prof. Heli Mengali; Dr. Orlando Gomes Calza; Prof. Anísio Teixeira; Prof. Gildásio Amado; Dr. Lafayette Belfort Garcia; Engº Francisco Montojos. Não consta, no Boletim, o nome do representante da NOVACAP e, ainda, é acrescentado o nome do Dr. Afonso D´Escragnolle Filho, como Assessor da Comissão Deliberativa. 7 Cf. Artigos 1° e 2° da Portaria Ministerial nº 4, de 5 de janeiro de 1960, que estabelece o seu Regimento. 8 Cf. A origem do sistema educacional de Brasília: criação da CASEB, 22/12/1959, Brasília, Departamento de Planejamento Educacional, 1984, p. 46-48 9 Idem, ibid., p. 48-49

277

intermédio do Decreto nº 47.832-A, no âmbito da Prefeitura do Distrito Federal, pelo

Presidente da República, com seus Estatutos aprovados pelo então Ministério da

Educação e Cultura-MEC, tinha por finalidade “organizar e manter, na nova Capital, estabelecimentos de ensino de grau médio”10. Para gerenciar a Educação Superior, criou-se, no mesmo ano, a Fundação Universidade de Brasília.

Parecendo acompanhar o ritmo das máquinas de terraplanagem, dos bate- estacas e da erição de andaimes e plataformas que, em tempo admirável, foram instrumentos para a concretização, no planalto central do país, não do tal sonho de

Dom Bosco mas, duzentos e onze anos depois, dos planos do Inconfidente

Tiradentes, a Fundação Educacional de Brasília, em 17 de junho de 1960, por intermédio do Decreto nº 48.297, assinado por JK e Clóvis Salgado, passa a chamar-se Fundação Educacional do Distrito Federal-FEDF, com a finalidade de

“prestar assistência educacional à população da Capital da República, nos níveis elementar e médio”11.

Gerida por uma Conselho Diretor, composto por seis membros (três indicados pela Prefeitura do DF e três pelo Governo Federal), todos com “ilibada reputação e notória competência”12, contando com recursos financeiros oriundos do Orçamento da União e utilizando as instalações cedidas pelo MEC, à FEDF são atribuídos os objetivos de:

“a) prestar toda a colaboração ao poder público no

cumprimento dos programas adotados para o

desenvolvimento do ensino no Distrito Federal;

10 Cf. Fundação Educacional do Distrito Federal, Atos normativos da FEDF: 1960-1980, Brasília, FEDF, v. I, 181, p. 15 11 Idem, ibid. p. 16 12 Idem, ibid., p. 19

278

b) criar, instalar e manter estabelecimentos de ensino elementar, educativo e de iniciação profissional, para crianças, para adolescentes e adultos; c) criar, instalar e manter estabelecimentos de ensino médio e de Aprendizagem Profissional; d) criar, instalar e manter estabelecimentos de formação e aperfeiçoamento de professores; e) criar e manter serviços educativos e assistências, que beneficiem alunos e professores; f) tomar providências no sentido de tornar o ensino elementar, o médio e o de formação e aperfeiçoamento de professores mais ajustados aos interesses e possibilidades dos estudantes, bem como às reais condições e necessidades do meio, inclusive esclarecendo a opinião pública quanto às vantagens asseguradas pela boa educação”.13

Com tais objetivos estabelecidos, principalmente os de ajustar as condições físicas e materiais da instituição “aos interesses e possibilidades dos alunos”, tendo em vista os “serviços educativos” de qualidade pretendidos, e o apoio ao desenvolvimento de programas criados pelo Poder Público, no âmbito do Distrito

Federal, no final da década de 1970, a FEDF, como uma entidade jurídica, de direito privado, integrante da estrutura do Governo do Distrito Federal, vinculada à

Secretaria de Educação e Cultura, apresentava em sua estrutura administrativa, dentre os chamados “Órgãos de Execução Central” (Diretoria Executiva,

Departamento Geral de Pedagogia-DGP, Departamento Geral de Administração), a

“unidade orgânica e diretiva”, diretamente vinculada ao Diretor do DGP, denominada

13 Idem, ibid., p. 18

279

de Direção de Complexo Escolar (eram dezesseis), unidade essa, de caráter administrativo-pedagógico, que, com a função de supervisionar o desenvolvimento da educação no Plano Piloto e Cidades Satélites, possuía, dentre outras competências básicas:

• orientar a operacionalização da proposta curricular; • acompanhar, sistematicamente a situação de aprendizagem dos alunos; • promover a orientação técnica aos professores, nas áreas específicas; • orientar a execução de programas, projetos e atividades pedagógicas nos estabelecimentos de ensino; e, • estimular a realização de experiências pedagógicas.14

Importante ressaltar que, também no Distrito Federal, a exemplo de outras

Unidades da Federação e seguindo a organização do Governo Federal (arquitetada durante a ditadura militar, instalada em 1964), na qual foi criada uma Secretaria de

Educação Física e Desportos, no então Ministério da Educação e Cultura (em substituição ao Departamento de Educação Física e Desportos, que substituíra a

Divisão de Educação Física), existia, também, na estrutura organizacional da então

Secretaria de Educação e Cultura (no caso, na FEDF), a partir do final da década de

1970, vinculada ao Departamento Geral de Pedagogia, uma Direção de Educação

Física e Desportos Estudantis, que, além de realizar e promover os equivocados

14 Cf. Renato S. Goes de Oliveira (org.), O sistema escolar de Brasília: legislação, estrutura e funcionamento, v. 3, Brasília, Hicitec Editora, 1978, p. 94

280

“eventos desportivos” (tão comuns num país que, com “uma corrente pra frente”, dizia-se, era “feito por nós” e, afirmava-se, “vai pra frente”) e de ser responsável pelo desenvolvimento do currículo de Educação Física nas escolas da rede pública de ensino, também, por intermédio de um setor específico, tinha como competência a realização de ações destinadas à busca e ao desenvolvimento dos chamados

“Talentos Esportivos do Desporto Escolar”, principalmente por intermédio da realização de um sofisticado (na época) programa de treinamento desportivo especializado e pelas ações desenvolvidas pelos Centros de Iniciação Desportiva-

CIDs15, contexto esse no qual, como citado no capítulo anterior, é inserida,

“acolhida”, autorizada, permitida, institucionalizada, com o decorrer do tempo, a prática da Capoeira.

Finalmente, no ano 2000, após a realização de várias reformas em diversos

órgãos e setores responsáveis pela Educação Pública do DF, por intermédio do

Decreto nº 21.396, de 31 de julho, como uma das ações de uma, pretendida, eficaz modernização político-administrativa da estrutura do Governo, é extinta a FEDF e delegada, à Secretaria de Estado de Educação, a competência para “adotar medidas necessárias à gestão” da Educação Oficial no Distrito Federal, surgindo, no chamado nível intermediário de sua estrutura organizacional, dentre os seus diversos segmentos, a unidade administrativa denominada de Gerência Regional de Ensino-

GRE, em substituição à Direção Regional de Ensino (que substituíra a Direção do

Complexo Escolar) e, no nível central, a Gerência de Desporto Escolar, responsável apenas pelo “desporto escolar”, em substituição ao Centro de Educação Física e

15 Cf. Cesar Augustus S. Barbieri, Diretrizes Pedagógicas (Série I/Nº 9): implantação dos conteúdos programáticos de Educação Física, Brasília, FEDF, Departamento Geral de Pedagogia, Brasília, 1983 (mimeo) e Centro de Iniciação Desportiva (CID): implantação e diretrizes de funcionamento, Brasília, FEDF, Departamento Geral de Pedagogia, 1983 (mimeo).

281

Desporto Escolar, que substituíra a Direção de Educação Física e Desporto

Estudantil.

Com o exposto, com relativa facilidade, pode-se notar que a Educação Pública no Distrito Federal, tal como a criação da Nova Capital, desenvolveu-se por intermédio de Leis e Decretos, partindo da cúpula dirigente do país, a partir da imposição, semelhante a implantação da nova sede do Governo Federal, de um

Sistema de Ensino, extremamente burocratizado, concebido e dirigido de cima para baixo, mas que, por necessidade imperiosa de sobreviver e relacionar-se bem com a comunidade local, nacional e até internacional, mostrou-se sempre aberto às inovações, às experiências pedagógicas tidas como de vanguarda e, principalmente,

às manifestações culturais de todas as regiões do país e das diversas Unidades da

Federação, características essas que, de um modo ou de outro, direta ou indiretamente, favoreceram (e ainda, de certa forma, favorecem) a manifestação do fenômeno Capoeira nas escolas da rede pública de ensino do Distrito Federal.

O estudo de José Luiz Cerqueira Falcão, o Falcão, aluno de Mestre Zulu

(finalizado, em 1994, para cumprir os requisitos finais do Curso de Mestrado em

Educação Física), intitulado “A Escolarização da ´Vadiação´: a capoeira na Fundação

Educacional do Distrito Federal”16, adaptado, pelo autor, e, posteriormente, editado e divulgado pelo setor editorial privado, além de ser pioneiro é o único, até o momento, que trata, com o rigor defendido pela Academia, da questão da prática da Capoeira nas escolas públicas do Distrito Federal. Nesse estudo, o autor parte do pressuposto de que a prática dessa manifestação cultural vem crescendo desde que, nos últimos

16 Cf. José Luiz C. Falcão, A Escolarização da ´Vadiação: a capoeira na Fundação Educacional do Distrito Federal (dissertação de mestrado em Educação Física). Rio de Janeiro, Faculdade de Educação Física/Universidade Gama Filho, 1994

282

anos, foi incluída, por intermédio da disciplina Educação Física, no contexto escolar e busca investigar as principais hipóteses que se seguem:

• atualmente, a Capoeira teria sido cooptada pelas classes dominantes; • no contexto escolar, a Capoeira teria sido modificada em sua essência e objetivos; • mesmo constituída de um poder aglutinador característico de elementos concretos que tornam-se denunciadores dos mecanismos de opressão utilizados pela sociedade brasileira, a Capoeira, no entanto, configura-se apenas como “mais uma modalidade técnica do conteúdo da Educação Física; • a Capoeira, poderia estar “incorporando os códigos e valores dominantes” no campo da Educação Física17.

Como resultado da sua pesquisa, realizada limitando-se a ouvir quarenta alunos (aproximadamente) e os quatro professores dos quatro CIDs existentes na época, Falcão, recomendando que outros estudos, sobre o assunto, sejam realizados “a partir de outras abordagens metodológicas”18, explicita as suas principais e, no mínimo, polêmicas conclusões, quais sejam:

• como um dos conteúdos da disciplina Educação Física, a Capoeira “pode beneficiar-se dos avanços acadêmicos já conquistados nesta área, ao mesmo tempo que, a partir de suas peculiaridades, pode

17 Cf. José Luiz C. Falcão, A escolarização da capoeira, Brasília, ASEFE-Royal Court, 1996, p. 11- 14 18 Idem, ibid., p. 143

283

contribuir para o processo de abertura de novos caminhos para a Educação Física escolar”19;

• a Capoeira realizada no âmbito do programa desenvolvido na FEDF, trata-se de uma manifestação que, a exemplo da constatação de Letícia Vidor Reis na cidade de São Paulo20, é uma “saudável” síntese entre a Capoeira Regional e a Capoeira Angola, síntese essa possível pela premissa do, já citado, “resgate seletivo de suas características e rituais”, preconizado por Zulu e seguido pelos componentes do seu Grupo de Capoeira;

• a Capoeira praticada na escola pública do Distrito Federal, encontra-se, na ocasião, “maioritariamente vinculada à disciplina Educação Física recebendo desta muitas influências” (mesmo que “de forma confusa e dispersa”), tanto com relação aos fundamentos técnicos e científicos, quanto no que diz respeito a legislações e normatizações”;

• o programa de desenvolvimento da Capoeira nas escolas da FEDF, era “um programa de vanguarda que [vinha] permitindo a convivência de uma manifestação de cultura popular no bojo da comunidade”, principalmente por ensejar “uma conotação valorativa e simbólica bastante eclética”21.

19 Idem, ibid., p. 63 20 Cf. Letícia Vidor de Souza Reis, O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil, São Paulo, Publisher, 1997 21Idem, ibid., p. 138-139

284

Três importantes indagações podem daí ser sucitadas: como é que, nos dias de hoje, após quase dez anos da realização desse primeiro estudo sobre a prática da Capoeira nas escolas da rede pública de ensino do Distrito Federal, tal fenômeno se manifesta? Quais as principais características do processo de sua escolarização?

Quais sentidos são atribuídos ao fenômeno Capoeira e como sua prática é concebida e valorizada no âmbito da escola pública do DF, pelos seus atores sociais ?

Utilizando-me das informações prestadas pelas GREs sobre em quais e em quantas escolas, hoje, a prática da Capoeira acontece regularmente, bem como de outras informações, não oficiais, de professores e Mestres de Capoeira que atuam na rede pública de ensino do Distrito Federal, foram identificadas nove escolas que enquadravam-se dentre os critérios de seleção estabelecidos, quais sejam:

• ter a Capoeira como uma atividade regular que atende, prioritariamente, os alunos da rede pública; • vincular a Capoeira, de uma forma ou de outra, com as chamadas “atividades curriculares” desenvolvidas pela escola; • oferecer a prática da Capoeira, mesmo como uma atividade considerada, ainda, como “extra-classe”, sistematicamente, no espaço da escola e sob a sua supervisão; • enquadrá-la como uma atividade pertinente ao desenvolvimento de qualquer um dos programas de “Desporto Escolar”, realizados e/ou aprovados pela Gerência de Desporto Escolar.

285

Respondendo, pois, as últimas perguntas formuladas, segue-se o relato das visitas e observações realizadas22 nessas escolas e das entrevistas com seus

Diretores e/ou Coordenadores, com treze professores de Capoeira e, aproximadamente, cento e vinte alunos, entre sete e dezoito anos.

Numa dessas escolas em que o fenômeno Capoeira tem a sua manifestação, um Mestre de Capoeira (com quinze anos de prática) e, também, professor de

Educação Física, concursado e do quadro efetivo da extinta Fundação Educacional do Distrito Federal, auxiliado por um outro Mestre de Capoeira, também professor de

Educação Física, que tem como função “dar atenção especial à alguns alunos com maior dificuldade”, e ainda por um voluntário da comunidade, desenvolve, há três anos, um projeto de Capoeira dirigido a alunos com necessidades educacionais especiais (portadores de Síndrome de Down, Paralisia Cerebral e Deficiência

Mental), meninos e meninas (aproximadamente, trinta alunos), de diferentes idades, que fizeram opção pela prática da Capoeira, dentre outras “modalidades esportivas”.

A prática da Capoeira acontece como um projeto especial duas vezes por semana, com duração de, aproximadamente, uma hora, seguindo o modelo tradicional de uma aula de Educação Física escolar, subdividida em Aquecimento,

Aula Propriamente Dita e Volta à Calma, como determina o Método Padrão, muito utilizado pelos Professores de Educação Física, principalmente, no final de década de 1960 e início dos anos setenta, do século passado. Essas atividades são realizadas no pátio (interno e coberto) da escola e, em sua fase de Aquecimento, os alunos realizam, em coluna, deslocamentos diversos, correndo de frente e de lado

(de frente e de costas para o centro do pátio) e após, dispostos à vontade pelo

22 Cf. Cesar Barbieri e Anna Izabel C. Barbosa, Diagnóstico da Capoeira na escola pública do Distrito Federal: uma primeira abordagem. Documento de circulação restrita ao âmbito da Gerência de Desporto Escolar. Brasília, 2003 (mímeo)

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terreno, realizam alguns poucos exercícios de alongamento, abdominais e saltitamentos; na Aula Propriamente Dita (como na fase anterior, ao som de músicas de Capoeira, vindo de uma aparelho de som localizado em um dos cantos do pátio), os alunos, sempre seguindo a demonstração do professor, realizam movimentos básicos da Capoeira (como a ginga e o rolê) e típicos da Capoeira Regional (como martelo, benção, meia-lua-de-compasso e outros) e, ainda nessa etapa da aula, participam de uma Roda, acompanhados, agora, por dois berimbaus e um pandeiro, realizando pequenos jogos entre eles e com os professores, ao som dos toques de

Angola e São Bento Grande (da Capoeira Angola); na Volta à Calma, os alunos aproximam-se bastante do professor, desordenadamente realizam alguns exercícios de alongamento, ouvem algumas recomendações sobre a necessidade de

“treinarem mais um pouco em casa” e fazem uma rápida oração, tendo em vista, principalmente, a guerra no Iraque e a questão da paz mundial.

Os professores demonstram ter muito carinho pelos alunos e, estes, muita confiança, respeito e amizade por aqueles. A aula transcorre em clima de alegria e descontração, de acordo com as limitações e o ritmo de cada aluno, e tem como o objetivo, segundo declara um dos professores, “trabalhar com a auto-estima” dos alunos, pois, “antes, na sala de aula, eles tinham muitos problemas, não apenas com relação ao desenvolvimento do processo de aprendizado e aos resultados obtidos, mas, também, de ordem afetivo-emocional”.

A Coordenadora de Educação Física da escola admite que “o professor conseguiu desmitificar a Capoeira”, ao realizar várias reuniões com os pais dos alunos e explicar a forma de seu trabalho, que tem a Capoeira como um dos conteúdos da disciplina Educação Física. Nesse “trabalho de desmitificação” (como denomina a Coordenadora), tendo em vista que “a Capoeira na escola trabalha o

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movimento e não a crença”, o professor, dentre outras adaptações, inclui “cantigas de roda, músicas de igreja” e de outros gêneros, além de selecionar, dentre as conhecidas como “da Capoeira”, as que, principalmente, são desvinculadas do

Candomblé e que não “assustem” os pais e que tenham temas “apropriados para a escola”, pois, segundo o professor, “a Capoeira aqui é como uma dança, uma brincadeira”, ou seja, não se vincula às manifestações consideradas marginais de sua raiz cultural.

Com a Capoeira, segundo uma outra professora, presente no momento da entrevista, o professor tem realizado um excelente trabalho de “controle da agressividade dos alunos”, principalmente porque, segundo a Coordenadora, “o aluno já mostrou sua superioridade na Capoeira e, assim, fica mais tranqüilo nas outras atividades” e também porque, “na verdade, a não agressividade dos alunos depende, fundamentalmente, da postura do professor, da sua sensibilidade” ou seja, de sua adaptação aos objetivos da educação e da escola: “fazer o aluno feliz”; reconhecer e saber lidar com suas limitações; desenvolver o respeito mútuo; “sentir- se útil à sociedade”, por intermédio do desenvolvimento de algumas habilidades, pois “a escola é a única coisa que eles têm”, uma vez que “são pobres, moram em casas pequenas, são discriminados pela sociedade e, às vezes, rejeitados pela própria família”.

Ao considerar a importante função da Capoeira no contexto da escola e da educação desses alunos, um dos professores entrevistados aponta, também, como um “excelente resultado”, o fato de que “na Capoeira os alunos realizam movimentos que não conseguem nas aulas, ‘normais’, de Educação Física”. Desta forma, a

Capoeira, na interpretação da Coordenadora e dos professores entrevistados, tem se constituído, efetivamente, em um dos principais coadjuvantes no processo de

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educação desses alunos, os quais, por seu intermédio, conseguem apresentar “bons resultados, também, quanto à sociabilidade, ao respeito pelo outro”, ao auto- conhecimento, à auto-estima e à auto-superação.

Os alunos, em suas atividades de Capoeira, usam o uniforme da escola, deixando o uniforme chamado de “específico da Capoeira” (cujo desenho da camiseta foi elaborado por um dos alunos e escolhido por intermédio da realização de um concurso interno) para as apresentações nos dias de festa na escola (tais como feira do livro, dia dos pais, dia das mães, abertura dos jogos internos e outros) que além de enriquecer as atividades festivas, ainda, segundo a Coordenadora ,

“ajuda a fazer a cabeça dos pais e de outros da comunidade”. Ressalta-se que, pelas características dos alunos, os mesmos não realizam apresentações fora do ambiente e do contexto da escola e nem, tampouco, qualquer tipo de intercâmbio com outros alunos de Capoeira de outras escolas ou grupos de Capoeira.

Reconhecendo, ainda, os valores pedagógicos da Capoeira, os professores de Educação Física e a Coordenadora da escola combinaram (extra-oficialmente), objetivando envolver os outros alunos (cinco turmas) não atendidos pelo referido projeto, realizar as aulas de Capoeira, seguindo a mesma orientação aqui explicitada, também no turno matutino, duas vezes por semana, não como um projeto específico, mas como aula regular de Educação Física, contando com a participação, efetiva, de todos os professores de Educação Física da escola.

Numa outra escola que, considerando sua estrutura física, mais parece os tão falados, atualmente, presídios de segurança máxima ou um daqueles abrigos anti- aéreos, tão presentes nos filmes de Hollywood sobre a Segunda Grande Guerra, ou ainda as famosas galerias de esgoto londrinas, nas quais Jack, o estripador, esgueirava-se após cometer os seus tenebrosos e impactantes assassinatos,

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encontra-se a manifestação do fenômeno Capoeira. A sua prática é realizada por alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental, uma vez por semana, no horário do recreio, durante os seus limitados trinta minutos de duração.

Ao “bater o sinal do recreio”, imediatamente, as portas da salas (ou celas) de aula se abrem e os alunos correm, como um revoada de um ansioso bando de andorinhas, durante um minuto, aproximadamente, pelo frio, úmido e sombrio pátio, interno, da escola.

Nesse mesmo instante, o professor de Capoeira e seu ajudante começam a tocar, respectivamente, um berimbau e um pandeiro, ao tempo em que alguns alunos (meninos, em sua maioria) começam, aos poucos, a se juntar à sua volta e a

“jogar” Capoeira, realizando, em duplas, alguns poucos movimentos. As meninas, em sua grande maioria, aglutinam-se, em um dos cantos do pátio, em torno de um aparelho de som e dançam funk, durante todo o tempo do recreio e os demais alunos continuam correndo, em torno do pátio, vez por outra engalfinhando-se mutuamente e trocando séries intermináveis de socos.

Dos alunos, que praticam a Capoeira, alguns executam os golpes apresentando algum conhecimento anteriormente adquirido, porém a grande maioria, nota-se com facilidade pelos movimentos que realizam, são iniciantes em seus primeiros passos, ou como dizem os Velhos Mestres da Capoeira, ainda “estão bem crus”!

Aos poucos, a correria (excitada e excitante) vai diminuindo, vai se acalmando, e o professor consegue, mesmo que por um curto período de tempo, demonstrar alguns golpes, e os alunos, em duplas, se dispõem a realizá-los, seguindo o comando do professor, que se utiliza, nesse momento, do toque do berimbau para dirigir a atividade: no toque, realizam o movimento; na pausa,

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paralisam a ação, “congelam a imagem”, e, assim, sucessivamente, trocando de parceiros a cada comando de “trocou”!

Ao aproximar-se o final do recreio, os que participam dessa atividade

(variando, em número, entre dez e sessenta alunos, dependendo do momento da

“aula”) formam uma nova roda e, ao “bater o sinal”, determinando, definitivamente, o seu término, as professoras responsáveis pelas turmas, com enorme dificuldade conseguem colocar os alunos para dentro das salas. As portas das “celas de aula”, uma a uma, bruscamente, vão se fechando. Uma merendeira antiga da escola, atrás do balcão da copa, muito orgulhosa informa que aquele professor de Capoeira

é um ex-aluno da escola! Reina, novamente, um silêncio quase mórbido ...

Conforme informa o professor de Capoeira (que concluiu apenas o Ensino

Médio e, com dez anos de prática de Capoeira, tem a graduação de Formado no grupo do qual faz parte, fato esse que o habilita a dar aulas), o desenvolvimento dessas atividades, para os alunos na faixa de sete a dez anos, acontecem apenas no horário do recreio, tanto no período matutino como no vespertino, “como esporte, cultura e filosofia”; como uma forma de sensibilização para uma “prática futura de um esporte”, quando os alunos tiverem com, mais ou menos, treze anos de idade, pois

“a aula, mesmo, de Capoeira” é para os membros da comunidade que, mediante o pagamento de uma mensalidade de vinte reais, dela participam, no período noturno.

A Capoeira chegou até essa escola, segundo as informações da sua

Coordenadora Pedagógica, como uma das atividades a serem oferecidas às “turmas de aceleração”23, as quais, de uma forma ou de outra, sofriam algum tipo de discriminação, tendo em vista o rótulo de “alunos atrasados” que lhes foi imputado e, também, não eram contempladas com a possibilidade de participação em ações

23 Turmas especiais compostas por alunos que, segundo os duvidosos diagnósticos realizados pelas escolas, apresentam comprometedores problemas, principalmente, “de aprendizagem” e econtram- se “em séria defasagem entre idade e série”.

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educativas de cunho artístico-cultural (e das aulas de Educação Física), desenvolvidas nas bem conhecidas Escolas Parque.

Com os bons resultados apresentados por esses alunos e, também, como forma de “estimular mais o trabalho” realizado, gratuitamente, pelo professor, a prática da Capoeira foi estendida aos outros alunos das demais turmas. Em 2002 passou a integrar o projeto “Recreio Legal” junto com outras atividades, como por exemplo a Dança (o funk, já citado) e alguns jogos, projeto esse que, segundo a mesma Coordenadora, tem como objetivo “dar um caráter educacional a esse recreio”, principalmente como forma de atenuar a exclusão desses alunos, já citada, das atividades da Escola Parque.

As escolas, de uma maneira geral, têm muito a ganhar com a prática da

Capoeira como uma de suas atividades “extra-classe”, afirma a Coordenadora, pois ela (a Capoeira) “libera as energias e disciplina os alunos” e “as crianças gostam muito e cobram, insistentemente, a sua realização”, razões essas que fazem com que a participação dos alunos seja, também, valorizada como uma recompensa a ser oferecida ao chamado “bom aluno”, um vez que, no caso contrário, “se não estiver bem na escola, ele não pode participar das aulas de Capoeira”.

Para a Coordenadora Pedagógica (graduada em Pedagogia, com habilitação em Orientação Educacional), a Escola, como instituição educativa, para poder “ter o aluno”, assumiu questões que não eram da sua alçada, “desde os cuidados básicos de higiene do aluno até outros conhecimentos”, pois “os pais não sabem como agir e entregam os filhos à escola” ou “a mãe não pode, não tem tempo para dar a educação familiar”. Desta forma, para ela, é inegável o valor da prática esportiva, haja vista ser um agente disciplinador, pois, “na luta você tem que respeitar o outro” e, bem orientada por “um bom professor”, a Capoeira, assim, contribui

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sobremaneira, para a organização escolar e para o desenvolvimento do seu trabalho pedagógico. O professor de Capoeira dessa escola, afirma ela, “ouvi dizer, deu muito trabalho quando era aluno aqui”, ele “é um bom exemplo que o esporte educa”.

A Capoeira nessa escola é, portanto, valorizada como uma das atividades

“extra-classe” mais importantes e, por isso, “participa das festas e apresentações da escola”, sendo um dos instrumentos de “integração com outros alunos”. De tal forma, a Capoeira é valorizada, afirma a Coordenadora, que, “por exemplo, no final de semana, vai ter um workshop de Capoeira aqui na escola”!

O professor de Capoeira (que iniciou o seu aprendizado com seu irmão, em

1992) faz parte do rol dos tão falados, hoje, Amigos da Escola e desenvolve essa atividade sem vínculo empregatício, como voluntário e é auxiliado pelo seu atual

Mestre, o qual “está sempre” ao seu lado, mesmo que não seja presencialmente, orientando-o e ajudando-o. Para ele, considerando a sua própria história de vida, “o estudo é fundamental”, a escola é um “espaço para a vida de amanhã, um encaminhamento para a vida”, pois “sem ela, sem o estudo a gente não chega tão longe” e o “professor de Capoeira não é só um professor” mas sim, “um pai, um psicólogo, um irmão que tem a oportunidade de ouvir os alunos”. Por isso, afirma ele, é preciso que as autoridades educacionais (pessoas físicas e jurídicas) apóiem a Capoeira na escola, “valorizando e fiscalizando” o desenvolvimento dessa atividade educativa, principalmente estimulando e “dando força àqueles que queiram trabalhar para a Capoeira dando um apoio como o CREF24 fez, cadastrando os professores”, tidos por esse Conselho como leigos.

24 Conselho Regional de Educação Física, um dos Conselhos Regionais do Conselho Federal de Educação Física, criado por intermédio da Lei nº 9696, de 1 de setembro de 1998 e publicada no Diário Oficial da União, em 2 de setembro de 1998.

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Em outra escola onde o fenômeno Capoeira se manifesta, a sua prática não acontece no horário do recreio, como na escola anterior, mas sim, às terças e quintas-feiras, uma hora antes do término das chamadas “aulas regulares”, quando os alunos, das quatro primeiras séries do Ensino Fundamental, são liberados.

Segundo as informações prestadas pela Diretora da Escola, que é formada em Economia Doméstica e conta com sete anos de experiência na rede oficial de ensino do Distrito Federal, esses alunos (dentre eles alguns poucos com deficiência auditiva, os quais se integram muito bem à turma e às atividades propostas), que participam desse “trabalho maravilhoso”, são os que conseguem manter “as melhores notas” e “possuem bom comportamento”, sendo que aqueles que não conseguem enquadrar-se, principalmente, nesses dois critérios, ficam na sala de aula fazendo as já bem conhecidas tarefas escolares.

Conforme declara alguns alunos, não basta apenas cumprir os dois critérios acima citados, é preciso também: “não xingar os colegas, respeitar as professoras, fazer as tarefas (da escola e o ‘para casa’), não esquecer o material escolar, tirar boas notas, não deixar a professora irritada e cuidar e devolver os livros da biblioteca”. O controle desses requisitos para a participação nas aulas de Capoeira, estão escritos em um quadro, nas respectivas salas de aulas, no qual são anotados quantas vezes aquele “delito” foi cometido e o nome do seu infrator. Mesmo assim,’ com a existência desse critérios e regras, afirmam outros alunos, algumas professoras não autorizam a participação de seus alunos, alegando que “atrapalha os estudos, tem muito conteúdo para vencer, é hora de fazer mais um teste” e outras desculpas do gênero. Pela informação prestada por uma das alunas da primeira série, não apenas esses critérios são suficientes, pois, ainda, são submetidos a um

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sorteio realizado dentre esses alunos que desejam fazer a prática da Capoeira e que conseguiram os citados pré-requisitos para tal.

Com a percepção semelhante à da Coordenadora Pedagógica da escola anteriormente citada, a Diretora desta também informa que “a escola tem que fazer tudo agora. Os pais não sabem mais educar os filhos e passam essa responsabilidade para a escola”. Em sua opinião, cada vez mais existe um distanciamento enorme entre a escola e o pais que, via de regra, “não participam da vida da escola” e, por essas razões, tenta-se oferecer atividades ainda chamadas de

“extra-classe”, com o objetivo de “suprir as deficiências da educação familiar” e de

“buscar trazer os pais para mais próximo da escola”. A Capoeira, com sucesso, tem sido uma das principais atividades para a consecução desses objetivos, e, de tal modo isso acontece, que as chamadas “professoras da sala de aula” ficam admiradas de como os alunos se comportam nas aulas e como obedecem os professores, chegando muitas a afirmar que “gostariam que eles [os professores de

Capoeira] estivessem na sala de aula também, junto com elas”!

O professor afirma que planeja cada aula de acordo com a imediatamente anterior, “levando em consideração o desenvolvimento das crianças e as dificuldades que elas apresentam”, seguindo, no planejamento e na execução, o modelo aprendido com o seu Mestre de Capoeira, com algumas pequenas adaptações, refazendo, assim, o que viveu como aluno, situação essa que se revela, implicitamente, por exemplo, no uso de uma linguagem inadequada para crianças entre sete e nove anos de idade, como o uso da palavra workshop, de frases como

“é preciso refletir sobre a nossa história”, demonstrando desconhecer os fundamentos do desenvolvimento infantil, em especial a dimensão cognitiva.

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Conforme relata, quando encontra alguma dificuldade, recorre ao seu Mestre ou aos livros que tratam, especificamente, da questão da Capoeira para crianças.

Esse capoeirista-professor está na escola apenas há três meses e admite que não há integração com os professores das disciplinas curriculares. Para ele, essa integração será difícil acontecer, pois “o professor [da sala de aula] tem um programa a seguir, já determinado” que não inclui, oficialmente, a prática da

Capoeira e, desta forma, por sua linearidade, fica difícil essa pretendida integração.

A Capoeira, ao contrário, por sua natureza, permite modificações, inclusões, alterações a qualquer momento, pois “precisa de mais liberdade, de ir percebendo o grupo”. Segundo, ainda, suas informações, ele “dá aulas sobre a história da

Capoeira, sobre a origem dos negros” e, aos poucos, vai introduzindo o conhecimento sobre os instrumentos da Capoeira: “um dia o berimbau, no outro o pandeiro, no outro o atabaque”. Utiliza-se de vídeos e insiste para que os alunos reflitam sobre os assuntos abordados, sabendo que “não dá para querer que os alunos decorem a história da Capoeira”, é somente para que tenham um pouco mais de conhecimento sobre o assunto, pois o aprofundamento “eles vão ver na sala de aula com o professor de história”. Alguns alunos chegam a fazer desenhos para representar as suas conclusões sobre o que foi abordado na aula de Capoeira.

É possível perceber que existe uma significativa distância entre os discursos emitidos e a prática realizada, pois, uma hora antes do término das aulas oficiais, os alunos, aos poucos, vão chegando no pátio, coberto, da escola. Nesse momento, um dos professores grita: em forma! e todos, rapidamente, se colocam em fileiras e respondem ao cumprimento do auxiliar do professor, como propunha Mestre

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Senna25 com muito entusiasmo e em voz muito alta, SALVE! Inicia-se então uma longa sessão de exercícios de alongamento (típicos da Educação Física), que os alunos a realizam em silêncio, repetindo (sem correção) os exercícios que o professor vai demonstrando.

A aula começa (com vinte e sete alunos) sem nenhum acompanhamento musical, pois o professor, neste dia, não trouxera o seu berimbau, pois a atividade prevista seria assistir um vídeo sobre a Capoeira, porém os alunos de uma outra turma estavam ocupando a sala de vídeo, fato que causou o adiamento da atividade planejada e muito agradou aos alunos que estavam ansiosos para “fazer aula prática”. No entanto, logo foi trazido um aparelho de som portátil e músicas de

Capoeira começaram a ser ouvidas, mesmo que de maneira insuficiente, devido à potência do aparelho, o tamanho do pátio, o número de alunos e o barulho da chuva que começou a cair ...

Mesmo sem nenhuma interação com a música, que “se esforça para chegar aos alunos”, tem início a fase dos exercícios específicos da Capoeira (é “a aula propriamente dita”) e, ainda sem correção, um dos professores conta em voz alta o número de repetições que devem ser feitas e os alunos, ainda dispostos em filas, sem titubear, as executam. Os movimentos executados são os considerados, pelos professores, como básicos, tais como cocorinha, negativa (partindo de uma posição específica que esses professores denominam de “base”), resistência, queda de quatro, meia-lua-de-frente, queixada e outros que compõem o acervo de golpes de variadas correntes/escolas de Capoeira , e assim se segue até que chega o momento da Roda, a qual é realizada (por quarenta e sete alunos, a maioria das

25 Cf. Carlos Senna, Capoeira: arte marcial brasileira (Ante-projeto de regulamentação), Salvador, Secretaria Municipal de Educação e Cultura/Departamento de Assuntos Culturais/Divisão de Folclore, 1980, p.19-20

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duas primeiras séries) sem muita rigidez, sem nenhuma orientação e/ou correção dos professores e durante um curto, muito curto, período de tempo.

Percebe-se, também, que o professor é carinhoso com as crianças, é respeitado, dá relativa liberdade aos alunos e, nos diálogos estabelecidos entre eles, chega a não parecer um disciplinador. Declara que a Capoeira para elas deve ser uma brincadeira, uma atividade lúdica, pois “as crianças querem é jogar, se movimentar” e não encontra nenhuma dificuldade em organizá-las, mantê-las em formação ou na Roda. Por outro lado, admite que se o aluno comete algum tipo de desobediência, ou afasta-se “para fazer bagunça ou jogar purrinha”, ele é mandado, imediatamente, de volta para a sala de aula e concorda, também, com o fato de que os alunos sejam autorizados ou não a participarem de suas aulas conforme sejam os seus resultados nas disciplinas curriculares (“da sala de aula”), achando “natural e educativo” que essa atividade “extra-classe” seja utilizada como prêmio e castigo pelos outros professores e esclarecendo que esse controle (de quem pode participar, conforme os critérios estabelecidos) não é apenas feito mensalmente, mas diariamente, daí a razão de “haver tanta rotatividade de alunos” em suas aulas.

A escola, para ele, é a instituição que “encaminha a criança, e isso tem que ser desde que ela é pequena, porque depois de grande não tem mais jeito”!

Numa quarta escola visitada, a prática da Capoeira acontece duas vezes na semana, no período vespertino, atendendo a três turmas de alunos, da escola e da comunidade, formadas por faixa etária. O professor de Capoeira, que conta com dezesseis anos de prática (desde 1978), é graduado como Mestre em seu grupo e também Licenciado em Educação Física (em 1983), por um dos quatro cursos existentes no Distrito Federal, e é professor de Educação Física, concursado, da

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Secretaria de Educação. Em suas atividades, tem sido auxiliado por um de seus alunos graduados, que é acadêmico de Educação Física, cursando a mesma

Universidade em que se formou.

Na turma observada, o aluno mais novo, com sete anos, está no chamado

Jardim III (última etapa da Educação Infantil), e o mais velho, com doze anos, está cursando a sexta série do Ensino Fundamental. Há grande diferença também quanto ao que o professor denomina de “nível de aprendizado”, encontrando-se alunos com quatro anos de prática (o mais antigo) e com apenas cinco meses (o mais novo).

Mesmo estando uniformizados, devem, para ter acesso à velha e descuidada quadra de esportes localizada na parte externa da escola, onde realizam-se as aulas de Capoeira, apresentar uma carteirinha que comprova a sua inscrição naquela “modalidade esportiva”.

Os alunos, de uma maneira geral, “acham legal” ter Capoeira na escola, ou por ser “uma importante defesa pessoal”, por ser “um esporte” que sempre quiseram treinar regularmente, ou ainda porque “acham interessante”, “legal”, “tem música e instrumentos” e é “mais bonito do que o balé”. Muitos tomaram conhecimento dessa

“modalidade esportiva” por intermédio de apresentações na escola ou por já assistir as Roda de Rua que o professor realiza em praça pública. Alguns, poucos, praticam a Capoeira, mesmo contrariando, “um pouco”, os preconceitos de familiares, como por exemplo uma das alunas que ouviu da mãe, como recriminação, que a Capoeira

“é coisa de negro” e, por isso, deve ser evitada, e outra aluna que, já participando da aulas contra a vontade do pai, pois este entende que a Capoeira “é coisa para homem, para marginal”, ao pedir-lhe de presente de aniversário um berimbau, teve a resposta: “não, eu vou te dar é uma cueca”!

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A educação, para o professor de Capoeira entrevistado, é “uma arte de orientar as pessoas quanto à escolha de seus caminhos”, e a escola, “o espaço onde se tenta transmitir conhecimentos, de maneira metódica e organizada, para um grande número de pessoas” e, como essa transmissão deve ser realizada levando- se em conta as características e potencialidades de cada um, a avaliação do seu aluno é realizada objetivando “acompanhar o seu desenvolvimento”. Não há nota a ser atribuída e nenhuma vinculação com o seu desempenho nas atividades curriculares, pois, conforme concebe o professor, “o desempenho do aluno na escola tem muitas variáveis e não depende só do aluno, que pode ser bom e dedicado na

Capoeira e ter problemas na escola”.

No entanto, o desenvolvimento da prática da Capoeira segue os padrões, já referidos, de uma aula tradicional de Educação Física, constando de Aquecimento, com a realização de alguns exercícios de alongamento; Aula Propriamente Dita, etapa na qual os alunos, em duplas, executam alguns de seus movimentos, como a ginga, a meia-lua-de-frente, a queixada etc.; e, para finalizar, realizam uma pequena e rápida Roda de Capoeira, quando conseguem fazer alguns poucos jogos.

Nessa faixa etária, segundo o professor, não são realizados nenhum tipo de competição entre os alunos, somente após os quinze anos é que eles são treinados para participarem de jogos internos do Grupo de Capoeira liderado por ele, tendo como critério principal o confronto entre os alunos de cordas iguais ou correspondentes ao mesmo nível de aprendizado, denominado de “nível técnico” (a graduação é baseada em cordas de várias cores colocadas na cintura).

A perspectiva de manifestação do fenômeno Capoeira percebida em outra escola, localizada nas imediações da anterior, não é muito diferente. Nela, ele é

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significado como uma das modalidades esportivas desenvolvidas na escola, e constitui-se em um dos três Centros de Iniciação Desportiva-CIDs, aprovados e autorizados pela Gerência de Desporto Escolar.

Para o professor de Capoeira deste CID, a educação é uma “arte de desencaminhar as pessoas”, ou seja, “desencaminhar no sentido de não impor minhas idéias e pensamentos” e, sim, “dar um suporte emocional, físico, psicológico e espiritual para que cada um ache seu próprio caminho”. Nesse sentido, a escola

“deveria ser um local que propiciasse, aos alunos, maximizar todos os seus talentos e potenciais latentes”. Concepções essas que fazem com que a Capoeira seja um importante instrumento para “dar suporte” e servir de “alavanca para que as pessoas desabrochem seus potenciais, aumentando a auto-estima, confiança, psicomotricidade, resistência e cidadania”.

Desta forma, desenvolve o “treinamento de Capoeira”, tendo em vista o alcance do que denomina de “objetivos culturais” — como forma de preservação da cultura, considerando o dinamismo cultural “e inventando tradições”; “objetivos desportivos” — a Capoeira, como uma das modalidades esportivas, e como um dos conteúdos das aulas de Educação Física, do trabalho com o corpo fundamentado na cinesiologia, fisiologia etc., como linguagem corporal; e, finalmente, dos “objetivos sociais” — incluindo-se ações voltadas à transformação do cidadão, à sua conscientização, ao desenvolvimento da sua criticidade.

As aulas são realizadas no pátio central da escola, entre salas de aula, biblioteca e laboratório de informática e, portanto, deve-se evitar, ao máximo, produzir qualquer tipo de barulho que os professores das disciplinas curriculares julguem prejudiciais para o “bom desenvolvimento” de suas atividades de sala de aula. Assim, o professor se utiliza apenas de um berimbau, e não realiza, como de

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praxe, nessas aulas de Capoeira na escola, a Roda de Capoeira para finalizar a atividade, que é desenvolvida, num outro dia, na rua, em praça pública, para os alunos e quem mais estiver interessado em dela participar.

Conforme declaração do professor de Capoeira, dessas aulas participam alunos, a partir dos treze anos de idade, tanto da escola como da comunidade, pois são um desdobramento do seu Grupo de Capoeira e, como outras já observadas, segue os parâmetros utilizados pela aulas tradicionais de Educação Física, subdividida em Aquecimento — constando de corrida em várias direções, ginga

(com alguns floreios) em colunas, saltos com deslocamentos, alongamentos etc.;

Aula Propriamente Dita — constando, como trabalho individual, de ginga livre ao som de diferentes toques do berimbau, exercícios de flexão do tronco, ginga com

“parada na base”, apoiando uma das mãos no chão e, como trabalho em duplas, da execução dos movimentos específicos da Capoeira tais como: ginga, ginga e meia- lua-de-frente, ginga e aú com rolê; Volta à calma — jogo livre ao som do berimbau.

Ao abordar a questão da sua relação com os outros professores da escola e com as atividades curriculares, o professor declara que a Direção “apenas permite que o programa exista dentro da escola” , não alcançou, ainda, nenhum sucesso em suas, poucas, tentativas de interação com os outros professores e nem de integração dos conteúdos desenvolvidos, menos ainda quando se trata da “tal interdisciplinaridade”. Como exemplo disso cita o fato de que “há seis anos na escola, uma única vez, por ocasião da Semana do Folclore, foi chamado para fazer uma palestra sobre a Capoeira”.

Com muita dificuldade, pois o professor interferiu sistematicamente, tentando conduzir a fala dos alunos e dar o tom da entrevista, os alunos conseguiram expor algumas de suas concepções sobre a Capoeira, das quais destacam-se as de um

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aluna, que comparando a “Capoeira da Rua” com a que se manifesta na escola, acredita que esta seja diferente daquela, pois “aqui [na escola] somos unidos, somos um grupo”, deixando transparecer que o espaço físico e institucional da escola seja o principal responsável pela existência das diferenças encontradas entre uma e outra manifestação; ou a de um outro aluno que admite ser “mais fácil controlar, na escola, a questão da violência e a participação das pessoas”, certamente as que são selecionadas e têm autorização para participar; ou, ainda, a de um aluno, mais antigo do grupo, que declara que “não haveria melhor lugar [referindo-se à escola] para a Capoeira, pois, tanto uma como a outra, servem para integrar as pessoas à sociedade”; ou as de que a “Capoeira ensina a viver”, “ensina até como a gente deve se comportar na sociedade” e, “como a escola é um modo de aprender a viver”, sem dúvida, é muito importante que a Capoeira seja ensinada e praticada na Escola.

No segundo CID de Capoeira visitado, o professor, formado em Educação

Física, possui um curso de pós-graduação, nível de Especialização, em Capoeira na

Escola e, com vinte e oito anos de prática da Capoeira, desenvolve as suas atividades nos períodos matutino (três turmas) e vespertino (três turmas), às segundas, quartas e sextas, num total de, aproximadamente, cem alunos entre seis e dezessete anos.

Ao expor sobre o desenvolvimento das atividades que realiza nessa escola, desde 1987, o professor informa que, na toada das conhecidas orientações contidas nos, não menos conhecidos, livros de Didática Geral ou da tal Didática da Educação

Física, o seu “Objetivo Geral” é o de “oportunizar a prática de uma atividade vinculada aos princípios educativos e de formação, prioritariamente aos alunos da rede pública da sua GRE, fundamentada e contextualizada através do Manifesto

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Capoeira26” e, quanto aos “Objetivos Específicos”, eles os estabelece “de acordo com o nível da turma, maturação etc.” Para ele, “a Capoeira oferece muitas variantes para se trabalhar, de forma abrangente, no campo educacional”.

Em suas aulas de Capoeira, segundo sua exposição, desenvolve conteúdos classificados, por ele, em dois grandes grupos, quais sejam:

“Conteúdos Teóricos” — História da Capoeira, incluindo seu

surgimento e evolução, as vertentes Angola e Regional, os

principais Mestres (atuais e do passado), estilos e vertentes

atuais, seus rituais e tradições; as questões sobre a

“desportivização“ da Capoeira, sobre a Capoeira na escola

(em seus aspectos sociais, culturais e artísticos), o seu

desenvolvimento no exterior, bem como, sobre o que

denomina de Capoeira Atual; e, ainda, os aspectos

fisiológicos dos exercícios físicos e dos alongamentos;

“Conteúdos Práticos” — a ludicidade da Capoeira, os

diversos ritmos musicais, o canto e suas interpretações

(denominado Ritmo Vocal); a formação da orquestra na

Roda, bem como a “função de cada ritmo” e dos diferentes

tipos de berimbaus, por intermédio de realização de “oficinas

de ritmo”; exercícios de ginga (e suas variações), “entradas e

saídas”; exercícios de flexibilidade, equilíbrio (dinâmico e

estático) aplicados à Capoeira; “formas de jogo”, “batizados”,

26 Manifesto elaborado por Antonio Batista Pinto (o Zulu) que, abordando questões conceituais sobre a Capoeira e tecendo considerações sobre o seu ensino e sua pedagogia, foi publicado, na década de 1980, em jornais de grande circulação do Distrito Federal.

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“graduações e formaturas” e a Roda de Capoeira,

enfatizando “seus elementos e suas tradições”. Como

“conteúdo prático”, ainda insere em suas aulas a prática do

Maculelê, Samba de Roda, Frevo, Puxada de Rede,

“objetivando a apresentação do grupo em shows e

exibições”.

Ao referir-se sobre a “metodologia” utilizada, o professor faz questão de citar que, para o desenvolvimento dos chamados “conteúdos práticos”, se utiliza, com muita freqüência, do “treinamento intervalado” e do “treinamento em circuito” 27; da realização dos exercícios específicos, individualmente, em duplas, em trios e em filas na Roda; e, também, do que denomina de exercícios “educativos facilitadores da aprendizagem”. Com relação aos ditos “conteúdos teóricos”, utiliza-se de seminários, exposições, palestras, pesquisas (em grupo e individualmente), leitura de reportagens sobre a Capoeira, bem como de livros, dissertações, teses e, também, da exibição de vídeos. Além das estratégias citadas, o professor, ainda, realiza oficinas com Mestres convidados, “aulão”, “treinamentos extras”, intercâmbio com alunos de outras escolas e/ou Grupos (escolhidos à dedo, pelo professor), e competições “simuladas”.

Como parte integrante do que, facilmente, pode ser chamado de Curso de

Capoeira, o professor, ainda, realiza com seus alunos as denominadas “atividades extras”, ou seja, exibições diversas e shows em colégios, feiras de diversas natureza, restaurantes e casas noturnas, eventos esportivos e culturais etc. etc. etc., tendo participado também, durante muitos anos, dos Jogos Escolares Brasileiros-

27 Inovações na área do “treinamento desportivo”, muito utilizadas pelos professores de Educação Física e técnicos de esporte no final da década de 1970 e início da década de 1980, denominadas de Interval Training e Circuit Training.

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JEBs, Jogos Abertos de Brasília, Campeonato Brasileiro de Capoeira, Olimpíadas

Especiais e outros eventos esportivos de projeção local e nacional.

As aulas, a partir de 2001, são realizadas no mesmo turno das demais aulas da escola e não têm mais equivalência como aulas de Educação Física, o que acarretou uma expressiva diminuição do número de alunos. Mesmo realizando um

Planejamento Anual (com objetivos específicos para o respectivo ano, por exemplo:

“aperfeiçoar os movimentos que adquiriram no ano passado”), como manda o figurino, as aulas “são planejadas diariamente” e não se desenvolvem de uma única maneira: um dia pode ser uma Roda, outro um “treino livre dos movimentos”, no outro apenas exercícios em duplas etc.

Segundo o professor, no início houve muita resistência da escola, dos pais e dos outros professores da escola, porém, hoje, a relação é muito boa, não apenas com os pais dos alunos, com os quais se reúne sistematicamente, como com a direção da escola, que já reconhece os benefícios da Capoeira para os alunos, tanto que o espaço utilizado (com exclusividade) é um espaçoso e arejado galpão, construído com recurso obtido por intermédio do patrocino de uma importante e conhecida agência financeira. No entanto, com as outras disciplinas curriculares, ainda não conseguiu um entrosamento satisfatório, pois, raramente a Capoeira consegue espaço entre os conteúdos ministrados pelos outros professores, exceção feita quando algum aluno consegue fazer um trabalho escolar elegendo-a como tema. Para ele, ainda, deveria haver um incentivo maior para que o aluno participasse das atividades, como por exemplo, “valer pontos para a Educação

Física”; deveria haver um esforço para “massificar a Capoeira”, inclusive, inserindo-a

“na aula de Educação Física e no currículo do Curso de Graduação em Educação

Física, como as demais modalidades esportivas”.

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Os instrumentos musicais utilizados pelos alunos são por eles construídos, com matéria prima trazida por eles, por ocasião da realização de oficinas específicas para isso. Além de terem a responsabilidade da conservação desses instrumentos, é tarefa, ainda, dos alunos, a limpeza do galpão e da sala onde guardam o material utilizado nas aulas e que também faz as vezes de secretaria.

De acordo com a declaração do professor, essas aulas na escola não podem ser consideradas como um desdobramento das atividades do Grupo de Capoeira que lidera, mas sim, como um incentivo para que o aluno venha participar dele. No entanto, fica claro que, pelo menos no que se refere ao aspecto administrativo, as atividades se confundem, pois o espaço físico da escola, pode-se dizer, é o endereço, a sede, do Grupo, haja vista servir também de local de guarda do material, fichas de inscrição e a utilização nas aulas, pela maioria dos alunos, do uniforme do Grupo etc.

O professor mostra-se preocupado com a formação de princípios e valores

éticos quanto ao ensino da Capoeira, não apenas com relação aos seus aspectos pedagógicos mas, principalmente, quanto à relação entre a escola e os Grupos de

Capoeira, e não perde a oportunidade de tecer severas críticas àqueles que “têm más intenções e vão para a escola aliciar alunos para os seus grupos”.

No terceiro e último CID de Capoeira, a sua prática realiza-se também às segundas, quartas e sextas, nos períodos matutino e vespertino, atendendo quatro turmas compostas de alunos entre sete e dezoito anos. Seu professor, também pertencente ao quadro da Secretaria de Educação, com escolaridade de nível superior e com cursos de pós-graduação (especialização) em Didática e em

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Metodologia do Ensino Superior, há trinta e cinco anos pratica Capoeira e, há mais de vinte, lidera um conhecido e importante Grupo de Capoeira do Distrito Federal.

As atividades do CID são divulgadas à comunidade, em geral, por intermédio de um Cronograma de Atividades que, trazendo no alto o nome do Grupo liderado pelo professor (como em um papel timbrado), informa os diversos horários nos quais serão realizadas até o final do ano, bem como o tipo/nível dos “treinamentos”. Desta forma, tem-se conhecimento que os “Treinamentos Fundamentais”, compostos de

“segmentos solitários e polifonia”, “segmentos duplos e acrobáticos” e “formas de jogos e saroma”, são realizados, respectivamente, às segundas, quartas e sextas; o

“Treinamento Diversificado”, os “Treinamentos Livres” e os “Treinamentos de

Docência” são realizados em dias específicos previstos no citado Cronograma; e, ainda, os “Treinamentos Especiais” e as “Rodas Abertas de Capoeira” realizam-se aos sábados, em horário especial, nos dias previstos no Cronograma. Do mesmo

Cronograma consta, ainda, o período destinado à matrícula dos alunos denominados de “novatos”.

As aulas são ministradas em um amplo salão, muito limpo e organizado pelo professor, que é parte de um conjunto de prédios alugados, mesmo que este não tenha conhecimento, pela Secretaria de Educação, para o funcionamento de uma de suas escolas. No piso do salão, encontram-se, milimetricamente demarcadas algumas figuras geométricas (círculos, quadrados, retângulos e vértices de triângulos eqüiláteros), que são utilizadas como referências para a realização dos movimentos demonstrados pelo professor e, também, para o aprendizado dos golpes da Capoeira e para a realização das Rodas. Segundo o professor, essas marcas ajudam, sobremaneira, os alunos a aprenderem a usar o espaço que, momentaneamente, dispõem e, também, servem para delimitar o seu uso conforme

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a idade dos alunos e as atividades que serão, por eles, desenvolvidas: por exemplo, o círculo menor, é utilizado para a realização das Rodas, das quais participam os alunos com até treze anos e, o círculo maior, para a realização de Rodas com alunos mais velhos e/ou de “convidados externos”.

Esse mesmo salão, bem iluminado e arejado, ainda conta com uma pequena mureta, um portão (ao lado do qual localiza-se uma atenciosa e dedicada professora que, exercendo um papel misto de secretária e assistente, dentre outras atribuições, controla o fluxo de entrada e saída dos alunos, a freqüência, dos mesmos, que é anotada em um Diário de Classe, específico dos CIDs, o volume do equipamento de som etc.) e um palco, no fundo do ambiente, que ocupa toda a largura do salão, com uma altura de, aproximadamente, trinta centímetros. Na parede que fica próxima da entrada do salão, encontra-se um armário de aço que o professor mandou confeccionar especialmente para guardar (a sete chaves) os instrumentos (que não são confeccionados pelos alunos) utilizados nas aulas, e um outro (também de aço, igual àqueles que, geralmente, são utilizados nos vestiários de clubes esportivos, saunas e academias de ginástica) no qual são guardados (também, trancados com chaves) livros, fitas de vídeo e outros papéis e/ou documentos, de propriedade do professor, julgados de grande importância e, segundo afirma, “disponíveis aos alunos”. Na parede oposta, “partituras”, que contêm os principais toques de berimbau, representados, graficamente, conforme um peculiar método de aprendizagem de sua execução, criado pelo professor.

As turmas são formadas conforme o nível de aprendizagem dos alunos

(quatro níveis) e, utilizando-se, conforme relata, de uma metodologia de base teórica, fundamentada no construtivismo (entendido como “complexidade”, como maior variedade/quantidade de atividades a serem realizadas), porém optando pelo

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“fracionamento dos movimentos” como “estratégia para alcançar uma melhor aprendizagem”, o professor afirma que “a aprendizagem é interação com o meio” e

“a organização didática serve para que o aluno perceba o que faz”, como por exemplo, “a diferença entre um jogo e outro”. É necessário, pois, que o aluno

“conheça para construir o conhecimento”.

As aulas, seguindo, também, o arquétipo das aulas de Educação Física tradicionais, já referido, são ministradas conforme um “planejamento anual”, “de unidade” e “de aula”, elaborado pelo professor, tendo como referência principal: nas segundas-feiras — o treinamento individual, realizado com cada aluno dentro de um dos quadrados marcados no piso, e praticando os exercícios que denomina de

“polifonia”, que constituiem-se de “toques, composição instrumental, vibrações psicossomáticas e cantigas”; nas quartas-feiras — treinamento em duplas, trocando de parceiros conforme a determinação do professor, finalizando a aula com movimentos acrobáticos; e, finalmente, nas sextas-feiras — a realização, “como elementos pedagógicos e táticos”, do que chama de “formas de jogos”, e a execução da dança Maculelê.

Importante ressaltar que, como afirma o professor, aos alunos, ao “treinarem” o confronto com um adversário, por ocasião da realização das “formas de jogos”, são atribuídos pontos diversos conforme o desempenho apresentado, ou seja: um ponto, quando o golpe é desferido e não atinge o adversário; dois pontos, quando há um leve toque no adversário; três pontos, quando o adversário, como conseqüência do golpe, sai da área demarcada para o jogo/combate; quatro pontos, quando o golpe consegue, apenas, desequilibrar o oponente; e, finalmente, cinco pontos, quando, pela eficácia do golpe desferido, o oponente é levado à queda!

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Ainda como uma atividade prevista no Planejamento Anual, em uma das quartas-feiras do mês, os alunos exercitam-se, especificamente, em uma outra sala, especialmente preparada com colchões de ginástica olímpica forrando o solo, nos chamados “movimentos acrobáticos” e, ainda sob a supervisão do professor, uma vez por mês, realiza-se o denominado “Treinamento de Docência”, no qual os alunos mais graduados devem dar uma aula de Capoeira, na qual inclui-se, obrigatoriamente, uma palestra destinada aos alunos mais novos. Para o professor, a palestra, dentre outros aspectos, tem o sentido de “valorização do saber do colega”.

Conforme constatação do professor, a procura pelas aulas de Capoeira diminuiu bastante, pois as mesmas não têm mais equivalência com prática da

Educação Física curricular. Desta forma, ele não comunica mais às Secretarias das escolas, às quais os alunos estão vinculados, os resultados da avaliação da aprendizagem que realiza. Tal avaliação, que se constitui inclusive de uma prova escrita, só é realizada, hoje, como instrumento de aferição do “nível de desenvolvimento do aluno”, tendo em vista a sua ascensão (ou não) aos patamares previstos no “Sistema de Graduação” adotado pelo Grupo.

Na sétima escola visitada, o fenômeno Capoeira manifesta-se de forma diferente das demais, até agora, descritas. Seu professor, concursado da FEDF, também com escolaridade de nível superior e com cursos de pós-graduação

(especialização) em Metodologia do Ensino Superior e em Planejamento

Educacional e Administração Escolar, tendo aprendido Capoeira na escola, possui trinta anos de prática, e, além de ser professor de outra disciplina, classificada como curricular, ministra, voluntariamante, as aulas de Capoeira, em todos os dias da

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semana, no período noturno, para alunos de diferentes idades (de crianças a adultos), no pátio, interno e coberto da escola, ou em uma pequena sala que, para tal, foi destinada pela Direção.

O professor está muito atento à questão corporal, e tem percebido que muitos alunos que iniciam a prática da Capoeira são portadores de problemas posturais, principalmente, as bem conhecidas sifose e lordose. Desta forma, começou a buscar uma maneira para conseguir minimizar tais deficiências e, auxiliado por um professor de Yoga (que é voluntário), chegou à opção de juntar a Capoeira com a Yoga, tendo como principal recurso metodológico, no momento do aprendizado dos golpes, a “execução estática, como na Yoga”, dos mesmos. A Capoeira, para ele, “é uma

Yoga dinâmica”, “é a soma da postura com a musicalidade”.

Como parte do Programa de Capoeira que desenvolve na escola, o professor se utiliza também de “animadas caminhadas” e da realização de percursos em bicicletas, como uma forma eficaz para o desenvolvimento da força dos membros inferiores e do espírito de grupo, ocasião em que adentram o cerrado à procura de cabaças e vergas para a confecção de berimbaus, buscando, com algum sucesso, a intersecção entre as atividades de Capoeira e os pressupostos, princípios e propostas da Educação Ambiental.

As suas aulas, também, seguem os paradigmas de uma aula de Educação

Física tradicional, sendo reservados , no mínimo, vinte minutos para uma sessão de alongamentos, “usando os princípios da Yoga (estático e lento)”; aproximadamente, quarenta minutos para “trabalhar a musicalidade”, momento esse no qual, além de ensinar as cantigas da Capoeira, também ensina os diferentes toques, por intermédio de um método criado por ele, há mais de vinte e cinco anos; trinta minutos para a “aprendizagem e fixação” dos golpes da Capoeira, realizando três

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séries de exercícios, como os conhecidos Katas, realizados pelos judocas e caratecas28, compostos pelos principais golpes, criados por ele; e, para finalizar, trinta minutos para a realização da Roda.

Considerando que a Educação é “um processo de intercâmbio de informações, visando o desenvolvimento pessoal e social” dos alunos, e que a

Escola é “o local aparelhado para o desenvolvimento do processo educativo” mencionado, o professor não titubeia em ressaltar, a todo instante, a importância da prática da Capoeira na Escola. Para ele, por ser a escola o “local básico para a construção mais sistematizada e ‘Acadêmica’ da cidadania”, ela se torna, sem sombra de dúvida, “o ponto de encontro de alunos e professores, além de outros segmentos envolvidos no processo educativo”. Nesse verdadeiro “caldeirão cultural em que a escola acaba se transformando”, a Capoeira deve ser praticada de forma transdisciplinar, permitindo, assim, a “oportunidade de concretizar, através do lúdico, informações cognitivas repassadas durante a transmissão de conhecimentos historicamente sistematizados”.

Reivindicando maior “apoio jurídico, técnico e científico” para melhorar a eficácia do desenvolvimento de ações que objetivem “a consolidação da Capoeira como processo educativo desenvolvido na escola”, o professor ainda alerta para o fato de que, na escola, “a Capoeira teria a oportunidade de contar com a assistência de educadores de diferentes áreas do conhecimento”, fato esse que, sem sombra de dúvida, contribuiria “com a sua participação em envolvente processo pedagógico, cuja prática consolida a sua definitiva fixação e enraizamento no processo educativo”.

28 Séries de exercícios realizados, individualmente, sem ter confronto com adversário, como uma forma de, principalmente, buscar a melhor performance na execução dos golpes e exercitar a concentração.

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Na oitava unidade escolar escolhida para realizar a observação de como se manifesta o fenômeno Capoeira, o professor é um jovem de vinte e sete anos que é funcionário da secretaria da escola e, no período noturno, é aluno do Curso de

Graduação em Educação Física, em uma das instituições de Ensino Superior da

Capital Federal, onde tem aulas de Capoeira com o seu Mestre. Ministra seus ensinamentos com a autorização da Diretora da escola, duas vezes por semana, nas

últimas horas destinadas ao seu trabalho, para meninos e meninas, alunos da

Educação Infantil (com seis anos) e das séries iniciais do Ensino Fundamental, além dos alunos de outras escolas que também participam.

Todas as segundas e quartas-feiras, quarenta alunos se reúnem no pátio, interno e coberto, da escola e, com grande entusiasmo, chegam aos poucos e logo perguntando ao professor se “hoje vai ter Roda” ? Tal pergunta é repetida inúmeras vezes durante todo o tempo de duração da aula!

O uso do uniforme de Capoeira (calça e camiseta brancas) não é obrigatório todos os dias; apenas em ocasiões especiais os alunos devem apresentar-se com eles. Alguns alunos, porém, usam o uniforme do Grupo de Capoeira a que pertence o professor e, por extensão, eles próprios. Aqueles que já “estão mais adiantados” usam os tais cordões na cintura, que é a representação da “graduação que têm no

Grupo”.

Nessa escola, as atividades também são pautadas pelos padrões das aulas de Educação Física tradicionais, com uma parte destinada ao Aquecimento

(exercícios de alongamento) e, no que seria a Aula Propriamente Dita, os alunos dispostos em fileiras (como nas academias modernas de ginástica e na maioria das aulas de Educação Física), voltados para o professor, executam, acompanhados por músicas de Capoeira que são tocadas em um pequeno aparelho de som, alguns

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movimentos específicos da Capoeira e também pequenas seqüências de golpes, tais com armada-e-rolê, ginga-e-aú, armada-e-meia-lua, e assim sucessivamente, partindo a execução do lado direito do corpo e depois pelo lado esquerdo. Os exercícios, há de registrar-se, são feitos sem que o professor realize correções importantes ou faça orientações fundamentais. Os alunos iniciantes formam um subgrupo em um dos cantos do pátio e, sob o comando de uma aluna mais velha e mais antiga (com, aproximadamente, dezoito anos de idade), executam, após a rápida orientação do professor, alguns dos movimentos básicos de Capoeira.

Num segundo momento da aula, ao som de músicas de Capoeira, os alunos formam dois círculos e jogam entre si. Em um deles ficam os alunos mais antigos e, no outro, contando com maior atenção do professor, os novatos. Após alguns minutos dessa atividade, há uma pausa para um pequeno descanso, mesmo que a grande maioria dos alunos ainda permaneça ali, brincando ou jogando uns com os outros.

Terminado o descanso, o professor pega um berimbau, e um dos alunos mais antigos, um pandeiro, e é dado início, como última parte da aula, a tão esperada

Roda de Capoeira que, mesmo sendo uma atividade prazerosa e muito aguardada, o professor, sempre atento, tem que, vez por outra, chamar a atenção de um ou outro aluno que não está prestando atenção, ou que está conversando ou, ainda, que saiu da Roda e encontra-se fazendo outra coisa. Quando a situação se agrava, o professor interrompe a atividade e tece comentários tentando demonstrar que a

Roda é semelhante à sala de aula: “quando o professor tá falando, tá explicando os alunos têm que ficar calados escutando, prestando atenção”, pois se isso não acontecer “não aprendem nada e atrapalham o professor”!

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O professor, a exemplo dos demais entrevistados, atribui à Capoeira, dentre outras, a qualidade de ser uma excelente coadjuvante para o processo de educação dos alunos, em sala de aula, alegando que antes de haver essas aulas, havia “muita briga entre os alunos”, e concebe-a com uma “arte-luta”, “um esporte como outro qualquer”, ou seja, um esporte que não merece ser discriminado e nem alijado dos espaços da prática esportiva, considerados nobres. Em sua metodologia de ensino, utiliza-se de vídeos, revistas, notícias de jornal, que abordam a Capoeira e, assim, como afirma um dos alunos, “ele passa a parte da cultura, do folclore, da defesa pessoal”. Na medida do possível, o professor, também, oportuniza encontros de intercâmbio com alunos de outros Grupos e outras escolas, como por exemplo, a participação em um “Campeonato de Capoeira” a ser realizado, em breve, na cidade vizinha de Paracatu (MG), para o qual “os alunos estão treinando bastante”!

Para os alunos, a Capoeira aprendida na escola é uma atividade que se torna muito importante, na medida que, por seu intermédio, eles aprendem a fazer amizades, a respeitar os colegas, a serem disciplinados, a defender-se dos “perigos lá de fora, e “é muito melhor do que ficar na rua sem fazer nada ou fazendo o que não deve”, além de ser um excelente meio para a manutenção do condicionamento físico. A escola, para eles, mesmo que não a conectem, imediatamente, com o momento presente, com o hoje, é o lugar de, também, aprender a respeitar o outro, de aprender coisas boas, de aprender a disciplina, para que possam “ser alguém na vida”, “para não ser um João-Ninguém” ! Daí, o “casamento perfeito” entre a

Capoeira e a escola, pois “são iguais”: nela, aprende-se “a disciplina, o respeito, a ser alguém”! É também um lugar seguro, tendo em vista “a violência do mundo lá de fora”, onde “muitos cometem crimes, pertencem a gangues, usam drogas” etc e, por essa segurança oferecida pela escola, a prática da Capoeira também não sofre as

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influências de alguns Grupos que a praticam de forma violenta e como “arma para o mal”!

Na óptica da Diretora da escola, a possibilidade de realização de aulas de

Capoeira “é bom para os alunos porque é uma atividade a mais, que traz o aluno para a escola e o tira da rua, além de trabalhar princípios de solidariedade e respeito nas relações humanas”. Para ela, no entanto, a principal qualidade é a de “tirar os meninos da rua”.

Segundo, ainda, a Diretora, a razão da mudança do comportamento dos alunos que fazem as aulas de Capoeira reside no fato de que “só participa quem é freqüente às aulas [curriculares], quem tem bom comportamento”.

Na nona escola visitada desenvolve-se, três vezes na semana (segunda, quarta e sexta-feira), nos turnos matutino, vespertino e noturno, um projeto denominado Capoeira na Escola, destinado a alunos do Ensino Fundamental, liderado por um professor de Educação Física, do quadro da Secretaria de

Educação, que, além de contar com vinte e cinco anos de prática da Capoeira, ainda possui os cursos de especialização (pós-graduação) em Educação Pré-Escolar e

Capoeira na Escola. As atividades do projeto realizam-se durante os curtos períodos de recreio, por intermédio de pequenas Rodas de Capoeira, ou como aulas de

Educação Física curricular ou, ainda, como aula específica de Capoeira.

O professor em questão é um caso único, entre todos os que atuam na rede pública de ensino do Distrito Federal, pois, já tendo participado de vários Grupos de

Capoeira, não possui nenhuma graduação em Capoeira, e faz questão de afirmar que não é Mestre de Capoeira e sim, um professor de Educação Física que,

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utilizando-se da Capoeira como um dos conteúdos da disciplina que escolheu para ministrar aulas, tem com objetivo principal realizar “um trabalho de iniciação, de sensibilização, para que os alunos possam continuar a aprendizagem nos Grupos de

Capoeira”.

Vencendo a rejeição inicial dos demais professores de Educação Física e contando com o grande apoio da Direção da escola, hoje, as aulas são realizadas no pequeno pátio, interno e coberto, da escola e no salão da Igreja, próximo dali, seja pela necessidade de se utilizar aparelho de som ou porque aparecem muitos alunos.

Nessas aulas, conforme afirma o professor, o que se pretende é “oportunizar a permanência do aluno na escola”, “tirar o aluno das ruas, da marginalidade”! Em sua metodologia de ensino, utiliza-se de aulas expositivas, nas quais transmite “o conteúdo teórico da Capoeira”, como por exemplo a sua história e sua evolução desde o período da escravidão, passando pela Primeira República, pelo Estado

Novo até chegar nos dias atuais, objetivando, principalmente, que os alunos

“compreendam de onde ela veio, qual a sua origem”, “como se desenvolve hoje, sendo uma atividade cultural-esportiva”; e, também, organiza pequenas apresentações com o grupo de alunos, nas quais, além do jogo, fazem modestas dramatizações com o tema Capoeira.

As chamadas aulas práticas são construídas e realizadas seguindo os padrões das já mencionadas aulas tradicionais de Educação Física, com uma parte destinada ao “aquecimento”, outra aos exercícios de “formação corporal” e uma parte final, com a aplicação dos elementos aprendidos/fixados anteriormente, no momento de realização da Roda de Capoeira. Os exercícios, de caráter geral ou específico, são executados, na maior parte do tempo, ao comando do professor, estando os alunos dispostos em colunas.

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Os alunos, dentre o quais muitos iniciaram o seu aprendizado fora da escola, em outros grupos, segundo informa o professor, “sabem que a Capoeira é uma arma”, porém, nas atividades que participam no âmbito escolar, “não a utilizam como tal”. Utilizam-na como “jogo, como esporte, como um meio para o auto- conhecimento, para a auto-superação”.

Para eles, a escola é concebida, numa perspectiva de preparação para o futuro, como sendo “o lugar para aprender a se dar bem na vida”, “é uma ajuda para a vida, para arrumar um emprego, um ensinamento básico” que dá condições para que seja possível “arrumar um emprego melhor para poder ajudar em casa”. A escola, referindo-se a um pedreiro que “precisa saber matemática” para desempenhar bem a sua função, “ajuda a crescer na vida, sem ela você não tem nada”, afirmam unanimemente. Apenas para um dos alunos a escola “ensina a ler, escrever, geografia, história, coisas antigas que não têm nada a ver com hoje”! Para ele, não faz sentido essa escola e, afirmando que “Estudos Sociais é um tipo de catequese que o professor faz”, pergunta-se: “aprender isso tudo para quê?”. “Que a escola dá futuro, dá... mas é um saco!”, afirma com muita convicção.

A Capoeira, para esses alunos, é uma arte, um esporte, “uma dança misturada com esporte”, “uma forma de conhecer as pessoas e fazer camaradagem”, e, praticada na escola ela não apresenta as características, vinculadas à violência, encontradas nos Grupos de fora. Muitos dos alunos admitem que seus pais permitem que “façam Capoeira” porque essa prática acontece dentro dos muros da escola, sob a orientação de um professor e responsabilidade da

Direção.

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Pelos relatos apresentados, é possível concluir que, tendo em vista a manifestação do fenômeno Capoeira no âmbito das escolas da rede pública do

Distrito Federal :

• no que se refere ao fenômeno educação, prevalece as visões tradicional-modeladora e moderno-domesticadora, identificadas no segundo capítulo, as quais enfatizam a necessidade, defendida pela classe dominante, de manutenção do status quo, por intermédio da tentativa de modelar o homem conforme os seus valores e significados, bem como pela adoção de estratégias que possam impedir as tentativas de ascensão das outras classes sociais, utilizando-se, com relativa eficácia, do desenvolvimento de processos de alienação, adestramento e domesticação, principalmente dos homens que constituem as classes populares. A visão emergente-emancipadora, também citada no segundo capítulo, a qual, opondo-se às visões anteriores, concebe como sendo fundamental o desenvolvimento da autonomia do homem, de sua emancipação, de seu pensamento crítico, de sua criatividade, de sua participação efetiva na construção do mundo em que está, de seu entendimento de pertencimento a esse mesmo mundo, admitindo a possibilidade de sua transformação, surge, timidamente, nas concepções contidas, implícita ou explicitamente, nos discursos e na prática dos atores sociais que participam, direta ou indiretamente, dessa manifestação;

• no que se refere aos sentidos atribuídos à Escola, prevalece, nas concepções daqueles que, diretamente ou não, estão vinculados ao processo da prática da Capoeira na escola, ora a visão neutro- constituinte — que a concebe como apartada do contexto social, tendo como papel constituir, criar, formar a sociedade, ao lado de outras instituições, e, tendo como função, contribuir para o equilíbrio

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e sobrevivência dessa mesma sociedade —, ora a visão sistêmico- reprodutora — que a concebe como parte integrante do sistema social, tendo como papel ser um dos aparelhos, mecanismos, instrumentos de manutenção da hegemonia da classe dominante, e, como função, reproduzir os pressupostos e ideologia da sociedade capitalista, ambas identificadas no terceiro capítulo. Constata-se, também, que a visão, identificada no mesmo capi- tulo citado, denominada de estratégico-transformadora — que concebe a Escola como parte constitutiva da sociedade civil, tendo como papel ser um espaço de realização da contra-ideologia da classe dominante, e, como função, participar efetivamente do pro- cesso de contra-hegemonia necessário à transformação e recriação da estrutura e funcionamento de nossa formação social —, pode ser percebida, em raríssimos momentos, fragilmente enunciada, nos discursos daqueles que, de uma forma ou de outra, encontram-se vinculados à prática da Capoeira no âmbito citado;

• no que se refere ao fenômeno Capoeira, prevalece a visão, identificada no capítulo quatro, denominada de moderno-esportiva — que, surgindo no âmbito da classe média (principalmente entre aqueles simpatizantes e adeptos do militarismo) e alimentada pela pretensão da realização de uma assepsia social e de esterilização das “exóticas” manifestações populares, fundamenta-se nos pressupostos e premissas do chamado Esporte Moderno e, concebendo-a como uma de suas modalidades de luta, preconiza a sua padronização, por intermédio de normas e regras universais “cientificamente” elaboradas, refletindo, assim, os valores e ideais da sociedade burguesa. É possível perceber que, mesmo não sendo valorizada como a melhor concepção nos dias atuais, a visão tradicional-popular (também identificada no capítulo quatro) — que a concebe como uma manifestação cultural cujos fundamentos, oriundos da sabedoria popular, em seu dinamismo, são transmitidos, de geração a geração, no âmbito da relação mestre-aprendiz, considerando,

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principalmente, as suas perspectivas de luta, dança, defesa pessoal e ginástica, as quais se realizam, respeitando a heterogeneidade de seus participantes, por intermédio do jogo, em momentos de diversão, de ócio, como brinquedo e brincadeira ou nos momentos de busca pela sobrevivência, como arma —, está presente, na maioria dos casos, apenas implicitamente, no que os seus atores sociais, principalmente os professores, interpretam como sendo a sua história, a sua origem, as suas raízes mais profundas. A visão, identificada no mesmo capítulo, denominada de existencial-compreensiva — que compreendendo suas manifes- tações como eventos sinérgicos que refletem e contêm o todo, fundamenta-se no princípio da intersubjetividade e, enfatizando a sua perspectiva de Educação, como o processo de aprender a ser- no-mundo, utilizando-se de uma pedagogia da existência, concebe- a como uma linguagem polissêmica, por intermédio da qual o seu praticante significa a si mesmo, o outro e o mundo —, em nenhum momento é contemplada, implícita ou explicitamente, na prática e nos discursos dos atores sociais que, direta ou indiretamente, vinculam-se a sua manifestação no contexto estudado.

Contrariando a interpretação metafísico-idealista29, de Noel Rosa, sobre a relação homem-mundo-fenômeno, ao criar a letra para a melodia composta por

Vadico, em 1933, em que deixa claro a sua concepção de que há apenas um samba que, por ser criação daqueles que não tiveram a oportunidade de ter acesso a uma escola e a uma educação de qualidade, não pode ser aprendido num colégio que sempre os excluíram e os desvalorizaram (o samba e seus criadores); mas, porém, concordando com que, com uma visão dialético-fenomenológica30, dessa mesma relação, considera que o samba, “moldado no ambiente urbano do Rio

29 Ver sua definição expressa, na página 3, do capítulo primeiro deste estudo. 30 Idem

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de Janeiro sofreu com o passar do tempo, modificações estruturais que se processam até hoje”31, identificando, por isso, trinta e cinco formas, principais, de sua manifestação, tais como os bem conhecidos samba de breque, o sambalanço, o samba-canção, o samba-duro, o samba-exaltação, o samba-regaae, o samba-rock, o samba-de-roda, o samba de viola e o samba-sincopado32, é possível admitir, como descrito nesse capítulo, que também se aprende Capoeira na escola, mesmo que não seja a sua forma considerada, por alguns, como sendo a mais adequada ao desenvolvimento de um processo de educação emancipadora, realizado no âmbito de uma escola cidadã, democrática e libertadora.

“Abre o zóio, Sirí-de-Mangue Todo tempo, não é um. Pois a maré de março É a maré de guaiamum ...”33

31 Cf. Nei Lopes, Sambeabá: o samba que não se aprende na escola, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, Folha Seca, 2003, p. 16 32 Idem, ibid., p. 16-22 33 Cantiga entoada por Mestre Waldemar da Pero Vaz, em suas inconfundíveis Rodas de Capoeira na Cidade do Salvador, Estado da Bahia.

“Só boto be bop no meu samba Se o Tio Sam tocar um tamborim Quando ele pegar no pandeiro e na zabumba Quando ele aprender que o samba não é rumba”

Gordurinha&Castilho

CAPÍTULO VI

“Para manter-se de pé na arena movediça do racismo brasileiro, a Cultura Negra negaceia e negocia” Nei Lopes

Tá legal, eu aceito o argumento ...

“ Tá legal, eu aceito o argumento Mas não me altere o samba tanto assim Olha que a rapaziada está sentindo a falta De um cavaco, de um pandeiro e de um tamborim”1

Contam, também, no mundo do samba, que Paulinho da Viola, como dizem,

“nascido e criado no samba”, ouvindo, vendo e curtindo, desde menino, seus grandes compositores e intérpretes da magnitude de Zé Kéti, , Nelson

Cavaquinho, Monarco, Jacob do Bandolim, Mijinha, Aracy de Almeida, Aracy Cortes e outros, não menos importantes, à medida que, fora do horário do expediente do banco em que trabalhava, se dedicava aos estudos de música e, principalmente, realizava pesquisas sobre a nossa música popular (concentrando-se no estudo do

Samba e do Choro), cada vez mais se aprofundava na questão do resgate da valorização de suas raízes, sempre que possível divulgando-as em seus discos, entrevistas aos meios de comunicação de massa e nos espetáculos artísticos dos quais participava ou era o protagonista.

Paulinho da Viola, então, constata, pelo crescimento da influência da ação empreendida pela indústria cultural brasileira, que no âmbito das, quase centenárias,

Escolas de Samba, principalmente, as tradicionais pastoras vão, involuntariamente,

1 Argumento, Paulinho da Viola, 1975

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cedendo lugar às “madames” — referindo-se, certamente, a ascensão dos conhecidos “destaques” em gigantescos carros alegóricos, em detrimento do chamado “samba no pé”; constata, também, a dificuldade encontrada pelos intérpretes e compositores, por ocasião, principalmente, dos ensaios nas quadras das Escolas, em cantar um samba, pois, como esclarece Paulinho, “se é puxado um samba mais lento, chamam de ladainha” e para ser ouvido “é preciso gritar o samba, porque a bateria vem num pique só”, fatos esses que fizeram, indiscutivelmente, com que o “povo do samba”, cada vez mais, fosse dele se afastando. Percebe, também, que muitos sambistas genuínos, autênticos, não suportando o que alguns chamavam de “profissionalização” do samba, passaram a preferir o convívio com o entusiasmo dos grupos pequenos aos “espetáculos padronizados”, realizados na avenida, concebidos e dirigidos obedecendo aos padrões da indústria cultural, chamados, por alguns carnavalescos ditos “revolucionários”, de “o maior espetáculo da terra”.

Em 1975, portanto, Paulinho da Viola, não tolerando mais a chamada

“bolerização do samba”, embora aceitando os arranjos musicais modernos, inúmeras vezes conversa, séria e profundamente, com os portelenses sobre a questão da descaracterização das Escolas de Samba, descaracterização essa ocorrida, principalmente, por intermédio da infiltração de elementos estranhos a elas, de concepções e quefazeres vindos da classe dominante e dos meios de comunicação de massa, sob a liderança da televisão, que interfere desde como deve ser o andamento do Samba de Enredo, tendo em vista o período destinado ao desfile de cada Escola, até como devem ser confeccionadas as fantasias, alegorias e adereços! Para alguns, na época, tais fatos tratavam-se de elementos constitutivos e inevitáveis do “processo evolutivo do samba”, e em resposta a essas “explicações” e

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“justificativas” simplistas e desprovidas de criticidade, antes de desligar-se da Portela e com outros sambistas que compartilhavam dessa “luta de resistência” fundar a

Escola de Samba Quilombos, em abril de 1975, afirmando que “sem preconceito ou mania de saudade” e, tampouco, “sem querer estar do lado de quem não quer navegar”, ele, tal como um velho marinheiro “que durante o nevoeiro leva o barco devagar”, aceita tais argumentos defendidos pelos adeptos do tal “processo evolutivo”, porém, enfatiza que não é preciso, por isso, alterar o samba tanto assim, alertando para o fato de que “a rapaziada está sentido a falta de um cavaco, de um pandeiro e de um tamborim”!

Com esse antológico samba, em tom maior, Paulinho da Viola procura alertar a todos — tanto aos que “são da avenida” como aos que “são das galerias” — que, por mais que seja impossível evitar o desenvolvimento do inegável dinamismo cultural, é vital a preservação das raízes histórico-culturais constituintes do fenômeno Samba, não apenas como uma manifestação cultural, popular e espontânea (dança, letra e música/melodia), mas, principalmente, por constituírem, também, o chamado “Mundo do Samba”, um espaço sui generis de significação, tal como a Capoeira e o Candomblé, dentre outras manifestações da cultura afro- brasileira — o âmbito, entre outros possíveis, no qual alguns homens e mulheres realizam a sua existência; um espaço de realização do Dasein, citado no primeiro capítulo.

Por certo, essa “descaracterização” das Escolas de Samba e do próprio

Samba, como denominam alguns de seus críticos mais radicais, ou essa

“modernização”, como classificam os que defendem a “atualização” dessas manifestações face aos “tempos modernos”, não ocorre apenas a partir do período no qual Paulinho da Viola a identificou e a denunciou e, tampouco, foi ele o único a

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ocupar-se, efetivamente, dessa questão, haja vista a participação contundente de

José Ramos Tinhorão e a de Nei Lopes nesse processo de preservação de nossas raízes culturais.

O Samba, como afirma Tinhorão, nasce como “gênero carnavalesco” (como gênero musical, portanto) em decorrência da simbiose de ritmos negros-baianos, com motivos remanescentes do final do século XIX — realizada por compositores cariocas das “camadas baixas da cidade”, oriundos da zona rural (tendo Sinhô como o seu principal expoente) —, criado e executado, apenas, à base de instrumentos de percussão, tendo em vista a situação econômica de seus criadores que não lhes permitia a posse de instrumentos mais sofisticados, como os de sopro, por exemplo.

Logo após o seu surgimento, porém, por intermédio dos “primeiros profissionais” do ramo (pertencentes à classe média), os quais, meteoricamente, ocupariam significativo espaço no radio e na indústria fonográfica, passa a sofrer forte influência da música norte-americana veiculada, principalmente, pelas famosas jazz-bands e, diante da conseqüente atuação de alguns orquestradores brasileiros da época, o samba é dominado pela classe média, que o lança “comercialmente como música de dança de salão”2.

A partir, então, de 1930, na interpretação de Tinhorão, surgem três “tipos de samba”, os quais classifica de acordo com a camada sócio-econômica a que se dirigiam e, ainda hoje, se dirigem. Assim, tem-se o Samba de Morro — destinado aos descendentes dos negros da zona da Saúde, pobres, que, expulsos pelo processo de valorização imobiliária do centro da cidade do Rio de Janeiro, tiveram que “subir o morro”, restando-lhes apenas a memorável Praça Onze como espaço para desfrutar as poucas horas de lazer, pois os ricos e remediados instalaram-se

2 Cf. José Ramos Tinhorão, Música popular: um tema para o debate, São Paulo, Ed. 34, 1997 p. 20

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em Copacabana, a decantada “Princezinha do Mar”; o Samba Sincopado — também conhecido como Samba de Gafieira, dirigido à classe média-baixa, que a ele aderiu, imediatamente; o bem conhecido Samba Canção — bem ao gosto das pessoas que se enquadravam no que se poderia chamar de classe média-médiacujo desdobramento resulta, finalmente, no chamado “aboleramento do samba-canção”, como uma tentativa, da classe média-alta, de travesti-lo com o balanço e as características dos fox-blues, “tocados por orquestras de gosto internacional no escurinho das boates”, antecedendo o surgimento da famigerada Bossa Nova, concebida, por Tinhorão, como uma das etapas do “processo de alienação a que é submetida modernamente a classe média”, não apenas do Brasil, mas dos países ditos subdesenvolvidos3 e como o ápice do processo de divórcio com a tradição do

Samba e suas raízes culturais, chegando a alterá-lo “no que lhe restava de original, ou seja, o próprio ritmo”, fruto da correlação existente entre “as batidas do samba tradicional e a intenção rítmica das camadas baixas da população, onde negros, mestiços e brancos se nivelam na baixa condição econômica” 4.

Essa trajetória do processo de manifestação ou de desenvolvimento do

Samba não se esgota nessa interpretação de Tinhorão, haja vista, dentre outras, a já citada classificação de Nei Lopes que a ele atribui trinta e seis formas diferentes de estruturação, como decorrência de “interferências de toda ordem” que transformaram, efetivamente, “a velha matriz” 5, e, também, a interpretação, menos sofisticada e mais romântica, de Cartola e Carlos Cachaça quando afirmam que

3 Idem, ibid., p. 62 4 Idem, ibid., p. 20-37 5Cf. Nei Lopes, Sambeabá: o samba que não se aprende na escola, Rio de Janeiro, Casa da Palavra/Folha Seca, 2003, p. 16

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“Os tempos idos, nunca esquecidos, trazem saudades ao recordar É com tristeza que relembro coisas remotas que não vêm mais Uma escola na Praça Onze, testemunha ocular E perto dela uma balança onde os malandros iam sambar Depois aos poucos o nosso samba, sem sentirmos se aprimorou Pelos salões da sociedade sem cerimônia ele entrou Já não pertence mais à praça, já não é samba de terreiro Vitorioso ele partiu para o estrangeiro

E muito bem representado por inspiração de geniais artistas O nosso samba, humilde samba, foi de conquistas em conquistas Conseguiu penetrar no Municipal Depois de percorrer todo o universo Com a mesma roupagem que saiu daqui Exibiu-se pra Duquesa de Kent no Itamarati”6

No que se refere às Escolas de Samba, o processo de sua “evolução” ocorreu, como esclarece Tinhorão, de forma semelhante ao do Samba, pois — originadas que foram nos Ranchos de Reis, paganizados por ocasião do Carnaval

Carioca, no mínimo desde 1870, pelos migrantes nordestinos da zona rural —, surgem no final da década de 1920, como um dos efeitos causados, indiretamente, pelo processo de valorização imobiliária, já citado, e fundamentadas e consolidadas por intermédio da “solidariedade de grupo”, permanecendo, segundo a interpretação de Nei Lopes, até o final da década de 1950, como “organizações político- ideológicas” que buscaram, com sucesso, ocupar o espaço, a elas negado, no

6 Tempos Idos, Cartola & Carlos Cachaça, 1977

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“carnaval branco da ‘avenida’ e em todo o contexto embranquecido da ‘cultura’ oficial”7.

Como é possível constatar, pelo relato de José Ramos Tinhorão, desde que a

Escola de Samba Deixa Falar, do Estácio, fundada pelo legendário , dentre outros, desfilou pela primeira vez, em 1929, “tendo o seu caminho aberto por uma comissão de frente que montava cavalos cedidos pela Polícia Militar” e que

“tocava clarins numa imitação da fanfarra do desfile dos carros alegóricos das grandes sociedade”, até os dias atuais (no polêmico Sambódromo, concebido pelo conhecido arquiteto Oscar Niemayer) por muitas “modernizações” ou

“descaracterizações” tem passado este fenômeno social. A principal mudança ocorrida foi que, de uma simples forma de divertimento de “famílias modestas”, a partir do desfile das Escolas de Samba no intitulado Carnaval do IV Centenário, em

1965 (ocasião concebida por Tinhorão como “o instante histórico do início da sua rápida desagregação como fenômeno folclórico”), tornou-se um grande negócio, como afirma Nei Lopes em artigo de 19968. Na interpretação de Nei Lopes, o desfile das Escolas de Samba, espelhando-se em uma estética própria das academias de belas artes e adequando-se ao “primado da televisão, estética depois ajustada a um organismo neoliberal e paramilitar”, foi tornando-se “repetitivo, igual e chato”, apresentando “um sorriso ‘profissional’ na boca de cada passista, com uma alegria fabricada na batida de cada ritmista. Mas com uma grana violenta no bolso de meia dúzia. Que não é sambista, claro!”9

7 Cf. Nei Lopes, Apresentação, in: BARBOSA, Wilson do Nascimento; SANTOS, Joel Rufino dos, Atrás do muro da noite: dinâmica das culturas afro-brasileiras, Brasília, Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, 1994, p. 8 8 Cf. Nei Lopes, A grande festa, quem diria, ficou chata, O Estado de São Paulo, 25 de fevereiro de 1996, p. 12 9 Cf. José Ramos Tinhorão, Música popular: um tema para o debate, São Paulo, Ed. 34, 1997 p. 92-102

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Não apenas, por certo, ao enfocar-se as diversas perspectivas da manifestação do Samba e da Escola de Samba é possível notar a ocorrência de eventos que, dia-a-dia, vêm, principalmente pela ação do sistema educacional,

“descaracterizando”, “atualizando” ou, ainda, como concebe Vanda Machado, aviltando, “em suas formas mais autênticas”10, os valores e a identidade da cultura do povo e, primordialmente, dos fenômenos culturais afro-brasileiros,

No âmbito das religiões afro-brasileiras, por exemplo, tal interferência (da ideologia da classe dominante) mostra-se (como aponta Marilena Chauí, ao comentar sobre os estudos realizados por Patrícia Birman e Zélia Seiblitz sobre, principalmente, a Umbanda) quando se toma conhecimento da classificação de

“prática social ilegítima e juridicamente ilegal” atribuída às figuras do Babalorixá ou do Pai-de-Santo e da Ialorixá ou da Mãe-de-Santo, que, submetidos aos pressupostos e premissas do discurso médico-psiquiátrico são tidos como curandeiros e curandeiras, tornando possível, tal veredicto, rotular “a religião afro como perigosa e sujeita à repressão policial”, ou ainda, quando estigmatizada, sociologicamente, tentar torná-la “indigna ou menor”, por intermédio do seu

“embranquecimento”, da “perda da pureza africana originária”, da “quebra da tradição” e do chamado “sincretismo”. “À ilegitimidade social e à ilegalidade jurídica acrescenta-se a profanação religiosa”, afirma Chauí, estigmas esses que transformam as religiões afro-brasileiras, indiscutivelmente, em práticas suspeitas, irrecorrivelmente, culpadas e, conseqüentemente, criminosas, forçando-as, para que possam sobreviver, a se submeterem aos padrões e concepções jurídico- administrativos das Federações que, tidas como as entidades máximas de organização e regulamentação das religiões não vinculadas ao Vaticano, atuando

10 Cf. Vanda Machado, O negro, constituinte da sua liberdade. In: LUZ, Marco Aurelio (org.), Identidade negra e educação, Salvador, Ianamá, 1989, p. 70

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também como órgão repressor, são consideradas como possuidoras de “prestígio e de respeitabilidade”, tornando-se assim a instância julgada como competente para

“distinguir entre cultos verdadeiros e falsos e a colocar estes últimos nas mãos da polícia”. As federações, desta forma, como descreve Zélia Seiblitz, utilizam-se de procedimentos específicos tidos como apropriados para “codificar e classificar as práticas ‘corretas’ de pais/mães/filhos/filhas de santo e dos fiéis”, garantindo-lhes, assim, a tão desejada “ imunidade política, social e religiosa” 11.

Na interpretação, radical e contundente, elaborada por Ana Célia Silva, o chamado “sincretismo” atribuído à religião africana (e, por extensão, também às religiões afro-brasileiras) surge do fato de ter sido obrigada, pela violência, “a esconder-se sob as manifestações da religião católica, imposta ao negro” como uma das estratégias constituintes da “ideologia do branqueamento”, que tem por objetivo

“equalizar as diferenças culturais, transformando os segmentos diferentes, como o negro e o índio, em um só povo, o povo brasileiro” e, ainda, o que me parece ser mais grave, pretendendo produzir uma nação branca, por intermédio do “processo de miscigenação, como uma das formas de eliminação do povo negro na constituição da nação brasileira”, intenção essa, segundo afirma a autora, possível de ser identificada já nas propostas, iniciativas e no discurso de ,

Rui Barbosa, Melo Franco e, até mesmo, de Euclides da Cunha, dentre outros12.

Na interpretação, menos contundente, porém enérgica e rigorosa, de Nei

Lopes, tais fatos e ações descaracterizantes ocorrem devido às influências exercidas por “dois poderosos e multifacetados inimigos”, quais sejam, uma visão folclorizante

— que concebe as heranças culturais como “restos de um passado” que, julgando

11 Cf. Marilena Chauí, Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 129 12 Cf. Ana Célia Silva, Ideologia do embranquecimento, In: LUZ, Marco Aurelio (org.), Identidade negra e educação, Salvador, Ianamá, 1989, p. 56-57

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ser preciso preservá-los o faz fossilizando-os e depositando-os “na ‘reserva’ do museu” e não como “um conjunto de forças em processo”; uma concepção internacionalizante — que, em favor de uma “suposta modernidade pop” e aproveitando-se, de forma irrestrita, de todos os avanços da ciência e da tecnologia da atualidade, “propõe a ‘geléia geral’, a simbiose de todos os conteúdos e formas”.

Tais visões, altamente nocivas e nefastas, propiciam que, no primeiro caso, as

“legítimas expressões da criação afro-brasileira sejam valoradas em igualdade de condições com aquelas provenientes de outras origens étnicas”, segregando-as e minimizando-as e, no segundo caso, permitindo que a cultura afro-brasileira seja descarecterizada, deteriorada e diluída, à medida que, face a outras “formas de cultura transnacionais”, é obrigada a expressar-se “numa linguagem sem nacionalidade nem etinicidade, comprometida apenas com a sociedade de consumo”, deixando, assim, de ser o retrato, o brasão, o motivo de orgulho e afirmação de um grupo13.

Quanto à visão folclorizante, apontada por Nei Lopes, é importante ressaltar que esta decorre, certamente, de uma concepção errônea do que seja o folclore que, como já apontou Gramsci, em 1950, em muitas ocasiões tem sido definido como algo pitoresco e não como “concepção do mundo e da vida”, próprias de

“determinados estratos (determinados no tempo e no espaço) da sociedade, em contraposição (...) com as concepções do mundo ‘oficial’“, ou seja as concepções, implícitas, inerentes às “partes cultas da sociedade historicamente determinadas”, as quais foram se sucedendo por ocasião do processo de desenvolvimento histórico.

Desta forma, para este, “o folclore somente pode ser compreendido como um reflexo das condições de vida cultural do povo”, não devendo, jamais, “ser concebido como

13 Cf. Nei Lopes Apresentação, in: BARBOSA, Wilson do Nascimento; SANTOS, Joel Rufino dos, Atrás do muro da noite: dinâmica das culturas afro-brasileiras, Brasília, Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, 1994, p. 9

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algo bizarro, mas como algo muito sério e que deve ser levado a sério”.14 E é como um dos produtos, originalmente, elaborados pelo povo; como uma manifestação, sui generis da visão do mundo e da vida das classes populares; como uma das formas possíveis de contraposição às determinações da “cultura oficial” (tendo iniciado o processo de sua (re)criação, há mais de quatrocentos anos por negros e crioulos), que a Capoeira, neste estudo, está referenciada. Trata-se, portanto, do estudo sobre a apropriação pela Escola, sobre a escolarização, não apenas de uma atividade

“corriqueira” criada e recriada pelo povo, mas de uma filosofia de vida, de valores e significados concebidos pelo povo, de um fenômeno, como concebe Merleau-Ponty, que se constitui da “soma interminável de perspectivas”, mas que, no entanto, mesmo que cada uma delas lhe diga respeito, nenhuma consegue esgotá-lo15; refere-se, ainda, a um jeito brasileiro de ser-no-mundo que, encarnando-se em vários lugares e momentos é sim, essencialmente, uma das formas possíveis de

“existencialização do sentido”16.

Pelo exposto, fica claro que não apenas a Capoeira vem sendo alvo da ação predatória da ideologia dominante, das iniciativas modernizantes inspiradas pelo processo de manutenção da hegemonia da classe dominante. De uma maneira geral, à exemplo do ocorrido também com os fenômenos afro-brasileiros aqui citados, todas as manifestações culturais, espontâneas, (re)criadas pelo povo, pelas chamadas classes subalternas, pelas classes populares, são atingidas por essa intervenção realizada, na maioria das vezes de forma velada, pela elite política, intelectual e econômica deste país. Fica claro, também, que o argumento do

14 Cf. Antonio Gramsci, Literatura nacional e vida nacional, São Paulo, Civilização Brasileira, 1986, p. 184-186. Importante, também, ver as considerações sobre o tema, feitas por Luigi M. Lombardi Satriani, em Antropologia Cultural e análise da cultura subalterna, São Paulo, Editora Hucitec, 1986 15Cf. Maurice Merleau-Ponty, O primado da percepção e suas conseqüências filosóficas, Campinas, Papirus, 1990, p. 47 16 Cf. Antonio Muniz de Rezende, Concepção fenomenológica da educação, São Paulo, Cortez, 1990, p. 21

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dinamismo cultural serve como suporte para a aceitação, um tanto ingênua, de que, como pretende Luiz Renato Vieira, inevitavelmente, a Capoeira estando naturalmente “integrada à dinâmica da emergente modernização cultural e política”, como se fosse uma entidade, um fenômeno em si , “envolve-se, em um intenso processo de mudanças em todo o seu sistema simbólico”17, como se tal sistema não fosse construído por homens, historicamente situados, que, diuturnamente, sem descanso, são atacados pelas mensagens do discurso hegemônico sobre tal aspecto constituinte do processo cultural, argumento esse que, no âmbito da ação empreendida pela escola sobre a cultura do povo, é, também, utilizado por aqueles que procuram defender, como afirma Illich, o esforço fracassado de proporcionar mais e melhor escolaridade, no contexto desse processo ilusório de escolarização18, no qual, pela “liturgia escolar”, é “criada a realidade social na qual a instrução é considerada um bem necessário”19, não se dando conta “da patente [da franquia, da concessão] invisível pela qual essa instituição [a Escola] está profundamente vinculada ao mercado mundial”20 e nem, tampouco, de que, por esse processo de escolarização, o processo de aprendizagem que se realiza fora da escola é desacreditado e toda atividade que não seja exercida “profissionalmente”, referendada por um diploma, um certificado ou um registro no respectivo Conselho ou Ordem, torna-se suspeita21.

Sem dúvida, é inegável que a Capoeira, como um fenômeno social, como um saber (re)construído pelo povo, constitui-se, principalmente, por intermédio do

17 Cf. Luiz Renato Vieria, O jogo da capoeira: corpo e cultura popular no Brasil. Rio de Janeiro, Sprint, 1998, p. 9 18Cf. Ivan Illich, A sociedade desescolarizada, in: BUCKMAN, Peter (org.), Educação sem escolas, Rio de Janeiro, Eldorado, 1973, p. 22 19 Idem, Na ilha do analfabeto, in: ILLICH, Ivan et.al., Educação e liberdade, São Paulo, Imaginário, 1990, p. 17 20 Idem, O mito do desenvolvimento, in: GARCIA, Pedro Benjamim, Educação Hoje, Rio de Janeiro, Eldorado, 1974, p. 78 21 Idem, Sociedade sem escolas, Petrópolis, Vozes, 1982, p. 75

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relacionamento, intrínseco, com aspectos do processo de criação da Cultura, relacionamento esse sobre o qual teço, a seguir, meus comentários, destacando o dinamismo, a relatividade e o conceito de cultura,

Certamente, não basta a frase de Confúcio (551-429 a.C.) declarando que “a natureza dos homens é a mesma, são os seus hábitos que os mantêm separados”22, para esclarecer, satisfatoriamente, a origem da Cultura e a gênese da Capoeira como fenômeno sócio-cultural. No entanto, como é possível identificar no estudo realizado por Roque Laraia, em busca de um conceito de Cultura fundamentado em bases antropológicas, encontrar um único conceito desse fenômeno que possa atender a todas as expectativas dos seus estudiosos e a todas as nuanças nele contidas, é feito ainda inédito.

Pois bem, não é possível deixar de aceitar o argumento da existência do característico dinamismo do fenômeno Cultura, porém, apoiado nessa premissa, afirma-se que a Capoeira, por ser um fenômeno cultural tem mesmo que sofrer transformações e apresentar mudanças, tendo em vista o “inevitável”, “natural” e

“incontestável” dinamismo cultural e o processo, irreversível, de “atualização” das manifestações culturais, parece-me uma das mais frágeis simplificações sobre o desenvolvimento do fenômeno Cultura e de suas diversas manifestações. Para rebater tal argumento, fundamento-me em Edward Tylor que (mesmo com uma pequena dose de evolucionismo e mais interessado na igualdade da humanidade), em 1871, já havia concebido que Cultura, num sentido etnográfico mais amplo, trata- se de um “todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”23, apontando, desta forma, para as suas principais

22 Cf. Roque Laraia, Cultura: um conceito antropológico, Rio de Janeiro, Zahar Editor, 1999, p. 10 23 Idem, ibid., p. 26

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características, quais sejam, a complexidade e o processo coletivo de sua elaboração. Apóio-me, também, em Darcy Ribeiro ao conceituá-la como

“a herança social de uma comunidade humana, representada pelo acervo co-participado de modos padronizados de adaptação à natureza para o provimento da subsistência, de normas e instituições reguladoras das relações sociais e de corpos de saber, de valores e de crenças com que seus membros explicam sua experiência, exprimem sua criatividade artística e a motivam para a ação”24.

Na concepção de Darcy Ribeiro, portanto, trata-se de um fenômeno único e particular que tem como característica ser uma “réplica conceitual da realidade”, transmitida, simbolicamente, de geração a geração, como uma “tradição” que estabelece modos de existência, formas de organização e meio de expressão de uma dada comunidade25. São, portanto, valores, significados, símbolos, concepções que se constroem por intermédio de um processo singular que é o do homem ser-no- mundo, existir-no-mundo, estar-no-mundo (e com os outros homens), como diz Paulo

Freire e, como interpreta Roque Laraia, no estudo citado, se, em decorrência desse processo, mudanças ocorrem, estas, por menor que sejam, causam “o desenlace de numerosos conflitos”, conflitos esses que se desenvolvem como um embate entre os valores e premissas conservadoras e as tendências inovadoras. Tais inovações, no entanto, para Laraia, só podem ser consideradas como mudança quando, além de

24 Cf. Darcy Ribeiro, Cultura e alienação, texto utilizado pela Fundação Educacional do Distrito Federal por ocasião da realização do Curso de Aperfeiçoamento Institucionalizado, Brasília, 1985, mimeo. 25 Idem

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agirem de forma diferente, as pessoas iniciam um processo de questionamento da validade do modelo, chegando, finalmente, a modificar o padrão tido como ideal26.

Sendo assim, mesmo que Erick Hobsbawn (muito citado ultimamente pelos adeptos da “modernização” ou “atualização” da Capoeira, ou ainda pelos defensores de um processo de “resgate seletivo” das suas características e valores), no final do século passado, tenha reafirmado o que filófosos, antropólogos e sociólogos já haviam expressado em seus conceitos e interpretações do fenômeno Cultura, ao dizer que as tradições são inventadas, incluindo “tanto as ‘tradições’ realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo”27, isso não quer dizer que a cada demanda que seja criada pelo mercado (seja ele de que especialidade for) ou que seja instalada pela indústria cultural, as manifestações culturais com raízes centenárias devam, imediatamente, atendê-las. A afirmação de

Hobsbawn, ao meu ver, contrariando o que possa parecer aos mais afoitos em encontrar uma justificativa plausível para suas ações, vem reforçar a valorização das raízes geradoras das manifestações culturais que, por serem constituintes, dão vida, no caso, ao fenômeno Capoeira como uma das manifestações da cultura do povo e a mantém alimentada com a sua energia criadora que é decorrente do processo de ser- no-mundo dos homens e mulheres, de todas as idades, das classes populares.

Associado ao argumento da inevitabilidade da aceitação do dinamismo social, geralmente, depara-se com outro que afirma, como já o fizeram Marx e Engels, que

“as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias”28. Certamente trata-se de mais um argumento que, indiscutivelmente, não é possível deixar de aceitá-lo, porém, parece-me, no mínimo um exagero, que

26 Cf. Roque Laraia, op. cit., p. 101-105 27 Cf. Eric Hobsbawn, A invenção das tradições, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, p. 9 28 Cf. Marx&Engels, A ideologia alemã (I-Feuerbach), São Paulo, Hucitec, 1987, p. 56

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alguém, tomando por referência essa máxima marxiana, arvore-se a ser o criador de uma forma de manifestação que, por ser cultural, tem na coletividade e na solidariedade, entre os componentes de uma mesma comunidade, o sopro da criação. Sabe-se, hoje, como alerta Eunice Duran, que os padrões culturais se mantém ativos na exata medida em que as circunstâncias que os originaram, ou os re-significaram (para que expressassem novas situações) também permanecem.29

Será, pois, que as circunstâncias de opressão, de dominação, sofridas pelas classes populares ou subalternas que, dialeticamente, fizeram surgir o Capoeira e a Capoeira são, na sua essência, tão diferentes assim nos dias de hoje? Será que os padrões estéticos, políticos e educacionais dominantes, inculcados no povo, principalmente pela Escola, são hoje muito diferentes dos de antanho? Será que o processo de exclusão social sofrido pelos homens e mulheres, de todas as idades, que pertencem

às classes populares desenvolve-se de forma muito diversa da que foi vivenciada por seus antepassados? Será que tais padrões mudaram tanto de forma a justificar uma mudança expressiva na manifestação do fenômeno Capoeira? Será?

Tal exagero, e outros não muito diferentes, que procuram justificar a

“modernização” ou “atualização” da Capoeira, principalmente no contexto da Escola, decorre, também, de inadequações na aplicação, principalmente, dos conceitos de

Cultura e de Dinâmica Cultural, cometidas até por alguns sociólogos e cientistas políticos da atualidade. Ao abordar a questão da dinâmica cultural na sociedade moderna, Eunice Duran critica, veementente, essas inadequações, as quais, partindo de um processo de “redução inicial do conceito ao seu conteúdo normativo”

(complementado pela atribuição, subseqüente, de um excesso de autonomia aos componentes culturais da vida social), têm implicado em sua reificação, fazendo com

29 Cf. Eunice Ribeiro Duran, A dinâmica cultural na sociedade moderna, trabalho apresentado no Congresso da SBPC de 1977 (mímeo)

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que a Cultura passe a ser entendida e analisada como “uma ‘variável’ que possui o mesmo ‘nível de realidade’ de outras ‘variáveis’, tais como a industrialização, a urbanização etc.” e, assim, surja como “um fenômeno essencialmente irracional”. Da mesma forma, tais inadequações, fazem com que a Dinâmica Cultural seja reduzida a um mero “processo induzido de ressocialização“, o qual teria a função de remover os obstáculos para o desenvolvimento, desejável, da sociedade, ou seja aniquilar os padrões julgados inadequados.

Concentrando a sua crítica na concepção desses estudiosos, na qual o fenômeno Cultura é considerado apenas como um produto, sendo deixada de lado a explicação do modo como se realiza a sua produção, Eunice Duran chama a atenção para o fato de que, a Cultura, é um processo pelo qual os homens, por intermédio “de uma manipulação do simbólico” (um “atributo fundamental de toda prática humana”), dirigem suas ações e, a elas, atribuem significados, processo esse que está alicerçado na “unidade fundamental entre ação e representação” e, ainda, com propriedade, define Dinâmica Cultural como sendo o “processo de reorganização das representações na prática social, representações essas que são simultaneamente condição e produto desta prática”, processo esse que, nos dias atuais, para ser compreendido adequadamente não pode ser estudado sem considerar-se as profundas influências exercidas pela denominada Indústria Cultural, cuja função, na interpretação de Duran, consiste “explicitamente, em difundir, para o conjunto da população, produtos culturais elaborados por especialistas e, implicitamente, padrões cognitivos, estéticos e éticos que lhes são subjacentes”, como aconteceu, também, com a chamada Música de Raiz (ou Música Regional) e com o Esporte que, como citado no quarto capítulo, nasceu como jogos populares, produzidos pelo povo, retornando a ele, posteriormente, como “espetáculos

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produzidos para o povo”30, certamente ocasionando, como no caso da Capoeira e das outras manifestações afro-brasileiras aqui citadas, a perda de parcela importante de seus significados, podendo ser, assim, como afirma Duran, manipulada “para compor novos conjuntos, cuja amplitude e alcance parecem estar diretamente condicionadas ao empobrecimento prévio de seu conteúdo”.

A relação entre a Indústria Cultural, a Cultura de Massa e o processo de criação e desenvolvimento, principalmente, das manifestações culturais afro- brasileiras, relação essa que, sem sombra de dúvida, contribui para a concepção de que está em desenvolvimento um processo que, implacavelmente, tem conduzido a

Capoeira a “atualizar-se”, a “modernizar-se”, principalmente por intermédio da

Escola, também é abordada, de forma sui generis por Wilson do Nascimento

Barbosa que, utilizando-se da língua ronga, uma das que são faladas em

Moçambique, aplica os étimos xi-lungu ou chilungu (que quer dizer “a língua da cidade e a maneira de viver dos brancos”) e ba-landi ou valandi (que quer dizer “o indivíduo dos rongas ou landins, o negro enfim”) para identificar duas principais perspectivas do Movimento Negro no Brasil e da Cultura Negra brasileira. Para ele, há um movimento chilungu, uma cultura chilungu, realizados “à européia”, contaminados pelos sentidos atribuídos e concebidos pelo brancos, ocidentais, pela

“superestrutura branca”, pela “cultura ocidental”, em contraposição ao movimento valandi, à cultura valandi, “aquela elaborada, tal qual eles produziram, ao chegarem ao Brasil, ao serem escravizados no Brasil”, ou seja, “de negros para negros”. Para

Wilson Barbosa, alguns segmentos da população negra brasileira, submetidos à

“crueldade moral, teleológica e social aplicadas no avanço do capital”, não encontram outra saída a não ser “optar pelo embranquecimento” e, como

30 Cf, Pierre Bourdieu, Questões de sociologia, Rio de Janeiro,Editora Marco Zero Limitada, 1983, p. 139-144

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conseqüência, chegam a fazer a “troca do tambor pelo toca-fitas” e substituem “o fazer cultural pela participação televisiva” e, inadvertidamente, “a sua intelectualidade valandi pela intelectualidade européia, chilungu”.31

Não esquecendo da conhecida parábola de Hegel, sobre a correlação existente entre a condição de escravo e a de senhor, por intermédio da qual pode-se entender melhor a natureza e o desenvolvimento do processo dialético de dominação existente em um determinado tipo de formação social, a interpretação de

Wilson Barbosa, certamente, ajuda a tornar mais clara a origem das razões que têm levado alguns negros (praticantes ou não da Capoeira) a defenderem essa premissa da inevitabilidade da “modernização” da Capoeira e da necessidade, premente, de sua “atualização”. Assim é que, como um dos resultados do processo de manutenção da hegemonia da classe dominante (branca e letrada), que Wilson

Barbosa apresenta como um de seus desdobramentos o surgimento da chamada cultura chilungu, realizam-se, não raras vezes, aulas e demonstrações de Capoeira

(ministradas e dirigidas por Mestres e/ou professores negros), ao som de toca-fitas, toca-cds e outros aparelhos de som, mais ou menos sofisticados; em algumas ocasiões, depara-se com Grupos de Capoeira, em apresentações no exterior, tendo a iniciativa de traduzir a frase “Iê! Viva meu Deus, camará!”, repleta de magia e simbolismo, por “Yeh! Live my god, my brother!”; vez por outra, são aplicados tradicionais instrumentos de avaliação, dentre os quais o conhecido por Prova (oral ou escrita), como um dos componentes do processo de avaliação do aprendizado, escolarizado, da Capoeira, eventos esses que reforçam a premissa da existência de uma Capoeira Chilungu, uma das perspectivas que se manifesta, sem dúvida, sob

31 Cf. Wilson do Nascimento Barbosa, Língua de branco, língua de negro, in: BARBOSA, Wilson do Nascimento; SANTOS, Joel Rufino dos, Atrás do muro da noite: dinâmica das culturas afro- brasileiras, Brasília, Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, 1994, p. 12-14

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forte influência da visão folclorizante e da visão internacionalizante, definidas por Nei

Lopes.

Inegavelmente há uma “dinâmica da transformação cultural”, no entanto, também é irrefutável que esta se dá, na grande maioria dos casos, como afirma

Duran, “no contexto da ‘cultura de massa’, como um processo constante de reelaboração cultural dos produtos oferecidos ou impostos pela indústria cultural” e, sem sombra de dúvida, principalmente, por intermédio da ação dos “outros

‘aparelhos ideológicos’ do Estado, especialmente a Escola.”32

Ainda no que se refere à relação, intrínseca, entre os fenômenos Capoeira e

Cultura, surgem alguns estudiosos e/ou praticantes da Capoeira que, alegando fundamentarem-se na, indiscutível, característica da relatividade dos fenômenos culturais, respondem, aos que defendem que “a Capoeira é cultura popular e por isso não pode ser aprendida na escola”33, com o argumento de que sempre é preciso levar em conta que, para conhecê-la, praticá-la e ensiná-la, “não é preciso subir o morro”, pois “a Capoeira é uma só”; é “tudo a mesma coisa”; a “Capoeira feita na Escola é a mesma, em sua essência, do que a da rua, do morro ou da academia;

é igual a do Rio de Janeiro, a de São Paulo, a de Salvador; enfim, é tudo Capoeira”.

Mais uma vez, não é possível negar o argumento da importância da relatividade cultural como uma das principais características das manifestações culturais, porém,

é preciso reconhecer a assimilação inadequada deste conceito, claramente identificável, em argumentos que, considerando, implicitamente, que os fins justificam os meios, pretendem defender a legitimidade de suas concepções e da

“Capoeira que ensinam”, pois, como bem esclarece Clyde Kluckhohn, relatividade cultural indica “um princípio de contextualismo”, ou seja, a relação, intrínseca,

32 Cf. Eunice Ribeiro Duran, op. cit. 33 Palavras de Sylvio Simões, Presidente da Bahiatursa, em defesa dos Mestres de Capoeira, matéria publicada na Revista Visão, de 08 de julho de 1987, intitulada Capoeira não se aprende na escola

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existente entre o fenômeno estudado e a estrutura cultural no qual ocorre, tendo em vista, principalmente, “o sistema de valor específico daquela cultura”, à exemplo da recomendação de Franz Boas enfatizando que, dos sons da fala até as formas de casamento, todas as manifestações devem ser consideradas “na totalidade do contexto em que ocorrem”34. Nesse mesmo sentido, Roberto DaMatta, ao apresentar a Antropologia Social como uma disciplina que não lida com certezas absolutas, mas sim, como sendo uma forma de interpretar o mundo social, esclarece que se torna imprescindível efetuar a relativização do fenômeno observado, estudado, interpretado, relativização essa que não é “uma ideologia substantiva do universo social humano segundo a qual tudo é variável e tudo é válido”, mas sim, uma possibilidade de, reconhecendo a diversidade como uma das características constitutivas do fenômeno Cultura, reconhecer também a relação dialética entre o particular e o universal35. Engano semelhante, quanto à interpretação do conceito, como já citado no terceiro capítulo, foi cometido pelos inventores da Bossa Nova, uma vez que “a classe média não estava satisfeita com a música brasileira do momento e nem queria subir o morro” e, assim, na Zona Sul da cidade do Rio de

Janeiro, surge um novo ritmo musical, o qual certamente não é o mesmo Samba criado pelo povo e, tampouco, pode ser considerado como uma manifestação da cultura popular.

Com relação a esse engano (ou desculpa) implícito no citado argumento, ainda é preciso lembrar que, como afirmado em capítulos anteriores, não existe o mundo, o fenômeno, nem a escola, a Capoeira, mas sim diversas perspectivas do fenômeno que são, pelo homem, percebidas, fato esse que, certamente, não quer

34 Cf. Clyde Kluckohn, verbete Relatividade Cultural, Dicionário de Ciências Sociais, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1986, p. 1057 35 Cf. Roberto DaMata, Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro, Rocco, 1987, p. 11-57

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dizer que todas essas formas de manifestação, todas essas perspectivas, sejam “a mesma coisa”. Um outro aspecto relevante para o esclarecimento desse engano é o fato de que, como já apontou Merleau-Ponty, o mundo e os demais fenômenos são percebidos por intermédio da corporeidade ou seja, “o corpo próprio está no mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o espetáculo visível continuamente em vida, anima-o interiormente, forma com ele um sistema”36. Desta forma, considerando, pois, a situação de ser-no-mundo como vital, para que o fenômeno da compreensão possa manifestar-se de forma a propiciar o surgimento de uma adequada interpretação sobre o que a Escola faz com que o povo cria, no caso, sobre o que ela faz com a Capoeira, é necessário, sim, que se estabeleça entre esta e o meu corpo um “conjunto de correspondências vividas”37, uma vez que o corpo é “como que o sujeito da percepção”38. Esta importante relação intrínseca entre a corporeidade e as possibilidades de compreensão do fenômeno, também é apontada pelo poeta Drumond quando, em 1930, ao escrever uma série de poemas sobre algumas das principais cidades brasileiras, intitulada Lanterna Mágica, ao ver seu trabalho quase todo concluído, assim considerou: “é preciso escrever um poema sobre a Bahia ... mas eu nunca fui lá.”

O argumento da “mesmidade” da Capoeira, certamente, é decorrente da chamada “razão tupininquim” a qual, vendo em tudo o “mesmo”, torna impossível chegar-se “ao irredutível das coisas”, ou seja, naquilo que “elas têm de próprio”39.

Assim, para refutar mais esse argumento, é preciso deixar bem claro que a

Capoeira ensinada e praticada na Escola, não “é a mesma coisa” que as suas outras manifestações, ou seja, ela é uma das perspectivas do fenômeno Capoeira,

36 Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins Fontes, 1994, p. 273 37 Idem, ibid., p. 274 38 Idem, ibid., p. 278 39 Cf. Roberto Gomes, Crítica da razão tupiniquim, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984, p. 52-53

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realizada como decorrência do processo conhecido como escolarização. Ainda é necessário, pois, que se dê a essa forma de manifestação uma denominação específica, seja a de Capoeira Bossa Nova, Capoeira da Escola, Capoeira

Escolarizada ou outras tantas possíveis, de forma que, como dizia minha avó, não se compre gato por lebre!

Além do seu relacionamento com o fenômeno da Cultura, por intermédio de suas principais características constitutivas, a Capoeira, também, como uma criação do povo, uma (re)criação das chamadas classes populares ou subalternas, mantém intrínseco relacionamento com os fenômenos da Educação, em geral, e com o da

Escola, em particular, como já apontado. Não é difícil entender, porém, que apenas a identificação de tal relacionamento não é suficiente para, como pretendem aqueles que defendem a sua apropriação e/ou sistematização pela Escola, fundamentar os argumentos apresentados. Torna-se, portanto, indispensável, para a compreensão da manifestação do fenômeno Capoeira na Escola, recordar, dentre outros aspectos, que na concepção dos atores sociais que, direta ou indiretamente, participam desse processo de “descaracterização” ou de “modernização/atualização” da Capoeira, prevalece as visões tradicional-modeladora e moderno-domesticadora de

Educação e as visões neutro-constituinte e sistêmico-reprodutora de Escola, as quais são importantes coadjuvantes na fundamentação da visão moderno- esportiva40 que dá suporte e mantém essa sua manifestação, num contexto escolarizado, seja dentro ou fora de algum dos chamados estabelecimentos de ensino.

Desta forma, a Capoeira, um fenômeno cultural (re)criado pelo povo, tem sido ensinada e praticada na Escola, pretensamente, respaldada pelos defensores

40 Capítulo V, Não se aprende no colégio?, p. 309-311

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dessa apropriação, os quais, freqüentemente, alegam, dentre outros argumentos, nem sempre consistentes, que, esta, é uma atividade lúdica, ligada às raízes afro- brasileiras, que se apresenta como excelente recurso a ser utilizado na, ainda, chamada atividade “extra-classe”, para os alunos da séries iniciais do Ensino

Fundamental, principalmente. Ora, certamente não é possível negar que a ludicidade é uma das características principais do fenômeno Capoeira e nem, tampouco, que tal componente da existência humana é fundamental para o processo de Educação (principalmente se esta for concebida como um processo de aprender a ser-no-mundo), no contexto deste nível da chamada Educação Básica.

Porém, em nada se favorece o desenvolvimento da ludicidade, submetendo a

Capoeira aos padrões, princípios e premissas do chamado “treinamento desportivo”, próprio da manifestação denominada, ainda, de Esporte de Rendimento, ou Esporte de Alto Nível, que, como é do conhecimento de todos, propõe máxima rigidez e

“seriedade”, tanto no desenvolvimento do processo de iniciação, quanto no de aperfeiçoamento do aprendizado de qualquer atividade considerada como uma

“modalidade desportiva”, ou colocando-a sob os códigos, normas, regulamentos e pressupostos da Escola que, sabe-se hoje, não é uma instituição “risonha e franca” como pensavam nossos antepassados. Será que alguém que receba uma ordem para brincar, ordem essa acompanhada de uma série de instruções técnicas de como fazê-lo, e, finalmente, seja avaliado pelo seu desempenho na execução da atividade realizada estará, mesmo, brincando? Será que crianças, entre seis e dez anos, principalmente, quando para realizarem uma atividade proposta (geralmente por uma professora) tenham que seguir, com rigor, os períodos de duração, locais e horários determinados por alguém que dirige e controla o seu desenvolvimento, conseguem brincar? Será que quando as crianças ao terminarem de realizar a

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atividade determinada pelo professor (ou professora) levam consigo a recomendação para treinarem bastante, em casa, para melhorar o seu desempenho na próxima aula, essa atividade tratou-se (e tratar-se-á) de uma brincadeira?

Um outro argumento muito ouvido dos defensores desse processo de tentativa de apropriação do fenômeno Capoeira, realizado pela Escola, é que trata- se de uma manifestação cultural, afro-brasileira, e como tal deve pertencer ao elenco de bens culturais a serem resgatados e preservados pela Escola, uma vez que esta,

é uma agência de transmissão da Cultura competente, principalmente por sua estrutura e organização, tornando-se, também por isso, um espaço de afirmação, ratificação e transmissão dos valores preconizados pela sociedade. Não é possível refutar a função e o papel da Escola no processo de constituição e manutenção de certos valores, aceitos como válidos e desejáveis, pela sociedade e, também, não há como negar que a Capoeira surge como uma (re)criação do negro africano no Brasil.

No entanto, é preciso ressaltar que a sociedade não é formada apenas pela classe dominante, a qual define os rumos da Escola e, portanto, torna-se imperioso relembrar que esta, como reprodutora dos valores da classe dominante e como, inegável, aparelho ideológico (do Estado, principalmente), nessa tentativa de apropriação da Capoeira, cada vez mais, como parte de um processo de assepsia social, a tem distanciado de suas raízes populares e espontâneas, de sua manifestação ba-landi ou valandi, como diria Wilson Barbosa.

Será, mesmo, que a Escola, considerando as questões pertinentes ao dinamismo cultural, a relatividade dos fenômenos culturais e o próprio conceito de

Cultura, como já apontado, tem mantido vivos e valorizados positivamente os sentidos afro-brasileiros que lhes dão sustentação desde a sua origem, como uma

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(re)criação do povo, como um bem cultural (de consumo e de produção41) das classes populares ou subalternas, como uma resposta às exigências estabelecidas pelo meio no qual viviam e procuravam a sua sobrevivência? Será que quando o professor ao tentar ensinar o toque de berimbau (da Capoeira Angola), denominado de São Bento Grande, ao invés de se aproximar (com o seu berimbau) de um aluno

(que também possui o seu instrumento), carinhosamente, lhe dizendo: “olha como é fácil; veja o que o toque diz; ele diz assim : pega o meu gunga, me venda ou me dê/ gunga é meu foi pai quem me deu/ gunga é meu, gunga é meu/ gunga é meu, foi meu pai quem me deu”, como ensina o Mestre João Grande, coloca todos os alunos sentados no chão, em círculo, e toca o seu berimbau dizendo: “o toque é assim, ouçam: musquitindoidão, musquitindoidão, musquitindoidão” (numa tentativa de imitar o som, “a fala”, como dizem os antigos, do berimbau ao usar a frase mosquitinho doidão), ou ainda quando se utiliza de brinquedos cantados como o conhecido Escravos de Jó, ou artifícios semelhantes, estará, esse professor, resgatando e preservando os valores e sentidos afro-brasileiros desse bem cultural?

Ao usar, como uniforme, calças com o comprimento das pernas na altura da canela e amarradas à cintura com um cordão, muitas vezes com o tronco nu e, sempre, descalços, esses praticantes estão resgatando e preservando a memória do homem negro no Brasil em qual situação? Certamente, a de homem negro livre não é, pois este, mesmo no tempo da alforria, após conquistar a “condição de liberto” usava o modelo de roupa comum que os homens brancos usavam e, como bem ressaltou

Gilberto Freyre, fazia absoluta questão de andar calçado com sapatos, os quais muitas das vezes ficavam expostos, como um troféu, como um símbolo da “condição de homem livre”, sobre uma das poucas mesas que compunham o mobiliário de

41 Cf. Álvaro Vieira Pinto, Ciência e existência : problemas filosóficos da pesquisa científica., São Paulo, Paz e Terra, 1985, p. 119-138

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suas residências. Como aceitar esse dito resgate dos valores culturais afro- brasileiros e da preservação das principais características dessa Cultura se, ao uniformizar os movimentos corporais realizados pelos praticantes dessa perspectiva do fenômeno Capoeira, em nome de uma weberiana racionalidade e de uma eficiência tayloriana, cada vez mais é impedida a manifestação genuína da ginga, considerada como “a parte mais importante do repertório não verbal da comunidade” negro-africana e, principalmente, afro-brasileira, como “um contra-poder ao universo lógico dominante”42, transformando-os, por intermédio de tal padronização, em autômatos com movimentos condicionados e previsíveis, podendo ser facilmente identificada a ação disciplinadora e massificadora, exercida pela Escola.

Mais um importante argumento, levantado em defesa dessa forma de manifestação do fenômeno Capoeira, é o que afirma ser, esta, um excelente meio de desenvolvimento harmônico do corpo e das chamadas qualidades físicas básicas e, portanto, como tal, deve ser incluída dentre as atividades que podem ser realizadas como conteúdo da disciplina Educação Física ou como uma “modalidade desportiva” e, por isso, a sua prática deve ser prevista nos, já bem conhecidos, currículos escolares. Novamente, não é possível negar os valores da Capoeira como uma atividade que contribui, significativamente, para o desenvolvimento da “qualidades físicas básicas”, não apenas as requeridas pela prática do Esporte, como as necessárias para o processo de prevenção e manutenção da saúde. Porém, para que tal qualidade seja mantida e desfrutada, não poderá ser fundamentada nos princípios e premissas que dão suporte a uma Educação Física militarizada, tecnicista, disciplinadora que, ainda na toada da assepsia social (tentada, principalmente, durante a Era Vargas), tem prevalecido até os dia atuais; tampouco,

42 Cf. Wilson do Nascimento Barbosa, Ginga e cosmovisão, in: BARBOSA, Wilson do Nascimento; SANTOS, Joel Rufino dos, op. cit., p. 38

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deverá seguir os padrões e estereótipos preconizados pela manifestação do

Esporte, conhecida como de Rendimento, que objetivam reproduzir os valores que sustentam a sociedade capitalista, por intermédio de uma prática pedagógica que, a serviço da hegemonia da classe dominante, exerce a sua ação castradora (da criatividade), repressora (do lúdico), massificadora (de sentidos) e adestradora de seres humanos43.

A Capoeira que é ensinada e praticada na Escola, argumentam os seus defensores, é “a única atividade escolar” que, além de não requerer equipamentos e materiais sofisticados e nem ambientes específicos para a sua realização (e, por isso, ser considerada como adequada para os estabelecimentos de ensino da rede pública), ainda, tem evitado a “evasão escolar” e conseguido “trazer muitos alunos de volta” para ela, sendo, também, pela popularidade e aceitação entre os alunos, um dos importantes coadjuvantes do processo de educação escolar. Por certo, a

Capoeira exerce grande fascínio na maioria das crianças e adolescentes (das classes populares, principalmente), que freqüentam, de um maneira ou de outra, a

Escola e, por sua origem e forma de preservação até os dias atuais, não requer, basicamente, equipamentos e materiais além do berimbau, podendo ser praticada em qualquer tipo de piso e ambiente! No entanto, é preciso ressaltar que, não apenas pelas qualidades apontadas neste argumento, mas, principalmente, por ser

43 Para o aprofundamento dessa questão é recomendada, dentre outros títulos e autores, a leitura de Esporte Educacional: uma possibilidade de restauração do humano no homem, Currículo de educação física para o Ensino Médio e Currículo de Educação Física para o Ensino Fundamental - 5ª a 8ª Série, de Cesar Barbieri; Educação Física : da alegria do lúdico à opressão do rendimento, de Silvino Santin; A criança que pratica esporte respeita as regras do jogo ... capitalista, de Valter Bracht; Educação Física: raízes européias e Brasil, de Carmen Soares; A Educação Física cuida do carpo... e ‘mente’, de João Paulo S.Medina; Educação Física Humanista, de Vitor Marinho de Oliveira; Educação Física escolar: uma abordagem fenomenológica, de Wagner Wey Moreira; A pedagogia no exército e na escola: a Educação Física brasileira(1880-1950), de Amarílio Ferreira Neto, Educação Física Escolar: o esporte como conteúdo pedagógico do ensino fundamental e Aprendizagem e competição precoce: o caso do basquetebol, de Roberto R. Paes.

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uma manifestação cultural do povo, com um processo de (re)criação que já dura mais de quatrocentos anos, deveria ser destinado um espaço definitivo e apropriado para a sua prática, tal qual acontece com a Matemática, a Física, a Química, a

Língua Portuguesa e outras disciplinas que, via de regra, não têm suas aulas realizadas no pátio da escola, ou em seu estacionamento, ou num terreno baldio próximo, ou dentro de um velho e abandonado depósito de materiais. Lembro a interpretação de Paolo Nosella que, ao abordar a questão da relação existente entre uma determinada concepção de Educação e a arquitetura de um estabelecimento de ensino, destinado ao seu desenvolvimento, aponta como referência o fato de que ao visitar-se um antigo castelo ou uma catedral, é possível perceber, “pela sua arquitetura, que seus construtores tinham por Deus e pela autoridade em geral, a máxima consideração”44. Certamente, tirando a Primeira Missa, oficiada por Frei

Henrique de Coimbra, em 26 de abril de 1500, ou as denominadas Missas Campais

(e outras do gênero), não se tem conhecimento de celebrações desse tipo realizadas, cotidianamente, em locais improvisados, desvalorizados ou considerados suspeitos. Por que, então, no âmbito da Escola, com o seu discurso de valorização das manifestações afro-brasileiras, qualquer lugar, qualquer espaço, qualquer canto escondido (ou, por hora, sem dono) “é apropriado”, “é bom”, “serve” para o ensino e a prática da Capoeira? Certamente, é possível inferir que essas “aulas de Capoeira”, para esses alunos que permanecem na Escola (ou para os que retornam a ela), têm sido permitidas e valorizadas, não porque buscam favorecer, dentre outros aspectos contra-hegemônicos, o desenvolvimento de uma consciência crítica sobre a condição de ser aluno de uma escola da rede pública de ensino, mas sim, por servir como atrativo, como isca, como visgo, adaptando-os e adequando-os à vida escolar.

44 Cf. Esther Buffa e Gelson de Almeida Andrade, Arquitetura e Educação: organização do espaço e propostas pedagógicas dos grupos escolares paulistas – 1893/1971, São Carlos, EduFsCar, Inep, 2002, p.12

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Com relação à manifestação da Capoeira nesse contexto escolar, sem engano, é possível identificar que o pátio dos estabelecimentos de ensino, de hoje, são os terreiros em frente da casa grande dos engenhos, do passado, no qual, quando autorizados, os angolas podiam dançar a sua dança, cantar a sua canção e jogar o seu jogo, como um interessante entretenimento para os Sinhozinhos e Sinhazinhas,

Sinhôs e Sinhás, desde que essas atividades exóticas não atrapalhassem o desenvolvimento das atividades produtivas, a ordem estabelecida, e, certamente, não ofendessem a moral e os bons costumes, é claro!

Um último argumento, possível de ser identificado dentre os principais utilizados pelos que defendem a tentativa de apropriação de mais essa criação do povo, pela Escola, é o que apresenta, como uma importante condição para o seu melhor desenvolvimento, o fato de ser o seu ensino e a sua prática, na grande maioria das vezes, dirigidos por um professor de Educação Física (desejavelmente, com registro em um dos tais Conselhos Regionais de Educação Física) e,também, o fato de os alunos estarem “protegidos” da possível ocorrência de “excessos, freqüentemente cometidos”, quando a sua prática se realiza em outros espaços de significação. Não é possível deixar de aceitar que a Educação Física, mesmo com os enganos de interpretação e de concepção cometidos durante a sua história, é uma das áreas do conhecimento sistematizado que tem oferecido, também, boas contribuições para o processo de desenvolvimento e sobrevivência do ser humano.

Poder-se-ia, com igual nível de reflexão e consistência, contra-argumentar recorrendo-se à premissa de que, como afirmou o jornalista e cartunista Millôr

Fernandez, “quem inventou o alfabeto era analfabeto”. O caminho, no entanto, de tal contra-argumentação tem seu início no fato de que é preciso não esquecer que a

Capoeira, como uma (re)criação do povo, das classes populares ou subalternas, não

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surgiu como decorrência de estudos e pesquisas desenvolvidos por cientistas, pesquisadores ou pedagogos que pretendiam a realização de objetivos pré- determinados, mas sim, como uma manifestação da visão de mundo de homens e mulheres, de diferentes idades; como fruto do folclore, entendido como “um reflexo das condições de vida cultural do povo”45; como decorrência, inicialmente, da história de vida dos negros, africanos e crioulos, que, como denomina Wilson

Barbosa, pertenciam à Comunidade Negra dos Despossuídos (formada durante o ciclo açucareiro e do gado, passando pelo ciclo do ouro e pelo início da mercantilização, chegando ao final do capital escravista e até à, dita, Abolição, à

República e à década de 1930) 46 e, posteriormente, contando com a participação de outros homens e mulheres, brancos e mestiços, que se agregaram a essa

Comunidade; como “uma realidade histórica que veio através dos quilombos”, com afirmou Sylvio Simões, na entrevista já citada.

Tais condições que dão surgimento ao fenômeno Capoeira permitem, também, que o Mestre de Capoeira seja comparado e equiparado ao Babalorixá, pois, para conduzir o seu processo de aprendizado, “é preciso ter dom, que nenhuma universidade pode dar”, como afirma Vivaldo Conceição Moraes, o Boa

Gente, aluno de Mestre Gato. A tentativa de incluir a Capoeira no rol das atividades que devam permanecer sob o jugo dos (no mínimo polêmicos) Conselhos Regionais de Educação Física, faz lembrar das observações de Patrícia Birman e Zélia Seiblitz, citadas no início deste capítulo, sobre a relação entre as religiões afro-brasileiras, seus sacerdotes e fiéis, e as (não menos polêmicas) Federações, instituídas com o aval da classe dominante como órgãos de fiscalização, normatização e

45 Cf. Antonio Gramsci, op. cit., p. 184-185 46 Cf. Wilson do Nascimento Barbosa, Língua de branco, língua de negro, in: BARBOSA, Wilson do Nascimento; SANTOS, Joel Rufino dos, Atrás do muro da noite: dinâmica das culturas afro- brasileiras, Brasília, Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, 1994, p. 14

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regulamentação de tais manifestações, criadas pelo povo. Este argumento vem, sim, reforçar a constatação de que o Estado, certamente, incluindo a Escola como um de seus aparelhos ideológicos, como afirmou Gramsci, “não é agnóstico, mas tem uma concepção de vida e tem o dever de difundi-la educando as massa”47, fazendo com que a Capoeira, como uma criação do povo, seja, desta forma, “esterelizada”, submetida a “um processo de assepsia”, que além de ser reducionista, mantém e intensifica o processo de estigmatização de outros grupos sociais, das classes populares, que a significam de forma diferente.

Os argumentos utilizados pelos defensores do ensino e da prática da

Capoeira no contexto escolar podem ser facilmente identificados com os fundamentos do discurso da classe dominante que, por sua, invisível, ideologia e pela ação eficaz da indústria cultural, fazem-me recordar da metáfora criada, em

1985, por Nei Lopes quando, ao discorrer sobre a questão da “colonização cultural” e os, decorrentes, processos de descaracterização e de segregação sofridos pelo

Samba e pelos sambistas genuínos, assim se refere:

“(...) me ocorreu a imagem engraçada de um fabricante de pentes finos que desejasse colocar o seu produto em escala irrestrita e avassaladoramente mundial. Evidente que, antes de lançar o pente fino, ele teria que massificar um preparado — um alisante talvez — que tornasse iguais e receptivos ao pente todos os tipos de cabelo do seu potencial mercado, da África Austral ao norte da Europa, do Equador à Nova Caledônia”.48

47 Cf. Antonio Gramsci, op. cit., p. 186 48 Cf. Nei Lopes, O “Rock” e o pente fino, Jornal do Brasil, 25/5/1985, p. 21

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Pois bem, ao finalizar este discurso, compreensivo e interpretativo, sobre o que a Escola faz com o que o povo cria, ainda devo ressaltar que, por certo, não se trata apenas de concluir que a forma pela qual a Capoeira tem se manifestado no contexto escolarizado é somente uma de suas perspectivas, uma de suas possibilidades, mesmo que simplificada e esterilizada. Não se trata, obviamente, apenas de constatar a distância imposta entre a sua manifestação, segundo Muniz

Sodré, como “jogo sem lei”, como “arte brasileira do corpo”, como sabedoria afro- brasileira49, e a sua perspectiva escolarizada, a qual tem sido, dia-a-dia, submetida à demanda e aos sentidos impostos por um processo, como denomina Pablo Gentili, de McDonaldização da Escola50. Trata-se, pois, de se admitir que o chamado x do problema não é simplesmente, como mostrou Noel Rosa, em 1936, o fato de que a

“palmeira do mangue não vive na areia de Copacabana”, ou seja, que as manifestações culturais criadas pelas classes populares ou subalternas não se adaptam, não se adequam, não sobrevivem no contexto escolarizado, num espaço elitizado, mas sim, que as visões, de Educação e de Escola, que dão suporte a essa tentativa de apropriação do que o povo cria, não estão a serviço de seus interesses!

Como interpreta Carmem Macedo, a problemática da Educação constitui-se no fato de que

“de um lado, cabe compreender como o Estado se propõe a conduzir o processo educativo, utilizando-o como mecanismo de veiculação de formas culturais à serviço dos interesses das classes dominantes. De

49 Cf. Muniz Sodré, O Brasil simulado e o real: ensaio sobre o quotidiano nacional, Rio de Janeiro, Rio Fundo Ed., 1991, p. 113-121 50 Para aprofundamento da questão, ver Pablo Gentili e Tomaz Tadeu da Silva, Escola S. A.: quem ganha e quem perde no mercado educacional do neoliberalismo, Brasília, CNTE, 1996 e Pablo Gentili, A McDonaldização da escola, in: COSTA, Marisa Vorraber (org), Escola Básica na virada do século: cultura, política e currículo, São Paulo, Cortez, 1996

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outro, cumpre localizar as brechas que o processo educacional pode apresentar como veículo de formação de uma consciência crítica do mundo e da ação visando a transformação social”51

Por que, então, tomando como referência as visões emergente- emancipadora de Educação, estratégico-transformadora de Escola52 e a visão existencial-compreensiva da Capoeira53 e fundamentando-se nos princípios constitutivos apontados no quarto capítulo, deste estudo54, não se deflagra, em substituição às tentativas realizadas objetivando escolarizar a Capoeira, um processo, efetivo, de capoeirização da Escola ?

“Iê! Iô Iô viva a Bahia Terra bonita e adorada Terra rica de grandeza Onde Deus fez a morada Onde mora o calix bento E a hóstia consagrada Onde nasceu a Capoeira E ainda jogam os camaradas! Viva meu Deus! Iê, viva meu Deus, camará! Viva meu Mestre! Iê, viva meu Mestre, camará! Que me ensinou! Iê, que me ensinou, camará! A Capoeira! Iê, a Capoeira, camará!”

Mestre João Grande

51 Cf. Carmem C.Macedo, Considerações finais, in: VALLE, E; QUEIRÓZ, José J. (org.). A cultura do povo. São Paulo, Cortez, Instituto de Estudos Especiais, 1988, p. 143 52 Cf. capítulo Uma questão de peso e medida, p. 103-104 53 Cf. capítulo O mesmo pé que dança o samba, p. 187 54 Idem, ibid., p. 183-185

“Onde eu possa plantar meus amigos Meus discos e livros e nada mais”

Rodrix&Tavito

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“É preciso silêncio para que os livros nos falem bem alto.” Sérgio Varela

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