VIRAMUNDO A FORÇA DA LITERATURA DE LÍNGUA PORTUGUESA • 33/39 100 rascunho AGOSTO/08

O jornal de literatura do Brasil

curitiba, agosto de 2008 • ano 9 • www.rascunho.com.br • próxima edição: 4 de setembro

Arte: Ricardo Humberto • Foto: Matheus Dias/ Nume Comunicação

EDIÇÃO ESPECIAL COM 40 PÁGINAS

A literatura me mudou. Sempre Caderno DOM CASMURRO “ que leio algo que me move, sinto que mudo. Mudo meu A pianista jeito de pensar. Trecho inédito do romance que Sérgio ANTÔNIO TORRES Sant’Anna está Paiol Literário • 16/17 ” escrevendo para o projeto Amores Expressos • 26

E MAIS inéditos de Alexandre Vidal Porto, Bernardo Ajzenberg, Jovino Machado, Lúcia Bettencourt, Luiz Paulo Faccioli, Marçal Aquino, Neuza Paranhos, Raimundo de Moraes, Decálogo ao jovem escritor Ronaldo Monte e Autores experientes dão “conselhos” a quem sonha dedicar-se à literatura • 6/8 Wilson Bueno. 2 rascunho 100 • AGOSTO de 2008

CARTAS VIDRAÇA [email protected] o jornal de literatura do Brasil fundado em 8 de abril de 2000 RASCUNHO 100 Luci Collin no próximo Paiol Literário Recebo e leio as edições do Rascunho nas ofi- ROGÉRIO PEREIRA A escritora curitibana Luci Collin substituirá Livia Garcia-Roza na pró- editor cinas do projeto Aqui Tem Livro, coordenadas xima edição do Paiol Literário, marcada para 13 de agosto, no Teatro Paiol, ÍTALO GUSSO pelo Instituto Arte Brasil, de Londrina. Desejo em Curitiba. Livia precisou cancelar sua participação por motivos pesso- diretor executivo vida longa e sucesso ao jornal no momento ais. Professora de Literaturas de Língua Inglesa e Tradução Literária na em que se comemora a 100ª edição. Na edi- UFPR, Luci é autora de livros de poesia como Estarrecer, Espelhar, ARTICULISTAS ção 99, valeu muito para nós jovens os artigos Affonso Romano de Sant’Anna Esvazio, Ondas e azuis, Poesia reunida e Todo implícito; e dos vo- Claudia Lage sobre as obras de , Mário de lumes de contos Lição invisível, Precioso impreciso, Inescritos e Vozes Eduardo Ferreira Fernando Monteiro Andrade e Monteiro Lobato. E foi muito le- num divertimento, recém-lançado pela Travessa dos Editores. Flávio Carneiro gal aprender mais sobre o poeta Manoel de José Castello Luís Henrique Pellanda Barros, de que gosto tanto. Luiz Bras Rascunho Luiz Ruffato Marcela Brisola • Londrina – PR 100 na Bienal Rinaldo de Fernandes

Dois mil exemplares deste centésimo número do Rascunho serão ILUSTRAÇÃO Parabéns ao Rascunho pelo número 100, pela distribuídos na 20.ª edição da Bienal Internacional do Livro, em São Marco Jacobsen qualidade do jornal! Osvalter Urbinati Paulo. O evento acontece na capital paulista entre os dias 14 e 24 de Ramon Muniz Anamaria Filizola • Curitiba – PR agosto. Lá, o jornal poderá ser encontrado no estande da Editora da Ricardo Humberto Tereza Yamashita Unicamp, parceira do Rascunho durante a feira. Parabéns para o Rascunho — o melhor jornal FOTOGRAFIA Cris Guancino literário do país. Os leitores agradecem. Matheus Dias Regina Iorio • Curitiba – PR Novas colunas SITE Além de um acréscimo de 8 páginas, o Rascunho 100 também traz Vinícius Roger Pereira Parabéns pela luta e pela conquista. novidades editoriais. Estréiam colunas nesta edição o jornalista curitiba- EDITORAÇÃO Mauro Pinheiro • Rio de Janeiro – RJ no Luís Henrique Pellanda e a escritora carioca Claudia Lage, autora do Alexandre De Mari livro A pequena morte e outras naturezas. Pellanda lança a seção PROJETO GRÁFICO Rogério Pereira / Alexandre De Mari Como assinante desse único jornal sério, democrático e de qualidade exclusi- Leituras cruzadas, na qual entrevista, todo mês, um convidado cuja obra vamente sobre literatura no Brasil hoje, fico muito feliz em contribuir pela ASSINATURAS não esteja diretamente ligada à literatura. O tema das conversas é a influ- Anna Paula Sant’Anna Pereira permanência deste foco de resistência que a gente sabe o quanto deve exigir ência da leitura no trabalho de profissionais de várias áreas — como de quem está à frente. Parabéns. IMPRENSA atores, cineastas, músicos, matemáticos, etc. Já Claudia assina a coluna Nume Comunicação Gerusa Leal • Olinda – PE Atrás da estante, uma série de crônicas e ensaios, breves e soltos, em que 41 3023.6600 www.nume.com.br a autora discorre acerca da literatura e de seu papel no mundo de hoje. Colaboradores desta edição FALE CONOSCO Adriano Koehler é jornalista. Cartas de Castello Alexandre Vidal Porto é autor do romance Matias na cidade.

Envie carta ou e-mail para esta seção com nome completo, endereço e telefone. Quem reestréia uma coluna no Rascunho 100 é o escritor José Cas- Álvaro Alves de Faria é jornalista, Rascunho tello. A partir desta edição comemorativa, Castello volta a publicar sua poeta e escritor. Em 2003, reuniu Sem alterar o conteúdo, o se reserva o direito de adaptar os textos. As toda sua poesia em Trajetória poética. correspondências devem ser enviadas para Al. Carlos de Carvalho, 655 - conj. Cartas de um aprendiz, seção em que analisa, informalmente, o livro de Andrea Ribeiro é jornalista. 1205 • CEP: 80430-180 • Curitiba - PR. Os e-mails para [email protected]. estréia de um autor brasileiro. Neste caso, o primeiro trabalho lido pelo Antonio Carlos Olivieri é formado em colunista nesta nova fase é Beijando dentes, de Maurício de Almeida. Letras pela USP e em jornalismo por exercício da profissão. É autor de livros paradidáticos e ficção infanto-juvenil.

Antonio Carlos Secchin é autor de MARCO JACOBSEN Revista Todos os ventos, entre outros. Bernardo Ajzenberg é autor de Ho- Portal Solaris mens com mulheres, A gaiola de Faraday, entre outros.

O primeiro número do Fabio Silvestre Cardoso é jornalista. Projeto Portal, a revista Portal Flávio Paranhos é Doutorando em Solaris, cuja tiragem é de apenas Filosofia (UFSCar). Autor de Epitáfio e coordenador da coleção de Filoso- 200 exemplares, traz contos que fia & Cinema da Nankin Editorial.

vão do universo da ficção científi- Gregório Dantas é mestre em teo- ca ao do fantástico. O projeto é ria literária, com estudo sobre a obra de José J. Veiga. Atualmente, é dou- encabeçado pelo ficcionista e torando na área de literatura portu- ensaísta Nelson de Oliveira. guesa contemporânea. Igor Fagundes é poeta, jornalista e Segundo os editores, “o projeto professor de Teoria Literária na UFRJ. Autor de Transversais, Sete mil tijolos e pretende ampliar o limite temático uma parede inacabada, entre outros. auto-imposto pela literatura, Ivana Arruda Leite é autora de Falo de abrindo as possibilidades para que mulher e Eu te darei o céu, entre outros. a arte da palavra se renove e saia Jovino Machado é autor de Fratura da mesmice em que se encontra”. exposta, entre outros. Julián Fuks é escritor e jornalista. Autor de Histórias de literatura e cegueira.

Lúcia Bettencourt é escritora. Ganhou Filosofia o I concurso Osman Lins de Contos, e cultura com A cicatriz de Olímpia. Venceu o prê- mio Sesc de Literatura 2005, com o Criada pelo Instituto de Forma- livro de contos A secretária de Borges.

ção e Educação (IFE), a revista Luiz Antonio de Assis Brasil é au- tor de O pintor de retratos, A margem Dicta&Contradicta é a mais recente imóvel do rio, entre outros. novidade no panorama cultural Luiz Horácio é escritor, jornalista e pro- brasileiro. Traz ensaios aprofundados fessor. Autor de Perciliana e o pássaro com sobre temas ligados especialmente às alma de cão e Nenhum pássaro no céu. Luiz Paulo Faccioli é escritor, autor artes, à literatura e à filosofia. Uma do romance Estudo das teclas pretas. de suas inspirações é a revista norte- Marçal Aquino é autor, entre outros, americana The New Criterion. Os de O invasor, O amor e outros objetos pontiagudos, Eu receberia as piores destaques da primeira edição são notícias dos seus lindos lábios. Além de ensaios de Bruno Tolentino e Luiz escritor, é jornalista e roteirista. Marcio Renato dos Santos é jornalis- Felipe Pondé. Mais informações: ta e mestre em literatura brasileira. [email protected] .br / 11 2837.1066. Mariana Ianelli é jornalista e poeta. Autora de Almádena, entre outros.

Michel Laub é autor de Longe da água, O segundo tempo, entre outros.

Miguel Sanches Neto é autor de Um TRANSLATO amor anarquista e A primeira mulher, en- tre outros.

Eduardo Ferreira Nana Martins é jornalista.

Nelson de Oliveira é autor de Ódio sus- tenido e Subsolo infinito, entre outros.

Neuza Paranhos é escritora e jorna- lista. Publicou a coletânea de con- tos Av. Marginal. Alquimia inversa e a lei da compensação Raimundo Carrero é autor de O amor não tem bons sentimentos, Somos pe- dras que se consomem, entre outros. O tradutor, como outros tipos de escritores, texto. A tarefa mais árdua será jogar o jogo das perdeu ali atrás. Ou recuperar, com diferentes con- Raimundo de Moraes é jornalista e é um ser assombrado por fantasmas. São muitos compensações. Ter a sensibilidade para fazer gi- soantes, a aliteração da estrofe anterior do origi- publicitário. Rodrigo Gurgel é escritor, crítico lite- os espectros que povoam os pesadelos e mesmo rar o caleidoscópio das línguas de forma a proje- nal. Ou, em prosa, reproduzir, com elementos rário e editor de Palavra, suplemento de literatura do Caderno Brasil do Le a mente desperta dos escritores. O bloqueio-pa- tar imagens que provoquem sensações semelhan- autóctones, o efeito sinistro, irônico ou humorís- Monde Diplomatique (edição virtual). rálise provocado pela impassibilidade — quase tes. Lidar com esse fantasma que exige, se não a tico de uma referência cultural do texto primeiro. uma afronta — da tela-página em branco; as dú- reprodução dos efeitos literários, sua substituição Nada disso se alcança sem arrojo e mesmo certa Ronald Robson é escritor e jornalista. Ronaldo Monte é escritor, psicanalis- vidas excruciantes sobre a receptividade do lei- por engenhos equivalentes — não exatamente nos pitada de petulância. Excesso de respeito pelo tex- ta e poeta. Autor Pelo canto dos olhos, Memória curta, Tecelagem noturna, tor, do mercado e da crítica. O desespero pro- mesmos locais do texto. to original pode resultar em tradução pífia — dig- Pequeno caos e Memória do fogo. vocado pelo cruzamento da infinita profusão de divisava a vigência da na do olvido de prateleiras obscuras. Brincar com Sérgio Sant’Anna é ficcionista, au- palavras com o espaço infinito do papel. “lei da compensação” em certos casos de tradu- esses fantasmas será talvez a melhor forma de exor- tor de, entre outros livros, O vôo da madrugada, A tragédia brasileira e 50 Para o tradutor, há assombrações mais assusta- ção: “um efeito perdido aqui, pode ser ganho cizá-los — ou mesmo de amestrá-los para tê-los, contos e 3 novelas de Sérgio Sant’Anna doras que estas: a sombra do autor, o peso do ori- acolá, explorando-se as latências e possibilidades cativos, como novos elementos literários. Sonia Coutinho é autora de Os ve- nenos de Lucrécia e O último verão de ginal, a imponência das cadeias de montanhas que da língua do tradutor”. Fazer essa contabilidade A compensação é parte dessa espécie de al- Copacabana, entre outros. separam línguas, eras e culturas — e que precisam não é exatamente um exercício fácil. Exige mais quimia inversa que deve fazer o tradutor: trans- Vilma Costa é doutora em estudos ser transpostas, muitas vezes a duras penas, por esse que uma máquina de calcular. Exige domínio das formar o ouro do original em mero outro metal literários pela PUCRJ e autora de Eros na poética da cidade: aprendendo transportador de textos, idéias e sensações. línguas, sensibilidade literária, paciência para a na língua de chegada. Difícil replicar o brilho do o amor e outras artes.

Um dos fantasmas é o desafio de reproduzir, pesquisa, grandes doses de criatividade. E, talvez original, mas que seja o novo metal igualmente Wilson Bueno é autor, entre outros, em língua estranha, efeitos originais de um autor ins- acima de tudo, coragem de ousar. polido. Já não seria pouco. Burilar o texto como do romance A copista de Kafka. pirado. Efeitos literários são mais que artifícios esté- O ofício do tradutor não está muito associa- o teria feito o próprio autor (embora nem todos rascunho ticos. São trabalhados com cosimento de engenhos do à ousadia. Mais comum é vinculá-lo à humil- o façam). Burilar o texto como nem mesmo o é uma publicação mensal da Editora Letras & Livros Ltda. sonoros (não necessariamente pronunciados), com- dade e à fidelidade (mesmo que não se saiba pre- autor mais esmerado o faria. É exigir demais. Nem Rua Filastro Nunes Pires, 175 - casa 2 ponentes emocionais e elementos formais e visuais. cisamente a quê). Mas para compensar é preciso mesmo o melhor tradutor o faria: repassar, revi- CEP: 82010-300 • Curitiba - PR (41) 3019.0498 [email protected] A parte mais difícil do trabalho do tradutor ousar. E sem jogar o jogo da compensação é di- sar, repetir (cem vezes, se preciso) o jogo da com- www.rascunho.com.br talvez não seja entender o original; talvez não seja fícil fazer boa tradução literária. Compensar sig- pensação — depurar, em cem destilações, até al- tiragem: 5 mil exemplares saber como trasladar o original a seu novo con- nifica restaurar dois versos adiante a rima que se cançar transmutação perfeita.•r 100 • AGOSTO de 2008 rascunho 3

e contos reunidos, faz em sua leitura críti- ca da obra de Noll um apanhado de eixos temáticos ou sentimentos caracterizadores da maioria dos personagens dessas narrati- A linguagem va. De certa forma, considera-os “um úni- co protagonista que muda de pele... mas se mantém idêntico na humanidade que nos vincula a ele”. Afirma: “Noll insere a expe- riência individual e anônima do exílio, da errância, do abandono, da mendicância e sagrada do corpo da desqualificação na nossa vivência cole- tiva de modernidade”. Dentro do enfoque de desqualificação encontra-se o anonima- Em ACENOS E AFAGOS, João Gilberto Noll demonstra to e suas conseqüências como manifestações da “grande decepção de uma modernidade mais uma vez a força de sua literatura inquieta e errante que ofereceu a todos a promessa da eman- cipação universal mas que não a cumpriu”.

VILMA COSTA • RIO DE JANEIRO – RJ veis. Estas duas vidas se diferenciam na evi- Verdadeiro senhor dência dos fatos e ganham rumos próprios, Dentre tantas negativas, uma afirmativa Acenos e afagos, o mais recente romance mas não se separam em capítulos distintos. se destaca: “Sexo, o meu sexo sim: o meu de João Gilberto Noll, apresenta ao leitor sexo está livre de qualquer ofensa, e é com discussões que já vêm sendo esboçadas em Longuíssimo parágrafo ele-só-ele que abrirei caminho entre eu e tu, outros textos anteriormente publicados sob A estrutura única e ininterrupta do texto aqui”. O corpo em sua sexualidade, sem pe- diversos aspectos. Trata-se de uma narrati- se justifica pelo fato de o enredo, apesar de cado, sem juízo, acaba sendo o verdadeiro va em primeira pessoa, cujo narrador-per- relevante, cheio de surpresas e suspense, ad- senhor e condutor desta que o narrador de- sonagem discorre sobre sua trajetória de quirir um caráter secundário em relação ao signa epopéia libidinal. É o ponto nevrálgico vida ou vidas, já que morre e ressuscita, ten- resto do projeto ficcional. Do ponto de vista da escrita desse sujeito, sua afirmação en- do como eixo o caminho do corpo, em factual, o real e sua representação são quanto ser, se não autônomo, pelo menos suas errâncias, desassossegos e descobertas. irrelevantes frente à busca simbólica de sen- desejante e possuidor de uma radical hu- O narrador apresenta-se como um fazen- tidos, sempre provisórios, parciais ou absur- manidade. A violência que caracteriza o ato deiro sem muito talento para o ofício, mas dos. O fio de sustentação da narrativa não é Acenos e afagos erótico sexual permeia todo texto em suas que vai tocando os negócios, vivendo com a história, propriamente dita, vivida pelo João Gilberto Noll transgressões e gozos. Nisso o personagem Record se reconhece, ou melhor, encontra a lingua- mulher e filho adolescente. Em paralelo, sujeito, mas como a voz compulsiva do per- 208 págs. mantém uma vida de prazeres fortuitos, atra- sonagem, sua dilaceração emocional, física gem mais próxima para se saber e se consti- ído por relações homoeróticas ocasionais e e identitária inscrevem-se nessa história. tuir em seus abismos e labirintos. sem maiores envolvimentos. Guarda, en- Todo romance, composto com cerca de 200 Sexo e busca de completude através da fusão erótica com o outro, beira o plano do tretanto, como reminiscência ou esperança páginas, é constituído por um único e que essa ação se deixa contar. Opera-se, en- Sagrado, com ele dialoga e, muitas vezes, de concretização uma paixão por um cole- longuíssimo parágrafo que se estende do iní- tão, a transgressão aos códigos de conduta confunde-se. “A mão nos botões não é um ga de infância que chama de o engenheiro. cio ao fim, como se num só fôlego se preten- que aprisionam o sujeito numa vida artifici- gesto menos nobre do que o da mão sobre a O livro começa descrevendo o primeiro desse dizer de si, do outro, da vida e da morte. al e imposta por forças fora de si mesmo, Bíblia. Ambas tocam num fetiche, seja o embate ou luta corpo-a-corpo com esse com- Em socorro à necessidade de se situar num afastando-o de outros semelhantes com os botão, seja a Bíblia, para dar início aos tra- panheiro que marcou parte significativa de mundo das aparências e repressões está a quais precisa conviver . Importa recriar, a balhos de realimentar nossa fome infinita.” sua vida. Por longos anos o engenheiro palavra, sua linguagem, cantada por essa voz partir daí, a palavra, transgredi-la, para além A realimentação desta fome infinita pode se surgia em suas fantasias sexuais e afetivas narrativa que jorra como tantos outros flui- de sua natureza social institucionalizada, dar pelo ato erótico, pela espiritualidade do como objeto de desejo e de paixão, até se dos, líquidos e secreções do corpo. Ao mes- para dar corpo ao texto. Este por sua vez, Sagrado ou pela criação artística. Mais que reencontrarem e efetivarem a relação em mo tempo em que é grito, é hemorragia que tem como único abrigo definitivo o corpo simples gestos, as mão que tocam o fetiche outra perspectiva. O companheiro de infân- se derrama construindo a narrativa. em suas grandiosidades e misérias. É esse se manifestam em cerimônia, seja sobre a cia, “aquele que no auge das idades te se- Silviano Santiago, em ensaio crítico so- corpo que se rebela e se entrega ao outro e à Bíblia, sobre o corpo amante, ou sobre a duziu além dos limites da ilusão”, tem ine- bre o romance a Fúria do corpo, de Noll, narrativa de si mesmo, escancarando seus palavra e a linguagem. A cerimônia propi- gável importância. Mais que objeto de de- enfatiza campos de força que se destacam suores, excrementos, espermas e sangue vivo cia a mediação entre dois mundos diferen- sejo, acaba sendo parceiro de uma história no texto: como único referencial plausível de força, tes e, muitas vezes, antagônicos. de amor. O que em última análise, como de fragilidades e de sentidos. É esse corpo Neste sentido, Arnold Van Gennep, em diz o protagonista, “lembrava, sim, que eu As forças positivas desse romance — com já que se inflama para expressar um agrado, a Os ritos de passagem, avalia que “entre o tinha história, mesmo que desgovernada diz o título — são as da fúria e do corpo. Nelas mulher, aos amantes, ao filho, a uma cabra, mundo profano e o mundo sagrado há in- muitas vezes ou quase sempre”. residem a coragem e a audácia do personagem a si mesmo, em acenos que muitas vezes só compatibilidade, a tal ponto que a passagem Apesar de o texto ser um grande pará- e do projeto ficcional de João Gilberto: numa se manifestam em gestos que ficam na von- de um ao outro não pode ser feita sem um grafo, no que concerne a estruturação da sociedade repressiva e conservadora, deixar o tade impotente de existirem. “Ele é simples- estágio intermediário”. Acredita ainda que: trama, poderíamos subdividi-lo em dois corpo rolar com raiva e generosidade (isto é: mente ele. (...) Digo sim, sou o teu pai. (...) “qualquer pessoa que passe de um para outro grandes blocos, a primeira e a segunda vida, com paixão) pelos caminhos e vielas de si mes- Pensei em lhe fazer um agrado, um afago acha-se assim, material e mágico-religiosa- antes e depois da primeira morte. O primei- mo, do Outro e da cidade. destemido embora sempre sóbrio. Ou só um mente, durante um tempo mais ou menos ro momento, ainda casado, pai de família aceno... Mas não havia mais como. Isso de- longo em uma situação especial, uma vez que e libertino errante e, o segundo, mergulha- Em Acenos e afagos, apesar da fúria vir veria ter sido na infância dele.” Acenos, agra- flutua entre dois mundos”. O protagonista do de cabeça na paixão pelo engenheiro diluída em nuances mais sutis, o percurso dos e afagos são termos que se repetem por do romance vive nessa situação especial, si- que, fantasticamente, ou ironicamente, ar- do corpo em seus movimentos de busca de todo texto com uma intensidade gradativa tua-se no limiar, no entre-lugar da travessia. rebatou-lhe do túmulo, restituindo-lhe a prazer e auto-reconhecimento continua dan- para delinear as proximidades e diversidades “Me sentia em transição. Não era mais ho- nova vida. Morto para a família e para os do a tônica e impingindo coragem e audá- dos afetos. Funcionam, muitas vezes também, mem sem me encarnar no papel de mulher. negócios vive para o engenheiro e embarca cia tanto no que se refere ao protagonista, para atenuar o ritmo compulsivo da fala nar- Eu flutuava, sem o peso das determinações.” numa viagem sem volta com transmutações quanto ao projeto ficcional do autor. O que rativa e da ação frenética que a envolve. de personalidade, incluindo aí, com ênfa- está em discussão é como o que tem sido Esse estado transitório para o personagem é se, os diferentes estágios e papéis de sua se- calado e reduzido ao silêncio ganha legiti- quase que permanente. Vivencia através da Vazio narrativa diversos ritos, as estações da vida: xualidade. A primeira e a segunda vidas se midade e expressão através da ficcionalidade. Corpo e linguagem se fundem numa re- infância, adolescência, mocidade, maturida- mesclam através dos delírios e da Espaço e tempo perdem a referencialidade lação estreita e erotizada. Só através dela o de. Atravessa a linha tênue entre a vida e a superposição que uma vai operando sobre geográfica e histórica para se inscreverem no sujeito se reconhece em sua precariedade e morte, além da transmutação sexual da con- a outra. Durante todo tempo de casado, a campo desterritorializado dos desejos e dos isolamento. “O buraco no abastecimento dição masculina para a feminina. presença do engenheiro, como fantasia e ritos. Sendo assim, a ação em si rodopia em parecia anunciar a minha destinação, de O espaço vazio de uma casa no meio reminiscências eróticas e afetivas, é idas e vindas que ultrapassam a linearidade, agora em diante, erma. O vazio se encolhia do nada dramatiza esta flutuação: “Era tris- marcante. Durante toda aventura com o muitas vezes esperada, para lidar com ou- todo quando eu o tocava com a palavra. É te ficar dentro de casa. Não havia pratica- engenheiro, a lembrança da vida anterior, tros elementos que se negam ao bom desem- próprio dele não se empolgar com a lingua- mente nada dentro... Acudiu-me a idéia de principalmente do filho, materializa-se penho tanto comportamental dos persona- gem. O vazio só sabia se fazer representar que essa privação serviria de merecimento como alucinações, ora diluídas ora palpá- gens, quanto da linguagem expressiva com no armário da cozinha.” Dentro desse va- para a minha alforria da condição femini- zio instala-se a fome infinita, de alimentos, na, ou mesmo da masculina. Não haveria de completude existencial e de expressão. O uma terceira condição?” O homoerotismo vazio representado objetivamente pela falta vivenciado pelo personagem em suas expe- o autor de alimento levanta a verdadeira condição rimentações do feminino e masculino, em do sujeito, sua destinação erma. Difícil ou errâncias e buscas, não é apenas uma abor- JOÃO GILBERTO NOLL impossível de se fazer representar no plano dagem temática, trata-se de uma condição nasceu em Porto Alegre, em emocional, o vazio é uma presença que pai- 1946. É autor, entre outros, de sujeito, em sua humanidade, demasiada ra entre corpo e palavra. A constituição des- de O cego e a dançarina, A humana, que ganha cidadania e legitimi- se sujeito também se caracteriza pelo vazio, fúria do corpo, Bandoleiros, dade a partir da expressão poética. um vazio que se encolhe todo sob o toque Rastros de verão, Hotel As situações-limite vividas por esse su- da palavra, mas que dela não prescinde. Atlântico e Lorde. jeito contemporâneo problematizam a in- O protagonista de Fúria do corpo, ao compatibilidade de diferentes mundos en- se apresentar no início do romance, situa- tre os quais precisamos transitar, sem des- se dentro de negativas, num vazio de defi- canso. Sexo, amor, arte são instrumentos nições. “Não me pergunte pois idade, esta- que mobilizam a ocupação de um tempo do civil, local de nascimento, filiação, pe- que escoa por entre os dedos, numa gadas do passado, nada, passado não, nome compulsão que só com a morte pode ter também: não.” Por mais que durante a his- sossego. “Mais inveja senti do engenheiro: tória do narrador de Acenos e afagos haja ao contrário de mim, ele não precisaria mais referências à idade, ao estado civil, ao local planejar a sua ocupação do tempo, liberto de nascimento, a pegadas do passado, este enfim de todos os impasses.” r sujeito também parece desreferencializado. Ambos se contam negando a existência do • próprio nome, da identidade civil, como trecho • Acenos e afagos referência ao vazio insustentável da própria interioridade. Tanto um quanto outro insi- Lutávamos no chão frio do corre- nuam o nome de João sem muita convic- dor. Do consultório do dentista vinha o ção. João Evangelista o primeiro, João barulho incisivo da broca. E nós dois a Imaculado, o segundo (única referência no lutar deitados, às vezes rolando pela meio do livro). “São como tantos outros escada da portaria abaixo. Crianças, Joãos, espalhados pela obra e pela vida. João trabalhávamos no avesso, para que as verdadeiras intenções não fossem nem Ninguém: destituído, sem pátria, sem nome, sequer sugeridas. Súbito, os dois cor- sem... Sou um homem usual... que não dei- pos pararam e ficaram ali, aguardan- xa marcas. Eu, um homem usual como tan- do. Aguardando o quê? Nem nós sabí- tos, não trarei paraísos nem pesares. Sou o amos com alguma limpidez. A impos- anônimo, alguém que pode desaparecer de sibilidade de uma intenção aberta pro- pronto sem deixar lembranças.” duzia essa luta ardendo em vácuo. Reprodução David Treece, no prefácio de Romances 4 rascunho 100 • AGOSTO de 2008

ATRÁS DA ESTANTE CLAUDIA LAGE Tiro nas LETRAS Algumas maneiras de transformar a literatura em algo muito estranho e, por vezes, torturante

Quando Raul Pompéia suicidou-se versos de angústia e espanto, entrou em semana e o seu livro raramente era pe- nhada que havia algo de podre no rei- com um tiro, aos trinta e dois anos, em depressão profunda após uma aula de dido no vestibular. no das palavras, quando a sua irmã ado- uma triste noite de natal, deixando uma literatura, na qual por pressão do pro- Também não passou pela cabeça de lescente, que se autodenominava aman- controvertida obra composta de nove- grama curricular, da carga horária Machado de Assis que onze décadas de- te da literatura, um dia, em uma livra- las, romances e crônicas, não podia pre- apertada e da data da prova, teve que pois de ter escrito o seu Dom Casmur- ria, comprou entusiasmada um livro de ver que um século depois, um rapaz de resumir a obra de seu poeta preferido ro, em um mergulho inédito e assusta- sucesso do momento, e quando se de- dezessete anos tiraria um resumo do seu em duas frases: “Os versos mórbidos dor na psique humana, duas jovens de parou, em uma prateleira, com um dos livro Ateneu da mochila, se sentaria na de Augusto dos Anjos ofenderam a dezesseis anos seriam trancadas em seus livros que tinha lido na escola, fez uma cadeira de uma escola com o jeans sur- métrica parnasiana e os bons costumes quartos por dois dias e duas noites in- imensa careta. Diante da perplexidade rado de todos os dias, balançaria ner- da lírica”, ela ditou, trêmula, do livro teiras, sem direito a TV nem a MP3, com da escritora contemporânea, a irmã ca- vosamente os tênis durante toda a aula, didático para os alunos. “O pessimis- a ordem dos pais de que só poderiam çula explicou a diferença: “isto não é enquanto respondia, valendo um pon- mo do poeta aliado à ciência acusava sair após conhecerem enfim a alta lite- literatura, é matéria”. to cada, questões desse tipo: a) O escri- a degradação humana por meio de ratura brasileira, lerem o famoso roman- Dizem que na escuridão de noites tor naturalista Raul Pompéia morreu de analogias com processos químicos e bi- ce do consagrado escritor e fazerem o sem lua, corredores de escolas são in- tuberculose; b) O escritor romântico ológicos”, disse, lúgubre. “De-gra”, o trabalho escolar a ser entregue na segun- vadidos por espectros indignados. Vo- Raul Pompéia era homossexual; c) Raul quê, professora?, um aluno perguntou, da-feira, no qual deveriam responder, zes sem corpo ressoam entre carteiras e Pompéia era natural do Rio de Janeiro; enquanto copiava. “De-gra-da-ção hu- no mínimo, em uma lauda, no máxi- mesas vazias, exclamando trechos de d) O escritor Raul Pompéia suicidou-se. ma-na”, repetiu, perplexa, e, naquela mo, duas, se Bentinho tinha motivos livros e declamando poemas. Sôfregas Do mesmo modo, Castro Alves noite, queimou em silêncio profundo para ser tão ciumento e se Capitu afinal vozes que se transportam no tempo e quando escreveu Navio negreiro, aos as cinqüenta cópias do poema O Deus- era ou não era flor-que-se-cheire. no espaço, assombram e iluminam os vinte e um anos, tomado pela densida- verme, que havia escolhido e impresso Tampouco passou pela cabeça de um sonhos de professores e alunos, mur- de poética e pela forte questão humana para ler e discutir na aula. escritor contemporâneo, ao lançar en- muram e rosnam nos ouvidos de dire- que envolvia a defesa da emancipação fim o seu livro, que, em 2080, ele pode- tores e programadores curriculares, en- dos escravos, não poderia imaginar que Meia página rá ser tema de uma questão múltipla- tram entre gritos e grunhidos nos pesa- cem anos depois trechos do seu poema Enquanto Lima Barreto andava ma- escolha de um vestibular futurista, ou delos ministeriais e presidenciais até a seriam impressos na prova de uma ma- drugadas sem fim pelas ruas do centro então será usado como ilustração do manhã apontar o fim da escuridão e o téria chamada Literatura Brasileira, e, do Rio de Janeiro, buscando em vão a “estilo de época” do início do século 21, início de outras angústias. muito menos, poderia supor, em seus paisagem antiga da cidade amada, en- ou ainda ser resumido em um texto in- Há aquelas que ainda conseguem re- maiores delírios, que as perguntas fei- quanto denunciava em suas crônicas o formativo, com cheiro de escritório e cobrar um pouco o fôlego ao se deparar, tas a partir de sua obra seriam: 1) O caos e conchavos da Primeira Repúbli- formol. Entretanto, passou, sim, pela em suas errâncias, com um livro aberto autor deste poema pertence a qual fase ca, ou enquanto dava voz e corpo em cabeça de outro escritor contemporâneo sobre um peito que dorme, outro com do romantismo?; 2) Quais as caracte- seus romances e contos à realidade bra- de renome e fama, que uma posterida- marcador no fundo de uma bolsa, uma rísticas do movimento romântico ex- sileira, que pouco se olhava no espe- de cruel e assustadora talvez o aguar- pilha de papel fresca e branca prestes a pressas em Castro Alves? lho e quando se olhava via outra cara, dasse, quando viu o filho, para quem ser impressa, dedos nervosos sobre teclas Muito menos Augusto dos Anjos, a européia, ele não poderia ter conce- lia histórias desde o berço, entrar na es- insistentes, folhas escritas sobre a mesa. que falava com a morte tão de perto bido, nem em seus pesadelos etílicos, cola amigo dos livros e sair de lá para a Pequenos fragmentos de esperança, po- em seus poemas a ponto de ela ter che- que em menos de um século, a sua vida faculdade exausto de características, es- rém. Quando o sol nasce e a cidade acor- gado cedo a sua vida na forma de uma e obra marginalizada receberiam meia tilos de época, nomes de autores e li- da, quando as livrarias abrem as portas e pneumonia fatal, aos trinta anos, não página em um livro didático, e que um vros clássicos lidos mal e apressadamen- as escolas tocam o hino nacional, os es- poderia conceber que, dez décadas de- professor diria afobado aos alunos que te para um trabalho ou prova. Também pectros retornam exaustos às bibliotecas pois, uma professora em início de car- não era preciso lê-la, porque aquele es- passou, sim, pela cabeça de uma escri- e às estantes, e as vozes se refugiam ain- reira, apaixonada desde sempre por seus critor não cairia na prova da próxima tora contemporânea em início de cami- da sôfregas entre poeiras e livros.•r 100 • AGOSTO de 2008 rascunho 5

o autor

MANUEL CARNEIRO DE SOUZA BAN- DEIRA FILHO nasceu no Recife, no dia 19 de abril de 1886. Lançou seu pri- meiro livro em 1917, A cinza das ho- ras. Com Libertinagem, de 1930, pas- POUCO sa a ser considerado um dos poetas mais importantes do modernismo bra- sileiro. Depois, viriam outros livros: Es- trela da manhã, Lira do cinqüent’anos, Belo belo e Estrela da tarde. Foi tra- dutor, deixou importantes estudos lite- se salva rários e organizou antologias de poemas. Sua autobiografia literária, Itinerário de Crônicas inéditas I Pasárgada, é um clássico do gênero. Em CRÔNICAS INÉDITAS Manuel Bandeira 1937, Bandeira reuniu em volume uma Primeiro volume de , de Manuel CosacNaify seleção de seus textos publicados na Bandeira, contém pouquíssima literatura de qualidade 440 págs. grande imprensa: Crônicas da Provín- cia do Brasil, reeditado em 2006 pela CosacNaify. Além de Crônicas inéditas I, a editora prepara outros volumes, re- ferentes às crônicas das décadas de RODRIGO GURGEL • SÃO PAULO – SP apresenta um “inteligente ecletismo”. E Ban- rem-se uns aos outros sem qualquer pudor, 1930 e 1940. Manuel Bandeira morreu deira sintetiza sua opinião sobre determina- a ponto de a suspensão do juízo crítico tor- no Rio de Janeiro, em 13 de outubro de O problema dos escritores notáveis é que do recital utilizando-se da mais vazia de to- nar-se regra; na terceira, lembramos que os 1968, aos 82 anos de idade. a reiterada leitura de suas obras acaba nos das as conclusões: a de que as peças foram rompimentos são igualmente comuns (no transformando em pessoas exigentes demais “realizadas [...] com muito sentimento”. caso, o de Graça Aranha). — expectadores que não admitem frustra- Até mesmo o elogio do livro Alguma Mas Bandeira não era leniente com to- ções. Imaginemos o leitor de Machado de poesia, de Carlos Drummond de Andrade, dos: em Um caso à parte ele desanca os modis- trecho • Crônicas Assis que, depois de seguir o escritor desde derrapa em um raciocínio estranho, que mos, mostrando não ter perdido’ a lucidez: inéditas I Ressurreição até a reviravolta que foi Me- nada conclui: “Em Carlos Drummond de mórias póstumas de Brás Cubas, se depa- Andrade a perfeição técnica não resulta, Precisamos urgentemente voltar à métrica, A companhia que explora o servi- rasse, uma década mais tarde, não com como em Guilherme de Almeida, do gosto à rima, à sintaxe lusíada [...]. O modernismo ço telefônico no Rio, não sei se de Quincas Borba, mas com uma novelinha e trabalho do artista, mas da fidelidade do era suportável quando extravagância de alguns. moto-próprio ou por sugestão do de laivos românticos. Esse leitor razoável, poeta ao movimento lírico da sensibilida- Agora é a normalidade de toda a gente. Então Rotary Club ou da Grande Comissão de capacidade crítica mediana, sentiria, no de. Daí a frescura desse lirismo que sabe à depois que reinventaram a brasilidade, a coisa do Fuss Anti-Amarílico, resolveu com- mínimo, certo desconforto. fruta comida ao pé da árvore”. tornou-se uma praga. plicar a situação dos seus assinan- É, mais ou menos, o que acontece para Em meio a tanta inutilidade — da inau- Os livros de poesia só falam de candomblés e tes fazendo as telefonistas dizerem quem iniciou a leitura da prosa de Manuel guração de um órgão na Catedral Metro- de urucungos. Nos quadros só se vêem pretos, “Guerra ao mosquito!” antes do clás- Bandeira pelo insuperável Itinerário de politana a elogios despropositados ao jor- carros de boi e desenho errado. sico “Número, faz favor?”. Pasárgada ou saboreando as equilibradas nal em que ele próprio escreve —, apeguei- Confesso que acho um certo sabor nos poe- De sorte que agora travam-se os seguintes diálogos: Crônicas da província do Brasil: um desâ- me à esperança de que o poeta recebesse uns mas dos iniciadores. Os meninos que vieram — Guerra ao mosquito! Número, nimo abaterá o leitor de Crônicas inéditas bons trocados pelas crônicas. O dinheiro depois é que estão caceteando. faz favor? , cuidadoso trabalho de compilação do talvez lhe permitisse ter tranqüilidade para – I — Guerra ao mosquito, Central poeta e pesquisador Júlio Castañon Guima- escrever seus poemas, quem sabe... De qual- Aliás, seu amor à métrica e à boa sinta- sim, dois, um, nove. rães. Raríssimos textos, nesse volume, se apro- quer forma, os leitores fiéis de Bandeira so- xe revela-se também no justo elogio que faz — Guerra ao mosquito... ximam daquela prazerosa quina que tive a frerão uma inevitável crise de melancolia aos parnasianos Olavo Bilac e Raimundo — Já matei dois! oportunidade de elogiar na edição, se não antes mesmo de chegar à metade do livro. e Alberto Oliveira, “autores de uma obra — Número, faz favor? me falha a memória, de abril de 2007 deste E depois de páginas e páginas cheirando a equilibrada e harmoniosa”, que “reagiu O pior é quando no meio da con- Rascunho, formada por A trinca do Curvelo, necrológio, o próprio Bandeira reconhece- contra a incorreção e a eloqüência derra- versa cortam a ligação, e o assinante Reis vagabundos, Golpe do chapéu, Romance do rá, em crônica publicada no dia 9 de setem- mada dos românticos, criando em nossa pára de falar, grita alô, bate no gan- beco e Lenine, quando analisei o relançamento bro de 1930: “Nunca escrevi tão em cima língua uma técnica precisa e comedida. Mas cho, espera, desespera e no fim de de Crônicas da província do Brasil. da perna como hoje”. Considerando-se o essa técnica degenerou depois em mãos pe- cinco minutos e de três estouros, a Crônicas inéditas I talvez valha en- livro que temos em mãos, o poeta, infeliz- sadas, afeitas a só carpinejar. A tradição vozinha inalterável, polida, angélica quanto curioso documento sobre a vida da mente, não foi sincero. camoniana, tão sensível nos três mestres, da telefonista enfim acode: classe média carioca no início do século 20, não foi assimilada pelos epígonos”. Na — Guerra ao mosquito, número faz pois Bandeira ensaia uma visão de urba- Rescaldo mesma crônica, Apologia de um poeta, lou- favor? nista — preocupando-se com o “desafogo Mas será possível que, em quatrocentas va, com acerto, a obra satírica de Emílio E o assinante: do tráfego” e testemunhando o surgimento páginas de crônicas, não se salve alguma coi- de Menezes, hoje infelizmente esquecida. — Guerra coisa nenhuma! Guerra dos arranha-céus —, comenta a exibição do sa? Bandeira, sabemos bem, é dos raros que Sua veia irônica também surge, aqui e a você, à Light e aos imbecis que primeiro filme falado no Rio de Janeiro, merecem esse trabalho de pinçar. Vamos a ele. ali: criticando os jornais da época — “a pensam acabar com a febre amarela chega a oferecer uma boa — e desoladora Para os pesquisadores do modernismo, imprensa do Rio me dá a impressão de uma amolando a paciência dos outros! — radiografia do mercado de arte brasilei- por exemplo, as crônicas Amar, verbo casa de cômodos da rua Senador Eusébio Esse grito de “guerra ao mosquito” ro, fala do panorama cultural e da cafeicul- intransitivo, Mário de Andrade e Ah Juju ser- quando a d. Júlia Lavadeira acabou de deve ser invenção de algum desses tura, digressiona sobre arquitetura, êxodo vem como estudo sociológico dos fenôme- meter a mão na cara da Chica do Alfredo” dinâmicos ávidos de substituírem a nossa civilizaçãozinha de matutos rural, bailes carnavalescos e concursos de nos comuns a todas as igrejinhas: nas duas — ou espicaçando os cantores líricos e as opilados pela ação norte-americana com misses, além de ser gentil com amigos. Mas primeiras, vemos seus participantes protege- produções operísticas nacionais — “resulta todos os seus blefes de publicidade e há pouquíssima boa literatura. sempre um enterro de terceira classe, desses de propaganda, educação liberal das Na verdade, sobram lugares-comuns e que chegam ao cemitério à hora de fechar massas etc. etc. A ofensiva verbal das elogios fáceis. Grande parte das crôni- o portão: os convidados estão apressados, telefonistas não teria inconveniente se cas é dedicada aos espetáculos de os coveiros de mau humor; o defunto é apenas divertisse pelo seu ridículo. música erudita que aconteciam despachado com um mínimo de cal”. Mas numa população enervada pelas na cidade. Vários instrumen- Respiramos aliviados ao encontrar a demoras habituais de ligação telefôni- tistas, na sua maioria medío- perfeita descrição de certo baile carnava- ca, ela provoca a antipatia pelos caça- cres, recebem a atenção de lesco, ilha de vivacidade nesse mar de tex- dores desastrados de mosquitos, e o Bandeira numa enfiada de tos insignificantes: desejo insensato de pactuar com a fe- textinhos banais — alguns, bre amarela... (da crônica Saudades aparentemente, meras cópias Outro espetáculo curioso é o do Teatro Fênix dos telefones do Recife) dos programas distribuídos que se especializou em bailes para homens. Ali nos concertos. Praticando uma as senhoras pagam entrada porque não é possí- crítica impressionista, o poeta vel distingui-las dos tipos que se fantasiam de destila conclusões discutíveis mulher com uma perfeição em que não entra so- Emily Dickinson (Poesia). O comentário — “cada escritor é trans- mente a habilidade e a arte, mas o temperamen- mais brilhante, entretanto — inusitado e positor literário de elementos to também. E há-os de todas as cores, de todas revelador não só da personalidade de Ban- espirituais ou técnicos da pin- as idades, de todas as classes, nacionais e es- deira, mas também de sua visão crítica, en- tura, da escultura ou da músi- trangeiros. O círculo de mirones toma com eles quanto leitor da obra machadiana —, en- ca” — ou envereda por arrou- liberdades cruéis que vão do carinho contramos na crônica Antonieta Rudge: bos capazes de embrulhar o estô- acanalhado ao pontapé de troça. No meio mago: “a música tem espontanei- disso sujeitos maduros, de capote, guar- Nos versos como no conto o gosto doentio de dade e a frescura dos 23 anos, que da-chuvas e óculos de tartaruga combinan- espiar o sofrimento alheio. E a psicologia dura, era a idade do autor ao tempo em do com seriedade encontros acenando os de- derrotista, insultante de quase toda a obra. Sem- que a compôs”; “a penetrante emoti- dos para ajustar preços. Aqui e ali, nas fri- pre o móvel egoísta, e ainda que limpo, vidade de suas interpretações impres- sas e camarotes, a timidez de um grupo inconfessável. [...] Em suma eu achava, e ainda sionaram fundamente o auditório”; “é cuidadosamente mascarado trai a famí- hoje acho, que Machado de Assis era um mons- um violinista da mais pura escola”. lia que veio só para ver. Aquele portu- tro. Um monstro que não fazia mal a ninguém, Sobre uma apresentação da ópera Orfeu e guês porém instalou-se com a sua gente que nunca haveria de fazer mal a ninguém, mas Eurídice, de Gluck, ele diz: “[...] daí a sensa- numa mesa da platéia em plena não obstante um monstro. ção de fresco repouso que produz um enre- bagunça. A mulher traz ao colo um do de linhas simples, como o do Orfeu, e menino de peito e amamenta-o Enfim, se jogarmos fora as análises su- onde entretanto nos comove a beleza de um ali mesmo. De um camarote perficiais, as tiradinhas sem graça, os elogi- dos mais belos símbolos da mitologia”. Mas bisnagam-lhe o seio exposto. O os desmedidos, as repetições e os textinhos isso ainda é pouco diante deste trecho ver- português dana-se, não por gentis ou tão-somente corretos sobram qua- dadeiramente aflitivo: “Não há uma só nota causa do seio mas por causa tro crônicas: a extremamente bem-humorada morta no jogo pianístico daquela intérprete da criança: “Olha a criança, Saudades dos telefones do Recife, uma crítica an- finamente vibrante de vida requintada. Gran- seu estúpido!” Passa um lin- tecipada aos serviços de telemarketing con- de técnica, em verdade, pelo que há nela de do rapaz que a assistência temporâneos; a visão fria e quase sarcástica humanidade quintessenciada e profunda”. aclama de miss Brasil. E do folclore brasileiro em Festas do Nordeste; a Da música de Villa-Lobos ele dirá que é João, que está comigo, con- ironia antibolchevique de Comunismo: polí- “uma festa de timbres, uma golfada de rit- fessa desesperado que há nos cia e poesia; e as saudosas vidraças de dona mos, onde os motivos selvagens constituem olhos da falsa mulher qual- Aninha Viegas, da crônica Villegagnon tem o substrato da humanidade profunda que quer coisa que ele nunca en- hoje um aspecto pacífico — texto leve, fluido, sustenta o edifício sonoro”. Qualquer um é controu nas mulheres de fato. paradigma do gênero crônica. “excepcionalmente dotado”. Certo artista Minha sugestão, caro leitor, é a seguin- Em meio a várias crô- te: anote esses quatro títulos em um papel- nicas elogiando escritores e zinho, vá até a livraria mais próxima, peça artistas, a maioria deles seus o volume, acomode-se da melhor forma amigos ou conhecidos, os possível, leia com vagar e cuidado apenas melhores textos, nada geniais, essas crônicas, devolva o livro e saia da loja referem-se a Augusto Frederi- com a certeza de que até mesmo Manuel co Schmidt (Um poeta que não Bandeira consegue ser maçante — mas Ramon Muniz quer cantar mais o Brasil) e quando acerta, é sempre genial.•r 6 rascunho 100 • AGOSTO de 2008 7

iz o lugar-comum que todo bom leitor é um D escritor em potencial. Há certa dose de verdade no Mãos à OBRA clichê que ronda a literatura. Todo grande escritor é, necessariamente, um grande Luiz Antonio Raimundo Carrero Miguel Sanches Neto Antonio Carlos Secchin leitor. Mas apenas a leitura de Assis Brasil 1. Acredite: não existe inspiração. Uma das coisas mais difíceis do mundo é ser autor 1. Amarás a literatura acima de todas as coisas. incessante e de qualidade 2. Escreva. Escreva. Escreva. iniciante. Falo isso por experiência própria, não que eu já 2. Não invocarás os centenários de Machado e Rosa em 3. O talento é a melhor maneira de o escritor estar tenha vencido esta fase, ainda sou iniciante, mas com al- vão: trata de fazer algo inteiramente diverso. 1. Ler apenas quem escreve melhor do que nós. Ilustrações: Osvalter não torna ninguém um autor. 2. Tentar descobrir nossa “medida”, isto é: o meio-cami- lento. gum tempo de estrada, e é isso que me permite dar uns 3. Guardarás os fins de semana para escrever tudo aquilo nho ideal entre ser explícito e ser obscuro. Quem descobre a 4. Conduza sempre caneta e papel no bolso — ou agen- palpites sem querer ditar condutas. que teu emprego não permite que escrevas nos outros dias. Neste mundo em que a medida, como Hemingway descobriu, ganha o Nobel. da eletrônica: anote tudo o que pensa e quer. Começa que toda pessoa ao escrever quer desesperada- 4. Duvidarás de pai, mãe, avós, enfim: de toda a linha- 3. Ler, ler muito. Escrever, escrever muito. Todos os dias. 5. Leia muito. Os clássicos, de preferência. Homero, mente ser lida. É a regra número um — só existe autor se gem de teus ascendentes literários. pressa tenta nos engolir a 4. Escutar os outros sobre nossos próprios textos. Mas Virgílio, Dante. Mas não esqueça os contemporâneos. existir público. Parentes, namorados, cônjuges, empregados, 5. Não matarás o idioma supondo reinventá-lo em cada esses outros precisam ter duas qualidades complementares: 6. Um escritor deve conhecer bem o seu ofício. Estude etc. acabam sendo o alvo de nossa ansiedade. Aqui em casa nova obra. todos, a literatura precisa (e a) competência para análise de textos literários; b) sincerida- muito. Estude sempre. é minha mulher — eu leio os textos curtos para ela, e passo 6. Não pecarás contra a causticidade da língua, abrigan- de. É raríssimo encontrar pessoas com ambas qualidades. 7. As histórias estão bem próximas. Use a memória. as cópias dos romances. Um ou outro amigo muito próxi- do em teus textos a ironia, o humor, a irreverência. muito) de tempo, paciência, 5. Escrever aquilo que se gosta de ler. Se gostamos de Sem medo. mo pode receber o texto, mas sempre evito incomodar. Bem, 7. Não furtarás obras alheias: com elas estabecelerás “diá- introspecção... Já a entrada textos simples, por que escrevermos complicado? 8. Use as condições objetivas: tenha uma boa bibliote- mulher de escritor é aquele negócio, uma espécie de presiden- logos intertextuais”. 6. Ter sempre um caderno de notas no bolso, ou algo ca e um lugar reservado para escrever. te do fã-clube do marido, um fã-clube que ainda nem existe, 8. Não levantarás falsos testemunhos, dizendo que um no mercado editorial, semelhante. Ele deve ficar à nossa cabeceira, à noite. As idéi- 9. Um bom prosador deve ler poemas. E um bom po- e talvez nunca venha a existir. E a gente retribui tamanha texto é ótimo apenas por ser da autoria de um amigo. as nos alcançam quando menos esperamos. eta deve ler romances, novelas, contos. dedicação com almoços, viagens, dinheiro para compras. 9. Não cobiçarás os prêmios e as resenhas elogiosas do depende de ingredientes que, 7. Saber que o sucesso e a qualidade literária pertencem a 10. Seja simples. Mas a simplicidade deve apenas es- Sendo uma leitora a soldo, a mulher deve receber a próximo. universos diferentes. conder a sofisticação. Aprenda com Machado de Assis, maior carga de nossos originais. Quem não tem mulher 10. Não acreditarás em nenhum decálogo. muitas vezes, fogem do 8. Fugir da vida literária; isso só desintegra o fígado e Manuel Bandeira, Carlos Drummond e . ou é a própria, bem, que ache uma pessoa equivalente. cria inimigos, para além de ser uma colossal perda de tempo. Com esta estratégia de atormentar o mínimo de pessoas, ANTONIO CARLOS SECCHIN é autor de Todos os ventos, domínio do aspirante a 9. Criar espaços (emocionais, físicos, cronológicos) para RAIMUNDO CARRERO é autor de O amor não tem bons sentimentos, já podemos abrir o decálogo: entre outros. Mora no Rio de Janeiro (RJ). exercitar a literatura, mesmo que isso signifique abdicar de Somos pedras que se consomem, entre outros. Vive em Recife (PE). escritor. Rascunho convidou coisas aparentemente necessárias. 1. Não fique mandando seus originais para todo mundo. 10. Pensar como escritor, isto é, conotativamente. Deixar Acontece que você escreve para ser lido extramuros, e sete autores experientes a o pensamento dedutivo apenas para quando estivermos deseja testar sua obra num terreno mais neutro. E não estruturando nosso romance. No plano textual, usar de pre- Seja simples. Mas a simplicidade deve quer ficar a vida inteira escrevendo apenas para uma pes- escreverem um “decálogo ao ferência conjunções coordenativas, em vez das subordinativas. apenas esconder a sofisticação. Aprenda soa. O que fazer então para não virar um chato? No pas- sado, eu aconselharia mandar os textos para jornais e re- com Machado de Assis, Manuel Bandeira, jovem escritor”. Como era de LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL é autor de O pintor de retratos, vistas literárias, foi o que eu fiz quando era um iniciante A margem imóvel do rio, entre outros. Vive em Porto Alegre (RS). Carlos Drummond e Autran Dourado. bem iniciante. Mas os jovens agora têm uma arma mais se prever, a leitura permeia democrática. Publicar na internet. Há muitos espaços co- letivos, com uma liberdade de inclusão de textos novos e todos os “conselhos”. você ainda pode criar seu próprio site ou blog, mas cuida- do para não incomodar as pessoas, enviando mensagens e Irônicos ou sérios, os autores avisos para que leiam sua mais recente obra-prima. dão dicas que podem ser 2. Publique seus textos em sites e blogs e deixe que si- 7. Mande seu livro a todos os concursos possíveis e a edito- Tente publicar o primeiro livro por gam o rumo deles. ras bem escolhidas, pois cada uma tem seu perfil editorial. úteis a quem pretende se Depois de um tempo divulgando sua produção ele- É melhor gastar seu dinheiro com selo e fotocópia do uma editora pequena, de preferência tronicamente, você vai encontrar alguns leitores. Terá que que com a impressão de uma obra que não será distribuída sem distribuição comercial. É aventurar pelos mais do que ler os textos deles, e dar opiniões e fazer sugestões, mas e que terá que ser enviada a quem não a solicitou. Enquan- também receberá muitas dicas. to isso, dedique-se a atividades afins, para controlar a ansi- bastante provável que esse livro tortuosos caminhos da ficção. 3. Leia os contemporâneos, até para saber onde é o edade, porque essas coisas de literatura demoram, demo- seja ruim, e você não vai querer seu lugar. ram muito mesmo. Você pode traduzir textos literários para que ninguém o leia no futuro. Existe um batalhão de internautas ávidos por leitura e consumo próprio ou para jornais e revistas, pode fazer rese- em alguns casos você atingirá o alvo e terá acontecido a nhas de obras marcantes, ler os clássicos ou simplesmente magia de um texto encontrar a pessoa que o justifica. Mas manter um diário íntimo. O importante é se ocupar. Com todo texto escrito na internet sonha um dia virar livro. sorte e tendo o livro alguma qualidade além de ter custado Sites e blogs são etapas, exercícios de aquecimento. Só o tanto esforço, ele acaba publicado. Até o meu terminou Michel Laub livro impresso dá status autoral. O que fazer quando eu publicado, e foi quando me tornei um iniciante adulto. Ti- tiver mais de dois gigas de textos literários? Está na hora nha um livro de ficção no catálogo de uma grande editora. 1. Tente viver intensamente: é na vida que está a maior de publicar um livro maior do que Em busca do tempo E aí tive que aprender outras coisas. Há centenas de livros parte do material literário. perdido? Bem, é nesse momento que você pode continuar de iniciantes chegando aos jornais e revistas para resenhas e 2. Leia clássicos, crítica, livros técnicos sobre como escre- Arruda Leite sendo um escritor iniciante comum ou subir à categoria uma quantidade muito maior de títulos consagrados. E a Ivana ver ficção, mas não deixe de ler o que você realmente gosta, de iniciante com experiência. Você terá que reduzir essas maioria vai ficar sem espaço nos jornais. E é natural que os na hora e no ritmo que quiser. centenas e centenas de páginas a um formato razoável, exemplares distribuídos para a imprensa acabem nos sebos, 1. Leia, leia muito. Leia diariamente. Leia o máximo que 3. Escreva regularmente e deixe os textos descansando. que não tome muito tempo de leitura de quem, eventual- pois não há resenhistas para tantas obras. seu tempo permitir. Devore todo tipo de literatura, exceto a Volte a eles de tempos em tempos e os reescreva. No início, mente, se interessar por um livro de estréia. Para isso, você 8. Não force os amigos e conhecidos a escrever sobre seu livro. de má qualidade. isso é tão importante quanto escrever. terá que ser impiedoso, esquecer os elogios da mulher e Não quer dizer que eles não possam escrever, podem sim, 2. Isole-se. O silêncio é a matéria-prima do escritor. Cada 4. Resista à tentação de publicar primeiros textos na dos amigos e selecionar seu produto, trabalhando duro mas mande o livro e, se eles não acusarem recebimento ou noite que você passa na balada é uma página a menos que internet. No Google, eles perseguirão você para sempre, in- para que ele fique sempre melhor. não comentarem mais o assunto, esqueça e não os queira você escreve. Isso pode parecer pouco, mas ao longo da vida dependentemente do seu remorso. 4. Considere apenas uma pequenina parte de toda a mal, eles são nossos amigos mesmo não gostando do que faz a diferença entre o escritor que chega lá e o que morre na 5. Não mande originais para outros escritores, pelo me- sua produção inicial, e invista na revisão dela, sabendo escrevemos. Se um ou outro amigo escrever sobre o livro, praia cercado de amigos (bêbados). nos nos primeiros anos. Em 99% dos casos você só ganha- que revisar é cortar. festeje ainda se ele não entender nada ou valorizar coisas 3. Não acredite no mito de que quanto mais louco você rá antipatia e/ou falsos elogios, que podem atrasar muito O livro está pronto. Não tem mais do que 200 páginas, que não julgamos relevantes em nosso trabalho. E mande for e mais sofrimento tiver, melhor será sua literatura. Um sua evolução. você dedicou anos a ele e ainda continua um iniciante. umas palavras de agradecimento, pois você teve enfim uma escritor mediano com a cabeça no lugar tem muito mais 6. Também não leve a sério o que dizem mãe, irmã, na- Mas um iniciante responsável, pois não mandou logo apreciação. E se um amigo escrever mal de nosso livro, jus- chances do que um maluco genial. Até porque, se você for morada (o) ou amigos. O ideal é que seu primeiro leitor seja imprimir suas obras completas com não sei quantos to- tamente dessa obra que nos custou tanto? Se for um desco- escritor de verdade, a loucura e o sofrimento estarão sempre alguém mais ou menos do ramo, que tenha alguma relação mos, logo você que talvez nem tenha completado 30 anos. nhecido, ainda vá lá, mas um amigo, aquele amigo para ao seu lado. com você, mas não íntima a ponto de influenciar os juízos. Mas você quer fazer a sua literatura circular de maneira quem você fez isso e aquilo. 4. Seu estilo é seu maior patrimônio. Ouça sua voz e seja 7. Oficinas literárias são boas experiências, mas é preciso mais formal. Quer o livro impresso. E isso é hoje muito 9. Nunca passe recibo às críticas negativas. fiel a ela. Não imite os escritores que você ama (nem os que saber tirar o melhor delas. Há um momento, no início, em fácil. Você conhece um amigo que conhece uma gráfica Ao publicar você se torna uma pessoa pública. E deve ab- você odeia). que elas podem ajudá-lo a queimar etapas inúteis, e um mo- digital que faz pequenas tiragens e parcela em tantas ve- sorver todas as opiniões, inclusive os elogios falsos. Deixe que 5. Se você transita entre muitas linguagens (romance, con- mento, quando você está buscando voz própria, em que elas zes. O livro está pronto. E anda sobrando um dinheiri- as opiniões se formem em torno de seu trabalho, e talvez a to, poesia, teatro, etc.), cuidado. No começo da carreira, é podem fazer muito mal. nho, é só economizar na cerveja. verdade suplante os equívocos, principalmente se a verdade mais prudente escolher um caminho e aprofundar-se nele do 8. Tente publicar o primeiro livro por uma editora pe- 5. Gaste todo seu dinheiro extra em cerveja, viagens, for que nosso trabalho não é lá essas coisas. O livro está publi- que ficar pulando de galho em galho. Deixe a diversificação quena, de preferência sem distribuição comercial. É bastan- restaurantes e não pague a publicação do próprio livro. cado, você já pensa no próximo, saíram algumas resenhas, pra mais tarde. te provável que esse livro seja ruim, e você não vai querer Se você fizer isso, ficará novamente ansioso para man- umas superficiais, outras negativas, uma muito correta. Você é 6. Não tente adequar sua literatura aos modismos e ten- que ninguém o leia no futuro. dar a todo mundo o volume, esperando opiniões que com- então um iniciante com um currículo mínimo. Daí você rece- dências de mercado porque cedo ou tarde você vai ser des- 9. Se receber críticas negativas, por mais tentador que seja parem seu trabalho ao dos mestres. O livro impresso, mes- be a prestação de contas da editora, dizendo que, no primeiro mascarado. Pior que o anonimato é não ser respeitado pelos encher o crítico de porrada, avalie com a isenção possível se mo quando auto-impresso, dá esta sensação de poder. trimestre, as devoluções foram maiores do que as vendas. Como seus pares. ele tem argumentos que podem ajudá-lo a melhorar. Somos enfim Autores. E podemos montar frases assim: isso é possível? Vejam quantos livros a editora mandou de 7. Nunca mande sua brochura espiralada para editora 10. Em todas as etapas dessa carreira longa e difícil, mas Borges e eu valorizamos o universal. Do ponto de vista cortesia. Eu não posso ter vendido apenas 238 exemplares se, alguma, a menos que isso lhe seja pedido expressamente e de também rica e divertida, saiba o momento de desprezar con- técnico, Borges e eu estamos no mesmo nível, produzi- só no lançamento vendi 100, o gerente da livraria até elogiou maneira inequívoca. O mesmo vale para escritores, críticos, selhos e buscar suas próprias respostas. jornalistas, etc. mos obras impressas, mas a comparação não vai adiante. — enfim uma vantagem de ter família grande. 8. Faça o possível para cair nas graças de alguém que Então como publicar o primeiro livro se não conhecemos 10. Evite reclamar de sua editora. MICHEL LAUB é autor de Longe da água, O segundo tempo, coloque seu texto nas mãos de quem decide e faça-o inter- ninguém nas grandes casas editoriais? E aí começa um Uma editora não existe para reverenciar nosso talento a entre outros. Vive em São Paulo (SP). romper seus inúmeros afazeres para ler seu original. Não acredite no mito de outro problema: procurar pessoas bem postas em editoras toda hora. É uma empresa que busca o lucro, que tem deze- 9. Escolha com cuidado a pessoa a quem pedir opinião. que quanto mais louco e solicitar apresentações. Na maioria das vezes, isso não nas de autores iguais a nós e que quer faturar com nosso funciona. E, mesmo quando o livro é publicado, ele não Dê preferência a quem goste de literatura, mas que não escre- você for e mais livro, sendo a primeira prejudicada quando ele não vende. va nem seja do ramo. Ouça com atenção tudo que essa pes- acontece, pois foi um movimento artificial. Não precisamos dizer que é a melhor editora do mundo só soa lhe disser, pois ela será seu leitor no futuro. sofrimento tiver, melhor 6. Nunca peça a ninguém para indicar seu livro a porque nos editou, mas é bom pensar que ocorreu uma apos- 10. Se você tem um blog, publique aí textos interessantes, será sua literatura. Um uma editora. ta conjunta e que, embora não se tenha alcançado resulta- divertidos, expresse sua opinião, mas guarde sua literatura Se por um acaso um amigo conhece e gosta de seu do, há oportunidades para outras apostas e, um dia, quem para a tão sonhada publicação em papel. Seus futuros leito- escritor mediano com a trabalho, ele vai fazer isso naturalmente, com alguma sabe... Foi tentando seguir estas regras que consegui ser o res merecem e saberão agradecer. cabeça no lugar tem chance de sucesso. Tente fazer tudo sozinho, como se não autor iniciante que hoje eu sou. tivesse nada para ajudar você além de que seu próprio LEIA OS “CONSELHOS” DE NELSON DE muito mais chances do livro. Sim, este livro em que você colocou todas as suas MIGUEL SANCHES NETO Um amor anarquista IVANA ARRUDA LEITE é autora de Falo de mulher e é autor de e OLIVEIRA SONIA COUTINHO Eu te darei o céu, entre outros. Mora em São Paulo (SP). que um maluco genial. fichas. E como você só pode contar com ele... A primeira mulher, entre outros. Vive em Ponta Grossa (PR). E NA PÁGINA 8. 6 rascunho 100 • AGOSTO de 2008 7

iz o lugar-comum que todo bom leitor é um D escritor em potencial. Há certa dose de verdade no Mãos à OBRA clichê que ronda a literatura. Todo grande escritor é, necessariamente, um grande Luiz Antonio Raimundo Carrero Miguel Sanches Neto Antonio Carlos Secchin leitor. Mas apenas a leitura de Assis Brasil 1. Acredite: não existe inspiração. Uma das coisas mais difíceis do mundo é ser autor 1. Amarás a literatura acima de todas as coisas. incessante e de qualidade 2. Escreva. Escreva. Escreva. iniciante. Falo isso por experiência própria, não que eu já 2. Não invocarás os centenários de Machado e Rosa em 3. O talento é a melhor maneira de o escritor estar tenha vencido esta fase, ainda sou iniciante, mas com al- vão: trata de fazer algo inteiramente diverso. 1. Ler apenas quem escreve melhor do que nós. Ilustrações: Osvalter não torna ninguém um autor. 2. Tentar descobrir nossa “medida”, isto é: o meio-cami- lento. gum tempo de estrada, e é isso que me permite dar uns 3. Guardarás os fins de semana para escrever tudo aquilo nho ideal entre ser explícito e ser obscuro. Quem descobre a 4. Conduza sempre caneta e papel no bolso — ou agen- palpites sem querer ditar condutas. que teu emprego não permite que escrevas nos outros dias. Neste mundo em que a medida, como Hemingway descobriu, ganha o Nobel. da eletrônica: anote tudo o que pensa e quer. Começa que toda pessoa ao escrever quer desesperada- 4. Duvidarás de pai, mãe, avós, enfim: de toda a linha- 3. Ler, ler muito. Escrever, escrever muito. Todos os dias. 5. Leia muito. Os clássicos, de preferência. Homero, mente ser lida. É a regra número um — só existe autor se gem de teus ascendentes literários. pressa tenta nos engolir a 4. Escutar os outros sobre nossos próprios textos. Mas Virgílio, Dante. Mas não esqueça os contemporâneos. existir público. Parentes, namorados, cônjuges, empregados, 5. Não matarás o idioma supondo reinventá-lo em cada esses outros precisam ter duas qualidades complementares: 6. Um escritor deve conhecer bem o seu ofício. Estude etc. acabam sendo o alvo de nossa ansiedade. Aqui em casa nova obra. todos, a literatura precisa (e a) competência para análise de textos literários; b) sincerida- muito. Estude sempre. é minha mulher — eu leio os textos curtos para ela, e passo 6. Não pecarás contra a causticidade da língua, abrigan- de. É raríssimo encontrar pessoas com ambas qualidades. 7. As histórias estão bem próximas. Use a memória. as cópias dos romances. Um ou outro amigo muito próxi- do em teus textos a ironia, o humor, a irreverência. muito) de tempo, paciência, 5. Escrever aquilo que se gosta de ler. Se gostamos de Sem medo. mo pode receber o texto, mas sempre evito incomodar. Bem, 7. Não furtarás obras alheias: com elas estabecelerás “diá- introspecção... Já a entrada textos simples, por que escrevermos complicado? 8. Use as condições objetivas: tenha uma boa bibliote- mulher de escritor é aquele negócio, uma espécie de presiden- logos intertextuais”. 6. Ter sempre um caderno de notas no bolso, ou algo ca e um lugar reservado para escrever. te do fã-clube do marido, um fã-clube que ainda nem existe, 8. Não levantarás falsos testemunhos, dizendo que um no mercado editorial, semelhante. Ele deve ficar à nossa cabeceira, à noite. As idéi- 9. Um bom prosador deve ler poemas. E um bom po- e talvez nunca venha a existir. E a gente retribui tamanha texto é ótimo apenas por ser da autoria de um amigo. as nos alcançam quando menos esperamos. eta deve ler romances, novelas, contos. dedicação com almoços, viagens, dinheiro para compras. 9. Não cobiçarás os prêmios e as resenhas elogiosas do depende de ingredientes que, 7. Saber que o sucesso e a qualidade literária pertencem a 10. Seja simples. Mas a simplicidade deve apenas es- Sendo uma leitora a soldo, a mulher deve receber a próximo. universos diferentes. conder a sofisticação. Aprenda com Machado de Assis, maior carga de nossos originais. Quem não tem mulher 10. Não acreditarás em nenhum decálogo. muitas vezes, fogem do 8. Fugir da vida literária; isso só desintegra o fígado e Manuel Bandeira, Carlos Drummond e Autran Dourado. ou é a própria, bem, que ache uma pessoa equivalente. cria inimigos, para além de ser uma colossal perda de tempo. Com esta estratégia de atormentar o mínimo de pessoas, ANTONIO CARLOS SECCHIN é autor de Todos os ventos, domínio do aspirante a 9. Criar espaços (emocionais, físicos, cronológicos) para RAIMUNDO CARRERO é autor de O amor não tem bons sentimentos, já podemos abrir o decálogo: entre outros. Mora no Rio de Janeiro (RJ). exercitar a literatura, mesmo que isso signifique abdicar de Somos pedras que se consomem, entre outros. Vive em Recife (PE). escritor. Rascunho convidou coisas aparentemente necessárias. 1. Não fique mandando seus originais para todo mundo. 10. Pensar como escritor, isto é, conotativamente. Deixar Acontece que você escreve para ser lido extramuros, e sete autores experientes a o pensamento dedutivo apenas para quando estivermos deseja testar sua obra num terreno mais neutro. E não estruturando nosso romance. No plano textual, usar de pre- Seja simples. Mas a simplicidade deve quer ficar a vida inteira escrevendo apenas para uma pes- escreverem um “decálogo ao ferência conjunções coordenativas, em vez das subordinativas. apenas esconder a sofisticação. Aprenda soa. O que fazer então para não virar um chato? No pas- sado, eu aconselharia mandar os textos para jornais e re- com Machado de Assis, Manuel Bandeira, jovem escritor”. Como era de LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL é autor de O pintor de retratos, vistas literárias, foi o que eu fiz quando era um iniciante A margem imóvel do rio, entre outros. Vive em Porto Alegre (RS). Carlos Drummond e Autran Dourado. bem iniciante. Mas os jovens agora têm uma arma mais se prever, a leitura permeia democrática. Publicar na internet. Há muitos espaços co- letivos, com uma liberdade de inclusão de textos novos e todos os “conselhos”. você ainda pode criar seu próprio site ou blog, mas cuida- do para não incomodar as pessoas, enviando mensagens e Irônicos ou sérios, os autores avisos para que leiam sua mais recente obra-prima. dão dicas que podem ser 2. Publique seus textos em sites e blogs e deixe que si- 7. Mande seu livro a todos os concursos possíveis e a edito- Tente publicar o primeiro livro por gam o rumo deles. ras bem escolhidas, pois cada uma tem seu perfil editorial. úteis a quem pretende se Depois de um tempo divulgando sua produção ele- É melhor gastar seu dinheiro com selo e fotocópia do uma editora pequena, de preferência tronicamente, você vai encontrar alguns leitores. Terá que que com a impressão de uma obra que não será distribuída sem distribuição comercial. É aventurar pelos mais do que ler os textos deles, e dar opiniões e fazer sugestões, mas e que terá que ser enviada a quem não a solicitou. Enquan- também receberá muitas dicas. to isso, dedique-se a atividades afins, para controlar a ansi- bastante provável que esse livro tortuosos caminhos da ficção. 3. Leia os contemporâneos, até para saber onde é o edade, porque essas coisas de literatura demoram, demo- seja ruim, e você não vai querer seu lugar. ram muito mesmo. Você pode traduzir textos literários para que ninguém o leia no futuro. Existe um batalhão de internautas ávidos por leitura e consumo próprio ou para jornais e revistas, pode fazer rese- em alguns casos você atingirá o alvo e terá acontecido a nhas de obras marcantes, ler os clássicos ou simplesmente magia de um texto encontrar a pessoa que o justifica. Mas manter um diário íntimo. O importante é se ocupar. Com todo texto escrito na internet sonha um dia virar livro. sorte e tendo o livro alguma qualidade além de ter custado Sites e blogs são etapas, exercícios de aquecimento. Só o tanto esforço, ele acaba publicado. Até o meu terminou Michel Laub livro impresso dá status autoral. O que fazer quando eu publicado, e foi quando me tornei um iniciante adulto. Ti- tiver mais de dois gigas de textos literários? Está na hora nha um livro de ficção no catálogo de uma grande editora. 1. Tente viver intensamente: é na vida que está a maior de publicar um livro maior do que Em busca do tempo E aí tive que aprender outras coisas. Há centenas de livros parte do material literário. perdido? Bem, é nesse momento que você pode continuar de iniciantes chegando aos jornais e revistas para resenhas e 2. Leia clássicos, crítica, livros técnicos sobre como escre- Arruda Leite sendo um escritor iniciante comum ou subir à categoria uma quantidade muito maior de títulos consagrados. E a Ivana ver ficção, mas não deixe de ler o que você realmente gosta, de iniciante com experiência. Você terá que reduzir essas maioria vai ficar sem espaço nos jornais. E é natural que os na hora e no ritmo que quiser. centenas e centenas de páginas a um formato razoável, exemplares distribuídos para a imprensa acabem nos sebos, 1. Leia, leia muito. Leia diariamente. Leia o máximo que 3. Escreva regularmente e deixe os textos descansando. que não tome muito tempo de leitura de quem, eventual- pois não há resenhistas para tantas obras. seu tempo permitir. Devore todo tipo de literatura, exceto a Volte a eles de tempos em tempos e os reescreva. No início, mente, se interessar por um livro de estréia. Para isso, você 8. Não force os amigos e conhecidos a escrever sobre seu livro. de má qualidade. isso é tão importante quanto escrever. terá que ser impiedoso, esquecer os elogios da mulher e Não quer dizer que eles não possam escrever, podem sim, 2. Isole-se. O silêncio é a matéria-prima do escritor. Cada 4. Resista à tentação de publicar primeiros textos na dos amigos e selecionar seu produto, trabalhando duro mas mande o livro e, se eles não acusarem recebimento ou noite que você passa na balada é uma página a menos que internet. No Google, eles perseguirão você para sempre, in- para que ele fique sempre melhor. não comentarem mais o assunto, esqueça e não os queira você escreve. Isso pode parecer pouco, mas ao longo da vida dependentemente do seu remorso. 4. Considere apenas uma pequenina parte de toda a mal, eles são nossos amigos mesmo não gostando do que faz a diferença entre o escritor que chega lá e o que morre na 5. Não mande originais para outros escritores, pelo me- sua produção inicial, e invista na revisão dela, sabendo escrevemos. Se um ou outro amigo escrever sobre o livro, praia cercado de amigos (bêbados). nos nos primeiros anos. Em 99% dos casos você só ganha- que revisar é cortar. festeje ainda se ele não entender nada ou valorizar coisas 3. Não acredite no mito de que quanto mais louco você rá antipatia e/ou falsos elogios, que podem atrasar muito O livro está pronto. Não tem mais do que 200 páginas, que não julgamos relevantes em nosso trabalho. E mande for e mais sofrimento tiver, melhor será sua literatura. Um sua evolução. você dedicou anos a ele e ainda continua um iniciante. umas palavras de agradecimento, pois você teve enfim uma escritor mediano com a cabeça no lugar tem muito mais 6. Também não leve a sério o que dizem mãe, irmã, na- Mas um iniciante responsável, pois não mandou logo apreciação. E se um amigo escrever mal de nosso livro, jus- chances do que um maluco genial. Até porque, se você for morada (o) ou amigos. O ideal é que seu primeiro leitor seja imprimir suas obras completas com não sei quantos to- tamente dessa obra que nos custou tanto? Se for um desco- escritor de verdade, a loucura e o sofrimento estarão sempre alguém mais ou menos do ramo, que tenha alguma relação mos, logo você que talvez nem tenha completado 30 anos. nhecido, ainda vá lá, mas um amigo, aquele amigo para ao seu lado. com você, mas não íntima a ponto de influenciar os juízos. Mas você quer fazer a sua literatura circular de maneira quem você fez isso e aquilo. 4. Seu estilo é seu maior patrimônio. Ouça sua voz e seja 7. Oficinas literárias são boas experiências, mas é preciso mais formal. Quer o livro impresso. E isso é hoje muito 9. Nunca passe recibo às críticas negativas. fiel a ela. Não imite os escritores que você ama (nem os que saber tirar o melhor delas. Há um momento, no início, em fácil. Você conhece um amigo que conhece uma gráfica Ao publicar você se torna uma pessoa pública. E deve ab- você odeia). que elas podem ajudá-lo a queimar etapas inúteis, e um mo- digital que faz pequenas tiragens e parcela em tantas ve- sorver todas as opiniões, inclusive os elogios falsos. Deixe que 5. Se você transita entre muitas linguagens (romance, con- mento, quando você está buscando voz própria, em que elas zes. O livro está pronto. E anda sobrando um dinheiri- as opiniões se formem em torno de seu trabalho, e talvez a to, poesia, teatro, etc.), cuidado. No começo da carreira, é podem fazer muito mal. nho, é só economizar na cerveja. verdade suplante os equívocos, principalmente se a verdade mais prudente escolher um caminho e aprofundar-se nele do 8. Tente publicar o primeiro livro por uma editora pe- 5. Gaste todo seu dinheiro extra em cerveja, viagens, for que nosso trabalho não é lá essas coisas. O livro está publi- que ficar pulando de galho em galho. Deixe a diversificação quena, de preferência sem distribuição comercial. É bastan- restaurantes e não pague a publicação do próprio livro. cado, você já pensa no próximo, saíram algumas resenhas, pra mais tarde. te provável que esse livro seja ruim, e você não vai querer Se você fizer isso, ficará novamente ansioso para man- umas superficiais, outras negativas, uma muito correta. Você é 6. Não tente adequar sua literatura aos modismos e ten- que ninguém o leia no futuro. dar a todo mundo o volume, esperando opiniões que com- então um iniciante com um currículo mínimo. Daí você rece- dências de mercado porque cedo ou tarde você vai ser des- 9. Se receber críticas negativas, por mais tentador que seja parem seu trabalho ao dos mestres. O livro impresso, mes- be a prestação de contas da editora, dizendo que, no primeiro mascarado. Pior que o anonimato é não ser respeitado pelos encher o crítico de porrada, avalie com a isenção possível se mo quando auto-impresso, dá esta sensação de poder. trimestre, as devoluções foram maiores do que as vendas. Como seus pares. ele tem argumentos que podem ajudá-lo a melhorar. Somos enfim Autores. E podemos montar frases assim: isso é possível? Vejam quantos livros a editora mandou de 7. Nunca mande sua brochura espiralada para editora 10. Em todas as etapas dessa carreira longa e difícil, mas Borges e eu valorizamos o universal. Do ponto de vista cortesia. Eu não posso ter vendido apenas 238 exemplares se, alguma, a menos que isso lhe seja pedido expressamente e de também rica e divertida, saiba o momento de desprezar con- técnico, Borges e eu estamos no mesmo nível, produzi- só no lançamento vendi 100, o gerente da livraria até elogiou maneira inequívoca. O mesmo vale para escritores, críticos, selhos e buscar suas próprias respostas. jornalistas, etc. mos obras impressas, mas a comparação não vai adiante. — enfim uma vantagem de ter família grande. 8. Faça o possível para cair nas graças de alguém que Então como publicar o primeiro livro se não conhecemos 10. Evite reclamar de sua editora. MICHEL LAUB é autor de Longe da água, O segundo tempo, coloque seu texto nas mãos de quem decide e faça-o inter- ninguém nas grandes casas editoriais? E aí começa um Uma editora não existe para reverenciar nosso talento a entre outros. Vive em São Paulo (SP). romper seus inúmeros afazeres para ler seu original. Não acredite no mito de outro problema: procurar pessoas bem postas em editoras toda hora. É uma empresa que busca o lucro, que tem deze- 9. Escolha com cuidado a pessoa a quem pedir opinião. que quanto mais louco e solicitar apresentações. Na maioria das vezes, isso não nas de autores iguais a nós e que quer faturar com nosso funciona. E, mesmo quando o livro é publicado, ele não Dê preferência a quem goste de literatura, mas que não escre- você for e mais livro, sendo a primeira prejudicada quando ele não vende. va nem seja do ramo. Ouça com atenção tudo que essa pes- acontece, pois foi um movimento artificial. Não precisamos dizer que é a melhor editora do mundo só soa lhe disser, pois ela será seu leitor no futuro. sofrimento tiver, melhor 6. Nunca peça a ninguém para indicar seu livro a porque nos editou, mas é bom pensar que ocorreu uma apos- 10. Se você tem um blog, publique aí textos interessantes, será sua literatura. Um uma editora. ta conjunta e que, embora não se tenha alcançado resulta- divertidos, expresse sua opinião, mas guarde sua literatura Se por um acaso um amigo conhece e gosta de seu do, há oportunidades para outras apostas e, um dia, quem para a tão sonhada publicação em papel. Seus futuros leito- escritor mediano com a trabalho, ele vai fazer isso naturalmente, com alguma sabe... Foi tentando seguir estas regras que consegui ser o res merecem e saberão agradecer. cabeça no lugar tem chance de sucesso. Tente fazer tudo sozinho, como se não autor iniciante que hoje eu sou. tivesse nada para ajudar você além de que seu próprio LEIA OS “CONSELHOS” DE NELSON DE muito mais chances do livro. Sim, este livro em que você colocou todas as suas MIGUEL SANCHES NETO Um amor anarquista IVANA ARRUDA LEITE é autora de Falo de mulher e é autor de e OLIVEIRA SONIA COUTINHO Eu te darei o céu, entre outros. Mora em São Paulo (SP). que um maluco genial. fichas. E como você só pode contar com ele... A primeira mulher, entre outros. Vive em Ponta Grossa (PR). E NA PÁGINA 8. 8 rascunho 100 • AGOSTO de 2008 Nelson de Oliveira Sonia Coutinho

Evite o estereótipo, fuja do clichê, corra do chavão, não Em suas leituras, preste atenção a todo tipo de recurso marque encontro com o lugar-comum. O critério originalidade narrativo que os outros escritores usam. Veja como mexem não é exclusivo apenas do desfile das escolas de samba, com estrutura, trama ou ausência de trama, construção ou ele ainda faz sentido também na atividade literária. não de personagens, ponto de vista narrativo, etc.

1. Ler muito. Ler de tudo. Ler sem preconceito. Os prosadores devem ler bons poemas. Os poetas 1. Leia o mais que puder. Leia os clássicos mas, principalmente, procure ler devem ler boa prosa. Digo isso porque tenho notado que a maioria dos prosadores não aprecia a os contemporâneos. E sempre guiado pelo prazer — quando a leitura parecer arte poética, assim como a maioria dos poetas não aprecia a arte da prosa. Isso não é sinal de pura obrigação, esqueça. inteligência. O escritor iniciante também precisa cultivar o gosto pela reflexão teórica. Livros de 2. Em suas leituras, preste atenção a todo tipo de recurso narrativo que os filosofia, de crítica e de história da literatura precisam freqüentar sua mesa de trabalho. outros escritores usam. Veja como mexem com estrutura, trama ou ausência 2. Ler muito. Ler de tudo. Ler sem preconceito. Ler o passado e o presente, o cânone e a atuali- de trama, construção ou não de personagens, ponto de vista narrativo, etc. dade. Digo isso porque tenho notado que metade dos escritores iniciantes aprecia somente a litera- Mas, quando for escrever seus próprios trabalhos, não pense em nada disso. O tura contemporânea, enquanto a outra metade aprecia somente os clássicos. Isso não é sinal de que vem de você, no momento de criar, tem de vir como se fosse inteiramente inteligência. O passado e o presente precisam estar em perpétuo diálogo. instintivo, intuitivo. (Aqui, recomendo um livrinho interessante, A arte cava- 3. Ler muito. Ler de tudo. Ler sem preconceito. Ler os brasileiros e os estrangeiros, os daqui e os lheiresca do arqueiro Zen, de Eugen Herrigel. Ele mostra como combinar de lá. Digo isso porque tenho notado que metade dos escritores iniciantes aprecia somente a litera- espontaneidade e elaboração.) tura brasileira, enquanto a outra metade aprecia somente os estrangeiros. Isso não é sinal de inteli- 3. É útil saber o que os outros escritores pensam sobre seu ofício. Descubra o gência. Certo, eu confesso: eu pertenço ao primeiro time, esse mandamento vale pra mim. Aprecio que eles dizem a respeito em entrevistas e depoimentos. Se possível, converse com muito mais a prosa e a lírica brasileiras do que a prosa e a lírica estrangeiras. Por isso tenho me muitos deles, mesmo que tenha de vencer uma natural tendência dos literatos obrigado, ao menos profissionalmente, a estar sempre em contato com os de lá. Minha tese de para a introversão e o isolamento. doutorado foi sobre a lírica portuguesa contemporânea. 4. Uma americana que dá oficinas literárias em Taos, Novo México, a 4. Ler muito. Ler de tudo. Ler sem preconceito. Ler desconfiando do que está lendo, ler descon- Nathalie Goldberg, diz que a única maneira de fracassar, para quem escreve, fiando do autor, do editor, do livreiro. Desconfie dos livros de sua predileção, desconfie mais ainda é parar de escrever. É uma boa frase para lembrar nos maus momentos, quando dos autores de sua predileção. Livros e autores, ame-os intensamente, sim, mas jamais se entregue à a gente pensa chegou ao fim, que não tem mais editor e ninguém quer saber idolatria cega, pois os escritores são mestres na arte da sedução e do engano. dos nossos escritos. 5. Ver muito. Ver de tudo. Ver sem preconceito. Cinema, dança, artes plásticas, teatro, seriados 5. É bom, por outro lado, lembrar que temos o direito e, em certas circunstân- de tevê. Ouvir muito. Ouvir de tudo. Ouvir sem preconceito. Música erudita e popular, clássica e cias, o dever de parar de escrever. Rilke, em suas Cartas a um jovem poeta, contemporânea. Ler muito. Ler de tudo. Ler sem preconceito. Quadrinhos, quadrinhos, quadri- aconselha: “Se você consegue viver sem escrever, não escreva”. nhos. Jogar muito. Jogar de tudo. Jogar sem preconceito. Videogame, RPG, cosplay. 6. Tenha em vista que há dois tipos de motivação para o escritor — a 6. A literatura é antes de tudo linguagem. Linguagem articulada com sensibilidade e talento. extrínseca e a intrínseca. A primeira, a extrínseca, gira em torno da busca de Linguagem estética, subjetiva, conotativa, que ultrapassa a linguagem ordinária, objetiva, denotativa. aceitação e sucesso. A segunda, a intrínseca, diz respeito à necessidade inte- O escritor não deve procurar com avidez o mínimo denominador comum: apenas a linguagem que rior de escrever — e é esta que, mesmo diante do eventual insucesso, leva o é acessível à maioria das pessoas. Quem faz isso são os autores de best-sellers, simples contadores de escritor a continuar. A necessidade intrínseca é mais importante e confere histórias, simples versejadores, não os verdadeiros escritores. dignidade — apóie-se nela. 7. Evite o estereótipo, fuja do clichê, corra do chavão, não marque encontro com o lugar- 7. Se puder, aprenda línguas estrangeiras, no mínimo duas. Leia autores es- comum. O critério originalidade não é exclusivo apenas do desfile das escolas de samba, ele ainda trangeiros no original. E você mesmo traduza poemas ou trechos de bons autores faz sentido também na atividade literária. — é um excelente exercício. 8. Bons sentimentos não fazem boa literatura. Afaste-se do tratamento edificante, repleto de 8. Literatura não é atividade puramente de gabinete. O que oferece o maior boas intenções. A sociedade está cheia de defeitos, porém a melhor forma de propor soluções não aprendizado para o escritor iniciante é a própria vida. É preciso ir fundo na vida, é produzir literatura doutrinária, militante, moralista. e dar vazão às suas emoções pessoais. Pode haver risco nessa aventura, mas é um 9. A função da boa literatura não é entreter e deleitar, mas inquietar e provocar o leitor. Se a risco necessário. E vá fundo enquanto jovem. Mais tarde, pode ser impossível. narrativa e o poema passam o tempo todo adulando o leitor, dando-lhe somente o que ele deseja, 9. Viajar ajuda bastante. Candidate-se a bolsas, passe temporadas fora do Bra- evitando constrangê-lo ou contrariá-lo, essa narrativa e esse poema são péssimas peças literárias. sil. Viver dentro de uma cultura diferente aguça o senso de observação. E pode ser 10. Prosadores, evitem as formas consagradas, evitem o conto e o romance realista, inventem uma boa maneira de “ir fundo.” sua própria forma, a teoria do efeito único e concentrado (Poe e Tchekov) e a do iceberg (Hemingway 10. Se você não tem condições, inclusive por motivos financeiros, de seguir e Piglia) pertencem ao passado glorioso. Poetas, evitem as formas clássicas, evitem o verso de estes preceitos, escreva, de qualquer forma, nem que seja a lápis, em momentos medida fixa, inventem sua própria métrica, fujam da rima, o poema regularmente metrificado e avulsos. E denuncie suas desvantagens. rimado pertence ao passado glorioso. * Esse decálogo foi montado a partir dos textos da coletânea A oficina do escritor: sobre ler, escrever e publicar, lançada este ano pela Ateliê Editorial. SONIA COUTINHO é autora de Os venenos de Lucrécia e O último verão NELSON DE OLIVEIRA é autor de Ódio sustenido e Subsolo infinito, entre outros. Vive em São Paulo (SP). de Copacabana, entre outros. Mora no Rio de Janeiro (RJ). 100 • AGOSTO de 2008 rascunho 9

LEITURAS CRUZADAS LUÍS HENRIQUE PELLANDA

mos. É claro que há os grandes filósofos, os grandes romancistas, os grandes autores e diretores de teatro, os grandes mestres da LITERÁRIA espiritualidade, os grandes compositores, os Afinação grandes poetas, os grandes cineastas †temos que ler todos eles. Sabe qual é a coisa que um estudante de teatro pode dizer e que A atriz Clarice Niskier nasceu no Rio • Que espaço a literatura ocupa no to com A alma imoral de novo. E já tenho seu dia-a-dia e no seu método de uma bibliografia enorme para estudar so- mais me chateia? “Ah, conheço esse autor, de Janeiro, em 1959. Atualmente, está trabalho? bre a Rainha Elizabeth. Dessa riqueza de já li muito sobre ele.” Tudo bem, a primei- ra vez em que entrei em contato com Artaud em cartaz em São Paulo, no Teatro Eva Meu trabalho é totalmente ligado aos mundos, vou construindo minhas cone- foi por intermédio de um livro sobre ele. livros. Toda peça exige um grande núme- xões. Os livros vão chegando, indo, fican- Herz, com o espetáculo A alma imoral, Mas, depois, eu mesma fui ler Artaud. Você ro de livros para se estudar, ler, consultar. do, minhas escolhas têm muito a ver com interpretado e adaptado por ela a partir não pode ficar sabendo das coisas pelos Vou comprando, ganhando, pegando em- meus trabalhos. [...] Os livros que já li es- outros. Leiam sobre os autores, mas leiam do livro homônimo do rabino Nilton prestado. Tenho o hábito de ler muitos li- tão para sempre dentro de mim. Os livros os próprios autores. Precisamos, sim, ter a vros ao mesmo tempo até um deles me que leio me levam a outros que me levam a Bonder. A atuação lhe rendeu o prêmio pretensão de formar uma opinião própria pegar de jeito e me fazer largar todos os outros que me levam para dentro de mim. Shell de melhor atriz em 2007. Clarice sobre as coisas. Um dia, tive que encarar outros. Antes de A alma imoral, de Nilton Me desculpe se estou sendo piegas, mas os aquela coleção de Monteiro Lobato sozi- vem se destacando no teatro nacional Bonder, eu tinha me apaixonado por A livros nos levam para dentro da gente. nha. Minha irmã não ia ficar me contando caixa preta, de Amós Oz. Quando acabei desde o início da década de 1980, histórias da Emília para sempre. Mas, para de lê-lo, o abracei e chorei como se estives- • Você percebe na literatura uma fun- quando estreou nos palcos com a peça não dizer que estou fugindo à pergunta, aí se me despedindo de um amigo. Ainda li ção definida ou mesmo prática? vai um autor fundamental, que escreveu li- Porcos com asas, de Marco L. Radice e somente Amós Oz por um bom tempo. Até Totalmente prática. Só essa possibilida- vros fundamentais: Shakespeare. Lidia Ravera. De lá para cá, já trabalhou que comecei tudo de novo, voltei a ler vá- de de interiorização já é incrível. E você se afina lendo. Somos um instrumento. As- com diretores como Domingos Oliveira, rios livros ao mesmo tempo. Vou tateando, procurando, largando alguns no meio, até sim como um piano, precisamos de afina- • Que personagem mais a acompa- Eduardo Wotzik, Felipe Hirsch e Amir que chega aquele que me silencia, me pára, ção. A literatura me afina. Lendo Guima- nha vida afora? Dom Quixote, por tudo que ele repre- Haddad, entre outros, e interpretou me põe um limite, não sei explicar. Com rães Rosa, eu me aprumo. Lendo João Cabral, Drummond, , senta em nosso imaginário. E, neste mo- textos de , Bertolt A alma imoral foi assim. Depois dele, li toda a obra de Nilton Bonder. Millôr. Com Machado de Assis, ganho cer- mento, estou fascinada pela Rainha Brecht, Edward Albee, Aristófanes, ta elegância, que me ajuda a manter a Elizabeth. Ela tem uma história incrível. Que mulher, que independência. Mas ado- García Lorca, Dostoievski e Nelson • Você possui uma rotina de leituras? verticalidade. José Saramago, Gabriel Como escolhe os livros que lê? García Márquez, Clarice Lispector, Rubem ro os personagens das comédias. Os de Rodrigues, para citar apenas alguns Molière são maravilhosos. Ainda não atuei É tudo meio caótico. Antunes Filho disse Fonseca. Tem autores que nos desorgani- numa peça de , mas ado- autores. Em 2002, escreveu e que um ator deveria ler 40 páginas por dia. zam. Não tem aquela música do Chico ro O auto da Compadecida, Chicó e João Tentei, mas não deu. Há dias em que não Buarque, Paratodos? Para cada estado de estrelou o monólogo Buda. Grilo. Adoro os personagens ingênuos, es- leio nada e outros em que leio muito. Há alma, um autor, um compositor. Quando pirituosos e idealistas, os brincalhões, os que meses férteis e meses que não rendem. Não você estiver se sentindo muito centrado, leia os autores que vão descentralizá-lo. Quan- não fazem grandes maldades, só pequenas, • Na infância, qual foi seu primeiro con- consigo ter uma disciplina rígida em rela- do estiver em crise, leia os extremamente como o Saci-Pererê e a Emília, de Monteiro tato marcante com a palavra escrita? ção à leitura. Sigo um fluxo de pensamen- racionais, que vão organizá-lo. Quando es- Lobato, o Puck, de Shakespeare. Amo Não lembro de um momento especial- tos, vou reunindo informações, dúvidas e tiver se sentindo muito careta, leia os que Carlitos, de Chaplin — ele vem do cinema, mente marcante, mas posso contar um mo- certezas, vou anotando idéias até tudo de- transbordam loucura. Com a literatura, mas vive na minha imaginação como se eu mento do meu filho? Estávamos de carro saguar num tema. E aí tenho uma necessi- você “malha” a imaginação. A diretora de o tivesse lido. E há os personagens que fiz no Rio, eu dirigindo, ele no banco de trás e, dade enorme de me aprofundar nesse tema. teatro francesa Arianne Mnouchkine diz no teatro, os fundamentais, os inesquecíveis. de repente, paramos num sinal. Ele gritou: Só leio livros sobre ele. Mas essa escolha que o teatro é o terreno baldio da imagina- “Mãe, olha a placa. Tá escrito ‘Co-pa-ca-ba- parte mais do coração que do intelecto. E é um tema que geralmente me surpreende. ção. A literatura também. • Que livro os brasileiros deveriam na’. É onde o vovô e a vovó moram, né?”. ler urgentemente? Sua expressão era de alegria total. Conse- “Nunca pensei que faria isso” é um pensa- • Como você reconhece a boa lite- Os brasileiros deveriam ler urgentemen- guiu ler numa placa de rua o nome do bair- mento que volta e meia aparece na minha ratura? te. Livro ainda é objeto de luxo para a mai- ro dos avós. Era muito pequeno, estava des- cabeça. Nenhuma idéia me aparece pronta, Pelos sentidos. Claro que tenho lá meus oria dos brasileiros. De um modo geral, lumbrado. As letras passavam de meros tra- mas nenhuma aparece à toa. Minha vida é julgamentos, minhas referências, minhas acho que o brasileiro deveria ler mais sobre ços esquisitos a signos cheios de significa- muito relacionada ao teatro, tem uma di- “academias”. Mas os sentidos ainda são os o próprio país. E me incluo nisso. Queria dos, afetividades, sentidos, formando uma nâmica muito rica. Atuo numa peça basea- melhores guias. Eles reconhecem um bom estudar novamente a História do Brasil. palavra que ele reconhecia e que batia since- da num livro de Dostoievski e, logo depois, livro, a qualidade da sua matéria-prima, Queria ler muito mais literatura brasileira. ramente no seu coração. Foi um momento numa de ; García Lorca como alguém que gosta de vinho reconhe- Acho que leio pouco os autores brasileiros. mágico. Certamente, um dia, senti esse des- e, depois, Edward Albee; Eurípedes e, de- ce a boa uva. Vou experimentando os li- Quando vejo o trabalho do Antonio lumbramento com a palavra escrita, algo que pois, Domingos Oliveira. Em 2009, vou vros e sentindo. Acho triste não gostar de Nóbrega, quando escuto repentistas, quan- mais tarde quis expressar no teatro. interromper A alma imoral para atuar na peça Mary Stuart, de Schiller. Depois, vol- um livro, mas às vezes não gosto. O diretor do leio Cora Coralina, quando ouço uma teatral Peter Brook diz que o teatro só não lenda indígena, um lado meu sonha em ter • De que forma a literatura surgiu na pode ser chato. É isso. Um livro não pode um caminhão e seguir viagem pelo Brasil, sua vida? ser chato. Tem que ter ritmo, pegada. E os pesquisando linguagens, descobrindo as Minha família lia muito, principalmen- sentidos sabem discernir isso melhor que o histórias do povo brasileiro. Sabe o filme te meu pai, advogado, e minha irmã mais intelecto. Agora, a química entre você e um Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues? Queria se- velha. Mas eu era muito agitada, ansiosa. livro depende muito do seu momento de guir na Caravana Rolidei. Este é um país Tinha pressa em acabar um livro. Quando vida. Já dispensei muitos livros que, depois, muito fascinante, profundo e ainda desco- meus pais me davam um, eu lia o seu iní- foram muito importantes para mim. nhecido para nós. Sonho em vê-lo explo- cio e já ia para o fim, pulando o meio. Um dindo cultura para si mesmo. Sonho com dia, meu pai comprou uma coleção de 12 Divulgação • Quais são seus autores predile- um mercado interno consumidor ávido por volumes de Monteiro Lobato. Minha irmã tos? E os que mais influenciaram cultura. Em cada esquina não tem um lia e, depois, contava as histórias para mim. seu trabalho? campinho de futebol? Em cada esquina um Tinha também a coleção do Vovô Felício teatro, um cinema, uma livraria, uma bi- A lista é imensa. Domingos Oliveira é [o escritor Vicente Guimarães]. Dessa, li um blioteca, um museu vivo, uma cinemateca, um autor que me ensinou muito. Mas a livro, pulando páginas. Li um volume só, uma sala de música, uma escola. Já pen- lista é muito grande. Todo ano, mudo meus os outros, imaginei. Na adolescência, tiran- sou? E se todos pudessem ler Darcy Ribei- livros de lugar. No escritório de casa, te- do os livros que era obrigada a ler na esco- ro? Eu me entendi melhor como brasileira nho uma estante formada por quatro pra- la, eu imaginava os outros. Às vezes, a par- lendo . tir de uma frase, ficava horas construindo teleiras presas às paredes. Os livros sobem e outras histórias, inventando personagens, descem dessas prateleiras de acordo com o trabalho que estou fazendo. Em frente ao • Como formar um leitor no Brasil? escrevendo poesia. Às vezes, eu me apaixo- Tive um professor de matemática que me nava por um título. Um título me fazia in- computador, ficam os livros do dia-a-dia. Aqueles que realmente são lidos, consulta- fez amar a matemática. A partir dele, mi- ventar uma história e, assim, eu não lia nha visão sobre a matemática mudou com- aquele livro. As palavras sempre foram um dos, manuseados. Vou citar os autores que estão, neste momento, nessa prateleira. Pela pletamente. Entendi que a forma como se estímulo muito forte para mim. Na primei- ensina uma matéria é tão importante quan- ra vez em que li José Saramago, senti isso. ordem em que estão dispostos: Hélio Pellegrino, Mário de Andrade, Dario Fo, to a matéria. Um ser humano capaz de Aquilo era tão bem escrito, me dava tanto transmitir conhecimento com paixão é ca- prazer, que eu tinha que andar, me movi- Fernando Pessoa, Guy Debord, Ali Kamel, Antonio Monda, Clarissa Pinkola Estes, paz de contagiar outro ser humano. E essa mentar, dançar, para poder continuar a lei- paixão pelo conhecimento forma um lei- tura. As histórias mobilizavam em mim , Marlene Fortuna, , Marcelo Gleiser, Fernanda de tor. Há conhecimento nos livros. Por meio uma energia muito grande, uma vontade deles, você aprofunda sua percepção de re- de fazer alguma coisa. Criar, gritar, sei lá Camargo-Moro, Ishmael Beah, Charles Darwin, Jean-Claude Carrière, Robert alidade. Um livro pode tirar o homem da — sabe aquele grito bom de gol? Eu ainda sua condição de oprimido. Assim como não sabia direito o que fazer e ficava ansio- Wright, Thomas Mann, José Miguel Wisnick, Darcy Ribeiro, Eric Hobsbawn, meu filho um dia descobriu que há placas sa. Aí, ia escrever. Lia três páginas e escre- que indicam o caminho para a casa de seus via três mil. Na adolescência, escrevi muito Pina Bausch, Marilia Pêra, Lucia Rito, , Harold Bloom, Jan Kott, avós, os livros indicam caminhos infinitos. mais do que li. Fui aprendendo a me rela- Onde há liberdade, há livros; onde há li- cionar com a leitura aos poucos. Minha Sergio Belmont, Pirandello, John Cage, Nilton Bonder e Sylvio Lago Junior. vros, há liberdade. Um homem oprimido primeira insônia foi o livro Coração de pela fome não tem condições de apreciar vidro, de José Mauro de Vasconcelos. Só • E quais livros foram fundamentais à um livro. Acabando a fome no Brasil, sur- dormi depois de acabá-lo, um dos primei- girá então a fome de livros. É o sonho de sua formação pessoal e profissional? ros livros que consegui ler inteiro. Chorei todos que escrevem. r com O meu pé de laranja lima, também Os de teatro. Estou tentando escolher O • do José Mauro. Adorei A revolução dos Livro, aquele que indico como O Indispen- bichos, de George Orwell; A erva do dia- sável, que a pessoa não pode morrer sem bo, de Carlos Castaneda. Mas um dos pri- ler. Mas é difícil. Defendo a idéia de que a Leia mais no site meiros romances que li apaixonadamente pessoa deve procurar por toda a vida pelo www.rascunho.com.br foi Os mandarins, de Simone de Beauvoir. seu livro fundamental. É como digo em A Até hoje, quando vejo uma edição nova alma imoral: somos seres em transforma- desse livro, me dá vontade de comprá-la. ção, todos os dias acordamos diferentes. Também havia Jorge Amado. Li Capitães Precisamos compreender o que já esquece- da areia em dois, três dias. E amei A insus- PARA VER CLARICE NISKIER: tentável leveza do ser, de Milan Kundera. A alma imoral. Teatro Eva Herz • Livraria Cultura Não me lembro mais da ordem cronológi- (Av. Paulista, 2.073, Bela Vista, Centro, São Paulo), ca das coisas, mas em determinado momen- (11) 3170-4059. Sextas e sábados, às 21 horas; to a paixão pelos livros vingou. domingos, às 19. R$ 50. 10 rascunho 100 • AGOSTO de 2008

CARTAS DE UM APRENDIZ JOSÉ CASTELLO

Sem floreios volta sempre ao mesmo lugar, de re- De autores jovens como você, pente, também eu me vi. E me assus- Caro Maurício, Maurício. Por prudência, decidi vol- tei. O livro falava de minha própria tar às cartas com o seu Beijando den- fuga, que não parava de me pertur- Não sei se você sabe. Ano passa- tes (vencedor do Prêmio Sesc de Li- bar. Falava de minha desistência, por do, publiquei no Rascunho cinco teratura 2007). Um livro que, sem cansaço, por um medo vago de er- Cartas de um aprendiz. Gostava de dúvida, me empolgou. Um livro sem rar, por desapontamento, das cartas escrevê-las, mas a reação feroz de al- floreios, sem empáfia, escrito com for- que comecei a escrever. Seu livro, guns destinatários, que me leram ça, livro de quem sabe o que deseja e Maurício, me fez ver que eu precisa- como se eu fosse um juiz, ou um car- o que busca. Um livro de escritor. va voltar a escrevê-las. rasco, me levou a desistir. A ceguei- Nele, um relato, em particular, me A literatura é uma sucessão de ja- ra leva muitos escritores a achar que tocou. Ao redor da mesa (Fuga para nelas e mais janelas que se abrem, a a crítica é uma condenação. Imagi- quatro vozes), que está na página 27. cada página, a cada linha, a cada nei que jovens escritores escapassem Beijando dentes É dele que venho falar. palavra. Em seu Relatório da coisa, disso. Que nada! Parece que a voca- Maurício de Almeida Seu conto se baseia na idéia da Clarice Lispector usou a marca de ção literária começa não pelo impul- Record fuga, não só o ato de fugir, mas tam- um relógio, Sveglia, para classificar so à escrita, não com o vício da pa- 111 págs. bém o gênero musical. Fala de algo as coisas do mundo. Sem ceder à pu- lavra, mas como uma suspeita, ou que eu mesmo fiz quando resolvi, blicidade, eu a imito e digo que a uma perseguição. exausto, acabar com minhas Cartas literatura tem um espírito em Win- Será que eu escapo disso? Prova- de um aprendiz. Essa coincidência de dows. Ela destranca e areja o mun- velmente, não. Alguns dos desafetos posições me levou não só à idéia de do abafado em que vivemos. Destra- que colecionei durante minha vida li- Um livro [Beijando recomeçar. Mas de recomeçar escre- va a tampa do real, revelando seu terária, quem sabe, são mais vítimas vendo sobre seu livro. É um relato que interior em abismo. Janelas que des- de minha sensibilidade, também ela às dentes] que, sem mescla quatro vozes — pai, mãe, fi- pencam sobre janelas, portas e mais vezes irritável, do que meus algozes. dúvida, me empolgou. lho e avó — que, em torno de uma portas que se entreabrem, ventos e Não estou aqui para me excluir de mesa, falam da vontade de fugir. A mais ventos a soprar, em uma vora- nada. O mundo literário é um tabu- Um livro sem floreios, síntese já está na primeira frase, dita gem sem fim. Temos o espírito rígi- leiro de xadrez, no qual ocupamos sem empáfia, escrito pela mãe: “Vou embora”. do, os bolsos cheios de certezas, a lugares provisórios e onde nos subme- com força, livro de Toda relação, mesmo o amor in- mente empedrada, sempre zelosos do temos a uma lógica que nos ultrapas- condicional, toca o insuportável. In- realismo do chão. Mas, se abrimos sa. Há um efeito danoso sobre nosso quem sabe o que clui, de alguma forma, o desejo de um bom livro, nossas certezas desa- pobre mundo pessoal de que, de fato, deseja e o que busca. fuga. Até amar demais dói. Somos bam e nosso espírito ventila. ninguém escapa. Não seria eu. seres inquietos, estamos sempre a tro- Você, Maurício, escreveu sobre Não sei se sou, na acepção rigoro- Um livro de escritor. car de pele (de sensibilidade) e de pen- aquilo de que a literatura mais foge: sa, um “crítico literário”. Sempre me samentos (de sentido). O que hoje é a repetição. Seu tema é, de certo mo- vi, mais, como um leitor — alguém bom, amanhã é péssimo. E disso tra- do, antiliterário. A conversa repetitiva apaixonado pela leitura. Quando re- ta seu conto: do insuportável como entre os quatro parentes não leva a cebo uma correspondência endere- peça do humano. Os pequenos erros, lugar algum, só traz de volta a si çada “Ao crítico literário J. C.”, meu os mal-entendidos, os desencontros, mesma. É um atoleiro, no qual a fa- primeiro impulso é devolvê-la à por- o autor as incompreensões. Todos nos senti- mília se agita, sem se mover. Mas é taria. Meus comentários não são MAURÍCIO DE ALMEIDA nas- mos um pouco desgastados, mesmo em contraponto, como numa fuga de especializados, são laicos. Não vejo ceu em Campinas, em 1982. nas horas mais calorosas. Todos nos Bach, grande dança dos opostos, que isso como uma deficiência. Quando Formou-se em antropologia cansamos, mesmo do melhor. você a manipula. Seu conto encena a escrevo sobre o que leio, não consigo pela Unicamp. É co-autor das Quantas vezes recebemos um elogio potência da literatura. Como um ca- descartar meus sentimentos, devanei- peças Transparência da carne e pela coisa errada? Quantas vezes, num saco de dupla face, mesmo do pior, os, impulsos, fantasias. Conservo sem- No meio da noite. Beijando den- equívoco doloroso, nos amam justa- em um desdobramento, ela consegue pre o espírito do leitor atordoado, der- tes é seu primeiro livro. mente pelo que temos de pior? arrancar o melhor. Basta pensar em rubado pelo que leu. Leu? Leio, ou o A fuga, o gênero musical, se ca- Flaubert, que fez da pequena miséria livro me lê? Ler é se deixar ler por um racteriza pela repetição (o tema é úni- humana a sua grandeza. livro. A literatura não é o terreno de co), mas também pelo desencontro Seu conto me ajudou a pensar em diagnósticos, balancetes e veredictos, (pois dentro do mesmo, resiste sem- minha fuga. Sem escrever, recusando- mas da agitação e do assombro. pre um outro). Nela, muitos sons (vo- me a expor minhas perplexidades e Depois de algumas reações fero- Conservo sempre o zes, olhares) se misturam e se desafi- dúvidas de leitor, eu me incluí naque- zes às primeiras cartas, resolvi me espírito do leitor am. Frases vindas de várias direções, la família, como um quinto e secreto proteger e encerrei a coluna. Por perspectivas conflitantes, sons em luta comensal. Sempre digo que, mais todo um ano, passei a escrever uma atordoado, derrubado — uma grande agitação que não ex- importante que interpretar a literatu- nova coluna, Folha de rosto, dedi- pelo que leu. Leu? clui a repetição. Na fuga, a divergên- ra, é deixar que ela nos interprete. As- cada aos escritores consagrados, ou cia se torna uma constante. A idéia sim são os grandes livros: eles nos mortos. Contudo, muitos leitores Leio, ou o livro me lê? de fugir é, na verdade, uma maneira agitam, deslocam nossas certezas, nos jovens, alunos (alunos?) de minhas Ler é se deixar ler por de ficar. Tudo um grande lodaçal. transformam. A leitura de seu livro oficinas, escritores inéditos ou qua- um livro. A literatura me deu uma rasteira. Lendo seu li- se inéditos, me cobravam que vol- Força obscura vro, eu me li — ou melhor, ele me tasse com as cartas. Falar dos mor- não é o terreno de Esse gênero musical, em que a leu. Seu livro interpretou minha fuga tos, eles argumentavam, é fácil, no diagnósticos, pluralidade fecha em vez de abrir, é e me ajudou a voltar às cartas. Por máximo eles te puxam as pernas. A a chave de seu belo conto. Um rela- isso, Mauricio, muito obrigado. r obra pronta e também morta, po- balancetes e to sobre a força obscura das certezas • rém, não se atinge mais. O difícil é veredictos, mas da e da repetição. Um relato sobre a De seu leitor, falar dos vivos, sobretudo do que agitação e do grande excitação que se esconde no começam — e que por isso, trazem coração das coisas imóveis. Nessa a sensibilidade em carne viva. assombro. trança de movimentos que levam de José Castello. 100 • AGOSTO de 2008 rascunho 11 Além da MORTE Domínio técnico e ímpeto criativo marcam a poética de Ivan Junqueira, em O OUTRO LADO

IGOR FAGUNDES • RIO DE JANEIRO – RJ Outrossim, na Metafísica de Aristóteles, reversibilidade das forças antagônicas da reali- flagramos que tanto a poesia quanto a filosofia dade (“nossa vida, sempre diante/ da morte”; Em O outro lado, décimo primeiro livro de nascem do espanto, da admiração e, talvez por “Não vês que, morto, estou vivendo?”). poemas de Ivan Junqueira, o poeta cumpre com esse motivo, nos soe tão grega quanto contem- Preciosamente vago e recorrente no poema São o ofício dos grandes artistas: dar continuidade a porânea a epígrafe de Pessoa na abertura do li- duas ou três coisas, o pronome pessoal “ela” pode, uma premente questão que atravessa toda uma vro de Junqueira (“Há um poeta em mim que então, remeter, entre outras interpretações, tanto à obra para, dando-lhe os contornos, violar suas Deus me disse...”), ressoada no primeiro poema morte quanto à vida (“Sei que ela vive no halo de molduras. A palavra de Junqueira é esta na qual da coletânea: “Eu sou apenas um poeta/ a quem uma vela/ e queima, sem consolo, em minha cela”), se imprime a predestinação de quem escreve, em Deus deu voz e verso”. Reverberando, ali, algo pois ambas, em dúplice unidade, se fundem vida, a morte; ou antes, de quem é escrito por ela, de um vate, de um rapsodo abduzido pelo divi- igneamente, consoante escreve Indagações: “não há tornando-se (como se tornou) imortal. no, o poeta, irrequieto, chega mesmo a pôr em vida nem morte, mas apenas/ o sonho de alguém A própria voz lírica confessa: “O que escrevi dúvida a própria figura — entificada — de um que, numa viagem,/ julgou estar em busca do eter- foi sempre o mesmo/ poema, e os mesmos são os deus “déspota, deposto”, no magnífico poema no,/ sem saber que o que nos cabe/ (e o que so- dedos/ que nele enrolam o novelo/ dos muitos que dá título à sua trama elegíaca: “Diz-me: o mos, tão fugazes)/ é, se tanto, uma escassa chama eus em destempero”. Porém, ao contrário do que que haverá do outro lado?/ A eternidade? Deus? que arde/ e se apaga ao fim da tarde”. se supõe, não é de Junqueira a inquietante aten- O Hades? Uma luz cega e intolerável? A salva- Evidência da paradoxal possibilidade de per- ção ao mistério da mortalidade. Assumi-la pre- ção? Ou não há nada?”. petuação do fugaz na experiência vibrante do sente em todos é constatá-la pertencente a nin- agora são as muitas passagens que creditam à guém: nós quem pertencemos a ela e, por isso, Elogio à vida potência mnemônica o fulgor da criação ante o permeia, insolúvel, cada povo e era. Porque os Diante de um “céu ao reverso, torto”, a poe- esquecimento (“Ó rios de minha vida: os que cru- poemas de O outro lado são “a súmula e o sal sia filosófica de Ivan Junqueira parece triunfar zei sem ter visto/ e os que fluem, com mais tin- talvez estritos/ do que somos, tu ou eu, desde o num pessimismo que também se questiona so- ta,/ no pélago das retinas/ de quem agora os re- momento/ em que um clarão se fez”, sobressal- bre a fertilidade do “pensamento erradio/ da- cria!”), a possibilidade do sonho que anula dis- ta-nos, no “fundo ambíguo de um espelho”, “a quela vã filosofia/ que se move em nós, escon- tâncias e perdas (conforme o magnífico Não vês, sóbria embriaguez de um terceiro” rosto, ou nem- dida,/ e faz da existência esse enigma/ que é meu pai?) e a imortalidade do ser na impressão, rosto, lançado entre nós e os muitos ivans; entre não termos princípio ou fim/ e até mesmo ne- para a posteridade, de uma arte impregnada de a luz e a escuridão, o som e o silêncio, Eros e nhum sentido”: “pergunto-me afinal se valeu a personas e narrativas que, também eternas, desfa- Thanatos, a “alma e os ossos/ do que jaz debaixo pena/ a aposta que fiz no infinito e na beleza,/ zem, vez por todas, a dicotomia entre ficção e e paira acima”. Perguntar pela morte é atraves- em Deus e na eternidade, na poesia/ que me real, mito e verdade: “Hermes”, “Apolo”, sar-nos pelo ardor do sagrado, por um élan des- abandona agora à própria sorte/ na extrema “Lenora”, “Píndaro”, “Ulisses”, “Penélope”, conhecido que, em nossos interstícios, inventa sem- fronteira entre a vida e a morte”. E é de seu “Calipso”, “Ogígia”, “Odisseu”, “Plotino”, pre um “outro lado” dentro (e para além) do vozerio, “já de morte ferido”, que obtemos a “Agostinho”, “Plínio”, “Horácio”, “Ovídio”, “mesmo”: “compreendi que esse processo/ de ser- resposta de que a arte “não cobiça/ ser laureada “Virgílio”, “Fausto”, “Dante”, “Cervante”, mos outros (e até/ termos em nós outro sexo)/ ou aplaudida/ por sua exímia alquimia,/ mas “Dom Quixote”, “Baudelaire”, “T. S. Eliot” e nada em si tinha de inédito:/ já se lia no evange- tão-só fruir de si/ o prazer de estar viva”. Na muitos outros bens poéticos inserem-se no “testa- lho/ de um deus ambíguo e pretérito”. E se lia, elegia de Junqueira, um oblíquo elogio à vida mento” do poeta como (co)memoração do “tes- enfim, em começo, antes de Cristo, entre os gre- sobressai, pois ela é o que, fugindo, incessante- temunho/ do sangue que (...) se vai embora”. gos que comparecem na (falta de) margem de todo mente o persegue nos labirintos da memória que Decerto que as três musas do monte Hélicon pensar: “a mão que escreve é aquela/ que ergueu tudo salva e presentifica, na concomitante consagram a pena de Junqueira: Melete doa-lhe o um brinde aos féretros/ de uma insepulta Grécia”. rigor na variabilidade métrica e fônica; Mnme, o Na procura pelo fundamento das coisas, mui- vigor da improvisação imaginal; e Aoide, o canto tos os nomes propagados ao longo da história, na resultante da mistura entre o domínio técnico e o afirmação de uma força inaugural que, tendo a ímpeto criativo. Nem tudo em Ivan Junqueira “vai, morte como ponto de chegada e partida, anima- enfim, se despedindo”. Enquanto vivo, a potência ria a vida em seu durante: do ser em Parmênides musal não o abandona no “áspero exercício/ da ao logos de Heráclito; da idéia de Platão à potên- língua, do ritmo, da rima,/ de tudo a que não cia-e-ato de Aristóteles; do Deus cristão ao sujeito renunciam/ a fúria e o som da poesia”. r moderno — de muitas formas, tudo isso entra, na • anamnese poética de Ivan Junqueira, em ebulição, até precipitar, de novo, naquele “rio/ de cujas águas alígeras/ ninguém sai igual a si/ ou àquilo que está vindo/ a ser, mas não é ainda”. o autor Uma vez que “tudo se move” e “esta é a sina/ IVAN JUNQUEIRA nasceu no Rio de Janei- de todos, este o castigo/ que nos coube, como a ro (RJ), em 1934. Ingressou nas faculda- Sísifo:/ a de sermos o princípio e o fim, na mes- des de Medicina e de Filosofia da Universi- ma medida”, o homem se pergunta (mediante a dade do Brasil, cujos cursos não chegou a arte, a filosofia, a ciência, a religião) sobre o que concluir. Iniciou-se no jornalismo em 1963. há de sobreviver sempre ao fluxo de todas essas Sua poesia já foi traduzida para o espa- mudanças: “... as pedras/ me ensinaram que o nhol, alemão, francês, inglês, italiano, di- critério/ do que em tudo permanece/ nunca está O outro lado namarquês, russo e chinês. É autor, entre nelas, inertes,/ mas nas águas que se mexem/ com Ivan Junqueira outros, Os mortos, À sombra de Orfeu e Record A sagração dos ossos. vário e distinto aspecto,/ de modo que não repe- 112 págs. tem/ o que antes foi (e era breve)”.

BREVE RESENHA AULA DE POESIA ÁLVA R O ALVES DE FARIA • SÃO PAULO – SP

Quando se lê um livro como poemas deste livro. É bom colocar aqui palavras do poeta ânforas:/ há olhos congelados dedos cegos/ tubérculos em Zoozona, do poeta Mauro para explicar sua obra: “Desde o início, minha criação poé- febre. Os lagos arfam/ passa um frêmito azul na água dos Gama, tem-se ainda alguma espe- tica teve sempre duas vertentes. Uma voltada para dentro, juncos/ os sapos se extasiam a banda e os banhos/ bilham rança. Nem tudo se perdeu. E fa- subjetiva, lírica, introspectiva, e a outra voltada para fora, erguem-se cantos balões bombos”. lar isto neste país pode ser uma objetiva, social e até política, satírica com freqüência”. Mauro Gama sabe lidar com as palavras. Faz com elas o dádiva, dessas que algumas divin- Mauro Gama explica que essas, no entanto, não são dife- que bem entende. O som, as sílabas, a frase poética, o verso, dades ainda oferecem aos homens. renças rígidas, inalteráveis. Seus dois primeiros livros, Cor- as letras. Isso também está presente em Zôo, poemas sobre e Eis um livro de poesia, de Mauro po verbal e Anticorpo, mantêm essas diferenças com toda para bichos, numa linguagem poética rara. Como em Girafa, Gama, a quem José Guilherme nitidez: “São paradigmas desse comportamento, de antinomia pequeno exemplo: “Este é um camelo metafísico:/ cansou de Merquior chamou de mestre, dizen- e complementaridade”. O poeta observa, então, que a partir areia de deserto/ e é um movimento para cima —/ sempre do-o “uma das vozes mais admi- delas — como diz — “a divisão se observa mais em grau, em partindo para o céu”. O poeta e também crítico de literatura ráveis da poesia em nossa língua”. predomínio, do que em terrenos, ou conjuntos, distintos”. observa na sua apresentação que “a poesia, quando verdadei- Merquior estava certo. Aliás, São dois livros num só volume: Zôo e Marcas da noite. ra, jamais se esgota na composição, ou na fisionomia gráfica Merquior pouco errava, queiram Zoozona Sem erro: o que de melhor se pode produzir em termos de que adquire”. Tem razão. É assim mesmo. ou não seus desafetos. Provou até Mauro Gama poesia, especialmente num país que está sempre a se enganar Por fim, tomo a liberdade de sugerir ao leitor de Zoozona A Girafa que uma estrela acadêmica deca- 147 págs. no que diz respeito a esse gênero literário. A poesia se trans- que arranque um trecho do livro que tem o título Saída, da dente brasileira ligada aos poderes formou em algo descartável completamente por conta da página 87 a 91. Arranque e jogue fora. Esqueça. Trata-se so- vigentes não passava de uma mentira de todos os dias de um jornalismo cultural medío- mente de uma mancha num belíssimo livro de poesia. De uma plagiadora de Spinoza, que transformou o filósofo holandês cre que inventa poetas da noite para um dia, que escrevem inutilidade surpreendente. Uma espécie de pequeno manifesto, em militante de seu partido. Mas isso não tem a ver. poemas que não resistem a uma crítica razoável. Marcas da bem pequeno mesmo, que torna difícil entender por que razão Estamos falando de Zoozona, uma aula de poesia e de noite, especialmente, é uma lição de poesia e de poema, tal entrou no livro. Num dos trechos, Mauro Gama afirma que poema. Uma lição de como se colhe a poesia ainda existen- beleza de palavras em tom poético de música. Vejam apenas “perpetrar sonetos, por exemplo, é caso de internação”. Para te e como se constrói a poesia sem a farsa de um João Cabral os primeiros versos do poema Ação no escuro: “Na escuridão citar apenas dois casos, teríamos então de internar imediata- de Melo Neto, por exemplo, que usava régua e compasso repisada/ de águas esquivas/ e tábuas/ um cheiro vivo de mente Glauco Matoso e tirar Bruno Tolentino da morte para para estruturar seu poema sem alma e sem sangue, um enge- velas/ e flores já sufocadas”. Um retrato de palavras certeiras. interná-lo também. Arranquem essa parte. Poetas como Mauro nheiro juntando seus tijolinhos com fio de prumo. O poeta Mais um exemplo, em Fuga em si menor: “As estrelas — feri- Gama têm, claro, o direito de escrever o que bem entende- e crítico Mauro Gama não é farsante. Não. Prova são os das — se descamam/ perdem pestanas viram mamas e rem. Mas quando a bobagem é demais, dói.•r 12 rascunho 100 • AGOSTO de 2008

OUTRO OLHAR AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA Situação da POESIA hoje A confusão da poesia brasileira contemporânea e a necessidade urgente de uma revisão

A atual situação da poesia brasileira me lembra janela ou porta de trás. Deu no que deu: geléia de João Cabral? O quanto de pré-conceito, de pa- a palavra entropia. Dizem os especialistas que o geral. Tem quem goste. Há gosto para tudo. trulhamento, de briga de gerações havia na estraté- universo vai desmilinguir-se entropicamente, e que Falo como quem participou ostensivamente nos gia de descartar tantos autores que são julgados não tem mais jeito. A rigor, pensei também numa últimos 50 anos dos caminhos e descaminhos da sem serem lidos? Dou exemplo de uma das clamo- expressão até mais apropriada: “dispersão poética”. poesia brasileira. Quando comecei, nos anos 50, o rosas injustiças — Paulo Mendes Campos. Foi tru- É também mais sofisticada. E se fosse escrever um modernismo estava no auge e seus poetas maiores cidado pela juvenilidade auriverde de Mário ensaio sobre isto, terminaria dizendo que somente estavam tendo a edição de suas poesias completas. Faustino e ignorado pelos que vieram depois. uma intervenção crítica que operacionalize a “po- Assisti ao apogeu da Geração 45, que ocupava su- 2) As “vanguardas” dos anos 50 e 60, graças ao ética da dispersão” pode aclarar e superar a “dis- plementos, revistas e programas de rádio com seus seu charme utópico e à neofilia, não teriam sido persão poética”. Alguém o fará? poetas sendo celebrados . Vi (e participei) da emer- supervalorizadas? O que restou de tanto mes- Comecei falando de entropia e dispersão, mas pos- gência das vanguardas (1956-1968). Vi (e partici- sianismo e salvacionismo, o que restou de poesia so recomeçar de outro modo. Factual. Objetivo. A pei) da efervescência lítero-musical dos anos 60 e em tudo isso? tal dispersão atinge, especialmente, os últimos 60 anos. 70. Vi (e participei) da configuração da poesia mar- 3) Reconhecendo o papel da música popular Até o modernismo há um certo consenso em torno ginal nos anos 70 e assisti à sua institucionalização no contexto histórico e político dos anos 60 e 70, das grandes obras desse período. Pode haver uma ou universitária. Vi pessoas e grupos agressivamente não teria ocorrido, no entanto, um exagero de te- outra discrepância, mas o conjunto é basicamente o aparecerem, alardearem que descobriram a “fórmu- ses sobre compositores e músicos juvenilmente mesmo. Depois é que a coisa pega. Como essa encrenca la da verdadeira poesia”, e desaparecerem. transformados em grandes vates? se deu, quais os responsáveis, que forças Durante todo esse tempo, fui júri de dezenas 4) Será que alguns “poetas marginais” tão desintegradoras atuaram nisso, é tarefa para estudos de prêmios de poesia, fui crítico, ajudei a editar institucionalizados são assim tão relevantes? e pesquisas. E tornando mais claro o que estou di- poetas em livros e revistas. Repito: participei dos 5) Enfim, um problema que transcende a poe- zendo, avanço: é inadiável uma revisão da Geração caminhos e descaminhos da poesia brasileira nos sia. A questão socioantropológica da mediação e 45, das vanguardas entre 56 e 68, da poesia marginal últimos 50 anos denunciando sempre a “luta da legitimação. Até os anos 70 havia uma meia institucionalizada nos anos 70 e de uma série de no- pelo poder literário” e buscando o diálogo. E dúzia de críticos de repercussão nacional que fun- mes e autores que surgiram nas últimas décadas. acho que hoje as coisas estão muito confusas e cionavam como instância legitimadora (ou não). Falei de entropia, falei de dispersão e agora têm que ser revistas. Não podemos botar a culpa O país que tinha 70 milhões, hoje tem cerca de 200 sou forçado a retomar a palavra cânone. Nossa só na “fragmentação” típica da pós-modernidade milhões de habitantes. Aumentou o número de geração se vangloriou de acabar com o cânone. e fingir que não é conosco. poetas e dissolveram-se as instâncias mediadoras e O canônico, paradoxal e ironicamente, era ser Insistindo na urgência de se passar a limpo o legitimadoras. Os suplementos, cedendo à socie- contra o cânone. Deu no que deu. Brecha para século 20, algumas questões me parecem pertinen- dade do espetáculo, optaram por resenhas e repor- apressados, espertos e placebos. Não se percebia tes em relação à poesia: tagens. E ocorreu o fenômeno que chamo de que ser contra o cânone era uma estratégia de 1) Será que não é um erro fazer um pacote e “evangelização da crítica”, pastores criam seitas no poder, entrar no desejado/aspirado cânone pela jogar no lixo a geração 45, livrando a cara apenas fundo de quintal e pastoreiam seus fiéis.•r 100 • AGOSTO de 2008 rascunho 13

A biografia mostra a história de um personagem abnegado pela embriaguez do sucesso: em todos os 30 capítulos, está marcada a saga de alguém que sempre quis ser um escritor famoso.

o autor

FERNANDO MORAIS nasceu em Mariana (MG), em 1946. Jornalista desde a década de 1960, escreveu para vários jornais e revistas, como o Jornal da Tarde, Veja e Folha de S. Pau- lo. Como biógrafo e escritor, assinou, entre outros, os livros Chatô e Olga, ambos publicados pela Companhia das Letras, além de Montenegro e Na toca dos leões, ambos editados pela Planeta. Em 2001, outro de seus li- vros, Corações sujos, ganhou o Prê- mio Jabuti na categoria não-ficção.

seller de gente que não necessariamente se considera leitor — e aqui, ao contrário do que se pode imaginar, não vai qualquer juízo a respeito de sua obra. O assunto é a Ramon Muniz biografia, e não a obra de Paulo Coelho. A propósito, um adendo se faz neces- sário neste texto, algo como uma digres- são: recentemente, a revista Piauí publicou um longo ensaio que analisava com requin- te a obra do escritor das multidões. Assi- nado pelo diplomata e escritor Marcelo Dantas, o texto passa um pente fino e traz uma interpretação essencial sobre Paulo Coelho: “Paulo Coelho não quer fazer li- teratura. Sua prioridade é vender livros. Movido pelas estatísticas da moderna in- dústria editorial, ele convenceu-se de que o grande público gosta mesmo é de seu ocultismo açucarado, com tramas banais e finais miraculosos. Tal como o Dr. Igor de Verônica decide morrer, que manipula seus pacientes com furor demiúrgico, assim o mago contenta-se em iludir seus leitores, O MAGO de Morais vendendo-lhes gato por lebre”. O trecho acima citado não consta da biografia assi- nada por Fernando Morais. Entretanto, é FERNANDO MORAIS foi atrás de Paulo Coelho — o homem um texto que deveria servir de rodapé. Em nenhum momento, o jornalista envereda obcecado com a idéia de se tornar um escritor das multidões pela subjetiva área da crítica literária. No entanto, a biografia mostra a história de um personagem abnegado pela embriaguez do FABIO SILVESTRE CARDOSO Paulo Coelho. Encontrou, sim, consenti- sucesso: em todos os 30 capítulos, está SÃO PAULO – SP mento por parte do ex-parceiro de Raul marcada a saga de alguém que sempre quis Seixas. Há quem se lembre, logo no início ser um escritor famoso. Nesse caso, muito Talvez o escritor Paulo Coelho seja um de 2007, quando Paulo Coelho assinou um se explica acerca de sua receptividade jun- dos nomes que, de certa forma, sintetizam texto que rechaçava o comportamento do to ao público e junto à crítica. esse poço de contradições que é o Brasil. cantor Roberto Carlos, que, sentindo-se in- Afinal de contas, trata-se de um dos prin- vadido por uma biografia não-autorizada, Projeto de escritor cipais autores do mundo, posto que seus decidiu recolher os exemplares da obra as- Para o público, Paulo Coelho é mesmo livros já alcançaram a marca de 100 mi- sinada por Paulo César Araújo. Estratégia um mago. Sua capacidade de conquistar lhões de exemplares vendidos em todo o de marketing ou não, já naquela época era leitores é inegável, e isso tem a ver com seu planeta, com direito a traduções em mui- sabido que Fernando Morais trabalhava em propósito de ser um escritor famoso, isto é, tos idiomas, para além do francês, italia- um projeto de biografia de Paulo Coelho. um escritor conhecido e que vende (mui- no, alemão, inglês e espanhol. A impor- O que não se tinha notícia, e revelou-se logo tos) livros. Nada disso, e depois da leitura tância de Coelho, inclusive, ultrapassa a no lançamento deste livro, era a natureza da biografia esse detalhe fica mais evidente, O mago barreira da literatura. Há alguns anos, ele do que havia sido exposto: em linhas ge- Fernando Morais tem a ver com fazer literatura. Em nenhum participa do Fórum Econômico Mundial rais, para não estragar a surpresa de quem Planeta momento, seja nos seus diários, seja nos seus em Davos, na Suíça, sem mencionar suas quiser atravessar as 610 páginas de texto, 632 págs. depoimentos, Paulo Coelho se mostra ater- palavras em outubro do ano passado du- Fernando Morais teve acesso aos arquivos rado com a urgência de um tema, com um rante o anúncio do país sede para a Copa pessoais de Coelho, uma espécie de baú do estilo ora em voga, ou com uma espécie de do Mundo de 2014. Para que se tenha uma Mago, para além das dezenas de entrevis- projeto literário. Não havia projeto de lite- idéia: no dia em questão, aquele que foi tados que aparecem ao longo do livro. To- ratura, mas, sim, projeto de escritor, como considerado o atleta do século, Edson dos esses componentes, não há dúvida dis- se lê no trecho a seguir: Arantes do Nascimento (Pelé), não esteve so, constroem um edifício invejável no que presente. Paulo Coelho estava. E o que se refere à apuração dos fatos acontecidos a propaganda será o principal elemento do dizer da comenda da Legião de Honra, com o personagem, sobretudo nos casos meu programa literário. E será administrada concedida pelo então presidente francês mais polêmicos, como as internações em por mim. Pela propaganda obrigarei o público a trecho • Jacques Chirac em 1998? Não, não há dú- hospitais psiquiátricos, os casamentos frus- O mago ler e julgar o que escrevo. Com isso meus livros vidas de que Paulo Coelho é, sim, célebre. trados, sua infância e juventude em um O fato de ter sido um adolescen- terão maior vendagem, mas isso será uma con- Tal condição, no entanto, não o libera Rio de Janeiro de certa forma inocente se te e depois um jovem adulto aliena- seqüência secundária. O importante é que exci- de suas contradições: em seu próprio país, comparado com a cidade partida de hoje. do e infenso à política não impediu tarei a curiosidade popular a respeito de minhas o escritor está longe de ser uma unanimi- Sem medo de polêmica — Morais, muitas que fosse preso duas vezes pela di- idéias, de minhas teorias. dade. Muito ao contrário: o leitor assíduo vezes, parece procurar os casos mais, como tadura militar e, num terceiro episó- deste Rascunho sabe muito bem que den- dizer?, ácidos —, o jornalista descortina o dio, seqüestrado pelo DOI-Codi, o De sua parte, os críticos não souberam tro do código existente entre os leitores ex- passado ultraliberal de um Paulo Coelho mais brutal instrumento de repres- de cara entender Paulo Coelho como um perimentados e os leitores comuns, há, evi- que viveu o sexo, as drogas e o rock’n’roll são — o que lhe deixou muitas mar- fenômeno paralelo à literatura, daí a dentemente, um consenso, para não dizer como ninguém em sua geração. E o méri- cas e acentuou traços de uma ances- celeuma gerada em torno do autor. Em vez pré-conceito, para com a obra de Paulo to dessa biografia é não deixar nenhum tral paranóia. Outro tipo de perse- disso, tentaram, inúmeras vezes, invalidar Coelho. Em depoimento ao Paiol Literário tema por baixo do pano. guição, o da crítica brasileira, que, o seu sucesso, como quem dissesse que tudo em 2006, o bibliófilo José Mindlin resumiu com raríssimas exceções, despreza era passageiro. À medida que os livros de bem esse sentimento: “Paulo Coelho está Vaidade excessiva seus livros e o trata como subliterato, Coelho alcançavam mais e mais leitores, para a literatura assim como Edir Macedo Para tanto, Fernando Morais faz uso não parece afetá-lo. Ele só se decla- essa crítica acabou por se tornar inócua ten- está para a religião”. Se para bom de uma narrativa aparentemente fora de ra indignado quando as restrições a do em vista o universo dos números a fa- entendedor meia palavra basta, a analogia moda, uma vez que opta por obedecer a seu trabalho implicam menosprezo a vor do escritor. Então, agora, quando Pau- uma entidade que cultiva com dedi- de Mindlin é definitiva. Ainda assim, se a cronologia dos fatos, a não ser pelo pri- lo Coelho lançar novo livro, qualquer ten- cação plena e paciência oriental: seus respeito da obra de Coelho parece existir meiro capítulo, quando traça um longo tativa da crítica em desconstruir a obra será leitores. Para contrabalancear o des- inoperante. O autor está blindado pelos inú- uma resposta que não explica seu êxito, perfil de Paulo Coelho como celebridade dém da crítica brasileira, não faltam poucos se deram ao trabalho de buscar as planetária. Aqui, as palavras que resumem a Paulo manifestações em sentido meros prêmios que recebeu e livros que já raízes de seu sucesso, bem como de suas essa breve saga poderiam ser: incrível, fan- contrário para exibir. E não se fala, vendeu. Ao apresentar o relato desse “du- contradições, na sua trajetória. Faltava um tástico, extraordinário. Nada parece o bas- aqui, de sua eleição para a Acade- elo”, Fernando Morais não esconde seu escritor para contar a vida de outro escri- tante quando se trata de Paulo Coelho, a mia Brasileira de Letras ou mesmo fascínio por Paulo Coelho e, de certa for- tor. Em O mago, o jornalista Fernando começar pelos recordes de venda de seus de condecorações indiscutivelmente ma, toma partido do autor muitas vezes, Morais foi atrás do homem obcecado com livros e de público quando são abordadas honrosas que lhe foram conferidas no chegando a dizer que um crítico não leva a idéia de se tornar um escritor das multi- as tardes de autógrafo e de suas palestras. exterior, como a Légion d’Honneur da sequer uma bactéria às livrarias. Nesse caso, dões. E o resultado está num catatau de Por outro lado, o jornalista evidencia a França, mas de um maciço, consis- o que fica evidente é o magnetismo que o pouco mais de 600 páginas. vaidade excessiva do autor de Brida e O tente elenco de elogios recebidos de carisma de Paulo Coelho consegue exer- Ao contrário do que se possa imaginar, Zahir, duas de suas obras que alcançaram crítico de dezenas de países, entre cer mesmo em jornalistas experientes como Fernando Morais, autor experimentado por o status de livros conhecidos tanto por lei- os quais o venerado escritor e Fernando Morais. Não é à toa que o jor- outras narrativas do gênero (como Olga e tores como por não-leitores. Eis uma das semiólogo italiano Umberto Eco. nalista escolheu como título da biografia Chatô), não teve problemas ao retratar dádivas do mago: ele consegue ser best- o sugestivo O mago.•r 14 rascunho 100 • AGOSTO de 2008

BREVE RESENHA RESPEITO À INTELIGÊNCIA FLÁVIO PARANHOS • GOIÂNIA – GO

“Pode vir, freguês, pode vir, que aqui tem sexo animal e sexo que também o foram, por se traírem, seja pelo uso de uma ou apresentação a essa coletânea da com animal, homossexualismo masculino e feminino, pedofilia, outra gíria ultrapassada, seja por detalhes (como os carros Cor- Nankin, cita ainda outro, o tema da sodomia, traições familiares, todo tipo de perversão, pode vir!” cel, em A moça, Impala, em Ousadia). Ou ainda pelo sistema morte. Eu discordo parcialmente de Falando assim até parece que a coletânea de contos de Luiz Vilela, educacional desatualizado (as crianças de Meus anjos têm dez anos Moisés, penso tratar-se mais de te- publicada pela Leitura, esteja disponível apenas em lojas tipo e estão na quarta série — hoje teriam nove anos de idade). mas amargos, não especificamente “sex-shop”. A graça é que tem isso tudo aí mesmo, só que de Esses detalhes, entretanto, não comprometem o principal, a (ou, pelo menos, não sempre) da forma tão sutil e elegante que pode ser vendido em casas tradici- saber, trata-se de um saboroso livro de contos, de um craque na morte. O que vale também para A onais de livros, respeitosas e respeitadas livrarias. matéria. Tornou-se lugar-comum elogiar sua habilidade nos diá- cabeça e Bóris e Dóris. Amargo, à Contos eróticos Embora sempre se possa criticar o oportunismo comercial- logos. Não trairei o coro. Sim, Vilela sabe falar como poucos. vezes doce-amargo, mas sempre fica Luiz Vilela editorial de se valer de um título desses, é bastante louvável a “Ouvimos” seus personagens com intimidade impressionante. esse retro-gosto ao final da leitura. Leitura iniciativa da editora mineira (que já havia lançado a coletânea Particularmente nós, leitores da mesma região do autor (Centro- (Atenção: isso é um elogio!) 143 págs. 62/2 Contos eróticos, com autores diversos, Vilela entre eles). oeste). Palavras como “uai”, “sô”, além de sutilezas que seriam Moisés aponta ainda para outra Principalmente se considerarmos que a promessa feita pela Record, impossíveis traduzir aqui, nos são tão familiares, que nos senti- característica, um tanto tchekhoviana: “Suas histórias terminam ao lançar a novela Bóris e Dóris, de “colocar no mercado toda mos na sala de visitas (ou nos quartos!) dos personagens. em suspensão, em compasso de espera: nada acontece. Mas tudo sua obra até o final de 2008”, por enquanto, não está se concreti- Mas há outras características do autor, recorrentes em seus poderia (e ainda pode) acontecer”. E tem razão. Muitos dos con- zando. Como não há indicação quanto a serem os contos inéditos contos (nesse e em outros de seus livros). Crianças como prota- tos de Vilela deixam no ar a pergunta “O que será que vai aconte- ou publicados anteriormente, e nem tenho eu todas as obras do gonistas, colégios como cenários, a chuva... E por falar nela, cer agora?”. O que é um sinal de respeito à inteligência do leitor. autor, ficaremos devendo, eu e a editora, essa informação ao lei- um dos melhores contos desse livro, Primos, é uma espécie de Talvez a única exceção, na coletânea da Leitura, seja o conto Suzana, tor. Entretanto, posso adiantar que pelo menos um foi publicado versão de outro, A chuva nos telhados antigos, publicado na co- que mais parece uma piadinha. Se me permitem o atrevimento, eu antes (Calor, em A cabeça, CosacNaify). E alguns outros dão dicas letânea da Nankin Editorial. Carlos Felipe Moisés, em sua o tiraria, numa segunda edição, que certamente virá.•r RODAPÉ Rinaldo de Fernandes A vida literária atual

A vida literária atual é mais ou menos imposta ao senso co- do editorial hoje tem oportunidades que o autor provinciano Há perdas em relação à fatura da obra, em relação à sua qualida- mum pela mídia cultural. E traz alguns elementos sobre os quais sequer sonha em tê-las (a não ser, repita-se, episodicamente, e por de. Há simplificação, desleixo, pouco artesanato (ainda acredito é importante refletir: 1) O autor contemplado pelo mercado edi- um “descuido” de organização). Ao romancista, contista, poeta que literatura é artesanato). Não que todos os autores sejam torial (ou seja, aquele que consegue publicar por uma média ou ou ensaísta do mercado editorial abrem-se oportunidades de par- assim, mas nota-se no momento um bom número de obras pou- grande editora que irá distribuir seu livro nacionalmente) certa- ticipar do circuito dos grandes eventos literários anuais (feiras, co originais, reproduzindo fórmulas, repetindo com ares de novo mente aparece mais na mídia cultural, formadora importante, e bienais, seminários, congressos, encontros acadêmicos, etc.), ten- coisas já feitas. Não que a literatura atual seja pior do que a de decisiva, de opinião. Tão importante que chega a decidir, de do suas despesas e cachê garantidos. Esse autor, por circular outras épocas (cada época tem seus temas e valores literários certa forma, o que é e o que não é literatura brasileira. Suple- mais, torna-se mais conhecido, ganha um público impensado próprios), mas está um tanto estagnada criativamente. Talvez mentos como o Prosa & Verso, o Idéias, o Mais, o Caderno 2 (Esta- para o autor da periferia. Desconfio que, com raras exceções, uma das razões — não a única, evidentemente — seja o modo dão), etc. dão bastante visibilidade a esse autor contemplado pelo é para entrar nesse circuito que hoje certos escritores produ- de se fazer a vida literária na contemporaneidade, em que a mercado editorial, deixando no ostracismo midiático uma quan- zem e têm necessidade de todo ano publicar uma obra — isto imagem do autor não raro vale mais do que a qualidade de sua tidade enorme de outros autores (sobretudo, os residentes na lhe traz visibilidade e, portanto, mais oportunidades. Talvez aqui obra, que às vezes nem lida é como deveria. Há autores que periferia ou “províncias”). Assim, no presente, os escritores re- entre uma questão original para esses tempos pós-modernos: a aparecem muito na mídia, mas têm, substancialmente, poucos partem-se em dois grupos: a) os que existem aos olhos do grande necessidade de fama (que é mais passageira) substituindo a de leitores, suas obras têm pouca resposta crítica. A obra com público (e portanto são identificados como aqueles que fazem a glória (que em princípio agrega valores mais permanentes). resposta crítica poderá colocá-los no panteão dos indivíduos de literatura contemporânea); b) os que simplesmente não apare- Vida literária, assim, ou melhor, a vida literária do autor do glória. Mas desconfio que, no afã da fama, certos escritores cem aos olhos desse mesmo grande público (quase não sendo mercado reúne basicamente três necessidades: 1) a de fama (mais postos no mercado não estão muito preocupados com as ques- identificados como fazedores de literatura brasileira). que a de glória); 2) a de visibilidade na mídia (como efeito e tões que envolvem a permanência de suas obras. E esse apego Decorrem daí duas formas de ter “vida literária”: uma efeti- também estímulo da primeira necessidade); 3) a do dinheiro dos exacerbado à auto-imagem é um dado muito importante, e tal- va, profissional (até onde esse termo cabe na realidade literária cachês (e ainda a das “mordomias” — passagens, transportes, vez definidor, do nosso tempo. Mais do que nunca, aparência e brasileira); outra episódica, amadora. O autor inserido no merca- hotéis — que os eventos lhe proporcionam). E como fica a obra? essência parecem significar o mesmo.•r 100 • AGOSTO de 2008 rascunho 15

Divulgação EU RECOMENDO JULIÁN FUKS

• Ninguém nada nunca, de Juan José Saer

Dizer do que trata esse romance é começar a traí-lo: essencialmente, Ninguém nada nunca nunca diz nada sobre ninguém. É no vazio de sentido das pós-vanguar- das, na descrença que se erigiu em relação a qualquer representatividade, que se JULIÁN FUKS insere essa obra fundamental do argentino Juan José Saer — publicada pela pri- é escritor e meira vez em 1980, ainda sob o espectro da ditadura. Mas de que se ocupam, jornalista. então, suas duzentas e tantas páginas? Cedamos à traição: selecionam quatro dias Autor de no transcurso infinito do tempo, circunscrevem o espaço às margens de um rio num Histórias de moroso povoado do norte argentino, e põem-se a minuciar a múltiplas vozes e literatura e vistas os pormenores materiais da existência. Uma existência sufocante em que cegueira. tudo é tensão e iminência, sem que no entanto se saiba de quê. Com o mesmo Mora em São espanto compartilhado, os leitores acompanham essa poética tão bela e tão pró- Paulo (SP). pria, e esse espanto diante do inusitado e do improvável — muito mais do que a trama — é o que conduz o leitor até o desfecho, ou até a diluição final. A partir daí, confesso, as traições possíveis serão das mais diversas.•r cantilenaPueril Em ACERVO DE MALDIZER, Wanderley Guilherme dos Santos reclama o tempo todo para não dizer nada

LUIZ HORÁCIO • PORTO ALEGRE – RS conseguir sobressair nesse universo de vaidades que infeliz- mente assola nosso panorama literário atual. Está a duvi- Importante não confundir jamais ousadia com in- dar, descrente leitor? Então o que você diz do que segue? O sensatez. É por essa enigmática vereda que os incautos velho, o narrador, ainda conserva uma fixação erótica na e os nem tanto costumam se perder. Quer nas artes quer mãe, chama isso de “vômito do ressentimento”, quando jo- na vida cotidiana não é preciso fazer muita força para vem suburbano se envolve em brigas de rua e vive experiên- nos depararmos com algum produto desses “talentosos cias sexuais das mais sórdidas e, para completar, temos a corajosos”. E não pensem que tal prerrogativa seja coi- repetitiva e tediosa intenção do autor de demonstrar a gran- sa de novatos ou dos de pouco tino intelectual. de disposição humana para o mal. Infelizmente, o cenário artístico é o mais condescen- Cabe informar que tal objetivo fica longe de ser alcança- dente com a referida horda. A literatura, coitada, cos- do e justamente o exagero, a falada ausência de silêncio, a tuma acolher todo aventureiro que lhe fizer a promessa opção pelo descaso de viver, são em parte responsáveis por de um estranhamento em sua produção, geralmente se tamanha frustração. escudam na escatologia, na violência ou na miséria, A maldade permanentemente a gestar violência só com- Acervo de maldizer sem esquecer a pieguice. Ainda têm aqueles, nada mo- preende a realidade da miséria, da solidão e da ignorância, Wanderley Guilherme dos Santos derados, que se amarram em usar todos esses ingredi- não permite brechas por onde se possa vislumbrar atenuantes, Rocco entes ao mesmo tempo. Acreditam se tratar de vanguar- leva a concluir que a proposta humana se resuma ao medo e 128 págs. da, têm por objetivo chocar o leitor, mas não conse- ao desprezo pela vida. Enquanto isso a violência se embrenha guem despertar a atenção de uma criança, mesmo aque- nos desvios dos formalismos sociais. las onde o onanismo ainda é o must. Não passam de inocentes desbocados a se autoproclamarem pícaros Lamentável pieguice mesmo sem saber o que seja picardia. Lamentável! São seis os capítulos que constituem este Acervo de maldi- o autor Paciente leitor, estamos diante do Acervo de maldi- zer, e suas frases finais são de fazer corar o leitor mais benevo- zer, de Wanderley Guilherme dos Santos, que você pode lente, deixando nítida a intenção do autor de marcar o final WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS nas- conferir no box sobre o autor não se trata de nenhum com as famosas “frases de impacto”, em que também se podem ceu no Rio de Janeiro, em 1935. É considerado iniciante no território das letras; no entanto, pelos ca- notar as diversas formas de preconceito que assolam o velho um dos ensaístas mais renomados no cenário minhos da ficção ainda é um aprendiz relutante. Apre- narrador e como você testemunhará, a famosa e lamentável acadêmico brasileiro. Bacharel em Filosofia pela sentada em seis capítulos, a narrativa é um mix de filo- dose de pieguice. Faltou a tensão, resultado do embate entre a UFRJ e PhD em Ciência Política pela Stanford sofia, psicologia e sociologia no que essas vertentes po- rigidez dos convencionalismos sociais e a sensibilidade do au- University, dos EUA, hoje é coordenador do La- dem apresentar de pior, tudo isso ancorado nos mais tor. Viver significou pouco para ele, aprendeu quase nada. boratório de Estudos Experimentais, das Facul- desgastados clichês. Constrangedor esse acervo. Faz lem- Por favor, acompanhe-me, paciente leitor. Fim do capítulo dades Integradas Cândido Mendes, RJ. Pela Rocco, ele publicou O paradoxo de Rousseau,

brar, não por motivo igual, um livro também da edito- I: “A vida está acabando comigo, mas eu dou trabalho”. Do Décadas de espanto e uma apologia democrá- Escrever ra Rocco, , de Marguerite Duras: “É uma coisa capítulo II: “Foi então que minha mulher me comunicou, tica e Razões da desordem. curiosa um escritor. Uma contradição e também um com a serenidade de quem sabe o que faz, como sempre sou- absurdo. Escrever é também não falar. É se calar”. be, que contraíra herpes genital. Enfim, a libertação”. Do ca- O calar que não se percebe em Acervo de maldizer pítulo III: “Por isso alimentavam os desgraçados infantis e faz com que a farta desolação, exposta na forma de juvenis, para que viessem a ser a fonte de energia de escriturá- insultos, lamentos e outros aspectos da degradação da rios, taxistas, etc., sem esquecer dos novos ricos e antigos condição humana sejam banalizados, visto que não há escroques. Há uma fábula sobre a alimentação do futuro ali- interrupções nessa prática, é cada vez mais um pouco mento. Posso informar, com toda segurança, que não se trata trecho • Acervo de maldizer do mesmo. Falta a pausa, o citado silêncio. de fábula”. Do capítulo IV: “Por uma ou por outra razão, foram as lágrimas de sua derradeira felicidade”. Do capítulo Por essa promiscuidade entre o sagrado e o Impressão realista V: “O Autor foi, neste passo, surpreendido em contradição, e profano, invejo os que têm motivos para devoção Narrado em primeira pessoa por um personagem de então dei por definitivamente comprovado o desenlace vitori- e crença em alguma religião. Assim como invejo classe média baixa, sem nome e em plena velhice, colo- oso do experimento, quando, em raro momento de concessão os que não têm motivos para sentimentos hostis ca o leitor diante da arqueologia pessoal do protago- fônica, corrigiu o título da obra, chamando-a de Acervo de às igrejas. Meus fusíveis foram trocados descui- nista que não se afasta em nenhum instante do campo Maldizer. Tive ganas de assiná-la eu mesma, tanto me custara dadamente por alguém, talvez meu tio carnal, de batalha ocupado pelas palavras e pela miserável con- trazê-la a lume”. Do capítulo VI: “Toda a nossa tragédia se monocordiamente preocupado em saber se eu dição humana. Acervo de maldizer, não podemos ne- contém na discrepância entre a irrelevância de cada um de jogava a dinheiro (o que ele fazia), e em me con- gar, traz forte impressão realista, no que isso pode re- nós na ordem natural da espécie e a grandiosidade da malda- verter ao ateísmo: “Deus não existe”, dizia-me presentar de mais nefasto e batido, em sua trama repleta de de que somos, individualmente, capazes de fazer. É o mal sempre, em cada um de nossos raros encontros. de histórias ternas e ao mesmo tempo brutais, não per- que tenho a dizer”. Era o seu beijo de despedida. Em si mesmo, an- tes que me surgissem situações em que a mitindo desse modo a visualização da bondade dentro Wanderley Guilherme dos Santos desperdiça imagens, que inexistência ou existência de Deus faria alguma do mal abundante e legitimando os sentimentos mais se não chegam a ser da ordem das imagens convulsas de diferença, a declaração abstrata não dizia gran- sórdidos da sociedade opressora. Breton, repletas de vigor, também não impedem que o atento de coisa. A maior razão para a inutilidade da A narrativa tenta se equilibrar no tênue fio que sepa- leitor lembre que toda idéia também é uma imagem. O autor catequese terá sido a curiosidade de que nin- ra aparência e realidade — nessa exígua região, das mais parece perdido em meio às próprias idéias e distribuiu sua guém, em minha infância e adolescência, se pre- perigosas, onde mora o perigo. Perigo este capaz de amargura e sua raiva pelas raias da religião, sempre um alvo ocupou em me informar oficialmente que Deus destruir qualquer rasgo expressivo de um texto, e na fácil, da opressão estética corporal, cada vez mais na ordem existia. Ninguém, quero dizer, dos familiares, que trama de Wanderley dos Santos essa tarefa é facilitada, do dia; e não podia esquecer da descoberta da sexualidade. E me enviaram ao preparatório da primeira comu- pois o autor, em que pese a aparente complexidade das por falar em sexo, importante dizer que o autor visita com nhão sem me esclarecerem sobre o propósito da imagens, capaz de estimular reflexões que vão desde o raro talento o subgênero pornográfico. Há quem goste. iniciativa. Eu sabia do que se tratava, tendo literário até o político, permitiu que a simplicidade psi- Paciente leitor, falta pouco, o negócio é o seguinte: não aprendido na rua, e se me lembro bem nem mes- cológica dos personagens se encarregasse de tornar pu- faz mal algum a leitura desse Acervo de maldizer, tampouco mo na igreja me abordaram sobre a existência eril sua cantilena. causará a tão almejada dependência e se não chega a ser de Deus. Burocraticamente me mandaram à igre- O que se depreende da verborragia do autor é o uma perda de tempo, pelo menos você perceberá como um ja, burocraticamente a igreja me enfiou uma hós- vazio do discurso, embora utilize as prerrogativas da- texto se autodestrói. Já é alguma coisa, diante dessa maldita tia pela goela e me absolveu. queles que esperam chocar o leitor, transgredir a arte e morte que é o viver.•r

O que se depreende da verborragia do autor é o vazio do discurso, embora utilize as prerrogativas daqueles que esperam chocar o leitor, transgredir a arte e conseguir sobressair nesse universo de vaidades que infelizmente assola nosso panorama literário atual. 16 rascunho 100 • AGOSTO de 2008 17

Como todo escritor deve ser, sou essencialmente antônio torres “ um leitor. A leitura é meu alimento.”

um choque com essa frase. E achei que ser escritor era isto: é escrever para os leitores do Rascunho. Outro dia, fui a um fazer um. [...] Lá, tive três empregos. Foi difícil, porque até o 19, por todo esse século 20, até chegar à pós-modernidade, com você ficar horas e horas e horas em busca de uma frase que, evento do Sesc, em Vitória, falar sobre “o lugar do local”. E teclado deles era diferente do nosso. E, no primeiro anúncio publi- essa minha trajetória de leituras. A minha leitura era outra. Se as No dia 9 de julho, o escritor Antônio Torres, autor de romances como Essa terra e Um cão primeiramente, nos provoque um desconcerto pessoal. Um havia muitas perguntas sobre esse assunto. Daí, eu pensei: citário que escrevi, um cara me falou: “Tu pareces que escreve em coisas seriam melhores ou piores não vem ao caso. Sou produto de uivando para a lua, foi o convidado do Paiol Literário, projeto realizado na capital choque. E aí no que é que isso resulta? Fico horas e horas espe- “Puxa, eu inventei isso e o feitiço virou contra o feiticeiro. O língua de preto”. O “brasileiro” era, para eles, língua de preto. Só um tempo. O mundo é produto de um tempo. Não há como fugir paranaense pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná. Numa conversa com o medi- rando aquela palavra, catatônico diante da tela em branco. Em que é que eu vou dizer? Sei lá onde é o ‘lugar do local’”. Mas, quando consegui criar um meio-termo, dentro de uma norma lusi- dessa realidade. Acho que meu tempo foi um tempo muito rico. busca da palavra que exprima exatamente aquilo que quero de repente, me veio o seguinte: eu me sinto como um velho tana, mas com um certo ritmo brasileiro, passei a ser aceito como Até escrevi um texto a pedido do Júlio Diniz, o novo diretor de ador do encontro, o escritor e jornalista José Castello, e o público que compareceu ao dizer. Sempre torturado por uma sensação de limitação, pelo contrabaixista de jazz que sai pelo país e pelo mundo. Tenho redator. O escritor de hoje também é muito isto: “Ah, vou fazer Letras da PUC-Rio, para um livro que ele está coordenando. O Teatro Paiol, Torres falou sobre a importância da literatura para a sua formação como fato do meu conhecimento de palavras ser tão inferior à neces- viajado muito, acreditem se quiser. Fiz palestra até na Bulgária. um romance sobre Curitiba. Beleza. Falei lá no Teatro Paiol. Olhei tema é fantástico: “Razão de ler: memórias”. Levei dias e dias cidadão, no interior da , analisou a onda de auto-ajuda que invadiu o mercado sidade que sinto delas. Você precisa de uma palavra, daquela Tocando aquele contrabaixo para um pequeno auditório como para os rostos das pessoas, vi um personagem que tinha um gorro, produzindo um texto longo de 15 páginas, para costurar coisas que que vai dizer aquilo tudo que você está sentindo, e você não a este aqui. Pequeno, mas fiel. Então, acho que a única saída uma barba e tal. Já sei: começo com ele e vou embora”. Está tudo tenho falado aqui e ali. Criei um personagem, um menino. Come- editorial mundial e discorreu acerca das muitas gerações de escritores brasileiros que leu encontra. Passa horas e horas torturado com isso. E, aí, ela para nós, hoje, está na soma desses pequenos auditórios. O muito fácil, hoje, para ser escritor. cei com aquela fábula de Leonardo Da Vinci, O papel e a tinta, e conheceu. Leia abaixo os melhores momentos do bate-papo. vem, vem a frase, depois o bloco de texto todo. Sou escritor grande auditório já está tomado por aqueles que vão ensinar a dei todo um tom de fábula a esse relato. As professoras eram fabu- formado assim. E acredito que a maioria dos escritores do felicidade em 15 segundos. • Jovens sem leitores losas, a mãe era fabulosa. A palavra “fabulosa” remetendo exata- mundo foi formada assim. Mas, hoje, parece que isso já não Trabalhei com publicidade quando até para se fazer propa- mente para o nosso campo, o nosso território, que é o do romance. tem a menor importância — é claro que existem as exceções. • A homeopatia do mercado editorial ganda havia uma curtição artística, criadora. Dos meus amigos É claro que não há nada melhor no mundo, é claro que eu queria • Eu queria ser Castro Alves Memória, exílio e astúcia Mas a sensação que tenho é a de que o leitor de hoje não está Não sei até quando as livrarias trabalharão com literatura. que ainda estão nisso, não sobrou quase ninguém. Mas fui um ser, hoje, um jovem autor. Mas um jovem autor com a vivência que Acho que a literatura pode mudar as pessoas, sim. Há quem Há muito de memorialismo em meu trabalho. E isso não foi mais procurando aquilo que eu procurei um dia, como leitor. Fico até com medo. Até quando o que escrevo vai interessar? cara que até teve uma vida longa nesse negócio. É como no fute- eu tive, porque me parece que o mundo está muito complicado diga que não, que não muda nada. Cada um tem sua idéia. A mim, premeditado. Toda a minha obsessão é com o romance. Mas mi- O leitor mudou completamente. Até agora está interessando a uma boa dúzia e meia. Mas é um bol: a profissão dura pouco, é uma profissão para jovens. Depois para o jovem. De repente, olho para o jovem e parece que está mais mudou. Acho impossível que alguém, um dia, não tenha sido nha memória funciona muito. É como aquela frase de Luz em negócio complicado. E tem aquela história: vamos olhar pelo que alguém fica velho, já não sabe pensar, não sabe das modas, fácil eu sobreviver de escrever e falar sobre isso do que um jovem mudado por Madame Bovary e por Crime e castigo. Impossível agosto, do Faulkner: “É a memória, e não a dor, que faz você • A felicidade em 15 segundos lado otimista. Diz o Carlos Heitor Cony que o otimista é ape- não sabe das linguagens, não sabe disso e daquilo. É engraçado: autor fazer o mesmo. Embora o mundo seja sempre dos jovens. não ser mudado por Kafka ou Machado de Assis. Eu fui. Vim de reviver centenas de ruas selvagens e ermas”. Ou então aquela coi- Essa mudança nos leitores não é unilateral. Quer dizer, esse nas um mal-informado. Mas o que acontece? Por um lado na literatura, acho que os jovens não conseguem criar uma lin- Tem uma coisa complicada no nosso tempo. O velho, por pior que um mundo rural, agrário e ágrafo. Vim do sertão. Quando descobri sa do Joyce, que saiu até no Rascunho, sobre memória, exílio e rolo compressor que está aí não é por acaso. Por exemplo: qual otimista, vamos combinar também que pode ser que este mo- guagem que reflita a linguagem do seu tempo. Se conseguissem, esteja, ainda tem algo pelo que recorrer a ele. Uma conferência, os livros, descobri outro mundo. E se me perguntassem o que eu astúcia. São as receitas para o escritor. É você ir buscar lá na sua é o grande segredo do Paulo Coelho? Ele teve um saque de mento esteja nos propondo alguns desafios, para que a gente eles seriam muito lidos. Pelo menos eles me dizem isso. Teve um um negócio, um texto como esse que fiz, de memória. Talvez o queria ser quando crescesse, eu responderia: “Castro Alves”. O memória o seu socorro e o seu material de referência, o exílio para gênio quando percebeu, intuitivamente ou não, o vazio do nos- asseste melhor nossas alças de mira. Mas é um horror. Quan- jovem autor que foi a minha casa para dizer: “Você é de uma mundo até esteja carente desse tipo de memória, queira criar algu- cara era bonito como um corno e dava muita sorte com as mulhe- você poder estar consigo mesmo, falando pelas paredes, falando so tempo. Então, desapareceram as utopias — e a literatura do quis ser escritor, eu não sabia nada de mercado, de crítica geração que teve a sorte de ser lida de cara”. É e verdade. A ma referência para um tempo que parece estar completamente res. Quem é que não queria ser Castro Alves? Chegou a Recife, em voz alta. E a astúcia é a própria atividade. A astúcia é o que faz fazia parte das utopias. Então, a utopia desapareceu. Isso não literária, de lista de best-sellers, de editora. Não sabia nada. geração de João Antônio, Ignácio de Loyola Brandão, Sérgio descentrado. É a questão da pós-modernidade, que é o onde havia uma guerra entre a polícia e os estudantes, e gritou: o escritor. Acho que Joyce sabia um pouquinho do riscado. foi só uma coisa política. É claro que há o fator político por Queria escrever e pronto. O dia em que consegui escrever e Sant’Anna — que começou antes de mim, apesar de ser mais descentramento do homem mesmo. Não sei. Mas devo ter tido “Soldados, parai. A praça é do povo como o céu é do condor”. E trás. Mas me parece que o Paulo Coelho publicar, me ligaram do Jornal do Brasil para me entrevistar. E novo do que eu. Todos tínhamos muitos uma boa infância, porque, de alguma maneira, os soldados pararam. Sabendo dessas histórias, como é que eu não • Mailer enterrado sacou esse vazio que se instaurou com o eu achei que era um trote. Nem sabia que escritor dava entre- leitores na nossa geração. E, hoje, os jo- não sou uma pessoa infeliz. Não é que eu não quereria ser Castro Alves? Pois a literatura me mudou. Sempre Acho que, com a morte de Norman A literatura fim da história, com o fim da utopia — co- vista. Mas acho que vivemos um momento como aquele do vens se queixam de não ter leitores na O mundo encare o sofrimento. Não é que eu não vivencie que leio algo que me move, sinto que mudo. Mudo meu jeito de Mailer, morreu um tipo de escritor que não loquemos isso entre aspas ou não. Ele sa- motorista de um ônibus lotado que, de repente, pisa no freio própria geração. Então, tem aí algo com- estados de dor. Mas não sou necessariamente uma pensar. Li muito tardiamente um escritor francês chamado Boris há mais, que é aquele escritor que interfere me mudou. cou que o leitor estava desamparado. O lei- para “ajeitar” o pessoal, o excesso da carga humana. Porque plicado com a percepção desse leitor está ruim? pessoa infeliz, ressentida, rancorosa ou catastró- Vian, autor de A espuma dos dias. E pensei: “Meu Deus, por que no seu tempo, o cara de briga. E ele brigava “ tor não queria mais o mundo organizado há um excesso aí. Nunca houve tanto livro no mundo. Eu novo. Acho que há um distanciamento “ fica. Quer dizer, a realidade é dura e tal, mas será não li isso mais cedo?”. Eu seria outro escritor se tivesse lido até mesmo fisicamente, era tão brigão que Sempre que leio da alta literatura, do pensamento, da psica- estava no Salão do Livro de Paris, com Jean Soublin, e fomos entre o escritor e o leitor. Que haja um Vamos melhorá- que ela já foi fácil? Olhando para trás, a gente aquilo mais cedo. Para mim, aquele livro é fantasticamente novo. esfaqueou uma mulher, um negócio doido. nálise, da filosofia. Ele sacou um negócio ao estande da editora, fazer umas fotos. Daí, olhei para aquilo distanciamento de mim para eles é nor- tende a pintar uma aquarela onde tudo era verde. Vendeu milhões em Paris. E vende até hoje. O cara morreu com 38 Vi uma entrevista dele ao Paulo Francis em algo que me que hoje está valendo milhões de dólares: a e disse: “Jean, olha quanto livro. Como é que a gente vai mal, mas que haja um distanciamento en- lo, gente. Eu Os verdes mares. Mas eu tive uma escola primá- anos e ainda tocava trompete. É de matar de raiva: o cara escreveu que ele dizia que a época do escritor já tinha tal da lenda pessoal. Você sai do projeto sobreviver?”. E ele vira para mim e diz: “Sabe o que é pior? É tre eles mesmos, isso já me causa um ria rural boa. E saí dali formado. Devo muito a A espuma dos dias e ainda tocava trompete. Então, a mim, a litera- acabado. Que escritor, agora, é coisa de move, sinto que coletivo e vai para o pessoal, entendeu? E que a maioria é boa”. Isso é que é o diabo. A maioria é boa. ponto de interrogação. quero manter, isso. Àquelas duas professoras da roça. tura não só mudou, mas acho que vem mudando. É um processo moda, de celebridade. Que o escritor aca- mudo. Mudo aí é que se impôs, junto com ele, tudo isso Isso que a gente acha que é descartável também deve ter o até a morte, o que segue com o tempo. Como todo escritor deve ser, sou essenci- bou. O enterro de Mailer enterrou também, que está aí. Você entra numa livraria, hoje, seu valor. Porque tem tanta gente lendo, não é? Para alguém, • Geração esmagada • Sai Cabul, entra a China almente um leitor. A leitura é meu alimento. simbolicamente, o tempo do escritor. Nos meu jeito de e com o que você dá de cara? Com 350 mil tem que ter valor. Pode não ter para mim, mas tem para Quando estreei, deu um rebuliço nos meu sonho O bom mesmo é que a gente está vivo. O meus momentos mais pessimistas, concor- Paulos Coelhos. Tudo na entrada da livra- muita gente. Então, não sei qual vai ser o destino da literatu- velhos. Jorge Amado, José Américo de mundo está ruim? Vamos melhorá-lo, gente. Eu • Verdes mares do sertão do com ele. Nos mais otimistas, acho que a pensar. ria. É tudo auto-ajuda, meus senhores e ra. Quem sabe ela fique como uma espécie de antídoto. “Ah, Almeida. E os da minha geração come- de arte e de quero manter, até a morte, o meu sonho de arte Tive uma professora que me ensinava a ler em voz alta. Lá no vida continua. O mundo é dialético, o tempo minhas senhoras. Produto de ocasião. Os você está todo envenenado por essas pragas mercadológicas? çaram a aparecer. Deu a sensação de que, e de beleza. O sonho que herdei daquela escola Junco (BA). Uma professora da escola rural, do primário. E essa é dialético, a literatura vai mudando com o psicanalistas estão sobrevivendo de auto- Quer aqui um antidotozinho? É a homeopatia do mercado se todos nós comprássemos os livros uns beleza. que me aprimorou com a leitura daqueles auto- mulher fez a oficina literária da minha vida. A gente estudava na tempo e com os escritores. E a gente vai querendo que as coisas se ajuda, os filósofos estão fazendo livros de auto-ajuda. O leitor editorial. Pode ser assim o último livro do João Gilberto dos outros, todos seríamos best-sellers. [...] res todos. Dava pra ficar a noite toda só falando escola para meninos e meninas da professora Serafina, uma escola repitam dentro de um tempo que você viveu, um tempo de que ”está querendo outra coisa, está querendo isso. O cara compra o Noll? Um livro do Caio Fernando Abreu? Quem sabe uma E fomos conhecendo todo mundo: João de autores. É o que me dá prazer. Falar dos no- sob a influência da Era Vargas, meio militarizada. E a professora, você gostou e no qual você se formou. livro Como ser feliz em 15 dias. Aí, ele não fica feliz em 15 reedição do finado João Antônio?”. Ubaldo na Bahia, Márcio Souza em Manaus, em vos que estão aí. Não dá para falar de todo mundo, porque, no logo de cara, me botou na praça pública para recitar Castro Alves: dias, mas fica viciado em ler isso. E vai buscando o menor Porto Alegre, Domingos Pellegrini em Londrina... Tinha gente” Brasil, tem mais autor do que gente. Dizem que, no Brasil, tem “Auriverde pendão da minha terra...”. Um belo dia, à porta da • Leitor mudado prazo. Como ser bom de cama na velhice. Puxa, até eu quero, • Um filtro à beça. Naquele tempo, a gente se aliou muito aos que vieram mais autor do que leitor e mais editora do que livraria. É uma escola, chegam uma senhora e sua filha. E a filha diz: “Dona Serafina, É uma realidade um tanto complexa que, às vezes, escapa das não é? Então, ele vai ficar viciado nisso. E não vai melhorar sua Aquelas sonoridades que me encantavam na arte, na músi- antes. , Cony, José J. Veiga, Lygia Fagundes operação complicada. Sou de uma geração de autores que, quan- vim buscar os alunos”. Daí, dona Serafina falou: “Leve os meni- minhas mãos. Percebo no nosso tempo a sua instabilidade de valo- performance na cama. Mas vai comprar o próximo livro que ca, no teatro e no cinema, tudo isso formou em mim uma sensi- Telles, Autran Dourado, , todos esses grandes do procuravam outro autor, é porque já o tinham lido e tinham, nos”. E nós saímos murchos. Que graça ia ter irmos a uma escola só res. Quer dizer, se instaurou no nosso tempo uma instabilidade lhe der outra dica a respeito do tema. Gore Vidal falou sobre bilidade. Acho que é isso que pega, é onde as coisas mudam. nomes. Uma geração muito poderosa, mas que ficou esmagada com ele, uma relação de admiração. Talvez agora a literatura seja de meninos, se uma das nossas maiores motivações era nos sentar- total de tudo, até da forma de pensar. A gente vinha do iluminismo, isso. Pego o exemplo dos americanos porque eles entendem Não se trata estritamente da leitura de livros, mas também da pelo peso de Guimarães Rosa e de Clarice Lispector, e que, só formada por tribos. Diz um amigo meu que os poetas nem tribos mos ao lado de uma menina, quem sabe darmos um beliscão na a gente vinha de um mundo de idéias mais ou menos sólidas. Você mais disso do que nós. Vivem dentro do capitalismo desde leitura de uma música. De um Villa-Lobos, um Tom Jobim, mais recentemente, emergiu. Mas essas duas vertentes foram pe- formam. Formam seitas. Seitas de poetas. É uma seita contra perna dela, pegarmos na sua mão e tal? Pois aquela professora vinha tinha o preto e o branco, a direita e a esquerda e, de repente, tudo antes de nascerem. Um repórter da Veja perguntou para o Vidal: um Miles Davis, um Mozart, um . É como se sadas demais para a nossa literatura. Guimarães Rosa, para mim, outra, uma tribo contra outra. Os tupinambás contra os inaugurar um novo prédio, todo padronizado. Tinha aqui a sala de isso explode. Tudo vira essa coisa triunfalista do capitalismo. A “Por que nos últimos tempos nenhum peso-pesado das letras tudo isso tivesse contribuído para afinar a minha pele. Você fica é o São Francisco que deságua no Mississipi onde Faulkner fun- tupiniquins. Quando eu era um jovem autor, os jovens autores aula, ali a casa da professora e a área do recreio. Era uma coisa do globalização chegou muito mais forte do que todos os tanques norte-americanas figura nas listas de best-sellers?”. E ele respon- mais sensível, claro. Isso também o canaliza para outros sofri- dou um território mítico e descreveu sua legenda. Guimarães tinham uma consciência muito grande dos outros e da necessida- governo, feita para invadir os fundões do Brasil. E essa professora soviéticos, chegou arrasando quarteirões e mudando tudo. Sou um deu que a literatura sempre havia sido para poucos. Agora, mentos, pois você fica muito mais vulnerável. Sua pele fica Rosa é isto: é o grande rio do continente. O São Francisco e o de de lutar pelo espaço da literatura. Aí, acho que talvez falte Tereza chegou, abriu as janelas, pegou um livrinho e mandou todo escritor formado por frases assim: “Conhecia-o de vista e de cha- mais ainda. Mesmo esses caras que foram tremendos best-sellers, mais vulnerável à poluição atmosférica, se impregna das coisas Mississipi desses dois grandes autores. certa consciência política do que esteja acontecendo. Idealização mundo fazer fila. Para mim, caiu o seguinte: “Ver-des ma-res bra- péu”. Machado de Assis, no começo de Dom Casmurro. Levei e fazendo literatura, já caíram na real. Acho que nosso destino ruins que estão no ar, em um sentido mais simbólico. E por que da arte? Não é nada disso. É a consciência do mundo em que a vios da mi-nha ter-ra na-tal on-de can-ta a jan-daia”. Na segunda vez é que a gente escreve? Deve haver uma falha dentro de nós. Por • Adiposidades da língua gente vive. É a consciência de que estamos ficando aleijados nes- em que li aquilo, eu já estava melhorzinho. Na terceira, na quarta, já que o homem cria? Primeiro, porque ele não é capaz de carre- De forma redutiva, vá lá, começamos com Machado de Assis, se processo. Eu conversava, outro dia, com um amigo escritor, e Fotos: Matheus Dias/ Nume Comunicação estava lendo legal. Agora, vocês não imaginam o efeito disso sobre gar um ser humano dentro dele. De gerar um ser humano Lima Barreto. Aí, veio 22, que propunha um ideário de rompi- ele me dizia: “Deu uma impotência no autor. Antes, a gente gri- um menino que nasceu e que vivia em um lugar onde nem rio havia. dentro dele. As mulheres não, elas não deixam de criar por mento com a norma lusitana, que propunha a gente escrever con- tava, chiava e funcionava. As editoras se abriam para nós, os O que era esse tal de verde mar? E no plural, “verdes mares”? O que causa disso, mas acho que, no homem, há esse componente, forme a nossa norma, até com a incorreção das nossas falas. E esse jornais se abriam, as salas de aula”. Mas hoje, talvez, isso não era uma jandaia? Eu nunca tinha visto uma jandaia. O que era uma essa diferença, essa falta. Ele não gera uma criação dentro ideário foi realizado pelo romance de 30. O romance de 30 é que esteja mais valendo. O que está valendo é o que vai vender um carnaúba? Isso era coisa lá do Piauí, do Ceará, de muito longe de dele, então cria outras coisas. Tem um buraco dentro dele vai executar mesmo — na prosa pelo menos — esse ideário. E, na milhão em qualquer país do mundo. Primeiro, foi a febre de onde eu estava. Coisa de um Nordeste aquoso. Não tinha água na que ele precisa preencher. Tem que criar, inventar coisas e poesia, Manuel Bandeira, Drummond. Mas o abrasileiramento Cabul. O livreiro de Cabul, A prostituta de Cabul, O corno de minha terra. Quando chovia, o povo vestia terno branco e rolava na se entreter com isso. E, de outra parte, você vê o seguinte: a do texto, proposto em 22, vem a se concretizar só nos anos 30. Cabul, O traficante de Cabul. E aquilo é para vender um mi- lama, de tanta alegria. Então, imagina: “verdes mares”? literatura serve muito, muito mesmo, para a gente se centrar. Tanto que Graciliano Ramos disse que tinha dois trabalhos: pri- lhão de exemplares em todo mundo, inclusive no Brasil. Ago- Enquanto você a está fazendo, você está filtrando, está sendo meiro, o de escrever; e, segundo, o de reescrever para abrasileirar ra, vai sair Cabul e entrar a China. Como era gostoso o meu • Em voz alta a esponja de uma atmosfera que não é necessariamente sau- seu texto, que era muito influenciado, no começo, pelo de Eça de chinês... Se preparem, porque a China vem aí, pesadamente. E, Às vezes, escrevo e leio o que escrevi em voz alta, como se dável. E aí é que entra o escritor como alguém muito inco- Queiroz. Quer dizer, ele tinha muita influência lusitana. E, aí, nisso, a gente fica folgado. Nós estamos vivendo um tempo tão estivesse aqui, falando com vocês, falando esse texto para o meu modado, alguém desconfortável dentro do seu tempo. Todo quando chegamos a Guimarães e Clarice, tudo se extrapola. Essa curioso, em que o Brasil tem a sedução do estrangeiro. Nosso leitor. Não quero perder essa oralidade que vem da infância, da escritor mostrou o desconforto que sentiu durante seu tem- literatura se revira pelo avesso, dando espaço a uma outra, que lado colonizado é forte. É forte demais. A gente vai ao Salão do escola rural. Sou produto dessa cultura rural e de uma cultura oral, po. Vá ver Proust e Dostoievski, vá ver quem você quiser. começa com Rubem Fonseca e Fernando Sabino. Para mim — e Livro de Paris e temos, lá, um espaço de estima. E é assim na também. Meu imaginário foi feito dentro disso. Das histórias que Há um desconforto ali, terrível. Diante da sociedade, diante isso não tem nenhuma base científica, é só uma intuição minha, Alemanha e em qualquer lugar. Aqui, temos uma Bienal onde me eram contadas e cantadas, do cordel. O cordel vem dessa cultu- de tudo. Tem algo de auto-análise. uma coisa de leitor —, esses autores fizeram uma cirurgia da lín- todos os espaços são para O livreiro de Cabul, O viado de Ca- ra oral, dessas histórias muito imaginosas, sem tempo nem espaço, gua, tiraram as adiposidades da língua portuguesa. O português bul, A puta de Cabul, O doido de Cabul, O baiano de Cabul. que me influenciaram muito. Adoro isso de ler em voz alta. Nas • Portugal e a reconquista colonial. O português colonial é barroco demais, muito rococó. E mais 300 autores brasileiros. O espaço para a gente é esse: “E oficinas literárias que faço, boto todo mundo para ler em voz alta. Peguei um navio e fui para Portugal. Fiquei lá três anos. Criou-se no Brasil uma mentalidade de que escrever e falar bonito mais 300 autores brasileiros”. r Agora, gozado: há uma febre fantástica de portugueses no Bra- é falar difícil, complicado, com adornos e floreios. Então o • • Meus monólogos sil. Desconfio que este prêmio Portugal Telecom foi feito para parnasianismo entrou, deitou e rolou. Mas atenção: com toda a Leia mais no site www.rascunho.com.br Acho que todos os meus livros são monólogos. Em Um cão testar o mercado. Não foi feito para o Brasil. Houve até um qualidade poética daqueles caras, o fazer literário do parnasiano uivando para a lua, por exemplo, vemos um cara internado. Mi- certo engano no começo. Ia ser um prêmio brasileiro, mas ago- era fantástico. Mas havia um outro lado que reforçava esse gosto nha idéia, ali, era escrever um conto sobre um doido batendo papo ra ele já se definiu. Os portugueses estão tentando a reconquis- do Brasil pelo embolado, pelo barroco. Até chegar Fernando PRÓXIMOS CONVIDADOS consigo mesmo. Dali a pouco, eu já tinha ultrapassado os limites ta. Como os espanhóis já reconquistaram o mundo hispânico, Sabino, com O encontro marcado, com sua influência americana de um conto e, oito meses depois, estava com um romance. E é os portugueses estão vindo para a reconquista do Brasil na área — e com o lado bom dessa influência. • 13 de agosto: LUCI COLIN isto: esse cara, depois de uma viagem de 36 horas de eletrochoques, econômica. Há altos investimentos. Já li no jornal que uma • 10 de setembro: SALIM MIGUEL começa a fazer uma viagem pelo país e por dentro dele mesmo. editora portuguesa quer comprar a Record, a minha editora. E • As duas professoras da roça • 8 de outubro: JOÃO PAULO CUENCA Quer dizer, faz um monólogo. Eu imagino esse personagem falan- eu digo: “Opa! Que é isso? O, pá!”. Vejo portugueses fazendo Tenho um filho que já escreveu quase 20 livros e está rico. Só do alto, contando aquilo tudo para alguém. Em Um cão uivando relatos fantásticos: vieram para um passeio a Salvador e aí fize- que os livros dele são de informática. Se eu me visse nesse menino, • 6 de novembro: BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS para a lua, um personagem se chama A e o outro T. É bandeiroso: ram um romance. Beleza. Eu morei três anos em Portugal para no meu filho, certamente não teria passado por todo esse século • 10 de dezembro: LUIZ RUFFATO Antônio Torres, A e T. Esses dois personagens são duas faces da mesma moeda. Na verdade, são um personagem só. Um está inter- nado e outro está visitando. Um está na televisão, o outro é um apresentação realização apoio repórter que pirou após uma viagem à Transamazônica — mas pirou mesmo por causa do LSD. Uma coisa da juventude dos anos o autor 70. Uma parte dela estava na luta armada e a outra estava com Jimi ANTÔNIO TORRES nasceu na Bahia, no município de Sátiro Dias, em 1940. Foi chefe de reportagem de esportes do Hendrix e Janis Joplin. E tome LSD! E eu pego esse personagem jornal Última Hora, em São Paulo, e redator de algumas das maiores agências de publicidade do Brasil. Em 2000, que explodiu e tento resgatá-lo pela consciência do louco. E tam- ganhou o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. É autor de Um cão bém faço uma interrogação sobre onde fica a fronteira entre sani- uivando para a lua, Os homens dos pés redondos, Essa terra, entre outros. dade e loucura. É esse o jogo desse livro. É um monólogo. 16 rascunho 100 • AGOSTO de 2008 17

Como todo escritor deve ser, sou essencialmente antônio torres “ um leitor. A leitura é meu alimento.”

um choque com essa frase. E achei que ser escritor era isto: é escrever para os leitores do Rascunho. Outro dia, fui a um fazer um. [...] Lá, tive três empregos. Foi difícil, porque até o 19, por todo esse século 20, até chegar à pós-modernidade, com você ficar horas e horas e horas em busca de uma frase que, evento do Sesc, em Vitória, falar sobre “o lugar do local”. E teclado deles era diferente do nosso. E, no primeiro anúncio publi- essa minha trajetória de leituras. A minha leitura era outra. Se as No dia 9 de julho, o escritor Antônio Torres, autor de romances como Essa terra e Um cão primeiramente, nos provoque um desconcerto pessoal. Um havia muitas perguntas sobre esse assunto. Daí, eu pensei: citário que escrevi, um cara me falou: “Tu pareces que escreve em coisas seriam melhores ou piores não vem ao caso. Sou produto de uivando para a lua, foi o convidado do Paiol Literário, projeto realizado na capital choque. E aí no que é que isso resulta? Fico horas e horas espe- “Puxa, eu inventei isso e o feitiço virou contra o feiticeiro. O língua de preto”. O “brasileiro” era, para eles, língua de preto. Só um tempo. O mundo é produto de um tempo. Não há como fugir paranaense pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná. Numa conversa com o medi- rando aquela palavra, catatônico diante da tela em branco. Em que é que eu vou dizer? Sei lá onde é o ‘lugar do local’”. Mas, quando consegui criar um meio-termo, dentro de uma norma lusi- dessa realidade. Acho que meu tempo foi um tempo muito rico. busca da palavra que exprima exatamente aquilo que quero de repente, me veio o seguinte: eu me sinto como um velho tana, mas com um certo ritmo brasileiro, passei a ser aceito como Até escrevi um texto a pedido do Júlio Diniz, o novo diretor de ador do encontro, o escritor e jornalista José Castello, e o público que compareceu ao dizer. Sempre torturado por uma sensação de limitação, pelo contrabaixista de jazz que sai pelo país e pelo mundo. Tenho redator. O escritor de hoje também é muito isto: “Ah, vou fazer Letras da PUC-Rio, para um livro que ele está coordenando. O Teatro Paiol, Torres falou sobre a importância da literatura para a sua formação como fato do meu conhecimento de palavras ser tão inferior à neces- viajado muito, acreditem se quiser. Fiz palestra até na Bulgária. um romance sobre Curitiba. Beleza. Falei lá no Teatro Paiol. Olhei tema é fantástico: “Razão de ler: memórias”. Levei dias e dias cidadão, no interior da Bahia, analisou a onda de auto-ajuda que invadiu o mercado sidade que sinto delas. Você precisa de uma palavra, daquela Tocando aquele contrabaixo para um pequeno auditório como para os rostos das pessoas, vi um personagem que tinha um gorro, produzindo um texto longo de 15 páginas, para costurar coisas que que vai dizer aquilo tudo que você está sentindo, e você não a este aqui. Pequeno, mas fiel. Então, acho que a única saída uma barba e tal. Já sei: começo com ele e vou embora”. Está tudo tenho falado aqui e ali. Criei um personagem, um menino. Come- editorial mundial e discorreu acerca das muitas gerações de escritores brasileiros que leu encontra. Passa horas e horas torturado com isso. E, aí, ela para nós, hoje, está na soma desses pequenos auditórios. O muito fácil, hoje, para ser escritor. cei com aquela fábula de Leonardo Da Vinci, O papel e a tinta, e conheceu. Leia abaixo os melhores momentos do bate-papo. vem, vem a frase, depois o bloco de texto todo. Sou escritor grande auditório já está tomado por aqueles que vão ensinar a dei todo um tom de fábula a esse relato. As professoras eram fabu- formado assim. E acredito que a maioria dos escritores do felicidade em 15 segundos. • Jovens sem leitores losas, a mãe era fabulosa. A palavra “fabulosa” remetendo exata- mundo foi formada assim. Mas, hoje, parece que isso já não Trabalhei com publicidade quando até para se fazer propa- mente para o nosso campo, o nosso território, que é o do romance. tem a menor importância — é claro que existem as exceções. • A homeopatia do mercado editorial ganda havia uma curtição artística, criadora. Dos meus amigos É claro que não há nada melhor no mundo, é claro que eu queria • Eu queria ser Castro Alves Memória, exílio e astúcia Mas a sensação que tenho é a de que o leitor de hoje não está Não sei até quando as livrarias trabalharão com literatura. que ainda estão nisso, não sobrou quase ninguém. Mas fui um ser, hoje, um jovem autor. Mas um jovem autor com a vivência que Acho que a literatura pode mudar as pessoas, sim. Há quem Há muito de memorialismo em meu trabalho. E isso não foi mais procurando aquilo que eu procurei um dia, como leitor. Fico até com medo. Até quando o que escrevo vai interessar? cara que até teve uma vida longa nesse negócio. É como no fute- eu tive, porque me parece que o mundo está muito complicado diga que não, que não muda nada. Cada um tem sua idéia. A mim, premeditado. Toda a minha obsessão é com o romance. Mas mi- O leitor mudou completamente. Até agora está interessando a uma boa dúzia e meia. Mas é um bol: a profissão dura pouco, é uma profissão para jovens. Depois para o jovem. De repente, olho para o jovem e parece que está mais mudou. Acho impossível que alguém, um dia, não tenha sido nha memória funciona muito. É como aquela frase de Luz em negócio complicado. E tem aquela história: vamos olhar pelo que alguém fica velho, já não sabe pensar, não sabe das modas, fácil eu sobreviver de escrever e falar sobre isso do que um jovem mudado por Madame Bovary e por Crime e castigo. Impossível agosto, do Faulkner: “É a memória, e não a dor, que faz você • A felicidade em 15 segundos lado otimista. Diz o Carlos Heitor Cony que o otimista é ape- não sabe das linguagens, não sabe disso e daquilo. É engraçado: autor fazer o mesmo. Embora o mundo seja sempre dos jovens. não ser mudado por Kafka ou Machado de Assis. Eu fui. Vim de reviver centenas de ruas selvagens e ermas”. Ou então aquela coi- Essa mudança nos leitores não é unilateral. Quer dizer, esse nas um mal-informado. Mas o que acontece? Por um lado na literatura, acho que os jovens não conseguem criar uma lin- Tem uma coisa complicada no nosso tempo. O velho, por pior que um mundo rural, agrário e ágrafo. Vim do sertão. Quando descobri sa do Joyce, que saiu até no Rascunho, sobre memória, exílio e rolo compressor que está aí não é por acaso. Por exemplo: qual otimista, vamos combinar também que pode ser que este mo- guagem que reflita a linguagem do seu tempo. Se conseguissem, esteja, ainda tem algo pelo que recorrer a ele. Uma conferência, os livros, descobri outro mundo. E se me perguntassem o que eu astúcia. São as receitas para o escritor. É você ir buscar lá na sua é o grande segredo do Paulo Coelho? Ele teve um saque de mento esteja nos propondo alguns desafios, para que a gente eles seriam muito lidos. Pelo menos eles me dizem isso. Teve um um negócio, um texto como esse que fiz, de memória. Talvez o queria ser quando crescesse, eu responderia: “Castro Alves”. O memória o seu socorro e o seu material de referência, o exílio para gênio quando percebeu, intuitivamente ou não, o vazio do nos- asseste melhor nossas alças de mira. Mas é um horror. Quan- jovem autor que foi a minha casa para dizer: “Você é de uma mundo até esteja carente desse tipo de memória, queira criar algu- cara era bonito como um corno e dava muita sorte com as mulhe- você poder estar consigo mesmo, falando pelas paredes, falando so tempo. Então, desapareceram as utopias — e a literatura do quis ser escritor, eu não sabia nada de mercado, de crítica geração que teve a sorte de ser lida de cara”. É e verdade. A ma referência para um tempo que parece estar completamente res. Quem é que não queria ser Castro Alves? Chegou a Recife, em voz alta. E a astúcia é a própria atividade. A astúcia é o que faz fazia parte das utopias. Então, a utopia desapareceu. Isso não literária, de lista de best-sellers, de editora. Não sabia nada. geração de João Antônio, Ignácio de Loyola Brandão, Sérgio descentrado. É a questão da pós-modernidade, que é o onde havia uma guerra entre a polícia e os estudantes, e gritou: o escritor. Acho que Joyce sabia um pouquinho do riscado. foi só uma coisa política. É claro que há o fator político por Queria escrever e pronto. O dia em que consegui escrever e Sant’Anna — que começou antes de mim, apesar de ser mais descentramento do homem mesmo. Não sei. Mas devo ter tido “Soldados, parai. A praça é do povo como o céu é do condor”. E trás. Mas me parece que o Paulo Coelho publicar, me ligaram do Jornal do Brasil para me entrevistar. E novo do que eu. Todos tínhamos muitos uma boa infância, porque, de alguma maneira, os soldados pararam. Sabendo dessas histórias, como é que eu não • Mailer enterrado sacou esse vazio que se instaurou com o eu achei que era um trote. Nem sabia que escritor dava entre- leitores na nossa geração. E, hoje, os jo- não sou uma pessoa infeliz. Não é que eu não quereria ser Castro Alves? Pois a literatura me mudou. Sempre Acho que, com a morte de Norman A literatura fim da história, com o fim da utopia — co- vista. Mas acho que vivemos um momento como aquele do vens se queixam de não ter leitores na O mundo encare o sofrimento. Não é que eu não vivencie que leio algo que me move, sinto que mudo. Mudo meu jeito de Mailer, morreu um tipo de escritor que não loquemos isso entre aspas ou não. Ele sa- motorista de um ônibus lotado que, de repente, pisa no freio própria geração. Então, tem aí algo com- estados de dor. Mas não sou necessariamente uma pensar. Li muito tardiamente um escritor francês chamado Boris há mais, que é aquele escritor que interfere me mudou. cou que o leitor estava desamparado. O lei- para “ajeitar” o pessoal, o excesso da carga humana. Porque plicado com a percepção desse leitor está ruim? pessoa infeliz, ressentida, rancorosa ou catastró- Vian, autor de A espuma dos dias. E pensei: “Meu Deus, por que no seu tempo, o cara de briga. E ele brigava “ tor não queria mais o mundo organizado há um excesso aí. Nunca houve tanto livro no mundo. Eu novo. Acho que há um distanciamento “ fica. Quer dizer, a realidade é dura e tal, mas será não li isso mais cedo?”. Eu seria outro escritor se tivesse lido até mesmo fisicamente, era tão brigão que Sempre que leio da alta literatura, do pensamento, da psica- estava no Salão do Livro de Paris, com Jean Soublin, e fomos entre o escritor e o leitor. Que haja um Vamos melhorá- que ela já foi fácil? Olhando para trás, a gente aquilo mais cedo. Para mim, aquele livro é fantasticamente novo. esfaqueou uma mulher, um negócio doido. nálise, da filosofia. Ele sacou um negócio ao estande da editora, fazer umas fotos. Daí, olhei para aquilo distanciamento de mim para eles é nor- tende a pintar uma aquarela onde tudo era verde. Vendeu milhões em Paris. E vende até hoje. O cara morreu com 38 Vi uma entrevista dele ao Paulo Francis em algo que me que hoje está valendo milhões de dólares: a e disse: “Jean, olha quanto livro. Como é que a gente vai mal, mas que haja um distanciamento en- lo, gente. Eu Os verdes mares. Mas eu tive uma escola primá- anos e ainda tocava trompete. É de matar de raiva: o cara escreveu que ele dizia que a época do escritor já tinha tal da lenda pessoal. Você sai do projeto sobreviver?”. E ele vira para mim e diz: “Sabe o que é pior? É tre eles mesmos, isso já me causa um ria rural boa. E saí dali formado. Devo muito a A espuma dos dias e ainda tocava trompete. Então, a mim, a litera- acabado. Que escritor, agora, é coisa de move, sinto que coletivo e vai para o pessoal, entendeu? E que a maioria é boa”. Isso é que é o diabo. A maioria é boa. ponto de interrogação. quero manter, isso. Àquelas duas professoras da roça. tura não só mudou, mas acho que vem mudando. É um processo moda, de celebridade. Que o escritor aca- mudo. Mudo aí é que se impôs, junto com ele, tudo isso Isso que a gente acha que é descartável também deve ter o até a morte, o que segue com o tempo. Como todo escritor deve ser, sou essenci- bou. O enterro de Mailer enterrou também, que está aí. Você entra numa livraria, hoje, seu valor. Porque tem tanta gente lendo, não é? Para alguém, • Geração esmagada • Sai Cabul, entra a China almente um leitor. A leitura é meu alimento. simbolicamente, o tempo do escritor. Nos meu jeito de e com o que você dá de cara? Com 350 mil tem que ter valor. Pode não ter para mim, mas tem para Quando estreei, deu um rebuliço nos meu sonho O bom mesmo é que a gente está vivo. O meus momentos mais pessimistas, concor- Paulos Coelhos. Tudo na entrada da livra- muita gente. Então, não sei qual vai ser o destino da literatu- velhos. Jorge Amado, José Américo de mundo está ruim? Vamos melhorá-lo, gente. Eu • Verdes mares do sertão do com ele. Nos mais otimistas, acho que a pensar. ria. É tudo auto-ajuda, meus senhores e ra. Quem sabe ela fique como uma espécie de antídoto. “Ah, Almeida. E os da minha geração come- de arte e de quero manter, até a morte, o meu sonho de arte Tive uma professora que me ensinava a ler em voz alta. Lá no vida continua. O mundo é dialético, o tempo minhas senhoras. Produto de ocasião. Os você está todo envenenado por essas pragas mercadológicas? çaram a aparecer. Deu a sensação de que, e de beleza. O sonho que herdei daquela escola Junco (BA). Uma professora da escola rural, do primário. E essa é dialético, a literatura vai mudando com o psicanalistas estão sobrevivendo de auto- Quer aqui um antidotozinho? É a homeopatia do mercado se todos nós comprássemos os livros uns beleza. que me aprimorou com a leitura daqueles auto- mulher fez a oficina literária da minha vida. A gente estudava na tempo e com os escritores. E a gente vai querendo que as coisas se ajuda, os filósofos estão fazendo livros de auto-ajuda. O leitor editorial. Pode ser assim o último livro do João Gilberto dos outros, todos seríamos best-sellers. [...] res todos. Dava pra ficar a noite toda só falando escola para meninos e meninas da professora Serafina, uma escola repitam dentro de um tempo que você viveu, um tempo de que ”está querendo outra coisa, está querendo isso. O cara compra o Noll? Um livro do Caio Fernando Abreu? Quem sabe uma E fomos conhecendo todo mundo: João de autores. É o que me dá prazer. Falar dos no- sob a influência da Era Vargas, meio militarizada. E a professora, você gostou e no qual você se formou. livro Como ser feliz em 15 dias. Aí, ele não fica feliz em 15 reedição do finado João Antônio?”. Ubaldo na Bahia, Márcio Souza em Manaus, Moacyr Scliar em vos que estão aí. Não dá para falar de todo mundo, porque, no logo de cara, me botou na praça pública para recitar Castro Alves: dias, mas fica viciado em ler isso. E vai buscando o menor Porto Alegre, Domingos Pellegrini em Londrina... Tinha gente” Brasil, tem mais autor do que gente. Dizem que, no Brasil, tem “Auriverde pendão da minha terra...”. Um belo dia, à porta da • Leitor mudado prazo. Como ser bom de cama na velhice. Puxa, até eu quero, • Um filtro à beça. Naquele tempo, a gente se aliou muito aos que vieram mais autor do que leitor e mais editora do que livraria. É uma escola, chegam uma senhora e sua filha. E a filha diz: “Dona Serafina, É uma realidade um tanto complexa que, às vezes, escapa das não é? Então, ele vai ficar viciado nisso. E não vai melhorar sua Aquelas sonoridades que me encantavam na arte, na músi- antes. Rubem Fonseca, Cony, José J. Veiga, Lygia Fagundes operação complicada. Sou de uma geração de autores que, quan- vim buscar os alunos”. Daí, dona Serafina falou: “Leve os meni- minhas mãos. Percebo no nosso tempo a sua instabilidade de valo- performance na cama. Mas vai comprar o próximo livro que ca, no teatro e no cinema, tudo isso formou em mim uma sensi- Telles, Autran Dourado, Fernando Sabino, todos esses grandes do procuravam outro autor, é porque já o tinham lido e tinham, nos”. E nós saímos murchos. Que graça ia ter irmos a uma escola só res. Quer dizer, se instaurou no nosso tempo uma instabilidade lhe der outra dica a respeito do tema. Gore Vidal falou sobre bilidade. Acho que é isso que pega, é onde as coisas mudam. nomes. Uma geração muito poderosa, mas que ficou esmagada com ele, uma relação de admiração. Talvez agora a literatura seja de meninos, se uma das nossas maiores motivações era nos sentar- total de tudo, até da forma de pensar. A gente vinha do iluminismo, isso. Pego o exemplo dos americanos porque eles entendem Não se trata estritamente da leitura de livros, mas também da pelo peso de Guimarães Rosa e de Clarice Lispector, e que, só formada por tribos. Diz um amigo meu que os poetas nem tribos mos ao lado de uma menina, quem sabe darmos um beliscão na a gente vinha de um mundo de idéias mais ou menos sólidas. Você mais disso do que nós. Vivem dentro do capitalismo desde leitura de uma música. De um Villa-Lobos, um Tom Jobim, mais recentemente, emergiu. Mas essas duas vertentes foram pe- formam. Formam seitas. Seitas de poetas. É uma seita contra perna dela, pegarmos na sua mão e tal? Pois aquela professora vinha tinha o preto e o branco, a direita e a esquerda e, de repente, tudo antes de nascerem. Um repórter da Veja perguntou para o Vidal: um Miles Davis, um Mozart, um Luiz Gonzaga. É como se sadas demais para a nossa literatura. Guimarães Rosa, para mim, outra, uma tribo contra outra. Os tupinambás contra os inaugurar um novo prédio, todo padronizado. Tinha aqui a sala de isso explode. Tudo vira essa coisa triunfalista do capitalismo. A “Por que nos últimos tempos nenhum peso-pesado das letras tudo isso tivesse contribuído para afinar a minha pele. Você fica é o São Francisco que deságua no Mississipi onde Faulkner fun- tupiniquins. Quando eu era um jovem autor, os jovens autores aula, ali a casa da professora e a área do recreio. Era uma coisa do globalização chegou muito mais forte do que todos os tanques norte-americanas figura nas listas de best-sellers?”. E ele respon- mais sensível, claro. Isso também o canaliza para outros sofri- dou um território mítico e descreveu sua legenda. Guimarães tinham uma consciência muito grande dos outros e da necessida- governo, feita para invadir os fundões do Brasil. E essa professora soviéticos, chegou arrasando quarteirões e mudando tudo. Sou um deu que a literatura sempre havia sido para poucos. Agora, mentos, pois você fica muito mais vulnerável. Sua pele fica Rosa é isto: é o grande rio do continente. O São Francisco e o de de lutar pelo espaço da literatura. Aí, acho que talvez falte Tereza chegou, abriu as janelas, pegou um livrinho e mandou todo escritor formado por frases assim: “Conhecia-o de vista e de cha- mais ainda. Mesmo esses caras que foram tremendos best-sellers, mais vulnerável à poluição atmosférica, se impregna das coisas Mississipi desses dois grandes autores. certa consciência política do que esteja acontecendo. Idealização mundo fazer fila. Para mim, caiu o seguinte: “Ver-des ma-res bra- péu”. Machado de Assis, no começo de Dom Casmurro. Levei e fazendo literatura, já caíram na real. Acho que nosso destino ruins que estão no ar, em um sentido mais simbólico. E por que da arte? Não é nada disso. É a consciência do mundo em que a vios da mi-nha ter-ra na-tal on-de can-ta a jan-daia”. Na segunda vez é que a gente escreve? Deve haver uma falha dentro de nós. Por • Adiposidades da língua gente vive. É a consciência de que estamos ficando aleijados nes- em que li aquilo, eu já estava melhorzinho. Na terceira, na quarta, já que o homem cria? Primeiro, porque ele não é capaz de carre- De forma redutiva, vá lá, começamos com Machado de Assis, se processo. Eu conversava, outro dia, com um amigo escritor, e Fotos: Matheus Dias/ Nume Comunicação estava lendo legal. Agora, vocês não imaginam o efeito disso sobre gar um ser humano dentro dele. De gerar um ser humano Lima Barreto. Aí, veio 22, que propunha um ideário de rompi- ele me dizia: “Deu uma impotência no autor. Antes, a gente gri- um menino que nasceu e que vivia em um lugar onde nem rio havia. dentro dele. As mulheres não, elas não deixam de criar por mento com a norma lusitana, que propunha a gente escrever con- tava, chiava e funcionava. As editoras se abriam para nós, os O que era esse tal de verde mar? E no plural, “verdes mares”? O que causa disso, mas acho que, no homem, há esse componente, forme a nossa norma, até com a incorreção das nossas falas. E esse jornais se abriam, as salas de aula”. Mas hoje, talvez, isso não era uma jandaia? Eu nunca tinha visto uma jandaia. O que era uma essa diferença, essa falta. Ele não gera uma criação dentro ideário foi realizado pelo romance de 30. O romance de 30 é que esteja mais valendo. O que está valendo é o que vai vender um carnaúba? Isso era coisa lá do Piauí, do Ceará, de muito longe de dele, então cria outras coisas. Tem um buraco dentro dele vai executar mesmo — na prosa pelo menos — esse ideário. E, na milhão em qualquer país do mundo. Primeiro, foi a febre de onde eu estava. Coisa de um Nordeste aquoso. Não tinha água na que ele precisa preencher. Tem que criar, inventar coisas e poesia, Manuel Bandeira, Drummond. Mas o abrasileiramento Cabul. O livreiro de Cabul, A prostituta de Cabul, O corno de minha terra. Quando chovia, o povo vestia terno branco e rolava na se entreter com isso. E, de outra parte, você vê o seguinte: a do texto, proposto em 22, vem a se concretizar só nos anos 30. Cabul, O traficante de Cabul. E aquilo é para vender um mi- lama, de tanta alegria. Então, imagina: “verdes mares”? literatura serve muito, muito mesmo, para a gente se centrar. Tanto que Graciliano Ramos disse que tinha dois trabalhos: pri- lhão de exemplares em todo mundo, inclusive no Brasil. Ago- Enquanto você a está fazendo, você está filtrando, está sendo meiro, o de escrever; e, segundo, o de reescrever para abrasileirar ra, vai sair Cabul e entrar a China. Como era gostoso o meu • Em voz alta a esponja de uma atmosfera que não é necessariamente sau- seu texto, que era muito influenciado, no começo, pelo de Eça de chinês... Se preparem, porque a China vem aí, pesadamente. E, Às vezes, escrevo e leio o que escrevi em voz alta, como se dável. E aí é que entra o escritor como alguém muito inco- Queiroz. Quer dizer, ele tinha muita influência lusitana. E, aí, nisso, a gente fica folgado. Nós estamos vivendo um tempo tão estivesse aqui, falando com vocês, falando esse texto para o meu modado, alguém desconfortável dentro do seu tempo. Todo quando chegamos a Guimarães e Clarice, tudo se extrapola. Essa curioso, em que o Brasil tem a sedução do estrangeiro. Nosso leitor. Não quero perder essa oralidade que vem da infância, da escritor mostrou o desconforto que sentiu durante seu tem- literatura se revira pelo avesso, dando espaço a uma outra, que lado colonizado é forte. É forte demais. A gente vai ao Salão do escola rural. Sou produto dessa cultura rural e de uma cultura oral, po. Vá ver Proust e Dostoievski, vá ver quem você quiser. começa com Rubem Fonseca e Fernando Sabino. Para mim — e Livro de Paris e temos, lá, um espaço de estima. E é assim na também. Meu imaginário foi feito dentro disso. Das histórias que Há um desconforto ali, terrível. Diante da sociedade, diante isso não tem nenhuma base científica, é só uma intuição minha, Alemanha e em qualquer lugar. Aqui, temos uma Bienal onde me eram contadas e cantadas, do cordel. O cordel vem dessa cultu- de tudo. Tem algo de auto-análise. uma coisa de leitor —, esses autores fizeram uma cirurgia da lín- todos os espaços são para O livreiro de Cabul, O viado de Ca- ra oral, dessas histórias muito imaginosas, sem tempo nem espaço, gua, tiraram as adiposidades da língua portuguesa. O português bul, A puta de Cabul, O doido de Cabul, O baiano de Cabul. que me influenciaram muito. Adoro isso de ler em voz alta. Nas • Portugal e a reconquista colonial. O português colonial é barroco demais, muito rococó. E mais 300 autores brasileiros. O espaço para a gente é esse: “E oficinas literárias que faço, boto todo mundo para ler em voz alta. Peguei um navio e fui para Portugal. Fiquei lá três anos. Criou-se no Brasil uma mentalidade de que escrever e falar bonito mais 300 autores brasileiros”. r Agora, gozado: há uma febre fantástica de portugueses no Bra- é falar difícil, complicado, com adornos e floreios. Então o • • Meus monólogos sil. Desconfio que este prêmio Portugal Telecom foi feito para parnasianismo entrou, deitou e rolou. Mas atenção: com toda a Leia mais no site www.rascunho.com.br Acho que todos os meus livros são monólogos. Em Um cão testar o mercado. Não foi feito para o Brasil. Houve até um qualidade poética daqueles caras, o fazer literário do parnasiano uivando para a lua, por exemplo, vemos um cara internado. Mi- certo engano no começo. Ia ser um prêmio brasileiro, mas ago- era fantástico. Mas havia um outro lado que reforçava esse gosto nha idéia, ali, era escrever um conto sobre um doido batendo papo ra ele já se definiu. Os portugueses estão tentando a reconquis- do Brasil pelo embolado, pelo barroco. Até chegar Fernando PRÓXIMOS CONVIDADOS consigo mesmo. Dali a pouco, eu já tinha ultrapassado os limites ta. Como os espanhóis já reconquistaram o mundo hispânico, Sabino, com O encontro marcado, com sua influência americana de um conto e, oito meses depois, estava com um romance. E é os portugueses estão vindo para a reconquista do Brasil na área — e com o lado bom dessa influência. • 13 de agosto: LUCI COLIN isto: esse cara, depois de uma viagem de 36 horas de eletrochoques, econômica. Há altos investimentos. Já li no jornal que uma • 10 de setembro: SALIM MIGUEL começa a fazer uma viagem pelo país e por dentro dele mesmo. editora portuguesa quer comprar a Record, a minha editora. E • As duas professoras da roça • 8 de outubro: JOÃO PAULO CUENCA Quer dizer, faz um monólogo. Eu imagino esse personagem falan- eu digo: “Opa! Que é isso? O, pá!”. Vejo portugueses fazendo Tenho um filho que já escreveu quase 20 livros e está rico. Só do alto, contando aquilo tudo para alguém. Em Um cão uivando relatos fantásticos: vieram para um passeio a Salvador e aí fize- que os livros dele são de informática. Se eu me visse nesse menino, • 6 de novembro: BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS para a lua, um personagem se chama A e o outro T. É bandeiroso: ram um romance. Beleza. Eu morei três anos em Portugal para no meu filho, certamente não teria passado por todo esse século • 10 de dezembro: LUIZ RUFFATO Antônio Torres, A e T. Esses dois personagens são duas faces da mesma moeda. Na verdade, são um personagem só. Um está inter- nado e outro está visitando. Um está na televisão, o outro é um apresentação realização apoio repórter que pirou após uma viagem à Transamazônica — mas pirou mesmo por causa do LSD. Uma coisa da juventude dos anos o autor 70. Uma parte dela estava na luta armada e a outra estava com Jimi ANTÔNIO TORRES nasceu na Bahia, no município de Sátiro Dias, em 1940. Foi chefe de reportagem de esportes do Hendrix e Janis Joplin. E tome LSD! E eu pego esse personagem jornal Última Hora, em São Paulo, e redator de algumas das maiores agências de publicidade do Brasil. Em 2000, que explodiu e tento resgatá-lo pela consciência do louco. E tam- ganhou o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. É autor de Um cão bém faço uma interrogação sobre onde fica a fronteira entre sani- uivando para a lua, Os homens dos pés redondos, Essa terra, entre outros. dade e loucura. É esse o jogo desse livro. É um monólogo. 18 rascunho 100 • AGOSTO de 2008

LANCE DE DADOS LUIZ RUFFATO Maceió, 1930 (2)

A importância de Gilberto Freyre, José Lins do Rego e Graciliano Ramos na construção do Regionalismo de 30

Se é verdade, como prova com veemência Joa- ente provinciano. “Que havia em todo o país uma mente Graciliano: “Fui encontrá-lo num bar; tomava quim Inojosa1, que Gilberto Freyre (1900-1987), num preparação psicológica para o advento de uma nova café preto em xícara grande, cercado pelos intelectu- de seus rasgos de mitomania, inventou a existência estética, prova-o o fato de o Modernismo haver sur- ais da terra — todos eles reconheciam a ascendência de um Manifesto Regionalista, que teria redigido em gido quase ao mesmo tempo em diversos lugares.// do autor ainda inédito, era o centro da roda. Fica- 1926, em Recife (PE), não é menos verdade que o Não passamos a fazer literatura modernista para imi- mos amigos imediatamente. (...) Fiquei amigo tam- sociólogo exerceu decisiva influência na conforma- tar os nossos confrades de São Paulo e daqui [do bém de todo o poderoso grupo de escritores que vi- ção do ideário do chamado “Regionalismo de 30”. Rio]. Abandonamos os velhos moldes porque tam- via em Maceió. Digo vivia, pois, além dos alagoanos Em 1923, recém-chegado dos Estados Unidos, onde bém em Maceió, como em todo o Nordeste, àquele — Graciliano, Valdemar, Aurélio Buarque de estivera estudando desde cinco anos antes, Freyre tempo, amadureceu e tomou forma, no espírito dos Hollanda, Alberto Passos Guimarães, Raul Lima, “andava em verdadeiras núpcias com a terra”2, se- escritores, o desejo de fazer alguma coisa nova e dife- Theo Brandão, José Auto, Diegues Júnior, Carlos gundo palavras de José Lins do Rego (1901-1957): rente do que então se perpetrava por esse Brasil afora, Moliterno, o poeta Aluísio Branco e o contista “Havia nessa época o movimento modernista de São na poesia, no romance, no ensaio, etc.”9, argumenta Carlos Paurílio — ali residiam, na ocasião, José Paulo. Gilberto criticava a campanha como se fosse Jorge de Lima. Assim, em 1927 um grupo de adoles- Lins do Rego e , dois dos mais de uma outra geração. O rumor da Semana de Arte centes10 criou em Maceió o Grêmio Literário “Gui- importantes entre os jovens romancistas”14. Auré- Moderna lhe parecia muito de movimento de comé- marães Passsos” que, em 17 de junho de 1928, reali- lio Buarque de Hollanda Ferreira relembra: “À dia, sem importância real. O Brasil não precisava do zou a “Festa da Arte Nova”, uma espécie de Semana noite, o grupo (...) reunia-se no ‘Ponto Central’, dinamismo de Graça Aranha, e nem da gritaria dos de Arte Moderna da cidade. Mas a entrada desses não faltando às conversas outros escritores mais jo- rapazes do Sul; o Brasil precisava era de se olhar, de jovens na modernidade do século 20 só foi comemo- vens ou menos famosos (...)15”. se apalpar, de ir às suas fontes de vida, às profundida- rada quando, em 23 de junho de 1929, promoveram A partir de 1939, estarão todos reunidos nova- des de sua consciência”3. a “Canjica Literária”, um evento regionalista, sob mente no Rio de Janeiro16, onde o consultório mé- E são as idéias de constituição de um “regionalis- influxos de Jorge de Lima e de José Lins11. dico de Jorge de Lima, na Cinelândia, transforma- mo orgânico”4 que Freyre, a convite de José Lins, se em ponto de encontro dos intelectuais radicados apresentará, em 1924, aos jovens escritores da Paraíba Mudanças na capital da República, particularmente com al- (João Pessoa), entre eles o romancista José Américo Enfrentando problemas políticos, em 1930 Jorge de guns dos quais convivera em Maceió. E essa ami- de Almeida (1887-1980), que quatro anos mais tarde Lima decide ir embora de vez para o Rio de Janeiro. zade, de influências recíprocas, é que permitiu que publicaria A bagaceira, tido como marco inaugural Em abril daquele ano, Graciliano Ramos (1892-1953) os chamados “regionalistas de 30” renovassem o do movimento. Naquela época, José Lins, formado renuncia ao mandato de prefeito de Palmeira dos Ín- regionalismo nordestino imediatamente anterior, em Direito no Recife, onde se tornara amigo de Freyre, dios e em maio já está morando em Maceió, nomea- tendo em Gilberto Freyre um sucessor ideológico estava de volta à Paraíba para se casar. Em 1925, ele do diretor da Imprensa Oficial do estado. Lá, convive de Franklin Távora (1842-1888) — assim como, de ingressa no Ministério Público e muda-se para com José Lins — ambos colaboram no Jornal de Alagoas certa maneira, Mário de Andrade (1893-1945) re- Manhuaçu (MG), mas um ano depois renuncia ao —, mas no final de 1931, demitido, volta para Pal- tomaria no século 20 as idéias de José de Alencar cargo de promotor público e consegue uma nomea- meira dos Indios. Em janeiro de 1933 muda-se nova- (1829-1877). Os regionalistas eram modernos, sim, ção para fiscal de bancos em Maceió (AL). E esta mente para Maceió, agora como diretor de Instrução mas não modernistas... r pequena cidade, de pouco mais de 90 mil habitantes, Pública do estado, cargo no qual permanece até 1936. • onde permanecerá por quase dez anos, entre 1926 e Esse será um período de intensa atividade literária para 1935, o futuro romancista transformará em foco de José Lins e Graciliano. Em 1932, José Lins imprime, Notas irradiação das convicções ideológicas de Freyre (que por conta própria, dois mil exemplares de seu primei- evidentemente passam a ser também suas). ro romance, Menino de engenho, que rapidamente 1 V. Sursum corda! Rio de Janeiro: Edição do Autor, 1981. Logo ao desembarcar em Maceió, José Lins re- se esgotam, alcançando enorme sucesso no Rio de 2 REGO, José Lins do. “Gilberto Freyre”. In: O cravo de Mozart é toma sua atividade jornalística, iniciada no Recife, Janeiro e projetando o nome do autor. Na sequência, eterno. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004 (p. 49). e faz-se amigo de Jorge de Lima (1893-1953), médi- publicará quase todo o chamado Ciclo da Cana-de- 3 Idem, p. 52. co, ex-deputado e celebrado poeta parnasiano (prin- Açúcar: Doidinho (1933), Banguê (1934), O mole- 4 “O regionalismo é um esforço no sentido de facilitar e dignificar cipalmente pelo soneto O acendedor de lampiões, do que Ricardo (1935) — que se completa com Usina certa atividade criadora local desembaraçando o que há de pejo- seu livro XIV Alexandrinos, publicado em 1914). (1936). Graciliano estréia em 1933, com Caetés, que rativo em ‘provinciano’ de qualidades e condições geográficas”, Em 1925, Jorge de Lima imprime um folheto de também chama a atenção da crítica e do público, e escreveria Gilberto Freyre em 7 de fevereiro de 1926, no Diário de poemas, intitulado O mundo do menino impossí- lança no ano seguinte São Bernardo. No entanto, Pernambuco. In: FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista. 7ª vel, saudado por José Lins com entusiásticas pala- acusado de subversão, em 3 de março de 1936 é pre- edição revista e aumentada. Recife: Fundação / vras, devido à sua adesão não ao modernismo, mas... so e enviado para o Rio de Janeiro, onde ficaria en- Editora Massangana, 1996 (p. 110). ao regionalismo. “Jorge de Lima (...) voltou a si, carcerado até janeiro de 1937, sendo solto graças aos 5 LIMA, Jorge de. Poesias completas – Volume I. Rio de Janeiro/ Brasília: José Aguilar/MEC, 1974 (p. 139). recobrou os sentidos.// A sua literatura de antes era esforços do amigo José Lins, que, nomeado fiscal do 6 Idem, p. 144. uma literatura fora do tempo e do espaço. E mesmo, imposto de consumo, se transferira para a Capital Fe- 7 Publicado originalmente em 1928, como folheto, e incorporado a se quiséssemos situá-la, uma arquitetura em cera”5. deral em fins de 1935. É ainda pelas mãos de José Novos Poemas, de 1929. E continua, afirmando que se o poeta rompeu com Lins que o terceiro livro de Graciliano, Angústia, 8 IVO, Ledo. Anos de aprendizagem de José Lins do Rego - A o passadismo, não foi a “convenção modernista” que cujo cenário é Maceió, é publicado em 1936, estan- história de sua criação artística. Rio de Janeiro: Tribuna dos Li- o levou aos novos versos: “A poesia foi quem o le- do o autor na cadeia. J. Nemésio relembra a convi- vros, 21-22 de setembro de 1957. vou a isso.// Aos seus poemas ele deixou que vives- vência dos dois na capital alagoana: “Mais tarde, vi- 9 SENNA, Homero. República das Letras – entrevistas com 20 sem à vontade. Fugiu de os ajustar aos seus precon- os novamente, desta vez juntos, em Maceió, e já ca- grandes escritores brasileiros. 3ª edição, revista e ampliada. Rio ceitos de antigamente ou de os compor assim para maradas, ambos já criticando os figurões da terra, de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996 (p. 129-130) não ficar atrás, como certos sujeitos, sempre preocu- costurando pessoas e coisas, cochichando, rindo, cu- 10 Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, Arnon de Mello, Manuel 12 pados em tomarem à hora certa os trens que levam tucando ‘personalidades’”. Diegues Júnior, Mendonça Júnior, Paulo Malta Filho, Raul Lima, Val- à notoriedade e à voga”6. Este texto, publicado ori- Nesta época, José Lins se tornará amigo do demar Cavalcanti, Emílio de Maya, Carlos Paurílio e Aluísio Branco. ginalmente nas páginas do Jornal de Alagoas, passou conterrâneo Santa Rosa (1909-1956), funcionário 11 V. SANT’ANNA, Moacir Medeiros de. História do Modernismo a integrar, como posfácio, as edições de Poemas, de do Banco do Brasil, que morou em Maceió em 1932, em Alagoas (1922-1932). Maceió: Edufal, 1980. 1927, e Poemas escolhidos, de 1932. e que, radicando-se no ano seguinte no Rio de Ja- 12 “José Lins e Graciliano”. São Paulo: Diário de São Paulo, 19/10/1950 neiro, será reconhecido como artista plástico, críti- 13 Seus primeiros projetos gráficos serão para o romance Caetés, Novas idéias co de arte, cenógrafo e um dos maiores capistas bra- de Graciliano Ramos, pela Schmidt Editora; e Cacau, de Jorge Ama- José Lins afirma mesmo que foi sua a sugestão sileiros de todos os tempos13. E, ambos, José Lins e do, e Doidinho, de José Lins do Rego, para a Ariel Editora. Depois se para a composição de um dos mais célebres poemas Graciliano, ainda conviverão com a cearense Rachel tornará o capista quase oficial da Livraria José Olympio Editora. do amigo, Essa Negra Fulô7, de claro cunho de Queiroz (1910-2003), em 1933, já consagrada 14 “O Dia em que conheci Graciliano”. São Paulo: Status, novem- regionalista. “O tema do ‘Negra Fulô’ foi dado por pelo êxito de seu primeiro livro, O quinze (1930), e bro de 1978 (p. 150-151). mim que, tendo lido o ‘Coco do Major’, de Mário tendo lançado outro romance, João Miguel (1932), 15 SENNA, Homero. República das Letras – entrevistas com 20 de Andrade (a quem conheci de passagem por responsável pelo seu rompimento com o Partido grandes escritores brasileiros. 3ª edição, revista e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996 (p. 265). Maceió), lhe sugeri produzisse um poema baseado Comunista Brasileiro (PCB). Jorge Amado (1912- 16 Pela ordem de chegada: Jorge de Lima (1930), José Lins do no coco alagoano”8. E ambos iriam contribuir signi- 2001) irá recordar com carinho esse momento, quan- Rego (1935), Graciliano Ramos (1936), Aurélio Buarque de Hollan- ficativamente para espalhar as novas idéias no ambi- do decidiu viajar até Maceió para conhecer pessoal- da e Rachel de Queiroz (1939). 100 • AGOSTO de 2008 rascunho 19

RUÍDO BRANCO LUIZ BRAS Quem quer viver pra sempre? O que une morte, humanos, máquinas e ciberespaço num mesmo campo de interesse

Neuromancer 25 William Gibson Trad.: Fábio Fernandes Aleph 311 págs.

Tereza Yamashita

Count zero William Gibson Trad.: Carlos Angelo Aleph 311 págs.

Não acredito em vida espiritual após a morte física, após Neuromancer foi escrito por William Gibson, um dos progresso tecnológico. O desenvolvimento tecnológico, como a dissolução da mente. Por isso a vida de cada criatura me articuladores do movimento cyberpunk, que renovou a ficção tudo o que nasce das mãos humanas, também expressa pulsões parece tão preciosa. Por isso me preocupo tanto com ela, a científica dos anos oitenta, atualizando seus principais temas. sinistras, perversas ou doentias de nossa espécie. No final do morte física. Com a morte dos outros, em menor grau. Eu O romance saiu em 1984 e é o primeiro da Trilogia do Sprawl, século 19 o positivismo e todos os defensores do método ci- me preocupo principalmente com a minha morte, com a tendo sido seguido por Count zero (1986) e Mona Lisa overdrive entífico, entusiasmados com a máquina a vapor e com o pro- dissolução da minha consciência, porque a minha morte (1988). Muito do que vocês viram (por exemplo, a trilogia Matrix, gresso tecnológico, prometeram a fartura e a ociosidade para será também a morte de todos os outros. Quando eu mor- dos irmãos Wachowskis) e ainda vêem hoje no cinema veio toda a raça humana, e pouco tempo depois o que o mundo rer tudo o que existe desaparecerá, será a extinção definitiva dessa trilogia de Gibson, principalmente o ciberespaço, sua fauna teve? As duas guerras mundiais, o nazismo, o estalinismo e do universo: adeus sol, adeus brisa, adeus família. Às vezes e flora, e o ato de plugar o cérebro (jack in), capaz de lançar a outros devastadores efeitos colaterais. William Gibson tam- me aborreço por me preocupar mais com minha morte do mente humana nesse espaço virtual delirante. bém compartilha dessa desconfiança. O futuro representan- que com a morte dos outros. Isso não é nada nobre. Isso Fábio Fernandes, tradutor de Neuromancer e de outro ro- do em seus livros, dominado pelas corporações e pelos psico- não é nada louvável. Então lembro que não sou o semideus mance de Gibson, o não menos provocativo Reconhecimen- patas digitais, está muito longe de realizar o paraíso artificial perfeito e invejável do poema de Pessoa, e fico mais tranqüi- to de padrões (2003), também estudou a obra do escritor nor- tão perseguido pela razão iluminista. lo. Existe certa nobreza em reconhecer as imperfeições natu- te-americano em sua tese de doutorado, defendida na PUC- O fato é que o mundo está caminhando nessa direção e rais, não? Somos todos humanos, demasiado humanos. SP e intitulada A construção da cultura cyber: William Gibson, não há nada que as pessoas — desconfiadas ou não — pos- No início dos tempos (dos meus tempos), lá pelo século criador da cibercultura (2005). Palavras de Fábio, em sua tese: sam fazer pra mudar isso. Se hoje vivemos cercados de má- 15 depois de meu nascimento, eu estava certo, certíssimo de quinas indispensáveis, em breve, na era dos ciborgues, o que que todo mundo se preocupa com a morte. Eu estava Outra questão importante em Neuromancer é a presença de chamamos de corpo será um misto de matéria orgânica e certíssimo de que essa era a grande obsessão das pessoas: a inteligências artificiais como personagens ativos na trama. Não cibernética. Então essa criatura meio homem meio máquina inevitável extinção definitiva do universo. Com o passar se trata de máquinas diabólicas querendo dominar a humanida- redefinirá a velha noção renascentista de homem. Mas por dos séculos fui percebendo que há outras preocupações mai- de, como no livro clássico Colossus, de D. F. Jones (1966) ou que o mundo está caminhando nessa direção? Que força é ores e mais permanentes: as novas tendências da moda, a mesmo no filme Matrix, de Andy e Larry Wachowski (1999), essa, tão irracional e irrefreável, que nos compele a realizar política externa norte-americana, a queda do índice da bol- mas de entidades autônomas e conscientes buscando não vingan- nos laboratórios prodígios muito mais espantosos do que os sa de valores e a entrega do Oscar, por exemplo. Não estou ça ou dominação, mas liberdade e independência de seus criado- ambicionados pelos alquimistas? Penso que é o desejo primi- dizendo que essas não são preocupações legítimas. É claro res. É interessante apontar a dicotomia entre as personagens de tivo, violento e irreprimível de autopreservação. A vontade que são. Mas a certeza da morte… Sempre fico muito es- carne e osso e as de silício em Neuromancer. Os humanos no de escapar da morte física, da dissolução da mente. pantado com as pessoas altamente especializadas, que con- romance de Gibson tendem a agir como máquinas, enquanto as seguem falar longa e brilhantemente sobre neurologia, polí- máquinas tendem a agir como humanos. Transcendência neurológica tica, teatro, sexo, economia, física quântica, música, astro- Neuromancer, cujo tratamento barroco, cheio de nomia ou lingüística, mas jamais inserem nesse discurso o Humanos, máquinas, ciberespaço… O que a morte física filigranas e pormenores, está bem acima da média do gêne- grito reprimido, universal: “Nós vamos morrer!” tem a ver com tudo isso? Muita coisa. Nos romances de ro literário a que pertence, age de muitas maneiras na sensi- Não estou pedindo que expliquem ou justifiquem a mor- Gibson, os seres humanos possuem diversas próteses e vári- bilidade do leitor. Eu fui pego pela questão da imortalidade te física, que revelem de uma vez por todas qual é o real os implantes espalhados pelo corpo todo. Muitos desses da consciência, que não é sequer a questão central do ro- sentido da vida, porque a morte não tem explicação nem componentes industrializados melhoram a capacidade de mance. O livro de Gibson, cuidadosamente traduzido por justificativa racional, tampouco a vida. O sentido e a beleza membros e órgãos naturais, aumentando sua vida útil. Fábio Fernandes, não apenas toca nesse tabu tão evitado, o da vida estão nela mesma, na sua extensão e na sua quali- Outros ampliam consideravelmente certas capacidades men- da morte do sujeito, como faz isso com inteligência e pers- dade. Antes do nascimento não há nada, assim como não tais, melhorando os cinco sentidos e criando outros, artifi- picácia incomuns. Como? Sugerindo nas entrelinhas o se- há nada depois da morte. Sempre que alguém — filósofo, ciais. Tudo isso leva diretamente à questão do fim da morte guinte: no momento em que um indivíduo conseguir copi- cientista ou sacerdote — tenta explicar e justificar a vida e a física e do início da vida eterna, por meio da preservação ar (back up) todo o seu sistema mental num poderoso morte, voa para todos os lados um sem-fim de mitos, fábu- da identidade, da consciência e da subjetividade do sujeito minidrive, sua imortalidade terá sido potencialmente las ou fantasias mais ou menos organizados. Não é isso, nos vastos labirintos cibernéticos. alcançada. Quem nascer daqui a duzentos anos talvez te- explicações e justificativas, o que eu estou pedindo. Eu gos- nha a oportunidade inédita na História de viver dez, mil, taria apenas que se discutisse mais sobre esse assunto. Sem Telepatia e telecinesia dez mil anos. Ou pra sempre. afetação ou solenidade. Eu gostaria que as pessoas se prepa- Há duzentos anos, quando Mary Shelley escrevia seu A transcendência neurológica é a única possível. Essas rassem melhor para a morte, eu gostaria que se preparassem romance mais célebre, Frankenstein, dispositivos como o especulações levam o leitor a um conjunto de questões téc- de maneira mais saudável. Sem histeria, depressão ou pâni- pulmão artificial, o marca-passo e a prótese da mão ou a do nicas, éticas e morais igualmente inéditas na história de co. Para a morte, a qualquer momento. antebraço, acionadas eletricamente, eram objetos apenas da nossa espécie. Pena que essas questões não estejam apare- Amigos me avisam, durante o café, que o tabu em torno ficção científica. Hoje isso é café pequeno e as neuropróteses cendo com regularidade nos pontos de discussão mais fre- da morte, o pacto de silêncio em relação a esse tema tão im- também já estão sendo desenvolvidas. Um rapaz tetraplégico qüentados pela intelligentsia brasileira. Tampouco nos li- portante, é a maneira que a sociedade de consumo encontrou de vinte e cinco anos de idade já consegue acender as luzes vros de nossos melhores autores. pra se proteger do pavor, do horror, da angústia. Faz sentido. de casa, mudar o canal da tevê e ler e-mails utilizando ape- Na minha opinião, salvo raríssimas exceções, a cor- nas sua mente, graças a uma prótese neurológica desenvol- rente principal da nossa literatura não conseguiu apre- Edição comemorativa vida a partir de pesquisas feitas na Universidade Brown. sentar nada de novo, nada de vivo, nos últimos dez anos. Vejam só o perigo que é se deixar levar, logo cedo, pelo Esse implante foi batizado de BrainGate. Li recentemente Livro após livro as mesmas formas e os mesmos conteú- fluxo de consciência, pela livre associação de idéias. Eu pla- na Scientific American que já estão sendo testados em labora- dos têm sido revisitados monotonamente por centenas, nejava escrever dois ou três parágrafos sobre o romance tório os dispositivos que permitirão em breve a transmissão milhares de estreantes e veteranos. Acredito que a mistu- Neuromancer, que está completando vinte e cinco anos, e de pensamento. Isso hoje. Daqui a duzentos anos… A pre- ra de gêneros e de linguagens é a melhor maneira de de repente fui seqüestrado por outro assunto. É claro que o servação da identidade, da consciência e da subjetividade melhorar essa situação. A ficção científica, gênero seqüestro foi muito incentivado pelo romance em questão, do sujeito? A imortalidade da mente? riquíssimo em novos assuntos e em instigantes desafios que em certos momentos propõe novas e inquietantes idéias Eu desconfio de todas as promessas da ciência e dos cien- da linguagem, precisa ser descoberta pela corrente princi- a respeito da morte física. tistas. Eu desconfio dessa fixação que a humanidade tem pelo pal da literatura brasileira. E vice-versa.•r O Quintana Café & Restaurante é um lugar espe- cial. No almoço, une culinária brasileira com influ- ências internacionais em uma mesa gastronômica. Além de refeições, ao longo do dia serve doces, tor- tas, sanduíches e refeições.

É o café gourmet enriquecido com sabores contem- porâneos, delícias que podem ser apreciadas no Quintana ou levadas para casa. Aos sábados, pre- paramos um delicioso brunch.

Em um ambiente ideal para quem busca bom gosto e cultura, o Quintana Café & Restaurante homena- geia o poeta Mario Quintana.

• De segunda-feira a sexta-feira, das 11 às 19 horas.

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AVENIDA BATEL, 1440 • CURITIBA • PR 41 3078.6044

ESPAÇO QUINTANA Otro ojo ganha exposição O ilustrador curitibano Ricardo Humberto abriu a exposição Otro ojo no Quintana, em Curitiba. A mostra reúne 12 ilustrações do artista, todas publicadas na página que Ricardo Humberto assina, há anos, no RascunhoRascunho. O ilustrador também é coordenador de imagem do jornal paranaense Gazeta do Povo. Lançado Depois do sexo No dia 30 de julho, o escritor e roteirista gaúcho Marcelo Carneiro da Cunha lançou seu segundo romance, Depois do sexosexo. O livro traça um panorama das relações amorosas numa época em que a revolução sexual, a flexibilização de costumes e os avanços tecnológicos já foram incorporados ao cotidiano da classe média urbana. Poesia de Cecim Calixto A família do poeta paranaense Cecim Calixto lançou, em 31 de julho, a coletânea Salvai a naturezanatureza, composta de 53 sonetos. Compareceram ao evento cerca de 150 pessoas. Calixto faleceu no início do ano e deixou uma vasta produção poética, em que se destacam Lampejos e Tenda de estrelasestrelas. Ele era integrante da Academia Paranaense de Letras. 100 • AGOSTO de 2008

Onde a paz do ríspido desenho com que, pombos, aviamos a nossa vida no escuro? E tecemos a vulgar Do Manual de inocência. Ah, como quis te amar com as asas de um condor desassombrando a alta paineira. Não, agudos olhos, doméstico pipilo, não passei, não passamos dos beirais com musgos. Alcachofras? Ou dormes já, de novo, nova vez, a inocente morte ZOOFILIA Wilson Bueno de agosto? VAGA-LUMES LEITORES Arcar com o severo pesadume do bico é, deles, dos pelica- Chegam pelas noites de verão — miríades deles nos, uma insubstituível marca e, de certo modo, um glorioso num revôo de faíscas contra o azul profundo. Se um Mal os percebemos os que nos lêem. acinte. Pudessem, não envergariam pela vida afora os bicos se ausenta, outro se assanha, abaixo, acima, de lado e Noturnos em suas camas sozinhas, claros ao sol dos como trombas tristes e nem exibiriam as longas melancólicas a celacanto — assim tão sucessivamente que parece parques, curvos nas bibliotecas de Babel e da Cochin- canelas feito uma humilhação compulsória. chovem sobre o quintal, entre os arbustos, os cactos china, nos reinventam os sonetos desesperados, redizem Ah, guardam, no escuro papo guardam uma esmeralda viva e os eucaliptos. o dizer já dito mas com tal tamanha invenção que in- e sonham por nós o sonho oblíquo de que sendo sumamente Rever em vós o nítido contorno, a dura escorregadia cendeiam, ah como incendeiam, os textos exangues — feios, de físico e de feição, nós, os dois, neste lago merencório, couraça com que o corpo trincas (faíscas?) ao meio, a de heróica desesperança. alcancemos soar, quem diria?, perfeitamente escarlates. movimentos sincopados — o modo como escapas de Não importa se de enlevo a tua cara branca no vidro Voar não podemos dada a complexidade do corpo contra a meus dedos ávidos, e o sombrio gozo no coração do da janela; ainda és, mesmo assim, a intangível margem magra asa. Assim, jaburu, o nariz e a dilatada marca de teu sinistro. dos livros fátuos, e os parágrafos mortos de medo. lábio inchado. Desejar-vos a luminosa cola túrgida feito um vene- Trêmulo me agarro a um decassílabo perfeito. Tonto no de iridescente apelo, e aprender à margem dos meus de ternura, as mãos insones, vos adivinho e a vós me escombros de mim o quanto falhos fomos; e velhos em dedico com um luxo que decididamente não é meu nem POMBOS nossas luzes. Luzes? Mais vale a alma sucinta do besouro para sempre me pertence. Animal de pequeno porte, uivo. Que de alvoroço a azáfama de nosso amor gozoso! Examino a lombada dos livros eternos, gravadas a condenado a uma morte de bruços, e cheia de pernas. Basta que uma apenas do pombal desamanheça para ouro e cristal; você cochicha na sala a canção que um Perdoa o que fui de vosso látego e anátema; perdoa. que instaure o suplício com que vimos construindo o ár- Então, amor, é que acendes, de inopino, toda uma dia foi minha. És assim, a reescrever o duas vezes lido duo cio e o duro presto de amar-com-pressa. Tesos pesco- porque escrito; o reescrito porque ainda outra vez lido. floresta no escuro. r ços de arrepiadas plumas, túmidos bicos, quase uma fúria E é de amor, sim, de indecifrável amor, o nosso enlace. • contra vossa pequena cabeça. Uma, duas, três, cinco mil vezes a submissão a que lhe obrigo, mal raie sanguínea e fresca a madrugada. WILSON BUENO é autor, entre inúmeros livros, PELICANOS A copista de Kafka Asas contra asas, trêmulos, chilreantes, o baixo-grave de do romance . Mora em Curitiba (PR). Os textos publicados neste Os pelicanos são como avis raras, e moram, em seu minhas gônadas chovendo dentro em vós a água, o sêmen, a Rascunho são inéditos e pertencem à futura silencioso coração, as reticências. destemperança. reedição ampliada do livro Manual de zoofilia. 22 rascunho 100 • AGOSTO de 2008

Conheço bem a história de Artur. Ele é um Quatro dias depois, à noite, Marcelo li- homem íntegro, e é meu dever defendê-lo. Ar- gou para Artur. Queria agradecer a recomen- tur tem muitos defeitos de personalidade, mas dação da nova cliente. Contara que a profes- poucos de caráter. Tem pensamentos inconfessá- sora Triana tinha investido quase três milhões veis, dos quais se envergonharia. Mas quem nun- com ele, e que o portfólio de investimentos ca se envergonhou dos próprios pensamentos? que gerenciava tinha praticamente dobrado. Ao separar-se, trocara a possibilidade de de- O primeiro sentimento do pai com a notícia pressão por um sentimento de amargura leve, mas foi de satisfação pelo bem que fazia ao filho. O perene. Em São Paulo, não conhecia ninguém. que veio depois era incredulidade pura. Na- Seu contato social resumia-se a pouca conversa quela noite, Artur quase não dormiu. Rolando que tinha na biblioteca com os oito funcionários na cama, tentava encaixar três milhões na vida que trabalhavam sob sua supervisão. de Triana. Teve um sono agitado, mas não se Essa ausência de contato não o incomoda- lembrou de seus sonhos ao despertar. va. Ao contrário, lhe convinha. Quanto me- No sábado seguinte, antes do cinema, Tria- nos pessoas conhecesse, quanto menos pesso- na mencionou que havia falado com Marcelo. as falassem com ele, melhor. Não queria re- De noite, na cama, Artur tentava conceber a contar a história de seu passado recente, não idéia de que Triana, sua companheira de cine- queria que ninguém tivesse elementos para ma e pizza com guaraná, possuía mais dinhei- deduzir fatos de sua vida e, mais importante, ro do que ele jamais imaginara. A conclusão não queria acabar tendo despesas desnecessá- óbvia a que chegava era que Triana tinha her- rias com gente que não o interessava. Artur dado essa dinheirama de alguém. De tudo o que perdeu com a separação, o apar- Passou a observá-la como nunca fizera antes.

tamento foi o que mais sentiu. Artur tinha medo de ouro Analisava cada gesto de sua expressão. Perscru- do futuro. Tinha medo de ter câncer na próstata. tava cada parte de seu corpo. Se fechasse os olhos, Tinha medo de ficar desvalido, e o pensamento podia imaginar suas feições. Ela possuía o que ele de não ter onde morar na velhice o apavorava precisava ter, e Artur queria entendê-la melhor. mais do que qualquer outra coisa no mundo. Notava a segurança com que ela tomava os Todos os seus centavos eram contabilizados, O ingressos na bilheteria do cinema. Percebia como do primeiro ao último. Àquela altura, seu prin- segurava os talheres com os punhos ligeiramen- cipal objetivo na vida consistia em readquirir te curvados. Achava graça quando ela olhava um imóvel próprio e parar de pagar aluguel. para baixo imediatamente antes de olhá-lo nos Todas as noites adormecia pensando em um olhos e criticar um governo qualquer. apartamento pequeno, financiado na planta, Imagens de Triana Robledo seguiam Artur num prédio decente, onde pudesse morar tran- Alexandre Vidal Porto na piscina, entre reflexos de luz e bolhas de ar. qüilo. Economizava para a entrada. Com o sa- Ocupavam o lugar do apartamento próprio em lário, pagaria as prestações. seus pensamentos antes de dormir. Por necessidade e cautela, vivia modestamen- Para Artur, uma mulher rica que quisesse te. No entanto, não precisava privar-se de muito. parecer pobre tinha de ter enormes qualidades. Era naturalmente frugal. Por um desconto sim- Por algo que não se explica, passara a vida invisível para o sexo oposto. Nenhum Passara a admirá-la, a considerá-la um mode- bólico no contracheque, fazia as três refeições no homem jamais lhe demonstrara interesse romântico. Por estranha que possa pare- lo. Nada na vida o tranqüilizava mais que a bandejão da Universidade. À noite, às vezes, jan- cer, é essa a mais pura verdade. Não era bonita, mas isso não seria razão. Mesmo companhia daquela mulher. tava uma fruta ou um sanduíche de queijo. Co- neste mundo machista, mulheres de menos beleza se casam até mais de uma vez. Durante um filme de Almodóvar, suas pernas mia a mesma coisa todos os dias. Seus luxos eram Era reservada. Passou a adolescência sozinha, lendo. Talvez tenha sido por isso. se tocaram. Triana sentiu um calor sufocante no uma televisão com DVD e um computador. Talvez tenha ficado solteira porque circulasse muito entre religiosos. Talvez, ainda, rosto; Artur pressentiu uma ereção. Quase dois A separação o havia exaurido. Só gente muito porque fosse esse o destino mais feliz que lhe pudesse caber. meses depois, Artur beijou-a por impulso na cozi- próxima soube o que aconteceu. Até hoje, Artur Mas é inútil conjeturar sobre as razões desse destino. As razões podem ser várias. nha do apartamento dela, onde haviam ido tomar evita tocar no assunto. Separaram-se por decisão O que importava era o resultado, e o resultado era que Triana Robledo nunca café. Não teve qualquer dificuldade para admitir dela. Só dela. Soubera que Artur havia tido um encontrara um homem que a beijasse ou, muito menos, que a levasse ao altar. Em que se apaixonara por Triana sem perceber. caso — devidamente morto e enterrado, por sinal Triana se extinguiria a família Robledo. As idéias, o corpo, o cheiro, essas coisas cata- — com a ex-cunhada. Tomou a decisão de sepa- O tio lhe havia possibilitado uma vida austera. Crescera sem qualquer luxo. lizam a química do amor. No caso de Artur, o rar-se e manteve-se irredutível até o final. Nunca se achara merecedora de cuidados especiais ou gastos supérfluos. Trazia na catalizador do amor por Triana foi a segurança Artur não amava mais a mulher, mas pre- alma o pessimismo conformista de que só um espanhol é capaz. A vida era como que a personalidade, as palavras e o dinheiro da tendia continuar casado. Ao ser sincero, acabou tinha de ser, um vale de lágrimas, uma armadilha contra quem está vivo. mulher lhe inspiravam. Para ele, o que ela tinha cometendo um atentado econômico e moral con- Como Artur, Triana contabilizava centavos e achava normal usar o mesmo saquinho integrava a essência de quem ela era. tra si mesmo. O apartamento ficou para a mu- de chá mais de uma vez. Não conhecia o prazer e não desperdiçaria dinheiro no que não Haverá quem insista em discutir a pureza desse lher e os filhos, e 20% de seu salário passaram a conseguia discernir. À diferença de Artur, porém, não tinha idéia do que o dinheiro sentimento. O mais fácil é dizer que Artur se casou ser descontados em folha, a título de pensão. acumulado ao longo da vida lhe poderia proporcionar. Passara a vida economizando por interesse. É o mais simples e o mais simplório. Em São Paulo, daria seguimento à vida. porque economizar era parte da vida. Economizava porque não tinha em que gastar. Mas isso só fala quem não os conheceu. Pensara em alugar um quarto em uma das re- A atenção que Artur lhe dedicava quando iam ao cinema ou dividiam uma Triana e Artur casaram-se discretamente, em públicas próximas à Universidade, mas deu-se pizza era maior do que a que qualquer outro homem jamais lhe devotara. Toda um cartório no centro da cidade. Marcelo e conta de que não teria onde receber os filhos. demonstração amistosa de Artur era grande perto do pouco que ela conhecia. Se Padre Justino, que benzeu o casal, foram as tes- No final, alugou um apartamento pequeno, de concebesse a possibilidade do amor, Triana teria se apaixonado à primeira vista, temunhas. Por insistência de Triana, casaram- um quarto. Quando viessem, os filhos dormiri- na biblioteca. Mas como não pensava em amor, não contemplava a paixão. Com- se em comunhão de bens. am em um colchonete na sala. prazia-se com a presença de Artur. Gostava de sua companhia, das conversas que Aos 73 anos, Triana, finalmente, conhecia o Se fosse sedentário, seria gordo. A natação tinham, do tempo que passavam juntos. amor. O casamento consumou-se com carinho e o salvara da obesidade. Artur caminhava para Cada um chegara a São Paulo por seus próprios acasos. Artur, depois de uma continuou com carinho ao longo dos nove anos o trabalho e nadava todos os dias. Às seis da separação. Triana, depois da morte dos pais. Para ele, um novo emprego. Para ela, em que viveram juntos. Ainda no primeiro ano tarde, saía de sua sala na biblioteca em direção a casa do único tio. Ele abandonara a ilusão do casamento e vivia sozinho. Ela de casados, Triana convenceu o marido a se mu- à piscina do ginásio de esportes. Passava horas deixara um continente para ganhar outro. darem para um apartamento maior. No final desse nadando, surdo, cercado de água morna azul. No seu íntimo, Triana acreditava que o fato de não ter sido amada a tornava mesmo ano, passaram quinze dias na Espanha. Triana Robledo foi a primeira mulher com imortal. “Ninguém pode morrer antes de ter sido amado.” Essas são palavras que Ouvi-a mais de uma vez dizer que Artur lhe ha- quem saiu a sós depois da separação. Não que eu ouvi de sua boca. Nessa mesma época, disse-me que começara a ter pensamentos via proporcionado os melhores anos de sua vida. esse fato pudesse ter qualquer conotação român- de morte quando completou 70 anos. O fatalismo espanhol, que a forçara a econo- tica. Triana Robledo era aquela senhora que, Passara a vida sem acreditar no prazer, sem saber que o prazer habitava nela. Na mizar a vida inteira para uma eventualidade que todos os dias, antes das aulas, cedinho, passa- idade mais improvável, Triana descobria uma tensão no diafragma que precisava ela nunca entendeu, finalmente se explicava. Seu va pela biblioteca para ler os jornais. Uma das estar apaixonada para sentir. Sabia a parte de seu braço em que ele, horas antes, dinheiro, sem que ela se desse conta, lhe com- poucas pessoas além dos de seus funcionários tocara para ajudá-la na saída do auditório ou na descida de uma escada. prara amor sincero. Agradecia ao seu anjo da que Artur reconhecia e cumprimentava. Sentia prazer, mas o que sentia era desconhecido, e ela, por falta de experiên- guarda por isso. Todas as noites, antes de dor- Saíram juntos porque, semanas antes, se en- cia nessas matérias, não sabia que o prazer, retribuído, se potencializava. Não mir, beijava a medalha de Santo Antônio, quem contraram casualmente no supermercado. Ar- pensava em ser correspondida, mas sonhou com Artur repetidas vezes. Num dos lhe concedera a graça do matrimônio. tur a ajudou a carregar as compras. Na porta sonhos, ele estava sem camisa. Em outro, sorria. Triana não viu a passagem da vida para a de casa, Triana pensou em oferecer-lhe um café, Aos 58 anos, Artur não contemplava a possibilidade de prazer romântico. Achava morte, mas viu luzes que, de repente, se apa- mas julgou que seria inadequado. que tinha resolvido sua questão sexual masturbando-se uma ou duas vezes por garam. Artur a encontrou de camisola, na Para retribuir a gentileza, duas semanas semana com fotos que baixava da internet. cama, como a deixara de manhã, só que mor- depois, por volta das 7 da manhã, convidou Dos filhos de Artur, sei pouco. Sei que a menina tinha 15 anos e era uma mosca ta. O frio do seu corpo projetou Artur em dois Artur para um concerto de música de câmara. morta, mas talvez fosse só tímida, sei lá. Marcelo, o garoto, é que era o orgulho do segundos de queda livre. Respirou fundo, li- Tinha ganhado os ingressos de um de seus alu- pai. Tinha 25 anos e era formado em economia. Trabalhava em um banco de inves- gou para o filho e depois chorou. Em seguida, nos. Foi essa a primeira vez que saíram juntos. timentos. Não se ocupava diretamente do dinheiro de Artur, mas dava dicas e telefonou para a funerária e para o cemitério Saíram juntos outras vezes e tornaram-se sugestões, que o pai, em benefício próprio, tinha aprendido a seguir fielmente. onde tinham comprado um jazigo. Queria re- amigos, que era o que combinava entre um Onze meses depois do primeiro encontro, num domingo de fevereiro, Artur sugeriu solver os detalhes do sepultamento. homem de 58 e uma mulher de 72. Assistiam que comessem uma pizza depois do cinema. Nessa noite, pediu vinho em lugar de A morte de Triana escurecera a vida de Artur, a filmes, a palestras e, se algum dos dois ga- guaraná e, pela primeira vez, tomou a iniciativa de pagar a conta. Justificou o gesto mas, na saída da missa de trigésimo dia, às 9 da nhasse ingressos, iam a uma peça de teatro ou dizendo que celebrava os rendimentos de umas aplicações que o filho lhe havia sugerido. manhã, disse ao filho que iria viajar. Decidira ir a a um concerto. Muitas vezes, comiam uma pi- Nessa noite, Artur teve vontade de falar sobre quanto dinheiro tinha ganhado e Paris. Talvez também fosse à Grécia. Já tinha com- zza depois do programa. Sempre dividiam as quanto dinheiro poderia ganhar, mas, no final, achou que não seria de bom-tom. prado as passagens e feito as reservas no hotel. despesas sem qualquer prurido. Foi durante Marcelo acabou sendo o tema central da conversa. Na semana seguinte, dava a entra- Disse-me que, em Paris, chorava por Triana ca- uma dessas pizzas que Artur mencionou o fi- da em seu apartamento de 71 metros quadrados no Village Arpoador, em Perdizes. minhando pelas ruas, na chuva, e que foi só com o lho pela primeira vez. Àquela altura, Triana já se tinha dado conta de que se apaixonara. Em sua casa, sol da Grécia que começou a se sentir melhor. Triana Robledo não tinha filhos nem qual- nas aulas, na biblioteca, pensava em Artur constantemente. No começo de março, De volta a São Paulo, achou o apartamento quer outro parente. Ainda jovem, no espaço de admitiu para si mesma que o que sentia por ele tinha saído de controle. Mas, se muito escuro e decidiu mudar-se para uma casa três anos, perdera a mãe e o pai. Em 1950, aos tinha perdido o controle, era só por dentro, porque, por fora, em aparência, pala- na praia. Tinha saúde, disposição e trazia um catorze anos, chegara a São Paulo para viver com vras e gestos, nada traía seus sentimentos de mulher. Santo Antônio no pescoço. Perdera o medo da o tio, um padre dominicano que trabalhava na Na sala de periódicos, dias mais tarde, perguntou a Artur se Marcelo poderia morte e queria dar seqüência à sua vida. administração da Universidade. A vinculação de instruí-la sobre opções de investimento. Para Artur, a pergunta de Triana parecia Aos 68 anos de idade, era o que Artur queria Triana com o mundo fazia-se por essa institui- despropositada, quase abusiva. Ela sabia que Marcelo só trabalhava com grandes fazer. Quem, podendo, não faria o mesmo? O que ção. Ali, completara sua formação acadêmica. investidores e que lhe prestava consultoria de pai para filho, literalmente. de condenável poderia haver nessa intenção? r Ainda como mestranda, começara a ensinar li- Artur não queria onerar Marcelo, mas tampouco queria ser indelicado com Tri- • teratura espanhola. Vivera sempre à sombra da ana. Entre os dois, privilegiou a mais idosa e lhe passou os números do filho. Ima- Universidade, repetindo Cervantes e Lope de Vega ALEXANDRE VIDAL PORTO é autor do romance ginava que ela tivesse algumas economias na poupança, mas nada de substancial. Matias na cidade. É diplomata e atualmente para gerações de alunos iguais. Foi o que disse a Marcelo quando lhe pediu que fizesse uma caridade pelo pai. vive na Cidade do México. 100 • AGOSTO de 2008 rascunho 23 Teresa em êxtase A condição e Aymmar Rodriguéz Esta divina prisión o exercício que del amor con que yo vivo ha hecho a Dios mi cautivo y libre mi corazón Teresa Sanches de Cepeda y Ahumada transtornaram a I O meu Cristo grita palavrões e quando me fode vida do Sr. Quijada eclodem aleluias. Lambo como hiena seu corpo de chagas. Mostro a língua Ronaldo Monte como naja. Ardo.

II En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no qui- Miguel Quijada quis uma mulher e a teve. Cha- Já não penso em São Miguel ero acordarme, no ha mucho tiempo vivía un hidalgo mou para morar com ele uma vizinha solteirona, e sua espada de ouro. de los de lanza en astilero, adarga antigua, rocín fla- de nome Dulcinéia, que um dia ficou impressio- Adoro, quero co e galgo corredor. (....) En resolución, él se enfrascó nada com sua biblioteca. Se gosta de livros, há de espadas púrpuras latejantes. Beijo seus caminhos de veias. tanto en su lectura, que se pasaban las noches leyendo gostar de mim. Espadas atravessando-me. de claro en claro, y los días de turbio en turbio, y así, Dizem que algumas pessoas têm os olhos mai- Espadas. del poco dormir e del mucho leer, se le secó el cerebro, de ores que a boca. Não era o caso de Dulcinéia. Atravessando-me por cima manera que vino a perder el juicio. Por mais que gostasse de livros, por mais que os e por baixo. devorasse com os olhos, seu estômago roncava, Façam-me bainha e cloaca. Herdara o sobrenome do pai espanhol que can- atrapalhando a concentração na leitura. Não teve Retalhem-me sou de viver na pobreza fora das muralhas da ci- dúvida. Pegou o exemplar d’ como rês no abate. O crime do Padre dade de Toledo e veio morrer de pobreza numa Amaro que acabara de ler e trocou por uns paco- III casa de vila no bairro de Jaguaribe. Foi a única tes de bolacha de água e sal e um pouco de man- A boca abro também herança que seu pai lhe deixou: o sobrenome de teiga. Num domingo de manhã, em que foi pro- em súplicas: Quijada. Odiava que o chamassem pelo nome de curar o exemplar das Edições de Ouro d’Os Lu- faça entrar em mim Miguel, pois ninguém o pronunciava como gos- síadas, Miguel Quijada notou a banguela na pra- tudo o que desejo. tava, com o “ele” final acentuado, como seu pai o teleira do lado da porta. Faltavam bem uns vin- Marque a pele. As pernas chamava. Também não gostava quando abrasi- te livros. Interrogada, Dulcinéia fuzilou: livro abro para qualquer motivo: leiravam seu sobrenome, esquecendo de pronun- não enche barriga de ninguém. suspendo-as no ar ciar o “rê” no lugar do “jota”. Antigamente re- Miguel Quijada amava os livros. Mas não po- seguro pelos joelhos clamava, mas ninguém ligava. Afinal, quem iria dia viver sem Duilcinéia. Muito menos impedir apóio nas paredes. saber como se pronunciava o nome de um contí- que ela vendesse os livros nas horas em que tinha É meu sagrado templo nuo de repartição pública estadual, de paletó pu- de ir para o trabalho. Instalou-se então uma ba- que desvendo para meu ído e a barba sempre por fazer? talha cruenta. Miguel Quijada decidiu-se a reler Amado Esposo. Pelo menos aqui, nestas páginas, vamos cha- todos os livros que ainda lhe restavam, antes que IV má-lo do jeito que gosta: Miguéll Quirrada. Mas Dulcinéia os trocasse por bolachas. Varava as noi- É a arena e seus covis? vamos também respeitar a grafia original do seu tes de olhos pregados naquelas páginas preciosas, São mulheres que cantam nome, pois ele a preza muito: Miguel Quijada. É se despedindo de uma em uma. A cada manhã, carregando seus potes a única coisa na vida que o torna diferente da Dulcinéia entrava no quarto e levava para trocar de barro? massa de contínuos que vagam invisíveis pelas por comida o livro que a mão do homem ador- Ou minha loucura aplaudindo o deus vivo? repartições públicas municipais, estaduais e fe- mecido tentava proteger. Quebrei unhas em seu dorso derais de qualquer lugar do mundo. Um dia, ela entrou no quarto e encontrou Mi- bebi suor. Miguel Quijada tinha um sonho. Possuir guel Quijada sentado, de olhos abertos, apertan- Seu cheiro é igual uma grande biblioteca, daquelas que as pes- do contra o peito um grosso volume de capa de ao dos mercadores soas vêm de longe visitar, que os professores couro verde, com o título impresso a ouro. Ela e dos jardineiros do pátio. do bairro vêm pedir livros emprestados, que estendeu a mão, imperativa. Ele fez um não com Levito, caem os panos. os vizinhos desdenham de pura inveja ou ig- a cabeça. Ou ele, ou eu. Você escolhe. Ele olhou Na cruz, Ele se ergue nu: circuncidado de promessas. norância. Vivia à míngua, guardando cada cen- para o livro e deu as costas para ela. Ela saiu por- Como é longa a fé tavo para gastar nos sebos ou nas prateleiras ta afora para nunca mais. que me consome agora! modestas reservadas nas livrarias às edições Sozinhos, enfim, o homem e o livro. Miguel de bolso. Mas não se pense que comprava li- Quijada olhou para as estantes vazias, pronto V vros por vaidade. Lia cada um antes de aco- para recomeçar. Não perdera tudo. Restava Que natureza é essa? modá-los na estante. aquele ali, que colocou com cuidado sobre a É de carne e de vontade. Vou jejuar do sonho Quando a mãe morreu, ocupou o quarto dela mesa, abriu numa página qualquer, com os olhos e arrotar a polidez. com seus livros. Sem ninguém mais com quem anuviados pelo sono. O vento que folheou as Mãos procuram se preocupar, passou a torrar com livros o que páginas em sua frente movia agora as pás de o úmido entre as pernas. antes gastava com remédios. Sua biblioteca cres- um velho moinho lá para as bandas da linha do Estou de quatro, quero ganir: cia a olhos vistos, agora acrescida de livros de horizonte. Miguel Quijada montou em seu Ro- en la celda sofocada edições recentes das grandes editoras, alguns até cinante e avançou de lança em riste contra o ofereço cu e alma de encadernação em couro. Miguel Quijada ama- gigante que roubara sua amada. r para santos castos. • Salvarei a todos va sua biblioteca. com sincero clamor. Acontece que livros não fazem café, não var- RONALDO MONTE mora em João Pessoa (PB). Foda foda foda rem a casa, não forram cama nem se deitam nela. É autor do romance Memória do fogo (Objetiva). estremecem os cilícios quando oro em êxtase.

VI Ganimedes não teve melhor sorte: em minha ceia a força do tigre apalpo colhões de arcanjos a astúcia do coiote e apóstolos. Poesia a agilidade do Brindo vinagre ao mundo. e o mistério do morcego. Santa!, gemem os homens famintos. Mostro os seios com orgulho delirando em fezes e pêssegos. a minha poesia é lírica Prometeu Está liberta!, grita enfim o Redentor. tem a beleza bucólica o sapo de macumba encravado em mim Façam fila!, ordeno. do vôo de uma andorinha não impede o vôo da águia Grande banquete de picas todos os dias devorando o fígado para a matrona de Ávila. tem o latido melancólico de um cachorro campestre desse ateu de muitos deuses Machado meu cáucaso tem saci e buda JOVINO Oremos. tem a solidão jururu meu hércules anda a cavalo MACHADO é de uma galinha ciscando matou o centauro no mar negro autor de Fratura exposta, entre AYMMAR RODRIGUÉZ é um dos heterônimos do jornalista e publicitário Raimundo onde desfila o orixá de bailarina outros. Mora em de Moraes. Mora em Recife (PE). Teresa em êxtase foi o poema vencedor da Off Flip nos cacos-de-vidro de uma noite escura mas o que ela queria mesmo Belo Horizonte 2008, categoria Nacional-Exterior, e está incluído no livro (inédito) Tríade, composto onde a lua me olha bêbada e perdida. Jovino era ter... (MG). por Atirem a pedra, Ciclo e Delivrário de amor e morte — opus nefandus (Semíramis).

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Elas sempre me vêem passar, eu nunca me minha fantasia e pendurara suas peças de detive em nenhuma. Trago-as nos olhos sem baixo na intimidade do meu banheiro. O que contudo vê-las, espelhadas nas minhas retinas me seduzira nela eu continuava sem saber, qual letreiros luminosos que ali dentro não têm Um dia depois vendo agora aquele corpo tão pobre de carne outro sentido além de ser pontos de luz e cores e substância que pouco a pouco ia perdendo imprecisas. Difícil dizer o que me chamou a sua recém-nascida sensualidade. Tivesse aca- atenção para aquela vitrine em especial. Tal- bado na primeira noite, talvez não teria pas- vez — existem coisas que um homem não gosta Luiz Paulo Faccioli sado de uma fraqueza que me faria baixar a de confessar —, talvez, ao pôr sem querer os cabeça por uns dias e desviar para sempre da olhos na solitária figura, eu tenha adivinhado maldita calçada. Mas eu quis que ela ficasse. nela uma certa languidez. A solidão pode fa- Tratei em seguida de corrigir o que nela me zer um par de coxas de plástico parecer algo agredia e agora tinha de conviver com sua dolorosamente sensual. Talvez fosse o caso. Ava- insolente meninice, pois quanto mais limpo liava as formas postiças, resplandecentes à luz de outro dia ia ficando seu corpo e seu jeito, tanto mais do refletor, quando percebi uma outra ima- criança ela se revelava. gem sobrepondo-se a elas. Por um segundo pen- Aconchegada em meu peito, tinha vol- sei que se tratava de algum efeito decorativo, tado a cabeça à procura de meus olhos. E falso como a sensualidade da manequim, mas me fazia a pergunta com a ingenuidade que logo descobri que ela não passava do reflexo de Não sei qual dos dois ficou mais surpreso com minha iniciativa: um adulto, por bobo e apaixonado que es- alguém postado em carne e osso na calçada, às O que você tem?, perguntei, e a voz saiu numa inflexão íntima o bastante tivesse, jamais conseguiria imitar. minhas costas. Resisti à tentação de me virar e para me trair. E me espreitava com olhinhos a princí- fingi interesse pelas duas ou três peças de rou- Me viro, retrucou, olhando-me de um jeito enviesado que ainda preten- pio divertidos, depois curiosos, por fim con- pa expostas no luxuoso cenário, enquanto ia dia ser sedutor mas redundava patético. fusos com minha demora em responder. estudando no vidro os traços da aparição. As Você está doente? Lentamente se desvencilhou do meu abra- pernas eram altas, mal protegidas pelo exíguo Me viro, repetiu, e percebi nela uma ponta de irritação, talvez por eu não ço. A aflição dessa espera parecia ser o primei- pedaço de pano que arremedava uma saia. A ter correspondido logo a seus artifícios ordinários. ro grande problema que ela enfrentava na vida, blusa deixava todo o ventre à mostra e a ja- Apesar de inédita, minha decisão foi rápida: o que por certo não seria verdade. Em mim queta, quase no mesmo comprimento, não era Vou levar você. também já começava a pesar aquele silêncio, agasalho para o frio que já começava a apertar Não quero, ela disse, mas esse foi seu único protesto. Jogou fora o toco de mas não havia como resolvê-lo. Pelo menos, àquela hora. Na precariedade do reflexo, as cigarro e se deixou guiar sem qualquer outra reação. não naquela hora em que tudo estava prestes a feições se diluíam a ponto de eu não distin- Seguimos em silêncio por algum tempo, ela agarrada em meu braço, eu se acomodar de volta na minha cabeça. guir nelas qualquer idade. muito pouco à vontade naquele novo e inusitado papel, e só então me dei Ela repetiu a pergunta, e cheguei a per- Quando enfim decidi voltar à caminha- conta de que não havia pensado ainda no que fazer. Ela se adiantou, como se ceber na voz um fiapo de esperança de que da, quis olhá-la de frente. Ela era tudo e tam- adivinhasse o que me passava pela cabeça: eu não a tivesse ouvido na primeira vez: bém nada do que eu havia imaginado. Num Me leve pra casa. Você gosta de mim? óbvio contraste com a nobreza da vizinhan- Onde você mora? Minha mudez já tinha durado demais ça, parecia muito à vontade naquela calçada. Pra sua casa. para que eu tentasse ainda uma mentira. Outra igual a tantas. Era também miúda, Nunca jamais tinha levado esse tipo de gente ao meu apartamento, e a De certa forma ela compreendeu o que muito jovem, pernas descarnadas que pouco idéia de pronto me perturbou. Mas logo concluí que não havia mesmo outra acontecia, e muito mais rápido do que eu ou nada contribuíam a qualquer fantasia mais coisa a fazer e minha estranha preocupação talvez fosse apenas um laivo poderia ter previsto. polpuda. Fumava e me observava com uma humanitário. Afinal, nunca fui um desapiedado. Chamaria um médico, pro- Você não me quer mais? expressão mista de curiosidade e cansaço. videnciaria o que fosse preciso e depois a devolveria à rua e ao esquecimento. Não é assim. Tratei de disfarçar e segui adiante. Talvez em outra noite, se a encontrasse de novo, tudo poderia ser diferente. E é como, então? Nada restava de um encontro tão rápido Não foi difícil alcançar o prédio. O porteiro disfarçou o espanto sem dispen- Eu não sabia o que responder mas não e fortuito. Rigorosamente nada. Como um sar o boa-noite, abrindo impassível a porta do elevador. Respondi com altivez: precisei dizer nada. A vadia ressurgiu como velho pesadelo, porém, a imagem se insta- Quando o médico chegar, faça-o subir. por encanto e agora tomava as rédeas, com a lou na minha cabeça e não consegui mais Ele acedeu com a cabeça. mesma e odiosa desenvoltura de três dias me livrar dela. A novidade agora eram as Não quero médico, disse ela baixinho, soprando no meu rosto um hálito atrás. Pulou da cama, abriu o guarda-rou- vitrines. A todo o momento passei a ter a ruim de bebida e cigarro. Só então descobri que era ainda mais jovem do que pas, não demorou nada e já punha a saia, a sensação de que o reflexo me espreitava de eu julgara e que a doença talvez não passasse de um mero pileque. Elas blusa, a jaqueta, a mesma vulgaridade que uma delas e desaparecia sempre quando eu vivem todas se embriagando. Já estava arrependido mas não quis discutir na ela vestia quando a vi pela primeira vez e da tentava surpreendê-lo, uma brincadeira de frente do porteiro nem dar logo o braço a torcer. Esperei entrar em casa e abri qual eu imaginava que tivesse já se livrado. esconde-esconde sem a menor graça. em silêncio a agenda de telefones. Quando ela percebeu o que eu fazia, desa- Não havia jeito, ela continuava igual Na noite seguinte e por várias outras, tou num choro ruidoso. Espremida no canto do sofá, entre um soluço e ou- a todas. mudei o trajeto. Aquele pedaço de rua sem- tro, gaguejou que precisava apenas dormir um pouco. Aonde você pensa que vai?, perguntei, pre fizera parte do meu passeio noturno diá- E voltar para a rua, emendei. sem conseguir controlar o volume da voz rio, sem que eu tivesse alguma vez percebido É meu trabalho. que o ódio fazia crescer. a vitrine ou ela. Agora não era mais possível Você é tão jovem..., e eu me estranhava dizendo aquilo. Era a vez dela silenciar. ignorá-las. Só havia uma solução — isso eu Se fosse velha, aí é que não dava. Para a rua você não volta!, gritei. já sabia, embora com um certo fastio —, e Detesto choro de vagabunda. O dela, exagerado, fingido, já começava a E a frase, embora reduzisse a pó os últimos desviar apenas me deu por um tempo a falsa me exasperar. Se fosse na rua, eu não teria resistido. dias, era apenas uma frase, inútil, sem nenhum impressão de que a mente em algum momen- Vou fazer um café, eu disse, tentando de outro jeito pôr fim àquele teatro. outro efeito além de carregar minha ira. to também se encarregaria de fazer o mesmo. Quero um uísque..., ela cortou, ainda fungando mas com o olhar subita- Antes de bater a porta, ela me olhou Fracassada a tentativa, resolvi enfrentá- mente atento às garrafas do bar improvisado na cristaleira. uma vez mais e disparou, com toda a astú- las e refiz numa noite o antigo itinerário. Ao Você enlouqueceu! cia, me pondo louco: encontrar novamente a rua, procurei-a em Vem cá. Quando quiser de novo um programa, vão. A ausência poderia muito bem signifi- O que é isso? sabe onde me encontrar. car um alívio, mas — eu não entendia por Vem..., gemeu, e de repente ela ocupava todo o sofá, as pernas meio afas- quê — ela agora me frustrava. Procurei a tadas, o olhar atrevido, de volta a figura maiúscula que eu adivinhara na Elas sempre me vêem passar, inúteis, con- vitrine: já haviam mudado a decoração e vitrine. De repente me senti bêbado, a cabeça rodava, o estômago agitava-se fusas, refletindo o avesso dos letreiros ou as também a manequim. Dei de ombros. em engulhos. Tremia ao abrir a garrafa, a lucidez já perdida quando servi sombras da rua que os faróis brincam de Assim como ela, muitas estão nas ruas. duas generosas doses, estendendo a ela um dos copos. multiplicar. Talvez ela tenha hoje quinze ou Algumas vão se tornando mais afoitas à Era eu quem de fato precisava de um gole. dezessete, o que isso importa? Segue exposta medida que a noite avança, atacando sem Faz muito tempo?, perguntou. e não me vê. Ou finge que não me vê. Às cerimônia quem lhes cruza a frente. São Faz muito tempo o quê?, ouvia minha própria voz tremer. vezes ri alto, frouxa, eu então me encolho na como praga. Quanto maior a insistência, Que você... direção do mais escuro. Sai de braço com o tanto maior meu desprezo. Mas ela sequer Não quero um programa. primeiro que pára. Sempre. Some por aí, havia tentado. E, se houvesse, receberia em Faz o preço. desaparece por um tempo no enorme vão que troca minha repulsa. Depois, tivesse ela Não quero. é a cidade, volta bêbada, solta, imunda. Joga insistido, mereceria um castigo. Depois... Quer sim. fora o cigarro, suspira fundo, se ajeita. O talvez eu até já tivesse me esquecido dela, Olhei para a garota. Quantos anos teria? Quinze, dezesseis? Ela me es- próximo talvez não demore, talvez nem ve- ou ela nem chegasse a se tornar uma lem- preitava numa lascívia bem crescida, enquanto as feições seguiam descara- nha. Eu espero. Tem sido assim nos últimos brança a ser perdida um dia. damente denunciando sua verdadeira idade. dois anos. Tantas vezes tenho ensaiado, para Retomei assim o trajeto habitual. Após al- Vem cá, pediu mais uma vez, e eu então me aproximei um pouco, um quase acabar sempre desistindo. Noutras, esqueço gumas noites, dei de novo com ela no mesmo nada, mas ainda o suficiente para que ela conseguisse me tocar onde queria. o que é preciso fazer e até mesmo o revólver endereço em que a vira da última vez. Dimi- Quantos anos você tem?, perguntei, quase ofegante. que passou a andar comigo. nuí instintivamente o passo ao me aproximar. Dezoito. Não hoje, não mais. Era ainda mais miudinha do que eu julgara, Não acredito. Há coisas que um homem não pode tolerar. mais frágil, o cigarro sempre aceso, o olhar Treze. Os clarões espocam na galeria, tão rápido parado já sem o brilho da curiosidade e exibin- Suspirei fundo. que eu mal consigo acostumar os olhos para do agora apenas cansaço. A galeria fechada, A idade que você quiser... enxergar o que não quero. É difícil mirar. A em cuja grade ela se apoiava, fazia aumentar a Não quero! vitrine me ajuda ou atrapalha, depende de impressão de abandono. Seria tão fácil, tão lim- Quer sim, repetiu baixinho, e foi arregalando os olhos num fingimento como se vê. Nada escuto, é quase automático, po, quem sabe um pouco menos rápido dessa de surpresa. o vidro se estilhaça, os pedacinhos caem per- vez, vingança pelo tempo todo que ela me to- plexos à minha frente, crepitantes, um silêncio mara sem eu querer. Não, decididamente eu Você gosta de mim? de morte vai cobrindo a noite e até o silvo do não queria ter pensado nela como pensei. E, Três dias e já não havia mais cigarro, bebida, pintura barata. Também já se alarme custa um pouco a soar. Suspensa a vida no entanto, agora que a oportunidade surgia, acalmara minha gula. Não tínhamos saído uma única vez: fora suficiente o nesse pequeno instante, vejo-a agora refletida algo inteiramente novo me intimidava. que havia na despensa. Chegou a ser divertido improvisar uns pratos extrava- na multidão de cacos entornados no chão, Com olhos que pareciam não ver, ela gantes e levá-los para comer na cama. O mimo de roupas novas e de um multiplicada infinitas vezes, menores e mais me reconheceu. perfume decente viera por encomenda de uma loja da redondeza. E era mais agudas, como se estivesse em meus olhos, fe- Até aquele momento, tudo acontecera do que um simples agrado de marido novo. Minha ausência no escritório fora rindo minhas retinas, e um desespero súbito no silêncio. É óbvio que não havia ninguém avisada num telefonema rápido que nada explicava. Ela não precisara avisar me dá ganas de sair catando os cacos um a a quem eu pudesse confidenciar minha ninguém. Três dias de banhos demorados, louça suja se acumulando na pia, um, ainda sem compreender que nunca mais aventura, e, mesmo que houvesse, não iria faxineira dispensada à porta, com a diária paga em dobro para que tampouco será possível arrumá-los de volta outra vez. r comentá-la. Há sempre coisas que um ho- a ela fosse necessária qualquer explicação — e eu não seria capaz de encontrar • mem evita contar. Tampouco ela teria como alguma. Quanto mais eu pensava, menos acreditava no que acontecia. LUIZ PAULO FACCIOLI é escritor e colaborador imaginar a assiduidade com que visitara Se antes era preciso a todo custo apagar a imagem da vitrine, agora uma do Rascunho. Autor de Estudo das teclas pretas, meus pensamentos desde quando nos cru- outra vinha me atormentar. Treze, quinze, dezesseis, o que importava? Não sou Cida: a gata maravilha, entre outros. zamos pela primeira vez. um pervertido, mas era uma criança quem se deixara conduzir docilmente pela Mora em Porto Alegre (RS). 26 rascunho 100 • AGOSTO de 2008 27 Mulher entre A pianista os (fragmento provisório de romance em processo de escrita) peixes

Bettencourt os peixes e sonhava palavras. Nadava, in- Lúcia trépida, num mundo que não era o seu, mas Sérgio Sant’Anna que a aceitava, magnânimo, enquanto o ar Alguém lhe dissera que, para escrever, que ela trazia consigo não lhe falhasse. Os era preciso sonhar peixes. Começava-se so- sons, compassados, eram os sons de sua pró- ...e vi que ela fixava seus olhos em mim, por um espe- nhando peixes discretos, que mal-e-mal con- pria vida, e eram os únicos que escutava. lho em cima do piano. Agora mal tocava as teclas, para substanciavam sua existência entre a líqui- Em casa, mais tarde, tentava sonhar os que eu pudesse ouvi-la: da maciez do sono. Depois de treinada, peixes, enquanto lia as palavras. Os seus — Vejo que você repara nos meus dedos. E, de fato, é podiam-se sonhar peixes maiores, lentos e ouvidos estavam cheios de ruídos estra- preciso aleijar, além de alongar até o absurdo os vinte confiantes como meros, ou violentamente nhos, campainhas de telefone, marteladas dedos, para interpretar Voradeck. Ele mesmo, você deve rápidos como marlins-azuis. Ela, agora, nas paredes, vozes, nada que lhe dissesse saber, obrigou-se aos sacrifícios mais extremos e acon- quando apanhava a máscara e o respiradou- respeito. Tentava nadar entre as palavras, teceu de ter todos os seus dedos paralisados. Já na Clíni- ro para ajustá-lo sobre a face, sonhava-se mas sentia-se submergir. E as palavras fu- ca, começou a tocar com os punhos, os cotovelos e até a escrevendo. E, submergindo nas águas giam-lhe: como peixes assustadiços, nada- cabeça, e a acompanhar a si próprio com sons guturais, transparentes, ia observando a substância vam para outras paragens. primitivos, e percutia com socos no rosto, no estômago, mesma dos sonhos. Nas páginas líquidas Definitivamente, para escrever, era pre- nos dois ouvidos e na genitália, e uivava de dor — en- uma ou outra palavra sobressaía como o ciso sonhar peixes. Mas talvez fosse neces- fim, flagelava-se no desespero da loucura e houve até rápido clarão de um peixe. Fulgurava e, sário sonhar também redes e anzóis, e ela um ou outro músico que se disfarçou de enfermeiro, ten- antes mesmo que seu cérebro pudesse re- não desejava esse sonho. Queria suas pala- tando criar uma notação para aquilo, mas aí sua irmã, gistrar sua beleza, já havia mergulhado, vras-peixe nadando soltas pelas suas pági- apenas um ano mais velha do que ele e dizem que o úni- discreta, entre as outras, deixando apenas nas, criando seus próprios percursos. Que- co verdadeiro amor em sua vida, não se sabe em que uma possível incerteza de sua presença. ria que sua página fosse pouco a pouco dei- nível (eram órfãos e criaram um ao outro), resolveu ex- Seus olhos enxergavam os peixes. Sua xando de ser praia, e se transformando em pulsar os vendilhões do templo, talvez até plagiários. mente, palavras. Nada que se comparasse mar, e depois oceano, cuja profundidade E foi só ela afastar-se, para ir em casa, que ele agitou- com o dia, já remoto, quando, ancorada abrigasse todo tipo de peixe, até aqueles se ainda mais e começou a agredir-se tanto, embora sem- numa pacata praia, avistara uma baleia. Um apenas suspeitados, que só sobrevivem na pre com ritmo, e a quebrar tudo ao seu redor, inclusive o mamífero deslocado entre peixes fugazes. densa escuridão do abismo. Era com essa piano que Sophia, a irmã, lhe trouxera, que tiveram de Ela gostaria que sua escrita se destacasse ilusão que mergulhava no aquário, desajei- colocá-lo numa camisa-de-força, enquanto discutiam que assim, de repente, bela e solene, diferente, tada, e se iludia entre sonhos. Nas águas injeção de barbitúrico deviam aplicar-lhe. Mas, como o mas, ao mesmo tempo tão pertinente, transparentes se via sendo examinada pe- senhor deve saber, logo sobreveio a sua morte, uma das Marco Jacobsen como a baleia confusa que viera visitá-los los peixes, e se aquietava, não fossem seus mais impressionantes das literaturas médica e musical, naquela praia longínqua. movimentos descompassados afastá-los de pois se pode dizer que ele explodiu por dentro, com uma As cores fugazes só apareciam quando perto de si. Em instantes de muito sosse- sonoridade inimaginável, quando suas artérias se rom- ela submergia. Por cima da água só conse- go, sem vento nem danças de sombras ale- peram e seu sangue jorrou pela boca, nariz, orelhas, ânus, guia ver a opacidade acinzentada que os gradas pelo sol, uma ou outra lagosta che- tudo, e, já na rigidez cadavérica, lágrimas rolaram de Nas pautas que Béatrice ia virando, verifiquei que es- possível orgasmo, pois se eu desejava, sim, esporrar na por todo o teclado, prosseguiu com as mutáveis Flores vene- peixes ofereciam, destacando-se no líqui- gava até perto e editava seus peixes, com seus olhos, lágrimas da cor do rio Vlatava, disseram os sas notações eram hieroglíficas e ideogramáticas, sem dei- boca tão suave e delicada de miss Cromstadt, e suponho nosas que nesse momento atingiam um momento dramáti- do apenas pela sua concretude. Quando pompa acadêmica. Ela saía da água, o rosto mais mitômanos, incluindo Svoboda, o meu diretor de xar de ser ocidentais, empedernidamente ocidentais, como que ela também — queria retardar isso. co e apoteótico. Mais impressionante ainda era que isso vi- mergulhava, porém, as cores explodiam e marcado pela máscara, e se deixava ficar cena. “Um santo, um mártir da música”, Svoboda sem- as da Física. A mim era permitida minha composição, e Pensei que fizera uma besteira, pois ela afastou seu nha de mim, apesar de a mão esquerda de Béatrice, cruzan- era um festival de amarelos e azuis, negros olhando as ondas, esperando o momento. pre repete, visando manter-me na atitude correta. voltei às cantigas das ruas de Botafogo, às calcinhas das rosto e disse, presumivelmente o que estivera dizendo do com a outra que tocava energicamente com o pau, tirar e vermelhos, verdes e prata. Suas tentativas eram tímidas. O corpo Talvez se lembrando disso, Béatrice voltou a tocar ener- meninas pulando corda, peitinhos em botão, os desejos de com o cacete na boca: do piano uma melodia suave, lírica, sutil em sua beleza ex- Submergiu lentamente e só o que escu- boiava, somente o rosto enfiado na água, gicamente As flores venenosas, de Voradeck, e quando ouvi o minhas mãos só agora liberados tanto tempo depois e tão — Ó senhores das luzes e das trevas, ó glória fugaz! cêntrica. E percebi como era necessário esse dueto para tava era o som compassado de sua respira- os olhos mergulhados no líquido. Um dia som de violinos e de contrabaixo, percebi que seus dedos longe, livrando-me de minhas insatisfações e angústias, — Era isso que você dizia? — e tentei meter o pau de aquela composição que refletia, concretamente, o sexo como ção, o ar correndo pelo tubo, sendo sugado decidiu-se. Era preciso mergulhar, submer- dos pés, longuíssimos e com unhas enormes, esmaltadas, que sempre procurei descrever em crepúsculos róseos e novo em sua boca, mas ela apenas roçava seus lábios amor e brutalidade, como o é na natureza. E, oh, que orgu- por sua boca e expandindo seus pulmões, gir completamente, ir até onde os peixes usavam os pedais também como verdadeiros instrumen- cafonas, ainda mais que Béatrice me correspondia, agora perfeitos nele, como se fosse um bastãozinho de batom. lho, senti que apesar de ser ela, naturalmente, pois era do enchendo-a de vida e capacitando-a a na- habitavam, conviver com eles. Vestida com tos, agora de cordas. Meu Deus, que piano era aquele? se acompanhando com uma voz maviosa de soprano, com — São palavras de Voradeck em pessoa — para acom- metier, quem conduzia meu instrumento, este era também dar, serena, entre algas escuras e peixes in- um traje escuro, equipada com instrumen- — Aproxime-se mais, chéri — ela disse, agora com uma sensualidade lírica e arfante, de modo que cravei mi- panhar a composição, ela finalmente disse. Frases de um intérprete e talvez até co-compositor, e só mesmo um gê- diferentes. Eles passavam por ela, nadavam tos que lhe conservariam a vida, ela ousou. uma voz lânguida, meio rouca, correspondendo também nhas unhas em seus seios, e ainda bem — para Béatrice, libreto fragmentado. Não desconfiou que foi por isso que nio como o de Voradeck — ainda que possivelmente traído na direção dela, destemidos, curiosos. Al- No meio do oceano, distante de seus abri- a um trecho desfalecente, amoroso, da composição, e suponho — que minhas unhas eram aparadas. Ela tirou você foi aceito para a audição privada, por que é um autor por Svoboda — seria capaz de unir tão radicalmente carne guns saíam de suas tocas para observá-la gos habituais, ela se jogou na água misteri- ela curvara-se sobre o piano, parecendo acariciar as te- notas mais graves e violentas no piano e gritou: incapaz de terminar ordenadamente o que quer que seja? e espírito, sexualidade e arte, sofrimento e prazer. E, por na sua desajeitada humanidade. E ela se- osa. Seu corpo submergiu e ela, apavora- clas de modo um tanto suspeito. E foi sua posição que — Ai, você me machuca, seu bruto! — e sua voz me Ah, então era isso, por meus defeitos que acabaram um momento de delírio, senti-me como uma das estátuas guia, mascarada, vestida com nadadeiras da, sentiu o ar faltar. O coração disparou, me permitiu ver, com o coração disparado, os seus seios pareceu um tanto dramática. por se tornar inovações literárias? Mas o que me inte- de mártires sobre a amurada da Pont Charles. falsas, consciente daqueles olhares leve- assustado, os pulmões perderam o ritmo e inadjetiváveis. Objetivamente eram perfeitamente pon- — Oh, desculpe-me, miss Cromstadt — e tirei mi- ressava agora era o meu pau nos lábios finíssimos, em Fui acometido então de ciúme, pensando que Béatrice, a mente zombeteiros, que a observavam. ela desistiu, voltou à tona, entristecida. tudos, como pêras, com os biquinhos ainda encolhidos. nhas mãos de dentro do seu vestido. todos os sentidos, de Béatrice. E forcei meu pau nova- minha adorada Béatrice, poderia ter conspurcado as suas No fundo de areia, muito claro, desta- Naquele mundo de silêncios, julgou ouvir Os seios de uma mulher de vinte e poucos anos, que com — Desculpar o quê, seu tolo? Está pensando que sou mente em sua boca. Queria mesmo gozar lá dentro jus- mãos e boca com outros paus, mas ao mesmo tempo tive cavam-se estrelas de todos os tamanhos. uma voz que a tranqüilizava, repetindo que, certeza não tivera filhos, esses seres predadores. Livres a Branca de Neve? Pois você se comporta como um anão tamente pela brancura e magreza etéreas da pianista, certeza de que cada audição era única, exclusiva e irrepetí- Brancas e vermelhas, elas se mantinham para escrever, era preciso sonhar peixes. En- das amarras de um sutiã, eles se movimentavam de um — e ela deu uma risada, sem dúvida operística, com todo seu vestido de uma elegância e sensualidade sóbrias, pró- vel, improvisada sobre o núcleo de Voradeck, improvisada plácidas e distantes como suas irmãs ce- tão fechou os olhos, esperou que o som de lado para outro, de acordo com as necessidades inter- o grotesco do gênero. prio de uma concertista de alto nível. não só por Béatrice, mas também por mim, e sob a influên- lestes. Os ouriços, tão comuns, ameaçavam sua respiração se regularizasse e, quando os pretativas de Miss Béatrice Cromstadt, e sempre ele- — Sim, Branca de Neve, com essa pele que parece Me aguardava, porém, a surpresa das surpresas. Ela afas- cia nos bastidores, é claro, daquela bicha-louca, Svoboda. com seus espinhos a quem deles se aproxi- abriu, estava no meio de um cardume. Seu gantemente, sem balançar-se como tetas. nunca ter tomado sol, sua vagabunda, e com a raiva que tou-se no banquinho, encostou-se no piano e, com seus pés Faltava-me apenas, para deixar minha marca indelével, masse. Peixes pequenos se azafamavam olhar não se cansava de acompanhar os mo- — Não quer tocar comigo? eu sentia, não tive receio de descer o meu zíper. descalços, agarrou meu pau com dois dedos. Jamais experi- gozar sobre as teclas, melar aquele piano, fertilizá-lo com entre as folhas ondulantes das algas, incau- vimentos curiosos dos peixes que a escolta- — Tocar? Oh, miss Béatrice, eu não ousaria. O que aconteceu a seguir foi espantoso, não propria- mentei sensação tão emocionante e deliciosa, eu que me meus espermatozóides livres das concepções mesquinhas, tamente se aproximando de caranguejos vam em sua descida, cada vez mais profun- Ela deixou de ser suave: mente pelo comportamento sexual do dueto que formá- julgava um homem experimentado. E, com aqueles dedos, como duendes minúsculos da música do terceiro milênio. que, agressivos, tentavam pinçá-los. Ela da. Um linguado se incomodou com sua pro- — Ora, não seja ingênuo! vamos, mas porque, retirando ela suas duas mãos do pia- garras ainda mais hábeis do que as das mãos, ela não apenas O problema é que agora esse meu instrumento doía passava por aquele mundo, perturbando- ximidade e mudou de lugar, espanando areia Então, apesar de ser um homem tímido, resolvi correr no, para puxar meu pau lá de dentro, com seus dedos lon- me batia a melhor punheta de minha vida, pois não só a muito, começava a negar-se e ameaçava encolher. Por o, mas os peixes, generosos, se acomoda- numa nuvem. As algas dançavam, os corais os riscos, da bofetada ou da expulsão da sala por Jean Louis, gos e habilíssimos, para não dizer suas presas, a música agilidade dos seus dedos era impressionante, no vaivém com isso, com uma voz fragilizada, como a de uma virgem vam a seu corpo mal-desenhado, a seus mo- exibiam suas cores enquanto ela se deslocava o guardião corcunda, e pus minhas mãos em concha, deli- continuou a se fazer ouvir, ainda mais ricamente, agora o meu pau, como ela sustinha, lá na raiz do membro, toda a no momento da defloração, implorei, segurando as lá- vimentos inarmônicos. em movimentos lentos, de braços abertos, cadamente, no interior do vestido de gala da virtuose, e com flautas, saxofones, instrumentos para o quais é ne- possibilidade de um orgasmo prematuro. Mais impressio- grimas, à virtuose que de certo modo me violentava: Foi com surpresa que constatou a pre- as pernas movendo-se compassadas. Numa oh, êxtase, assim que comecei a acariciar os seus seios, cessário, sugestivamente, usar a boca. Era um piano pre- nante ainda era como a manipulação desse pau se refletia na — Por favor, miss Cromstadt, mais devagar. Douce- sença de lulas. Era a primeira vez que as caverna, um peixe de longos dentes abria e senti brotar os seus biquinhos, provocando um profundo parado, então, e talvez toda a musicalidade da grande vir- música, como se ele fosse uma vara de condão. ment, doucement. encontrava por ali. Seus corpos pareciam fechava a boca, como se desejasse lhe dizer suspiro em Béatrice, combinando com uma pequena pau- tuose não passasse de uma farsa encenada por Svoboda, o — Ai, meu amor, eu te adoro Béatrice, faça-me gozar, Seu comportamento, porém, foi cruel e inflexível, translúcidos e ela as tomaria por folhas algo. Ela se concentrava, mas não entendia sa na composição, que ela depois voltou a tocar, em tons e grande diretor, o gênio contemporâneo de Praga, pelo que eu não agüento mais — eu disse isso, enlouquecido, e como o de muitos grandes artistas, antes de largar com descoradas de algas se não fossem por seus seu recado. Não importava. Os peixes passe- ritmos os mais variados, acompanhando-se com meneios menos era o que estava escrito sob sua estatua no Museu percebi que a música também propiciava um clima de or- desprezo o meu pau murcho e machucado: olhos, atentos, vigiando-na. Uma verdadei- avam a seu redor, curiosos. Um deles, azul, de cabeça (pura paródia, intuí). E, à medida que fui per- de Cera, ao lado de Mick Jagger e Ferenc Puskás. gasmo, e a voz suavíssima, feminíssima, de Béatrice, que — Está pensando o quê, meu querido? Que pode exis- ra colônia de lulas fazia dela o centro de com escritos amarelos ininteligíveis, avan- dendo o receio e manipulando mais e mais à vontade aque- Mas se farsa, uma farsa bem real, pois logo miss Béa- também se masturbava com as garras das mãos dentro de tir arte sem dor? r suas atenções, e ela observava e era obser- çou sobre sua boca, apertada no respiradou- las duas formosuras gostosas, ora com mais, ora com trice colocara meu pau em sua boca, e como era uma sua calcinha, ato que eu via em êxtase, imorredouro para • vada com deleite e receio. ro. Ela compreendeu. Não precisava mais menos pressão, fazendo Béatrice gemer também mais, ou virtuose também nisso, pois eu ia às nuvens e achava o meu olhar ávido (ah, a putaria também do olhar): Nota Ali, dentro d’água, tudo tomava uma ou- submergir. As palavras-peixe viriam. Era sua menos, percebi que eu era um dos executores do concer- fantasticamente obsceno que ela falasse com meu pau — Gozemos muito como amantes loucos! — implorei. Estes são fragmentos provisórios de um romance, ainda sem título, ambien- tra dimensão, e o tempo parecia perder sua tado na cidade de Praga, onde o autor passou o mês de setembro de 2007, hora de voltar à superfície.r to, talvez até um dos criadores improvisados da composi- em sua boca, pronunciando palavras tão abafadas e in- Isso deve ter soado como uma frescura intolerável, pois urgência, estagnado. Os peixes-palavra na- • como participante do projeto Amores Expressos. ção, compreendendo assim o gênio de Voradeck — o maior compreensíveis que talvez fossem em tcheco, enquanto Béatrice parou com tudo, tirou a mão direita de sua xoxo- davam sem ordem gramatical, esbarrando de todos os tempos de Praga, pois K. era um artista de antes vínhamos falando em inglês e francês, salvo algu- ta, agarrou meu pau agora duro, grosso e comprido como SÉRGIO SANT’ANNA é ficcionista, autor de, entre outros livros, O vôo LÚCIA BETTENCOURT é escritora e colaboradora uns nos outros, mas formando um conjunto Rascunho A secretária de Borges língua alemã — que escrevera apenas notações que previ- mas obscenidades idiomáticas. nunca, e puxou-me por ele até o piano. Estava ela longe de da madrugada, A tragédia brasileira e 50 contos e 3 novelas de do . Autora de . Sérgio Sant’Anna, todos pela Companhia das Letras. Em julho deste de beleza ímpar, inteligível e completo. Via Mora no Rio de Janeiro (RJ). am infinitas possibilidades, até de interferências de sujei- — O que você está dizendo? — eu disse, só para con- parecer aquela dama frágil do princípio da audição. ano, recebeu o prêmio Minas Gerais, da Secretaria de Cultura do Estado tos como eu, quase antimusicais. centrar meu pensamento em palavras, para retardar um Pelo contrário, batendo com o meu cacete energicamente de Minas Gerais, pelo conjunto de sua obra. 26 rascunho 100 • AGOSTO de 2008 27 Mulher entre A pianista os (fragmento provisório de romance em processo de escrita) peixes

Bettencourt os peixes e sonhava palavras. Nadava, in- Lúcia trépida, num mundo que não era o seu, mas Sérgio Sant’Anna que a aceitava, magnânimo, enquanto o ar Alguém lhe dissera que, para escrever, que ela trazia consigo não lhe falhasse. Os era preciso sonhar peixes. Começava-se so- sons, compassados, eram os sons de sua pró- ...e vi que ela fixava seus olhos em mim, por um espe- nhando peixes discretos, que mal-e-mal con- pria vida, e eram os únicos que escutava. lho em cima do piano. Agora mal tocava as teclas, para substanciavam sua existência entre a líqui- Em casa, mais tarde, tentava sonhar os que eu pudesse ouvi-la: da maciez do sono. Depois de treinada, peixes, enquanto lia as palavras. Os seus — Vejo que você repara nos meus dedos. E, de fato, é podiam-se sonhar peixes maiores, lentos e ouvidos estavam cheios de ruídos estra- preciso aleijar, além de alongar até o absurdo os vinte confiantes como meros, ou violentamente nhos, campainhas de telefone, marteladas dedos, para interpretar Voradeck. Ele mesmo, você deve rápidos como marlins-azuis. Ela, agora, nas paredes, vozes, nada que lhe dissesse saber, obrigou-se aos sacrifícios mais extremos e acon- quando apanhava a máscara e o respiradou- respeito. Tentava nadar entre as palavras, teceu de ter todos os seus dedos paralisados. Já na Clíni- ro para ajustá-lo sobre a face, sonhava-se mas sentia-se submergir. E as palavras fu- ca, começou a tocar com os punhos, os cotovelos e até a escrevendo. E, submergindo nas águas giam-lhe: como peixes assustadiços, nada- cabeça, e a acompanhar a si próprio com sons guturais, transparentes, ia observando a substância vam para outras paragens. primitivos, e percutia com socos no rosto, no estômago, mesma dos sonhos. Nas páginas líquidas Definitivamente, para escrever, era pre- nos dois ouvidos e na genitália, e uivava de dor — en- uma ou outra palavra sobressaía como o ciso sonhar peixes. Mas talvez fosse neces- fim, flagelava-se no desespero da loucura e houve até rápido clarão de um peixe. Fulgurava e, sário sonhar também redes e anzóis, e ela um ou outro músico que se disfarçou de enfermeiro, ten- antes mesmo que seu cérebro pudesse re- não desejava esse sonho. Queria suas pala- tando criar uma notação para aquilo, mas aí sua irmã, gistrar sua beleza, já havia mergulhado, vras-peixe nadando soltas pelas suas pági- apenas um ano mais velha do que ele e dizem que o úni- discreta, entre as outras, deixando apenas nas, criando seus próprios percursos. Que- co verdadeiro amor em sua vida, não se sabe em que uma possível incerteza de sua presença. ria que sua página fosse pouco a pouco dei- nível (eram órfãos e criaram um ao outro), resolveu ex- Seus olhos enxergavam os peixes. Sua xando de ser praia, e se transformando em pulsar os vendilhões do templo, talvez até plagiários. mente, palavras. Nada que se comparasse mar, e depois oceano, cuja profundidade E foi só ela afastar-se, para ir em casa, que ele agitou- com o dia, já remoto, quando, ancorada abrigasse todo tipo de peixe, até aqueles se ainda mais e começou a agredir-se tanto, embora sem- numa pacata praia, avistara uma baleia. Um apenas suspeitados, que só sobrevivem na pre com ritmo, e a quebrar tudo ao seu redor, inclusive o mamífero deslocado entre peixes fugazes. densa escuridão do abismo. Era com essa piano que Sophia, a irmã, lhe trouxera, que tiveram de Ela gostaria que sua escrita se destacasse ilusão que mergulhava no aquário, desajei- colocá-lo numa camisa-de-força, enquanto discutiam que assim, de repente, bela e solene, diferente, tada, e se iludia entre sonhos. Nas águas injeção de barbitúrico deviam aplicar-lhe. Mas, como o mas, ao mesmo tempo tão pertinente, transparentes se via sendo examinada pe- senhor deve saber, logo sobreveio a sua morte, uma das Marco Jacobsen como a baleia confusa que viera visitá-los los peixes, e se aquietava, não fossem seus mais impressionantes das literaturas médica e musical, naquela praia longínqua. movimentos descompassados afastá-los de pois se pode dizer que ele explodiu por dentro, com uma As cores fugazes só apareciam quando perto de si. Em instantes de muito sosse- sonoridade inimaginável, quando suas artérias se rom- ela submergia. Por cima da água só conse- go, sem vento nem danças de sombras ale- peram e seu sangue jorrou pela boca, nariz, orelhas, ânus, guia ver a opacidade acinzentada que os gradas pelo sol, uma ou outra lagosta che- tudo, e, já na rigidez cadavérica, lágrimas rolaram de Nas pautas que Béatrice ia virando, verifiquei que es- possível orgasmo, pois se eu desejava, sim, esporrar na por todo o teclado, prosseguiu com as mutáveis Flores vene- peixes ofereciam, destacando-se no líqui- gava até perto e editava seus peixes, com seus olhos, lágrimas da cor do rio Vlatava, disseram os sas notações eram hieroglíficas e ideogramáticas, sem dei- boca tão suave e delicada de miss Cromstadt, e suponho nosas que nesse momento atingiam um momento dramáti- do apenas pela sua concretude. Quando pompa acadêmica. Ela saía da água, o rosto mais mitômanos, incluindo Svoboda, o meu diretor de xar de ser ocidentais, empedernidamente ocidentais, como que ela também — queria retardar isso. co e apoteótico. Mais impressionante ainda era que isso vi- mergulhava, porém, as cores explodiam e marcado pela máscara, e se deixava ficar cena. “Um santo, um mártir da música”, Svoboda sem- as da Física. A mim era permitida minha composição, e Pensei que fizera uma besteira, pois ela afastou seu nha de mim, apesar de a mão esquerda de Béatrice, cruzan- era um festival de amarelos e azuis, negros olhando as ondas, esperando o momento. pre repete, visando manter-me na atitude correta. voltei às cantigas das ruas de Botafogo, às calcinhas das rosto e disse, presumivelmente o que estivera dizendo do com a outra que tocava energicamente com o pau, tirar e vermelhos, verdes e prata. Suas tentativas eram tímidas. O corpo Talvez se lembrando disso, Béatrice voltou a tocar ener- meninas pulando corda, peitinhos em botão, os desejos de com o cacete na boca: do piano uma melodia suave, lírica, sutil em sua beleza ex- Submergiu lentamente e só o que escu- boiava, somente o rosto enfiado na água, gicamente As flores venenosas, de Voradeck, e quando ouvi o minhas mãos só agora liberados tanto tempo depois e tão — Ó senhores das luzes e das trevas, ó glória fugaz! cêntrica. E percebi como era necessário esse dueto para tava era o som compassado de sua respira- os olhos mergulhados no líquido. Um dia som de violinos e de contrabaixo, percebi que seus dedos longe, livrando-me de minhas insatisfações e angústias, — Era isso que você dizia? — e tentei meter o pau de aquela composição que refletia, concretamente, o sexo como ção, o ar correndo pelo tubo, sendo sugado decidiu-se. Era preciso mergulhar, submer- dos pés, longuíssimos e com unhas enormes, esmaltadas, que sempre procurei descrever em crepúsculos róseos e novo em sua boca, mas ela apenas roçava seus lábios amor e brutalidade, como o é na natureza. E, oh, que orgu- por sua boca e expandindo seus pulmões, gir completamente, ir até onde os peixes usavam os pedais também como verdadeiros instrumen- cafonas, ainda mais que Béatrice me correspondia, agora perfeitos nele, como se fosse um bastãozinho de batom. lho, senti que apesar de ser ela, naturalmente, pois era do enchendo-a de vida e capacitando-a a na- habitavam, conviver com eles. Vestida com tos, agora de cordas. Meu Deus, que piano era aquele? se acompanhando com uma voz maviosa de soprano, com — São palavras de Voradeck em pessoa — para acom- metier, quem conduzia meu instrumento, este era também dar, serena, entre algas escuras e peixes in- um traje escuro, equipada com instrumen- — Aproxime-se mais, chéri — ela disse, agora com uma sensualidade lírica e arfante, de modo que cravei mi- panhar a composição, ela finalmente disse. Frases de um intérprete e talvez até co-compositor, e só mesmo um gê- diferentes. Eles passavam por ela, nadavam tos que lhe conservariam a vida, ela ousou. uma voz lânguida, meio rouca, correspondendo também nhas unhas em seus seios, e ainda bem — para Béatrice, libreto fragmentado. Não desconfiou que foi por isso que nio como o de Voradeck — ainda que possivelmente traído na direção dela, destemidos, curiosos. Al- No meio do oceano, distante de seus abri- a um trecho desfalecente, amoroso, da composição, e suponho — que minhas unhas eram aparadas. Ela tirou você foi aceito para a audição privada, por que é um autor por Svoboda — seria capaz de unir tão radicalmente carne guns saíam de suas tocas para observá-la gos habituais, ela se jogou na água misteri- ela curvara-se sobre o piano, parecendo acariciar as te- notas mais graves e violentas no piano e gritou: incapaz de terminar ordenadamente o que quer que seja? e espírito, sexualidade e arte, sofrimento e prazer. E, por na sua desajeitada humanidade. E ela se- osa. Seu corpo submergiu e ela, apavora- clas de modo um tanto suspeito. E foi sua posição que — Ai, você me machuca, seu bruto! — e sua voz me Ah, então era isso, por meus defeitos que acabaram um momento de delírio, senti-me como uma das estátuas guia, mascarada, vestida com nadadeiras da, sentiu o ar faltar. O coração disparou, me permitiu ver, com o coração disparado, os seus seios pareceu um tanto dramática. por se tornar inovações literárias? Mas o que me inte- de mártires sobre a amurada da Pont Charles. falsas, consciente daqueles olhares leve- assustado, os pulmões perderam o ritmo e inadjetiváveis. Objetivamente eram perfeitamente pon- — Oh, desculpe-me, miss Cromstadt — e tirei mi- ressava agora era o meu pau nos lábios finíssimos, em Fui acometido então de ciúme, pensando que Béatrice, a mente zombeteiros, que a observavam. ela desistiu, voltou à tona, entristecida. tudos, como pêras, com os biquinhos ainda encolhidos. nhas mãos de dentro do seu vestido. todos os sentidos, de Béatrice. E forcei meu pau nova- minha adorada Béatrice, poderia ter conspurcado as suas No fundo de areia, muito claro, desta- Naquele mundo de silêncios, julgou ouvir Os seios de uma mulher de vinte e poucos anos, que com — Desculpar o quê, seu tolo? Está pensando que sou mente em sua boca. Queria mesmo gozar lá dentro jus- mãos e boca com outros paus, mas ao mesmo tempo tive cavam-se estrelas de todos os tamanhos. uma voz que a tranqüilizava, repetindo que, certeza não tivera filhos, esses seres predadores. Livres a Branca de Neve? Pois você se comporta como um anão tamente pela brancura e magreza etéreas da pianista, certeza de que cada audição era única, exclusiva e irrepetí- Brancas e vermelhas, elas se mantinham para escrever, era preciso sonhar peixes. En- das amarras de um sutiã, eles se movimentavam de um — e ela deu uma risada, sem dúvida operística, com todo seu vestido de uma elegância e sensualidade sóbrias, pró- vel, improvisada sobre o núcleo de Voradeck, improvisada plácidas e distantes como suas irmãs ce- tão fechou os olhos, esperou que o som de lado para outro, de acordo com as necessidades inter- o grotesco do gênero. prio de uma concertista de alto nível. não só por Béatrice, mas também por mim, e sob a influên- lestes. Os ouriços, tão comuns, ameaçavam sua respiração se regularizasse e, quando os pretativas de Miss Béatrice Cromstadt, e sempre ele- — Sim, Branca de Neve, com essa pele que parece Me aguardava, porém, a surpresa das surpresas. Ela afas- cia nos bastidores, é claro, daquela bicha-louca, Svoboda. com seus espinhos a quem deles se aproxi- abriu, estava no meio de um cardume. Seu gantemente, sem balançar-se como tetas. nunca ter tomado sol, sua vagabunda, e com a raiva que tou-se no banquinho, encostou-se no piano e, com seus pés Faltava-me apenas, para deixar minha marca indelével, masse. Peixes pequenos se azafamavam olhar não se cansava de acompanhar os mo- — Não quer tocar comigo? eu sentia, não tive receio de descer o meu zíper. descalços, agarrou meu pau com dois dedos. Jamais experi- gozar sobre as teclas, melar aquele piano, fertilizá-lo com entre as folhas ondulantes das algas, incau- vimentos curiosos dos peixes que a escolta- — Tocar? Oh, miss Béatrice, eu não ousaria. O que aconteceu a seguir foi espantoso, não propria- mentei sensação tão emocionante e deliciosa, eu que me meus espermatozóides livres das concepções mesquinhas, tamente se aproximando de caranguejos vam em sua descida, cada vez mais profun- Ela deixou de ser suave: mente pelo comportamento sexual do dueto que formá- julgava um homem experimentado. E, com aqueles dedos, como duendes minúsculos da música do terceiro milênio. que, agressivos, tentavam pinçá-los. Ela da. Um linguado se incomodou com sua pro- — Ora, não seja ingênuo! vamos, mas porque, retirando ela suas duas mãos do pia- garras ainda mais hábeis do que as das mãos, ela não apenas O problema é que agora esse meu instrumento doía passava por aquele mundo, perturbando- ximidade e mudou de lugar, espanando areia Então, apesar de ser um homem tímido, resolvi correr no, para puxar meu pau lá de dentro, com seus dedos lon- me batia a melhor punheta de minha vida, pois não só a muito, começava a negar-se e ameaçava encolher. Por o, mas os peixes, generosos, se acomoda- numa nuvem. As algas dançavam, os corais os riscos, da bofetada ou da expulsão da sala por Jean Louis, gos e habilíssimos, para não dizer suas presas, a música agilidade dos seus dedos era impressionante, no vaivém com isso, com uma voz fragilizada, como a de uma virgem vam a seu corpo mal-desenhado, a seus mo- exibiam suas cores enquanto ela se deslocava o guardião corcunda, e pus minhas mãos em concha, deli- continuou a se fazer ouvir, ainda mais ricamente, agora o meu pau, como ela sustinha, lá na raiz do membro, toda a no momento da defloração, implorei, segurando as lá- vimentos inarmônicos. em movimentos lentos, de braços abertos, cadamente, no interior do vestido de gala da virtuose, e com flautas, saxofones, instrumentos para o quais é ne- possibilidade de um orgasmo prematuro. Mais impressio- grimas, à virtuose que de certo modo me violentava: Foi com surpresa que constatou a pre- as pernas movendo-se compassadas. Numa oh, êxtase, assim que comecei a acariciar os seus seios, cessário, sugestivamente, usar a boca. Era um piano pre- nante ainda era como a manipulação desse pau se refletia na — Por favor, miss Cromstadt, mais devagar. Douce- sença de lulas. Era a primeira vez que as caverna, um peixe de longos dentes abria e senti brotar os seus biquinhos, provocando um profundo parado, então, e talvez toda a musicalidade da grande vir- música, como se ele fosse uma vara de condão. ment, doucement. encontrava por ali. Seus corpos pareciam fechava a boca, como se desejasse lhe dizer suspiro em Béatrice, combinando com uma pequena pau- tuose não passasse de uma farsa encenada por Svoboda, o — Ai, meu amor, eu te adoro Béatrice, faça-me gozar, Seu comportamento, porém, foi cruel e inflexível, translúcidos e ela as tomaria por folhas algo. Ela se concentrava, mas não entendia sa na composição, que ela depois voltou a tocar, em tons e grande diretor, o gênio contemporâneo de Praga, pelo que eu não agüento mais — eu disse isso, enlouquecido, e como o de muitos grandes artistas, antes de largar com descoradas de algas se não fossem por seus seu recado. Não importava. Os peixes passe- ritmos os mais variados, acompanhando-se com meneios menos era o que estava escrito sob sua estatua no Museu percebi que a música também propiciava um clima de or- desprezo o meu pau murcho e machucado: olhos, atentos, vigiando-na. Uma verdadei- avam a seu redor, curiosos. Um deles, azul, de cabeça (pura paródia, intuí). E, à medida que fui per- de Cera, ao lado de Mick Jagger e Ferenc Puskás. gasmo, e a voz suavíssima, feminíssima, de Béatrice, que — Está pensando o quê, meu querido? Que pode exis- ra colônia de lulas fazia dela o centro de com escritos amarelos ininteligíveis, avan- dendo o receio e manipulando mais e mais à vontade aque- Mas se farsa, uma farsa bem real, pois logo miss Béa- também se masturbava com as garras das mãos dentro de tir arte sem dor? r suas atenções, e ela observava e era obser- çou sobre sua boca, apertada no respiradou- las duas formosuras gostosas, ora com mais, ora com trice colocara meu pau em sua boca, e como era uma sua calcinha, ato que eu via em êxtase, imorredouro para • vada com deleite e receio. ro. Ela compreendeu. Não precisava mais menos pressão, fazendo Béatrice gemer também mais, ou virtuose também nisso, pois eu ia às nuvens e achava o meu olhar ávido (ah, a putaria também do olhar): Nota Ali, dentro d’água, tudo tomava uma ou- submergir. As palavras-peixe viriam. Era sua menos, percebi que eu era um dos executores do concer- fantasticamente obsceno que ela falasse com meu pau — Gozemos muito como amantes loucos! — implorei. Estes são fragmentos provisórios de um romance, ainda sem título, ambien- tra dimensão, e o tempo parecia perder sua tado na cidade de Praga, onde o autor passou o mês de setembro de 2007, hora de voltar à superfície.r to, talvez até um dos criadores improvisados da composi- em sua boca, pronunciando palavras tão abafadas e in- Isso deve ter soado como uma frescura intolerável, pois urgência, estagnado. Os peixes-palavra na- • como participante do projeto Amores Expressos. ção, compreendendo assim o gênio de Voradeck — o maior compreensíveis que talvez fossem em tcheco, enquanto Béatrice parou com tudo, tirou a mão direita de sua xoxo- davam sem ordem gramatical, esbarrando de todos os tempos de Praga, pois K. era um artista de antes vínhamos falando em inglês e francês, salvo algu- ta, agarrou meu pau agora duro, grosso e comprido como SÉRGIO SANT’ANNA é ficcionista, autor de, entre outros livros, O vôo LÚCIA BETTENCOURT é escritora e colaboradora uns nos outros, mas formando um conjunto Rascunho A secretária de Borges língua alemã — que escrevera apenas notações que previ- mas obscenidades idiomáticas. nunca, e puxou-me por ele até o piano. Estava ela longe de da madrugada, A tragédia brasileira e 50 contos e 3 novelas de do . Autora de . Sérgio Sant’Anna, todos pela Companhia das Letras. Em julho deste de beleza ímpar, inteligível e completo. Via Mora no Rio de Janeiro (RJ). am infinitas possibilidades, até de interferências de sujei- — O que você está dizendo? — eu disse, só para con- parecer aquela dama frágil do princípio da audição. ano, recebeu o prêmio Minas Gerais, da Secretaria de Cultura do Estado tos como eu, quase antimusicais. centrar meu pensamento em palavras, para retardar um Pelo contrário, batendo com o meu cacete energicamente de Minas Gerais, pelo conjunto de sua obra. 28 rascunho 100 • AGOSTO de 2008 Primeiro Bernardo Ajzenberg encontro

Nunca fui bom de futebol, mas o meu pai insis- tia, ele achava que fazia parte do manual de instru- ções masculinas integrar o time da escola, da classe, o time da rua, do bairro, ou mesmo a seleção do clu- be, se desse, aí seria a glória, mas, sabe, eu não levo jeito. Em compensação, sempre me dei bem no bei- sebol, acredite se quiser. Achar gente para jogar bei- sebol é mais difícil, bem mais difícil, do que para jo- gar tênis ou xadrez. Ninguém gosta e ninguém en- até tenho inveja deles, das habilidades mentais e do tende de beisebol por aqui, ninguém conhece as corpo deles, do cabelo deles, eles são sempre muito regras, você já quer pedir ou a gente espera mais um elegantes, têm uma cor bonita e uma inteligência as- pouco? O fato é que, para o beisebol, eu até treinava sombrosa, pelo menos os que eu conheço, e é gente sozinho, inventei uma espécie de paredão, igual no sempre muito honesta e trabalhadora, pelo menos tênis, para melhorar as tacadas e apanhar a bola, muito os que eu conheço, portanto não é questão de pre- embora meu pai tenha relutado à beça em me dar conceito, nada disso, não quero que você me enten- de presente um kit de beisebol, chegou a sugerir da mal, que a gente ainda se conhece muito pouco e basquete, tênis, handebol. Não vôlei; vôlei não, ele não quero que você tenha má impressão de mim logo me dizia, vôlei é esporte de viado... Francamente no primeiro encontro. Quer pedir já? Bom, mas dei- não sei de onde ele tirou isso, talvez da época em xa eu te falar: a coisa do beisebol, eu tive de desistir que ele era garoto, não faço a menor idéia... Ele in- porque também não dá para ficar jogando sozinho a sistia em tirar o beisebol da minha cabeça. Na verda- vida inteira. Mas, veja só, ter parado com o beisebol de, eu tenho certeza, hoje, de que ele queria tirar acabou comigo, foi comprar uma passagem para o tudo da minha cabeça, deixar a minha cabeça, no inferno: você não vai acreditar, quer pedir agora?, mas fundo, vazia, oca, entende. Estou convencido, sei eu me fiz muito mal, muito mal, Leila. Estava com ção, mas eu acho que isso dificultava o meu relacio- que é meio chato falar essas coisas, estou convenci- dezesseis anos, minha cara cheia de espinhas, não namento com as meninas. Às vezes acho que elas do de que ele se vingava da vida em cima de mim. escapei disso, e me achava feio, horroroso. Me acha- não se aproximavam de mim por causa do meu rosto Desde pequeno eu tenho essa sensação e essa coisa va não, eu era um monstro... Melhorei um pouqui- lunar. Como se fosse contagioso. Ou como se tives- só aumentou com o passar dos anos. Não é por acaso nho, não acha? Claro que isso dificultava as coisas sem nojo. Absurdo! Eu era limpinho, mas me cutu- que eu estou desse tamanho, com esse peso, que com as meninas, até porque eu recusava usar os cre- cava muito, como eu disse, e aquilo provavelmente nem teste ergométrico me deixam fazer. Fui outro mes e tomar as baboseiras de ervas que minha mãe as afastava de mim, porque, não sei se você concor- dia fazer um e me proibiram, disseram que não recomendava a partir das dicas de uma vizinha lou- da, mas não sou feio, quer dizer, e o meu corpo até agüentaria. Imagine! Embora eu também saiba que ca, jamais beberia aquelas coisas nojentas, pode acre- que está bem arrumadinho, apesar de tudo, não? a estética não é tudo, não é? E, além disso, ser ope- ditar. Eu então me cutucava, eu me cutucava no es- Quer pedir? Bom, do rosto passei para as unhas: cis- rador de telemarketing não ajuda em muita coisa. pelho de um modo assombroso, eu enfiava as unhas mei em tirar a cutícula diariamente, dedo a dedo. Você começou agora, somos colegas novos, mas logo na pele do meu rosto sem dó, na verdade já não sen- Comprei numa farmácia aquele alicate, você conhe- vai perceber. Se não se cuidar, o corpo amolece todo, tia dor, ou sentia e era justamente isso que eu que- ce, e virei especialista. Bingo! Arrebentava a cara di- fica flácido, você fica uma gelatina mal-feita. Se eu ria. Vai ver era isso mesmo, eu me castigava não sei ante do espelho e em seguida sentava no bidê e pudesse te dar um conselho eu diria se cuida, meni- por quê. Esse garçom é uma besta, dá uma olhada mandava brasa. Depois de alguns meses, os dedos na. Se cuida, ou pelo menos deixe que alguém cui- só no modo como ele arruma a mesa... Incrível! Bom, sangravam de tanto que eu invadia os espaços entre de de você! Minha mãe tem uma parcela enorme de eu estourava espinhas de um modo tão aprimorado, a carne e a unha... As pelezinhas cresciam cada vez responsabilidade nessa história. Menos, mas tem: Leila, que fazia elas explodirem e respingos amare- mais também, mas roer unha eu não roia, precisava todo o vazio que o meu pai incentivava em mim ela lados delas chegavam até o espelho do banheiro. O delas para estourar as espinhas, certo? Não pense preenchia com guloseimas, chocolates, biscoitos, espelho ficava com aqueles pontinhos de pus — acho você que troquei as espinhas pela cutícula. Não: agora massas em geral, geléias, essas coisas, doce-de-leite, que é pus isso que a gente tem de amarelo nas espi- eu fazia as duas coisas, com uma perícia e uma con- leite condensado, ela me dava essas coisas como nhas, não? O sangue também saía, a toalha ficava tundência, uma energia, uma fibra, uma vontade água, achocolatado com leite A, essas coisas ele me manchada, e eu mesmo assim não sossegava. Era quase religiosa, uma vibração de viciado, se você me dava sempre, até pouco tempo atrás. Filho-da-puta! como se buscasse o fundo de um iceberg, entende, entende... Era um ritual. Quer pedir? Bom, eu vi que Por que eu precisava de todas essas coisas? Melhor aquele amarelinho aparente não passava da ponta, começavam a aparecer na coxa e na altura da cintura ficar de cabeça oca! Culpar os pais por aquilo que a eu tinha de fazer uma arqueologia brutal em cada umas bolinhas, não por fora, por dentro da pele, como gente é fica meio esquisito quando se tem quase espinha, e no meu rosto havia centenas delas, maio- uns montinhos meio duros, depois eu soube que são trinta anos de idade, não? Mas eu não posso deixar res ou menores, cheguei a contar umas setenta certa pelotas de gordura concentrada, que crescem. Tem de fazer isso, porque estaria mentindo se não fizesse vez, sem considerar as manchas que ficavam de es- um nome científico que eu não me lembro — e di- isso, não acha? O que é que eu posso fazer? Quer pinhas amortecidas ou outras ainda mais velhas. Quer zem que pode dar câncer. Mas eu descobri que você pedir? Bom, o fato é que sou um cara cabeçudo, quer pedir? Bom, em ficava horas diante do espelho, Lei- pode evitar que elas cresçam, pelo menos algumas dizer às vezes meio mala, desculpe falar assim, mala la, pode acreditar, esburacando o rosto. E não era só delas, espremendo quando ainda são, digamos, jo- mas não chato nem incômodo, viu, pode ficar tran- o rosto, porque eu cuidava também do dorso, do peito, vens, novinhas. Você pode espremer como se fos- qüila. Cabeçudo no bom sentido da palavra, enten- do pescoço, até nas orelhas me nasciam espinhas. sem espinhas, ou cravos. Mais cravos do que espi- de? Quando mudei para cá, faz uns dez anos, eu ain- Eu me castigava tanto desse jeito, Leila, que às ve- nhas. Elas, essas pelotinhas, vão crescendo simetri- da tinha na cabeça essa coisa do beisebol, mas aqui, zes chorava, de pena de mim mesmo, não de dor. camente: se surge uma na parte superior da coxa di- mais do que em Campinas, ficou impossível encon- Uma pena de mim mesmo, como eu tenho certeza reita, por exemplo, pode acreditar, pode procurar que trar gente, e eu não queria freqüentar aqueles clu- de que a minha mãe também tinha, mas não dizia; tem outra mais ou mesmo na mesma altura da outra bes específicos, sabe, cheios de japoneses, nisseis, só espumava de raiva. E eu de ódio. Meu rosto, às coxa. No peito a mesma coisa. Aprendi isso com o não, nada contra os nisseis, muito pelo contrário, eu vezes, ficava todo ele da cor de suco de uva. Como meu pai. Ele tem igual, já fez até alguma pequenas já disse, eu sou cabeçudo, não é? De nada adianta- cirurgias para extrair as maiores, que não dá para a vam as reprimendas da mãe. Meu pai não dava bola gente espremer. Então eu me colocava diante do para isso, não sei por quê. Para ele, quanto mais feio espelho, Leila, e espremia, tanto, tanto, até sair aque- eu fosse, melhor. Menos me preocuparia com boba- la gordurinha meio branca, meio amarelada, limpi- gens e mais trataria de encontrar logo um trabalho, nha, pode acreditar, embora muito mal-cheirosa. Saía achou que era isso que ele pensava. Então eu me que nem um cravo, só que bem maior. Muito mal- fazia mal, muito mal por causa da história do beise- cheirosa, isso sim. Diferente das espinhas. Nunca bol ausente, se você me entende. É só uma sensa- senti o cheiro das espinhas. Não sei se espinhas têm cheiro. Mas o cheiro, de qualquer maneira, faz parte da nossa vida, não acha? Todos conhecemos os nos- sos cheiros e muitas vezes a gente se diverte ou sen- te até prazer com eles, não é verdade? Desculpe fa- lar assim, tanto, Leila. É um prazer estar aqui com você. Tenho certeza de que gente vai se dar bem. Você já teve caspa? E aí, você não quer pedir?•r

BERNARDO AJZENBERG é autor de Homens com mulheres, A gaiola de Faraday, Carreiras cortadas, Variações Goldman, entre outros. Mora em São Paulo (SP). 100 • AGOSTO de 2008 rascunho 29

lher continuava parada ali, com o menino sob a asa. Ambos paralisados pelo choque. Vai embora, falei. Some daqui com esse garoto. Pouca munição, Minha voz rompeu o transe. A mulher pegou a mão do filho e se afastou apressa- da, quase o arrastando. Ele olhou para trás uma vez. Tinha uma expressão decepcio- nada no rosto. muitos inimigos A ambulância demorou a chegar. Antes, parou ali uma viatura da PM e os policiais levaram Ambrosinho para um pronto-socor- ro, onde ele deu entrada em estado crítico Marçal Ilustrações: Ramon Muniz Aquino — o disparo tinha seccionado os vasos fe- morais. Ainda tentaram transferi-lo para um hospital, porém ele já chegou defunto. Para Mafra Carbonieri Infelizmente não pude prestigiar o ve- lório nem o enterro. Eu conhecia bem o 1 velho Ambrósio, era capaz de adivinhar Alguém aciona a descarga no andar de quem ele tentaria punir pela morte do fi- cima. Silêncio se mexe na cama, inquieto. Faz lho. Por isso, achei que eu e Silêncio deverí- calor no quarto pequeno e abafado. Ouvi- amos sumir por uns tempos, até que as coi- mos a água escorrer encanamento abaixo. sas esfriassem, embora, naquela circunstân- O que quer que tenha incomodado o cia, as únicas coisas com alguma chance de cidadão, digo, acaba de ser expelido. esfriar fossem os nossos cadáveres. Olho para o rosto de Silêncio em busca de sua reação. Ele sorri sem mostrar os den- 3 tes, sem ânimo. Então se levanta e vai para Nem bem ligo o celular, para conferir o banheiro. as mensagens, e o aparelho começa a tocar, Hoje é quarta-feira e eu daria um braço o que me assusta a ponto de quase deixá-lo por um café de máquina. Um doce de pada- cair no chão. Atendo porque reconheço o ria. Comida feita na hora. Hoje é quarta- número que chama e, em seguida, a voz. feira, nono dia do nosso desterro, e o cheiro Doutor Fontes, mezzo advogado, mezzo con- do quarto se degrada de um jeito preocu- selheiro do velho Ambrósio. pante. Suor, chulé e outras emissões menos O velho tá muito sentido com você, ele nobres. Às vezes falta água e aí o banheiro diz. Onde já se viu faltar ao enterro do se torna território interditado. A comida não Ambrosinho? ajuda, nossos intestinos protestam todos os Tive minhas razões, sei que o senhor dias. Por enquanto, nada a fazer. Vamos con- entende... tinuar engolindo a gororoba vil servida pelo Onde você está? hotel a preço de caviar. Todo movimento Olha, doutor, não me leve a mal, mas desnecessário deve ser evitado. É o que diz o vou desligar. Não quero ser rastreado. manual de sobrevivência. Deixa de ser paranóico, homem! O ve- Hoje é quarta, umas três e meia da tar- lho só quer conversar com você. de. Daqui a pouco a TV tem futebol e eu Sei. pelo menos duas horas sem aturar o mutis- Ele quer ouvir da sua boca como foi que mo de meu companheiro de exílio. aconteceu. Só isso. Achamos justo. Silêncio é um preto alto, enxuto, absur- Com todo respeito, doutor, data vênia, damente calado, daí o apelido. Chama-se, mas conta outra. na verdade, Rodrigo, mas a maioria das O doutor Fontes dá risada, depois tosse. pessoas com quem se relaciona desconhece Demora para recobrar o fôlego. Enfizema. isso. Eu sei disso e de outras coisas. Sei, por Escuta: o velho só quer o preto, que fa- exemplo, que Silêncio nasceu em São Ga- lhou em serviço. briel da Cachoeira, no extremo amazônico, confiava em Silêncio. O que é a fatalidade: fensiva, deve ter doído mais o pé agressor que Silêncio está dormindo de bruços, vesti- quase terra colombiana, e que todo mês se tivéssemos demorado um minuto a mais a canela atingida. do apenas com um calção listrado. Sua manda uma graninha para a mãe, que ain- para sair, nada teria acontecido. Eu e o manobrista rimos. Silêncio en- muito. A mão oculta na certa segura o re- da vive por lá. Também sei que, logo de- A mulata e o menino atravessaram a rua costou o carro nesse momento e desceu para vólver sob o travesseiro. pois de dar baixa no Exército, Silêncio mo- bem nessa hora e passaram em frente ao abrir a porta, com cara de quem não esta- Ninguém falhou, foi uma fatalidade. rou por um tempo com um travesti. Deve restaurante. Era uma mulher bonita, jovem va entendendo nada. Ambrosinho sorria no Venha contar isso pessoalmente pro velho. ter ótimas histórias pra contar, se gostasse ainda. O menino também era muito boni- momento em que olhou para mim e disse: Se tem algum culpado nessa história é o de falar. Só posso imaginar essas histórias. to, devia ter uns nove, dez anos. Usava Viu só que machinho? próprio Ambrosinho. Penso na grande ironia: Ambrosinho uniforme escolar e olhou para nós com uma Não sei quanto tempo de vida tenho pela Pronto, temos certeza de que o velho vai adorava Silêncio. Gostou dele desde o dia espécie de altivez. frente, mas já posso afirmar que jamais esque- entender, mente o doutor Fontes. em que apresentei os dois. Difícil entender: Ambrosinho estava lembrando de uma cerei a cena. Sei que vou revê-la sempre, até o Silêncio murmura alguma coisa de den- Ambrosinho gostava de pouca gente. Nis- noitada na Zona Norte e parou de falar no dia da minha morte. Como uma maldição. tro do sono. Ri. Então abre os olhos e, ain- so saiu ao pai: o velho Ambrosio até se ga- segundo em que viu a mulata. Cismou com De repente, o menino voltou a atacar. da sem se mover, observa com cautela o bava de não gostar de ninguém, nem mes- ela, disse que a conhecia de uma boate. A Agora com os punhos. Golpeou as bolas mundo ao seu redor, e fica visível que se mo do próprio filho — o quê, como acaba- mulher não deu bola para essa conversa e ten- de Ambrosinho, que, um pouco pela dor e frustra com o que vê. As cartas do baralho, mos descobrindo, não era bem assim. tou se esquivar. Ambrosinho a segurou pelo um tanto mais pela surpresa, curvou-se, li- com as quais jogamos partidas interminá- Silêncio volta do banheiro, traz com ele o braço. E aí o menino se invocou com aquilo. berando o braço da mulher. veis, estão espalhadas pelo chão. cheiro do cigarro. Combinamos que ele não No começo, eu e o manobrista achamos a Detalhe: ele carregava seu Taurus enfi- Que garantias o senhor pode me dar? fumaria no quarto, mas o acordo resulta meio cena engraçada. O moleque encarou Ambro- ado no cós da calça. E o menino tentou Ele gosta de você como de um filho... inútil por causa da ventilação deficiente do sinho e mandou que ele largasse do braço de pegar a arma. Os dois se atracaram e Am- É pouco. banheiro. O quarto dá para a lateral de um sua mãe. Ambrosinho se interessou pelo brosinho perdeu o equilíbrio e caiu na rua, O doutor Fontes reflete por um momen- prédio, não temos vista. Melhor: as- menino — que avançou e desferiu um puxando o menino por cima dele. Achei to. Silêncio senta na cama e se espreguiça, sim, a gente só precisa se preocupar chute na canela dele. Coisa ino- que era hora de interromper aquilo, antes alonga o corpo esguio, estalam suas juntas. com a porta de entrada. que alguém se machucasse, e lembro que Mate o preto. Aí, você pode voltar numa Mantenho o celular desligado a ainda olhei para Silêncio, que afinal era o boa. Damos a nossa palavra. maior parte do tempo, por medo de guarda-costas de Ambrosinho. Ele conti- Vou pensar. ser rastreado. Com a tecnologia de nuava parado ao lado da porta aberta do O velho não tem nada contra você. E hoje, convém não facilitar. São capa- carro, com sua cara magra e feliz. não fique achando que não sabemos onde zes de qualquer negócio. Não bloque- Foi então que ouvimos o disparo. você está, viu? aram meus cartões de crédito e mi- A mulher deu um grito e pôs as mãos É? nha conta no banco? Não dá para na frente da boca. Eu puxei o menino O doutor Fontes blefa. Conheço a figu- brincar com essa gente. Ligo o tele- pelo braço, tirei-o de cima de Ambrosi- ra e seus métodos. fone apenas para ouvir os recados nho e empurrei para o lado. Deu tem- O submundo fala, você sabe. que se acumulam na caixa-postal. po de ver um pouco de fumaça sair de Nisso ele tem razão, o submundo fala. Ameaças de todo tipo, promessas onde saía o sangue que começava E toda informação está disponível. Basta detalhadas de suplícios. Já nem me empoçar rápido na calçada. Lem- ter paciência. E pagar bem. intimidam mais. Tenho mil e cem bro que pensei: puta merda, o Liga pra mim, o doutor Fontes diz. defeitos, porém bobo não sou. Sei moleque capou o chefe. E me deseja “boa sorte” antes de desligar. avaliar a gravidade da situação, sei Silêncio se agachou ao meu Silêncio se levanta para fumar no banheiro. direitinho o buraco em que eu e Si- lado e me ajudou a amparar Am- Era o doutor Fontes, digo. lêncio estamos enfiados. Sei de tudo. brosinho, que se agarrou assus- O que ele queria? Só não sei ainda como vamos sair. tado em mim. Queria saber se a gente estava precisan- Eu vou morrer? Eu vou do de alguma coisa... 2 morrer? Silêncio leva a frase a sério por um se- Dizer que Ambrosinho estava Minha idéia era colocá-lo no gundo. Então sorri do seu jeito comedido, bêbado é um exagero. Ele tinha to- carro, mas Ambrosinho não entra no banheiro e fecha a porta. mado duas caipirinhas durante o al- permitiu — não queria sujar O som de passos no assoalho do corredor moço, fora o chope, mas um cava- de sangue o assento. O ma- me deixa alerta. Mas logo em seguida ouço lão daquele tamanho resistia bem ao nobrista pegou o celular e avi- a chave abrindo a porta do quarto vizinho álcool. Pode-se até dizer que estava um sou que ia chamar uma am- ao nosso e relaxo. Quer dizer, até onde pode pouco alterado, mas a verdade é que bulância. relaxar um cara na minha situação. r Ambrosinho já nasceu alterado. Não mexam muito com ele, • Saí com ele do restaurante; Silên- disse. Pode piorar tudo. MARÇAL AQUINO Na hora, aquilo me pareceu o nasceu em Amparo (SP), em 1958. cio se adiantou para buscar o carro É autor, entre outros, de O invasor, O amor e outros — Ambrosinho tinha ciúme da que deveria ser feito. Tanto que objetos pontiagudos, Eu receberia as piores Mercedes, nunca gostou de dei- deixei Ambrosinho aos cuidados notícias dos seus lindos lábios. Além de escritor, é xá-la na mão de manobristas, só de Silêncio e me levantei. A mu- jornalista e roteirista. Vive em São Paulo (SP). 30 rascunho 100 • AGOSTO de 2008 Amsterdã ou Amsterdam

Neuza Paranhos

Eram gatos tão velhos que sofriam de antiguidade. A anciã- E se perguntou se havia ficado ali um pedaço de carne viva ou o mor do Sião tinha vindo ao mundo em 1976, os três machos quê. Ela errou o salto em direção ao sofá e estatelou no tapete lhes ficavam devendo uns invernos. Você, que sempre gostou de persa. Reclamou o fiasco num miado grosso de siamês frustrado, gatos, não lhes cresceu afeto, nem eles fizeram questão, bem postos um miado feio de horroroso. Faltou xingar a porca vida que na dignidade de suas patas arqueadas. Faltavam dentes com persistia débil num bicho doente de antiguidade. Ainda mais que mastigar e Pieter os alimentava com uma papa verde-orgâ- que os outros não tinham errado o salto e estavam nem aí, de nica que deixava você com asco. Você nunca viu Pieter encher as bundas juntas para espantar o frio. tigelas, ao lado da geladeira. Quando chegava ao apartamento, Tinha uma divisória sanfonada separando quarto e sala. Com no fim do dia, elas estavam parcialmente comidas. De manhã, um certo esforço de trilhos e relinchos você conseguiu fechar. quando acordava, podia ver da cama as tigelas vazias. E os an- Estava meio emperrada, denotava que Pieter não tinha o há- ciões encolhidos no sofá de veludo bordô, ciscando os olhos reco- bito. E os siameses, naquele apartamento, dormiam onde lhes bertos por uma película esbranquiçada. De tão velhos, não rea- aprouvesse. Quando o frio apertava, seus bafinhos queriam a giam conforme você deixava a cama espantando sonhos, abria a cama morna. Você realmente não queria nem saber se eles ti- mala e tirava o nécessaire, encardia as meias até o banheiro. En- nham reumatismo. O aquecimento na sala já não gemia quen- quanto escovava os dentes, dava falta de chuveiro. Para tomar turas suficientes no encanamento povoado de fantasmas? Que banho, havia um ritual constrangedor a cumprir, que consistia se fizessem companhia, uns mortos, outros quase. O que aque- em aparecer as seis no apartamento ao lado, onde morava Dani- las múmias holandesas poderiam querer consigo, você se cul- ele, mulher de Pieter. Os gatos não podiam ver, mas pressenti- pava, enquanto procurava no fundo da mochila a garrafinha am sua boca cheia de espuma e torciam para que você morresse para lhe salvar a noite. Um frasco abaulado de Baileys com- logo e os aliviasse de suas malas e andanças. E você andava. prado no freeshop em Heathrow, o licor podre de doce na goela, Como você andava! Se adiante alguém perguntasse o que tinha uma delícia. E para cúmulo dos cúmulos, uma voz gótica cheia feito em Amsterdã, responderia: andei. Você seguia as ruas de de ahrs e ohrs anunciou Billie Holliday no seu walkman-rá- canais pacíficos e ia fazendo parte da paisagem. Na mochila, dio-toca-fita, o mesmo que em Londres despertava curiosidade um caderninho para quando faltasse conversa. Você conversava nos moços bonitos do metrô. De onde mesmo você tinha in- consigo que Amsterdã queria dizer “dama de Amstel”, uma ventado esse walkman pré-histórico? dama que sonhava em água corrente. Você pausava num banco Uns goles de Baileys e você achando tudo engraçado. Sua à beira do canal, a copada fresca em chiaroscuro, e esperava ver sorte era não possuir muita resistência para drogas, qualquer a dama sonhar antigo. Não aparecia dama nenhuma porque tipo de droga, pensou enquanto se lembrava da criatura que- Amsterdã ou Amsterdam tem outros significados, foz bifurcada rendo seu money à beira do canal da Amsteldama. E das serin- do rio Amstel ou coisa assim. Daí você seguia pelas vias con- gas espatifadas em vidrinhos coriscos na manhã do parque Von- cêntricas, de sabê-las assim por conta dos mapas. Uma prece del. Os zumbis que se erguiam dentre as moitas floridas confor- de olhos fechados vez por outra, para que o deus do acaso ori- me o sol esquentava. E você indecisa em saber se aquilo repre- entasse melhor que os panfletos turísticos colecionados no fun- sentava perigo ou se tomava sol pelada. As européias de cabeça do da mochila. Uma vez, ao abri-los, estava diante de uma raspada tinham abandonado os cabelões por conta do feminis- pessoa. Corpse, não convinha dizer. A brancura e a magreza da mo e da praticidade. Você mal conseguia ponderar se era bom criatura destacavam olhos de um azul quase branco, as pupi- ou ruim ser antiguidade, ainda que rara. No quarto de Pieter, las sumidas. Ela ergueu o braço emperrado e articulou o maxi- na Elisabethstraat, Billie Holiday, uma camélia branca espeta- lar com dificuldade. Money. Você não achou boa idéia abrir a da nos cabelos, acompanhava sua febre. mochila que continha a carteira, como se estivesse no guichê do Rijksmuseum. E lembrou de uns trocados no bolso do ves- I wished on the moon tido. Estendeu a Corpse, que os tomou com uma agilidade que For something I never knew afogaria em despeito os anciões da Elizabethstraat. Então, in- Wished on the moon decisa entre seguir ou girar nos calcanhares, Corpse optou por For more than I ever knew ir em frente, sabe-se lá com que idéia. Você ficou uns instantes olhando, depois fechou os olhos. Tornou a abri-los e ela ainda Você guiou os dedos indicador e médio da mão direita e seu não tinha sumido na esquina. Repetiu o esconjuro e a amstel- corpo espasmou umas vezes. Você usou os mesmos dedos para dama jazia no leito de águas correntes. delinear gueixas concupiscentes na cúpula do abajur. Quando Você chegou em casa pouco antes das oito, sem direito a ba- estava perto de dormir, os anciões se pegaram numa briga me- nho, se arrastou pela escada até a sobreloja e entrou direto no donha de miados góticos. Você se encolheu nas cobertas de fedor apartamento de Pieter. Os anciões estavam aninhados na cama e cerrou os olhos com força. de ricas cobertas imundas, como se Pieter fosse um rei medieval A manhã seguinte aromatizava um cheiro bom de estrebaria de higiene escassa. Pieter era um hippie velho com idéias sobre em um pedacinho do edredom a lhe encantar as narinas. A divi- hospitalidade que diferiam das de Danielle, sua jovem esposa. sória sanfonada estava fechada e não havia sinal audível dos Você tocou os cachimbos alinhados na estante de livros empoei- anciões. Você virou o corpo em direção à janela para entender o rados e escutou um diálogo gótico no apartamento ao lado. Por tempo ruim e a manhã adiantada. Testou a garganta e com que raios uma menina de hábitos burgueses se encanta com um satisfação percebeu o alho realmente eficaz. O rangido da janela hippie pobre, confuso, vinte anos mais velho? Dono de um apar- da sala anunciou Pieter. Ele foi reparando que não via sua cara tamento sujo, habitado por gatos antiqüíssimos? Havia uma havia dias e você explicou que estava se divertindo horrores em janela de vidraças ao lado da estante que dava para a superfície Amsterdã. Em seguida, dedurou a briga de gatos. Pieter pas- de um poço interno que se erguia por mais dois andares. Do sou-lhes um pito de ahrs e ohrs, as nucas sujeitas, as garras con- outro lado, a janela de Danielle. Pieter usava essa via para tran- tidas, cada qual sua vez. Eles se entregavam com deleite, pis- sitar entre os apartamentos. Danielle nunca visitava o aparta- cando os olhinhos siameses em meneios de filhote. Depois, con- mento de Pieter, para seu alívio. E Pieter só aparecia quando vidou: almoço em 12 minutos. Você foi lá em dez minutos e você não estava, para alimentar os Anciões do Sião. Havia coi- ficou fazendo hora antes de bater na porta. Pieter abriu. Havia sas sobre o amor que você não entendia. um relógio na cozinha, você estava atrasada cinco minutos, de O clima tinha desistido de estar tão formoso e ruminava acordo com o relógio deles. A televisão estava ligada num pro- vento frio e garoa, de um jeito a lhe fazer mal. Você abiu a grama em que três holandeses gordinhos, de meia idade — dois geladeira e deu com uma cabeça de alho. Tirou um gomo e homens e uma mulher — se agitavam na dança mais hilariante engoliu sem mastigar, para espantar resfriado. Talvez fosse tar- que você já tinha visto em toda a sua vida. Mas você se eximiu de demais, que seu corpo reclamava nas juntas o tanto de an- de rir porque Danielle assistia com expressão neutra, como se danças. E pedia cama. Você tomaria um copo de leite morno fosse o canal de notícias da BBC. Danielle desligou o aparelho, pensando em C, mas não tinha ânimo de nada, muito menos mostrou o seu lugar à mesa e ocupou o dela, em frente. Pieter descer até o café da esquina. Olhou os anciões e pensou na apareceu com purê de batatas e brócolis cozidos. Salada de ce- melhor forma de espantá-los do leito. Bateu com as tigelas noura e rabanetes. E ele também se acomodou e serviu purê de semicomidas umas nas outras, apetitosamente, mas eles não se batatas no seu prato. A comida estava saborosa, você reconhe- moveram, velhos e sábios que eram. Ficou cismando um pou- cia, apesar de sentir falta de um prato principal, como se hou- co, e concluiu igualmente ruim dividir a cama com as criatu- vesse um frango escondido no forno. O almoço seguia sem as- ras ou dormir no sofá. Irritada, se lançou na cama em bote de suntos palpitantes. Você contou que tinha percorrido algumas onça amazônica, braços arqueados felinos. A anciã-mor soltou ruas de canais bonitos e que tinha pegado um resfriado por con- lá seu bafinho enfado. Só. Então você bateu com força os pu- ta do tempo. E lembrou de dizer que tinha comido um dente de nhos no colchão e puxou as cobertas com violência. Eles fugi- alho pra espantar resfriado. Pieter não entendeu direito, que ele ram e foi a primeira vez que você anotou como eram tortos, já era tão ruim de inglês quanto você. Danielle traduziu she stole que quase sempre estavam dormitando sobre as patas encolhi- your garlic, que você tinha roubado o alho de Pieter. Uma colhe- das. E sentiu um prazer que se confundia com piedade. rada de purê desceu robusta pela sua garganta e você passou a Cruzes, como sou má, pensou, sem saber que isso diminuiria NEUZA PARANHOS desejar o fim daquele almoço. conforme o tempo lhe roesse os instintos. No fim, caso você des- é escritora, jornalista Mais um dia sem banho, arhs, orhs. Você voltou ao aparta- e estudante de cendesse da mesma estirpe dos gatos, teria que se conformar em Biblioteconomia na mento de origem e improvisou uma higiene fria. Vestiu o que de sonhar com a morte. Feito sua avó de olhos azuis embotados, Universidade de mais quente havia em sua mochila, e não bastava, teria que en- tão feliz a avó, a lhe dizer eu gosto da vida, eu gosto. São Paulo. Publicou a frentar o vento gelado das ruas concêntricas de canais escuros onde E os siameses sequer se moviam, nada, conforme os camun- coletânea de contos jazia Corpse, a Amsteldama. A anciã-mor ciscou enfado de olhos dongos riscavam ponta-a-ponta o quarto e sala sem chuveiro de Av. Marginal pela baços. Caso fosse uma tigresa, lhe comeria com prazer. Em vez, Pieter. Mas de repente foram obrigados a fugir dos seus trovões. Editora ComArte e era o tempo a lhe devorar as carnes. O espelho oxidado sobre a Você, uma criatura vinda de distantes plagas só para lhes infer- trabalhos no mesmo cômoda refletia vocês duas no quarto de Pieter, denotava um qua- nizar a vida e privar dos cheirosos edredons de Pieter, que para gênero na revista dro do Rijksmuseum. A cama de grossas cobertas malcheirosas, Cult, na versão despertar o olfato dos velhos siameses, o cheiro deveria ser acre, eletrônica de Le as tralhas garimpadas em lojas de segunda mão, a poeira inventa- encorpado feito um vinho de safra. Você duvidou uns instantes Monde Diplomatique riando o tempo: uma guerra, outra guerra, uma família escondi- se conseguiria dormir ali mais uma noite, e notou uma placa de Brasil e em outros da no armário, um cachimbo de haxixe, uma moça ciosa de buga- pelagem caindo da anciã-mor, na região lombar, perto do rabo. periódicos on-line. lhos. Havia coisas sobre o amor que você não sabia.•r 100 • AGOSTO de 2008 rascunho 31

PASSE DE LETRA FLÁVIO CARNEIRO

Tereza Yamashita O NARRADOR

A importância de um bom contador para histórias que muitas vezes parecem óbvias

Uma pergunta da maior importância atravessa se não tuto Ibero-Americano de Berlim montou uma pequena e não conta tudo, justamente porque sabe que você está ali, os séculos pelo menos algumas décadas, sem encontrar res- preciosa exposição sobre futebol. Quem a visitasse teria o vendo. Há pequenos intervalos de silêncio na narração e posta definitiva: qual a função do radinho de pilha na privilégio de ouvir algumas gravações memoráveis, dentre isso não impede que você continue acompanhando a his- vida do torcedor de futebol? elas duas narrações distintas de um mesmo lance: o segun- tória. Silêncio no rádio é suicídio, convenhamos. Se o O sujeito está no estádio, digamos que num lugar privile- do gol de Ghiggia na final da Copa de 1950, no Maracanã, narrador pára de contar é como se a história estivesse giado, de onde pode ver perfeitamente tudo o que está acon- que deu o título ao Uruguai, contra o Brasil. sendo interrompida — aconteceu algum problema de tecendo em campo. Ninguém atrapalha sua visão — nem O brasileiro narrou o lance com uma voz soturna, como transmissão, o ouvinte há de pensar. É preciso haver al- vendedor de refrigerante ou cerveja, nem torcedor se levan- se fosse um aviso fúnebre: gol do Uruguai. E repetiu, talvez gum som, seja de que tipo for, o tempo todo. tando a toda a hora na sua frente, nem gente passando de um para convencer a si mesmo de que era verdade: gol do Uru- Outra diferença: na televisão, o narrador não pode lado para o outro —, nada o impede de ver perfeitamente guai. O uruguaio, por sua vez, ultrapassava todos os limites inventar muito. Claro que ele precisa dar um toque pesso- cada jogador, cada lance da partida. E no entanto lá está o da euforia, verdadeiramente uivando ao microfone, diria al na narração, caso contrário seria melhor nem estar ali, dito cujo, colado ao ouvido do cidadão: o radinho de pilha. mesmo que dava para ouvi-lo saltando da cadeira de braços dando vaga a outro, mas se a bola passou longe da trave Você poderá dizer que a explicação é óbvia: o rádio trans- abertos e peito estufado, enquanto repetia rouco as palavras ele não pode dizer que passou raspando. Não dá. Mas no mite informações que o torcedor não tem, como as que são mágicas, com vogais e consoantes multiplicadas ao infinito! rádio pode?, perguntará o leitor ingênuo, daqueles que fornecidas pelo repórter de campo, por exemplo, além de A partida era a mesma, dirá você, se for alguém sensato, nunca ouviu um jogo pelo rádio. transmitir os comentários de um especialista. Tudo bem, é com a balança do juízo bem ajustada. No mundo do futebol, Não apenas pode como acontece com freqüência. O uma explicação bastante razoável, mas não suficiente. percebe-se, ela pende para o lado da fantasia e, portanto, o que se narrador, nesse caso, precisa trabalhar com a imaginação Há uma outra coisa que sempre moveu e ainda move o pode depreender é que eram duas histórias diferentes: uma com do seu ouvinte, e a estratégia normalmente usada é a da torcedor a levar ao estádio o seu radinho de pilha (ou, atu- final feliz, a outra com desfecho trágico (para dizer o mínimo). extrema dramaticidade. O drible foi normalzinho? Vira almente, seu MP4, celular com rádio ou seja lá o que for): E se quisermos dar um pulo no tempo, passando do um drible magistral! O lançamento foi até bonitinho? ele precisa que alguém lhe conte uma história. Exatamente radinho de pilha à era da televisão, veremos que a necessida- Transforma-se num lance antológico! O gol foi sem que- isso: ele precisa de um narrador. de do narrador permanece. A situação é ainda mais interes- rer? Pois agora é gol de placa! Vivemos de ouvir e contar histórias, essa é que a verda- sante, em certo aspecto. Agora então é que você não precisa- Há também, claro, os narradores de rádio que preferem de. Daí a figura do contador de histórias — o narrador — ria mesmo de ninguém para lhe contar a história do jogo. ser mais contidos, sem tanto exagero, e buscam segurar seu ser absolutamente insubstituível. Ela pode mudar de fei- Você está na sua casa, sentado confortavelmente no sofá, e à ouvinte com outras estratégias, como a do humor, por exem- ção de uma época para outra, de um lugar para outro, sua frente a televisão vai mostrando as cenas uma a uma, vistas plo. E há, por outro lado, os narradores de televisão que se mas vai sempre estar presente. por vários ângulos e com a melhor imagem possível. E por que, apropriam da linguagem do rádio, com inflexões de voz Foi isso o que percebeu Walter Benjamin, que na década apesar disso tudo, você precisa de um sujeito dizendo: Fulaninho mais carregadas e gritos de gol, digamos, um pouco mais de 30 escreveu um ensaio — O narrador: considerações sobre a recebe o lançamento pela direita (você está vendo isso, se não sonoros do que o habitual. obra de Nikolai Leskov — mostrando como o contador de tiver problema de lateralidade sabe o que é esquerda e direita), O que importa, no caso, é o modo que cada narrador histórias das sociedades primitivas foi substituído, no início coloca a bola no chão (você certamente sabe o que é chão, e encontra para contar sua história. Isto serve, de diferentes da modernidade, pelo romance. Quer dizer, se com a era bola) e chuta direto para o gol (sabe onde fica o gol, não sabe?)? maneiras, para o rádio e a televisão. E, sem dúvida alguma, moderna não havia mais espaço para o contador à moda Numa crônica anterior, sobre escritores torcedores, citei para a literatura. Grande sertão: veredas, de Guimarães antiga — um velho que reunia em torno de si alguns ouvin- o caso do José Castello, que tira o som da televisão quando Rosa, traz um belo enredo, mas o que seria dele sem o modo tes, ansiosos por uma narrativa —, o narrador migrou para o jogo está muito tenso. Aquilo de alguma forma vai mu- de contar, o jeito todo torto (que caminha para frente e para outro espaço, o do livro. dar o resultado da partida? Ele sabe que não, mas sabe tam- os lados), do jagunço-narrador Riobaldo? E o que seria de Quando ainda não havia televisão, o contador de históri- bém que sem narrador a história perde sua dramaticidade, Dom Casmurro não fosse a sacada genial de Machado de as de futebol estava no rádio. Era em volta deste narrador que perde sua condição de artifício, ficção, espetáculo. E assim Assis: criar um narrador ambíguo (não por acaso nasce dele a família se reunia para acompanhar os jogos importantes. ele pode ter a sensação de que o jogo está sob controle. a ambigüidade de Capitu) como Bentinho? Não havia uma fogueira em torno da qual os ouvintes pudes- E se você pensa que o Castello não regula bem da idéia, Como a literatura, o futebol também guarda no seu baú sem se reunir para ouvir o velho contador, mas havia o acon- há coisas piores. Há torcedores que gostam de ver o jogo na histórias de todo tipo. O drama, a tragédia, a comédia, o chego da sala e a voz que vinha de longe (às vezes do outro televisão mas não gostam do tipo de narrador que ela, na suspense, tem para todos os gostos. E para cada uma delas há lado do oceano) para descrever cada episódio daquilo que às sua linguagem específica, oferece ao espectador. Esses (e posso um narrador. O narrador não é apenas uma voz, é a alma da vezes se configurava como uma verdadeira epopéia. lhe garantir, com conhecimento de causa, que não são pou- história. Um jogo de futebol não deixa de existir por não ter Um jogo de futebol, desnecessário dizer, é uma narrati- cos) optam pelo gesto absolutamente intertextual de tirar o quem o narre. Ele está acontecendo lá, no campo, indepen- va, com começo, meio e fim. Cabe ao narrador contá-la. E som da televisão e ligar o rádio. Quer dizer, vêem as ima- dentemente de alguém estar ou não contando o que se passa. como quem conta um conto aumenta um ponto, a história gens na tela mas ouvem a partida no rádio! Agora, cá entre nós, uma coisa posso lhe dizer, no segredo vai variar conforme o estilo do narrador. E o interessante é que, de fato, são duas formas com- confessional das quatro linhas (da página): sem um bom con- Um exemplo. Na Copa da Alemanha, em 2006, o Insti- pletamente diferentes de narrar. Na televisão, o narrador tador de histórias, o jogo não vai ter a mesma graça.•r

Quando ainda não havia televisão, o contador de histórias de futebol estava no rádio. Era em volta deste narrador que a família se reunia para acompanhar os jogos importantes. Não havia uma fogueira em torno da qual os ouvintes pudessem se reunir para ouvir o velho contador, mas havia o aconchego da sala e a voz que vinha de longe. 32 rascunho 100 • AGOSTO de 2008

FORA DE SEQÜÊNCIA FERNANDO MONTEIRO

“Você está disposto a viajar trezen- máticas se tornaram, na verdade, a tos e sessenta e cinco quilômetros abai- única fonte direta que possuímos, até xo do Nilo, e andar, no último tre- agora, dos assuntos externos de cho, possivelmente de jipe ou no lom- Amarna (principalmente no que diz bo de burro, para alcançar um círcu- O primeiro respeito ao período crítico de declínio, lo de montanhas redondas, onde só quando o delírio místico do seu fun- há umas pedras para se ver?!” dador talvez tenha chegado ao ponto Respondendo que sim, insistindo desagregador característico de toda e na importância, para você (e até para qualquer recusa do mundo). ele, o jovem egípcio que lhe pergunta monoteísmo O que aconteceu aqui? — é a per- se acaso não dispõe de uma “camisa gunta que se coloca, acima de todas. de Kaká”, na bagagem vinda do país Quando Amarna foi levantada, do futebol), daquele lugar sem desta- era o Egito o maior império conhe- que, daquelas montanhas aplainadas cido. Por volta de 1400 a.C, a terra pelo vento, numa depressão inóspita da história (2) dos faraós dominava colônias e ter- — você terá, talvez, algumas chances. ritórios vassalos desde a costa síria E, numa manhã de céu azul de gaze até a terceira catarata, na Núbia — — tocado pelo ápice quase irreal da A chegada de AKHENATON ao poder, acompanhado por mantendo como amigos o país de grande Pirâmide — quem sabe estará Mitanni e a Babilônia (embora a partindo, afinal, a caminho da mais duas mulheres que desempenharão papéis obscuros ameaça hitita estivesse a coçar o dor- abandonada das ex-capitais do Egito, so do portento africano que, de vez preservada pelo menos da indiferen- em quando, se dava ao trabalho de ça que nunca ultrapassa do maciço ascese monoteísta sincera — na defesa de forme a teologia egípcia invertia e transfe- enxotá-la com orgulhoso enfado). de Gebel Abu Feda, ao norte do qual um único Deus verdadeiro contra a proli- ria, desde os primórdios da antiga religião Esse, o país que Akhenaton rece- se oculta o lugar de Amarna. feração de deuses — e nesta nova capital solar, assimilações de uma divindade a beu do seu pai, Amenófis III, e que Além da beleza natural — e soli- da nova divindade (Aton) também se deu outra, sucessivamente. Um culto passava a ele já conhecia da co-regência tária — do lugar, que se conserva uma reforma política, uma insurgência (a ter ascendência sobre outro, ao longo dos exercida antes de suceder, finalmen- quase intacta, não há muito que ver, primeira) do Trono contra o Altar. Em séculos da civilização mais longeva do Ori- te, ao celebrado faraó que alguns cha- de fato, de uma cidade abandonada Amarna — forma abreviada do que não é ente Próximo — e o de Amon era maram de o “Luís XIV do Egito”. apenas doze anos depois da sua o seu nome de origem — um deus único se hegemônico há cerca de quatrocentos anos Parece certo que o grande rei che- construção rápida (e que era já ruí- tornou o centro do culto oficial, tendo o (quando veio a sofrer a ameaça amarniana). gou a ver até o sexto ano do reina- na, na antiguidade). rei como seu profeta. Akhenaton. O-Hori- Desde a 12ª dinastia que Amon-Ra come- do do filho — e essa longevidade Apesar de capital — com oito qui- zonte-Radiante-de-Aton (Akhenaton) foi çara a ser cultuado no lugar central do envolve mais do que o “simples” lômetros de comprimento por um como ele chamou a capital que se transfe- panteão, ao fim de assimilações sucessivas. problema da co-regência, como pro- quilômetro e meio de largura máxi- riu de Tebas para aquela depressão de terre- Não se pode tentar esclarecer tais trocas e gressiva transferência de poder (que ma —, ela não foi erguida com os no cercado de montanhas polidas pelo ven- transformações divinas (que aconteciam de era a prática corrente na realeza egíp- materiais mais nobres, pois não ha- to, ainda hoje propícia à ascese, à contem- modo natural, ao longo das dinastias e suas cia, com a finalidade de iniciar os via tempo para levá-los até tão longe plação, radical, da equação céu-e-terra, al- preferências processando-se com a lentidão príncipes, sempre que possível, numa de Tebas, a capital que ela devia subs- tura-e-planície, silêncio-e-ruído. dos negócios de poder e magia, numa civi- sucessão tranqüila). tituir. Tijolos cozidos, calcário e lização quatro vezes milenar), sem ter uma alabastro foram os materiais mais Cidade inacabada alguma visão do quadro confuso, juncado Reforma radical usados nas obras sem nenhum traba- De volta à tranqüilidade desde há mais de nomes e atributos dos deuses, da reli- Haveria, então, um sólido rei lho de cantaria, tocadas com uma de três mil anos, Amarna não parece ter sido gião do Egito. O assunto de que tratamos silente — num tipo de consentimen- urgência que ainda emerge do cená- o cenário de uma revolução espiritual tão aqui — a personalidade central de uma ten- to tácito, no mínimo — no fundo da rio de uma crise mística e política. Pou- profunda que, para se expressar completa- tativa de reforma político-religiosa na 18ª paisagem de reforma radical defen- ca pedra. E muita pressa em levantar, mente, desceu até mesmo dos altares nos dinastia egípcia — certamente não comporta dida pelo príncipe-herdeiro. Estamos em menos de dois anos, basicamente quais passavam a ser realizadas oferendas e que nos detenhamos, especialmente, sobre falando de um governante que rei- uma cidade principal, com o Palácio, gestos rituais diferentes da liturgia de Amon a complicada teologia que se foi elaboran- nou durante 35 anos, o homem que a residência real unida a ele, os tem- e outros deuses. Erguida para precipitar do durante lapsos de tempo tão formidá- conhecemos de estátuas colossais e plos (dois), o subúrbio setentrional e acontecimentos importantes na vida do veis quanto os que se conta na civilização tranqüilas. Um rei, um faraó esclare- uma área também urbana, ao sul, Egito, a própria cidade permaneceu egípcia — na qual vemos Amon inicialmente cido o suficiente para tolerar, pelo onde havia o Palácio das Termas, a inacabada, pois o vigor místico do rei não como uma das oito divindades adoradas em menos — senão estimular — os ar- dois quilômetros do que podemos admitiu esperar, ao que tudo indica, pela Hermópolis (outro centro religioso). Desse roubos de um reformador que ele chamar o “centro”, ao longo da “rua conclusão de todos os projetos urbanísti- panteão lateral, o deus foi “subindo” para próprio gostaria, talvez, de ter sido. do Rei”. Dessa “rua”, partiam as prin- cos traçados para a breve capital in progress. a categoria central, em Hermópolis, meio Nunca se saberá, ao certo, sobre cipais (e sempre largas) avenidas da Ansioso por consumar fatos pela via mági- século antes do advento de Aton como deus a extensão desse entendimento que, geométrica Amarna. Tal concepção co-administrativa, ele logo promoveu a central que deslocava Amon, Ra, Ptah, em princípio, não pareceria possível. também contrariava, em parte, o esti- mudança da corte, proclamando a funda- Thot, Knun, Nut, Geb, Maat, Hathor, De um lado, o faraó que se autodivi- lo monumental e pesado que está as- ção de Amarna já no quarto mês da esta- Hapy, Mut, Hórus, Seth, Ísis, Osíris... e nizou durante um longo reinado sociado às capitais egípcias e, mesmo, ção de inverno do sexto ano do seu reina- outros. É uma vasta sucessão de nomes di- (mais de manutenção de território do aos templos funerários, etc. do, quando já dera início a certas mudan- vinos, que extrapola do foco central deste que de conquistas, e mais de atra- O seu traçado — que conhecemos ças que “ameaçavam” o deus Amon (sem livro — no qual, será suficiente, por ora, ção dos povos estrangeiros do que — é o de uma cidade nova, verda- que talvez houvesse uma percepção muita que tenhamos presente o essencial do mun- de alianças, forçadas, com países te- deiramente. Os “riscos” dos mestres- clara — por parte do clero de Amon — do do religioso egípcio, em 1400 a.C: nesta al- merosos do Egito), e, do outro, o de-obras, preservados no gesso escon- que significavam alguns desses gestos e de- tura, o deus então principal e determinador seu filho, breve senhor de um turbu- dido dos alicerces dos principais edi- cisões, menores, do jovem rei Amenófis IV). da sorte do Egito desde a ascensão do seu lento período, Akhenaton, herdeiro fícios amarnianos, eram abertos, le- Assim fora com a troca do nome culto (e clero, claro) era Amon-Ra. de um “universalismo” inegavel- ves, claros. Com algo de “aéreo”, “Amenófis” — que significava Amon-Está- mente praticado por Amenófis III — porque devia ser a Casa de um deus Satisfeito ou O-Oculto-Está-em-Plenitude. Ainda mais radical que se correspondia, com os reis abstrato, que se representava, indire- Quando ascendera ao trono, o Quando Amenófis IV passa a se chamar “bárbaros” usando os seus idiomas tamente, pelo Disco Solar. (É impor- antepenúltimo rei da brilhante 18a dinastia Akhenaton, a novidade tem um sentido difíceis, por hábil cortesia. tante fixar esse “indiretamente”, pois resolvera trocar seu nome real, mudança político-religioso que irá se tornar ainda Teria ele vivido, de fato, até o sex- quer dizer que Aton não era visível, cujo valor simbólico tinha algum peso mais radical naquele momento em que a to ano do reinado de Akhenaton, nem poderia ser.) como “operação mágica” capaz de alterar exigência mística do “novo homem” — que estava vivo Amenófis III, seu pai. a natureza de uma determinada pessoa ou é o rei — exige uma nova capital Questões, então, que necessariamen- Contra o mundo vulgar coisa. Amenófis IV passara a se chamar “construída num lugar que não pertença a te se colocam: sua presença tem o Sem nada da grandiosidade — Akhenaton, ou O-Espírito-Atuante-de-Aton — nenhum deus ou deusa”, segundo outra condão de tornar aceitáveis as “ori- aqui e ali, até desproporcional — que e isso representava uma quebra das prerro- estela real encontrada na cidade. ginalidades” religiosas do filho? A caracteriza a santuária arquitetura gativas divinas de Amon, o deus que mora- E a decisão sobre o lugar recaiu nessa idéia de um pai que, no mínimo, usa egípcia, neste lugar, nessa cidade-san- va também nos nomes dos soberanos da planície ao norte, a cerca de trezentos e o silêncio — e a falta de “reprova- tuário, os magros vestígios de certo longa linhagem dos Amenófis. vinte e cinco quilômetros da velha Tebas, ção” — aqui se alinha, frente ao lei- modo se opõem, em espírito, às Fora uma “originalidade” não despro- a meio caminho desta e da velha Mênfis tor impaciente, levado para um pro- adiposidades, ao núbio engordar da vida de importância. Uma estela da época (também ex-capital). A nova capital dura- blema mais que longínquo. Um con- luxuriosa visão que se associa à cor- amarniana inicia assim seu anúncio dos ria cerca de doze anos — ou um minuto sentimento, implícito, da revolução te egípcia, geralmente. Essa cidade foi atos palacianos (de Tebas, ainda), relatan- na longa história egípcia — mas suas ra- teológica a que Akhenaton dá iní- levantada quase contra ela. Ou, pelo do o sentimento do jovem monarca a res- sas ruínas (que se tornaram, literalmente, cio, com graves repercussões políti- menos, contra o mundo vulgar — peito da homenagem prestada a um novo um “Horizonte” onde existiram retos e cas. Seu herdeiro era, agora, não desde sempre presente e já aqui um deus presente no nome do governante: altos edifícios recortados contra o céu sem apenas um co-regente, naquele siste- vidro opaco fazer atravessar de clari- “Agora o meu nome vai bem com Aton”... nuvens) ainda continham os únicos docu- ma que favorecia o jovem príncipe, dade, sonho na água do sono entre Esse deus era Aton, e já existia reveren- mentos autênticos da revolução aliviava o faraó e também era útil a manhã e a madrugada das visões ciado na fulguração do disco do sol, ora amarniana, quando aqui começou a esca- para o Estado — pois toda monar- de transcendência, que se inauguram. como aspecto complementar de Ra (a di- var, em 1891, o arqueólogo inglês Flinders quia tem um profundo senso do Es- Aqui é o lugar da primeira ascese vindade de Heliópolis), ora expressando seu Petrie. Também o busto, famoso, da rai- tado, maior do que nas repúblicas, de um governante em busca dos tri- atributo máximo, do modo complexo con- nha Nefertiti veio desse traçado de pedras talvez — e, aqui, era o País o mais unfos do espírito, o cenário da sua esquecidas, assim como outras peças que beneficiado com a energia de um co- paixão e da sua derrota e, se não da se espalharam pelos museus do mundo. E regente na condição de faraó já “em sua morte — sobre a qual pouco se vieram de Amarna também as tabuinhas exercício”. São os passos de anteci- sabe — pelo menos do fim irremedi- Erguida para precipitar de barro cozido — encontradas, em 1887, pação da reforma mais profunda ável daquela sonho. (O faraó terá acontecimentos por uma velha nativa de Et-Till (pequena ocorrida na mais “imóvel” civiliza- sido levado para morrer em Tebas, vila das proximidades de Amarna), em tal ção da história: a egípcia. como castigo imposto pelo triunfo, importantes na vida do quantidade que a princípio foram toma- O cenário, de certa forma, está final, do poderoso clero desprezado?) Egito, a própria cidade das como falsas. O extraordinário achado montado. O ator secundário — o Ele foi o responsável pela mais da sebakhin traria à luz parte da correspon- velho faraó — se retira. O ator prin- grave dissidência que feriu o colosso permaneceu inacabada, dência dos países estrangeiros, dirigida ao cipal, Akhenaton, assoma ao pal- sem fissuras, na religião. Amarna foi pois o vigor místico do rei rei Akhenaton, no seu novo palácio. Lon- co, acompanhado por duas mulhe- o lugar da consumação de sua afron- não admitiu esperar, ao que ge dos arquivos de Tebas, a maciça corres- res: Nefertiti e Tiy, que vão desem- ta ao deus principal do Egito, aos seus pondência de argila fora se empilhando, penhar papéis ainda mais obscuros oficiantes e aos beneficiários de um tudo indica, pela conclusão quase como lixo, depois de copiadas pelos do que aquele de Amenófis III no culto que, em menos de meio século, de todos os projetos escribas (no mais prático papiro). Tão ou destino do filho. r se “estabelecera” no centro do poder mais importantes do que o busto da rai- • teocrático — até surgir Amenófis IV. urbanísticos traçados para nha que deslumbra, magnífico, os visitan- (CONTINUA NA Houve aqui a paixão de uma a breve capital in progress. tes do Museu de Berlim, as cartas diplo- PRÓXIMA EDIÇÃO) literatura estrangeira 100 • AGOSTO de 2008

VOZES PORTUGUESAS  Um aposento maior que o mundo

José Luís Peixoto revela maturidade, inventividade e até genialidade no romance CEMITÉRIO DE PIANOS

MARCIO RENATO DOS SANTOS • CURITIBA – PR irmão — Simão — tinha como fardo suportar toda a carga de frustrações destiladas pelo mesmo pai que para Muito mais que um Atlântico separa o Brasil de o Francisco filho direcionava carinhos e atenções mil. Portugal. Não são apenas quilômetros, naturalmen- Outros entes, queridos ou não, surgem, desapa- te. A língua, então, pensada, sentida, falada e escrita recem, ganham espaço, e ausência, ou nem isso, neste é muito outra em cada um dos dois países. Nenhum enredo — como se dá em qualquer família. Tios, acordo ortográfico será ponte entre Brasil e Portugal. tias, primas e outras possibilidades via DNA são per- E a literatura, então? O que se pratica em Portugal, e sonagens secundários em Cemitério de pianos. Mas, nos países africanos que se valem do idioma portu- como já se mencionou nesta resenha, o que invade guês, é radicalmente diverso do que se dá neste Bra- com força as linhas, e entrelinhas, desta obra são sil. Por aqui, em meio a gerúndios, coronelismo e mesmo Francisco pai e filho, que erram, insistem e canções, pulsam pulsões próprias — e outras nuances, parecem ser o mesmo indivíduo — como se o leitor que ora sabemos e muitas vezes, ignoramos. se deparasse com a tese de que as histórias (ou estó- Cemitério de pianos A prosa literária recente dos portugueses parece rias) são iguais e/ou é impossível evitar ou desviar José Luís Peixoto contaminada com um barroquismo, um fluir inces- do destino e/ou herança genética. Record 304 págs. sante, jorro de palavras que não se guiam por obje- tividade e clareza imediata. Assim lemos a ficção De dimensões de uma Inês Pedrosa, de um Jorge Reis-Sá e de um O cemitério de pianos, aquele aparente e mero José Luís Peixoto, este, no caso, autor do romance, aposento, talvez sem relevância para outras pessoas recém-publicado no Brasil, Cemitério de pianos. ou personagens, era muito mais que o centro da casa Os três autores citados, em especial, praticam textos da família ficcional elaborada por Peixoto. A política derramados, líricos e sinuosos. José Luís Peixoto, e a economia daquele possível país, o buraco na rua, por exemplo, é contraponto a muitos autores brasi- os resultados do futebol, a conta de luz, a brisa e o leiros da novíssima geração. pôr-do-sol eventuais, tudo se apequenava diante do o autor José Luís Peixoto tem (apenas) 34 anos e o seu mítico espaço. “A realidade era aquela sala arruma- projeto ficcional, sobretudo o livro mais recente, Ce- da e velha. O meu entusiasmo era uma ilusão que O português JOSÉ LUÍS PEIXOTO nasceu em mitério de pianos, irradia maturidade, visão de construíra sozinha a partir de nada. Sentado, assistia 1974. Diplomou-se em Línguas e Literaturas mundo e linguagem próprios. Peixoto, devido a tais às sombras que cresciam das pernas dos cadeirões”. Modernas pela Universidade Nova de Lisboa. Em características, contrasta com autores brasileiros, da E, a exemplo do que já se articulou no quarto pará- 2001, o seu romance Nenhum olhar abocanhou novíssima geração, badalados entre si, em bares, e grafo deste texto (mas que se faz urgente repetir, e o prêmio literário José Saramago. Em 1997, até por alguns segmentos, e guetos, da imprensa. Ao insistir), as mais caras recordações dos personagens 1998 e 2000, já havia faturado o prêmio Jovens invés de citar nominalmente (por que são muitos, e tinham como ponto de partida aquele espaço íntimo Criadores. Em 2005, escreveu duas peças de alguns deles poderiam ficar fora da lista), basta pen- e familiar, sedutor e irresistível: “Quando acabava de teatro: Anathema (levada ao palco do Theatre de la Bastille, em Paris) e À manhã (encenada no sar em algum jovem autor gaúcho, paulista, cario- consertar um piano, sozinho, sem saber uma nota, o Teatro São Luiz, em Lisboa). Seus romances já ca ou curitibano, sobretudo os que são apontados meu pai fechava a oficina toda para, no centro da foram publicados em inúmeros países, a exem- como promissores. Fulano, Beltrano, Sicrana e carpintaria, tocar músicas que conhecia e músicas que plo de França, Itália, Bulgária, Turquia, Finlân- Belbetrano. Todo e qualquer Fulano, Beltrano, inventava. Gostava talvez de ter sido pianista mas, dia, Holanda, Espanha, República Tcheca, Sicrana e Belbetrano, em particular as “revelações nem mesmo quando ainda não tinha desistido de Croácia, Bielo-Rússia e Brasil. literárias brasileiras”, produzem ficção rala, de pés- todos os seus sonhos, se tinha permitido sonhos desse sima qualidade, textos capengas e visões de mundo tamanho”. Esse cemitério de pianos, por menor que adolescente. Fulano, Beltrano, Sicrana e Belbetrano, fosse, tinha ou representava ter, para os Lázaro, o ta- entre outras coisas, são tosquíssimos, artisticamente, manho do mundo. Ou, ainda, era bem maior que o sobretudo se comparados com o português José Luís mundo. “O cemitério de pianos era enorme. As tar- Peixoto. Inclusive, é não apenas injusto mas impos- des tinham o tamanho de gerações encadeadas”. sível comparar o que não pode ser comparado. Pei- xoto, entre outras coisas, é, de fato, um artista, um Maratona escritor — e não uma pose. José Luís Peixoto assinala, em nota ao final da narrativa, que o romance foi contaminado pela e trecho • Cemitério de pianos Perplexidades dialoga com a realidade. “Francisco Lázaro foi um Depois, a tarde. Ninguém poderia compre- Vida, amor e morte. Eis alguns dos motes de atleta português que faleceu de insolação após cum- ender a sua tranqüilidade. Esperar. Cada um Cemitério de pianos. O enredo trata da trajetória prir trinta quilômetros da maratona, nos Jogos deles estava abandonado. O tempo passava de uma família, os Lázaro. O pai e um dos filhos, Olímpicos de Estocolmo, em 1912”. O autor, por embaciado pela luz e distorcido pelos rostos, ambos chamados Francisco, são os protagonistas. outro lado, se exime de possíveis pontos de contato atravessava-os e, embaciado, distorcido, ins- A narrativa tem um cenário relevante, ponto de entre realidade e a ficção por ele elaborada. “A per- talava-se lentamente no interior de cada um irradiação de imagens e metáforas, que é um cemi- sonagem que, neste romance, tem o mesmo nome, deles. O tempo era um lago estagnado de água tério de pianos: um quarto, depósito-oficina de pi- baseia-se apenas circunstancialmente na sua histó- cinzenta que, devagar, crescia dentro de cada anos, dentro de uma casa situada em um ponto ria. Sendo todos os episódios e personagens apre- um deles. O Simão foi o único que teve cora- periférico qualquer deste Portugal imaginário. A sentados do âmbito da absoluta ficção.” gem de se aproximar da janela e olhar o mun- partir desse cemitério de pianos serão deflagradas E, de fato, a “absoluta ficção” peixotiana, em de- do, como se ainda existisse. E existia: invisí- e reveladas as lembranças que contam a trajetória terminado momento, na página 89 da edição brasi- vel, sem sentido. desses personagens peixotianos. leira, é entrecortada por indicações, como se o texto O texto tira o chão, e desestabiliza as certezas, do fosse uma maratona. “Partida”. E, então, blocos nar- eventual leitor. Não é possível precisar qual dos rativos. “Quilómetro um”. Mais blocos de texto. Até Franciscos está a narrar. Ora é o pai, ora é o filho. o “Quilómetro trinta”. Então, o personagem Fran- Em um bloco narrativo é o pai, depois o filho e, de cisco Lázaro (pai ou filho?) — maratonista, como o tanta alteração, e sobreposição textual, tudo se Franciso Lázaro da realidade — percorrerá uma embaralha. No entanto, algo se evidencia: as desven- maratona (“Na Suécia, está muito calor”, insiste o turas se repetem de geração para geração. Pai e filho, texto) e não chegará vivo ao final. “O Francisco cai”. por exemplo, encontrarão, meio por acaso, talvez sem (“Trinta quilómetros. O Francisco cai exausto. O seu sentido, as mulheres de suas vidas. O que chamam corpo deitado é rodeado por pessoas”). José Luís Peixoto tem de destino acontece para o Francisco pai e para o Mas a narrativa, enquanto há simulação de que Francisco filho, a exemplo do que se dá, também, o que acontece é uma maratona, não apresenta ape- (apenas) 34 anos e o seu para qualquer humano da realidade real. nas o personagem a correr, mas a própria trajetória projeto ficcional, sobretudo Os impasses e entraves que todo ser, da dita realida- da família a se desenrolar, em meio a lembranças, de, enfrenta com a sua família também se manifestam frases arrebatadoras (“A música é que tem as pala- o livro mais recente, nesse núcleo familiar ficcional de Cemitério de pia- vras. Quando eu toco um piano, ouvem-se as pala- Cemitério de pianos, irradia nos. Francisco, o filho, era o predileto e tal condição, vras que estão dentro do piano”) e muita surpresa, maturidade, visão de mundo como todo filho preferido sabe, não é imune de dor, perplexidade e nuances as mais variadas e inespe- além do bônus alegria. Enquanto ele era alvo de todo radas. Sobretudo, o fato de que o livro (também) é e linguagem próprias. amor paterno que é possível em uma vida, o outro narrado por um morto.•r 34 rascunho 100 • AGOSTO de 2008

VOZES PORTUGUESAS  Lento LÍDIA JORGE é uma das principais romancistas portuguesas da atualidade; PRAZER sua frase é longa e trabalhada

a autora GREGÓRIO DANTAS • CAMPINAS – SP Lugares intricados Nascida em 1946, no Algarve, LÍDIA JORGE O enredo pode parecer banal, descrito assim. Mas Em uma conferência sempre usou sua terra natal como modelo para há lugares intricados na escrita de Lídia Jorge. A co- proferida em Londres, em sua ficção. Estreou no início dos anos 80, e faz meçar pela lentidão da narrativa, em grande parte 1996, a escritora portugue- parte de uma geração de destaque na ficção mantida pelo exercício da repetição. Por exemplo: sa Lídia Jorge debateu a portuguesa recente. É autora de romances cada capítulo é subdivido em fragmentos menores de idéia bastante difundida de renomados, dentre eles O dia dos prodígios, texto, separados por um espaço em branco. Muitas que o romance, como for- O cais das merendas e Notícias da cidade sil- vezes, essa pausa não possui a função (esperada) de vestre ma literária, estaria agoni- . Em catálogo no Brasil, estão os roman- separar cenas diferentes ou indicar novos rumos ao ces A manta do soldado, A costa dos murmú- zando. Apesar dos lugares- rios e O vento assobiando nas gruas, todos enredo; mas está apenas cadenciando a narrativa, que comuns próprios ao tema, lançados pela Record. é retomada em seguida quase nos mesmos termos: a escritora fez considerações bastante pertinentes sobre al- As tias tinham dito — “Meu Deus, vamos descansar gumas preocupações da fic- um bocado...” ção contemporânea. Refe- rindo-se a um leitor “indig- O vento assobiando Também Milene precisava de descansar. nado” que certa vez a acu- nas gruas trecho • O vento Lídia Jorge sara de insistir em um for- Record assobiando nas gruas Precisava, sim. Enquanto eles abalavam, ela tinha fica- mato literário caduco e con- 496 págs. do no limiar da porta, para ter certeza absoluta de que desa- denado, Lídia Jorge expli- Sim, como explicava Milene que não tives- pareciam, e as suas mãos tremiam no meio dos batentes. cou que alguns de seus ro- se esperado por ele para deixar morrer a avó? mances, de fato, podem parecer antiquados. Afinal, Porque não tinha proporcionado que ela ti- Também são repetitivos os momentos em que ao contrário da literatura rápida (para ser lida em vesse todas as flores, todas as honras que acompanhamos os pensamentos de Milene, seus mo- qualquer parte, aos fragmentos, em qualquer ordem) merecia? Porque não tinha cuidado da sua vimentos circulares e suas obsessões. Uma delas con- que o mundo contemporâneo parece demandar cada pessoa? Porque não tinha interceptado aquela siste em ligar a um primo distante, com quem nunca gente, guardas, médico legista, homens de vez mais, seu segundo livro, por exemplo, consegue falar. Milene contenta-se, então, a deixar preto, o padre incluído? Como? — Uns dias longas mensagens na secretária eletrônica. depois e talvez até o tio Rui Ludovic tivesse era longo, descritivo, não ia direto ao exemplo, nem requisitado dois cavalos da Guarda Nacional Personagem ávida por comunicação, mas incapaz estava a ser construído para ser lido enquanto um auto- que fossem atrás fazendo barulho com as de se fazer ouvir com atenção, Milene apresenta um carro chegava e outro partia. Pelo contrário, precisaria patas, talvez houvesse um sermão na igreja, comportamento estranho, algo infantil, o que só será de uma sólida mesa-de-cabeceira que o pudesse acolher e talvez alguém tivesse vindo com duas gui- explicado no final do livro. Ela é uma moça “simples dum bom marcador para ser lido devagar, noite após tarras, uma em cada mão, cantar à avó, à de espírito”, e seu alheamento se faz notar na lingua- 1 noite, no sossego da casa. longa vida da avó, à benemerência da avó, a gem, no raciocínio circular, e na percepção excêntrica avó que em tempos idos tinha sido a mão das coisas. Por exemplo, nas referências pop que, neste Trata-se quase de uma declaração de princípios forte da Fábrica de Conservas Leandro 1908, romance, não são gratuitas, mas funcionam como um literários. Lídia Jorge é uma autora que se lê deva- boa pessoa para toda a gente, gerações intei- indício do desajuste de Milene na paisagem em que vive. gar, e com atenção: sua frase é longa e trabalhada, ras que lhe deviam favores, e no entanto a Assim, uma fresta em uma construção a faz lembrar de seus enredos são lentos. Dizer que a linguagem de neta não tinha esperado. Para avaliar por in- um “alvéolo do Alien III”; ou um pequeno gesto de seus livros é barroca pode dar a falsa impressão de teiro o sucedido, Milene não precisava de con- rebeldia a faz se sentir “como se tivesse participado de que é artificiosa, o que não é necessariamente verda- tar pelos dedos, porque não tinha nem dez, um filme com o Clint Eastwood ou o Schwarzenegger”. de. Em grande parte, o cultivo da frase está a serviço nem quinze, nem vinte anos, tão-pouco. Mes- Mas como um romance longo, sem peripécias da criação de uma linguagem que incorpora a mo assim, contou. Para se certificar, contou folhetinescas, e cuja estratégia textual mais evidente é a oralidade das regiões que descreve, de imagens ver- as ausências fundamentais, uma a uma. repetição e o cadenciamento da narrativa, pode se tor- dadeiramente poéticas, e de metáforas sobre algu- nar um best-seller em Portugal? Em primeiro lugar, esse mas das questões mais recorrentes na literatura por- dado nos diz muito sobre as diferenças entre o merca- tuguesa, como a da identidade da nação. do de livros de Portugal e do Brasil. São realidades Não se trata da exaltação de certa identidade muito diferentes, é óbvio, com tradições literárias que, mítica, de cunho sebastianista, de um Grande Im- pelo menos modernamente, mantiveram poucos pon- pério Português. Também não se trata de uma lite- Aparentemente, trata-se de um romance conven- tos de contato em comum. Mesmo quando a orienta- ratura engajada, revolucionária, aferrada aos valo- cional se comparado, por exemplo, à estrutura nar- ção temática era convergente (pensemos nos autores res da Revolução de 1974. Os personagens de Lídia rativa de A costa dos murmúrios. De fato, o enre- do neo-realismo português, que leram muitos roman- Jorge são de uma geração pós-colonial, em que o do é mais linear e não carrega a obsessiva questão ces brasileiros da década de 30), os caminhos formais império foi desmantelado, mas em que os ideais re- metaficcional. Estamos na cidade fictícia de Santa se afastavam significativamente. No Brasil, Lídia Jorge volucionários também já foram frustrados. Por exem- Maria dos Valmares. A história tem início em fren- é uma autora que consideraríamos difícil ou, mais do plo: há quem interprete seu primeiro romance, O dia te a um grande prédio, aparentemente abandona- que isso, que pode facilmente ser relegada à categoria dos prodígios (1980), como uma metáfora da re- do, em cuja fachada lê-se: Fábrica de Conservas Lean- de “leitura de especialistas”. O que é uma injustiça. volução: o povo da pequena comunidade dro 1908. Prostrada frente ao edifício está a jovem É verdade que a cadência narrativa de O vento interiorana, que espera por uma aparição mágica, Milene Leandro, descendente da família que outro- assobiando nas gruas poderá soar monótona demais não compreende seus sinais, assim como o povo ra fora uma das mais poderosas da região. Desori- para o leitor brasileiro. E com razão, já que essa é a português não teria compreendido a revolução ou entada, ela se abriga dentro da fábrica, onde termi- intenção da autora, a de criar um tempo paralelo, de sequer tomado parte dela de fato. A espera represen- na por encontrar uma grande família que ali vive, acordo com a percepção que Milene tem do mundo ta um destino em aberto, a ser cumprido, embora a recém chegada de uma viagem e cuja matriarca, a sua volta, e da própria condição daquele lugarejo nação não pareça disposta a cumpri-lo. Felícia Mata, logo acolhe Milene. Órfã, Milene vi- frente ao resto do país. Também é verdade que, em via com a avó, cujo corpo foi encontrado em frente um mercado editorial com tantos lançamentos, em Jogo metaficcional à antiga fábrica, e agora vive a incerteza de precisar que é difícil mesmo para os leitores especializados man- Nos livros seguintes, a ação dos enredos se trans- explicar a história dessa morte para os tios, que a terem-se atualizados com tanta variedade, investir em portaria para um universo mais citadino, a questão tratam como um estorvo. um romance como este de Lídia Jorge pode parece da identidade ganharia outros contornos. Seu roman- A convivência entre Milene e os Mata não será uma excentricidade. Mas talvez, exatamente por isso, ce mais celebrado talvez seja A costa dos murmúri- das mais pacíficas. Logo, as diferenças sociais entre seja recomendável encarar suas quase 500 páginas. os (1988), já lançado no Brasil pela Record, que tra- as duas famílias se evidenciam. A família Mata é Porque a literatura deve ser assim mesmo, excêntrica, ta da guerra colonial e, estruturalmente, promove um cabo-verdiana, e lida de maneira ambivalente com a a ponto de ser dar ao luxo de ser lenta e contemplativa. imbricado jogo metaficcional. aculturação portuguesa, já que tenta manter as tradi- E embora não seja a melhor obra de Lídia Jorge, O Hoje, Lídia Jorge é considerada uma das autoras ções de seu país, ao mesmo tempo em que os mais vento assobiando nas gruas é um bom romance, de mais importantes da geração de romancistas portu- novos, nascidos em Portugal, sentem-se portugueses. uma escritora ciente de seus recursos e com uma tra- gueses que estreou no início dos 80, e mantém uma Mas a maior distância é, obviamente, social: pelo jetória literária das mais coerentes. r carreira das mais produtivas. O vento assobiando lado da família Leandro, temos os tios de Milene, • nas gruas (2002), seu oitavo romance, lançado agora mais preocupados com questões imobiliárias e do Nota no Brasil, foi um sucesso de crítica e de público. Ven- espólio da falecida do que com a saúde da sobrinha. 1 O título da comunicação é “O romance e o tempo que ceu os prêmios da Associação Portuguesa de Escrito- E o passado das famílias, que vai sendo lentamente passa ou A convenção do mundo imaginado”, e foi publicada, res, da Fundação Günter Grass, além do Prêmio desvelado ao leitor, tornará virtualmente impossível em português, na revista Portuguese literary & cultural Correntes d’Escritas/Casino da Póvoa. Além disso, a relação entre Milene e Antonino Mata, um viúvo studies 2 (1999), disponível na internet no endereço foi um enorme sucesso de vendas. que trabalha nas gruas evocadas no título. http://www.plcs.umassd.edu/plcsissues/02.cfm

O cultivo da frase está a serviço da criação de uma linguagem que incorpora a oralidade das regiões que descreve, de imagens verdadeiramente poéticas, e de metáforas sobre algumas das questões mais recorrentes na literatura portuguesa, como a da identidade da nação. 100 • AGOSTO de 2008 rascunho 35

VOZES PORTUGUESAS  O guardador de SONHOS

Terra sonâmbula Venenos de deus, Em VENENOS DE DEUS, REMÉDIOS DO DIABO Mia Couto remédios do diabo Companhia das Letras Mia Couto e TERRA SONÂMBULA, Mia Couto recupera 208 págs. Companhia das Letras o poder do sonho e a necessidade do mito 192 págs.

MARIANA IANELLI • SÃO PAULO – SP ros, djambalaueiros — e o mato à beira da uma vila africana, as intimidades dos habi- o autor estrada viceja, “num moçambique de ver- tantes silenciam, debaixo de pequenas men- Nasce mulata a poesia moçambicana, des”. O sagrado se abastece de forças na tiras, saberes que não mentem. Cada sonho MIA COUTO, pseudônimo de An- tónio Emílio Leite Couto, nasceu em em meados do século 19, no casamento genealogia poética do filho das águas, da fi- é um modo de esquivar-se de um presente Beira, cidade de Moçambique, em do poeta Tomás Antônio Gonzaga, de lha do Céu, e já Tuahir passa a sofrer de de poucas distrações. São breves os arredo- 1955. Filho de portugueses, estu- sangue luso-brasileiro, com Juliana de uma outra fome se o pequeno Muindinga res de Vila Cacimba, porém, dentro da casa dou medicina, praticou o jornalismo Sousa Mascarenhas, da Ilha de Moçam- demora a retomar o diário — uma fome que de D. Munda e Bartolomeu Sozinho, uma e foi militante da Frente de Liberta- bique. A respeito desse rico intercâmbio só a fantasia satisfaz. O garoto lê as páginas, geografia se desdobra em distâncias. Além ção de Moçambique (Frelimo), ten- de culturas falava o escritor Mia Couto, o velho lê as folhagens, um alimenta no dos devaneios da memória, que adoecem de do trabalhado para o governo à épo- quatro anos atrás, em uma comunicação outro os motivos de estar vivo. No desfile melancolia esse universo entre quatro pare- ca da guerra civil (1976-1992). For- na Academia Brasileira de Letras. Foi dos espectros da guerra, nas imprecações dos des onde se concentra a narrativa, uma epi- mou-se em biologia, atividade que assim que, estreitando laços de vizinhan- espíritos, põem-se “os tempos, em sua man- demia contamina as redondezas da vila, con- exerce ainda hoje, além de dedicar- ça, entre 1950 e 1970, as vozes de Manu- sa ordem, conforme esperas e sofrências”, e vertendo os soldados em “tresandarilhos”. se a estudos de impacto ambiental el Bandeira, Drummond, Graciliano Ra- o tempo presente se resolve. Finalmente, os Encarregado de conter a doença, que em Moçambique. Estreou na litera- tura com o livro de poesia Raiz de mos, Jorge Amado e tantos outros apor- mortos podem ser sepultados pela segunda os moradores do lugarejo atribuem a um orvalho, em 1983 e, três anos de- taram em Moçambique, para semear ali a vez, com as devidas cerimônias. “mau-olhado”, o médico português pois, lançou seu primeiro livro de gênese de uma identidade lingüística ain- Um cadáver abandonado a céu aberto, Sidônio Rosa esconde outro motivo para contos, Vozes anoitecidas. Desde da carente de matizes que pudessem dis- um elefante agonizando na savana, em estar ali, uma saudade chamada Deolinda. então, freqüenta diversos gêneros tingui-la do português colonial. Terra sonâmbula, são variações do mes- O nome dessa mulata atravessa o livro da prosa — de romances, contos e Dessa partilha que transcende a dimen- mo retrato de um país acometido pelo fan- como uma segunda neblina, uma sombra novelas, a histórias infanto-juvenis e são da língua e toca o fundo de um paren- tasma da guerra bem depois de a guerra que acompanha seus personagens, crônicas. Considerado um dos escri- tesco mágico, deriva o encontro de alma haver terminado. Tuahir diz ao pequeno miscigenando lembranças de um passado tores moçambicanos mais conheci- especialíssimo de Mia Couto com Guima- Muindinga: “eu vivi num tempo em que o cujo verdadeiro nome é o de uma terra dos internacionalmente, tem seus li- rães Rosa. Em um sertão que desemboca amor era uma coisa perigosa. Tu vives num perdida. Sidônio não esquece o caso de vros traduzidos para o alemão, fran- em savana, levanta-se agora, mais uma vez, tempo em que o amor é uma coisa estúpi- amor que teve com a mulata durante um cês, inglês, italiano e catalão. Em 1999, conquistou o Prêmio Vergílio a flor mestiça, re-encantada em cores de da”. Órfão de pai e mãe, Muindinga cum- congresso em Lisboa, e viaja à sua procu- Ferreira, pelo conjunto da obra e, no beleza universal. Tudo o que Mia Couto pre o destino de escapar de muitas mortes, ra, no fundo, para resgatar a si mesmo. Os ano passado, o Prêmio União Latina reconhece marcar a experiência de recria- e ser, como Kindzu, um portador da paz. velhos Bartolomeu e D. Munda tampouco de Literaturas Românicas. Entre ção da escrita em Guimarães, podemos tam- Com o corpo doente de “mantakassa”, o esquecem Deolinda, que partiu “para fora” seus títulos mais consagrados estão bém reconhecer em seu trabalho, bem en- veneno da mandioca apodrecida, é salvo deixando na casa a ausência de uma fi- Terra sonâmbula (1992), seleciona- tranhado nos sais da terra moçambicana: de sua primeira agonia pelo velho Tuahir lha. Aqui tem início a travessia do roman- do pelo júri da Feira Internacional do o uso de “neologismos, da desarticulação quando está prestes a ser atirado a uma vala. ce, nas visitas diárias que Sidônio faz a Zimbabwe um dos doze melhores li- da frase feita, da reinvenção dos provérbi- Sua tarefa tem o peso de uma raça: escapar Bartolomeu, para tratá-lo de tristezas tão vros africanos do século 20, com o os, do resgatar dos materiais da oralidade”. da terra contaminada e proteger-se das en- venenosas quanto a epidemia da vila. qual obteve o Prêmio Nacional de Poetas por excelência, am- fermidades da alma, que se Na casa dos Sozinhos, as janelas estão Ficção da Associação dos Escritores bos são feiticeiros da lingua- abrem nas feridas invisíveis sempre fechadas. Bartolomeu e D. Munda Moçambicanos em 1995, O último voo do flamingo (2000), com o qual gem, desbravadores de uma Em Venenos de do medo, da loucura, da de- também se fecham, repetindo a escuridão obteve o Prêmio Mário António de pátria mítica em que nos des- deus, remédios do sesperança. Trata-se também do ambiente, doentes de “saudade da ficção, Um rio chamado tempo, uma cobrimos antes unidos por diabo, diferentes de outra orfandade, esta con- Vida”. Bartolomeu, trancado no quarto, casa chamada terra (2002), torna- um sonho que separados tra a qual luta o pequeno vive de remoer nostalgias da época do do filme pelo português José Carlos por diferenças de raça. identidades se Muindinga: a perda do en- colonialismo, quando trabalhava a bordo Oliveira e O outro pé da sereia Onde paira a névoa e, embaralham, canto das tradições, a derro- do transatlântico Infante D. Henrique. A que- (2006), pelo qual recebeu o Prêmio desde logo, qualquer prer- cada de um país pelo impé- da do regime colonial inaugurava o fim das Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Lite- rogativa de certeza se des- dissolvem rio da violência, o desprezo viagens, um novo tempo sem “partida nem ratura, na 12ª Jornada de Literatura faz, é o sonho justamente pressupostos dos homens por um sentido chegada”, por isso os cravos vermelhos de em Passo Fundo (RS), em 2007. que aparece e se propaga de comunidade. 1974, para ele, nunca foram símbolo de fes- como elemento fundador históricos e No livro, a proclamação ta, mas sinal de despedida. D. Munda, fe- das viagens nos livros de preconceitos de da Independência de chada em si mesma, chora ritualmente to- Mia Couto. Em Terra so- raça, familiarizam- Moçambique torna-se um dos os dias, e “arruma no vazio das prate- nâmbula, a névoa está por de seus personagens fantás- leiras o vazio que está dentro dela”, na ta- toda parte. Uma estrada se na solidão. ticos: Vinticinco de Junho, refa de enterrar as alegrias. Sidônio Rosa, arrasada pela guerra, a car- o Junhito, irmão menor de apesar de médico, não tem a cura para essa caça de um automóvel in- Kindzu. Para ser poupado doença de “solitária lonjura” dos velhos; trecho • Terra cendiado, uma misteriosa mala ao lado de da morte que o pai lhe sentencia em uma ele próprio, aliás, sofre de uma saudade sonâmbula um cadáver: eis toda a paisagem, ou quase. de suas predestinações, Junhito é encerra- parecida, uma espécie de inexistência para Um baobá ali de pé dá sinais de que a terra do em um galinheiro, disfarçado com um a qual o único remédio é voltar a sonhar. O adivinho olhou a terra como se não definhou completamente, que ainda ser- saco de penas, e aos poucos vai desapren- Em Venenos de deus, remédios do di- dele dependesse o destino do univer- ve de refúgio. Nesse lugar, a meio de um ca- dendo a falar. Desaparece certa manhã, sem abo, diferentes identidades se embaralham, so. Pesava nos seus olhos a gra- minho, instalam-se Muindinga e Tuahir, so- deixar rastro, para ressurgir aos olhos de dissolvem pressupostos históricos e precon- víssima decisão de criar um outro dia. breviventes de um país em luto. Nada se move Kindzu em uma capoeira improvisada den- ceitos de raça, familiarizam-se na solidão. (...) Então, levantando o seu cajado, enquanto eles não enterram seus mortos. tro de um tanque militar. Apenas concreti- O estrangeiro não se traduz mais como sentenciou: Dentro da mala, uma herança os aguar- zada a travessia, na última fábula do diário, aquele que vem de fora, senão como quem — Que morram as estradas, se da: os cadernos manuscritos de Kindzu, um Junhito finalmente se humaniza, embalado perdeu seu convívio com a terra — o reco- apaguem os caminhos e desabem as menino nascido no seio da guerra, cujo pelo som de uma canção. nhecimento, em si mesmo, de uma pátria. pontes! nome é o mesmo “que se dá às palmeiritas Merece um destaque à parte, no roman- “Afinal, os homens também são lentos pa- Depois, começou o discurso, des- mindinhas, essas que se curvam junto às ce, a estória de Nhamataca, filho de um íses. E onde se pensa haver carne e sangue fiando palavras lentas, rasgando a voz praias”. Com efeito, as palavras dessa cri- amor durante a “estação das brumas” en- há raiz e pedra.” Sidônio Rosa se esquiva de encontro ao vento: ança lançam raízes e plantam no pequeno tre um homem e uma mulher, em margens do abraço de D. Munda para evitar “um — Chorais pelos dias de hoje? Pois Muindinga a memória de um passado que opostas de um rio, que as águas acabam trânsito de alma”, Bartolomeu Sozinho sim- saibam que os dias que virão serão ain- lhe falta, desabrocham no velho Tuahir sua por unir em uma jangada. Mia Couto nar- plesmente desiste, porque o “amor envelhe- da piores. Foi por isso que fizeram esta capacidade de sonhar. Começa aqui a via- ra um episódio familiar no conto Nas águas ceu”. Amigos de infância, Bartolomeu e guerra, para envenenar o ventre do tem- po, para que o presente parisse mons- gem. Das águas para a terra, desde as pági- do tempo, de Estórias abensonhadas: um Alfredo Suacelência, administrador da Vila tros no lugar da esperança. Não mais nas de uma ilíada, os dois andarilhos em- velho que ensina seu neto a enxergar por Cacimba, agora rivalizam, por razões polí- procureis vossos familiares que saíram preendem sua odisséia da estrada para o trás do nevoeiro o vulto que lhes acena um ticas já cansadas de guerra. para outras terras em busca da paz. mar, traçando, sem saber, um itinerário de pano branco. O avô segreda a lição: “nós Com a mentira a serviço da fábula, a Mesmo que os reencontreis eles não vos volta a casa: o pertencimento a uma nação temos olhos que se abrem para dentro, es- mestiçagem de corpos e de almas, viagens e reconhecerão. Vós vos convertêsteis que por muito tempo esteve esquecida, ocul- ses que usamos para ver os sonhos. O que cartas inventadas, Mia Couto recupera, neste e em bichos, sem família, sem nação. ta sob o sono e sob as armas. acontece, meu filho, é que quase todos es- em seus outros livros, o poder do sonho e a Porque esta guerra não foi feita para vos tão cegos, deixaram de ver esses outros que necessidade do mito, questionando noções de tirar do país mas para tirar o país de den- Palavra fabulosa nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos pertença e ilusões de pureza de raça. Como tro de vós. Agora, a arma é a vossa Tal como Kindzu recebe de um adivi- acenam da outra margem”. Como diz disse em sua intervenção na cerimônia do Prê- alma. Roubaram-vos tanto que nem nho o “amuleto dos viajeiros” para come- Kindzu, em Terra sonâmbula: “O sonho mio Internacional dos 12 melhores Roman- sequer os sonhos são vossos, nada de çar sua jornada e curar-se “das leis, mandos é o olho da vida. Nós estávamos cegos”. ces de África, para o qual foi selecionado com vossa terra vos pertence, e até o céu e e desmandos”, Muindinga e Tuahir recebem É então, para voltar a ver, que o menino seu romance Terra sonâmbula, em 2002: “Os o mar serão propriedade de estranhos. a palavra fabulosa que os vai libertando da guarda suas fantasias no bojo de uma via- escritores moçambicanos cumprem hoje um (...) No final, porém, restará uma ma- “miséria de existir pouco”. E quanto mais gem, as páginas do seu diário transforma- compromisso ético: pensar este Moçambique nhã como esta, cheia de luz nova e se avançam na leitura dos cadernos, mais a das em páginas de uma estrada. e sonhar um outro Moçambique. (...) Estamos escutará uma voz longínqua como se paisagem em torno deles se transforma. É a aguardando pelo renovar de um estado de fosse uma memória de antes de ser- estrada que caminha, enevoada, diluindo os Epidemia paixão que já experimentamos, esperamos pelo mos gente. (...) Aceitemos morrer contornos de uma dura realidade, por den- Tons mais sóbrios marcam a paisagem reacender do amor entre a escrita e a nação como gente que já não somos. Deixai tro se fazendo fértil para a colheita do futu- de Venenos de deus, remédios do diabo, enquanto casa feita para sonhar. O que quere- que morra o animal em que esta guer- ro. Povoam-se de árvores as estórias de o romance recém-lançado de Mia Couto. mos e sonhamos é uma pátria e um continen- ra nos converteu. Kindzu — canhoeiros, massaleiras, cajuei- Sob uma névoa que agora batiza e cobre te que já não precisem de heróis”.•r 36 rascunho 100 • AGOSTO de 2008

VOZES PORTUGUESAS  Onde a história SE REPETE

PREDADORES, de , mostra que temos mais em comum com os países de língua portuguesa que apenas o idioma

ADRIANO KOEHLER • CURITIBA – PR mos ao longo da narrativa. É através de ência diminuírem à medida que o século os brasileiros somos, ainda que contando a Vladimiro, de seus filhos, em especial da 21 avança. De temido e poderoso, Caposso realidade de um outro país. O livro faz par- Há muita con- filha predileta, Mireille, do antigo preten- passa a ser menosprezado pelos novos ocu- te do projeto da coleção Ponta-de-lança, apoi- trovérsia quando dente de sua filha, Nacib, e de alguns ou- pantes do poder e deixado de lado pelos ada pelo Instituto Português do Livro e das alguém afirma que tros personagens importantes, mas não tão antigos sócios. De um homem capaz de Bibliotecas, de trazer aos leitores brasileiros a origem de todos presentes à narrativa que acompanhamos a comprar a sua segurança e ignorar o povo outros autores lusófonos. Como bem diz a os males do Brasil história de Angola. ao redor, Caposso passa a ser um homem explicação do projeto, “não se entende o está na coloniza- que vive de seu passado, sem conseguir ter Brasil sem a África ou Portugal, da mesma ção portuguesa. Construção da história forças de mudar o seu futuro. São os ven- maneira que não se entende Angola ou Cabo Quem é a favor Pepetela, no entanto, não nos entrega a tos novos da civilização e da boa gover- Verde sem a participação do Brasil”. r desta afirmação história cronológica de mão beijada, e vai nança que vão diminuindo o poder dos • normalmente le- indo e voltando no tempo para contar os antigos aproveitadores do estado. vanta a voz dizen- fatos do seu país e de seus personagens. O o autor do: “olha como o primeiro capítulo do livro acontece em se- Ficção e realidade Sul do Brasil é di- tembro de 1992, um pouco antes das pri- Ainda que seja uma criação ficcional, PEPETELA é o pseudônimo de Artur Carlos Maurício Pestana. Ele nasceu ferente, lá os itali- Predadores meiras eleições do País desde a independên- Caposso teria tudo para ser um personagem Pepetela em Benguela, Angola, em 1941. Em anos e alemães de- cia, em que a maior parte dos angolanos verdadeiro, seja em Angola seja no Brasil. 1958, parte para Lisboa, onde ingres- Língua Geral Predadores ram outro tom à 552 págs. ligados ao regime totalitário e enriquecidos Talvez o mais assustador em é sa no Instituto Superior Técnico (En- sociedade” (meu graças a ele levava para aonde podiam to- reconhecer em Caposso uns tantos homens genharia), que freqüenta até 1960. comentário pesso- das as suas riquezas, com medo de retalia- de negócios cujo sucesso viceja à sombra Em 1961, transfere-se para o curso al é que só se foram os italianos do passa- ções caso a oposição vencesse. Deste ponto do poder público. Assustador porque vemos de Letras. Neste mesmo ano aconte- do. Os do presente, liderados por Berlusconi, inicial, em que vemos Caposso muito rico, a história se repetir, com personagens dife- ce, em Luanda, a revolta que origina são uma tragédia). Claro, quem é a favor com dinheiro no exterior, com serviçais rentes, em vários lugares. A ficção é muito a Guerra Colonial. De retorno ao país, disso esquece todos os problemas com vários dispostos a qualquer serviço para seu próxima da realidade, muito provavelmen- em 1963, o autor se junta ao MPLA. corrupção, com burocracia e ineficiência do patrão, quase uma repetição do sistema es- te devido à experiência pessoal de Pepetela. Entre 1960 e 1970, ele freqüenta a estado que estão distribuídos de maneira cravo que havia no Brasil, Pepetela vai usan- O escritor combateu como guerrilheiro da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, berço dos ideais de indepen- igual por todo o nosso país. do a trajetória de seus personagens para MPLA pela independência. Ele também foi dência. Exilado na França e na Argé- No entanto, quando se conhece a reali- construir a história da Angola. membro do governo de Agostinho Neto, lia, posteriormente gradua-se em So- dade das outras ex-colônias portuguesas e O caminho percorrido por Caposso é primeiro presidente da república. Pepetela ciologia. Com a independência de seu até mesmo de Portugal, torna-se evidente que emblemático de uma classe que surgiu em deve ter conhecido vários Caposso ao lon- país, em 1975, Pepetela é nomeado não há o que negar: somos portugueses ain- diversos países colonizados por europeus go de sua vida, e sua narrativa, ainda que Vice-Ministro da Educação no gover- da hoje. Claro, Portugal, desde que se inte- logo após a sua independência (e neste pon- imaginada, deve ser uma coletânea de per- no de Agostinho Neto. Em 1997, re- grou à União Européia, deu saltos gigantes- to, temos que lembrar que os italianos do- sonagens verdadeiros. E há esperança na cebe o Prêmio Camões pelo conjunto cos rumo à civilização. Mas não se pode dizer minaram o que hoje é Etiópia, Eritréia e sua história, pois junto aos Caposso há tam- da sua obra. O Brasil reconhece seu o mesmo de suas ex-colônias. Se o leitor Somália; que os alemães tiveram o que hoje bém os Nacib, jovens inteligentes que apro- talento em 2002, quando lhe outorga quisesse conhecer algumas das similaridades é Tanzânia, Ruanda, Burundi, Namíbia e veitam todas as chances para crescer de a Ordem do Rio Branco. Atualmente é que temos com Angola, Moçambique, Cabo Togo; os ingleses outro tanto, os belgas tam- maneira honesta, sem procurar os atalhos professor de Sociologia da Faculdade de Arquitetura de Luanda, onde vive. Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe e bém, os franceses também, e pouquíssimos ilícitos que parecem tão mais fáceis. Outros trabalhos seus são Mayombe Timor Leste, este já seria um ótimo motivo em boa situação. Ou seja, a teoria de que O vaivém de Pepetela, longe de atrapa- (1980), Geração da utopia (1992), O Predadores Predadores para se ler , do angolano Pepe- os europeus que vieram ao Sul do Brasil lhar a leitura de , contribui para desejo de Kianda (1995) e Jaime Bun- tela, um dos mais conhecidos e respeitados produzem uma sociedade diferente é um tornar as 552 páginas do livro em um passeio da, o agente secreto (2002). autores africanos da atualidade. tanto quanto falha). Caposso, desde o iní- altamente prazeroso, em que não sentimos o Ler o livro é como repassar a história cio da guerra pela independência, não quer tempo passar. Pepetela vai deixando o leitor ruim do Brasil de maneira rápida e con- se meter com política; prefere ficar na loja ansioso por iniciar logo o novo capítulo para densada, em que os nossos quase 200 anos de Sô Amílcar, um português que acaba que saibamos o que acontecerá com nossos trecho • Predadores de independência são percorridos nos pou- permanecendo em Angola mesmo após a personagens e com o país onde vivem, e as- co mais de 30 anos da independência an- família ter retornado a Portugal. Quando sim as páginas vão sendo devoradas, como Caposso deixou de ter medo da golana, que data de 1975. Predadores é a independência é conquista pelo Movi- diz o escritor Francisco Nunes, na contracapa sarna no ano seguinte, o da abenço- um quadro épico, daqueles que contam a mento Popular de Libertação de Angola do livro. E são devoradas mesmo, temos ân- ada independência. As coisas evo- história de uma civilização. Felizmente, (MPLA), Caposso percebe que é necessário sia de saber o que acontecerá. luíram progressivamente, como a Pepetela não se prende aos heróis dos li- se filiar ao partido para conseguir ter aces- Outro detalhe interessante do livro é que, aguazinha da fonte que vira regato e só muito mais tarde se transfor- vros de história, mas aos personagens do so a alguma chance de melhoria de vida. de vez em quanto, Pepetela se mete no meio ma em rio. Uma semana antes da nosso cotidiano, que estão ao nosso lado Para isso, ele inventa uma origem, recria o de seu texto para nos dizer alguma coisa, data fixada para a independência, agindo com mando e desmando, ao sabor seu nome, que de José passa para Vladimiro, seja para nos dar um conselho a respeito de sô Amílcar pediu para o acompanhar dos ventos. E como o livro é muito bem em homenagem ao líder russo, reinventa a flashbacks e flashforwards, seja para interrom- a casa, depois de fechada a loja, se escrito, temos a impressão de estar vendo história de seu pai, que de enfermeiro sem per nosso pensamento quando ele está para não te importares. Já tinha aconte- uma caricatura do Brasil, um outro país, diploma passa a lutador por melhores con- cair em algum lugar-comum da literatura, cido umas vezes, para algum peque- infelizmente tão real quanto o nosso, em dições de vida da população, marxista fer- seja apenas para dar um recado sobre um no serviço mais pesado que o velho que o jeitinho, o compadrio, o suborno, o renho — daí o nome do filho — e perse- personagem que lá na frente do livro se tor- desconseguia de fazer, coisas sem uso do poder e do dinheiro público para guido pelos portugueses, tudo isso para con- nará importante. Estas breves intervenções, importância. Vivia sozinho, a mulher fins próprios são a regra e não a exceção. seguir algo mais para si. longe de quebrar o ritmo, parecem colocar- tinha ido para a Europa anos atrás Predadores, se colocarmos o livro em Desse momento em diante, Caposso en- nos diante do autor, em um diálogo que com as três filhas, cansada de tan- uma ordem cronológica, conta a história riquece, sempre às custas do estado angola- normalmente não ocorre. to calor e paludismo, até tinha fica- de Angola de 1974 a 2004, através dos atos no. E, como se fosse a cumprir um ditado Enfim, Predadores, lançado original- do verde e o fígado em papa comas e fatos de Vladimiro Caposso, um persona- em que tudo o que sobe tem que descer, mente em 2005 em Angola e Portugal, é febres, dizia ele. gem cujas ascensão e queda acompanha- Caposso vai vendo o seu poder e sua influ- um grande livro, esclarecedor sobre quem 100 • AGOSTO de 2008 rascunho 37

VOZES PORTUGUESAS 

RONALD ROBSON • SÃO LUÍS – MA

A fim de abordar com maior sutileza o romance mais recente da portuguesa Inês Pedrosa, A eternida- de e o desejo, faço um breve preâmbulo que poderá Língua ser de alguma utilidade mais à frente.

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Anglófilos, com alguma razão, costumam criticar a literatura francesa pelo que ela possui de prolixa, de vazada, de — vá lá — inexata por razão da própria elasticidade da língua em que é escrita. Afinal, é a FROUXA matéria de que são feitos os romances de Proust e a que foi buscada por escritores de tradição anglo-saxã como Samuel Beckett, cujos personagens possuíam Por que INÊS PEDROSA não passa de mais uma escritora uma verborragia psicológica difícil de ser traduzida no idioma inglês (refiro-me, obviamente, a seus ro- empenhada em fragilizar o idioma que lhe serve de instrumento mances). Sei que é necessário fazer a ressalva de que, no século 20, a Inglaterra chegou a ter um Auden e um Geoffrey Hill (ainda vivo): poetas de fluência oral menos rígida. Mesmo T. S. Eliot era alguém — ao E o que dizer de Inês Pedrosa? Pouco mais, porém à O livro está repleto de parágrafos tão disformes contrário do que crêem os que lhe louvam o verso altitude mais baixa. Podemos começar a traçar um perfil da quanto esses excertos. Aqui, retorno ao que expus no livre — que utilizava a métrica francesa na língua escritora a partir de um conto da coletânea Fica comigo início deste texto: Inês Pedrosa é só mais uma escrito- inglesa, forjando um tom elevado porém simples, sem esta noite (Editora Planeta, 2007). Escolho, ao acaso, a ra empenhada em minimizar o nível de precisão da paralelo na literatura dos últimos cem anos. Agora, narrativa que abre o livro: Só sexo. Antes de dizer palavra língua portuguesa por meio de uma literatura “arre- vejamos como esse raciocínio pode ter relação mais qualquer sobre o conto, deixo que o leitor mesmo perceba, batada”, escrita a rédeas soltas, ilimitada em sua imediata com o que importa descrever nesta crítica. em contato direto com um trecho seu, o que de pior há, irresponsabilidade diante da sonoridade, do sentido A gramática francesa. Fora o fascínio que, de ime- não só nesse, mas em todos os livros de Inês Pedrosa: e, sobretudo, da pieguice que palavras mal selecionadas diato, a França veio a exercer no Brasil por meio da podem carregar. Há coisas ridículas como “no seu força intrínseca à sua cultura — nossa literatura prin- Tu eras um pintor e já não ias ser pintor. Lia nos meus olhos que corpo aprendi a saborear o desejo infinito” ou “o nau- cipiava a ganhar força (1910, 1920) quando Paris já não ias ser pintor. Só com o tempo foste lendo o resto, o resto dos frágio do meu coração”. A literatura de Inês Pedrosa ainda era a capital artística do mundo —, um fator restos que era tudo: que eu sabia que tu eras pintor. O artista do sugere a imagem de uma piscina de plástico em for- em especial catalisou a influência da língua gálica meu corpo secreto, uivante, um tecido de fios de luz que só os teus ma de coração fazendo água por todos os lados. por aqui: a sua proximidade sintática e lexical com dedos acendiam, e rios, rochas, relvados amaciados pela tua lín- Pouco há o que comentar a respeito da entrada de o português. Não fosse a ubiqüidade do inglês, ain- gua, uma asa à medida do teu voo, uma casa em que tu moravas de personagens como Emanuel ou das descrições de igre- da hoje seria mais fácil a uma criança aprender o todas as maneiras. jas históricas e cultos de religiões afrodescendentes. francês que o inglês. Portanto, e apesar de não ter- Prefiro, por fim, realçar a imaturidade da escrita de mos tantas oxítonas para estender ainda mais a nos- A essa altura, talvez o leitor esteja se perguntando por Inês. Desta vez, uma imaturidade mais primária. sa fala, o português também possui sua quota de que não só pus um grande “Oh!” no lugar das palavras falatório injustificado, de blablablá que se alonga acima, já que sua substância pouco mudaria e ainda se eco- ••• para além do que seria estritamente necessário para nomizaria espaço. Alguém que se permite a deselegância de se dizer o que de fato se quer dizer. escrever algo como “o artista do meu corpo se- possui dois textos iluminadores Assim, assoma um panorama em que creto” tem tudo para ser um ótimo redator de — que, sendo sobre Clarice Lispector, nos dizem mais se pode dispor, com conforto e tranqüili- perfis do Orkut, com direito a fotos estilo Clarice sobre o que seja um bom escritor — que podem nos dade, um contraste que parece só se acen- Lispector no álbum e tudo mais. No entanto, ser úteis aqui. Foram publicados em 1944, na Folha de tuar com o passar das gerações. Ninguém chegar a ser um nome representativo de uma sa- S. Paulo, ainda sob o impacto do lançamento de Per- irá negar que já aquele que inventou a nós, fra de escritores com contos escritos neste estilo to do coração selvagem (esses artigos podem ser con- Luís Vaz de Camões, sabia como sinteti- — o detalharei logo — é o mesmo que ser uma sultados na coletânea “Figuras do Brasil — 80 auto- zar em poucos versos — de uma econo- grotesca piada com cabeça, tronco, membros e res em 80 anos de Folha”, organizada por Arthur mia sintática cristalina — coisas que um um teclado de computador na mão. Nestrovski e lançada, em 2001, pela Publifolha). prosador só poderia descrever em páginas É preciso detalhar a trama do conto? Nada. É Do primeiro dos dois artigos, intitulado Língua, e páginas, ainda que, ao fim, nem chegasse só uma mulherzinha relembrando sua paixão de Pensamento, Literatura, é proveitoso transcrever o se- a se aproximar da impressão deixada pela juventude. Aliás, isso pode servir de definição guinte trecho inicial. Nele é descrito o mesmo tipo de versão camoniana (aqui, aliás, nem vale para boa parte do que escreve Inês Pedrosa. São “imaturidade” que vejo na escrita de Inês Pedrosa: lembrar o desnível de precisão entre prosa e textos geralmente narrados por uma voz femini- poesia). Eu sei que há poucas coisas tão in- A eternidade e o desejo na, em primeira pessoa, que não se cansa de re- É sabido que uma das tragédias de quem escreve em convenientes hoje ao leitor brasileiro cool Inês Pedrosa correr a metáforas — que apenas se pretendem português é o fato de a nossa ser uma língua que, a bem quanto ler uma estrofe de Camões. Mas Alfaguara líricas — incapazes de ocasionar outra coisa que dizer, ainda não foi suficientemente polida pelo pensamen- 181 págs. peço licença para mostrar como se pode não um cheiro pestilento de breguice. Assim, é to. O português ainda não foi suficientemente pensado, como dizer muito com muito pouco e sem neces- Inês também uma repentista de metáforas embas- as outras línguas européias. Ora, os vocábulos são como os sitar da secura de um João Cabral de Melo Neto. Eis, bacadas, porém o é com um toque peculiar: as referências seixos dos rios. A princípio, duros e ásperos calhaus cheios abaixo, uma estrofe de Os lusíadas, em que é descrita ao “corpo em êxtase”, o corpo em forma de “Oh!”. de pontas e arestas. A água, todavia, passa longa e pacien- a morada de Netuno no fundo dos mares: temente sobre eles. Os anos sucedem aos anos, e os seixos vão Decepção se arredondando, as suas anfractuosidades se atenuam, toda No mais interno fundo das profundas Mas aquele que tomar A eternidade e o desejo em mãos a pedrinha como que amacia e se torna um pequeno bloco Cavernas altas, onde o mar se esconde, sofrerá uma decepção que vai bem além da que foi descrita polido, doce ao contato e à vista. Também as palavras so- Lá donde as ondas saem furibundas, e exemplificada acima. Isso, pelo fato de que a idéia que frem esta erosão; no seu caso, da corrente do pensamento. Quando às iras do vento o mar responde, originou o livro poderia ter rendido uma obra-prima, se Neptuno mora e moram as jucundas desenvolvida por uma imaginação menos limitada. Em re- Logo em seguida, Antonio Candido diz sentir Nereidas e outros Deuses do mar, onde sumo, é a história de Clara, uma portuguesa cega que volta falta, nas literatura portuguesa e brasileira, do “pen- As águas campo deixam às cidades a Salvador (cidade onde havia perdido a visão) acompa- samento literário — característico dos escritores que, Que habitam estas úmidas deidades. nhada de um certo Sebastião — o qual a ama, embora não não sendo filósofos nem homens de ciência, possu- seja correspondido. Ali, Clara refaz com um grupo de turis- em contudo um certo cabedal de idéias cuja expres- Quando alguém aprende a dizer algo próximo de tas o itinerário do Padre Antônio Vieira no Brasil. Antô- são depende estritamente da beleza e da justeza “Lá donde as ondas saem furibundas”, com toda es- nio, por sinal, era o nome daquele seu antigo amante, por vocabular”. E cita como exemplos um Carlyle e um sas nuanças musicais e precisão silábica, não é mais conta do qual foi fatalmente ferida por uma bala que atin- Leopardi, quase que se desmentindo ao dizer que necessário buscar o mesmo em Coleridge ou em Pope. giu seu nervo óptico. encontra uma genuína busca daquele “seixo polido” Dessa forma, a narrativa se alterna — em primeira pes- no livro de Clarice Lispector: ora, como poderia en- ••• soa... — entre a voz de Clara e a de Sebastião, as quais são contrar lá, se Clarice apenas arrasta a língua atrás do intercaladas por citações de sermões de Antônio Vieira. É pensamento, sem deixar que este dome aquela? É curioso, portanto, que, embora a literatura portu- bastante perceptível, diga-se logo, que o que de melhor há Assim, somo a idéia do “português ainda não sufici- guesa tenha nascido com um Camões a lhe ensinar a no livro a autora sequer escreveu: são as palavras daquele entemente pensado” à do “português verborrágico” de exata medida da duração de uma frase em relação a que Fernando Pessoa chamou de “Imperador da Língua que falei anteriormente. Onde encontrar Inês Pedrosa aí? seu sentido, no último século ela tenha caído na mãos Portuguesa”. A Inês Pedrosa, no entanto, resta ao menos o É simples: sua literatura não é propriamente uma coisa de escritores que, para ser razoável, não posso chamar mérito de as ter escolhido bem. Agora nos encaminhemos nem outra, mas uma fusão tosca das duas carências. Inês de menos que repentistas de metáforas embasbacadas. ao que mais interessa: por que nada funciona no romance. não sabe exprimir o turbilhão emotivo de suas persona- Se, como pensava Jorge Luis Borges, as nações costu- Inês Pedrosa não está à altura do que se propôs a fazer. gens sem recorrer a um rebaixamento papa-léguas da lín- mam escolher como seus representantes os escritores Por exemplo, poucas coisas são tão inadequadas em seu gua. Talvez o leitor ache que eu esteja levando a sério que menos as representam, como se suprissem uma livro quanto a opção pela narrativa em primeira pessoa. A demais sua literatura ao fazer uma leitura tão ampla. Mas falta, é lícito pensar que, cada vez mais (a julgar pelas todo o momento, Clara tem de dizer algo como “Sebastião as coisas — este é o ponto crítico — ficam realmente últimas décadas e pela presente), Camões ocupará uma me disse que viu isso”, “Sebastião parece ter feito não sei o sérias quando percebemos que Inês Pedrosa é só uma entre morada acima nas letras portuguesas. que”, “Sebastião não conseguiu me descrever tal coisa”, fra- uma turminha de escritores de língua portuguesa que só Veja-se, por exemplo, o prêmio Nobel de nossa lín- ses a que se seguem tediosos comentários sobre o que essas sabem fazer isto: pensar errado em escrita frouxa. É preci- gua. José Saramago, com seus parágrafos em blocos, imagens que ela não pode ver lhe fazem sentir. Quanto a so, pois, comparar não só a portuguesa Inês Pedrosa, mas empilhados com uma linguagem cuidada mas por ve- Sebastião, o artifício é menos forçado por ele poder dizer também o moçambicano Mia Couto e o brasileiro Sér- zes gelatinosa, só consegue realmente se aproximar da simplesmente que viu algo belo, de forma direta, e não que gio Sant’Anna, a exemplo, com um inglês como o Ian grandeza que lhe é imputada quando desenrola longos alguém viu para ele tal coisa, de forma indireta. No entan- McEwan de Reparação. Sei que é covardia. É como pôr diálogos, mesmo que entre personagens nem tão bem to, mesmo assim ainda há diálogos constrangedores — prin- um grupo de pivetes a desafiar o King Kong. Isso, não construídos. Saramago, todavia, de modo algum chega cipalmente quando a nível psicológico — que se originam a obstante, não deixa de sugerir um remédio: o casto a ser um caso à parte. Outro nome bem referenciado partir da voz dele. Como este: chicotinho da língua de Camões. r entre a crítica e que sofre de mal semelhante — o mal de • não saber onde se deve conter a língua e deixar que a Perguntas-me: sugestão se instaure — é António Lobo Antunes. O autor — Como no filme do Visconti? a autora de Eu hei-de amar uma pedra, com todo o seu sêmen e Que filme do Visconti, Clara, parece que viste todos os filmes do INÊS PEDROSA nasceu em Coimbra, Portugal, em agosto frases escritas ao melhor estilo blusa-de-botões-abertos, mundo, estou sempre em falta, sei sempre menos, não, Clara, não de 1962. Trabalhou na imprensa, no rádio e na televisão, com aquela apologia canhestra da vida vivida ao ex- vi O Intruso, conta-me. e é colunista do semanário português Expresso. É autora tremo, etc., quer a todo o momento levar o leitor a de contos, crônicas, ensaios biográficos e antologias, e pu- uma situação de arrebatamento, de desmanche, como Outro exemplo, desta vez nas palavras de Clara: blicou os romances A instrução dos amantes (1992), Nas se quisesse soar em nossas almas as flatulências de uma tuas mãos (1997) — vencedor do Prêmio Máximo de Lite- vagina. Para esse tipo de literatura, no Brasil, já há até Pergunto-me se posso ir à casa de banho tomar um banho ou se ratura — e Fazes-me falta (2002). A eternidade e o dese- uma gíria específica, muito corrente entre nossos “inte- queres tu ir primeiro. Respondes-me, num fio trêmulo de voz, que jo é o seu primeiro livro ambientado no Brasil. lectuais” mais jovens: “esse livro é porrada”. posso ir eu. Depois indagas se (...) 38 rascunho 100 • AGOSTO de 2008

VOZES PORTUGUESAS  A criança na cidade em guerra OS DA MINHA RUA, de Ondjaki, é um agradável passeio por brincadeiras e preocupações da infância

ANDREA RIBEIRO • CURITIBA – PR uhuuu”, gritávamos e dançávamos alegremente “Uma pirueta, duas de esferivite no chão. Isso só podia significar uma coisa: havia material novo piruetas, bravo, bravo!” (Os saltimbancos trapalhões). Era tempo naquela casa, podia ser fogão, geleira ou outra coisa qualquer [...]. Eu não tive uma rua que pudesse de alegria, diversão e um pouco de escola no meio. chamar de minha. Tive tantas que te- Acontece que a infância acaba. E de uma hora para outra. Durante todo esse período de guerra, as maiores influências no nho dificuldade em lembrar exatamen- Ficam as lembranças e a imaginação. E é essa a matéria-prima país eram de soviéticos, cubanos e brasileiros. Professores de Cuba te de seus nomes, suas cores, seus chei- que o escritor africano Ondjaki usa para construir Os da minha permeiam as histórias de Ndalu, os soviéticos aparecem na cons- ros. Mas lembro das histórias, quantas rua, livro de se devorar de uma vez só enquanto as lembranças do trução civil, nas obras. E os brasileiros, nas telenovelas e na músi- histórias! Só não sei se tudo o que me autor se misturam com as de quem lê, formando um emaranhado ca. Nas histórias de Os da minha rua, a novela da vez, a que mais lembro aconteceu mesmo ou inventei. de emoções e de saudade de um tempo que só volta na imagina- empolgava os angolanos, era Roque Santeiro. Ndalu e seus amigos Não dá mais para saber, agora. Tantos ção. São 22 histórias que, juntas, formam um agradável passeio não perdiam um capítulo. Nem mesmo as três filhas do senhor anos e a memória se confunde um pou- por aquelas brincadeiras e preocupações de crianças. As aulas e Tuarles, que viam muito, muito mal. Apenas uma delas tinha ócu- co com a imaginação. os bilhetinhos passados às escondidas, os amigos, as festas, as los, que revezava com as outras para poderem enxergar melhor as Minhas lembranças mais antigas, novidades, as obrigações e a parentada. Sempre tem a parentada. extravagâncias da viúva Porcina, do Sinhozinho Malta e do Lobi- com histórias completas — provavel- somem. As músicas de Roberto Carlos também estavam presentes. mente todas verdadeiras, com um flo- Escrita simples Ndalu sempre as ouvia quando ia à casa de tia Rosa, sua madrinha. reado aqui e outro ali para dar mais Os da minha rua Aliada às deliciosas e líricas histórias, a linguagem é mais um Lembranças de piás também são cheias de poesia, de lirismo. E emoção —, são as de quando tinha 9 Ondjaki trunfo de Os da minha rua. Tudo é contado pela perspectiva do isto não passa incólume pelo livro de Ondjaki. Em uma das históri- para 10 anos. Foi nessa época que ga- Língua Geral narrador, Ndalu (o próprio Ondjaki). E com escrita simples, bas- as, Nós chorámos pelo cão tinhoso, quase sentimos as lágrimas do pe- 155 págs. nhei minha primeira bicicleta sem tante carregada de oralidade e bem própria da idade do narrador. queno narrador, quando teve a incumbência de, na aula de português rodinhas. Era muito maior do que eu, “Nós, as crianças, vivíamos num tempo fora do tempo, sem nun- da oitava classe, ler o final do texto “Nós matámos o Cão Tinhoso”. mas era maravilhosa. Como minhas irmãs menores queriam me ca sabermos dos calendários de verdade. Para nós segunda-feira acompanhar em aventuras pelo bairro e eu não queria deixá-las era um dia de começar a semana de aulas e sexta-feira significava Os olhos de Ginho. Os olhos de Isaura. A mira da pressão de ar nos soltas (a irmã maior sempre tem que tomar conta das pequenas, que íamos ter dois dias sem aulas.” olhos do Cão Tinhoso com as feridas dele penduradas. Os olhos do Olavo. não é assim?), eu pegava um barbantão e amarrava a garupa na Nós, que conhecemos pouco a história africana (eu confesso Os olhos da camarada professora nos meus olhos. Os meus olhos nos bici da Lu, a minha irmã do meio (que só andava se as rodinhas de que pouco sei sobre o assunto), podemos ter um pouco de dificul- olhos da Isaura nos olhos do Cão Tinhoso. apoio estivessem lá), que era amarrada no tico-tico da caçulinha, dade para entender algumas referências. Mas só no início. Depois, Houve um silêncio como se tivessem disparado bué de tiros dentro da Mari. Eu corria, corria como o vento. A Lu gritava e a Mari, lá no todo aquele cenário vai se desenhando em nossa mente. A inde- sala de aulas. Fechei o livro. finzinho da corda, ficava toda ralada, por causa dos pedais que pendência de Angola, em 1975, culminou em uma guerra civil, Olhei as nuvens. batiam com força nos joelhinhos. Eu cuidando das pequenas... doída, sangrenta, que durou até os anos 90. Ndalu era criança nesta Na oitava classe, era proibido chorar à frente dos outros rapazes. Foi nesse mesmo ano que a Bia me deu, de aniversário, um LP época. Ria, apesar de muitos momentos não haver do quê. Ondjaki da Blitz (As aventuras da Blitz) que era proibido para menores. Eu não conta nenhuma história de guerra, de morte feia causada por E é assim, história a história, que Ondjaki desenha o tempo em era a única criança daquela rua (que, aliás, é muito próxima da que batalhas. Mas as referências à guerra estão lá. “Chegámos à casa do que era criança em uma cidade em guerra. Com elas, ajuda o leitor eu moro hoje, 13 ruas e 14 anos depois) que tinha o disco. Nenhu- sacana do Lima numa rua bem escura que era preciso cuidado a evocar as próprias, a seu próprio tempo. Com os dias que se ma festa começava sem minha presença. Eu me achava a última quando andávamos para não pisar nas poças de água nem na dibinga passavam. Com as aventuras do dia-a-dia se tornando lembranças. bolacha maria do pacote quando chegava ao evento, uns três discões dos cães. Eu ainda avisei a tia Rosa, ‘cuidado com as minas’, ela Boas lembranças. Saudades. Despedidas (“Despedida tem cheiro embaixo do braço. E aquele proibido era sempre o mais visível. não sabia que ‘minas’ era o código para o cocó quando estava assim de amizade cinzenta. Não sei bem o que isso é, nem quero saber. Não tinha uma festa que não tentássemos escutar as duas músicas na rua pronto para ser pisado.” Não havia também muita coisa Não gosto mesmo de despedidas.”). Até chegar a hora em que não que já vinham riscadas. As últimas do disco. Meu pai não deixava nova em Luanda. Nem para brincar, nem para ajudar na casa. se é mais criança. Um dia isso acontece. E acontece muito rápido. eu tentar ouvir, porque ia estragar a agulha da vitrola. Mas nas casas alheias não me preocupava com isso. De toda forma, não Entramos todos, mas até tenho que dizer aqui uma coisa. Nessa altura, A vida às vezes é como um jogo brincado na rua: estamos no último conseguíamos ouvir nada. Depois de algum tempo, passávamos às em Luanda, não apareciam muitos brinquedos novos nem coisas assim minuto de uma brincadeira bem quente e não sabemos que a qualquer mais conhecidas e a festa começava pra valer. O divertido daquela novas. Então nós, as crianças, tínhamos sempre o radar ligado para qual- momento pode chegar um mais-velho a avisar que a brincadeira já acabou época era que, com o mesmo delírio que ouvíamos “Geme, geme, quer coisa nova. Mal entrámos no quintal, vi uma caixa bem grande e restos e está na hora de jantar. a vida afinal acontece muito de repente.•r 100 • AGOSTO de 2008 rascunho 39 VOZES PORTUGUESAS  A terra além da vergonha

JOSÉ LUANDINO VIEIRA traz de Angola sua língua “periférica”, a descoberta do mundo precário e a riqueza do imaginário

PAULO BENTANCUR • PORTO ALEGRE – RS Mbundos, Mbakas, Ndongos, e Mbondos, gru- bastidores do que a civilização supõe. pos aparentados, que ocupam o litoral de Luanda Em Luuanda o volume se apóia num tríptico Há poucos dias João Ubaldo Ribeiro ganhou e arredores, até o rio Cuanza. de curtas novelas, todas elas casos memoráveis, o Prêmio Camões de Literatura, dado anualmen- Aqui não se trata da história nem da geografia entre o humor e o trágico, deixando escoar o mara- te pelos governos de Portugal e Brasil, com uma de Luanda. Trata-se de crítica literária. Mas sen- vilhoso como gênero retomado, um maravilhoso dotação de cem mil euros. Participaram do júri do os dois livros de contos comentados nada me- feito de pura miséria e de uma inocência que incide escritores e intelectuais, além de brasileiros e por- nos que A cidade e a infância (dedicado a Luanda, no máximo extravio da condição humana através tugueses, de Angola, Moçambique e Cabo Verde. isto é, a todos os ausentes das decisões que se to- de rachaduras sociais (no caso de Angola, buracos No ano passado, Lobo Antunes levou o troféu. mavam no país) e Luuanda (o título diz tudo), o gritantes, mas tapados — e destapados pela prosa Em 2006, José Luandino Vieira. Que não acei- que é literatura passa a ser o real numa batida pinçada pelo ficcionista de ouvidos atentos à crueza tou o prêmio, alegando, como razão pessoal (não hiper-realista, no Brasil contemporâneo só che- sem perdão de uma humanidade definitivamente à política, o que seria compreensível), o fato de não gando perto no caso extremo de Luiz Ruffato. margem do que o seu nome menciona). Em A ci- escrever há tanto tempo. Afinal, a obra de dade e a infância, na verdade seu livro de estréia Luandino foi produzida quase toda na década e Luuanda – Estórias Primeiro nome (editado em 1960 pela Casa dos Estudantes do Im- meia em que esteve preso após seu engajamento José Luandino Vieira No século 19, com os europeus se revezando pério, Lisboa), dez contos médios — cerca de seis Companhia das Letras juvenil em Luanda, capital de Angola, seu país de 144 págs. na dominação, Portugal aos poucos tomando con- páginas cada um, exceto o conto homônimo, com adoção. Isso se deu entre 1959 e 1972. Parou há ta, o “uu” dobrado fazia parte do nome da capital. o dobro do tamanho — se não têm a excelência 36 e está fora da literatura? Se for assim, o prêmio Com o aportuguesamento incipiente, ainda, passa- formal de Luuanda (nem por isso deixam de mar- não faria sentido mesmo. Não para ele, vindo ria a ser “Loanda”, e mais tarde, já nas primeiras car a presença da prosa entre lírica e de um realis- como uma compensação tardia e deslocada. décadas do século 20, o nome definitivo: Luanda. mo raramente visto), constituem-se um conjunto Mas não é bem assim. Vá entender os escritores. Quando o luandino José decide intitular seu, na de tramas através do qual melhor podemos ver (qua- Luandino, que adotou esse nome intermediá- verdade, segundo livro (A cidade e a infância seria se que dos dois lados, embora seja sempre a partir rio para compor um pseudônimo e, simultanea- sua estréia de fato, em 1957, editado de forma da ótica do angolano que Luandino nos narre) um mente, reforçar sua adesão ao país que acolheu (e o artesanal, em tiragens de cem exemplares e circu- mundo mais em convulsão que em transformação. acolheu, naturalmente; mas mais acolhemos que lando só nos aglomerados habitacionais, formas Ponto decisivo: o que conflita transforma. En- somos acolhidos, eis a realidade: ser acolhido é antecipadoras das favelas, os musseques), vê que a tretanto, a transformação não se dá sem perdas, acolher), fez da língua portuguesa uma presa fácil. Luanda que busca não é a colonizada, mas a “cida- sem mais miséria ainda, sem a exposição amplia- O português de Portugal, país que até 1975 domi- de invisível” à ótica oficial e ao discurso da de preconceitos, marcadamente dolorosos — nou a Angola para onde os pais do escritor emigra- pretensamente dominante. É uma outra Luanda, ainda mais nessa faixa em que se vai da adoles- ram quando ele tinha três anos, conheceu contor- uma Luuanda, retirada não da mudez, mas do cência à juventude e, daí, à fase adulta, com em- ções sintáticas e “miscigenação” semântica como amordaçamento, ou da vigilância. pregos e/ou casamentos apressados e nem por isso jamais sonhou. Perdera a independência. Daí dois fatos, um biográfico, outro literário. menos desestabilizadores. O ex-cidadão português tornou-se angolano O fato literário. N’A cidade e a infância, José Luandino Vieira pela participação nas lutas de libertação nacional Nos três contos, quase novelas, dada a exten- data os contos com dia, mês e ano, demonstrando do país africano. Foi preso diversas vezes. Pri- são (média de 40 páginas cada um), a linguagem que os escreveu numa só jornada. (Os textos foram meiro em 1959 (Processo dos 50). Logo liberta- mostra a inexistência (não a “ausência”, o que organizados em ordem cronológica crescente.) Em do, em 1961 foi novamente preso e condenado a pareceria omissão) de palavras de ligação e de dois desses dias escreveu dois contos em cada. Qua- 14 anos de pena e medidas de segurança. Em 64, pronomes relativos, esses ossos da língua. O idio- tro contos, 40% do livro, em dois dias. Isso também transferem-no para o Campo de Concentração do ma que ele extrai é exótico diante do português a diz um pouco, paradoxalmente, do processo criati- Tarrafal, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, ins- que estávamos acostumados, mesmo o de muitos vo do autor. Ao mesmo tempo em que a linguagem pirado nos campos nazistas, onde passou oito anos, autores africanos colonizados por Portugal, in- é filtrada em sua máxima pureza para as páginas da até a liberdade definitiva, mas não plena, em clusive angolanos. Não há a formalidade lusa no obra, a velocidade com que o escritor opera essa 1972, em regime de residência vigiada em Lis- expressar-se, e isso contribui não só para a nova e ação é decisiva para manter intactas a espontaneida- boa. É o momento em que, aos olhos de todos, A cidade e a infância brutalmente desconcertante voz que surge, mas de e a verossimilhança. O espontâneo é derivado “nasce” o escritor, que compusera praticamente José Luandino Vieira para os temas, que essa voz relata, denuncia. direto da captura em vida da matéria febril que os o conjunto de sua obra entre os muros da prisão. Companhia das Letras A tragédia do dia-a-dia levado na precarieda- homens exsudam em seus movimentos, em suas fa- 136 págs. de mais precária é contundente na medida que o las. Isso é próprio do conto que repete o título do Preso premiado mundo aí retratado vive o que vive, lê-se assim, e livro, onde um menino ardendo em febre, seriamen- É chegada a hora de publicá-la. Tinha chega- não articula senão pequenos sonhos como, por te doente, caminha para a morte. Mesclam-se ao seu do antes, mas por mãos tortas. Em 1965, o júri da exemplo (em Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos), a delírio o pai, a irmã, o irmão mais velho. As recor- Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu o obsessão do neto, que, sem trabalho, sem dinhei- dações. As idas ao cinema onde se apaixonara por Grande Prêmio de Narrativa a um jovem escri- ro, investe tudo, isto é, quase nada, numa camisa atrizes e, da impossibilidade, tivera de carregar a tor, então desconhecido. Luuanda, de José florida ou no amor desaconselhável por Delfina. dor maior que a causada pelo real: “São feridas que Luandino Vieira. Detalhe: o premiado estava pri- Para desespero da avó Xíxi. O que seria matéria lhe doem, feridas de celulóide, que não cicatrizam sioneiro num campo de concentração, em razão rebaixável num outro âmbito estético, o das belas mais”. Conto memorável, como uma estada entre a de “práticas terroristas”. A seqüência é letras — ou seria melhor dizer “letras lustradas”, vida e a morte, passagem da qual não há salvação, inacreditável. Sai uma edição cuja referência de para usar uma variante de “lustro”, muitos anos, mesmo se por ventura alguém se safou. produção dá a cidade de Belo Horizonte e o Brasil tradição, opressão? —, emerge aqui como, proje- Chama a atenção também A fronteira do asfalto, como responsáveis. Salazar tinha amigos aqui. tando para o Brasil, no universo dos jagunços de quando chega o momento, já adolescentes, em que O fato é que se trata de edição feita à revelia Guimarães Rosa, que os brasileiros letrados pra- um menino negro e uma menina branca são obri- do autor, por agentes da Polícia Internacional e o autor ticamente desconheciam, e do qual saem históri- gados a desmanchar a amizade que os unira desde de Defesa do Estado (Pide), em Portugal mesmo, as impagáveis e torturantes. pequenos. Não mais crianças, aproxima-se o ins- “na tipografia Pax”, segundo hipótese levantada JOSÉ LUANDINO VIEIRA, nascido Eis o aspecto literário do advento da obra de tante em que a juventude os porá no encalço de por Luandino, em entrevista há dois anos. Logo a a 4 de maio de 1935 em Portugal, Luandino. O político já se sabe. Preso várias vezes relações e a família da menina não deseja que ela seguir — a premiação ao livro foi o estopim — é é cidadão angolano pela presença e, mesmo depois de solto, vigiado. Nunca o decla- corra esse risco com ele. Para ele, se ela relacio- dissolvida a Sociedade Portuguesa de Escritores, ativa no movimento de libertação rou abertamente, mas é bem provável que sua car- nar-se com outro pode ocorrer ciúme, ou, mesmo nacional e contribuição no nascimen- e o livro torna-se bastante procurado. reira tenha sido traçada por esse destino proscrito. que não a deseje, a desconfiança, cabível, de rejei- to da República Popular de Angola. A primeira edição comercial, de boa circula- Passou a infância e a juventude em É homem de absoluta discrição, nada midiático, ção racial. Um mora numa margem da estrada de ção, dar-se-ia assim que o escritor saísse às ruas, Luanda onde freqüentou e terminou dá poucas entrevistas e praticamente se esconde na asfalto, tornado gueto, habitada só por negros. em 72. Pela Editorial Caminho, que viria a editar o ensino secundário. Trabalhou em fronteira com a Galícia, Espanha, na Vila Nova de Outra, na margem oposta da estrada que atraves- toda a sua obra em Portugal. Em Angola, seus diversas profissões até ser preso, em Cerveira, terras do antigo Convento de Sampaio, sam, conversando, margem com melhores casas, livros vão saindo do jeito que dá para a incipiente 1959. Conheceu a liberdade, relati- do seu amigo escultor José Rodrigues, há quinze jardins, e brancos, e só brancos. Pressionada pela indústria editorial da região. va, em 1972, em regime de resi- anos. O lugar é distrito de Viana do Castelo, à beira família a afastar-se do menino, chora no quarto e, Província ultramarina do governo português dência vigiada, já em Lisboa. Iniciou do rio Minho. De lá, desde a recusa do Prêmio negando-se a discutir a questão (dá para discu- desde 1955, no início da luta armada em busca da então a publicação da sua obra. É Camões, se diz “um escritor morto”, como se en- tir?), apenas obedece à mãe: “Está bem, eu faço o nacionalização do país, em 61, quando Luandino membro fundador da União dos Es- tendesse viver apenas da edição e/ou reescritura que tu quiseres. Mas agora deixa-me só”. De tan- é preso e passa a escrever, Angola é apenas a sua critores Angolanos, entre 1975 e 80. do que produziu nas décadas de 1960 e 1970. to pensar e martirizar-se acerca do ciclo mortal Foi secretário-geral adjunto da As- imagem passada pelo discurso branco. José Vieira em que suas vidas se encontram, o menino não sociação dos Escritores Afro-asiáti- Mateus da Graça, nascido em Vila Nova de cos, de 1979 a 1984; e de novo Se- Glossários suporta aguardar o dia seguinte, na escola, quan- Ourém, distrito de Ourém, a 50 quilômetros de cretário-Geral da União dos Escrito- A ficção de Luandino pede glossário. Tanto em do então poderia falar com a menina sobre o as- Santarém, ao nordeste de Lisboa, funda Angola res Angolanos, de 1985 a 1992. Luuanda quanto em A cidade e a infância há glos- sunto, infindável. Vai a casa dela de noite mesmo. na literatura, buscando-lhe a voz que mescla o Desde então se dedica somente à sários, todavia nada que emperre a leitura. No pri- Não consegue entrar. A polícia surge, provavel- português já há muito imiscuído do quimbundo, literatura, recluso. Entre seus 15 tí- meiro, cem palavras; no segundo, 22, em livros em mente chamada. Ele, assustado, corre, escala o língua do grupo bantu. E de muito mais, aliás. O tulos publicados, destacam-se ain- média de 140 páginas. É pouco, apenas o essenci- caminho até a estrada de asfalto e, num escorregão, quimbundu é tão-somente — ainda que com mui- da os romances Nosso musseque al. A grande revolução (que é feita nas narrativas, estatela-se, bate a cabeça, morre. “Estava um luar ta incidência — um dos onze grupos lingüísticos (2003) e A vida verdadeira de Do- de dentro para dentro, não revolução explícita, mas azul de aço.” O universo, infinitamente indife- principais, que podem ser subdivididos em di- mingos Xavier (2003), e os contos comportamental, e na tensão de como vivem e re- rente. E os homens, claro: “De pé, o polícia caqui versos dialetos (cerca de noventa). As línguas prin- de Macandumba (2005) e Velhas agem seus protagonistas desprezados mais que es- desnudava com a luz da lanterna o corpo caído”. estórias (2006). Seu mais recente cipais, faladas por cerca de 70% dos africanos de quecidos) se dá no modo entre elíptico e coleante 50 mil euros do Prêmio Camões, que José lançamento foi o primeiro volume de Angola, são o umbundu, falado pela parte central uma trilogia, De rios velhos e guerri- como tudo é dito. Há musicalidade e há um modo Luandino Vieira recusou, ficaram com o fisco por- do país; o kikongo, falado pelos Bakongo, ao nor- lheiros — O livro dos rios (1a e 2a de dizer desbastado, quase cortado a canivete, sem tuguês. A outra metade, do governo brasileiro, fi- te; o chokwe-Lunda e o kioko-Lunda, ambos ao edições, 2006; 3a edição, 2007). tateios, direto no epicentro do furacão silencioso cou com a Secretaria da Fazenda. Saberão fazer nordeste; e, claro, o quimbundu, falado pelos das risadas e choros e fugas que acontecem nos bom proveito, para eles, como há muito fazem.•r 40 rascunho 100 • AGOSTO de 2008