UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

Hikel Brauwn Ribeiro de Morais

A ARTE DOS MÁGICOS: CORPO, PERFORMATIVIDADE E ENGANAÇÃO

NATAL/RN 2019

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

A ARTE DOS MÁGICOS: CORPO, PERFORMATIVIDADE E ENGANAÇÃO

HIKEL BRAUWN RIBEIRO DE MORAIS

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Naira Neide Ciotti

Natal 2019

HIKEL BRAUWN RIBEIRO DE MORAIS

A ARTE DOS MÁGICOS: CORPO, PERFORMATIVIDADE E ENGANAÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – Strictu Sensu – Mestrado Acadêmico em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Artes Cênicas.

Linha de pesquisa: interfaces da cena: políticas, performances, cultura e espaço.

Orientadora: Profa. Dra. Naira Neide Ciotti. Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes – DEART

Morais, Hikel Brauwn Ribeiro de. A arte dos mágicos : corpo, performatividade e enganação / Hikel Brauwn Ribeiro de Morais. - 2019. 104 f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2019. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Naira Neide Ciotti.

1. Performance. 2. Mágicos. 3. Arte da mágica. 4. Performatividade. I. Ciotti, Naira Neide. II. Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 793.8

HIKEL BRAUWN RIBEIRO DE MORAIS

A ARTE DOS MÁGICOS: CORPO, PERFORMATIVIDADE E ENGANAÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – Strictu Sensu – Mestrado Acadêmico em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Artes Cênicas.

Linha de pesquisa: interfaces da cena: políticas, performances, cultura e espaço.

Orientadora: Profa. Dra. Naira Neide Ciotti. Universidade Federal do Rio Grande do Norte

BANCA EXAMINADORA:

Profa. Dra. Naira Neide Ciotti Presidente (PPGArC/UFRN)

Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek Membro Interno (PPGArC/UFRN)

Prof. Dr. José Amâncio Tonezzi Rodrigues Pereira Membro Externo (DAC/UFPB)

Natal 2019

AGRADECIMENTOS

Ao corpo familiar, em especial à minha mãe.

Ao corpo docente que me acompanhou durante o mestrado, professores e professoras do Departamento de Artes da UFRN. Um agradecimento especial à minha orientadora Naira Ciotti, pela parceria, pelas correções, por toda a dedicação e pela paciência também.

Às professoras Patrícia Leal, Lara Rodrigues Machado, Melissa Lopes e Luciana Lyra, pelas lições, pela disponibilidade e por proporcionar momentos mágicos de aprendizado.

Aos professores Robson Haderchpek e Marcílio Vieira, coordenadores do PPGArC no período que iniciei esta pesquisa. Ao primeiro em especial, pela amizade e parceria em cena e no dia-a-dia, e pelo olhar neste trabalho.

Aos responsáveis pela manutenção do corpo do Departamento de Artes, funcionários, técnicos e prestadores de serviço. Ao secretário Bruno Oliveira por toda a dedicação empregada e apoio na viabilização dos processos. À instituição CAPES por prover os meios para a realização desta pesquisa.

Aos corpos que se relacionam com o meu, minhas amizades, especialmente as mais próximas: Tom Oliver, Bia Câmara, Dani Torres, Charlles Queiroz, Jackie Costa, Ju Mendes, Herich Krause, Milena Augusto, Mathews Braga, Angie e João Paulo (Iboia). À querida Dessa Oliveira, pelo apoio, paciência e dedicação.

Aos colegas da turma que partilham essa aventura comigo, empenhados em suas pesquisas. Gratidão em especial para Rodrigo Cunha, Monique Maritan, Janine Leal, Raiana Paludo e Rita Tatiana.

Aos corpos que compartilharam comigo a mesma residência: Pedro, Fabrício, Jana, Vivian, Valéria e Thayanne, pela parceria, apoio e partilha de experiência nessa fase da minha vida.

Aos colegas mágicos que acompanham meu desenvolvimento na arte e nos estudos, especialmente aos envolvidos diretamente neste trabalho: Rapha Santacruz, Diego Deckmann, Nicolás Pierri, Jeffy, Bernardo Sedlacek, Thiago Eto, e um vasto grupo. Bem como, à colega e pesquisadora Chris Galdino pela hospitalidade, companheirismo e generosidade que acrescentou muito na construção desta escrita.

E aos meus mestres e mestras em vida que acompanham e participam da minha formação pessoal, artística, profissional, enfim, que formam meu corpo de saberes e experiências, muito obrigado!

RESUMO

Esta pesquisa é um estudo experimental sobre a arte dos mágicos. Analisamos e discutimos alguns dos processos criativos desencadeantes utilizados por esses artistas como elementos técnicos que promovem a ilusão, formas de fazer e agir e o universo subjetivo do artista. Estabelecemos relações com as artes cênicas, os livros de referência e as anotações de palestras de mágicos, diluindo fronteiras epistêmicas. Três elementos pontuam esta investigação: o corpo do performer, a performatividade e a natureza de sua arte. Entrevistas e relatos de experiências foram analisados nesta pesquisa, considerando também o próprio processo artístico do pesquisador. A discussão teórica propõe diálogos com autores das artes cênicas, performance teatral e performativa, abordando os aspectos práticos e teóricos relacionados à formação de mágicos.

Palavras-chave: Performance, Mágicos, Arte da Mágica; Performatividade; Atuação

ABSTRACT

This research is an experimental study on the art of magicians. We analyze and discuss some of the creative processes triggered by these artists as technical elements that promote the illusion, ways of doing and acting and the subjective universe of the artist. We established relationships with the performing arts, reference books and magician lecture notes, diluting epistemic boundaries. Three elements punctuate this investigation: the body of the performer, the performativity and the nature of its art. Interviews and reports of experiences were analyzed in this research, also considering the artist's own artistic process. The theoretical discussion proposes dialogues with authors of the performing arts, theatrical and performative performance, addressing the practical and theoretical aspects related to the formation of magicians.

Keywords: Performance, Magicians, Art of , Performativity, Acting

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 - DESLUMBRAMENTO DE UMA CRIANÇA NUMA APRESENTAÇÃO DE MÁGICA.. .. 16

FIGURA 2 – DANTÉ E BLACKSTONE, PUBLICIDADE INÍCIO DO SÉCULO XX...... 18

FIGURA 3 - JULIANA CHEN...... 20

FIGURA 5- O MENTALISTA APRESENTANDO CABINE ESPIRITUAL...... 24

FIGURA 4 - IRMÃOS DAVENPORT. PUBLICIDADE DO SÉC. XIX...... 24

FIGURA 6 - CHUNG LING SOO. ILUSTRAÇÃO DO AUTOR...... 25

FIGURA 7 - ...... 27

FIGURA 8 - JOGO DE ADAPTAÇÃO ...... 31

FIGURA 9 - DAVID BLAINE. ILUSTRAÇÃO DO AUTOR...... 39

FIGURA 10 - THE CONJURER (BOSCH)...... 41

FIGURA 11 - HOUDINI...... 46

FIGURA 12 - ROLETA RUSSA...... 46

FIGURA 13 - RAPHA SANTACRUZ EM HARU, A PRIMAVERA DO APRENDIZ...... 50

FIGURA 14 - JOSEPH BEUYS - I LIKE AMERICA AND AMERICA LIKES ME...... 54

FIGURA 15 - ENCONTRO COM UM XAMÃ...... 56

FIGURA 16 - ESQUEMA DE COMPOSIÇÃO "POR ETAPAS" ...... 79

FIGURA 17 - PERFORMANCE O EREMITA...... 80

FIGURA 18 - ESQUEMA DE COMPOSIÇÃO WORK IN PROCESS...... 81

FIGURA 19 - ESQUEMA COMPOSIÇÃO POR LIGAÇÃO...... 82

FIGURA 20 - ESCAPE INVERTIDO NA PONTE NEWTON NAVARRO, PREPARAÇÃO...... 88

FIGURA 21 - ESCAPE INVERTIDO VISTO DE OUTRO ÂNGULO...... 89

FIGURA 22 - O DEPENDURADO...... 90

FIGURA 23 - TRAVESSIA. SEQÜÊNCIA DE PREPARAÇÃO ...... 91

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 1 SOBRE AS TRADUÇÕES ...... 6

I PRAESTIGIUM

1. A ARTE DOS MÁGICOS ...... 13 1.1 ORIGEM E ETIMOLOGIA ...... 13 1.2 MÁGICO, UM TIPO DE ATOR ...... 21 1.3 MÁGICOS – VERTENTES E LINHAS DE ATUAÇÃO ...... 22 1.4 REALIDADE E ILUSÃO ...... 28 1.5 CONVICTION E DECEPTION ...... 33 1.6 A MÁGICA COMO UM JOGO DE ILUSÃO ...... 38 1.6.1 TRICKSTER ...... 41 1.6.2 JOGO PROFUNDO E JOGO OBSCURO ...... 43

II SHOWMANSHIP

2. TEATRALIDADE E PERFORMATIVIDADE NA ARTE DOS MÁGICOS ...... 49 2.1 ESTUDOS DA PERFORMANCE ...... 51 2.2 O TEATRAL E O PERFORMATIVO – MODOS DE ATUAÇÃO ...... 64 2.3 APROXIMAÇÕES ENTRE MÁGICA E PERFORMANCE ...... 72 2.3.1 PROCESSOS CRIATIVOS ...... 72 2.3.2 TREINAMENTO E PREPARAÇÃO ...... 74 2.3.3 WORK IN PROCESS NA ARTE DOS MÁGICOS ...... 79

III UMWELT

3. EXPERIMENTOS PRÁTICOS ...... 86 3.1 O ESCAPE INVERTIDO ...... 86 3.2 TRAVESSIA ...... 90 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 91 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 95

INTRODUÇÃO

O relato mais antigo sobre uma apresentação de mágica encontra-se no Papiro de Westcar, ele narra uma demonstração realizada para o Faraó Khufu (Quéops) por um mago chamado Dedi, que dentre muitos feitos, diziam ser capaz de restaurar a vida em seres decapitados. Dedi foi convidado a apresentar sua mágica, mas deixou claro que não poderia realizar o ato em seres humanos, então decapitou um ganso, exibindo em separado o corpo e a cabeça do animal, e após alguns gestos, uniu as partes, restituindo- lhe a vida. Tal habilidade impressionou o Faraó, e Dedi repetiu o feito, dessa vez utilizando um touro (RANDI, 1992). A despeito de toda a conotação mística o que ocorrera neste relato se configura como uma cena: basta um homem atravessar um espaço vazio enquanto outro o observa para que ocorra uma ação cênica (BROOK, 2000), a esta cena de ilusão, entretenimento e magia, que em alguns pontos se ampara em axiomas teatrais e em outros parece assumir uma forma performativa, quando sistematizada numa codificação expressiva, é conhecida por Arte da Mágica. Dessa passagem contida no papiro, em que apresenta um ato mágico e também um ato cênico, iniciamos os questionamentos incitados na presente investigação: sem que a mágica deixe de ser o que é, uma vez delimitado seu lugar neste estudo, como poderia expandir o campo de conhecimentos das artes cênicas? Como a teatralidade e/ou a performatividade se evidenciam numa atuação em mágica? Dentro dessa perspectiva o mágico seria um ator, um performer, um artista híbrido? Quais contribuições e/ou ampliações para as artes cênicas resultarão das correlações propostas nesta pesquisa? São questões que permeiam o estudo realizado e são respondidas na medida do possível em suas especificidades em cada capítulo.

Compreender tais pontos de contato entre teatralidade e performatividade com esta forma de expressão, como na atitude e preparação de seu atuante é o objetivo desta pesquisa, bem como, expandir o campo de conhecimentos e diálogos sobre processos compositivos na cena contemporânea, tendo como foco o corpo (sua práxis e poiesis), o modo de atuação e a utilização dos dispositivos que compõem o campo de conhecimento desses artistas na realização de suas façanhas, em outras palavras, um estudo da Arte dos Mágicos.

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A Arte dos Mágicos: corpo, performatividade e enganação é uma pesquisa de natureza qualitativa, descritiva, de caráter exploratório. As etapas de realização deste estudo consistiram, inicialmente em pesquisa documental seguida de análise do referencial bibliográfico. Depois entrevistas num formato semi-estruturado, com relatos e descrição de experimentações artísticas por mágicos de reconhecido trabalho e experiência na área, realizadas durante alguns congressos de mágica, visitas pessoais e comunicação pela internet. Finalizando com uma síntese pelo olhar deste autor- pesquisador, que a partir de sua familiaridade e experiência com o tema, aprofundou a discussão nos pontos propostos neste estudo, realizando também experimentos práticos.

O primeiro capítulo aborda a arte da mágica a partir de uma análise sobre a origem dessa forma de arte, apresentando alguns termos técnicos e especificidades no trabalho do mágico, bem como um esboço da figura desse artista entendendo suas transformações estéticas e poéticas no decorrer da história, encerrando com a compreensão dos termos Conviction e Deception (NELMS, 2000), em suas diferentes traduções, interpretações e aplicabilidade na composição da cena. No segundo capítulo detalhamos o esboço da figura do mágico e aprofundamos o estudo de sua arte sob as lentes da antropologia e estudos da performance, apresentando ao leitor os pontos de contato que os mágicos estabelecem com a teatralidade e a performatividade e propondo uma problematização no modo de atuação desses artistas. Ainda no segundo capítulo apresentamos as vozes dos mágicos que participaram deste estudo, que nos falam de seus processos criativos e como compreendem teatralidade e performatividade na arte da mágica. O terceiro capítulo apresenta os resultados práticos desta pesquisa realizando uma desmontagem de processo, e uma síntese do conteúdo nas considerações finais.

Foram pesquisados trabalhos que se aproximam desta temática assim como a produção dos diversos escritos que relacionam a arte da mágica com as artes cênicas, muitos desses escritos se encontram em plataformas virtuais (sites e blogs) assim como em livros-manuais, sem vínculo diretamente acadêmico, mas voltados especificamente aos praticantes de mágica e leitores em geral. Dentre os principais trabalhos acadêmicos que se aproximam desta pesquisa, destaca-se no Brasil a tese de doutorado de Ricardo Harada A tentativa do impossível: a arte mágica como matéria poética da cena teatral (2012), defendida no Programa de Pós-Graduação em Artes na Unicamp. Sua tese propõe uma combinação entre mágica e teatro na busca por uma poética singular, realizando, num primeiro momento, uma

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extensa pesquisa histórica, documental, sobre a Arte da Mágica, seguido de um estudo de caso, em que apresenta suas composições, comentadas e analisadas na tentativa de explicitar sua teoria, é uma obra que apresenta uma visão abrangente desta forma de arte, fazendo aproximações com as artes visuais e o teatro, resultando numa riqueza de referências e procedimentos de criação para as artes da cena. Apontamos também algumas leituras que fazem correlações entre mágica e outros temas como, estudos em teatro e artes cênicas, processos criativos, relatos antropológicos, história, literatura, psicologia e neurociências; Dentre as quais citamos: The Conjuring (, 1992), em que o autor aborda a cultura da mágica a partir de ilusionistas1 amplamente reconhecidos na história, além de sua visão pessoal sobre o desenvolvimento da mágica na modernidade e pós-modernidade. Strong Magic (Darwin Ortiz, 1994), livro que aborda a apresentação de mágica, explicando teorias sobre o uso apropriado de técnicas em diferentes situações. Le secrets de La prestidigitation et de La magie (Robert-Houdin, 1868), trata-se de parte da obra de Robert-Houdin, considerado o ―pai da mágica moderna‖, um manual autobiográfico com indicações para uma boa execução de números de mágica. Hiding the elephant (Jim Steinmeyer, 2003), livro histórico ressaltando os efeitos e equipamentos utilizados pelos mágicos. Los cinco puntos mágicos (Juan Tamariz, 2005), os cinco pontos mágicos para uma boa apresentação. É uma das teorias desenvolvidas pelo prestigiado cartomago2 espanhol Juan Tamariz. The Show Doctor (Jeff McBride, L. Hass, 2012), também uma das obras mais atuais na mágica, se utiliza da linguagem da medicina para ―diagnosticar‖ e ―tratar‖ dos problemas artísticos no fazer dos mágicos por meio de exemplos e sugestões críticas, conta com a ampla experiência dos autores envolvidos. Miracle Mongers (, 1920), um dos livros de Harry Houdini3 que busca compreender o corpo numa perspectiva cultural e biológica a partir de técnicas seculares da mágica indiana tais como, técnicas para caminhar sobre brasas, manipular fogo, regurgitar objetos ou engolir espadas, relata também um pouco da história de performers que se apresentavam em Vaudevilles4 e freakshows5. Magic: 1400s – 1950s

1 O termo, neste ponto, tem o mesmo significado de mágico. Embora que o termo ilusionista também tenha uma vertente que se refere a um estilo de teatro. 2Cartomago é a designação dada a um mágico especialista em números com cartas de baralho. 3 Harry Houdini (Erich Weiss) foi um mágico húngaro naturalizado norte americano que se tornou famoso por realizar apresentações de escapismo com fugas impossíveis de algemas, camisa-de-força, correntes, caixas, entre outros elementos. É considerado um dos mágicos mais importantes na história da mágica. 4 Vaudeville (identificado também como varieté) refere-se a um formato de apresentação de show que mistura música ao vivo, dança, canto e atrações artísticas das mais diversas, criando atos sem uma ligação

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(Mike Caveney, J. Steinmeyer, Ricky Jay, 2009), enciclopédia ilustrada e detalhada da história da mágica de 1400 a 1950. Sleights of mind (Stephen L. Macknik, Susana Martinez-Conde, 2010), resultado de uma pesquisa acadêmica dos autores neurocientistas que pesquisaram a percepção e os processos que ocorrem no cérebro de um espectador de mágica. Mysterious Stranger (David Blaine, 2002), livro documental e biográfico do mágico David Blaine apresentando parte de seus processos criativos, referencial artístico e ideias pessoais. Buscando com esta pesquisa expansões no campo epistêmico das artes cênicas a partir de uma base inaugural de diálogos e experimentações, propomos apresentar ao meio acadêmico elementos de uma linguagem artística pouco pesquisada em nível nacional, realizando a tradução de seu referencial teórico para o nosso idioma e estreitando as relações entre arte e pesquisa. Confere também para o Programa de Pós- Graduação em Artes Cênicas da UFRN a dianteira de uma temática pouco abordada como pesquisa no Brasil com a possibilidade de ampliação de uma teia de diálogos da cena contemporânea com artistas e pesquisadores do corpo, da performance, mágica e artes da cena no geral.

Meu encontro com esta forma de arte se deu durante a infância, em um passeio escolar. Na ocasião, encontrei um mágico que vendia alguns números simples, dos quais fui participante em um deles, mais adiante falarei sobre este número. Muito tempo depois, ao assistir um especial de TV sobre um mágico de rua, revivi a experiência ocorrida na infância e também senti estar compartilhando da reação das pessoas no vídeo. A partir de então o que era um apreço tornou-se um interesse, levando-me a estudar e praticar mágica e com o tempo transformar essa prática numa profissão, numa pesquisa e num caminho. Hoje, ao longo de dez anos de estudo e atuação, tendo buscado conhecimento com mágicos de diversas partes do mundo em congressos no Brasil, minha curiosidade sobre alguns fenômenos específicos desta forma de arte me levou aos questionamentos desta pesquisa, que também se conecta com o estudo realizado durante a graduação no curso de Licenciatura em Teatro da UFRN, sob o título: A máscara da ilusão - uma

dramatúrgica, com o intuito de entreter. Esse formato ficou muito famoso na América do Norte durante períodos de Guerra Civil. 5 Freak show ou ―Show de aberrações‖ foi um formato de ―show‖ popular no começo do século XX que consistia na exibição de pessoas ou animais com anomalias/alterações físicas (provenientes de doenças ou deficiência física), com a popularidade do formato a busca por novidades implicou que os ―performers‖ também realizassem façanhas.

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proposta de aproximação pedagógica da arte do mágico com a arte do ator6 (2014), trabalho que aproxima mágica e teatro pelo viés do Jogo Teatral.

Na arte contemporânea, a experimentação de diferentes configurações de cena e a adição de elementos advindos de outras artes e outras estéticas na busca por um processo genuíno, tocante e vivo, nos gera questionamentos sobre o nosso fazer e nossos processos criativos, nos levando a repensar nossas práxis e dialogar com as de outros artistas. O diálogo com artistas da cena contemporânea na linha de composição ou atuação deste pesquisador tornou-se um dos principais motivos direcionadores e estimulou descobertas importantes neste trabalho, tais como, a compreensão de seus disparadores criativos no processo de composição cênica, a seleção de material referencial para agregar à pesquisa e a comprovação dos modos de atuação analisados, contribuindo também com suas perspectivas sobre os conhecimentos desenvolvidos. No referente aos artistas implicados neste estudo temos no Nordeste do Brasil o mágico Rapha Santacruz que mescla em seu processo criativo as características da cultura regional do Nordeste brasileiro e manifestações da cultura popular, desaguando na estética de suas apresentações. Sua pesquisa artística também o direciona para experimentações em teatro e mágica, nos quais se destacam as obras Abracasabra e Haru: A primavera do aprendiz, realizadas entre 2011 e 2017, o espetáculo Roda (2016) que trabalha com a linguagem do teatro de rua e do circo. E recentemente o Figuras Mágicas (2017) fruto de um intenso processo criativo na elaboração de efeitos de mágica inéditos. Em âmbito nacional enfatizamos o trabalho de mágicos que atuam no período de uma década, aperfeiçoando sua arte no trabalho diário, os quais destaca-se nesta pesquisa: Bernardo Sedlacek, Gustavo Vierini, Guilherme Ávila, Eric Chartiot, Hugo Moraes, Goldini, Cláudia Guedes, Thiago Eto, Jeffersson Alves (Jeffy), bem como a dupla Vik & Fabrini, especificamente no trabalho de Fabrini Crisci que além de mágico é artista visual e flerta com a performance tanto no trabalho com live painting7, quanto nas intervenções com personagens esdrúxulos, como: Oxi e o Realejo; O Mercador de luzes; e o boneco no ato em parceria com Vik. Também foi de grande

6 Trabalho de Conclusão de Curso realizado no ano de 2014 sob orientação do Prof. Me. Makarios Maia, A escrita aborda o treinamento técnico do ator e do mágico sob o ponto de vista das ações físicas e do jogo teatral, o como princípio fundamental na arte da ilusão e o conceito de Jogo aplicado às artes cênicas como elemento compositivo, realizando uma aproximação pedagógica entre teatro e mágica. 7 Uma forma de performance em que o artista compõe sua obra ao vivo, assistido por espectadores, muitas vezes acompanhado por música ao vivo.

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interesse as entrevistas com o cartomago argentino Nicolás Pierri e o mago paraguaio Diego Deckmann (Dante), colegas que atuam fora do país.

SOBRE AS TRADUÇÕES

Para nos aproximarmos de alguns pontos importantes na compreensão deste trabalho iniciamos por tratar especificamente de justificar a não tradução de alguns termos, pois realizar tal transição pode comprometer a semântica dos escritos. Na arte dos mágicos ou ilusionismo8, alguns termos podem não possuir tradução para outros idiomas, uma possível explicação seria por terem seu significado completamente alterado, ou porque o termo faz uma referência direta ao seu autor. Palavras como , Misdirection, Hellstromism, Conviction, Deception, entre outras, fazem parte da linguagem técnica utilizada na mágica. Algumas são expressões usuais, como é o caso de Flash, para dizer que algo que deveria ter passado despercebido foi visto, mesmo que durante um instante (dizemos: deu um flash!). Outros termos estão associados ao seu criador ou quem promoveu a técnica, é o caso de Hellstromism (ou Hellstromismo), uma leitura de sensações por hiperestesia apresentada como ―leitura de pensamentos‖, o termo faz homenagem ao mágico Axel Hellström (RANDI, 1992, p. 203). Hoje também é conhecida por Cumberlandism, em alusão a Stuart Cumberland que aprimorou a apresentação. A tradução de um termo se assemelha mais com a solução de um quebra-cabeça do que a ideia de transformar a palavra. Um quebra-cabeça no qual as diferentes perspectivas vão complementando a noção geral do termo a ser traduzido. Na problemática aqui levantada sobre a impossibilidade de traduzir alguns termos, os quais serão vistos nessa pesquisa muitas vezes em sua forma original, consideramos algumas teorias sobre tradução, as mais recentes datando do final do século XX. Destacamos Haroldo de Campos9 em seu ensaio Da tradução como criação e como crítica, quando nos fala sobre a impossibilidade, em princípio, da tradução de textos criativos em refutação a uma perspectiva anterior, que previa a tradução mais desligada do interesse

8 A arte dos mágicos partilha de conhecimentos e métodos desenvolvidos para o teatro ilusionista do século XIX, porém diverge do teatro enquanto finalidade. O teatro ilusionista surge com a utilização da iluminação elétrica na cena, fato que revolucionou o modo de pensar a encenação e inaugurou o teatro moderno. Objetivo do teatro ilusionista era que o espectador confundisse a ficção do espetáculo com a realidade (ROUBINE, 1998). 9 Haroldo de Campos foi um importante poeta e tradutor brasileiro, cunhou o termo ―transcriar‖, e traduziu para o português os clássicos da literatura tais como Homero, Dante, Goethe, Maiakosviki, entre outros. 6

contextual, desligada da subjetividade da interlocução. Ele nos apresenta a tradução como uma arte da transcriação, pois se vê diante do problema que é a ―fragilidade‖ da informação estética: ―uma informação semântica ou documental admite diversas codificações, mas uma informação estética não pode ser codificada senão pela forma em que foi transmitida pelo artista‖ (CAMPOS, 2006). Propondo a tradução como uma recriação ou co-criação e a ideia da tradução como arte, e servindo-se das teorias da Escola de tradutores de Paulo Ronai que implicam a tradução com esse caráter:

O objetivo de toda arte não é algo impossível? O poeta exprime (ou quer exprimir) o inexprimível, o pintor reproduz o irreproduzível, o estatuário fixa o infixável. Não é surpreendente, pois, que o tradutor se empenhe em traduzir o intraduzível. (RONAI apud CAMPOS, 2006, p. 34-35).

Haroldo de Campos aponta uma solução para o problema com a tradução propondo o trabalho cooperativo do tradutor lingüista com o tradutor artístico (poeta) no comprometimento da adequada tradução e conferindo um valor semelhante ao do texto original. Para ele traduzir é transcriar, de certo modo trair, mas também transcrever, reapresentar.

O problema da tradução criativa só se resolve, em casos ideais, a nosso ver, com o trabalho de equipe, juntando para um alvo comum linguistas e poetas iniciados na língua a ser traduzida [...] É necessário que o artista (poeta ou prosador) tenha da tradução uma ideia correta, como labor altamente especializado, que requer uma dedicação amorosa e pertinaz, e que, de sua parte, o professor de língua tenha aquilo que Eliot chamou de ―olho criativo‖, isto é, não esteja bitolado por preconceitos acadêmicos, mas sim encontre na colaboração para a recriação de uma obra de arte verbal aquele júbilo particular que vem de uma beleza não para a contemplação, mas de uma beleza para a ação ou em ação. (CAMPOS, 2006, p. 46-47).

Traduzir também remete a compreender no (e com) o corpo determinada significação, levando em consideração as conexões estabelecidas com os diferentes corpos ao nosso entorno, como nos fala a professora e pesquisadora Christine Greiner10:

10 Dra. Christine Greiner é professora, jornalista e pesquisadora. Leciona na Pontífica Universidade Católica de São Paulo PUC/USP. Coordena o curso de Graduação em Comunicação e Artes do Corpo, curso que ajudou a criar. Desenvolve em parceria com Helena Katz o conceito de Teoria Corpomídia.

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Um dos modos de dar visibilidade aos processos de tradução e significação está relacionado ao que se costuma chamar de ‗presença do corpo‘. [...] A noção de presença do corpo seria um dos momentos desta tradução-deslocamento, em que algo se presentifica (uma ação, uma ideia, uma imagem) e ganha visibilidade, estabelecendo um novo processo de comunicação com o seu entorno (plateia e contexto) [...] Neste caso, a presença do corpo seria a carne do corpo, mas também as suas conexões não apenas com diferentes objetos, mas com realidades plurais, ou seja, um fluxo de informações não apenas individuais, mas eminentemente coletivas. (GREINER, 2010, p. 93-96).

Seguindo este pensamento, é importante considerar numa tradução o contexto ao qual determinada significação está relacionada. Esse ―[...] contexto vai incluir um sistema cognitivo (mente), mensagens que fluem paralelamente, memória de mensagens prévias, experienciadas, e a antecipação de futuras mensagens, que ainda serão traduzidas à ação, mas que existem como possibilidade.‖ (GREINER, 2010, p. 124). Obviamente a não consideração desse contexto pode comprometer a tradução, gerando equívocos ou incompletude da interpretação. Grande parte das expressões técnicas utilizadas no ilusionismo foi difundida mundialmente na língua inglesa, sendo algumas aproximadas de traduções do francês. É o caso dos escritos de Jean Eugene Robert-Houdin sobre prestidigitação (escamoutage), o termo é traduzido para inglês como Sleight of hand, que por sua vez nos foi traduzido como habilidade das mãos, o problema é que, em alguns casos se entendeu ‗habilidade‘ como ‗agilidade‘ o que desencadeou para o senso comum a ideia de que a prestidigitação correspondesse à velocidade (nas mãos). Teoria refutada pela perspectiva mais atual na mágica, que propõe a lentidigitação11, ou seja, quanto mais lento se faz um efeito mais mágico ele aparenta ser aos olhos de um espectador. Um dos mais famosos escritos de Robert-Houdin, considerado o ―pai da mágica moderna‖, orienta que um mágico não deve ser rápido ou virtuoso, tal qual um malabarista, mas hábil e preciso. Esse relato antecede a frase mais conhecida de sua autoria, a de que um mágico seria como um ator. Em seu livro Les Secrets de La Prestidigitation et de La Magie, Houdin escreveu:

Un prestidigitateur n‘est point un jongleur ; c‘est un acteur jouant un rôle de magicien ; c‘est un artiste dont les doigts doivent êtres plus habiles que prestes. J‘jouterai même que,

11 Lentidigitación é um termo criado pelo ilusionista argentino René Lavand, que contrapõe a ideia de rapidez na mágica.

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dans le exercices de prestidigitation, plus les mouvements sont calmes, plus doit être facile l‘illusion des espectateurs.12 (ROBERT-HOUDIN, 1868, p. 54).

Entretanto, a tradução feita por Hoffman foi amplamente difundida em língua inglesa desta maneira: ―A conjuror is an actor playing the part of a magician‖. Que traduzimos aqui como: ―Um conjurador é um ator fazendo o papel de um mágico‖. Ou seja, é uma edição da tradução da primeira linha, apartada do contexto. Se analisarmos a escrita original, considerando o contexto em que foi aplicado: ―Un prestidigitateur n‟est point un jongleur ; c‟est un acteur jouant un rôle de magician[…]”., Robert-Houdin, neste escrito dizia que um mágico não deveria ser como um malabarista (que realiza truques), mas como um ator (que convence). Falava especificamente sobre a prática da prestidigitação, não da aproximação entre um mágico e um ator. Era sobre o mágico ser hábil ao invés de ágil. Essa imprecisão na tradução gerou uma série de constatações ingênuas por parte da comunidade de mágicos ao se compararem com atores, como se essa frase garantisse que todo mágico seria um ator. O lado positivo foi que levou alguns mágicos ao estudo da arte teatral. ―Heidegger acreditava que só era possível traduzir uma palavra se o tradutor fosse conduzido para o pensamento em que tal palavra se fez necessária, ou seja, para o horizonte de experiência a partir do qual a palavra se enunciou.‖ (GREINER, 2010, p. 15). Seguindo este pensamento, acreditamos que manter algumas palavras mais próximas de sua forma original amplie o horizonte de compreensão do leitor, que certamente pesquisará as diversas perspectivas de interpretação para os termos, na busca de uma compreensão plena e extensa em correlações. Como exemplo, temos o seguinte termo, que tentaremos desembaralhar neste recorte e que não possui uma palavra correspondente para outros idiomas, mas formas curtas de tradução. Esse termo é o Misdirection, um conceito fundamental na arte dos mágicos. Misdirection é como chamamos a habilidade de conduzir a atenção dos espectadores, seja com o uso das mãos, da manipulação de objetos, olhar, ações ou demais elementos. Conforme William Tarr, autor de Now you see it now you don‟t:

Se há uma palavra que descreva a maior essência do Sleight of hand, essa palavra é misdirection. As mãos não são mais rápidas que o olho, mas são (ou podem ser) mais

12 ―Um conjurador não é um malabarista; ele é um ator que interpreta o papel de um mágico; ele é um artista cujos dedos devem ser mais hábeis do que perfeitos. Inclusive acrescentarei que, no exercício da conjuração, quanto mais os movimentos são calmos, mais fácil deve ser a ilusão dos espectadores.‖ Tradução nossa.

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espertas [...] Sleight of hand depende, não de rapidez, mas de misdirection, que é o processo de desviar a atenção do espectador daquilo que você não quer que ele veja, para aquilo que você quer. [...] Conforme obtenha habilidade você irá perceber que estará desviando a atenção de sua audiência fácil e naturalmente, mesmo sem querer.13 (TARR, 1976, p. 17, tradução nossa).

Compreender uma perspectiva de tradução para o termo misdirection não significa compreender seu emprego. Essa seria uma compreensão mais ampla do conceito e da sua aplicação, além do fato também, de muito se ter desenvolvido sobre misdirection desde o escrito de Will Tarr. Neste recorte apontamos a impossibilidade de tradução plena de algumas palavras, especificamente na tradução de conceitos. Pois a sistematicidade, conforme Greiner, que nos permite entender um aspecto de um conceito em termos de outro, vai necessariamente esconder outros aspectos do conceito. Por isso, os conceitos não abarcam a totalidade dos fenômenos aos quais se referem (GREINER, 2010, p. 128). Se pesquisarmos algumas traduções para o termo misdirection, encontraremos: direção errada, falsa direção, distrair, desorientar, confusão. Verbetes que de fato perpassam pela ideia, mas nos explicam brevemente do que se trata, sem abarcar a totalidade do conceito. Se voltarmos para a abordagem de TARR (1976), sob a perspectiva de um mágico, a tradução ganha um detalhamento para além de simples ―distração‖ e pressupõe que se trata de mecanismos (ações simultâneas, intervalos de tempo, condução do olhar por gestos, sobreposição de informações, etc.) que não somente desviam o olhar da plateia, mas conduzem sua percepção. Tomando como exemplo a palavra misdirection, a questão que se apresenta é como traduzir uma informação documentária (empírica, observável) e semântica (que acrescenta detalhes além do observável) sem perder a totalidade de significados ao passo que esta se apresenta em outra língua. Esperamos que essa tentativa de explicação do termo Misdirection tenha exemplificado a discussão sobre a precariedade das traduções. Uma vez que traduzir em escrita a prática artística que envolve este estudo já se configura como um desafio em tradução. Convidamos o leitor a um breve jogo.

13―If there is one word which sums up the very essence of sleight of hand, that word is misdirection. The hand isn‘t quicker than the eye, but it is – or can be – far more clever. [...] Sleight of hand depends, not on quickness, but on misdirection, which is the process of diverting the spectator‘s attention from that which you don‘t want them to see, to that which you do. [...] As you gain skill you will find yourself misdirecting your audience easily and naturally, without even trying.‖

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I

PRAESTIGIUM

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1. Enquanto lê estas linhas respire profundamente e tente esvaziar sua mente. 2. Perfeito, agora procure ao seu redor a maior quantidade de objetos que brilham. Memorize-os. 3. Feito isso, respire profundamente, agora feche os olhos e tente lembrar quantos objetos de cor preta (ou outra cor à sua escolha) há ao seu redor. 4. Vai parecer difícil, porque a atenção estava focada em outra instrução quando olhou ao redor, esse é um dos princípios de como funciona o Misdirection.

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1. A ARTE DOS MÁGICOS

1.1 ORIGEM E ETIMOLOGIA

Magos, mágicos, milagreiros, bruxas, sacerdotes pagãos, prestidigitadores, médiuns, xamãs, comedores de fogo, faquires, feiticeiros, conjuradores... Todos estes indivíduos parecem lidar com o sobrenatural, com o que consideramos mágico. Podemos destacar o aspecto mítico da mágica presente em sua estrutura, que se repete e se reinventa no tempo como, por exemplo, o ato de caminhar sobre a água, ou reconstituir o que fora destruído ou, até mesmo, o de superar a morte. Assim como o aspecto mágico se mostra presente nas narrativas míticas, seja no destino dos personagens, no próprio conto, ou no ato de narrar. A arte da mágica é fascinante! Ela parece estar presente em todas as culturas humanas conhecidas, para o mágico e historiador Ricky Jay, ela é, após a música, a mais antiga forma de arte. No livro Performing Magic on Western Stage (COPPA, HASS e PECK, 2008) contata-se que:

A arte da mágica é mais do que meramente antiga. Também é surpreendentemente universal. Parece que toda cultura conhecida teve um lugar para a magia: conjuração em práticas religiosas antigas, rituais xamânicos de cura, faquires nas ruas de Calcutá, artistas poéticos na China e no Japão, oráculos antigos e contemporâneos, grandes salões e telas de televisão em seis continentes, salas de exposições gigantes em Las Vegas, tio Bob e seus truques de cartas e artistas de rua em todo o mundo. Uma vez que começamos a percebê-la (e depois estudá-la), encontramos magia em tudo ao redor - um pulso que corre em culturas humanas, próximas e distantes, passadas e presentes14. (COPPA et al., 2008, p. 15, tradução nossa)

A mágica nos põe em contato direto com o mistério, nos aproxima culturalmente, como o fazem outras formas de arte e nos possibilita experimentar uma jornada, uma história, uma surpresa. Podemos observar nas diversas culturas humanas conhecidas um fascínio pelos fenômenos que não se sabiam a causa, a esse aspecto que

14 ―Performance magic is more than merely ancient. It is also astonishingly universal. It seems that every known culture has had a place for magic: conjuring in ancient religious practices, shamanic rituals of healing, street fakirs in Calcutta, poetic artists in China and Japan, ancient and contemporary oracles, great stages and television screens across six continents, mammoth showrooms in Las Vegas, Uncle Bob and his card tricks, and street corner entertainers the whole world over. Once we start noticing it (and then studying it), we find magic all around—a pulse that runs throughout human cultures, near and far, past and present.‖

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parece ser inerente à humanidade e de forte valor formativo, pois estimula a consciência por meio da admiração que proporciona aos seus espectadores, chamamos de mágica ou magia. O fogo, por exemplo, foi por muito tempo considerado um elemento mágico, incontrolável, uma qualidade dos deuses, um presente dado ou conquistado para a humanidade. É, ao mesmo tempo, mistério e iluminação. Em seus simbolismos representa o gênio criativo, a arte, a cultura, como o fogo roubado dos deuses e dado à humanidade por Prometeu, mas também um elemento destrutivo, purificador, finalizador. Diversos são os mitos que nos explicam o domínio e aquisição do fogo. O artista-pesquisador Ricardo Harada, analisa com cuidado a origem da mágica em sua tese A tentativa do impossível: a arte mágica como matéria poética da cena teatral. Ele nos mostra a proximidade e influência que a arte da mágica, sob o nome de magia atuou em determinados períodos da humanidade, se utilizando dos conhecimentos das ciências naturais. Em sua reconstrução histórica, Harada relata um dos mais importantes contos da história da mágica, a apresentação do mago Dedi para o faraó Quéops, mencionado na introdução desta pesquisa, possivelmente o mais antigo escrito sobre mágica, produzido há quatro mil anos:

A referência histórica conhecida mais antiga, é o ―Westcar Papyrus‖, documento egípcio encontrado em 1823, atualmente em poder do museu estatal de Berlim. [...] seu conteúdo relata histórias e fatos ocorridos por volta de quinhentos anos antes de sua redação. [...] O documento descreve a apresentação de um mago chamado Dedi, em uma exibição para a corte do faraó. Nesta demonstração, a cabeça de um ganso vivo foi decapitada e depois restituída. Após esse feito, o faraó ordenou a Dedi a repetição da proeza. O pedido foi prontamente atendido, duas vezes mais, de forma ligeiramente distinta: primeiro com um pelicano, e em seguida, com um boi. (HARADA, 2012, p. 15)

Também menciona um evento da história de Moisés, descrita na Bíblia, quando este desafia os magos do faraó. E destaca os tratados de Heron de Alexandria contendo os planos de construção de mecanismos considerados mágicos ou milagrosos para a época, mas que faziam uso de princípios muito conhecidos hoje, como pneumática e hidráulica. Tais mecanismos eram utilizados para causar um grande assombro ou deslumbre que Harada identifica com o conceito de thaumaston, elucidado por Aristóteles ―a palavra thaumaston remete ao arrebatamento ou maravilhamento diante de um acontecimento que não se conhece a causa‖ (HARADA, 2012).

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A ideia de thaumaston, nos leva aos taumaturgos, também chamados de ―realizadores de milagres‖. Diferentemente dos mágicos na Idade Média e na contemporaneidade, os taumaturgos não tinham o objetivo de ―entreter‖, seu assombro possuía uma conotação mística, como se fosse um intermédio para mensagens divinas. O objetivo maior do taumaturgo não estava ligado ao entretenimento ou a diversão, mas à demonstração da existência de uma força divina, sobrenatural. Para Harada esse detalhe diferencia o taumaturgo do mágico, ele aponta também que as apresentações de Dedi tinham uma aproximação estrutural maior com a mágica moderna e atual:

Dois aspectos são dignos de nota nestes relatos: em primeiro lugar, os feitos realizados por Dedi não se diferem de muitos efeitos realizados por mágicos modernos e contemporâneos, tanto em forma quanto em conteúdo; em segundo lugar, o modo como Dedi procede ao lidar com seu espectador, o faraó. O mágico sempre controla as condições de sua apresentação. Dedi recusa o pedido do faraó, de decapitar um de seus prisioneiros e inicia sua demonstração com um ganso, aumentando gradualmente a dificuldade da apresentação, culminando com a decapitação e ressurreição de um boi. Por ser maior que um ser humano, o feito aparenta ser mais difícil de realizar. O princípio ―de plus en plus fort‖ e o controle sobre o desejo da platéia, ludibriada ao bel prazer do ilusionista, ligam Dedi diretamente aos prestidigitadores modernos. (HARADA, 2012, p. 15-16)

Tal distinção entre a taumaturgia dos milagreiros e o ilusionismo realizado por Dedi delimita melhor nossa abordagem epistêmica, pois do ponto de vista técnico de análise para esta pesquisa, utilizaremos o entendimento de Harada por arte mágica:

...Também conhecida como magia teatral, ilusionismo, prestidigitação, jogos de mão e escamoteio. A arte mágica visa produzir ilusões de impossibilidade, sobre-humanas e sobrenaturais, por meio de artifícios naturais desconhecidos por suas testemunhas. Nesta arte, o impossível, o sobrenatural e o mágico são simulados como em um jogo teatral. (HARADA, 2012, p. 11)

Seguindo esta linha de pensamento, consideramos que a mágica é uma arte de criar a aparência de magia, ou seja, a simulação do que se entende por magia – o pleno controle da natureza por feitiços ou encantamentos – com o fim de entreter uma audiência.

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O termo ―maravilhamento‖, apresentado anteriormente, corresponde na língua inglesa à palavra Astonishment, um termo atualmente atrelado à essência da mágica, muito utilizado pelo mágico Paul Harris. Significa admiração, espanto, deslumbramento ou perplexidade. É a reação universal expressada e compartilhada por aqueles que testemunham um ato de mágica, uma mistura da incompreensão do método com o prazer da experiência de testemunhar algo impossível ou inacreditável, levando ao riso, espanto, frustração e admiração, quase que tudo isso ao mesmo tempo.

Figura 1 - Deslumbramento de uma criança durante uma apresentação de mágica. Arquivo pessoal, 2016. O professor e pesquisador Richard Schechner15, em seus estudos sobre antropologia da performance, desenvolve o conceito de comportamento restaurado, um tipo especial de comportamento esperado. ―Restauración de la conducta‖, como consta no livro Estudios Avanzados de Performance ―é como uma fita cinematográfica em execução. Uma seqüência de comportamentos, que pode ser reordenada ou cortada, independente dos sistemas causais que lhe deram origem‖ (TAYLOR, 2011, p.35, grifo nosso, tradução nossa). Em outras palavras, os hábitos e rotinas ou rituais que desempenhamos concebidos como uma partitura de ações seqüenciadas, porém somente acessível quando vivenciamos certas situações. Neste caso, comparamos a reação compartilhada pelas pessoas frente a um número de mágica como um fenômeno de comportamento restaurado. Astonishment aponta para o objetivo de uma apresentação de mágica. O autor e mágico James Randi nos mostra pontos importantes quando fala da origem etimológica do termo ―mágica‖:

15 Ph.D. Richard Schechner é professor de Estudos da Performance na Tisch School of the Arts da Universidade de Nova Iorque e editor da TDR: The drama review. Autor e diretor teatral, desenvolveu as Rasaboxes (Caixas de Rasa) como proposta de treinamento nas artes cênicas. 16

A palavra Mágica é derivada da palavra "magi", e faz referência aos sacerdotes-estudiosos da antiga Caldéia e Media (antiga região na Pérsia). A palavra é amplamente utilizada, especialmente na América. Em um dicionário, ela é definida como "a tentativa de controlar a natureza por meio de feitiços e encantamentos". Esse mesmo dicionário diz que um "conjurador" é "alguém que [convoca] espíritos e finge realizar milagres por sua ajuda". A definição quase aceita que os espíritos podem ser invocados, mas nega que o artista realmente faça uso de sua assistência sobrenatural. Outra fonte define-a como a arte de "produzir a aparência da magia genuína por meio de truques e enganos‖ 16. (RANDI, 1992, p. xi, tradução nossa)

Randi emprega o termo ―conjurador‖ para se referir ao mágico por um motivo referencial, no século XVIII a palavra ―juggler‖ se referia tanto aos malabaristas quanto aos prestidigitadores, para a época esse mesmo artista apresentava malabarismos e prestidigitações nas ruas e feiras com exímia habilidade, o termo conjurer aparece para diferenciar o malabarista do mágico:

Tão impressionantes eram as proezas desses indivíduos que juggler (―malabarista‖) veio a significar ―mágico‖, enquanto o termo conjurer (―conjurador‖), que originariamente designava quem invocava os espíritos, no século XVIII passou a se referir a alguém que fazia prestidigitações, comendo fogo ou puxando longas fitas coloridas de dentro da boca. (BURKE, 2010, p. 133-134)

A origem da mágica é atribuída também ao ritual, junto ao surgimento de outras artes como a dança e a música. Ela se manifesta na transformação do ator na divindade, no ato performativo de transformar-se e transformar o olhar do outro, na ação de narrar os mistérios:

O xamã e o mágico têm muito em comum na função de contar o mistério dos grandes dramas da vida, morte e renascimento, e ainda têm muito o que aprender um com o outro! [...] Muitas diversões populares remontam a uma única fonte – os rituais do xamanismo, rituais funcionais de padrão similar que operavam em uma variedade de sistemas metafísicos. O ritual mágico autêntico muitas vezes precede a magia popular. Tipos muito diferentes de performance, como atos mágicos, acrobacia, marionetes e pirofagia

16 ―The Word ‗Magic‘ is derived from the word ‗magi‘, reffering to the priest-scholars of ancient Chaldea and Media. The Word is largely misused, especially in America. In one dictionary it is defined as ―an attempt to control nature by means of spells and incantations.‖ That same dictionary tells us that a ―conjuror‖ is ―one who [summons] spirits and pretends to perform miracles by their aid‖. This definition almost accepts that spirits can be invoked, but denies that the performer really makes use of their supernatural assistance. Another source defines conjuring as the art of ―producing the appearance of genuine magic by means of trickery and deception.‖

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comprovadamente derivaram de, ou pelo menos foram precedidos por, fenômenos desses rituais [...] A magia e seus efeitos especiais foram usados para melhorar o teatro ritual desde que o primeiro fogo foi aceso. O espanto e o terror gerados pelos primeiros xamãs erguiam os participantes do ritual a um plano mais elevado de consciência. (MCBRIDE apud ZELL-RAVENHEART, 2014, p. 466-467)

Por realizar atos que demonstram seu controle ou poder sobre eventos naturais (acontecimentos, forças naturais, ou leis naturais), tal qual o folclore e as mitologias nos contam sobre magos e bruxas, a temática mística e diabólica acompanha a figura do mágico, utilizada amplamente na publicidade desses artistas desde a modernidade.

Esta característica é latente na publicidade e na estética de grandes mágicos do fim do século XIX e começo do XX. Em seus cartazes havia uma verdadeira proliferação de demônios, bruxas, espíritos, caveiras, referências ao inferno e ao mundo dos mortos. Este ―pacto demoníaco‖ talvez explique – no imaginário da platéia - os poderes e conhecimentos secretos do ilusionista. (HARADA, 2012, p.102)

Figura 2 – Danté e Blackstone, publicidade início do século XX. Fonte: https://br.pinterest.com

Atualmente a arte da mágica possui um lugar delimitado dentre as demais artes da cena, constantemente associada ao circo, espaço que promoveu seu desenvolvimento e sua difusão, a mágica ou ilusionismo possui uma história milenar em diversos contextos e espaços na cultura. É apresentada em diversas camadas e ambientes da sociedade, desde grandes salões ou teatros, como os shows de palco nas grandes cidades

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até ambientes menores, abertos e cotidianos, como reuniões sociais, festividades populares ou no meio da rua para o público passante. Resgata um tipo de ritualidade, presente em seus simbolismos, como a varinha e o coelho, mas também em sua estrutura e transição temporal, à exemplo disso, a mágica foi compreendida pelo já falecido Tenkai Ishida17, como um caminho, no sentido de um segmento filosófico e vital, semelhante ao ‗caminho‘ nas artes marciais do oriente. A mágica (ou ―magia‖) perpassa um esquema de nascimento – morte – renascimento. O cartomago e performer britânico Daniel Madison promove um pensamento sobre mágica chamado M.I.D. (Magic Is Dead), que compreende que a arte da mágica está morta, que para a sociedade atual a mágica morreu, e hoje se trata de um desafio intelectual ou algo que, embora o espectador não saiba explicar, sabe que exista um método. Para Madison a popularização dessa forma de arte e a revelação de segredos na mídia são fatores que mataram muito da sua capacidade de ―assombrar‖ o espectador hoje, além das mudanças culturais que rompem com os paradigmas do século anterior. A partir desta perspectiva ele propõe que o mágico que busca uma qualidade artística para o que faz, compreenda a ―morte‖ da mágica, e enquanto performer (no momento de sua atuação) promova seu ―renascimento‖, empenhando-se em atuar da melhor maneira, dedicando-se em sua prática diária e fazendo com que o espectador no instante em que assiste, testemunhe mais do que mágica, experimente magia. O mágico e contador de estórias Eric Chartiot nos explica, por meio de um de seus contos, este renascimento da mágica e também a motivação de realizá-la:

Henning insistiu: - Mas vocês gostaram da mágica? O Inuit pareceu intrigado: - Que mágica? - A que eu estava fazendo para divertir vocês. - Divertir é bom! Mas que mágica? Por que você faz essas coisas? armou-se de paciência e pôs-se a explicar que fizera uma bola flutuar no ar. - Isso é mágica! – explicou. Foi então que o esquimó disse absolutamente natural:

17 Teijiro Ishida, mais conhecido como Tenkai, foi um mágico japonês que viveu e trabalhou nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial. Ele criou conhecidas técnicas utilizadas em atos de mágica de manipulação com objetos.

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- Nós temos uma bola que flutua no ar todos os dias. E ela nos dá luz e vida. Esta sim, é mágica. Agora... essa sua bolinha!... [...] O mágico tentou explicar o que era mágica, mas para sua decepção o Inuit continuava sem entender. De repente, o esquimó pediu-lhe calma. Disse: - Deixa eu conversar com meu povo. Talvez, juntos, a gente entenda. O homem levantou-se, indo juntar-se aos outros, e começaram a conversar. Depois de um bom tempo, voltou. Vinha com um grande sorriso. - já entendemos porque está fazendo todas essas coisas. É porque o seu povo esqueceu o que é realmente mágico. Você está fazendo isso para eles se lembrarem. Boa ideia! Grande ideia! (CHARTIOT, 2006, p. 5-6)

Adotaremos a definição de Harada sobre mágica nesta pesquisa, uma ―arte de entreter uma audiência por meio de truques ou ilusões de impossibilidade, sobre- humanas e sobrenaturais, fazendo uso de artifícios naturais desconhecidos por suas testemunhas‖ (HARADA, 2012). Entretanto, não podemos compreender com amplitude esta forma de arte sem estudar seu atuante, realizaremos agora um recorte histórico, compreendendo a atuação dos mágicos a partir da modernidade. Pedimos a licença para manter o uso do termo convencionalmente no gênero masculino, mas não deixamos de reconhecer e envolver aqui a participação feminina, que orgulhosamente rompe com as concepções tradicionais do passado, em que raramente alcançavam uma imagem de destaque e que nos dias atuais ganham mais espaço e proeminência, se inserindo como protagonistas não só na cena, mas em importantes cargos dentro das sociedades de mágica mundial, podemos observar com destaque nos trabalhos de Tina Lennert, Sophie Evans, Juliana Chen, Angela Funovitz, Jinger Leigh, Alana Mohelmann, Luna Shimada, Claudia Guedes e nas duplas Sos & Victoria, Daba y Cielo, entre outras. Saibam que este é um espaço feminino também.

Figura 3 - Juliana Chen. Fonte: https://www.julianachen.com/ 20

1.2 MÁGICO, UM TIPO DE ATOR

Alguns elementos foram estudados na relação entre a mágica e as artes cênicas, como a teatralidade e a performatividade, relacionados ao modo de atuação dos mágicos, elementos que serão analisados com cuidadosa atenção no segundo capítulo. Destacamos neste ponto uma constatação que observamos no desenvolver das pesquisas, que reside em aproximações entre elementos da atuação dos mágicos com as diferentes perspectivas e proposições que compreendem o teatro moderno, nas abordagens de Constantin Stanislavski, Bertolt Brecht, Vsevolod Meyerhold e Antonin Artaud, conforme na obra O ator-compositor (BONFITTO, 2002). É interessante notar, nos diferentes números e estilos de apresentações de mágica, aspectos semelhantes às abordagens desses quatro teóricos. Por exemplo, quando a mágica busca um realismo cênico por meio de ações psicofísicas genuínas, ações justificadas que objetiva ao máximo a verossimilhança, notamos que esta proposta se aproxima da metodologia de atuação sugerida por Stanislavski18. O choque proporcionado pelo efeito do número de mágica provoca uma reação no espectador que lembra o ―estranhamento‖ que Brecht apresenta em seu teatro, como um ―estalo‖ mental que faz com que o espectador ―acorde‖ e questione a realidade da vida, das coisas, das ações. O virtuosismo poético, preciso, calculado, na manipulação de objetos que alguns mágicos realizam tal qual um artista circense, pode se comparar com o virtuosismo poético, preciso e completamente controlado, proposto na biomecânica de Meierhold. E o ideal de magia presente na fisicidade das ações, no ritual cênico compartilhado com o espectador, este que não só observa, mas sente, como propõe Artaud, o pulsar, a dor, o afeto do corpo da/na cena sendo transportado como num transe mágico. Por estas e demais relações observadas aqui reforçamos cada vez mais a aproximação existente entre estas artes, bem como as diferentes maneiras de atuação. Na concepção de Randi, influenciado pela imprecisa tradução dos escritos de Robert-Houdin (lê-se Robér-Rudan), o mágico seria como um ator, com habilidades específicas de manipulação da percepção da plateia.

Da mesma forma, o conjurador honesto é um ator, empregando sua habilidade de caracterização, destreza exímia e encanto pessoal, muitas vezes, mas nem sempre ajudado

18 Para Constantin Stanislavski, o trabalho cênico deveria atingir um nível de verossimilhança muito próximo da vida. Para isto ele articulou um sistema de atuação que ao longo de sua vida sofreu atualizações e buscou proporcionar ao ator o pleno domínio sobre seu corpo e suas ações.

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por certas tecnologias escondidas, para ganhar a atenção e a apreciação de uma audiência. O conjurador é um ator de figura dramática, um malabarista dos sentidos e um mestre de psicologia, e não faz nenhuma questão de ser um guru, santo, clarividente ou messias. O objetivo é o entretenimento19. (RANDI, 1992, p. xiii, tradução nossa)

Esta concepção acompanha a compreensão e composição da figura do mágico, sob a perspectiva dos praticantes de mágica desde o século XIX, sendo freqüentemente reforçada até os dias atuais. Sem nos opormos ou concordarmos com tal perspectiva, nesta dissertação, bem como nos escritos mais recentes sobre mágica, já se faz uma correção da tradução confusa e amplamente difundida da tradução de Robert-Houdin, como visto na seção sobre traduções. Alguns atos de mágica necessitam de uma extrema precisão com os movimentos que devem ser, ao mesmo tempo, muito naturais. Organizá-los numa seqüência em que haja coerência e fluidez é similar a alguns processos de criação de bailarinos e atores, um processo quase coreográfico. Um ator e um mágico trabalham com um objetivo em comum, que é o de proporcionar ou estabelecer uma atmosfera à cena, com uma qualidade específica, fazendo com que o espectador entre no jogo que se estabelece.

1.3 MÁGICOS – VERTENTES E LINHAS DE ATUAÇÃO

Os mágicos se subdividem entre os tipos ou categorias de efeitos que apresentam: os cartomagos trabalham somente, ou especificamente com mágicas que envolvam cartas de baralho. Os closapistas são praticantes da mágica close up ou de proximidade, pois é realizada à uma distância próxima do espectador (conhecida como magia de cerca em espanhol), os mentalistas apresentam seus efeitos num contexto de super habilidades da mente (como a transmissão de pensamentos, adivinhação, previsão do futuro, etc) ou mistérios relacionados à mente e além da vida (comunicação com espíritos). E os ilusionistas trabalham com efeitos de palco (chamados de grandes ilusões), apresentados em teatros, auditórios e circos, embora este termo também abarque todos os demais praticantes desta arte.

19 ―Similarly, the honest conjuror is an actor, employing his or her deftness of characterization, consummate dexterity, and general charm, often but not always assisted by certain concealed technologies, to win the attention and the appreciation of an audience. The conjuror is a character actor, a juggler of the senses and a máster of psychology, and makes no attempt to be a guru, saint, clairvoyant, or messiah. Entertainment is the goal.‖

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Alguns ilusionistas são conhecidos também como manipuladores, aqueles que manipulam objetos, fazendo-os aparecer, desaparecer, mudar de forma, cor, tamanho, entre outros. Os Mágicos em geral estudam as diferentes categorias de efeitos, pois algumas técnicas ou elementos de determinada área são comuns também em outra, no que confere ao estilo alguns mágicos se aprofundam em determinada categoria. Jean Eugene Robert-Houdin, nascido em Blois, França, em 1805, começou a praticar mágica ainda jovem e tornou-se relojoeiro por profissão, abriu um teatro de mágica em Paris em 1845, com apresentações que uniam técnicas de prestidigitação à mecânica de seus autômatos, Robert-Houdin era especialista em desenvolver pequenas máquinas automotivas e por este motivo concebeu muitos números originais, como a famosa ilusão da laranjeira20. Ele foi um dos primeiros mágicos a adotar o visual que conhecemos como ―clássico‖ na arte da mágica, composto por fraque, cartola, bastão e luvas, a indumentária da aristocracia francesa do século XIX (STEINMEYER, 2003, p. 143-144). Foi também um dos responsáveis por popularizar os termos ―prestidigitador‖ e ―escamoteador‖, como denominava a sua prática. E também por levar as apresentações de mágica para os grandes teatros, influenciando em estrutura e estética as apresentações dos mágicos que sobrevieram ao seu tempo como os irmãos Davenport, Professor Anderson (The Great Wizard of the North), Alexander ―The Great‖ Herrmann, Harry Kellar, Howard Thurston, Danté, etc. Criando uma tradição neste formato de apresentação que pode ser identificada no trabalho de importantes mágicos da modernidade como Harry Blackstone, Blackstone Jr., Richiardi Jr e Lance Burton, e na construção do visual do personagem dos quadrinhos Mandrake, de 1930. Ainda buscando uma construção mais precisa da figura do mágico é importante considerar a transição das diversas roupagens que essa figura utilizou desde o figurino clássico do século XIX, ―eternizado‖ por Robert-Houdin, convertido aos poucos num traje de gala ou num traje social, uma vestimenta que conferia autoridade para o performer.

20 The Marvelous Orange Tree é um famoso número criado por Robert-Houdin e pode ser visto no filme Eisenheim The illusionist (em português: O ilusionista).

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Por todo o século XX a mágica vai se expandir com diferentes estilos e narrativas. Os Irmãos Davenport, por exemplo, propõem um ato único que os faz viajar o mundo, apresentando a spirit cabinet (cabine espiritual ou cabine dos espíritos, como é mais conhecida atualmente). Neste ato, Ira e William Davenport eram aprisionados em um grande armário com duas grandes portas, um de frente ao outro tendo pulsos e pernas presos por cordas e uma grande quantidade de objetos ao redor (ver Figura 4). Ao fechar esse armário, os objetos misteriosamente se agitavam, produziam sons e eram arremessados para fora do armário, que Figura 4 - Irmãos Davenport. Publicidade do séc. XIX. Fonte: https://www.zazzle.com ao ser aberto revelava os irmãos totalmente presos e incapazes de manipular os objetos. Esse número tornou-se uma sensação, sobretudo porque o enunciado do número remetia aos fenômenos espirituais, e os artistas envolvidos não afirmavam nem negavam a possibilidade. Essa narrativa ilustrou uma série de efeitos de magia, tornando-se um dos mais contraditórios estilos de apresentação, desaguando em interessantes variações na atualidade.

Figura 5- O mentalista Banachek apresentando cabine espiritual. Fonte: http://www.banachek.com Outra figura importante na história da mágica moderna é o conjurador chinês. Nesta abordagem temos muitos exemplos, todos de um mesmo período investindo nesta

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mesma persona, inclusive copiando uns aos outros nas apresentações, mas destacamos um dentre eles que possui uma história singular e que retrata fielmente uma vida de devoção à arte da mágica, Chung Ling Soo: nascido nos EUA, William Ellsworth Robinson foi um mestre em mágica e maquiagem. Por quase duas décadas viveu sob a identidade de um mágico chinês, evitando falar em público, fazia uso inclusive de um intérprete. Figura 6 - Chung Ling Soo. Ilustração do autor. Soo, têve um rival em sua vida, um autêntico mágico chinês chamado Ching Ling Foo, mas seus números tinham um efeito muito superior aos dele, o que levou Foo a trocar provocações chegando a desafiar Soo a provar sua ―etnia chinesa‖. A despeito de toda esta confusão, Chung Ling Soo (Robinson) têve uma vida de total dedicação à arte da mágica chegando inclusive a falecer vítima de uma falha técnica em um de seus principais atos, o número de pegar a bala (), momento em que descobriram sua identidade americana. Seguindo a linha do traje aristocrata, mas agora num contexto diferente temos o traje de gala, menos pomposo que o clássico francês do século XIX e uma abordagem não tão misteriosa, mas voltada para a o entretenimento, para a diversão, às vezes para o riso. Podemos notar esta inclinação ―espetacular‖ e ―galante‖ da figura do mágico, especialmente no trabalho de Channing Pollock; como também em Harry Blackstone que atuou nos mais inusitados locais em sua época, incluindo apresentação para tropas americanas durante a Segunda Guerra Mundial, e seu filho, Blackstone Jr. que continuou seu legado explorando também figurinos temáticos e cenários onde podemos notar um flerte com a dramaturgia para o ato de mágica. Nessa linha do ―show business‖, exagerando nos padrões de espetacularidade temos a dupla Siegfried & Roy. O trabalho deles ficou mundialmente conhecido por utilizarem animais selvagens como tigres, zebras e elefantes nos efeitos das ilusões. A dupla iniciou seu trabalho num cruzeiro da Europa para a América, em que

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apresentaram com seu primeiro animal um chita, desde então o trabalho com os grandes felinos e outros animais selvagens tornou-se a marca deles, atualmente seu show se encontra interrompido devido um grave acidente em que um dos tigres atacou Roy em cena. O século XX foi de grande florescimento para a arte dos mágicos no mundo todo, com a evolução dos sistemas de comunicação e correspondência tendo facilitado a troca de conhecimentos e o intercâmbio, a comunidade mágica aumentou consideravelmente. Mágicos de diversos países fizeram seus importantes acréscimos para a arte, no entanto limitamos aqui a falar de um número seleto, tendo em vista o foco desta seção que é conhecer a figura do mágico a partir do século XIX e ressaltar suas transições nas diferentes abordagens e roupagens de apresentação, destacando alguns artistas, mas considerando, e sempre que possível rememorando, os demais tantos que com certeza estão mencionados nos livros mais técnicos sobre mágica. No final do século XX encontramos três mágicos que romperam com as vestes tradicionais e deram novas perspectivas para a apresentação de mágica, um deles é o canadense Doug Henning, que criou um estilo único, utilizando roupas coloridas combinadas com um visual hippie new age, por vezes usando camisas sem mangas, jeans e característicos tênis. Ele estreou um show na Broadway em 1974 e especiais de TV, muito de suas apresentações tem um caráter circense flertando também com a estética do musical. O segundo mágico, talvez o mais conhecido, é David Copperfield, que modernizou as grandes apresentações de palco, explorando o uso poético da iluminação e criando um acabamento ímpar, perfeccionista, para o trabalho com grandes ilusões. Copperfield também popularizou um gênero de ilusionismo chamado ―mega ilusionismo‖, em que o mágico utiliza grandes objetos ou instalações como objeto do efeito, por exemplo, atravessar as paredes da Grande Muralha da China, ou desaparecer a Estátua da Liberdade. Por último, citamos o trabalho de David Blaine, que trouxe uma nova visão para a mágica atual, não por meio de grandes aparelhos, efeitos de palco e roupas pomposas, mas pela utilização de objetos cotidianos e pela proximidade com a plateia, seus primeiros especiais de TV eram realizados na rua para as pessoas que passavam no momento. Suas vestes eram roupas cotidianas, como se estivesse indo caminhar por aí, e justamente por se colocar num lugar comum, como qualquer outro ser humano, sua mágica ganhou potência afetiva, ele popularizou o estilo que conhecemos como street

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magic21. Blaine também inaugura um formato que flerta com a body art, se denominando um endurance artist, um artista que põe o corpo a testar os limites físicos de resistência. Seu primeiro trabalho nessa linha foi passar sete dias enterrado num caixão de vidro. Esse ato foi inspirado num desafio que Houdini iria realizar, mas que em decorrência de sua morte, nunca chegou a fazê-lo. Depois Blaine foi emparedado em pé num bloco de gelo, permanecendo por quase sessenta e duas horas. E assim seus atos se tornaram cada vez mais desafiadores, como passar quarenta e quatro dias vivendo em jejum numa caixa de vidro suspensa em Londres, ou sete dias submerso utilizando um tubo para respirar e se alimentar antes de tentar o recorde mundial de apnéia, em entrevista ele menciona sua motivação aos desafios: ―eu gostaria de descobrir quanto tempo eu poderia sobreviver sem nada‖. Até este ponto podemos perceber as diferentes formas que a figura do mágico se apresentou no decorrer de duzentos anos, apesar das transições e diferentes estéticas de acordo com o contexto e com as transformações da sociedade, podemos notar que alguns artistas cultivam elementos que mantêm uma fidelidade com a tradição, por vezes como uma homenagem ao passado.

Tais elementos podem ser objetos, Figura 7 - David Blaine. Fonte: https://www.instagram.com/davidblaine/ maneiras de apresentar um número ou rotina, ou ainda no figurino, na publicidade, gestos e posicionamento em cena. Tivemos no final do século XX e início do século XXI um período de exposição negativa e revelação de técnicas e outras particularidades na Mágica. Em decorrência disso, o fator processo criativo e a busca por novas fontes de criação foi acelerada; Obviamente a revelação foi um processo danoso, pois os estudos em mágica e a busca por uma poética singular já era realizada por alguns mágicos, independente de quem

21Destaca-se o trabalho do mágico americano Jeff Sheridan no Central Park (NYC), por volta de 1960, como a vanguarda do estilo Street Magic na cultura ocidental moderna. Harada nos fala que a mágica também floresceu nas ruas, praças e locais públicos, nas diversas culturas que praticaram esta forma de arte (HARADA, 2012, p.22).

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viesse a expor os segredos sob a justificativa de ―estar induzindo os mágicos a inovar‖, a organização mundial de mágica FISM22 (Fédération Internationale des Sociétés Magiques) possui em seus congressos uma categoria de competição para invenção de números, métodos ou equipamentos em mágica. Enxergamos a mágica atual e os mágicos atuais num processo de reconstrução da arte e dos paradigmas estabelecidos. A mágica do século XXI vive um renascimento, dialoga com outras linguagens artísticas e abrange de modo mais evidente as diferentes etnias, gêneros, grupos e culturas. A relação política que o espectador atual estabelece com a apresentação de mágica em sua apreciação, difere, por exemplo, da curiosidade apresentada no século anterior, marcado por descobertas e novidades tecnológicas que atiçavam a imaginação das pessoas. A união com os recursos de vídeo sofreu ampliações para além das possibilidades realizadas por George Méliès23 com o cinema no final do século XIX. A mágica ―para a câmera de vídeo‖ ganhou vertentes positivas como o uso em conjunto com um telão no palco, um importante recurso para a mágica close-up que possibilita apreciar esse tipo de apresentação num teatro de grande porte. Como também na interação do artista com o vídeo em cena, como podemos notar no trabalho de Marco Tempest24 e Adam Trent25. Mas também é explorado comercialmente de modo exagerado em especiais televisivos de ―mágica‖, onde o artista é mais um ―ator de TV‖ do que um mágico, e utiliza recursos especiais como cortes de vídeo e edições, às vezes até efeitos especiais ou atores fazendo o papel de espectadores, esta abordagem se distancia estruturalmente do que a mágica propõe.

1.4 REALIDADE E ILUSÃO

As empresas publicitárias se valem de muitos conhecimentos sobre percepção e influência em suas campanhas de marketing, desde pequenos ajustes textuais num discurso até o uso de imagens para nos induzir a comprar. Os mágicos, em especial os

22 Site oficial: https://fism.org/ 23 Georges Méliès foi um pioneiro do cinema, e também um mágico, conhecido por produzir filmes baseados em ilusões utilizadas pelos mágicos em sua época. 24 Marco Tempest, conhecido como o ―ilusionista cibernético‖ é um mágico suíço que vive nos EUA. Suas ilusões combinam tecnologia, ciência, vídeo e arte performática. Sendo uma grande referência neste estilo de apresentação. Ver: http://marcotempest.com/en/ 25Adam Trent é um mágico norte-americano que ficou conhecido após participar de um programa de mágicos chamado Wizard wars. Com seu trabalho que combina mágica e interação em vídeo integrou o espetáculo em turnê mundial The illusionists. Ver: https://www.adamtrent.com/ 28

mentalistas, utilizam recursos semelhantes. Mentalismo é uma categoria da arte da mágica em que o contexto dos efeitos remete à capacidades mentais, apresentadas também como paranormais ou ―extra-sensoriais‖ (além dos sentidos conhecidos), o artista não se denomina um mágico, mas um mentalista, alguém que conhece ou aprendeu a utilizar mais que as capacidades ditas normais da mente, podemos citar como exemplo os mentalistas brasileiros Gustavo Vierini, Ricardo Thibau e a dupla Os Charlatães (Juan e Alejandro), como também o britânico . A maioria dos efeitos de mentalismo consiste em adivinhações e previsões de escolhas futuras. Mas por muito tempo foi explorada a ideia de manifestações sobrenaturais ou espirituais, falamos anteriormente dos irmãos Davenport com seu ato intitulado ―Cabine espiritual‖, contudo, as sessões espirituais (conhecidas como séances) foram uma grande atração nas casas da Europa, principalmente após um incidente que ocorrera nos EUA em 1848:

[...] Na pequena cidade de Hydesville, Nova York, na fazenda de John D. Fox e sua esposa. Os Foxes foram atormentados por uma série de ruídos estranhos na casa. Os ruídos perturbaram a família, particularmente a Sra. Fox, que era crédula e supersticiosa; ela, por sua vez, disse aos vizinhos, que visitaram a casa nas noites seguintes para ouvir. Duas das filhas de Fox, Margaret, 8 anos e Kate, 6, pareciam estar no centro do fenômeno, embora ninguém sugerisse a artimanha dessas meninas pequenas. Os ruídos pareciam aleatórios e misteriosos até que alguém sugeriu um código simples, que permitia que os ruídos respondessem a perguntas. Lentamente, a família e os visitantes da casa acreditaram que um espírito desencarnado estava gerando o som26. (STEINMEYER, 2003, p. 54, tradução nossa)

Essa história tomou grandes proporções e iniciou um movimento espiritualista organizado pela irmã mais velha de Margaret, Leah, que retornou a Hydesville e promoveu tais ―sessões espirituais‖. O que ocorrera na realidade, segundo uma confissão posterior de Margaret em 1888, era que ela provocava os barulhos na intenção de assustar sua supersticiosa mãe. Ela revelou que o método que utilizava, inicialmente, era amarrar uma maçã num cordão e quando ia se deitar puxava o fio fazendo a maçã

26 ―[...] in the small town of Hydesville, New York, at the farmhouse of John D. Fox and his wife. The Foxes were plagued by a series of strange rapping noises inside the house. The raps excited the family, particularly Mrs. Fox, Who was gullible and excitable; she in turn told neighbors, who visited the house on following evenings to hear for themselves. Two of the Fox daughters, Margaret, age 8, and Kate, 6, seemed to be at the Center of the phenomenon, although no one suggested the duplicity of these little girls. The noises seemed random and mysterious until someone suggested a simple code, which allowed the raps to answer questions. Slowly the family and visitors to the house were made to understand that a disembodied spirit was generating the sound.‖

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pular e produzir o som, depois desenvolveu outras maneiras de realizar o feito (STEINMEYER, 2003). Parece um artifício simples de se desmascarar, mas veremos porque somos seduzidos por tal artimanha. Conforme mencionado pelo mágico Eric Chartiot: ―o artista, mais que qualquer outro, enxerga a verdade em sua arte, e nos mostra a realidade de um ponto de vista que não estamos acostumados a perceber‖. Se sua obra é capaz de fazer outros enxergarem esta verdade, sua arte obteve êxito. A noção de verdade que abordamos aqui se trata de como percebemos a realidade e os fenômenos que acontecem ao nosso redor, e como nossa percepção pode ser (e vem sendo) manipulada. Nossa percepção do que consideramos realidade, para Merleau-Ponty, é uma construção que fazemos da interpretação das informações captadas por nossos sentidos com as associações e juízos atribuídos a estas interpretações.

Os homens que vejo de uma janela estão escondidos por seus chapéus e por seus casacos, e sua imagem não pode fixar-se em minha retina. Portanto, eu não os vejo, eu julgo que eles estão ali. Definida a visão à maneira empirista como a posse de uma qualidade inscrita no corpo por um estímulo, a menor ilusão, já que dá ao objeto propriedades que ele não tem em minha retina, basta para estabelecer que a percepção é um juízo. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 61)

Em outras palavras, é como se nossa construção da realidade fosse como um ―mosaico‖, a totalidade dos diferentes estímulos que percebemos forma uma imagem completa do que chamamos por ―realidade‖. Sendo possível alterar a informação ou o modo como a recebemos. A imprensa, a publicidade, a mídia e as redes sociais fazem isso de diversas maneiras ao promover ou desqualificar informações, figuras públicas, países ou situações. Essa manipulação de informações muitas vezes promove conflitos, desavenças e até guerras, contudo, na Mágica se trata de um importante recurso, com um objetivo muito mais honesto que é o de entreter. Para a composição deste ―mosaico‖ que chamamos de realidade entram também nossas experiências prévias, pois nossa mente tende a completar algumas informações, fazendo com que acreditemos que algo foi realizado, ou deixemos de perceber algo que estava o tempo todo presente. O efeito de algumas ilusões de ótica influencia no design de alguns objetos ou material utilizado por mágicos para confundir a percepção do espectador, é um recurso que disfarça, muitas vezes, os ―vazios‖ entre as coisas.

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Nosso campo perceptivo é feito de ―coisas‖ e de ―vazios entre as coisas‖. Se nós nos puséssemos a ver como coisas os intervalos entre as coisas, o aspecto do mundo seria mudado de maneira tão sensível quanto o da adivinhação no momento em que descubro ‗o coelho‘ ou ‗o caçador‘. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 38-39)

É um processo natural que nos faz até ―prever a próxima palavra‖ como neste exemplo27:

Figura 8 - Jogo de adaptação

A partir desta proposição da concepção de realidade enquanto um ―mosaico‖ ou colagem de elementos resultantes, percebemos que tais elementos são formados pela interpretação do que nossos sentidos captam, do que nós selecionamos prestar atenção (filtramos), do que nós acreditamos (e julgamos) e do que nos estimulam a pensar. Tudo somado às nossas experiências anteriores e nossas esperanças futuras. São tantos os fragmentos envolvidos que agora percebemos a complexidade que envolve formar esse mosaico. De outro modo, no teatro, quando uma cena acontece, nomeamos a realidade daquele instante por realidade diegética, o conceito de diegese advém de estudos literários e dramatúrgicos. Nesse sentido, a realidade diegética (ou realidade da cena) permite que o espectador tome como ―verdadeiro‖ um fato ficcional, e também que compreenda ressignificações, sem se atrelar ao caráter literal do que está presenciando. Por exemplo, uma queda contínua de pedacinhos de papel branco numa cena, acompanhados por uma luz e uma trilha sonora bem sugestiva, deixar de ser apenas uma queda de papel e ser compreendido como uma bela nevasca ou chuva. Bem como um lençol nas mãos de uma atriz se converter numa criança de colo, mesmo que esta

27 O jogo apresentado consta em pesquisas em neurociências, podendo ser encontradas outras versões em livros da área. A configuração e formatação acima é de autoria deste autor. 31

representação não busque o realismo. Ou ainda quando nos emocionamos com o drama de um personagem no cinema, porém ciente que o ator está interpretando. Um pacto entre artista e espectador, um pacto em prol do acontecimento mágico da cena. Assim nós temos a realidade, como a chamamos, que diz respeito ao nosso cotidiano e que percebemos com nossos sentidos, e temos a realidade ―dramatúrgica‖ ou diegética, termo empregado nos estudos literários referente a um nível narrativo do discurso (GENETTE, 1972), aplicado aqui à realidade da cena, uma realidade ficcional, uma construção poética. Por que deixar claro tal separação entre realidade e diegese? Pois iremos estudar mais adiante um conceito que se relaciona diretamente com a criação de uma atmosfera mágica para a cena, em outras palavras de uma realidade diegética convincente. Além de alertar que a arte dos mágicos enquanto uma arte da manipulação da percepção de realidade foi utilizada como forma de manipular a crença das pessoas e impor interesses particulares, um destes exemplos ocorreu por volta de 1856 quando o governo francês enviou à Argélia seu mais prestigiado mágico da época, o renomado Robert-Houdin, numa missão de ―pacificação‖. A missão envolvia uma turnê do mágico naquela região, mas implicitamente o objetivo era demonstrar a superioridade da magia francesa ante a ―magia clerical‖ dos Argélios. Dentre os efeitos de diversão, Robert-Houdin apresentou um contexto místico em alguns números, clamando poderes sobrenaturais e vencendo os desafios dos líderes das tribos locais à plena vista de uma grande audiência. (STEINMEYER, 2003, p. 145-146). O Dr. Richard Schechner, aborda os termos ―maya‖ e ―lila‖ para estudar o jogo como elemento cultural, que assim como o ritual perpassa o conceito de performance.

Maya e lila são palavras sânscritas que significam "ilusão" e "jogo". Os conceitos embutidos nessas duas palavras são difíceis de definir porque – como as palavras gregas, mimesis, praxis e katharsis - termos-chave na teoria da tragédia de Aristóteles - existe uma enorme biblioteca de comentários, interpretações contraditórias e mudança de ênfase no decorrer da história28. (SCHECHNER, 2013, p. 113-114, tradução nossa)

28 ―Maya and lila are Sanskrit words meaning ―illusion‖ and ―play.‖The concepts embedded in these two words are hard to pin down because – as with the Greek mimesis,praxis,and katharsis – key terms in Aristotle‘s theory of tragedy – there is an enormous library of commentary, contradictory interpretations, and changing emphasis over historical time.‖

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Para a filosofia do hinduísmo como descrita em seu livro sagrado, o Bhagavad Gita, todas as criaturas vivas estão cobertas por um véu, de certo modo cegas, e, portanto incapazes de perceber que o ―mundo material‖ é uma ilusão dos sentidos, uma grande ilusão. Maya, sob determinada perspectiva, é uma deusa que cobre a humanidade com seu véu, logo os seres humanos estão imersos numa ilusão, pois não enxergam a verdade. Uma alusão a ideia de que as pessoas enxergam conforme suas idiossincrasias, uma realidade construída, subjetiva e, portanto, ilusória. Para o hinduísmo, o caminho da meditação e da privação dos desejos e dos julgamentos leva a consciência a um estado de iluminação, fazendo-a perpassar o véu de Maya e enxergar de fato a realidade. Interessa-nos abordar nesta breve concepção, a discrepância perceptiva entre o que é realizado e o que o espectador pensa/percebe que aconteceu durante uma apresentação de mágica. Diferentemente do espectador num teatro que assiste a uma peça, mas desconhece os eventos ocorridos nos bastidores, neste recorte, o véu de Maya representa uma sutil imersão na diegese da cena, a imersão provocada pelo desenvolvimento e ápice do número de mágica. Maya não é a própria ilusão, mas a criadora da ilusão. Para além da ideia de construção de uma realidade ilusória, Maya também se refere à ocultação da realidade (e um desvelar dela em determinado sentido). Passaremos agora aos dois elementos que compreendemos como constituintes da base estrutural de todo número de mágica, um deles associado à construção de uma realidade diegética convincente, e o outro à ocultação da realidade.

1.5 CONVICTION E DECEPTION

Henning Nelms, em seu livro Magic and Showmanship: a handbook for conjurers nos apresenta dois conceitos que se fazem fundamentais na estrutura de todo número de mágica, Conviction e Deception. Podemos traduzi-los respectivamente por: convencer e enganar, mas utilizar esta tradução pode nos distanciar da intenção do autor, pois perguntar a diferença entre ―convencer‖ e ―enganar‖ não é o mesmo que perguntar a diferença entre Conviction e Deception. Portanto, priorizamos os termos no idioma original, mas aconselhamos também ao leitor que os leia em suas respectivas traduções.

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De todo modo, faremos as duas perguntas, qual a diferença entre ―convencer‖ e ―enganar‖? Qual a diferença entre Conviction e Deception? Sobre isso Nelms escreveu:

Conviction difere fundamentalmente de Deception. Uma Deception bem sucedida resulta numa crença inquestionável. Conviction exige somente o que chamamos de ‗suspensão da descrença‘. [...] Conviction pode ocorrer sem Deception. Quando alguém é alvejado numa peça, os espectadores estão convencidos que o personagem está morto, mas eles não estão enganados em acreditar que o ator morreu. A audiência de um ventríloquo nunca é enganada; ela não acha que o manequim está vivo. No entanto, a convicção da vida é irresistível. [...] Ao contrário desses ilusionistas, o conjurador deve empregar algum Deception. Ele precisa disfarçar seus dispositivos. Mesmo quando as ilusões não precisem de dispositivos, devemos enganar o público para disfarçar o fato de que nenhum dispositivo existe.29 (NELMS, 2000, p. 19-20, tradução nossa)

O que Nelms chama de ―suspensão da descrença‖, termo cunhado pelo poeta inglês Samuel Taylor Coleridge, é o que compreendemos no teatro como ―aceitação da realidade ficcional‖ ou diegese da cena. Fenômeno que acontece quando somos espectadores ou leitores de uma obra artística, e abrimos mão do realismo e da crítica instantânea aceitando como ―verdade‖ os acontecimentos ficcionais em prol do entretenimento, mesmo quando a obra se propõe ser fiel à realidade. Durante uma conferência em 2017 no Festival Internacional de Mágica, realizado em Recife, o mágico Eric Chartiot, exímio contador de estórias, exemplificou narrando um de seus principais números, o qual inicia por ser ―interrompido‖ por uma rosa, que está ―viva‖ e que deseja participar de sua apresentação, no momento em que ele vai buscar sua rosa e retorna com ela em mãos, toda a plateia, principalmente as crianças fazem silêncio para ouvir o que a rosa conversa com ele. Sobre isso ele nos diz: ―essa é a verdadeira mágica, eles vêem uma rosa de plástico, sabem que não está viva de verdade. Mas naquele momento eles acreditam plenamente na ilusão‖. Chartiot definiu bem Conviction.

29 ―Conviction differs fundamentally from Deception. A successful Deception results in unquestioning belief. Conviction requires only what is called 'suspension of disbelief'. [...] Conviction can occur without Deception. When someone is shot in a play, the spectators are convinced that the character is killed but they are not deceived into believing that the actor is dead. A ventriloquist‘s audience is never deceived; it does not think the dummy is alive. Neverthless, the conviction of life is irresistible. [...] Unlike these illusionists, the conjurer must employ some Deception. He needs to disguise his device. […] Even when an illusions requires no trickery, we must deceive the audience in order to disguise the fact that no device exists.‖

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Quanto ao que se refere à Deception ou ―Engano‖, podemos compreender de modo geral como um elemento amplo, como um conceito, necessário para que um truque de mágica ocorra. Compreendemos Deception como o dispositivo (equipamento, conhecimento, técnica, acessório e/ou recurso) necessário para dissimular o segredo de um efeito de mágica. Então se um mágico apresenta uma rotina de cartomagia e usa técnicas manuais para realizar tal efeito, estas técnicas manuais são o Deception. Se a mesa em que as cartas estão colocadas tiver um formato especial, ou cor específica que aja como recurso para melhorar esse efeito, ou dissimular a mecânica do número, a mesa também é Deception. O controle de atenção (misdirection) utilizado também pode ser compreendido como Deception. Fica claro que, nessa perspectiva, mágicos trabalham essencialmente com esse conceito. Tudo o que ajuda a melhorar a execução de um ―milagre‖ e que dissimula a sua causa. Obviamente, a plateia deve ter total desconhecimento de tais recursos, inclusive desconhecer esse termo. Quando um número de mágica faz o espectador se questionar se o que testemunhou foi real ou uma ilusão, deixando-o num estado de ―maravilhamento‖, o efeito alcançou o ponto desejado, o thaumaston marca esse ponto limítrofe, entre realidade e ilusão, o objetivo da apresentação de um efeito de mágica. Há uma história que ilustra bem a aplicação dos conceitos Conviction e Deception, o mais interessante é que não foi realizado por um mágico, ilusionista, por assim dizer, mas um trovador medieval, um performer, que compôs uma apresentação digna de um ato de mágica. Era um viajante que se apresentava nas praças das cidades segurando um velho livro e contando estórias para o público, entretanto havia uma grande quantidade de estórias naquele livro, tantas que alguns agentes da Inquisição ficaram intrigados em como caberia toda essa quantidade escrita (CIOTTI, 2014, p.35- 36). Ao olharem por outra perspectiva, notaram que o livro estava em branco, e levaram o viajante para interrogá-lo:

Quanto aos contadores de estórias, raramente sobreviveu alguma evidência sobre os seus métodos, mas um certo Román Ramírez, que recitava romances de cavalaria em público, explicou à Inquisição que ele não sabia os textos de cor, mas apenas ‗o conteúdo‘, e que aumentava ou encurtava as estórias conforme julgasse conveniente durante a apresentação. [...] Román Ramírez disse à Inquisição que ele ‗lia‘ as estórias numa folha de papel em branco ou num ‗livro que não era o mesmo que o que lia, e mantinha seus olhos nele sem virar as páginas, e isso ele fazia para não distrair sua memória e prestar mais atenção ao que estava lendo‘. (BURKE, 2010, p. 198-199)

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Se analisarmos a cena que Ramírez criara, iremos notar que se trata de uma perfeita ilusão. Para o público havia um homem narrando o que estava escrito no livro. Para os inquisidores havia um livro mágico com tinta invisível, o qual continha infinitas estórias. A convicção com que Ramírez narrava para a platéia convencia que a estória estava ali escrita, e o livro era o próprio recurso de enganação que compunha o ―personagem‖ dissimulando perfeitamente o método de narrar a partir da memória. Outro exemplo mais próximo é o famoso jogo das três conchinhas (Shell Game ou Three Shell and a Pea), muito comum nas feiras populares30. O jogo propõe um desafio de percepção, uma bolinha é colocada embaixo de uma pequena concha ou um copinho, dentre três, e estes são movidos de modo a embaralharem-se. Ao final o espectador deve apontar para o copinho que esconde a bolinha, se acertar, ganha a aposta. Entretanto, o jogo não funciona assim para quem o conduz, este enganador usa de uma técnica de prestidigitação para esconder a bolinha e colocá-la no copo que quiser. Além disso, o fator mais interessante é o uso de assistentes, que se colocam ao redor do espaço do jogo, como se também jogassem, constituindo uma forte influência psicológica para quem assiste e quem joga. Alguns com papéis bem definidos, como um casal que passa despretensiosamente e acaba apostando, e vence. Ou um rico fazendeiro viciado em apostas, que vence em algumas, mas perde de modo tão ingênuo que você assistindo acredita que pode jogar e vencer. Estes assistentes reforçam a cena, bloqueiam a visibilidade de curiosos, induzem o jogador a acreditar que pode vencer e alertam os parceiros da chegada da fiscalização, como também garantem a ―integridade‖ da artimanha, desacreditando o apostador que suspeite, acuse ou conteste o jogo. Esse é um jogo de pura enganação, o fator Deception está presente em todos os elementos (na mecânica do jogo, no apostador, nos assistentes, no ambiente). Conviction é um elemento que, neste exemplo, consiste em criar no participante a crença de que ele pode vencer o jogo, e reforçar esta crença até que as apostas subam, e conseqüentemente o participante perca. Conforme a explicação apresentada por Nelms e as pesquisas até aqui realizadas, constatamos que os elementos Conviction e Deception se mostram presentes na estrutura das apresentações de mágica. Um número ou um ato mágico que não contiver Conviction, dificilmente parecerá um ―milagre‖ aos olhos dos espectadores. Faltará a

30 Este jogo é uma forma de uma trapaça e no Brasil é considerado crime por jogo de azar.

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―atmosfera mágica‖, responsável por abrandar a vigília da plateia. De outro modo, o conceito de Deception é indispensável ao se tratar de mágica, lhe é fundamental. O que nos suscita a seguinte questão: é possível mágica sem Deception? Em se tratando tradicionalmente do que entendemos por mágica – uma arte cênica que demonstra o impossível ou improvável, por meio de métodos secretos, alheios à percepção do espectador e completamente naturais – de início pressupomos não ser possível, entretanto... David Blaine é um mágico norte-americano conhecido por realizar apresentações de mágica num formato de desafios que testam os limites de seu corpo, tais atos são cuidadosamente preparados para evitar que sofra acidentes graves, contudo acreditamos que não haja um método secreto para algumas de suas apresentações, nem a dissimulação de algum método. O próprio Blaine em suas produções apresenta partes do processo criativo e do treinamento pessoal que o levou a chegar ao resultado. Talvez seu trabalho em se tratando dos desafios físicos seja esta exceção, um ato de mágica que questiona a Deception, mesmo se considerarmos que o treinamento que o levou a realizar o ato valha como ―técnica‖ (pois técnica também é Deception), no caso dele, esta técnica não dissimula o método, ela é o próprio método (sendo então um treinamento). Contudo, analisando do ponto de vista da plateia, alheia aos procedimentos de preparação, podemos considerar que o trabalho do David Blaine não se encaixa nesta exceção, uma vez que por ele ser um mágico realizando a performance, a plateia já assume que possa haver um truque, e ele não faz questão de esclarecer se há ou não. Isso por si já é, conforme Nelms, Deception, comprovando que se trata de um conceito inseparável à mágica. Surgiu nesta análise a seguinte questão: podemos classificar também como Deception todo treinamento que visa condicionar o corpo a realizar proezas impossíveis ou improváveis? Se sim, o treinamento de faquires, acrobatas, artistas de sideshow (engolidores de fogo, espadas, regurgitadores, etc), bailarinos e atores pode ser abarcado por este conceito? Considerando a compreensão atual da preparação de atores, performers e bailarinos, e buscando ampliar as pesquisas nesse campo de atuação, podemos relacionar tal preparação com uma parte do conceito de Deception. Voltemos ao significado original dos conceitos para entendermos melhor: Conviction refere-se à ―suspensão da descrença‖ ou a aceitação da diegese da cena, e trata-se de um conceito

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partilhado entre a mágica, a mímica, o teatro, o cinema, a performance, o ritual, etc. Mas Deception, que pode ser traduzido como Enganação, não num sentido pejorativo, mas enquanto ―todo e qualquer dispositivo de dissimulação do truque (técnica ou método)‖, tem como intenção esconder uma técnica, ou esconder o fato de não haver uma. Sendo assim, o processo de preparação de artistas cênicos, como acrobatas, por exemplo, trata-se de um treinamento (para a realização plena da ação em cena). Deception se encarado na perspectiva de um treinamento cênico, acontece quando o objetivo final é realizar uma proeza impossível ou improvável, o que implica um treinamento para desenvolver o domínio técnico para realização da ação, e para além, desenvolver a consciência (e a técnica) de ocultar do espectador, dentro e fora da cena, o segredo, de tal habilidade. É um conceito utilizado em enganos e trapaças no geral, em tudo que busque criar um ―não questionamento de um fato31‖ (NELMS, 2000, tradução nossa), ou seja, o objetivo não se limita somente a esconder um segredo, mas em fazer com que nem se suspeite que haja um segredo. Compreendemos Deception e Conviction como elementos básicos, estruturais numa composição em mágica. A criação de uma atmosfera mágica e ao mesmo tempo verossímil depende da capacidade de emissão/construção de um enunciado e da articulação dos elementos referenciais que o mágico realiza com seu corpo (pela voz/texto, gestos, silêncios, objetos). O aspecto ―deceptivo‖ permeia o corpo do mágico nas ferramentas que este utiliza para realizar suas façanhas, seus procedimentos e conhecimentos de ocultação de ações, sua técnica, acessórios, aparência, os objetos que manipula, assim como nos gestos e ações manipuladas que realiza. Contudo, mantendo a tradição ética da arte em cuidar para a não revelação de segredos o aspecto ―deceptivo‖, ainda que se mencione seu contexto referencial em alguns casos, será mantido em segredo durante a explicação dos processos criativos.

1.6 A MÁGICA COMO UM JOGO DE ILUSÃO

Esse ponto da pesquisa conecta-se com o percurso deste pesquisador na graduação, em que se pesquisou a relação entre a mágica e o teatro, encontrando semelhanças entre o treinamento de um mágico com o treinamento de atores (ações

31―Deception results in unquestioning belief.‖

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físicas, expressividade e jogo teatral), especialmente em se tratando de treinamento pré- expressivo e treinamento da manipulação na mágica. Como observado na pesquisa anterior, mágica só acontece quando se estabelece um jogo com o espectador, e para mais além, descobrimos, como um jogo profundo, por vezes um jogo Figura 9 - David Blaine. Ilustração do autor. obscuro. Fazer mágica é jogar. Jogar com o outro, jogar consigo, jogar com o impossível. A criação e a criatividade na arte dos mágicos requer uma disponibilidade de seus agentes que só é possível se houver uma apetência, um gosto, uma intenção. Podemos considerar o prazer lúdico como a matriz dessa intenção. Quando jogamos plenamente, somos transportados para uma atmosfera de não-seriedade, afastada das questões da vida cotidiana, mas com grande potencialidade pedagógica. Ensinamos e aprendemos, criamos e reinventamos em sua prática. Conforme Johan Huizinga autor de Homo Ludens, o jogo e a cultura partilham de características afins, sendo o jogo:

(...) uma atividade livre, conscientemente tomada como ―não-séria‖ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes. (HUIZINGA, 2004, p. 16).

Jogamos desde a infância, quando usamos nossa imaginação para criar estórias ou brincadeiras que nada interessam aos outros, com regras que inventamos na hora, ou que não definimos. E isso nos diverte e nos absorve como se nos transportasse para outra realidade. Como explica Huizinga, a palavra latina ludus, abrange a ideia de jogo.

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Ludus deriva de ludere que pode ser usado para designar a ‗simulação‘ a ‗não seriedade‘, a ilusão. Ela forma os compostos alludo, colludo e illudo, todos referentes ao irreal, ilusório. Um detalhe curioso que vale observar nos ilusionistas advindos de países de língua espanhola, é que estes se referem à apresentação de um número de mágica como juego, enquanto é comum ouvirmos ou nos referirmos, aqui no Brasil, como truque32. Portanto, propomos que se encare a atuação na mágica como um jogo da ilusão, pois assim como o fenômeno cultural, descrito por Huizinga, também acontece dentro de um limite espacial e temporal, alheio ao fluxo cotidiano, com regras e objetivos delimitados, sensível à quebra a qualquer momento, seja numa interrupção, um equívoco ou o desinteresse de alguma das partes. Nesse jogo o acordo é firmado no momento em que os participantes (mágico e espectador) consentem que ele aconteça. O objetivo do mágico é iludir o espectador, já este tem o objetivo de prestar atenção para não ser iludido. A lúdica oposição entre mágico e espectador não pressupõe a quebra do jogo, pelo contrário, se revela como aspecto espontâneo de sua realização.

(...) Retirando-se do jogo, denuncia o caráter relativo e frágil desse mundo no qual, temporariamente, se havia encerrado com os outros. Priva o jogo da ilusão – palavra cheia de sentido que significa literalmente ―em jogo‖ (de inlusio, illudere ou inludere). (HUIZINGA, 2004, p.14).

Dois países que se destacam no estilo de mágica por sua potencialidade afetiva, objetividade e limpeza cênica, sobretudo na interação com o espectador, são Argentina e Espanha, suas escolas de mágica33 estão entre as mais recomendadas na atualidade, formando artistas poeticamente destacáveis e com alta precisão técnica. Constatamos que essa consciência de jogo, que antecede o efeito da mágica, é um forte diferencial formativo, ela ensina mais que a apresentação do efeito, desenvolve inter-relação, comunicação, domínio de cena, espontaneidade, foco, atitude, presença, entre outros aspectos inerentes à formação de um ator.

32 Existem discussões sobre o uso dessa palavra na comunidade mágica, principalmente aqui no Brasil. Não se recomenda aos mágicos que anunciem sua apresentação como um truque, pois a palavra remete a ideia de trapaça ou enganação, é preferível que se diga apresentar uma mágica ou efeito. 33 Dentre as escolas de mágica citamos La Gran Escuela de Magia Ana Tamariz, na Espanha (http://www.magiatamariz.com/) e Escuela de Magia El círculo Mágico, na Argentina (https://www.aprendermagia.com.ar/).

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Nas pesquisas da McBride Magic & Mystery School34 desenvolve-se uma filosofia de formação artística a partir de quatro arquétipos do mágico, inspirado nos quatro elementos naturais, o primeiro a ser desenvolvido compreende habilidades de interação com o outro, ou em outras palavras, desenvolve a habilidade de jogar.

1.6.1 TRICKSTER

Figura 10 - The Conjurer (Bosch). Fonte: https://excursuses.files.wordpress.com/2011/05/bosh-theconjurer.jpg Diversas mitologias nos contam de deuses e seres fantásticos que dominam com maestria a arte de iludir, tais figuras mitológicas estão associadas ao arquétipo do Trickster35 e perpassam o trabalho do mágico no que concerne à ilusão, à trapaça e à curiosidade:

Em contos picarescos, na alegria desenfreada do carnaval, em rituais de cura e magia, nas angústias e iluminações religiosas, o fantasma do "trickster" se imiscui em figuras ora

34 É uma famosa escola de mágica situada em Nevada, EUA. Fundada pelo mágico, autor e professor- pesquisador Jeff McBride e sua equipe. Possui uma ampla teia de relações com a comunidade mágica mundial e vem desenvolvendo estudos transdisciplinares com a comunidade acadêmica. 35 Em O homem e seus símbolos C. G. Jung nos explica da seguinte maneira: O ciclo Trickster corresponde ao primeiro período de vida, o mais primitivo. Trickster é um personagem dominado por seus desejos; tem a mentalidade de uma criança. Sem outro propósito senão o de satisfazer suas necessidades mais elementares é cruel, cínico e insensível [...] Esse personagem, que inicialmente aparece sob a forma de um animal, passa de uma proeza maléfica a outra. Mas ao mesmo tempo começa a se transformar e no final da sua carreira de trapaças vai adquirindo a aparência física de um homem adulto. (JUNG, 2008, p. 144-145) 41

inconfundíveis, ora vagas, na mitologia de todos os tempos e lugares, obviamente um "psicologema", isto é, uma estrutura psíquica arquetípica antiqüíssima. Esta, em sua manifestação mais visível, é um reflexo fiel de uma consciência humana indiferenciada em todos os aspectos, correspondente a uma psique que, por assim dizer, ainda não deixou o nível animal. (JUNG, 2000, p. 256)

Trickster é um malandro, ambíguo em sua forma, em seu gênero e virtudes, mas possui um importante papel de ―movimentar‖ a vida e o universo. Podemos associar sua imagem ao Exu dos Iorubás, Legba no vodu, ou Atem na mitologia egípcia, assim como Sun Wukong, o rei macaco da mitologia chinesa, ou a raposa Reynard do folclore francês. Raposas e coiotes são associados com esse arquétipo em diferentes culturas.

... O "trickster" é um ser originário "cósmico", de natureza divino-animal, por um lado, superior ao homem, graças à sua qualidade sobre-humana e, por outro, inferior a ele, devido à sua insensatez inconsciente. Nem está à altura do animal devido à sua notável falta de instinto e desajeitamento. Estes defeitos caracterizam sua natureza humana, a qual se adapta às condições do ambiente mais dificilmente do que um animal. Em compensação porém se candidata a um desenvolvimento da consciência muito superior, isto é, possui um desejo considerável de aprender, o qual também é devidamente ressaltado pelo mito. [...] O "trickster" continua a ser uma fonte de divertimento que se prolonga através das civilizações, sendo reconhecível nas figuras carnavalescas de um polichinelo e de um palhaço. Este motivo é a razão importante para que continue a manter sua função. Não é porém o único, nem a razão particular pela qual este reflexo de um estado de consciência extremamente primitivo configurou-se num personagem mitológico. (JUNG, 2000, p. 257- 260)

O Trickster ou o jogador é um ―prega-peças‖, um bufão, um trapaceiro. O deus Loki, da mitologia nórdica representa perfeitamente esse arquétipo, com suas travessuras ele repetidamente causa problemas aos deuses, mas também os favorece. Há um quadro muito famoso que ilustra o Trickster na idade media, chama-se ―The conjurer‖, autoria do pintor holandês Hieronymus Bosch (Ver figura 10). Na cena representada, um artista de rua apresenta um jogo para uma plateia de curiosos, essa é a característica principal do Trickster, jogar. No entanto alguns membros da plateia estão infiltrados furtando as pessoas, outra característica do Trickster. A pintura retrata um momento de controle de atenção sob uma perspectiva que contempla todas as nuances da atividade representada. O Trickster na arte da mágica e nos processos de composição nos ensina a apresentar para alguém um efeito mágico, nos ensina a jogar, divertir, trapacear, mas

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também presentear. Em seus estudos o mágico Jeff McBride concebe o que chama de ―jornada do mágico‖, organizando em quatro etapas identificadas com os quatro elementos alquímicos e representadas pelos respectivos arquétipos: Trickster, Sorcerer, Oracle, Sage. Em seu diagrama sobre os quatro arquétipos do mágico36, o Trickster aparece como a primeira etapa e está associado ao elemento ar, identificando-se com o período da primavera e com o naipe de espadas no baralho. Trickster representa a mágica close-up, e nos ensina o desenvolvimento de habilidades de comunicação e relacionamento interpessoal, o primeiro passo nesta forma de arte. A mágica do Trickster é cheia de surpresas (gags37), tende a ir para a comicidade, e funciona muitas vezes como um quebra-cabeça ou um desafio lógico, a atuação segue a mesma linha, tendo raras exceções que flertam com outros estilos e outros arquétipos, complementando essa ―performatividade‖. Mágicos que trabalham em festas e animação de eventos geralmente atuam sob este arquétipo; citamos como exemplo os seguintes mágicos que desenvolveram este estilo: Apollo Robins, Jeff Hobson, Juan Tamariz, David Stone e Charlie Frye.

1.6.2 JOGO PROFUNDO E JOGO OBSCURO

Compreendemos que a arte da mágica se vale de dois conceitos básicos: ―suspensão da descrença‖ e ―dissimulação do método‖ e que fazer mágica é jogar, jogar com o outro, com a plateia, com a percepção, assim como no teatro, um ―jogo de ilusão‖. O jogo é uma atividade com diversas funções na sociedade, essencial no desenvolvimento do indivíduo para a vida e sua relação com os demais e o ambiente. É um fenômeno de caráter lúdico que absorve seus participantes, estes muitas vezes criam regras para tornar o jogo mais interessante ou simplesmente pelo prazer de quebrá-las. Entretanto, Schechner nos dá outra perspectiva para olharmos este fenômeno cênico, não apenas como um ―jogo de ilusão‖, mas como um jogo profundo ao nos explicar sobre a amálgama entre o performer e seu papel nos rituais:

36 O diagrama sobre os arquétipos do mágico faz parte do programa de estudos da McBride‟s Magic & Mystery School, sendo sua imagem um conteúdo reservado à escola. Cada etapa corresponde ao desenvolvimento de habilidades específicas do mágico em sua formação, a título de curiosidade os demais arquétipos fazem as seguintes associações: Sorcerer - fogo, mágica de palco, desenvolvimento de habilidades profissionais e cênicas; Oracle - água, mentalismo, auto-reflexão, meditação, mitologia pessoal; Sage - terra, filosofia da mágica, ensino. 37 Piada ou efeito cômico que utiliza o elemento surpresa.

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Em termos teatrais, maya-lila é um entrelaçamento do artista e do seu papel. O papel é "real"? E se pudermos seguramente dizer que na performance estética - de Hamlet ou Shakuntala ou o Cisne Negro – que o papel não é real, o que acontece com performances rituais como a aparição de um papa em total regalia para abençoar os fiéis ou a manifestação de um orixá afro- brasileiro que "monta" o corpo de um dançarino em transe profundo? Nos rituais, não há "suspensão da descrença". Em vez disso, há "jogo profundo", como é entendido por Geertz.38 (SCHECHNER, 2013, p. 118, tradução nossa)

Sobre o jogo profundo, Schechner nos fala de um tipo de jogo que envolve alto risco, como risco de vida, por exemplo. Um tipo de jogo que absorve seus participantes exatamente pela emoção de ―apostar tudo‖, ele ―se aplica a escalar montanhas, corridas de automóveis e muitas outras atividades onda há um alto risco físico, fiscal ou psicológico. O jogo profundo envolve tanto risco que se pergunta por que as pessoas se envolvem com isso39‖ (SCHECHNER, 2013, tradução nossa). Ele nos fala que esse jogo exprime não apenas um compromisso individual como também aborda valores culturais, a partir dessa perspectiva ele desenvolve a ideia de jogo obscuro:

―Jogar na escuridão‖ significa que alguns jogadores não sabem que estão jogando – como em um jogo fraudulento ou quando ratos correm num labirinto (sem saber que estão em um) ou quando deuses do destino e da sorte plantam armadilhas para capturar as pessoas. Jogo obscuro está ligado a ideia de Maya-lila (ilusão e jogo). Envolve fantasia, risco, sorte, ousadia, invenção e deception. O jogo obscuro pode ser inteiramente privado, conhecido apenas por um jogador. Ou pode ou pode eclodir de repente [...] O jogo obscuro subverte a ordem, dissolve sistemas e quebra suas próprias regras – Tanto assim que o jogo em si corre o risco de ser destruído, como em espionagens, agentes-duplos ou jogos con40. Ao contrário dos ritos de carnaval ou palhaçarias, em que as inversões de ordem estabelecidas estão sancionadas

38 ―In theatrical terms, maya–lila is an interweaving of the performer and the role.Is the role ―real‖? And if we can safely say of aesthetic performance – of Hamlet or Shakuntala or the Black Swan – that the role is not real, what of ritual performances such as the appearance of a pope in full regalia to bless the believers or the manifestation of an Afro-Brazilian orixa who ―mounts‖ the body of a dancer in deep trance? In rituals there is no ―suspension of disbelief.‖Rather there is ―deep play‖as understood by Geertz.‖ 39 ―Deep play applies to mountain-climbing,highspeed auto-racing,and many other activities where there is very high risk physically, fiscally, and/or psychologically. Deep play involves such high stakes that one wonders why people engage in it at all.‖ 40 Con‘fidence games ou jogos con – São jogos que envolvem ganhar a confiança da vítima, fazendo-a crer que pode ganhar para logo em seguida roubá-la por truque, fraude ou trapaça. Um exemplo clássico é o jogo da bolinha e das três conchinhas.

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pelas autoridades, o jogo obscuro é verdadeiramente subversivo, suas agendas são sempre ocultas. O jogo obscuro recompensa seus jogadores por meio de enganos, ruptura e excesso. Nos meus cursos em jogo, convido os alunos a escrever exemplos de jogos escuros a partir de suas próprias vidas.41 (SCHECHNER, 2013, p. 119, tradução nossa, grifo nosso)

A partir dessa perspectiva podemos considerar a mágica como um jogo obscuro, o espectador nunca sabe qual a real intenção do mágico, este joga com as expectativas, desejos e preconceitos (ideias pré-concebidas) da plateia, que muitas vezes não sabe que está envolvida em algum tipo de jogo. Também é importante ressaltar que o mágico pode muitas vezes estar envolvido em um jogo dentro de outro, um jogo próprio, em que corre o risco, caso falhe, de ter seu segredo exposto, denunciado. Como exemplo de um jogo obscuro descreveremos a seqüencia ―jugando em la oscuridad‖, desenvolvida como um exercício pessoal pelo autor: Eu mostro uma carta, oito de copas, memorize-a. Jogo-a na mesa com a face para baixo. Pego outra carta do monte de cartas e utilizo-a para virar a carta que havia jogado na mesa, o oito de copas. Aparentemente não há mágica. Porém há outro jogo acontecendo, eu utilizo ações manipuladas para aparentarem ações comuns, eu mostro um oito de copas, mas jogo outra carta na mesa, eu pego o oito de copas no monte de cartas e ao usá-la para virar a carta da mesa realizo uma troca, para que o oito reapareça, aparentando estar desde o início. Enquanto treinamento, eu observo as tensões e os esforços em meu corpo, tentando-os controlar para alcançar a naturalidade em cada ação. Enquanto jogo, o faço para mim, durante o curso de uma apresentação, um desafio à sorte e à minha própria habilidade. Alguns números de mágica também envolvem um alto risco (como o risco de vida), nesse tipo de apresentação a mágica é também como um jogo profundo. É o caso de alguns números de escapismo ou as famosas ―roletas-russas‖. O escapismo (em inglês ) é uma prática agregada à arte dos mágicos, pois combina técnicas de fuga reais (de espaços ou objetos feitos para segurar/aprisionar

41 ―‗Playing in the dark‘means that some of the players don‘t know they are playing – like in a con game or when rats run a maze or when the gods or fate or chance lay traps to catch people in. Dark play is connected to maya–lila. Dark play involves fantasy, risk, luck, daring, invention, and deception. Dark play may be entirely private, known to the player alone. Or it can erupt suddenly [...] Dark play subverts order, dissolves frames, and breaks its own rules – so much so that the playing itself is in danger of being destroyed,as in spying, double-agentry, con games, and stings. Unlike carnivals or ritual clowns whose inversions of established order are sanctioned by the authorities, dark play is truly subversive, its agendas always hidden. Dark play rewards its players by means of deceit, disruption, and excess. In my courses on play, I invite students to write examples of dark play from their own lives.‖ 45

um corpo) com os elementos e técnicas da mágica (conviction, deception, sleight of hand, showmanship) para entreter uma audiência ou superar um desafio. Em outras palavras, é a prática de se libertar de amarras ou armadilhas, como cordas, correntes, cadeados, camisa-de-força, algemas, ou ainda de ambientes de contenção, como jaulas, prisões, tanques de água, etc. Esse tipo de apresentação foi popularizada pelo mágico Harry Houdini na transição do século XIX para o século XX, geralmente o objetivo do escapista é se libertar o mais rápido Figura 11 - Houdini. Fonte: possível, muitas vezes correndo risco de vida. Para https://healthyhero.net/incredible- harry-houdini/ tornar a apresentação mais atrativa, muitos artistas mesclam elementos ao escape como um número de desaparição ou transformação, ou ainda adicionam fogo e algum drama antes do desfecho. Quanto aos números de ―roleta-russa‖, estes funcionam como uma simulação de um jogo de sorte ou de morte em que geralmente são dispostos quatro objetos iguais contendo dentro de um deles algo perigoso (um prego, lâmina, animal peçonhento, etc), é solicitado a um espectador que misture os objetos e em seguida o mágico arrisca-se testando um por um, até que reste apenas o recipiente perigoso, isso envolve bater a mão esmagando copos, correndo o risco de ter a mão atravessada por um prego, ou pôr a mão em jarros, no qual um deles possui uma cobra ou escorpiões, entre outras maneiras à livre criação dos artistas.

Mas se o jogo profundo (por vezes também obscuro) é tão perigoso por que as pessoas insistem em jogá-lo? A mitologia nos mostra que algumas pessoas têm uma inclinação para desafiar os deuses, como no mito de Ícaro que ao sair voando do labirinto tenta alcançar o sol, mas suas asas

Figura 12 - Roleta Russa. Arquivo pessoal, 2015. 46

derretem; ou Sísifo que engana a morte duas vezes. Ícaro morre pelo fascínio e talvez pela possível glória que teria ao se igualar ao sol, e Sísifo o faz na tentativa de retardar a própria morte e também por artimanha. Para Schechner o objetivo desse tipo de jogo está ligado a valores culturais, às vezes auto-afirmação como um modo de ―retomar o controle‖ da própria vida, ou simplesmente pelo prazer de jogar, sem avisar que está jogando, como a sensação de estar envolvido numa trapaça. Quando pede que seus alunos descrevam experiências com jogos obscuros, como chama, estes motivos e objetivos se mostram bem evidentes. De outro modo, algumas pessoas podem estar em busca por reencantar-se com a vida. Uma fuga do, ou uma busca pelo, sobrevivencialismo:

Somos escravos da sobrevivência, até num sentido hegeliano. Essa cultura visa sobretudo isso: a sobrevivência, pouco importa a que custo. Sobrevivencialismo. Somos os últimos homens de Nietzsche, que não querem perecer, que prolongam sua agonia, ―imersos na estupidez dos prazeres diários. [...] estamos todos reduzidos ao sobrevivencialismo biológico, à mercê da gestão biopolítica, cultuando formas de vida de baixa intensidade, submetidos à morna hipnose [...] É a existência de cyberzumbis, pastando mansamente entre serviços e mercadorias [...] Vida besta é esse rebaixamento global da existência, essa depreciação da vida, sua redução à vida nua, à sobrevida, estágio último do niilismo contemporâneo. (GREINER, 2010, p. 26-28)

Por se perceber envolvido nessa depreciação da vida, uma ―vida nua‖ (bare life), ―reduzida aos instintos e totalmente exposta à morte e a um poder não necessariamente definido, como o poder do Estado sobre a vida do ponto de vista biológico, definindo padrões sociais, alimentares ou comportamentais, ou a regulação da nossa saúde‖ (GREINER, 2010), o ser humano busca no jogo a possibilidade de performar (se colocar como) um ―homo sacer‖ – um ser humano condenado, mas que não fora ainda sacrificado, e que no entanto pode ser morto sem que quem o mata cometa legalmente um homicídio (GREINER, 2010). Nesse caso, em seu jogo ele performa um ser humano condenado à justiça dos deuses e que pode sair impune (libertar-se ou renascer) se este for o desejo divino.

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II

SHOWMANSHIP

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2. TEATRALIDADE E PERFORMATIVIDADE NA ARTE DOS MÁGICOS

Minha primeira experiência com mágica ocorreu quando eu era criança, por volta dos oito ou nove anos de idade num passeio da escola. Fomos ao Centro de Turismo de Natal e na ocasião estava um mágico vendendo pequenos números para os visitantes. Nossa turma se aproximou e ele prontamente pegou um longo pedaço de barbante, entregou-me uma tesoura sem ponta e me pediu para cortar o fio em pedacinhos. Então segurou os pedaços cortados e os enrolou com os dedos formando uma bolinha, me pediu para soprar e puxar as pontas que se sobressaíam, ao fazer isso o barbante estava inteiro novamente, reconstituído. Mágica ampara-se no mundo real, empírico, tendo como referência as leis da física e da lógica. Seu efeito cria a aparência da superação destas leis. Uma apresentação de mágica ocorre também num plano diegético (artifício da narrativa), que estabelece um pacto com a plateia para que o impossível seja mais bem aceito, e por se configurar como uma cena assume, muitas vezes, uma característica teatral. Deste modo, afirmamos que a mágica se apóia em (e combina) dois planos, o da realidade e o da cena. Por essa característica, constatamos também que a atuação em mágica pode seguir por um viés teatral ou um viés performativo, ou ainda híbrido (combinar os dois). Conforme o Dr. Ricardo Harada, uma escolha estética, uma vez que a irrupção da realidade sobre a cena e a transição do espectador de um plano a outro não seja um problema, e sim uma possibilidade poética (HARADA 2012), e a mágica em sua natureza admite essa amálgama. Teatralidade é um fenômeno muito evidente nas apresentações de mágica. O século XIX, como verificado no capítulo anterior, foi um período em que a arte da mágica adentrou o edifício teatral, ocorrência atribuída ao mágico Robert-Houdin, portanto, chegando a incorporar e compartilhar mutuamente seus elementos técnicos, seu maquinário, e sua estética. ―A noção de ‗teatralidade‘ pode ser definida como uma qualidade que evidencia a presença do teatro, ou seja, que assume e revela o caráter de representação do espetáculo teatral.‖ (STEIN, 2009, p. 26). Conforme PAVIS (2008) traduz em suas palavras a noção de teatralidade:

A teatralidade seria aquilo que, na representação ou no texto dramático, é especificamente teatral (ou cênico) [...] é uma espessura de signos e de sensações que se edifica em cena a partir do argumento escrito, é aquela

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espécie de percepção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto [...] Coloca-se então a questão da origem e da natureza dessa teatralidade: [...] No primeiro caso, teatral quer dizer, muito simplesmente: espacial, visual, expressivo, no sentido de que se fala de uma cena muito espetacular e impressionante. [...] No segundo caso, teatral quer dizer a maneira específica da enunciação teatral, a circulação da fala, o desdobramento visual da enunciação (personagem/ator) e de seus enunciados, a artificialidade da representação. (PAVIS, 2008, p. 372)

O fenômeno da teatralidade se mostra numa apresentação de mágica quando a organização da cena busca uma qualidade estética que evoca a presença do teatro, como uma codificação nos gestos, no texto e no uso dos recursos tecnológicos da cena (iluminação, efeitos sonoros, efeitos especiais). Os atos de manipulação (também chamados de cabaret act), e a maioria das mágicas tradicionais de salão e números com enorme preparação cênica são exemplos da teatralidade presente no ato mágico. Praticamente toda a influência da mágica atual baseia-se nesse tipo de atuação, uma ―teatralização‖ de uma apresentação de magia. Citando alguns, dentre muitos exemplos de artistas que trabalham com esse tipo de composição destacamos: Doug Figura 13 - Rapha Santacruz em Haru, a primavera Henning, Fred Kaps, Luna Shimada, do aprendiz. Fonte: http://www.teatrosantaisabel.com.br/wp/?p=742 Sylvester the Jester, Rudy Coby, Kevin James 7 e o grupo Magus Utopia42. E no cenário nacional podemos ver no trabalho de Rapha Santacruz (foto), Henri Vargas, Vik, Cláudia Guedes, Goldini, Hugo Moraes, e muitos outros. Em que instância um mágico é também um performer? Para compreendermos melhor esta questão adentraremos ao estudo da performance, enquanto uma forma de arte e um fenômeno cultural à guisa de elucidar temas importantes como o fator de

42 Ver: http://www.magusutopia.com

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comportamento restaurado, o performer e sua práxis e um estudo sobre a performatividade.

2.1 ESTUDOS DA PERFORMANCE

As traduções para o termo Performance em uso cotidiano remetem à realização ou execução de uma atividade, como também, desempenho, proeza, representação teatral ou ação notável. Entretanto Performance possui uma sintaxe mais ampla em decorrência de sua abrangência nos campos da filosofia e da arte. Performance no campo das artes, ou Performance Art (a performance enquanto uma linguagem artística), como nos fala Cohen43 é uma expressão cênica advinda de uma necessidade de ampliação de possibilidades expressivas nas artes visuais, como veremos nessa breve definição:

Apesar de sua característica anárquica e de, na sua própria razão de ser, procurar escapar de rótulos e definições, a performance é antes de tudo uma expressão cênica: um quadro sendo exibido para uma plateia não caracteriza uma performance; alguém pintando esse quadro, ao vivo, já poderia caracterizá-la. [...] Para se adentrar nessa discussão topológica e sígnica, é interessante introduzir-se a conceituação de Jacó Guinsburg a respeito da encenação: para este, a expressão cênica é caracterizada por uma tríade básica (atuante-texto-público) sem a qual ela não tem existência. [...] O atuante não precisa ser necessariamente um ser humano (o ator), podendo ser um boneco, ou mesmo um animal. Podemos radicalizar ainda mais o conceito de ‗atuante‘, que pode ser desempenhado por um simples objeto, ou uma forma abstrata qualquer. [...] é importante discutir-se a questão da hibridez desta linguagem: para muitos, a performance pertenceria muito mais à família das artes plásticas, caracterizando-se por ser a evolução dinâmico-espacial dessa arte estática. [...] Poderíamos dizer, numa classificação topológica, que a performance se colocaria no limite das artes plásticas e das artes cênicas, sendo uma linguagem híbrida que guarda características da primeira enquanto origem e da segunda enquanto finalidade. (COHEN, 2002, p. 28-30)

43 Renato Cohen foi um artista brasileiro que transitou por experiências cênicas de fronteira fazendo uso de multimídia, dança, teatro, artes plásticas, entre outros operadores em sua poética. Estruturou os primeiros escritos em performance no Brasil e desenvolveu a ideia de work in process apresentada em seu livro Work in Progress na cena contemporânea, foi professor da PUC e Unicamp.

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Cohen define Performance como uma função do tempo e do espaço, nesse sentido, três premissas agenciam esta definição: atuante, texto e presença. No que se refere ao atuante não há uma proposta fechada, este pode ser um ser humano, um boneco, um animal ou objeto(s). Texto, nessa perspectiva corresponde ao conjunto de signos, como o código escrito, imagético, verbal ou códigos indiciais (ruídos, fumaça, iluminação, etc). E presença remete a participação do espectador, que pode ser estética – os espectadores assistem; Ou ritual – os espectadores tornam-se participantes da performance (COHEN, 2002). Diferente do teatro tradicional do ocidente, a performance não se estrutura a partir de uma linearidade, ela se ampara num tipo de colagem, em que os elementos que a constituem se conectam no processo e compõem uma seqüência maior (ver work in process), sem que pareça, idealmente, que se trate de uma colagem. Para Cohen, essa compreensão advém do cinema, uma série de pedaços fotográficos unidos para construir uma película cinematográfica. A performance pode acontecer nos mais inusitados lugares, não há um espaço específico para que aconteça, contudo o espaço em que acontece dialoga diretamente com a proposta do ato performativo, e por isso compõe também a própria performance. O historiador e lingüista medievalista Paul Zumthor, em sua obra Introdução à poesia oral relaciona elementos axiomáticos da oralidade poética aprofundando os saberes sobre voz, texto e atuação. No que se refere à performance Zumthor diz:

Performance implica competência. Além de um saber-fazer e de um saber- dizer, a performance manifesta um saber-se no tempo e no espaço. O que quer que, por meios lingüísticos, o texto dito ou cantado evoque, a performance lhe impõe um referente global que é da ordem do corpo. É pelo corpo que nós somos tempo e lugar: a voz o proclama emanação do nosso ser. [...] a performance põe em presença atores (emissor, receptor, único ou vários) e, em jogo, meios (voz, gesto mediação). Quanto às circunstâncias que formam seu contexto [...] A performance é duplamente temporalizada: por sua duração própria, e em virtude do momento da duração social em que ela se insere. (ZUMTHOR, 1997, p. 157-158)

Como podemos notar, corpo é o fator central na performance, é por meio dele que estipulamos uma referência de tempo e espaço, e muitas vezes outras bases referenciais: contexto, objetivos, comportamentos, etc. E a partir dele o nosso receptor

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(o público) estabelece suas bases referenciais de temporalidade e espacialidade na fruição e diálogo com a obra. Duas realidades temporais operam na duração de uma performance, o tempo da própria performance, que seria o tempo da obra (ou tempo ritual, tempo do performer em ação). E o tempo em virtude da duração social em que ela se insere, ou seja, o momento em que ela acontece (que pode ser cronológico, político e/ou histórico).

O tempo conota toda performance. Esta regra diz respeito à natureza da comunicação oral, e não pode ter exceção. Na performance ritual, a conotação é tão poderosa que pode constituir por si só a significação do poema. [...] as modalidades espaciais da performance interferem as do tempo. O lugar, como o momento, pode ser aleatório, imposto por circunstâncias estranhas à intenção poética [...] Uma tensão pode se manifestar então entre as conotações espaciais e temporais [...] As sociedades humanas exploraram, mais ou menos rigorosamente, essas virtualidades, privilegiando institucionalmente certos lugares. (ZUMTHOR, 1997, p. 161)

O tempo de realização de uma performance pode compor, limitar e inclusive desafiar a própria obra ou os participantes (artista e espectadores), como as obras do performer taiwanês Tehching Hsieh, suas performances mais conhecidas (intituladas one-year performance) possuem duração de um ano, seus atos envolvem reclusão, ação repetitiva a cada uma hora, convivência limitada, experiências com modos de viver e existir, todos com duração de um ano para se completarem e registro diário como comprovação do ato e posterior exposição fotográfica. Outro exemplo está na performance I like America and America likes me, de Joseph Beuys realizada em Nova York em 1974, o performer conviveu por três dias com um coiote num espaço limitado, a relação entre homem e animal no decorrer dos dias se modificou, indo desde um estranhar-se num primeiro momento à uma relação de respeito mútuo ao final da performance, em que o próprio Beuys abraçou o coiote antes de deixar o local. É imprescindível a duração dos três dias e a limitação espacial na realização desse ato performativo, sem tais delimitações teríamos uma relação completamente diferente ou talvez nem haveria alguma relação entre o performer e o animal.

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Figura 14 - Joseph Beuys - I like America and America likes me. Fonte: https://www.kidsofdada.com/blogs/magazine/35963521-joseph-beuys-i-like-america-and-america-likes-me

Destacamos também pela tensão temporal e espacial a performance Rhythm 0 (ritmo 0) de Marina Abramovic, numa sala de uma galeria de arte ela dispôs setenta e dois objetos diversos numa mesa para serem utilizados no seu corpo pelas pessoas da plateia, deste modo colocando seu próprio corpo como objeto, à mercê da vontade do público. No decorrer do tempo, as ações que iniciaram por carícias e brincadeiras passaram a torturas e abusos, chegando a quase tirar a vida da performer. Após as seis horas de duração, Marina levantou-se e encarou o público que fugiu de uma confrontação direta com a artista, agora enquanto pessoa e não mais objeto. Todas estas performances só se consolidaram e atingiram tal força poética devido às tensões entre tempo e espaço em que foram realizadas. Se pensarmos nas tensões entre espacialidade e temporalidade, presentes nos diferentes trabalhos de Hsieh, assim como nos trabalhos de tantos outros performers, que exploram os espaços habitáveis, o espaço de reclusão e a convivência limitada ao espaço do outro em suas obras, notamos uma riqueza de significações e implicações que essas relações impõem e designam mutuamente, salvo exceções ou proposições que flertam com o alargamento temporal a performance possui uma aproximação com o evento, o instante presente, ou o acontecimento único, desse modo se assemelha temporalmente ao espetáculo, como o circo ou o musical, como podemos observar no seguinte trecho:

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Na performance há uma acentuação muito maior do instante presente, do momento da ação (o que acontece no tempo ‗real‘). Isso cria a característica de rito, com o público não sendo mais só espectador, e sim, estando numa espécie de comunhão [...] A performance tem também uma característica de espetáculo, de show. E isso a difere do teatro. Esse movimento de ‗vaivém‘ faz com que o performer tenha que conduzir o ritual-espetáculo e ‗segurar‘ o público, sem estar ao mesmo tempo ‗suportado‘ pelas convenções do teatro ilusionista. (COHEN, 2002, p. 97-98)

Em termos históricos podemos compreender a performance como uma arte em constante construção, ela foi chamada também de live art (uma arte ao vivo e também uma arte viva) em oposição à arte meramente estética e elitista confinada aos museus. Esse modo de pensar a arte rompeu com os paradigmas nas diversas expressões artísticas durante o século XX: na dança foram incorporados movimentos e situações cotidianas como andar, parar e trocar de roupas, assim como bailarinos fora dos padrões estabelecidos. Na música o silêncio e os ruídos passaram a ser aceitos como formas musicais, a escrita automática como proposta surrealista para a literatura e a action painting que deságua na body art, seguido do happening e o teatro experimental de 1960 que culminaram no termo performance. (COHEN, 2002) Para Richard Schechner a performance pode acontecer em oito situações: na vida cotidiana, nas artes, nos esportes e outras formas de entretenimento, nos negócios, na tecnologia, no sexo, no ritual e no jogo. Nesta perspectiva, quando nos referimos a performance art, evocamos a qualidade de ―arte‖ para esse fenômeno, entretanto, conforme Schechner, se considerarmos que algumas culturas não possuem originalmente essa palavra ou categoria chamada ―arte‖, mesmo tendo criado objetos e realizado performances com excepcional habilidade e senso estético, a performance seria então um elemento ou fenômeno cultural que envolve a ideia de arte, bem como demais vieses.

Os objetos rituais de uma cultura ou de um período histórico tornam-se obras de arte de outras culturas ou períodos. Os museus de arte estão repletos de pinturas e objetos outrora considerados sagrados (e ainda podem ser de povos pilhados ansiosos por recuperar seus objetos rituais e sagrados). Além disso, mesmo que uma performance tenha uma forte dimensão estética, ela não é necessariamente ―arte‖. Os movimentos dos jogadores de basquete são tão belos quanto os dos bailarinos, mas um é denominado esporte, o outro arte. A

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patinação artística e a ginástica existem em ambos os domínios. Decidir o que é arte depende do contexto, circunstância histórica, uso e convenções locais.44 (SCHECHNER, 2013, p. 32, grifo nosso, tradução nossa)

Quanto ao performer, há muito que dizer sobre este atuante. Podemos associar o performer à figura do xamã, aquele que leva a cura à civilização através do rito e do conhecimento, assim como ao professor, que para além da importante função na formação e capacitação de sua comunidade é também agente da transformação social por meio da ampliação da rede de conhecimentos e horizontes de percepção dos alunos, deste modo também um curador da sociedade: ―Quando um professor está diante de seus alunos, ele tem condições de usar vários elementos como a voz, o corpo e o lugar onde está para comunicar aquilo que pensa aos corpos que estão diante dele.‖ (CIOTTI, 2014, p. 59).

O xamã é também aquele que lida com o sagrado e o profano, com o divino e/ou o demoníaco, portanto facilmente (e habitualmente) demonizado e hostilizado por rasas interpretações de uma audiência preconceituosa. O performer vivencia ou realiza uma experiência em seu

próprio corpo, muitas vezes se Figura 15 - Encontro com um xamã. México. Foto: Cléo Araújo, 2018. colocando em risco por uma necessidade de ampliação da autoconsciência, desse modo, ao vivenciar a experiência, compreende no e pelo seu corpo questões fundamentais, suas ou da comunidade. Deixamos aqui um relato de experiência pessoal deste autor/performer em uma prática ritual chamada ―Temazcal‖ realizada no México, durante a escrita deste capítulo:

44 ―The ritual objects of one culture or one historical period become the artworks of other cultures or periods.Museums of art are full of paintings and objects that once were regarded as sacred (and still may be by pillaged peoples eager to regain their ritual objects and sacred remains). Furthermore, even if a performance has a strong aesthetic dimension,it is not necessarily ―art.‖ The moves of basketball players are as beautiful as those of ballet dancers,but one is termed sport, the other art. Figure skating and gymnastics exist in both realms. Deciding what is art depends on context, historical circumstance, use, and local conventions.‖

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A prática do Temazcal advém da cultura indígena dos maias e astecas, é um tipo de banho de vapor e ervas utilizado com fins religiosos e curativos. No Temazcal que participei havia uma cabana coberta com panos grossos e uma pequena entrada por onde se adentra agachado. Do lado de fora rochas vulcânicas são aquecidas numa fogueira junto de uma panela de água com ervas. Saudamos os espíritos guardiões do norte, sul, leste e oeste, assim como o céu, a terra e o fogo. Entramos na cabana e nos sentamos em círculo. Ao centro colocam as rochas aquecidas e fecha-se a cabana. É servido um chá de cactus conhecido popularmente como Peyote para iniciar o processo. Depois trazem água com ervas e a derramam nas rochas fazendo o vapor tomar conta de tudo. É um calor insuportável, que nos dá a sensação de ter entrado numa fogueira. Seu corpo todo arde e fica completamente suado, as roupas completamente molhadas. Caso não desmaie, seu corpo começa a se adaptar aos poucos à temperatura, no entanto é repetido essa rotina quatro vezes, uma para cada "porta" ou portal sagrado, atribuídos às quatro direções, aos espíritos, ao amor, aos familiares, às mulheres e à busca pessoal. Tais momentos intercalados por cânticos e orações ao som de um tambor e chocalhos tornam o rito um exercício de paciência, autoconsciência e entrega. Até todos caírem ao chão e repousar em Pachamama (o espírito da terra). O ambiente é altamente desafiador (e claustrofóbico), muito difícil de respirar e quase impossível quando no ápice do vapor aromatizado. Apesar de estar em grupo, o rito é um processo pessoal, muito individual. Suas companhias são o fogo (o grande xamã) e a água (a vida).

Historiadores e pesquisadores afirmam que o Temazcal era um banho de vapor e ervas realizado pelos indígenas pré-colombianos para cura de ferimentos, venenos, infecções, problemas de pele e, sobretudo para cura física e espiritual. Os habitantes do local em que o Temazcal foi realizado chamam-no de ―medicina‖ atribuindo à temazcalli (a tenda que se realiza o banho) o caráter de hospital/templo/casa de banho. Com fins de pesquisa antropológica e pessoal este relato evidencia alguns fatores de risco pelo qual o performer passou. A princípio, vivenciar o próprio ato, o efeito do vapor, das ervas e do chá. Em seguida a alta temperatura que o corpo se expõe (responsável por expelir o líquido do corpo) e por último à confiança nas pessoas que preparam o ritual, na sua índole, ética e disposição em fazê-lo, em compartilhar.

[O que tem ritual] em comum com performances teatrais, espetáculos dramáticos e eventos públicos [?...] a dimensão performativa em si - isto é, o

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deliberado "fazer" autoconsciente de ações altamente simbólicas em público - é a chave para o que torna ritual, teatro e espetáculo o que eles são. Enquanto uma dimensão performativa coexiste freqüentemente com outras características de comportamento ritualístico, especialmente em competições esportivas regidas por regras ou respostas a símbolos sacrais, em muitos casos, a performance é claramente o elemento mais dominante ou essencial [...] A natureza ritualística das atividades performativas parece estar na experiência sensorial multifacetada, no enquadramento que cria uma sensação de totalidade condensada e na capacidade de moldar a experiência das pessoas e a ordem cognitiva do mundo. Em resumo, as performances parecem rituais porque modelam explicitamente o mundo.45 (BELL apud SCHECHNER, 2013, p. 58. Tradução nossa.)

Zumthor nos apresenta o performer associado ao ―intérprete‖ como aquele que executa a obra virtual de um compositor. Entretanto, pela performance advir da linguagem das artes visuais enquanto origem e buscar uma aproximação maior com a vida, o performer, em termos procedimentais, se aproxima mais do artista visual, ou seja, de um encenador-colador, deste modo além de intérprete é também compositor. Sua ―atuação‖ se configura como uma ritualização do instante ―aqui-agora‖, priorizando a presença do corpo em detrimento da expressão corporal. Nesse sentido, o processo de preparação do performer difere do ator tradicional do teatro ocidental, enquanto este busca o desenvolvimento de uma personagem, o domínio e naturalização de ações psicofísicas seja num processo de composição interpretativo ou representativo, o performer busca desenvolver suas próprias habilidades por meio de um arquétipo, como a figura do xamã, do velho, do guerreiro, do trickster, entre outras, utilizando-se de uma persona ao invés de um personagem. Conforme Cohen, o trabalho de criação, e preparação do performer aponta para o desenvolvimento de habilidades psicofísicas, métodos de desenvolvimento da autoconsciência inspirados em técnicas de meditação e filosofias orientais, a prática de diferentes atividades corporais (técnicas circenses, dança, mímica, artes marciais, etc), e

45 ―[What has ritual] in common with theatrical performances, dramatic spectacles, and public events [?. . .] the performative dimension per se – that is, the deliberate, selfconscious ―doing‖ of highly symbolic actions in public – is key to what makes ritual, theater, and spectacle what they are. While a performative dimension often coexists with other characteristics of ritual-like behavior, especially in rule-governed sports contests or responses to sacral symbols, in many instances performance is clearly the more dominant or essential element [. . .] [T]he ritual-like nature of performative activities appears to lie in the multifaceted sensory experience, in the framing that creates a sense of condensed totality, and in the ability to shape people‘s experience and cognitive ordering of the world. In brief, performances seem ritual-like because they explicitly model the world.‖

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o uso de mídias, aparelhos eletrônicos e as tecnologias disponíveis (COHEN, 2002, p.104-105). Em cena o performer está trabalhando como se vestisse uma ―máscara ritual‖ que é diferente de sua pessoa no dia-a-dia (COHEN 2002), não se trata de uma representação, muito menos interpretação, mas de um tipo de auto-representação ou (re)apresentação de si dentro de uma estrutura cênica composta por colagens de elementos, que diferencia-se essencialmente do teatro por não propor necessariamente uma dramaturgia, personagens ou conflito. O trabalho de ―atuação‖ do performer é um ―palco de experiência‖, um exercício de ampliação da consciência mais que um desempenho cênico, um estado quase de devoção religiosa, de rito, mas ao mesmo tempo de prontidão para atuar. Assim, o performer é também um encenador (articulador da concepção cênica) que se coloca em cena. Sobre a mágica enquanto uma performance, podemos notar principalmente no trabalho atual dos mágicos esse modo de atuação, e até mesmo um hibridismo entre teatralidade e performatividade. Para compreendermos melhor o que é performatividade recorremos ao que o filósofo J. L. Austin46 assinalou como ―performativo‖. Austin usou para descrever enunciados que vinham acompanhados por ações, e que para além de enunciar a ação, eram em si a própria ação:

Austin cunhou a palavra ―performativo‖ para descrever enunciados como ‗tomo essa mulher como minha esposa legal‘, ou ‗eu nomeio este navio o Rainha Elizabeth‘ ou ‗Peço desculpas‘ ou ‗eu aposto dez dólares que irá chover amanhã‘. Nesses casos, como observa Austin, ‗dizer algo é fazer algo‘. Ao pronunciar certas frases as pessoas realizam atos. Promessas, apostas, maldições, contratos e julgamentos não descrevem ou representam ações: elas são ações.47 (SCHECHNER, 2013, p. 123, tradução nossa)

Diferentes sociedades têm sua maneira particular de proferir seus performativos, nos batizados, nos julgamentos, jogos, matrimônio, entre outras ocasiões. O ―eu aceito‖

46 Filósofo britânico que desenvolveu parte da atual teoria dos discursos. 47 ―Austin coined the word ‗performative‘ to describe utterances such as, ‗I take this woman to be my lawful wedded wife‘ or ‗I name this ship the Queen Elizabeth‘ or ‗I apologize,‘ or ‗I bet you ten dollars it will rain tomorrow‘. In these cases, as Austin notes, ‗To say something is to do something.‘ In uttering certain sentences people perform acts. Promises, bets, curses, contracts, and judgments do not describe or represent actions: they are actions.‖

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proferido no casamento ocidental, por exemplo, vem acompanhado da troca de alianças como um símbolo que firma o acordo. ―[...] ‗performativo‘ é derivado, é claro, de ‗executar‘ [...] indica que a emissão do enunciado é a realização de uma ação. [...] O pronunciamento das palavras é, de fato, geralmente um, ou mesmo o principal incidente na realização do ato.‖ (AUSTIN apud SCHECHNER, 2013, p. 124, grifo nosso, tradução nossa). J. L. Austin e John R. Searle48 separam a conversa normal do mundo real das formas parasitárias do discurso (atuação e ficção), que chamam de performativos infelizes. Para Austin um performativo proferido sob uma circunstância fingida, como quando alguém se passa por outro (desempenha um papel) é um ―performativo infeliz‖. Searle e Austin assumem esta posição considerando a arte como uma simulação ou ilusão da vida, ao invés de um retrato dela. Tais distinções entre realidade e ficção vão interessar artistas e teóricos, as produções vão passar a explorar cada vez mais a dissolução entre realidade e ficção, chegando a questionar muitas vezes o controle dos discursos reais e os ficcionais.

Muitos artistas de performance de hoje vão trabalhar com essa interação de realidades, tornando um tema cada vez mais central em performance art, cinema e TV, internet, teatro experimental, artes visuais e entretenimento popular. [...] Em que grau a ―realidade da TV‖ é real e em que grau é ―empacotada‖? Mas a mesma pergunta pode ser convocada para uma conferência de imprensa presidencial, um relatório de inteligência classificada ou mesmo um diagnóstico médico enviado para uma organização de manutenção da saúde para aprovação de reembolso.49 (SCHECHNER, 2013, p. 126, tradução nossa, grifo nosso)

Se a premissa de algo ser performativo remete a ideia de que a emissão do enunciado é a realização da ação, e que proferir performativos em um falso contexto é trair com a ideia de performativo, teremos uma série de ambigüidades e liminaridades com a arte da mágica atual, não obstante de outras ocasiões e explorações em outras artes envolvendo a dissolução entre realidade e ficção. O mágico atual compreende e

48 Filósofo norte-americano que continuou os estudos de Austin sobre os ―atos de fala‖, expandindo seus estudos para os campos da percepção e filosofia da mente. 49 ―many of today‘s performance artists, this interplay of realities has increasingly become a central theme in performance art, film and TV, the internet, experimental theatre, the visual arts, and popular entertainment. To what degree is ―reality television‖real, to what degree packaged? But the same question can be asked of a presidential press conference, a classified intelligence report,or even a medical diagnosis sent forward to a health maintenance organization for approval and reimbursement.‖ 60

reorganiza em sua atuação, enunciados verdadeiros e falsos, estes proferidos muitas vezes como recurso para a criação da atmosfera mágica e da deception, entretanto, o resultado final da apresentação condiz com o seu principal enunciado (realizar algo impossível ou improvável). Atualmente concebemos a performatividade inserida em todos os lugares da sociedade, principalmente na mídia, no comportamento diário, nas artes e na linguagem (SCHECHNER, 2013). Tal concepção nos aponta ao fenômeno de comportamento restaurado, um processo chave pelo qual alguém pode experimentar ―ser outro‖, ou ―desempenhar como se fosse outro‖, tal qual é realizado em peças teatrais, danças e rituais (SCHECHNER, 2013, grifo nosso, tradução nossa). Schechner nos diz que o comportamento restaurado se encontra nos hábitos, rituais e rotinas que desempenhamos diariamente. Tais hábitos advêm de uma origem, muitas vezes desconhecida ou esquecida, são ações ou rotinas elaboradas, impostas, distorcidas pelo mito e pela tradição. Ele exemplifica no comportamento de uma noiva, que durante o casamento pode ficar tímida e até corar o rosto durante o momento ao lado de seu noivo, mesmo quando já tenha vivido durante anos com ele – é um tipo especial de comportamento esperado; como também inclui um vasto espectro de ações: pode ser o ―eu‖ em outro estado psicológico ou outro tempo; ou ―eu‖ comportando-me ―como se fosse alguém mais além de mim‖, como se houvessem ―múltiplos eu‖. (TAYLOR, 2011, tradução nossa). Como o estado de ―fora de si‖ ou de transe, comum em algumas práticas religiosas. Nesta concepção a Performance é uma segunda realização de um comportamento, ―por segunda vez y hasta „n‟ número de veces‖ (TAYLOR, 2011). Falamos brevemente, no capítulo anterior, do mágico Chung Ling Soo, um americano que atuou sob a identidade de um mágico chinês. Seu verdadeiro nome era William E. Robinson, que durante grande parte de sua carreira trabalhou como assistente e produtor de renomados mágicos de sua época, como Harry Kellar e a família Herrmann, ocasião em que adquiriu grande prática em disfarces e maquiagens. Por um curto período de tempo se apresentou com sua identidade americana, mas em 1900, inspirado pelo sucesso de seu rival Ching Ling Foo, Robinson (Soo) replica alguns números de mágica do repertório chinês e por fim muda sua identidade e aparência completamente para Chung Ling Soo. Com o tempo ele aperfeiçoou seus números, tanto que superavam em efeito os do autêntico mágico chinês. Ele também melhorou sua ―performatividade‖, agindo e vivendo como um chinês, de modo que

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sempre quando estava em público só se comunicava por meio de seu intérprete. Soo vivia sua performance, ainda que sua atuação em cena dispunha de muita teatralidade. Não é diferente, por exemplo, da performatividade de uma ialorixá (mãe de santo) em serviço, ou um xamã, um líder religioso, ou mesmo, conforme a Dra. Judith Butler50, do gênero que performamos. Não se objetiva uma composição estética, mas um objetivo vital, semelhante a uma profissão quando a desempenhamos. Sete funções ou propósitos estão relacionados à performance, elencados da seguinte maneira: para entreter, para criar beleza, para marcar ou mudar identidade, para criar ou promover comunidade, para curar, para ensinar ou persuadir, para lidar com o divino e o demoníaco. Identificamos tais funções nos diferentes atos performativos, e na maioria das vezes carregados por mais de uma função, combinadas entre si:

... uma apresentação de rua ou peça de propaganda pode ensinar, persuadir e/ou convencer, mas tal programa também tem de entreter e promover a comunidade. Os xamãs curam, mas também entretêm, promovem a comunidade e lidam com o sagrado e/ou demoníaco. [...] Uma obra de caridade da igreja cristã cura, entretém, mantém a solidariedade comunitária, invoca tanto o sagrado como o demoníaco e, se o sermão for eficaz, ensina. Se alguém se converte à determinada religião, a identidade dessa pessoa é marcada e mudada. [...] Rituais tendem a ter o maior número de funções, com menos produções comerciais.51 (SCHECHNER, 2013, p. 46, grifo nosso, tradução nossa)

Tomamos aqui nossa definição de performance, nesta pesquisa identificada com as concepções dos autores acima apresentados, relacionando a ideia de performance com o ato de jogar e o ritual. Interessa-nos tratar a performance para além da concepção de arte, enquanto um fenômeno de restauração do comportamento por meio do

50 Filósofa pós-estruturalista estadunidense, uma das principais teóricas da teoria queer, feminismo, filosofia política e ética. Para Judith Butler a realidade de gênero é performativa, ela só acontece durante a realização desta performatividade, desse modo, em seu recorte, ela questiona a originalidade na realidade de gênero, tornando a identidade preexistente, como uma identidade ficcional reguladora, nessa perspectiva não haveria um compromisso do ato de gênero performativo com a originalidade, não existiria o ato falso ou verdadeiro, real ou distorcido, a realidade de gênero seria performativa, existindo apenas enquanto é realizada. (BUTLER apud SCHECHNER, 2013) 51 ―a street demonstration or propaganda play may be mostly about teaching, persuading, and convincing – but such a show also has to entertain and may foster community. Shamans heal, but they entertain also, foster community, and deal with the sacred and/or demonic. [...] A charismatic Christian church service heals, entertains, maintains community solidarity,invokes both the sacred and the demonic,and,if the sermon is effective, teaches. If someone at the service declares for Jesus and is reborn, that person‘s identity is marked and changed. [...] Rituals tend to have the greatest number of functions, commercial productions the fewest.‖

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entretenimento, da cura, da criação de algo belo, da ligação com o sagrado, do ensino, entre outros, donde vão se destacar alguns desses propósitos no que se refere a performatividade na arte da mágica. Portanto, compreendemos nesse recorte, ―a performance enquanto um comportamento ritualizado permeado pelo ato de jogar (illudere)52‖. Em outras palavras, um comportamento com bases na seriedade, mas atravessado por uma qualidade de jogo. Essa concepção é importante para compreendermos o mágico enquanto um performer, deste modo, quando a apresentação de mágica é pautada na performatividade a atuação segue em direção a uma live art53, as fronteiras entre realidade e cena borram- se e a organização da apresentação ou façanha se concentra na realização do ato, mais do que na construção ―teatralizada‖ de uma cena, há espontaneidade na realização das ações, o roteiro se mostra semi-estruturado e pode contar com a intervenção dos espectadores, possibilitando o improviso no desenvolver da apresentação, incluindo uma relação quase cotidiana de interação com a plateia. O performer demonstra uma habilidade incomum, na maioria das vezes saindo do contexto de ―truque de mágica‖, flertando com outras artes ou narrativas, nesses casos são demonstrações de super habilidades, sessões espirituais (séance), atos de escapismo, hipnose, faquirismo ou mesmo se apresentados enquanto números de mágica afastam-se de uma atitude teatral, mesmo se apresentadas dentro de um edifício teatral. Como exemplo, citamos a apresentação de Robert-Houdin em 1856 na Argélia, em que apresentou o bullet catch (o número de pegar a bala). Robert-Houdin não o apresentou como um ―número de mágica‖, mas foi desafiado para um duelo e manipulou a situação para demonstrar, no dia seguinte, sua ―capacidade especial de transferir os ferimentos que lhe fossem causados‖. Ele preparou as armas à plena vista da plateia e posicionou-se em frente ao seu desafiante, recebeu o primeiro disparo capturando o projétil com os dentes, ameaçou atirar contra seu oponente, mas encerrou sua performance atirando contra um muro próximo, fazendo os tijolos sangrarem. (BLAINE, 2002, p. 4-6. Tradução nossa). Por sair do contexto de ―apresentação de mágica‖ esse tipo de performance pode causar grande confusão na plateia, geralmente sem saber diferenciar se o que

52 Illudere é uma palavra latina que deriva das raízes: in + ludere e origina o termo illusio que se associa e por sua vez também dá origem à palavra inglesa illusion, relativo à ilusão, simulação, engano. 53 Live art como Cohen define, é uma arte ao vivo e também uma arte viva. Uma forma de se ver arte em que se busca uma aproximação direta com a vida, em que se estimula o espontâneo, o natural, em detrimento do elaborado, do ensaiado.

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testemunhou foi algo real ou uma ilusão. Mas também é detentora de uma grande potencialidade poética, efeito reforçado pela ancoragem da cena com a realidade. Podemos sugerir alguns mágicos que desenvolvem e/ou desenvolveram trabalhos pautados em performatividade, entretanto, sem afirmar que se tratou de uma escolha proposital nessa linha de atuação, destacamos: David Blaine, Derek DelGaudio, Steve Shaw (Banachek), James Randi, Kuda Bux, , S. W. Erdnase, Harry Houdini (e todos os que reperformam seus escapes), Chung Ling Soo, entre outros.

2.2 O TEATRAL E O PERFORMATIVO – MODOS DE ATUAÇÃO

A tabela a seguir evidencia particularidades entre uma atuação na mágica que se apóia na teatralidade e uma atuação fundamentada na performatividade. Como se trata de um ―modo de atuação‖ a diferença está mais na atitude do artista, do que na estética de seu trabalho (embora que a atitude afete a estética), portanto a separação entre esses termos é tênue, quase inseparável, e às vezes, de difícil noção. Nesta tabela procuramos distanciar de modo extremo os aspectos de cada atuação, para fins de estudo, mas consideramos a existência de combinações mínimas entre esses dois caminhos numa atuação de mágica.

Teatralidade Performatividade Organização da cena buscando uma Organização da cena para a realização do qualidade estética teatral; faz uso de ato, relação quase cotidiana de interação iluminação, sonoplastia, ambientação e com espectadores, pode conter ações ou efeitos especiais para reforçar essa mídias acontecendo simultaneamente. estética. Texto estruturado como numa Texto ou roteiro como um script semi- dramaturgia. Gestualidade codificada. estruturado. Gestualidade cotidiana. O mágico é como um personagem. O O mágico é ele mesmo, um performer. artista o interpreta.

Conforme podemos observar na tabela, os modos de atuação teatral e performativo possuem suas particularidades. Num viés teatral o atuante interpreta um

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mágico, constrói uma gestualidade específica (extracotidiana) em sua pose, ações, modo de falar. Sua mágica geralmente é apresentada num espaço teatral (um palco, auditório, um local contendo uma plateia assistindo de um determinado ponto de vista), a cena conta ainda com efeitos e ambientação teatral para reforçar a estética pretendida ou a dramaturgia abordada. Diferentemente de um viés performativo como podemos observar, a construção da cena objetiva a realização do ato performativo. O atuante não interpreta um mágico, mas é ele mesmo num ―estado de performance‖, seu texto não é dramatúrgico, mas um script, muitas vezes denotativo (literal), ou coloquial. Sua gestualidade cotidiana e a liberdade da plateia assistir de pontos de vista diferente tornam a composição do ato mais próxima de uma ação habitual. Bonfitto (2013) discute essa dialética do teatral e do performativo explicitando que os contrastes e relações existentes entre a noção de teatral e performativo são intrincados, estão em trânsito e apontam quase que um para o outro. Partindo do termo teatralidade, aponta inicialmente para o embate entre ―teatralização‖ e ―re- teatralização‖ do teatro no início do século XX, especificamente entre Stanislávski e Meierhold:

[...] se para Stanislávski o teatro de sua época deveria ser ‗desteatralizado‘, despido dos vícios e códigos cristalizados a fim de reconquistar sua ressonância expressiva, para Meierhold o teatro deveria ser, [...] ‗re- teatralizado‘, a fim de resgatar seu potencial estético e artístico, para assim atingir o status de forma de arte. (BONFITTO, 2013, p. 163)

Ele evoca a perspectiva do teórico russo Nicolai Evreinov que diz que a noção de teatralidade ultrapassa a cena, reconhecendo-a como instinto humano, e que tal noção está associada à necessidade de transformar a aparência das coisas, da natureza e de si mesmo. A questão do teatral e da teatralidade pode envolver a produção de ―convenções conscientes‖, ou seja, a teatralidade é conscientemente posta nos processos de construção cênica. Bonfitto também nos fala de uma associação do termo com a ausência de sinceridade, ou seja, o teatral identificado como algo falso, artificial. Essa perspectiva enfatiza uma conexão entre teatralidade, simulação e falsidade, nos apontando a crítica de Stanislávski ao modelo teatral de sua época e posterior embate com a noção de ―re- teatralização‖ do teatro, de Meierhold (BONFITTO, 2013).

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Na perspectiva da pesquisadora Josette Féral, ela assinala que a teatralidade está ligada à representação (enquanto processos de organização simbólica) e narratividade. E parece ser um processo que está relacionado com o olhar ativo de um observador que realiza uma operação cognitiva sobre o observado, criando um espaço outro, que faz emergir a ficção. Esse olhar, para Féral, envolve duas dimensões em jogo, a do espectador e a do ator/performer que assume essa função de modo voluntário ou involuntário. Ela reconhece ainda a existência de dois modos ou categorias: teatralidade pré-estética e teatralidade cênica. E sobre esta última, enfatiza a importância da função exercida pelo ator, simultaneamente produtor de teatralidade e canal através do qual ela se manifesta, e através do qual se produz uma potente alteridade (BONFITTO, 2013). Quanto ao performativo, Bonfitto faz um percurso semelhante ao que realizamos nesta pesquisa, conforme a abordagem de Schechner que vai tratar do performativo de Austin com os ―atos de fala‖, e os acréscimos de Searle, Bonfitto acrescenta e sintetiza a perspectiva do pesquisador Marvin Carlson, com a abordagem de Féral na qual o performer abre mão de um protagonismo não buscando a representação (como de uma personagem), agindo como uma fonte de produção e de deslocamentos sígnicos. Deste modo, o performativo surgiria através de ações executadas pelo performer:

... Ações desvinculadas da representação e da narrativização, instauradoras de manipulações do corpo, do espaço-tempo e dos modos de interação com o público, que fazem com que ele próprio (o performer) se transforme em um canal, em um lugar que é atravessado por diferentes fluxos, simultaneamente, por deslizes de sentido, pela ambigüidade, por explorações de desconstruções, intertextualidades e montagens-colagens (BONFITTO, 2013, p. 181).

Bonfitto aponta dois possíveis encerramentos para a dialética aqui elencada, o teatral e o performativo podem ser vistos como duas instâncias expressivas opostas, ou a partir da tensão gerada entre estes dois elementos, revelando pontos de contato e potencialidades recíprocas (BONFITTO, 2013). Harada também nos apresenta uma perspectiva de performatividade voltada à incorporação desse conceito no teatro:

No teatro contemporâneo é recorrente a incorporação da performatividade e a crescente negação da teatralidade em espetáculos teatrais. A performatividade, conceito também de Féral, é uma característica derivada da arte da performance em que a teatralidade é negada em detrimento da presença e da

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realidade concreta do evento. Trata-se do ―aqui e agora‖ e de acontecimentos reais, envolvendo o risco e a integridade dos participantes da performance. A performatividade é a irrupção da realidade da vida sobre a cena teatral, destruindo o enquadramento estético que a separa da vida. (HARADA, 2012, p. 185)

Suspeitando que os conceitos de teatralidade e performatividade não se apresentam ―puros‖ e opostos entre si, mas que dialogam um com o outro, Harada amplia o campo da Arte da Mágica ao colocá-la como uma arte performativa, além de teatral:

A arte mágica é uma forma performativa, assim como outras formas do vaudeville, cabaré e circo, que inspiraram os movimentos de vanguarda do inicio do século XX, emprestando-lhes seus procedimentos performativos. A performatividade da arte mágica, de acordo com a terminologia de Féral, reside entre outras coisas, em seu terreno específico de atuação: a realidade. Em outras palavras, a mágica seria um agente detentor de performatividade, pois seu plano de composição se situa no real, e não em um plano ficcional. Abre-se uma nova possibilidade para a inclusão da mágica na cena teatral. A ruptura da moldura estética que protege a teatralidade, não é um problema de ordem estrutural, que abalaria a integridade da arte teatral: é uma questão de escolha estética. (HARADA, 2012, p. 186)

Dividimos teatralidade de performatividade para estudar os modos de atuação adotados pelos mágicos, mas observamos que estes elementos podem coexistir. Assim como há performatividade na arte teatral, a performance carrega teatralidade, e a mágica se apóia em ambas. Nas entrevistas realizadas nesta pesquisa, colhemos alguns resultados que apontam os modos de atuação elencados, bem como caminhos para processos criativos em mágica correspondentes a estes modos de atuação. Neste caso, se definem bem três diferentes atuações: pelo viés teatral, performativo e híbrido. Um das perguntas na entrevista realizada remetia à tabela sobre modos de atuação (visto na página 64). ―conforme esta tabela, qual modo de atuação se aproxima mais do seu trabalho?‖ Segue abaixo as três respostas:

Eu tento que tudo tenha um roteiro, tudo tenha um caminho a seguir, se eu não quero que ninguém seja parte do meu show, que ninguém me interrompa eu crio um

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roteiro para que ninguém me interrompa, se eu quero que alguém me interrompa eu crio uma pausa ou algo assim para que as pessoas façam uma pergunta no meio. Mas eu acho que um mágico profissional não deixa lugar para “coisas espontâneas”, acho que somente com o tempo e experiência você vai ter momentos que vai ter... que seja um momento espontâneo, mas a ideia é que isso não aconteça mais, que ninguém te pegue de surpresa, que você tenha uma resposta na ponta da língua ou uma ação prestes a acontecer quando uma coisa supostamente espontânea acontece, então o espontâneo já é ensaiado. Tem pessoas que fazem... vai e “se kamikaze né!”, apresenta uma mágica (testa na hora) e segue..., eu não acredito nesse tipo de..., eu faço isso com crianças, quando pego uma mágica com crianças eu levo um roteiro, mas reparo quando o roteiro não ta funcionando e da próxima vez que eu mudar o roteiro, mudo as palavras, mudo os gestos, mudo as ações, vejo o que ta funcionando melhor. Mas ao mesmo tempo não é espontânea, já ta programada, eu penso: vou experimentar isso, ou agora vou experimentar aquilo, não tem a ver com: “ah surgiu agora, deu vontade de mudar isso aqui e vou fazer!”, às vezes acontece, mas eu trabalho mais com teatralidade, com que tudo esteja previsto. (Dante Deckmann)

Trata-se de uma atuação que segue ou trabalha com um roteiro linear, com ações estritamente definidas, apresentando uma narrativa em alguns números e participação ativa dos espectadores. O improviso quando acontece é proposital e faz parte da ―atuação‖. O mágico em questão se apresenta por vezes como um personagem e outras como uma projeção dele mesmo. Uma atuação pautada em teatralidade, porém destacam-se pontos de contato com a performatividade. Seu repertório é composto por números clássicos e alguns modernos trabalhados de maneira pessoal, ou seja, os números, mesmo que realizados da maneira original, passam por uma construção personalizada, às vezes contando uma história. Alterações nos números são feitas ou após poucas apresentações experimentais, ou em anos de apresentação, dependendo de como o número funciona com a plateia.

Cuando hago magia me gusta el termino de JUGAR que no tiene nada que ver con “play” de actuar ... siento que todo lo que soy se potencia tanto las virtudes como las falências, pero no actuo soy mi verdadero yo ... y talvez ese sea uno de los grandes motivos por los cuales hago magia, autoconocerme. (Nicolás Pierri)

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Tradução: Quando faço mágica, eu gosto do termo JOGO que não tem nada a ver com o “play” de atuar... sinto que tudo o que sou melhora tanto as virtudes quanto as fraquezas, mas eu não atuo, sou o meu verdadeiro eu ... e talvez essa seja uma das grandes razões pelas quais eu faço mágica, autoconhecer-me.

Neste caso temos um mágico de proximidade (close up), especialista em cartomagia. Sua atuação muitas vezes marcada por um texto linear abre espaços para pausas, silêncios, olhares, construindo uma relação dialógica com o espectador. Como visto em sua resposta ele não atua, mas é ―ele mesmo‖ num estado mais potente, sua prática leva ao autoconhecimento, um performer.

Trabalho nas linguagens do close up, dos shows infantis e também espetáculos cênicos, como na apresentação “Entre Vassouradas e Espanadores”. A abordagem dos números varia de acordo com a apresentação, ou seja, no espetáculo infantil “Entre o Coelho e a Cartola” uma atuação mais voltada à Performatividade; e “Entre Vassouradas e Espanadores”, uma linha de Teatralidade. (Jeffy)

Duas disposições de atuação compreendem o trabalho do mágico entrevistado, mas é importante destacar, conforme sua resposta, que não há uma combinação dos dois (hibridismo) durante o mesmo espetáculo, mas uma variação de acordo com a escolha estética. Com base na tabela, o entrevistado identificou rapidamente as características presentes em cada tipo de apresentação em seus trabalhos, o que reforça sua abordagem em dividir e escolher o modo de atuação conforme a apresentação. Atribuímos os três modos de atuação (teatral, performativo e híbrido) acima referidos ao trabalho artístico de três mágicos de nossa época: David Copperfield, David Blaine e David Stone. Copperfield representa nesta análise uma linhagem tradicional de apresentação de mágica, sua formação provém de uma ―linha clássica‖ de composição e atuação. Apesar de apresentar-se hoje em dia com uma estética atual, desligada das vestimentas ―tradicionais‖ como fraque, casaca e cartola; do texto espetacular e sensacionalista e da gestualidade caricata, podemos perceber em sua atuação os códigos inerentes à teatralidade: gestualidade codificada, roteiro linear e às vezes narrativo com um apelo ao drama, trilha musical e efeitos dramáticos, que reforçam a estética da cena e o uso de

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codificações cênicas amparadas no teatro ilusionista, flerta também com o show business nas coreografias, prólogos, descrições, etc. De modo completamente oposto temos no trabalho de David Blaine uma atuação menos ―teatral‖, ou seja, mais casual, mais próxima da ―vida cotidiana‖, principalmente em seu trabalho audiovisual. Uma persona54, uma ―máscara ritual‖ ao invés de um personagem. Números com participação ativa e intervenção dos espectadores. Embora que todo o trabalho em mágica exija uma preparação, Blaine arranja seus efeitos para que aparentem casualidade, e apesar da linearidade que seguem suas ações, notamos um modelo semi-estruturado, aberto a pausas ou intervenções. Seu trabalho se divide em duas vertentes, a abordagem advinda do street Magic, como um closeup ou mentalismo apresentado de um modo mais intimista. E o trabalho com os desafios de resistência, ou seja, suas ―performances‖. A casualidade aparente marca seu estilo pessoal, e apesar de sua mágica ser permeada por um leve exibicionismo55, segue por um viés performativo de apresentação. Uma das melhores lentes para observar a diferença entre esses dois modos de atuação está nos aplausos da plateia, uma atuação teatralizada parece ter os aplausos todos pontuados, esse aplauso costuma acontecer sempre no mesmo ponto da apresentação, como algo preciso ou induzido. Enquanto uma apresentação como uma performance, suscita um aplauso espontâneo e por vezes um não aplauso, somente a apreciação e/ou reação de perplexidade. Destacamos David Stone como exemplo que une bem os dois modos de atuação, pensando ainda que a atuação ―híbrida‖ está cada dia mais presente no fazer artístico dos mágicos. Stone é um mágico closapista (que trabalha com magia de proximidade mais conhecida como close up), com formação artística na linha tradicional da arte da mágica, mas com atuação inovadora, pois acrescenta sua corporeidade56 sendo esse fator o grande diferencial em seu trabalho.

54 Segundo Cohen, na performance geralmente se trabalha com persona e não personagens. A persona estaria relacionada a uma forma mais universal, arquetípica como o velho, o jovem, o urso, o diabo, a morte etc. Enquanto a personagem é mais referencial. O trabalho do performer é de "elevar" sua persona, ou seja, fazê-la vir à tona. Nas palavras de Cohen, isso geralmente se dá pela forma, de fora para dentro (a partir da postura, da energia, da roupagem desta persona (COHEN, 2002). 55 Atitude de ostentar um poder ou exibir-se por realizar uma proeza, característica do estilo de alguns mágicos. Tal atitude passou a fazer parte enquanto elemento constituinte do ato mágico, tanto como um modo de atuação quanto como um recurso que sustenta a ilusão. 56 O universo interno subjetivo do indivíduo expresso no (e pelo) seu corpo, e também ao modo como este corpo se relaciona com o mundo.

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Stone desenvolveu a maioria de seus números, como também os aparelhos especiais para a realização destes, tendo seus efeitos no repertório de mágicos do mundo todo. Podemos perceber a codificação clássica da arte da mágica em seu modo de atuação principalmente nas técnicas empregadas e no modo como se posiciona e interage com a plateia. Podemos ver nas ações, no texto, nos objetos, na ambientação, trilha musical, iluminação e no enquadramento cênico que cria em seu ato uma atuação pautada na teatralidade, mas o mesmo rompe com a representação por meio de uma colagem de elementos que tornam cada apresentação única, permeada por improvisos e gags, este roteiro semi-estruturado possibilita também uma maior liberdade cênica de seu espectador; Ele não interpreta um personagem, mas realiza uma performance de si. Destacamos também, dentre muitos outros artistas atuais que cruzam esses modos de atuação, o mentalista britânico Derren Brown, que une teatralidade e performatividade, principalmente em seus mais recentes especiais televisivos, gravados durante seus espetáculos ao vivo. Percebemos que este modo de atuação ―híbrido‖ propõe um marco na mágica do século XXI. No Brasil, durante os anos de 2000 a 2013 o stand up comedy com mágica (ou o inverso, já que se mesclaram bem) tornou-se um formato ideal, posteriormente a hipnose combinada com apresentações de mágica tornou-se a ―nova vertente‖. Quanto à experiência deste autor, posso afirmar interações e mudanças nos vieses de atuação. Ao iniciar meus estudos em mágica segui um caminho que apontava para um modo de atuação teatral, e apesar de desenvolver o estilo close up, estava permeado por esta necessidade de ―teatralização‖ do/no meu fazer. Após dez anos atuando com mágica meu trabalho se acresceu de outras referências (idéias, modos de atuar, teoria e técnicas atualizadas) e da necessidade de apresentar algo mais significativo (afetivo), do que estético. Ao iniciar o estudo de números e técnicas de escapismo (escapology) percebi outra configuração de cena que se estabelece, e que não é exclusivamente teatral, mas que apesar de muitas vezes ser ―emoldurada‖ desta forma pelo olhar do espectador, se aproxima conceitualmente e essencialmente da atuação performativa. Portanto, o modo de atuação que geralmente trabalho combina, em determinados momentos, os dois vieses de atuação. Sendo bem delimitados numa apresentação tradicional (um show, um comodity, um entreato), havendo variações nos modos de atuação. De outro modo, em ocasiões mais incomuns (por vezes num congresso, numa mostra artística, numa intervenção urbana, etc.) apresento trabalhos

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essencialmente num viés performativo de atuação, como é o caso da performance Travessia ou do Escape Invertido.

2.3 APROXIMAÇÕES ENTRE MÁGICA E PERFORMANCE

2.3.1 PROCESSOS CRIATIVOS

Vamos abordar os processos criativos que orientam esta pesquisa tendo como objetivo encontrar disparadores criativos para o corpo do mágico, baseado nos modos de atuação estudados. Existe muito material referencial circulando em feiras e congressos de ilusionismo, desde os livros técnicos e manuais básicos, até leituras mais avançadas e títulos em DVD (como as coleções ―clássicas‖ de aulas de mágica57), além de material em videoconferências e consultoria online. Em outra via de atuação, que se aproxima mais da performance e da body art, tal como tratamos nessa pesquisa, o material didático é mais teórico e de difícil acesso, voltando-se para leituras históricas e descritivas sobre mágicos e artistas ―performáticos‖, como Hadji Ali, Harry Houdini, James Randi58, entre outros, assim como poucos títulos sobre escapismo e faquirismo; Ou ainda o que mais se aproxima desse modo de atuação deságua especificamente no mentalismo com Tony Corinda, Kuda Bux, Banachek, Richard Osterlind e Ted Annemann. Há ainda alguns materiais que repensam as práticas na Arte dos Mágicos e fazem correlações entre teoria e prática e entre mágica e outras epistemes, alguns destes compõem o processo formativo deste autor, destacamos: The Real Secrets of Magic (David Stone), as obras de Juan Tamariz - Los Cinco Puntos Mágicos, La via Mágica, El Arco-íris mágico, Show Doctor (Jeff McBride) e Os treze passos para o mentalismo (Tony Corinda). Em entrevista realizada com alguns mágicos, obtivemos distintas ferramentas utilizadas como catalisadores criativos. Alguns partem da proposta de realizar um efeito (produzir um elemento natural como fogo ou água) e outros partem do que querem que a plateia aprecie ou experimente, mas sempre buscando a materialização de uma ideia

57 A coleção World‘s Greatest Magic by the World‘s Greatest Magicians, por exemplo. 58 Numa odisséia pessoal para desmascarar charlatanismos e fraudes religiosas, o mágico e autor James Randi implantou um mentalista numa pesquisa acadêmica que buscava provar a existência de poderes paranormais, esse performer, instruído por Randi levou os cientistas a crerem que possuía dons sobrenaturais. Uma parte deste feito pode ser assistida no documentário An Honest Liar. 72

ou vontade, construindo caminhos muito pessoais na consolidação de seus objetivos. Segue a transcrição de algumas respostas:

“Meu processo criativo normalmente parte de uma ideia inicial, que pode ser algo bem definido como: o que acontece quando alguém tem acesso ao material de um mágico? Ou uma ideia genérica como: pensar em um número que utilize água, ou ainda um número que ocasione determinada emoção. A partir da delimitação desse problema inicial, começam as pesquisas, num primeiro momento busco outros artistas com alguma performance na mesma linha de raciocínio, ou que utilizam o mesmo princípio/equipamento, depois se segue um período de experimentação, onde testo elementos como timing, misdirection, speech, etc. Por fim, vem o teste com o público, e a partir do feedback obtido, são feitas correções ou mesmo o arquivamento do número (guardando-o por algum período de tempo antes de ser estudado novamente)”(Jeffy)

“O elemento mais importante em meu processo criativo é a experiência, às vezes eu tenho uma ideia, mas o que eu normalmente faço é pegar o repertório original e apresentar do jeito que me ensinaram como está no livro, num DVD, ou quando um mentor ensina, e depois de experimentar esse número durante 10 vezes, ou durante 10 anos, eu resolvo mudar algo, alguma coisa no número... então o processo criativo se faz trabalhando... o processo criativo não se faz na frente da câmera, se faz na audiência, a audiência vai medir o sucesso de uma peça, mais do que eu mesmo.” (Dante Deckmann)

“Depende muito, porque eu crio a partir de efeito, sonho, técnica ou teoria. Mas a partir disso esse efeito passa por diversas peneiras e pensamento profundo sobre apresentação, métodos, sutilezas e psicologia.” (B. Sedlacek)

A semelhança nos processos listados é o trabalho de composição ―por etapas‖, a partir de uma ideia buscam-se as referências ou instruções, iniciando pela aquisição do domínio básico da técnica; seguido do trabalho de aperfeiçoamento do número, em que se aprimora e corrige as falhas do efeito ou façanha; e por último o teste com a plateia. É interessante enfatizar que o olhar do público é parte integrante e imprescindível no trabalho de criação em mágica, mais que um diretor, o público tem um poder hegemônico na criação cênica de um mágico. Esse processo sistêmico que se desenvolve até uma obra final é o mais comum na arte dos mágicos, entretanto, veremos mais adiante uma abordagem advinda dos estudos da performance, e que compõe o processo prático deste pesquisador neste estudo.

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2.3.2 TREINAMENTO E PREPARAÇÃO

Na Arte dos Mágicos os processos de preparação e treinamento receberam influências e acréscimos de outras artes como o circo, as artes plásticas, artes visuais, teatro e dança; Bem como de outras áreas: psicologia, matemática, física, química, retórica e música. Uma vez que se objetiva a criação de ilusões ópticas (efeitos que afetam a percepção por meio da visão do observador) ou cognitivas (que afetam a percepção dos fatos ou organização mental deles) esta forma de arte emprestou de outras áreas conhecimentos e técnicas particulares, resultando num conjunto de teorias e habilidades que necessitam do pleno domínio do/no corpo do mágico. Nos congressos que este autor e artista-pesquisador participou, como o Festival Internacional de Mágica, Convenção Nacional de Mágicos em Oz, e algumas reuniões de grupos como AMSP (Associação dos Mágicos de São Paulo) e Misdirection-SP, se falava muito de processos criativos e como cada artista chegou à composição de seu ato, como encontrou suas referências pessoais, exercícios práticos e materiais utilizados. Era recorrente falar em um momento de treino e um momento de ensaio, e que este segundo se daria após o momento de treino. Nesta concepção o processo de composição de um ato mágico começa por um treino, que é o momento de praticar a técnica59 (sleight of hand, como compreendemos aqui), para depois ir ao ensaio, que é o momento de praticar a articulação e execução do número. O mágico e autor Guilherme Ávila divide o treinamento na mágica em treino de técnicas mecânicas (que podemos traduzir como técnica de ações físicas) e técnicas não mecânicas (técnicas de ações psicológicas), sua concepção sobre a técnica na mágica, fazendo esta dicotomia (mecânicas e não mecânicas), difere da concepção adotada nesta pesquisa, que considera técnica o sleight of hand abrangendo todos os seus princípios e implicações. Contudo, sobre o treino de técnicas ―não mecânicas‖ Ávila propõe:

59 Num estudo anterior e Trabalho de Conclusão de Curso deste pesquisador, intitulado A máscara da ilusão – uma aproximação pedagógica da arte do mágico com a arte do ator foram abordados alguns aspectos técnicos da Mágica, dentre eles o Sleight of hand, traduzido no respectivo estudo como ―habilidade de manipular‖. A investigação do conceito de ―técnica‖ na Mágica, a partir da possibilidade de gerar os efeitos (aparição, desaparição, transformação, etc.) levou a investigação do movimento, os efeitos em Mágica não se tratam de algo sobrenatural ou que ultrapassam as leis naturais como aparentam fazer, o movimento é a base para a sua realização, mas tais movimentos devem estar invisíveis aos espectadores, disfarçados em movimentos visíveis, para que seja percebido apenas o fenômeno aparente e não o procedimento para tais aparências. A essa organização técnica de disfarçar movimentos específicos (ou especiais) em movimentos naturais chamamos de Manipulação, ou Habilidade de Manipular ou ainda pela sua correspondente em inglês Sleight of hand. 74

Ao aprender uma técnica nova, tente executá-la para si mesmo. Quando já tiver dominado a parte mecânica do movimento, comece a executá-la na frente do espelho. O intuito agora é observar os ângulos nos quais o movimento é [...] correto. [...] É preciso ter em mente que um número de mágica depende igualmente das técnicas mecânicas e não mecânicas. (ÁVILA, 2016, p. 157-158, grifo nosso)

Ele também aconselha filmar o treino ―técnico‖, assim como a execução/apresentação para o público, com o propósito de que este material possa auxiliar o mágico na correção e construção de seu número ou rotina, em suas palavras: ―Da mesma forma que é importante filmar a execução técnica mecânica, é fundamental registrar em vídeo a performance para o público. Muitas vezes, o que nós planejamos no ensaio é bastante diferente daquilo que ocorre numa situação real...‖ (ÁVILA, 2016, p. 160). Sua escrita segue a perspectiva que separa treino (prática de técnicas mecânicas e não mecânicas) de ensaio (prática do ato ou rotina numa apresentação dentro de uma sala de ensaio ou para um público). O pesquisador Matteo Bonfitto (2013) discute treinamento por duas associações uma ligada ao conceito de práxis e outra ao de poiesis:

Práxis e poiesis são conceitos que remetem a atividades humanas, a modos de atuação. [...] no desenvolvimento de ações enquanto práxis os objetivos são guiados pelos seus fins. Já o desenvolvimento de ações como poiesis não envolveria uma busca determinada por uma finalidade pré-estabelecida; sua função emerge do processo de seu fazer. (BONFITTO, 2013, p. 188)

Bonfitto classifica o treinamento enquanto práxis como ―estruturado‖, ou seja, os procedimentos são pré-determinados para uma finalidade estabelecida. Diferentemente do treinamento enquanto poiesis, o qual proporciona condições para que os materiais criativos possam vir à tona, este seria um treinamento ―não estruturado‖. Se relacionarmos com a ideia de treino e ensaio, o treinamento enquanto práxis seria como o momento de ensaio, no qual o objetivo está pré-estabelecido: treinar a execução do ato, número ou rotina, até a execução plena. E quanto ao que os mágicos chamam de ―momento de treino‖, este pode ser tanto uma práxis, quanto poiesis. Alguns processos criativos compreendem treinos que se baseiam em criar condições para que o ato ou número possa ―emergir‖, assim como muitos treinos são repetições de

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movimentos para aperfeiçoar a técnica (sleigh of hand) ou algum de seus princípios60: misdirection, empalme, simulação, etc. No que se refere ao treinamento enquanto preparação, citamos um trecho da pesquisa O treinamento como processo de investigação do ator-criador61, a qual evoca a perspectiva do renomado pesquisador da antropologia teatral, Eugênio Barba, que vai observar em diversas culturas, as técnicas teatrais codificadas e princípios semelhantes que guiavam o ator na construção de uma atitude ou estado cênico. A esses princípios recorrentes em diversas culturas e tradições ele vai chamar de pré-expressividade (DONOSO, 2010, p. 25). Conforme Donoso, o pesquisador Renato Ferracini desenvolve, a partir do conceito de pré-expressividade, uma sistematização de treinamentos para atores62. Sua ideia de treinamento amplia-se ao explicar que ―treinamento‖ perpassa o tempo-espaço delimitado pela sala de trabalho:

[...] Dessa forma, ao ampliarmos a noção de treinamento, passamos a entendê-la como contínuo processo de preparação em que o ator estabelece um estado de atenção criativo, capaz de realizar associações, relações e recriações a partir de um conteúdo escolhido. Isso poderá ocorrer dentro de um ―treinamento clássico‖, mas também em uma pesquisa de campo, em uma entrevista com alguém, em uma improvisação entre atores, em uma investigação com materiais diversos (textos, objetos, imagens, sons, entre outros) e, inclusive, em experiências de seu dia-a-dia. (DONOSO, 2010, p. 117-118)

Conforme nos apresenta Ferracini63, o ato de treinar pode ser compreendido por três vias, uma de ordem etimológica, outra de ordem ontológica e a última de ordem epistemológica. Em sua análise, a concepção etimológica de treinar se mostra insuficiente em relação ao conjunto de problematizações suscitadas por essa palavra no campo das artes cênicas. Deste modo Ferracini desloca treinamento para um sentido ontológico observando que o termo advém do latim traginare relacionado com o substantivo treina, nome dado ao animal que era oferecido ao falcão em seu treinamento de caça, entretanto, traginare o falcão não seria ensinar essa ave a caçar, pois ela já é uma ave caçadora, mas significa ampliar sua habilidade de caça, em outras palavras, realizar uma intensificação de si (FERRACINI, POSSANI, 2014, p. 22-48).

60 Conforme listado e apresentado pela dupla de mágicos Penn & Teller, existem sete princípios básicos pelos quais é possível realizar todos os efeitos conhecidos em mágica (PENN, 2015). 61 De autoria de Marília Gabriela Donoso. 62 Explicado em seu livro A arte de não-interpretar como poesia corpórea do ator. 63 Treinamentos e modos de existência: deslocamentos e intersecções. In: Zonas de Contato - usos e abusos de uma poética do corpo. 2014, p. 22-48.

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Porém, num deslocamento de ordem ontológica essa intensificação de si diz respeito a uma potência de afetividade. Não num sentido superficial que dicotomiza afetividade/racionalidade, mas na perspectiva do atletismo afetivo, o qual nos apresenta Artaud, um afeto enquanto potência presente no corpo na cena e no espetáculo. Afeto tem ainda, conforme Quilici (2004) uma conotação que remete para além da eficácia, este poder de afetar e ser afetado é como uma força que atua no e por meio do ator e depois em relação ao espectador (QUILICI, 2004). A partir dessa compreensão a noção de treinamento amplia-se. Num deslocamento ontológico o treinamento seria uma intensificação afetiva do corpo, da cena e do espetáculo, como também se existirem dispositivos técnicos, mecânicos, musculares e/ou de habilitação física (FERRACINI, POSSANI, 2014, p. 22-48). Por último, para os autores, no deslocamento epistemológico, o treinamento proporciona o conhecimento da prática enquanto ―cuidado de si‖ e potencializa a capacidade de escuta, ou seja, de deixar-se afetar pelo mundo, de ser sensível ao meio e por meio deste afeto, afetar o mundo. Propondo que num deslocamento epistemológico o treinamento deve focar na capacidade de compor com as ―forças‖ e ―linhas‖ que atravessam o corpo do atuante, ou seja, com os fenômenos e/ou elementos externos que perpassam (afetam) o fazer do artista, ao invés de somente na qualidade técnica. No capítulo seguinte falaremos sobre os elementos externos, que fazem parte do universo pessoal do artista, e como entram no processo de composição. Quanto à ―preparação‖, essa palavra no campo das artes cênicas relaciona-se com os processos compositivos da cena e do treinamento técnico de atuantes (atores, bailarinos, brincantes, mágicos, etc.). Preparação64 diz respeito a todos os procedimentos de organização para que seja possível a realização de algo. No âmbito das artes cênicas envolve todos os procedimentos que antecedem a realização da cena. Nessa perspectiva, o treinamento, o ensaio, o desenvolvimento e montagem cênica (iluminação, cenografia, etc.), a concepção dos elementos de caracterização dos atuantes; todos estes e demais procedimentos podem ser considerados preparação. Contudo, a preparação pode ser a própria produção da obra? Sobre esta questão podemos apontar a proposta vanguardista do professor Dr. Renato Cohen65 chamada de work in process, ou o ‗trabalho em processo‘. Proposta que põe o processo enquanto

64 Conforme em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa. 65 Renato Cohen foi um artista e professor brasileiro que transitou por experiências cênicas de fronteira fazendo uso de multimídia, dança, teatro, artes plásticas, entre outros operadores em sua poética. 77

―produto final‖, em outras palavras, o processo de organização dos elementos que compõem (ou irão compor) a cena borra-se com a concepção de conclusão do produto estético, gerando uma obra que está ao mesmo tempo acabada e em preparação. Uma alternativa para a composição em mágica que rompe com o modelo de composição ―por etapas‖. O conceito de work in process apresentado por Renato Cohen surge com os termos: performance, parateatro, instalação, dança-teatro, entre outros; instituída no final do século XX e início do século XXI. Seu livro Work in Progress na Cena Contemporânea trata de elucidar o novo paradigma para as construções cênicas na contemporaneidade, nascido do pensamento prós-estruturalista em que compreende a cena e sua teatralização antes amparadas à lógica aristotélica (composição por etapas ou seqüencial), mas agora seguindo um modelo de justaposição, ou seja, cenas simultâneas, fragmentadas, marcadas pela não seqüencialidade e simultaneidade de ações, sem uma obrigação com a narrativa linear.

Opera-se uma nova cena que incorpora a não-seqüencialidade, a escritura disjuntiva, a emissão icônica, numa cena de simultaneidades, sincronias, superposições, amplificadora das relações de sentido, dos diálogos auto- recepção, fenômeno e obra. [...] A cena contemporânea tem, então, linhagem, no teatro da morte de Kantor – reiteração de paisagens culturais -, no teatro de Richard Foreman, paisagem de índices sonoros, abrusões, nos planos simultâneos do discurso do Wooster Group, na performance agônica de Joseph Beuys, numa criação de mediações extremas entre realidade e ficção [...] em trabalhos tão distintos como as repetições de John Cage e Merce Cunningham, as representações espasmódicas de Pina Bausch, da Arte Butô[...] (COHEN, 1998, XXV)

O work in process é um procedimento de construção cênica que utiliza um fluxo de associações (impulsos, sincronicidades, storyboard66, environment67) para confluir na obra, uma obra ―inacabada‖, uma obra-processo, pois o trabalho processual não acontece somente durante o período pré-apresentação, mas durante o andamento do espetáculo e nas consecutivas apresentações. O trabalho com símbolos se mostra bem evidente, estabelecendo redes de significações em variados planos de leitura, desaguando no modo como é conduzido o trabalho de atuação, híbrido, seguindo a dicotomia intuição/racionalidade.

66 Advindo do conceito de roteiro cinematográfico, trata-se de uma junção de texto, imagem e sentido. 67 Alteração sígnica do espaço da cena, propondo uma reterritorialização amplificadora dos sentidos, como o deslocamento da cena para espaços incomuns por exemplo. 78

No processo de hibridização/ressignificação, trabalha-se alteração, deslocamento, fusão de textualidades, numa operação que envolve dois momentos: um dionisíaco, de fluxo, corrente, caminho do inconsciente; e outro, apolíneo, criterioso, cartesiano (sic), de lapidação, escolha. (COHEN, 1998, p. 28)

Apesar dessa confluência de elementos, simultaneidades e quebras com a linearidade, o work in process não é de todo um processo caótico, ou uma confusão, é a partir das conexões entre tais elementos que a obra se ―organiza‖ e obtém potência afetiva.

2.3.3 WORK IN PROCESS NA ARTE DOS MÁGICOS

Apesar desta pesquisa não se pautar numa análise quantitativa, ao longo de dez anos de experiência e diálogo nos congressos de mágica, constato que grande parte dos mágicos (e me incluo nesta constatação) segue o modelo que chamaremos de ―processo por etapas‖ na criação de seus números. Nessa forma de composição o objetivo, que é a realização do efeito (construção, exercício técnico, correção de detalhes, etc.), está predefinido e trabalha-se para chegar até ele, em outras palavras, a abordagem de treinamento enquanto práxis, conforme Bonfitto (2013). As etapas variam dependendo dos estímulos que melhor orientam cada artista, como trilha musical, imagens, texto, objetos cênicos, mas geralmente, na mágica se inicia pelo domínio da técnica. Como exemplo vamos analisar a composição da performance Travessia, inicialmente pelo ato de mentalismo que a originou, criado a partir de um processo por etapas. (ver figura 18).

Figura 16 - Esquema de composição "por etapas"

O efeito consistia em simular uma capacidade sobre-humana de percepção, em que o mágico, de olhos vendados, atravessaria um caminho perigoso prevendo onde

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pisar para evitar sofrer danos. A primeira etapa consistiu no domínio da técnica, o que levou à pesquisa de referências, ou seja, mágicos que já apresentaram o ato e seus respectivos métodos. Em seguida as imagens referenciais e a elaboração da concepção estética do ato, pessoas caminhando em vidros, a visualização da caminhada no palco e a maneira de abordar o enunciado. Todo esse processo levou à experimentação que demandou a elaboração de um texto e desencadeou no modo de atuação ou apresentação do número. Resolvida a problemática da composição, a obra estava ―pronta‖. Após dois anos apresentando o ato em espetáculos e congressos de mágica, foram sugeridas algumas ideias e críticas para incrementar a apresentação. Em 2016, depois de um workshop de ―magia extrema68‖, o qual ensinava técnicas para pisar e caminhar sobre vidros, o ato de mentalismo passou a conter também a caminhada sobre vidros, mas o processo criativo ainda se identificava com o processo por etapas, resultando numa experimentação intitulada ―o eremita‖ (em referência à carta do Tarô), apresentada na VIII Jornada de Pesquisa em Artes Cênicas, na UFPB (figura 19). Atualmente o ato se encontra num work in process, renomeado para Travessia.

Figura 17 - Performance O eremita. Foto: Dani Beny, 2017.

Nesta apresentação que trata de auto-superação dos limites o artista atravessa com os pés descalços um percurso perigoso sem que sofra qualquer dano. O ato divide-

68 Magia extrema é como o mágico argentino Diego Minevitz intitulou seu workshop que trabalha com números de extremo risco, números de escapismo e a técnica de caminhar em vidros, utilizada pelos faquires (artistas/sábios) indianos. 80

se em duas partes: na primeira, de olhos vendados, o performer desafia os limites da percepção humana atravessando um caminho com grandes pedaços de vidro, sem pisar neles. A segunda parte é inspirada nas demonstrações dos faquires indianos, uma quantidade de vidros quebrados é adicionada para que desta vez o performer atravesse caminhando sobre estes pedaços, em contato direto com os vidros, novamente sem se ferir. No capítulo seguinte falaremos de um modo pessoal sobre esta experiência. Ao transpor o modo de composição para o work in process, o efeito deixa de ser o objetivo final e passa a ser um dos elementos de composição. Ao fazer desta descentralização do efeito mágico, para um meio de realização de um ato cênico e mágico, outros aspectos da apresentação ganham evidência, como a semântica do número, ou o nível de afeto que proporciona. Com os elementos compositivos espalhados ao invés de seqüenciados, o processo criativo se dá por uma conexão de elementos que pode iniciar e finalizar em pontos distintos, como uma rede de conexões que alimenta as possibilidades de composição da obra em processo, não se tratando mais de desconstruir ou voltar etapas numa composição para testar uma nova referência (ou uma nova imagem), mas trabalhar com a inserção imediata de uma nova conexão ―colando-a‖ no processo. O procedimento work in process trabalha com a colagem de elementos e uso de símbolos, o excesso de significações pode gerar alguns problemas de excesso de informação (confusão) que atrapalham a realização e leitura de um número ou rotina de mágica, por outro lado, com o devido cuidado nos excessos podemos encontrar caminhos que podem potencializar a apresentação. A imagem a seguir mostra um exemplo de como estes elementos se espalham no diagrama de composição, podendo iniciar conexões a partir de qualquer um deles:

Figura 18 - Esquema de composição work in process.

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Pensar em composição na mágica a partir da confluência de elementos remete- nos ao processo por ―ligação de elementos‖, utilizado por alguns mágicos. Nele são organizadas duas listas, a primeira contendo números, categorias ou objetos da mágica: baralho, moedas, varinha, cartomagia, mentalismo; e na outra lista elementos de gosto pessoal, do universo subjetivo ou dos mais variados tipos: música, comida, a temática de algum lugar, um filme, um objeto, etc., em seguida são feitas as ligações entre as duas colunas, como numa ―escrita automática‖, ao final o resultado propõe sugestões para experimentações práticas envolvendo as combinações realizadas (ver imagem a seguir).

Figura 19 - esquema composição por ligação.

Na imagem acima um dos exemplos propõe trabalhar um número de mentalismo com perfumes, poderia ser, por exemplo, uma adivinhação ou previsão de uma fragrância ou marca de perfume, ou a localização de um objeto ou pessoa a partir dessa fragrância, ou mesmo o uso do perfume como elemento cênico implicado no ato de mentalismo, existem muitas possibilidades. Houve uma variação desse processo criativo no reality show Wizard Wars, em que as equipes desafiantes recebiam elementos específicos para criação de atos de mágica, itens que não necessariamente faziam parte da rotina e dos utensílios utilizados por mágicos. O resultado eram atos originais e por vezes absurdos. Sem fazer um juízo de valor se o work in process é o caminho mais indicado nos processos criativos em mágica, apontamos aqui, como uma possibilidade que pode gerar resultados muito positivos na criação artística em geral, propomos que, tendo ciência dos modos de atuação estudados, questione qual destes modos de atuação se aproxima mais do seu trabalho cênico. Sugerimos ao realizar esta análise, que se faça a seguinte

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pergunta: a apresentação em questão artificializa a realidade ou ela se ampara no presente momento? A partir desta resposta já obtemos o modo de atuação enquanto proposta. Seguimos analisando se os elementos que serão postos em cena condizem com o modo de atuação escolhido. Às vezes, podem ocorrer hibridizações, ou seja, uma mescla tão indissociável dos elementos que a apresentação não se classifica somente em um dos modos de atuação, mas na interface.

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III

UMWELT

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Propomos um pequeno exercício: selecione quatro objetos de seu universo subjetivo, alguns podem ser objetos muito pessoais, que estejam em seu cotidiano, ou que você colecione, e que de algum modo simbolize sua presença.

Disponha-os num espaço vazio e organize-os de modo a ficarem bem próximos, como uma composição, como se fosse fotografá-los (se desejar fotografe-os).

Convide alguém que não te conheça para observar a composição, e solicite que esta pessoa tente realizar uma “leitura fria” identificando características da pessoa retratada pelos objetos.

Compare a leitura realizada pelo observador com suas características pessoais e seu universo subjetivo, observe quais os materiais que melhor simbolizam sua presença, que podem ser (ou que já foram) utilizados em sua poética, e as relações destes objetos com o meio

(em âmbito biológico, social e político).

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3. EXPERIMENTOS PRÁTICOS

3.1 O ESCAPE INVERTIDO

Tratamos no primeiro capítulo da natureza da arte dos mágicos, abordando os elementos de base que compõem o fazer dos mágicos e promovem a criação de uma genuína ilusão cênica. No segundo capítulo fizemos um estudo dos modos de atuação utilizados na arte dos mágicos destacando a teatralidade e a performatividade como vieses de atuação e enquanto escolha estética. Para este terceiro capítulo, falaremos um pouco de um elemento fundamental na construção poética em geral, o universo subjetivo do artista (e as implicações advindas deste universo particular em diálogo com o meio em que vive). Para se ter uma ideia de como o universo subjetivo está presente na poética do artista, podemos analisar a trajetória do mágico Harry Houdini, ele teve uma infância financeiramente difícil, trabalhando em diversas atividades quando criança, dentre elas como aprendiz de chaveiro, o que proporcionou descobrir métodos para abrir fechaduras, cadeados e algemas, utilizados posteriormente em seus escapes. Era fascinado por mágica e leu muitos livros sobre o assunto ainda na infância, elegendo Robert-Houdin como seu herói, inclusive adotando um sobrenome parecido. Assistiu remontagens da cabine espiritual dos Irmãos Davenport, e participou de experimentos espirituais (séances) em sua época. Conviveu no ambiente do circo, entretenimento e show business, com artistas, e durante a adolescência trabalhou em parques de diversão. Os cenários urbanos e as multidões ilustram seus escapes, a rua faz parte de seu universo subjetivo, pois trabalhou nela como vendedor de jornais e engraxate quando criança. O universo subjetivo deste autor e pesquisador aponta para uma vida próxima ao mar, uma infância com muita imaginação, uma mente permeada por personagens que possuem habilidades excepcionais: como magos, vampiros, ninjas, super-heróis, atletas e seres mitológicos. Fascínio por civilizações antigas, indígenas, descobertas espaciais, artes marciais e narrativas históricas e lendárias. Uma adolescência que filtrou tais conteúdos realocando-os em atividades como jogos de RPG, treinos de capoeira, jogos eletrônicos, exercícios físicos e interesse por conteúdos sobre arqueologia, esoterismo, história, artes, religiões e psicologia. E na fase atual na construção desse universo, o contato com a mágica (natureza, cronologia, artistas, mercado, etc.) e com o estudo de artes (teatro, artes visuais, dança, música e performance), conteúdos vastos que

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completam meu universo particular e promovem conexões entre os conteúdos anteriores. Concluímos este estudo com a realização de uma performance de escapismo intitulada Escape Invertido, realizada na Ponte Newton Navarro em Natal – RN, no dia 20 de janeiro de 2019. O escape consistiu em sair de uma camisa-de-força pendurado a trinta metros de altura do solo. Aponto como motivos que estimularam a realização desse ato de mágica performático a vontade de realizar o escape em uma grande altura e a necessidade de me colocar na situação de performance. Abaixo uma descrição da experiência: Ontem foi uma experiência desafiadora, um misto de emoção e prova, um rito de passagem. Não tenho medo de altura, na verdade até gosto, perco meu olhar no horizonte, me conforto em lugares altos. Mas tremo de medo na incapacidade de reagir, de não poder evitar um acidente, ou me proteger de alguma forma. Desse modo, a preparação para a posição invertida me deixou muito assustado, o peso do meu corpo sendo puxado numa diagonal para baixo com a corda tensionada e minha imaginação criando cenas de uma queda inevitável, do equipamento rompendo e da notícia no dia seguinte: “Mágico morre na tentativa de se pendurar na ponte!” Bem, o equipamento estava em dia, e a confiança nos profissionais que trabalharam comigo, tive fé também no ato em si, no momento, na ação que estava realizando, e nas palavras dos amigos numa transmissão online que diziam: “eu acreditoooo!” O conforto que sinto com altura me ajuda a me concentrar e me mantém calmo em cada etapa do processo, mesmo com o tempo correndo, pendurado numa altura de trinta metros e preso a uma camisa-de-força, assistido por alguns amigos e familiares, e as pessoas que foram àquele dia praticar rapel, realizei o escape no tempo limite de dois minutos, fazendo uma fuga em um minuto e vinte e cinco segundos, e então descendo pela corda até estar caminhando no chão. Descobri com esta performance alguns rumos que meu trabalho pode tomar, descobri também (ou destravei, pois tenho esta impressão) ideias e métodos em minha mente.

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Figura 20 - Escape Invertido na ponte Newton Navarro, preparação. Foto: wk-adventure, 2019.

Compreendo a mágica como a demonstração de uma habilidade incomum ou impossível, uma ação que começa no (e pelo) corpo do artista e desperta uma atitude no espectador. Para tanto, um mágico deve desenvolver um conjunto de habilidades que lhe permitam realizar proezas ou atos de impossibilidade. Dentre elas, comunicar-se por diferentes maneiras, criar uma atmosfera de mistério, conduzir a atenção dos espectadores, dominar técnicas, métodos e materiais para a realização de seus efeitos, trabalhar com a imaginação (a própria e de sua audiência). O ato mágico, ou a façanha, é uma experiência transformadora, tanto para o artista quanto para o espectador. Podemos compreender ato mágico relacionado com o modo de atuação teatral, enquanto a façanha relacionada ao modo performativo. Essa percepção, somente para fins de estudo, nos ajuda a entender a teoria sobre performatividade e teatralidade como modos de atuação na mágica. A opção adotada para o Escape Invertido foi o modo performativo, no qual o foco está na ideia de um desafio contra o tempo. A performance não envolvia risco de morte, mas superação de limites nas condições apresentadas. Muitos mágicos já realizaram este escape fazendo seus acréscimos pessoais ao número de acordo com o modo de atuação escolhido. David Copperfield conduziu com dramaticidade quando realizou para o especial de TV Fires of Passion em 1993, além de toda a ambientação espetacular, foi suspenso por cordas em chamas que iam se

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rompendo durante o ato. Diferentemente, a escapista Kristen Johnson, mais conhecida como Lady Houdini, realiza o escape de um modo performativo, um desafio contra o tempo em que a espetacularidade apresenta-se na própria dificuldade em realizar o ato. Nas apresentações de palco existe uma adaptação para este escape, uma versão atualmente conhecida como Jaws of death (mandíbula da morte), podemos ver uma apresentação deste número pelo mágico canadense Darcy Oake. Na pesquisa por imagens referenciais destaco os artistas acima citados, além de: Jonathan Goodwin, Andrew Basso, , Dean Gunnarson, Diego Minevitz e James Randi. Após uma experiência na prática de rapel em agosto de 2017, despertou-me a ideia de realizar um escape pendurado numa grande altura. O plano foi guardado para um momento mais oportuno, que se consolidou recentemente, dois anos depois. Um mês antes da performance pesquisei os equipamentos utilizados em números aéreos de circo (tecido, trapézio, lira, etc), na busca por uma maneira de prender os pés nesta performance, já conheça alguns desses equipamentos, mas tive a necessidade de revê-los. O instrutor de rapel sugeriu realizá-la utilizando o baudrier (o cinto também chamado de cadeirinha de escalada). Fizemos um estudo uma semana antes da performance e descobrimos que para me colocar na posição suspenso de cabeça para baixo, teria que finalizar a instalação da camisa-de-força já pendurado do lado de fora da ponte, para isso teria que deixar meus braços livres ao pôr a camisa-de-força, para eu passar para o outro lado da grade de segurança da ponte, e só então prender os braços. A escolha da ponte como local do escape se deu por ocasião, entretanto, acrescentou referências significativas. A ponte Newton Navarro foi inaugurada em 2007 (ano em que comecei a estudar mágica). Ela interliga a zona norte com a zona leste e litoral sul de Natal, negativamente é cenário de uma série de suicídios, contendo diversas placas de conscientização e ajuda em seu trajeto. O

Figura 21 - Escape invertido visto de outro ângulo. Foto: Omar Khayam, 2019. 89

escape propõe liberdade, buscando manter-se vivo e mudar a situação. Uma imagem referencial que entrou nesse processo é a carta de tarô O dependurado (figura 22), representada por um homem preso de cabeça para baixo com uma corda atada num dos pés. Essa carta, no jogo de tarô indica reflexão, prudência, uma pausa para pensar nas amarras que nos atam e nas escolhas que iremos fazer para nos libertar dessas amarras, sabedoria para mudar a situação.

Figura 22 - O Dependurado. Fonte: https://labyrinthos.co/blogs/tarot- card-meanings-list/the-hanged-man- meaning-major-arcana-tarot-card- 3.2 TRAVESSIA meanings

Como mencionado no final do capítulo anterior, na seção sobre o work in process na arte dos mágicos, a performance Travessia surgiu de uma série de experimentações e confluências entre o trabalho O eremita e os exercícios práticos realizados pelo autor pesquisador na caminhada sobre vidro. A pesquisa sobre esta técnica/prática de caminhar em vidros se mantém aberta, em busca por referências existentes no território brasileiro, em nossa cultura popular (por exemplo, no universo do maracatu). Uma vez que seu aprendizado partiu de um workshop com o argentino Diego Minevitz, no Festival Nordeste de Mágica em 2016, em que o conferencista abordou referências da técnica e arte dos faquires da cultura oriental. No que se refere à primeira parte da performance (que podemos observar na seqüência fotográfica mais adiante), a ação inicia por uma técnica de mentalismo utilizada para adivinhar objetos, em que o performer tem os olhos vendados com moedas, fita adesiva e uma venda de algodão. Segue abaixo um relato pessoal: Apresentei esta performance em diversos momentos da minha vida, e em lugares bem distintos, apresentei em teatros, em auditório, na rua, num evento de mágica, numa varieté circense e em uma recepção de calouros no curso de Teatro. Lembro de apresentar em São Paulo, na Avenida Paulista em 2015, encerrando uma roda de rua, na ocasião compreendi que esta performance, esta ação, concentra a atenção do

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público de modo muito potente. Lembro que naquele dia ao iniciar a caminhada pelos vidros começou uma chuva, as pessoas da plateia, mesmo molhando-se, continuaram a assistir. É interessante pensar que o público geralmente não quer que ocorra um acidente, mas não resiste à curiosidade de que aconteça um. Com os olhos vendados sei que a plateia me assiste, mas não vejo realmente o que acontece em cena, não vejo a reação das pessoas, apenas sinto sua respiração e sua perda de fôlego quando quase piso em algum vidro. Tento me conectar o tempo inteiro com as pessoas a partir da ação que estou realizando, e sinto essa conexão no respirar e no silêncio do público, bem como nos pequenos sons (suspiros, exclamações, espantos), ao mesmo tempo em que me concentro na técnica para realizar a travessia. É uma performance que aborda outras maneiras de enxergar, é sobre perceber, ao invés de ver; uma vez que vendo, temos a possibilidade de nos enganarmos.

Figura 23 - Travessia. Seqüência de preparação. Foto: Arquivo Pessoal, 2019.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante esta escrita foram utilizadas algumas expressões e palavras propositalmente sem apresentar uma referência. Os três capítulos que organizam esta pesquisa são pontuados por termos abrangentes, que se relacionam com a natureza da

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arte dos mágicos, a atitude ou presença do atuante, e por seu corpo-treinamento- processo. Representados respectivamente pelas palavras contidas no início de cada capítulo: Praestigium, termo em latim que significa artifício ou ilusão; Showmanship – a capacidade de realizar espetáculos, o modo de atuação (a teatralidade ou performatividade), e Umwelt, termo utilizado pelo biólogo Jakob Von Uexküll em sua obra Teoria da significação, apontado como uma propriedade que diz respeito ao modo como uma espécie constrói o seu mundo na relação com o ambiente (GREINER, 2005, p. 38), em outras palavras, o ―universo subjetivo‖ e o modo como esse universo pessoal se relaciona com o meio. Também apresentamos o work in process como proposta para criação cênica em mágica, um processo que ocorre pela confluência de elementos, como uma colagem. A performance em detrimento da cena teatral, possui uma vantagem no que se refere ao fazer o espectador acreditar na verossimilhança da ação mágica. Quando se propõe ao espectador a ―suspensão da descrença‖, inversamente se está expondo a artificialidade da ação que se segue, é como se disséssemos: ―agora vou fazer um truque que vai parecer mágica de verdade‖. Por mais forte e convincente que o efeito possa ser, o espectador não acredita de verdade que o mágico possui poderes. Artificialidade que é reforçada, por exemplo, pelo figurino do mágico, a ambientação, o formato espetacular dos objetos utilizados, a estética teatral presente emoldurando aquele instante. Diferentemente de uma ação mágica construída por um viés performativo, em que normalmente a ação envolve um risco real, é encarada como algo sério, em oposição a não-seriedade do jogo cênico. Esse tipo de apresentação pode levar os espectadores a uma crença inabalável na verdade do acontecimento. Observamos ainda, conforme alguns autores, que podemos aproveitar os momentos de exposição da realidade da cena, nas lacunas de uma apresentação permeada por artificialidade, para inserir ações que mascaram tais artifícios e sugerem, para o espectador, a inexistência de tais mecanismos. Sendo esta uma maneira de potencializar o efeito ilusionista. Elencando os conteúdos abordados nessa pesquisa como uma rede de conexões, podemos perceber a sistematicidade que cada componente fornece no processo compositivo em mágica, abordamos procedimentos de base, presentes no fazer desses artistas, que não são atores teatrais, mas atuam com teatralidade; proporcionam atos rituais de experiência que entretém, ensinam, emocionam, divertem, curam, lidam com

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o divino e com o profano, afetam; sem necessariamente saberem que estão no campo da performance, como tentamos demonstrar nesta pesquisa. Entendemos alguns disparadores criativos presentes no processo de composição dos mágicos entrevistados, revelando-nos os diversos pontos de partida em cada processo. Essa investigação nos levou a estudar, como etapa final para esta pesquisa, o work in process como metodologia de criação em mágica, donde surgiu um workshop que trabalha Os cinco domínios para a criação em mágica, o título foi inspirado na obra Los Cinco Puntos Mágicos (Juan Tamariz). Destacamos um resultado bem satisfatório na compreensão dos vieses teatral e performativo no modo de atuação dos mágicos, entendendo-os como ferramentas na composição poética, na ampliação da potência afetiva da cena mágica e como instrumentos de análise e crítica para estudo e apreciação nessa linguagem expressiva. Aprofundamos o olhar sobre os termos Conviction e Deception por meio de uma análise dialógica, apresentando exemplos dentro da comunidade de mágicos. Nessa investigação encontramos aproximações com a teatralidade e a performatividade que envolvem a prática da mágica. Observamos também particularidades entre o ato de mágica e a façanha que apontam para os modos de atuação abordados. Realizamos experimentos práticos, com oficina em sala de aula, performance apresentada em congresso, entrevistas presenciais e virtuais e uma ação performativa fora do espaço físico da academia. Os rumos desta pesquisa compreendem o desenvolvimento e aprimoramento dos jogos aqui esboçados e o desenvolvimento de novas ações mágicas/performativas nos eixos de prática, formação e estudo. Também na pesquisa pessoal deste autor em ações práticas envolvendo performance e mágica. Agradeço ao leitor pelo transcurso deste processo destacando a disponibilidade para acréscimos, em parceria, e por meio de experimentos, críticas e contribuições neste trabalho, que só se completa pelo olhar de um espectador.

Intermetido em uma camisa-de-força, olhos vendados, corpo amarrado numa cadeira, pés descalços, cacos de vidro em volta. Vocês olham e o que vêem? Um homem PRESO? Eu olho daqui e vejo pessoas presas... em suas própras ilusões. Como a ilusão de estarem seguros, livres, de que pagaram um preço justo, de um paraíso

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após a morte, do fim da corrupção, da dignidade de um líder, de que terminaram esta leitura. A arte é uma das pouca coisas, talvez a única, que nos mostra a verdade dura e crua, sem filtros, numa canção, num quadro, numa performance... Pareço estar aprisionado assim, mas minha mente está tão LIVRE que pode me libertar a qualquer momento. Como diria Houdini “my brain is the key that sets me free!”

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