Verso e Reverso, XXVIII(69):193-203, setembro-dezembro 2014 © 2014 by – doi: 10.4013/ver.2014.28.69.05 ISSN 1806-6925

Memória e afeto como estratégia de fidelização da audiência televisiva: o caso dos SBTistas

Memory and affection as a strategy to television audience loyalty: the case of SBTistas

Rafael Barbosa Fialho Martins Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha, 31270-901, Belo Horizonte, MG, Brasil. [email protected]

Hideide Aparecida Gomes de Brito Torres Universidade Federal de Juiz de Fora. Rua José Lourenço Kelmer, Martelos, 36036-330, Juiz de Fora, MG, Brasil. [email protected]

Resumo. Como a emissora que não é a mais assisti- Abstract. How can a TV station that is not the most da pode ser a mais admirada? Essa indagação moti- watched be the most admired? This question moti- vou este estudo a fi m de observar como se dá o pro- vated this study in order to observe how the pro- cesso de construção de identidades a partir do canal cess of identity construction from the SBT (Sistema de televisão SBT (Sistema Brasileiro de Televisão), Brasileiro de Televisão) station holds a unique rela- emissora que guarda uma singular relação com seu tionship with its audience, which regards itself as a público, o qual se assume como fã e se autointitula fan and calls itself “SBTista”. Through analysis of “SBTista”. Por meio da análise de entrevistas com interviews with representatives of this phenome- representantes desse fenômeno, nota-se uma pecu- non, there is a peculiar identifi cation arising from liar identifi cação surgida a partir não de um per- not a character or celebrity, but around a TV station. sonagem ou de uma celebridade, mas em torno de The SBTistas identity appears as a habit acquired in uma emissora. A identidade SBTista aparece como childhood and can contribute to narrate the life sto- hábito adquirido ainda na infância, capaz de con- ry of individuals today who interact with other fans tribuir para narrar a história de vida de indivíduos on the Internet, sett ing up a communal experience que hoje interagem com outros fãs na internet, con- with their own practices. It is possible to notice that fi gurando uma experiência comunitária com práti- manifestations of aff ection are related to the mem- cas próprias. Percebe-se que, no caso em questão, ory of the viewer and of SBT, which invests in this as manifestações de afeto estão fortemente ligadas “friendship” with diff erent strategies. à memória – do telespectador e do SBT, que investe nesta “amizade” com diversas estratégias.

Palavras-chave: SBT, memória, afeto, identidade. Keywords: SBT, memory, aff ection, identity.

Introdução algumas peculiaridades em sua relação com o telespectador que o fazem um interessante O SBT (Sistema Brasileiro de Televisão), objeto de análise para os estudiosos de Comu- dentre as emissoras brasileiras abertas, guarda nicação. Isso porque, desde 2005, é possível Rafael Barbosa Fialho Martins, Hideide Aparecida Gomes de Brito Torres

verifi car a presença de um grupo expressivo a página de seus programas nas redes sociais. na internet, os “SBTistas” – fãs1 autodeclara- A diferença em relação ao SBT é que seu dos da emissora de . público não apenas marca presença, mas O neologismo lembra os adjetivos dados a tor- também interage, prática incentivada pelo canal, que sempre investiu bastante em ca- cedores de clubes de futebol – fl amenguistas, gre- nais diretos com o espectador, como os te- mistas, por exemplo. Assim como os afi cionados lefonemas (SBTpedia, 2013a, grifos nossos). por times, os SBTistas acompanham cada “parti- da” na competição pelos números de audiência, A emissora reconhece seus “seguidores”, e se organizam em uma “torcida” organizada em articulando estratégias, como reportagens em diversos ambientes virtuais de interação. telejornais sobre eles, programas especiais Apesar de, historicamente, estimular a par- de que eles participam e produtos destina- ticipação do público por meio de cartas, telefo- dos a eles em sua loja virtual. Há também o nemas e presença nos auditórios, a tendência Encontro Nacional dos SBTistas, uma visita consolidou-se com a popularização das redes anual aos estúdios do Centro de Televisão da sociais (nas quais surgiu o termo “SBTista”), e Anhanguera (CDT), sede da empresa. hoje se faz presente no Orkut, no Facebook e no Há, então, um peculiar fenômeno de for- Twitt er, além de em blogs mantidos pelos fãs. mação de identidade ligada a uma emissora Em termos de interação, pode-se afi rmar de televisão que evidencia mudanças no modo que o Facebook é, atualmente, um dos princi- de se assistir à programação televisiva e indica pais espaços de encontro dos fãs. São popula- algumas possíveis tendências que as emisso- res os grupos de discussão em que os mem- ras podem seguir nos próximos anos: redes so- bros divulgam a programação, comentam os ciais, conteúdo direcionado à internet, intera- programas a que estão assistindo, comparti- tividade, estratégias sensíveis – tudo de forma lham números de audiência, publicam fotos cada vez mais próxima do telespectador. e vídeos dos programas, sugerem mudanças Confi rmando a forte interação entre - na grade de programação e contratações, entre sora e telespectador, o canal foi apontado outras atividades. Já no Twitt er, são comuns os como o mais querido e com mais defensores comentários simultâneos à programação. Uma do Brasil na pesquisa Aba/Top Brands em 2012; particularidade é a interação entre os usuários contudo, os índices apontam que o canal, que e diretores, repórteres e artistas do SBT, que outrora ocupou o posto de mais visto depois respondem e acolhem sugestões dos SBTistas. da Globo, hoje luta para reconquistar a segun- Os blogs são também um ambiente de ex- da posição na audiência. Assim, nossos estu- pressiva participação dos SBTistas, que man- dos partem da seguinte indagação: como a têm diversos endereços sobre o “mundo” SBT emissora que não é a mais assistida pode ser a com práticas como colagem de notícias, releases mais querida? (Meio e mensagem, 2012). e vídeos oriundos de portais sobre TV; outros A percepção da existência dessa singular blogs, além do compartilhamento de material afeição ao SBT motivou um movimento de produzido por outros sites, geram conteúdo pesquisa que vem se desenvolvendo desde próprio, como entrevistas com profi ssionais 2012. Como extrato da pesquisa, este artigo do canal, programas temáticos em vídeo e co- foca sua atenção sobre a dimensão afetiva da lunas de opinião. Há a TV Square, plataforma relação, acrescendo novos marcos teóricos à que reúne comentários sobre programas de TV discussão, em busca de refl exionar um pouco postados em outras mídias sociais. Nesse site, mais sobre as estratégias sensíveis que apare- o SBT tem se destacado por ocupar sempre os cem no encontro entre telespectador e emisso- primeiros lugares nos rankings de programas e ra e que possuem características, a nosso ver, canais mais comentados: únicas no contexto brasileiro.

Durante o mês de julho, os programas da emis- Encontros e afetos: sora de Silvio Santos foram alvo de 30,8% dos comentários publicados nas redes; as produções um approach teórico da Globo somaram 21,4% no mesmo período e as da Record, 8,6% [...]. É comum na TV ver A palavra comunicação tem, em sua raiz apresentadores pedirem ao público para acessar etimológica, o termo comum, o que é perten-

1 As palavras fã, audiência e recepção indicam, em igual medida, os seguidores do SBT. Sabemos da proeminência dos estudos sobre a cultura do fã – como o de Jenkins (2008) –, mas nosso objetivo primeiro foi mapear esse contexto, deixando a discussão relativa aos fãs para uma oportunidade posterior.

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cente ou referente a muitos. Há algo implícito, dando suas formas de signifi car e agir face à que é a relação estabelecida entre os comuni- vida. É preciso, portanto, levar em conta que cantes, a relação, no dizer de Spinoza, entre as pessoas e as coletividades geram territórios dois ou mais corpos. O autor, ao falar sobre o existenciais, que estão onde tais sujeitos estive- ato de afetar, diz de um corpo que entra em rem e infl uem em sua forma de ser e estar no relação com outro corpo e se combina ou não mundo (cf. Rolnik, 2006). com ele. Aqui, corpo não signifi ca apenas a Muniz Sodré (2006) pontua que a lógica questão física propriamente dita, mas tam- do sensível, do sentimento e da emoção está bém a poesia, a arte, e, em nosso caso, a mídia. presente na televisão e por isso importa pensar O encontro de corpos aumenta ou não a potên- não apenas o conteúdo que ela produz, mas as cia de agir: “O afeto é o aumento e a diminui- formas pelas quais o faz, pois nela encontra- ção da potência de agir de um corpo” (Macha- mos convencimento, persuasão e sedução para do, 2009, p. 76). com quem a assiste. A maneira como a televi- Essa relação faz surgir algo novo, algo que são constrói e divulga seu conteúdo mexe com é resultado ou fruto da convivência entre tais as emoções do telespectador e isso não pode corpos, que não é de um ou de outro, mas que ser sumariamente ignorado, sob o risco de se dá no contato. A novela, o fi lme, a notícia perder de vista, inclusive, seu potencial de for- são, por exemplo, encontros entre eventos e mação, de cidadania e de educação, apesar de autores, entre acontecimento e jornalista, bem todas as críticas viáveis hoje feitas a esse meio. como entre a televisão e o telespectador, em Em contrapartida, quando o telespectador res- meio ao qual um novo se dá. A comunicação é, ponde, interage nas redes sociais, ele responde portanto, uma superfície de contato, uma in- afetando também a emissora, fazendo surgir, terface, sobre a qual os corpos interagem entre na medida em que ambas se interafetam, a as afecções – o estado de um corpo sofrendo a possibilidade de um novo, que mobiliza afetos ação de um outro corpo (Deleuze, 1978) – e os de alegria ou de tristeza, que podem potencia- afetos, que seriam as transições entre um esta- lizar ou não as partes envolvidas. do e outro. Com base nos dados levantados nesta pes- Há uma série de percepções sendo resga- quisa, podemos perceber que a televisão, par- tadas hoje sob uma gama de autores distintos ticularmente a experiência dos SBTistas, pode acerca do fato de que o ser humano necessi- ser estudada na perspectiva do afeto, numa ta, de fato, de estruturas além da racionalida- perspectiva que busca evidenciar como acon- de, pelas quais possa apreender a existência. tece um encontro entre os territórios existen- Merleau-Ponty (1994), por exemplo, destaca o ciais dos telespectadores, como suas memórias lugar do corpo como interface com o mundo, e afetos são instrumentalizados pela emissora o que inclui os sentidos e as emoções. Outros a partir de sua programação e quais são as for- autores que seguem pisadas similares desdo- mas de relacionamento com estes. bram-se sobre as chamadas “estratégias sen- síveis”, ou seja, as formas pelas quais tanto o O lugar da memória nos encontros e conhecimento quanto as relações sociais hu- afetos entre emissora e espectador manas podem se constituir por outros vieses além da razão. Valorizam-se os sentidos e as Como parte desse afeto, há um importan- emoções, redescobre-se o lugar do corpo nas te espaço para a memória. Ela é o gatilho pelo questões de conhecimento, e superam-se as qual se constrói discursivamente um laço que conhecidas dicotomias entre corpo e mente e reúne os telespectadores em torno de ancora- corpo e alma, que não podem mais responder, gens e sentimentos de pertença vinculados à afi nal, às demandas e às situações experiencia- emissora. As contribuições de Maurice Hal- das cotidianamente. bwachs (2006) trazem consistência à discussão, Segundo Deleuze, valendo-se dos concei- já que, para ele, a memória é uma construção tos de Spinoza, o afeto é uma primeira forma do presente a partir do passado. “Se o que ve- de conhecimento e diz respeito a “novas for- mos hoje toma lugar no quadro de referências mas de sentir” (Deleuze, 1992, p. 203-204). Li- de nossas lembranças antigas, inversamente gada a essa noção, está a de desejo, vista como essas lembranças se adaptam ao conjunto de força motriz da produção da sociedade, que nossas percepções do presente” (Halbwachs, faz sujeitos agregarem-se, de modo individu- 2006, p. 29). al ou coletivo, promovendo territorializações, As lembranças podem ser explicadas a par- desterritorializações e reterritorializações, mu- tir de um quadro social do qual fi zemos par-

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te direta ou indiretamente, sendo que nossas lecer um contato direto com os agentes desse experiências individuais passam por uma ex- fenômeno para obtermos subsídios que con- periência coletiva, que reforça e dá sentido a tribuam para a compreensão dos valores, das práticas atuais. práticas e dos discursos que estão em jogo na identidade construída por eles. Tal método de Claro, se a nossa impressão pode se basear não obtenção de informações foi selecionado prin- apenas na nossa lembrança, mas também na de cipalmente devido à sua adequação ao objeti- outros, nossa confi ança na exatidão de nossa re- vo da pesquisa: captar as marcas da experiên- cordação será maior, como se uma mesma expe- cia subjetiva da identidade desse grupo. riência fosse recomeçada não apenas pela mesma As limitações foram outro motivo que leva- pessoa, mas por muitas [...]. Assim que evocamos juntos diversas circunstâncias de que cada um de ram à seleção dessa ferramenta metodológica, nós lembramos (e que não são as mesmas, em- já que o único contato com os entrevistados é bora relacionadas aos mesmos eventos), conse- pela internet, pois as fontes residem em dife- guimos pensar, nos recordar em comum, os fatos rentes locais do país. Dadas as condições de passados assumem importância maior e acredi- viabilidade, tivemos que formatar as pergun- tamos revivê-los com maior intensidade, porque tas como uma entrevista fechada, segundo a não estamos mais sós ao representá-los para nós classifi cação de Duarte (2009), que coloca sob (Halbwachs, 2006, p. 29-30). essa nomenclatura as entrevistas realizadas por questionários estruturados, com as mes- A memória é pertinente em nosso estudo mas perguntas para todos os informantes, porque contribui para o fortalecimento do sen- para que se possa estabelecer uniformidade e timento de grupo, não apenas referindo-se a comparação entre as respostas, enviadas via uma reconstrução historiográfi ca, mas como Facebook. As perguntas foram elaboradas se- reforço da coletividade, de uma identidade gundo o quadro conceitual abordado na pes- relativa a um padrão comportamental (ideias, quisa, abrangendo aspectos como a formação sonhos, pensamentos) moldando uma “comu- de identidades em torno do SBT e a comuni- nidade afetiva” (Fraga, 2005, p. 124) mediada dade surgida nesse entorno, além da identifi - e estimulada pelos meios de comunicação – no cação com a fi gura de Silvio Santos e do SBT; caso, o SBT. contudo, no presente recorte, privilegiamos as É o que parece acontecer com os SBTistas, questões em que emergiram a afetividade e a cuja identidade é legitimada, entre outros ele- memória com o canal. mentos, por um passado compartilhado que Já a seleção dos entrevistados foi feita com gera identifi cação e unidade entre os membros base no critério de participação: após consul- dessa comunidade, que tem como um dos ta em grupos, blogs e Twitt er, convidamos os principais pilares a história da emissora que membros mais ativos. Apesar de a amostra seguem. ser relativamente pequena, é válida se pensar- mos no aspecto qualitativo, já que abarca par- A coleta dos dados ticipantes ativos do processo a ser estudado. De 14 convidados, nove aceitaram responder Entendendo a incipiência do fenômeno es- às perguntas. Para fi ns de registro e maior faci- tudado e evitando a precipitação em escolher lidade na visualização dos dados, no contexto quaisquer metodologias fechadas, optamos de uma pesquisa acadêmica, eles serão refe- por nos apropriar de “ferramentas” de meto- renciados pela letra S, em alusão à nomencla- dologias variadas, num esforço de adequação tura “SBTista”, acompanhada dos números 1 a àqueles procedimentos que julgamos mais 9. Os entrevistados, cujos nomes foram oculta- pertinentes ao nosso objeto de estudo. Assim, dos por questão de privacidade, estão agrupa- a metodologia foi composta de duas etapas dos e qualifi cados no quadro abaixo: principais. (b) Análise das entrevistas (a) Entrevistas A segunda etapa da metodologia consis- Primeiramente, como instrumento de co- tiu na análise de conteúdo (Bardin, 2011) do leta de dados, escolhemos ferramentas da material coletado nas entrevistas para levantar entrevista em profundidade (Duarte, 2009), os campos de sentido mais signifi cativos nos acreditando que, com base em depoimentos relatos dos SBTistas. Reunimos os textos das dos próprios SBTistas, seria possível estabe- entrevistas e, após algumas leituras explora-

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Quadro 1. SBTistas entrevistados. Chart 1. SBTistas interviewed.

Identificação Ocupação Idade Atuação como SBTista na pesquisa Fundador do blog SBTpedia, escreve artigos de opinião sobre a emissora. Também S1 Advogado 24 anos participa ativamente no Twitter interagindo com diretores, artistas e fãs do SBT. Participa do blog Clube do SBTista com uma S2 Estudante 18 anos coluna e interage no Twitter. Participa expressivamente com comentários S3 Estudante 18 anos e posts no grupo SBT #Compartilhe. Apresenta um web programa no blog Clube S4 Backing vocal 20 anos do SBTista. Funcionário Público S5 e estudante de 23 anos Redator do Portal SBTista. História Estudante de Participa de discussões no Twitter com S6 22 anos Jornalismo outros SBTistas. Participa dos grupos SBT #Compartilhe,SBT Assistente Connected e já foi à sede da emissora S7 25 anos Comercial diversas vezes, tendo participado do game show Um contra 100 especial com SBTistas. Participa ativamente com comentários e S8 Estudante 18 anos posts no grupo SBT #Compartilhe. Participa em redes sociais divulgando a Consultor emissora, já foi moderador da principal S9 22 anos Comercial comunidade do SBT no Orkut, SBT oficial. É seguido por artistas do SBT no Twitter. tórias, compilamos as respostas em categorias S2: Eu sou desses caras que gosta de sofrer sabe? para fi ns de organização e estruturação dos No futebol torço para o Juventus, time da terceira temas a serem discutidos e realizamos o trata- divisão do Campeonato Paulista, então acho que mento dos resultados. dá pra imaginar né? No fi nal das contas, todo mundo sabe que o que vai acontecer ou não no SBT não nos afeta em nada, mas é muito gostoso Análise dos dados todo esse clima [...]. Imagina como deve ser, ser fã da Globo? Não tem emoção nenhuma né? Sempre (a) Características gerais da identidade na ponta... agora quando o SBT belisca a lideran- ça, meu amigo, é uma festa haha! SBTista Os entrevistados destacam que, entre as Indagados sobre o que é ser SBTista, os en- práticas de um verdadeiro SBTista, está a de trevistados tentam explicar fazendo uma ana- criticar, tendo uma visão sensata sobre as deci- logia à manifestação vista em relação aos times sões da emissora, principalmente de seu dono, do futebol: eles dizem que ser SBTista é torcer Silvio Santos. Eles acreditam que, dessa forma, pela emissora; não apenas gostar dela e/ou de além de se divertirem interagindo nas redes seus artistas e programas, mas vibrar a cada li- sociais, contribuem para o sucesso da empre- derança de audiência conquistada ou chatear- sa, como se fossem funcionários ou voluntá- -se com as derrotas. Tais como as pessoas que rios para uma “causa” maior que os une – “o acompanham movimentações de jogadores bem do SBT”. em times ou o placar de qualquer campeona- to, os fãs do SBT estão atentos ao desempenho S7: Nunca sabemos se tem algum diretor ron- da emissora. dando os grupos para saber opiniões a respeito

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do SBT, então talvez essa seja a oportunidade de trevistas ora como uma característica inata ao demonstrar suas ideias e de repente ajudar o SBT indivíduo, ora adquiridos por intermédio de de alguma maneira. símbolos e sentidos apresentados pelos meios de comunicação, como a televisão. Em agosto de 2013, a insatisfação dos fãs tomou forma e ganhou relativo destaque na S4: Acredito que eu nasci SBTista, desde crian- internet quando o blog SBTpedia publicou um ça assistia à programação infantil, e cresci ven- manifesto, que entre outros itens, repudiava as do a TV Mais Feliz do Brasil. Desde pequeno, repentinas mudanças de horário e dia de exi- quando mudavam o canal para qualquer outra bição de programas. A iniciativa ganhou apoio emissora, eu preferia sair para brincar. de mais de 400 internautas, que assinaram o S6: Minha infância foi muito na frente da te- “documento”. levisão. De repente percebi que tinha um canal que assistia mais, que era o SBT. Eu brincava Nós, integrantes do SBTpedia, repudiamos as de apresentador, eu criava grades de programa- últimas atitudes tomadas pela direção do SBT ção... Tudo baseado em formatos que existiam no e reivindicamos ao Sr. Silvio Santos [...] que a SBT. grade da emissora fi que estável, apelamos pela diminuição das novelas e enlatados que tomaram conta da emissora e o restabelecimento efetivo da O SBT investe em programação infan- grade dominical como se encontrava (SBTpedia, til desde sua fundação, com o palhaço Bozo 2013b). e programas com artistas voltados para as crianças, como Mara Maravilha, Angélica, e Logo, nota-se que essa identidade não fi ca Eliana, além de novelas infanto-juvenis. Com apenas no âmbito de gosto pessoal ou identifi - essa estratégia, a emissora faz parte da história cação, mas mobiliza uma série de práticas con- de vida do telespectador e de seu imaginário sideradas “atitudes de SBTista”, fazendo parte quando se recorda da infância. Lindhberg e do cotidiano dessas pessoas: Pollake (2012) atestam que

S4: Além de assistir ao SBT, administro duas [...] o SBT sempre foi a que dedicou mais tempo fanpages com assuntos relacionados à emissora, à programação infantil [...]. Em 1988, os progra- administro 4 grupos, sou diretor geral do blog mas infantis chegaram a ocupar 72,06% da gra- Clube do SBTista, e apresento um web progra- de de programação e fecharam a década ocupando ma sobre o SBT. ainda 65,69%. Na década de 2000 houve uma queda no percentual, apesar de os índices se man- Para verifi carmos como se dá a relação dos terem bem acima da média das outras emissoras (Lindhberg e Pollake, 2012, p. 10). SBTistas com as outras emissoras, pergunta- mos se era possível gostar de outro canal além Assim, podemos visualizar uma tentativa do SBT; praticamente todos disseram sim, mas de “volta ao passado”, como exposto por Ka- evidenciaram que torcer, só pelo canal de Sil- thryn Woodward (2000), já que a autora refor- vio Santos. ça o pensamento de que, para autenticar uma S2: Eu não consigo não acompanhar as novelas identidade, entre outras iniciativas, está a bus- da Globo e assistir a um ou outro programa da ca de um suposto passado em comum entre os Record ou Band, por exemplo. Mas esse gostar membros de qualquer grupo: é completamente diferente de ser torcedor dessas emissoras. Ao afi rmar uma determinada identidade, pode- mos buscar legitimá-la por referência a um su- (b) A preferência pelo SBT como hábito posto e autêntico passado – possivelmente um passado glorioso, mas, de qualquer forma, um de infância passado que parece “real” – que poderia validar a identidade que reivindicamos (Woodward, 2000, Buscando entender as possíveis motiva- p. 27). ções e a origem da preferência pelo SBT, per- guntamos aos entrevistados desde quando O trecho acima pode ser utilizado para eles se consideravam SBTistas. Praticamente explicar o fenômeno em questão, até mesmo todos disseram que têm esse costume desde na afi rmação de um “passado glorioso”. Isso quando eram crianças, já que se habituaram porque, nas entrevistas, em vários momentos, a assistir à programação infantil do canal. As- foram citados os tempos áureos do SBT, ca- sim, tais traços identitários aparecem nas en- racterizados por uma grade de programação

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consolidada e produções de qualidade – que em seu cotidiano, em sua autorrepresentação e parecem não voltar mais: em seus modos de pensar e agir. A relação entre os espectadores e a emis- S7: Existem pessoas hoje que se defi nem SBTistas sora é marcada, a partir das entrevistas, por pela ótima performance que o SBT tinha com a momentos de aumento da potência, quando grade do passado, Bom Dia & Cia, Casa da An- a programação da emissora agrada-os, evoca gélica, Jô Onze e Meia, Topa Tudo por Dinheiro, Éramos Seis, entre outras coisas que eram de sentidos ou leva à mobilização (como Deleuze grande nível, e que em termos de programação, explica, o aumento da potência leva à ação), hoje não é a mesma coisa; houve uma decaída. bem como quando eles interagem com ela di- retamente, seja através das redes sociais ou Há também uma clara tentativa de asso- das visitas à sede. Esse encontro gera afi rma- ciação da história da emissora à trajetória de ções identitárias que os telespectadores consi- vida do fã; pensando-se nas ideias de Hall deram como positivas. (2006), é possível perceber a busca por uma É claro que há muitas questões críticas que “narrativa do eu”, uma história que explique se possa levantar neste ponto. Muniz Sodré uma identidade central, à qual são atreladas (2006) aponta o cenário de que, na tecnologia as várias outras personas assumidas pelo in- da informação, a sensibilidade é mobilizada divíduo em determinados contextos. Essa apenas para gerar prazer ou emoção, mas não narrativa serviria, segundo o autor, como para gerar harmonia ou equilíbrio. Nessa situ- um conforto para o sujeito, uma fantasia que ação, “o afeto é capturado, ora pela produção, sustentaria a suposta existência de uma iden- ora pelo consumo” (Sodré, 2006, p. 61), e isso tidade fi xa. No esforço de estabelecer uma não é o melhor que se pode gerar. Há, na re- analogia, dizemos que há a procura por uma lação entre mídia e espectador, um potencial “certidão de nascimento” – no caso dos SB- relacional, mobilizador, que se pode construir. Tistas, muito infl uenciada pela TV. Se a televisão gera a emoção, proporciona o prazer e combina isso a um conteúdo relevan- S1: Acompanhava muito os programas infantis te para o espectador e leva-o a também afetá- da emissora, principalmente com a Eliana e o -la, uma transformação social em termos rela- Disney Club e acho que isso contribuiu na ques- tão de gerar uma identidade. A grade infantil cionais e educativos de amplo espectro seria somada a atrações mais jovens, como Programa possível. Observe-se a fala: Livre e Passa ou Repassa fi zeram com que eu ti- vesse uma “continuidade”, ou seja, na medida S1: O SBT representa para mim uma emissora que eu ia crescendo eu ia tendo um retorno da pela qual me vejo representado, pela qual tive emissora para acompanhá-la. sempre uma grande identifi cação e que nunca tive qualquer receio em defendê-la, porque sem- A emissora parece investir cada vez mais pre acreditei nos princípios que nortearam sua nessa estratégia de “vínculos afetivos nostál- história e seu dono. gicos”, produzindo releituras de produtos que fi zeram sucesso no passado (além de Repete-se aqui uma tendência encontrada outras iniciativas que serão destacadas pos- nas outras entrevistas, de que os SBTistas indi- teriormente). cam estar cientes não só de que sua identidade Podemos ainda falar numa vinculação en- individual e como grupo é marcada pelos va- tre o SBT e uma certa ideia de brasilidade, já lores e sentidos emitidos pelo SBT, mas con- que as entrevistas compartilham de alguma seguem também visualizar uma identidade semelhança com valores próprios de um este- própria da emissora; por isso, diversas vezes, reótipo do que é ser brasileiro. Assim, assistir à afi rmaram que ela é diferente das outras, tem emissora evoca construções simbólicas de um seu “DNA” próprio. ethos do brasileiro, como superação, força de Essa percepção tem a ver com o poder das vontade, alegria, popularidade; um “jeitinho pessoas de serem afetadas. Elas estão poten- brasileiro” que o SBT assume e exalta – já que cialmente abertas a isso. É por isso que pode- é o sistema brasileiro de televisão. mos reconhecer que, até essa altura da nossa Assim, de modo geral, as falas dos entre- pesquisa, a relação dos SBtistas com a emisso- vistados trazem à tona a questão dos afetos, ra é baseada no que Spinoza e Deleuze tratam discutida na primeira parte de nosso artigo. como paixão. Isso porque não existe ainda uma Percebe-se que há uma relação entre telespec- autonomia: a alegria e a tristeza da relação tador e emissora, no sentido de que esta o afeta expressam-se como resposta dos espectadores

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às ações ou às omissões da emissora (cf. Ma- Dessa forma, em meio à busca por audiên- chado, 2009, p. 78-79). Uma possibilidade a se cia, é possível perceber que o SBT tenta, em seu estudar é como se poderia gerar uma mídia discurso, transmitir a ideia de vinculação entre capaz de trabalhar os afetos para além dessa indivíduo e emissora, que faz parte da vida de primeira etapa do conhecimento, como sen- cada um que assiste ao seu conteúdo. Não por sações, caminhando em direção a uma “posse acaso, nos últimos dez anos, o canal tem res- formal” da potência de agir dos telespectado- gatado programas que deram certo nas épocas res (Machado, 2009, p. 81). A experiência SB- “áureas” (que compreendem principalmente Tista, no sentido do encontro, pode ser signifi - as décadas de 80 e 90). Das atrações2 esponta- cativa, dada sua singularidade. neamente lembradas nas entrevistas, prevale- No que tange ao encontro dos telespecta- cem produções antigas, extintas ou ainda em dores com a emissora, algumas particularida- exibição, e todas rememoram, nostalgicamen- des citadas foram seu apelo popular, a “voca- te, um passado de conquistas do SBT. ção” para programas de auditório, a “leveza” Isso também pode ser visto em slogans como da programação, a independência editorial de “15 anos com você” e “30 anos com você”, que seu jornalismo, a exibição de novelas mexica- reforçam a ideia de que a emissora está sempre nas etc. presente na vida do público. Em 2011, em co- Ainda podemos mencionar a própria im- memoração aos seus 30 anos, o canal veiculou bricação que há entre Silvio Santos e seu canal, o Festival 30 anos, que rememorou os princi- que merece análise à parte, por envolver tanto pais acontecimentos de sua história. Interessa a perspectiva de Silvio como empresário, mas notar que, no site do programa, há uma seção também como herói mítico, cuja história de vida em que os telespectadores mandavam suas possui capacidades específi cas de afetação. histórias relacionadas ao SBT. Através de posts como “As aulas que matei pela Mara e pela Estratégias da emissora: a Angélica” e “Conheci meu grande amor ven- do o Jornal do SBT”, a estratégia de vinculação instrumentalização dos afetos por entre trajetória do SBT e trajetória do público meio da volta ao passado se confi rma. Outro fator de vinculação pode ser a infl uência de Silvio Santos, que sempre Dada a realidade atual de instabilidade de apresentou programas aos quais as avós dos audiência, os SBTistas, por diversas vezes, re- hoje SBTistas assistiam; assim, gostar do SBT correm ao já referido “passado glorioso” – que surge como quase uma “herança” de família não volta mais – para justifi car o seguimento (como disseram alguns SBTistas). ao SBT. Percebemos que é o que parece ocorrer Mais recentemente, há um movimento de em relação à programação infantil: a tradição reviver o passado por meio da teledramatur- da emissora nesse tipo de programação é tão gia, algo que começou com a nova versão da consolidada que, devido a vínculos históricos novela Carrossel: apostou-se que os pais que, com a trajetória de sucesso do canal, alguns quando crianças, acompanharam a trama se- programas são citados por alguns entrevista- riam capazes de estimular seus fi lhos a assis- dos que nem chegaram a assisti-los, mostran- tirem à novela – e foi o que aconteceu, o que do que há uma espécie de discurso pronto fez a emissora repetir a tática, realizando um para sustentação dessa identidade. remake de Chiquititas, que tem alcançado a vi- Reiteramos que, nessa busca por uma iden- ce-liderança diariamente. tidade consistente e perdida, acabamos por O canal também tem veiculado diaria- produzir novas identidades, ressignifi cando, mente, às 18h30min, alguns programas anti- com base no que já passou, o que estamos vi- gos, que, exibidos na faixa Quem Não Viu Vai vendo. “Assim, essa redescoberta do passado Ver, preenchem um horário problemático em é parte do processo de construção da identi- termos de audiência. Deve-se relembrar a dade que está ocorrendo neste exato momen- verdadeira tradição do SBT em reprisar pro- to e que, ao que parece, é caracterizado por duções, como, por exemplo, o seriado Chaves, confl ito, contestação e uma possível crise” veiculado desde 1984, e as novelas mexicanas, (Woodward, 2000, p. 12). que, atualmente, ocupam praticamente toda a

2 São eles: Chaves, novelas mexicanas, Passa ou Repassa, Disney Cruj, Éramos Seis, Programa Livre, A praça é Nossa, Show do Mi- lhão, Casa dos Artistas, Programa do Ratinho, Programa Silvio Santos, Domingo Legal, Bom Dia & Cia, Casa da Angélica, Jô Soares Onze e Meia, Topa Tudo por Dinheiro.

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tarde do canal – dos 5 folhetins em exibição, fl uxos e interações, a mídia ocupa um papel fun- um é inédito, um é um remake e os outros três damental. Se compreendermos [...] que a memó- são reprises. Alguns casos chamam atenção, ria é uma dimensão fundamental na constituição como o de Maria do Bairro, Marimar e A Usurpa- de identidades e que envolve práticas narrativas e gerenciamento do real através de práticas discur- dora, que, sempre que vão ar, elevam a audiên- sivas, a mídia é, por defi nição, lugar central deste cia do canal. A novela Amigas e Rivais, quando processo (Enne, 2004 in Fraga, 2005, p. 106). exibida pela segunda vez, obteve mais sucesso do que sua apresentação inédita e mais audi- O crítico de TV Mauricio Stycer ressalta ência do que a novela Amor e Revolução¸ à épo- uma identidade própria do SBT, a qual parece ca em sua primeira exibição. ser utilizada a seu favor: Dessa forma, parece haver um movimento de circularidade da programação, que, sendo Para o bem e para o mal, este espírito alegre, mas intencional, causado pelos mais diversos fato- anacrônico, está inscrito no DNA da TV inau- res (falta de recursos para produção de inédi- gurada em 1981. Não falo apenas das quase 90 tos, ordens de Silvio Santos, tentativa de obter novelas da Televisa, do “Chaves” e do “Chapolin audiência de modo rápido), forja um ethos que Colorado”, que desde o início abrilhantam a sua dota o SBT de fortes ligações com o passado, a programação. As grandes atrações da história memória e com a história de cada telespecta- do SBT, desde Silvio Santos a Gugu Liberato, dor. Isso porque, ao rever algum programa, o de Hebe Camargo e Ratinho à “Praça É Nossa”, transmitem esta sensação – a de uma emissora público revê sua própria trajetória – o que es- realmente feliz, mas deslocada no tempo [...]. Pa- tava acontecendo em suas vidas quando uma rece claro que há não apenas público, mas merca- novela passava no canal – e cria laços com o ca- do interessados num tipo de programação mais nal. Não por acaso, diariamente, aparecem, no simples, sem o mesmo acabamento oferecido pela Facebook, no grupo SBT #Compartilhe, vários concorrência e que produz o efeito de deslocar o posts pedindo a volta de séries, novelas e pro- espectador no tempo (Stycer, 2012). gramas. Outra tentativa da emissora de estabele- Nesse sentido, esta pode ser uma alternati- cer uma identifi cação com o público pode ser va frente às constantes mudanças da televisão, vista nas vinhetas institucionais que, de modo já que geral, exaltam a amizade construída ao longo dos anos, como as peças comemorativas dos 23 A ex-TVS está presente na memória de muita anos do canal, que trazem telespectadores re- gente – cada um teria um programa ou uma his- lembrando fatos de suas vidas que estão liga- tória diferente para contar, uma memória queri- da, um momento de cumplicidade com a telinha. dos à trajetória do SBT (a menina que sempre Quando o SBT se refere a si mesmo como a TV quis participar do Boa Noite Cinderela, o piloto mais feliz do Brasil, pode ser que não estejam de Fórmula Indy que teve sua vitória exibida brincando, ou apenas fazendo marketing [...]. pelo canal etc). Na busca pela adesão entre TV Talvez esteja neste carinho a força para que o SBT e receptor, a locução diz: “SBT. A nossa histó- se reencontre consigo mesmo, que ache o caminho ria é com você”. O SBT aparece como “cúm- da retomada (Garcia, 2011). plice”, próximo de quem o assiste, e diz em algumas das peças: Assim, se o SBT, muitas vezes, não pode competir com outras emissoras em termos de Logo de manhã, e você já está ligado no SBT. Em técnica, recursos e elenco, a memória afetiva todos os momentos. Em todos os lugares. Afi - acena como um diferencial. Talvez seja por isso nal, a gente é de casa. Chega e fi ca à vontade pra que embora não angarie mais a audiência de brincar, acompanhar, e pra alegrar o dia a dia da décadas passadas, o “canal de Silvio Santos” família brasileira. Então tá combinado: nada de continue obtendo comprovada popularidade. mudar de canal! Afi nal, uma grande amizade é assim (Youtube, 2011). Considerações fi nais Tais iniciativas fazem sentido se pensarmos no potencial que a mídia tem de contribuir O estudo permite-nos dizer que os SBTis- para a formação de identidades – também por tas confi guram um “novo auditório” na web: meio de narrativas acerca de fatos passados: o público passa por uma reconfi guração, mas mantém os laços de afetividade entre si e com No jogo de construção de identidades sociais os apresentadores, participando não de ginca- contemporâneas, neste movimento constante de nas no palco, mas em tweets e posts. O SBT não

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tem público, telespectador ou fi el, mas tem fre- Ademais, a especifi cidade de nosso objeto guês, aquele que se habituou a “comprar” no evoca diversas questões para análises posterio- mesmo lugar, embora saiba que nem sempre res que versem sobre de que modo as demais as opções serão boas. A analogia faz sentido emissoras de televisão podem mobilizar ade- se pensarmos na grade da emissora como uma quadamente o fenômeno de empatia na busca “programação camelô”, explicando a maneira por uma relação de afeto com seus públicos e como Silvio Santos trata sua empresa, tirando como isso pode se converter em audiência. do ar o que não encontra muitos “comprado- De qualquer modo, a refl exão abre a ne- res”, e buscando produtos que satisfaçam à cessidade do diálogo entre a emissora, neste clientela, mesmo que temporariamente. caso particular, como responsável pelos con- A análise indiciária até aqui construída, e teúdos, pelas formas e pelas estratégias que que abre a possibilidade para amplos debates a constituem, e os indivíduos que compõem e desdobramentos, indica-nos que a constru- sua audiência. Para esse diálogo, Muniz Sodré ção da identidade SBTista não se estabelece lembra-nos que é preciso observar os fatores tanto pelo conteúdo dos programas, mas mui- cognitivos e as experiências anteriores que po- to mais por uma ideia que se faz do SBT, uma dem permitir a percepção do “novo bios midi- percepção da emissora como um todo e do que ático” (Sodré, 2006), que é justamente esse mo- ela representa para o telespectador. São rela- mento em que os afetos sensíveis devem ser ções baseadas em afeto, paixão e memória, en- mobilizados de modo que a televisão, em par- tre outros fatores que se podem futuramente ticular, possui a capacidade de afetar, de des- analisar. Mesmo quando eles citam determina- pertar ou de mobilizar o desejo e de conduzir, do programa, fazem-no em relação ao todo do se bem direcionadamente a uma alegria, nos canal ou em relação a Silvio Santos. termos de Spinoza. Um afeto que gera alegria Cria-se então uma admiração baseada em é aquele que aumenta a potência do ser. uma verdadeira utopia, segundo a qual os A experiência dos SBtistas aponta-nos a ne- fãs estão sempre esperando algo da emissora cessidade de levar em conta as estratégias sen- – sua liderança de audiência, a oportunidade síveis na relação entre as pessoas, os meios e a de conhecer sua sede, a volta de alguns pro- mídia, de modo que a refl exão seja mais com- gramas que fi zeram história etc. Tal esperança preensiva e libertadora. O afeto já é um elemen- permanece viva graças à possibilidade de par- to crucial nas práticas dos meios e veículos de ticipação dos SBTistas, que, por meio das redes Comunicação e deve ser mobilizado adequa- sociais, podem fazer chegar à emissora suas as- damente para problematização de fenômenos pirações, seus sonhos e suas contribuições. como o dos SBTistas. Há aí um contexto que Essa afeição é fortemente instrumentaliza- une a demanda pela incorporação da experiên- da pela emissora, que busca apelo em aspec- cia sensível nos estudos de Comunicação e os tos de memória individual e comunitária, em possíveis modos de se converter a afeição em discursos e características que fazem aproxi- audiência, confi gurando um panorama desa- mação com o imaginário de brasilidade, e no fi ador e merecedor de mais estudos como este. caráter popular e de abertura construído pela emissora – tanto em suas vinhetas e em seus Referências programas, como na interação que realiza com seus telespectadores por meio das redes so- BARDIN, L. 2011. Análise de Conteúdo. Lisboa, Edi- ciais e de eventos voltados aos SBTistas. ções 70, 280 p. Por enquanto, seria plausível pensar nessa DELEUZE, G. 1978. Le Cour de Gilles Deleuze. Dis- relação em termos de paixão, conforme visto, ponível em: htt p://www.webdeleuze.com/php/ texte.php?cle=194&groupe=Spinoza&langue=5. o que leva a uma mobilização – mas ainda não Acesso em: 20/03/2014. à plenitude emancipatória da capacidade de DELEUZE, G. 1992. Conversações. São Paulo, Editora agir. Num mundo em busca de novas possi- 34, 240 p. bilidades de interação, de superação da tec- DUARTE, J. 2009. Entrevista em profundidade. In: J. nologização em termos de novos saberes, nos DUARTE; A. BARROS (org.), Métodos e Técnicas de quais os afetos e as subjetividades sejam mais Pesquisa em Comunicação. São Paulo, Atlas, p. 62-83. levados em conta, a experiência SBTista, por FRAGA, K.L. 2005. Laços de família: a construção de uma comunidade de afeto no Programa Jairo Maia. abrir perspectivas, pode e deve ser levada em Niterói, RJ. Dissertação de Mestrado. Universi- conta como objeto de estudo, tanto no âmbi- dade Federal Fluminense, 159 p. to da Comunicação quanto de outras ciências GARCIA, C. 2011. SBT 30 anos – Muito amor!!! Dis- que se debruçam sobre o humano. ponível em: htt p://possocontarcontigo.blogspot.

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