UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO

PAULO LARA PERKOV

CAPOEIRA: POSSIBILIDADE DE EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA JUNTO A JOVENS DE CLASSES POPULARES?

SÃO LEOPOLDO 2012

PAULO LARA PERKOV

CAPOEIRA: POSSIBILIDADE DE EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA JUNTO A JOVENS DE CLASSES POPULARES?

Dissertação apresentada como requisito parcial para o título de mestre, no Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS

Orientador: Professor Dr. Danilo Romeu Streck

SÃO LEOPOLDO 2012

P451c Perkov, Paulo Lara Capoeira: possibilidade de educação emancipatória junto a jovens de classes populares? / Paulo Lara Perkov -- 201 2. 135 f. ; 30cm. Dissertação (mestrado) -- Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Programa de Pós-Graduação em Educação, São

Leopoldo, RS, 201 2.

Orientador: Prof. Dr. Danilo Romeu Streck.

1. Educação. 2. Capoeira - Educação emancipatória . 3. Comunidade periférica. I. Título. II. Streck, Danilo Romeu. CDU 37

Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184

PAULO LARA PERKOV

CAPOEIRA: POSSIBILIDADE EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA JUNTO A JOVENS DE CLASSES POPULARES?

Dissertação apresentada como requisito parcial para o título de Mestre em Educação, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

BANCA EXAMINADORA

Professor Dr. Danilo Romeu Streck – UNISINOS – Orientador

Professor Dr. Telmo Adams – UNISINOS

Professora Dra. Ana Cristina Rodrigues - CESUCA

Prof. Dr. ______

Dedico este trabalho a todos os mestres de capoeira do passado e do presente, que destinaram as suas vidas pela emancipação política e social dos sujeitos da nossa capoeira arte-luta. Lutando e resistindo contra opressão do sistema desde a escravatura até os dias de hoje. Em especial ao mestre Reinaldo Santana (Mestre Bigodinho) exemplo de humildade, simplicidade e sabedoria. Aos alunos que iniciaram, passaram e continuam lutando e resistindo no sonho de ânsia de liberdade com alegria de viver.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por colocar este desafio na minha vida, o desafio de querer Ser Mais e não aceitar a dominação e determinação do sistema-mundo. Por me dar força para lutar e resistir nos ideais de liberdade.

Agradeço aos meus pais Ivan Perkov e Nelci Lara Perkov ( in memoriam) pelo exemplo de luta e fonte de inspiração e, ao meu filho, Yuri Feldman Perkov principal motivo para nunca desistir das batalhas da vida.

Aos alunos envolvidos no processo da capoeira na Escola Municipal de Ensino Fundamental Migrantes, em particular aos alunos Cabeleira, Rio, Sadia, Canário, Sapão, Gira, Fotógrafa, Baiana, Saraí, Rosinha, Elétrica, Guinãzu, Gralha, Genaro, Marquinhos entre tantos outros.

Aos professores e funcionários pelo apoio que deram para o desenvolvimento das atividades na Escola Municipal de Ensino Fundamental Migrantes.

Ao Doutor Danilo Romeu Streck e a Doutora Rute Baquero pelo apoio, as intervenções sempre apropriadas que orientaram este trabalho, exemplos de profissionalismo e carinho no trato com este autor.

Ao Programa de Pós-Graduação da UNISINOS, professores e funcionários, pela atenção, apoio e dedicação sempre que necessários.

A Capes Proex pela oportunidade recebida de ser bolsista, e assim, poder trabalhar menos e dedicar-me mais a este estudo. Que julgo ser relevante para minimizar a violência urbana.

Ao Colégio Salesiano Dom Bosco e ao Instituto Maria Auxiliadora pelo apoio e oportunidade de trabalhar como educador salesiano, nessa rede de escolas.

O que me motivou a treinar capoeira foi aprendizado [...] foi porque, eu fui treinando, fui aprendendo e fui fazendo amigos. Fui sendo considerado , né! Fui criando amizade, daí eu quis treinar, quis treina e continuar. Porque meu sonho é um dia se tornar mestre . (Depoimento do aluno Canário, 2010)

A beleza existe em todo lugar. Depende do nosso olhar, da nossa sensibilidade; depende da nossa consciência, do nosso trabalho e do nosso cuidado. A beleza existe porque o ser humano é capaz de sonhar.

Moacir Gadotti

LISTA DE SIGLAS

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

IMA – Instituto Maria Auxiliadora

RSE – Rede Salesiana de Escolas

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas

UFBA – Universidade Federal da Bahia

FAPA – Faculdade Porto-Alegrense

UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos

GECA – Grupo de Estudos da Capoeira

SENECA – Seminário Nacional sobre Estudos da Capoeira

ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente

IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional

EIR – Estatuto da Igualdade Racial

ANPED – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação

USP – Universidade de São Paulo

PUCSP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

UFSCAR – Universidade Federal de São Carlos

UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina

UFRGS – Universidade Federal do

UFSM – Universidade Federal Santa Maria

UFPEL – Universidade Federal de Pelotas

EST – Escola Superior de Teologia

UNIJUI – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul

PUCRS – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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RESUMO

O estudo teve como objetivo geral problematizar e analisar a capoeira enquanto possibilidade de educação emancipatória junto a jovens de periferias urbanas, por meio de um projeto de capoeira desenvolvido na Escola Municipal de Ensino Fundamental Migrantes, situada em Porto Alegre/RS Brasil. O estudo de campo foi desenvolvido no período de junho 2010 a outubro de 2011. A questão central deste trabalho diz respeito as mudanças geradas pela prática da capoeira nos processos de ensino-aprendizagem, em termos de corporeidade, identidade e cidadania para jovens de classes populares. Visando contemplar este objetivo foram desenvolvidos três objetivos específicos: descrever como se desenvolve e se fortalece a corporeidade através da prática da capoeira; identificar como se constrói e se estrutura a identidade cultural através da prática da capoeira; examinar como é possível a edificação e o alicerce da cidadania de fato no espaço da prática da capoeira. Foram consideradas três dimensões da capoeira: os motivos de praticar capoeira, o gosto pela prática de capoeira e os resultados e mudanças geradas por essa prática. Como base teórica e metodológica de pesquisa dialogou-se com autores como , Santos e Menezes, Stoer, Magalhães e Rodrigues, Brandão, Castro, Junior e Achutti, além daqueles que militam em prol da capoeira na sua labuta diária; que são Soares, Falcão, Campos entre outros. Como instrumentos de pesquisa foram utilizados a observação participante com diário de campo, entrevistas semi- estruturadas e fotografias, principalmente, para desenvolver a narrativa. Os resultados da investigação mostraram a importância do trabalho de capoeira na construção de redes solidárias de amizade e cooperação, que superam os limites da capoeira- luta e transcendem os limites pobres da matéria. Oportunizando a construção e o fortalecimento da corporeidade, identidade e cidadania. Evidencia-se a importância de uma figura de mestre ou professor mais engajado e identificado com a comunidade e, uma escola, que conheça e dialogue com a comunidade na busca da emancipação dos sujeitos na conquista do Ser Mais. . Palavras-chave: Capoeira, Educação, Comunidades Periféricas. ABSTRACT

The present study had as general objective problematize and analyze the possibility of capoeira as a way of emancipatory education with the youngish of urban peripheries, in a project of capoeira developed at Escola Municipal de Ensino Fundamental Migrantes, situated in Porto Alegre /RS . The study of field was developed in the period of June 2010 to October of 2011. The central questions of this study are the changes generated by the practice of capoeira on the process of education-learning, in term of corporeity, identity and citizenship for the youngish of the popular classes. Aiming to contemplate this objective three specific objectives were developed: To describe how do we build and fortify the corporeity through the practice of the capoeira; To identify how we build and fortify the cultural identity through the practice of the capoeira; to examine how it is possibly to build and to strength the citizenship in the space of the practice one of capoeira. Three dimensions of capoeira were considered; the purpose of the practice of capoeira, the desire by the practice of capoeira and the results and changes generated by the practice of capoeira. As methodological and theoretical framework of the research, a dialogue was set with authors as Paulo Freire, Santos and Menezes, Stoer, Magalhães and Rodrigues, Brandão, Castro, Junior and Achutti, beyond those that perform in behalf of capoeira in their daily work; they are called Soares, Falcão, Campos among others. Observation in an everyday activity, semi - structured interviews and photographs were the tools used in the research , mostly for developing the narrative. The results of the investigation showed the importance of the work of capoeira in the construction of supportive nets of friendship and cooperation that exceed the limits of capoeira fights and transcend the poor limits of the matter. Giving the opportunity to build and to strength the corporeity, identity and citizenship. Evidencing the importance of the figure of a master or a professor more committed and engaged with the community and a school, that knows and talks with the community in the search of the emancipation of the people in the achievement of being more.

Keywords: Capoeira - education - peripheral communities

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...... 11 2. O CAMINHO PERCORRIDO...... 14

3. NOTAS HISTÓRICAS E O PAPEL DAS ESCOLAS DE CAPOEIRA...... 22

3.1 A HISTORICIDADE DA ESCOLA DA CAPOEIRA...... 23

3.1.1 A CAPOEIRA NO SÉCULO XIX...... 28

3.1.2 O DIÁLOGO DA CAPOEIRA NO SÉCULO XX...... 30

3.1.3 O MOVIMENTO DA CAPOEIRA NA ATUALIDADE...... 37

4. O NOSSO MICRO NO MACRO MOVIMENTO DA CAPOEIRA...... 41

4.1 CAPOEIRA NA PERIFERIA, OLHAR E ESCUTA AOS SUJEITOS...... 51S

4.1.1 CAPOEIRA E CORPOREIDADE...... 52E

4.1.1.1 CAPOEIRA: CORPOREIDADE E A MÍSTICA DA RODA...... 53A

4.1.1.2 CAPOEIRA: CORPOREIDADE E O OLHAR O MUNDO...... 57

4.1.1.3 CAPOEIRA: CORPOREIDADE E AS PARCERIAS...... 62

4.1.1.4 CAPOEIRA: CORPOREIDADE E OS VALORES...... 65

4.1. 1.5 CAPOEIRA: CORPOREIDADE E A ESTÉTICA...... 70A

4.1.2 CAPOEIRA E IDENTIDADE ...... 74 4.1.2.1 CAPOEIRA: IDENTIDADE E IDENTIFICAÇÃO DOS SUJEITOS...... 74 4.1.2.2 CAPOEIRA: IDENTIDADE E OS PAPEIS E FUNÇÕES DOS SUJEITOS...... 80 4.1.2.3 CAPOEIRA: IDENTIDADE E AS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS AFRO-BRASILEIRAS...... 83 4.1.2.4 CAPOEIRA: IDENTIDADE E OUTROS LUGARES...... 87 4.1.3 CAPOEIRA E CIDADANIA...... 93 4.1.3.1 CAPOEIRA: CIDADANIA E O DIREITO EDUCAÇÃO NA COMUNIDADE...... 94 4.1.3.2 CAPOEIRA: CIDADANIA E O DIREITO À CULTURA...... 99 4.1.3.3 CAPOEIRA: CIDADANIA E O DIREITO À SAÚDE...... 103 4.1.3.4 CAPOEIRA: CIDADANIA E A EMANCIPAÇÃO DOS SUJEITOS...... 106 10

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS E POSSÍVEIS CAMINHOS...... 111 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 119 BIBLIOGRAFIAS CONSULTADAS...... 122 ANEXOS...... 124

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1 INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo problematizar e analisar a capoeira enquanto possibilidade de educação emancipatória, junto a jovens de periferias urbanas, no contexto de um projeto desenvolvido em uma escola municipal situada em Porto Alegre/RS. Tendo como questão principal desta dissertação: quais as mudanças da prática da capoeira nos processos de ensino-aprendizagem em termos de corporeidade, identidade e cidadania para jovens de classes populares no contexto de uma escola de periferia - Escola Municipal de Ensino Fundamental Migrantes.

Este estudo foi desenvolvido devido à minha estreita relação com a realidade em questão. Desde a mais tenra infância, vivendo na periferia de Porto Alegre, estudando em escolas públicas e vendo a luta de meus pais para dar o mínimo de condição para nossa formação como sujeitos sociais. Digo nossa, devido ao fato de sermos seis (6) irmãos. Meu pai imigrante, vindo para o Brasil no pós-guerra, mal falava a Língua Portuguesa e trabalhava na construção civil para sustentar nossa família. Minha mãe estudou até a quarta série do ensino fundamental, dedicava o seu tempo para as tarefas da casa e ao cuidado com filhos.

Apesar de ter sido na Igreja Católica, desde menino estive envolvido com as religiões Afro-Brasileiras, pois na frente de minha casa tinha uma terreira de Umbanda, que foi o lugar onde construí meu primeiro círculo de amizade, meus amigos quase todos afro- descendentes e pobres, mas sempre com alegria de viver. As festas religiosas faziam as nossas vidas mais felizes.

Comecei a praticar capoeira em 1984, aos 17 anos, e terminei meu ensino fundamental aos 18 anos. Tive vários trabalhos quando jovem, primeiro num supermercado trabalhei em várias funções: empacotador, supridor e açougueiro; trabalhei na indústria de confecção de semi-joias e na construção civil. Depois de alguns anos, praticando capoeira, resolvi dedicar- me para a arte de ser professor de capoeira. Trabalhando em várias instituições não-formais de ensino como: Clube de Mães, Condomínios, Academia de Ginástica e Associações de Bairros.

Em 1994 comecei a dar aulas de capoeira, no colégio Salesiano Dom Bosco, o que me motivou a procurar uma formação acadêmica numa Universidade. Por trabalhar com a prática 12 da capoeira, resolvi fazer um curso superior de Educação Física na UNISINOS. Quando conclui esse curso, consegui uma grande conquista em minha vida, que marcou um processo de emancipação registrado na minha carteira de trabalho: passei de funcionário da construção civil para funcionário de uma Instituição Educacional. O que me fez acreditar na possibilidade de utilizar a capoeira como uma prática de educação emancipatória, principalmente, para jovens de classes populares localizados em periferias urbanas.

Fazendo a revisão de literatura pude perceber o avanço do movimento da capoeira no campo da educação. Encontramos seis (6) dissertações no Rio Grande do Sul como produção científica publicadas entre 1987 a 2007 as quais destacamos nesse projeto. Ainda nesse contexto na mesma revisão damos destaque a sete (7) teses desenvolvidas no Brasil, publicadas na Capes entre 2003 e 2009.

Esses estudos propõem a prática da capoeira não só como uma prática na Educação Física, mas numa lógica interdisciplinar. Utilizam os seus saberes como possibilidade de diálogo na construção de uma lógica diferente da lógica capitalista, apontando para o seu potencial para a emancipação das classes sociais menos favorecidas.

Na reflexão teórica, além dos autores que militam em prol do movimento da capoeira na sua constante construção e reconstrução, esses agentes são seres conscientes dos seus processos de inacabamento e estão inseridos num processo de transformação que tem continuidade, buscando reconhecimento e emancipação da capoeira arte-luta com um papel relevante junto ao povo menos favorecido da sociedade.

Tendo como base fundamental autores que tratam da questão da autonomia dos sujeitos e da possibilidade de emancipação dos mesmos através de suas práxis na coletividade procurei descrever a historicidade da capoeira no decorrer dos tempos. Seus avanços em tempos remotos para a “compreensão da história como possibilidade e não como determinação” conforme Paulo Freire, na Pedagogia da Autonomia (1996); na Pedagogia do Oprimido (1980). Freire traz a proposta de uma ação cultural dialógica que se contraponha à lógica dominante. Compondo, esta fundamentação Epistemologias do Sul , Santos e Meneses (2009) trazem o movimento pós-abissal do pensamento e conhecimento, a colonialidade do poder, o conceito de sistema-mundo e o pensamento de fronteira. Assim, Stoer, Magalhães e 13

Rodrigues (2004) com Os lugares da (in)exclusão social , ajudam na descrição e interpretação servindo de pilares de sustentação para o nosso micro movimento da capoeira.

A metodologia empregada nesta pesquisa vem composta num primeiro momento com Minayo (2010) e Carlos Rodrigues Brandão (2003), análise de documentos e entrevistas semi- estruturadas. Esse último autor destaca que há possibilidade de usarmos na análise, frases inteiras das falas dos sujeitos, no lugar de fragmentos e palavras presentes nessas falas, assim, dando voz aos mesmos dentro de um determinado contexto. Os documentos analisados partem da constituição federal de 1988, que origina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o recentemente aprovado Estatuto da Igualdade Racial (EIR).

Com a intenção de darmos visibilidade aos nossos sujeitos da pesquisa e ao lugar do seu desenvolvimento, foram usados nesta cadeia metodológica como instrumentos de coletas de dados fotografias, utilizando como referencial teórico-metodológico dois autores que estão muito próximos da realidade em questão, que são Castro, Junior (2008) e Achutti (1997). Um trata do tema capoeira e outro trata do lugar da unidade de análise em questão. Utilizamos os documentos fotográficos como pautas de observações e análise para o desenvolvimento da pesquisa.

Enfim, pretendemos através da problematização e análise da capoeira enquanto possibilidade de educação emancipatória para classes populares, contribuir para a construção de outras possibilidades de educação no ambiente escolar formal e não-formal. Quem sabe chamar atenção dos representantes públicos para o valor da capoeira como prática educativa de emancipação humana das classes menos favorecidas, fazendo com que os próprios capoeiristas entendam que a união, organização e cooperação de todos, é capaz de fortalecer esta prática marginalizada ao longo de séculos, que continua lutando e resistindo para construção de uma sociedade melhor e com mais justiça social.

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2 O CAMINHO PERCORRIDO

Este estudo justifica-se pelo fato de ter visto na minha infância a luta dos meus pais para a manutenção da minha família. Meu era pai imigrante estrangeiro trabalhador da construção civil e minha mãe estudou até 4ª série do primeiro grau, dona de casa e vendedora de cosméticos para auxiliar na renda familiar, com uma família de seis filhos. Qualquer semelhança não é coincidência.

Procurei construir para mim um caminho diferente do que o destino reservava-me. Desde criança trabalhei na roça e na construção civil, quando adolescente comecei a praticar capoeira e nela encontrei a possibilidade de construir um novo caminho para minha vida. Depois de praticar e aprender a capoeira pude perceber que poderia ir muito além do que eu imaginava, de instrumento de luta a capoeira passou a ser possibilidade de educação emancipatória, pois troquei a função de trabalhador da construção para trabalhador de educação.

Utilizei a capoeira como instrumento de educação emancipatória e passei a “ver a história como possibilidade, e não como determinação” (Freire, 1996). Com uma identificação com as classes populares da sociedade, construí minha identidade nesse contexto, principalmente, através da prática da capoeira cultura popular afro-brasileira. E resolvi levar para os meus irmãos de periferias urbanas esta possibilidade de construção de identidade cultural, para que possam exercer seus papéis de cidadãos de fato.

Por isso, esta pesquisa foi desenvolvida neste contexto da Escola Municipal de Ensino Fundamental Migrantes, na comunidade escolar da Vila Dique, na zona norte de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, Brasil. Pela identificação que tenho com os sujeitos da pesquisa irmãos de periferias e de classes populares.

Foi feito uma revisão de literatura junto ao portal da CAPES, disponível em: http://capesdw.capes.gov.br/capesdw/ acessado em: 16/05/2010, onde percebe-se o avanço do movimento da capoeira no campo da educação. Nesta revisão fora encontrado um total de seis (6) dissertações no Rio Grande do Sul, entre o período de 1987 à 2007 as quais destacamos neste relatório, num quadro em anexo, e sete (7) teses desenvolvidas no Brasil, publicadas no 15 portal da CAPES entre 2003 e 2009. Esses estudos propõem a prática da capoeira não só como uma prática na Educação Física, mas numa lógica interdisciplinar.

Podemos perceber que de 1987 a 2010 foram produzidos apenas seis (6) estudos sobre a capoeira no Rio Grande do Sul. Todos os estudos estão relacionados com o âmbito escolar e a Educação Física, mas já apontam para a necessidade da cultura escolar dialogar com a cultura popular afro-brasileira. Com o passar do tempo, corporeidade e espiritualidade ganham espaço na questão do trato com o tema capoeira, tensionando os limites da escola e da cultura escolar.

Ao longo das últimas década, a produção acadêmica sobre o tema Capoeira-Educação “tem ganhado corpo”, mesmo que timidamente, comparado com ou tros estudos da área da Educação, principalmente, nos cursos de pós-graduação em Educação Física. Geralmente, os autores são praticantes e simpatizantes do movimento da capoeira: (Barbieri, 2003; Falcão, 2004; Abib 2004; Araújo, 2004; Real, 2006; Campos, 2006; Conrado, 2006; Silva, 2009).

Esses estudos propõem a utilização dos saberes da capoeira, não só na Educação Física, mas de uma forma interdisciplinar na escola formal. Destacam, propondo na prática de capoeira, uma lógica diferenciada da lógica que move a sociedade na atualidade, ou seja, a lógica capitalista. Apontam como conteúdo programático a gestualidade, musicalidade, seus aspectos históricos e a ritualidade. Percebe-se, pelos trabalhos aqui selecionados, que a capoeira é desenvolvida numa perspectiva multicultural, numa construção histórico-social e cultural, pois está sempre dialogando com outras manifestações culturais, principalmente, afro-brasileiras, como: , maculelê e dança afro.

Os estudos aqui apresentados mostram como o movimento da capoeira busca dialogar com os espaços de educação formal e não-formal. Os pesquisadores são sujeitos inseridos no campo de suas pesquisas, fazendo parte desse movimento. As pesquisas são de natureza qualitativa, destacando-se a pesquisa participante e a pesquisa-ação. Estes estudos, aproximam-se do estudo aqui proposto, principalmente, por tratar a capoeira como uma práxis que se movimenta nos espaços e no tempo, construindo e se reconstruindo, na busca de emancipação humana dos sujeitos envolvidos nesse movimento.

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Além do portal da CAPES, buscamos estudos no Google Acadêmico, no site SCIELO e na revista da ANPEd, trabalhos dos autores que identificamos na revisão da CAPES e trabalhos com semelhança de tema, para fazer a leitura dos artigos que estavam relacionados aos títulos de dissertações e teses, bem como a busca também publicação de livros dos autores identificados na revisão de literatura.

A questão principal desta investigação está pautada em: Quais as mudanças geradas pela prática da capoeira nos processos de ensino-aprendizagem, em termos, de corporeidade, identidade e cidadania para jovens de classes populares no contexto de uma escola de periferia urbana?

Assim, este estudo tem por objetivo problematizar e analisar a capoeira enquanto possibilidade de educação emancipatória junto a crianças e jovens de periferias urbanas, no contexto de um projeto desenvolvido em uma escola municipal situada em Porto Alegre/RS. Como objetivos específicos temos: descrever como se desenvolve e se fortalece a corporeidade através da prática da capoeira; identificar como se constrói e se estrutura a identidade cultural através da prática da capoeira; examinar como é possível a edificação e o alicerce da cidadania de fato no espaço da prática da capoeira A uni dade de análise é o projeto de capoeira inserido no programa “Escola Aberta”, de uma escola municipal situada na periferia urbana de Porto Alegre/RS o qual visa o desenvolvimento integral das crianças e jovens no contexto da comunidade escolar. Utilizando a capoeira como instrumento de educação não-formal, no contexto da escola interagindo com a comunidade, o objetivo do projeto de capoeira na referida escola é trabalhar os fundamentos da capoeira no desenvolvimento de uma educação emancipatória.

A proposta metodológica da pesquisa é de natureza qualitativa, tendo como base os trabalhos de Minayo (2010) e Brandão (2003), com a intenção de problematizar questões relacionadas ao cotidiano da capoeira na comunidade escolar da Vila Dique, entendendo a capoeira, como uma escola não-formal, que se constituiu num processo histórico-social e cultural e procura agir com criatividade dentro das formalidades constituídas no contexto da escola.

Segundo Minayo (2010), os sujeitos envolvidos na pesquisa são seres históricos, dinâmicos e em constante movimento, com uma consciência histórica de acordo com o seu 17 tempo e espaço social. Suas ações humanas estão ligadas ao contexto sócio-histórico e cultural. A referida autora diz que existe “uma identidade entre suje ito e objeto[...] e têm um substrato comum de identidade com o investigador, tornando-os solidariamente imbricados e comprometidos” (p. 13).

Essa autora explicita o conceito de metodologia como “o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade [...] a metodologia inclui simultaneamente a teoria da abordagem (o método), os instrumentos de operacionalização do conhecimento (as técnicas) e a criatividade do pesquisador (p.14).

Hoje, a capoeira está inserida na cultura da comunidade escolar, e num constante movimento entre a escola e a comunidade. Vale ressaltar aqui que aulas foram ministradas na escola nos dias de semana no período letivo. No entanto, priorizamos como foco deste estudo o programa Escola Aberta, porque esse programa é o que dá maior oportunidade e possibilidade de diálogo com a comunidade.

Brandão (2003) fazendo referência ao “olhar do antropólogo”: “cada fração cultural de qualquer expressão da vida cotidiana popular só faz sentido pleno quando lida e compreendida d e dentro para fora”(p, 173). A capoeira aproxima -se da comunidade para dialogar com seus sujeitos. Ela tem um sentido construído nas esferas sociais mais humildes da sociedade. Propõe uma leitura de mundo com base no local originário de suas raízes, a periferia, para que os sujeitos possam dizer suas palavras, e possam compartilhar seus aprendizados com seus pares.

Este autor, Brandão (2003) salienta que se pode destacar setores sociais de valores sociológicos ou mesmo pedagógico nas palavras ditas nas en trevistas: “das ‘pessoas do lugar’, assim da maneira como elas pensam e dizem algo sobre esta ‘vida’ e seu mundo, todos esses setores sociais estão interligados”(p, 173).

Esta pesquisa pode ser considerada participante, devido ao fato de os sujeitos da pesquisa atuarem, constantemente, na construção da mesma, dando sugestões, ajudando com as fotografias na coleta de dados, participando na escolha das estratégias de ação nos programas na escola, que possibilitaram a atividade da capoeira, auxiliando na organização dos eventos da capoeira na escola, contribuíram com as entrevistas e muito mais. 18

Os instrumentos da pesquisa utilizados foram: observação participante com diário de campo. O autor, que descreveu e interpretou os documentos, está inserido desde 2005 no contexto da comunidade escolar. No último ano, aprofundou o olhar com a prática da pesquisa, tentando promover o distanciamento necessário para poder realizar a pesquisa com seriedade e rigor. Os diálogos com os pais, moradores e sujeitos da pesquisa foram registrados no diário de campo e fazem parte dá observação participante.

Minayo (2010) traz que para fazer observação participante o pesquisador deve ficar em constante relação com os sujeitos da pesquisa num determinado espaço social, “com a finalidade de realizar a uma investigação científica.[...] O principal instrumento de trabalho é o diário de campo. Que nada mais é do que um caderninho” (p,71), onde podemos anotar informações para, depois, analisar.

O diário de campo foi para que fosse possível registrar os fatos interessantes, detalhes das relações sociais, atitudes dos sujeitos, ideias que vieram na mente e que foram colocadas no corpo do trabalho. Exemplo disso: O garoto Genaro um dos poucos afro-descendentes no grupo de capoeira, numa das vilas mais pobres de Porto Alegre. Capoeira é herança da escravidão não só para afro-descendentes, mas para as minorias sociais de modo geral.

Como material de apoio para fazer as análises foram utilizados alguns documentos, tais como o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto da Igualdade Racial, além da Constituição Federal e documentos do governo que fazem referência aos programas que inseriram a capoeira no contexto da escola.

As entrevistas semi-estruturadas foram feitas com crianças e jovens que praticam capoeira na comunidade escolar da escola Migrantes na Vila Dique. Os sujeitos entrevistados eram mais interativos no contexto da capoeira, alunos que estavam desde o início do projeto de capoeira ou que entraram pouco depois.

As maiores dificuldades foram nas entrevistas com algumas alunas no contexto da capoeira, pois não sei por qual motivo, fugiam na hora de fazer as entrevistas. Acreditamos que seja devido ao cotidiano violento em que vivem, por receio de numa entrevista, visto que as perguntas seriam gravadas e registradas, ou talvez, por vergonha. 19

Certa vez fui à casa de uma moradora, mãe do Genaro e da Sarai, pedi para fazer uma entrevista com a filha. Ela disse que não teria problema, mas quando voltou, disse que teria que ser outro dia, pois a jovem estava com “problemas de mulher ”. Então ficou para outro dia, que nunca aconteceu, pois todas às vezes que a garota via-me, fugia.

Outra questão, que relevante e faz-se necessário destacar aqui foi a busca de apoio do entorno, pedindo pessoalmente ou via e-mail , o depoimento de professoras e professores sobre a questão tratada na pesquisa e poucos retornaram. Não sabemos se pelo acúmulo de tarefas durante o ano letivo ou pela falta de interesse em colaborar, fato é que apenas três de sete professores deram o depoimento escrito.

As fotografias fizeram parte da coleta de dados. Alguns documentos utilizados foram de um arquivo pessoal construído pela ABCN. Desde, o início do projeto na escola que utilizava para fa zer os relatórios do projeto “Parceria Solidária”, do Instituto Maria Auxiliadora, que iniciou em 2005. Outras fotografias foram cedidas por colegas que estavam documentando os eventos que o grupo participou.

Outra estratégia de coleta de dados fotográficos foi de pedir o auxílio dos alunos, com a intenção de fazê-los participar do processo de modo mais efetivo e interativo. Solicitando que registrassem as suas histórias, para que pudéssemos dar visibilidade ao trabalho proposto. Pensamos que fosse possível captar dados que levassem até o leitor “uma informação cultural a respeito do grupo estudado”(Achutti, 1997, p, 14), pois estavam mais inseridos no contexto. Isso motivou-os mais ainda a participar, conseguindo perceber a importância deles no grupo e para o grupo.

Com esse instrumento metodológico existiu a possibilidade de interação por parte alguns sujeitos da pesquisa, pois eles participaram da coleta dos dados, fotografando conforme a orientação do professor pesquisador ou de sua vontade própria.

Por isso, em todas as saídas de campo, sempre contamos com um aluno ou aluna, que fizesse esse trabalho, registrando e tirando fotografias. Inclusive teve uma aluna que ganhou 20 um apelido de “fotógrafa ” por desempenhar muito bem esta função. Esta aluna tinha feito um curso na escola de técnicas fotográficas, então colocamos um desafio, que era documentar nossas saídas de campo. Ela pôs em prática com eficiência suas habilidades de “clicar”.

Assim, pudemos observar as imagens coletadas, congeladas e captadas como informações e como possibilidade de certo distanciamento do objeto de pesquisa, para que fosse possível fazer a análise, descrevendo, interpretando e compreendendo melhor o contexto em que aconteceu a pesquisa. Isso possibilitou uma melhor problematização de um micro universo no macro universo da capoeira.

Na construção dessa narrativa, utilizamos as fotografias como documentos fotográficos que, às vezes, serviram como pauta de observações para enriquecer nossas análises, dando ênfase em algumas situações que não poderiam ser representadas graficamente, ou seja, através da fala ou da escrita. Como trouxe-nos Castro Junior (2008) a fotografia ou documento fotográfico, também serve como forma de estimular os sujeitos à participação no processo de modo efetivo, ajudando na construção e, muitas vezes, na interpretação dos dados da pesquisa. Aí, formaram-se vários olhares trabalhando com criatividade no mesmo processo coletivo da capoeira.

Esse instrumento também serviu para dar visibilidade aos sujeitos da pesquisa. “A linguagem fotográfica para constituir-se em um meio eficiente de registrar e difundir imagens está condicionada pelo nível de informação, capacidade de olhar e habilidade técnica de quem utiliza”(Achutti, 1997, p, 65). Pudemos ver alguns pontos fundamentais desse instrumento de pesquisa, mas o mais importante é a leitura de mundo feita através da leitura das imagens em evidências, o conhecimento do pesquisador e de sua equipe na exploração de imagens, uma construção coletiva no contexto onde estão inseridos. Quando falamos de linguagem fotográfica falamos de uma linguagem visual, uma arte de captar movimentos, num determinado instante e espaço de atuação.

Às vezes, fica difícil descrever uma informação com palavras. Um exemplo disso é na fotografia cinco (5) como veremos mais à frente, nas análises tratando da estética na 21 corporeidade, o “Golpe do Besouro” , um salto no ar, que tem a duração frações de segundos. Aquele clique da nossa aluna captou uma informação que seria muito difícil descrever em palavras, tanto o movimento quanto o sentimento de executá-lo ficando expressa, através da linguagem fotográfica, o “nível de informação, capacidade de olhar e habilidade técnica ”, não de quem utiliza a imagem, mas de quem esta descobrindo novas possibilidades dentro de um contexto cultural.

A fotografia, “ajuda também a documentar, talvez em menos tempo, detalhes de rituais ou da cultura material – adereços, principais características da indumentária, instrumentos de trabalho” (Achutti, 1997, p, 65-66). Com as fotografias captamos imagens ricas em conteúdos, que serviram como pauta de observações, e deram visibilidade ao processo da capoeira e aos sujeitos inseridos nesse processo. Como acontece esse ritual dentro do contexto da comunidade escolar na escola Migrantes na Vila Dique, procuramos mostrar o avanço do movimento dos corpos em múltiplas dimensões numa unidade.

Relembrando que nosso objetivo era problematizar e analisar a capoeira enquanto possibilidade de educação emancipatória para os sujeitos de classes populares, que vivem em periferias urbanas, e verificar se é possível e de que maneira acontece o fortalecimento e a construção da corporeidade, identidade e cidadania, nos processos de ensino-aprendizagem da capoeira na escola Migrantes na comunidade da Vila Dique. Por isso, seguimos este caminho com a intenção de auxiliar e ajudar a construir novas possibilidades de emancipação humana.

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3 NOTAS HISTÓRICAS E O PAPEL DAS ESCOLAS DE CAPOEIRA É pura utopia/dizer que algum dia, tudo vai mudar/ Mas, eu vou sonhar/ eu vou lutar 1.

Os teóricos com quem dialogamos neste trabalho, além daqueles que militam em prol da capoeira na sua labuta diária, são, principalmente, Paulo Freire: Pedagogia do Oprimido (1980), Pedagogia da Esperança (1992), Pedagogia da Autonomia (1996); Dicionário Paulo Freire (2010), Epistemologias do Sul (2009) e Os Lugares da Exclusão Social (2004).

Reconstruindo o caminho da capoeira enquanto movimento político de emancipação humana do povo oprimido, identificamos a capoeira arte-luta 2 como práxis educativa de resistência e emancipação. Ao ler Paulo Freire, percebemos, em seus estudos, ensinamentos para reconstrução de minha história e recriação de minha prática educativa utilizando a capoeira, como uma prática educativa emancipatória.

No Dicionário Paulo Freire (2010), Carlos Eduardo Moreira nos traz que : “A emancipação humana aparece,[...] como uma grande conquista política a ser efetivada pela práxis humana, na luta ininterrupta a favor da libertação das pessoas de suas vidas desumanizadas pela opressão e dominação social ” (Streck, Redin e Zitkoski, 2010, p. 145) .

E perguntamo-nos: que escola queremos construir para nossas crianças, e para nossos jovens e adultos? Embora Paulo Freire tivesse trabalhado a questão da alfabetização de adultos, principalmente, pensamos que seus pressupostos teóricos são importantes, também, para a educação de crianças e jovens. Freire, em seu livro: “ Ação cultural para a liberdade ”, nos traz que, “os qu e põem em prática minha prática, que se esforcem por recriá-la, repensando também meu pensamento.[...] nenhuma prática educativa se dá no ar, mas num contexto concreto, histórico, social, cultural, econômico e político”( Freire, 2007, p, 20).

1 Parte da poesia que o autor escreveu para o trabalho de conclusão de curso de especialização em Educação Infantil na UNISINOS, em 2006. 2 Este termo é utilizado no livro: Idiopráxis de capoeira , mestre Zulu. Brasilia, o Autor, 1995. Na página 29. O binômio arte-luta representa as nossas opções e concepções de uso do próprio corpo para exprimir o belo, excitar a nossa sensibilidade e sublimar os antagonismos através da capoeira – este é o grande salto de qualidade que estamos experimentando. A capoeira arte-luta propicia o estado de ser pelo vivencial-operativo e pelo vivencial- operativo busca-se o entendimento do próprio sentido da vida e da transcendência. 23

Este educador, também, destaca a relevância das experiências não formais para a realização do aprendizado. Nas palavras de Freire (1996):

Se tivesse claro para nós que foi aprendendo que aprendemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aulas das escolas, nos pátios dos recreios, em que vários gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam cheios de significação (p, 44).

A capoeira, com seus símbolos, valores, ritos, gestos corporais, com sua musicalidade encharcados de conteúdo histórico-social e cultural, enfim, sua “mandinga” 3, auxiliou-nos a fazer a “leitura do mundo”, para compreender um pouco melhor o universo das palavras. Confessamos que somos eternos aprendizes , “sujeito s inacabados” (Freire,1996), mas se a educação é um direito de todos os cidadãos, segundo, a declaração universal dos direitos humanos, queremos como cidadãos este direito, à educação e comprometido com os nossos irmãos, queremos ajudá-los no processo de formação e transformação desta escola para cidadãos, críticos, sonhadores e criativos.

3.1 A H ISTORICIDADE DA ESCOLA PARA CAPOEIRA

A minha vida é mesmo assim, Desde criança, Uma mistura de ódio e esperança, Cheia de amor e fé no meu senhor dono do mundo. Criador dos santos e dos vagabundos...

Segundo Streck (2008), “a aprendizagem se confunde com a vida, e há muitos lugares onde aprendemos e mu itos mestres que nos ensinam”(p, 29). “Aprendizagem” e “vida” caminham juntas; nos processos de ensino-aprendizagem ficam claros o inacabamento do ser humano. Lugares e mestres, ensinar e aprender são dimensões do mesmo processo que constitui a vida e o ato de conhecer.

A roda de capoeira representa a roda da vida. Lugar onde, através do corpo, surge a escola da capoeira, fruto do conhecimento empírico e das experiências vividas. A escola da

3 Depoimento do mestre Curió, no livro de Luiz Renato Vieira(1998, p, 99). “Mandinga é isso, é sagacidade, é você poder bater no adversário e não bater. É você mostrar que não bateu porque não quis” (Mestre Curió). 24 capoeira teve sua origem num estado de natureza, e desse estado de natureza foram extraídos elementos que formaram seus sabe res, pilares da nossa “capoeira arte -luta”.

Usamos denominação porque acreditamos que antes de serem construídas a Capoeira Regional ou Capoeira Angola, duas escolas que surgiram no século passado e predominam na atualidade; elas já eram capoeira. A capoeira das ruas, das festas, das praças, dos botecos, das matas, dos escravos, dos quilombolas, das prisões, dos libertos, enfim, a capoeira reprimida nos códigos penais do império e da república.

Propomos um diálogo a respeito dessa escola reflexiva, atuante na sua práxis na sociedade; que há muito tempo se manifesta e vive na linha abissal 4 do pensamento e do conhecimento científico, mas que busca regulamentação e emancipação de seus saberes, frutos da luta e resistência que tem sua origem numa cultura popular e nas lutas pela efetivação dos direitos de seres humanos que somos, e não seres selvagens fazendo parte de uma sociedade civil, mas que muitos ainda vivem num estado de natureza (Santos e Meneses, 2009). Seus avanços e retrocessos, como movimento histórico-social desenvolvido em terras brasileiras, na zona colonial situada ao sul do globo terrestre, faz parte de um processo de luta pela emancipação dos seus atores, buscando afirmar a relevância de seus saberes para os povos subalternos.

Hoje, a capoeira, faz um contra-movimento cultural, claro que não na sua totalidade, mas parte dela está engajada, muitos de seus atores fazendo um movimento autônomo opositor à lógica do pensamento moderno ocidental, um movimento que vem resistindo há longa data. “O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis” (Santos e Meneses, 2009, p. 33).

A capoeira em sua origem foi gerada sob a lógica da apropriação e violência, sendo negada, invisível e marginalizada. Seu avanço ao longo dos anos tem sido significativo, entretanto, há uma grande lacuna entre as políticas e a efetivação das mesmas.

4 Termo citado no livro Epistemologias do sul. 2009. Santos, Boaventura Souza & MENESES , Maria Paula. Epistemologias do sul. Edições Almedina S/A Coimbra, Portugal, 2009. 25

A capoeira é uma escola de luta e resistência, que busca um lugar de respeito na sociedade, combatendo o preconceito, principalmente, racial. O interesse em descrevermos como se constituiu esta escola, é no sentido de que possamos entender o processo histórico “como possibilidade e, não como determinação” (Freire, 1996, p, 76), baseados num ideal de liberdade para que possamos “sulear” 5 nossa caminhada para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária, fraterna e solidária.

A capoeira foi levada à ambiguidade, tendo vários sentidos, recebendo mais visibilidade nuns do que noutros. Quando polarizada nas escolas de Capoeira Regional e Capoeira Angola, lúdica e guerreira, escrava e liberta; negra, mulata, indígena, branca e multicolorida (Soares, 2002), ao lado do bem e do mal, sagrada e profana, no seu diálogo, sempre uma relação de poder. Visto que o tensionamento é constante para ter possibilidade de ampliação do espaço de atuação.

Segundo Quijano ( apud Santos e Meneses, 2009) , referindo-se ao poder coloca que “é uma malha de relação de exploração/domi nação/conflito que se configuram entre as pessoas na disputa pelo controle do trabalho, da ‘natureza’, do sexo, da s ubjetividade e da autoridade”(p, 113). Assim, a capoeira vem a longo de séculos lutando e resistindo para ter visibilidade nas relações sociais.

Dentro destas relações, Quijano ( apud Santos e Meneses, 2009), nos mostra como se constituíram as relações de poder dentro das classes sociais; “é um processo de lutas em que uns conseguem submeter outros na disputa pelo controle do trabalho e dos bens de produção” (p,106). Mesmo submetendo-se aos controles, a capoeira, nunca foi privilégio de uma determinada classe social, nasceu nas classes subalternas da sociedade e manteve-se em constantes conflitos com o poder. Este talvez tenha sido um dos motivos de não terem conseguido exterminar com as várias escolas da capoeira.

5 O termo “Sulear” aparece nas obras: de Paulo Freire, Pedagogia da Esperança(1992), Sousa & Meneses, Epistemologias do Sul (2009) e Streck, Redin e Zitkoski, Dicionário Paulo Freire(2010). Na capoeira o gesto de inversão busca sempre um caminho alternativo, onde as pernas apontam para o céu e a cabeça para terra, buscando inverter a lógica do sistema-mundo. 26

Vemos, nas práticas contemporâneas de capoeira, tipos diferenciados de experiências educacionais, dos quais, destaco aqui dois deles. Por um lado, uma escola problematizadora e transformadora, por outro, uma escola reprodutora e adaptadora ao sistema-mundo 6.

Optamos pela primeira escola, movidos pela esperança, o sonho e a utopia de auxiliar na transformação das comunidades, ensinando e aprendendo com nossas crianças e jovens que estão inseridas no contexto capoeira: uma escola problematizadora, onde homens e mulheres desenvolvam uma relação horizontal, dialoguem buscando soluções para os problemas do cotidiano do contexto da comunidade escolar. Problemas estes adquiridos ou herdados de outros tempos distantes da atualidade, oriundos de uma raíz escravocrata na sociedade em que vivemos.

Como Freire (1992) escreveu na Pedagogia da Esperança : “o aprendizado da escrita e da leitura da palavra, que faziam na compreensão do discurso, emergia ou fazia parte de um processo maior e mais significativo – o da assunção da sua cidadania, o da tomada da história em suas mãos”( p. 199).

É fundamental conhecer a história, constituir uma identidade dentro de um contexto, onde se está inserido. Segundo Freire (1992) “ Inventamos a possibilidade de nos libertar na medida em que nos tornamos capazes de nos perceber como seres inconclusos, limitados, condicionados, históricos” ( p. 100). Conhecendo a história conhecemos as origens de nossas limitações, ponto de partida para a transformação dos indivíduos no coletivo, destaca Freire (1992), referindo-se ao trabalho nos círculos de cultura.

Assim, inspiramo-nos nos “círculos de cultura”, lugares ou territórios, onde o métod o desenvolvido por Paulo Freire funcionava para alfabetização de adultos, questionamos, por que não aplicá-lo com a prática da capoeira com crianças e jovens? O método e o círculo de cultura pode acontecer nas rodas de capoeira, a formação de círculos de cultura afro- brasileira, não com a intenção de alfabetização, num primeiro momento, mas com a intenção de que possam fazer e refazer a leitura do mundo, de forma criativa pela via corporal.

6 Este termo é utilizado por Ramón Grosfoguel, no capítulo 13; de Epistemologias do Sul. O sistema-mundo capitalista seria essencialmente um sistema econômico que determina o comportamento dos principais atores sociais através da lógica econômica da obtenção de lucro, manifestando-se na extração de excedentes e na incessante acumulação de capital na escala mundial. SANTOS, Boa Ventura de Sousa; MENESES , Maria Paula. Epistemologias do sul. Edições Almedina S/A Coimbra, Portugal, 2009.

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A capoeira vem ao longo de muitos anos sendo um instrumento de educação, de luta e resistência do povo oprimido e marginalizado. As dificuldades e desafios que os praticantes de capoeira enfrentaram têm fortalecido-lhes, para desenvolver capacidade de resolução de seus problemas, que foram surgindo no caminho no seu processo histórico-social. Nesse processo, os capoeiristas foram construindo e reconstruindo a sua história.

Nas suas raízes, o movimento da capoeira está inserido, principalmente, no movimento do povo negro com suas estratégias de luta e sobrevivência: os movimentos de luta e resistência, fugindo das senzalas; construindo quilombos, locais conhecidos como espaços de treinamentos para guerra.

Segundo Moura (1987), em “ Os quilombos e a rebelião negra” , a força militar dos quilombos tinha como função “se def ender constantemente da repressão dos senhores. Daí, desde o início, terem se dedicado, com esmer o, à sua preparação militar” (p, 44).

Nos estudos de Soares (2002) e Moura (2009) os autores mostram a capoeira surgindo como uma manifestação cultural e política, no período da escravidão, que tiveram suas raízes remotas nas “danças de guerra e rituais tradicionais de povos de África Austral” (Soares, 2002, p. 56). Esses autores falam da capoeira do século XIX, no e fazem referência a Salvador e Pernambuco.

Jair Moura (2009) fala d a “organização e das maltas que obedeciam às disciplinas de uma regulamentação perfeita e um verdadeiro quadro de classe, desde as chefias e subchefias até os carapetas que eram os mais novos, os aprendizes”.

Soares (2002) traz que a presença de brancos quase não existia na primeira metade do século XIX, capoeira era “uma arte negra, e principalmente escrava” (p. 57). Os bandos e maltas de capoeira constituíam confrarias e irmandade secretas de negros, que eram vistos pela polí cia como “desordeiros de rua”. A vadiação para os capoeiristas era vista “como um espaço de sociabilidade escrava, de reconstrução de laço de companheirismo, e até familiares, rompidos com a escravidão e o envio ao Brasil” (2002, p. 57-58).

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Portanto, podemos inferir que a capoeira é invenção dos negros oprimidos, organizados para a sobrevivência em terras brasileiras, com pequena contribuição indígena e dos europeus nos constantes conflitos que se deram ao longo da história da sociedade brasileira.

3.2 A CAPOEIRA SÉCULO XIX

A minha pedra filosofal é o amor, Mas eu acredito que aqui no mundo. Tem o terror, a dor e o sofrimento, O que forma as nossas vidas, São os momentos e sentimentos.

No século XIX, três lugares merecem destaque já que a capoeira teve forte desenvolvimento, por se tratarem de cidades portuárias, cujo fluxo de riquezas econômicas do país transitava e atraía as pessoas de modo geral, são elas: Rio de Janeiro, Recife e Salvador. Remetemo-nos ao processo histórico para que possamos entender melhor alguns traços, que ainda hoje, carregamos conosco no corpo, traços de identidade, que possibilitaram através da luta política garantir a cidadania.

Autores como Soares (2002), Beltrão (2007), Abreu (2005), Moura (2009) e Moura (1987) mostram-nos como a capoeira lutou e resistiu, dialogando com o poder no século XIX.

Soares (2002) mostra a organização dos em maltas no Rio de Janeiro. Diz, que para os negros ficarem na cidade era uma opção política, para se relacionar com o poder. Em seu estudo observa que a capoeira fazia escola nas praças, nas prisões e nas relações sociais, uma escola constituída nas vivências, nas relações e interações entre os sujeitos, através das experiências vividas nas suas lutas diárias.

Moura (2009) por sua vez, revela que a capoeira no século XIX, não era somente atividade das classes populares. Personagens famosos da história, como por exemplo: Floriano Peixoto era praticante de capoeira e se envolvia em confusões. Trazemos este fato para mostrar que a capoeira não é privilégio de ninguém e pelo corpo dá-se o diálogo e as trocas.

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Fazendo referência, aos capoeiras daquela época no Rio de Janeiro, Moura destaca que eles:

Andavam sempre aos bandos e maltas de vinte, cinquenta ou cem homens, precedidos pelos caxinguelês, ou menores vagabundos: provocando conflitos e questões, incomodando pessoas, surripiando cousas, espalhando outras pelo chão, abrindo caminho para as bandas de música militar (Moura apud Filho, 2009, p. 13).

Os caxinguelês eram crianças jovens, que faziam na escola da capoeira seus aprendizados para a vida. Ali eles tinham seus papéis e funções e, iam aprendendo um ofício na arte da capoeira. A escola da vida e da luta pela sobrevivência se constituía no movimento da capoeira.

Beltrão (2007), em “A Capoeiragem no Recife Antigo, os valentes de outrora”, fez uma retomada histórica da segunda metade do século XIX e início do século XX refere que de certa forma, a identidade da capoeira se constitui no lugar no corpo, pela indumentária da época que se perpetua até os dias de hoje. “Os capoeiras e ram cabras ligeiros e saíam em trajes brancos de fino trato, lenço ao pescoço para proteger-se contra navalhadas e eram exímios encantadores poéticos[...] Em sua maioria, possuíam tatuagens” (p.34).

Ser capoeirista , no Recife, naquela época representava “ser perigoso” e dava um certo status e respeito, por parte dos escravos, libertos e agentes repressores do poder. Iniciava ali, naquele tempo, a constituição de uma identidade cultural, construída por um grupo de pessoas que buscava espaço na sociedade, baseado, na mistura de símbolos, tradições, valores ancestrais e da modernidade, onde o corpo era lugar de possibilidades de emancipação social para o povo oprimido.

Os capoeiras eram equiparados aos vadios, no código penal de 1890, herança do império, o qual, no artigo 402, tiveram um lugar de destaque: invisibilizados socialmente passaram a ter uma atenção especial por parte do estado, devido aos seus “exercícios de agilidade e destreza corporal”. O corpo do negro até então instrumento de trabal ho do senhor no império, na república livre passa a ser visto como uma ameaça à sociedade. Antes, escravo e agora liberto, sem trabalho, o negro vadia “nas ruas e praças p úblicas” e nesse s lugares, ensinar e aprender fazia parte da rotina daquelas gentes. A prática da capoeiragem ou 30 vadiagem passou a ser reprimida de forma intensa na república do Brasil. Conhecido pelos sujeitos envolvidos no contexto das rodas de capoeira. O artigo 402 trata:

Dos vadios e capoeiras: Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas, exercícios de agilidade e destreza corporal conhecido pela denominação de capoeiragem; andar em correria com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena – de prisão celular de dois a seis meses. Parágrafo único . É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro.

No artigo acima citado, o parágra fo único: “considerada circunst ância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta”. Primeiramente, banda lembra Recife, e malta do Rio de Janeiro. Em Salvador, terra de bambas, não tem citação de capoeira nas revoltas e nas rebeliões negras da época, segundo Abreu (2005), mas o código penal faz referência aos “chefes” e “cabeças”. Ainda referente às relações de poder na época, muitas das imagens que vemos com negros escravos ou libertos jogando capoeira, geralmente, têm uma autoridade policial na volta.

Assim, no Rio de Janeiro e em Recife, as ruas eram locais de relações sociais, onde ocorriam os processos de ensino-aprendizagem, verdadeiras escolas de sobrevivência, das “Gentes das camadas populares” Abreu (2005). Estas “Gentes” estavam “habituados a vida na rua, onde viviam a maior parte dos dias, fazendo dela seu principal meio de viração, de sociabilidade, a ventura, trabalho e diversão” (p. 156).

A capoeira, primeiramente, construiu-se como processo de resistência histórico-social e cultural, depois constituiu-se num processo de emancipação do povo negro, pardo, branco pobre, imigrantes que mal sabiam falar a língua portuguesa. Pela via corporal a capoeira dialogou com o poder na busca de seu espaço político e social. A escravidão fez surgir à capoeira e o escravo foi o percussor.

3.3 O DIÁLOGO DAS ESCOLAS DE CAPOEIRA NO SÉCULO XX

Que nós vivemos, passaremos e viveremos... Construindo a nossa história, 31

Com fé e glória... Pois é...

Em Reis (1997) aparece, a capoeira, como a “dialética da mandinga”, já em Vieira (1998) aparece como “dialética do corpo”, antropologia e sociologia dialogam ampliando as fontes do pensamento e das reflexões a respeito da capoeira. O diálogo tensiona os limites e, ainda mais, nossas reflexões sobre o tema.

Sodré (2002) faz referência à Manoel dos Reis Machado, Mestre Bimba, “nascido em 23 de novembro de 1899”(p.26), como “corpo de mandinga”, lembrando de tantos nomes de mestres que construíram a história da capoeira, com sangue e suor nesse movimento; nomes como: Mestre Pastinha, Mestre Valdemar da Paixão, Mestre Noronha, Mestre Traíra, Mestre Querido de Deus, Nascimento Grande, Mandunca da Praia; dentre outros que deixamos de citar, mas de fundamental importância para construção do movimento de luta e resistência da capoeira. Refletindo sobre o termo acima destacado entre aspas, e pensando nos corpos, como sujeitos engajados no movimento da capoeira, partimos da perspectiva da corporeidade, tratamos desse como diálogo de “corpos de mandinga”.

Reis (1997) traz o questionamento a respeito do porquê que a capoeira de Salvador teve destaque no cenário brasileiro e não a capoeira do Rio de Janeiro. Acrescentamos, ou a de Recife. Nesta relação de poder, observamos a capoeira de Salvador aproximando-se com manha e malícia. No século XIX, o movimento foi encabeçado, principalmente, pelos negros mulçumanos, os malês, na capital da Bahia, não tendo êxito.

A capoeira surge no século XX, mais “manhosa”, talvez pela repressão sofrida ao longo da história, ou pelo aprendizado adquirido nos corpos mandingueiros, templos sagrados onde guardam riquezas herdadas e adquiridas ao longo da história. Manifestação da cultura popular afro-brasileira, pelo valor do corpo que foi produtor das riquezas nas lavouras de cana-de-açúcar, algodão, café, na pecuária e na mineração.

Com o surgimento do nacionalismo no século passado, uma nova tendência surgiu na sociedade, e consequentemente, a transformação da sociedade de modo geral; o corpo, instrumento do trabalho agropecuário, basicamente, teria que se preparar para trabalhar nas indústrias. Aos povos marginalizados, negros, pardos, brancos pobres e imigrantes sem 32 especialização de trabalho, dentre eles, os capoeiras, restaram apenas as ruas das cidades portuárias, principais locais de entrada e saída das riquezas no Brasil, no início do século XX.

Esses lugares, principalmente nos centros urbanos das cidades portuárias, como já mencionamos anteriormente, seriam os lugares onde a manifestação da cultura popular dialogaria com o poder, constituindo, assim, uma identidade cultural afro-brasileira através de um ‘humanismo prático’ como disse Sodré (1992). Conforme o referido autor, a capoeira é uma atividade que desenvolve uma identidade cultural, resgatando elementos históricos que estão contidos no imaginário dos corpos, como uma forma de resgate de experiências expressivas não verbais.

Em Salvador, o “corpo do negro” teve lugar de destaque no cenário nacional. S egundo Sodré (2002), mestre Bimba começa uma nova era para a capoeira no Brasil. Filho de “Luiz Candido Macha do e Maria Martina do Bonfim”(p . 26), eis o homem pioneiro, ícone da capoeira. Assim que nasceu, ganhou um apelido, um dos elementos que constituem a identidade na comunidade da capoeira.

Mestre Bimba revolucionou a capoeira baiana e a brasileira. Lugares do corpo, identidade e cidadania, e porque não dizer do trabalho, apresentam-se e constituem uma forma de visibilidade para os seus atores. Esse homem inovou, tirou a capoeira de um cenário marginal da rua, colocando-a num lugar de destaque, bem próximo do poder.

Almeida (1982) refere que Mestre Bimba iniciou a prática da capoeira aos 12 anos, com um africano chamado Bentinho, capitão da Cia. de Navegação Bahiana. Nas palavras de Mestre Bimba: “ naquele tempo capoeira era coisa para carroceiro, trapicheiro, estivador e malandros. Eu era estivador, mas fui um pouco de tudo”(p.13 -14) . Se foi um pouco de tudo, foi malandro? Daí a “manha”. “Aos 13 anos de idade, Bimba empregou-se como estivador e permaneceu na profissão até completar 27”( Reis, 1997, p . 129).

Fato é que Mestre Bimba foi “um divisor de águas e um visionário na capoeira”(Campos, 2009; Sodré, 2002). Criou um método de ensino, sistematizo u o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem, inovou e transformou a capoeira daquela época, mantendo os principais fundamentos da cultura afro-brasileira e da cosmovisão 33 africana. Como diz a música: do CD da Abada-Capoeira “do Batuque e da Angola, Bimba criou a Regional”, dois elementos da cultura afro -brasileira.

Segundo Rego (1968) referindo a mestre Bimba, a capoeira é única, com fundamentos básicos iguais que servem de padrão a todos os capoeiristas, “com ginga e determinado número de toques e golpes” (Rego, 1968, p . 32). O que Bimba fez foi enriquecer a capoeira com elementos novos e variações sutis que não descaracterizam a capoeira.

Mestre Bimba, com o “auxilio dos seus alunos”(Campos, 2009, p. 291) aproximou o saber popular do saber acadêmico, o conhecimento empírico do conhecimento científico. Colocou a capoeira em espaços acadêmicos dialogando com o poder, como uma espécie de “Pensamento de Fronteira” Grosfoguel ( apud Santos e Meneses, 2009). Assim, mestre Bimba deu um lugar de destaque para a capoeira.

Os saberes subalternos foram excluídos, omitidos, silenciados e/ou ignorados[...] são formas de resistência que reinvestem de significado e transformam as formas dominantes do conhecimento do ponto de vista da racionalidade não-eurocêntrica das subjetividades subalternas, pensadas a partir de uma epistemologia de fronteira(Grosfoguel in Santos e Meneses, 2009, p,478)

Mestre Bimba utilizou toda sua mandinga e sabedoria, fazendo uso dos saberes da capoeira, para emancipar socialmente seus saberes e conhecimento. O poder é resultado de força e do conhecimento. Seus alunos queriam conhecer os saberes da capoeira e o mestre queria conhecer os saberes acadêmicos. A aproximação entre estes dois saberes cria um pensamento de fronteira, de uma racionalidade de predominância africana, que mesmo excluído, omitido e silenciado resiste e busca a possibilidade de transformar os territórios e espaços onde se movimentam.

Queremos dizer aqui que a construção de Mestre Bimba foi uma construção coletiva, que se deu na troca e no diálogo entre Bimba e seus alunos, entre saber popular e saber acadêmico, entre o poder subalterno e o poder dominante; entre objetividade e subjetividade. Como a aranha que tece a sua teia, com manha e malícia vai apropriando-se do espaço, tensionando e ampliando os seus limites - Mestre Bimba dialogou com o poder, tirou o corpo e negaceou, mas não se ajoelhou, avançando no seu saber. Como diz a música de domínio público: “ dou um nó, escondo a ponta, deixo quem quis er desatar”. Nó de marinheiro, nó de mandingueiro, nó de quem sabe navegar, e de quem sabia, onde queria chegar. 34

Por outro lado, promovendo a inclusão da capoei ra nestes novos espaços, “no exército, em escolas, universidades, clubes sociais, festas cívicas, seminários nacionais [...] até apresentação para o Presidente da República, Getúlio Vargas (Campos, 2009, p. 291); com isso, Mestre Bimba excluiu quem não estava envolvido nesse movimento. Em sua academia somente praticavam a Luta Regional Baiana, Capoeira Regional, trabalhadores e estudantes (devemos entender estudantes como universitários), na primeira do século XX representavam uma elite; com a exigência de aprovação em um exame de admissão, nada fácil, onde os sujeitos necessitavam demonstrar capacidades e habilidades físicas, como flexibilidade, força e resistência.

Para Mestre Bimba, o corpo era lugar de trabalho, e não poderia ser diferente, porque, desde os 13 anos de idade, trabalhara na estiva. Devemos lembrar que o trabalho na estiva, geralmente, é tarefa; e os trabalhadores são tarefeiros, que quando não estão na labuta, estão descansando e/ou vadiando. E o modo de muitos trabalhadores vadiar, desde outros tempos, foi a capoeira. Assim, Bimba, do trabalho no porto, passou para o trabalho na academia concebida como espaço de expressão corporal, de aprendiz respeitado passou à condição de mestre.

Vieira (1998), em seu estudo, percebe e faz referência de uma variedade de elementos da cultura das “classes médias urbanas” no projeto de ensino -aprendizagem da Capoeira Regional:

diversas influências do meio cultural das classes médias urbanas sobre a proposta elaborada pelo Mestre Bimba, tanto em relação à formulação de uma modalidade de jogo de capoeira, essencialmente restrita à função combativa, como também em relação a organização de uma estrutura ritual e valorativa significativamente afastada da tradição do ethos popular (p.176-177).

Porém diríamos, não muito afastada, mas misturada com o ritual acadêmico. O com sua sabed oria na sua “Práxis Capoeirana” (Falcão, 2004) soube dialogar como ninguém com o poder, aproximando o saber popular do saber acadêmico. Misturando elementos da cosmovisão africana, como o tocar, cantar e jogar que estão inseridos no processo de ensino-aprendizagem da capoeira Regional. Aqui, cultura popular e cultura acadêmica misturam-se num processo com múltiplas dimensões. Como dissemos, anteriormente, diálogo de corpos mandingueiros adquirindo o empoderamento. Na 35 academia um poder constituído e determinado pela modernidade, representou a possibilidade de reconhecimento de valores antes negados, por estar jogado às margens da sociedade. Reconhecido sempre pela luta, não pelos seus saberes.

Mestre Bimba, nesse diálogo de corpos mandingueiros, apropriou-se de elementos constituídos pelo poder, para dar visibilidade àqueles que eram invisibilizados pelo sistema. Em seu corpo mandingueiro estavam contidas heranças de raízes africanas e indígenas, herdada e adquirida ao longo dos tempos. Por isso, a curiosidade do Mestre Bimba, em conhecer as palavras, os significados daquele novo universo, representou a possibilidade de aproximação com o poder.

Conversava com seus alunos universitários e demonstrava interesse em conhecer e saber. Nesse processo articulou sua experiência feita com elementos do conhecimento científico, e organizou num processo interativo com seus alunos, a Capoeira Regional.

É claro que teve todo um interesse do poder, que Vieira (1998) trata em seu estudo. Mas teve, também, interesse político por parte de Mestre Bimba. Acreditamos que se hoje estamos fazendo este tipo de estudo, é devido à conquista por Mestre Bimba desse lugar social.

Nesse processo, o mestre, excluiu muita gente, mas incluiu a capoeira como movimento corporal de origem afro-brasileira dentro de uma proposta de Educação Física. Passou a ser valorizada de uma forma positiva, diferentemente, de tudo que já havia, até então e foi ponto de partida para uma nova era da capoeira de inclusão excludente no contexto social.

Como contra-ponto a esse processo de exclusão surge um movimento paralelo, numa outra dimensão da capoeira, que é a Capoeira Angola, antes denominada capoeira ou capoeira tradicional. A Capoeira Angola tem como principal liderança - Vicente Ferreira Pastinha (1889-1981), Mestre Pastinha.

Segundo Reis (1997), Mestre Pastinha, procura manter as raízes africanas na capoeira, recebendo o apoio de alguns intelectuais como Carybé, Mário Cravo e .

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Mestre Pastinha, assim como Mestre Bimba, apresentou uma outra proposta pedagógica. Mestre Bimba mostrou a eficiência da capoeira Regional. Já, Mestre Pastinha apresenta a capoeira como esporte e manifestação da cultura afrodescendente, e diz ser uma “luta violenta” quando necessário, mas traz a questão da subje tividade no jogo da capoeira, representada pela malícia e a mandinga na ginga da capoeira. Ele traz-nos o elemento da espiritualidade inserido no movimento da capoeira. Pastinha tira a capoeira tradicional da rua, mas trata-a como arte e luta. Destaca a poesia, filosofia e religiosidade, que são expressadas no movimento da Capoeira Angola, onde o corpo é templo de saberes constituídos durante um vasto processo de lutas históricas buscando emancipação social.

Abib (2006) em estudo intitulado “Os velhos mestres ensinam pegando pela mão”, traz depoimentos dos guardiões da Capoeira Angola. Valorizando a tradição da cultura popular afro-brasileira e a figura dos mestres destacando algumas categorias dos saberes da Capoeira Angola:

O mestre exerce papel fundamental, e de como essas experiências baseadas na tradição, na ancestralidade, no ritual, na memória coletiva, na solidariedade e num profundo respeito à sabedoria do mais velho[...] podem auxiliar num processo de construção de formas alternativas de se pensar a educação, sobretudo aquela voltada às camadas menos favorecidas da nossa sociedade (p.87).

No avanço desse movimento, a capoeira emancipa-s e, libertando seus sujeitos num processo educacional não-formal. Abib (2006) aponta a figura do mest re como “principal responsável pela transmissão desses saberes as novas gerações”(p.87). Mestre Bimba e Mestre Pastinha, assim como tantos outros mestres, são símbolos de luta e resistência da capoeira.

Vieira (1998), em depoimentos de vários mestres da Bahia, alguns contemporâneos a Bimba e Pastinha, dentre eles, Mestre Curió, Mestre Caiçara, Mestre Canjiquinha, Mestre Paulo dos Anjos, Mestre Waldemar, Mestre Gigante, mostra no seu estudo, como os capoeiras encaravam o contexto como uma totalidade repleta de rituais e mandingas, onde se dava o desenvolvimento dos saberes da capoeira, destacando o aprendizado através de vivências na roda, o desenvolvimento do ritual, a perseguição da polícia e os lugares de expressão dos valentões.

É importante salientar que esses dois mestres, Bimba e Pastinha, foram personagens fundamentais para o desenvolvimento da capoeira na modernidade. Também é importante 37 destacar que muitos outros mestres fizeram parte dessa luta na Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco e em outros estados do Brasil. Mestre Bimba e Mestre Pastinha são protagonistas da capoeira como instrumento de educação e suas escolas se fortalecem na atualidade. Eles contribuíram para que a capoeira fosse reconhecida para esse fim.

3.4 O MOVIMENTO DA CAPOEIRA NA ATUALIDADE

Cada um tem uma história, Uma missão, Que alguém escreveu, Ou não...

Na atualidade o movimento da capoeira avança com seus sujeitos militando em várias frentes de ações, nas várias dimensões da capoeira. O saber popular e o saber acadêmico procuram, através do diálogo, uma forma de ação emancipatória aos seus atores, que formam o corpo do movimento da capoeira.

A sociedade avança de modo geral nos tensionamentos sociais das culturas populares e acadêmicas, que formam parcerias para discutir e debater questões sociais de extrema relevância. A sociedade mobilizada em constantes avanços e retrocessos, tensiona o poder na busca de conquistas de direitos civis fundamentais. A capoeira faz-se presente nesse processo. A constituição de 1988 foi um grande avanço para nossa sociedade de modo geral.

Segundo Baquero e Nazzari (2010) o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) surgiu do artigo 227 da Constituição Federal, mudando concepção de olhar para criança, passando da concepção do direito do menor à proteção integral. Essas autoras referem esta conquista como “resultado das lutas do movimento dos direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil, especialmente de profissionais da assistência social, de juristas e de educadores sociais de rua” (p, 81). Inclua-se nessa citação muitos capoeiristas educadores sociais de periferias urbanas envolvidos no processo de proteção integral de crianças e adolescentes, no Brasil.

Na atualidade, temos visto muitos atores da capoeira engajados e mobilizados na construção e fortalecimento do movimento da capoeira. Instituições que assumem o compromisso de pesquisar e dar vozes àqueles que tanto lutaram para ter visibilidade no cenário nacional. Citamos como exemplo, o “Instituto Jair Moura, em Salvador, do Institut o 38

N’zinga, em São Paulo, e do Núcleo de Estudos sobre Capoeira e Sociedade (NECAS), da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis” (Falcão, 2007, p. 3), esse artigo foi encontrado na rede (internet), e foi apresentado oralmente no apresentado no III Encontro Capoeira e Patrimônio Imaterial no Brasil: perspectivas para a implementação de políticas públicas de salvaguarda da Capoeira. Forte das Cinco Pontas – Recife PE, março de 2007. Falcão é um dos capoeiristas da atualidade, que articula o movimento da capoeira.

Em maio de 2004, aconteceu na cidade de Campinas, em São Paulo, o “I Seminário Nacional de Estudos sobre Capoeira” (SENECA), promovido pelo Grupo de Estudos da Capoeira (GECA), que resultou na carta de Campinas, um documento elaborado pelo movimento da capoeira liderado pelo GECA. Fazem parte deste movimento inúmeros intelectuais da capoeira, lugar onde saber popular e conhecimento científico dialogam, buscando avançar nas conquistas sociais e no reconhecimento de seus saberes e conhecimento.

Em 2008, o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN) reconheceu a capoeira como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira. A capoeira não é um movimento isolado do contexto social, é uma unidade cultural que só pode ser compreendida na sua totalidade. E que ela se justifica como patrimônio imaterial da cultura brasileira pelo “potencial catalisador e agregador de símbolos” nos “aspectos fundamentais da vida (canto, luta, dança, jogo) e da cultura brasileira” (Falcão, 2007, p. 3). Relacionado ainda a questão do IPHAN:

Nesse processo de registro, alguns aspetos devem ser considerados, tais como: as tradições consolidadas, a afirmação das identidades, o processo de esportização, o processo de escolarização, o movimento e a contribuição dos grupos, o processo de internacionalização, as referências significativas da capoeira e a produção do conhecimento, dentre outros (Falcão, 2007, p. 3).

Na citação acima podemos observar quantos aspectos da capoeira existem para serem registrados, avaliados e fomentados como patrimônio cultural brasileiro. Dentre estes todos, muito importantes, destacaríamos, a afirmação das identidades e a produção do conhecimento.

Em Junho 2010, o senador Paulo Paim consegue aprovar no senado o Estatuto da Igualdade Racial (EIR) destacando que : “A capoeira é reconhecida como desporto de criação nacional, nos termos do artigo 217 da Constituição Federal” (Paim, 2011, p, 19). Na seção IV, 39 do esporte e lazer, depois de séculos de luta e resistência se insere num instrumento legal da República do Brasil.

Nessa mesma seção aparece no 1º parágrafo: “A atividade de capoeira será reconhecida em todas as modalidades em que a capoeira se manifesta, seja como esporte, luta, dança ou música, sendo livre o exercício em todo o território nacional ” (Paim, 2011, p . 19). O exercício livre da capoeira, que antes era proibido no Código Penal da Republica Velha de 1890, agora é permitido pela carta magna do país a partir de 2010, 120 anos para garantir o direito do livre exercício no papel.

No 2º parágrafo, aparece: “É facultado o ensino da capoeira nas instituições públicas e privadas pelos mestres tradicionais, pública e formalmente reconhecidos” (Paim, 2011, p. 19). Esse direito que está assegurado no papel, na prática é um pouco diferente. Aos mestres tradicionais que, às vezes, possuem o conhecimento da cultura da capoeira, que geralmente é passado pela oralidade, se não se apropriam da cultura letrada tem muita dificuldade de acesso, às instituições públicas e privadas, para exercer a função de mestre de capoeira. O mesmo estatuto refere a capoeira junto à Constituição Federal no Art.216.

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressões; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações cientificas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações, e demais espaços destinados as manifestações artístico-culturais (Constituição Federal, 2009, p. 170).

Destacamos estes quatro itens da constituição federal como tema de extrema relevância na capoeira.

No Estatuto da Igualdade Racial, na seção da Cultura Art. 20, está registrado que o poder público garantirá o registro e a proteção da capoeira, em todas as suas modalidades, como bem de natureza imaterial e de formação da identidade cultural brasileira. Parágrafo único: o poder público buscará garantir, por meio dos atos normativos necessários, a preservação dos elementos formadores tradicionais da capoeira nas suas relações internacionais.

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Aproximando-nos, e fazendo a leitura dos companheiros e companheiras, e percebendo a direção desse movimento da capoeira, juntamente com os instrumentos legais do direito, buscamos uma forma diferente de atuação no contexto educacional. Uma forma que não reproduza a lógica do mercado capitalista. Que dê oportunidade de emancipação aos seus sujeitos envolvidos nesse movimento. Podemos identificar os avanços em termos de constituição de direito, no papel a conquista, mas na prática há muito que lutar para efetivar este direito de fato.

O ECA e o EIR representam avanço nas conquistas do povo para o nosso olhar, principalmente, das minorias sociais. O ECA representa um avanço em direção à construção da cidadania das crianças e adolescentes, ou seja, os jovens menores de idade. Ali, seus direitos e deveres estão destacados em relevo.

Já no EIR a capoeira ganha um lugar de destaque tanto no que diz respeito ao corpo, quanto à questão da identidade cultural. Isso é relevante para este estudo no qual tratamos da capoeira dos oprimidos socialmente, dos “negros livres, criou los, pardos, brancos pobres, imigrantes estrangeiros, toda a vasta variedade de excluídos” (Soares, 2002, p. 576).

Procuramos utilizar os múltiplos saberes contidos no contexto da capoeira e os instrumentos legais como forma de dispositivo pedagógico para transformar “ os lugares da exclusão social ” de que tratam Stoer, Magalhães e Rodrigues (2004), e ajudam a promover uma educação emancipatória dos sujeitos, principalmente, das classes populares das periferias urbanas.

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4. O NOSSO MICRO NO MACRO MOVIMENTO DA CAPOEIRA: UM CAMINHO DE POSSIBILIDADES

Uma história de luta e resistência. Uma história de sobrevivência. Uma história de poder e glória. Uma história de miséria, Mas uma história. Uma história de dor e sofrimento. Uma história de lamento. Lamento... Mas não vou esperar. Lamento... Mas eu vou lutar!

Como referido no inicio deste trabalho, iniciamos nosso projeto de capoeira na E. M. E. F. Migrantes, com o “Projeto Parceria Solidária” numa parceria público/privado idealizada pelo Instituto Maria Auxiliadora, no ano de 2005. Em 2006 foi implementado o “Programa Escola Aberta” na E scola Migrantes.

A carga horária foi ampliada com o programa “Escola Aberta”, uma parceria da UNESCO, com o governo federal e o governo municipal. O programa Escola Aberta funciona aos finais de semana. É um programa que tem por objetivo contribuir para a melhoria da qualidade da educação, a inclusão social e a construção de uma cultura de paz, por meio da ampliação da integração entre escola e comunidade 7; ampliação das oportunidades de acesso à formação para a cidadania e redução de violências na comunidade escolar. Com esse programa passamos a ter duas aulas semanais, ampliando assim, a movimentação de cultura da capoeira no contexto da comunidade escolar 8.

Com a implementação do programa “Mais Educação” passamos a ter aulas de capoeira na escola de segunda a sábado, durante o ano letivo de 2010. Hoje, podemos perceber a

7 Quanto a comunidade: “uma peculiaridade desta população é que ela é composta majoritariamente de migrantes, de origem rural, da região das colônias alemãs do Estado, colonos sem-terra , apresentando fortemente esta característica étnica e cultural. Apesar da precariedade das condições de vida, a cooperativa de catadoras de lixo pode ser tomada como um caso bem sucedido de mobilização e organização, além de exemplar no que se refere ao aproveitamento e transformação de lixo. A população conseguiu também um posto de saúde comunitário, uma creche e uma escola primária, que esta em construção” (Achutti, 1997, p . 12). 15 anos, após está leitura de mundo e da realidade da Vila Dique, feita por Achutti, na sua dissertação de mestrado, em antropologia visual. 8 Quando me refiro à comunidade escolar, me refiro a professores, direção, funcionários, alunos e pais de alunos e familiares. 42 identificação da comunidade escolar com a capoeira na cultura escolar. O movimento da capoeira transita da comunidade para a escola e da escola para comunidade. Nos eventos da capoeira na escola, ela dialoga e interage com os sujeitos. Através da música, da arte, na história, na literatura, principalmente, através da dialética corporal, a capoeira está cada vez mais presente na cultura escolar e na comunidade da Vila Dique.

Na medida em que o tempo passa o movimento da capoeira vai firmando seus passos, e criando raízes dentro da comunidade, principalmente, no “Programa Escola Aberta”. Quando usamos, desenvolvemos, é porque, temos um grupo de alunos que trabalham comigo na escola. Alguns desses alunos começaram na própria escola, há quatro ou cinco anos atrás e estão preparando-se para trabalhar como oficineiros de capoeira em outras escolas, próximo da comunidade e em outras comunidades.

Neste estudo temos como objetivo problematizar e analisar a capoeira enquanto dispositivo de educação emancipatória junto a crianças e jovens da comunidade escolar que praticam capoeira. Como mencionamos, anteriormente, nosso desafio é responder a seguinte questão: Quais as mudanças geradas pela prática da capoeira nos processos de ensino- aprendizagem em termos, de corporeidade, identidade e cidadania para jovens de classes populares no contexto de uma escola de periferia urbana?

Como nosso trabalho foi desenvolvido visando emancipação humana dos jovens, que vivenciam a capoeira no contexto da comunidade escolar. Partimos da premissa de que é importante uma referência corporal para os praticantes de capoeira, para que os alunos e alunas possam ter um sentido para suas vidas, ou seja, um exemplo a seguir. Entrando nesse contexto as figuras dos mestres e professores, os mais velhos e experientes na capoeira, sendo o ponto de partida do trabalho.

Como diz, Abib (2006) no seu estudo, intitulado: “Os velhos capoeiras ensinam pegando na mão”. É por aí que iniciamos a nossa prática. Um ponto de partida em nosso trabalho é que os mais velhos devem ensinar os mais novos, os mais velhos devem cuidar dos mais novos. Tendo cuidado e ensinando os mais novos, os mais velhos aprendem a construir uma relação de respeito e admiração com seus pares, num processo de parcerias solidárias. Aproximação e afeto ajudam no processo de educação que visa a emancipação humana dos sujeitos inseridos no processo. 43

Campos (2009) numa homenagem que fez para Mestre Bimba destacou em seu estudo:

A Mestre Bimba, que um dia me pegou pelas mãos e na roda me ensinou a gingar, a ter fluidez nos movimentos do corpo e da alma; me fez olhar o mundo diferente, extrapolando o limite pobre do corpo, e a emergir no privilégio dos sonhadores de tocar as estrelas pela infinidade do espírito (p. 294).

Na citação acima, podemos observar e aproximar a prática da escola de mestre Bimba com a capoeira Angola, que foram fundadas na Bahia e, hoje, ganham o mundo. Campos, conhecido na capoeira como mestre Xaréu, chama atenção para a prática do mestre, de pegar pelas mãos e ensinar a gingar. Esse gesto é histórico na prática da capoeira, ele também fala da fluidez do corpo e da alma, e da infinidade do espírito. E o que é mais relevante, “extrapolando o limite pobre do corpo, e a emergir no privilégio dos sonhadores de tocar as estrelas pela infinidade d o espírito”. O que é uma utopia a importância de ter um sonho e construir um projeto de vida.

Neste trabalho, procuramos valorizar a relação dialógica dos mais experientes com os iniciantes, dando ênfase ao respeito à ancestralidade, aos que vieram e lutaram antes. Aos mais velhos cabe transmitir os saberes da capoeira pela oralidade, num primeiro momento, saberes musicais e gestuais cheios de conteúdos históricos, saberes relacionados à ritualidade e à magia da capoeira.

Trabalhamos a capoeira com elementos da cultura afro-brasileira numa perspectiva multicultural e intercultural. Dialogando e interagindo com as manifestações da cultura popular brasileira, procuramos oportunizar aos alunos vivências com mestres de várias regiões do Brasil, pois pensamos que quanto mais oportunidades e desafios, maiores serão as possibilidades de aprendizado dos alunos. Dessa forma, procuramos oportunizar vivências, dentro e fora da escola, com mestres e professores de diversos lugares e com diferentes saberes da capoeira e da cultura afro-brasileira. Ao longo desses anos de atividades, nossos alunos conheceram gente de fora e de dentro do país. Entre mestres, professores e alunos, gente da Bahia, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e de varias regiões do Rio Grande do Sul, gente que veio da Alemanha, Portugal, Espanha e Uruguai.

Os eventos, dentro da comunidade escolar, são sempre bem recebidos. Cursos de musicalização, aulas de percussão, confecção de instrumentos e danças como: maculelê, samba de roda; dramatização da puxada de redes. Criamos arte e produzimos vários vídeos 44 dentro do projeto de capoeira na escola, tudo com intenção de oportunizar uma possibilidade de emancipação humana, dentro da escola. Hoje, nossos alunos, estão conectados nas redes sociais utilizando as tecnologias e percebendo-se como sujeitos atuantes no mundo e no movimento da capoeira.

A capoeira avança, cria e recria novas ferramentas como possibilidade de emancipação humana. Como disse Falcão (2004), na sua tese de doutorado - “O jogo da capoeira em jogo: a construção da práxis capoeirana ”:

A principal luta do capoeira (capoeirista) , nos dias de hoje não deve ser contra um determinado feitor, individualmente, como acontecia antigamente, nem tampouco, contra outros praticantes de capoeira; a luta da capoeira deve ser contra todo e qualquer tipo de opressão, discriminação e pela construção de uma sociedade universal efetivamente justa, livre e democrática (Grifo meu, p. 338).

Antigamente, os feitores e capitães do mato eram homens que conheciam os segredos da capoeira, porque também eram oprimidos pelo sistema, utilizavam estes conhecimentos para tirar proveito em beneficio próprio. Oprimindo e discriminando os mais fracos, inibindo as possibilidades de desenvolvimento e libertação através de uma “ação cultural antidialógica” Freire (1980) numa lógica de apropriação e violência.

Sendo, assim, nossa luta é, principalmente, pela “construção de uma sociedade ma is justa”, fraterna e solidária, através da “ práxis capoeirana” com intenção de alcançar a construção de um projeto “materiali zado a partir de uma visão de qualidade social para todos, baseada na racionalidade dialógica , regida pela ética de um projeto histórico de emancipação humana e de sociedade que busque a superação das estruturas capitalistas” (Falcão, 2004, p. 355). Partindo desse pensamento de Falcão temos que superar a lógica do capital, mas é preciso compreender os mecanismos que movimentam esse processo.

Para isso, temos que entender o que é exclusão social e, quais os fatores que a produzem. Como é entendido o conceito de exclusão social? Questão fundamental tratada por Martins:

O conceito de exclusão,[...] é caracteristico da sociedade capitalista, desde a sua origem, a exclusão, isto é, o desenraizamento. É própria da sociedade capitalista a tendência de destruir as relações sociais que não sejam capitalista [...] O capitalismo faz isso para incluir. Porque é que precisa incluir? Porque ele precisa transformar cada 45

ser humano, não importa a cor, altura, tamanho, peso, beleza em membro da sociedade capitalista (2002, p.120).

Stoer, Magalhães e Rodrigues(2004) tratam de cinco lugares específicos da exclusão social, são eles: o lugar do corpo, do trabalho, da identidade, da cidadania e do território. No presente estudo, focalizaremos os lugares do corpo (corporeidade), identidade e cidadania.

O corpo lugar de múltiplas dimensões conectadas e interligadas num contexto histórico-social e cultural, onde filosofia, antropologia, teologia, sociologia, psicologia e educação interagem construindo e reconstruindo-se, compondo-se e recompondo. “O estudo dos significados e das influências do corpo tem vindo a ser designado corporeidade” (Stoer, Magalhães e Rodrigues, 2004, p. 32).

A capoeira envolve um jogo de corpos de mandinga, ou seja, objetividade e subjetividade de um ser que vai desvelando suas limitações e vai sendo estimulado a superá- las num processo de interação entre os diversos sujeitos inseridos num determinado contexto social. Mediados pelo mestre ou pelo responsável do grupo no espaço, ela é utilizada como estratégia para tirar as crianças e jovens do lugar da aparente acomodação, levando-os para um lugar de problematização do sistema-mundo.

Stoer, Magalhães e Rodrigues(2004) referem que o “jogo testa as possibilidades do jogador, fazendo-o ir mais além, levando-o a assumir riscos tornando o seu corpo um desafio não redutível à obediência a normas sociais e em freqüente divergência com códigos morais estruturados”(p . 35). Como vimos, ao longo de sua construção, a capoeira nunca deixou de lutar por um lugar ao sol na sociedade. O corpo do escravo veio como instrumento de ganho para o senhor, e ste mesmo corpo sempre resistiu à situação imposta pela ordem social. “ O corpo é, assim, não só a sede da experiência no mundo, mas muitas vezes o lugar da resistência a uma ordem social que a pessoa ou os grupos não querem aceitar” (Stoer, Magalhães e Rodrigues, 2004, p. 35-36).

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Os referidos autores destacam três estágios da comunicação corporal que são: precedência, permanência e visibilidade, respectivamente. O corpo comunica antes de qualquer outra forma de comunicação, nos movimentos as crianças expressam seus sentimentos, suas emoções, seus anseios; o corpo fala sem dizer uma palavra, a mensagem não-verbal é mais forte que a mensagem verbal, o corpo sempre vai dizer mais que a palavra; o corpo é um cartão de visita, diz antes de as pessoas falarem.

A capoeira ensina crianças e jovens a relacionarem-se com o ambiente que os cercam, ampliando a possibilidade de comunicação com outros espaços. Com seus pares, seus parceiros, seus amigos, seus afetos e, até mesmo, seus desafetos. Ela passa valores como respeito aos mais velhos, aos ancestrais.

Pela via corporal, a criança aprende a ter noção espacial, para chegar e sair dos lugares, respeitando as culturas locais onde os movimentos acontecem. “ O corpo comunica, pela proxémia, isto é, pelo estabelecimento e gestão da distância interpessoal durante a comunicação. A proxémia depende de aspectos interculturais e intraculturais. Existem, assim, culturas em que o espaço de comunicação entre dois interlocutores é menor do que em outras”( Stoer, Magalhães e Rodrigues, 2004, p. 40).

No “jogo de dentro e jogo de fora, valha -me Deus, minha nossa senhora” 9. E o capoeira respeita para não ultrapassar os limites, e não correr risco de machucar-se. Desde muito cedo a canção alerta, anuncia, explica ou descreve os acontecimentos. Chegando na escola é necessário para a aproximação com os alunos; é pelo corpo que procuramos fazer este primeiro contato de encantamento, utilizamos a poesia e a musicalidade para atrai-los, além dos movimentos que chamam atenção e despertam curiosidades nas crianças.

O toque é fundamental, pois a afetividade aproxima os sujeitos, humanizando mais o contexto da escola, muitas vezes violenta pelas injustiças da sociedade. Assim, como a figura do mestre é ponto fundamental de partida, os alunos são essenciais para o desenvolvimento do dialogo. Mestre e discípulos completam-se, não existe mestre sem discípulos e vice-versa. A

9 Esta música de domínio público dita a condição de jogo para o capoeira. 47 roda é o lugar das trocas de conhecimentos e saberes. Uma roda marca a origem de todo processo de transformação.

Um círculo de cultura afro-brasileira, espaço de trocas de ensino-aprendizagem onde o movimento não cessa, é constante, e a disciplina é fundamental para o desenvolvimento do processo que culmina no ato de conhecer os gestos, as músicas, as histórias, o ritual da capoeira.

Na roda de capoeira a gestualidade, a ritualidade, a musicalidade e as histórias do passado e do presente poderão apontar para um possível sentido para os sonhos que virão. Numa única linguagem, em múltiplas dimensões e múltiplos saberes, através do corpo apontando para construção de uma identidade cultural, constituída no ambiente da comunidade escolar.

Temos a possibilidade de construir uma identidade na s vivências da capoeira. “ A identidade é um processo de criação de sentido pelos grupos e pelos indivíduos [...] tanto o individual como o coletivo – é um processo no qual a narração como a narratividade assumem um papel central” (Stoer, Magalhães e Rodrigues, 2004, p. 97).

Quando trazemos a questão da construção da identidade através da capoeira, não queremos impor algo para nossos alunos, mas sim, oportunizar para eles a descoberta de outros caminhos, outras possibilidades. Dentro do contexto escolar, a capoeira insere-se com um vasto conteúdo sócio-histórico e cultural para dialogar com a comunidade escolar, e através do diálogo possibilitar a construção de uma identidade cultural, como nos trazem Stoer, Magalhães e Rodrigues (2004):

As (im)possibilidades da construção de identidade encontram-se delimitadas por aquilo que Santos (1995) denomina “espaço estruturais”, que incluem o espaço doméstico, o espaço de trabalho, o espaço da cidadania, o espaço comunitário, o espaço do mercado, e o espaço mundial, e que representam, ao mesmo tempo, tanto um lugar relativo como um lugar central na construção da identidade (p. 97/98).

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A escola da capoeira é um lugar de construção de identidade. Faz com que seus atores identifiquem-se “com o exercício de p apé is e de funções que articulem necessidades sociais” (Stoer, Magalhães e Rodrigues, 2004, p. 137). Ela está inserida no contexto da escola formal. Os seus saberes na roda de capoeira constituem um movimento, que se movimenta da escola para a comunidade e vice-versa. Recebemos neste processo desafios constantes, que vamos problematizando com a comunidade e com os sujeitos que compõem a mesma. As dificuldades encontradas nesses “espaços estruturais”, nos fazem buscar soluções e, no diálogo, tensionar os limites em busca de respostas para os problemas encontrados.

Através da superação dos limites encontramos possibilidades de descobertas para os sujeitos envolvidos no processo dessa construção. Mediamos esse processo dialogando, mostrando, compreendendo e alimentando possibilidades de construção de possíveis sonhos para a emancipação humana, que penso passar pela emancipação educacional.

Na capoeira existem múltiplas linguagens capazes de estreitar os vínculos entre mestres-alunos. Essas linguagens proporcionam possibilidades de resgate e fortalecimento de autoestima construindo uma identidade cultural baseada na história e na cultura afro- brasileira, estimulando vários canais de comunicação através dos sentidos humanos.

Campos (2009), o Mestre Xaréu, no seu livro: Capoeira Regional: a escola de Mestre Bimba; Salvador diz:

Cremos que a educação é mediada pelo mundo em que se vive, formatada pela cultura, influenciada por diversas linguagens, impactadas por crenças, clarificada pela necessidade, afetada por valores e moderada pela individualidade. Trata-se, portanto, de uma experiência vivenciada na realidade empírica, com a interação entre a cultura e a sociedade personalizada, pelo processo de criar significados, pelas leituras e visões pessoais do mundo em que se vive (p. 90).

A capoeira cria seus símbolos que são importantes para a manutenção do processo histórico e cultural. No contexto da comunidade escolar podemos perceber que nossos alunos têm símbolos adquiridos na própria comunidade.

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Canário, um dos sujeitos de nossa pesquisa, falava-nos, de um jovem chamado Rafinha, que tinha em torno de 16, 17 anos de idade. Era um ídolo para ele e outros meninos da comunidade. Falava com tamanha empolgação, que ficamos curiosos para conhecê-lo. Que o Rafinha er a muito rápido. Que o Rafinha “era o cara”, como dizem na gíria. Dizia ele: “ - O Rafinha vinha correndo, colocava o pé na parede ou num carro dava um impulso e girava um salto mortal”.

Aquele garoto realmente mexia com a imaginação e com o mundo simbólico do Canário e de outras crianças. Os símbolos alimentam os sonhos de muitos dos jovens da comunidade. Para algumas crianças, principalmente para o Canário, o Rafinha era referência corporal de atitudes e identidade. “Os símbolos contam histórias, report am-se ao povo, aos seus costumes, seus credos, suas linguagem, assumindo, assim, um dado antropológico universal”( Campos, 2009, p . 164).

Continuando a história do Canário referindo-se ao Rafinha, depois de tanta empolgação da parte dele, e confessamos da nossa também, quisemos saber onde estava este tal Rafinha tão falado. Ele disse que o Rafinha havia morrido num acidente de automóvel. Depois de roubar um carro, fugindo da polícia. Bateu com o carro e morreu na hora. Porém ele carregava Rafinha como ídolo. Para o Canário, as proezas corporais do Rafinha, eram mais significativas do que suas atitudes. O fato de ele ser ladrão de carro e ter morrido daquele jeito, não tirara o brilho do ídolo daquelas crianças.

Podemos observar, na narrativa acima, o encantamento e a identificação de um de nossos sujeitos, por um garoto mais velho que foi referência corporal para ele. E aí destacar a importância das referências simbólicas, dos ídolos para as crianças da comunidade onde trabalhamos. A referência que destacamos é no sentido positivo da conduta corporal e do exemplo de caráter, personalidade, e a importância de ter esta referência por perto. Servindo de contra-ponto a esta cultura consumista, individualista e neoliberalista que está posta na nossa sociedade.

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Na capoeira procuramos criar estes ídolos, utilizando como referência os velhos mestres guardiões da ancestralidade da capoeira, símbolos como: Zumbi dos Palmares, Bezouro Mangangá, Mestre Bimba, Mestre Pastinha, etc.

Na capoeira aprendemos a respeitar o medo, e consequentemente, pela luta, superá-lo. Respeitando nossas limitações vamos desenvolvendo a capacidade de diálogos, e através dos corpos de mandingas desenvolvemos o interesse pelo aprendizado das palavras, depois de aprendermos a fazer a leitura do mundo, adquirindo consciência de sermos seres humanos inacabados, como disse Freire:

O inacabamento do ser humano. Na verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento [...] A experiência humana no mundo muda de qualidade com relação a vida animal no suporte. O suporte é o espaço, restrito ou alongado, a que o animal se prende ‘afetivamente’ tanto quanto para resistir; é o espaço necessário a seu crescimento e que delimita seu domínio (1996, p. 50).

São exatamente estas superações dos limites espaciais na vida dos homens e das mulheres, envolvidos no movimento da capoeira, e o desenvolvimento de suas consciências críticas, que fazem com que os capoeiristas dêem-se conta de suas possibilidades como cidadãos, aprendendo a conhecer seus direitos e deveres, o que ajuda na construção da cidadania dos sujeitos envolvidos nesse contexto.

Tendo como base o contrato social de Rousseau 10 , o que de fato eles possuem? “O Estado atribui um conjunto de direitos e de deveres aos indivíduos no acto pelo qual estes se tornam cidadão”( Stoer, Magalhães e Rodrigues, 2004, p, 137). Muitos alunos ainda vivem num estado de natureza. Alguns “cidadãos” não são cidadãos na sua plenitude porque ainda se encontra m, assim por dizer, “em desenvolvimento” (Stoer, Magalhães e Rodrigues, 2004, p. 137).

10 O que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o tenta e que ele pode atingir; o que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui ( Rousseau, Jean Jacques. O contrato social, 2010, p. 38). 51

E o que de direito eles têm? Possuem o seu corpo como instrumento de trabalho, o direito de lutar pela sobreviver e o direito de descobrir que unidos numa ação cultural dialógica de colaboração, cooperação e síntese cultural (Freire, 1980) podem ver a história como possibilidade emancipação humana e não como determinação e perpetuação da violência.

Nosso esforço aponta para construção da cidadania de fato, apesar de todas as dificuldades. Conforme assinala Silva: na Revista Educação, em História da Pedagogia, dezembro de 2010, Paulo Freire: “[...] Me parece demasiadamente óbvio que a educação de que precisamos, capaz de formar pessoas criticas, de raciocínio rápido, com sentido do risco, curiosas, indagadoras, não pode ser a que exercita a memorização mecânica dos educandos” (Silva, 2010, p. 78).

Mas quando entramos na comunidade e vimos o descaso das autoridades, com relação ao saneamento básico, água, calçamento, infraestrutura, e percebemos, falta de conhecimento por parte da grande maioria dos moradores relacionados aos seus direitos de cidadãos, para estas questões relacionadas à saúde, educação ambiental e higiene, observamos a reprodução da sociedade de consumo e a hierarquia vertical como acontece. E não podemos nos conformar com a falta de condições humanas de vida. Sabemos que somos uma pequena frente contrapondo-se à lógica da sociedade capitalista. Esta lógica do mercado e do consumo, que tem na mídia um aliado eficiente. No entanto, continuamos no nosso micro movimento de ação cultural dialógica na busca de uma educação emancipatória para nossas crianças e jovens de periferias urbanas.

4.1. CAPOEIRA NA PERIFERIA, OLHAR E ESCUTA AOS SUJEITOS

Na primeira parte do capítulo quatro, procuramos fazer uma explanação geral do micro universo da capoeira na escola Migrantes, relacionando com o macro universo da capoeira, acompanhado de autores que estudam a capoeira como instrumento de educação, fazendo uma relação com lugares de processos de (ex)inclusões sociais.

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Na segunda parte do capítulo quatro mostramos os resultados da pesquisa, dividido em três partes, para responder a seguinte pergunta: quais as mudanças geradas pela prática da capoeira nos processos de ensino-aprendizagem, em termos de corporeidade, identidade e cidadania para jovens de classes populares no contexto de uma escola de periferia urbana? Dividido em: Capoeira e corporeidade, capoeira e identidade e capoeira e cidadania.

Desta forma pretendemos dar conta do objetivo geral deste estudo que é problematizar e analisar a capoeira enquanto possibilidade de educação emancipatória junto a jovens de periferias urbanas , no contexto de um projeto desenvolvido em uma escola municipal situada em Porto Alegre/RS. Como objetivos específicos havíamos proposto: descrever como se desenvolve e se fortalece a corporeidade através da prática da capoeira; identificar como se constrói e se estrutura a identidade cultural através da prática da capoeira; examinar como é possível a edificação e o alicerce da cidadania de fato no espaço da prática da capoeira.

4.1.1 CAPOEIRA E CORPOREIDADE

Buscando problematizar o tema em questão, temos como objetivos específicos: Descrever como se desenvolve e se fortalecem os corpos dos sujeitos inseridos nesse contexto sócio-histórico-cultural da capoeira, numa escola de periferia urbana. Trazemos algumas perguntas para que possamos dissertar sobre o tema: capoeira instrumento de educação emancipatória para jovens de classe populares.

Como a prática da capoeira ajuda os sujeitos, que atuam nesses espaços, a construírem e fortalecerem seus corpos, entendendo corpo na concepção de corporeidade? Como os sujeitos participantes desse processo, nesses espaços constroem possibilidades de emancipação humana através da corporeidade? De que forma os sujeitos interagem nesse processo com seus pares? Como os sujeitos identificam-se com o processo nesses espaços, com seus pares e com a prática da capoeira? Por que os sujeitos identificam-se com a prática da capoeira?

Através dos rituais inseridos no contexto da capoeira e dos fundamentos que formam estes rituais na roda de capoeira e na vida dos capoeiristas, os sujeitos vão construindo e fortalecendo os seus corpos.

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4.1.1.1 CAPOEIRA: CORPOREIDADE E A MÍSTICA DA RODA

Nosso ponto de partida é a roda de capoeira, principal lugar onde ocorrem os processos de ensino-aprendizagem nesse contexto. A origem do movimento está marcada no principio da roda de capoeira, que através dos cânticos no trabalho desenvolvido, o mestre ou responsáveis pela organização, propõe uma ordem no sentido de ordenar, organizar as coisas que acontecerão. O dialogo dá-se através da musicalidade no primeiro momento. Esse é um tempo de preparação, de meditação, de contemplação e de reflexão. Cabe aos jogadores e sujeitos inseridos no contexto, ouvirem e interagirem com as propostas em questões.

As músicas dizem e cantam histórias do passado, do momento e de possibilidades de futuro, visto que começam as manifestações da corporeidade nos sujeitos da nossa pesquisa, conscientemente ou não, eles internalizam valores que são repetidamente trabalhados nos versos, nos gestos e nas posturas dos capoeiristas mais experientes.

A pedagogia do exemplo e o método da observação são constantes nesse processo. Já que as interações entre os mais velhos e mais novos são fundamentais para o desenvolvimento dos capoeiristas. Os mais velhos devem sempre ser referência, positiva para os mais novos. Dizemos isso, porque, sabemos que nem sempre os mais velhos e melhores são boas referências para os mais jovens.

O mestre ou responsável pela roda de capoeira e pelo espaço, onde está se desenvolvendo, certamente, deve ter traçado suas estratégias antes de iniciar as atividades. Pela sua experiência deve saber o tempo de roda e de jogo sendo flexível aos acontecimentos inseridos no espaço, sempre ter em mente suas propostas de ação, de trabalho bem como a finalidade de cada evento, para oportunizar o desenvolvimento da corporeidade dos aprendizes da arte-luta capoeira.

Entendendo corporeidade como a totalidade do ser humano, onde “sentir, pensar e agir ” (Gonçalves, 1994) são dimensões do mesmo ser, cabe, à figura do mestre, mediar este processo com os aprendizes da capoeira. Sendo ele um agente dialógico propondo através da cultura afro-brasileira uma possibilidade de conhecerem a capoeira, e assim, construírem e fortalecerem sua corporeidade.

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Fotografia 1. Genaro e Sasá abaixados no pé do (2011).

Na fotografia 1 podemos observar a postura descansada de Genaro, pés descalços, firme no solo, de olhar atento aos acontecimentos e ao canto na bateria. Enquanto, Sasá em meia ponta dos pés, de chinelo de dedo observa o entorno. Olhos e ouvidos sempre atentos aos acontecimentos na roda de capoeira. As palavras cantadas, os gestos expressados, o movimento no entorno, tudo é elemento de aprendizagem, num momento que é de transição e contemplação na mística da capoeira que ocorre constantemente, em cada jogo, em cada roda.

O ritual de iniciação do jogo da capoeira, que é princípio básico da capoeira, lugar de múltiplas manifestações do corpo na sua totalidade. O corpo, às vezes, cheio de mandingas para serem desenvolvidas ou fortalecidas, principia ao pé do berimbau.

O princípio de um micro movimento na roda de capoeira. Ao pé do berimbau “o caboclo pede axé”, repetidas vezes, cantada nos versos da música do mestre Toni Vargas, assim, como “o axé desse terreiro, vem do fundo do chão”. É no fundo do chão, que estão enterrados os ancestrais da capoeira, homens e mulheres que construíram através da luta, os espaços onde, hoje, atuamos.

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Na memória do nosso povo, estão todos aqueles que lutaram e resistiram para preservação da capoeira, e cabe aos mais velhos que têm conhecimento desses fatos, fazer vir à tona estes saberes para o fortalecimento da nossa capoeira arte-luta.

Genaro é um dos poucos afro-descendentes, presente na capoeira nesse contexto. Mas o seu gosto, desenvolvimento, postura, escuta, trejeitos, ritmo, afinidade, alegria, prazer no praticar, espontaneidade; são questões que nos mostram a transcendência da corporeidade, seu olhar sempre atento e astuto, repousando descansadamente sobre os seus pés descalços no chão, à espera de um sinal e sua cabeça erguida, com olhar atento aos acontecimentos da roda.

Os pés e a cabeça atentos aos códigos que estão sendo transmitidos oralmente pelos mais velhos e experientes na roda. Volta e meia chama atenção do mestre para o sinal de Iê! Esse sinal tem a intenção de chamar atenção, de indicar o término de um jogo, consequentemente, o início de outro.

O mestre toca o berimbau, que é ponto de partida da roda de capoeira, ao lado direito tocando o atabaque (tambor) um professor/aluno que o acompanha, desde 1994 quando tinha 11 anos de idade, sujeito participante da pesquisa, professor Cabeleira; do lado esquerdo o aluno/aprendiz Canário, que pratica capoeira na comunidade desde 2005, quando iniciou o projeto de capoeira, na escola Migrantes, ele toca o pandeiro. Neste caso, a bateria da capoeira é composta por três instrumentos (atabaque, berimbau e pandeiro) devido à praticidade.

Na capoeira o corpo é lugar essencial de manifestações do sagrado e do profano na sua totalidade, na sua plenitude. Nas várias dimensões corporais inseridas no contexto da capoeira, o capoeirista aprendiz potencializa seu processo de conhecer no processo de ensino- aprendizagem que ocorre na roda. O corpo negro, antes de ser negro é corpo humano. Numa comunidade, que formou-se na periferia da capital do estado do Rio Grande do Sul, tendo como base maior, pessoas que vieram do interior do estado de origem italiana e alemã, formada de colonos sem-terras.

Cantando, o mestre chama atenção de um menino, que estava de braços cruzados na roda, quando deveria estar batendo palmas, os olhares se cruzam cheio de significados e gestos, o corpo fala não apenas pelos versos das palavras, mas pelos gestos, olhares, que se entrecruzam, desafiando a percepção, a sensibilidade e a escuta de cada um na roda de 56 capoeira. Pelo canto organiza-se a roda, o ritmo aumenta ou diminui a cadência do jogo, desenvolve-se a disciplina entre os participantes, propõem-se desafios, anima-se os participantes, estimula o avanço ou o recuo de estratégias de ação o que vai ajudando na construção do conhecimento e no fortalecimento da corporeidade dos sujeitos inseridos no processo.

Os pés no chão e a cabeça no céu, ao pé do berimbau que é símbolo de ligação e harmonização entre as várias dimensões do mundo em que vivemos. O berimbau é instrumento de comunicação que une estas várias dimensões do mundo, o visível e o invisível, material, espiritual e corporal, em crenças numa totalidade. Assim, vai-se promovendo a “humanização do homem na busca de condições para que ele participe criativamente na vida de sua comunidade, procurando alcançar a liberdade pessoal e política” (Gonçalves, 1994, p. 94).

A mística da capoeira repete-se em cada roda, em cada jogo que se inicia, não podendo faltar neste contexto, “é instrumento de ação política e marca de um grupo” (Streck, 2011) 11 de pessoas, que descobrem e conhecem suas potencialidades nesses lugares de manifestações humanas da cultura afro-brasileira.

A mística aproxima um grupo que faz parte do ritual, regido pela “amorosidade”, ela faz pensar e refletir. O canto que toca várias vezes, repetidamente, é como que um mantra que sagrado ou profano, faz os capoeiristas que esperam ao pé do berimbau pensar e refletir as suas vivências passadas, presentes e futuras; os integrantes contemplam o momento esperando o sinal para iniciarem a vivência da capoeira. A música é um elemento fundamental na composição da mística, mexe e desperta vários sentidos que estão acomodados no ser humano, sentidos que transcendem os cinco conhecidos como visão, audição, tato, olfato, paladar. Entramos numa espécie de “Transe capoeirano” como disse o Dr. Decânio , e começamos a fazer uso de outros sentidos inteligentes presentes no ser humano, como a intuição.

11 Palestra feita por Danilo Streck no XII Corredor das Ideias do Cone Sul Tema: "Nosso rosto Latinoamericano. As ideias. As experiências. As culturas." 12, 13 e 14 de setembro de 2011 ----- Unisinos - São Leopoldo/RS – Brasil.

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A mística apóia-se em metáforas e em outras racionalidades simbólicas causando rupturas epistemológicas com a racionalidade ocidental. A mística não pode faltar numa atividade como a capoeira, uma manifestação da cultura popular brasileira, onde todos têm um papel, função para executarem e suas participações são essenciais para o desenvolvimento da totalidade.

A capoeira é repleta de experiências espirituais não necessariamente, experiências religiosas. Nela cultiva-se a espiritualidade respeitando as religiões de cada participante. Valorizando a experiência interior de cada um e suas relações com o cosmos e com a natureza. Procurando harmonizar a relação do saber popular e o saber acadêmico numa relação horizontalizada.

4.1.1.2 CAPOEIRA: CORPOREIDADE E O OLHAR O MUNDO

No mundo em que vivemos temos uma tendência a vê-lo da mesma forma como todas as pessoas olham. O cotidiano, principalmente, das grandes cidades, leva-nos a pensar e a viver de forma muito parecida e no senso comum. Nosso olhar, por vezes, ou geralmente, torna-se superficial devido ao corre-corre nos centros urbanos. Precisamos ficar atentos as armadilhas que a sociedade capitalista, individualista e consumista nos impõe.

A capoeira desde a sua origem, sempre foi uma arte subversiva, avançou e recuou, negou e afirmou, com flexibilidade e malícia sobreviveu aos tempos, por ter um modo diferente de ver e de viver no mundo, procurando sempre, conhecer as relações de poder e buscar posicionar-se de forma estratégica para superar as “situações limites”. Entenda -se situações limites por todas as dificuldades impostas pelo sistema-mundo.

Na capoeira colocar “ O mundo de pernas para o ar ” (Reis, 1997), e ver o mundo de uma forma diferente, ou seja, invertido e de cabeça para baixo é práxis dos capoeiristas. É uma forma alegre e descontraída de enfrentar as dificuldades, num processo sócio-histórico e cultural. Dialogando pela via corporal em busca de soluções para os seus problemas. O capoeirista vai explorando os espaços da roda, mostrando suas habilidades, suas conquistas e de certa forma a sua ousadia.

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Para as comunidades periféricas não levamos nada de novo, muito pelo contrário. Levamos até ela o que nela surgiu, a brincadeira de angola, mãos no chão, pernas ao céu. O que parece estar vulnerável, brincando sem compromisso, está comprometido com o movimento da capoeira, talvez, pela necessidade ou pela falta de opção. Os corpos ficam, ali, na vadiação parecendo sem intenção política nenhuma ou de um modo politicamente, correto. Inertes esperando o tempo passar.

Só que por trás desse movimento há um diálogo de corpos, que se expressam pelos gestos aparentemente, ingênuos que muitas vezes parecem inofensivos e desprovidos de razão. Contudo, no fundo, tem uma atitude política revolucionária, herdada dos antigos capoeiristas no diálogo com o poder. Na mudança de olhar há possibilidade de transformação de cada individuo dentro de um contexto. A roda de capoeira passa a ser um espaço social de expressão corporal, onde os sujeitos buscam através da mudança no olhar a possibilidade de uma construção de mundo diferente.

Os sujeitos tentam superar os limites do próprio corpo. E, assim, avançar num espaço que é de todos e construído para todos na coletividade. Indivíduo busca a sua superação, e se superando faz com que o coletivo se sup ere. “A dialética do individual e do social encontra sua superação no momento em que o projeto individual se funde com o projeto político de renovação da sociedade” (Gonçalves, 1994, p. 95).

A comunidade da capoeira trás consigo esta herança do tempo da escravidão. Pedimos aos leitores que façam um exercício de criatividade e imaginação para conhecerem a realidade concreta da cena, onde esta inserida a comunidade da capoeira na comunidade da Vila Dique, tirem os sujeitos da cena e fiquem, somente, com o cenário do fundo, está posta a realidade concreta.

Nosso olhar, nesse caso, não é para as coisas concretas e materiais. Ele busca uma transcendência, uma profundidade nas coisas da terra e dos céus. Visualizando possíveis sonhos de um futuro melhor para todos, numa sociedade mais justa, com menos desigualdades sociais na construção de vida melhores e horizontalizada. Isso só vai acontecer com a inversão dos olhares nos espaços sociais onde a violência atua.

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Fotografia 2. Posição de inversão outra forma de ver o mundo (2011)

Podemos observar na fotografia 2 Genaro no chão úmido da chuva, brincando de cabeça para baixo, com as mãos no chão, plantando bananeira, olhando para terra com os pés para o alto. Certamente, porque o seu parceiro estava distante por um momento, esta distância permite e possibilita um desafio pessoal, onde os obstáculos são os limites do próprio corpo no tempo e no espaço.

O tempo de um clicar com o dedo indicador para tirar a fotografia. Uma fração de segundos é suficiente para experimentar uma posição ou um gesto desafiador, porque, quem joga, luta ou dança capoeira, nunca o faz sozinho, sempre conta com um parceiro que num momento do jogo permite pelo distanciamento, que dura segundos, ao capoeirista ir mais longe, na ousadia e no pensamento, desafiando o adversário e a si próprio.

Alguns capoeiristas da roda observam o avanço e o domínio das habilidades corporais desenvolvidas pelo sujeito em foco, centro das atenções. Outros observam os comandos da musicalidade. Se prestarmos atenção nos tocadores de instrumentos, principalmente, o berimbau e atabaque, os dois estão com a mão suspensa, ou seja, sem contato com o instrumento. Isso indica o congelamento do momento, tempo em que as coisas acontecem. Olhares, gestos e sons que se cruzam, sentimentos que comungam o mesmo momento na roda, espaço concreto de realização e experimentação dos saberes ancestrais da capoeira.

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Na roda de capoeira existe a possibilidade de ver o mundo de uma forma diferente, onde outros veriam terra, barro e sujeira, vejo a capoeira. Nós enxergamos a beleza da capoeira, a alegria de viver em comunhão e solidariamente, mesmo conhecendo as diversidades e dificuldades da vida da gente, que mora na Vila Dique.

Perguntado para o Canário no que a capoeira tinha ajudado na sua vida, ele respondeu: “ser mais esperto , nas coisas, nas atividades, ser mais esperto e olhar as coisas melhor, tipo ver assim, as coisas de outro lado. Eu aprendi muito, antes eu olhava, e para mim, não era nada ” (Depoimento verbal, Canário, 2010. Grifos do autor).

A capoeira desenvolve essa visão diferenciada das coisas e o capoeirista, com o passar do tempo, vai refinando o seu olhar, isso é trabalho, prática, continuidade que vão adquirindo nas vivências do cotidiano. Como observarmos nas fotografias 1 e 2, os olhares entrecruzam- se formando uma teia histórica dos indivíduos presentes, ligando passado-presente-futuro num momento, onde o aqui/agora se conectam com o passado buscando recriar possibilidades de futuro, pois entendemos “a história como possibilidade e não como determinação” (Freire, 1996, p. 76) e sabemos que somos seres com “capacidade de aprender, não apenas para nos adaptar mas, sobretudo para transformar a realidade, para nela intervir, recriando-a” (Freire, 1996, p. 69).

Às vezes, os gestos falam mais do que palavras, o olhar atento de todos pode dar mais segurança ao grupo. Os braços, cruzados, querem indicar algo, principalmente, se postados na frente do mestre ou da bateria, num lugar onde as pessoas, geralmente, estão meditando e refletindo suas próximas atitudes e as atitudes dos outros, eles podem ser causa de protesto ou mera desatenção, por algo que tenha acontecido ou por falta de motivação.

A capoeira, por se tratar de cultura popular afro-brasileira, tem suas raízes nas camadas mais humildes da sociedade. Apesar de hoje estar espalhada pelo mundo de modo geral, transitando entre o meio acadêmico e nas classes populares. No entanto é nas comunidades periféricas, que está à essência desta prática e suas raízes culturais; é nas comunidades periféricas que podemos observar a latência da cultura popular. E a capoeira surgindo como manifestação da educação popular emancipatória.

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O conhecimento, na capoeira, é fruto de saberes ancestrais da cultura afro-brasileira, surge da necessidade de superação das dificuldades, e se constrói com um olhar diferenciado, profundo e reflexivo, acompanhado de uma boa audição, elementos fundamentais da cultura africana e a sensibilidade, ou seja, o sentir pelos pés, mãos e cabeça, formando um símbolo chamado de pentagrama (estrela de cinco pontas), sentir pela totalidade do corpo, elementos fundamentais na construção da corporeidade.

Quando nosso sujeito de pesquisa, cujo apelido é Canário, porque gosta de cantar e tocar instrumentos, disse que a capoeira ajudou na sua vida, para ele “ ser mais esperto e olhar as coisas melhor”, referiu uma mudança transformando o seu olhar antes superficial para um olhar mais refinado e com um pouco mais de profundidade nas relações com as coisas do cotidiano.

O que quer dizer transformação, no corpo, na práxis da capoeira e, consequentemente, na sua vida, este jovem entrou na capoeira com nove (9) anos de idade, hoje, tem quatorze (14) anos, os professores da escola referiram a mudança de comportamento de modo positivo.

Segundo, a professora Angélica, que acompanha o trabalho desde 2005: “ Ao longo da minha prática profissional na escola Migrantes conheci algumas crianças que através da Capoeira puderam encontrar um lugar de sucesso e aos poucos foram cultivando a auto- estima, se enxergando como alguém capaz, alguém que pode aprender” (Depoimento escrito, 2011).

Esse foi a caso de Canário: entrou no 1º ciclo do ensino fundamental, na escola Migrantes, simultaneamente nas atividades de capoeira na escola, com facilidade para cantar e tocar instrumentos, identificou-se com a capoeira arte-luta popular, e inseriu-se no contexto, recebendo oportunidades de expressar os seus talentos, foi desenvolvendo habilidades corporais inseridas na práxis da capoeira. “Aprendeu a ser mais esperto” o que ajudou no cultivo da autoestima, e na medida em que foi praticando, foi fortalecendo-se no movimento da capoeira dentro da comunidade.

Aprendeu a ver as coisas com mais profundidade, ou seja, enxergar de um outro paradigma, ver “ as coisas de outro lado ”. E para ver as coisas, de um outro lado, é preciso tomar distância. Não agir no impulso de forma mecânica, ser mais astuto, mandingueiro e agir 62 com malícia na roda da vida. Porém para enxergar dessa forma, deve-se ter paciência, praticar com continuidade e esperar a fruta amadurecer no tempo certo, como dizia mestre Bimba; “A fruta dá no tempo”, dito popular, que aprendemos nas rodas desse mundo.

“Eu a prendi muito, antes eu olhava, e para mim, não era nada” (Canário, 2010). A capoeira é um movimento que transforma de dentro para fora. Ela é cíclica e repetitiva, mas não deve ser mecânica, deve ser sentida, refletida e comungada com o grupo e com os parceiros. O olhar vai se transformando nas vivências, nos jogos, nas rodas e nos eventos. “Quanto mais se anda, mais se vê. Quanto mais se vê mais se aprende” , disse, certa vez, o mestre João Pequeno num evento em Florianópolis/SC.

4.1.1.3 CAPOEIRA: CORPOREIDADE E AS PARCERIAS

Na capoeira rodar eventos e formar parcerias é fundamental. Parcerias para as trocas de conhecimento, para ajudar nas reflexões no cotidiano, às vezes, até para fazer um jogo duro (lutar); para fortalecer a corporeidade as parcerias são pilares necessários para o crescimento e desenvolvimento dos indivíduos. Companheiros de grupos, ou de grupos diferentes são necessários para avançar na aquisição dos saberes da capoeira.

A capoeira está sempre sofrendo modificações, construindo e reconstruindo novas linguagens na práxis capoeirana, se fortalecendo para enfrentar as dificuldades Com nossos parceiros descobrimos saídas para desatar os “nós” que a sociedade impõe a todo o momento . A capoeira oportuniza a possibilidade de resolver problemas, pelo seu jogo de corpo, sua forma diferente de ver o mundo e a mandinga inserida dentro do contexto da capoeira e do capoeirista, que com o passar do tempo e com o apoio de seus pares cai fortalecendo laços de amizades, que ajudam a sobressair às dificuldades do cotidiano.

Principiamos na capoeira por acharmos interessante alguns de seus elementos, como: a música, os instrumentos, um determinado gesto, quem sabe pela necessidade de defender-se, aprender a lutar. Todavia, com o passar do tempo, percebemos questões, muito mais ricas nesse contexto. Vejam no depoimento do jovem Riozinho, tratando das coisas mais importantes, que a capoeira tinha contribuído em sua vida.

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A primeira delas é o respeito que tu desenvolve no dia-a-dia as pessoas, no caso, mais velhas te passam o respeito, e logo, tu acaba adquirindo esse hábito e não só dentro da capoeira, mas também dentro da minha vida pessoal. E a segunda coisa foi a questão da confiança, eu falando de mim, antes da capoeira era uma pessoa que não tinha confiança e a partir do momento que, com o passar desses anos com a prática da capoeira, acho que a cada ano que passou, vi o quanto era capaz e mais capaz ainda. Isso me trouxe confiança e me traz confiança e isso no aspecto geral era uma coisa que faltava na minha vida (Depoimento oral, Rio, 2010; grifo autor).

A capoeira entra em nossas vidas por um motivo específico, a música, os instrumentos, os saltos, a luta, a dança, os aspectos lúdicos, um sentimento que não podemos descrever, entre outros; depois com o passar do tempo vai formando uma rede de saberes, que se entrelaçam e formando elos que iram cada vez mais fortalecerem-se nas redes de parcerias.

O aluno Rio, que hoje está se graduando na ABCN, era um jovem forte que entrou na capoeira para aprender, mas não tinha confiança, com o passar dos anos foi entendendo que capoeira era muito mais que uma luta, que a capoeira era um espaço de formação de personalidade, expressão corporal, de relação social e comunicação entre os seus integrantes. Isso foi desenvolvendo uma confiança pessoal, ou seja, a capoeira é um espaço de relação humana, que através destas relações os indivíduos vão fortalecendo-se.

As parcerias fazem o papel de moderador da personalidade. Os valentões descobrem que existem outros valentes. Os bons cantadores descobrem possibilidades de melhorar suas habilidades e qualidades, ao mesmo tempo, que conhecem suas limitações. O fortalecimento dos gestos mais complexos, que temos a impressão que nunca vamos fazer, com o olhar de um parceiro, numa simples palavra ou dica, faz com que avancemos muito na complexidade gestual e nos desafios corporais. Todos esses fatores ajudam a estruturar nossa personalidade e aumentar nossa autoestima, promovendo o respeito mútuo e aumentando a confiança dentro e fora do contexto.

Os parceiros são responsáveis por alertar os excessos e estimular os avanços de habilidades múltiplas na capoeira, e assim, ampliar o conhecimento dos saberes da nossa capoeira arte-luta. No diálogo com os colegas encontramos respostas para determinadas questões e situações. Às vezes, o que nos parece extremamente difícil num primeiro momento, trocando ideias com nossos pares, encontramos soluções que passam a ser simples. 64

Nessas trocas vamos construindo e fortalecendo a totalidade do nosso ser, formando parcerias solidárias, aprendendo a respeitar e ser respeitado, ser solidário com nossos pares, desenvolver humildade para saber que estamos sempre aprendendo e disciplina para poder dar continuidade no processo de ensino-aprendizagem. Fortalecendo valores no contexto da capoeira, como que em corpos de mandinga transcendem o corpo sensível e concreto, exteriorizando pelas vibrações e se fundindo a outros corpos na coletividade.

Fotografia 3. Roda de capoeira na Vila Dique formação de parcerias (2011).

Na fotografia 3 temos a possibilidade de observar uma roda de capoeira que acontece num sábado, na comunidade da Vila Dique, onde a ABCN faz a integração de vários capoeiristas da zona sul de Porto Alegre e de Eldorado do Sul, uma cidade próxima da região metropolitana, juntamente, com os alunos da comunidade escolar da Escola Migrantes. Aqui podemos observar como se dão as relações sociais na capoeira. Duas meninas jogando capoeira e os outros observando o que acontece no jogo.

A aluna Elétrica faz um ataque que exige flexibilidade, força e velocidade e a aluna Rosinha faz uma esquiva ou defesa que exige reflexo e pensamento rápido, percepção e noção espacial. Estes movimentos são capacidades e habilidades corporais inseridas no contexto 65 gestual da capoeira, que com o passar do tempo e nas vivências das rodas, os alunos aprimoram e melhoram suas conquistas corporais.

A roda de capoeira é um espaço democrático, onde não é para existir descriminação étnica, de gênero ou de classe social. Um espaço livre para expressão e comunicação da cultura popular. As pessoas aprendem nas vivências e nas trocas onde as relações sociais acontecem, observando atentos aos acontecimentos, olhando, ouvindo e sentindo as situações de roda, que acontecem em cada ciclo ou em cada jogo.

A cultura popular passa a ser um instrumento de educação popular não-formal, que serve para promoção e fortalecimento da autoestima dos participantes, devido às descobertas no contexto da roda pela via corporal. Aqueles capoeiristas que estão há mais tempo vivenciando as rodas capoeira, geralmente, têm mais conhecimento dos saberes da capoeira.

Nessa vivencias não-formais, nos processos de ensino-aprendizagem com seus pares e com os mais velhos, os sujeitos encontram, às vezes, as maiores possibilidades de avançar no aprendizado da capoeira. Ali põem em prática seus conhecimentos, seus valores adquiridos no contexto, exercitam sua humildade, demonstram suas habilidades, testam e superam seus medos e limitações. Apropriam-se dos saberes ancestrais construídos pela classe menos favorecida na busca de emancipação humana.

As crianças e jovens aprendem a cultivar valores ancestrais, necessários para a vida cotidiana na capoeira, que levam para a vida em comunidade. E trazem da comunidade valores para a comunidade da capoeira. Num processo de comunhão a totalidade dos seres é expressada e manifestada na roda de capoeira, que acontece na comunidade escolar da Escola Migrantes na Vila Dique.

4.1.1.4 CAPOEIRA: CORPOREIDADE E OS VALORES

É fato, que a capoeira potencializa o desenvolvimento de valores ancestrais da nossa luta na comunidade da capoeira, na Escola Migrantes na Vila Dique, valores morais e éticos.

Os valores morais, muitas vezes, devem ser questionados, pois são passados pela tradição de geração em geração, e sabemos que os tempos são outros. Alguns valores, que 66 antes até cabiam, hoje, já não cabem mais. É preciso avançar no tempo, buscando um lugar mais apropriado para uma vida digna e justa e um espaço digno para os sujeitos da capoeira. Não temos a intenção de aprofundar os valores que não cabem e sim aqueles que devem ser estimulados e potencializados junto aos aprendizes.

Os valores éticos devem ser construídos e fortalecidos nas rodas de capoeira, para o desenvolvimento e a emancipação dos sujeitos inseridos nesse contexto. Pensar no fortalecimento da autoestima desses sujeitos para que possam acreditar que é possível um mundo diferente do que vivemos um mundo com menos violência e mais amor, menos miséria e mais igualdade de oportunidades, menos injustiça social e mais educação, menos matança e mais vida, enfim um mundo mais rico de ideia e criatividade e menos pobre de espírito e de solidariedade.

Observemos o depoimento do jov em Canário: “eu era um “guri birrento”, não gostava das coisas, com a capoeira eu fui aprendendo a dar valor às coisas, as coisas importantes e ter mais amigos, mais amizade, a consideração e saber respeitar um ao outro ” (depoimento oral, grifos autor).

Saber respeitar um ao outro, implica numa relação de respeito mútuo. Numa troca de gentilezas, mesmo que para os olhos de algumas pessoas, não se vejam gentilezas numa luta como a capoeira, uma luta ou jogo de origem popular que sobreviveu no tempo e no espaço devido às relações sociais conflituosas, geralmente, relações de poder.

No entanto, no próprio movimento da capoeira, literalmente, falando existem gentilezas. Por exemplo: ao abaixarmos no pé do berimbau, esperando pacientemente o desenvolver do jogo dos companheiros que estão jogando, ali já tem gentileza, ao esperarmos o sinal do mestre ou do responsável pela roda, pelo canto ou pelo baixar do berimbau com respeito às tradições, é outro sinal de gentileza.

Se observarmos com atenção, nas três figuras anteriores, todas elas trazem no pé do berimbau dois capoeiristas abaixados, nunca ajoelhados, isso faz parte do ritual da roda de capoeira. Abaixar e aguardar pacientemente, o momento de expressar suas habilidades e emoções. Sinal de respeito aos fundamentos construídos e organizados através dos tempos na capoeira. 67

Fotografia 4. Roda de capoeira lugar de cultivar valores morais e éticos (2011)

Além do respeito e da paciência, outros valores são comuns de encontrarmos na roda de capoeira inserida no contexto da capoeira na comunidade escolar, dentro da comunidade da Vila Dique; valores tais como: comprometimento, persistência, continuidade, solidariedade e união.

Podemos observar na fotografia 4, acima, nosso sujeito de pesquisa, de boné, sem camisa e com uma bermuda clara, o Canário, que deu um depoimento oral, trazendo a questão dos valores. Dizer que era birrento e não gostava das coisas, com o passar dos tempos foi aprendendo a dar valor às coisas, e com isso foi sendo considerado e fazendo amigos, este jovem aprendeu a respeitar aos outros.

Uma professora da escola disse que ele era um garoto difícil, com o passar dos tempos, a partir da prática da capoeira começou a relacionar-se melhor com os colegas, funcionários e professores. A capoeira ensina, através de seus rituais, os praticantes a saberem relacionar-se, comunicar-se e localizar-se no seu espaço e assim, avançarem na aquisição de seus saberes. Esses saberes corporais fazem com que o capoeirista adquira valores morais e éticos para viverem em comunidade.

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O comprometimento é outro valor que na medida em que o tempo vai passando num trabalho como o dá Escola Migrantes, percebemos a mobilização da comunidade escolar de modo geral. As crianças e jovens interessam-se pelas atividades propostas, mobilizam-se para participar de eventos e trazem ricos depoimentos com a intenção de colaborar para a construção e fortalecimento da capoeira na comunidade.

A persistência é outro valor que se cultiva na capoeira sempre, numa relação de troca mútua. Tanto da parte dos que orientam quanto dos orientados, insistir e acreditar nas possíveis mudanças como a do sujeito, acima, citado. A grande maioria dos capoeiristas que venceram as batalhas impostas pelo sistema, foram aqueles que não se dobraram para as dificuldades. Movimentaram seus corpos num movimento sócio-histórico e cultural, assim, construindo e fortalecendo uma resistência orgânica e cultural, que “são manhas necessária à sobrevivência física e cultural dos oprimidos ” (Fre ire, 1996, p, 78).

A continuidade nesse movimento é fruto de uma missão de busca para a emancipação dos sujeitos, seis (6) anos de luta e resistência numa ação dialógica, é algo significativo, esse passa a ser um valor fundamental na construção da corporeidade, numa sociedade onde as coisas, geralmente, são efêmeras.

Conseguir dar continuidade num trabalho, tanto faz sendo para o aluno ou para o professor, é algo de extrema dificuldade, principalmente, quando se vive numa sociedade do aqui/agora, dos desejos imediatos. A capoeira é uma cultura que resistiu ao tempo, devido a sua persistência, comprometimento e continuidade na perseguição de seus objetivos, principalmente, aqueles que buscaram e buscam a liberdade dos sujeitos inseridos no contexto da comunidade da capoeira.

A prática da solidariedade é outro valor que nos encanta, quando vemos pessoas que vivem com tantas dificuldades, que às vezes nem percebem tal situação. Elas ajudam, umas as outras num aprendizado coletivo, coisas simples, mas enormemente ricas de sentimentos, de emoções e de todo o tipo de ajuda mútua.

Lembramos de uma vez, em que um grupo de alunos, saiu da Vila Dique e foi até o Colégio Dom Bosco. Eles levaram salgadinhos e uma garrafa de refrigerante e lá no colégio, na hora do lanche coletivo, a forma solidária como dividiram o lanche chamou-nos a atenção. 69

Tudo, milimetricamente, dividido em partes iguais, sem briga, sem confusão, sem bagunça. Os alunos ajudam os outros a aprenderem os movimentos da capoeira, orientam, organizam e cobram posturas.

A união é fundamental na capoeira, todos os participantes de uma roda de um grupo de capoeira são importantes. Para a roda ter boa vibração é preciso que todos os capoeiristas tenham ciência da importância dos mesmos na função de bater palma e cantar o coro. São dois elementos simples, mas de extrema importância na roda de capoeira. Os alunos, desde o primeiro dias de aula, aprendem a executar estes elementos da roda de capoeira, e da sua importância para o desenvolvimento da mesma.

Este elemento é responsável para exercitar a disciplina na capoeira. Começamos com as coisas mais simples, o que vai nos levar as coisas mais complexas. Bater palmas e cantar o coro das músicas, entrar na roda e dar uma gingada, fazer uma cocorinha e bater uma bênção, coisas simples que existem no contexto da capoeira. Mas, que quando executadas com continuidade, irão fortalecendo o corpo do capoeirista na totalidade, disciplinando e preparando para a execução de tarefas mais complexas e mais desafiadoras, capazes de superar seus limites humanos, tanto na musicalidade, quanto na gestualidade ou, até mesmo, na descoberta de fatores sócio-histórico e cultural.

Este aprendizado pode oportunizar a formação de parcerias, aquisição de valores que estão constituídos na capoeira pela tradição afro-brasileira e a construção de valores éticos, capazes de criar possibilidades para auxiliar na emancipação humana dos capoeiristas inseridos no contexto da comunidade escolar Escola Migrantes na Vila Dique.

O respeito, a disciplina, a solidariedade, o comprometimento, a paciência e a união, entre outros não citados, são valores inseridos no contexto da capoeira, que ajudam na construção e no fortalecimento da corporeidade. Este fortalecimento dá força e coragem para os jovens na busca de novos desafios, musicais, gestuais, intelectuais e corporais. Um corpo construído com valores que fortalecem a autoestima dos jovens é um corpo diferenciado na sociedade em que vivemos.

4.1.1.5 CAPOEIRA: CORPOREIDADE E A ESTÉTICA

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O corpo vai descobrindo a força interior que habita dentro dele e vislumbrando executar movimentos com extrema dificuldade, maestria, plasticidade e estética num ambiente simples da capoeira, como a Vila Dique. Estes movimentos são desafios propostos pelo capoeirista, buscando a superação dos seus limites corporais. Por isso, destacamos capoeira arte-luta um binômio que representa a possibilidade de “Ser Mais” (Freire, 1980).

Arte, porque busca a plasticidade, a leveza e a estética dentro da batalha no cotidiano social, muitas vez tão injusto. Movimento que inicia pelo estímulo proposto por um olhar, um som, um toque ou um gesto qualquer que desperta a atenção dos sujeitos inseridos no contexto da capoeira. Iniciando, geralmente, num ritmo lento no toque de Angola ou Benguela, a roda de capoeira como uma brincadeira ou vadiação, vai lançando desafios aos elementos que a compõem.

Como já dizia Dias Gomes: “O capoeira é um artista, é um atleta, um sonhador e um poeta”. Poeta é quem produz poesia, quem cria e recria em cima do fortalecimento do movimento corporal. Fortalecendo seu corpo numa totalidade do ser como corpo integral, onde em cada movimento simples de troca de pernas para frente e para trás denominado “Ginga”. Fortalece sua arte, buscando na ancestralidade das remotas origens da história da Rainha N’ Zinga, a origem do movimento.

A arte do homem histórico que se movimenta durante séculos, lutando e resistindo, nas suas frentes de batalha por uma vida melhor. Jogado para a periferia e, muitas vezes, marginalizado, busca espaços nos centros urbanos, principalmente, das grandes cidades. Na busca de lazer, do lúdico e da luta os sujeitos reunidos trocam experiências e num processo de ensino-aprendizagem mediado pelo mestre e pelos alunos mais experientes constroem e fortalecem as suas corporeidades.

Na ginga se fortalecem e crescem, conquistam espaços dentro e fora do contexto da capoeira, estimulam suas pernas, seus corpos e seu pensamento, tudo junto e misturado. Lançam-se num voo estético para sonhos maiores, na luta cotidiana. Luta esta que transcendem barreiras sociais, pois há na capoeira um espaço democrático de participação, as pessoas valem pelo que são e não pelo que têm.

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A luta a que nos referimos acima não é a luta do contato corporal, no sentido corpo-a- corpo de bater e defender. Mas sim a luta para ganhar o pão, de lutar pela emancipação humana, a luta no sentido de acordar todo o dia cedo buscar o nascer do sol e sonhar com um mundo melhor para o nosso povo.

A capoeira arte-luta traz consigo um riquíssimo repertório de elementos capazes de auxiliar no processo de emancipação humana pela via da estética. Onde sonho e poesia internalizados num corpo rico de conteúdo sócio-histórico e cultural possibilitam os sujeitos alçarem vôos que quando principiaram na capoeira jamais pensaram realizar.

Percebemos a ideia do sonho e da poesia surtindo efeito, quando como estratégias de ações e investidas, fazemos as rodas de capoeira dentro da comunidade. Depois da roda, sempre conversamos com os alunos da capoeira e, às vezes, com os pais e moradores. Nesse momento ouvimos os depoimentos, que nos fazem ter uma noção melhor para organizarmos nossas próximas estratégias de intervenções na comunidade.

Já ficamos alegres, q uando as crianças saem da roda dando “Aú” um movimento tradicional na capoeira; o Aú é uma roda ou estrela como são conhecidos na ginástica artística. Diferença básica é que no Aú o capoeirista deve fazer olhando, para o adversário e não para o chão. Quando as crianças saem da roda fazendo este movimento, demonstram e expressam que levam parte da capoeira consigo.

Outras crianças e jovens ficam ali conversando, falam das suas experiências e vivências com a capoeira pós-evento, roda de capoeira. As crianças dizem que ficam brincando de capoeira. Elas dizem que, brincam da seguinte forma. Um capoeirista é o professor e os outros são os alunos, que devem fazer aquilo que o professor pede. O professor mostra o gesto ou movimento e os outros fazem. Às vezes, o professor briga com os alunos porque eles estão bagunçando na aula. Ou seja, reproduzem os acontecimentos vividos no contexto da capoeira, aprendem uns com os outros, representando a realidade na brincadeira vivida.

Outra vez, uma aluna chamada de Sereia na capoeira, nessas conversas, que temos antes e depois da roda, dissera-nos que ensinava capoeira para o seu pai. Disse ela 72 caminhando ao meu lado. – Sor, eu ensino capoeira em casa para o meu pai. Perguntei: - Como? Ela respondeu: - Eu ensino as músicas, os movimentos e os instrumentos.

Ela falou isso antes de começar a roda. Naquele dia tínhamos apenas berimbau e pandeiro, e o pai da Sereia foi colocar um lixo fora. Depois de colocá-lo, saiu batendo na lata de lixo. Chamamos para tocar a lata na bateria, fazendo parte da mesma, no lugar do atabaque instrumento de percussão responsável pela marcação do ritmo na roda de capoeira. E ele de pronto entrou no ritmo, empolgou-se e foi até o final da roda tocando aquele instrumento de improviso, que enriqueceu nossa roda de capoeira.

Assim, podemos observar como a capoeira é um movimento circular, que transforma de dentro para fora o contexto onde está inserido. Circular como o golpe do Besouro, que sai do chão e dá um giro no ar e com plasticidade e beleza estética, encanta e transforma os sonhos misturando-se com a realidade dos sujeitos inseridos nesse contexto da roda de capoeira na comunidade escolar da Vila Dique.

A fotografia 5, logo abaixo, foi uma fotografia tirada por um de nossos sujeitos da pesquisa. Uma menina que participa do nosso projeto de capoeira há cerca de 5 anos. Devemos observar que este golpe executado, sendo um movimento rápido, exige força e velocidade do executor. Exige também, um clique de dedo no tempo certo para a captação e execução do toque preciso no tempo certo.

O registro do documento fotográfico mostra a plasticidade e a beleza estética da capoeira, num lugar onde a maioria das pessoas não consegue reconhecer o belo. Destacamos a beleza estética, o sonho e a poesia, que compõem e formam uma relação da arte, com a luta e a poesia no sentido filosófico e literal da palavra. O vôo do Besouro fica no imaginário das pessoas que fazem parte desse contexto.

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Fotografia 5. A beleza do golpe do besouro um vôo no ar (2011).

O Besouro era um filme onde o artista principal, voava. As crianças, logo que viram esta figura acima, lembraram do filme do Besouro. A vida é assim mesmo, as pessoas vivem muitas vezes com imagens da ficção e da realidade na cabeça. Na comunidade escolar da Vila Dique, pensamos que não é diferente, sonho e realidade misturam-se. E levar a capoeira para comunidade, significa levar uma nova possibilidade de sonho, utilizar a estratégia de alimentar o sonho que sonhamos um dia.

A capoeira instrumento de educação emancipatória para os seus atores, para aqueles que conseguem entender a proposta do trabalho e que atuam no contexto da capoeira, e também, para que nossos sujeitos possam alçar vôos cada vez mais altos. Fazer da capoeira poesia que surge todo o dia, criando e produzindo novas linguagens para enriquecer ainda mais a nossa cultura popular. Pensar que muitos dos nossos alunos, quando entraram na capoeira não conseguiam acertar com harmonia os movimentos de braços e pernas na ginga da capoeira.

Hoje, analisando o trabalho desenvolvido na comunidade, principalmente, pelos documentos fotográficos podemos observar que, com o passar dos anos e através da linguagem corporal, principal instrumento de diálogo, podemos observar melhor o 74 desenvolvimento da plasticidade e da beleza estética dos gestos dos jovens inseridos neste contexto e como eles aprendem a conhecer suas potencialidades.

Através da problematização da capoeira, buscamos descrever como se dá a construção e fortalecimento da corporeidade no contexto da capoeira, inserido na comunidade escolar na Escola Migrantes na Vila Dique.

4.1.2 CAPOEIRA E IDENTIDADE

Como segundo objetivo específico da pesquisa temos: identificar como se constrói e se estrutura a identidade cultural através da prática da capoeira;,; e problematizando este tema, compus algumas questões para dissertar sobre o assunto. Como os sujeitos se organizam no espaço da prática capoeira? Como distribuem as funções no espaço da capoeira? Existe relação de poder entre os sujeitos da pesquisa no espaço da prática da capoeira? De que forma as relações sociais desenvolvem-se no contexto da pratica da capoeira? A figura do mestre é realmente essencial para a organização e distribuição dos papeis e funções no contexto da capoeira?

4.1.2.1 CAPOEIRA: IDENTIDADE E IDENTIFICAÇÃO DOS SUJEITOS

Muitas pessoas confundem os elementos de identificação dentro do contexto da capoeira com identidade. Esses elementos de identificação aproximam os sujeitos da capoeira, fortalecendo os laços dentro dos grupos e ajudando no processo de construção de uma identidade cultural. É preciso que se tenha um ponto de partida para a organização dos sujeitos, num determinado espaço de atuação.

Nosso ponto de partida é a organização da roda de capoeira, lugar central onde os sujeitos de forma hierarquicamente funcional colocam-se buscando seus espaços, para observar, analisar, avaliar e aprenderem uns com os outros. São muitos os elementos de identificação que servem para a aproximação dos sujeitos com a prática da capoeira. Elementos estes que numa teia que formarão e darão subsídios para auxiliar o capoeirista na construção de uma identidade cultural.

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Estes são alguns elementos de identificação da capoeira: a indumentária, os apelidos, os gestos, as músicas, os instrumentos e os rituais. Observemos na fotografia 6. Roda de capoeira espaço de organização, identificação e construção de identidade. Como se apresentam os elementos de identificação na roda de capoeira?

Fotografia 6. Roda de capoeira identificação e construção de identidade (2010).

Na imagem acima , vemos a roda organizada da seguinte forma. Nosso sujeito de pesquisa se posiciona para fotografar de frente. Colocando em foco a orquestra ou bateria da capoeira. Os sujeitos de pé tocam os instrumentos, da esquerda para direita, atabaque, os Gunga, Médio e Viola e dois pandeiros. Destacamos que a organização da capoeira é particular e especifica, variando de associação para associação e de roda para roda. Existindo organizações mais tradicionais e outras mais contemporâneas, assim, como rodas mais formais e outras menos formais.

No caso da fotografia 6, é uma roda de capoeira de um evento em 2010, antes de um batizado de capoeira na escola Migrantes. As pessoas de pé estão com camisetas da Associação Brasileira de Capoeira Nação, com exceção do mestre que está tocando o berimbau Gunga ao lado do atabaque (tambor). Os dois jogadores partem para um movimento 76 chamado “AU” uma espécie de estrelinha com todos conhecem na capoeira e fora dela. Nas duas extremidades da bateria, dois sujeitos da nossa pesquisa, o Rio e o Sadia. Trabalhando a questão da identificação perguntamos ao Rio o que motivou para que ele praticasse capoeira? Ele respondeu:

Eu sempre gostei de música, então o que me motivou a fazer capoeira foi a questão da musicalidade. A questão do berimbau, do atabaque, do pandeiro foram esses instrumentos é que me atraíram para praticar capoeira , e num todo foi a musicalidade”( Depoimento Verbal, Rio, 2010. Grifos do autor).

No depoimento, do aluno “Rio” que está conosco há seis anos e já desenvolve um trabalho junto à comunidade escolar da Vila Dique na escola Migrantes, ele destaca a musicalidade como principal elemento de identificação dele com a capoeira, dizendo que “ A questão do berimbau, do atabaque, do pandeiro foram esses instrumentos é que me atraíram para praticar capoeira,” e assim, é que acontece com quase todos os capoeiristas. Algum elemento de identificação os atrai, aproximando-os da nossa capoeira arte-luta.

A indumentária é outro elemento de identificação fundamental na construção de identidade cultural. É algo que vem ao longo de séculos, fazendo parte da construção da capoeira. É claro que, diferentemente no decorrer dos tempos, o uniforme da capoeira é algo que aproxima os alunos do processo de identificação com a capoeira. Principalmente, tratando-se de comunidades periféricas, a roupa dá ao capoeirista uma possibilidade de inserção numa nova tribo, grupo ou associação; como é o caso da nossa Associação Brasileira de Capoeira Nação.

Como podemos observar, na foto 6, a maioria das crianças está sem uniforme na roda antes do batizado. Participam da roda batendo palmas e cantando o coro, ou seja, o refrão das músicas cantadas pelos mais experientes, os mestres e professores e alunos mais graduados. Com a chegada do batizado e, consequentemente, a aquisição dos uniformes de capoeira chega de fato a consumação de fazer parte de um grupo, de pertencer de fato a uma associação de capoeira, é claro que estamos escrevendo sobre um grupo especifico de capoeira.

As roupas (calça, camiseta e posteriormente, a corda de batizado) formam um elemento de identificação que vai aproximar ainda mais os novos capoeiristas dos mais velhos 77 e experientes. É, geralmente, no evento do batizado e trocas de graduações, que juntamente com a indumentária, o capoeirista recebe um apelido, quando ainda não possui.

O apelido é outro elemento de identificação na capoeira, é uma espécie de nome de guerra. Desde os tempos remotos na capoeira existe a prática de dar apelidos para os capoeiristas. Eles podem ser um pseudônimo ou, algumas vezes, o apelido será o sobrenome da pessoa. Alguns mestres pensam que o apelido é algo pejorativo, que denigre a imagem da pessoa, ou seja, do capoeirista. Dizem que o capoeirista já foi e ainda é tão descriminado, e que o apelido ainda hoje, é uma tradição que deve ser deixada de lado.

No nosso caso, especificamente, procuramos manter está tradição, dando nomes que elevem a autoestima dos alunos e que façam com que eles se identifiquem ainda mais com a capoeira. O apelido é um elemento que fez parte do processo sócio-histórico e cultural de constituição da capoeira, desde o tempo da capoeira escrava até o período da república, servindo para identificar os capoeiristas.

Alguns apelidos de capoeiristas famosos a outrora são Nascimento Grande, Besouro de Mangangá, Ciríaco, Siri do Mangue, Mandunca da Praia, Madame Satã, Inimigo Sem Tripa, mestre Bimba, mestre Pastinha, Cobrinha Verde, Cangiquinha, Caiçara, e muitos outros que deixamos de citar mas que não são menos importantes.

Nos gestos estão os rituais, e os rituais são constituídos de gestos muitas vezes ancestrais. A cocorinha no pé do berimbau é um gesto ancestral, ligado geralmente a um momento de meditação e reflexão. Um risco no chão, o tocar a mão no chão e fazer um sinal da cruz é práxis de grande parte da capoeira. A inversão do corpo no gesto de parada de mãos é outro gesto de identificação na capoeira. E o despertar desses gestos por alguns capoeiristas, principalmente, por ver outros fazerem os mesmos gestos. Traz desafios aos corpos inseridos no contexto da capoeira, aproximando pela curiosidade e, às vezes, pelo grau de dificuldade do movimento em questão.

Estes elementos de identificação e aproximação entre os sujeitos em questão fazem com que os atores sintam-se pertencentes ao grupo ou associação e, consequentemente, comecem a construir uma identidade cultural no mesmo. Observamos que a questão da identidade passa pela questão da identificação com um determinado grupo ou associação. Mas 78 isso não é um processo natural e, sim, construído no ambiente em questão, não caso na comunidade escolar da escola Migrantes e na comunidade da Vila Dique.

Nesse processo ocorre a organização da construção e fortalecimento da identidade na capoeira uma cultura afro-brasileira, onde são distribuídos os papéis e funções dentro de uma associação de capoeira, que trabalha em prol da emancipação humana de seus integrantes.

4.1.2.2 CAPOEIRA: IDENTIDADE E OS PAPEIS E FUNÇÕES DOS SUJEITOS

O evento de capoeira onde ocorre o batizado e as trocas de graduações, não é somente um momento de entrega das cordas. Ele inicia muito antes do começo e termina muito depois do final. Existe todo um processo de preparação e execução, onde são criadas expectativas coletivas, distribuição de tarefas, onde cada aluno do mais novo ao mais velho e experiente tem seus papéis e funções definidos ou começam a se definir no evento.

Os mais velhos e experientes tem os papéis de dirigir e organizar as tarefas, e a eles cabem as funções de ajudar na organização, sistematização e logística do evento, na parte da contabilidade, cronograma, captação de recurso, compra de materiais, cuidados com a alimentação dos alunos e mestres convidados, providenciar alojamento para o pessoal visitante, fazer contatos com os convidados, relação de nomes de alunos e convidados, enfim, toda logística.

Referente à parte prática da capoeira, motivar o grupo de alunos novos para a participação, cantando, jogando e participando ativamente do processo, contatar os pais buscando apoio e engajamento da comunidade, organizar os ensaios das apresentações que acontecem no evento e começam meses antes, apresentações de Samba de Roda, maculelê e puxadas de rede, etc.

Nessas apresentações, os mais velhos, procuram fazer referência ao passado da cultura popular afro-brasileira. Lembrando às origens do processo de ensino-aprendizagem da capoeira, os mestres e povos que por aqui passaram, lutaram e até morreram para que hoje pudéssemos estar vivenciando está capoeira arte-luta.

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O batizado não é só uma passagem, um momento de celebração do grande ciclo no círculo de cultura afro-brasileira para os grupos de capoeira mais contemporâneos. O ritual do batizado simboliza a entrada dos novos capoeiristas na comunidade da capoeira. A iniciação e o firmamento de alguns elementos de identificação e o princípio de uma construção de identidade cultural, como veremos no depoimento e na figura que seguem abaixo.

Por isso, como nos traz Canário no seu depoimento sobre a prática da capoeira:

O que eu mais gosto na capoeira, é aprende me defende , primeiro lugar, defesa, daí depois com o tempo, vou me defendendo, quando eu tiver bom de defesa, é luta, daí, vou partir para cima, aprende mais. [...] e o batizado, também, batizado acho importante. Vão muitas pessoas, que gostam do batizado, que se esforçam, e querem trocar de corda, mas não pra trocar de corda, mas para estar lá! Só isso, aí ( Depoimento verbal, Canário, 2010. GrifosG do autor).

Estar presente no batizado de capoeira significa fazer parte de um grupo ou associação de capoeira, fortalecer e construir uma identidade cultural, ter oportunidade de conhecer pessoas, ser visto e ver, ouvir e ser ouvido, fazer amigos novos e rever amigos antigos.

A dimensão prática da capoeira é fundamental para o crescimento e desenvolvimento dos sujeitos. Nela estão inseridos dois elementos que não estão separados, mas interligados com outros tantos. Estes elementos que destacamos aqui, da fala do nosso sujeito, são o aprender a me defender e as relações interpessoais.

Primeiro um aspecto individual do crescimento e do desenvolvimento do sujeito, identificando e buscando espaço no contexto da capoeira, “muitas pessoas que go stam do batizado, que se esforçam e querem trocar de corda ”, daí parte uma busca do indiví duo, uma força interior para se inserir no processo, que só depende dele, da sua luta e da sua resistência, buscando espaço no ambiente da escola da capoeira, estar presente é fazer parte de uma comunidade.

Cabe ao sujeito, nesta condição, o papel de ouvir muito e observar o máximo possível para aprender a conhecer, pois “conhecer é tarefa do sujeito” (Freire, 1996). Quando estamos ouvindo, somente, isso não quer dizer que não estejamos questionando ou problematizando. Na função de aprendiz quanto mais interagir, mais o aluno aprende e quanto mais aprender mais se apropria da cultura popular afro-brasileira. Na cultura de raiz africana o ato de ouvir 80 para conhecer é uma premissa. Ouvimos bastante para depois de algum tempo, começarmos comunicar pelas palavras.

O segundo aspecto é o aspecto coletivo, “vão muitas pessoas, [...] mas não pra trocar de corda, mas para estar lá! ”, estar presente significa ficar perto dos mestres, dos alunos mais graduados, de outros alunos de outros espaços. Ouvir estória e histórias, que possibilitam ao pensamento viagem incríveis de feitos e acontecimentos do passado ou do cotidiano, de viagens que os mestres vivenciaram pelo mundo, possibilitados pela capoeira arte-luta.

Ouvir músicas diferentes, que possuem melodias e ritmos distintos, ver gestos novos e aprender e compreender coisas que antes não compreendiam. Entender e compreender melhor os rituais que vivem no cotidiano, mas que às vezes, por serem transmitidos por pessoas que estão próximas, não dão tanto valor. Vejamos a importância dos papeis e funções dos mestres na roda de capoeira.

Fotografia 7: A orquestra da capoeira em foco: Os berimbaus (2010).

Podemos observar na fotografia 7, acima, uma roda de capoeira realizada na E.M.E.F. Migrantes, em dezembro de 2010, com objetivo de integração da comunidade da capoeira e comunidade escolar. Esse evento durou das 10 horas da manhã até às 13 horas 30 minutos, aproximadamente. Foi desenvolvido todo um ritual inserido no contexto da capoeira. 81

Utilizada como pauta de observação, a imagem representa um recorte para que possamos descrever e compreender como se fortalecem e constroem as identidades nas rodas de capoeira.

Seus componentes aprendem e ensinam nas vivências praticadas na escola nos fins de semana. No caso do evento denominado “VI Batizado Inte grado e Troca de Graduações de Capoeira Nação ”. Nesse evento são oportunizadas para as crianças e jovens vivências de interação com mestres e professores, da cidade e outros estados, inclusive de outros países.

Idealizado pelo coletivo, que dirige a Associação Brasileira de Capoeira Nação (ABCN), pensamos que apresentar e oportunizar relatos e diálogos dos convidados aos alunos numa interação que se dá numa de horizontalidade, ou seja, com respeito e humildade das partes, é possibilidade de criar projetos e sentido para a continuidade do aprendizado da capoeira.

Da esquerda para direita na imagem 7, os tocadores de berimbaus são referências, que destacamos não tendo intenção de desprezar os outros sujeitos, que fazem parte do movimento e fortalecem o movimento da capoeira na escola.

No berimbau ao lado do atabaque todo de branco, Mestre Nino Alves, um dos mestres que se mantém praticando capoeira há mais tempo no Rio Grande do Sul. Cantador e conhecedor da capoeira gaúcha, um dos mais conhecidos mestres do sul do país. Esse mestre interage com os sujeitos da pesquisa, passando a ser um ator de fundamental importância na construção dos saberes dos sujeitos.

O seu papel é de dirigir a roda naquele momento. Ele tem a função de motivar as crianças e jovens com suas intervenções na roda, canta, brinca e conta histórias, está presente em todos os momentos do evento. Dando lições pelo exemplo das palavras, pelos movimentos, nas músicas, nos fundamentos do ritual, carrega em seu corpo a historicidade da capoeira e, representa, a própria história da capoeira gaúcha e do sul do Brasil.

No berimbau central mestre Sapo de Curitiba/Paraná. Esse mestre veio para o evento com alunos, aprendizes e instrutores, que no evento relacionam-se com outros sujeitos inseridos no contexto da capoeira na comunidade escolar. Trocam ideias, dialogam, ensinando 82 movimentos e, também, aprendendo. Mestre Sapo dirige a ABCN/Paraná, Espanha e Japão. Ele joga com as crianças orienta, dialoga e interage com muito respeito aos rituais e fundamentos da capoeira.

Ele trouxe a aluna graduada Dengosa, de calça preta e blusa rosa, que aparece na imagem 7, tocando o terceiro berimbau. Essa aluna, atualmente, ministra aulas de capoeira na Espanha e faz um curso superior, na Fundacion Universitaria de San Pablo CEU, na época do evento em dezembro de 2010.

Ela começou a treinar capoeira em Curitiba, depois de algum tempo de vivências, foi para a Espanha, onde começou a ministrar aulas. Dengosa é uma garota comunicativa, que canta, toca e joga com desenvoltura, desenvolvendo funções fundamentais na roda de capoeira. Ela serve como referência principalmente para as meninas na roda de capoeira. Que observam e analisam as atitudes de Dengosa com atenção. Os movimentos, a leveza, a plasticidade do corpo da garota passam a ser espelho de busca para outras meninas que principiam na capoeira. Quando ela está parada, as garotas da roda aproximam-se para perguntarem coisas da sua vida e da capoeira.

As três pessoas que são citadas acima são referências e servem para aproximar, as crianças e jovens do espaço da escola e da comunidade na roda de capoeira. Têm o papel de liderança sobre determinado grupo e a função de despertar o interesse dos sujeitos inseridos no contexto da capoeira. Visto que eles vivenciaram e ajudaram na formação e constituições da roda, firmaram o ritmo e a musicalidade, movimentaram e colocaram uma energia muito boa no espaço da roda de capoeira, juntamente, com todos os presentes.

Percebemos que os mestres e convidados não buscaram um lugar de destaque. Com humildade colaboraram na organização e no desenvolvimento do evento, buscando a união de todos enfatizando o fortalecimento do ritual. Na compreensão do ritual, os capoeiristas, vão incorporando a prática e desenvolvendo funções na roda de capoeira que são fundamentais na construção de uma identidade com o grupo de capoeira.

A roda de capoeira é um lugar de expressão corporal, onde várias manifestações da cultura afro-brasileira têm lugar de destaque, culturas como o samba de roda, maculelê, o jongo, o maracatu e a puxada de rede. Utilizam-se nesse espaço várias vias de comunicação 83 para transmitir os saberes necessários aos mais novos, saberes que fazem parte de um rico contexto sócio-histórico, político e cultural, sendo aprendido, principalmente, pelos métodos de observação e repetição.

4.1.2.3 CAPOEIRA: IDENTIDADE E AS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS AFRO- BRASILEIRAS

Outras manifestações culturais, como já falamos na sessão acima, como o maculelê, o samba de roda, a puxada de rede e o maracatu entre outras, ajudam e auxiliam no fortalecimento e na construção de uma identidade cultural, dentro do contexto da capoeira.

O próprio Estatuto da Igualdade Racial trás, na sua III seção da cultura, no seu artigo 20, que “O poder público garantirá o registro e a proteção da capoeira, em todas as suas modalidades, como bem de natureza imaterial e formação de identidade cultural brasileira , nos termos do artigo 216 da Constituição Federal” (Paim, 2011, p.18).

Estas manifestações instigam a curiosidade dos aprendizes, que sentem necessidade de buscar, aprender e ampliar as raízes culturais afro-brasileiras. Os alunos ampliam o seu vocabulário corporal e, consequentemente, a apropriação da cultura da raiz africana. Esta cultura que luta através dos séculos pela emancipação de seus sujeitos para serem sujeitos de fato e não objetos de manobras políticas.

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Fotografia 8. O Maculelê: manifestação cultural no contexto da capoeira (2010).

Na fotografia 8, acima, podemos observar a manifestação cultural do maculelê, uma dança com bastões que os praticantes de capoeira fazem como complemento e com a intenção de tornar mais rico o evento, na comunidade escolar da escola Migrantes na Vila Dique.

Nesta imagem podemos observar os mestres e os alunos graduados e iniciantes interagindo juntos. Um mestre segura, humildemente, o atabaque para um aluno tocar. Enquanto isso, outro mestre canta as músicas do maculelê. As crianças e jovens ficam com a função de responder o coro da música. Numa espécie de pergunta e resposta, as músicas são cantadas, nos cânticos os alunos vão aprendendo mais um pouco da nossa cultura afro- brasileira.

As informações trazidas falam do maculelê, de como surgiu na Bahia, em Santo Amaro da Purificação, sendo regatado pelo mestre Popó. As músicas também falam de guerreiros que defenderam o seu povo e fazem saudações aos deuses e aos santos. Misturam num sincretismo religioso, as religiões católicas e os cultos de origem africana, por se tratar de uma manifestação de expressão corporal com elementos da cultura, principalmente, africana.

O maculelê desperta curiosidade nos sujeitos envolvidos no processo de ensino- aprendizagem desta arte, que busca aprender os toques e, as maneiras de tocar cada um dos atabaques, que, geralmente, são três o Rum, o Rumpi e o Lê, as músicas desde os cantos de aberturas até os que encerram os trabalhos.

Os mais velhos vão ensinando os mais novos como podemos observar na figura acima. O Cabeleira, um dos alunos graduados no grupo toca ao lado de um aluno novo, que tem o apelido de Ogan, pois tem facilidade para tocar o atabaque. Além da facilidade temos consciência de que é preciso renovar e perpetuar os tocadores, incentivar os alunos mais novos a se inserirem no espaço da capoeira. Este aluno iria ser batizado no evento, e já estava desenvolvendo uma função fundamental naquele momento, ainda estava por receber a indumentária do grupo de capoeira.

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Assim, o maculelê, ajuda a construir uma identidade cultural para os sujeitos inseridos no contexto da capoeira, através da distribuição de papéis e funções para alunos iniciantes, iniciados, graduados e mestres. Todos são de extrema importância para chegar ao resultado final com simplicidade e humildade, mas com muito suor e dedicação.

Fotografia 9. Samba de Roda manifestação da cultura afro-brasileira (2011)

O Samba de Roda, como podemos observar na fotografia 9, é outra manifestação da cultura afro-brasileira, conhecida e desenvolvida nas rodas de capoeira. Momento de descontração onde crianças, jovens e adultos brincam e divertem-se, soltando o corpo e libertando-o por alguns momentos dos problemas do cotidiano.

É no samba que os sujeitos interagem uns com outros de uma forma mais lúdica e descontraída. Ali não percebemos relação de poder, diferentemente, do Samba Duro. Neste Samba de Roda somente relações dialógicas, solidárias e criativas. As crianças e os adultos se divertem expressando os sentimentos mais diversos de manifestação de alegria.

Os mais experientes dão o tom da batida e firmam na musicalidade. As crianças observam, atentamente, os toques, os passos, os cantos, batendo palmas e respondendo o coro das músicas. Da harmonia e participação depende a continuidade da roda de samba. Cada um 86 faz o seu papel para que a energia da roda possa fluir de forma agradável e harmoniosa para o bem estar de todos.

Podemos observar na figura acima, o mestre fundador da ABCN, ao lado de um aluno graduado que esta tocando atabaque, os alunos mais experientes compõem o ritmo na bateria. É importante destacar que os sujeitos da pesquisa deslocaram-se para outros lugares, já não estão na comunidade, e sim, no Colégio Dom Bosco.

Acreditamos que este movimento é importante para os alunos adquirirem confiança e autonomia. Na tomada de decisões, os jovens interagem com outros jovens, fora do seu ambiente cotidiano. Esta interação é oportunizada para as crianças e jovens vivenciar esta manifestação da cultura afro-brasileira, que auxilia na formação de uma identidade cultural.

Fotografia 10. A Puxada de Rede dramatização da cultura popular (2005)

A Puxada de Rede do Xaréu é outra manifestação da cultura popular afro-brasileira. Como vemos na imagem 10, os alunos representam uma encenação que traz dramaticidade, envolvendo os sentimentos mais diversos do ser humano. A puxada de rede desenvolve-se “ao ritm o dos atabaques e ao som de muitos cantos” (Biancardi, 2000).

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Nesta encenação, os alunos representam a vida das famílias de pescadores, que vivem da e para a pesca, na apresentação da puxada de rede aprendem coisas sobre o mar, sobre a vida na beira da praia, sobre a simplicidade das famílias dos pescadores, e das pessoas que vivem da pesca, sobre lições de solidariedade, cooperação e união, sobre sentido e construção. Todas essas questões são tratadas nos ensaios, além de questões técnicas de toques e cantos.

Nos ensaios para as apresentações, os alunos estudam aspectos emocionais da dramaticidade, localização no tempo e no espaço, aos mais experientes cabe o papel de dirigir e incentivar os mais novos, mostrar detalhes a serem executados no momento da dramatização. Cada aluno recebe um papel e uma função para desenvolver na trama, nem que seja como figurante.

Na encenação são trabalhados vários sentimentos, para sensibilizar os alunos e o publico, alegria, medo, tensão, suspense, euforia e muitos outros. Os papéis são divididos, equilibradamente, há momentos de cenas em que as meninas executam de forma coletiva, em outro momento da encenação os meninos representam, e existem momentos de cenas que executam todos juntos, alegria, euforia e morte, um enredo perfeito, que fazem com que as crianças e jovens aproximem-se da rica cultura popular afro-brasileira.

Aqui, há o aprofundamento do conhecimento e aquisição de saberes que fazem com que os sujeitos se identifiquem com a cultura popular. Esta identificação aproxima os sujeitos da capoeira e possibilita, ainda mais, a construção de uma identidade cultural, fortalecendo as raízes da nossa capoeira arte-luta.

Neste texto trouxemos três manifestações da cultura afro-brasileira, que estão interligadas com a capoeira. No entanto, temos observado muitos outras, interagindo e formando redes de comunicação da cultura afro-brasileira. Na medida em que aprofundamos nosso conhecimento nas manifestações culturais afro-brasileiras, vamos descobrindo e formando elos que ligam e reforçam as raízes da cultura popular de raiz africana. Importante na formação de identidade cultural brasileira.

4.1.2.4 CAPOEIRA: IDENTIDADE E OUTROS LUGARES

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“Capoeira é pra homem, menino e mulher, só não aprende quem não quer” (dita do popular). A capoeira está espalhada pelo mundo, não é privilégio de ninguém, ela está presente nas universidades às escolas e nas favelas, das classes abastadas as periferias urbanas. Quando olhamos os sujeitos jogando capoeira percebemos como a questão da identificação e da identidade cultural é forte e está enraizada na cultura da capoeira.

Oportunizar aos sujeitos da pesquisa, conhecerem e conviverem com pessoas diferentes é uma das estratégias utilizada por nós para ajudar na construção e fortalecimento da identidade cultural. Fazer com que eles afastem-se dos lugares em que vivem no cotidiano, para conhecerem outras realidades, levando a atuarem como protagonistas e promotores de cultura afro-brasileira, no caso, a capoeira.

Parte-se do pensamento que serão vistos como artistas detentores de saberes de domínio e destreza corporal. Isso promoverá o aumento da autoestima e fará com que eles se identifiquem ainda mais com a capoeira arte-luta.

Fotografia 11. Abertura da Semana Acadêmica do PPG de Educação Unisinos (2011).

Na Abertura de Semana Acadêmica do PPG Educação da Unisinos de 2011, a ABCN estava presente. Levou um grupo de alunos da capoeira para participar do evento cujo tema era: deslocamentos. Os sujeitos da pesquisa fizeram apresentação de capoeira, maculelê e 89 samba de roda. Eles tiveram a possibilidade de se apresentar para os professores do PPG Educação da Unisinos.

Depois das apresentações artísticas, eles tiveram a oportunidade de se apresentar como os sujeitos da capoeira, disseram seus nomes, idades, local onde praticavam capoeira, a quanto tempo praticavam capoeira; puderam falar um pouco dos seus projetos de vida e das suas expectativas referentes à capoeira. Os professores fizeram questionamentos e os alunos responderam as questões levantadas. Foi uma espécie de diálogo entre professores pesquisadores e alunos da capoeira.

Naquele espaço a cultura popular e cultura acadêmica entraram num processo de diálogo. Primeiramente, pelas manifestações da cultura popular afro-brasileira tocando, cantando e se expressando corporalmente. Depois, através de depoimentos orais, mediados pelo mestre, onde os alunos puderam dizer as suas palavras, falar das suas vidas, das suas necessidades, vontades e desejos.

Fazendo jus ao nome d o evento, “deslocamentos” , a capoeira saiu do lugar comum no cotidiano e foi para um lugar onde poucos conseguem chegar. Com o objetivo de ser referência para nossos jovens sujeitos da pesquisa, tornar esse lugar mais acessível e familiarizar a ideia de seguir nos estudos. Como podemos observar, no depoimento do aluno Sadia:

A capoeira não só me ajudou como esta me ajudando, através dos meus colegas que estão mostrando um novo caminho, que agora eu não estou estudando mas, futuramente vou voltar a estudar e vou tentar dar continuidade na capoeira. E na minha vida ela já me ajudou em algumas coisas como de repente coisas erradas que eu podia ter feito eu não fiz, então, estou treinando e aprendendo me adaptar a outros ambientes, estou aprendendo a achar um caminho certo para mim, eu ainda não tenho um caminho, estou tentando a construir um caminho, acho que isto é o principal (Depoimento verbal, Sadia, 2010, grifos autor).

No depoimento acima, podemos observar que às vezes, só o que as pessoas precisam é de um incentivo, uma palavra, um gesto de motivação, uma ajuda. “A capoeira não só me ajudou como esta me ajudando, através dos meus colegas que estão mostrando um novo caminho, que agora eu não estou estudando mas, futuramente, vou voltar a estudar e vou tentar dar continuidade na capoeira”. 90

Como vemos na fotografia acima, a capoeira segue desbravando espaço e mostrando novas possibilidades aos sujeitos inseridos no contexto da capoeira.

Carregar no pensamento a ideia de voltar a estudar, é um ponto de partida para avançar nos estudos, mas isso, não acontece do nada. Essa ideia deve ser semeada, cuidada e cultivada, há de se construir um caminho certo nas incertezas da vida. Principalmente, nas vidas das pessoas que vivem nas periferias urbanas que , muitas vezes, a violência e o descaso do estado fazem vistas grossas para esta parte da população na sociedade.

Para estes jovens que vivem num espaço social do aqui/agora falar de futuro e construir um caminho é algo que dificilmente se vê. Devido à violência social que assola as comunidades periféricas, muitos desses jovens terminam o ensino fundamental e, em seguida, abandonam os estudos para trabalharem ou pela dificuldade de acesso a outras escolas fora da comunidade.

Viver e conviver com espaços acadêmicos aproxima e cria um sentido de identificação entre os sujeitos. Cria uma possibilidade de diálogo e, quem sabe, uma possibilidade de sonhar em construir um futuro diferente para nossos sujeitos. Assim, ampliando possibilidades de futuro vai fortalecendo a formação de uma identidade cultural brasileira, através da capoeira.

No depoimento do sujeito acima, ele nos traz que: “estou treinando e aprendendo me adaptar a outros ambientes, estou aprendendo a achar um caminho”. Para quem viveu a sua vida toda numa comunidade carente de infraestrutura, saneamento, iluminação, segurança, educação, saúde, transporte, entre outras questões. É preciso se adaptar a novos ambientes para poder transitar com maior facilidade e menos conflitos na construção de novas relações.

O praticar capoeira possibilita este jogo de corpo para transitar pelos espaços da educação, da cultura, do esporte e do lazer, com maior qualidade de vida, ajudando os seus sujeitos a terem uma saúde mais fortalecida integralmente. Para estes sujeitos a palavra aprender deve ser um dos pilares que fundamentam nossa capoeira arte-luta.

Destacamos que neste evento de abertura do PPG Educação da Unisinos (2011) foram somente os jovens, aqueles alunos mais velhos que tem maior domínio corporal e 91 desenvoltura, e que fazem parte da ABCN, as crianças não estiveram presentes nesse evento. Mas, em outros eventos, quando temos a possibilidades de levá-los juntamente, com os jovens levamos, pois entendemos que frequentar espaços educacionais diferentes dos que estão acostumados no cotidiano é uma forma de estimular, que vislumbrem outras possibilidades para dar sequência às suas vidas acadêmicas e se apropriar cada vez mais da cultura letrada.

Fotografia 12. Simpósio Internacional Pesquisa Ação e Participante (2011).

No Simpósio Internacional de Pesquisa Ação e Pesquisa Participante, que aconteceu em Porto Alegre, no primeiro semestre de 2011, as crianças e jovens sujeitos da nossa pesquisa participaram do evento fazendo uma bela apresentação artística.

No evento foi apresentado, um diálogo de berimbaus, capoeira, maculelê e, no final, um samba de roda interativo com a participação dos protagonistas do show e o público presente, que era composto de professor doutores, mestres e bolsistas de iniciação científica, pesquisadores de vários PPGs do Brasil e do mundo.

O evento serviu para divulgar o trabalho do grupo e, principalmente, para as crianças apresentarem as suas habilidades corporais, mostrar os seus avanços na arte da capoeira para 92 um público diferente. Mas, o que é mais importante neste processo, é toda a preparação que antecede o momento da apresentação, as expectativas que são criadas no imaginário coletivo e o que representa para as crianças e jovens que fazem parte do contexto da capoeira.

Aos olhos de quem está de fora deste processo, pode não parecer muita coisa. Mas, para quem vivência a capoeira no cotidiano, sabe o que representa uma saída de campo, sair do lugar comum, às vezes, sem as mínimas condições de uma vida digna, para fazer uma apresentação representa a possibilidade de um passeio, uma viagem e uma nova aventura.

Escrevemos, porque, sabemos bem o que significa esta experiência, de viajar para o exterior ou interior, ansiedade e expectativas, que antecedem o momento da partida, estar inserido num grupo seleto de pessoas que vão representar a comunidade num evento fora da mesma, poder chegar e contar para os colegas como era o lugar, falar das pessoas que lá estavam e, criar um mundo diferente de possibilidades e sonhar acordado com coisas que pareciam tão distantes das vidas das gentes.

Esta gente que só quer uma oportunidade de ser vista e ouvida, que luta desde de muito cedo, para construir uma possibilidade diferente de viver dignamente a sua vida. Mesmo sem se identificarem com esta cultura letrada, que é posta e imposta de cima para baixo na maioria das vezes. Que, muitas vezes, não veem sentido no sentido que as coisas acontecem e seguem para suas vidas.

A capoeira procura oportunizar para os seus sujeitos, o fortalecimento e a construção de uma identidade cultural, que tem como fundamentos básicos a identificação com a cultura afro-brasileira, através das manifestações culturais inseridas no contexto da capoeira. Nesse processo, procura organizar e delegar os papéis e as funções para os sujeitos praticantes da capoeira arte-luta, que transitam por vários espaços na sociedade a fim de vivenciar experiências enriquecedoras.

Tais experiências, além, de fortalecerem a identidade cultural, buscam construir uma cidadania de fato, que transcenda os limites dos instrumentos legais da constituição brasileira, como veremos mais adiante.

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4.1.3 CAPOEIRA E CIDADANIA

Temos como objetivo especifico referente à categoria cidadania no espaço da prática da capoeira.: examinar como é possível a edificação e o alicerce da cidadania de fato no espaço da prática da capoeira. Quando falamos, no início deste texto, em políticas e efetivação das mesmas, referimo-nos ao que é conquistado no papel, leia-se, Constituição Federal, e o que é realmente efetivado. As palavras escritas na carta magna são compreensíveis. Mas, colocar em prática de fato e efetivamente, é uma luta que deve ser buscada diariamente, principalmente, com as classes populares da sociedade.

Para problematizar esta categoria trazemos algumas questões básicas. Como os sujeitos buscam assumir seus espaços no contexto da capoeira? Os sujeitos cobram posturas de seus pares de acordo com os fundamentos da capoeira? Os sujeitos reivindicam espaço para expressar suas produções na capoeira? Os sujeitos esperam o momento adequado para avançar no movimento? Respeitam os pares para manter a harmonia no espaço da capoeira? Cooperam e colaboram para o desenvolvimento do coletivo? Estas são algumas questões que procuraremos responder no desenvolvimento do trabalho.

Entendemos cidadania como cumprimento dos direitos e deveres, das normas que regem a nossa sociedade, que estão inseridas em forma de lei na Constituição Federal. Essas devem ser respeitadas pelos cidadãos na nossa sociedade democrática. Da carta magna e do debate democrático foram surgindo vários estatutos, visando proteção e respeito às diferenças sociais constituindo os direitos fundamentais ou direitos humanos.

Os direitos que muitas vezes não estão ao alcance dos sujeitos, pelo simples fato de não saberem que possuem direitos específicos, pois são direitos fundamentais dos seres humanos à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, à saúde etc. A capoeira entra em cena justamente, pelo seu ímpeto na busca de justiça social, promovendo ações que visam transformar determinada realidade social. Assim, foi ao longo da história e continua sendo.

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4.1.3.1 CAPOEIRA: CIDADANIA E O DIREITO A EDUCAÇÃO NA COMUNIDADE

No nosso micro universo procuramos transformar de forma lenta e contínua a realidade no contexto onde atuamos, através da capoeira. Nesse caso, a comunidade escolar da escola Migrantes na Vila Dique, tendo no Programa Escola Aberta uma das frentes de ação da capoeira na comunidade, esse programa tem como um dos objetivos contribuir para a melhoria da qualidade da educação, a inclusão social e a construção de uma cultura de paz e aproximar a escola da comunidade.

Dentro desta ideia, a capoeira se desloca pelos espaços da comunidade, procurando assumir um papel transformador nesse contexto. E como os sujeitos buscam assumir seus espaços no contexto da capoeira? A capoeira é um movimento, que se movimenta devido a uma força motriz gerada de dentro para fora, buscando se inserir no espaço onde atua de forma organizada e disciplinada.

Fotografia 13. Concentração na Escola preparando para ir à comunidade (2011).

Como vemos na fotografia 13, a escola é o ponto de encontro e partida, dos sujeitos da capoeira; lá eles se encontram e traçam suas estratégias. O pessoal da capoeira, reúnem-se para conversar sobre os possíveis acontecimentos, distribuir tarefas e traçar planos de atuação. 95

É importante destacar, que é neste momento, os sujeitos começam a assumir seus espaços no contexto da capoeira, pois na concentração é que vemos quem está motivado e comprometido com o movimento, e quem está por estar. Quem está assumindo para si as responsabilidades de determinadas tarefas.

Quando falamos que a força geradora da capoeira é de dentro para fora, queremos dizer que é uma coisa do indivíduo para coletividade. Com o passar do tempo buscam assumir seus espaços no contexto da capoeira. Essa força que vem de dentro e que se mistura com o que está fora. “É a união de todos, é um todo pessoal”, nesse refrão, cantado na música do mestre Toni Vargas, uma representação da força do ritual da capoeira.

Dentro do ritual, os sujeitos vão aprendendo a conhecer e a respeitar os fundamentos da roda de capoeira, o que lhes cabe e o que não lhes cabe fazer. Do espaço da escola para a comunidade os capoeiristas vão levando os saberes aprendidos com seus pares. E na comunidade colocam em prática os ensinamentos que experimentaram dentro e fora da roda de capoeira. É na comunidade que os sujeitos se sentem mais à vontade e seguros. É na comunidade que eles se sentem em casa.

Perguntado para a aluno Canário, o que a capoeira ajudou na tua vida? Ele respondeu:

Muitas coisas, que eu não sabia e com na capoeira eu fui aprendendo. Não numa vez só, mas pouco a pouco eu fui aprendendo as coisas que eu não sabia, é porque, capoeira não é só aula de capoeira, ensina muitas coisas para gente , eu acho que é isso aí (Depoimento verbal, Canário, 2010. Grifos do autor).

Aprender a conhecer os saberes da capoeira, não é só aprender um salto mortal, ou um movimento rápido, uma posição de pernas ou mãos, um giro no ar. Estes saberes são saberes, que vão além dos saberes. Explicamos, quando se aprende a cantar uma música na capoeira, não apenas se aprende a cantar uma música. Mas, aprende-se o tempo da música, a entonação, a melodia, a respiração, acompanhar o ritmo dos instrumentos, desacelerar ou acelerar o ritmo dos sujeitos. Coisas que parecem banais, mas se olharmos com um pouco mais de profundidade, vamos perceber que o que estão recebendo, verdadeiramente, é uma boa dose de disciplina.

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Canário disse que uma aula de capoeira não é só uma aula de capoeira, ensina muitas coisas, não tudo de uma vez aos poucos. A disciplina não é uma coisa que se nasce com ela, às pessoas, vão aprendendo aos poucos, vão desenvolvendo, mas o segredo para este desenvolvimento é a continuidade. Abaixar e levantar, sucessivamente, várias vezes, de preferência de uma forma lúdica. Isso faz com que o aprendiz vá adquirindo força, resistência e disciplina na capoeira arte-luta.

Cultuando e desenvolvendo disciplina e respeito, os sujeitos aprendem a viver com normas e regras, que fazem parte de uma cultura de luta e resistência de um povo que aprendeu organizar-se para sobreviver na adversidade e nas dificuldades impostas pelo “sistema-mundo ”(Menezes e Santos, 2009).

Na escola, as crianças e jovens, aproximam-se da capoeira identificando-se com uma estrutura de organização mais formal. Os alunos mais envolvidos e comprometidos com a atividade vêm de roupas de capoeira, que é uma representação da capoeira mais institucionalizada. Estar com a roupa é estar mais inserido no contexto. Existe, alguma cobrança neste sentido, sem pressão, para que os alunos criem e desenvolvam hábitos que fazem lembrar os seus compromissos na capoeira, e que aprendam a cuidar dos seus pertences, no caso, a roupa de capoeira.

Pela indumentária podemos observar o grau de comprometimento e envolvimento dos aprendizes na capoeira, o que não tem nada a ver com a paixão que eles sentem pela atividade. Muitos alunos são apaixonados pela capoeira, mas não possuem uma disciplina desenvolvida para praticar assiduamente, dando continuidade nas vivências que vão promover as suas habilidades corporais.

A indumentária é uma forma de identificação que vai aproximar a capoeira do aprendiz com todo um ritual individual, que antecede e posterga a relação capoeira- capoeirista. A antecedência ocorre do modo, com que o aprendiz arruma sua roupa, prepara ou pede para mãe ou pai para preparar para um determinado evento.

Observamos que alguns alunos no início chegavam com a roupa branca suja, cheia de manchas e com barro, às vezes, em virtude de morar numa estrada de chão batido, outras em função de descuido, capricho ou higiene. No entanto, com o passar do tempo e com as falas 97 dos professores e dos alunos mais velhos, percebemos que eles começavam a ter mais cuidados com as roupas da capoeira.

Os alunos aprendem através de histórias contadas pelos mais velhos, a importância de manter a roupa limpa na roda de capoeira, e todo ritual de respeito que existe ao traje do colega naquele contexto, que envolve um saber ancestral. Antigamente, o negro colocava a sua melhor roupa e saía para a domingueira ou para as festas religiosas. Tratando, especificamente da capoeira, na roda de capoeira era o seu lugar de relação social e de trocas de experiências de lazer. Tocar ou sujar a roupa de um parceiro de roda era uma forma de desrespeito, uma ofensa ou falta de habilidade corporal.

Até hoje, vemos nas rodas de capoeira o cuidado com o outro, depois do jogo quando os jogadores se cumprimentam, ao abraçar o camarada, os parceiros batem com a parte de trás das mãos e não com as palmas. Pelo motivo de as mãos tocarem no solo, várias vezes, durantes o jogo e ao término, certamente, as mãos estarão sujas. Assim, eles cuidam a roupa dos colegas e aprendem pela história-tradição a ter o cuidado com o outro.

Depois da concentração na escola, eles e elas, partem para as atividades propostas na comunidade, com estratégias e planos organizados e motivados para novos desafios, os sujeitos seguem para executar suas propostas. Ao chegarem na comunidade começam as cantorias, as acrobacias e as interações apresentando as habilidades desenvolvidas na capoeira.

Daí cabe uma pergunta, os sujeitos cobram posturas de seus pares de acordo com os fundamentos da capoeira? Na busca e na cobrança do desenvolvimento dos fundamentos da capoeira na comunidade, os sujeitos vão se disciplinando e fazendo com que eles entendam, compreendam e executem as regras e normas no processo da capoeira, Assim, começam a entender que existem direitos e deveres para serem cumpridos no contexto da capoeira, e a compreensão e execução destes, direitos e deveres, dentro do contexto da capoeira, faz com que os aprendizes venham a construir e fortalecer uma cidadania de fato na comunidade, devido às cobranças das regras e dos fundamentos básicos inseridos no cotidiano.

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Fotografia 14. Escola Aberta na comunidade. Brincapoeira (2011).

Como podemos observar na imagem 14, a Escola Aberta vai à comunidade levar um pouco mais da cultura da capoeira. Os sujeitos identificados com ambas, a comunidade e a capoeira, sentem-se mais seguros nas demonstrações de seus saberes, que são oportunizados com o objetivo de contribuir para a melhoria da qualidade da educação e a construção de uma cultura de paz. Para alcançar esses objetivos a capoeira entra na comunidade como instrumento de educação emancipatória voltada para o lúdico, para o ato de aprender brincando, melhorando a educação e promovendo uma cultura de paz. Porque de violência as comunidades periféricas já estão cheias.

Aqui, no caso, estão usando a capoeira para a divulgação de um evento, que irá acontecer na comunidade. O “Brincapoeira Nação” um evento que leva para comunidade a oportunidade de vivências de capoeira de forma lúdica, contemplando vários direitos humanos fundamentais, para a construção da cidadania, exemplos: educação, cultura, saúde e lazer.

A educação na comunidade é promovida junto aos sujeitos da capoeira, que dentro deste contexto, levam as informações e os saberes aos seus pares nas famílias. Por vezes, 99 familiares e amigos dos sujeitos passam e param, interagindo na roda de capoeira. Para eles é uma coisa engraçada, muitas vezes confusa, mas agradável para grande maioria. Tem uma religião “X”, que tem certa resistência, que não cabe salientar aqui. As crianças gostam de praticar, mas, os pais das crianças dessa religião, não.

De modo geral, a comunidade dialoga com a capoeira, seja aprovando na grande maioria ou reprovando numa minoria. Procuram entender de que se trata, questionam, cobram a presença, apóiam, interagem, gostam de capoeira no contexto da comunidade. Cedem espaços para a prática, apreciam, dispensam atenção à atividade lúdica da capoeira, esta cultura que fortalece o corpo, a identidade e a cidadania.

4.1.3.2 CAPOEIRA: CIDADANIA E O DIREITO À CULTURA

No capítulo IV, do ECA, do direito à Educação, à cultura, ao esporte e ao lazer; nos artigos 57 e 58 - Dando destaque ao último – “No processo ed ucacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprio do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura”.

A capoeira é uma manifestação da cultura popular de origem afro-brasileira, que nasce, principalmente, nas periferias urbanas com a intenção de buscar a liberdade para os povos oprimidos da sociedade brasileira. Na comunidade da Vila Dique, os sujeitos têm acesso a essa cultura popular. Vejam no depoimento do jovem Sadia, como a capoeira começou e no que se transformou na sua vida:

Bom, o começo foi mais pela luta, depois aprendi a gostar dela (a capoeira) pelo ritmo, pelo jogo, pelas acrobacias, isso só foi me mantendo nessa cultura. Nessa cultura brasileira, pela arte e pela cultura , aprendi não usar a capoeira só para uma luta, aprendi com os meus colegas que a capoeira é mais que uma luta, ela faz parte da nossa vida em todos os momentos (Depoimento verbal, Sadia, 2010. Grifo do autor).

A capoeira entrou na vida do nosso sujeito de pesquisa, como uma manifestação de luta, uma defesa corporal, para viver numa comunidade que por vezes é violenta. Ele não era agressivo, mas tinha um temperamento difícil, e buscou algo que lhe trouxesse confiança e segurança. Com o passar do tempo a capoeira foi modificando e transformando a sua vida. 100

A partir do momento em que teve acesso à cultura da capoeira começou a modificar o seu modo de ser e de ver o mundo bem como a arte da capoeira. Descobriu que existiam outros elementos tão importantes e complementares a luta. Que mantiveram o sujeito “nessa cultura Brasileira, pela arte e pela cultura” esse jovem aprendeu a gostar de outros elementos. Assim, é que acontece com os aprendizes na capoeira entram por um motivo específico e permanecem por vários outros.

Com o passar do tempo, os sujeitos reivindicam espaço para expressar suas produções na capoeira? Na medida em que o tempo avança, avançam, também, as aquisições dos saberes na prática de capoeira. Saberes estes relacionados aos desenvolvimentos dos gestos, da musicalidade, do ritual e da historicidade da capoeira. A medida em que vão aprendendo a desatar os nós, vão se apropriando de saberes constituídos no contexto histórico e cultural da capoeira e, necessitam da possibilidade de passar adiante estes saberes adquiridos, é quando começam a reivindicar seus espaços para expressar suas produções aprendidas na cultura da capoeira.

Geralmente, começam juntos do mestre e dos professores, ajudando um colega numa cantoria, num toque de berimbau, na execução de um movimento e ou ajudando na composição de uma música. Existem várias formas de os aprendizes expressarem suas produções. A medida em que dialogam com os mestres e professores e vão descobrindo coisas novas, vão se sentindo mais seguros e confiantes. Chega uma fase, num determinado momento, que eles começam a assumir posturas de responsabilidades, dentro dos grupos de capoeiras. Nesses desenvolvem papéis e funções, que passam a fortalecer e construir uma identidade cultural.

Essa identidade cultural fortalece e firma o sujeito dentro da capoeira. Quando chega nessa fase pode-se dizer que é um cidadão construído, principalmente, no contexto da capoeira. Estes atores sociais querem avançar no movimento de cultura popular da capoeira, geralmente, querem contribuir para divulgação da capoeira arte-luta. Isso faz com que coloquemos o seguinte questionamento. Os sujeitos esperam o momento adequado para avançar no movimento da capoeira?

Nessa questão, mais uma vez é essencial a presença do mestre, sua postura e comprometimento com a cultura da capoeira, na transmissão dos saberes inseridos dentro deste contexto. Os alunos no início possuem muito fôlego, muita sede e vontade de beber a 101

água na fonte. Capoeira é luta poderosa, principalmente, instrumento de educação libertadora inventada pelos escravos para escapar do açoite dos senhores.

Como no caso do depoimento dado, acima, pelo jovem Sadia, no principio, a capoeira entra na vida das gentes, principalmente, nas periferias das grandes cidades, como luta, depois vai tomando outros caminhos. Aqueles sujeitos que se identificam e se descobrem pela luta da capoeira no primeiro momento, percebendo-se cada vez mais capazes. Esses, muitas vezes precisam de maiores intervenções dos mestres, em relação ao avançar no movimento da capoeira. Daí a importância da postura do mestre para com seu trabalho, saber o que quer e onde, quer chegar no conjunto da obra.

Nosso trabalho é inspirado no Movimento de Cultura Popular, criado no Recife em 1960. Desta inspiração surgem os círculos de cultura afro-brasileira. Não temos intenção de aprofundar esta questão da leitura da palavra neste momento, mas sim oportunizar a leitura do mundo pela via do corporal. Para que eles possam aprender e terem oportunidades de dizer suas palavras pela oralidade, nas linguagens múltiplas que estão contidas na capoeira, assim, exercerem uma cidadania de fato.

Fotografia 15. Círculo de cultura afro-brasileira vivência de Percussão (2005).

A vivência, acima, aconteceu em dezembro do ano de 2005, ano em que iniciamos o projeto na escola Migrantes. No evento de final de ano, começamos a desenvolver nossos encontros integrados nas comunidades, onde a Associação Brasileira de Capoeira Nação 102 ministrava aulas. Reuníamos nesses espaços diversos da cidade, os mestres e professores convidados com objetivo de promover a integração com os alunos oportunizando aos mesmos, essa vivência e possibilidade de diálogo.

Esse evento teve a presença de vários mestres da capoeira brasileira, e a vivência foi ministrada por um mestre baiano, conhecido percussionista o mestre Moa do Catende, que trabalhou vários ritmos afro-brasileiros. Sentado ao lado de vários mestres e alunos, o mestre Moa mostrou uma variedade de batidas no atabaque e agogô, naquela vivência. Sendo o número de pessoas um pouco maior que o número de instrumentos, enquanto uns experimentavam a arte de tocar um instrumento de percussão, outros pacientemente esperavam atentos à hora de tocar. Os que tocavam entravam no ritmo da batida, e os que esperavam tentavam aprender através da observação, esperando a sua vez.

O mestre pacientemente explicava os toques para aqueles alunos que tinham um pouco mais de dificuldade de aprender, sempre estimulando e incentivando, jamais criticando, com tranquilidade e sabedoria fazia os alunos se sentirem capazes, e os colocava mais dentro do movimento da capoeira a cada momento. Naquele circulo de cultura afro-brasileira havia vários alunos iniciantes na capoeira, que iriam ser batizado naquele dia. Entre eles, estava o aluno Sapão, de boné vermelho.

Perguntado ao Sapão, o que te motivou a permanecer na capoeira? O mesmo respondeu:

O que me motivou a permanecer na capoeira foi que eu, ia em todas as aulas de outras atividades, e para nada, eu servia, as pessoas diziam que eu era ruim, que não jogava nada, que eu era um desastre. E na capoeira, quando eu cheguei lá, estava sempre no caminho certo , quando eu perguntava, como eu estava? Era sempre por ali, o caminho é treinar e praticar , como eu estou? E a resposta, era sempre a mesma. Tá no caminho é isso aí!(Depoimento, verbal, Sapão, 2010. Grifos do autor).

Os sujeitos cooperam e colaboram para o desenvolvimento do coletivo da capoeira? Colaborar para o desenvolvimento do coletivo é dar uma palavra de incentivo para um iniciante. É dizer que está no caminho certo, é mostrar possibilidades, mesmo que este 103 caminho esteja muito distante. No coletivo ter vontade de aprender algo é um grande ponto de partida. Quando todos tocam juntos, às vezes, não é quase impossível perceber uma batida fora do compasso, porque os mais experientes seguram o ritmo dando possibilidade de autoafirmação para os iniciantes.

Na capoeira sabemos que cada aluno é importante para somar no conjunto, tem espaço para todos e que com cooperação e colaboração, o movimento se fortalece. “O caminho é treinar e praticar”, sempre, com os estímulos dos mais velhos e experientes, os aprendizes vão adquirindo confiança e se tornando mais seguros de si. Fortalece a personalidade, aumentando a autoestima dos praticantes. O que contribui para que eles exerçam suas funções dentro do grupo de capoeira.

Assim, vão fortalecendo a construção de uma cidadania de fato. Potencializando o aprendizado através da capoeira, cultura afro-brasileira, por meio da ampliação da integração entre escola e comunidade. Surgem oportunidades de acesso à formação para a cidadania, dando ênfase, a alguns direitos fundamentais humanos, que estão constituídos, no capítulo IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente, como o direito a educação e a cultura. Que não deixam de contemplar o esporte de participação e o lazer.

4.1.3.3 CAPOEIRA: CIDADANIA E O DIREITO À SAÚDE

A saúde é outra questão que ganha muita ênfase no contexto da capoeira. Principalmente, numa comunidade carente, como é a Vila Dique, que tem à sua margem um valão a céu aberto, onde são jogados dejetos, lixo, certas vezes, até animais mortos. Pelo fato de a grande maioria das famílias viverem da coleta d e material reciclável “lixo” e pela necessidade de uma labuta dura, diariamente, muitas crianças precisam de um cuidado todo especial por parte dos professores.

Estes cuidados passam pela instrução e formação dos nossos alunos na capoeira. Desde orientações básicas para o cuidado diário da saúde, até coisas mais complexas e pessoais. A coordenadora pedagógica do turno integral da EMEF Migrantes e da capoeira, traz-nos o seguinte depoimento relacionado à prática da capoeira na escola:

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O trabalho na EMEF Migrantes vem sendo a de oportunizar vivências diferenciadas baseadas em valores tais como (cooperação, humildade, solidariedade). Que são muito importantes, mas que não fazem parte da realidade da maioria das famílias da Vila Dique, já que muitos de nossos alunos são vítima de abusos, negligência e abandono e sem essa oportunidade acabariam perpetuando o ciclo da violência que gera violência (Depoimento escrito, 2010, Ana Paula. Grifos do autor).

No depoimento acima, da coordenadora do turno integral da escola, podemos observar a influência que a capoeira tem na vida das crianças e jovens, inseridos no contexto da capoeira, que por sua vez estão inseridos no contexto da comunidade escolar, ela contribui com valores que vão fortalecer a base da vida dos sujeitos, agindo, diretamente, na autoestima e fortalecendo a personalidade e, consequentemente, a saúde de modo geral.

No depoimento acima, tem destaque uma questão que está diretamente relacionada à saúde pública. Que é o modo como vivem a maioria das famílias, ela nos traz que “muitos de nossos alunos são vítima de abusos, negligência e abandono” . Especificamente, nesse caso, a capoeira contribui para a mudança deste quadro. Além, dos valores citados: “ cooperação, humildade, solidariedade” a capoeira promove a união entre os sujeitos, que através do diálogo dentro do contexto, trocam informações importantes com seus pares, que agirão diretamente na saúde do grupo de modo geral.

Vejamos como acontecem estas trocas de informações. Uma premissa no grupo é o cuidado dos maiores com os menores e os mais velhos e experientes cuidam dos mais novos aprendizes. Cuidados básicos para com a saúde, por exemplo: a higiene pessoal dos alunos. Escovar os dentes, tomar banho diariamente, pentear os cabelos, cuidar da roupa branca da capoeira para mantê-la branca, tirar papéis e lixo que atrapalhem o andamento da roda de capoeira. Coisas pequenas e básicas que começam a fazer a diferença no contexto da capoeira, que com o tempo começam a mudar a vida dos alunos. Porque são hábitos cobrados diariamente, pelo mestre e pelos professores, com o tempo os mais velhos começam a cobrar dos mais novos, muitas vezes nem lembram que foram cobrados quando começaram a praticar capoeira.

Outra coisa é cuidar da alimentação. Esta é uma questão delicada, para quem vive numa comunidade carente, que muitas vezes mal tem o que comer em casa. A escola é uma oportunidade, às vezes, uma salvação. Porque a escola serve lanche e almoço, mas nem sempre dá para contar com esta solução de pegar as refeições que a escola disponibiliza. Se 105 observarmos na figura 14, a Escola Aberta na comunidade, este programa funcionava aos sábados e , no sábado, o refeitório não funcionava para este programa.

Certa vez, saímos da escola para a comunidade e a aluna que estava na figura 14, sentada, desmaiou de fome. Os alunos da roda e da comunidade mobilizaram-se imediatamente para ajudar aquela aluna a se recompor. Fizemos um soro caseiro com água, açúcar e sal, e demos para ela beber lentamente, em seguida a aluna se recompôs. Seguimos a roda e depois o acontecimento serviu de pauta para o dialogo que temos sempre depois das rodas. Foram trazidas questões sobre a importância da alimentação, principalmente, para quem pratica capoeira, conhecimento sobre raízes e frutos que servem para uma alimentação saudável, como suprir as necessidades de uma alimentação deficiente, a importância de falar sobre tais carências para que os colegas possam ajudar na resolução dos problemas, a importância das parcerias nas horas difíceis.

Nesse caso “cooperação, humildade e solidariedade ” tentam superar “abusos, negligência e abandono ”, que geram e perpetuam “o ciclo da violência que gera violência” dentro das comunidades de modo geral, mas, especificamente, na Vila Dique. A capoeira entra com o objetivo de romper com estes ciclos, não de modo direto, mas com as “manhas necessárias à sobrevivência física e cultural dos oprimidos”(Freire, 1996, p . 78). Porque a transformação da saúde parte de dentro para fora, recebe elementos do meio externo, mas é, interiormente, que ocorre essa transformação.

Os indivíduos no coletivo constituem sua base, para fortalecer suas cidadanias de fato, pois de direito já estão constituídos. Na Constituição Federal de 1988, na seção II, da saúde, no artigo 196. “A saúde é um direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoç ão, proteção e recuperação” (Constituição Federal, 2009, p. 159).

A capoeira é uma forma preventiva de promover a saúde das pessoas inseridas nesse contexto. A cultura de hábitos saudáveis nas atividades corporais desenvolvidas na capoeira faz com que os alunos descubram possibilidades de reverter à situação em que vivem, muitas vezes, por descaso das autoridades e ou pela falta de comprometimento e cobrança da comunidade junto aos órgãos competentes. Por não saberem reivindicar os seus direitos e cobrar os deveres do poder público, muitos moradores ficam entregues a própria sorte. Por 106 isso, dialogamos com as crianças e com seus pais a respeito de questões como saneamento básico, esgoto, água, entre outras.

Certa vez, num dia de chuva, em que a Avenida Dique estava toda embarrada e cheia de lama, conversando com uma moradora, mãe de um aluno nosso. Tocamos no assunto da situação da rua, que não tem calçada, a calçada é junto com a avenida, ou seja, não existe calçamento. A avenida é de chão batido e não há calçada. Falei da situação precária em que se encontrava a rua, e ela me disse: - Mas o que, quê a gente pode fazer, né! - É coisa da natureza! Certo, a chuva é problema da natureza. No entanto, o calçamento, o esgoto e o cuidado com o lugar não são coisas da natureza, são coisas dos homens. E cabe a eles discutirem e reivindicarem, soluções e respostas, junto ao poder público. É papel da comunidade, buscar respostas para os problemas da mesma. Às vezes, os moradores estão tão envolvidos com suas batalhas pela conquista do pão que acabam esquecendo ou desconhecendo seus direitos de cidadãos.

A capoeira tenta na sua ação na comunidade escolar da escola Migrantes na Vila Dique, através dos sujeitos inseridos nesse contexto, crianças e jovens da comunidade problematizar questões básicas relacionadas à saúde pública e ao bem estar social, respeitando sempre a compreensão dos sujeitos. Através da cultura popular afro-brasileira procuramos contribuir para a construção de uma cidadania de fato, visando à emancipação humana dos sujeitos. “Na prática, o que se busca como questão essencial é propiciar que todo cidadão, independentemente de sua raça ou cor, possa ter igualdades de condições na empreitada de crescimento individual". Senador Paulo Paim, autor da lei nº 12.288/ 2010 Estatuto da Igualdade Racial

4.1.3.4 CAPOEIRA: CIDADANIA E A EMANCIPAÇÃO DOS SUJEITOS

A construção e o fortalecimento de uma cidadania de fato, passa pelo processo de emancipação dos sujeitos no coletivo da capoeira, nas interações e nas relações sociais entre a capoeira, a comunidade escolar e a comunidade da Vila Dique. O contexto da capoeira deve estimular e despertar nos sujeitos a vontade de Ser Mais (Freire, 1980). Como podemos observar no depoimento, abaixo de Canário, sobre a questão do que fez ele permanecer na capoeira:

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Foi (riso, ficou pensando e demorou a soltar a voz, trancou a fala) foi porque, eu fui treinando , fui aprendendo e fui fazendo amigo . Foi sendo considerado, né! Fui criando amizade, daí eu quis treinar, quis treinar e continuar. Porque meu sonho é um dia se tornar mestre. E aí continua na capoeira, é por isso, que to na capoeira. Por causa do professor, aprender mais, cada vez mais. É isso aí (Depoimento verbal, 2010, Canário. Grifos do autor).

Na capoeira uma coisa é consequência da outra, como que, num movimento de inversão, de cabeça para baixo. “S onho ”, “mestre”, “fazer amigo ”, “aprender” e “treinar” a ordem inversa, é mais ou menos a sequência lógica ou quem sabe ilógica da capoeira. Onde se criam e recriam os sujeitos, que se fortalecem nas relações sociais no coletivo da capoeira. Nas palavras do nosso sujeito de pesquisa o sonho dele é chegar a um dia ser mestre. Este é o sonho de quase todos os capoeiristas praticantes.

Esta é a grande questão, relacionada à emancipação humana dos sujeitos inseridos neste contexto. Eles caminham com um sentido para suas vidas. Quando se sabe o que quer e onde se quer chegar, fica mais fácil a empreitada de ir, em busca dos objetivos. A medida em que o tempo passa, avança-se na busca de novas ideias para alcançar o tão almejado sonho. Isso quer dizer que é caminhando que se constrói o caminho. Ele disse que foi treinando e aprendendo. E nesse processo foi fazendo amigos, por que na medida em que avança na prática da capoeira.

O iniciante deixa de ser iniciante, vai adquirindo os jeitos e trejeitos da capoeira, a mandinga, o molejo, o ritmo de corpo e a malicia. Vai sendo considerado pelo meio onde está inserido, pelos colegas, pelos mais velhos e experientes e vai sendo admirado pelos mais novos, com o passar do tempo passa a ser referência para os mais novos. Dividir informações e multiplicar conhecimentos, treinar e aprender, estes verbos andam, sempre juntos na capoeira.

Ele foi treinando, foi aprendendo e fazendo amigos sempre com um sonho em vista o de ser mestre, para Ser Mais. Para isso, é preciso aprender mais, cada vez mais. Na capoeira isso representa uma infinidade de coisas, musicalidade, historicidade, desenvolvimento de habilidades corporais e aprender, conhecer e respeitar o ritual da capoeira.

A medida em que os capoeiristas vão aprendendo cada vez mais estes elementos em múltiplas dimensões no mesmo contexto, vão enriquecendo o seu vocabulário corporal, que 108 vai dando-lhes domínio e segurança no trato com os saberes da capoeira. Isso faz com que, os capoeiristas mantenham-se sempre sonhando e buscando algo melhor para eles e seus pares.

Como seres históricos criam e recriam a capoeira, reinventam a todos os momentos novas possibilidades de atuar na sociedade. Construindo e fortalecendo a sua corporeidade no contexto da capoeira, a identidade cultural na cultura popular afro-brasileira e a cidadania de fato num movimento sócio-histórico e cultural que é a capoeira.

Como vimos, anteriormente, no início deste capítulo, nosso sujeito de pesquisa tinha como referência corporal, um amigo chamado Rafinha, que teve um fim trágico na sua vida. Mas, que continuou sendo referência corporal para aquele menino na época. Passado alguns anos, temos o relato do nosso sujeito de pesquisa que quer treinar e aprender para se tornar mestre de capoeira. Ele disse que o sonho dele é se tornar mestre de capoeira.

A utopia tratada por Freire é uma forma de esperança, de sonho na busca de um sentido para a vida dos sujeitos inseridos no contexto da capoeira. Dar um salto mortal, aprender fazer e tocar um berimbau, compor uma música, aprofundar-se no conhecimento da história são coisas simples, que dão sentido na vida dos capoeiristas na busca de emancipação humana, que se emancipando um ajuda aos outros na roda da capoeira, que simboliza a roda da vida.

Segundo um depoimento da professora Claudia, num depoimento oral, esse garoto, o Canário era impossível de controlá-lo na escola, antes da capoeira, ele fazia muito tumulto correndo, brigando e aprontando barbaridades; depois das aulas de capoeira, ele passou a ser uma criança tranquila, solidário e amigo dos colegas, passou a ser uma referência boa.

As pessoas aprendem com o entorno, os colegas, os amigos, os vizinhos, aqueles que chamam atenção delas, por algum motivo as roupas, o cabelo, um gesto do corpo, o modo de falar. Alguma coisa que faça com que se identifiquem com alguém. Criam uma espécie de identificação com o meio onde vivem.

A capoeira transita nos lugares da comunidade criando uma identificação com os sujeitos da mesma. Os sujeitos, que ora estão na escola, ora estão na comunidade, ficam familiarizados com os ambientes. Começam a conhecer aos pares, que ainda não conheciam, começam com o passar do tempo, ter a sensação de pertencimento a mesma. Esse garoto que iniciou na capoeira aos 9 anos de idade, como vemos na figura, abaixo. 109

Fotografia 16. Canário na Avenida Dique em frente da sua casa (2007).

Na rua de chão batido em frente a sua casa, Canário joga capoeira. Como podemos observar na figura 16, dentro da comunidade as crianças se sentem em casa, mais seguras de si, elas batem palmas, soltam a voz e jogam capoeira, num lugar simples e aconchegante. As crianças de roupa de capoeira sentem-se mais inseridas no contexto da capoeira, as crianças que estão sem roupas de capoeira são da comunidade então ficam a vontade para participar da roda de capoeira.

A integração de todos os sujeitos fazendo parte de um contexto inserido, isto é, a roda de capoeira inserida na comunidade da Vila Dique dá a sensação para o nosso sujeito de pesquisa que ele é maior. O gesto da ginga bem postada, o olhar ereto na direção do companheiro, o canto no movimento traz a sensação de confiança. Aquele “moleque ”, que está brincando de jogar capoeira, e assim, aprendendo a conhecer ambos os espaços, a roda e a comunidade a qual pertence, e com isso dar valor a ambas.

Com o passar do tempo nosso sujeito foi ficando “mais esperto, nas coisas, nas atividades, ser mais esperto e olhar as coisas melhor, tipo ver assim, as coisas de outro lado. Eu aprendi muito, antes eu olhava e para mim não era nada (Canário, 2010)”. Este garoto foi 110 apropriando-se dos saberes da capoeira, seguiu treinando e aprendendo capoeira, passou a ser considerado nas rodas pelos colegas e mais velhos e experientes no contexto da capoeira. Mudou o seu olhar em relação às coisas, isso certamente, teve mudanças no contexto da escola. Por isso, a professora Claudia referiu sua mudança de comportamento dele dentro da escola.

Cabe destacar, aqui, que a escola da capoeira transita da Escola Municipal de Ensino Fundamental Migrantes para comunidade da Vila Dique, ensinando e aprendendo a conhecer com os sujeitos inseridos nos contextos de ambas. Trabalha para emancipação dos sujeitos, ajudando na construção de sonhos, que dão sentido para possíveis mudanças geradas nos processos de ensino-aprendizagem da capoeira na escola, auxiliando nesses processos para o fortalecimento e a construção de uma cidadania de fato. Ou seja, para que os cidadãos se reconheçam como cidadãos, de direitos e deveres, constituídos e efetivados, contribuindo para construção de uma sociedade mais justa e horizontalizada com mais igualdade de oportunidades.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS E POSSÍVEIS CAMINHOS

Esta pesquisa teve por objetivo problematizar e analisar a capoeira enquanto possibilidade de educação emancipatória junto a crianças e jovens de periferias urbanas, com foco num projeto de capoeira desenvolvido na Escola Municipal Ensino Fundamental Migrantes. No trabalho procuramos desenvolver a análise baseada principalmente em documentos fotográficos e entrevistas semi-estruturadas, que foram executadas em três dimensões da capoeira: referente aos motivos, à prática e as mudanças geradas pela capoeira nas vidas dos sujeitos inseridos no contexto da capoeira na comunidade escolar. Dentro do contexto destas três dimensões, trouxemos algumas questões para dissertar:

Quais são os motivos para praticar e permanecer na capoeira?

O que mais gosta na prática da capoeira?

De que forma a capoeira ajudou na vida dos sujeitos?

O esforço que foi empreendido neste estudo, aconteceu na busca de contemplar os três objetivos específicos da pesquisa: descrever como se desenvolve e se fortalece a corporeidade através da prática da capoeira; identificar como se constrói e se estrutura a identidade cultural através da prática da capoeira; examinar como é possível a edificação e o alicerce da cidadania de fato no espaço da prática da capoeira.

Os dados coletados na comunidade escolar e fora dela foram utilizados para dar visibilidade aos sujeitos. Através do uso de documentos fotográficos e das falas nas entrevistas procuramos fazer uma boa escuta dos mesmos. E assim tentar responder algumas questões utilizadas no desenvolvimento da análise do trabalho.

Nas considerações temos ciência de não ter respostas fechadas, nem verdades absolutas construídas. O que contemplamos como resultado são mais perguntas para serem respondidas. As falas e imagens dos sujeitos dizem muito mais do que podemos traduzir em palavras. Este é apenas um pequeno ensaio para verificar se a capoeira serve como possibilidade de emancipação para os sujeitos inseridos no seu contexto.

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A capoeira é um espaço de educação não-formal, onde a expressão corporal e manifestação do lúdico formam em sua essência a grande base das habilidades corporais, que chegou até nossos dias, num processo histórico-social e cultural, nascendo da necessidade de liberdade do negro escravo e de resolver questões socioeconômicas e políticas no passado escravocrata.

As maltas de capoeira no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XIX representavam algumas das primeiras escolas de capoeira, mesmo não tendo explícito esta função de escola: “o sucesso das maltas em se confrontar com ou mesmo confundir as forças da repressão deve ter incentivado um bom número de cativos que já estavam havia bom tempo na cidade a assumir seus símbolos e a aprender as habilidades do jogo” (Soares, 2002, p, 86). No período escravocrata, já era possível perceber um processo de ensino-aprendizagem do jogo capoeira. Assumir símbolos é um elemento de identificação com um determinado grupo, que possibilitará, posteriormente, pertencer a um grupo ou comunidade que com o passar do tempo receberá um papel ou função no grupo.

A escravidão deixou-nos muitas heranças na cultura popular afro-brasileira. Muitas destas manifestações culturais surgiram pela necessidade de superação de dificuldades num coletivo para resoluções de problemas sociais surgidos no período pós-escravidão. Os ex- cativos, de modo geral, foram abandonados à própria sorte. Em constantes relações de poder eram jogados para as periferias das cidades. Ali ficavam em situação de risco e vulnerabilidade social.

Esta situação de vulnerabilidade social em que se encontram as periferias urbanas no Brasil, é herança do tempo da escravidão? No caso, da Vila Dique “uma peculiaridade desta população é que ela é composta majoritariamente de migrantes, de origem rural, da região das colônias alemãs do Estado, colonos sem-terra , apresentando fortemente esta característica étnica e cultural” (Achutti, 1997, p. 12).

A capoeira fortaleceu-se tomando corpo, no sentido de corporeidade, devido a uma miscigenação de culturas, predominantemente, a cultura africana, mas também, com contribuição da cultura indígena e europeia. A necessidade de superação de problemas fez surgir através do diálogo de corpos uma comunicação entre os sujeitos nas comunidades. Pela oralidade que se expressa pelos gestos, pela música, pelas palmas, pelo olhar, pelos valores, 113 pelo ritual, pela união, pelos indivíduos, pelo conjunto, pelo texto, pelo contexto, pela vontade de lutar e resistir, de sobreviver e de sorrir, pela emancipação humana cooperando com o coletivo, dentro de uma ação cultural dialógica (Freire, 1980) para leitura do mundo, para quem sabe depois, ter mais facilidade de fazer a leitura das palavras.

No contexto da comunidade escolar da escola Migrantes na Vila Dique percebemos que a motivação dos sujeitos a praticar capoeira, num primeiro momento, é a luta e a música, estes dois elementos são os que mais chamam atenção dos sujeitos, porém, com o passar do tempo, vão percebendo que capoeira é muito mais do que isso, é um espaço de construir amizades, formar parcerias e desenvolver valores como respeito, solidariedade e disciplina, para fortalecerem-se enquanto membros de uma comunidade, dentro da comunidade.

A capoeira tem toda uma mística que possibilita o fortalecimento de crenças e de esperança em dias melhores, como possibilidades de avançar nas conquistas dentro da capoeira arte-luta. O que faz com que a corporeidade vá construindo-se e fortalecendo naqueles sujeitos que estão inseridos na realidade concreta do contexto da Vila Dique. Com o passar do tempo, começam a enxergar as coisas de uma forma diferente começam a ver “a história como possibilidade e não como determinação” (Freire, 1996).

Onde muitos veem uma comunidade de periferia urbana pobre, numa realidade de violência que gera violência, vemos a manifestação do lúdico possibilitando olhares diferentes, onde plasticidade e estética se expressam pela via corporal na busca de soluções para seus problemas. Formando parcerias em círculos de amizades, representado pelo círculo de cultura afro-brasileira. Buscando construir um caminho diferente para a nossa capoeira. Quando muitos, ainda, primam pela performance buscamos construir uma capoeira como possibilidade de emancipação humana para os sujeitos de classes populares.

A capoeira cultua seus símbolos fortalecendo a identificação dos sujeitos no contexto. Nos cantos, nas poesias, nos gestos, no ritual construído ao longo de séculos pela luta do povo oprimido socialmente pelo poder dominante. Essa luta fez-se presente e auxiliou algumas conquistas na constituição do ECA e do EIR, esta luta pela liberdade e, em defesa “dos negros, dos brancos, dos índios, das mulheres, das crianças, dos homossexuais, dos idosos e de todos os que são descriminados”(Pai m, 2011, p. 10-11).

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Hoje, as escolas de capoeira de várias vertentes, tanto de mestre Bimba da capoeira Regional, quanto as Pastinianas do mestre Pastinha da capoeira Angola, como tantas outras que promovem à práxis capoeirana (Falcão, 2004) têm como um dos seus maiores símbolos Zumbi dos Palmares, cantado e louvado nas rodas de capoeira pelo mundo. Mas, principalmente, nas escolas das periferias urbanas do Brasil, onde é seu maior reduto de praticantes.

Através do Estatuto da Igualdade Racial a capoeira ganhou um lugar de destaque, na Carta Magna através da lei 12.288 / 2010, em seu artigo 20, seção III da cultura. “O poder público garantirá o registro e a proteção da capoeira em todas as suas modalidades, como bem de natureza imaterial e de formação da identidade cultural brasileira, nos termos do art. 216 da Constituição Federal ” (Paim, 2011, p. 18).

Podemos identificar que na capoeira existe a possibilidade de construção de uma identidade cultural por meio de elementos de identificação como: a indumentária, as habilidades corporais, os elementos da musicalidade, elementos da historicidade, a organização do ritual desenvolvido num processo coletivo para o coletivo. Dentro desses, os sujeitos assumem papéis e funções, constituídos como saberes na roda de capoeira, geralmente, transmitidos pelos mais velhos e experientes. A medida em que avançam no tempo, ocupam lugares nos espaços diferentes na roda de capoeira e, passam a assumir responsabilidades e comprometimento nesse processo.

As diversas manifestações culturais no contexto da capoeira servem para fortalecer e ajudam na construir essa identidade cultural. O maculelê, a puxada de rede e o samba de roda entre outras manifestações da cultura popular afro-brasileira, inseridas no contexto da capoeira formam uma rede de informações, que auxiliam na reconstrução através da problematização e do diálogo, a memória do povo possibilitando, esta sensação de pertencimento a um grupo popular, que se movimenta por diversos espaços sociais e instituições educacionais, onde aprender e ensinar implicam em conhecer está manifestação de luta e resistência que é a capoeira.

Ao mesmo tempo, que avançamos nos direitos constituídos pelos instrumentos legais, perdemos espaços onde conseguíamos desenvolver nossos trabalhos nas periferias com as pessoas que mais precisam da capoeira para se construírem como cidadãos de fato. Talvez, 115 por faltar vozes que reivindiquem políticas públicas efetivas para o acesso à capoeira dos jovens nas periferias urbanas. Os documentos legais garantem proteção à capoeira como bem de formação da identidade cultural brasileira, mas não garantem políticas públicas efetivas que protejam e possibilitem o acesso de nossos jovens a prática da capoeira de forma gratuita, como direitos fundamentais à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, à saúde de forma preventiva e educativa a todos que queiram praticar.

Nestas considerações trazemos um fato que parece relevante, que não fora abordado no corpo do trabalho. Os programas “Escola Aberta” e “Segundo Tempo” foram fechados na escola Migrantes no segundo semestre do ano de 2011, o primeiro por questões burocráticas, má remuneração dos profissionais e falta de pessoal para trabalhar em prol da comunidade; e o segundo conforme informação dada pela direção foi devido à corrupção dos gestores, que fez com que o programa parasse de funcionar na escola.

Dois programas do governo que davam o mínimo de condições de trabalho para os profissionais, mas possibilitavam para as crianças e jovens praticar a capoeira na escola, e acabaram fechando. Trazemos estas informações para reforçar a importância de se construir uma cidadania de fato, pois a cidadania de direito, que está nos documentos legais são fatos que precisam ser efetivados. Pela luta e resistência do povo na coletividade e na participação democrática.

Como observamos ao longo do trabalho a capoeira constituiu-se como processo histórico-social e cultural, promovido pelo povo, com o povo e para o povo brasileiro de modo geral. Examinar se é possível o fortalecimento e a construção da cidadania de fato foi um desafio posto. É possível o fortalecimento e a construção da cidadania de fato no espaço da prática da capoeira? Essa é uma questão que estamos tentando resolver ao longo de anos de luta e resistência, em constant e “relação de poder”(Menezes e S antos, 2009) mas, sempre pela manifestação do lúdico na cultura afro-brasileira.

Terminamos as considerações, e deixamos as seguintes reflexões: Inserir-se na comunidade escolar foi uma estratégia de ação da capoeira, para adentrar na comunidade da Vila Dique. Pensando a capoeira arte-luta, como possibilidade de resolução de problemas na busca da emancipação dos sujeitos, de que forma podemos mobilizar as comunidades escolares para construção de políticas públicas que oportunizem e criem possibilidades de 116 emancipação social e econômica para os sujeitos nas periferias urbanas, visando à construção de uma sociedade com mais justiça social e menos violência. Porque, enquanto as crianças e jovens estão praticando a capoeira de forma lúdica e educativa, estão ocupando os seus corpos num processo de ensino-aprendizagem que possibilita um crescimento e desenvolvimento saudável da totalidade do ser humano.

Não tivemos nesse trabalho a intenção de denunciar a violência social e política, que sofrem nesta comunidade, expondo as carências e as dificuldades, que é realidade posta na comunidade da Vila Dique, pois para um bom observador as fotografias falam por si. Nosso objetivo foi problematizar e analisar a capoeira enquanto possibilidade de educação emancipatória, em termos, de corporeidade, identidade e cidadania para crianças e jovens de classes populares.

Nosso olhar seguiu em outra direção, problematizando na busca de possibilidades de emancipação para os sujeitos inseridos neste contexto. Cabe-nos indagar: como está acontecendo o diálogo da escola com a comunidade? Quais as necessidades da comunidade, para se elaborar as estratégias de ação na escola? Que finalidade tem a educação formal da escola para a comunidade? Quais os elementos de identificação da escola para com os sujeitos da comunidade? Quais são as diretrizes da escola para estabelecer um diálogo com a comunidade? A escola é realmente da comunidade escolar da Vila Dique? Estas são questões para serem resolvidas num outro momento.

Gostaríamos de deixar algumas observações e sugestões para finalizar estas considerações:

Pelos documentos fotográficos percebemos que a ação cultural dialógica da capoeira dá-se sempre no coletivo, o corpo se movimenta nos espaços das comunidades sempre em grupos. Trabalha com fundamentos da cultura africana, sempre, em três dimensões: tocar, cantar e jogar. Os instrumentos da capoeira são simples e de fácil confecção, feitos artesanalmente. O que faz com que seja simples o processo de ensino-aprendizagem na produção e reprodução dos saberes. O diálogo dá-se, principalmente, pela oralidade.

Pelas falas dos sujeitos observamos que os aspectos da luta corporal de ataque e defesa passam para segundo plano com o passar do tempo. As relações sociais e interações com os 117 outros passam a ter mais valor. Visto que os valores são adquiridos e fortalecidos no interior do processo da capoeira, como destacaram nossos sujeitos de pesquisa: solidariedade, cooperação, parcerias, círculo de amizades, respeito, disciplina e educação. Estas palavras passam a fazer parte do vocabulário dos jovens inseridos no contexto da capoeira dentro da comunidade escolar. As figuras dos mestres e dos alunos mais experientes são referências para os mais novos, estimulando e incentivando sonhos e dando sentido na busca do Ser Mais.

A chegada da capoeira aos documentos legais foi uma conquista da luta do povo, insatisfeito com a realidade do Brasil, mas isso por si só não basta. É preciso tornamos efetivos estes direitos fundamentais para a cidadania de fato, para que todos tenham acesso aos direitos humanos universais.

Deixamos as seguintes sugestões:

- A comunidade da capoeira de modo geral deve mobilizar-se para a criação de políticas públicas que efetivem a prática da capoeira dentro dos currículos escolares, pela identificação com as comunidades periféricas;

- As comunidades escolares devem procurar conhecer com mais profundidade as questões sócio-econômicas das comunidades, suas histórias, geografia da comunidade, registrem e promovam eventos de integração entre os sujeitos e que estejam abertas ao diálogo para o desenvolvimento de ambas;

- A capoeira na escola deve ser proposta como manifestação do lúdico e construção de um sujeito histórico, que oportunize o desenvolvimento da criatividade, da liberdade e da responsabilidade com os outros para resoluções de problemas dos sujeitos na comunidade;

- Que a capoeira seja utilizada nas escolas, principalmente, de periferias urbanas, como forma de educação emancipatória para promover a construção e o fortalecimento, em termos de corporeidade, identidade e cidadania para crianças e jovens de classes populares;

- Que mestres e professores trabalhem com a prática da capoeira nas escolas de periferias urbanas tenham uma formação qualificada como educadores populares. Que se 118 identifiquem com as comunidades e promovam uma educação emancipatória junto aos sujeitos no contexto da capoeira na comunidade escolar;

- Que haja, por parte dos governantes, a valorização do profissional de capoeira na escola de modo há estimular o mesmo a seguir na rede pública com objetivos emancipatórios para os sujeitos.

119

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APÊNDICE

APÊNDICE 1

QUADRO 01: Produção Acadêmica na Pós-Graduação no Rio Grande do Sul. NOME DO AUTOR E UNIVERSIDADE TÍTULO DO ESTUDO ANO. SIEGA, Carson EST CAPOEIRA, CORPO, ESPIRITUALIDADE Luiz (2007 ). As percepções de corpo, ethos e visão de mundo de crianças, de dez a doze anos, praticantes de Capoeira em uma Escola Municipal de Porto Alegre - Um estudo de caso. FLAIN, Carlo URGRS Alberto Dutra Horizontes Educativos da Capoeira Angola Junior (2005). em Porto Alegre. NASCIMENTO, UNIJUI A capoeira no contexto da Escola e da Paulo Rogério Educação Física. Barbosa do (2005). SILVA, Luiz PUCRS A Capoeira como opção de educação física Santos infa ntil no ensino de primeiro grau. (1987). FARINA, Sinval UFPEL Corporeidade, capoeira e cultura negra nos Martins ambientes da escola e da rua. (2002). MESSIAS, UFSM A importância da inclusão da cultura afro- Marta Iris brasileira nos currículos de educação física Camargo escolar a partir do conteúdo capoeira. (2004).

Fonte: CAPES Disponível em: http://capesdw.capes.gov.br/capesdw/ Acessado em: 16/05/2010.

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APÊNDICE 2

O quadro 2: Aapresenta de forma sintética um mapeamento das teses identificadas na revisão de literatura.

Nome/título Objetivo Metodologia Resultado Conclusão/ Recomendação BARBIERI, Este estudo Através de pesquisa O estudo Ao apontar para César Augustus desenvolve uma bibliográfica, o autor permitiu os aspectos de Santos(2003). O reflexão sobre o apresenta uma relacionar a alienação e que a escola faz processo de análise comparativa, Capoeira com o adestramento que com o que o escolarização de em perspectiva contexto social regem o processo povo cria: até a um bem cultural, histórica, que onde se insere, de escolarização Capoeira entrou no caso, a permite levantar os descobrindo -a, do ensino e da na dança! Capoeira, sentidos engendrados na Escola, prá tica da levantando os em determinados alicerçada numa Capoeira. Propõe sentidos a ela contextos de racionalidade o início, efetivo, atribuídos no produção de moderna que lhe de um conjunto de âmbito do conhecimento, úteis impõe ações que sistema público à problematização do significados e promovam a de ensino do tema, como a novas funções, capoeirização da Distrito Federal, Filosofia, a Escola e sustentadas em Escola, este apontando para o a própria Capoeira padrões culturais estudo permite processo de Entrevistas com da elite pensar as práticas assepsia ao qual é alunos e profissionais educacional, educacionais de submetida de nove numa lógica maneira crítica e quando colocada estabelecimento de científico - consciente, ao sob os ditames da ensino da rede tecnológica, que mesmo tempo em Escola. pública de ensino do a veste com a que aprofunda o Distrito Federal imagem do conhecimento de foram pensadas, denominado uma produção encaminhadas e Esporte de cultural autêntica, interpretadas Rendimento, acentuando suas segundo uma demarcada por raízes afro - abordagem métodos, regras, brasileiras como qualitativa de base eficiência e um dos elementos hermenêuti ca. resultados. constitutivos da formação do homem brasileiro.

FALCÃO, José Esta pesquisa Esses elementos As experiências Aponta para o Luiz Cirqueira teve por objetivo teórico - analisadas desafio de tratar o (2004) . principal criticar metodológicos expressam e conhecimento da O jogo da e propor concebem a capoeira muitas, capoeira numa capoeira em elementos como práxis freqüentemente, perspectiva auto- jogo: a teórico- qualificada pela reproduzem, não determinada, 126 construção da metodológicos noção de complexo mecanicamente, autônoma, práxis para o trato com o temático e articulam mas por solidária, reflexiva capoeirana. conhecimento da os fundamentos da mediações da e c rítica, e capoeira no pesquisa -ação com as prática contribuir para a currículo de possibilidades pedagógica, as construção de um formação pedagógicas: contradições outro projeto profissional a experimentação, sociais e a lógica histórico, para partir da análise problematização, destrutiva do além do capital. da realidade de teorização e ca pital, experiências com reconstrução coletiva evidenciando esta manifestação do conhecimento. que, no trato com cultural em o conhecimento espaços da capoeira, o educacionais significado que formais e não- os sujeitos formais do Brasil apreendem de e do Exterior. suas práticas, emocionalmente compartilhadas, está vinculado à intensidade das interações e com a plenitude da experiência e, nessas práticas intersecionam, inequivocamente, as dimensões subjetivas, ético- políticas, históricas, culturais e econômicas da vida em sociedade. ABIB, Pedro Esse trabalho se Para realizarmos tal Essas experiências Rodolpho propõe a tarefa, elegemos a envolvendo os Jungers (2004) . investigar as capoeira ango la, “saberes "Capoeira formas com as manifestação da populares” são, angola: cultura quais a cultura cultura afro - então, a partir de popular e o jogo popular articula brasileira, como nossa análise, dos saberes na todo um vasto campo privilegiado confrontada com a roda". campo de de estudo, na perspectiva conhecimentos e tentativa de buscar os desenvolvida saberes, bem seus sentidos e pelos processos como das formas significados, formais de de transmissão esforçando -nos para educação existente desses saberes constituir elementos na nossa através de de análise que dêem sociedade, sobre algumas conta de interpretar os quais buscamos 127

categorias que sua simbologia, estabelecer uma elegemos como como parte de crítica. base para essa elemento s da tarefa, quais cosmogonia africana, sejam a memória, que influencia a oralidade, a consideravelmente ancestralidade, a essa manifestação. ritualidade e a Buscamos ainda, temporalidade, na analisar as perspectiva experiências daquilo que educacionais denominamos contidas nos aqui de uma processos lógica envolvendo a diferenciada que transmissão de prevalece nesse saberes no universo universo, da capoeira angola, e diferente daquela também como se lógica que a articulam no âmbito racionalidade da cultura popular, ocidental esses processos moderna educacionais não- determina. formais. ARAÚJO, Este trabalho Para isso este Buscando Concluindo com a Rosangela apresenta a trabalho recorreu à apresentar os existência de um Costa (2004). Capoeira Angola análise de materiais resultados das conhecimento IÊ, VIVA MEU proposta pela produzidos em suas práticas cujas bases de MESTRE. A escola pastiniana algumas como um rico continuidade estão Capoeira como uma práxis organizações de material para se assentadas na Angola da pedagógica Capoeira Angola repensar o lugar pertença á escola escola articulada a pertencentes a uma das tradições pastiniana como pastiniana como ancestralidade e mesma linhagem, quando em aspecto de práxis que toma a embora em constante resistência cultural educativa? ancestralidade, a localidades distintas, entrosamento frente aos oralidade e a com os saberes processos de comunidade produzidos nos massificação como paradigmas sistemas oficiais verificados sobre de pertencimento de ensino. Desta a capoeira a dinâmica das forma, busca hegemônica, tradições encaminhar ao conhecida como africanas no campo da Capoeira Brasil, Educação a Regional. dialogando proposta de permanentemente ampliar as bases com de entendimento entendimento destas tradições sobre a fazendo -as resistência negra migrar do lugar e sua ingênuo e permanência nos fossilizado da 128

fazeres sua folclorização, educacionais e também do seu destas matrizes, e entendimento apresentando-se meramente sob a forma de desportivo. comunidades culturais. CAMPOS, O presente estudo Esta pesquisa é de Os principais Hélio José teve como natureza qualitativa resultados Bastos problema central participante e tem as encontrados pelo Carneiro a investigação características de um autor foram: (1) de (2006). para analisar a estudo histórico, existem Capoeira metodologia de descritivo, biográfico informações Regional: A ensino e da ação e antropológico. A controversas Escola de pedagógica de população da sobre o Mestre Bimba. Mestre Bimba amostra foi composta comportamento para ensinar a de 15 alunos de de Mestre Capoeira Mestre Bimba, com Bimba; (2) Regional e quais passagem marcante Mestre Bimba foi os dentro do Centro de entendido como desdobramentos Cultura Física um mito, um "rei na formação Regional (CCFR), negro", um educacional, que na atualidade divisor de águas cultural e atuam ou não como e um exemplo a filosófica na vida mestres ensinando a ser seguido; (3) dos seus alunos. capoeira Regional. A que os alunos de outra amostragem foi Mestre Bimba composta de participaram de dezesseis mestres, alguma forma da contramestre e construção da professores da Capoeira capoeira Regional; (4) a contemporâneos. O convivência com critério de inclusão Bimba e a usado pelo autor foi: Capoeira (1)não ter sido aluno Regional do mestre Bimba;(2) contribuíram de estar ministrando maneira impar na aula de capoeira em formação escolas, educacional, universidade, cultura l e de academias ou filosofia de vida grupos;(3) ter dos seus alunos. publicação na área; e (4) estar ativo e participando efetivamente dos movimentos Capoeirísticos.

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CONRADO, Tem por objetivo, Abordagem O estudo revela, A perspectiva Amélia Vitória o estudo da qualitativa, com a existência de multicultural no de Souza Capoeira Angola suporte aos uma formação campo da (2006). e da Dança Afro, procedimentos da fora da educação em Capoeira angola suas ações pesquisa -ação, da universidade, nosso contexto, e dança afro: pedagógicas etnografia e da construída e indica contribuições como meio de etnometodologia, articulada a possibilidades para uma educação, para evidenciar falas, núcleos culturais para se criar política de profissionalização aspirações e afro -baianos, que relações de educação e formação. maneiras como os contribuem para compartilhamento, multicultural da Verificou como autores sociais se formação de trocas, tolerância e Bahia os conteúdos e os organizam, criam pessoas, em respeito aos profissionais que seus métodos e geral, em conhecimentos trabalham com a pro cedem. desprestígio e das civilizações Capoeira Angola desvantagem formadoras da e a Dança Afro, social, por isso, nossa sociedade, podem ser precisam ser assim como, das incorporados a observadas e formas de sistemas e criadas condições linguagem da programas de de ampliação, expressão ensino em escolas manutenção e corporal, e universidades proteção. somando -se às na perspectiva de demais linguagens contribuírem para educativas. uma educação. Nessa perspectiva, Como Este trabalho tem foi desenvolvida uma considerações Silva, Paula como objetivo pesquisa que finais da Cristina da primordial englobou um pesquisa, pode-se O ensino- Costa(2009). discutir trabalho de campo afirmar que o aprendizado da Capoeira nas possibilidades de dividido em duas curso de capoeira poderia aulas de ensino - fases: 1º. Curso de Capoeira para os ser aprofundado educação física aprendizado da Capoeira para professores foi se fosse realizado escolar. Capoeira na professores de bastante positivo, conjuntamente educação física educação física que pois eles tiveram com outras escolar atuam no ensino contato com os disciplinas, em compreendendo-a fundamental da rede diferentes especial, com o como uma pública da Região aspectos dessa componente linguagem na Metropolitana de manifestação curricular: Arte. qual sua Campinas; 2ª. permitindo que Por fim, gestualidade, sua Acompanhamento se apropriassem constatou -se que a musicalidade, das aulas de de um repertório Capoeira pode seus aspectos Capoeira básico de gestos, constituir -se como históricos e sua desenvolvidas por músicas, um conhecimento ritualidade duas professoras no elementos relevante que compõem um contexto da educação históricos, lendas possui um acervo acervo a ser física, para turmas de e rituais que gestual próprio e apropriado pelos 1ª a 4ª série do constituem a específico a ser alunos de modo ensino fundamental. Capoeira. Dois tratado na que eles possam A análise do curso de pontos que educação física, 130

compreendê-la e Capoeira para merecem escolar praticá -la. professores procurou destaque na privilegiando a focalizar as análise dos abordagem das apropriaçõe s resultados produções realizadas por eles, gerados nesse culturais do povo as inter -relações que curso são: a brasileiro, poderiam ser participação de merecendo, estabelecidas com um Mestre de portanto, ser sua prática docente e Capoeira na estudado nas em que medida os mediação do escolas. assuntos tratados no processo de curso foram ensino - suficientes para que aprendizado dos desenvolvessem as professores, fato aulas de Capoeira que se mostrou nas escolas . bastante positivo; e a insegurança demonstrada por alguns professores para ministrar o conhecimento Capoeira em suas aulas, que suscitou reflexões sobre o ensino - aprendizado relativo a esse conhecimento na formação continuada de professores de educação física. REAL, Marcio Neste trabalho, Tomam-se como O trabalho Aponta a capoeira Penna Corte investigam -se os dados para as resultou em como um campo (2006). papéis das análises a história de contribuições de poder, definido As musicalidades da Mestres de capoeira para as áreas da a partir de regras, musicalidades capoeira. que viveram em educação hierarquias e das rodas de Compreende -se Salvador/BA, entre musical, no que jogos de força, capoeira (s): que as 1890 e 1994; respeita à nos quais as diálogos musicalidades das entrevistas realizadas investigação de musicalidades são interculturais, rodas da capoeira durante três meses de processos de um dos elementos campo e atuação potencializam trabalho de campo, ensino - centrais. de educadores. práticas nesta cidade; e aprendizagem educativas não- reflexões advindas de das formais, dois cursos de musicalidades analisadas na formação de em espaços não- perspectiva educadores de formais e, para intercultural. capoeira na aérea da 131

perspectiva da educação, no intercultura e da tocante à análise investigação -ação, da constituição realizados em de saberes de Florianópolis/SC, educadores em entre 2004 e 2005, tais espaços, que pelo podem ser MOVER/CED/UFSC entendidos como e pela Confraria campos de poder, Catarinense de pertinentes ao Ca poeira. horizonte das reflexões da educação intercultural.

Fonte: CAPES Disponível em: http://capesdw.capes.gov.br/capesdw/ Acessado em: 16/05/2010. 132

ANEXO 1

Universidade do Vale do Rio dos Sinos Programa de Pós Graduação em Educação Mestrando: Paulo Lara Perkov Orientador: Professor Dr. Danilo Romeu Streck

Perguntas da entrevista.

1) O que motivou você a praticar capoeira? 2) O que fez com que você permanecesse na capoeira? 3) O que você mais gosta na capoeira? 4) O que você menos gosta na capoeira? 5) Qual foi à coisa mais importante que você aprendeu na capoeira? 6) No que a capoeira ajudou na tua vida?

Eu, Paulo Lara Perkov, professor de Educação Física e oficíneiro na E. M. E. F. Migrantes, na cidade de Porto Alegre solicito sua colaboração em responder esta pesquisa que é parte integrante da dissertação de Mestrado em Educação que desenvolvo na UNISINOS, e que tem por título provisório. CAPOEIRA : POSSIBILIDADE DE EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA JUNTO A JOVENS DE CLASSES POPULARES ? A mesma tem por objetivo geral problematizar e analisar a capoeira enquanto possibilidade de educação emancipatória junto a jovens de periferias urbanas, no contexto de um projeto desenvolvido em uma escola municipal situada em Porto Alegre/RS.

Dados de identificação

1) Nome: ______2) Nome fictício (para não ser identificado na pesquisa):______3) Idade: ______4) Sexo: ( ) masculino ( ) feminino ______

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Autorização

Eu,______responsável por______, autorizo a utilização dos depoimentos e das imagens para fins de pesquisa. Estou ciente que nenhum depoimento terá identificação pessoal, digo, nome.

Porto Alegre/RS, ______de ______de 2011.