MANUELA CARNEIRO DA CUNHA (ORG.) FRANCISCO M. SALZANO NIÉDE GUIDON ANNA CURTENIUS ROOSEVELT GREG URBAN BERTA G. RIBEIRO LÚCIA H. VAN VELTHEM BEATRIZ PERRONE-MOISÉS ANTÓNIO CARLOS DE SOUZA LIMA ANTÓNIO PORRO FRANCE-MARIE RENARD-CASEVITZ ANNE CHRISTINE TAYLOR PHILIPPE ERIKSON ROBIN M. WRIGHT NÁDIA FARAGE PAULO SANTILLI MIGUEL A. MENÉNDEZ MARTA ROSA AMOROSO TERENCE TURNER BRUNA FRANCHETTO ARACY LOPES DA SILVA CARLOS FAUSTO MARY KARASCH MARIA HILDA B. PARAÍSO BEATRIZ G. DANTAS JOSÉ AUGUSTO L. SAMPAIO MARIA ROSÁRIO G. DE CARVALHO SILVIA M. SCHMUZIGER CARVALHO JOHN MANUEL MONTEIRO SÓNIA FERRARO DORTA

HISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL

2? edição

FaPESP ^fefe. _SMC

Fundação DE AMPARO Á Pesquisa y, i -T^ i ltlUsicir«i o! Ti in s DO ESTADO Dt SÃO PAuuí COMHAN H I A DaS LiriRAS iD... JL1"l>.. 1 .., Biblioteca Digital Curt Nimuendajú http://www.etnolinguistica.org/historia

C:op>rinht © 1992 hy os Autores

Projeto editorial: NrCIS.O DF. HISTÓRIA INDÍGF^A E DO INDIGENISMO

Capa e projeto gráfico: Motmd CMvakanti

Assistência editorial: Mjrta Rosa Amoroso

Edição de texto:

Otanlío Fernando Nunes Jr.

Mapas: Alíàa Roíla Tuca Capelossi

Mapa das etnias: Clame CA)hn FJmundo Peggion

índices:

Beatriz Perrvne-Moisés Clame C^hn Edgar Theodoro da Cunha Edmundo Peggion Sandra Cristina da Silva

Pesquisa iconográfica: Manuela Cimeiro da Cunha Marta Rosa Amoroso Oscar Cuilávia Saéz Beatriz Calderari de Miranda

Revisão: Cármen Simões da Costa FJiana Antonioli

1^ edição 1992

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (iip) (Câmara Brasileira do Lixro, sp. Brasil)

Carneiro História dos índios no Brasil / organização Manuela das letras Se- da Cunha. — São Paulo : Companhia AL BR f*pf.sp. cretaria Municipal de Cultura : 1992 F2519 Bibliografia .H57 ISBN S5-7164-260-5 1998x

Brasil História 1 1. índios da América do Sul — — Cunha. Manuela Carneiro da.

921393 (Di>-980.41

índices para catálogo sistemático 41 1 Brasil índios História 980

1998

Todos os direitos desta edição leservados à

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e-niail: ct)leiiasiííinleiiu't.sp. ioin.br os POVOS indígenas no nordeste brasileiro Um esboço histórico

Beatriz G. Dantas, José Augusto L. Sampaio e Maria Rosário G. de Carvalho

Projetado contra o Atlântico, região ame- to do pólo económico para Sudeste. Trata-se, ricana mais próxima ao "Velho Mundo", pois, de uma marginalidade inscrita no próprio

o Nordeste brasileiro defme-se histori- processo constitutivo regional e, sem dúvida, camente pela antiguidade da presença sua marca mais distintiva desde então. europeia em suas terras. De fato, em seu ex- Chamamos atenção para esse aspecto, por- tenso litoral dotado de muitos bons portos e que ele nos parece útil à compreensão da his- de cidadelas naturais, firmaram-se, já na pri- tória dos povos indígenas que viviam e vivem meira metade do século xvi, as duas mais só- no Nordeste e que, a partir de uma grande di- lidas cabeças-de-ponte da colonização lusita- versidade étnica, lograram se constituir, me- na no continente na capitania de Pernambu- diante um prolongado contato com fi-entes de co e na sede do governo geral, na de expansão determinadas, em uma unidade his- Todos os Santos, cujos solos muito propícios tórica e etnológica tornada possível sob o in- dos seus arredores logo estariam tomados pe- delével signo da marginalidade. la rendosa lavoura da cana-de-açúcar, base de "Marginal" é, aliás, justamente a categoria articulação com o mercado mundial. escolhida por Steward (1946) para classificar No século seguinte, seria a vez de o interior dicotomicamente todos os povos sul-america- da região, desprovido de maiores obstáculos na- nos não relacionados à floresta tropical, caso turais de vegetação ou relevo e dotado pelo São típico de todos os povos do Nordeste se excluí- Francisco de uma eficaz via de penetração e as- dos os Tupi costeiros. Numa classificação mais sentamento, ser rapidamente penetrado pelas apurada e historicamente contextualizada, grandes boiadas que, em cerca de cem anos, já Galvão (1959) assim delineia a sua "área cul- transitariam, por mais de duzentas léguas, en- tural Nordeste": "Dados os efeitos de acultu- tre a capital e o vale do rio Piauí. ração à sociedade nacional, diversidade de lín- Teve assim o Nordeste, em pouco menos de guas e de origem, temos certa dúvida em in- duzentos anos de efetiva presença colonial, de- cluir todos esses grupos em uma única área" vassado quase todo o seu território e, mais (jue (1973:42). Trata-se, assim, inequivocamente, do isso, definidas as bases de toda a sua vida eco- que podemos chamar uma classificação re- nómica ulterior. Vale ressaltar, porém, que os sidual. seus contornos regionais tal qual hoje conhe- Afastando-nos, porém, do contexto etnoló- cidos só se tornariam nítidos no contexto do gico do século XX e tentando buscar a percep- empreendimento colonial e no da própria na- ção do colonizador quinhentista, veremos que cionahdade brasileira emergente, a partir do tais aspectos — marginalidade e residualida- século X\'III, marcados sobretudo pelo proces- de — já se encontrav am presentes na sua abor- so histórico da sua marginalização, com a des- dagem do conjunto extremamente heterogé- coberta das minas e conseqiiente deslocamen- neo dos povos habitantes da vasta região de 432 lllsTOKlV IX)S ÍNDIOS \C) BKVSll

caatingas que domina a maior parte do inte- oitenta diferentes etnônimos na área do ser- rior do Nordeste, os "Tapuia" (inimigos con- tão nordestino e em suas faixas de transição trários). Generali/.avão tornada possível ao co- para a "zona da mata" a leste — o agreste —

nhecimento coloniiil desses povos através da e para os cerrados a oeste — os cocais —, com adoção do estigma expresso pelos seus inter- uma nítida concentração no vale do submé- locutores mais diretos, os Tupi da costa, cuja dio São Francisco — onde o grande número homogeneidade cultural e linguística e gran- de meandros e de ilhas expande considerasel-

de dispersão territoriiU tanta impressão cau- mente a extensão da várzea agricultável — e, saram aos primeiros cronistas portugueses, em menor escala, nos topos mais úmidos de quanto a di\ersidade dos povos do sertão. algumas serras, como as que circundam o atual Tinha-se assim formada a polaridade básica estado do Ceará. que orientaria toda a apreensão colonial dos A articulação de um conjunto tão diverso índios no Brasil, e que parece especialmente com base nas parcas informações disponíveis

exidente no caso do Nordeste. é, certamente, muito dificil. Reconhece-se, po-

Contrapondo litoral e mata tropical a inte- rém, sem dificuldade, a predominância da fa- rior e caatinga, homogeneidade a diversidade, mília Kariri, presente desde o Ceará e a Pa- e a imposição de um contato direto e sistemá- raíba até a porção setentrional do sertão baia- tico à quase ausência inicial de contato e de no, mas não se definem bem os seus contornos informações seguras, veremos também que to- já que apenas quatro de suas línguas — Ki- da a inquiridora curiosidade de que foram al- peá, Dzubukuá, Kamuru e Sapu\ á — chega- vo os Tupi — paradigmas de alteridade a ins- ram a ser identificadas e apenas a primeira de- pirar filósofos e teólogos da Renascença euro- las suficientemente bem descrita, ainda no pe- peia — de modo algum se estendeu aos seus ríodo colonial, graças ao trabalho de Mamiani antípodas sertanejos que, se nenhuma nova in- (1698). quietação acrescentavam ao canibalismo e à Os Dzubukuá-Kariri, habitantes da meta- nudez, impunham, por outro lado, uma pre- de ocidental do arco formado pelo submédio sença fugaz e uma estonteante diversidade São Francisco, contam com os importantes re- idiomática capaz de desestimular os espíritos latos missionários dos capuchinhos Martinho mais abnegados. Preocupado com a sua mis- e Bernardo de Nantes (respectivamente, 1707 são, diz Cardim, já ao final do século, que, e 1709). A leste destes e até a altura da ca- "com os mais Tapuias, não se pode fazer con- choeira de Paulo .\fonso, o vale do rio era do- versão por serem muito andejos e terem mui- minado pelos Proká e Pankararu. enquanto a tas e diferentes línguas dificultosas. Somente oeste, nas proximidades das atuais cidades de fica um remédio, se Deus Nosso Senhor não e Petrolina e da desembocadura do descobrir outro, e é havendo às mãos alguns rio Salitre, as fontes apenas referem a presen- filhos seus aprenderam a língua dos do mar, ça dos Okren, Sakrakrinha, TaniiUikin, Kori- e servindo de intérpretes fará algum fruto ain- pó, Masakará e Pimenteiras, estes últimos os da que com grande dificuldade pelas razões mesmos que seriam batidos nos sertões do acima ditas e outras muitas" (1978:127). O pre- Piauí em época posterior cário conhecimento dos "Tapuias" não é ex- No sertão ao sul do São Francisco domina- pandido de modo significativo com a sua efe- vam os grupos kariri (kiriri) e os Pa>-a\u, mui-

tiva conquista, aliando-se para tanto a voraci- tos deles conduzidos nos séculos W II e W III dade da frente pastoril e as compulsões para aldeamentos no Paraguaçu, no Jaguari- culturais da ação missionária que se lhe seguiu pe e no litoral de . a fim de defender — forçando inclusive a sedentarização e con- o recônca\o da Biihia de Todos os Santos do centração em seus redutos de grupos diver- avanço dos "Aimoré". sos — ao presumivelmente baixo contingente No sertão ao norte do São Fnuicisco a di- demográfico de cada etnia ou unidade políti- versidade de designações étnicas é ;únda

ca original. maior O pUuuilto ela Borborema. ;is sernis dos Nimuendaju (1981), com base em fontes di- Kariris e do Araripe e os vales próximos dos versas e de variável confiabilidade — ainda rios Jaguaribe, Apodi e Açu registram a prt^ que com suficiente rigor para não incorporar sença, junto aos Kariri. dos Iko, Pa\uku. Ka-

informações descabidas — , chega a relacioniu- nindé, Otxuka\;uia (Jiuiduí, Tanuiu), Inlumum. o NORDESTE BRASILEIRO 433

Calabaça, Xukuru etc, de cuja pertinência à bem diferenciado e cujas características favo- família Kariri muito se especulou (Pinto, 1938). reciam uma concentração, ainda que em ca- Suposição reforçada pela grande confederação ráter sazonal, de grupos diversos nos poucos que formaram ao final do século XVII, mas es- nichos mais favoráveis, tendência reforçada pe-

téril pela inexistência de material linguístico las boiadas e missões que viriam a constituir e etnográfico de monta. Nas vertentes do Ibia- historicamente esta unidade.' Pensamos ter paba, dominado pelo grupo tupi dos Tobaja- aqui configurado o que nos parece ser o con-

ra, vamos encontrar referências aos Karatiú, junto étnico e histórico mais diretamente iden- Reriú e Anacé, entre outros, enquanto o lito- tificado ao Nordeste: o dos diversos povos

ral norte cearense era dominado pelo nume- adaptativamente relacionados à caatinga e his- roso povo Tremembé e o baixo curso do Par- toricamente associados às frentes pastoris e ao naíba pelos Arayó, Anapuru e Aranhi. Final- padrão missionário dos séculos XVII e XVIII. mente, no árido sertão central de Pernambuco, Uma abordagem mais bem referida a uma vale referir a presença dos Xokó e Karapotó, história regional como um todo im- que vamos reencontrar no baixo São Francis- põe, porém, a consideração de três outros con- co, completando um quadro que não se pre- juntos étnicos e históricos parcialmente inci- tende, de modo algum, exaustivo. dentes na região, também relacionados a con- No plano linguístico, estudos da única lín- textos ecológicos e a situações de contato gua ainda falada, o Yaté dos Fulniô que vivem específicos, ainda que com graus bem diver- no sertão oriental de Pernambuco, permitem sos de consistência etnográfica interna, a sa- apenas uma tentativa de classificação no tron- ber: os já mencionados Tupi e Jê, e vários gru- co Macro-Jê. Limitado material proveniente pos pertencentes às famílias dos Botocudos, dos Pankararu, Xokó e Xukuru não permite na- Maxakali, Kamakã e Pataxó, habitantes da mata da de conclusivo, senão tomá-las por línguas atlântica ao sul da Bahia de Todos os Santos índios de aldeia, isoladas. Do mesmo modo, a inclusão dos Ma- e do planalto interior circunvizinho. aqui sob o controle Não são aqui necessárias maiores conside- sacará na família Kamakã e dos Pimenteiras dos holandeses, entre os Botocudos, feita com base em resí- rações sobre o segmento nordestino dos po- são recrutados para expedições duos lingiiísticos recolhidos por Spix e Mar- vos tupi da costa brasileira, em tudo semelhan- militares. As tes àqueles que foram mais descritos por tins já no século XIX, parece-nos altamente es- bem mulheres peculativa. Podemos, porém, seguramente, cronistas quinhentistas e seiscentistas no lito- acompanham os corpos de milícias. presumir uma diversidade que certamente ex- ral do sudeste e na ilha do Maranhão. Atingi- Mapa dos de ao Rio Grande do Norte trapola em muito os limites da família Kariri. provavelmente Hipóteses a respeito do período pré-colo- — e, em especial, ao norte da Bahia de Todos de Post. nial sugerem claramente que esses diversos pequenos povos teriam sido expulsos do lito-

ral nordestino pelo avanço dos Tupi em suas grandes migrações (Métraux, 1927), ainda em pleno processo quando da intrusão europeia. A dispersão daqueles para os cerrados a oeste seria, por sua vez, limitada pela presença dos

povos da família Jê, também reconhecidamen- te bem mais homogéneos cultural e lingiiisti- camente em seus subgrupos Timbira e Akwé, com os quais os povos do Nordeste central cer- tamente mantiveram contatos. Desta maneira, em que pese o nosso quase irremediável desconhecimento etnográfico dos povos do sertão, parece possível, também a(jui, a identificação, ainda que embrionária, de uma certa unidade; não apenas por contraste com os seus vizinhos mais bem conhecidos de les- te e de oeste, mas também por uma inques- tionável associação a um ambiente natural 434 uisroKU nos índios no «kasii.

os Siuitos — pelas primeiras frentes extrativista te. Por terem vivido contato em período bem e canavieira no século X\'l, estão inequivoca- mais recente e diante de frentes de penetra- mente incorporados, pela sua demografia e si- ção específicas — notadamente a cacaueira e tuarão, à história indígena no Nordeste, não outras de caráter quase que puramente mili-

tosse também pela indissociável articulação tar — , pela qualidade diferenciada do mate- das economias açucareira e pastoril que mar- rial etnográfico disponível e pelo fato de cons- ca a história regional. tituírem famílias etnolingiiísticas bem carac-

No caso dos Jè, parece-nos que apenas três terizadas e delimitadas, julgamos que os po\os povos Timbira, tradicionalmente localizados da mata atlântica a leste do Brasil devem cons- no centro-sul do atual estado do Piauí — tituir uma área específica no estudo da histó- Akroã, Ciueguè e Jaikó — e alcançados pela ria indígena e do contato. Uma área que, no frente pastoril oriunda da Bahia no século caso, estender-se-ia geograficamente do sul da WIll e aí aldeados desde então, incorporam- Bahia a todo o estado do Espírito Santo, norte se à história do contato entre índios e coloni- do Rio de Janeiro e leste de Minas Gerais, zadores no Nordeste. Os povos Akwe — Xak- abrangendo, entre outros, os povos da família

riabá, Xerente e Xavante — que são referidos Pu ri. no sul do Piauí e oeste da Bahia no período Configurado o Nordeste, para fins de uma colonial não foram aí contatados, tendo migra- história indígena e do indigenismo, como a re- do para oeste e sudoeste, onde travariam con- gião abrangida, grosso modo, pelas bacias flu- tato com outras frentes de penetração, princi- viais do Paraguaçu, na Bahia, ao Parnaíba, no piílmente na bacia do Tocantins-Araguaia, nos leste maranhense — incluindo a porção nor- séculos XIX e XX. Também os Timbira do Ma- destina da grande bacia são-franciscana — e ranhão articulam-se a outros períodos e situa- caracterizada basicamente pela ação de con- ções de defrontação interétnica. quista efetuada quase que totalmente ainda no Os diversos povos das famílias Maxakali (Ka- período colonial, passamos a um exame dessa poxó, Kumanaxó, Makuni, Malali, Maxakali, história, em caráter exploratório, com o obje- Panyame), Kamakã (Kamakã, Kutaxó), Pataxó tivo básico de apenas delinear suas seqiièncias e da grande família dos Botocudos (em espe- principais até os dias atuais, referir o que há cial os Gueren no que diz respeito ao Nordes- de mais significativo já publicado a respeito te), conhecidos por Aimoré em todo o perío- e indicar as possibilidades de estudos mais de- do colonial, são conjuntamente responsáveis, tidos, sobretudo no que diz respeito às pers- com suas devastadoras incursões sobre as po- pectivas de uma melhor abordagem da reação voações costeiras, pelo mais completo fracas- indígena ao contato, nas diversas situações his- so económico das capitanias de Ilhéus, Porto tóricas específicas. Seguro e Espírito Santo durante todo o perío- A OCUPAÇÃO DO UTOIL\L do colonial. Vivendo em geral em pequenos E A CONVERSÃO DO GENTIO bandos no interior das matas — ao contrário dos Tupiniquins que, na mesma região, ocu- Para o século xvi, as fontes primárias mais pavam preferencialmente as praias, estuários relevantes são Soares de Souza (1587) e Car-

e manguezais — , esses povos resistiram por dim (1625). Nóbrega (1549-70) e Anchieta três séculos à conquista do seu território, que (1554-68), por outro lado, fornecem informa- só se efetivaria a partir do início do século XIX, ções adicionais viiliosas. Não obstante, os qua- num sangrento processo que, em seu limite, tro apreenderão os índios da perspectiva do duraria até as primeiras décadas do nosso sé- agente coloniz.iidor, distinguindo-os fimdiunen- culo, já em pleno apogeu da lavoura do cacau talmente pela língua e pela maior ou menor no sul da Bahia, quando foram contatados os resistência à conquista. últimos bandos pataxó ainda isolados. Os tradicionais povoadores da B;ihia de To- São também do início do século XIX as me- dos os Santos teriam sido os Tipuia. dela ex- lhores fontes sobre esses povos, destacadamen- pulsos pelos seus contrários rupiuvie. que des-

te Wied-Neuwied (1817), Spix e Martins (1820) cem do sertão atraídos pela fartura de terra e e Saint-Hilaire (1822), que trazem relatos et- mar dessa pro\ íncia. Os Tupinaé. por sua w/. nográficos muito ricos, especialmente se com- seriam tlesalojailos pelos Uipinamba que, piw parados às fontes precedentes para o Nordes- cedentes de ;ilém do rio São Francistnx lhes o NORDKSTK BKASILKIRO 435

índia Pataxó.

farão oposição e se transformarão em senhores na capitania dos Ilhéus (Anchieta, 1988:422), da terra. Desse modo os Tupinaé teriam retor- considerados como os mais temidos entre os

nado ao sertão e se defrontado com os seus ini- outros —, restringindo-se os contatos com os migos Tapuia (Soares de Souza, 1971:299-300). Tupiniquins (Topinaqui) e Tupinambá (Poti-

Assim é que, ao chegar Nóbrega ao Brasil, nambá) (Nóbrega, op. cit.: 98-9). em março de 1549, em companhia de Tomé A atividade missionária concentrar-se-ia na de Souza, assinalará as constantes guerras que costa, ao abrigo da economia açucareira, mas

movem entre si as várias tribos e concluirá que já suscitava, a partir do São Francisco, em 1551, sua honra consiste em "terem muitas mulhe- a curiosidade do gentio do sertão, que vinha res e matarem os inimigos" (1988:90). de muito longe à capitania de Pernambuco pa-

Refere-se, pois, Nóbrega aos Tupinambá, ti- ra ver os padres que, pela primeira vez, a visi- dos como "muito belicosos, muito amigos de tavam (Nóbrega, op. cit.:115). As áreas assisti- novidades, e demasiadamente luxuriosos, e das eram a Bahia de Todos os Santos, Porto Se- grandes caçadores e pescadores, e amigos de guro, Ilhéus e Pernambuco, sem contar São lavouras" (Soares de Souza, op. cit.:300). Ao Vicente e Espírito Santo. Vale lembrar que dominarem a Bahia de Todos os Santos, ter- neste primeiro período litorâneo o movimen- se-iam estabelecido em aldeias separadas, to missionário, consoante os requisitos da con- aqueles moradores entre o rio de São Fran- quista e povoação, alcançaria seu apogeu por

cisco e o rio Real guerreando com aqueles si- volta da segunda metade do século XVI e pri- tuados desde este rio até a Bahia, e os habi- meiros decénios do seguinte, por intermédio tantes do sítio da cidade declarando-se inimi- predominantemente dos jesuítas (Regni, 1988, gos dos estabelecidos do lado oposto da Bahia vol. 1:109). de Todos os Santos, nos limites dos rios Para- Após tomar posse, em 1558, e a conselho guaçu e Sergipe do Conde. Assim, não obstan- de Nóbrega, Mem de Sá promulgou três leis, te fossem todos falantes da mesma língua, visando o estabelecimento da paz entre os ín- distinguiam-se uns dos outros e guerreavam dios da Bahia e a sua catequese, "sob graves

(op. cit: 299-301). A morte canibiilística de ini- penas": "que nenhum dos confederados ou- migos, requisito masculino primordial, expres- sasse dali em diante comer carne humana; que sava, conseqiientemente, as diferenças e "con- não fizesse guerra, senão com causa justa, firmava os ódios" (Gandavo, 1980:55), reali- aprovada por ele e os de seu conselho; que se zando-se por vingança (Soares de Souza, op. juntassem em povoações grandes, em forma de cit.:328).^ repúblicas; levantassem nelas igrejas fazendo A época ainda não há comunicação com os casas aos padres da (>()nipanhia para (jue denominados Goyanaze e Gaimare (Aimoré ou residissem entre eles, a fim da instrução dos Botocudos) — estes habitantes no Camamu e (}ue (juisessem comerter-se" (Vasconcelos, 436 IIISTORU DOS índios NO BKASII.

1964:50-1). E, efeth amente, em 1559 haviam nomia, como demonstram eloqiientemente os sido estabelecidas em povoações indígenas na vários casos de conflitos de poder registrados. Biihia cinco igrejas, ou seja, N. S. do Rio \'er- Para isso em muito contribuiu a legislação por- inelho. São Sebastião, São Paulo, São João e a tuguesa em relação aos índios, permitindo a do Espírito Santa, esta última sendo dada co- escravidão quando se tratava de índios captu- mo a mais po\oada. rados "em guerra justa", índios já escravos de Ao registrar entre os índios a prática da cap- outras tribos e índios em perigo de serem de- tura e aprisionamento como escravos, ressal- vorados por tribos antropófagas (índios da cor- tará Nóbrega que os de Porto Seguro e Ilhéus, da). Nesse último caso, a passagem da escra-

que nunca se venderam entre si, foram ensi- vidão indígena para a portuguesa se configu- nados pelos cristãos a Siiltear e \ender aos do rava como um resgate.^ sertãa quando vinham fazer sal ao mar (Nó- A segunda metade do século xvi caracte- bregiu op. cit.:198). Os índios dessas capitanias, rizar-se-á como período de paz mais ou me- por serem "um só gentio todo conforme e nos generalizada na Bahia, onde os índios do grande", dono da costa, do rio Camamu até o Paraguaçu se rendem e obrigam-se a pagar de Cricaré, contrastaxam com os da Bahia, em certo tributo em farinha e galinhas e "não co- pequeno montante e di\ididos (op. cit.:200-l). merem carne humana e serem sujeitos e cris- Esses mesmos Tupiniquins sublevar-se-ão em tãos", do mesmo modo que os de Itaparica e 1559, após a morte de dois dos seus, e serão Tinharé. energicamente reprimidos — mediante mor- Enquanto isso, em 1562 Mem de Sá deter- tes, queima de aldeias, destruição de cercas minaria que fossem castigados os Kaeté, por e mantimentos — com o auxílio de negros e terem morto o bispo dom Pêro Fernandes Sar- submetidos à obediência, após "ganharem dinha. A sentença pronunciada contra esses ín- entendimento para pedirem pazes" (op. dios, que estavam estabelecidos além do São cit.:216-22). Francisco para Pernambuco, decretava a sua As disputas entre os jesuítas e moradores, escravização, "onde quer que fossem achados os primeiros assumindo a defesa da liberdade sem fazer exceção nenhuma, nem advertir no dos índios e os segundos, em nome do desen- mal que podia vir à terra", em face do que se volvimento da colónia, tentando utilizar a mão- arregimentou parte dos índios aldeados do re- de-obra indígena, serão constantes em todo o côncavo, deslocando-os para o sertãa o que fez período colonial. Nóbrega, em carta a Tomé decrescer em muito o número de almas nas de Souza, em 1559, queixar-se-á dos agravos igrejas. A sentença seria revogada pelo gover- e tiranias que são feitos aos índios, em razão nador, sem êxito, contuda já que os portugue- de certo domínio que os chamados cristãos ses iam para as matas com resgate (Anchieta. têm sobre eles, roubando-lhes as roças, filhos 1988:363-4). e mulheres. Tal comportamento parecia-lhe in- Dos Kaeté dirá Soares de Souza que nos compatível com a intenção de el-rei, que era primeiros anos da conquista tiveram guerra exaltar a fé católica e a salvação das almas e cruel com os Potiguara. que dominavam a cos- não povoar a terra e fazer engenhos, tampou- ta do Rio Grande até a Paraíba. Graças às suas co "agasalhar os portugueses que lá em Por- grandes embarcações, os Kaeté constantemen- tugal sobejam e não cabem" (Nóbrega, op. te vinham, ao longo da costa, saltear os Tupi- cit.:198-9). Nessa mesma carta, declarará seu nambá junto da Bahia, enquiUito pela parte do desapontamento com o grande sesmeiro Gar- sertão confinavam com os Tapuia e Tupinaê, cia D'Avila. com os quais tiuiibém guerreav^uu. As tVeiiúen- A propósito, cabe lembrar que em um pri- tes guerras tê-los-iam consumida restiuido de- meiro momento eram os governadores gerais, les apenas os que se inteniaram muito longe a começar por Mem de Sá, que conferiam aos e os que se mistunu-am aos contnirios, como jesuítas certas prerrogativas de ordem tempo- escravos ou por casamentos (Soares de Sou-

ral. Posteriormente, o Alvará de 26/7/1595 con- za, op. cit.:61-3).

cederá aos missionários o poder de adminis- .\ bexiga e o sarampo cjue se seguiram à trar as aldeias, tanto no plano espiritual como peste e à fome, respectiviunente em 1562 e

temporal (Regni, 1988, vol. 1:131). Contudo, os 1564. reduziram em muito a população indí- missionários nunca lograriam completa auto- gena da Bahia de Todos os Santos. obrig;uido o NOKDKSTE BHASII.KIKO 437

OS padres, mediante a aprovação dos governa- saram "à outra banda do rio S. Francisco" (op. dores, a ir ao sertão descer gente para povoar cit.:335); e afastados das praias setentrionais as aldeias (Anchieta, op. cit.:365). do recôncavo, entre Bahia e Alagoas, os Tupiná. Ao longo das últimas décadas desse século Em relação aos Tapuia, apenas os que vi- se registraria um outro tipo de manifestação vem no São Francisco e outros que moram de resistência ao poder colonizador e missio- mais perto são dados como amigos dos portu- nário, pelo que se denominou no recôncavo gueses, muitos dos quais foram "descidos" pe- "Santidade", ou seja, a exortação, por parte de los padres para a costa e aprenderam a língua líderes indígenas, de um comportamento in- geral (Cardim, op. cit.:127). Das 76 nações re- verso à rnoral cristã, isto é, o não-trabalho, a feridas por Cardim, só se pode localizar com guerra e o canibalismo aos contrários e os ca- certa precisão os Aimoiré (Guaimure), no ser- samentos conforme os padrões tradicionais. Ti- tão vizinho aos Tupiniquins; os Kariri; os de- dos como feiticeiros que fingiam trazer santi- nominados Obacoatiara, em ilhas do São Fran- dade, esses pregadores eram encarados pelos cisco; e os Karapotó (Parapotô), nas serras das missionários como seus principais adversários capitanias de Pernambuco e Paraíba, suposta- (Nóbrega, op. cit.:100, 180; Cardim, 1978:103). mente conhecedores da "língua dos de mar" Calazans relata a história da Santidade acolhi- (op. cit.:124-5). Soares de Souza, por sua vez, da pelo senhor de engenho de , Fer- limitar-se-á a ressaltar-lhes a inimizade com não Cabral de Ataíde, em 1585, que foi larga- os da costa, pelos quais dela tinham sido des- mente referida nas Confissões e Denunciações locados; o não serem praticantes de caniba- da Bahia ao tempo da primeira Visitação do lismo, servindo-se tão-somente dos contrários Santo Ofício às Partes do Brasil, e que tam- como escravos, os quais são vendidos aos por- bém é mencionada por Nóbrega (Calazans, tugueses com quem têm comunicação; tam- 1952; Nóbrega, op. cit.:180). O criador da San- pouco plantarem mandioca e fazerem lavou- tidade anunciava "entre outras coisas que os ra, "salvo de milhos e outros legumes" (op. portugueses passariam a ser escravos dos bra- cit.:339-40). sis" (Calazans, op. cit.:9) e foi severamente Ao final do século XVI, toda a costa orien- combatido pelo governo colonial, que fez des- tal do Nordeste está conquistada. O fato de cer dos sertões os adeptos do movimento. Aco- Alagoas e Sergipe terem permanecido "incul- lhida pelo senhor de engenho, supostamente tos" durante quase todo o século é relaciona- para aumentar a sua escravaria, a Santidade lo- do por Serafim Leite ao naufrágio do bispo grou grande fama até ter o seu templo destruí- Sardinha na região e à conseqiiente condena- do e os participantes feitos prisioneiros. Apon- ção dos Kaeté. A guerra movida pelo gover- tado como o principal responsável pelo epi- nador Luiz de Brito aos índios do rio Real e sódio, Fernão de Ataíde foi denunciado ao Sergipe, "por terem morto muita gente dos Santo Ofício (Calazans, op. cit.:24). brancos", acarretará a saída das populações das Pelas características do trabalho de con- aldeias aí estabelecidas para a Bahia, para as quista e povoamento adotado, partindo da cos- aldeias de Santiago e Espírito Santo, onde se- ta e avançando pelo sertão, através do curso rão em grande parte vitimadas pelo surto de dos rios, o conhecimento acerca dos índios da varíola e sarampo anteriormente referido (Se- costa, nesse século, é significativo. Assim, re- rafim Leite, 1945:445-6). A conquista da re- sumidamente, é possível afirmar que os Tupi- gião só se realizaria em fins de 1589, inícios nambá estariam distribuídos entre o baixo São de 1590, por Cristóvão de Barro. Francisco e Camamu; os Tupiniquins domina- As terras de Pernambuco, Paraíba e Rio riam a beira-mar e parte do sertão da baía de Grande, por outro lado, terão a paz quebrada Camamu até , terras das capitanias com a chegada dos franceses cjue se aliarão aos

de Ilhéus e Porto Seguro; os Kaeté estabele- Potiguara que com "elles contratarão [...] ca- cer-se-iam do São Francisco para o norte, até sando com suas filhas" (Cardim, op. cit.:121). as vizinhanças de Itamaracá; do rio Paraíba às Diogo Flores expulsará os franceses em 1584. margens do baixo Jaguaribe, no Ceará, os Po- Não obstante, a conquista da Paraíba só se efe- tiguara; nos sertões de São Francisco, os Amoi- tiva em 1585, devido às desavenças ha\ idas en- pira — que para Soares de Souza seria a de- tre espanhóis e portugueses c|ue dividiam o go- nominação tomada pelos Tupinambá (}ue pas- verno (Serafim Leite, op. cit.:496-514). 43S inSTOKl A DOS ÍNDIOS NO BKASIl.

Os abusos cometidos na interpretação dos que a criação do gado, requerida pela expan- casos lícitos de cativeiro e o fato de resoluções são da economia açucareira, se transformará disponiN eis não se constitinreni em instrumen- em fator preponderante de penetração da área, tos de controle eficazes obrigarão a Coroa a examinemos sucintamente o estado das aldeias restringir a noção de guerra justa, pela Lei de da Bahia no período. Essas e os primitivos nú- 11/11/1595, e a proteger os índios aldeados pe- cleos deram lugar a freguesias, e nas cercanias la de 2/7/1596. Esta última limitará o trabalho da cidade foi mantida apenas a aldeia do Es- indígena a serxiço dos moradores em dois me- pírito Santo, que se destacará como foco de

ses, findos os quais, e após o pagamento do sa- resistência aos holandeses e, juntamente com lário, serão deixados ir livremente às suas po- as aldeias localizadas no território de Cama- voações, "piU-a que em tudo ajam como ho- mu — que, em face da proximidade da Bahia,

mens livres, e sejam como tais tratados" (Se- se associava à vida da cidade —, no forneci- rafim Leite, 1938, vol. ii:623). mento de índios de guerra e mão-de-obra pa- A esta se seguiu a Lei de 30/7/1609, em que ra ser\ iços de caráter público (Serafim Leite. el-rei declara livres tanto os índios batizados 1945:203-4). Nas capitanias de Ilhéus e Porto e reduzidos à fé católica, quanto os que "ain- Seguro continua o assédio dos Botocudos, in-

da ser\ irem como gentios, conforme a seus ri- tensificado nesta última em 1610. Outras al- tos e cerimónias, os quais todos serão tratados deias de Tupiniquins persistem, como por e haxidos como pessoas livres como são". To- exemplo Nossa Senhora da Escada, Maraú e davia, fica%am sob a proteção dos padres da Rio das Contas. Companhia de Jesus, "para os domesticarem, O trabalho catequético a partir de agora e segurarem em sua liberdade e os encami- afastar-se-á do litoral em demanda de áreas nharem no que convém ao mesmo gentio, as- mais remotas, as denominadas missões rurais, sim nas coisas da sua salvação como na viven- no sertão de , do Kiriri e do rio São da comum e comércio com os moradores da- Francisco (Serafim Leite, op. cit.:269). Toda- quelas partes" (Serafim Leite, 1945:4). O via, por todo o período de ocupação holande- grande motim causado pelos moradores da Ba- sa, as entradas iniciadas no século XM, no ser- hia diante da lei fez com que ela fosse modifi- tão da Bahia, tornar-se-ão rarefeitas, só sendo cada, ou seja, passa\am a ser admitidos, na prá- plenamente retomadas durante a restauração tica, os cativos em "guerra justa", ou resgata- portuguesa. Aí, os missionários e curraleiros dos de morte, e nas guerras em casos de ataque se concentrarão no submédio São Francisco (op. cit.:5-8). e farão do sertão de o seu quartel- general, de onde prosseguirão para Pernam- A CONQLISTA SERTÃO DO buco, Paraíba, Rio Grande, Ceará, Piauí e Ma- O século XVII notabilizar-se-á pelas invasões ranhão (Barros, 1919:123). holandesas, na Bahia e em Pernambuco; pe- A PRESENÇA HOL.\NDESA las revoltas indígenas que terão lugar no pe- ríodo da restauração portuguesa; e pela ocu- A presença dos holandeses na Bailia, como é pação do sertão com a grande frente de colo- sabido, foi curta, diferentemente do que ocor- nização pastoril, predominantemente após a reu na capitania de Pernambuca em que a retirada dos holandeses. O colonizador portu- Companhia das índias Ocidentais desenwKeu guês defrontar-se-á com um contrário perti- o seu projeto comercial e assegurou o mono- naz e ambicioso que disputará, eficazmente, pólio aos seus sócios, mediante a autorização a aliança com os índios. A crónica das inva- e os auxílios públicos das ProNÍncias l"nid.is sões é relativamente rica, destacando-se Joan (Barléii, 1974). O açúc;u- e o pau-bnísil se cv^ns- Nieuhof (1649) e Rouloux Baro (1647) pela tituíram nos mó\eis da empresa. Nesse peru>- maior precisão dos relatos, dentre as fontes pri- do, dois goxernos, distintos e opostos, se esta- márias. As rebeliões indígenas, por outro la- belecem no Brasil, sob o poder holandês per- do, carecem de maior sistematização e análi- manecendo o Rio Crande. Ru\ul\i. ltiuiuu~acá

se, tendo sido, até recentemente (Pires, 1990), e Pernambuco. apenas incidentalmente referidas por fontes Diferentemente do que se registrara com secundárias. os índios na Bahia, "os inimigos mais temidos Antes de passarmos ao no\o contexto, em pelos holandeses" — "ainda que muitos ne- o NORDESTE BRASILEIRO 439

índios "tapuias" não aldeados comerciam diretamente com os holandeses na boca do rio Grande. De Fraus Post, 1647.

gros de Guiné e alguns brancos se [metessem] índios, o seu valor militar deve ter sido consi- com os holandeses, nenhum índio houve que derado, já que se estava em guerra. Não se po- travasse amizade com eles" (cf. Vieira, I, 36, de ignorar, ademais, que a colonização do Cea- apud Serafim Leite, 1945:55) — , os do sertão rá por Martim Soares Moreno teve repercus- mostrar-se-iam simpáticos ao novo conquis- sões extremamente negativas sobre os índios tador. "De todos foram os Tapuia os mais de- (Hemming, op. cit.:298) e deve ter contribuí- dicados a nós. Com o auxílio de suas armas do para indispô-los contra os portugueses. A e forças, comandadas por Jandovi [Janduí], conjuntura era, assim, aparentemente favorá- pelejamos contra os portugueses" (Barléu, vel aos holandeses. 1974:24). Esses índios seriam frequentemen- O Rio Grande, a Paraíba e Pernambuco es- te utilizados nas patrulhas contra saqueadores tavam ocupados pelos Potiguara, os do Rio e incendiários introduzidos pelos portugueses Grande costumando fazer uma ou duas incur- e — é ainda Barléu quem o afirma — foram sões anuais à capitania de Pernambuco, prin- recrutados para uma expedição contra os Pal- cipalmente durante a seca que os privava de mares grandes, sob o comando de Rouloux água fresca (Nieuhof, 1981:89). No Ceará, as Baro, intérprete e embaixador ordinário da discórdias entre índios, também Potiguara, e Companhia das índias Ocidentais, em que portugueses alcançariam um ponto crítico em

"tombaram cem negros e [...] levaram-se pri- 1638, quando os primeiros solicitariam aos ho- sioneiros trinta e um, entre os quais sete ín- landeses que tomassem o forte português ali dios e alguns mulatos de menor idade" (Bar- existente, "a fim de libertá-los da opressão em léu, op. cit.:304-5). que viviam. Para tanto ofereciam sua aliança" Não é o caso de buscar definir aqui as ra- (op. cit.:90). Pouco depois, em 1640, o aumen- zões pelas quais parte dos índios se aliou aos to considerável da população indígena no Cea- holandeses, sequer de avaliar se a aliança es- rá, criando graves inconvenientes para as al- tabelecida resultou positiva para os primeiros, deias estabelecidas, contrariamente ao que o que tem sido negado (Mello, 1979:207). Elm sucedia no Rio Grande, "quase deserto" e vul- relação a um aspecto, contudo, parece haver nerável ao inimigo, levaria o Grande Conse- consenso, e este é relevante para o entendi- lho Holandês a fundar aí uma aldeia, "para se mento da aliança, ou seja, a liberdade religio- instalarem os habitantes do Ceará que o de- sa e a tolerância que prevaleceram sob o go- sejassem fazer" (op. cit.:92). verno de Nassau (Hemming, 1978:289; Reg- Para essa aldeia viriam, do próprio Rio

ni, 1988, vol. 1:70), das quais os grandes Grande, António Paraupaba, e da Paraíba, Pe- beneficiários teriam sido os judeus e os índios. dro Poti, cujas trajetórias tornar-se-iam poli- Para isso, notadamente no que concerne aos ticamente relevantes. Ambos visitariam a Ho- i 440 liISTOKl\ 1X)S índios NO BK\Sll.

landa, onde o primeiro apresentaria ao gover- Recife para fortalecer a posição de Janduí fa- no holandês dois protestos ou memoriais — vorável aos holandeses, ameaçada que se en- em que mostrava o estado miserável e digno contrava pelo assédio português e dos demais

de piedade da nação brasileira e requeria Janduí, seus dissidentes — referirá a certos ri- ajuda e assistência — e uma Súplica aos Al- tuais, como a conclusão do luto mediante a in- tos Poderes, os Estados Gerais das Provín- gestão de uma mistura de farinha com os os- cias Unidas (Studart. 1913:16-7; Souto Maior, sos do morto pulverizados; à luta de rapazes, 1912:72-82); e o segimdtx uma Declaração que uns com os outros, na areia, seguida da caça foi anotada por Kilian de Resenlaer em aos ratos, "a fim de correr a árvore", ou seja, 20/3/1628, em Amsterdã {Anais da Biblioteca a captura, soltura e perseguição de ratos em Nacional do Rio de Janeiro, 1907; Revista Tri- uma corrida de toros, que precede a uma gran-

mestral do IHG do Ceará, tomo xxvi:9-14). de festa, realizada três dias após a colheita; ri- Embora não possamos afirmá-lo, tiilvez esses tuais agrários propiciatórios; ritual de nomi- se tratem dos primeiros registros etno-histó- nação masculina, mediante a furacão do lábio ricos de índios do Nordeste, aos quais devem inferior e das orelhas para introdução de ca- se juntar as cartas remetidas, da Holanda, em vilhas de madeira (Baro, 1974:99-105). Barléu 1645, por Diogo P Camarão e Diogo da Cos- mencionará também a reclusão pubertária fe-

ta a Pedro Poti (cf. Teodoro Sampaio, "As Car- minina (1974:263).

tas Tupis dos Camarões" apud J. H. Rodrigues, A época da permanência de Baro entre eles. in Nieuhof, 1981:93); de Poti a António Filipe tendo se recusado à aliança proposta pelos Po- Camarão e deste, aos índios aliados dos holan- tiguara, pelos antigos aliados que haviam pas- deses (Souto Maior, 1912:61-71). sado para o lado português e pelos Paiaku, os E importante lembrar que a Companhia Janduí temiam ser atacados e clamavam pelo das índias Ocidentais, anteriormente à con- apoio holandês. Esses Paiaku dominav am des- quista de Pernambuco, em 1625, transportou de a ribeira do Jaguaribe até a fi-onteira do Rio vários índios jovens para a Holanda, os quais Grande do Norte com a Paraíba, a serra Ciri- retomariam para trabalhar como intérpretes, té, hoje Seridó, ao passo que os Janduí habi- convertidos ao calvinismo. Não são de sur- tavam as ribeiras de Açu, Mossoró e Apodi preender, pois, as cartas eloqiientes remetidas (Garcia, 1922:266). da Holanda por Pedro Poti, tentando persua- Além dos índios já citados, os cronistas ho- dir outros chefes a mudar de partido (Hem- landeses mencionarão, genericamente, os Ka- ming, op. cit.:288), do mesmo modo que a rapotó e Vaipeba, apontados como tendo in- tentativa dramática e infrutífera de António vadido os Palmares grandes (Barléu. op.

Paraupaba de ir à Holanda, em 1658, suplicar cit.:329); Caririvasu, vizinhos dos Kariri. mo- o apoio para os índios aliados que, fortificados radores dos limites e.xtremos de Pernambuco; entre os Tobajara, na serra de Ibiapaba, te- Caririyou e Tarariyou (Nieuhof op. cit.:355). miam a revanche dos portugueses (Hemming, Sobre os dois últimos cabe observ ar que para op. cit.:311). Nieuhof seriam justamente os índios liderados A presença holandesa acentuará a percep- por Janduí e os mais conhecidos dos holan- ção da grande heterogeneidade dos grupos in- deses, vivendo no poente, além do Rio Gnui-

dígenas localizados no sertão e, de forma se- de, e entre os meses de novembra dezembro melhante ao que teve lugar na faixa litorânea e janeiro, quando o caju começav^a a ;uiiadu- do Nordeste, suas reações diferenciais aos con- recer, transportando-se para o litonil (op. quistadores. Os cronistas holandeses enfati- cit.:354-5), enquanto Barléu não os nomeia, zarão o papel dos Janduí, seus aliados prefe- dando-os apenas como habitantes das vizi- renciais que se defrontarão com os Potiguara nhanças do Rio Grande, CeiU-a e M;u\uihão comandados por Camarão.^ Os Janduí são (op. cit.:260). descritos como organizados em dois bandos ou TRABALHO MISS10N.\R10 metades, não utilizadores de redes e dotados de grande mobilidade espacial (Barléu, No intervalo que vai de 1619 a 1679 os fnui- 1974:261). Baro, falante da língua e que com ciscanos deixaram de missionar, a ni/ão tun- eles conviveu por pouco mais de três meses, damentiil sendo creditada à inv^asão hoUuide- -*-> em 1647 — enviado que foi pelo conselho do sa que, até 1654, piu^^ilisiiria o apostolado des- o NORDESTE BRASH.EIRO 441

ses religiosos no Nordeste. Durante a segun- cativos cerca de 500, entre mulheres e crian- da metade do século XVII, esses religiosos ças (Nantes, op. cit.:55). Examinado o caso pelo exercerão atividades como capelães militares Tribunal de Relação da Bahia, graças à inter- das tropas coloniais, submetendo, com a aju- venção de capuchinhos franceses e jesuítas, es- da dos índios batizados, outras tribos de mo- se se pronunciou a favor da liberdade dos ín- do a estender o domínio português sobre os dios e obrigou o comandante da ação a recon- sertões do Nordeste. Mesmo após reiniciada duzi-los à aldeia de Canabrava (op. cit.:56). a catequese, em 1679, continuarão como ca- No São Francisco, os capuchinhos franceses pelães militares (Willeke, 1974:79-80). serão os primeiros a chegar, antes de 1671, e Os jesuítas, por sua vez, estão por esse tem- fundarão a missão de Rodelas e a dos Aramu- po concentrados nos sertões da Bahia. Uma ru, no baixo São Francisco (Nantes, op. cit.:2), das primeiras missões estabelecidas, provavel- bem como a de Pambu (op. cit.:50). Fixando- mente em 1639, é a de N. S. da Trindade de se na região a partir de 1671, em uma aldeia Ka- Massacará (Barros, 1919:17). Os padres João riri, na ilha de Aracapá, Martinho de Nantes de Barros e Jacobo Rolando, em viagem da Ba- deixará registrado em sua Relação, ao lado de hia para o sertão, no ano de 1666, visitam-na, informações etnográficas importantes, a im- após o que rumam para os Kariri-Sapuyá e pressão que lhe causaram os índios Kariri "em- Sakrakrinha (Serafim Leite, 1945:282-3). Um brutecidos" por uma vida fundada nos senti- ano antes, havia sido organizada, sem êxito, dos, em que os "festins" impudicos e os feiti- uma entrada visando descer os Amoipira, da ceiros ou "impostores" — que lhe parecem ter qual resultariam, porém, contatos com os Pa- entendimento com o diabo, por tão-somente yayá no sertão de Jacobina. De data incerta, usarem "a fumaça do tabaco e certas rezas" — mas seguramente da segunda metade do sé- fazem-no concluir prevalecer uma "desordem culo XVII, são as aldeias dos Kiriri, ou seja. assustadora" (op. cit.:4-6). Ingénuos, os Kariri

Santa Teresa de Canabrava, N. S. da Concei- deveriam ser transformados em homens livres

ção de Natuba, Ascensão do Saco dos Morce- e, depois, em bons cristãos (op. cit.:101). gos e N. S. do Socorro de Jeru (Serafim Leite, Em 1685, João de Barros e outro padre je- op. cit.:272). suíta permanecerão três meses na missão de As altercações eram constantes com o Se- Rodelas, procedentes do sertão da Bahia, e aí nhor da Casa da Torre, Francisco Dias de Ávi- fundarão missões, em colaboração com os ca- la. Este senhor, considerado por Martinho de puchinhos franceses. Nantes como "o homem mais rico do Brasil Em sua segunda Relação, Nantes narra a e o melhor aparentado" (Nantes, 1979:61), guerra movida por portugueses a índios que aproveitando-se do fato de el-rei lhe haver doa- haviam se senhoreado de fazendas no São do todas as terras devolutas do rio São Fran- Francisco, situadas rio acima, acusados de ma- cisco — que compreendiam uma extensão de tar 85 moradores e os seus negros escravos, e 130 léguas — para as povoar com rebanho, em destruir currais. Atendendo a ordem do gover- benefício das cidades da Bahia e Pernambu- nador da Bahia, por intermédio de Francisco co, se apoderara do que estava formalmente Dias de Ávila, Nantes parte com os índios das executado nas provisões que o contemplavam, quatro aldeias que estavam sob a direção dos e freqiientemente o gado invadia as ilhas on- capuchinhos franceses, aos quais se juntariam de os Kariri se haviam refugiado (Nantes, op. "vários outros de diversas aldeias", para dar cit.:60). A sua intolerância para com os índios combate aos acusados. A batalha decisiva se e missionários era notória e o padre João de dá às margens do rio Salitre, em 1676, tendo Barros apontá-lo-á como destruidor das resi- sido mortos "quase quinhentos homens de ar- dências e igrejas de e e mas" a sangue frio e escravizados seus filhos da igreja dos Kaimbé, em Massacará, em 1669 e mulheres, após a rendição (op. cit.:53). (Serafim Leite, 1945:284). Ao deixar o rio São Francisco, para assumir Santa Teresa de Canabrava será igualmen- na Bahia o cargo de superior da ordem, Mar- te palco de atac^ue da parte dos portugueses, tinho de Nantes será sui)stituído por Bernar- por motivo fútil, na verdade mero pretexto pa- do de Nantes, em 1677, a (lueni introduziu na ra obtenção de escravos, do qual resultarão língua kariri. Este, por sua vez, deixa um ca- mortos a sangue frio 180 homens de guerra, e tecismo, no qual classifica os Kariri (}ue conhe- 44:2 msTOKiv nos índios \o bkami

cera em dois tíiupos, D/.iibukiiá e K\pés, o pri- sua orientação (cf. comunicação de el-rei ao A-v Ir A/í meiro compreendendo os índios do São Fran- governador da capitania de Pernambuco, em cisco, das iildeias de Aracapá, Cavalo e Pam- 30/1/1698, apud Couto, 1908:385). Ao se refe- bu. e o segundo, os de Jeru e pro\avelmente rir à retomada dos aldeamentos na costa. Se- os das missões de Natuha, Clanabrava e Saco rafim Leite assinalará que "já quase tinha pas- dos Morcegos. sado o ciclo missionário; já começava a distin- Os padres capuchinhos franceses sairão do ção entre 'índios' e caboclos' " (Serafim Leite,

Brasil no ano de 1702. .\s razões para tal são 1945:335). controversas e em geral relacionadas ao veto AS RE\'OLTAS INDÍGEN.\S ao ingresso de missionários nas colónias, con- vencido que estava Portugal da auto-suficiên- A denominada Guerra dos Bárbaros, Levante cia da igreja local, o que fazia com que o mis- Geral dos Tapuia ou Confederação dos Kariri sionário estrangeiro, além de "perigoso para iniciar-se-á em 1687, como reação ao movi- a segurança nacional", fosse visto como supér- mento expansionista dos portugueses sobre as tluo (Regni, 1988, vol. 1:235). Regni, porém, terras indígenas, após a vitória sobre os holan- defenderá como causa determinante para o deses (Studart Filho, 1966:62), e só se encer- tim das missões francesas no Brasil "a falta de rará em começos do século XVIII. O povoa- forças renovadoras" internamente à ordem (op. mento na região tornara-se mais intenso devi- cit.:233). do a uma Ordem Régia de 29/4/1654, em que Em 1700, os terésios ou carmelitas descal- d. João IV concedia sesmarias aos soldados e ços substituirão os jesuítas, expulsos das mis- oficiais que haviam lutado na Guerra da Res- sões de Acará, Rodelas, Caruru e Sorobabé no tauração. Dentre esses, merece menção João São Francisco pelas "mulheres da Torre", ir- Fernandes Vieira, comandante dos luso-bra- mã e sobrinha de Francisco Dias de Ávila, em sileiros contra os flamengos e que, como go- 1696 (Calderón, 1970:60). No intervalo, essas vernador da Paraíba no período 1655-57. co- missões foram supridas pelos franciscanos. meteria graves excessos contra os Janduí (Pi- Retirando-se os carmelitas descalços, os capu- res, 1990:56-7). Sesmarias seriam também chinhos italianos provêem as aldeias (op. concedidas à família Oliveira Ledo,^ no Rio

cit.:71). Enquanto isso, os oratorianos tentavam Grande do Norte, em área de estabelecimen- desde o final de 1659 catequizar os Janduí, na to dos Janduí (Almeida, 1977:408). costa do Rio Grande, no vale do baixo Açu Não é de estranhar, pois, que tenham sido (Medeiros, 1981:52), o que, todavia, só terá iní- os Janduí a dar início à reação contra os colo- cio a partir de 1706, pelos jesuítas, de acordo nizadores, a que se seguiram sublevações nos com o testemunho do padre Vicente Vieira sertões de Rodelas, em Pernambuca e no que os visitou e aos Paiaku, nessa data, e dirá Piauí, onde Francisco Dias de Ávila e Afonso dos primeiros "que começam a amansar pou- Domingos Sertão se haviam beneficiado da

co a pouco. \'êm à igreja [...] assistem em si- concessão de grandes extensões de terra. Des-

lêncio ao santo sacrifi'cio [...] e obedecem ar- se modo, em pouco tempo, e estimulados pe- mados de arco e flecha, mas com o arco em las primeiras vitórias obtidas pelos J;mduí, en-

repouso" (Serafim Leite, 1945:547). Em 1661, tram na luta os Paiiiku e, posteriormente, os ou 1662, os oratorianos fundam as aldeias de Kratiú e Ikó, no Ceará, e os Xukuni, Pega, Pa- Capibaribe, de índios Xukuru, e em 1671, ou nati, Korema e Icozinhos, habitantes do Cea- 1672, a missão do Ararobá, denominada "porta rá, Rio Grande do Norte, Paraíba. Peruiuubu- do sertão" pela sua função colonizadora (Me- co e Piauí (Studart Filha op. cit.:64). .\ 24 de deiros, op. cit.:57). fevereiro de 1688, sem força suficiente jxu~a Ki- Desde 1681, portanto no período de restau- ter os índios, o capitão-mor do Rio Grande lan- ração portuguesa ao domínio holandês, havia ça um Bando, 'no iiual declarava, em nome sido criada a Junta das Missões, encarregada de Sua Majestade, cjue seriam perdoados de das aldeias indígenas sob jurisdição governa- seus crimes aqueles que acudissem ao re^U -ser- mental e da sua distribuição entre as várias or- viça fazendo guerra ao gentio" (opt cit.:6SV dens religiosas, compondo-se do bispo e o ou- A expedição organizada para esse tun inoor- vidor geral, do provedor da fazenda e os pre- porar-se-âo Henrique Dia,s, Domingos Joi^ge lados das religiões com distritos e aldeias de \'elho — então nos hilmares, guerreando os o NORDESTE BRASILEIRO 443 quilombos, que assina contrato com o gover-

R 1 o Hf ' f n > s t no de Pernambuco para reprimir os bárbaros

— e, pouco depois, outros bandeirantes atraí- dos pela notícia de que a guerra fora declara- da justa e, conseqiientemente, seriam consi- derados cativos os gentios nela aprisionados. Estavam criadas, pois, as condições para a ra- dicalização do conflito. Em 1692, a ocorrência de uma grande se- ca debilitaria os índios revoltosos, o que daria ensejo à assinatura de um "Tratado de Paz" entre o rei de Portugal e o chefe dos Janduí. Por esse tratado, esses índios, estimados em 12 a 13 mil, prometiam 5 mil guerreiros para lutar do lado português contra invasores es- trangeiros ou tribos hostis, e em troca rece- biam a garantia de uma área de dez léguas quadradas em torno de suas aldeias e de se- rem considerados livres, não obstante deves- sem fornecer uma quota de trabalhadores para as fazendas de gado (Medeiros Filho, 1984:22). O prosseguimento das animosidades atesta o não-cumprimento do tratado. Em 1715, uma Carta Régia de 27/3, ende- reçada ao governador de Pernambuco, deter- mina a continuação da guerra com fervor "pa- ra que assim ou se extingam estes bárbaros ou se afugentem de nós tanto que vos fique livre o uso da terra ou se faça neles tal estrago que os intimidem em forma que a mais se não atre- vam, e fiquem meus vassalos livres de pade- e outros grupos se rebelam, e um novo Ban- Rio São Francisco, com índios cerem semelhantes hostilidades às que agora do, em nome de Sua Majestade, é lançado, aldeados na experimentaram (Studart Filho, op. cit.:150-l). isentando dos quintos reais aos que fizessem embocadura O progressivo alargamento da colonização guerra ao gentio, até deles livrar a capitania. do rio, e índios independentes e as baixas entre os revoltosos levariam à paz, Os aprisionados são distribuídos entre os co- nas ilhas. celebrada inicialmente na região litorânea lonos e índios auxiliares, salvo os Tremembé e só mais tarde nos altos sertões cearenses que teriam sido entregues ao seu missionário, (op. cit.:115). A partir de 1720 não se encon- por ordem da Junta das Missões (Theberge, tram mais registros da sublevação (Pires, op. 1869:15-6). cit.:79-80). A FINALIZAÇÃO DA CONQUISTA Já na etapa final da "Revolta dos Bárbaros", em 1713, uma nova rebelião terá lugar, no Cea- Os "Orizes Procazes", localizados no sertão da rá, mas agora promovida por índios aldeados Bahia, seriam também conquistados em 1713. e missionados, no meio dos quais estariam ín- Mascarenhas (1867) relata o aprisionamento de dios Tupi, "aliados fiéis dos brancos". A razão um gnipo de Orizes por índios Kaiinbé, já cris- da sublevação teria sido a exploração a que os tianizados, da ribeira de Massacará, e a inter- soldados residentes nas fortificações subme- venção do padre Eusébio Dias Lassos, cjue os tiam os índios, deles se servindo para o pre- salva da morte e converte, pelo batisino, uma paro dos alimentos e o combate dos inimigos população de 3700 indivíduos. nas florestas, sem lhes pagar soldo ou recom- \ coiiíjuista do Piauí, a última a ser com- pensa (cf. padre João António Andreoni, em pletada na região, em 1674, seria promoNida carta de 15/6/1714, apud Studart Filho, op. por Domingos Afonso Sertão em aliança com cit.:121). Nesse mesmo ano, os Paiaku, Anacé o cel. Cíarcia de Ávila e seus irmãos. Transfor- 444 insTORi V nos índios no brasil

mado em grande proprietário de terras. Ser- certos limites à cobiça dos senhorios. No en- tão instituirá um "morgado", cuja adminis- tanto, essa legislação, ao circunscrever as ter-

tração \ inculará os jesuítas à pecuária na re- ras indígenas, cumpria também o papel de li- giãa durante meio século (Serafim Leite, berar todo o restante à livre expansão das fa- 1945:552). O documento mais antigo referente zendas. Anteriormente à sua expedição, no aos índios do Piauí, "Descrição do sertão do final de 1697, o padre visitador dos carmelitas Piauí remetida ao ilmo. e re\nio. frei Francis- descalços dirigira-se ao rei, comunicando-lhe co de Lima, bispo de Pernambuco", de 1697, o desejo dos missionários de que aos índios relaciona 36 grupos, imprecisamente localiza- se concedesse "uma légua de terra de que se- dos, que fariam guerra aos moradores da fre- ja pião a aldeia" e recebera uma resposta que guesia denominada \'itória, e refere à presen- equivalia à confirmação do direito congénito ça de jesuítas na serra de Ibiapaba (apud Mott, dos índios à terra: "já se reconheceu que nis- 1985:112-5). Toda\ia, a primeira residência to se lhe não faz nenhuma ofensa aos colonos, peniianente dos inacianos na região é de 1718, pois todas as terras daquele estado foram pri- época em que ainda ocorria a "guerra do gen- meiro suas" (cf Parecer do Conselho Ultra- tio do corso que atacava as fazendas" (Sera- marino. Documentos Históricos, Rio de Janei-

fim Leite, op. cit.:555). Pouco antes, Mandu ro, Arquivo Nacional, 1928, vol. 9, p. 32, apud Ladino, índio foragido de uma aldeia de Per- Calderón, 1970:55). nambuco, teria liderado uma sublevação, en- OS ALDEAMENTOS cerrada com sua morte três anos depois de ini- NO SÉCULO XVIII: BAL.\NÇO ciada (Pereira d'Alencastre, 1857). UM O trabalho da subjugação desses índios se- Ao longo do período compreendido entre 26 ria dado como completo só em 1764, quando de julho de 1595 e 7 de junho de 1755, os al- João do Rego Castelo Branco dá início à cam- deamentos estiveram sob a administração tem- panha contra os Gueguê da margem do Gur- poral dos missionários. A partir dessa última guéia, que pediram pazes em 1765 e seriam data, todavia, os religiosos limitar-se-iam aos aldeados sob a direção do mesmo Castelo encargos de ordem espiritual, o governo dos Branco. Em 1769 uma missão é estabelecida aldeamentos sendo delegado aos chamados para os índios Jaikó, e antes disso, em 1711, a "principais", chefes indígenas tradicionais aldeia de São Gonçalo de Amarante já houve- (Carneiro da Cunha, 1987:105). Pelas leis ela- ra sido formada com índios Gueguê e Akroá. boradas nesse mesmo ano, estabelecia-se que A guerra contra os Pimenteiras, iniciada em as aldeias mais populosas seriam ele\adas à ca- 1776, só cessaria em 1809, com o seu aniqui- tegoria de \ilas e municípios e que as terras

lamento (op. cit.). Contudo, a "Descrição da da comunidade indígena seriam distribuídas capitania de São José do Piauí, 1722, de An- a cada família. Como decorrência das modifi- tónio José de Morais Durão" registraria 424 cações introduzidas, no início limitadas às mis- Akroá ainda não aldeados, que somados aos sões do Grão-Pará e Maranhãa seria implan- sessenta Jaikó e 252 Gueguê totalizariam 736 tado, a 7/6/1757. o Diretório Geral dos índios, almas (apud Mott, op. cit.:116). que reforma\a o regimento de 1694 e cria\\i

Conquanto as terras das aldeias tenham si- um novo sistema de governo indígena (Regui. do, desde o início, asseguradas aos índios, na 1988, vol. 11:174). Essas noMis disposições cul-

prática, as leis, alvarás e provisões que trata- minariam com a expulsão dos jesuítas de Por- ram da matéria, ao longo dos séculos XVI e tugal e de todos os seus donunios, por força XVII, mostrar-se-iam ineficazes. Desse modo, da Lei de 3/9/1759. o Alvará de 1700, que seria confirmado pela Tudo isso sem dm ida implicou nov;is reper-

Lei de 4/7/1703 — em que "El-Rei determina cussões, na maioria diis \ ezes neg;iti\^is, piu~a os que a cada missão se dê uma légua de terra índios, e que se fiu^ão sentir nos dois séculos se- em quadra para sustentação dos índios e mis- guintes. De todo moda e quase cjue à guisa de sionários", cada aldeia devendo ter ao menos um biilanço, remetemos o leitor ao quadiv d.u;

cem casais —, terá grande importância políti- iildeias existentes no Noixleste do BnuJil no pe- ca, que subsiste ainda hoje. Por meio dele, el- ríodo que vai de 1749 a 1760, e cujo numervx

rei buscava simultaneamente assegurar os bastante signitu ati\ ix ajudar-nos-a a entender meios para a reprodução das aldeias e opor os desdobramentos que se seguinia o NOKDESTt: BRASILKIKO 445

ALDEAMENTOS MISSIONÁRIOS NO NORDESTE SÉCULO XVIII

4. 5. 6. 1. CAP. 2. ALDEIA a VILA/ÁREA DE REFERÊNCIA INVOCAÇÃO MISSIONÁRIO NAÇÃO

Ba Ipltanga Bahia Espírito Santo Jesuíta Tupi ou Tupinambá Ba Sto. António da Aldeia Sto. António Cléngo Ba Jlquirica Boipeba N. Sra. dos Prazeres Cléngo Ba Jaguaripe do Rio da Aldeia Jaguaripe Sto. António Clérigo Karirí Ba Conquista da Pedra Branca Karirí Ba Caranguejo Cachoeira Sapuyá Ba Massarandupio Sta. Luzia Sta António de Arguim Carmelita (desc.) Tupi ou Tupinambá Ba Rio Real Vila da Abadia Jesus, Maria, José Carmelita Kiriri Ba Aramaris São João da Aguafria Clérigo Kirin Ba Manguinhos São João da Aguafria Clérigo (Caramuru) Ba Natuba Itapicuru N. Sra. da Conceição Jesuíta Kiriri Ba Canabrava Itapicuru Sta. Teresa Jesuíta Kiriri Ba Saco dos Morcegos Itapicuru Ascensão de Cristo Jesuíta Kiriri Ba Massacará Itapicuru Sma. Trindade Franciscano Kiriri, Kaimbé Ba Bom Jesus de Jacobina Jacobina Bom Jesus Franciscano Ba Itapicuru de Cima Jacobina Sto. António Franciscano Payayá? N. Sra. da Saúde

Ba Sai Jacobina N. Sra. das Neves Franciscano Ba Rodelas Pambu S. João Batista Capuchinho Proká Ba Juazeiro Jacobina N. Sra. das Brotas Franciscano

Ba Salitre Sto. António do Urubu N. Sra. Madre de Deus Clérigo Fidelis Capuchinho Tupinambá IL Una do . Cairu S.

IL Serinhaém Camamu S. Miguel e Sto. André Jesuíta Payayá

IL Marau Camamu N. Sra. das Candeias Jesuíta Tupiniquim

IL Grens S. Jorge dos Ilhéus N. Sra. da Conceição Jesuíta Gren

IL Escada dos Ilhéus S. Jorge dos Ilhéus N. Sra. da Escada Jesuíta Tabajara. Tupiniquim

IL Poxim S. Jorge dos Ilhéus S. Boaventura Clérigo

IL S. Jorge dos Ilhéus

PS S. João dos Tupis Sta. Cruz São João Jesuíta Tabajara ou Tupiniquim com mistura de Tupinambá

PS Patatiba Sta. Cruz Espírito Santo Jesuíta Tupiniquim com mistura de "Pontuntum"

Se Juru Lagarto N. Sra. do Socorro Jesuíta Kiriri Se Água Azeda Se Japaratuba Vila Nova Real N. Sra. do Carmo Carmelita Boime Se Pacatuba Vila Nova Real S. Félix Capuchinho "Caxago" Se Porto da Folha Vila Nova Real S. Pedro Capuchinho Aramuru

Pb N. Sra. da Escada Recife N. Sra. da Escada Oratoriano Caboclos de Língua Geral Pe Limoeiro Igarasu Oratoriano Caboclos de Língua Geral

Pe Aratagui Goyana N. Sra. Assunção Oratoriano Caboclos de Língua Geral Geral Pe Siri Goyana S. Miguel Carmelita Caboclos de Língua

Pe Una Serinhaém S. Miguel Carmelita Caboclos de Língua Geral Geral Pe Sto. Amaro Alagoas S. Amaro Franciscano Caboclos de Língua Pe Gameleira Alagoas N. Sra. das Brotas Clérigo Kariri, L. Geral e ("Uruá") Pe Urucu Alagoas N. Sra. da Conceição Caboclos de Língua Geral Pe São Brás Penedo N. Sra. do Ó Jesuíta Kariri e 'Progez"

Pe Alagoa Comprida Penedo S. Sebastião Karapotó Pe Páo de Açúcar Penedo N. Sra. da Conceição Clérigo Xokó Pe Araroba Freguesia do Araroba (N. Sra. do Araroba) Oratoriano Xukuru Pe Alagoa da Serra do Freguesia do Araroba N. Sra. da Conceição Clérigo Carnijo Cumunaty (Penedo?) Pe Macaco Freguesia do Araroba Clérigo Prakio

Pe Missão Nova de S. Sertão do São Francisco S. Francisco Franciscano "Tapuia" Francisco do Brejo

Pe Ilha do Sorobabe Sertão do São Francisco N. Sra. do Ô Franciscano Proká. Pankararu

Pe Ilha do Acará Sertão do São Francisco N. Sra. de Belém Capuchinho Proká, Pankararu

Pe Beato Seraphin (Ilha da Vargem) Capuchinho Proká, Pankararu

Pe Ilha do Pambu Sertão do São Francisco N. Sra. da Conceição Capuchinho Kariri

Pe Ilha de Aracapa S. Francisco Capuchinho Karin

Pe Ilha do Cavalo S. Félix Capuchinho Kariri

Pe Ilha do Irapuã Sto António Capuchinho Kariri

Pe Ilha de Inhamuns N, Sra. da Piedade Franciscano Kariri

Pe Ilha de Coripoz N. Sra. do Pillar Franciscano "Coripo"

Pe Ilha do Pontal N. Sra. dos Remédios Franciscano "Tamanquim" Pe Araripe Sertão do Araripe Senhor Sto. Cristo Capuchinho Ixu

Pe Aricobe (Rio Grande do Sul) N. Sra. da Conceição Franciscano Língua Geral (Arikobe) Pb Jacoca Paraíba N. Sra da Conceição Beneditino Caboclos de Língua Geral Pb Paraíba N. Sra. de Nazaré Beneditino Caboclos de Língua Geral

Pb Bala da Traição Mamanguape S. Miguel Carmelita Caboclos de Língua Geral Pb Preguiça Mamanguape N. Sra. dos Prazeres Carmelita Caboclos de Língua Geral

Pb Boa Vista (Mamanguape?) Sta. Tereza e Carmelita (desc) Kanindé. Xukuru

Sto. António '

446 HISTORIA DOS ÍNDIOS NO BKASII

continuação

1. CAP 2. ALDEIA a VILA/ÁREA DE REFERÊNCIA 4. INVOCAÇÃO 5. MISSIONÁRIO a NAÇÃO

Pb Carins Taypu N. Sra. do Pillar Capuchinho Kariri

Pt) Campina Grande Sertão do Kariri SâoJoâo Cléngo Tapuia "Cavalcanti"

Pb Brejo Sertão do Kann N. Sra. da Conceição Capuchinho Tapuia 'Fagundes" Pb Panaty Sertão do Pianco São José Carmelite (desc) Tapuia (Panaii) Pb Coremas Sertão do Pianco N. Sra. do Rosário Capuchinho Tapuia (Korema) Pb Pegas Sertão de Piranhas Tapuia (Pega)

Pb ico Sertão do Rio do Peixe Tapuia (Ikú)

RN Guaiaru Rio Grande S. Miguel Jesuíta Ungua Geral, Payaku RN Apodi Sertão do Rio Grande S. João Batista Carmelita (desc) Payaku RN Mlpibu Rio Grande Santa Ana Capuchinho Cahodos de Liítgua Geral

RN Groairas Rio Grande S. João Batista Jesuita Caboclos de Ungua Geral RN Gramack) Rio Grande N, Sra. do Carmo Carmelita Caboclos de Ungua Geral Ce Ibiapaba Ribeira do Acarau N. Sra. da Assunção Jesuita Tabajara. "Acaracu". Renu, Anacé Ce Tremembós Ribeira do Acarau N. Sra. da Conceição Clérigo Trenfiembé Ce Caucaia Ribeira do Ceará N. Sra. dos Prazeres Jesuita Caboclos de Ungua Geral

Ce Parangaba Ribeira do Ceará Sr. Bom Jesus Jesuita Ungua Geral. Anacé Ce Paupina Ribeira do Ceará N. Sra. da Conceição Jesuita Caboclos de Ungua Geral Ce Payacus Aquiraz N. Sra. da Conceição Jesuíta Payaku Ce Palma Aquiraz N. Sra. da Palma Clérigo Kanindé, Jenipapo Ce Telha Icó Santa Ana Clérigo Ouixek). Quixereu. Jucá

"Coodadu " e Canu

Ce Miranda Icó N. Sra. da Penha de Capuchinho Ouixereii. Caru, "Canuane Franca

Pi Cajueiro Jaito, Akíoá

Pi S. Gonçalo do Amarante (S. Gonçalo) Guegué. Akroá

Fontes: Caldas, José A., 1931 [1759] Couto, Domingos L., 1904 [1757] Pereira d'Alencastre, 1857

DOS ALDEAMENTOS À REAÇÃO rio. Espalhados tanto no litoral quanto no ser- tão, os aldeamentos constituíam-se em unida- Tendo enfrentado as compulsões decorrentes des diferenciadas das formas gerais de orga- da implantação do projeto colonial português, nização da população. reconhecimento à os índios que habitavam o Nordeste chegaram Em identidade indígena de seus habitantes o Es- ao século XIX vivendo situações diferenciadas. tado brasileiro, a exemplo fizera o Enquanto nos extremos da região os "índios do que dispensava-lhes tratamen- selvagens" enfrentavam de forma sistemática Estado português, to especial mediante o direito à propriedade os contatos com os neobrasileiros, inclusive coletiva terras, isenção tributos, gratui- com declaração das chamadas "guerras jus- de de dade dos serviços religiosos, administração es- tas" (v. Paraíso, neste volume; Carvalho, 1977; pecífica diferentes agentes sociais Paraíso, 1982), na sua quase totalidade, os ín- exercida por civis ou religiosos, que geriam os bens das iil- dios da região viviam aldeados ou tinham já vivido em aldeamentos. Nessa condição deias e intermediavam as requisições de índios nas atÍN idades encontravam-se grupos identificados sob et- para o trabalho e participação nônimos diversos (Pipipã, Umã, Xokó, Vouê) militares. Além disso, um acer\o de experiên- que vagavam pelos sertões, sendo aldeados no cias comuns, cotidianamente \i\idas e histo- início do século em Pernambuco (Frescaro- ricamente construídas e reconstruídas, tendo

lo, 1883 [1802]). Ainda na década de 1850, le- como referências as tradições cultuniis dos vas de índios que tinham abandonado as al- grupos indígenas aí reunidos, tornava os habi- deias transitavam entre as fronteiras da Paraí- tantes dos aldeamentos diferentes dos regio- ba e do Piauí, vivendo de caça e coleta, nais com quem \i\ iam em contato. mudando constantemente seus acampamen- Desses iildeamentos, os \ iajiuites europeus tos, sendo quase dizimados pelos fazendeiros deixavam descrições quase sempre sombrias, cujos rebanhos atacavam (Moreira Neto, enfatizando a decadência e a apatia das popu- 1971:299). lações iildeadas, marcadas pelo contormismo Nos meados do século XIX elevava-se a mais e aceitação de um destino inexorá\el de ani- de meia centena o número de aldeamentos es- (luilamento. Nesse sentido é exemplar o rela palhados pelas várias províncias nordestinas, to de Gardner sobre o ;ildeanuMito da ilha de conforme indicações dos mapas estatísticos da São Pedra localizado à mai"gem sergipana do Secretaria de Estado de Negócios do Impé- baixo São Francisco: o NORDESTE BRASILEIRO 44'

"O número de famílias que habitam a ilha nal com participação de juízes, sacerdotes e chega a cerca de quarenta e são, em maior par- pequenas autoridades, mas majoritariamente te, índios civilizados. Na tarde de nossa che- constituído de índios aldeados, lavradores e gada apresentei-me ao seu capitão [...]. Por ele moradores de engenho, que se batiam pela vol- soube que os índios da ilha estão diminuindo ta de d. Pedro I ao governo do Brasil. A partir gradativamente seu número. Suspirou o velho de 1832, embora o discurso restaurador per- ao dizer-me que não estava longe o dia em que sistisse, a camada dominante refluiu, enquan- sua raça estaria extinta ou, pelo menos, mes- to o movimento rebelde se ampliava com a clada com os outros habitantes" (Gardner, participação popular, inclusive em sua lideran- 1975:70). ça. Dado como terminado em 1836, é segui- Da leitura do relato, que se alonga tratan- do por mais quinze anos de lutas, período du- do da fome e da miséria entre os índios, a ima- rante o qual negros e escravos, reunidos nas gem que fica é a de que as populações aldea- matas, faziam ataques sistemáticos aos enge- das foram tão massacradas pela longa presen- nhos (Lindoso, 1983). A participação indíge- ça missionária e pela espoliação centenária, na nessa revolta, revelada desde a década de que nada restou da sua capacidade de reação. 60 pelas pesquisas de Manuel Correia de An- Não são mais alentadoras as visões passadas drade (Andrade, 1965), aponta para o amplo pelos relatos de outros viajantes (Spix e Mar- leque de alianças que leva os índios a dividi- tins, 1976; Koster, 1978; Tollenare, 1956). No rem suas forças de combate entre os corpos entanto, da documentação manuscrita reuni- militares insurrecionais e as tropas governa- da nos arquivos, sobretudo estaduais, emerge mentais, ou mesmo a mudarem de lado ao lon- uma série de evidências que mostram os ín- go do processo da revolta. dios aldeados interagindo de diferentes modos De Jacuípe, aldeamento surgido no norte com as demais forças sociais, não simplesmen- de Alagoas após as guerras contra Palmares, te como coadjuvantes emudecidos, mas como onde o movimento rebelde teve a mais ampla atores cujos papéis e falas vão sendo gradati- aceitação desde o início, a revolta se alastra e vamente retirados do silêncio dos arquivos. atinge outras aldeias cujos habitantes a ela ade- Nessa perspectiva, conflito, negociação, aco- rem, enquanto outras, como Palmeira dos ín- modação ou cooptação fazem parte de uma vi- dios. Porto Real de Colégio e Santo Amaro, em vência multifacetada, em que velhas institui- dado momento, não atendem à convocação do

ções, leis, ou mesmo elementos da cultura ma- presidente da província para lutar contra os se- terial sobrecarregados de sentido, são invoca- diciosos (Lindoso, op. cit.:398-9). dos em diversos contextos, constituindo-se nas No aldeamento de Barreiros se cindem as formas pelas quais essas populações marcam alianças que seguem mais ou menos os gru- sua presença na história, presença que aqui pamentos étnicos aí reunidos. Os Kariri se jun- enfocaremos mediante a participação indíge- tam aos cabanos enquanto os índios de língua na em movimentos armados e em sua recor- geral se integram às hostes da repressão. As rência às autoridades para invocar o cumpri- alianças porém não são fixas. Fazem-se e mento das leis. refazem-se ao longo da luta. Desse modo, os índios de Jacuípe, que desde a primeira hora RECORRENDO ÀS ARMAS estiveram ao lado dos cabanos, rendem-se em Na primeira metade do século XIX, período 1835, e a partir de então retornam à sua al- marcado pela flutuação das formas de ad- deia e vão ser utilizados pelos senhores de en- ministração dos aldeamentos (Carneiro da genho e pelos comandos militares do governo Cunha, 1987), uma série de revoltas ocorreu na localização e destruição dos mocambos de no Nordeste, envolvendo populações indíge- negros conhecidos como papa-méis, afinal des- nas. Em Alagoas e Pernambuco, entre 1832 e baratados em 1850 (Lindoso, op. cit.:402-25). 1835, parte dos índios aldeados participaram Ao aderirem à revolta os índios de Jacuípe da chamada "Guerra dos Cabanos", revolta — que na primeira metade do século XIX ti- que não foi só de índios, mas na qual se en- nham no corte da madeira uma atividade fun- volveram diferentes segmentos étnico-sociais. damental — enfrentavam já em 1830 a amea- Senhores de engenho das duas províncias nor- ça de serem desaldeados, numa política em destinas detonaram um movimento insurrecio- que os interesses regionais dos senhores de

.IV "..1». 44S IIISTOKIA DOS ÍNDIOS NO BKASU.

terra, sobejamente representados nas institui- Na província de Sergipe, o aldeamento de (jões de poder local, anieaçaNam a continui- Pacatuba, resultante de uma antiga missão fun- dade dos territórios indígenas. Pouco antes de dada pelos capuchinhos no fim do século X\'II

aderir à re\olta dos cabanos, o capitão-nior da no baixo São Francisco, \ ivia no primeiro quar- aldeia se dirigira ao imperador, para reclamar tel do século XIX intensa agitação que culmi- sobre a posse da terra (Proposta apresentada nou, em 1826, com a invasão da cadeia públi- ao Conselho Geral da Província e ofício do ca da vila Nova (Mott, 1986). Segundo corres- cap-mor dos índios de Jacuípe, 1830, apud An- pondência de autoridades locais, duzentos a tunes, 1984:44, 86). trezentos índios teriam tomado parte no assal- Também os índios da vila de Santo Antó- to, soltando os presos, entre os quais se encon- nio do Jardim, no Ceará, aderiram ao discur- trava o seu principal líder, destinado a seguir so restaurador do padre António Manuel e de compulsoriamente para o Rio de Janeiro, a ser-

Pinto Madeira, integrando-se, em 1832, às fi- viço da Marinha. .\ invasão da cadeia, que te-

leiras rebeldes de mais um movimento que se ria provocado "grande motim na vila", foi a cul-

batia pela volta de Pedro l ao trono (Monte- minância de uma longa desavença entre índios negro, 1989). Poucos anos mais tarde, cerca de e proprietários de um engenho vizinho ao al- sessenta casais de índios de vila Viçosa, na ser- deamento, com quem tinham velhas conten- ra de Ibiapaba, no Ceará, desertaram da po- das por questões de terras. Com o apoio das voação para se reunirem aos rebeldes da Ba- autoridades provinciais, um membro da famí- laiada, a\aliando o presidente da província que lia do senhor de engenho conseguira o cargo o engajamento voluntário dos índios em mo- de diretor da aldeia, em substituição ao capu- vimentos armados contra o governo era o re- chinho que até então a dirigira. Os índios

sultado das pressóes sobre suas terras, acres- recusaram-se a aceitar o novo diretor e, para centando que razoes semelhantes os teriam le- fazer frente às investidas do poderoso senhor vado a se aliarem aos rebeldes no Maranhão de terra, aliaram-se a outros proprietários de e no Pará (Souza Martins, relatório de 1840, engenho, que os teriam ajudado na invasão da apud Moreira Neto, 1971:288-9). cadeia e na libertação do principal líder indí- Outros movimentos de rebeldia ocorreriam gena. Além de proprietários rurais foram apon- entre os índios do Nordeste, ainda na primei- tados como aliados dos índios "desertores e fo-

ra metade do século XIX, sem vinculação com rasteiros vindos do Norte ', abrigados na aldeia movimentos restauradores de caráter mais ge- (Dantas, 1986).

ral. Embora fossem mais localizados, não se Esses movimentos acima referidos, que circunscreveriam apenas aos limites da aldeia, exemplificam a participação de índios em re- envolvendo de alguma forma segmentos so- voltas mais gerais ou em movimentos armados ciais diversos. No aldeamento de Pedra Bran- gestados no interior das próprias aldeias, ao ca (Bahia), os Kariri-Sapuyá — pressionados tempo em que fazem um contraponto à ideia pela expansão da cultura fumageira que em- de índio soldado sempre a serv iço do Estado, purra a frente pastoril para os territórios indí- refletem uma variedade de situações em que genas e insatisfeitos com seus diretores — índios aldeados há séculos fazem alianças com revoltam-se em 1834. Os documentos oficiais, diferentes sujeitos sociiiis e pegiun em iunnas, sobretudo a correspondência enviada aos pre- insurgindo-se contra as autoridades e a ordem sidentes de província, dão conta que os índios vigente. Diante desse quadro duas questões se "amotinados excedem a mais de trezentos ho- colocam: como a população indígena era ar- mens armados e entre eles se acham muitos regimentada e organizada piui\ as lutas? Qu;il que não são índios", sugerindo desse modo o significado de alianças tão díspaivs abran- alianças entre índios e moradores da região. gendo senhores de engenha escravos, lav ra- Atacados no aldeamento, os índios fogem pa- dores, forasteiros, desertores e tantos m;us?

ra as matas, onde continuam o movimento re- .\ primeira questão remete à admiiiistração

belde engrossado por "outros grupos também dos iildeiunentos e, nuiis particulannente, à uti- desprovidos de terras, como escravos fugitivos lização de luitigas instituições orgiuiiziUiv-.is de e pardos", advertindo os encarregados da re- caráter militar, impostas a estes, ainda no pt^ pressão para o perigo de aí instaliu^-se uma "se- ríodo colonial, objetivando transtorma-los em gunda guerra dos cabanos" (Paraíso, 1985). reservu de homens em armas destinados a dar o NOKDF.STE BRASILEIRO 449 combate a índios ainda não submetidos ao do- de homens armados — que em muitos casos mínio colonial, negros rebeldes ou estrangei- se elevava a mais de uma centena de índios ros que tentavam se fixar na terra. O sistema que, além de arcos e flechas, dispunham de de ordenanças, réplica do esquema de orga- armas de fogo — tinha algum poder de deci- nização militar pelo qual se regiam as demais são e de negociação. Ele era o interlocutor dos povoações, foi aplicado aos aldeamentos na que pretendiam usar a força indígena a seu fa- tentativa de aproveitar os restos da hierarquia, vor. Vejamos alguns exemplos. Após a Inde- consideração e respeito que, apesar da sujei- pendência do Brasil, grupos regionais descon- ção, restava ainda entre os índios. Abrangen- tentes com a nova situação, depois de terem do todos os homens de dezoito a sessenta anos, espalhado no aldeamento de Palmeira dos ín- compreendia uma hierarquia que, tendo no to- dios o boato de que viria uma grande "ban- po o capitão-mor da aldeia, desdobrava-se nu- deira" para destruí-los, dirigiram-se ao capitão- ma série de atribuições exercidas em escalas mor dos índios e o convidaram para rebelar- decrescentes de poder e prestígio pelo sargen- se com os mesmos contra o diretor atual que to-mor, capitães, alferes que constituíam o cor- lhes seria falso, enquanto eles, juntamente com po de oficiais. Criadas com funções militares, portugueses, lhes dariam apoio. E o capitão, as ordenanças desempenhariam importante ouvindo essa proposta, se retirou para seu sí- papel na manutenção da ordem e na adminis- tio (Ofi'cio ao governo da província de Alagoas, tração dos aldeamentos, fazendo contraponto 1823, apud Antunes, 1984:135). Numa das ver-

à autoridade do padres (Prado, s. d.:126). Su- sões sobre o início da revolta dos cabanos, bordinadas, como as demais, ao capitão-mor consta que o presidente da província mandou ou ao governador da capitania e, mais tarde, fazer um recrutamento em massa dos índios ao comandante das armas, essas formas de or- da povoação de Jacuípe "sem audiência, nem ganizações militares indígenas dependiam acordo com o cap-mor destes", que protesta, também do diretor da aldeia, de quem rece- sendo preso de emboscada e assassinado (Es- biam instruções e ordens. Essa dependência píndola apud Lindoso, 1983:119). O silêncio de se acentuou quando os oficiais indígenas, que um e o protesto do outro capitão-mor prefi- antes recebiam patente do rei, passaram a ser guram momentos de decisão de quem tinha simplesmente nomeados pelos diretores de al- sob seu comando homens em armas e a capa- deia. O Diretório pombalino recupera essa for- cidade de colocá-los em marcha. Embora te- ma de organização, que alguns autores consi- nham sido frequentemente cooptados pelos deram vazia de poder, resumindo-se a simples administradores e utilizados, em diferentes aparato externo e cerimonial, esgotando-se em momentos do século XIX, para atender às con- insígnias e emblemas, e motivo de ridicula- veniências do governo — como ocorreu nas rização. lutas de independência e na Guerra do Para-

Essas organizações vigiam em muitos aldea- guai (Antunes, 1984:127-42) —, não se pode mentos do Nordeste na primeira metade do ignorar a presença desses titulares à frente de século XIX. Em Pacatuba (Sergipe), ainda em organizações que representavam uma virtual 1825, havia duas companhias e os postos de possibilidade de aliar-se a segmentos sociais oficiais estavam todos preenchidos por índios, descontentes, ou mobilizar-se internamente sendo por meio dos seus titulares que se ar- para reivindicar direitos secularmente reco- regimentavam os nativos para as atividades mi- nhecidos, mas sempre desrespeitados. litares (Dantas, 1986). No aldeamento de Pal- Quanto às alianças, certamente são aque- meira dos índios, em Alagoas, as ordenanças las firmadas com proprietários rurais, não ra- seguiam as linhas dos grupamentos étnicos aí ro com senhores de engenho, as mais desa- aldeados, de modo que os Xukuru e os Kariri fiadoras. Referindo-se a elas, Capistrano de formavam companhias separadas, cada uma Abreu dizia que muitos índios das aldeias com o seu corpo de oficiais (Ofício ao gover- acostaram-se "à sombra de homens podero- no da província de Alagoas, 1823, apud Antu- sos, cujas lutas esposaram e cujos ódios servi- nes, 1984d34-5). Quer nos parecer que essas ram" (Abreu, 1954:216). .\presentada desse organizações não eram tão desprovidas de po- modo, a ação dos índios aparece como reflexo der. Que o capitão-mor de um aldeamento, em dos interesses dos senhores de terra. Na pers- geral índio, tendo sob suas ordens um efetivo pectiva daqueles, porém, tais alianças pode- l 450 HISTORIA Oí)S ÍNDIOS \0 BKASIl.

riam ser muito mais (jue isso. Alianças são, e a quem deviam, em contrapartida, obediên- quase sempre, circunstanciais e se fazem em cia e fidelidade. Isso ajuda a lançar luz sobre função de uma combinatória de elementos di- a adesão de índios aldeados às revoltas restau- \ersos em que a contraparte a ser barganhada radoras do período regencial, não só no Nor- se recoloca a cada momento. Alianças desse deste como no Norte, por meio da Cabana-

tipo fonuii muitas vezes a forma de garantir um gem. A volta de d. Pedro I para Portugal se

eciuilíl)rio de forças ante as investidas cada vez configuraria para eles como orfandade, sobre- mais ousadas de homens poderosos que inva- tudo num momento crucial de fortes investi- diam territórios indígenas. O caso de Pacatu- das dos senhores locais sobre o patrimônio in- ba, já referido, é exemplar no sentido de mos- dígena. trar como índios, apro\eitando-se das inimi- O discurso restaurador repercutiu entre po- zades entre senhores de engenho em disputa pulações que viam na realeza a possibilidade pelo poder, por meio da aliança com um se for- de garantir seus direitos sobre as terras. Mui- taleciam contra o outro. Não só nas escaramu- to significativamente, quando os índios de Ja- ças cotidianas enfrentadas nas vizinhanças da cuípe que haviam aderido à guerra dos caba- cidade, mas também nos encaminhamentos nos, abandonando as fileiras insurrecionais, se em nível institucional e burocrático das ques- apresentavam nos acampamentos militares do tões, na medida em que a posição social dos governo recebiam "machados para suas tare-

seus aliados lhes facilitava o acesso aos canais fas madeireiras, um retrato de d. Pedro II, uma do Estado, este um interlocutor sempre pre- bandeira imperial e uma imagem de são Cae- sente. tano, que era o padroeiro do arraial" (Lindo-

so, 1983:424). Procurava-se, desse modo, subs- O RECURSO ÀS AUTORIDADES tituir a figura do imperador ausente, a essa al- A transferência da Corte portuguesa para o tura já falecido, pela do seu substituto legítimo Brasil no início do século XIX trouxe a pessoa ainda criança.

do rei para perto dos seus súditos. Esse deslo- Ao longo do extenso reinado de Pedro II camento espacial, seguido da aclamação de cristalizou-se no imaginário dos índios a figu-

d. Pedro I como imperador do Brasil, serviu ra quase messiânica do imperador, a quem a para avivar entre os índios a figura do rei, lon- tradição oral de muitos grupos atuais do Nor- gamente trabalhada no imaginário dessas po- deste atribui a doação das terras que hoje ha- pulações, como um senhor todo-poderoso a bitam (Carvalho, 1984:176; Dantas e Dallari. quem deviam obediência. Em nome do rei fo- 1980:170; Mota, 1989:65-8; Moonen. 1989:18). ram feitas as guerras de conquista, em nome Invocando a "pateniiil proteção" e muitas ve-

do rei os índios foram aldeados, em nome do zes reportando-se às leis, os índios recorreriam rei — a quem deveriam mostrar fidelidade — ao imperador mediante vários escritos, ou ten- lutaram com freqiiência crescente. Em nome tavam colocar de viva voz suas queixas e rei- do rei lhes fora dado o direito sobre pedaços vindicações. Nesse sentido, são elucidativ\is as

de terras, cujos títulos eram assinados pelo rei. repetidas tentativas de índios de vários aldea- A ele recorriam, pois, quando suas terras eram mentos nordestinos de terem um contato pes-

invadidas. Enquanto no século XVIII tais pe- soiíl com o imperador Pedro II. durante a vi- didos eram constantemente feitos pelos mis- sita que ele fez à região no final de 1859 e iní- sionários, no século XIX avulta o número de cio de 1860. Nessa viagem visitou ;ilgims

petições em que os próprios índios se coloca- aldeamentos (Pedro II, 1860) e, segimdo a tra- vam como autores das ações. Embora assina- dição oral dos índios, teria doado ou confir- dos muitas vezes "em cruz", o cabeçalho de mado terras às aldeias. Com o mesmo objeti- tais escritos não deixava porém dúvida sobre vo de falar diretamente com o imperador, m- quem se afirmava como emissor dos documen- dios empreenderiíun viagens ao Rio de );uieiw tos: os índios, que falavam em seu próprio no- (Dantas e D;illari, 1980:170-1). Essa pratica ^x»- me. Dirigiam-se quase sempre ao imperador, rece ter sido bastante treciíiente, a ponto de e o faziam pedindo a sua "paternal proteção". motiviu- o governo centnil a env iar cin.nilar aos E como pai que a figura do imperador emer- presidentes de província determinando que ge em grande parte dos documentos emitidos fossem proibidas "sob o único fundamento de pelos índios. Pai de quem esperavam proteção representarem ao governo imperi;U a bem de o NORDESTE BRASILEIRO 451 jjj^^^H

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Indios Kiriri, Bahia. 11 i Ritual do Toré. seus direitos e interesses, o que mais facilmen- terras. Esta é a questão crucial no século XIX, te podem fazer perante o governo provincial" questão que termina por se imbricar com a (Circular do MNCOP, 14/10/1870, APES, Gl-417). mestiçagem e a aculturação. Ela não era contudo nova. Já em 1811 o "prin- Desde o século anterior, com a política de cipal" da aldeia de São Gonçalo, no Piauí, fo- Pombal, tinha havido forte incentivo aos casa- ra ao Rio de Janeiro apresentar pessoalmente mentos inter-raciais e outras formas de inte- sua queixa ao príncipe regente, que, "depois gração entre a população indígena e os regio- de ouvi-lo, o deferiu benignamente, enchen- nais. A título de arrendamento ou simples in- do-o de honras e presentes" (Mott, 1985:121). vasão, as terras dos aldeamentos eram, com Se o imperador era o alvo principal dos pe- freqiiência, ocupadas por senhores de enge- didos dos índios, muitas autoridades e buro- nho, criadores de gado ou lavradores. Com a cratas provinciais e municipais colocavam-se criação do Regulamento das Missões (Decre- como intermediários das suas reivindicações. to 428, de 27/7/1845), instrumento legal que Aos juízes e escrivães requeriam cópias das es- dispõe sobre a administração dos índios e seu crituras e/ou medições das terras do aldeamen- patrimônio, ampliou-se o espaço para os pro- to registradas nos livros antigos dos cartórios, prietários rurais assumirem a direção das al- documentos de que precisavam para provar deias (Santos, 1988), enquanto aumentava a in- seus direitos. Aos presidentes de província, in- tensidade dos conflitos tendo como fulcro a termediários entre o poder central — repre- posse das terras indígenas. A partir da segun- sentado pelo imperador — e o poder local — da metade do século, sobretudo, os índios dos representado pelos proprietários rurais — pe- aldeamentos passam a ser referidos com cres- diam justiça, lembrando-lhes sua condição de cente freqiiência como índios "misturados", delegado do trono (Representação dos índios agregando-se-lhes uma série de atributos ne- de Água Azeda, 20/9/1829, APES, 01-613). gativos que os desqualificam e os opõem aos Dirigindo-se às autoridades, os índios tinham índios "puros" do passado, ideiílizados e apre- como referência as leis que lhes garantiam cer- sentados como antepassados míticos. tos direitos. Nesses discursos de reivindicação A "mistura", vista como resultado do con- faziam uso de uma linguagem que não raro in- vívio dos índios com os brancos, efetuada no corporava e procurava neutralizar os argumen- plano biológico e cultural, desembocaria na tos daqueles que tentavam se apossar de suas ideia de assimilação, na transformação do íii- 452 IIISTOHIA DOS INOIDS \t) BKASIl

(lio em não-indio. O apelo à mistura como ele- cimento de que os engenheiros enviados pelo mento diluidor se exacerba no decorrer da se- governo central haviam chegado à província ginida metade do século. Isso tem evidente- para medir as terras que ocupavam, "reunidos mente relação com as ideologias raciais de que em grande número e armados de foices, fle- se lançaria mão para explicar o Brasil, nação chas, e arcos, à maneira de índios, com gran- emergente onde brancos, negros e índios eram des vozerios e insultos, começaram a fazer di-

\ istos, por muitos, como ingredientes destina- ferentes e grandes roçados nos terrenos de que dos ao "cadinho racial", mecanismo de redu- tratam os abaixo firmados, com o único fim, ção do múltiplo ao uno. Que encontra respal- segundo deles mesmos se ouvia, de mostra- do na hu^ga tradição da política indigenista, que rem que as terras da chapada lhes pertenciam" via o índio como ser destinado a deixar de se- (Representação de proprietários de engenho,

lo, e as aldeias como pontos de passagem nes- 1872, APES, pac. 418). sa caminhada exolutiva. Mas é significativa Os documentos deixam, pois, perceber que também sua relação com o conjunto de dis- os índios se fizeram presentes na história du- positivos jurídicos, que, a partir da Lei de Ter- rante o século XIX, por meio de diferentes ex- ras (1850), disciplina a propriedade fijndiária pedientes que incluíam desde os mov imentos no Brasil. Logo em seguida a esta, o governo armados até o apelo às autoridades para invo-

disporia sobre os aldeamentos, mandando "in- car o cumprimento de regras violadas. E o fi- corporar aos Próprios Nacionais as terras dos zeram levando em conta as possibilidades de índios, que já não vivem aldeados, mas sim alianças diversas, concepções sobre a figura do confundidos com a massa de população civi- imperador, discursos da lei e o potencial iden- lizada" (Aviso do Ministério dos Negócios do tificador de certos itens culturais, secularmen- Império, 21/10/1850, APES, pac. 425). Esse dis- te associados aos índios. Nesse complexo jogo positivo legal, interpretado do modo que con- de forças não conseguiram, contudo, reverter vinha aos interesses regionais, fez com que a o processo de extinção dos aldeamentos, por população dos aldeamentos fosse insistente- meio do qual se legalizava a espoliação de suas mente apresentada como "misturada" e "mes- terras. No final do século, antigas proprieda- tiça", o que culminaria com a negação da exis- des coletivas foram doadas a Câmaras Muni- tência de índios. Desse modo, mediante a mis- cipais, outras loteadas entre famílias indígenas, tura de raças e culturas, descaracterizar-se-iam ou transformadas em propriedade particular os sujeitos de direitos históricos, dentre os de fazendeiros, que delas podiam se apropriar quais o mais relevante era a posse da terra. por diversos meios. No entanto muitos dos al- Com base nas informações dos presidentes deamentos que foram legiilmente extintos re- de província de que não havia mais índios, mas conquistaram o reconhecimento dos seus di- tão-somente populações "misturadas", muitos reitos sobre terras e uma identidade étnica di- aldeamentos seriam extintos em todo o Nor- ferenciada. deste. Em algumas províncias extinguir-se-iam A MOBIUZAÇÃO CONTEMPOR\NEL\ todos de uma só vez, enquanto novos disposi- tivos iriam regulamentando as terras dos aldea- Nos primeiros anos do século XX prev^\Iecerá mentos (Carneiro da Cunha, 1987). Diante da uma espécie de Viizio institucioniil. As Dire- gravidade da situação, os índios continuam re- torias de índios haviam sido extintas e a cons- correndo ao imperador, ao mesmo tempo em tituição republicana de 1891 não menciona os que, em nível local, utilizam outras estratégias, índios mas tnuisfere, mediiuite o seu iuiigo 64, tentando reverter o argumento que os desqua- para os estados federados as terras devolutas,

lificava. entre as tiuais se contaviuu, desde 1SS7, ;ls ter- Nesse contexto, aguçam sinais externos de ras dos iildeamentos extintos ^C;u-neiu> da

sua indianidade, reativando elementos da cul- Cunha, 1987:74). Todav ia, em que pese a omis- tura antiga com os quais procuram realçar as são, não se rompeu com a tradição do itHX"»- diferenças, marcar distintividade, exibir uma nhecimento dos tlireitos territoriais dos mdios,

"cultura do contraste" (Carneiro da Cunha, e, criado o Serviço de Proteção ao índio (SPl). 1979:36). Significativamente, índios da chapa- se prev è um entendimento com os estados pa- da, agrupamento constituído de aldeados mi- ra giuantir a posse dos territórios indígenas grados do Geru (Sergipe), ao tomarem conhe- (op. cit.:75). o NORDESTE BR/\SILEIRO 453

O SPI não se faria presente no Nordeste zada por este último, em Recife, em 1937, e imediatamente após a sua criação. Uma de- repetida no mesmo ano no Museu Nacional monstração eloquente de que o aludido vazio do Rio de Janeiro, constitui, nesse sentido, um institucional persistirá mais algum tempo é o marco nessa mobilização. Por meio dela. Oli- tratamento conferido aos bandos do sul da Ba- veira, ao tempo em que anunciava a existên- hia, predominantemente Pataxó, que urgia cia de povos indígenas na região, buscava dra- reunir para não criar óbices à lavoura cacauei- maticamente atrair aliados que tomassem "sob ra. Será o estado da Bahia quem disso se en- o seu valioso amparo e proteção [...] os rema- carregará mediante a criação da Reserva Pa- nescentes indígenas que ainda vivem em ter- raguaçu-Caramuru, em 1926, que abrigará, ras nordestinas" (1943:179-180). além dos Pataxó e Baenan, outros grupos de A figura de Rondon, de forma semelhante índios já aldeados, escorraçados de seus terri- ao que ocorrera com os imperadores no sécu- tórios por fazendeiros e colonos (Edelweiss, lo XIX, passa a se revestir de significado espe- 1971:277-80). O SPI só interviria no caso em cial, os índios a ele recorrendo freqiientemen- 1929, por intermédio do cel. Vicente de Pau- te para a resolução dos seus conflitos. Assim lo de Fonseca Vasconcelos, encarregado da ins- aconteceu com os Tuxá e os Pataxó meridio- talação dos postos de atração aos índios, e em nais, na década de 40. A gestão de Rondon à 1936, quando o capitão Moisés Castelo Bran- frente do SPI, conseqiientemente, pode ser co procederá a nova demarcação, para redu- creditado o início da reorganização das áreas ção da área original, em face das pressões dos indígenas, processo que será interrompido, for- fazendeiros arrendatários que nela haviam se malmente, nos anos 60 e só será retomado instalado. pouco mais adiante. Dessa época até os anos 70, dez postos in- Esse processo de reorganização, por outro dígenas seriam instalados no sertão, a partir lado, não pode ser adequadamente entendido do P. I. (Posto Indígena) Dantas Barreto para sem que se refira o contexto regional. E este os Fulniô, no final dos anos 20. Vale a pena é favorável à transformação das condições de referir brevemente à situação das terras des- produção tradicionais, predominantemente ses índios, de modo a se entender a sua pri- por meio da intensificação dos deslocamentos mazia. Elas lhes haviam sido concedidas por dos pequenos proprietários e moradores para uma Carta Régia de 1705, como meio de es- o Sul do país, o que ensejaria a concorrência tabelecer a paz após um levante, e em 1878 dos proprietários locais com aqueles do foram demarcadas e divididas em lotes (Ribei- Centro-Sul (Garcia Júnior, 1990:71). A região ro, 1970:55). Posteriormente, os regionais in- seria, desse modo, palco de relevantes trans- vocariam a suposta extinção dos aldeamentos formações sociais e políticas que contribuiriam e o Ministério de Agricultura interviria, en- para a redefinição de forças e alianças políti- viando um emissário da confiança do general cas (Carvalho, 1987:55). Assim é que as mas- Rondon, António Estigarribia. Comissão for- sas rurais, mediante a resistência ao processo mada por este, o estudioso regional Mário Mel- de expropriação de foreiros e moradores e da lo e um representante do governo de Pernam- aliança entre os pequenos proprietários e par- buco reafirmará os lotes familiares indígenas ceiros, reivindicarão o cumprimento da legis- mas institucionalizará a figura do arrendamen- lação trabalhista no campo e o direito à sin- to, assegurando a permanência dos estranhos dicalização, dentre outros (op. cit.:58). A cri- que à época ocupavam a reserva (Mello, ação da Sudene em 1959 intensificaria os in- 1929:842; Hernandez Diaz, 1983:49). vestimentos industriais, visando criar um cen- A referida participação de Mello no episó- tro autónomo de expansão manufatureira, e dio foi sumamente importante, do mesmo mo- transformar a economia agrícola da faixa úmi- do que a do padre Alfredo Dâmaso, que por da para produção de alimentos e a da zona longo tempo conviveu com os Fulniô (Dâma- semi-árida para a pecuária. Disso tudo resul- so, 1931), inaugurando uma prática de mobi- taria uma grande valorização das terras e o lização por parte de religiosos e intelectuais avanço do gado sobre as tradicionais áreas que prosseguiria no mesmo período com o pa- de agricultura de subsistência, bem como um dre Renato Calvão, na Bahia (Rosall)a, 1976) grande programa de rodovias, portos e ener- e Carlos Estevão de Oliveira. A palestra reali- gia, já em desenvolvimento desde o início da "

454 IIISTOKIA IX)S índios ND BUASll

década, com as obras da hidrelétrica de Pau- índios do Nordeste gradativamente deixariam

lo Atonso. as suas áreas de origem para participar das \ á- C) avanço das terras de gado, particularmen- rias reuniões então promovidas, e ao observa-

te, implicaria crescentes dificuldades para os dor externo não passaria despercebida a timi-

pequenos proprietários (Garcia Jr., 1983:223) dez inicial, que talvez possa ser imputada a e faria sentir os seus efeitos sobre as terras in- uma auto-resistência advinda da imagem ne- dígenas. No entanto, ao ser rompido o isola- gativa de "índio aculturado", construída pela mento sócio-econòmico e político, até então sociedade nacional e por meio da qual passa- experimentado, os canais de comunicação se riam a ser apreendidos ao final da conquista. ampliariam, interna e externamente à região, O forte sentimento étnico produzido se tra- e os índios, do mesmo modo que os produto- duziria na reivindicação dos seus direitos his- res não índios, alargariam as oportunidades de tóricos, notadamente o seu reconhecimento inserção económica mediante a migração nos como índios plenos e a posse das terras. E am- períodos de entressafra, e deparariam com no- bas as coisas passavam necessariamente, en- vas contradições. tão, pelo estabelecimento do posto indígena. Nos anos 70, aos dez postos indígenas ins- Aquela população estimada em 13 mil in- talados no período anterior — Fulniô (Pernam- divíduos ameaça aumentar, e já agora graças buco), Potiguara (Paraíba), Pankararu (Per- predominantemente à iniciativa indígena, o nambuco), Tuxá e Kiriri (Bailia), Xukuru que causaria inquietação e perplexidade da (Pernambuco), Kariri-Xokó, Xucuru-Kariri parte da Funai. Exemplo disso é o radiotele- (Alagoas), Kambivvá e Atikum (Pernambuco) grama "urgente confidencial" dirigido a Bra-

— se acrescentaria o P. I. Pataxó, no sul da Ba- sília pelo seu delegado regional de Recife, em hia. A população indígena estimada em 1975 1980: era de 13 mil indivíduos, número em muito "Face recentes ocorrências grupos se di- superior aos 5500 estimados por Galvão de- zem descendentes indígenas área esta DR e zesseis anos antes e com disposição política possibilidade processo tornar-se rotineiro \ir- para reverter o quadro sombrio em que esta- tude grande número caboclos todo Nordeste, va encerrada: "integrada na população regio- peço a V. Sa. laudo antropológico situação gru- nal, registrando-se considerada mestiçagem e po se intitula Capinawá cidade Buique este

perda de elementos culturais tradicionais, in- Estado [...] Acrescento, além dos dez postos in- clusive a língua" (Galvão, 1959:225). dígenas desta DR, apenas para os quais foi feita Por essa época a Funai já havia sido criada, programação financeira, esta unidade já con- adquirira certa visibilidade e seria dentro em ta mais cinco grupos: Truká, Cariri-Shocó da pouco submetida a significativa pressão polí- ilha de São Pedro, Waçu, Pankararé e Capi- tica. O contexto nacional, nas décadas de 70 nauá. Aguardo bre\ idade possível orientação e 80, seria marcado por relevantes episódios, esse Departamento sobre assunto" (Araúja que, conjuntamente, criariam as condiçóes pa- 1980, apud Sampiúo, 1986:89). ra a emergência de um dos mais, senão o mais, A orientação tão ansiosamente requerida complexo e criativo processo de mobilização não tardou a ser anunciada, sob a fornia de política indígena contemporânea. Em face do tentativa de restrição da definição de índia no que reagirá o Estado, tentando conter o ím- mesmo ano de 1980, quando a Funai preten- peto reivindicatório dos novos agentes sociais. deu "aplicar critérios de indianidade' piíra de- Dar-se-á, então, um movimento de ação/rea- cidir quem era e quem não era ukIío no Bra-

ção, protagonizado pelo próprio Estado, os ín- sil. O objetivo era triplo: suprimir direitos ter- dios e organizações civis não governamentais. ritoriais, eximir o Estado de algims tutelados Se não, vejamos: o Estatuto do índio é promul- e livriu^-se de lideranças indígeiuis incònuxlis gado em 1973, o Conselho Indigenista Missio- (Carneiro da Cunha, 1987:27). Claro está que nário é criado um ano antes e as associações os alvos preferenciais desses "critérios" eram de apoio à causa indígena a partir de 1979, no os índios do Nordeste. bojo da reação desencadeada pelo projeto go- A tentatixa espúria seria rechaçada pelos vernamental de emancipação dos índios. Fi- próprios índios, antropólogos e assiviações in- nalmente, em 1980, a União das Nações Indí- digenistas, e mais grupos emei-giriam. de nu>- genas (UNI) se organiza embrioniu-iamente. Os do que em 1986, entre a BiUiia e a ftinulx». dt^ o NORDESTE BRASILEIRO 455

zenove povos etnicamente diferenciados com- O que se viu, como já referido, desautori- punham uma população de 27 mil indivíduos zou o diagnóstico: as identidades, estreitamen- (Funai, 1983; Aconteceu, 1984 e 1985). Reali- te relacionadas à noção de territorialidade, se dade muito diferente, portanto, daquela pre- revitalizaram sob a égide dos empréstimos e conizada em 1970 por Ribeiro, que, após su- reelaborações das práticas e representações cinto relato sobre os grupos mais bem conhe- (Carvalho, 1984, 1988). Em outras palavras, os cidos, temerariamente concluía: "assim viviam índios tidos como "quase extintos" pareciam os seus últimos dias os remanescentes dos ín- tão-somente aguardar uma conjuntura favorá- dios não litorâneos do Nordeste que alcança- vel para ressurgir. ram o século XX. [...] simples resíduos, ilhados Do ponto de vista científico, a efervescên- num mundo estranho e hostil e tirando dessa cia registrada no tocante ao Nordeste faria mesma hostilidade a força de permanecerem crescer o interesse sobre esses povos indíge- índios. Pelo menos tão índios quanto compa- nas, embora desde pouco antes eles já consti- tível com sua vida diária de vaqueiros e lavra- tuíssem um objeto etnológico relevante para dores sem terra, engajados na economia regio- alguns pesquisadores. Em um primeiro mo- nal" (Ribeiro, 1970:56-7). Mas igualmente dis- mento, contudo, registrara-se um predomínio tinta, contrária mesmo àquela diagnosticada quase exclusivo dos Fulniô, objeto da atenção por Amorim, na primeira iniciativa de estudo de lingiiistas e estudiosos regionais; ou um in- dos povos atuais na região mediante a tentati- teresse mais propriamente incidental, mas va de formulação de um modelo de campesi- nem por isso irrelevante, como o demonstra- nato indígena (Amorim, 1975). Ao estabelecer do pelo "Projeto sobre o homem no vale do uma relação de causa e efeito entre a concen- São Francisco", coordenado por Donald Pier- tração da propriedade fundiária e a crescente son (Corrêa, 1987:46-7) e do qual resultariam pressão sobre os territórios indígenas, por si alguns trabalhos relevantes, especialmente os insuficientes, com a tendência à proletariza- de Hohenthal Jr. (1954, 1960). ção dos índios, concluirá também que já esta- Nos anos 70, além da monografia de Amo- índios Pataxó, ria étnica" em curso a "perda da identidade rim (1971), tentativa de aplicação da noção Bahia. Pesca do (op. cit.:l). de fricção interétnica (Cardoso de Oliveira, caranguejo. 456 msTORU nos índios no bkvsii I

1962). dar-se-á início a um trabalho coorde- ênfase na organização política desses poxos. nado de pesquisa sobre as populações indíge- Marco de uma preocupação mais geral com nas da Biiliia, criado em 1971 (Agostinho, 1979) essas questões é também, na regiãa o interesse e cujo objetivo iniciiil seria preencher a qua- por parte de pesquisadores ligados ao PETI do se completa lacuna acerca dos índios locali- Museu Nacional da UFRJ, que inclusive tem zados no estado. Esse progiama seria comple- propiciado a abertura de novas frentes de es- mentado, em outros centros da região, por le- tudo em Pernambuco e no Ceará. \antamentos e aniílises de documentação Isso posto, façamos uma última considera- histórica, como os de Dantas e Dallari (1980), ção acerca da situação dos povos indígenas no Paraíso (1985) e Mott (1985, 1986), e mais re- Nordeste. Eles c^ompõem hoje uma população centemente Medeiros (1981) e Pires (1990). de 40 631 indivíduos. Os onze postos existen- Um olhar sobre esse passado próximo pro- tes até a década de 40 mais que duplicaram, Nmelmente peniiite-nos concluir que o conhe- graças a uma intensa pressão sobre o Estado. cimento sobre os índios no Nordeste aumen- A retomada de parte da Reserva Paraguaçu- tou considera\elmente. Em face desse conhe- Caramuru, em 1982, pelos índios dela expul- cimento mais propriamente etnográfico já sos a partir dos anos 40, marcaria essa nova acumulado, é possí\el prosseguir com mais fô- etapa de mobilização com a instalação de no-

lego teórico, recobrindo áreas de interesse ain- vos P. I., que totalizam hoje 24 para igual nú- da muito lacunares, ou completamente inex- mero de povos indígenas. ploradas. Na Biiliia, o programa de pesquisa Aspecto importante dos anos mais recen- redenominado em 1990 Povos Indígenas do tes dessa mobilização é o evidenciado no ca- Nordeste Brasileiro orienta-se para uma maior so Tremembé, no Ceará, cuja trajetória polí- preocupação analítica no tratamento da iden- tica se relacionou mais estreitamente à igreja tidade e do território indígenas, para uma as- e ao Sindicato de Trabalhadores Rurais, por \ia sessoria mais direta aos povos indígenas, es- do nio\"imento pela Reforma Agrária, em \ez pecialmente relacionada à fundamentação his- de ao Estado. .\liás, essa nova mobilização pa- tórica requerida pela demarcação dos seus rece apontar mais particularmente para o Cea-

territórios (Reesink, 1984, 1988) e, mais recen- rá, onde, além dos Tremembé e Tapeba, mais temente, para no\os estudos etnográficos com conhecidos, cinco novos grupos são referidos.

NaE\S (3) V. Perrone-Moisés, "índios li\ res e índios escra- vos", neste volume.

(1) No presente, boa parte dos po\os indígenas na re- (4) Pela Carta Régia de 14/5/1633, Camarão tomou- gião concentra-se ainda na área de influência do bai- se capitão-mor não só dos Potiguara, dos quais era xo e submédio São Francisco, seja no sítio dos antigos principal, mas de todos os índios do Brasil (cf Porto

aldeamentos, como os Tuxá, Truká, Kariri-Xokó, Xokó, Seguro, s. d., apud J. H. Rodrigues, in Nieuhof, seja em áreas de refúgio nos Brejos (Pankararé, Pan- 1981:150). kararu) ou altos de serras próximos (.\tikum, Kambiwá). (5) Um Oliveira Ledo será objeto de uma C;irta Ré- (2) Para análises contemporâneas, recomenda-se Fer- gia de 16/9/1699, em que el-rei estranha que ele hou- nandes (1989); Carneiro da Cunha e Vi\eiros de Cas- vesse morto, a sangue fria \ ários índios .\riú ;ildea- tro (1985). dos junto aos Kariri (Barros, 1919:124).