Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | julho-dezembro de 2009

Psicologia em Pesquisa ISSN 1982-1247 Publicação do Departamento de Psicologia da UFJF Volume 3 Número 2 Julho – Dezembro de 2009 Missão

A revista Psicologia em Pesquisa tem como objetivo principal promover a produção e a divulgação do conhecimento científico no campo da Psicologia e de áreas afins. Para tanto, prioriza a publicação de artigos originais que relatam pesquisas empíricas. Também são publicadas outras comunicações científicas originais como, por exemplo, revisão de literatura, ensaio teórico, resenha, entrevista, relato de experiência, que tenham relevância para Psicologia e áreas correlatas. Psicologia em Pesquisa é uma publicação semestral do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e está disponível apenas no formato eletrônico, podendo ser acessada tanto no site da UFJF (www.ufjf.br/psicologiaempesquisa) quanto na base de dados PEPSIC – Periódicos Eletrônicos em Psicologia (http://pepsic.bvs-psi.org.br). Com a meta de assegurar uma avaliação imparcial e promover um intercâmbio entre os autores e seus pares, a seleção dos textos publicados no periódico é feita a partir de uma revisão às cegas por pares. Desta forma, o conteúdo não reflete, necessariamente, a posição, a filosofia ou a opinião do Departamento de Psicologia e/ou da UFJF.

Corpo Editorial Editor Altemir José Gonçalves Barbosa – Universidade Federal de Juiz de Fora

Conselho Editorial Prof. Dr. Lélio Moura Lourenço – Universidade Federal de Juiz de Fora Prof. Dr. Márcia Maria Peruzzi Elia da Mota – Universidade Federal de Juiz de Fora Prof. Dr. Marisa Cosenza Rodrigues – Universidade Federal de Juiz de Fora Prof. Dr. Neide Cordeiro de Magalhães – Universidade Federal de Juiz de Fora Prof. Dr. Telmo Mota Ronzani – Universidade Federal de Juiz de Fora

Conselho Consultivo Profa. Dra. Acácia Aparecida Angeli dos Santos – Universidade São Francisco Profa. Dra. Adelina Guisande - Universidade de Santiago de Compostela Profa. Dra. Ann Dowker – Universidade de Oxford, Inglaterra Prof. Dr. Antonio A Diniz - Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa Prof. Dr. Antônio Maurício Castanheira Neves – Universidade Católica de Petrópolis Profa. Dra. Bianca Maria Sanches Faveret – Universidade Federal de Juiz de Fora Profa. Dra. Carla Witter – Universidade São Judas Tadeu Prof. Dr. Cláudio Garcia Capitão - Prof. Dr. Eduardo José Manzini – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Prof. Dr. Erikson Felipe Furtado – Universidade de São Paulo Profa. Dra. Geraldina Porto Witter – Universidade Camilo Castelo Branco Prof. Dr. Gerardo Prieto - Universidad de Salamanca Prof. Dr. Gilberto Barbosa Salgado – Universidade Federal de Juiz de Fora Prof. Dr. Leandro Almeida - Universidade do Minho Prof. Dr. Makilim Nunes Baptista – Universidade São Francisco Profa. Dra. Mônica Sanches Yassuda – Universidade de São Paulo Profa. Dra. Sandra Regina Kirchner Guimarães – Universidade Federal do Paraná Profa. Dra. Sonia Maria Guedes Gondim – Universidade Federal da Bahia Profa. Dra. Zilda Aparecida Pereira Del Prette – Universidade Federal de São Carlos

Assistentes do Conselho Editorial Carolina Ferreira Guarnieri Cândido Juliana Oliveira Gomes Fernanda do Carmo Gonçalves

Revisão Nadime Bara Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | julho-dezembro de 2009

Psicologia em Pesquisa ISSN 1982-1247 Publicação do Departamento de Psicologia da UFJF Volume 3 Número 2 Julho - Dezembro de 2009 Sumário

Editorial 02 Psicologia em Pesquisa: Fim de um ciclo e mudanças para o futuro próximo Altemir José Gonçalves Barbosa

Revisão de Literatura & Ensaios Teóricos 03 Da invenção da infância à Psicologia do Desenvolvimento From the invention of infancy to development psychology Arthur Arruda Leal Ferreira e Saulo de Freitas Araujo

13 Contribuições da Psicologia do Envelhecimento para as práticas clínicas com idosos Contributions of the Psychology of Aging for clinical practice with older Samila Sathler Tavares Batistoni

Relatos de Pesquisa 23 Avaliação do Projeto Esperança: Um estudo de caso na Pavuna – RJ Evaluation of Hope Project: A case study in Pavuna – RJ José Eduardo de Souza e Luciana Mourão

52 A influência da guarda exclusiva e compartilhada no relacionamento entre pais e filhos The influence of the exclusive care and shared care on the relationship between parents and children. Diuvani Tomazoni Alexandre e Mauro Luís Vieira

66 Genealogia de uma comunidade – A trama da trança Genealogy of community – the tram of the braid Sonia Bahia e Regina Andrade

81 Contagem da frequência dos bigramas em palavras de quatro a seis letras do português brasileiro. Bigram frequency for four- through six- letter words of Brazilian Portuguese. Cláudia Nascimento Guaraldo Justi e Francis Ricardo dos Reis Justi

96 Discurso sobre Ciência e Tecnologia na formação docente: Contribuição da Teoria das Representações Sociais Speech on Science and Technology in the teaching formation: Contribution of the Theory of the Social Representations Alcina Maria Testa Braz da Silva

110 Déficits nas habilidades metalingüísticas em crianças com dificuldades na leitura Deficits in metalinguistic abilities in children with reading difficulties Danielle Andrade Silva e Márcia Maria Peruzzi Elia da Mota

Resenha 119 “The end of stigma? Changes in the social experience of long-term illness” Pollyanna Santos da Silveira e Rhaisa Gontijo Soares

Tema em Debate 122 A formação clínica do psicólogo em Universidade The clinical training of psychologist in University Maria das Graças Vasconcelos Paiva

Instruções aos Autores 129 Instruções e Normas para Publicação

Revisão Nadime Bara Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | julho-dezembro de 2009

Editorial Psicologia em Pesquisa: fim de um ciclo e mudanças para o futuro próximo

Compõem o presente número da Psicologia fundamental para o exercício dos cuidados em Pesquisa oito artigos, sendo que seis deles parentais. relatam pesquisas. Os dois textos da seção Bahia e Andrade investigaram a sucessão e a Revisão de Literatura & Ensaios Teóricos transmissão da cultura em uma comunidade da foram escritos por Ferreira e Araujo – Da cidade do – Brasil. Foram invenção da infância à Psicologia do identificadas evidências de que as mulheres Desenvolvimento – e Batistoni – Contribuições exercem papel fundamental nesse processo. da Psicologia do envelhecimento para as Justi e Justi descreveram a ocorrência dos práticas clínicas com idosos. bigramas, isto é, pares ordenados de letras que Ferreira e Araujo analisaram o surgimento co-ocorrem nas palavras de uma língua, em da Psicologia do Desenvolvimento. Para tanto, palavras de quatro a seis letras do português têm como base a Nova História e genealogia brasileiro. Como parte dos resultados, tem-se foucaultiana. Além vincular os um banco de dados com informações desenvolvimentos nessa área a acontecimentos psicolingüísticas dessa língua extremamente do século XVI e XIX, os autores refletem sobre relevantes. Esse material, apesar de não ser o movimento de consolidação desse campo da apresentado, pela sua dimensão, na Psicologia Psicologia. em Pesquisa, é disponibilizado por correio Batistoni revisou os principais avanços do eletrônico pelos autores. conhecimento psicológico sobre o Silva analisou o discurso sobre Ciência e envelhecimento a partir da última metade do Tecnologia (C&T) adotado em um processo de século XX. Analisa as articulações entre o saber formação docente. Contemplação, verdade e produzido e as práticas psicoterápicas, bem vivência destacaram-se como atributos dessa como reflete sobre algumas implicações para forma de conhecimento. outras práticas em Gerontologia. A autora No último texto que relata pesquisa, Silva e assevera, como conclusão, a necessidade de Mota examinaram a consciência morfológica de aumentar a produção científica brasileira sobre maus leitores. Por se tratar de um estudo Psicologia do Envelhecimento. exploratório, além de mais pesquisas, as autoras A seção Relatos de Pesquisa é composta por recomendam que os resultados, que não textos de Souza e Mourão – Avaliação do evidenciaram muitas associações entre as duas Projeto Esperança: um Estudo de Caso na condições, sejam considerados com cautela. Pavuna – RJ –, Alexandre e Vieira – A Completa o presente número da Psicologia influência da guarda exclusiva e compartilhada em Pesquisa, um texto de Paiva sobre no relacionamento entre pais e filhos –, Bahia e competências necessárias para a supervisão em Andrade – Genealogia de uma comunidade: a Psicologia. Características fundamentais do trama da trança –, Justi e Justi – Contagem da supervisor, tais como conhecimento e valores, frequência dos bigramas em palavras de quatro são discutidas. a seis letras do português brasileiro –, Silva – Com o presente número, a Psicologia em Discurso sobre Ciência e Tecnologia na Pesquisa completa um triênio. A próxima Formação Docente: contribuição da Teoria das edição do periódico, já em 2010, apresentará Representações Sociais – e Silva e Mota – uma série de novidades, sendo a principal delas Déficits nas habilidades metalingüísticas em a mudança de editor, que ficará a cargo do Prof. crianças com dificuldades na leitura. Dr. Saulo de Freitas Araujo do Departamento Souza e Mourão efetuaram um estudo de Psicologia da UFJF. Assim, é fundamental, qualitativo sobre o Projeto Esperança. Trata-se nesse momento, agradecer aos autores dos de uma iniciativa social que atende crianças, textos desse período e convidá-los a continuar adolescentes e famílias com dificuldade para submetendo publicações. É, ainda, mister manter as condições básicas de subsistência. solicitar a colaboração daqueles que não Alexandre e Vieira compararam a enviaram seus artigos para que o façam e, dessa parentalidade de casais divorciados, forma, ajudem a construir uma publicação que considerando o tipo de guarda dos filhos: prioriza a essência da Psicologia enquanto compartilhada ou exclusiva da mãe. Os ciência: a pesquisa. resultados evidenciaram que a forma como ocorreu a separação parece ser uma variável Altemir José Gonçalves Barbosa Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 03-12 | julho-dezembro de 2009

Da invenção da infância à psicologia do desenvolvimento

From the invention of infancy to developmental psychology

Arthur Arruda Leal Ferreira I Saulo de Freitas Araujo II

RESUMO Este trabalho tem como objetivo inicial uma discussão histórica (embasada no movimento da Nova História e da genealogia foucaultiana) em relação ao surgimento da psicologia do desenvolvimento. Em seguida, é proposta a hipótese de que este campo da psicologia tem como sua condição um duplo movimento: a) no século XVI, o surgimento da escola religiosa, da família como objeto de políticas de saúde e de uma experiência de infância como idade da inocência; b) no século XIX, a emergência de novas tecnologias de governo liberais, da escola laica e de uma imagem da infância calcada na evolução. Finalmente, é caracterizado o movimento de consolidação da psicologia do desenvolvimento, favorecido principalmente pelo funcionalismo norte-americano (articulado ao movimento da Escola Nova) e pelo sucesso dos testes mentais.

Palavras-chave: psicologia do desenvolvimento; história da psicologia; história da infância.

ABSTRACT The aim of this paper is to present a historical discussion (based on the New History Movement and on the foucaultian genealogical analysis) concerning the origins of Developmental Psychology. The hypothesis that in the origin of this field of psychology there is a double movement, namely a) the appearance in the 16th century of religious school, the family as object of health policies, and the experience of infancy as an age of innocence; and b) the emergence in the 19th century of the new technologies of liberal government, the lay school, and a new image of childhood based on evolutionism, is proposed. Finally, the consolidation of developmental psychology, favored mainly by North-American functionalism (articulated with the New School Movement) and the success of mental tests, is described.

Keywords: developmental psychology; history of psychology; history of childhood.

______I Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro. II Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) – Juiz de Fora.

Quando tentamos estabelecer uma constituição de um saber legítimo sobre história de certas áreas do conhecimento ela – a psicologia (com suas como a psicologia do desenvolvimento e especialidades: psicologia da infância e a psicologia escolar, somos tentados a do desenvolvimento) –, até chegar ao adotar um certo tipo de narrativa ponto em que há o seu encaminhamento evolutiva. Nesta supõe-se um para o seu suposto lugar natural, a saber, desvelamento lento e contínuo de uma a escola (coroada pelo saber necessário essência própria e até então ignorada da que é a psicologia escolar). Se problemas, infância, que vem seguido pela conflitos e obstáculos se impõem nesta

Ferreira, A. A. L. & Araujo, S. F. 3 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 03-12 | julho-dezembro de 2009 história, estes são desvios contingentes de indícios e registros que serviriam não uma marcha necessária e progressiva na como provas últimas, mas sim como direção da verdade, calçada na existência “monumentos” a serem interpretados. de um objeto natural e universal que Essas histórias nada mais teriam de funciona como lastro desta história: a universal; dadas as diversas questões infância. Este objeto permaneceria o passíveis de serem lançadas, inúmeros mesmo ao longo do tempo histórico; o seriam os objetos possíveis de serem que variaria seriam apenas os discursos e historiados (sexualidade, loucura, morte, práticas sociais a serem resgatados pelas medo, vida cotidiana e, até mesmo, a certezas do saber científico. Mas não infância). Cada qual com o seu ritmo, sua haveria outra forma de se fazer esta temporalidade e seus períodos no diálogo história? Que outros tipos de relatos interdisciplinar com os mais diversos históricos poderíamos tentar estabelecer? saberes (demografia, medicina, geografia, Em que pese a importação deste etc.). Tais histórias não teriam mais os modelo histórico do campo das ciências sinais da continuidade e da evolução; no naturais, o sentido de tal tipo de relato é, lugar dessas noções, impõem-se as de em geral, o de legitimar os saberes e acontecimento e ruptura. Essa última, instituições atualmente existentes. Alguns segundo Foucault (1972, p. 10), seria o historiadores, contudo, operam o discurso próprio a priori do discurso histórico. histórico com outras finalidades e Além disso, essa radical diferença entre o conceitos. A busca de compreensão do presente e o passado levaria à presente sem reificá-lo (Le Goff, 1983), problematização da própria existência dos ou mesmo o seu estranhamento (Foucault, objetos que não teriam uma origem 1995, p. 256) são outras finalidades atemporal, mas seriam provenientes de possíveis. De igual modo, conceitos que uma irrupção, gestada por uma nos parecem óbvios, como o de evolução, multiplicidade de condições aleatórias continuidade, ou mesmo o de objeto (Foucault, 1982). Esta condição natural são alvos de problematização por forneceria aos objetos históricos uma parte de muitas correntes históricas, como forma de existência marcada pela raridade a atual História das Ciências (de Gaston (Veyne, 1980): assim como eles vieram a Bachelard, Georges Canguilhem e se configurar, podem vir a se dissolver Thomas Kuhn), a Nova História (de “como um rosto de areia à beira do mar” Lucien Febvre, Marc Bloch, Ferdinand (Foucault, 1966, p. 502).1 Braudel, Georges Duby e Jacques le Como seria uma história dos Goff) e as arqueologias e genealogias saberes sobre a infância dentro desse foucaultianas. novo quadrante histórico? Acima de tudo, No contexto destas correntes, a uma história em que não basta apenas história parte sempre do presente, de um descrever o surgimento da psicologia do problema contemporâneo que lança os desenvolvimento em seus momentos historiadores num jogo interpretativo para decisivos. É preciso ir mais longe, pensar com os atores do passado, os quais são nas próprias condições de possibilidade entendidos como potencialmente desse saber. Para tanto, temos que portadores de formas de vida distintas das nossas atuais (postura que aproximaria os 1 Estas observações sobre a nova história historiadores dos antropólogos). Ao encontram-se desdobradas no artigo Para além da história das ciências: as novas histórias em contrário dos testemunhos diretos, os diálogo com a história da psicologia (Ferreira, historiadores contariam apenas com 2006).

Invenção da psicologia do desenvolvimento 4 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 03-12 | julho-dezembro de 2009 recorrer tanto a fatores externos quanto oculto dos infantes), no espaço da casa internos. De fato, é inegável que nenhum (não havia o “quarto das crianças” como desenvolvimento científico possa ocorrer espaço preservado), no dormitório (a em um vácuo sociocultural. Não se pode maior parte das vezes elas dormiam com negar a influência de normas sociais e os adultos), na literatura (as fábulas não institucionais tácitas que os cientistas eram propriamente infantis, e se podia normalmente não questionam. No caso da alfabetizar com clássicos, como os psicologia, por exemplo, é necessário diálogos platônicos), na pedagogia (as considerar a influência de práticas sociais escolas livres não segregavam alunos por sobre o estabelecimento de práticas de turmas de idades, nem favoreciam o investigação psicológica. Logo, pensar esquema de internato ou castigos), no numa história da psicologia do trabalho (era muito comum a alternativa desenvolvimento renovada é antes de pedagógica de se mandar um jovem tudo romper com os relatos heróicos em realizar o seu aprendizado servindo em que se suporiam o desvelamento de uma casa alheias; daí a origem do termo essência própria e, até então, ignorada da garçon), nas guerras (os exércitos não infância através do conhecimento e o seu possuíam limite de idade, característica encaminhamento até o seu lugar natural, a presente até o século passado, e ainda escola. Isso porque não teríamos mais o presentes em certas milícias lastro do objeto natural, a saber, a guerrilheiras). Ainda que muitas dessas infância e o seu suposto descobrimento características firam a nossa sensibilidade progressivo pelos saberes e instituições atual, elas são marcas de muitos grupos atuais. Apenas a pura diferença entre o ainda existentes (mesmo os meninos de presente e o passado, dado na emergência rua, como uma rede social própria no de um objeto raro: a infância. No caso, interior da nossa) e provas da isso nos conduziria a uma tese cuja possibilidade de um mundo sem infância, equação histórica a ser evocada aqui é sem escola e sem uma psicologia inversa à narrativa tradicional: da educacional e/ou do desenvolvimento. invenção da escola e das necessidades de A infância começa a se segregar padronização da educação, produz-se uma como personagem e sentimento (a psicologia do desenvolvimento que cria “paparicação”) a partir do século XVI, e uma certa infância. Nesse caso, nosso graças a um duplo acontecimento: 1) a guia-mestre será o clássico, História diminuição da mortalidade infantil e a Social da Criança e da Família, de possibilidade de apego, restrita até então, Philippe Ariés (1979) que, apesar de vir devido às altas taxas de mortalidade na sofrendo críticas, continua sendo uma Idade Média; 2) o surgimento dos padres referência importante para esta discussão. reformadores, portadores de uma nova moral baseada na necessidade de A Invenção da Infância preservação da inocência e da Esta história da infância começa no seu racionalidade supostas nesta fase da vida. grau zero, na sua ausência, tal como Daí o surgimento da escola em forma de ocorre na Baixa Idade Média. Pode-se internato, enquanto quarentena destinada observar não apenas a sua ausência nas à preservação da poluição moral suscitada representações pictóricas, como também a pelo convívio com o mundo adulto. de qualquer esforço de segregar o seu Supondo uma razão inversa entre idade, mundo da vida dos adultos, seja na vida por um lado, e inocência e racionalidade sexual (esta não consistia em algo a ser moral, por outro, instituem-se classes

Ferreira, A. A. L. & Araujo, S. F. 5 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 03-12 | julho-dezembro de 2009 diferenciadas por idade, instalando-se o devotado ao aumento da força interna da castigo como correção de qualquer desvio Nação através da gestão da segurança, da da suposta pureza infantil. Inicia-se, neste moral, da religiosidade, da circulação de período, o firme laço entre instituições bens, etc. De um modo ou de outro, trata- religiosas e pedagogia, ungidas pela se de uma configuração ao mesmo tempo moral. biopolítica e disciplinar do Estado, em Paralelo a esse movimento, a que o cuidado com cada um e com todos família começa a se nuclearizar, a se se torna a meta fundamental do governo. diferenciar de uma massa social Um exemplo dessas novas estratégias de uniforme. Da instituição condutora de gestão é a campanha contra a linhagens de parentesco, ela se transforma masturbação infantil conduzida no século em espaço de gestação de sentimentos XVIII, tratada pelos médicos como ternos entre seus membros; nasce o que verdadeira epidemia, apta a gerar os mais Ariés designa por “família sentimento”. A diversos males (Foucault, 2001, aula de divisão do espaço interno a casa passa a 05 de março de 1975). acompanhar uma nova divisão do espaço social. De um espaço anódino, em que os Um novo modo de governo, uma nova cômodos não eram diferenciados e os escola, uma nova infância móveis realmente móveis, deslocando-se Entre os séculos XVI e XVIII, conforme a atividade do grupo, a casa surgem em conjunto uma primeira forma começa a ganhar compartimentos bem de infância, a família burguesa e a escola, determinados. De igual modo, a mescla mas ainda não a psicologia. Contudo, indistinta de vida privada – lazer – novos acontecimentos despontam na trabalho – ensino, presentes na casa, virada para o século XIX: as formas de começa igualmente a se segregar, gestão das populações, desenvolvidas restando somente a primeira função em notadamente pelo Estado de Polícia, seu interior. começam a ceder a novas técnicas de Tais transformações (na infância, governo mais flexíveis encampadas pelos na família e na casa) ressaltadas por Ariés fisiocratas e liberais (Foucault, 2006). (1979) apontam para o surgimento de Tais técnicas não buscam mais o controle uma nova tecnologia de poder, cunhada disciplinar de todos os fenômenos por Foucault (1977) de biopoder, populacionais por parte do Estado, mas o devotado à gerência de indivíduos e seu acompanhamento em todas as suas populações. Ele é composto de duas flutuações livres e naturais. O melhor vertentes: a disciplina (ou anátomo- exemplo disso são as novas formas de política) e a biopolítica. A primeira, gestão da economia, bem distintas do surgida no século XVII em algumas antigo mercantilismo: ela passa a ser instituições fechadas como escolas, acompanhada em sua liberdade e em sua casernas e hospitais, atuaria ordem natural pelas livres flutuações do individualizando e singularizando corpos mercado. através de técnicas de exame. A segunda, Essas novas formas de gestão surgida em meados do século XVIII, paulatinamente se implantam no domínio atuaria numa escala maior, singularizando escolar: sob o pretexto de igualdade e de grandes populações através de modos de cidadania, o ensino laico se instaura como registro coletivos, como a estatística. No tarefa do Estado, substituindo âmbito estatal, destaca-se o surgimento paulatinamente a autoridade das do Estado de Polícia (Foucault 2006), escrituras pela das novas descobertas

Invenção da psicologia do desenvolvimento 6 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 03-12 | julho-dezembro de 2009 científicas. Neste quadro, no seio do Universidade de Leipzig, a partir de 1879, movimento iluminista, surgem os círculos data da fundação de seu famoso dos assim chamados “filantropos”, um laboratório (Araujo, no prelo). De acordo grupo de homens letrados com com esse modelo, o foco deve estar na experiência prática como educadores. Seu busca de processos psíquicos universais, objetivo era promover a transição para a que são encontrados na mente individual sociedade burguesa através da melhoria adulta e normal. E, muito embora o da educação. E o desenvolvimento de conceito de desenvolvimento indivíduos através da educação era (Entwicklung) esteja presente em toda a considerado uma condição necessária psicologia wundtiana, ele se refere aí ao para o progresso social (Jaeger, 1982). desdobramento lógico dos processos Mudanças sutis com relação à mentais (do simples ao complexo), mas imagem da infância e às metas do ensino não à sua evolução ontogenética (da são a partir daí engendradas: a pureza infância à velhice), como na perspectiva como essência original da criança e alvo tradicional da psicologia do da educação desaparecem do horizonte. desenvolvimento. A observação casual da Surge então uma nova infância, sem o criança na vida cotidiana, embora pudesse racionalismo moral suposto pelos fornecer dados empíricos interessantes, reformadores, mas marcada pelo jamais poderia conquistar a importância primitivismo e por uma evolução a se dada aos experimentos bem planejados e concluir na idade adulta. Um bom controlados. Além disso, a criança não exemplo desta nova configuração pode era considerada um sujeito experimental ser encontrado nas reflexões contidas no adequado, sobretudo devido às limitações livro “Emílio” de Jean-Jacques Rousseau de entendimento e comunicação.2 Uma (1712-1778). Supõe-se aqui a evolução psicologia do desenvolvimento infantil, natural de um ser que tem que ser tratado portanto, era a última coisa que esse de uma forma livre, e conhecido em seus modelo poderia encorajar e produzir. movimentos naturais, com a sutil Bem menos conhecido, entretanto, correção de seu trajeto na direção do é o fato de que a primeira idéia de uma adulto cidadão e trabalhador. A nova psicologia científica do desenvolvimento escola pública, no esforço dessas novas infantil surgiu nesse mesmo contexto técnicas de gestão naturalizantes, irá alemão do século XIX, paralelamente à provocar o nascimento de um novo consolidação dos trabalhos experimentais interesse nas investigações psicológicas, de Wundt. Isso se deu graças à rápida que culminará no estabelecimento de uma penetração na Alemanha da teoria da psicologia do desenvolvimento. Mas evolução, que teve em William Preyer como esta articulação é produzida? (1842-1897) um de seus maiores entusiastas. Preyer foi um dos primeiros a O Surgimento da Psicologia do se apropriar dos princípios da teoria de Desenvolvimento Darwin, aplicando-os a amplas esferas da Na história da Psicologia, o vida humana. Nesse sentido, estabeleceu primeiro tipo de investigação psicológica um programa abrangente para explicar o a se estabelecer como padrão de desenvolvimento físico e mental na referência para a formação de novos psicólogos foram os experimentos 2 Para uma explicação mais detalhada da empreendidos e consolidados por concepção de objeto e método da psicologia Wilhelm Wundt (1832-1920) na wundtiana, ver Araujo (2007).

Ferreira, A. A. L. & Araujo, S. F. 7 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 03-12 | julho-dezembro de 2009 infância, que culminou na publicação, em investigações psicológicas e propôs uma 1882, de sua obra principal – “A Mente teoria geral do desenvolvimento cognitivo da Criança” (Die Seele des Kindes). baseada na gênese das operações lógicas, Caminhando na direção contrária à de que teve uma influência decisiva no Wundt, Preyer insistiu na confiabilidade pensamento de Jean Piaget (1896-1980). científica dos estudos observacionais Mas a importância de Baldwin não se sobre a criança. Além disso, estabeleceu restringe a isso. Sua análise das interações as implicações práticas de sua teoria e sociais e da influência do contexto social concebeu um ideal pedagógico, que teve na formação da personalidade – que o muita influência na reforma educacional levou a postular uma “dialética do alemã no final do século XIX (Jaeger, crescimento pessoal” – revelam-se 1982). surpreendentemente atuais (Cairns e Mas foi nos EUA que a psicologia Ornstein, 1979). Infelizmente, porém, o do desenvolvimento encontrou um solo pensamento de Baldwin permanece em fértil para o seu florescimento e grande parte ignorado na psicologia amadurecimento. Uma das figuras contemporânea. fundamentais nesse contexto foi G. Um outro fator importante no Stanley Hall (1844-1924). Tendo sido surgimento e na consolidação da aluno de Wundt em Leipzig, Hall psicologia do desenvolvimento foi a retornou aos EUA e fundou, em 1883, o construção dos primeiros testes mentais e primeiro laboratório de psicologia suas aplicações. Em primeiro lugar, deve- experimental na América. Além de ter se aqui ressaltar a influência de James sido o primeiro a ocupar uma cátedra McKeen Cattell (1860-1944), que americana de psicologia, ele foi também também foi aluno de Wundt em Leipzig. fundador e editor do Pedagogical Além de ter sido o primeiro a usar o Seminary (1891), um dos primeiros termo ‘teste mental’, Cattell estabeleceu, periódicos dedicados à questão do em 1890, um dos primeiros programas desenvolvimento, e autor do primeiro gerais de medidas psicológicas em seu livro-texto sobre adolescência – célebre artigo – “Medições e Testes Adolescence (1904). Finalmente, mas não Mentais” (Mental Tests and menos importante, ele foi responsável Measurements). Muito embora seu pela formação de uma geração de programa tenha fracassado em vários influentes psicólogos, cujos interesses aspectos importantes, o movimento dos estiveram diretamente ligados à testes mentais deve muito a Cattell, que psicologia do desenvolvimento e da foi também um dos primeiros a ver a educação: J. M. Cattell (1860-1944), J. utilidade dos testes e a “vender” Dewey (1859-1952), A. Gesell (1880- tecnologia psicológica para as 1961) e L. Terman (1877-1956), entre necessidades públicas (Sokal, 1982, outros. 1990). Mas é a Alfred Binet (1857-1911) Se a influência de Hall foi mais no que a psicologia deve realmente o sucesso plano organizacional e institucional que dos testes mentais. Ao contrário de no das idéias, o mesmo não pode ser dito Cattell, que se concentrou nos processos de James Mark Baldwin (1861-1934), que psíquicos elementares (sensação, teve um papel central na sistematização discriminação, etc.) em situações da psicologia do desenvolvimento nos artificiais, Binet estava preocupado EUA. Entre outras contribuições, ele principalmente com os processos defendeu o uso do método genético nas complexos ocorrendo em situações

Invenção da psicologia do desenvolvimento 8 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 03-12 | julho-dezembro de 2009 práticas. Dessas suas preocupações psicológico, e foi particularmente para os resultaram os famosos Testes Binet-Simon novos administradores escolares que a (1905), que juntos forneciam a primeira tecnologia psicológica foi inicialmente escala de avaliação da inteligência. A produzida. Tudo isso facilitou a inscrição motivação básica dos autores era a do desenvolvimento infantil nas novas necessidade prática de separar na escola técnicas de gestão liberais, aliando as crianças normais das mentalmente conhecimento dos fenômenos naturais à deficientes. Dessa forma, nascia a idéia sua presumível liberdade. Apesar de esse de uma “idade mental”, que se fenômeno estar presente em alguns países diferenciava nitidamente da idade da Europa, foi especialmente nos EUA cronológica do indivíduo, ainda que que esses novos métodos psicológicos de permanecesse a ela relacionada. investigação e produção tecnológica Finalmente, foi esta iniciativa de Binet floresceram, o que explica também o que gerou o otimismo generalizado e enorme sucesso do movimento dos testes serviu de base para as várias adaptações mentais na psicologia americana (Sokal, feitas por psicólogos americanos, visando 1990). à avaliação da capacidade mental tanto de Em que pese, porém, a influência crianças escolares quanto dos recrutas do dos fatores externos, é preciso considerar exército americano na Primeira Guerra também a importância de aspectos Mundial. Todo esse movimento acabou internos à atividade científica. Nesse culminando, em 1916, na padronização caso, o evolucionismo ocupa um lugar do teste que virou referência para todos os central no plano intelectual do século testes posteriores de inteligência – o Teste XIX e nos interessa aqui particularmente. Stanford-Binet de Inteligência (Cairns e Por motivos de espaço, restringiremos Ornstein, 1979; Gardner, 1998). nossa análise à influência de três figuras De acordo com Danziger (1987), é marcantes que, por sua vez, influenciaram somente olhando para os fatores decisivamente o pensamento psicológico socioeconômicos que iremos norte-americano: Charles Darwin (1809- compreender adequadamente o 1882), Herbert Spencer (1820-1903) e surgimento do “modelo galtoniano” de Francis Galton (1822-1911). A prática investigativa, que se opõe ao importância de Darwin para o modelo wundtiano descrito desenvolvimento da psicologia tem sido anteriormente. A diferença crucial diz merecidamente reconhecida, sobretudo no respeito ao abandono da análise dos que diz respeito às implicações de sua processos psíquicos nas mentes teoria da evolução e de seus estudos individuais em favor da distribuição de naturalistas para a compreensão dos características psicológicas em grupos e fenômenos psíquicos. Já vimos populações. Trata-se aqui de anteriormente que Preyer era um padronização e ordenação dos fatores darwinista declarado e que sua psicologia individuais a partir de normas grupais. do desenvolvimento depende totalmente Foi devido à expansão e à burocratização dos princípios e métodos darwinistas. dos sistemas educacionais nos países Mas também nos EUA a influência de economicamente desenvolvidos que uma Darwin se fez presente logo cedo. massa de pessoas jovens passou a ser uma Autores como William James (1842- fonte de novos problemas psicológicos e, 1910), um dos “pais” da psicologia consequentemente, constituiu-se em um americana e o já mencionado James fundo potencial de conhecimento Baldwin, defenderam abertamente em

Ferreira, A. A. L. & Araujo, S. F. 9 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 03-12 | julho-dezembro de 2009 suas teorias psicológicas idéias como a de Carr (1873-1954). Essa orientação adaptação, entre outras. Mas é a Spencer funcionalista serviu não só como que devemos uma boa parte do prestígio estímulo, mas principalmente como do pensamento evolucionista na suporte teórico e metodológico para os psicologia do século XIX. Ainda antes da estudos sistemáticos sobre o publicação de “A Origem das Espécies” desenvolvimento psíquico humano e suas (1859), Spencer já tinha aplicado o possíveis aplicações no contexto da pensamento evolucionista às esferas escola (Buxton, 1985a, 1985b; Schultz e social e mental, culminando naquilo que Schultz, 2006). Não é de modo algum ficou posteriormente conhecido como gratuito que alguns defensores da Escola “darwinismo social”. Em sua obra Nova (movimento em prol da Escola psicológica clássica – Princípios de laica) fossem igualmente psicólogos Psicologia (Principles of Psychology), funcionalistas (que tomam o modelo publicada em 1855 – os conceitos de darwinista de adaptação do organismo ao ajustamento individual e de luta pela meio como paradigma da psicologia). sobrevivência ocupam um lugar central Busca-se estudar na psicologia e na sua explicação. Na virada para o promover na escola a adaptação da século XX, entretanto, foi Darwin quem criança a seu meio, observando-se seus esteve quase sempre associado à interesses e instigando a sua inteligência psicologia do desenvolvimento que através da proposição de situações- começava a surgir. Por fim, um outro problema. Não a disciplinando, como fator intelectual relevante nesta história é faziam as antigas formas educacionais, o estudo sistemático das diferenças mas acompanhando seus interesses de individuais – relacionado à idéia forma livre. darwiniana de variabilidade –, que teve Galton como seu primeiro defensor e entusiasta. Sem a insistência de Galton no CONCLUSÃO valor das diferenças individuais para a Desta breve história podem se extrair compreensão de características duas coisas: 1) a educação escolar não é psicológicas, o movimento dos testes efeito, mas causa da existência da mentais seria impensável (Buxton, 1985a, infância como conhecemos; 2) as 1985b). Foi este novo padrão de prática modificações na educação escolar trazem investigativa que Danziger chamou de mudanças na própria essência da infância “modelo galtoniano” (Danziger, 1987). e demandam uma psicologia que promova Diretamente ligada a todas essas esta articulação entre escola e infância. tendências intelectuais é que se constituiu Mas não se trata de qualquer psicologia: a a primeira “escola” de pensamento diferença entre o modelo wundtiano de psicológico nos EUA – o funcionalismo. psicologia do século XIX e o norte- Graças ao pragmatismo filosófico de americano, em sua orientação James, aliado aos esforços de John funcionalista, exemplifica um espaço de Dewey (1859-1952), os psicólogos articulação para uma psicologia do americanos ganharam uma primeira desenvolvimento. Através desta, forma-se orientação geral, que veio a culminar na a rede entre educação pública – estruturação da perspectiva funcionalista evolucionismos – psicologia. De um da “Escola de Chicago”, cujos membros modo bem claro, a psicologia pôde assim principais eram, além de Dewey, James articular práticas sociais (oriundas da Rowland Angell (1869-1949) e Harvey escola), modos de governo (as formas

Invenção da psicologia do desenvolvimento 10 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 03-12 | julho-dezembro de 2009 liberais), conceitos científicos (evolução, Cambridge: Cambridge University adaptação e função) e novas Press. configurações da infância, permitindo Ferreira, A. (2006). Para além da história naturalizar e sedimentar o que foi gerado das ciências: as novas histórias em no conjunto das práticas históricas. diálogo com a história da psicologia. In A. C. Cerezzo, H. B. Rodrigues, A. M. Jacó-Vilela (Orgs.), Anais do V REFERÊNCIAS Encontro Clio-Psyché – Subjetividade e História (pp. 7-22). Rio de Janeiro: Araujo, S. F. (2007). A fundamentação Clio Edições Eletrônicas. filosófica do projeto de uma (www.cliopsyche.uerj.br/livros/anaisv psicologia científica em Wilhelm .doc) Wundt. Tese de Doutorado não- Foucault, M. (1966). As palavras e as publicada, Programa de Pós- coisas. Lisboa: Portugália graduação em Filosofia, Universidade Foucault, M. (1972) Arqueologia do Estadual de Campinas. Campinas: SP. Saber. Petrópolis: Vozes Araujo, S. F. (no prelo). Wilhelm Wundt Foucault, M. (1977) História da e a Fundação do Primeiro Centro Sexualidade I. Rio de Janeiro: Graal Internacional de Formação de Foucault, M. (1981) Nietzsche, a Psicólogos. Temas em Psicologia. genealogia e a história. In R. Machado Ariés, P. (1979). História Social da (Org.). Microfísica de Poder. 2ª ed. Criança e da Família. Rio de Janeiro: (pp. 15-37). Rio de Janeiro: Graal Zahar. Foucault, M. (1995) Sobre a genealogia Buxton, C. (1985a). Early sources and da ética: uma revisão do trabalho. In basic conceptions of funcionalism. In H. Dreyfuss & P. Rabinow (Orgs.), C. Buxton (Org.), Points of view in Michel Foucault na trajetória the modern history of psychology (pp. filosófica (pp. 253-278). Rio de 85-111). Orlando, Florida: Academic Janeiro: Forense Universitária Press. Foucault, M. (2001) Os Anormais. São Buxton, C. (1985b). American Paulo: Martins Fontes. (curso funcionalism. In C. Buxton (Org.), pronunciado no Collège de France Points of view in the modern history entre 1974-1975) of psychology (pp. 113-140). Orlando, Foucault, M. (2006) Seguridad, Florida: Academic Press. territorio, población. Buenos Aires: Cairns, R. & Ornstein, P. (1979). Fondo de Cultura Económica. (curso Developmental psychology. In E. pronunciado no Collège de France Hearst (Org.), The first century of entre 1977-1978) experimental psychology (pp. 459- Gardner, H. (1988). Inteligência: 510). Hillsdale, N.J.: Lawrence múltiplas perspectivas. Porto Alegre: Erlbaum Associates. ArtMed. Danziger, K. (1987). Social context and Jaeger, S. (1982). Origins of child investigative practice in early. psychology: William Preyer. In M. twentieth-century psychology. In M. Ash & W. Woodward (Orgs.), The Ash & W. Woodward (Orgs.), problematic science: psychology in Psychology in twentieth-century nineteenth-century thought (pp. 300- thought and society (pp. 13-33). 321). New York: Praeger.

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Le Goff, J. (1993). A História Nova. São Paulo: Martins Fontes Schultz, D. & Schultz, S. (2006). História da psicologia moderna (8ª ed). São Paulo: Thomson Learning. Sokal, M. (1982). Cattell and the failure of anthropometric mental testing, 1890-1901. In M. Ash & W. Woodward (Orgs.), The problematic science: psychology in nineteenth- century thought (pp. 322-345). New York: Praeger. Sokal, M. (Org.) (1990). Psychological testing and American society: 1890- 1930. New Brunswick: Rutigers University Press. Veyne, P. (1980). Foucault revoluciona a história. In P. Veyne (Org.), Como se escreve a história? (4ª ed.). (pp. 237- 285). Brasília: Universidade de Brasília.

Endereço para correspondência: Arthur Arruda Leal Ferreira Rua do Riachuelo 169/ 405. Centro - Rio de Janeiro – RJ. CEP: 20.230-014. E-mail: [email protected]

Recebido em Agosto de 2009 Aceito em Setembro de 2009

* Professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Pesquisador bolsista do CNPq. ** Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: [email protected]

Invenção da psicologia do desenvolvimento 12 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 13-22 | julho-dezembro de 2009

Contribuições da Psicologia do Envelhecimento para as práticas clínicas com idosos

Contributions of the Psychology of Aging for clinical practice with older

Samila Sathler Tavares Batistoni I

RESUMO O presente ensaio teórico buscou trazer uma revisão de alguns avanços que a temática do envelhecimento proporcionou ao saber psicológico a partir da última metade do século XX, principalmente no que se refere à consolidação do campo teórico da Psicologia do Envelhecimento. Apontou ainda como esses avanços trouxeram implicações para as práticas clínicas em Psicologia e Gerontologia. O texto também destaca as considerações feitas pela literatura no campo da Psicologia Clínica a respeito da importância da atuação com idosos e das variáveis a serem levadas em conta no desenvolvimento de práticas mais eficazes com essa população.

Palavras-chave: Envelhecimento; Psicologia do Envelhecimento; Práticas clínicas; Gerontologia;

ABSTRACT This theoretical essay aims to bring a review about some advances that the topic of aging has brought for the psychology from de half of last century, mainly regarding the consolidation of the theoretical field of the Psychology of Aging. The article describes the implications of such developments have for assistance in Psychology and Gerontology. The text also aims to highlight the considerations made by the literature in the field of applied psychology on the importance of interventions with older and the variables to be taken into account in developing more effective practice with this population.

Keywords: Aging; Psychology of Aging; Psychological practices; Gerontology;

______I Escola de Artes, Ciências e Humanidades – EACH – USP - São Paulo

O processo de envelhecimento e a Para a realização dessas tarefas, heterogeneidade da velhice têm se destacam-se as contribuições advindas da constituído em um dos temas consolidação do campo da Psicologia do desafiadores à Psicologia enquanto Envelhecimento à luz do paradigma life- “ciência do comportamento e dos span, que tem lançado os fundamentos fenômenos mentais”, principalmente após para os saberes ligados às questões dos a segunda metade do século XX. As idosos, da velhice e do processo de várias subdisciplinas básicas e aplicadas envelhecer e, ao mesmo tempo, tem da Psicologia, tais como a Psicologia do promovido e se alimentado de um maior Desenvolvimento, a Psicologia Social, a diálogo com as demais subdisciplinas Psicologia Clínica e a Psicologia do teóricas e campos de aplicação da Trabalho e das Organizações, ainda estão Psicologia, dentre elas, com a Psicologia em processo de revisão, ampliação e Clínica. Como efeitos desses avanços, modificação de paradigmas, metodologias outros campos do saber, tais como a de pesquisa e formas de atuação para Gerontologia, têm podido se apropriar e responder a esse objeto de conhecimento se beneficiar do saber psicológico, pois, e intervenção. em conjunção com a Biologia e

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Sociologia, a Psicologia é uma das influências de natureza socioculturais ciências que compõem seus pilares. (tais como gênero, coortes, papéis), O presente texto traz uma revisão socioeconômicas (tais como educação e da importância da consolidação do campo renda), psicossociais (como os teórico da Psicologia do Envelhecimento mecanismos de autorregulação do self) e e de suas implicações práticas para as biológicas (como o status de saúde e intervenções clínicas em Psicologia e funcionalidade física) atuantes ao longo Gerontologia. O texto destaca ainda as de toda a vida. variáveis que devem ser levadas em conta Além do refinamento pelos profissionais que lidam com o metodológico da pesquisa sobre o envelhecimento para o desenvolvimento envelhecimento, a consolidação da de práticas eficazes com essa população. Psicologia do Envelhecimento possibilitou, entre outros ganhos, um maior diálogo entre as próprias Psicologia do Envelhecimento: subdisciplinas da Psicologia (como a influências sobre as práticas com Psicologia Cognitiva, a Psicologia da idosos Aprendizagem, a Psicologia Social e a Psicometria) na tentativa de descrever e No intuito de compreender os explicar tanto os processos de declínio processos ulteriores à adolescência e à quanto os de manutenção e vida adulta inicial no que concerne à desenvolvimento em domínios cognição, relações sociais, afetos, metas psicológicos específicos na velhice. desenvolvimentais e adaptação, a Assim, vários modelos e teorias dos Psicologia do Envelhecimento passou da diversos campos da Psicologia têm se simples comparação etária entre jovens e tornado, na Psicologia do idosos (“Psicologia da idade”) e do Desenvolvimento, orientados ao reconhecimento da velhice, enquanto considerar a multidimensionalidade e estágio desenvolvimental com tarefas de multidirecionalidade do processo de adaptação, integração e aceitação da envelhecer e uma compreensão mais morte (“Psicologia do idoso”) para o refinada das implicações desse processo estabelecimento de uma subdisciplina para as dimensões da vida prática como metodologicamente complexa (Batistoni, as do trabalho, lazer, relações sociais e Yassuda e Fortes, 2007). Influenciada familiares (Baltes, Lindenberger & pelo diálogo e cooperação com outras Staudinger, 2000). áreas do saber, como a Biologia e a O diálogo da Psicologia do Sociologia, a Psicologia do Envelhecimento com as diversas Envelhecimento avançou nos aspectos subdisciplinas psicológicas geraram a relativos ao planejamento e estratégias de configuração de um arcabouço lógico de pesquisa e na integração de outras saberes em torno de microteorias e variáveis que não apenas a idade na micromodelos explicativos sobre explicação de fenômenos domínios específicos do envelhecimento, multidimensionais e multicausais (Neri, os quais têm contribuído também na 2002). À luz do paradigma life-span de aplicação a realidades particulares, compreensão do desenvolvimento visando-se à solução de problemas humano, a heterogeneidade intra e humanos. Dentre os modelos e teorias, interindividual do envelhecimento é frutos dessa interlocução e já observada a partir da consideração das considerados clássicos nesse campo,

Envelhecimento e práticas clínicas 14 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 13-22 | julho-dezembro de 2009 destacam-se quatro contribuições que 1994), busca explicar o declínio nas envolvem temas salientes na velhice, interações sociais e as mudanças no como adaptação, autonomia e comportamento emocional dos idosos. dependência, regulação emocional e Segundo a autora (e evidências de qualidade de vida. Tais contribuições têm pesquisa sobre o tema), a redução na impactado de forma contundente as amplitude da rede de relações sociais e na práticas psicológicas com idosos (Cerrato participação social na velhice reflete a & Trocóniz,1998). redistribuição de recursos Teoria SOC - A teoria de Seleção, socioemocionais pelos idosos, na medida Otimização e Compensação de Baltes e em que há mudança na percepção de Baltes (1990) buscou estabelecer como os tempo futuro. De forma adaptativa, na indivíduos podem efetivamente manejar velhice passam a ser mais relevantes o as mudanças nas condições biológicas, envolvimento seletivo com psicológicas e sociais que se constituem relacionamentos sociais próximos que em oportunidades ou restrições para os ofereçam maior retorno emocional. Tais seus níveis e trajetórias de alterações adaptativas permitem aos desenvolvimento. Interessa a essa teoria a idosos poupar recursos escassos, canalizar maneira como as pessoas alocam e para alvos relevantes e otimizar o seu realocam seus recursos internos e funcionamento afetivo e social. Essa externos por meio desses três processos e teoria traz implicações, por exemplo, para como, simultaneamente, maximizam o trabalho clínico com idosos no campo ganhos e minimizam as perdas ao longo dos relacionamentos sociais e sobre as do tempo. A função de seleção diz estratégias de regulação emocional. respeito à especificação e à diminuição da Dependência aprendida - amplitude de alternativas permitidas pela Desenvolvida por Margareth M. Baltes na plasticidade individual. A otimização diz década de 1980 e 1990 (Baltes, 1996) respeito ao gerenciamento dos recursos revela o fenômeno da dependência na visando alcançar níveis mais altos de velhice como multidimensional, funcionamento. A compensação envolve relacionando-se com os mais diversos a adoção de novas alternativas para fatores como: incapacidade, motivação, manter o funcionamento. A teoria SOC práticas discriminativas, desestruturação pode ser incorporada, por diferentes ambiental. Ela não é identificada como perspectivas teóricas em Psicologia, característica da velhice, mas ela se incluindo a comportamental, cognitiva, à manifesta diferentemente ao longo de de ação social-cognitiva e a diferentes toda a vida. Para Margareth M. Baltes, a processos como memória, funcionamento dependência tanto significa perdas (no físico e a domínios do bem-estar tanto no sentido de que dificulta o engajamento desenvolvimento e envelhecimento em ações que promovem a sua normal ou patológico. Por isso é funcionalidade física e psicossocial) apontada como um meta-modelo do quanto ganhos, na medida em que ajuda desenvolvimento humano, influenciando as pessoas a obter atenção, contato social a emergência de outras tais teorias como a e controle passivo e que as auxilia a da Seletividade Socioemocional. preservar, canalizar e otimizar energias Teoria da Seletividade para outros objetivos, funcionando como Socioemocional- Desenvolvida por Laura estratégia adaptativa. Entre outras L. Carstensen e colaboradores, na década contribuições, essa teoria traz implicações de 1990, (Carstensen & Turk-Charles, principalmente para a prática com idosos

Batistoni, S. S. T. 15 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 13-22 | julho-dezembro de 2009 frágeis, hospitalizados e Frente aos desafios do próprio institucionalizados, pois a identificação processo de envelhecimento e do aumento de padrões de dependência não das demandas por produtos e serviços adaptativos pode ser corrigida na medida deflagrados pelo envelhecimento em que os profissionais invistam na populacional, os campos de aplicação da criação de novas contingências, Psicologia vêm incorporando os conceitos estimulando o senso de agência na da Psicologia do Envelhecimento e compensação de perdas e maximização da modelos baseados na perspectiva life- autonomia, mesmo na presença de span nas práticas com idosos nos diversos incapacidades. domínios psicológicos e contextos de Construto de Qualidade de vida atuação (Woods & Clare, 2008). Como na velhice de Lawton - Visa descrever a entre outros grupos etários, as percepção que o indivíduo idoso tem a modalidades de atuação psicológica respeito de suas relações atuais, passadas passaram a envolver uma ampla gama de ou prospectivas com o seu ambiente. Diz possibilidades de trabalho, configurando- respeito a uma avaliação se num “continuum de cuidados”, desde multidimensional vinculada a critérios modificações ambientais e ecológicas, socionormativos e intrapessoais. O institucionais até intervenções que visam modelo de Lawton (1985) descreve a a mudanças comportamentais e qualidade de vida em termos de quatro intrapsíquicas (humor, bem-estar, dimensões: Competência comportamental ajustamento, atitudes, tendências da – a avaliação do funcionamento do personalidade) e ser desenvolvidas em indivíduo no tocante à saúde, nível individual, familiar ou grupal (Neri, funcionalidade, cognição, comportamento 2004). social e utilização do tempo; Condições Evidências atuais de pesquisa têm Ambientais - diz respeito ao contexto demonstrado que idosos são responsivos ecológico e construído e tem relação às intervenções psicológicas mais direta com a competência diversas (Areán, 2003). Tais evidências comportamental; Qualidade de vida apontam para a necessidade, portanto, de percebida – avaliação subjetiva que a que também a Psicologia aplicada atente pessoa faz de seu funcionamento em para as variáveis desenvolvimentais não qualquer domínio das competências só na investigação, mas também na comportamentais (como saúde percebida, implementação e avaliação das etc.); Bem-estar subjetivo – reflete a intervenções psicológicas com idosos, o avaliação pessoal sobre o conjunto e a que exige, por parte dos profissionais da dinâmica das relações entre as três áreas área, um domínio de conhecimentos precedentes, gerando indicadores específicos. cognitivos (como graus de satisfação) e emocionais (como estados afetivos). O construto de Lawton auxilia o processo de Conhecimentos necessários para a investigação e intervenção nos mais prática com idosos: diálogo com a diversos âmbitos, principalmente devido Psicologia Clínica ao foco no senso de ajustamento entre o indivíduo e seu meio, gerando, por Em 2004, a revista American exemplo, provisão de serviços de Psychologist publicou um guidelines da adequação ambiental. Associação Americana de Psicologia para a prática psicológica com idosos. Neste

Envelhecimento e práticas clínicas 16 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 13-22 | julho-dezembro de 2009 documento, os psicólogos são distintos. Com o envelhecimento, há encorajados a trabalhar suas atitudes e considerável heterogeneidade dentro de crenças sobre o envelhecimento e sobre grupos diagnósticos, tais como nos indivíduos idosos à luz dos avanços transtornos depressivos, a qual tem científicos da Psicologia do importantes implicações para o Envelhecimento, tanto quanto buscar tratamento (Blazer, 2003). conhecimentos sobre as teorias sociais, Sobre a importância dos processos biológicas, cognitivas dos processos de de adaptação ao longo da vida, os autores envelhecimento, principalmente dentro de trazem a reflexão de que os idosos um paradigma life-span. No campo provavelmente diferem nas respostas ao clínico, o documento enfatiza a tratamento que depende de suas histórias necessidade de que os psicólogos estejam prévias de funcionamento, suas familiarizados com o conhecimento experiências de sucesso ou falha em corrente sobre as mudanças cognitivas, outros tratamentos ou história de sobre os problemas e vida diária dos problemas crônicos ou não resolvidos idosos, sobre as características peculiares (Rainsford, 2002). Normas etárias das psicopatologias e metodologias de também contribuem para o avaliação válidas e confiáveis para serem desenvolvimento de um construto pessoal utilizadas com essa população. de curso da vida, sendo importante atentar Carstensen, Elderstein e para a idade do ponto de vista do próprio Dornbrand (1996) já apontaram paciente e utilizar a experiência e os anteriormente domínios e aspectos conhecimentos acumulados pelo específicos do envelhecimento que devem indivíduo ao longo da vida. ser levados em conta uma intervenção O conhecimento do contexto de eficaz com idosos. Em conformidade com intervenção e de outras características o documento da Associação Americana individuais dos idosos são dimensões de de Psicologia, os autores trazem conhecimento que ajudam a balizar as justificativas sobre a necessidade de prioridades na elaboração e conhecimentos específicos em, pelo implementação da atuação psicológica, menos, cinco aspectos do envelhecimento uma vez que os contextos (tais como os - funcionamento cognitivo, diagnósticos institucionais ou comunitários) implicam de saúde física e mental, padrões de diferentes características adaptação ao longo da vida, idade socioeconômicas, culturais, de cronológica, contextos de intervenção e funcionamento social, de cognição e características individuais – que exigem saúde física entre os idosos que deles também um manejo específíco, conforme fazem parte. Finalmente, Carstensen, descrito a seguir. Elderstein e Dornbrand (1996) ressaltam No que tange ao funcionamento que atentar para as diferenças de gênero cognitivo, os autores salientam que a no relato de problemas psicológicos e influência de alterações patológicas tem responsividade a intervenções implicações específicas na eficácia de psicologicamente orientadas é também uma intervenção e suas respostas em uma tarefa importante. curto ou em longo prazo. No campo das Esta revisão de aspectos do psicopatologias consideram a necessidade envelhecimento a serem conhecidos do conhecimento de algumas revela o quanto os campos de aplicação especificidades no estabelecimento de da Psicologia se beneficiam da intervenções para grupos diagnósticos interlocução entre a teoria e a prática. Em

Batistoni, S. S. T. 17 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 13-22 | julho-dezembro de 2009 especial, a Psicologia Clínica está entre os problemas que se associam às mudanças campos que têm fornecido evidências concomitantes ao envelhecimento positivas dessa interlocução propiciando (Knight, 2004). auxílio ao trabalho de diversos Posto que ainda hoje existam profissionais que lidam com o muitas razões pelas quais os idosos nem envelhecimento (Woods & Clare, 2008). sempre são alvo de intervenções Cabe ressaltar, contudo, que, do psicológicas (tais como o ageímo – Neri, ponto de vista histórico, os idosos eram 2004), houve, principalmente a partir da considerados incapazes de se beneficiar década de 1990 e dos aprimoramentos das integralmente de intervenções psicoterapias cognitivo-comportamentais, psicológicas, sendo tal concepção já uma mudança paradigmática na registrada por Freud em 1905, ao revelar concepção do trabalho clínico com idosos que, entre as limitações da psicanálise, (Ladlaw et al, 2003). No que tange às estava o trabalho com indivíduos acima psicoterapias, Areán (2003), em extensiva de 50 anos devido aos limites da revisão da literatura, identificou fortes plasticidade dos processos mentais e por evidências quanto à eficácia da não serem “educáveis”. As primeiras abordagem cognitivo-comportamental na atuações clínicas com idosos, muitas depressão do idoso e da terapia delas baseadas em teorias de estágios interpessoal unida ao uso de desenvolvimentais (tais como as de Erik antidepressivos. Apontou também a Erikson de 1950 e Butler de 1963; ver efetividade das abordagens cognitivo- Neri, 2002) e em alguns princípios de comportamentais no controle da aprendizagem comportamental, ansiedade, no âmbito da sexualidade e utilizavam-se apenas técnicas de nos problemas de adicção, como o reminiscências e terapias de revisão de alcoolismo entre idosos e, ainda, na vida, de orientação para a realidade ou de atuação com cuidadores de idosos contenção de sintomas comportamentais, dependentes. Menores evidências na principalmente com idosos que exibiam intervenção sobre a depressão foram sintomas depressivos, e idosos em encontradas para a terapia interpessoal processos demenciais e sozinha, para as psicoterapias breves institucionalizados (Laidlaw, Thompson, psicodinâmicas e terapias de revisão de Dick-Siskin & Gallagher-Thompson, vida. 2003). Autores como Rainsford (2002), Embora o emprego das técnicas Areán (2003) e Knight (2004) fazem citadas refletisse um diálogo com a teoria, algumas considerações especiais no as intervenções restritas a essas técnicas trabalho clínico com idosos. Segundo implicaram, por um tempo, a concepção esses autores, aspectos relativos ao de que não há muito o que o idoso possa relacionamento terapêutico, à fazer frente a sua situação psicológica, a possibilidade de flexibilização de técnicas não ser aceitá-la e integrá-la a seu senso clássicas aplicadas a adultos jovens e ao de história pessoal, ou contê-los através domínio de conhecimentos específicos de princípios comportamentais. Também sobre o envelhecimento (tais como os já implicou uma concepção de que os apontados por Carstensen, Elderstein e problemas psicológicos na velhice são Dornbrand, 1996) precisam ser fruto da inabilidade do idoso em aceitar o manejados para promover a eficácia das seu passado, mais do que do proveniente abordagens clínicas. do estresse ou inabilidades para enfrentar

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Rainsford (2002) destaca a (2004) para auxílio no trabalho necessidade de atenção a possíveis fontes psicoterápico com idosos, que também de dificuldades na dinâmica transferencial pode ser ampliado para uso em qualquer com terapeutas mais jovens, intervenção psicológica com idosos. manifestando-se sob a forma de Baseando-se na Psicologia do supercontrole ou de superproteção, desenvolvimento life-span, na gerando angústias contratransferenciais Gerontologia social e em suas (idosos podem infantilizar o terapeuta ou experiências clínicas, ele denomina o o terapeuta projetar experiências modelo de CCMSC, cuja sigla refere-se familiares ao paciente). Também chama aos termos: Context (contexto), Cohort atenção para a centralidade da saúde (coorte), Maturation (maturação ou física no discurso do idoso, que tende a se variáveis desenvolvimentais), Specific queixar dos problemas psicológicos em Challenges (desafios específicos, frutos termos somáticos, e a tendência dos da heterogeneidade do envelhecer). terapeutas em enfocar “problemas da Dentre esses termos, um dos aspectos velhice” tais como as doenças, o luto ou a interessantes levantados pelo modelo de aposentadoria. Geralmente, as demandas Knight é a atenção para as diferenças do idoso que buscam terapia não são entre coortes ou a consideração de grupos pelas questões normativas da velhice e, geracionais mais do que grupos etários no sim, por aquelas nas quais os idosos trabalho clínico. Em publicação de 2008, manifestam menor senso de controle ou Knight e Lee defenderam, por exemplo, autoeficácia no enfrentamento, muitas que idosos são especialmente responsivos delas fruto de mudanças não normativas a contextos de escuta, talvez por não ser ou inesperadas (Aldwin,1994). uma experiência usual (por questões de Permitindo extensão a outras coorte). práticas de atenção psicológica ao idoso, Adicionalmente às contribuições Areán (2003) defende adaptações à de Rainsford (2002), Areán (2003) e psicoterapia com idosos, cujo produto Knight (2004), cabe a introdução de dois seria o que chamou de “psicoterapias outros aspectos importantes derivados da apropriadas à idade”. Segundo a autora, Psicologia do Envelhecimento que fazem práticas psicológicas baseadas numa interlocução com o manejo das perspectiva cognitivo-comportamental intervenções clínicas com idosos. Estes mostram grande possibilidade de aspectos são a necessidade de um enfoque adaptação e flexibilização, além de nos recursos psicológicos e na resiliência evidências de eficácia na literatura dos idosos. As pesquisas de Aldwin e internacional. Para isso, tais adaptações colaboradores (Aldwin, 1994; Aldwin, deveriam incluir psicoeducação dos Levenson & Kelly, 2008), por exemplo, pacientes, ajustes frente às alterações demonstram que os idosos geralmente são cognitivas no processamento das mais resilientes e eficientes do que os informações, embasamento no que é adultos mais jovens em suas respostas de preconizado como estágio enfrentamento ao estresse psicológico. desenvolvimental e flexibilização do Sendo assim, nas intervenções com tratamento frente às limitações funcionais idosos, torna-se importante resgatar os e contextos sociais. seus potenciais, acionar suas reservas Outra colaboração advinda da sociais, emocionais ou cognitivas e Psicologia Clínica é o modelo heurístico possibilitar o exercício da autonomia, por transteórico desenvolvido por Knight meio de investimento no senso de

Batistoni, S. S. T. 19 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 13-22 | julho-dezembro de 2009 autoeficácia e controle, mesmo em para a tomada de decisões na gestão de situações de dependência física. serviços (Neri, 2004). Complementarmente, a colaboração entre os estudos da Psicologia Positiva e os modelos de seleção, otimização e CONSIDERAÇÕES FINAIS compensação de Baltes e Baltes (1990) fortalecem a concepção de que as metas Frente aos desafios que o de intervenção com idosos devem envelhecimento impõe ao saber estimular e evidenciar suas habilidades e psicológico e às relações deste com área competências pessoais, seu senso de tal como a Gerontologia, torna-se autoeficácia, de controle percebido, de essencial que estudiosos e profissionais engajamento social, dos benefícios das dessas áreas empenhem esforços experiências adversas, sua espiritualidade deliberados na construção de ou habilidades para relaxar, visando conhecimentos e práticas ampliar seus recursos de enfrentamento contextualizadas e também na busca de como também o senso de bem-estar especificidades e generalidades quanto à destes (Staudinger, Marsiske & Baltes, velhice e ao envelhecimento que 1993). retroalimentarão tanto a ciência A utilidade das contribuições da psicológica quanto aos demais campos de interlocução entre a Psicologia do que dela se beneficiam. De maneira geral, Envelhecimento e a Psicologia Clínica depreende-se do diálogo entre a não se limita apenas ao âmbito de Psicologia do Envelhecimento e a trabalho do profissional psicólogo. Psicologia Clínica que, no planejamento, Outros profissionais, cuja formação tem a avaliação e implementação das Psicologia como seu pilar (tais como abordagens clínicas com idosos, é terapeutas ocupacionais e gerontólogos), necessário, além de dominar os têm derivado da Psicologia do conhecimentos da Psicologia do Envelhecimento metodologias e Envelhecimento, adaptar-se criativamente estratégias de intervenção. e aprender a usar os conhecimentos Em especial, podem ser destacadas clínicos em diversos contextos as contribuições da Psicologia a socioculturais e de cuidado à saúde, Gerontologia - um campo científico mais flexibilizar técnicas ou metas e dar recente de estudo específico do preferência a modalidades de intervenção envelhecimento humano em suas focais e breves ajustadas aos desafios dimensões biopsicossociais. Além das específicos ligados ao indivíduo ou grupo contribuições metodológicas, de alvo da intervenção. operacionalização de conceitos, de Tais tarefas são ainda mais fornecimento de instrumentos de pesquisa prementes no contexto da Psicologia e avaliação, no campo de aplicação brasileira, uma vez que esta ainda está em clínica do gerontólogo, esse processo de delineamento no campo dos conhecimento instrumentaliza o saberes relativos ao envelhecimento. A profissional ao fornecer métodos e maioria das teorias, práticas e evidências técnicas de manejo das questões de pesquisa são baseadas em achados psicológicas do envelhecimento, assim internacionais, havendo a necessidade de como as bases para a prática do que o profissional psicólogo derive de aconselhamento de idosos e familiares e suas teorias e técnicas subsídios para uma

Envelhecimento e práticas clínicas 20 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 13-22 | julho-dezembro de 2009 prática sensível às reais necessidades dos Gerontology: Medical Sciences, 58A idosos brasileiros. (3), 249–265. Carstensen, L. L., Edelstein, B.A. & Dornbrand, L. (Eds.). (1996). The REFERÊNCIAS practical handbook of clinical gerontology (pp.153-173). Thousand Aldwin, C.M. (1994). Stress, Coping and Oaks, CA: Sage Publications. Development: An Integrative Carstensen, L.L. & Turk-Charles, S. Perspective. New. York: Guilford (1994). The salience of emotion Press. across the adult life course. Aldwin, C. M., Levenson, M. R., & Psychology and Aging, 9, 259-264. Kelly, L. L. (2008). Lifespan Cerrato, I.M.; Trocóniz, M. I. F. (1998). developmental perspectives on stress- Successful Aging. But, why don’t the related growth. In C. L. Park, S. elderly get more depressed? Lechner, A. Stanton, & M. Antoni Psychology in Spain, 2, (1), 27-42. (Eds.), Positive life changes in the Knight, B. (2004). Psychoterapy with context of medical illness. Older Adults (3nd edition) (pp.1-23). Washington. DC: APA press. Thousand Oaks, CA: Sage. American Psychological Association Knight, B. & Lee, L.O. (2008). (2004). Guidelines for Psychological Contextual adult life span theory for Practice With Older Adults. American adapting psychotherapy. In Ken Psychologist, 59 (4), 236-260. Ladlaw & Bob Knight (Eds). Areán, P. A. (2003). Advances in Handbook of Emotional disorders in Psychotherapy for Mental Illness in late life: assesment and treatament Late Life. American Journal of (pp.59-88.). New York: Oxford Geriatric Psychiatry, 11: 4 -6. University Press. Baltes, M.M. (1996). The Many Faces of Laidlaw, K., Thompson, L.W., Dick- Dependency in Old Age. New York, Siskin, L., & Gallagher-Thompson, D. NY: Cambridge University Press. (2003). Cognitive behaviour therapy Baltes, P. B., & Baltes, M. M. (1990). with older people. Chichester, UK: Psychological perspectives on Wiley. successful aging: The model of Lawton, M. P. (1985). The Elderly in selective optimization with Context: Perspectives from compensation. In P. B. Baltes & M. Environmental Psychology and M. Baltes (Eds.), Successful aging: Gerontology. Environment and Perspectives from the behavioral Behavior, 17, 501-519. sciences (pp. 1–34). New York: Neri, A. L. (2002). Teorias Psicológicas Cambridge University Press. do Envelhecimento. In E. V. de Batistoni, S. S. T.; Fortes, A. G.; Freitas, L. Py, A. L. Neri, F. A. X. Yassuda, M. S. (2007). Aspectos Cançado, M. L. Gorzoni, & S. M. da Psicológicos do Envelhecimento. In Rocha, Tratado de Geriatria e Orestes V. Forlenza (Ed.), Psiquiatria Gerontologia (pp. 32-46). Rio de Geriátrica - do diagnóstico precoce à Janeiro: Guanabara Koogan. reabilitação (pp. 32-36). São Paulo: Neri, A. L. (2004). O que a Psicologia Atheneu. tem a oferecer ao estudo e à Blazer, D. (2003). Depression in late life: intervenção no campo do Review and Commentary. Journal of envelhecimento no Brasil, hoje. In

Batistoni, S. S. T. 21 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 13-22 | julho-dezembro de 2009

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Envelhecimento e práticas clínicas 22 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 23-51 | julho-dezembro de 2009

Avaliação do Projeto Esperança: um Estudo de Caso na Pavuna – RJ

Evaluation of Hope Project: A Case Study in Pavuna – RJ

José Eduardo de Souza I Luciana Mourão I

RESUMO O objetivo deste estudo foi avaliar o Projeto Esperança, um projeto social que atende crianças, adolescentes e famílias com dificuldades em manter as condições básicas de sobrevivência. A pesquisa teve natureza qualitativa, com realização de entrevistas e grupos focais com gestores, financiadores, parceiros, líderes comunitários, executores e beneficiários do Programa, as quais foram gravadas e transcritas. A análise de conteúdo realizada mostra que todos os públicos-alvo pesquisados são capazes de apontar resultados obtidos com a realização do Projeto em termos de melhoria de vida dos beneficiários, tanto relacionados aos objetivos do Projeto, como outros tipos de ganhos não planejados. A pesquisa também permite concluir que, apesar dos resultados alcançados, o Projeto Esperança ainda não cumpriu em sua totalidade os objetivos propostos e não há sinais concretos de que tais objetivos serão alcançados ao término do Projeto em 2009.

Palavras-chave: avaliação de programas sociais; vulnerabilidade social; qualidade de vida.

ABSTRACT The objective of this study was to evaluate the Projeto Esperança. A social project that helps children, adolescents and families struggling to keeping the basic conditions for survival. It was a qualitative research with interviews and focus groups, which included recorded transcriptions with managers, financiers, partners, community leaders, implementers and program beneficiaries. The content analysis performed shows that all target groups surveyed are able to point the results obtained when carrying out the Project in terms of improving the beneficiaries’ lives here related to the goals of the project, and other unplanned gains. Despite the achievements, the research also shows thatthe Projeto Esperança didn’t accomplish its entirety the proposed objectives and there are no real signs that such objectives will be achieved at the end of the project in 2009.

Keywords: evaluation of social programs, social vulnerability, quality of life.

______I Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) – Niterói

Os programas sociais têm ganhado programas sociais que não sejam apenas importância em todo o mundo, sendo do governo, mas também propostos por ainda mais necessários nos países organizações privadas e do Terceiro subdesenvolvidos ou em Setor. desenvolvimento, como é o caso do Mas independentemente de quem Brasil. As enormes discrepâncias sociais seja o patrocinador dos programas e econômicas do País, somadas a uma sociais, a avaliação dos mesmos cumpre situação de impossibilidade de o Estado uma função ética, na medida em que dar conta de todas as questões sociais possibilita melhorias nos processos e na vêm fortalecendo a demanda por qualidade de vida para a população-alvo.

Souza, J. E. & Mourão, L. 23 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 23-51 | julho-dezembro de 2009

Nesse sentido, o papel do avaliador É inegável que a avaliação de cumpre também uma dimensão política, programas sociais tem um papel a que possibilita maior diálogo e cumprir no sentido de esclarecer aos proximidade com a realidade, para que se agentes sociais os resultados obtidos com chegue a uma qualidade possível. o programa e as práticas que requerem O presente artigo apresenta um melhorias, contribuindo para o processo estudo de caso de um projeto social de tomada de decisão das instituições. realizado na Comunidade Chico Mendes, Penna Firme (2005, p. 2) concorda com no Bairro da Pavuna, no Rio de Janeiro. essa função social da avaliação, quando O objetivo da pesquisa foi verificar afirma que: empiricamente os resultados obtidos com “É na medida em que o programa do ponto de vista dos avaliadores e avaliadoras beneficiários e de diferentes stakeholders dialoguem, instituições e que participam do processo, como os sistemas se sintonizem e financiadores, os gestores, os executores, inteligências múltiplas se os parceiros e os líderes comunitários. complementem que a avaliação irá emergindo com Avaliação de Programas Sociais suas características mais Na revisão de literatura, é notáveis de propulsora das consenso que avaliar é uma forma necessidades transformadoras valorosa e essencial para qualquer sistema educacionais e sociais e de ou sociedade, contribuindo para a advogada dos direitos eficiência de suas práticas, sejam elas de humanos”. cunho organizacional ou político. O processo avaliativo compreende também Ou seja, não só os a análise dos papéis desempenhados pelos programas sociais, mas a própria agentes avaliadores, externos ou internos. avaliação deles compreende um processo Nessa perspectiva, a avaliação transformador. O papel do avaliador não é implica a participação e o envolvimento apenas o de dizer se o Programa dos grupos de interesse. Furtado (2001, p. funcionou ou não, mas também o de 169) os define da seguinte forma: “grupos apontar caminhos para que o programa de interesse ou implicados ou ainda avaliado e outros programas futuros stakeholders são definidos como possam obter êxito. organizações, grupos ou indivíduos A respeito do conceito de potencialmente vítimas ou beneficiários avaliação, Worthen, Sanders e Fitzpatrick do processo avaliativo”. De acordo com (2004, p. 35) apresentam uma definição o autor, os grupos de interesse costumam geral de avaliação de maneira semelhante: ser formados por pessoas com “avaliar é determinar ou estabelecer o características comuns (gestores, valor de; examinar e julgar”. Assim, usuários, etc.) que têm algum interesse no quando se realiza a avaliação de um “desempenho”, no produto ou no impacto programa social, está se dizendo a do objeto da avaliação. Ele esclarece que respeito do valor desse programa, essas pessoas estão de alguma forma examinando e julgando o seu mérito. envolvidas ou são potencialmente Portanto, para que isso seja feito, é afetadas pelo programa e por eventuais preciso utilizar método cientificamente consequências do processo avaliativo. estabelecido e adequado à realidade do programa em questão.

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Para Minayo (2005), a avaliação Assim, pode ser citado Almeida (2006, p. como técnica e estratégia investigativa é 12) que define a avaliação da seguinte um processo sistemático de fazer forma: perguntas sobre o mérito e a relevância de determinado assunto, proposta ou • “É, antes de tudo, um programa. A autora analisa que, do ponto processo sócio-político; de vista da utilidade, a avaliação visa • É um processo reduzir incertezas, melhorar a efetividade compartilhado e das ações e propiciar a tomada de colaborativo; decisões relevantes. Minayo (2005) deixa • É um processo de ensino e claro que a avaliação deve ser um aprendizagem; processo que envolve construção a partir • É um processo contínuo, de uma técnica pré-estabelecida com a recursivo e altamente finalidade de enobrecer os movimentos e divergente; os organismos que buscam a • É um processo emergente e transformação da sociedade. Ou seja, substancialmente esses programas precisam oferecer imprevisível; respostas aos beneficiários, à sociedade e • É um processo com ao governo sobre os serviços prestados, resultados imprevisíveis; apontando para os investidores os frutos • É um processo que constrói de sua aplicação e respondendo aos uma realidade”. interesses das instituições e de seus gestores e técnicos. Portanto, para Almeida (2006), a A definição de Scriven (1967, p. avaliação é uma nova forma de fazer 37) é mais simples: “avaliação é julgar o política na medida em que sua elaboração valor ou mérito de alguma coisa”. e execução precisam estar comprometidas Worthen e cols. (2004, p. 35) propõem com uma qualidade de vida para o uma definição mais extensa: “avaliação é beneficiário do programa. No caso de a identificação, esclarecimento e uma avaliação de políticas públicas o aplicação de critérios defensáveis para espectro da análise será maior, pois não determinar o valor, a qualidade, a eficácia se consideram apenas as necessidades dos ou a importância do objeto avaliado em beneficiários-alvo, mas também a forma relação a esses critérios”. Outra definição como acontecem as relações sociais e o de avaliação é apresentada por Franco custo para o Estado. Nessa discussão cabe (1971, p. 3) que entende que: “Avaliar é ainda a consideração do grau de fixar o valor de uma coisa; para ser feita sustentabilidade da política pública em se requer um procedimento mediante o avaliação, uma vez que se espera das qual se compara aquilo a ser avaliado mesmas uma dimensão emancipatória, com um critério ou padrão determinado”. que responda às necessidades sociais e Porém, a análise dessas definições coletivas a partir da situação de vida das evidencia que não há grande discrepância famílias atendidas. entre elas, sendo apenas enfocados As descobertas que surgem a aspectos complementares em uma ou em partir da avaliação não são simples outra definição. Nesse sentido, cumpre “fatos”, com sentido definitivo, são registrar que a avaliação tem diversos criações por meio de um processo de papéis e que ela não é única – no sentido interação que inclui o avaliador e os de ter em si uma abordagem diversa.

Souza, J. E. & Mourão, L. 25 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 23-51 | julho-dezembro de 2009 grupos de interesse (Almeida, 2006). indivíduo enquanto transformador Surge, assim, um processo de construções social”. Para atingir esse objetivo a que faz parte de uma dada realidade e que PBCM formulou seis objetivos como tal demanda não apenas ações, mas específicos, a saber: também negociação. (a) estimular trabalhos de geração de renda, assim como organização O Projeto Esperança em associações e/ou cooperativas; A presente seção apresenta as (b) despertar a consciência humana, informações centrais acerca do Projeto política e cidadã através de oficinas Esperança, contextualizando a sua temáticas; (c) acompanhar concepção, os objetivos do programa, as periodicamente as famílias ações desenvolvidas no âmbito do atendidas, através de visitas mesmo, os stakeholders envolvidos e a domiciliares e entrevistas; (d) caracterização da comunidade atendida. desenvolver as atividades de forma O Projeto Esperança é um projeto integrada com a comunidade, da Província Brasileira da Congregação buscando parcerias com a rede da Missão – PBCM, que surgiu com o local de serviços; (e) incentivar a objetivo de atender crianças, adolescentes cultura e a valorização da e famílias que apresentavam dificuldades identidade local, respeitando o em manter as condições básicas de contexto histórico da região; (f) sobrevivência e que participavam do possibilitar intercâmbio com os projeto “Cesta Básica” – criado pela projetos da PBCM e ampliar a própria PBCM. O projeto foi idealizado visão de mundo da comunidade.” para permitir que os alunos do Colégio (PBCM, 2007). São Vicente de Paulo pudessem realizar atividades de solidariedade, contribuindo Nessa nova fase do Projeto, para o desenvolvimento de uma atitude planejada para ocorrer no período de ética e cidadã. 2007 a 2009, a proposta era de que as Em 2006, quando foi criado, o famílias não apenas recebessem a cesta projeto tinha como característica principal básica, mas também fossem atendidas o recolhimento de doação de alimentos semanalmente na comunidade, recebendo entre os alunos do Colégio. Os alimentos orientação sobre as mais diversas doados eram repassados a famílias questões, como cidadania, saúde, direitos, residentes na Comunidade Chico Mendes, cultura e apoio escolar. O foco dessas localizada na Pavuna. Contudo, os orientações era voltado para o público instituidores do Projeto perceberam que, feminino que é o que mais participa do ainda que a doação de cestas básicas Projeto, embora esporadicamente alguns consistisse na formação de um valor entre homens compareçam aos encontros. os alunos, essa ação era insuficiente para Assim, as ações do projeto visavam promover uma mudança social naquelas oferecer serviços e atividades que famílias. Sendo assim, o Projeto foi desenvolvessem as potencialidades do ser reformulado, passando a ter o seguinte humano considerando seus direitos e objetivo geral: “Contribuir para a deveres civis, políticos e sociais. melhoria da qualidade de vida das Nessa nova fase do Projeto famílias que se encontram em situação de Esperança (período de 2007 a 2009), as vulnerabilidade social, de forma ações planejadas para desenvolver o humanizada, visando à expansão do Projeto foram: (a) ações de estruturação e

Avaliação do Projeto Esperança 26 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 23-51 | julho-dezembro de 2009 consolidação de um grupo de trabalho; a) entrevistas residenciais com as (b) incentivo à qualificação profissional; famílias candidatas a participar (c) ações para promover melhoria do do Programa; aproveitamento escolar das crianças e b) seleção das famílias que melhor adolescentes; e (d) ações voltadas para a preenchem as condições de geração de renda, culminando com a participação (condição de vida formação de uma cooperativa e a busca mais precária); de parcerias com a rede local. c) reuniões semanais com As entrevistas iniciais realizadas discussões temáticas (cidadania, com as famílias pela equipe da PBCM saúde, direitos e cultura); permitiram identificar alguns talentos, o d) oficinas de capacitação em que fez com que fossem planejadas ações atividades que permitam a para a construção da melhoria de vida da geração de renda, tais como comunidade. Nesse sentido, fuxico, bordado, crochê, corte e identificaram-se vários moradores que costura; sabem realizar trabalhos na construção e) ações de inserção cultural civil, mulheres que conhecem a técnica de (passeios ao cinema, visita a fazer sabonete, pintura em gesso, flores monumentos turísticos do Rio artesanais, bordado, crochê ou que atuam de Janeiro); e bem no trabalho de doméstica. O Projeto f) visitas semestrais às famílias partiu do pressuposto de aproveitar as em suas residências para habilidades dos beneficiários, a fim de acompanhamento dos que a transformação social pudesse vir de resultados obtidos com a características que já pertenciam à própria participação no Projeto. comunidade. O Projeto Esperança conta com um Assim, a proposta do Projeto grupo de profissionais, alunos e Esperança era de que as atividades voluntários vinculados ao Colégio São fossem norteadas pelo princípio da Vicente de Paulo no desenvolvimento de liberdade e do respeito à pessoa humana. suas atividades. Porém, os atores Para isso, todos os beneficiários foram envolvidos no Projeto vão além das escutados no processo de construção do fronteiras do Colégio, podendo ser plano de ação, onde cada um teve citados quatro grupos principais de oportunidade de expressar seus desejos, stakeholders: (a) financiadores suas habilidades, capacidades e (Mantenedora – PBCM); (b) gestores comprometimento com o resultado final. (assistentes sociais); (c) executores A fim de proporcionar um intercâmbio (alunos participantes do Programa e com os outros projetos da PBCM e grupo de mães apoiadoras - Grupo MAS); ampliar a visão de mundo dos alunos do (d) parceiros (líderes comunitários, Colégio São Vicente de Paulo, os líderes religiosos, associação de membros do Projeto Esperança também moradores, pessoas influentes na foram incentivados a participar de Comunidade, Associação Internacional da atividades de intercâmbio cultural e social Caridade); e (e) Beneficiários (famílias em eventos que favorecessem o participantes). crescimento pessoal e coletivo. Aos idealizadores e financiadores De forma resumida, pode-se, coube a função de criar o Projeto e de elencar as seguintes ações relacionadas ao prover os recursos humanos e financeiros Projeto Esperança: para que o mesmo possa ser executado.

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Os gestores correspondem a duas serviços. No bairro funciona, ainda, a assistentes sociais responsáveis pela tradicional Feirinha da Pavuna. Sua coordenação do Projeto, desde a fase de população também se diversificou desde seleção das famílias participantes, até a o início da ocupação. O processo de condução dos encontros semanais. Os fragmentação das áreas urbanas, executores são alunos do ensino médio e acelerado pela ocupação de pessoas constituem um grupo de grande oriundas das camadas menos favorecidas, relevância para o Projeto por estarem gerou um fluxo populacional diretamente vinculados ao Colégio São desordenado, aumentando e precarizando Vicente de Paulo. O Grupo de as condições de moradia no bairro e na Multiplicadores de Ações Sociais – MAS, comunidade Chico Mendes. A formado por mães de alunos do Colégio comunidade é marcada pelo poder São Vicente de Paulo, também atua de paralelo do tráfico de drogas e pela forma direta. Esse grupo planeja e ausência de instituições do poder público. executa as atividades de reuniões A maior parte dos moradores da Pavuna, semanais, propõe a realização de oficinas em especial os moradores da Comunidade e de outras intervenções para melhoria Chico Mendes, não possui acesso às das condições de vida das famílias condições de trabalho e renda, assim atendidas pelo Projeto. Entre os parceiros como à qualificação profissional para estão os líderes comunitários, que embora exercer melhores ocupações no mercado tenham atuação menos preponderante, de trabalho. também constituem um público As famílias participantes do importante na medida em que conhecem a Projeto têm como característica marcante, realidade vivenciada pela Comunidade. o elevado número de filhos, assim como a Por fim, aos beneficiários também é baixa escolaridade de crianças, jovens e definida uma participação ativa, no adultos. Há ausência de alimentação sentido de que eles não apenas sejam equilibrada e que atenda às exigências receptores das ações sociais, mas nutricionais para um desenvolvimento participem da definição das mesmas. A físico e mental adequado. Das famílias proposta é que as famílias atuem como entrevistadas, 40% buscam seus protagonistas do processo de alimentos no aterro sanitário, localizado transformação da sua realidade social e da no município de Caxias, em Jardim sua subjetividade. Dessa forma, o Projeto Gramacho, e na Central de reúne os mais diversos atores, com Abastecimento da Cidade (CEASA), em funções complementares. Irajá, sem qualquer condição de higiene e O Projeto Esperança atende a 26 preservação dos alimentos. Também são famílias residentes na Comunidade Chico notórias as péssimas condições das Mendes, no bairro da Pavuna. A Pavuna é moradias em que as famílias atendidas um bairro antigo, tendo sido fundado vivem. As residências são constituídas de antes mesmo da cidade do Rio de Janeiro. madeira, sendo algumas mistas (alvenaria Sempre foi um pólo econômico, desde o com madeira). No momento em que tempo da produção de açúcar e foram feitas as entrevistas iniciais para a aguardente no século XVII, até a seleção das famílias a serem atendidas instalação de indústrias no século XIX. pelo Projeto Esperança, quase a metade Hoje, além de um parque industrial com delas gerava sua renda por meio da coleta pequenas, médias e grandes indústrias, de resíduos sólidos (lixo), produzidos em possui vagas de emprego no setor de um condomínio próximo à região, e de

Avaliação do Projeto Esperança 28 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 23-51 | julho-dezembro de 2009 materiais como ferro e papelão recolhidos profundidade e cinco grupos focais e pela cidade. A precarização dos vínculos aplicados questionários a 23 alunos que de trabalho, o grande número de filhos participaram do Projeto como executores. por família e a ausência de renda, fazia com que 95% da população atendida pelo Participantes Projeto estivessem incluídas no Programa Como sujeitos de pesquisa foram Bolsa Família do Governo Federal. ouvidos diferentes stakeholders – financiadores, gestores do programa, parceiros, líderes comunitários, MÉTODO executores e beneficiários – que Esta pesquisa consistiu em um participam do Projeto Social Esperança estudo de caso que, segundo Yin (1989, na Comunidade Chico Mendes. A p. 23), caracteriza-se por ser “uma forma amostra total foi de 66 pessoas de se fazer pesquisa social empírica ao pesquisadas, sendo: dois financiadores investigar-se um fenômeno atual dentro (responsáveis pela mantenedora), uma do seu contexto de vida real, onde as gestora do programa (assistente social), fronteiras entre o fenômeno e o contexto 11 parceiros (mães dos alunos do Colégio são claramente definidas e na situação em participantes do Grupo Multiplicadores que múltiplas fontes de evidência são na Ação Social - MAS), três líderes usadas.”. Na definição do autor, duas comunitários (associação de moradores, características do estudo de caso ficam líder religiosa, líder comunitário), 23 evidenciadas: (a) a necessidade de se executores (alunos do ensino médio do apresentar o contexto onde o caso está Colégio) e 26 beneficiários (famílias inserido; e (b) a demanda por múltiplas participantes do programa). A fontes de coleta de dados, a fim de participação de cada um desses sujeitos garantir a quantidade e a profundidade de foi voluntária e o presente projeto foi dados requeridos por um estudo de caso. submetido e aprovado pelo Comitê de Essas duas características do estudo de Ética em Pesquisa da Universidade caso são seguidas na presente pesquisa. Salgado de Oliveira. Em relação à abordagem A Tabela 1 apresenta uma breve metodológica, a pesquisa foi descrição de cada modalidade de desenvolvida com a utilização participante, bem como o critério predominante da abordagem qualitativa. utilizado para a definição quantitativa de Foram realizadas seis entrevistas em cada modalidade.

Tabela 1:

Detalhamento das fontes de coleta de dados

Participantes/ Critério para definição quantitativa da Descrição da modalidade de participante Stakeholders amostra

Financiadores São os representantes da entidade Foram definidos dois financiadores como responsável pelo financiamento do parte da amostra por serem essas as duas Projeto, no caso a Província Brasileira da únicas pessoas da PBCM que participam Congregação da Missão – PBCM. diretamente das definições relativas ao Projeto Esperança.

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Gestores do São as pessoas responsáveis pela gestão À época da avaliação, existia apenas uma Programa do Projeto Esperança, considerando as gestora responsável pelo Projeto Esperança atividades de planejamento e execução de e por isso essa foi a única entrevistada todas as atividades relativas ao mesmo. nessa modalidade de participante da pesquisa. Parceiros São as pessoas que não têm relação direta Foram convidadas a participar todas as de financiamento ou gestão do Programa, parceiras do Projeto. Portanto, não se mas que contribuem para o mesmo de trabalhou com amostra, mas sim com a alguma forma. No caso do Projeto população total de parceiras. Esperança as parceiras são as famílias dos alunos de ensino médio do Colégio São Vicente de Paulo – RJ. Líderes São pessoas de reconhecida influência na Foram identificadas como lideranças Comunitários Comunidade Chico Mendes, comunitárias quatro pessoas. O critério de independentemente, da forma como tal definição da quantidade a ser entrevistada liderança seja exercida, isto é, se é uma foi feito a partir do tipo de liderança, isto é, liderança religiosa, política, de associação um líder religioso, um líder da associação de bairro etc. de bairro e um líder de atuação política co- fundador do Projeto. Executores São as pessoas responsáveis pela Foram convidadas a participar todos os execução das atividades do Projeto alunos que participam diretamente do Esperança junto à comunidade Projeto. Foram, portanto, incluídos na beneficiada. No caso, corresponde aos amostra todos que concordaram em alunos de ensino médio do Colégio São participar da pesquisa. Vicente de Paulo – RJ. Beneficiários São as famílias da Comunidade Chico Foram convidadas a participar todas as Mendes, cadastradas para participar do famílias participantes do Projeto Projeto, recebendo os benefícios gerados Esperança. Portanto, não se trabalhou com pelo Projeto Esperança. amostra, mas sim com a população total de beneficiários que concordaram em participar da pesquisa.

Instrumentos de Coleta de Dados de análise por triangulação/ Para a coleta de dados foram circularização. Também foi desenvolvido desenvolvidos instrumentos de coleta de um questionário estruturado com 14 dados específicos para cada público perguntas fechadas e uma pergunta aberta pesquisado. Para os grupos focais e para aplicado a alunos do Colégio São Vicente as entrevistas em profundidade foram de Paulo que participavam do Projeto desenvolvidos roteiros semi-estruturados Esperança. para orientação do pesquisador durante a condução do processo de coleta de dados. Procedimentos de Coleta de Dados Buscou-se nesses roteiros cobrir todos os Os procedimentos de coleta de temas avaliados, bem como repetir dados envolveram quatro técnicas de perguntas para diferentes públicos de coleta de dados: análise documental forma a permitir a utilização do método (dados secundários), grupos focais,

Avaliação do Projeto Esperança 30 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 23-51 | julho-dezembro de 2009 entrevistas em profundidade e aplicação aplicar questionário. Já para os demais de questionários. A escolha dos públicos a ideia era aprofundar as procedimentos de coleta de dados para respostas e realizar uma análise mais cada público-alvo foi feita considerando- subjetiva das mesmas, nesse sentido se dois critérios principais: objetivo da optou-se por procedimentos de natureza avaliação e tamanho da amostra. A qualitativa para a coleta de dados. A escolha entre a coleta de dados decisão entre a realização de entrevistas quantitativa (questionários estruturados) em profundidade ou grupos focais foi ou qualitativa (entrevista em feita com base no tamanho da amostra. profundidade e grupos focais) levou em Como os financiadores, gestores e líderes conta o objetivo da avaliação. comunitários tinham no máximo quatro Assim, no caso dos executores – possíveis respondentes, decidiu-se por alunos de ensino médio do Colégio São realizar entrevistas em profundidade. No Vicente de Paulo – havia uma proposta de caso dos beneficiários e dos parceiros, pesquisar não apenas os alunos que havia um grupo maior a ser pesquisado, participam do Projeto Esperança, mas optando-se, então, pela realização dos também alunos que participam de outros grupos focais, a fim de permitir uma projetos sociais realizados pelo Colégio, a coleta de dados com maior interação entre fim de se validar uma escala de razões os participantes. A Tabela 2 detalha os para participação voluntária em projetos procedimentos de coleta de dados sociais. Por esse motivo, optou-se por primários.

A coleta de dados primários foi para maior fidedignidade dos dados. Para presencial em dia e hora marcados melhor compreensão das opiniões dessas previamente com os participantes, no pessoas, nos casos em que houve mais de período de julho a dezembro de 2008. As um representante para o mesmo tipo de entrevistas e os grupos focais foram stakeholder, optou-se por nomeá-los com gravados e posteriormente transcritos, uma numeração que permitisse distinguir

Souza, J. E. & Mourão, L. 31 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 23-51 | julho-dezembro de 2009 as falas (por exemplo: financiador 1, conjunto de textos, ao mesmo tempo em financiador 2; parceiro 1, parceiro 2, que pondera a freqüência desses temas parceiro 3). Em nenhum momento de dentro do mesmo conjunto (Nascimento coleta de dados, houve a participação de & Menandro, 2006). Neste estudo, a qualquer outra pessoa ligada ao Projeto, análise de conteúdo foi feita a partir do além dos pesquisadores. Apesar de haver agrupamento de elementos de reuniões semanais dos gestores e dos significados mais próximos, com parceiros com os beneficiários, evitou-se formação de categorias e subcategorias realizar os grupos focais com as famílias (análise categorial). As categorias e participantes durante essas reuniões para subcategorias derivaram da relevância, e reduzir a ocorrência do fenômeno de da recorrência dos temas no corpus dos desejabilidade social. depoimentos dos pesquisados. Assim, a A proposta durante as entrevistas partir da leitura inicial (leitura flutuante) e os grupos focais era de ouvir o que as foram anotadas impressões que geraram pessoas tinham a dizer sobre si mesmas, pré-categorias. Uma nova leitura sobre as suas vidas e sobre o Projeto detalhada dos depoimentos levou à Esperança, sem direcionamento de construção de grades de categorias respostas ou expressão de qualquer contendo tema geral, palavras e frases opinião a respeito. A idéia tanto nas relacionadas a esse tema, bem como o entrevistas como nos grupos focais era agrupamento de elementos das categorias apenas de aprofundar, quando oportuno, gerais em subcategorias. Em função da os assuntos mais diretamente ligados ao quantidade de depoimentos coletados Projeto. A adoção desse procedimento (cinco grupos focais e seis entrevistas) permitiu que surgissem dos stakeholders optou-se por não trabalhar com a análise informações relevantes tanto sobre o de recorrência de cada categoria e Projeto como sobre outros aspectos subcategoria, mas sim com uma análise contextuais fundamentais para este de ausência/presença dessas categorias estudo. nos discursos dos diferentes stakeholders.

Procedimentos de Análise de Dados Para a análise de dados, foi RESULTADOS realizada análise de conteúdo categorial Em relação aos financiadores do (Bardin, 1977) nos documentos sobre o Projeto Esperança, foram entrevistados Projeto, bem como nos dados qualitativos dois educadores, sendo que um exerce a originados das entrevistas e grupos focais. função de direção do Colégio e o outro de Além disso, também se adotou a técnica coordenador da parte social da de análise por triangulação (Denzin, mantenedora do Colégio. Ambos têm 1979, citado por Minayo, 2005), a qual vínculo com a Igreja Católica e com a compara as respostas obtidas por PBCM, porém, há grande diferença em diferentes fontes a fim de melhor termos de perfil etário (69 anos no compreender o fenômeno estudado. primeiro caso e 28 no segundo) e também A análise de conteúdo caracteriza- de tempo na instituição (50 e 12 anos, se como procedimento de fragmentação respectivamente). de textos com o objetivo de identificar A pessoa entrevistada como regularidades e possibilita tratar todo o responsável pela gestão do Projeto material textual, buscando identificar a Esperança foi uma assistente social, que pluralidade temática presente num gerenciava as ações sociais do Colégio.

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Essa profissional é especialista em relação à divisão pelas turmas dos três políticas públicas, tem 28 anos e estava anos do ensino médio, ela foi há um ano na gestão do Projeto praticamente equânime com sete Esperança. participantes do 1º ano e oito O grupo de parceiros,constituído participantes tanto do 2º como do 3º ano. por mães dos alunos do Colégio São A idade média era de 16,5 anos (DP=0,8) Vicente de Paulo que se ofereceram para e o tempo de médio de vínculo com o atuar como voluntárias no Projeto – Colégio de 7,4 anos (DP = 2,8). As ações Grupo Multiplicadoras de Ação Social – sociais consideradas mais importantes MAS, é formado por pessoas que têm pelos alunos do ensino médio do Colégio vínculo com a instituição há muitos anos. São Vicente de Paulo que participam de Predomina entre elas, a função “do lar”, programas sociais são relativas a: Direitos embora também haja aquelas que têm Humanos/Cidadania (73,9%), atuação profissional como professora, Educação/Formação profissional (52,2%), secretária, servidora pública, artesã e Meio Ambiente (39,1%), Direito da administradora. Criança/ Adolescente (34,8%) e Saúde Como líderes comunitários foram (30,4%). As ações sociais relativas a entrevistadas três pessoas. Uma delas, Minorias, Segurança/Violência e Terceira com 58 anos, é líder religiosa da Idade tiveram um percentual menor de comunidade, reside na mesma há 15 anos indicações. As ações relativas a Mulheres e tem um filho adulto que mora com ela e Habitação tiveram apenas uma citação na Comunidade Chico Mendes. O cada. É importante destacar que a segundo líder pesquisado pertencia à participação dos alunos no Projeto associação de moradores e também tem Esperança é baixa. Dentre aqueles que um perfil semelhante à primeira participam de alguma ação social entrevistada em termos de idade e tempo proposta pelo Colégio, apenas 12,3% na comunidade (52 e 14 anos, atuam no Projeto Esperança. São duas as respectivamente). O terceiro e último principais razões para essa baixa adesão líder comunitário entrevistado tem 47 ao Projeto: (a) o medo da violência na anos e é morador da comunidade há 12 Comunidade Chico Mendes; e (b) o anos, sendo uma pessoa que conhece receio da violência que pode ocorrer até a muito a comunidade local e é uma chegada ao bairro da Pavuna, em função referência para os moradores para apoio dos trajetos percorridos (Avenida Brasil, em situações de emergência e que Bairro Santo Cristo e Linha Vermelha, conhece o Projeto desde a sua que são regiões conhecidas como de alto implantação. índice de violência). Em relação aos alunos que Por fim, os beneficiários foram participaram do Projeto Esperança, quase ouvidos por meio de quatro grupos focais dois terços (65,2%) são do sexo com as mulheres representando as 26 masculino, devido à maior restrição das famílias assistidas. Essas pessoas tinham famílias à participação das meninas em idade média de 37,8 anos (DP= 11,4), função da distância e da violência sendo a mais jovem de 18 anos e a mais associada ao Bairro da Pavuna. Isso pode velha de 78. Todas tinham filhos, numa ser evidenciado pelo fato de haver 44% média de 4,4 filhos por mulher (DP = de alunas participando das ações sociais 2,7), bem acima da média nacional de 2,3 do Colégio, mas apenas 34,8% filhos/mulher apontada nas projeções do participando do Projeto Esperança. Em Instituto Brasileiro de Geografia e

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Estatística - IBGE a partir do censo 2000. seja, sem a presença paterna no lar. A Outra característica importante das Tabela 2 apresenta a descrição de cada famílias beneficiárias é que 42,3% delas um desses stakeholders e o perfil dos são constituídas por mães e filhos, ou pesquisados.

Tabela 3:

Descrição dos stakeholders e dos respectivos pesquisados

Tipo de Stakeholders Descrição Perfil do pesquisado

- Financiador 1: educador, 69 anos, há 50 anos na Igreja Católica e Financiadores PBCM. Membros da PBCM – Financiador 2: Educador, membro da Igreja Católica, 28 anos, há 12 anos na Igreja Católica e PBCM.

Assistente social da - Gestora: assistente social, especialista em políticas públicas, 28 anos, Gestores do Projeto PBCM há 1 ano na gestão do programa.

Parceiros Grupo de mães - Parceira 1: Do lar; dedicação ao projeto de duas horas e meia por apoiadoras semana.

(Grupo MAS) - Parceira 2: Professora de Química, dedicação ao projeto de duas horas e meia por semana.

- Parceira 3: Secretária, dedicação ao projeto de duas horas e meia por semana.

- Parceira 4: do Lar e administradora, dedicação ao projeto de sete horas por semana.

- Parceira 5: do Lar, dedicação ao projeto de duas horas e meia por semana.

- Parceira 6: Servidora Pública, dedicação ao projeto de duas horas e meia por semana.

- Parceira 7: Doméstica, dedicação ao projeto de duas horas e meia por semana.

- Parceira 8: do Lar, dedicação ao projeto de sete horas por semana.

- Parceira 9: Professora de matemática, dedicação ao projeto de duas horas e meia por semana.

- Parceira 10: Artesã, dedicação ao projeto de duas horas e meia por semana.

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- Parceira 11: Do lar e estudante, dedicação ao projeto de três horas por semana.

- Líder Comunitário 1: Líder da comunidade Católica, 58 anos, moradora da comunidade há 15 anos. Líderes Líderes religiosos, Comunitários associação de - Líder Comunitário 2: Líder da associação de moradores, 52 anos, moradores, pessoas morador da comunidade há 14 anos. influentes - Líder Comunitário 3: Co-fundador do projeto, 47 anos, morador da comunidade há 12 anos.

Alunos - 23 alunos: Todos do ensino médio, idade média 16,5 anos (DP=0,8); Executores participantes 65,2% do sexo masculino.

- 26 famílias, sendo as mulheres as participantes. As características são as seguintes:

Famílias Idade: M = 37,8 anos; DP= 11,4; Min.= 18; Max.= 78 Beneficiários participantes Nº de filhos: M = 4,4; DP = 2,7; Min.= 1; Max.= 11

Famílias constituídas de mãe e filhos: 42,3%

No que diz respeito à análise de Comunidade Chico Mendes, onde é conteúdo das entrevistas com os grande o número de pessoas que não stakeholders, emanaram cinco categorias estão inseridas no mundo do trabalho. principais, as quais apresentaram, em Nessas falas, além do trabalho alguns casos, ênfases específicas que propriamente dito, também é dada ênfase poderiam ser chamadas de subcategorias. aos cursos que possibilitam a As categorias principais foram: Percepção aprendizagem de atividades que são da moradia em uma comunidade; possíveis geradoras de renda, como o Principais dificuldades da vida na artesanato e a culinária.Alguns Comunidade Chico Mendes; Significado depoimentos-chave selecionados apontam do Projeto Esperança; Função social do discursos que evidenciam essas Projeto Esperança; e Resultados do percepções. Projeto. Neste artigo serão focados os Resultados do Projeto. - “Pra mim, representa muita Os beneficiários são unânimes em coisa que eu aprendi. Fiz os curso avaliar que o Projeto Esperança trouxe e tô botando em prática os cursos, melhorias para as suas vidas. Os vários né, que eu fiz, né, aprendi fazer, depoimentos acerca dos resultados do né?”. (Beneficiário 8). Projeto apontam para o alcance de alguns - “O Projeto Esperança foi uma dos objetivos propostos. Alguns ajuda de renda, de aprender beneficiários enfatizaram a questão do coisas novas que eu sei um pouco, estímulo para o trabalho e renda, que é aprendi mais e a conhecer mais os uma das questões centrais para a meus vizinho”. (Beneficiário 3).

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- “O Projeto Esperança pra mim, Além das questões relativas ao no meu modo de ver é assim, eu tô trabalho, os stakeholders beneficiados aprendendo, além de conviver também falam de outros tipos de ganhos melhor com as outras pessoas, né, como o despertar da consciência humana, embora todo mundo aqui eu já política e cidadã e a ampliação da visão conheço, não tem ninguém de mundo, inclusive para lidar com os estranho pra mim... é conviver, filhos. Os depoimentos a seguir ilustram conhecer as pessoa melhor, esse outro tipo de ganho mencionado conviver com as pessoa. E tô pelos pesquisados. aprendendo a fazer coisas, por exemplo, aprendi a fazer salgado - “Foi tipo uma nova família, isso eu soube aprender, aprendi aprendendo a cada dia e um artesanato também é bom pra pouquinho de cada canto”. mudar de vida, pra gente poder (Beneficiário 4). mudar de vida, muito bom, muito - “Falamos pra elas fazer um bom”. (Beneficiário 24). trabalho de mutirão, de quem elas - “Pra mim foi tudo de bom. Pra achavam que deveria ter uma mim é tudo de bom. E é aquele ajuda emergencial. Então, duas negócio, a gente aprende a elas foram identificadas e as conviver, há oportunidade maior é outras cederam a vez para essas que eu tenho um sonho de poder duas. Então, já tá havendo uma cozinhar numa cozinha industrial, conscientização. Tá havendo aí eu até sonho com isso, (risos)” uma união!”. (Parceira 4). (Beneficiário 20). - “Quando nós começamos o - “Pra mim foi uma grande ajuda, projeto a gente levava o lanche. muito mesmo. Estou trabalhando Servimos uma mesa com os graças ao projeto, pelo lanches e elas enchiam a mão e os conhecimento de vocês”. copos e as que chegam por trás (Beneficiário 6). não conseguiam comer. Agora - “Pra mim é como uma luva, né, não, desde o ano passado cada como uma luva porque, no início uma se serve, a gente serve as eu me encontrava, assim, bandejas, elas ficam sentadas, a desempregada sem perspectiva, gente serve de novo, ninguém não tinha emprego numa boa, no briga. Não avançam, não caso, pra mim serviu de grande brigam.” (Parceira 4). utilidade”. (Beneficiário 12). - “Esse projeto agora, de ir ao - “Essa semana mesmo eu tive um cinema, de ir a praia de encontro com uma pessoa que Copacabana e ao Cristo participa do projeto muito feliz, Redentor. Meninas, elas estão pois tinha comprado uma eufóricas e não falam em outra geladeira nova. (...)Ela disse que coisa (Parceira 4). É... são pessoas fez a prestação já contando com o assim, mais ou menos da nossa rendimento do projeto, com a idade e tem mais velhas que nunca venda do produto artesanal.” foram à praia. São cariocas, (Líder Comunitário 3). nasceram no Rio e, nunca foram (...) Tão comum a gente ir a praia, eu não sou carioca e estou

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aqui há 17 anos, muitas vezes eu importante é a união e a fui a praia e fiquei boba de educação”. (Beneficiário 13). alguém dizer que tem 40 e poucos - “Mudou que eu não fico à toa anos alguém que não conhece a (risos).” (Beneficiário 10). praia.” (Parceira 8). - “O que mudou foi na amizade, - “Olha, eu vou ser honesta eu né? Todo mundo fica aqui disse. Até hoje, ele foi de grande, conversando aí eu converso um assim, não sei, né, dizer, na minha pouquinho, né?”. (Beneficiário vida, né, por que eu aprendi muita 11). coisa, depois que veio as meninas, - “Pra mim é legal, entendeu. A antes não tinha aqui... o encontro, minha vida é ocupada em outras mas depois do encontro, eu coisa e agora eu tenho procurado aprendi muita coisa, né? As melhor”. (Beneficiário 13). meninas que vem pra cá - “Um tentando se aproximar ensinaram muita coisa e tá mais do outro, né, de ajudar um ensinando muita coisa, né, pra ao outro e que, como assim, é... mães aqui, até mesmo a lidar é... é uma coisa, foi tipo assim, dentro de casa com as filhas, né, uma nova família, né, mesmo que com paciência, aquelas coisa, que a gente chega aquele dia aí vem elas faz uma perguntinha...” todo mundo, naquela ansiedade (Beneficiário 4). de encontrar todo mundo aqui”. (Beneficiário 15). - “Pois é... deixa eu ver... não sei Porém, além de resultados nem como falar. Tá tudo sendo diretamente ligados aos objetivos do feito, de bom agrado, a atenção Projeto, os beneficiários relataram a das menina [Assistentes sociais e existência de outros tipos de ganhos. Grupo MAS] que vem, não sei Dentre esses benefícios adicionais, os nem o nome, só o carinho que elas mais mencionados são a amizade/união tem em vim pra cá ensinar, né, com os vizinhos, a melhoria da auto- enfim, sem preconceito, não bota estima e o fato de ter uma ocupação. preconceito, vem, abraça as Também há depoimentos sobre o carinho pessoa.”. (Beneficiário 4). que recebem das pessoas que “trazem” o - “Uma ajuda muito boa. Projeto até a comunidade e sobre a Compras, cesta básica, roupa de importância das doações que recebem. A natal para meus filhos porque eu seguir são apontados depoimentos-chave não tenho como comprar”. que ilustram essas percepções. (Beneficiário 25). - “Me dei mais valor... (choro). E esse projeto mostrou que eu sou Os resultados do Projeto capaz de fazer, que eu sou capaz Esperança – relacionados aos objetivos de fazer, que eu sou capaz e que propostos ou não – também foram eu não posso desistir daquilo que percebidos por outros stakeholders, como eu quero”. (Beneficiário 3). os financiadores, a gestora, os líderes - “Fazer amizade, as pessoa tem comunitários e os parceiros do Projeto. de ser unida e as pessoas ser Na percepção dessas pessoas, os carente não quer dizer nada o resultados estão relacionados ao aumento da auto-estima, aprendizagem de

Souza, J. E. & Mourão, L. 37 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 23-51 | julho-dezembro de 2009 trabalhos artesanais, geração de renda, embaixo, não se valorizavam, não redução da violência e ampliação da rede se gostavam, achavam que não e da convivência social. tinham capacidade de fazer nada. E, agora, a gente levou algumas “Isso não é porque ela não tem pessoas para fazer palestras, condições de fazer. Isso tá ligado algumas dinâmicas, a gente levou a auto-estima, tá ligado, né, algumas meninas das arteiras. E, porque você pode descer e ir então, agora, elas estão achando andando. Se não vai é por outros que são capazes de fazer isso”. problemas sociais, a visão que (Parceira 4). tem da sua própria realidade e é isso que a gente tem de Porém um aspecto a ser destacado trabalhar.” (Parceira 1). é que além dos resultados para os - “Quando a gente vai fazer um beneficiários e para a Comunidade Chico trabalho para apresentar, sabe o Mendes como um todo, os stakeholders que elas fazem? Ficam para trás falam em alguns resultados do Projeto do papel se escondendo e Esperança para os demais públicos falando”. (Parceira 4). envolvidos, sobretudo, os executores - “Quando essas pessoas da (alunos) e as parceiras (mães do Grupo Pavuna vêm pra cá ou pra MAS). Especificamente no que diz aprender alguma coisa ou pra respeito aos alunos, nas respostas aos participar assim, divertir no questionários, eles apontaram uma visão Domingão Vicentino, eu acho que bastante favorável à participação no a gente tá de alguma forma Projeto Esperança. Quando perguntados contribuindo pra diminuir a sobre possíveis diferenças ocorridas nas violência, ajudar aquela suas vidas a partir do Projeto, eles comunidade a melhorar, né?”. apontaram um conjunto de mudanças (Financiador 2). pessoais relacionadas à diversidade, ao - “O Projeto está trazendo um engajamento, à solidariedade, à esclarecimento para as pessoas. aprendizagem pessoal e à transformação Para elas terem uma visão de vida da realidade social. A seguir são melhor, eles estão tendo mais apresentados alguns dos depoimentos dos qualidade (...) é uma esperança de alunos relativamente aos ganhos obtidos vida mesmo, como diz o próprio com a participação no Projeto Esperança. nome. Porque aquelas pessoas viviam com a auto-estima muito lá - “Aprendi a importância de embaixo. E estas famílias estão conviver no meio social por uma mais felizes, entendeu? Tanto no boa causa”. vestir e na alimentação e, esse - “Participar do Projeto projeto está sendo de muita valia Esperança me ajudou a entender lá na comunidade, na auto- melhor a situação de pessoas de estima!”. (Líder Comunitário 3). classe mais desfavorecidas”. - “Nós começamos do zero, né, as - “Me fez perceber a necessidade meninas [assistentes sociais] de trabalhar para um mundo visitaram as casas, depois eu fui melhor”. também e eram assim, muito - “Me ensinou a olhar e ajudar humildes, com a auto-estima lá mais o próximo”.

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- “Me fez enxergar outras saem, elas acontecem sem ficar realidades além da minha”. esperando”. (Parceira 8). - “Cresci como pessoa”. - “Eu acho que é muito parecida - “Aprendi um pouco sobre a com a história do beija-flor, né? A vida”. floresta pega fogo e aí o beija-flor - “Dei mais valor a minha vida”. vai com um pinguinho de água, - “Ser mais solidário”. faz mil viagens e perguntam pra - “Fez sentir-me inserida num ele: Você acha que vai resolver contexto social que pode ser alguma coisa? Ele responde: Eu mudado para melhor”. não sei se vou resolver, mas estou fazendo a minha parte. Se todo As mães também apontam ganhos mundo fizer a sua parte eu acho pessoais derivados da sua participação no que é isso que vai chegar a um Projeto. Embora algumas delas já denominador comum, né?” realizassem trabalhos sociais antes de (Parceira 4). matricularem seus filhos no Colégio São - “É fazendo o bem aos outros a Vicente de Paulo, elas apontam ganhos gente tá fazendo a nós mesmos. É específicos a partir da participação nesse um prazer!” (Parceira 8). Projeto. Para elas, o Projeto Esperança traz muitos desafios entre eles ter de ir Um outro aspecto bastante até as comunidades carentes e aprender a ressaltado pelas mães parceiras do Projeto contribuir com essas pessoas de forma a Esperança foi a possibilidade que o melhorar sua qualidade de vida, mas projeto oferece de aproximação dos seus respeitando a cultura peculiar dos filhos e de dar um exemplo de beneficiários, mas o que é mais recorrente solidariedade, o que contribuiria para o no discurso dessas pessoas é a processo educacional dos adolescentes. possibilidade de atuar de forma solidária As parceiras também destacam-se em e contribuir para uma transformação seus depoimentos a realização pessoal por social. meio da atuação como voluntária. As falas a seguir evidenciam como esses - “O envolvimento com o trabalho ganhos são percebidos por esse grupo de social, né, quer dizer a gente tá mães. ajudando alguém, participando, tentando melhorar a vida das - “É um desafio tanto para mim pessoas, lá no caso da quanto para a minha filha ajudar Comunidade Chico Mendes, né?”. o próximo”. (Parceira 11). (Parceira 9). - “Eu vejo que a minha filha sente - “Ganhamos de ver que a gente orgulho do que eu faço, ela sente ajuda as pessoas que estão orgulho: ‘pôxa a minha mãe...’. A necessitadas, de dar uma mão minha filha consegue separar a para as pessoas.” (Parceira 8). coisa que ela ama de paixão, que - “E as coisas também de não ela fala desde quando ela era ficar esperando os outros fazerem, pequenina: ‘e agora eu fiquei né, responsabilizar sempre os crescida, né, mãe, então vou dar’! outros, então, pode partir de todo Isso é um exemplo maravilhoso.” mundo um pouquinho e as coisas (Parceira 8).

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- “Me interessei pelo trabalho prato, então, eu acho assim que social de estar aprendendo falta um espaço para aquelas alguma coisa, de estar fazendo mães que tem criança podê por alguém alguma coisa e tá participar e não ficar de fora, que também perto do colégio, perto é o meu caso, o caso da esposa dos meus filhos, né, e podendo dele”. (Beneficiário 25). realizar algumas coisas. (Parceira - “Porque sim, eu acho aqui um 2). lugar bom e a única coisa que - “Ganhamos de também de falta é assim... o presidente [da mostrar para os nossos filhos que associação dos moradores] que é importante a gente ajudar o entrar, já tá aí agora de novo, próximo. Eu mostro todo esse tomar providências assim para trabalho ao meu filho (...) que eu todos” (Beneficiário 3). acho importante mostrar para eles - “Uma creche aqui perto”. crescerem com essa visão de (Beneficiário 18). ajudar o próximo.” (Parceira 8). - “Falta posto de saúde”. (Beneficiário 19). Em relação ao que fazer para - “Uma creche, né? Porque nóis melhorar os resultados do Projeto, há só, aqui, só tem uma creche”. muitas opiniões distintas entre os (Beneficiário 13). stakeholders. Os beneficiários falam - “Eu achava que deviria ter aula sobre ampliar os espaços para as oficinas de... de capoeira, esses negócios, de trabalho, em ter creche e atividades judô, aula de dança pra meninas, para as crianças, posto de saúde. Os balé e essas coisas assim... que depoimentos evidenciam que são muitas deveria ter que se não for pago as carências dessas pessoas, como pode não tem, não tem aqui em cima, ser visto em algumas falas selecionadas e de graça não tem aqui em cima”. listadas a seguir. (Beneficiário 8). - “A única coisa que a gente tá tentando também é uma oficina, Os beneficiários se queixam ampliar um lugar melhor pra também de como as doações são gente começar a produzir as distribuídas, discordando do sorteio como coisa”. (Beneficiário 3). forma de escolher quem receberá os - “Alguma atividade pras donativos. Há depoimentos dizendo que criança”. (Beneficiário 17). quando os alunos visitavam as casas para - “É... atividade pra crianças, avaliar quem tinha mais necessidade, o computador, esportes e dança processo fluía melhor. Nesse sentido, há também”. (Beneficiário 15). também outras falas sobre a falta de uma - “Poder trazer as crianças nas coordenação/organização e de líderes que reuniões”. (Beneficiário 10). possam “tomar providências assim para - “Ter um espaço para as criança, todos”. Falam também da falta de união entendeu e que eles pudessem ter dos participantes do projeto como algo a presença deles aqui duas vezes que seria um ponto fraco. Alguns na semana. Pra ensinar mais depoimentos a seguir mostram as como vem a moça aqui e ensina diferentes leituras dos beneficiários negócio de pet [garrafa pet], acerca da gestão do Projeto Esperança. entendeu? Negócio de pano de

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- “Ainda falta, né, porque é aquele negócio, nós tamos iniciando, o Em relação às sugestões para a projeto já tem um tempo, mas não melhoria do Projeto, os líderes tinha ali o pessoal para poder comunitários também apontaram alguns controlar melhor, mas é a gente caminhos para que o Projeto Esperança tem que ir mais a frente pra poder obtenha resultados mais efetivos. Porém, expandir isso.” (Beneficiário 20). ao contrário dos beneficiários, eles não - “Eu gostaria que as pessoas se falam de questões pontuais, pois solicitam entendessem melhor. Tem muita mudanças no próprio desenho do Projeto, gente aqui que deixa a gente meio seja no sentido de focar mais as balançada, a gente tenta fazer de oportunidades profissionais – como forma tudo, mas...” (Beneficiário 21). de evitar a marginalização, seja na - “Ter mais união, tá faltando definição do público-alvo – com maior muito”. (Beneficiário 22). envolvimento dos pais e não apenas das - “Eu vou ser logo clara, mães. Há, ainda, uma proposta de amparo entendeu... eu tô sendo sincera... mais completo a essas famílias, muita gente tá achando muito buscando-se conhecer o que elas errada a forma do sorteio das realmente necessitam para ajudá-las a ter coisas que vem. Muitas pessoas novas perspectivas de vida. A seguir, são são sorteadas e não precisam e apresentados trechos das falas dos três não tem a sorte. Um dia desses eu líderes comunitários entrevistados. queria ser sorteada em uma televisão e não tem nada. - “O que eu gostaria que fosse Antigamente eram os alunos que feito? Meu Deus! Se todas as vinham e via o que a gente famílias tivessem o amparo total, precisava e não precisava”. pois este é o amparo parcial. O (Beneficiário 13). amparo total eu digo assim, ter - “Porque sim, eu acho aqui um alguém se encaminhando para o lugar bom e a única coisa que emprego, sabe, uma criança que falta é assim... o presidente [da precisava de uma bolsa de estudo associação dos moradores] que e que já pudesse conseguir este já entrar, já tá aí agora de novo, seria uma grande esperança e tomar providências assim para uma grande perspectiva de vida. É todos” (Beneficiário 3). isso que eu espero que o seu Porém, é importante registrar que projeto traga.”. (Líder alguns deles falaram que “não podemos Comunitário 1). querer mais nada”, no sentido de que já - “Do meu ponto de vista seria estão recebendo ajuda e que eles não têm ampliar esportes e “o direito de exigir nada”. Nesse sentido, profissionalizante para preparar o um beneficiário afirmou: - “É, cobrar jovem. Me preocupa muito seria impossível e demais também. Num quando chega na faixa etária e todo só tenho a agradecer, né? Só tenho não tem escolaridade é um grande a agradecer”. Essas falas evidenciam o problema para procurar emprego. quanto o Projeto Esperança ainda é visto Se não tem formação profissional como uma caridade e o quanto é distante já contribui para a dessa comunidade a percepção de seus marginalização. E se a gente direitos sociais. cuidar da juventude tudo, mais

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tarde, não vai ter homem preso. acho que seria necessário o... um Isso vai aliviar um pouco a projeto que atingisse também os violência, não solucionar e sim homens, de certa forma quebrar amenizar”. (Líder Comunitário 2). esse preconceito. É... levar - “O que eu queria que fosse feito alguma atividade que chama a é que eles envolvessem mais os atenção dos homens para que eles pais [homens] no projeto. Eles também possam ter algo ou dentro não se envolvem, eles são muito da geração de renda, ou dentro do assim, se recuam muito. Eu queria aprendizado, da liderança que fosse feito um trabalho mais comunitária, né, a gente tem de amplo com eles”. (Líder pensar algo nesse sentido”. Comunitário 3). (Financiador 2). - “A ideia de educar que a gente Para a gestora, o principal desafio quer ajudar pessoas a saírem do do projeto é desenvolver a autonomia dos nível que estão a adquirirem uma beneficiários, deixando de ser um projeto consciência diferente, uma meramente assistencialista: “Não pode proposta de vida diferente. ser só da gente ir lá e cumprir um papel. Educar para isso”. (Financiador A gente tem que desenvolver essas 1). pessoas no sentido de criar a autonomia - “Eu acho que talvez, também, delas”. Já os financiadores do Projeto nós batemos muito a cabeça com Esperança falam em um redesenho desse algumas atividades relacionadas Projeto, apontando várias alternativas, a artesanato, coisas assim que tais como: aumentar a visibilidade dos talvez elas nem tinham tanta produtos resultantes das oficinas aptidão assim, e hoje a gente viu realizadas na Comunidade Chico Mendes; que diversificando as atividades a diversificar as oficinas artesanais e gente tem atingido melhor os oferecer outras atividades; educar para a talentos lá, né?.” (Financiador 2). solidariedade; trabalhar não só com as mulheres, mas também com os homens Além dos beneficiários, dos da comunidade nesse processo de geração líderes comunitários, da gestora e dos de renda e de atuação na liderança financiadores, as parceiras também comunitária. Alguns depoimentos-chave apresentaram sugestões para a melhoria foram selecionados para ilustrar as do Projeto Esperança. Os depoimentos opiniões dos financiadores do projeto. das mães parceiras no grupo focal apontam para questões mais pragmáticas, - “Eu acho que elas tinham que com uma preponderância de sugestões ter maior visibilidade nas nossas para que elas pudessem, juntamente com Feiras, eu acho que os produtos a comunidade e com os alunos do que elas tão produzindo, ao longo Colégio, “colocar a mão na massa”. Ou do tempo, foram adquirindo maior seja, elas gostariam de realizar mais do qualidade, então a gente pode... que encontros, palestras, visitas guiadas pode passar a vender mais (...) ou oficinas. Gostariam de poder mudar o pra ajudar na questão da geração espaço onde vivem as famílias de renda.” (Financiador 2). beneficiárias, no sentido de proporcionar- - “A gente atinge muito as lhes uma vida mais saudável e digna. mulheres, as donas de casa. Eu Alguns depoimentos ilustrativos dessa

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percepção do Grupo MAS são dos Resultados do Projeto nos discursos apresentados a seguir. dos stakeholders. Como pode ser visto nos depoimentos relacionados nesta - “Eu acho que a gente tinha de seção, as subcategorias compreendem fazer um projeto de mutirão, tinha visões singulares de cada pesquisado, de trabalhar mais isso de ainda que tais visões possam ser emprego. Porque toda vez que a agrupadas tematicamente. A seleção dos gente pergunta o que vocês mais depoimentos-chave buscou ilustrar o que querem, elas gritam logo: foi dito e as diferentes versões para um emprego!” (Parceira 4). mesmo tema, apresentando não apenas o - “A primeira vez que eu fui lá na que foi dito, mas o como foi dito. Pavuna e o que eu pensei que O resultado permitiu concluir que nessa visitação seria feito era se das quatro subcategorias, duas estiveram juntar pra melhorar o espaço... presentes nos discursos de todos os deles, com lixeira em casa, subir pesquisados, a saber: Resultados relativos casa, limpar terreno, coisas que ao alcance dos objetivos do programa e fossem possíveis e não era Sugestões de melhoria para o Projeto. Por contratar nada não, viu? Eram outro lado, as duas subcategorias que pessoas! Era fazer, juntos deixaram de ser apontadas por dois inclusive, acho complicado, juntar grupos de stakeholders foram: Resultados inclusive os próprios alunos que do projeto além dos objetivos propostos; foram, que estavam engajados no e Resultados do projeto para os demais projeto, entendeu e fazer alguma públicos. Finalmente, vale destacar que os coisa maior.” (Parceira 11). únicos stakeholderes que abordaram -”Fazer um mutirão entre eles e todas as subcategorias foram os parceiros fazer muita coisa.”(Parceira 10). e a gestora do Projeto, enquanto os líderes comunitários deixaram de abordar duas A fim de analisar as regularidades subcategorias. A Tabela 3 sintetiza a de avaliações nos dados qualitativos análise da presença de subcategorias nos coletados, foi feita uma análise de discursos dos pesquisados. presença ou ausência nas subcategorias

Tabela 4:

Análise da presença e ausência das categorias nos discursos dos pesquisados

Presença

Categorias Subcategorias Líderes Financia- Benefi- Gestora Parceiros dores Comuni- ciários tários

Resultados do Resultados relativos ao Projeto alcance dos objetivos do X X X X X Esperança programa

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Resultados do Projeto além X X X dos objetivos propostos

Resultados do Projeto p/ os X X X demais públicos

Sugestões de melhoria para o X X X X X Projeto

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS término. De qualquer forma, Neste estudo foram pesquisados considerando que o Projeto foi criado em diferentes stakeholders, com ênfase na 2006, muitos dos resultados abordagem qualitativa. A opção por essa intermediários puderam ser avaliados. abordagem encontra respaldo em diversos Na linha do que é proposto por autores, tais como Uchimura e Bosi Antunes (2001), o presente processo (2002) que avaliam que a dimensão avaliativo teve como finalidade a subjetiva da qualidade de programas indicação da relevância, da efetividade e públicos “guarda, certamente, em seus do impacto do Projeto Esperança, à luz de meandros, muitos aspectos a serem seus próprios objetivos. Sendo assim, desvelados, já que pertence ao plano das cabe analisar o grau de alcance do nuanças, do profundo, do particular” objetivo principal do Projeto, bem como (2002, p. 1.567). As autoras defendem de seus objetivos específicos. De acordo que pesquisas de avaliação de programas com documentos da PBCM (2007), o considerem os pontos de vista dos atores objetivo geral do Projeto Esperança era: e, principalmente, dos beneficiários, uma “Contribuir para a melhoria da qualidade vez que é em função deles que o de vida das famílias que se encontram em Programa existe. Assim, a avaliação do situação de vulnerabilidade social, de Projeto Esperança buscou contemplar forma humanizada, visando à expansão diferentes atores sociais envolvidos na do indivíduo enquanto transformador realização do mesmo, com a participação social”. nesta pesquisa de todos os beneficiários A respeito do objetivo do Projeto diretos do Programa. Esperança cabe inicialmente considerar No que diz respeito aos que o mesmo era bastante audacioso para Resultados do Projeto Esperança, é um projeto com duração de três anos e preciso discutir os níveis de resultados recursos limitados (tanto humanos como alcançados à luz dos objetivos propostos materiais). Em que pese o fato de os pelo Projeto. Ainda que resultados não líderes comunitários terem mencionado a esperados tenham ocorrido, conforme melhoria da qualidade de vida dos sinalizam diversos autores da área de participantes como um dos resultados do avaliação de programas sociais como Projeto Esperança e de alguns dos Posavac e Carey (1997) e Rossi e beneficiários também terem expressado Freeman (1993), é fundamental avaliar se que suas vidas estão melhores, há que se os objetivos traçados foram de fato questionar em que medida de fato alcançados. Contudo, no caso do presente conseguiu-se a expansão do indivíduo projeto, é preciso considerar que a como transformador social. avaliação foi feita seis meses antes do seu

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Por um lado, há indícios nos cooperativas representariam uma forma discursos de um processo de tomada de de aumentar as chances de consciência das próprias capacidades, sustentabilidade do Projeto, uma vez que bem com de um direito de cobrar por os sócios são ao mesmo tempo políticas públicas de melhor qualidade. fornecedores, clientes e, às vezes, Por outro, há também indícios de que empregados (Albuquerque e cols., 1999). esses resultados apresentam ainda caráter Donde se depreende que, se os pontual, com maiores chances de beneficiários tivessem suporte para se mudança efetiva na qualidade de vida de organizar em redes produtivas com auto- alguns poucos beneficiários do que da gestão da produção e comercialização de Comunidade Chico Mendes como um seus produtos, os princípios da autonomia todo. e emancipação teriam maiores chances de Em relação aos objetivos serem contemplados. específicos, a PBCM (2007) elaborou seis Uma consideração a ser feita diz objetivos, os quais serão analisados um a respeito à pertinência desse objetivo. Se um. O objetivo de “estimular trabalhos de um dos focos do Projeto Esperança é a geração de renda, assim como integração social das pessoas que vivem organização em associações e/ou na Comunidade Chico Mendes, cooperativas” foi apenas parcialmente necessário se faz ter ações voltadas para a atingido. É fato que algumas beneficiárias geração de oportunidades de trabalho. aprenderam novos ofícios, sobretudo na Conforme salientam Barros, Sales e área de trabalhos artesanais. Porém, não Nogueira (2007, p. 323), “A vivência da se conseguiu formas efetivas de estruturar exclusão – em especial para os moradores o processo produtivo dessas pessoas, nem das favelas – apresenta estreitos laços tampouco a logística de escoamento da com a questão do trabalho”. Essa produção. Nesse sentido, o trabalho demanda por oportunidade de trabalho realizado pelas beneficiárias contou aparece não apenas no discurso dos apenas com a exposição nas feiras próprios beneficiários e líderes realizadas no Colégio São Vicente de comunitários, mas também das parceiras Paulo ou em algumas outras feiras que estão diretamente ligadas ao Projeto solidárias realizadas em ambientes Esperança. Uma delas diz “Toda vez que escolares. a gente pergunta o que vocês mais Ainda sobre esse objetivo cabe querem, elas gritam logo: emprego!” destacar que não foram identificadas Barros e cols. (2007) confirmam o durante a pesquisa ações sistemáticas que trabalho como elemento capaz de levassem à formação de associações e/ou aumentar a auto-estima e reverter a cooperativas como resultado do Projeto identidade de “marginal”, por vezes Esperança. A esse respeito vale atribuída a pessoas que moram em considerar os princípios cooperativistas favelas. Para os autores, a condição de listados por Albuquerque, Mascareño e “favelado” pode ser entendida como fator Maia (1999) entre os quais se destacam o dificultador do ingresso no mercado de livre acesso e a adesão voluntária, o trabalho. Ele salienta que quem contrata direito de voto a todos os cooperados, a funcionários utiliza o endereço como se supressão do lucro, os benefícios fosse um “atestado de bons proporcionais ao trabalho ou quantidade antecedentes”, o que leva muitos de produto aportado e o caráter educativo candidatos que residem em favelas a e formativo das cooperativas. Assim, as omitir o seu endereço durante uma

Souza, J. E. & Mourão, L. 45 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 23-51 | julho-dezembro de 2009 entrevista de seleção ou nas informações que assumiam mais diretamente o Projeto contidas no seu currículo. e que ao longo do mesmo foram No que diz respeito ao objetivo de delegando essas tarefas para a gestora e as “despertar a consciência humana, política parceiras. Contudo, o tempo limitado para e cidadã através de oficinas temáticas”, a atuação das voluntárias reduziu o avalia-se que houve um processo de número e a frequência das visitas conscientização, evidenciado em vários domiciliares e não houve sistematização trechos dos discursos dos pesquisados, das entrevistas familiares. Vale destacar a como o beneficiário que diz: “Esse queixa de uma beneficiária pela falta de projeto mostrou que eu sou capaz de acompanhamento sistemático das fazer e que eu não posso desistir daquilo necessidades de cada família, o que que eu quero”; a parceira que relatou levaria a uma forma de distribuição dos “Adorei o que a senhora mais velha falou donativos considerada injusta (sorteio). A e a consciência dela, e a motivação dela beneficiária salienta que essa opinião não querer para ela e para os outros e de se é apenas dela quando diz: “Eu vou ser auto-sustentar”; ou ainda o depoimento logo clara, entendeu... eu tô sendo do líder comunitário: “A alternativa aqui sincera... muita gente tá achando muito seria nós fazermos um mutirão de nós errada a forma do sorteio das coisas que irmos até as autoridades e pedir, fazer vem. Muitas pessoas são sorteadas e não este pedido, mas isto já foi feito muitas precisam (...) antigamente eram os alunos vezes e só agora eles tomaram que vinham e via o que a gente precisava consciência que nós estamos precisando, e não precisava”. realmente.”. No que diz respeito ao objetivo de Não há dúvida que o resultado “desenvolver as atividades de forma pretendido com esse objetivo requer integrada com a comunidade, buscando mudanças de longo prazo, pois a parcerias com a rede local de serviços”, “consciência humana, política e cidadã” conclui-se que muito pouco foi feito. Os demanda tempo e constância. Portanto, a depoimentos coletados não falam dessa avaliação é de que tal transformação já integração com a comunidade nem começou a ocorrer, mas que resultados tampouco das parcerias com os mais sólidos carecem de continuidade. comerciantes locais ou outras instituições Porém, cabe a reflexão a respeito do que atuam na Comunidade Chico verbo utilizado na construção desse Mendes. Cabe, porém, questionar em que objetivo. O uso da palavra “despertar” medida esse seria um objetivo factível remete à ideia de que as pessoas da considerando a limitação de recursos e de Comunidade Chico Mendes não têm oportunidades que a rede local pode nenhuma consciência humana, política e oferecer. Nesse sentido, mesmo sabendo- cidadã. Nesse sentido, seria mais se do potencial emancipatório que adequado que o Projeto falasse em parcerias com a comunidade local “fortalecer” essa consciência e não em oferecem, talvez fosse mais recomendável “despertá-la”. estabelecer um objetivo relacionado a O objetivo de “acompanhar parcerias também fora da Comunidade – periodicamente as famílias atendidas, por incluindo o poder público e organizações meio de visitas domiciliares e entrevistas” não-governamentais – uma vez que a foi parcialmente cumprido, pois no início situação de miséria na região é fato havia atuação mais direta dos alunos que facilmente constatável. iam às casas, bem como dos financiadores

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Cabe ainda analisar o objetivo de de 2006 foi um período de estruturação “incentivar a cultura e a valorização da do Projeto e que sua implementação se identidade local, respeitando o contexto deu, de fato, no período de dois anos, o histórico da região”. A respeito desse que na visão dos financiadores e da objetivo pode-se dizer que os resultados gestora é um tempo curto considerando são pouco visíveis. Por um lado, buscou- todas as transformações sociais se uma integração dos beneficiários com almejadas. a cidade do Rio de Janeiro, no sentido de Para concluir a análise acerca dos eles se reconhecerem nesse espaço. Para resultados do Projeto Esperança, vale isso, foram feitas visitas a monumentos considerar os aspectos ressaltados por como o Pão de Açúcar, passeios ao Posavac e Carey (1997) relativamente à cinema e à praia. Mas ações específicas avaliação de resultados de programas de resgate da história da Pavuna ou sociais. Segundo os autores, esse tipo de mesmo da Comunidade Chico Mendes avaliação requer: não foram citadas por nenhum (a) a análise do atendimento aos pesquisado. clientes dos serviços (a qual foi Finalmente, o objetivo de feita e descrita acima); “possibilitar intercâmbio com os projetos (b) a comparação entre quem da PBCM e ampliar a visão de mundo da recebe e não recebe os serviços comunidade” tem sido atingido na medida (dimensão não contemplada na em que há programas de integração da presente pesquisa, uma vez que comunidade escolar com os beneficiários não foi feito delineamento com – como Domingão Vicentino, bazares e grupo controle); oficinas artesanais realizados no próprio (c) a mudança nas condições de Colégio, além da presença de vida dos participantes (a qual foi beneficiários em debates e fóruns verificada, embora ainda em pedagógicos. O fato de haver encontros menor intensidade do que o temáticos da gestora e das parceiras com idealizado no Projeto); e as beneficiárias também representa uma (d) a sustentabilidade ao longo do forma de ampliação da visão de mundo, a tempo (dimensão que apresenta qual foi confirmada por depoimentos baixa probabilidade de ocorrência, tanto das parceiras quanto dos pois os aspectos que poderiam beneficiários. garantir essa sustentabilidade – Sobre o não alcance de alguns dos como a formação de associações e objetivos traçados é preciso considerar se cooperativas ou as parcerias com a o tempo estipulado para a realização do rede local – não foram Projeto seria factível para o impacto que desenvolvidos conforme o foi planejado. Nesse sentido, uma das planejamento inicial do Projeto parcerias argumenta: “Acho pouco Esperança). tempo... pra gente conseguir isso tudo é Porém, além de resultados muito pouco, é muito difícil gente. Se nós diretamente ligados aos objetivos do estamos pegando essas famílias do zero. Projeto, houve relatos dos beneficiários Sem estrutura nenhuma, sem nada. Eu de outros tipos de ganhos como a acho que para você poder colocá-las, melhoria da auto-estima, o fato de ter poder dizer ‘missão cumprida’, eu acho uma ocupação, a união entre as pessoas que dois anos é muito pouco.” A esse da Comunidade e a ampliação da rede e respeito cabe ainda esclarecer que o ano da convivência social. Esses resultados,

Souza, J. E. & Mourão, L. 47 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 23-51 | julho-dezembro de 2009 embora não estejam descritos de maneira Colégio São Vicente tem contribuído para direta nos objetivos, contribuem para a a formação pessoal e cidadã dos mesmos, realização dos mesmos, uma vez que no tocante ao conceito de voluntariado caracterizam-se comopressupostos para a orgânico defendido por Selli e Garrafa transformação social. (2005). Outro aspecto a ser destacado são os resultados do Projeto Esperança para os demais públicos envolvidos, CONSIDERAÇÕES FINAIS considerando, sobretudo a formação cidadã dos alunos e os benefícios para as A preocupação com avaliações mães parceiras. A participação e o que tenham ao mesmo tempo rigor discurso dessas mães permitem confirmar científico e caráter prático é crescente em as três dimensões de benefícios do todo o mundo, mas o Brasil ainda não trabalho voluntário propostas por Selli, tem tradição de avaliação de programas Garrafa e Junges (2008): o pólo sociais, embora tenha experimentado individual, o pólo dual (voluntário e considerável aumento das pesquisas e da beneficiário) e o pólo coletivo (instituição literatura científica sobre o tema. Porém, e sociedade). De fato, os depoimentos das ainda falta no país formação específica parceiras abordam esses três tipos de nessa área para que se possam realizar benefícios, tanto os ganhos que elas têm avaliações em maior número e com maior como pessoa e como mães (no sentido de qualidade. A avaliação de programas se aproximarem dos seus filhos e darem sociais demanda profissionais com um exemplo de cidadania), como também formação interdisciplinar, com o aspecto do ganho social resultante do contribuições de diferentes áreas como trabalho por elas realizado. De forma Sociologia, Ciências Políticas, Psicologia, complementar, há no discurso delas o Administração e Estatística. chamado pólo dual (Selli e cols., 2008), O Projeto Esperança surgiu com o pois em vários casos elas apontam objetivo de atender crianças, adolescentes benefícios recíprocos derivados do e famílias que apresentavam dificuldades convívio com os beneficiários – “Fazendo em manter as condições básicas de o bem aos outros, a gente tá fazendo a sobrevivência. O projeto tem caráter nós mesmos!” educativo e emancipatório e foi Os alunos engajados no Projeto idealizado para permitir que os alunos do Esperança também relataram uma série de Colégio São Vicente de Paulo pudessem benefícios pessoais a partir da realizar atividades de solidariedade, participação no mesmo, incluindo uma contribuindo para o desenvolvimento de maior preocupação com o outro e com a uma atitude ética e cidadã. O objetivo dimensão da coletividade. Nesse sentido, atual do Projeto Esperança é “Contribuir Selli e Garrafa (2006) analisam que o para a melhoria da qualidade de vida das comprometimento com o outro na vida famílias que se encontram em situação de em coletividade supõe abertura total às vulnerabilidade social, de forma múltiplas dimensões da realidade, tanto humanizada, visando à expansão do do indivíduo como sujeito, quanto da indivíduo enquanto transformador realidade sociopolítica na qual ele está social”. inserido e exerce seus papéis de pessoa e O principal objetivo desse estudo de cidadão. Assim, pode-se dizer que a foi avaliar o Projeto Esperança a partir do atuação dos alunos do ensino médio do ponto de vista de diferentes stakeholders

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(gestor, financiadores, parceiros, líderes suprir as necessidades identificadas; (c) comunitários, executores e beneficiários). não tem sido oferecido da maneira como Talvez a primeira conclusão a que se foi planejado, e observa-se que as possa chegar é a de que todos os mudanças nos processos e procedimentos públicos-alvo pesquisados são capazes de têm gerado tanto resultados positivos apontar resultados obtidos com a como negativos; e (d) o Projeto realização do Projeto em termos de Esperança efetivamente atende as pessoas melhoria da vida dos beneficiários. Uma necessitadas, dentro de um custo razoável segunda conclusão importante seria a de e sem outros tipos de efeitos não que foram alcançados não apenas os desejados que tenham sido identificados resultados diretamente descritos nos de maneira clara na pesquisa. objetivos (geral e secundários) do Projeto, Em relação às recomendações, a pois houve menção a outros tipos de partir da realização dessa pesquisa optou- ganhos não planejados. Também cabe se por apresentar recomendações para três incluir como conclusão dessa avaliação o públicos distintos: os financiadores do fato de que não apenas os beneficiários Projeto (PBCM), a instituição tiveram ganhos com o Projeto, uma vez responsável pelo mesmo (Colégio São que há relatos de resultados também por Vicente de Paulo) e pesquisadores e parte dos financiadores, dos parceiros e profissionais que estudam avaliação de dos executores. Finalmente, a pesquisa programas sociais. Em relação à PBCM, permite concluir que, apesar dos as recomendações são as seguintes: (a) resultados alcançados, o Projeto acompanhar mais de perto a construção Esperança ainda não cumpriu em sua das avaliações de seus projetos sociais; totalidade os objetivos propostos e não há (b) apresentar os resultados obtidos na sinais concretos de que tais objetivos avaliação para todos os atores sociais serão alcançados ao término do Projeto envolvidos no Projeto e especialmente em 2009. para os beneficiários e a comunidade na De acordo com a proposição qual estão inseridos; (c) investir nas conceitual de Posavac e Carey (1997), a parcerias dos projetos sociais no sentido avaliação de programas sociais constitui- de aprimorar as relações da instituição se de um conjunto de métodos e com os parceiros e estabelecer um ferramentas necessários para determinar modelo de gestão dos projetos com papéis se um serviço: (a) é necessário e claramente definidos; (d) propiciar uma utilizável; (b) é oferecido de maneira formação aos voluntários de forma que suficientemente intensiva para suprir as eles possam estar mais preparados para o necessidades que tenham sido desempenho de suas funções em cada identificadas como não atendidas; (c) é projeto; e (e) aproximar-se da oferecido tal como foi planejado; e (d) comunidade local onde o projeto social efetivamente atende as pessoas está sendo desenvolvido no sentido de necessitadas, dentro de um custo razoável aproveitar suas potencialidades e e sem outros tipos de efeitos não fortalecer o aspecto contextual desses desejados. A partir dessa proposição dos projetos. autores e dos resultados encontrados na Em relação às recomendações pesquisa, pode se concluir que: (a) o para os pesquisadores e profissionais que Projeto Esperança é necessário e estudam avaliação de programas sociais, utilizável; (b) ainda não é oferecido de os resultados da presente pesquisa maneira suficientemente intensiva para reforçam pressupostos já defendidos na

Souza, J. E. & Mourão, L. 49 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 23-51 | julho-dezembro de 2009 literatura, a saber: (a) fazer uso da qualidade de avaliação de programas complementar das abordagens sociais no Brasil em termos quantitativas e qualitativas; (b) pesquisar metodológicos; (b) as diferenças diferentes stakeholders e confrontar as metodológicas das avaliações realizadas percepções desses atores sobre os no âmbito governamental e pelas diversos temas relacionados ao programa instituições privadas ou do Terceiro ou projeto social; (c) analisar os Setor; (c) a investigação das mudanças resultados obtidos à luz dos objetivos e realizadas em projetos sociais a partir de metas inicialmente traçados e também à resultados obtidos em avaliações luz de outros achados já apontados pela anteriores; (d) a publicação de estudos de literatura da área. Sem dúvida, como casos de avaliação de programas sociais, ressaltado por Posavac e Carey (1997), o uma vez que a pesquisa nessa área é trabalho de um avaliador situa-se entre o caracterizada por avaliações específicas papel desempenhado por um cientista para cada projeto ou programa social; (e) social – preocupado com questões a avaliação de resultados de programas teóricas, desenho de pesquisa e análise de em comunidades e/ou municípios dados – e o papel de um profissional comparando condições em que haja envolvido com a prestação de um serviço parcerias claramente estabelecidas com a pessoas necessitadas. Ou seja, quem outras em que a atuação seja exclusiva de atua como pesquisador nessa área uma única organização. necessita mesclar suas contribuições para os avanços científicos e para a melhoria dos projetos que avalia. REFERÊNCIAS Como limitações do presente estudo, há o fato de essa pesquisa ter sido Albuquerque, F. J. B., Mascareño, R. M. desenvolvida por um avaliador interno, P., & Maia, W. D. O. (1999). ligado ao Colégio São Vicente de Paulo. Considerações não-ortodoxas sobre as Se por um lado essa condição possibilita cooperativas e o cooperativismo. melhor acesso aos gestores do programa e Revista Psicologia & Sociedade, 11(2), aos administradores da organização, por 23-41. outro a objetividade das observações pode Almeida, V. P. (2006). Avaliação de ser afetada. Do ponto de vista de Programas Sociais: De Mensuração de conteúdo, a falta de tradição da instituição Resultados para uma Abordagem pesquisada em avaliar seus projetos e Construtivista. Pesquisas e Práticas ações sociais de maneira mais científica, Psicossociais, 1(2), 01-13. reduziu a possibilidade de comparação Antunes, C.M.F. (2001). Métodos dos resultados obtidos. Além disso, trata- epidemiológicos para planejamento e se de um projeto social de uma avaliação de impacto dos programas de organização específica e que atende a controle vetorial da doença de Chagas. uma comunidade que também apresenta Grupo de Trabajo OPS en Enfermedad as suas particularidades. Nesse sentido, de Chagas, Montevideo, Uruguay, qualquer generalização dos resultados novembro. obtidos no presente estudo fica Bardin, L. (1977). Análise de Conteúdo. prejudicada. Lisboa: Edições 70. Por fim, como sugestões para Barros, V.A., Sales, M.M., & Nogueira, pesquisas futuras, podem ser M.L.M. (2007). Exclusão, favela e mencionadas: (a) a mensuração do avanço vergonha: uma interrogação ao

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trabalho. In I. B. Goulart (org). Scriven, M. (1967). The methodology of Psicologia Organizacional e do evaluation. In R. W. Tyler, R. M. Trabalho: teoria, pesquisa e temas Gagné, & M. Scriven (Eds.), correlatos. São Paulo: Casa do Perspectives of curriculum evaluation. Psicólogo. (pp. 39-83). Chicago, IL: Rand Franco, A. (1971). C., Ernesto; F., McNally. Rolando. Avaliação de projetos Selli, L. & Garrafa, V. (2005). Bioética, sociais. 5. ed. Petrópolis, Vozes, 2002 solidariedade crítica e voluntariado Furtado, J. P. (2001). Um método orgânico. Revista Saúde Pública, 39(3), construtivista para a avaliação em 473-478. saúde. Ciência e Saúde Coletiva, 6(1), Selli, L. & Garrafa, V. (2006). 165-181. Solidariedade crítica e voluntariado Minayo, M. C. S. (2005). Mudança: orgânico: outra possibilidade de conceito-chave para intervenções intervenção societária. História, sociais e para avaliação de programas. Ciências, Saúde, 13(2), 239-251. In M. C. S. Minayo; S. G. A.; & E. R. Selli, L., Garrafa, V. & Junges, J. R. Souza (Orgs.). Avaliação por (2008). Beneficiários do trabalho Triangulação de Métodos: abordagem voluntário: uma leitura a partir da de programas sociais. (pp. 53-70). Rio bioética. Revista Saúde Pública. 42(6), de Janeiro: Fiocruz. 1085-1089. Nascimento, A. R. A., & Menandro, P. R. Uchimura, K.Y. & Bosi, M.L.M. (2002). M. (2006). Análise lexical e análise de Qualidade e subjetividade na avaliação conteúdo: uma proposta de utilização de programas e serviços em saúde. conjugada. Estudos e Pesquisas em Caderno Saúde Pública, 18(6), 1561- Psicologia, 6(2), 72-88. 1569. PBCM. (2007). Projeto Político Worthen, R. B., Sanders, F. L. J., Pedagógico – Coordenação Acadêmica, Fitzpatrick. (2004). Avaliação de Rio de Janeiro. programas: concepções e práticas. São Penna Firme, T. (2005). Os Avanços da Paulo. Editora Gente. avaliação no século XXI. Disponível Yin, R. K. (1989). Case Study Research: em: Design and Methods. New York: Sage www.cenpec.org.br/modules/editor/arq Publications Inc. uivos/c8a0633f-4d01-eae6.pdf, acessado em 02 de março de 2009. Posavac, E.J., Carey, R.G. (1997). Program Evaluation: methods and case Recebido em Setembro de 2009 studies. New Jersey: Prentice-Hall. Aceito em Novembro de 2009 Upper Saddle River. Rossi, P. H., & Freeman, H. E. (1993). * [email protected] Evaluation: A Systematic Approach. Sage Publications, Newbury Park, CA.

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A influência da guarda exclusiva e compartilhada no relacionamento entre pais e filhos

The influence of the exclusive custody and shared custody on the relationship between parents and children.

Diuvani Tomazoni Alexandre I Mauro Luís Vieira II,*

RESUMO O objetivo deste estudo foi investigar se o tipo de guarda influencia no relacionamento entre pais/mães e filhos após o divórcio. Os dados foram coletados através de um questionário contendo questões fechadas com 48 homens e 49 mulheres (todos divorciados, mas sem vinculação entre eles). Dos participantes, 22 homens e 15 mulheres obtêm a guarda compartilhada e em 26 homens e 34 mulheres a atribuição da guarda é exclusiva da mãe. Os resultados revelaram não haver diferenças significativas entre o grupo de guarda exclusiva e compartilhada, indicando que a guarda compartilhada parece nem sempre ser uma medida facilitadora para o desempenho parental. Conclui-se, que, tanto na guarda compartilhada quanto na exclusiva, se a separação for harmoniosa e houver cooperação entre os ex-cônjuges, será possível estabelecer o pleno exercício dos cuidados parentais.

Palavras-chave: divórcio, guarda, cuidados parentais

ABSTRACT The aim of this study was to investigate if the kind of the parental custody has influence on the relationship between parents and children after the divorce. The data was collected through a questionnaire with 48 men and 49 women (all of them divorced, but with no relation between anyone). From these participants, 22 men and 15 women have a shared custody and the exclusive custody with the mother is imputed to 34 women and 26 men. The results revealed that there’s no significant differences between the group of exclusive care and shared care indicating that the shared custody is not always a facilitating measure for the parental. We conclude that, even in the shared custody as in the exclusive custody, if the divorce is harmonious and if there is cooperation between the ex - couple, will be possible to establish a complete practice of parenting.

Key words: divorce, parental custody, parental care

______I Instituto Cenecista Fayal de Ensino Superior e Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. II Departamento de Psicologia e Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.

A família é uma instituição social a denominada família monoparental1. No que vem se transformando ao longo dos anos, revelando novas formas de 1 Uma família é definida como monoparental adaptação. Dentre os fatores que têm quando a pessoa considerada (homem ou mulher) contribuído para a transformação da encontra-se sem cônjuge, ou companheiro, e vive com uma ou várias crianças. Nos países da Europa família, destaca-se o divórcio, originando é considerada essa mesma definição para os casais

Guarda exclusiva e compartilhada 52 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 52-65 | julho-dezembro de 2009

Brasil, o total de divórcios cresceu 52% importante, porém, deixar os filhos fora nos últimos dez anos. Segundo o Instituto do conflito conjugal e lembrar que o Brasileiro de Geografia e Estatística lugar da criança precisa ser assegurado, (2005), a duração média dos casamentos pois o casal parental continua a existir, é de 11,5 anos Dessa maneira, os pais independente da separação. Em Fères- que se divorciam e seus filhos fazem Carneiro (1998) encontra-se uma ampla parte de uma população que está se argumentação sobre a importância do ampliando rapidamente. Alguns casal parental continuar com suas psicólogos, assistentes sociais e juízes funções de proteger, de cuidar e de sustentam a idéia de que o divórcio prover as necessidades materiais e separa marido e mulher e não anula os afetivas dos filhos. A referida autora laços que unem pais e filhos. No entanto, afirma que a relação que se estabelece o divórcio provoca mudanças na entre os pais e do discernimento destes estrutura familiar básica e na maneira em relação à função conjugal da função pela qual cada progenitor se relaciona parental são fundamentais para que a com os filhos (Carter & McGoldrick, criança consiga lidar com a crise que a 2001). separação provoca. Dessa maneira, os Em relação ao divórcio, pais conseguem transmitir aos filhos a Wallerstein e Blakeslee (1991) revelam certeza de que “as funções parentais de que a experiência é diferente para pais e amor e cuidados serão sempre mantidas” filhos. As autoras enfatizam com base em (p.387). um estudo longitudinal com homens, As pesquisas na década de 70 mulheres e filhos dez anos depois do chamavam a atenção para os efeitos divórcio, que as crianças perdem algo traumatizantes do divórcio sobre as fundamental para seu desenvolvimento crianças, uma vez que demonstravam que físico, psicológico e emocional – a filhos de pais separados apresentavam “estrutura familiar”. Quaisquer que sejam mais problemas emocionais, baixa os problemas, os filhos sentem a família autoestima, depressão, ansiedade, menor como a “entidade” que lhes fornece apoio rendimento escolar que os filhos de pais e proteção e, com o divórcio, ocorre o de famílias nucleares / intactas rompimento dessa estrutura, acarretando (Hetherington, 1989). Após esses baixa autoestima, menor rendimento estudos, surgiram outros com conclusões escolar e problemas emocionais nas contrárias. Jablonski (1998) e crianças. Maldonado (2000) sugerem que nem Várias autoras (Fères-Carneiro, sempre o divórcio é traumático e 1998; Carter & McGoldrick, 2001; discutem que filhos de pais separados Dantas, 2003; Cerveny, 2004; Schabbel, podem ser seguros, ter autoestima 2005) têm considerado que o divórcio é o elevada, bom desempenho escolar e o maior rompimento no processo de ciclo tempo que passam com os pais familiar e causa inúmeras mudanças para separados, por ser menor, pode ser maior todos os membros da família. É em qualidade. Corroborando com esse ponto de vista, Akel (2008) reforça a idéia de que que resultam de uma união livre e dos casais filhos de pais divorciados serão bem casados legalmente que depois venham a se ajustados e competentes se o casal separar, formando uma nova família (Leite, 1997; Akel, 2008). conseguir conter a demanda de conflitos, e o genitor, que detiver a guarda das

Alexandre, D. T. & Vieira M. L. 53 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 52-65 | julho-dezembro de 2009 crianças, for capaz de oferecer um encontram, após o divórcio, a ambiente positivo, permitindo ao genitor, possibilidade de desenvolver um sem a guarda dos filhos, se relacionar e relacionamento mais próximo com seus conviver com eles, uma vez que o fim da filhos, pois supõe que não é o divórcio conjugalidade não pode estabelecer o fim que afasta pais e filhos, mas o fato de os da parentalidade. filhos não residirem mais com seus pais. Vale ressaltar que, na década de Pesquisando acerca do exercício da 70, o rompimento dos vínculos conjugais paternidade após a separação, Dantas não era frequente, causando perplexidade (2003) revela que aumenta o número de diante do fato e tornando as crianças alvo pais separados que pedem a guarda dos de preconceito de pessoas altamente filhos na justiça, uma vez que pretendem conservadoras, desencadeando problemas manter o vínculo afetivo com as crianças. nas “relações paterno-filiais”. King e Heard (1999) discutem Atualmente, o divórcio é uma constante esse problema, afirmando que, se os pais social e cabe aos pais assegurar a permanecerem na vida dos filhos após o continuidade dos cuidados existentes divórcio, poderão impor limites e antes da ruptura conjugal, a fim de tornar supervisionar o desenvolvimento social, seus filhos aptos a conviver em cognitivo e emocional dos filhos, sociedade, de forma saudável, dividindo com as mães as inúmeras harmoniosa e feliz (Akel, 2008). Sendo responsabilidades que dizem respeito aos assim, a guarda dos filhos deve ser cuidados parentais. Os autores salientam, estabelecida de maneira que “os ainda, que, se houver um bom interesses dos menores sejam da melhor relacionamento entre os ex-cônjuges, isso maneira atendidos” e os pais possam proporcionará bem-estar aos filhos e exercer em conjunto o poder familiar, contribuirá para uma melhor adaptação estando presentes na vida de seus filhos. das crianças à nova situação familiar. Conforme Grisard Filho (1999, p.155) Nesse sentido, havendo a separação do “estabelecida a cooperação entre os casal, surgiu a necessidade de se genitores após a dissolução do vínculo encontrar uma maneira que oportunizasse conjugal, cria-se uma esfera de segurança ambos os pais de exercerem a autoridade e proteção em torno da prole, que só tem parental e participarem das decisões a contribuir para seu saudável importantes na vida de seus filhos, desenvolvimento”. mantendo-se a “família biparental” No que diz respeito aos filhos de através da guarda compartilhada (Akel, pais divorciados, Souza (2000) 2008). argumenta que a saúde mental das De acordo com a autora acima, crianças está associada ao bem-estar dos conceituar devidamente o vocábulo pais e à qualidade do relacionamento “guarda” não é tarefa fácil. Tal vocábulo entre ambos. Dessa maneira, em famílias sugere o verbo “guardar”, “tomar posse”, divorciadas ou intactas, se os filhos “manter consigo”. Conforme destacaram crescerem junto aos pais que estão em Pontes de Miranda (1983) e Leiria conflito, poderão vivenciar situações de (2000), guardar significa acolher em casa estresse. Como destacou Dantas (2003) sob vigilância, sustentar, amparar, dar “é melhor para os filhos ver os pais roupas e alimentos, oferecer capacitação separados e bem resolvidos do que educacional, instruir, moralizar e, se casados, e em eterno conflito” (p. 36). A necessário, oferecer recursos médicos e autora ressaltou ainda que muitos pais terapêuticos.

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Quando se fala em guarda fenômeno pode prejudicar a relação entre destacam-se três modelos: guarda pais e filhos, inibindo a capacidade dos exclusiva, guarda alternada, guarda pais para desempenhar com competência compartilhada e nidação ou aninhamento. suas funções de cuidado. O autor sugere O presente estudo examina e compara que o divórcio provoca um aumento da apenas dois modelos de guarda. A guarda intensidade dos sentimentos negativos, exclusiva, dividida ou única que concede afetando a relação afetiva. Também a autoridade parental a apenas um dos comenta que a reciprocidade da relação genitores (na maioria das vezes, a diminui e o equilíbrio de poder torna-se custódia dos filhos fica sob difícil porque os filhos não obedecem aos responsabilidade da mãe), ficando o pais. outro em papel secundário. E a guarda O divórcio culmina em uma compartilhada, ou conjunta, originária da reorganização da composição familiar, Inglaterra, na década de sessenta. Tal muitas vezes, de caráter singular, modelo estendeu-se ao Canadá e à formando famílias monoparentais, e as França. Nos Estados Unidos é mudanças se expressam também nos amplamente discutida, em decorrência do papéis desempenhados pelos seus aumento de pais envolvidos nos cuidados membros no seio familiar (Grzybowski, com os filhos (Ake, 2008). No Brasil, em 2002). Após o divórcio, os filhos ficam, 13 de junho de 2008 foi publicada a Lei na maioria das vezes, sob a guarda da n. 11.698, que dá nova redação aos arts. mãe, e o pai, em muitos casos, perde o 1.583 e 1.584 do Código Civil, contato diário com as crianças. Dessa instituindo e disciplinando a guarda forma, a mulher, após o rompimento compartilhada. Tal guarda já era aplicada conjugal, permanece com as crianças, em decisões judiciais, embora não assume a responsabilidade pela casa, pela estivesse prevista em instrumentos educação dos filhos e demora mais tempo jurídicos para recasar-se do que o homem (Dantas, O referencial teórico que embasa 2003). esta pesquisa é a Teoria Bioecológica do Cabe destacar que dois enfoques Desenvolvimento Humano surgem bem delimitados quando o casal (Bronfenbrenner, 1986, 1988, 1993, resolve se divorciar. De um lado, é 1996). A abordagem ecológica traz uma necessária a intermediação da lei para contribuição importante para este estudo, normatizar e regular as relações uma vez que compreende a família como conjugais e parentais, visando a um contexto privilegiado de estabelecer acordos relacionados às desenvolvimento, que se caracteriza questões de guarda, pensão alimentícia, pelas trocas constantes com seus visitação e outras responsabilidades junto subsistemas intrafamiliares (interação aos filhos (Duarte, 2006). Do outro lado, pais e filhos) e extrafamiliares (sociedade leva-se em consideração a disposição que na qual está inserida). A família, segundo o casal parental deve ter ao diálogo, à o modelo bioecológico, é uma unidade flexibilidade, à predisponibilidade para funcional na qual as relações devem ser ceder quando necessário, para que os recíprocas, estáveis, diretas e com filhos cresçam em um clima de equilíbrio de poder na interação entre os compreensão e cooperação, condições membros familiares. necessárias para o desenvolvimento Em relação ao divórcio, emocional, físico e psicológico das Bronfenbrenner (1996) comenta que tal crianças (Motta, 2000).

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Embora haja um crescente processo de ajustamento pós-divórcio interesse dos pesquisadores para ocorre em estágios, num período de três a investigar os novos modelos de cinco anos. configuração familiar e sua repercussão A idade dos participantes variou no desenvolvimento infantil, a literatura entre 23 e 47 anos (média de 34,21 anos), brasileira em Psicologia carece de um dentre os quais 13% possuíam ensino estudo que investigue sobre o médio incompleto, 30% ensino médio relacionamento de pais e filhos em completo, 25% curso superior famílias divorciadas com diferentes tipos incompleto, 8% curso superior completo de guarda, e que reúna dados com a e 21% eram pós-graduados; de classe intenção de contribuir com os diversos social entre baixa e média. Quanto ao aspectos da relação parental. É relevante número total de filhos, 60% possuem 1 que se conheça, por exemplo, se o filho, 26% têm 2 filhos, 9%, 3 filhos e divórcio prejudica o desempenho dos 2% têm 4 filhos, cuja faixa etária variou cuidados parentais e se a guarda de 3 a 26 anos. Mas as questões sobre compartilhada favorece a relação relação afetiva e cuidados parentais genitores – crianças e contribui para a focaram nos filhos de 3 a 10 anos. manutenção do vínculo afetivo e o Quanto ao tempo de casados, variou engajamento no cuidado dos filhos. entre 1 e 24 anos (média de 8, 26 anos) e Partindo dessas considerações e o tempo de divórcio houve variação de 3 tendo como hipótese que, à primeira a 10 anos (média de 4,38 anos). vista, a guarda compartilhada parece ser a solução mais adequada para os pais Instrumento divorciados, uma vez que reforça a necessidade de garantir o melhor Os dados foram coletados através interesse da criança e a igualdade entre de questionário, com questões fechadas, os pais na responsabilização dos filhos, o cujo roteiro foi desenvolvido com base presente artigo tem como objetivo em um estudo de caso sobre os efeitos do investigar se o tipo de guarda influencia tipo de guarda na dinâmica da criança o relacionamento entre pais divorciados e (Silva, 2003). Os temas incluídos no seus filhos. roteiro da entrevista foram estruturados em dois grupos temáticos. O primeiro grupo envolve aspectos relacionados ao MÉTODO divórcio e as perguntas referiam-se ao tempo em que o participante permaneceu Participantes casado e há quanto tempo está divorciado, sobre quem iniciou a Os participantes deste estudo separação e qual tipo de separação foram 48 homens divorciados e 49 (litigiosa ou consensual). mulheres divorciadas, residentes em uma O segundo grupo apresenta cidade do litoral catarinense. Dos aspectos sobre o relacionamento com os participantes, 22 homens e 15 mulheres filhos antes e após o divórcio. As obtêm a guarda compartilhada e em 26 perguntas referiam-se ao local em que o homens e 34 mulheres a atribuição da participante, que não reside com o(s) guarda é exclusiva da mãe. Fixou-se em filho(s), encontra-o(s) em dia de visita, a 3 anos o limite mínimo de divórcio, pois frequência e o tempo que permanece com segundo Carter e MacGoldrick (2001), o o(s) filho(s) neste período.

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Foram incluídas também os grupos de guarda exclusiva e guarda perguntas sobre a relação afetiva que pai compartilhada (grupos independentes). e mãe mantinham com o(s) filho(s) antes Para comparar as variáveis anterior e e após o divórcio e a avaliação sobre a posterior ao divórcio foi utilizado o Test participação nos cuidados em relação à Wilcoxon (Z). Quando a análise envolvia prole antes e após se divorciar. Para associações entre variáveis nominais, foi avaliar os cuidados parentais, foram utilizado o teste Qui-quadrado. utilizadas duas questões escalares, na qual os pais deveriam avaliar sua participação nos cuidados antes e após o RESULTADOS divórcio conforme uma escala que ia de 1 (“pouca participação”) a 5 (“muita Os resultados foram agrupados participação”). Os pais também em três categorias visando facilitar sua responderam a duas questões idênticas apresentação: a) divórcio e tipo de referentes aos compromissos assumidos guarda; b) comprometimento parental com a criança antes e após o divórcio. após o divórcio; c) relação afetiva e cuidados parentais antes e após o Procedimentos divórcio. Em todas essas categorias, quando possível, foram realizadas Após o projeto ter sido aprovado comparações entre os tipos de guarda. pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos (206/07), iniciou-se a Divórcio e Tipo de Guarda coleta de dados. Os participantes foram recrutados por meio de escolas Com relação ao tempo de casado, particulares e universidade. Também foi a média geral foi de 8,26 anos (dp = utilizada a técnica de composição 4,75). O casamento dos que vieram a se amostral “bola de neve” (snow ball divorciar durou no mínimo 1 ano e no sampling) que, segundo Salganik e máximo 24 anos. Verificou-se diferença Heckathorn (2004), consiste em localizar significativa entre casais que obtinham pessoas mediante indicação de guarda exclusiva e compartilhada no que conhecidos que, gradualmente, indicam diz respeito ao tempo em que os ex- outras pessoas que se ajustam aos cônjuges permaneceram casados. Casais critérios. Todos os participantes que optaram pela guarda exclusiva assinaram o Termo de Consentimento permaneceram casados por mais tempo Livre e Informado e as entrevistas foram (U = 840,5; p<0,05). Quanto ao tempo de realizadas individualmente, em horário e divórcio, este variou entre 3 anos, no local previamente agendados, através de mínimo e 10 anos, no máximo (M= 4,34; contato telefônico. dp= 1,73; m= 3). No item “quem iniciou a Análise dos dados separação, 51% das respostas afirmativas foram por parte dos homens, e 46% por Foram realizadas estatísticas parte das mulheres. Não houve descritivas básicas para avaliar médias e associação significativa entre as variáveis frequências. Para análise de inferência quem iniciou a separação e tipo de dos dados foram utilizados testes não guarda. Em relação ao tipo de separação paramétricos. O Test Mann Whitney (U) judicial, a maioria dos participantes foi utilizado para comparar médias entre (90%) respondeu que optou por

Alexandre, D. T. & Vieira M. L. 57 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 52-65 | julho-dezembro de 2009 separação consensual e 10% optaram por Nas questões referentes aos separação litigiosa. Quando questionados compromissos assumidos com a criança, sobre “quem comunicou ao(s) filho(s) a atividade mais realizada pelos pais, sobre o divórcio”, 61% responderam que envolvendo o(s) filho(s) antes do foi a mãe, 24% responderam que foi o divórcio foi “brincar com as crianças” pai e 15% responderam que ambos (92%), seguida de “passear com o(s) comunicaram. O teste Qui - quadrado filho(s)” (90%). “Levar o(s) filho(s) ao identificou associação significativa entre médico” (88%), “levar e buscar na escola quem comunicou sobre o divórcio e o e auxiliar nos deveres escolares” (69%) e tipo de guarda estabelecido (X2= 10,37, “ir às reuniões escolares” (66%) também p<0,01). Essa associação indicou que as foram atividades mencionadas pelos pais. mães do grupo de guarda exclusiva A respeito das atividades que comunicaram mais sobre o divórcio do continuavam realizando após o divórcio, que as mães do grupo de guarda 84% responderam que levam os filhos compartilhada. Neste último grupo, a para passear. Em relação a brincar, 77% comunicação sobre o divórcio se dividiu disseram que continuam brincando com de forma mais homogênea entre pais (n= seu(s) filho(s) e 71% afirmaram que 13) e mães (n=15). acompanham seu(s) filho(s) ao médico quando necessário. Dos entrevistados, Comprometimento Parental Após o 53% responderam que continuam Divórcio participando das reuniões escolares, Os resultados indicaram que, do porém, quando questionados sobre “levar total de ocorrências, 36% dos e buscar na escola” e “auxiliar nos participantes afirmaram que encontrava deveres escolares” apenas 51% o(s) filho(s) na casa do ex-cônjuge, responderam que desempenham estas 29,5% disseram encontrar o(s) filho(s) na atividades, mesmo estando divorciados. casa dos avós, 15,5% responderam que O número total de atividades encontravam o (s) filho(s) no colégio e antes e após o divórcio foi comparado na apenas 1,5% declarou encontrar o(s) filho amostra geral e por grupo de guarda. No (s) no parque / praça. O restante (17,5%) geral, a diferença entre as médias foi disse que encontra o(s) filho(s) em outros estatisticamente significativa (Z = 4, 252, lugares, como por exemplo, shopping e p <0,01), revelando que a quantidade de casa de amigos. atividades realizadas pelos pais e seu(s) Quanto ao item “frequência de filho(s) antes do divórcio era maior do visitas ao(s) filho(s)” somente os homens que após o divórcio. As diferenças entre responderam (n= 43), uma vez que todas os grupos de guarda não foram as mulheres entrevistadas residem com estatisticamente significativas, mostrando seus filhos. A maioria dos homens (65%) que o tipo de guarda não interferiu na respondeu que realiza a visita quantidade de atividades realizadas nem semanalmente, apenas 16,5% dos antes, nem após o divórcio. participantes disseram que visitam o(s) filho(s) quinzenalmente e 18,5% Relação Afetiva e Cuidados Parentais responderam que a visita ocorre Antes e Após o Divórcio mensalmente. A associação desta variável com o tipo de guarda não foi Em relação ao aspecto afetivo, na estatisticamente significativa. amostra geral, a média antes do divórcio foi de 4,48 (dp= 0,9; mediana= 5; mín=

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1; máx= 5), e, após o divórcio, foi de essas médias (Z= 3,282; p<0,01), 4,39 (dp= 1,09; mediana = 5; mín= 1; demonstrando que, no geral, a máx= 5), demonstrando que os pais participação dos pais nos cuidados era afirmaram estabelecer uma relação maior antes do divórcio do que depois. bastante afetiva com os filhos tanto antes Por fim, foram também realizadas quando depois do divórcio. O teste comparações entre as médias de homens Wilcoxon demonstrou não haver e mulheres por tipo de guarda, referente diferenças significativas entre essas duas tanto aos aspectos afetivos da relação médias. Em relação à participação nos com os filhos, quanto à participação nos cuidados, na amostra geral, a média antes cuidados. Esses resultados estão expostos do divórcio foi de 4,56 (dp= 0,6; mediana nas tabelas 1 e 2. = 5; mín= 3; máx= 5), e após foi de 4,10 (dp= 1,2; ; mediana = 5; min= 1; máx= 5), médias que evidenciam alta participação nos cuidados relatada pelos pais. O teste Wilcoxon, no entanto, revelou diferenças significativas entre

Relação pais/filhos Homens Mulheres U (Média do Rank) (Média do Rank) Relação Afetiva Relação afetiva antes 17,59 21,7 134 Relação afetiva depois 15,25 24,5 82,5 * Participação nos cuidados Participação antes 16,66 22,43 113,5 Participação depois 14,86 25,07 74 *

Tabela 1: Comparações entre homens e mulheres do grupo de guarda compartilhada sobre a relação entre pais e filhos antes e após o divórcio. (*p < 0,05).

Na Tabela 1, os resultados apresentados divórcio. O teste evidenciou, contudo, demonstram que não houve diferença diferenças significativas entre as médias significativa na comparação entre após o divórcio, demonstrando que as homens e mulheres do grupo de guarda mulheres afirmam ser mais afetivas com compartilhada, no que diz respeito à os filhos e participar mais dos cuidados relação afetiva entre pais e filhos e à do que os homens. participação nos cuidados antes do

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Relação pais/filhos Homens Mulheres U (Média do Rank) (Média do Rank) Relação Afetiva Relação afetiva antes 31,9 29,43 405,5 Relação afetiva depois 24,87 34,81 295,5 * Participação nos cuidados Participação antes 31,06 30,07 427,5 Participação depois 19,85 38,65 165 *

Tabela 2: Comparações entre homens e mulheres do grupo de guarda exclusiva sobre a relação entre pais e filhos antes e após o divórcio (* p < 0,05).

No que se refere à relação afetiva dois grupos de guarda não se percebem e participação nos cuidados antes e após diferenças significativas. o divórcio no grupo de guarda exclusiva, Os achados deste estudo também os resultados descritos na Tabela 2 não corroboram as sugestões de que a mostram que não houve diferença entre guarda compartilhada é capaz de manter homens e mulheres antes do divórcio. a relação entre pais e filhos contínua e Porém, novamente verificou-se que as estável, favorecendo o vínculo afetivo e a mulheres que obtêm guarda exclusiva prática dos cuidados parentais após o afirmam ser mais afetivas e participar divórcio (Dantas, 2003; Silva, 2005; mais dos cuidados em relação ao(s) Akel, 2008). Pesquisas posteriores filho(s) do que os homens após do poderão ajudar a discriminar se, a partir divórcio. da nova Lei sobre a guarda Cabe ressaltar que, embora a compartilhada, os ex-cônjuges que variável gênero tenha exercido efeito optarem pela custódia conjunta sobre a relação afetiva e sobre a conseguirão maximizar sua relação com participação nos cuidados, a variável tipo os filhos e ter um papel positivo no seu de guarda não influenciou nessas desenvolvimento. dimensões, nem antes, nem depois do A literatura indica que é crescente divórcio. Ou seja, a guarda o número de mulheres que manifestam o compartilhada não contribui para que os desejo de romper com o casamento, pais fossem mais afetivos e participassem enquanto os homens desejam permanecer mais dos cuidados após o divórcio. casados (Wallerstein & Kelly, 1998; Maldonado, 2000; Carter & McGoldrick, 2001; Fères-Carneiro, 2003). Mas, no DISCUSSÃO discurso dos participantes desta pesquisa, os homens iniciaram a separação. Os resultados do presente estudo Independentemente de quem teve a sugerem que nem sempre a guarda iniciativa, ambos os cônjuges devem compartilhada é uma medida facilitadora compreender o divórcio como uma para o desempenho parental. solução séria para seus problemas Comparando o relacionamento que os conjugais, e saber conduzi-lo para evitar pais mantêm com seus filhos entre os

Guarda exclusiva e compartilhada 60 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 52-65 | julho-dezembro de 2009 situações ainda mais difíceis e visitas ocorrem semanalmente, alguns prejudiciais aos envolvidos. visitam quinzenalmente e, há aqueles que Outra indicação que os dados somente uma vez por mês. Isso reafirma fornecem é a de que predominou a as considerações feitas por Souza (2003) separação consensual entre os e Strohschein (2007). Os autores participantes. Sendo assim, embora argumentam que a guarda compartilhada existam divergências entre os ex- só é viável se o genitor não residente cônjuges, esta opção é a melhor maneira cumprir as determinações do juiz e de encerrar um casamento, conforme exercer sua paternidade com afirma Souza (2003). Para o autor, desprendimento e amor. Sobre o embora o litígio não seja um fator intervalo de visitas na guarda exclusiva, impeditivo da guarda compartilhada, na Silva (2003) relata que visitas quinzenais prática dificulta bastante que a custódia e/ou mensais implicam muito tempo de dos filhos seja conjunta. Do contrário, ausência para os filhos. Para o autor, a quando há consenso entre os pais, a ausência do progenitor não residente guarda compartilhada é sempre possível. pode ser percebida pela criança como Como se pôde constatar na abandono e provocar medo, insegurança apresentação dos resultados, geralmente ou desapego. Nesse sentido, a guarda é a mãe quem comunica aos filhos o compartilhada deveria diminuir o tempo divórcio, principalmente quando ela de ausência dos pais, apesar de isso não obtém a guarda exclusiva. Tal resultado é ter se confirmado neste estudo. semelhante às investigações realizadas Em um estudo citado por Lansky por Ducibella (1995). O autor revisou (2004), quando o pai não tem a guarda do estudos sobre o tema e concluiu que cabe filho, ele se afasta porque sente à mãe, sozinha, conversar com os filhos a desconforto de ter um “tempo de visita”. respeito do divórcio, embora a autora A autora acrescenta que algumas alerte para a escassez de estudos sobre mulheres muitas vezes ficam satisfeitas como os pais explicam aos filhos a quando seus filhos não vêem muito o pai, separação. pois não terão um modelo significativo Os participantes que de comportamento. Ainda segundo essa compartilham a guarda, por sua vez, autora, pais que permanecem ligados a responderam que ambos, pais e mães seus filhos durante o primeiro ano de um comunicaram aos filhos que iriam se divórcio continuam envolvidos. divorciar. Nessa direção, Dolto (1989), Existe, porém, uma discordância Wallerstein e Kelly (1998) e Stahl (2003) a esse critério na literatura (Stahl, 2003; concordam que é importante que o casal Yaben, 2006). Os autores enfatizam, em converse primeiro sobre como abordar o seus estudos com famílias divorciadas, assunto com as crianças. Não é algo que que os relacionamentos não são se faça impulsivamente. Depois, devem construídos pela quantidade, mas sim juntos comunicar aos filhos, assumindo pela qualidade de tempo vivido entre pais cada qual sua responsabilidade nesse separados e seus filhos. Comentam sobre processo. pais que vêem os filhos apenas nas férias Este estudo revela, ainda, que não de verão e que têm uma relação mais foram encontradas diferenças saudável do que outros que vêem os significativas entre o tipo de guarda e a filhos semanalmente. frequência com que os homens visitam Ainda sobre as visitas, constatou- seus filhos. A maioria respondeu que as se também que as respostas que

Alexandre, D. T. & Vieira M. L. 61 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 52-65 | julho-dezembro de 2009 obtiveram com maior frequência foram compreender a participação dos pais na que os entrevistados encontram seus vida dos filhos (Silva, 2003). filhos na casa de suas ex- esposas ou na Em relação à afetividade, casa dos avós maternos. Um dos independente do tipo de guarda, os argumentos utilizados para justificar o participantes responderam que o afeto encontro na casa da mãe da criança é que que sentem pelos filhos é igual ao que o divórcio é consensual e os ex- cônjuges sentiam antes do divórcio. Porém, continuam “amigos”. Nesse ponto é quando se comparou o grupo de mulheres válido ressaltar que, se os pais se e homens, as mulheres mostraram-se separam mas conseguem manter um bom mais afetivas com os filhos após o contato, os filhos ficam mais tranquilos e divórcio. Tais dados não confirmam o continuam próximos do pai que não que Souza (1994), Lamb (1997) e reside com eles (Maldonado, 2000). No Hetherington e Stanley-Hagan (1999) que se refere a encontrar o filho na casa comentam sobre um número expressivo dos avós maternos, é a mãe quem fica de pais/homens que respondem residindo com as crianças após a prontamente às necessidades dos filhos, separação e, possivelmente, isso facilita criando um vínculo afetivo com os mais o contato de seus filhos com os pais mesmos, aumentando o sentimento de dela (Araújo & Dias, 2002). segurança, a ponto de os filhos Dados relativos aos recorrerem a eles em situações de compromissos assumidos com as estresse, tanto quanto recorrem às suas crianças após o divórcio revelam que a mães. característica dos encontros, em sua Por último, verificou-se maioria, estão voltados ao lazer; novamente que o tipo de guarda não resultado também identificado na apontou diferença significativa com pesquisa desenvolvida por Dantas relação aos cuidados parentais. Contudo, (2003). Outros resultados obtidos a variável gênero exerceu efeito sobre a também são similares aos da autora prática de cuidados após o divórcio. Os citada, como por exemplo, os pais – resultados apontam que as mulheres relacionados neste estudo - reconhecem cuidam mais dos filhos depois que se que brincam e passeiam mais com os divorciam do que os homens. Dantas filhos, porém diminuem a rotina de (2003) afirma que, se os pais cooperam cuidados e de educação das crianças. nos cuidados infantis, os filhos, Cabe ressaltar que o compromisso geralmente, apresentam um ajuste assumido com o entretenimento dos positivo. A autora concorda que a filhos já era maior antes do divórcio, separação provoca uma sobrecarga à quando comparado aos cuidados mãe, que não pode dividir com o ex- relacionados à saúde e educação. cônjuge responsabilidades ligadas ao Ressalta-se, também, que, apesar de os cuidado e à educação das crianças. pais assumirem mais compromissos com Para Bronfenbrenner (1996), cabe os filhos enquanto casados, o tipo de aos pais, em algumas situações, orientar guarda não influenciou o relacionamento seus filhos e impor limites, fazendo valer entre eles após o divórcio. O sua autoridade, determinando uma comprometimento de cada progenitor diferenciação de hierarquia, usufruindo o com as crianças já foi destacado na poder que lhes é devido, visando ao literatura como um fator importante para desenvolvimento saudável de seus filhos. Nestas famílias divorciadas, constatou-se

Guarda exclusiva e compartilhada 62 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 52-65 | julho-dezembro de 2009 que as mães centralizam o poder sobre o tema. Nesse sentido, seria enquanto os pais se tornam cada vez mais importante considerar que esta pesquisa ausentes. não é probabilística, por isso faz-se necessário investigar se, uma vez estabelecida judicialmente a guarda CONSIDERAÇÕES FINAIS compartilhada, ela será salutarmente aplicada. Como casais, cuja separação foi Na medida em que não foram litigiosa, conseguem resolver os conflitos encontradas diferenças significativas que levaram ao litígio e compartilhar as entre os dois tipos de guarda, pode-se tarefas, os cuidados e os afetos com os considerar que é a convivência dos ex- filhos? Como os filhos percebem a cônjuges que permitirá aos homens/pais “figura do pai” e a “figura da mãe” nos não residentes um contato mais próximo diferentes tipos de guarda? com os filhos, favorecendo o Assim, discutir o relacionamento relacionamento entre eles. Entretanto, entre pais e filhos em situação de quando se comparou homens e mulheres divórcio, implica múltiplos conflitos a quanto ao aspecto afetivo e cuidados serem administrados, reflexão sobre a parentais após o divórcio, houve importância de manter-se o “casal contraste, apontando para a relevância do parental” após a separação para que pais gênero como fator diferenciador no e mães possam estabelecer limites e desempenho dos papéis parentais. As oferecer aos filhos um ambiente afetivo e novas configurações familiares na seguro, com o propósito de garantir-lhes sociedade contemporânea brasileira um desenvolvimento saudável. indicam o aumento do número de divórcios e, consequentemente, geram novas relações entre homens e mulheres, REFERÊNCIAS assim como entre estes com seus filhos (Bandeira, Goetz, Vieira & Pontes, Akel, A.C.S. (2008). Guarda 2005). Compartilhada: Um avanço para a Neste estudo, a guarda família. São Paulo: Editora Atlas. compartilhada foi acordada pelo casal ou Araújo, M. R.G.L. & Dias, C. M.de S. por decisão judicial, uma vez que este (2002). Papel dos avós: Apoio sistema de guarda não estava tipificado oferecido aos netos antes e após no ordenamento jurídico brasileiro antes situações de separação / divórcio dos de 13 de junho de 2008. O que a guarda pais. Estudos de Psicologia (Natal), compartilhada suscita, segundo Santiago 7, 91-1001. (2002), é justamente um equilíbrio entre Bandeira, M.S., Goetz, E. R., Vieira, o poder do pai e da mãe, o que não foi M.L. & Pontes, F.A.R. (2005). O observado no discurso dos homens cuidado parental e o papel do pai no entrevistados que compartilham a guarda. contexto familiar. In F.A.R. Pontes, Embora este assunto esteja cada C. M. C. Magalhães, R. S. C. Brito & vez mais em pauta na mídia, pode-se W.L.B. Martin (Orgs.), Temas perceber, a partir dos dados obtidos, que pertinentes a construção da outras pesquisas metodologicamente bem psicologia contemporânea (pp.191- conduzidas, deverão ser realizadas, uma 230). Belém: EDUPs. vez que foi detectado um número Bronfenbrenner, U. (1986). Ecology of inexpressivo de pesquisas nacionais the family as a context for human

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Genealogia de uma comunidade: a trama da trança

Genealogy of community – the tram of the braid

Sonia Bahia I,* Regina Andrade II,**

RESUMO Este artigo discute a sucessão e a transmissão da cultura na Comunidade da Mangueira, buscando entender de que forma se estruturam as relações entre os principais sujeitos implicados nessa ação. Toma como unidade de análise o Centro Cultural Cartola e, pela trama existente, examina as ligações com os responsáveis pela Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. O estudo identifica duas famílias herdeiras do projeto do Samba na Comunidade e verifica como se relacionam para instituir as lideranças do samba naquela comunidade. Termina por identificar a genealogia dessa sucessão a partir de duas mulheres – D. Neuma e D.Zica, reconhecendo como suas herdeiras dão continuidade à ação dessas matriarcas, e aponta uma rivalidade fraterna, estruturadora dessa relação, tal como uma trama trançada, fazendo um movimento helicoidal semelhante ao DNA genético humano.

Palavras-chaves: Genealogia, Comunidade, Liderança, Transmissão Cultural

ABSTRACT This article discusses the succession and the transmission of the culture in the Community of the Mangueira, searching for understanding in which way the relations among the main citizens implied in this action are structured.. It takes as unit of analysis The Cultural Center Cartola, and, for existing plot, examines the link with those responsible for the Scholl of Samba the First Mangueira Station. The study identifies two inheriting families of the project of the Samba in the Community and verifies if they relate to institute the leaderships of Samba in that community. It finishes by identifying the genealogy of this succession from two women – D. Neuma and D. Zica, recognizing as their heiresses have continue the action of these matriarcs, and point to a fraternal rivalry, that gives structure to this relation, as a locked plot, making similar helical movement to human genetic DNA.

Keywords: Genealogy, Community, Leaderships, Transmission of Culture.

______I Universidade Federal da Bahia (Salvador) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro). II Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro).

O presente estudo apresenta eram remontadas faziam o mesmo recortes pontuais de uma pesquisa movimento helicoidal das cadeias do DNA intitulada A genealogia de um lugar, que se organizam em pares, em forma de realizada na Comunidade da Mangueira, escadas que “giram” e formam a chamada no Rio de Janeiro. Guiando-se por dupla hélice. A ordem desses pares perguntas do tipo “Como se dão a sucessão determina como é o funcionamento do ser e a transmissão da herança na comunidade humano. Da mesma forma, a genealogia da Mangueira?” “Como se repassa dessa comunidade são duas hastes cultura?”, deparou-se reconstruindo uma modelares, duas famílias herdeiras que, genealogia. Este termo remete à condição numa dança trançada, elaboram um ritual, de sucessão, à memória reconstruída e uma trama e um argumento de sucessão. O reafirmada. Ao longo do trabalho, foi-se subtítulo deste trabalho revela o apercebendo que as condições sociais que movimento feito pelas famílias para

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reafirmar suas posições e lugares, sentimento de solidariedade de seus ressaltando que é na sustentação entre elas cotidianos. Nesse subconjunto da que se processa a herança. Este trabalho comunidade, a memória e as tradições consiste, portanto, em desvendar a trama familiares constituem a sustentação das como os fios foram trançados para revelar práticas através das quais abrigar o frágil, a condição da liderança. auxiliar o outro e compartilhar o viver Através das informações sobrepujam qualquer dificuldade que se levantadas durante o ano de 2006, buscou- apresente, como afirma um dos membros se identificar o perfil das lideranças da da Escola: [...] aqui ninguém morre por comunidade, no intuito de refletir de que falta de apoio. A comunidade é a máxima; maneira essas lideranças se articulam entre a Mangueira, a religião. 1 si e institucionalizam a herança e Numa análise mais detalhada continuidade dentro da comunidade e em desse cenário, veem-se como alguns que medida constituem formas originais de aspectos ganham sentidos diferenciados subjetivação, assim como traduzem as suas nas duas alas da segmentação. A forma tradições e, ao mesmo tempo, operam como lidam com a sexualidade, com a transformações, visando à manutenção e à religião e com o conhecimento sistemático, sobrevivência de seus grupos. Nesse formal, são exemplos de concepções que sentido, este trabalho propõe identificar as distinguem, além do entrelaçamento e como tais lideranças estabelecem novos da via cruzada, através dos quais a herança acordos culturais que podem significar é transmitida. É possível depreenderem-se, maneiras diferenciadas de sociabilidade, na sucessão, algumas insígnias distintas ajustadas à contemporaneidade. que foram invertidas, embora a casa onde Encontram-se, de imediato, vivem essas famílias, e o Projeto do alguns traços bem marcantes na referida Samba, as unam. comunidade. Nela há duas famílias Nesse sentido, refazer a herdeiras do Projeto do Samba, Genealogia de uma comunidade leva a configurado na Escola Estação Primeira da várias e diversas direções, sejam dos Mangueira. Elas se distinguem nitidamente suportes teóricos, que permitem um pela forma como lidam com suas heranças. enquadre epistemológico de entendimento, Fazem um movimento de cumplicidade e sejam daqueles provenientes da própria dissensão entre si, marcando territórios, ao realidade empírica. Esses caminhos tempo que se complementam nessa tensão contêm atalhos, idas e vindas contínuas e, que se constitui, por isso mesmo, numa portanto, se tornam dialéticos, visto que, estrutura de interação, permitindo-lhes em alguns momentos, expõe-se a teoria moverem-se no mundo. Dessa forma, que revela uma prática e, em outros, sustentam suas relações e permitem a revela-se uma prática que contém uma vinculação de novos atores nesse cenário. questão teórica evidente, porque a A segmentação na estrutura da metodologia utilizada buscou sempre a comunidade é marcada, claramente, de um legitimação das falas dos autores e dos lado, por um projeto estético humanista, sujeitos sociais envolvidos nesse processo. através do qual a arte clássica e barroca ganha um espaço de inserção ímpar no engajamento e superação das 1 vulnerabilidades ali encontradas; de outro Depoimento de Dona Chininha, vice–presidente da Escola de Samba da Mangueira, filha mais velha lado, por um projeto assistencialista de Dona Neuma, matriarca de uma das famílias comunitário, no qual se reflete o contempladas neste estudo.

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Sobre Genealogia e Comunidades alianças, configurando o que denomina de classificação e nominação. Para De Genealogia é uma palavra de Gaulejac (1999), a nominação atribui aos origem grega e abarca uma variedade de sujeitos a sua inscrição em uma linhagem, significados. Para os leigos, tem o sentido podendo conter dois aspectos: aqueles da de conhecimento; para os eruditos, remete ordem de suas singularidades, quando se ao objeto da ciência. A genealogia dedica- trata da definição dos pré-nomes, contendo se ao estudo de famílias, sua origem, sua uma possibilidade de sua originalidade na evolução, descrevendo as gerações em família; e aqueles que expressam as suas cadeia e traçando, sempre que possível, a relações no estatuto da parentalidade, história de vida dos seus membros e dos remetendo, dessa forma, aos papéis de pai, sujeitos a elas pertencentes. mãe, filhos e da consequente prescrição e Carreteiro (2001, p. 121), proscrição sexuais. baseada em Legendre (1985), afirma que, Nesse âmbito específico, [...] a genealogia é o imperativo que podem-se encontrar discussões correlatas fundamenta a ordem social, posto que trazidas por Bourdieu (1997), quando ordena os objetos, que nos identificam, revela as contradições que podem ser tratando de designar, classificar e de dispor encetadas na adjudicação ou aceitação de da questão da identidade. E a filiação é o tais projetos de herança pelos herdeiros e eixo de produção da instituição as consequências que daí são geradas. genealógica e jurídica. No texto Romances familiares A ordem genealógica inscreve o (Freud, 1977), é possível encontrarem-se, sujeito num conjunto de relações no qual com base na teoria freudiana, referências cada um encontra referências e limites, específicas sobre a herança e a trajetória reconhecendo seu lugar na espécie. A dos desejos do sujeito, não só revelando o partir desse lugar, o sujeito pode, ao conjunto de fantasias psíquicas que se mesmo tempo, fazer a identificação ou a engendram a partir do lugar de herdeiro, diferenciação dos demais. mas também revelando uma fonte de limite A técnica da genealogia vem ao próprio autoengendramento do sujeito sendo usada por algumas linhas de de se considerar todo poderoso, posto que pesquisa em Psicologia, permitindo a ordem familiar o insere numa teia de investigar as trajetórias dos sujeitos, relações da qual ele é um dos elementos. buscando identificar os pontos No presente trabalho, tomou-se mobilizadores de suas escolhas, que a genealogia como técnica e como servem de ancoragem para seus projetos de epistemologia, uma vez que a concepção vida. De Gaulejac (1995) utiliza essa de sujeito que subjaz a essa linha teórica metodologia a fim de identificar as aponta que os sujeitos se inscrevem em originalidades dos sujeitos individuais e uma dupla inserção, a saber: coletivos em suas construções, • Inscrição genealógica – O sujeito se considerando que o sujeito é fruto de suas situa em uma cadeia genealógica. Ele é sobredeterminações sociais e de suas portador de um projeto que assegura a injunções psíquicas inconscientes. Da continuidade da linhagem, transmitindo-a a mesma forma, esse teórico afirma que uma geração futura, tornando-se agente de reconstruir ou perceber a genealogia uma historicidade familiar. permite a compreensão do lugar ocupado • Inscrição cidadã – O sujeito é instituído na constituição familiar no sistema de pertencendo a uma sociedade, exercendo ascendentes e descendentes e no sistema de seus direitos e deveres e sendo capaz de A Trama da Trança 68 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 66-80 | julho-dezembro de 2009

intervir na vida da polis. (De Gaulejac, inscritos. A insuficiência de cidadania, 1999, p. 57). reduzida cobertura social, precária Do ponto de vista comunitário, assistência jurídica, fazem surgir um estudar a genealogia permitiu pensar sobre conjunto de comportamentos e ritos esses complexos mecanismos de inscrição respeitados no âmbito da favela. e sobre a eclosão de sentimentos de Complexas hierarquias de poder inspiradas pertencimento a famílias, grupos, na família patriarcal. Os fundadores do coletividades e sociedades, ainda que tais lugar, os pastores e, na atualidade, os inscrições possam se apresentar traficantes constroem códigos de conduta e comprometidas quando o seu respeito severos. reconhecimento é posto à prova. Os estudos sobre comunidades A genealogia, quando têm várias possibilidades de entendimento, compreendida no seio das comunidades, seja porque esse fato social se reporta a um apresenta originalidades que incorporaram espaço de convivência real, seja pelo dados e suportes provenientes da aspecto simbólico que a palavra Antropologia para ampliar a leitura e o comunidade remete aos que a pronunciam cruzamento dos dados dessas heranças. A – referência a um local específico, ou a um teoria estruturalista do antropólogo Levy lugar idealizado, fantasiado como um bom Strauss (1971) esclarece que, em uma lugar. Normalmente, a palavra comunidade comunidade, dada a necessidade de regular é utilizada por moradores de periferias, a relação, os grupos estabelecem, muitas explicitando um sentimento positivo em vezes, um conjunto de rituais equivalentes, relação ao lugar. Por isso desenvolvem que tratam de rivalidades e enfrentamentos relações de vizinhança, denotando um como forma de fortalecimento e de local onde é possível encontrarem-se laços marcação de suas identidades. de solidariedade para a sobrevivência. Para Zaluar (1998), a Vários são os teóricos que se rivalidade, enquanto dado estruturador de dedicam aos estudos das comunidades – relações, pode ser vista em várias Simmel (1849) e Tonniës (1944); Lane e comunidades nacionais e internacionais, Sawaia (1986; 1987) no Brasil; Martin mas no Rio de Janeiro e, posteriormente, Baró (1983) em El Salvador (cf. Freitas em outras cidades brasileiras, nas favelas e Campos, 1996). Parece, contudo, que o em bairros populares, as escolas de samba, sentimento de comunitarismo é o principal os blocos de carnaval e os times de futebol elemento que emerge dessas pesquisas. podem ser entendidos como uma forma Na atualidade, Bauman (2001; dessa representação, expressando a 2003) está se dedicando aos estudos de rivalidade entre eles. Muitas vezes, a várias temáticas contemporâneas, entre apoteose das festas representa a forma de elas o sentimento de comunitarismo que conflito e a sociabilidade, a qual prega a vem ressurgindo na atualidade como uma união, a comensalidade, a mistura e o reação acelerada à “liquefação da vida festejar como antídotos da violência moderna”. A abordagem das questões sempre presentes, mas contida ou comunitárias, entretanto, pode requerer um transcendida pela festa. exame mais aprofundado do que se Para Lessa (2000, p. 298), é depreende como comunidade, uma vez que importante perceber: há certo radicalismo e saudosismo [...] como no território da favela se ensejando uma contradição sobre seus desenvolvem sistemas de relações sociais, propósitos. Para Bauman (2001, p. 195), hierarquias de poder e complexos códigos tal sentimento é [...] uma reação antes e

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acima de tudo ao aspecto da vida sentido profundas com a Escola Estação Primeira como a mais aborrecida e incômoda entre de Mangueira, possuindo laços estreitos suas numerosas consequências penosas – o com a comunidade local e tendo crescente desequilíbrio entre liberdade e representatividade perante seus pares. garantias individuais. E assim, problematiza quais os dilemas A Comunidade da Mangueira humanos que movem o crescente desejo e a fantasia do encontro de uma comunidade A favela da Mangueira, situada idealizada e quais os paradoxos e próxima ao bairro do Maracanã, surge no contradições que tal projeto encerra. Para amálgama de vários contingentes esse teórico, essa busca, por um lado, populacionais. A Mangueira é um visual demonstra um desejo primevo de pertencer fascinante. A frente limitada pela Rua a um grupo de referência, de ter um lar Visconde de Niterói; o lado esquerdo onde se abrigar e se proteger; por outro margeado pela Rua Ana Néri, que termina lado, recoloca a impossibilidade de no Largo do Pedregulho, início da Rua São convivência com os diferentes. Assim, tais Luiz Gonzaga, limite dos fundos; à direita comunidades se tornam tribos e guetos tem-se a Quinta da Boa Vista. com códigos de conduta fechados, alguns Sua história remonta desde afiançados nos velhos sentimentos de 1852, quando se inaugurou o primeiro patriotismo e culturalismo que impedem correio aéreo do Brasil. Como era também uma dinâmica de abrigamento da uma região que produzia muitas solidariedade sonhada. Bauman destaca, frutas,mangas em especial, o senso comum também, que as fronteiras e os limites se tendeu a identificar o morro como sendo o tornam formas de resistência ao Morro das Mangueiras. Este foi um nome aniquilamento que a sociedade líquida e tão forte que, em 1889, ocasião da desabrigada engendrou. As sonhadas inauguração da , se segurança e harmonia permeiam os batizou a estação e sua circunvizinhança discursos mais comoventes de guerras também de Estação Mangueira. Mesmo fratricidas e violentas que se esgueiram em que hoje se trate de um espaço público, cada esquina de cada comunidade, e pertenceu a Francisco de Paula Negreiros cultura, que se fecha em si mesma, em Saião Lobato, o Visconde de Niterói, que o nome dos velhos ideais iluministas da recebera como presente do Imperador natureza humana. A impossibilidade de se Pedro II. Aos poucos, com a República, desenvolverem laços com a civilidade autorizou-se que alguns militares lá universal é cada vez mais evidente, e a construissem seus casebres, e outros coerção continua sendo ainda a única moradores foram instalando os seus possibilidade de manter algum traço de barracões, inclusive vários soldados do união entre os pertencentes de dentro e de nono Regimento de Cavalaria. Em fora das comunidades reais. diferentes épocas sociais, mormente Dessa maneira, as reflexões aquelas em que a imigração nordestina foi aqui feitas não só tomam como referência incentivada, as pessoas foram invadindo e os teóricos estudados, mas, sobretudo, se se apropriando do espaço. ancoram na experiência de campo, na A Mangueira tornou-se, então, escuta dos sujeitos sociais com quem se uma comunidade de gente pobre, interagiu ao longo desta pesquisa. Foi constituída quase que na sua totalidade por feito o percurso de suas histórias de vida. negros, filhos e netos de escravos, Todos esses sujeitos mantêm ligações inteiramente identificada com as

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manifestações culturais e religiosas que porém valoriza a obra de décadas de caracterizavam esse segmento social e trabalho e se orgulha do lugar. Valoriza racial. como especial a coesão vigente na Diversas foram as tentativas de comunidade e, aliás, esta postura é basilar reapropriação do morro por parte de para a construção da identidade da possíveis herdeiros dos reais proprietários, micronação favelada.” mas os governos do Rio de Janeiro foram Por isso, a topografia do lugar resguardando os direitos dos que lá pode, muitas vezes, como no caso do residiam, instituindo políticas públicas no presente estudo, apontar as zonas de sentido da legitimação desses moradores. frequência de um determinado grupo e as Destaque-se aqui a ação da Igreja Católica que são consideradas inapropriadas para que, numa alavancagem notável, deu apoio outros. Essa disposição do campo aponta a tais populações no que tange a auxiliá-las simbolicamente quem é quem. Assim é na busca dos direitos civis, principalmente com o Buraco Quente2, [...] apropria-se os relacionados aos serviços públicos de simbolicamente dos espaços... E na nação água, luz, esgoto e transporte. mangueirense foi construída com orgulho a A Comunidade da Mangueira identidade do “Buraco Quente”. Para eles, se constitui, como as demais comunidades é considerado ponto de inspiração de cariocas, numa zona de convergência de compositores, é lugar de bamba onde a pobreza e exclusão social. Entretanto polícia não se mete. (Lessa, 2000, p. 304). guarda para si mesma e para os cariocas Encontra-se, nos depoimentos uma imagem de ser uma das comunidades coletados, certa reticência em relação a ser mais tradicionais e populares do Rio de frequentador desse espaço; só os mais Janeiro. Isso se deve, em parte, à imagem ousados e destemidos são respeitados e que a Escola de Samba Estação Primeira continuam freqüentando o local. de Mangueira representa, como berço de grandes sambistas e do próprio samba. Quem ouve ou lê sobre a história do Morro da Mangueira e da sua Escola de Samba 2 adentra logo no cenário de segmentação e O buraco quente é um local dentro da Mangueira paradoxo que cercam a existência da cujo nome real é Travessa Saião Lobato. Constitui- se num espaço de passagem para regiões mais comunidade, do ponto de vista da história íngremes no morro, e foi sempre visto contada e do ponto de vista da tradicionalmente como um lugar de encontro de sobrevivência de seus moradores. bambas, designando tanto o lugar de frequência dos Numa comunidade como essa, grandes compositores como dos destemidos do cuja marca é a carência, vários ritos são morro, onde as práticas flutuavam entre espaço para instituídos; a adoção, o compadrio e as criação e espaço para derivação, bebida, bate-papo redes de sustentação ocultas são alguns etc., havendo hoje uma contaminação sobre ser um espaço onde a frequência não é muito recomendada. exemplos. De acordo com Lessa (2000, p. Também é importante que se note que a expressão 303), “é muito forte o conceito de “ser bamba” é derivada de velhas práticas localidade como espaço que privilegia defensivas existentes entre os oriundos de blocos vizinhança, amizade consolidada e laços rivais e que faziam do enfrentamento com a polícia potenciais de parentesco. O morador se uma de suas práticas. Os valentes do morro faziam percebe como um conquistador, peripécias para a Escola poder desfilar. Foi onde se desbravador, alguém que construiu tudo a localizou a primeira sede da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, seu primeiro partir do nada, alguém que se bastou a si barracão. próprio. Tem consciência das carências,

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A consideração dualista da pode observar nas letras dos primeiros favela vem acompanhando sua história, sambas enredos da Escola: Linda demanda desde o século passado, de lugar de existe no samba, a nossa luta sem rancor. desordem e de falta de higiene a lugar de Mangueira, Osvaldo Cruz, Estácio, a amizade leal. Essas considerações sobre o amizade que estreita os laços só por amor. ser favela mudam ao sabor dos ventos (Composição de Saturnino); ou Chega de políticos e sociais, mas vários são os demanda, chega! Com esse time temos que teóricos que afirmam ser [...] um complexo ganhar, somos a Estação Primeira. Salve o coesivo, extremamente forte em todos os Morro da Mangueira! (Composição de níveis: família, associação voluntária e Cartola). vizinhança (Boschi, 1970 in Zaluar, 1998). Justifica-se, assim, o fato de Perlman (1976) chega a afirmar que se encontram versões diferentes sobre que “[...] os favelados, além de estarem o surgimento do samba e da Escola, mas os dotados de forte sentimento de otimismo, principais personagens dessa história – teriam uma vida rica de sentimentos Carlos Cachaça, Cartola, Saturnino, Isnar, associativos, imbuídos de amizade e Pedro Paquetá, Mansur e outros – sempre espírito cooperativo e relativamente livres são citados ainda que em papéis distintos. de violência [...], situação que perdura até Encontra-se, nos relatos obtidos, essa a década de 80” ( p. 136). competição. Mais do que uma disputa Na Comunidade da Mangueira, pessoal entre os compositores, constitui-se há alguns personagens entrelaçados pelos em algo que alimenta a história do samba, vínculos da amizade, do comprometimento pois, segundo consta, eram grandes amigos e da sensibilidade; outros se relacionam a e parceiros. A competição, até hoje, é partir de suas diferenças de linhagem que alimentada e é responsável pela diferença marcam um território, uma descendência, e na herança, determinando uma estrutura na que buscam estabelecer uma origem como composição específica da genealogia da verdadeira, numa hierarquia de poder. comunidade, interferindo na sucessão Com a fundação de sua escola dentro da comunidade. de samba, aparecem as diferenças em sua Em depoimentos colhidos em genealogia. Há, por assim dizer, uma momentos distintos, obtiveram-se duas disputa velada sobre o real fundador do falas que explicitam a diferença hoje movimento do samba. Para alguns foi sentida e que determinam esse cenário na Carlos Cachaça e Saturnino Gonçalves; composição da estrutura dos herdeiros. para outros, quem dignificou essa estrutura Uma das histórias que alimenta o sentido foi Agenor de Castro, o Cartola. da herança é assim narrada por um dos Pode-se afirmar que sempre segmentos da comunidade: houve uma rivalidade atravessando os - “Quem fundou a Mangueira foi meu avô. blocos, os ranchos e as sociedades de Era aniversário de uma tia minha carnaval, tanto assim que, no início da [personagem idosa, mas ainda viva], fundação da Estação Primeira de estava fazendo cinco anos de idade nesse Mangueira como escola de samba, em 28 dia 28 de abril, e o pai dela demorou de de abril de 1928, não houve a adesão de aparecer na festa. Devia estar em alguma toda a comunidade. Essa consolidação só roda de samba” [a informante sorri ao veio a ocorrer no segundo ano de sua contar isso]. A filha indagou: “– Puxa, existência, quando já se pode dizer que a pai! Era meu aniversário e você não Escola representava o morro. Essa disputa apareceu!” No que ele responde: “– Mas, velada sempre se fez presente, como se filha, é porque eu estava fundando uma

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escola de samba para te dar de conhecida também pelo particular método presente”.3 de alfabetização que desenvolveu — Num outro depoimento, através de palavrões. Famoso também é o encontramos alguns elementos norteadores episódio do uso do telefone de sua dessa herança e propriedade. “[...]Minha residência por todos dentro do morro, família é fundadora deste empreendimento depois de ter socorrido vítimas de um que é a Escola de Samba da Mangueira, acidente ferroviário nas imediações da do samba, a maior empresa do mundo, e Mangueira: não podemos deixá-la morrer, tenho um Era dia de seu aniversário, tinha recebido compromisso de continuar; herdei um um leitão de presente e tinha sua bastão” 4. meladinha (caçhaça misturada com mel). Na hora da confusão, aquilo que era para Duas Mulheres, Duas Primeiras Damas: seus convidados virou alimento para os A Tradição em Herança, a Sucessão e o bombeiros. Foi assim, depois do Feminino reconhecimento, que o governador Negrão de Lima teve de seu ato, que lhe doou uma Neuma Gonçalves da Silva linha telefônica. Meu avô sempre dizia: “– (1922-2000), Dona Neuma, nasceu no Com essa aí ninguém pode, nasceu para ser subúrbio de Madureira, no Rio de Janeiro, intelectual”. Tanto é que os alunos da filha de Saturnino Gonçalves, um dos Gama Filho vinham ter aula de português fundadores do bloco dos Arengueiros, que com ela. Mas foi dura com as suas filhas, mais tarde originou a Escola de Samba sempre nos dizia: “– Vocês têm que dar Estação Primeira da Mangueira. Desde aos mais pobres”. Foi assim que ela nos criança, conviveu com os grandes educou. E assim a gente segue seus compositores da Escola – seu pai era um ensinamentos É a forma como ela viveu5. deles. Integrante da Velha Guarda, foi tida Euzebia Silva do Nascimento como uma das grandes damas da (1913-2003), Dona Zica, sambista da localidade. Sua ação não se limitava em ser Velha Guarda, foi a última mulher de apenas uma grande sambista, por isso é Cartola. Mulher dedicada aos outros, com considerada um baluarte na luta pela um sorriso permanente nos lábios, de mãos afirmação do samba de raiz e pela hábeis no manuseio dos quitutes famosos. Mangueira – sua escola, seu tudo, sua Além de ter sido fonte de inspiração para o vida, como ela bem gostava de dizer. Cartola, sempre foi um motivo de orgulho Orgulhosa de si mesma, sempre tinha as nas memórias da Mangueira. Hoje, além de portas abertas a todos que a procuravam. ser tema de músicas, discos e livros, é Era acolhedora, sobretudo para com as reverenciada como uma das lideranças crianças e com os menos providos; não só mais verdadeiras que o morro da dava abrigo, mas remédio e educação a Mangueira já teve. Segue depoimento de quem lhe recorria. Em alguns momentos, Marcus Quintaes: moravam com ela mais de 30 pessoas. É

3 Relato obtido através da narrativa de Dona 5 Chininha, vice-presidente da Escola de Samba, Depoimento de D. Chiniha, vice-presidente da filha de Dona Neuma. Escola de samba Estação Primeira de Mangueira, 4 Relato de Nilcemar Nogueira, neta de Cartola e de filha de D, Neuma. Dona Zica.

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Para mim, uma das imagens do Tinham suas vidas particulares bem arquétipo da Grande Mãe não está delimitadas, havendo entre elas uma numa pequena estátua etrusca do distinção. De acordo com o depoimento a período 2000 anos antes de Cristo. seguir, Dona Neuma abrigava a todos que Grande Mãe, para mim, é D. Zica a buscavam: da Mangueira a cuidar do seu Teve um tempo que morou aqui morro e de seus filhos sambistas. com a gente mais de vinte pessoas. Sou brasileiro, trabalho no Rio de Sei o que me custou isso. Tive que Janeiro e estou inserido na alma do trabalhar desde cedo e era com meu país. Me fascina mais D. Zica meu dinheiro que pagava o telefone do que uma estátua etrusca de dois que todos usavam. De alguma mil anos. Se Caetano canta que "a forma, minha mãe nos obrigava a Mangueira é onde o Rio é mais trabalhar e a dar para os outros baiano", diria eu que a Mangueira que, dizia, tinham menos que a é onde o Rio é mais junguiano. gente. O atual presidente da (Quintaes, 2005). Mangueira [Perci] mora aqui na nossa casa desde os dezessete anos Quem conhece as histórias de idade. A família dele foi embora dessas mulheres sabe que, durante muito daqui e ele ficou com a gente6. tempo, após o falecimento, Já Dona Zica sempre ajudou respectivamente, de seus pais e seus muito a todos, mas resguardou sua vida maridos, ambas se encarregaram de dar privada. Era mais tímida e tinha uma continuidade à idéia da Escola de Samba e família anterior à sua ligação com Cartola, ao sentimento de comunidade que surgira o que a fez guardar certa reserva de de seus fundadores. Foram, em momentos aparições em público, só vindo a se diferentes, intituladas primeiras damas da mostrar quando foi necessário representar Mangueira. Ambas constituíram a Velha a Mangueira – e fez isso com todo amor, Guarda da Escola, sendo admiradas pelos mesmo estando doente – no dia em que a trabalhos sociais que desenvolveram em Escola homenageou sua amiga Neuma, prol da comunidade. então já falecida. Dona Neuma, mulher Na atualidade, quem sobe o extrovertida e destemida, resolvia os morro, logo de início avista as precárias problemas de todos que a procuravam. condições de vida, sobretudo nas casas da Expressava-se com facilidade e sabia como maioria dos moradores. Em grande parte, defender sua amada Escola, colocando a há ruelas, escadarias e vários casebres, mas comunidade antes de si mesma. Praticando na Rua Visconde de Niterói algumas filantropia em excesso, exigiu de si e de construções se destacam. O Palácio do suas herdeiras tal procedimento. Samba, anexo ao Barracão da Escola de Dona Zica era mulher de Samba Estação Primeira de Mangueira, grande sabedoria. A paciência, o sorriso e o acolhimento eram, segundo seus herdeiros, as qualidades que a resumiam. 6 Narrativa de Cecy, filha de D. Neuma, Amigas diletas a ponto de responsável pela Mangueira do Amanhã, escola de construírem uma casa geminada, onde, samba para as crianças da comunidade, cujos embora permitisse que uma chamasse a objetivos são educar as crianças e preservar a outra através do muro que as unia, era memória possível guardar suas privacidades. A Trama da Trança 74 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 66-80 | julho-dezembro de 2009

mais adiante o Centro Cultural Cartola e, compreensão, pode-se depreender a do outro lado da pista, a quadra da Vila dialética e a ambiguidade presentes na Esportiva são as insígnias claras da relação das famílias e herdeiras. distribuição de poder no morro. É Na família de D. Zica, a importante que se perceba como tais sexualidade foi contida em sua essência insígnias expressam simbolicamente as inicial, conforme se observa no formas encontradas por essa população depoimento a seguir: – [...] era presa para afirmar suas posições perante o demais, não podia frequentar os lugares8. coletivo, sendo imprescindíveis à Hoje, uma parte dessa família convivência e à coesão dos moradores. tornou-se evangélica e não frequenta o Segundo Lessa (2000, p. 305), Samba, preferindo assistir às chulas — Isso nasce como subproduto da dança oriunda de Portugal, apropriada necessidade dos moradores autorregularem pelos escravos. Atualmente, com suas relações. No interior de cada grande manifestações diferentes, encontradas no favela existem estruturas sublocais que Rio Grande do Sul, na Bahia e no Rio de organizam redes de vizinhanças sólidas. Janeiro, sendo mas específica de grupos de Dos abre-alas dos antigos ranchos sambistas tradicionais, da chamada velha carnavalescos, em sua fase histórica guarda — e, rodas de sambas específicas. inicial, até as batalhas nos bailes de Aí o conhecimento sistemático, o cursar corredor, entre as atuais galeras funks, a uma faculdade, um “vir a ser alguém” chave explicativa é iluminadora da foram as perspectivas. Era como uma tendência à competição intralocal. resposta à sociedade organizada para além É importante reconhecer, do morro, por isso a adesão a um modelo entretanto, alguns dados de originalidade moderno de fazer samba. Ser embaixadora, que cercam cada segmento dessas representar a comunidade para fora dela, heranças, sendo três desses aspectos foi a tônica. A própria ação social evidências marcantes: a sexualidade, a desenvolvida – ensinar as crianças a tocar religião e o conhecimento sistemático violino e flauta doce – espelha o desejo de (pelo acesso à Universidade). Por isso, o superação e a busca da igualdade de papel que a competição tem na transmissão oportunidades na construção de um sujeito da herança; competição disfarçada pelo transcendental próprio da ideologia afeto, havendo uma inversão de lugares e iluminista moderna. Ter um nome para de insígnias, em que se instala um ritual de parecer com, de forma que uma família foi e continua sendo modelo para a outra. O 7 duplo opera como espelho . Com essa individualizar e adquirir existência própria. A sua coexistência com o eu de que é originário, contudo, nem sempre é pacífica. Podem ocorrer duas 7 Para a Psicanálise, o conceito mais comum modalidades: aquelas de características positivas, relativamente ao duplo é que este algo que, tendo sendo resultante de um processo de identificação, sido originário a partir de um indivíduo, adquire ou aquelas de características negativas, resultantes qualidade de projeção e, posteriormente, se vem de um processo de oposição, pela constatação de consubstanciar numa entidade autônoma que uma não correspondência de traços ou sobrevive ao sujeito no qual fundamentou sua características afins. gênese, partilhando com ele uma certa 8 Depoimento de Nilcemar Nogueira, neta de identificação. Nesta perspectiva, o duplo é uma Cartola e de dona Zica. entidade que duplica o eu, destacando-se dele, autonomizando-se a partir desse desdobramento. Gera-se a partir do eu para de imediato dele se

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além do morro parece ser a marca dessa resistência, pois serão alguém para os de busca. dentro; alguém que protegerá e dará Na família de D. Neuma, servir segurança. A ordem é seguir a tradição. e ajudar a todos era uma obrigação O mais interessante nessa familiar; o estudo ficou de fora. A tensão existente, entretanto, é a sobrevivência, tendo um emprego e representação simbólica da residência trabalhando duro, foi a marca dessas dessas famílias. Moram numa casa evidências, conforme se observa a seguir: geminada, com usos e destinos diferentes. Só depois é que consegui Sabemos que a casa representa adiantar meus estudos. Depois de não apenas um local de habitação, mas velha, é que consegui concluir o também espelham épocas históricas meu segundo grau. Todas as diferentes, assim como expressam o modo sobrinhas e netas fazem trabalhos como se vive e se considera o viver na para a comunidade – professoras, coletividade. No caso do presente estudo, dirigentes de centros de não há como prescindir da interpretação recuperação. Mas eu tenho vontade dada por Lessa (2000), [...] ter um de fazer o mestrado também 9. endereço de porta reconhecido é deixar de ser favelado, é ganhar uma inscrição social A sexualidade aqui é tida como [...], o que permite um reconhecimento; normal e necessária, ainda que os herdeiros adentra-se também a um lugar diferenciado mais novos sejam orientados a quebrar o frente ao outro de fora do morro. Segundo círculo da repetição. Há um sacrifício para Perrone (2005), que alguns evoluam. O sentido de coletivo A forma de uma habitação não é sobrepuja a individualidade. casual. É produto da história do A religiosidade é ambígua na local onde ela nasceu, reverberando família de Dona Neuma; ninguém assume todas as contingências diretamente ser ligado à Umbanda, ainda socioculturais de seu momento, não que essa tendência tenha sido sentida, mas sendo imune às contaminações de há uma crítica forte às igrejas evangélicas: valores expressos pelo "gosto". A [...] São engraçados... Esses caras querem moradia, que como propriedade é tomar o dinheiro do pobre. Só conheço isolada, tem trocas culturais gente da pesada que, depois de aprontar permanentes com seu meio muito se arrepende, se diz evangélico. ambiente. Mas, além de ser Minha religião é a Mangueira10. Tal fala é resultado, a arquitetura da moradia quase uma reprodução exata da fala contém um projeto ou mesmo um materna, de D. Neuma “[...] cuidado com desejo de cidade, sendo a fachada um tal de Edir Macedo Macedo”, dizia ela. outdoor das relações dos moradores Há uma preocupação nesse com o urbano. (p. 4) segmento em formar continuadores – A Casa Geminada da aqueles que cuidarão dos outros. Mangueira chama a atenção por ser distinta Representam líderes internos, líderes de das demais construções do local, pela sua forma imponente, o que representa a sinalização dessa genealogia para o 9 Depoimento de uma das netas de dona Neuma. restante da comunidade. Nela, as herdeiras 10 Depoimento de Chininha, filha de Dona Neuma. moram, se encontram e disputam simbolicamente as modelizações e

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mediações para a comunidade. É o local da cultura e da gestação das sucessões. CONCLUSÃO Em que pese a literatura e a historiografia fazerem referências à senzala Dito e entendido de outra como morada dos negros e como lugar de forma, é possível se reconhecer, nesses sofrimento, intelectuais como Gilberto modos de viver, na configuração que essas Freyre, Caio Prado Júnior e Florestan casas possuem e nas formas como a vida aí Fernandes, por diferentes perspectivas, é vivida, não só o espelhamento das abordaram esse tema. Mais recentemente, personalidades dessas duas grandes ao se estudar os cortiços e os quilombos, matriarcas mangueirenses, mas também o tentou-se resgatar as senzalas como espaço resgate das senzalas enquanto espaço de de resistência e solidariedade entre os socialização e resistência de uma cultura. negros. O que se destaca no presente O esforço de união dessas duas mulheres, estudo é que essa forma de solidariedade D. Zica e D. Neuma, em suas diferenças, presente na moradia da Casa Geminada da diferenciações e tensões, servem para o Mangueira guarda aspectos relevantes para equilíbrio e união em prol da sobrevivência os seus moradores, assim como se constitui de uma população e de um ideal: fazer da num lugar de referência para o repasse da nação mangueirense uma comunidade e memória e dos afetos dos moradores. abrigo de amigos. Hoje, seus nomes No lado esquerdo da Casa, extrapolam a comunidade e são nomes das moram as herdeiras de Dona Neuma. Esse vias de acesso ao morro. O viaduto de lado funciona como uma moderna entrada, chamado Neuma, e aquele acesso comunidade de base, uma senzala de saída, denominado de Zica, simbolizam revisitada, abrigando ao todo 28 pessoas – exatamente a ação que suas descendentes filhas, netas e agregados da antiga exercem hoje naquele espaço. Uma acena proprietária. Contém espaços internos de para fora, a embaixatriz; a outra, líder da socialização – sala, cozinha, varandas e resistência, protege o local, o para dentro. alpendres são espaços comuns, onde se Ao buscar o entendimento de partilham comida e alegria, onde se tal configuração na teoria dos papéis de depuram comportamentos e decisões. Aí se sustentação das dinâmicas dos grupos em reproduz a cultura. Contém acessos e Pichon-Riviére (1972), é possível afirmar “rotas de individualização e fuga”. São que os grupos elegem papéis que lhes dão espaços privados (pequenos cômodos e suporte e continuidade. Destaca-se , assim, quartos), onde cada um pode ter sua vida que há os porta-vozes e líderes de mudança pessoal longe dos olhos dos demais. O – aqueles que representam o grupo em sua projeto de parentalidade ganha forma e ação, são os idealizadores e atuam no contornos definidos. intuito de trazer o novo e incentivar a No lado direito, a casa da renovação; há também aqueles que atuam família de Dona Zica, fechada e protegida segundo o critério de realidade, fazendo do olhar de curiosidade dos demais, uma avaliação mais real das possibilidades espelha a personalidade do próprio Cartola dessa ação, são os líderes de resistência. E, enquanto artista fugidio e cheio de acrescenta Pichon-Riviére, uma boa artimanhas ao lidar com o público, uma liderança só se faz numa ação mistura de gênio criador e caboclo complementar entre esses dois tipos de ressentido; resvala para o mundo através papéis. Isso promove o equilíbrio grupal e do olhar desconfiado de suas herdeiras e comunitário. Dessa complementaridade é sucessoras. que surge uma estrutura capaz de fazer o

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funcionamento do grupo e capaz de depoimento a seguir: [...] Por isso foi desenvolver suas potencialidades. Por isso importante mergulhar na minha história, de pode-se afirmar terem sido D. Zica e D. uma forma melhor, fazer um exercício de Neuma ocupantes de tais papéis na protagonismo de minhas ações. As pessoas dinâmica da comunidade mangueirense e, têm que mergulhar em suas histórias.11 hoje, suas herdeiras e seus familiares Já na família de Dona Neuma, o reproduzem esses mandatos preservando a projeto de parentalidade é o foco. O papel memória e a identidade no Morro da materno sobrepuja todos os demais Mangueira. possíveis papéis e projetos de vida. Do ponto de vista da Constituindo-se simplesmente como filhas genealogia, observa-se não só um padrão e herdeiras, a originalidade só aparece na de reprodução na herança intrafamiliar, hora do desfile. Esse é o único lugar mas também, no tocante à composição da possível para aparecer. Nessa direção, genealogia da comunidade, um padrão sobressai nessa família a identidade cruzado na assunção dos estilos de ser, proveniente do lugar que ocupa na permeada pela rivalidade fraterna. Para comunidade. É uma identidade quem não era letrado, seus herdeiros comunitária, compacta, e que, muitas buscam o conhecimento formal suprindo a vezes, as impede de acessar a liberdade, ou falta. Buscam ter um nome – nominação. buscar uma autonomia. Confirma-se tal Para quem era expert, seus filhos se tornam perspectiva no depoimento abaixo: reféns de solidariedade. De alguma forma, Era preciso dar continuidade. Nós três o espelho desse lugar é a janela do vizinho, assinamos tudo. Tudo que ela comprava através da qual se aprende a ser alguém. É ela dava. Às vezes, a gente fazia mercado um espelho sem reflexo para o si mesmo e e, quando chegava aqui, ela já tinha dado só funciona pelo olhar do outro. tudo. Que é que se vai fazer? Foi criado Do ponto de vista de suas assim, e até continuamos com isso.12 constituições familiares, na família de A complementaridade presente Dona Zica a nominação se tornou nessas famílias permite que todos os prioridade para o projeto de vida familiar, lugares de liderança sejam ocupados, visto que a personalidade de Cartola supre explícita e implicitamente, nos seus seus imaginários como figura de sucesso e imaginários e no da comunidade, havendo, êxito. Daí a personalização e a num cruzamento ajustado com a individualização como busca constante e horizontalidade de seus papéis na absorção contínua do novo como comunidade, com a verticalidade de suas perspectiva de sucesso e sobrevivência. histórias de vida, o que lhes institui líderes Evidencia-se também nessa família uma na comunidade, exemplos a serem crise de parentalidade, a qual só pode ser seguidos engendrando formas de superada pela busca de originalidade, o que foi feito através de projetos mais individualizados, tendo, por isso, o conhecimento e a frequência de outros 11 Depoimento de Nilcemar Nogueira, neta de dona grupamentos que funcionam como novas Zica e de Cartola. referências para esses sujeitos. Destaque-se ¹² Depoimento de Cecy, filha caçula de Dona que o desenvolvimento de uma narrativa Neuma, que pode ser confirmado pelos pessoal assume o que reafirma a questão depoimentos de suas outras filhas. apontada por De Gaulejac (2005, p. 61), observando-se tal perspectiva no A Trama da Trança 78 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 66-80 | julho-dezembro de 2009

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Recebido em Setembro de 2009 Aceito em Outubro de 2009

*Nota: E-mail – [email protected] **Nota: E-mail – [email protected]

A Trama da Trança 80 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 81-95 | julho-dezembro de 2009

Contagem da frequência dos bigramas em palavras de quatro a seis letras do português brasileiro

Bigram frequency for four- through six- letter words of Brazilian Portuguese

Cláudia Nascimento Guaraldo Justi I,* Francis Ricardo dos Reis Justi II

RESUMO Vários estudos sobre leitura e escrita têm demonstrado a influência de unidades sublexicais no processamento da linguagem. Uma das medidas de unidades sublexicais mais conhecida é a frequência de ocorrência dos bigramas (pares ordenados de letras que co-ocorrem nas palavras de uma língua). Visando preencher uma lacuna nos dados psicolinguísticos relativos ao português brasileiro, o presente estudo disponibiliza aos pesquisadores dados relativos à frequência de ocorrência dos bigramas (type e token) em palavras de quatro a seis letras do português brasileiro. Os resultados desse estudo demonstraram que a correlação média entre as medidas type e token foi forte e que, de uma forma geral, há mais redundância ortográfica no final das palavras de quatro a seis letras, uma vez que os bigramas em posições finais foram sempre em menor número e significativamente mais frequentes do que os bigramas nas outras posições.

Palavras-chave: bigramas; redundância ortográfica; análise de corpus linguístico.

ABSTRACT Many studies about reading and writing have demonstrated the influence of sublexical units on language processing. One of the measures of sublexical units more used in the field of psycholinguistic is the bigram frequency. Aiming to fill in a gap on Brazilian Portuguese’s psycholinguistics data, the present study provides for interested researchers data about bigram frequency (type and token) for four- through six- letter words of Brazilian Portuguese. The results of statistical analysis demonstrated that the mean correlation between type and token measures was strong. In addition, there was more orthographic redundancy at the end of the four- through six- letter words, because the bigrams of last position were always in minor number and significantly more frequent than bigram of other positions.

Keywords: bigrams; orthographic redundancy; corpus linguistics

______I Universidade Federal de Pernambuco – UFPE ( Recife ) II Universidade Federal de Alagoas – UFAL (Maceió)

Como na leitura o acesso lexical é desses achados no português brasileiro). considerado um dos processos mais Recentemente, no entanto, vários importantes (Perfetti, 1985), não é pesquisadores têm chamado a atenção surpreendente que muitas pesquisas para a necessidade de serem analisadas tenham se dedicado à investigação do também as características sublexicais dos efeito de variáveis lexicais como a estímulos e seus possíveis efeitos sobre o frequência, a regularidade e a vizinhança reconhecimento visual ou produção ortográfica no reconhecimento visual de escrita de palavras (Cassar & Treiman, palavras (ver Justi & Justi, 2009 e Roazzi, 1997; Conrad, Carreiras, Tamm & Justi & Justi, 2008 para uma revisão Jacobs, 2009; Deacon, Conrad & Pacton,

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2008; Pacton, Perruchet, Fayol & pelos bigramas ‘to’, ‘oc’ e ‘ca’. Embora Cleeremans, 2001; Treiman, 1993; difiram na forma como codificam os Westbury & Buchnan, 2002). bigramas, exemplos recentes dessa De acordo com Carreiras e tendência são o modelo de Superposição Grainger (2004), pode-se pensar nas de Bigramas Abertos (Grainger, Granier, características sublexicais das palavras Farioli, Van Assche & van Heuven, 2006) como sendo unidades funcionais que e o modelo SERIOL (Whitney, 2001; intervêm entre o processamento Whitney & Cornelissen, 2008). No perceptual de baixo nível (como a entanto, o modelo de processamento detecção de traços e bordas) e o acesso à paralelo distribuído de Seidenberg e representação mental das palavras na McClelland (1989) já propunha que esse memória de longo prazo (acesso lexical). tipo de unidade sublexical (bigramas) Nesse sentido, as unidades sublexicais poderia emergir no modelo devido ao seu podem ser subdivididas de acordo com grau de redundância ortográfica. Nesse suas características em: ortográficas; sentido, se os bigramas, por um lado, são fonológicas; morfológicas. O foco deste vistos por alguns pesquisadores como trabalho recai sobre as características uma forma de codificar a ordem das letras ortográficas das unidades sublexicais. Em nas palavras, por outro lado, podem ser ortografias alfabéticas como o português, encarados também como uma medida de pode-se dizer que a representação abstrata redundância ortográfica. das letras é uma das principais unidades É a observação de que as palavras sublexicais do ponto de vista ortográfico, escritas de uma língua são formadas já que muitos modelos de reconhecimento apenas por certas combinações possíveis visual de palavras assumem que, de de letras e que, dentro das concatenações algum modo, ou a representação abstrata permissíveis, alguns padrões ocorrem das letras é mapeada em uma mais frequentemente do que outros que representação da forma ortográfica da suscita a ideia de que os bigramas podem palavra que as contém (Coltheart, Rastle, ser vistos como medidas de redundância Perry, Langdon & Ziegler, 2001; ortográfica (Novick & Sherman, 2004). Grainger & Jacobs, 1996; McClelland & Por exemplo, em ortografias alfabéticas, a Rumelhart, 1981; Murray & Forster, frequência de ocorrência de determinadas 2004; Paap & Johansen, 1994; Whitney, combinações de letras varia: o padrão 2001), ou é mapeada diretamente em um ortográfico ‘ck’ é mais comum do que o output fonológico ou semântico (Harm & ‘lk’ na língua inglesa. Há também Seidenberg, 2004; Plaut, Seidenberg, restrições posicionais sobre a ocorrência McClelland & Patterson, 1996; de determinados padrões ortográficos: no Seidenberg & McClelland, 1989). Porém, inglês, palavras podem terminar, mas não um problema que surge a partir da começar com ‘ck’. Alguns padrões representação abstrata das letras é: como ortográficos envolvem letras duplas codificar a posição das letras nas (sequência de duas letras idênticas). No palavras? De acordo com Carreiras e inglês, por exemplo, certas letras podem Grainger (2004) e Grainger e Whitney ser duplicadas (como o ‘o’ em ‘book’ e o (2004), uma solução para esse problema ‘l’ em ‘fill’), ocorrendo, tipicamente, no seria postular um nível representacional meio e no fim das palavras, mas não no sublexical que codificasse pares início (Seidenberg, 1989). A existência ordenados de letras ou bigramas. Por desse tipo de regularidade nos padrões exemplo, a palavra ‘toca’ seria codificada ortográficos de uma língua,

Frequência dos bigramas do português 82 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 81-95 | julho-dezembro de 2009 principalmente os indexados pela frequência de ocorrência dos bigramas freqüência dos bigramas, tem ensejado passa a ser, pelo menos, uma variável a diversas pesquisas. Por exemplo, no caso ser controlada nos estudos sobre a leitura da língua inglesa, estudos de e/ou escrita. Por exemplo, no âmbito dos pesquisadores como Treiman (1993; estudos sobre o reconhecimento visual de Treiman & Bourassa, 2000; Cassar & palavras, pesquisadores, como Rastle, Treiman, 1997) têm evidenciado que, a Davis e New (2004) sugerem que alguns partir do jardim de infância, as crianças já dos efeitos encontrados pelos demonstram uma sensibilidade à pesquisadores ao investigarem o frequência de ocorrência dos padrões processamento morfológico podem ser, ortográficos de sua língua, seja na leitura na realidade, efeitos da frequência de (p. ex., ao julgar quais sequências de ocorrência dos bigramas que compõem as letras eram mais parecidas com uma palavras. De acordo com tais palavra real, as crianças consideraram as pesquisadores, enquanto as raízes e os restrições ortográficas do inglês), seja na afixos têm, tipicamente, bigramas de alta escrita (p.ex., como na língua inglesa as frequência de ocorrência, a frequência palavras não podem começar com ‘ck’, as dos bigramas que se localizam entre os crianças raramente cometiam esse tipo de morfemas é menor. Assim sendo, erro ao tentar escrever uma palavra). sequências de letras de baixa Ampliando a generalidade desses probabilidade (bigramas infrequentes) achados, Pacton e cols. (2001), representariam o limite entre o término de pesquisando crianças falantes da língua um morfema e o início de outro. Uma vez francesa, demonstraram que a que o ser humano parece ser sensível à sensibilidade aos padrões ortográficos, frequência de ocorrência desses padrões em especial às letras que podem aparecer ortográficos desde cedo, isso explicaria duplicadas em palavras do francês, ocorre alguns dos efeitos que sugerem uma de forma independente da frequência das decomposição morfológica da palavra em letras isoladas que constituem o padrão. tarefas de reconhecimento visual de Assim sendo, os resultados do estudo de palavras utilizando o paradigma de Pacton e cols. (2001) revelaram que as priming (Longtin, Segui, & Hallé, 2003; crianças foram sensíveis à frequência com Rastle & Davis, 2009). que duas letras iguais ocorriam juntas e De uma forma geral, além dos não meramente à frequência absoluta de estudos sobre o reconhecimento visual de cada letra. palavras (p.ex. Conrad, Carreiras, Tamm Os resultados dos estudos de & Jacobs, 2009) e sobre o Treiman (1993), Cassar e Treiman (1997) desenvolvimento do conhecimento e Pacton e cols. (2001) sugerem que, ortográfico (p.ex. Pacton e cols., 2001), gradualmente, e mesmo após poucos estudos realizados em outras áreas do meses de exposição à língua escrita, as conhecimento têm considerado ser crianças desenvolvem uma sensibilidade importante investigar o papel dos às restrições ortográficas de sua língua bigramas, seja na solução de anagramas baseadas na frequência de ocorrência das (p.ex. Mayzner & Tresselt, 1963), seja unidades sublexicais presentes nas nos estudos sobre a memorização de palavras a que são expostas. Ora, como a palavras novas (p.ex. Dorfman, 1999). frequência de ocorrência dessas unidades Ademais, outro indício da importância sublexicais é normalmente indexada pela dessa variável é que uma pesquisa na base frequência de ocorrência dos bigramas, a de dados PsicInfo, realizada em agosto de

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2009 pelos autores desse trabalho, frequency1). Por exemplo, considerando utilizando os termos bigram ou bigrams, uma contagem sensível à posição e ao tendo como base apenas trabalhos número de letras, na frase: “Fábio joga publicados nos últimos 5 anos, resultou muito bem vôlei, por isso joga na em 49 artigos, o que representa um seleção”, o bigrama ‘jo’, na posição número bastante razoável de trabalhos inicial de palavras de 4 letras, tem considerando-se a especificidade do tema. frequência de type igual a 1 e frequência Tendo em vista a importância dos de token igual a 2. O bigrama ‘jo’ tem bigramas como uma medida de uma frequência de type igual a 1 porque, redundância ortográfica ou como no exemplo dado, aparece apenas na unidades sublexicais em modelos de palavra ‘joga’ e tem uma frequência de reconhecimento de palavras, é natural que token igual a dois porque ocorre duas diversos pesquisadores utilizem alguma vezes na frase. medida de frequência dos bigramas em No que diz respeito à distinção seus estudos, seja para investigar entre a frequência de type e a frequência diretamente seus efeitos, seja para de token, autores como Novick e Sherman controlá-los. De acordo com Novick e (2004) têm argumentado que a frequência Sherman (2004), existem diferentes tipos de token pode ser enganosa, uma vez que de medidas de frequência de bigramas, nessa se confundem a frequência do algumas sendo sensíveis à posição em bigrama e a frequência das palavras nas que os bigramas aparecem nas palavras, quais ele ocorre (assim, um bigrama pode enquanto outras não. As medidas parecer frequente não porque ocorre em sensíveis à posição em que os bigramas muitas palavras, mas porque ocorre em ocorrem, normalmente, levam em uma palavra muito frequente). Já no que consideração também o número de letras diz respeito às contagens de bigramas que das palavras, posto que algumas posições não são sensíveis à posição, pode-se dizer variam de acordo com o número de letras que estas deixam de capturar informações das palavras (p.ex.: contando letra a letra, potencialmente relevantes. Por exemplo, da esquerda para a direita, a posição 3 é a na língua inglesa, o bigrama ‘ck’, embora posição final em palavras de 4 letras, no possa ser frequente, não ocorre no início entanto, em palavras de 6 letras, é uma das palavras. Sendo assim, as contagens das posições mediais). Desse modo, não posicionais de bigramas são cegas a normas de bigramas sensíveis à posição essas possíveis regularidades da língua. especificam quais bigramas são mais Todos os dados psicolinguísticos frequentes, por posição, em palavras de apresentados no corpo desse artigo até o um determinado número de letras; já momento são relativos à língua inglesa, normas que não são sensíveis à posição, pois, em nosso conhecimento, ainda não especificam a frequência de ocorrência de se encontra disponível publicamente um determinado bigrama, nenhuma medida da frequência de independentemente, do número de letras ocorrência dos bigramas relativa ao das palavras e de onde ele ocorre nelas. Além disso, a frequência dos bigramas pode ser computada de duas formas: de 1 Optou-se por não traduzir os termos ‘type’ e acordo com o número de palavras em que ‘token’ por esses já terem se tornados clássicos na área. o bigrama aparece (type frequency); e, pelo número de vezes em que o bigrama aparece de uma forma geral (token

Frequência dos bigramas do português 84 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 81-95 | julho-dezembro de 2009 português brasileiro. Infelizmente, essa letras da lista do NILC. Sendo assim, escassez de dados tem dificultado os parece mais produtivo somar dados pesquisadores a investigar e/ou controlar psicolinguísticos a esse conjunto de os possíveis efeitos dos bigramas em palavras para que os pesquisadores pesquisas desenvolvidas na língua possam ter dados mais completos ao portuguesa (p.ex.: Justi & Pinheiro, 2006; invés de ter dados fragmentários sobre Justi & Justi, 2007). Tendo essa lacuna conjuntos de estímulos diferentes. nos dados psicolinguísticos da língua Destarte, a base de dados que serviu de portuguesa em mente, além da cálculo para a frequência de ocorrência importância teórica de se estudar os dos bigramas no presente estudo efeitos dos bigramas, o presente estudo constitui-se das 8465 palavras de 4 a 6 teve como objetivo prover os letras retiradas do corpus NILC (2005) pesquisadores brasileiros de dados sobre a que foram analisadas previamente por frequência de ocorrência dos bigramas Justi e Justi (2008). De qualquer forma, das palavras de 4 a 6 letras do português para avaliar a generalidade das brasileiro. Para tal, optou-se pelo frequências dos bigramas gerados neste cômputo das frequências de type e de estudo, uma amostra de 2298 palavras de token dos bigramas, por posição e número seis letras comuns à terceira e quarta série de letras das palavras. Essa opção se do trabalho de Pinheiro (1996) foi justifica porque, conforme ressaltado por selecionada, e uma análise da correlação Novick e Sherman (2004), as contagens entre a frequência dos bigramas gerados não posicionais podem deixar de capturar no presente trabalho e a frequência dos regularidades ortográficas relevantes da bigramas gerados com base na lista de língua. Além disso, o leitor interessado Pinheiro foi efetuada. Foram escolhidas em uma contagem não posicional pode palavras de seis letras da lista de Pinheiro, facilmente obter esses dados com base em pois, no conjunto de palavras de 4 a 6 uma contagem posicional (basta somar a letras dessa lista, as de 6 letras são as que frequência relatada de um bigrama para existem em maior número. todas as posições em que ele ocorre), já o inverso não é verdadeiro. Material

MÉTODO Foram utilizadas no presente estudo 8465 palavras de quatro a seis Existem, pelo menos, duas listas letras do corpus NILC (2005) e 2298 de contagem da frequência de ocorrência palavras de seis letras comuns à 3ª e 4ª de palavras no português do Brasil, a lista série da lista de Pinheiro (1996). de Pinheiro (1996) e a lista desenvolvida pelo NILC (2005). No presente estudo optou-se pela lista do NILC (2005) por Procedimentos duas razões: 1) ela tem como base uma amostra maior de palavras e isso aumenta Da mesma forma que no estudo de a sensibilidade da contagem da frequência Justi e Justi (2008), foram selecionadas de type dos bigramas; 2) em estudo para análise apenas as palavras de 4 a 6 anterior Justi e Justi (2008) letras do corpus NILC (2005) com desenvolveram estatísticas de vizinhança frequência de, pelo menos, uma ortográfica para 8465 palavras de 4 a 6 ocorrência por milhão, sendo todas as

Justi, C. N. G. & Justi, F.R.R. 85 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 81-95 | julho-dezembro de 2009 palavras estrangeiras e hifenizadas No que diz respeito às palavras de descartadas, resultando em uma base de 6 letras, comuns às 3ª e 4ª séries da lista dados de 8465 palavras. Tais palavras de Pinheiro (1996), optou-se por gerar foram organizadas em uma planilha do bigramas para apenas uma das posições ‘MS Excel’, e comandos para a extração dessas palavras. Para tanto, um sorteio foi de strings foram utilizados para a realizado e a posição 1 foi selecionada. extração dos bigramas. Os bigramas Esse procedimento se justifica porque foram extraídos de acordo com o número gerar bigramas é um processo bastante de letras das palavras e a posição em que dispendioso e não há, em princípio, ocorriam nelas. Após esse procedimento, qualquer razão para se imaginar que a os bigramas gerados foram analisados no correlação entre a frequência dos programa ‘SPSS for Windows’ versão bigramas das duas listas irá variar 16.0, sendo geradas as seguintes sistematicamente de acordo com sua estatísticas: frequência de ocorrência de posição, uma vez que se trata de palavras type e de token para bigramas que iniciam com o mesmo número de letras. O mesmo em palavras de 4 letras nas posições 1, 2 e procedimento empregado para gerar os 3 (p.ex.: para a palavra ‘pato’ o bigrama bigramas da lista do NILC foi utilizado que inicia na posição 1 é ‘pa’, na 2 é ‘at’ para gerar os bigramas da posição inicial e na 3 é ‘to’); frequência de ocorrência de de palavras de seis letras da lista de type e de token para bigramas que iniciam Pinheiro. em palavras de 5 letras nas posições 1, 2, 3 e 4 (p.ex.: para a palavra ‘chave’ o bigrama que inicia na posição 1 é ‘ch’, na RESULTADOS 2 é ‘ha’, na 3 é ‘av’ e na 4 é ‘ve’); frequência de ocorrência de type e de Como pode ser observado na token para bigramas que iniciam em Tabela 1, ao se considerar separadamente palavras de 6 letras nas posições 1, 2, 3, 4 as palavras de acordo com o número de e 5 (p.ex.: para a palavra ‘casaco’ o letras, há mais bigramas diferentes nas bigrama que inicia na posição 1 é ‘ca’, na posições mediais das palavras do que nas 2 é ‘as’, na 3 é ‘sa’, na 4 é ‘ac’ e na 5 é posições iniciais e finais, sendo os ‘co’). bigramas das posições finais sempre em menor número.

Palavras de 4 letras Palavras de 5 letras Palavras de 6 letras Posição N_BG F_TY F_TK N_BG F_TY F_TK N_BG F_TY F_TK P1 193 5,7 418,6 257 11,5 384,2 277 15,9 299,9 P2 242 4,6 333,8 304 9,8 324,8 371 11,8 223,9 P3 173 6,4 466,9 316 9,4 312,4 336 13,1 247,2 P4 ------170 17,5 580,8 285 15,4 291,5 P5 ------166 26,5 500,4 Média 202,7 5,4 398,6 261,7 11,4 377,2 287 15,3 289,4 Nota: P1 = Posição 1; P2 = Posição 2; P3 = Posição 3; P4 = Posição 4 e P5 = Posição 5; N_BG = número de bigramas; F_TY = frequência média de type; F_TK = frequência média de token.

Tabela 1 – Número de bigramas em palavras de 4 a 6 letras por posição

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A fim de verificar se haveria hoc foi estatisticamente significativa alguma diferença estatisticamente (para todas, p > 0,50). significativa entre a frequência dos Por fim, as palavras de 6 letras bigramas das palavras de 4 a 6 letras de apresentaram o mesmo padrão das acordo com a posição em que eles palavras de 5 letras. Tanto a ANOVA que ocupam nas palavras, duas análises de considerou a frequência de type, variância foram efetuadas: uma, tendo F(4,1430) = 9,276, quanto a que como variável dependente a frequência de considerou a frequência de token, type, e a outra, tendo como variável F(4,1430) = 6,831 foram estatisticamente dependente a frequência de token. Para as significantes (para ambas p < 0,001). palavras de quatro letras, a ANOVA que Mas, em ambos os casos, análises post considerou a frequência de token não foi hoc, utilizando a correção de Bonferroni, estatisticamente significante (p > 0,46). Já revelaram que as únicas diferenças a ANOVA que considerou a frequência estatisticamente significativas ocorreram de type foi estatisticamente significante, entre a frequência dos bigramas da F(2,605) = 4,341 e p = 0,013. Para posição final e a frequência dos bigramas explorar melhor esse resultado, análises das outras posições (para todas, p < 0,01), post hoc, utilizando a correção de sendo os bigramas da posição final Bonferroni, foram realizadas. Essas significativamente mais frequentes do que análises revelaram que a única diferença os bigramas das demais posições. estatisticamente significativa ocorreu Nenhuma das outras comparações post entre a frequência dos bigramas da hoc foi estatisticamente significativa posição final e a frequência dos bigramas (para todas, p > 0,50). da posição medial (p < 0,05), sendo os Para verificar se a frequência de bigramas da posição final type e a frequência de token se significativamente mais frequentes. relacionam, análises de correlação de Nenhuma das outras comparações post Pearson foram desenvolvidas levando-se hoc foi estatisticamente significativa em consideração o número de letras e a (para todas, p > 0,17). posição dos bigramas nas palavras. Para o No caso das palavras de 5 letras, cálculo da correlação média, foi utilizado tanto a ANOVA que considerou a o programa Meta-Analysis versão 5.3 de frequência de type, F(3,1043) = 9,192, Schwarzer (1989). Foi adotado o seguinte quanto a que considerou a frequência de procedimento: primeiro, os valores r token, F(3,1043) = 5,544, foram foram transformados em valores Zr de estatisticamente significantes (para ambas Fisher; depois o valor Zr médio foi p < 0,01). No entanto, em ambos os calculado; e, finalmente, foi transformado casos, análises post hoc, utilizando a no valor r médio. A correlação média correção de Bonferroni, revelaram que as geral entre as frequências de type e de únicas diferenças estatisticamente token foi de 0,74 e a correlação média por significativas existentes foram entre a número de letras foi de 0,54 para as frequência dos bigramas da posição final palavras de 4 letras; de 0,80 para as e a frequência dos bigramas das outras palavras de 5 letras e de 0,79 para as posições (para todas, p < 0,05), sendo os palavras de 6 letras. bigramas da posição final No que diz respeito aos bigramas significativamente mais frequentes do que mais e menos frequentes, a título de os bigramas das demais posições. ilustração, os ANEXOS 1, 2 e 3 Nenhuma das outras comparações post apresentam os dados relativos aos 20

Justi, C. N. G. & Justi, F.R.R. 87 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 81-95 | julho-dezembro de 2009 bigramas mais frequentes e aos 20 essas medidas (r = 0,96 para a correlação bigramas menos frequentes, de acordo entre a frequência de type e r = 0,85 para com a posição, em palavras de quatro, a correlação entre a frequência de token). cinco e seis letras, respectivamente. Como a escolha entre a utilização da medida de type e a utilização da medida DISCUSSÃO de token fica a critério do pesquisador, ambas as medidas estão disponíveis. Os resultados do presente estudo Como as frequências de type e de token, demonstram que há mais redundância porém, não são necessariamente ortográfica no final das palavras de 4 a 6 semelhantes, optou-se por levar em letras do português brasileiro, porquanto consideração o valor da frequência de os bigramas em posições finais foram, de type ao dispor em ordem decrescente os uma forma geral, sempre em menor bigramas mais frequentes. Dessa forma, número e significativamente mais como pode ser observado no ANEXO 1, frequentes do que os bigramas nas outras o bigrama ‘ca’ apresentou a maior posições. Uma das possíveis explicações frequência de type no início de palavras para esse resultado é que os bigramas nas de 4 letras, mas não apresentou a maior posições finais de palavras podem frequência de token. No caso dos coincidir com sufixos. Esse bigramas menos frequentes, como eles provavelmente é o caso do bigrama ‘ou’ tiveram, via de regra, uma frequência de que, embora não tenha aparecido entre os type igual a um, utilizou-se a medida bigramas mais frequentes nas palavras de token para a disposição dos resultados em 4 letras, apareceu entre os dez bigramas ordem decrescente nos anexos. Por mais frequentes no final das palavras de 5 exemplo, um dos bigramas na posição e 6 letras. Isso ocorreria porque a inicial de palavras de quatro letras que sequência de letras ‘ou’ no final de têm frequência de type igual a um é o palavras do português brasileiro, bigrama ‘ég’. Esse bigrama, contudo, tem geralmente, indica uma flexão verbal. frequência de token igual a quatro e, Esse argumento é reforçado ao se como foram apresentados nos anexos considerar que a probabilidade de uma apenas os vinte bigramas menos palavra ter uma flexão aumenta, muito frequentes, esse bigrama não aparece no provavelmente, junto com o seu número ANEXO 1, pois um bigrama com de letras. Isso explicaria o fato do frequência de token menor foi bigrama ‘ou’ ter aparecido entre os mais apresentado no lugar dele. frequentes nas palavras de 5 e 6 letras, Por fim, objetivando investigar a mas não ter aparecido entre os vinte mais generalidade da contagem da frequência frequentes nas palavras de 4 letras. Pode- de ocorrência dos bigramas realizada se dizer que tais resultados corroboram o neste estudo, foi efetuada uma análise da argumento de Rastle e cols. (2004) de que correlação entre a frequência dos alguns dos efeitos encontrados pelos bigramas presentes em palavras de seis pesquisadores ao investigarem o letras na posição inicial da lista do NILC processamento morfológico podem ser, (2005) e a frequência dos bigramas na realidade, efeitos da frequência de presentes na posição inicial em palavras ocorrência dos bigramas que compõem as de seis letras, comuns à 3ª e 4ª série, da palavras, já que os afixos têm, lista de Pinheiro (1996). Os resultados tipicamente, bigramas de alta frequência revelaram uma forte correlação entre de ocorrência. Destarte, torna-se

Frequência dos bigramas do português 88 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 81-95 | julho-dezembro de 2009 necessário que pesquisadores interessados generalidade da contagem de frequência em investigar o processamento de ocorrência dos bigramas efetuada morfológico controlem a frequência de nesse estudo. ocorrência dos bigramas em seus estudos para evitar que os resultados possam ser atribuídos a uma diferença nessa variável. CONSIDERAÇÕES FINAIS Outra questão com a qual o presente estudo se deparou refere-se à Uma das características da mente qual medida seria a mais apropriada da humana é a sensibilidade à frequência de frequência de um bigrama. O presente ocorrência dos estímulos a que é exposta. estudo computou tanto a frequência de Nesse sentido, a frequência de ocorrência type quanto a frequência de token e dos bigramas tem sido considerada uma encontrou que a correlação entre essas importante variável sublexical nas medidas foi moderada para palavras de 4 pesquisas psicolinguísticas da atualidade, letras e forte para palavras de 5 e 6 letras. sendo uma das principais variáveis em Esse padrão é esperado, já que a estudos sobre a aquisição de padrões frequência de token é contaminada pela ortográficos (Cassar & Treiman, 1997; frequência de ocorrência das palavras e, Pacton & cols., 2001; Treiman, 1993; nesse caso, como a frequência de Treiman & Bourassa, 2000) ou uma das ocorrência das palavras de 4 letras é variáveis a serem controladas em estudos maior do que a das palavras de 5 e 6 sobre o processamento morfológico letras, não é de se surpreender que a (Longtin & cols., 2003; Rastle & cols., correlação entre as medidas type e token 2004; Rastle & Davis, 2009). O presente tenha sido menor nesse conjunto de artigo foi desenvolvido com o intuito de palavras. Nesse sentido, pode-se prover os pesquisadores brasileiros de argumentar, em consonância com Novick dados psicolinguísticos referentes à e Sherman (2004), que a medida mais frequência de ocorrência dos bigramas em segura da frequência de ocorrência de um palavras de 4 a 6 letras do português bigrama é, de fato, a frequência de type. brasileiro, suprindo, dessa forma, uma Para finalizar, tendo a lista do importante lacuna nos dados NILC (2005) sido desenvolvida com base psicolinguísticos dessa língua. Assim em textos jornalísticos, voltados sendo, os pesquisadores brasileiros primordialmente para o público adulto, passam a contar com uma relevante fonte uma questão torna-se pertinente: são os de dados psicolinguísticos que pode dados gerados pelo presente trabalho permitir uma investigação mais válidos para pesquisas a serem realizadas sofisticada do papel da redundância com crianças? Diferentemente da lista do ortográfica na leitura e na escrita, bem NILC (2005), a lista de Pinheiro (1996) como um melhor controle experimental foi desenvolvida tendo como base livros em estudos em que outras variáveis são o infantis utilizados por crianças da pré- foco da pesquisa. O banco de dados escola a 4ª série. Em suporte à completo pode ser obtido gratuitamente generalidade dos resultados do presente mediante contato eletrônico com os estudo, foi observada uma forte autores deste artigo. correlação entre a frequência dos bigramas das palavras da lista do NILC e a frequência dos bigramas das palavras da lista de Pinheiro, o que atesta a

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Frequência dos bigramas do português 90 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 81-95 | julho-dezembro de 2009

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Justi, C. N. G. & Justi, F.R.R. 91 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 81-95 | julho-dezembro de 2009

Endereço para correspondência: R. Engenheiro Mário de Gusmão, Recebido em Setembro de 2009 1295/104 - Ponta Verde - Maceió / AL – Aceito em Outubro de 2009 Brasil. CEP: 57035-000. Tel.: (82)3235-1823. * Nota. Bolsista de doutorado do CNPq E-mail: [email protected]

Frequência dos bigramas do português 92 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 81-95 | julho-dezembro de 2009

Anexo 1

Frequências de type e de token para os vinte bigramas mais e menos frequentes de palavras de 4 letras por posição

POSIÇÃO 1 POSIÇÃO 2 POSIÇÃO 3 BG TY TK BG TY TK BG TY TK mais frequentes ca 36 2710 at 25 737 ra 38 12391 pa 23 12267 ot 24 506 to 36 1559 vi 21 1148 al 23 513 ta 35 1454 ma 20 4909 ai 22 5252 la 33 2892 to 20 988 el 20 4878 ca 31 542 co 19 4582 er 19 1273 ro 28 553 me 19 902 ol 19 401 ia 26 512 fi 18 562 ur 19 367 ma 26 946 pi 18 185 ar 18 11414 as 24 2624 so 18 245 ir 17 198 lo 23 2510 ba 17 327 in 16 127 co 22 214 bo 17 408 on 16 610 ga 22 468 fa 17 959 ac 15 113 os 22 1758 pe 17 4745 ed 15 596 da 21 2397 ra 17 164 ei 15 1145 go 21 1041 sa 17 677 et 15 374 de 20 2603 se 17 3119 oc 15 810 do 19 2427 te 17 943 od 14 2421 te 18 1111 re 16 903 ag 13 250 is 17 6577 do 15 1405 ic 13 507 na 17 651 menos frequentes éd 1 1 ál 1 1 ús 1 1 ím 1 1 ça 1 1 aí 1 1 aí 1 1 ço 1 1 bé 1 1 ae 1 1 íd 1 1 có 1 1 ai 1 1 íe 1 1 cô 1 1 bó 1 1 ôr 1 1 ci 1 1 cá 1 1 aú 1 1 dô 1 1 cz 1 1 ba 1 1 du 1 1 eg 1 1 cé 1 1 en 1 1 eu 1 1 ca 1 1 gá 1 1 fô 1 1 dr 1 1 gã 1 1 og 1 1 ft 1 1 gi 1 1 ox 1 1 gr 1 1 iô 1 1 pí 1 1 iç 1 1 lê 1 1 ps 1 1 iz 1 1 lô 1 1 sã 1 1 lc 1 1 lu 1 1 só 1 1 mã 1 1 pé 1 1 ui 1 1 mé 1 1 rê 1 1 vã 1 1 mi 1 1 tó 1 1 vé 1 1 oí 1 1 zó 1 1 Nota: BG = Bigrama; TY= Type; TK = Token

Justi, C. N. G. & Justi, F.R.R. 93 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 81-95 | julho-dezembro de 2009

Anexo 2 Frequências de type e de token para os vinte bigramas mais e menos frequentes de palavras de 5 letras por posição em que iniciam na palavra

POSIÇÃO 1 POSIÇÃO 2 POSIÇÃO 3 POSIÇÃO 4 BG TY TK BG TY TK BG TY TK BG TY TK mais frequentes ca 91 2207 or 99 4478 st 63 3094 as 202 4043 co 63 1676 ar 90 3008 ra 59 2290 os 172 5531 po 59 2884 er 90 3579 nt 57 2540 ar 117 3025 pa 58 1989 en 73 3390 ta 55 1283 ta 116 4190 ma 57 2045 al 70 1544 nd 45 3863 ia 97 3049 vi 55 1167 ra 65 1184 to 44 1324 to 92 4616 re 54 845 ur 64 985 la 43 1094 am 87 1729 ba 52 1302 an 57 2015 re 43 542 ra 86 2277 se 52 2299 in 55 3808 rr 43 878 es 82 2971 te 52 2879 ol 50 1894 it 41 2649 ou 81 1397 mo 50 969 as 46 1162 ri 41 1888 ão 78 3059 sa 50 1504 ri 46 739 ro 41 662 em 64 3393 pe 49 1876 es 45 5041 ca 37 1343 te 63 3701 su 47 373 re 45 1134 ia 35 268 do 62 2254 fa 46 2193 on 41 1478 te 35 2415 da 61 2749 to 45 1951 ot 41 947 rt 34 2586 ca 55 1765 de 43 2468 is 40 2773 nh 33 2244 ro 54 2002 tr 43 419 el 39 1532 ga 32 944 sa 50 1891 ve 40 1251 ir 39 435 ss 32 3892 al 44 2957 fo 38 3663 ei 37 1255 de 30 1394 io 43 856 menos frequentes pí 2 2 rê 2 2 íc 1 1 dê 2 2 rí 2 2 rs 2 2 úo 1 1 du 2 2 ró 2 2 so 2 2 ae 1 1 há 2 2 tí 2 2 ze 2 2 bá 1 1 ió 2 2 tc 2 2 ál 1 1 cã 1 1 lé 2 2 xa 2 2 áq 1 1 dã 1 1 mi 2 2 óc 1 1 çu 1 1 fá 1 1 pu 2 2 úr 1 1 ín 1 1 fê 1 1 ts 2 2 ax 1 1 ío 1 1 fo 1 1 tu 2 2 bó 1 1 ôr 1 1 iô 1 1 uê 2 2 ec 1 1 bs 1 1 jã 1 1 ur 2 2 fô 1 1 dr 1 1 jé 1 1 xá 2 2 ia 1 1 dv 1 1 jô 1 1 ós 1 1 lé 1 1 gn 1 1 lá 1 1 ôo 1 1 ló 1 1 lú 1 1 lb 1 1 aé 1 1 nó 1 1 nz 1 1 oj 1 1 bó 1 1 of 1 1 ré 1 1 oo 1 1 cô 1 1 ox 1 1 sc 1 1 pó 1 1 ix 1 1 tô 1 1 uç 1 1 pu 1 1 li 1 1 zí 1 1 vn 1 1 rô 1 1 té 1 1 Nota: BG = Bigrama; TY= Type; TK = Token

Frequência dos bigramas do português 94 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 81-95 | julho-dezembro de 2009

Anexo 3

Frequências de type e de token para os vinte bigramas mais e menos frequentes de palavras de 6 letras por posição em que iniciam na palavra

POSIÇÃO 1 POSIÇÃO 2 POSIÇÃO 3 POSIÇÃO 4 POSIÇÃO 5 BG TY TK BG TY TK BG TY TK BG TY TK BG TY TK mais frequentes ca 149 1741 ar 127 2560 st 100 1307 ad 217 3131 as 371 6229 re 131 1512 or 117 2608 nt 98 3615 ta 148 2332 os 361 7233 co 123 3168 en 116 2647 ti 76 1522 to 120 2192 ar 249 3584 de 96 3214 Ra 110 4043 ra 73 778 id 107 1587 do 190 4742 ma 90 1004 an 106 1717 ri 60 1181 ra 103 1327 am 189 1571 tr 82 701 er 103 1586 nd 59 689 ia 92 1352 da 171 1631 pa 78 2289 al 96 652 ta 58 1652 ic 79 1440 ou 166 2238 ba 71 779 es 79 1406 it 57 1179 te 75 869 es 158 2459 pe 70 1236 Re 75 1378 rr 55 730 da 64 669 ão 131 2380 es 66 2592 on 74 2169 ca 51 560 av 61 811 ia 117 1393 pr 65 1656 ol 71 814 di 50 1131 ro 61 1634 ra 116 3190 sa 65 381 as 70 893 rt 50 1312 do 60 571 ta 115 1069 vi 65 660 Ri 69 775 ss 49 1688 in 60 3413 em 96 1083 po 63 2000 ur 64 508 an 48 3991 er 59 1396 to 87 2027 ch 62 1073 In 62 742 en 48 1716 it 59 903 ca 81 1025 se 59 2076 om 60 1194 rd 45 468 ca 57 622 is 70 2055 mo 58 1198 RO 55 820 li 44 163 sa 57 1387 va 70 838 al 55 1377 Is 47 569 vi 44 723 re 53 863 na 69 3930 ve 55 885 ac 46 188 ci 43 535 ai 50 922 la 65 912 su 53 295 ec 46 520 er 42 957 ar 50 454 co 61 972 menos frequentes um 2 2 áu 1 1 áx 1 1 úd 1 1 ía 1 1 vô 2 2 ço 1 1 ér 1 1 úr 1 1 ôo 1 1 zâ 2 2 çu 1 1 ét 1 1 aí 1 1 bu 1 1 zu 2 2 és 1 1 ên 1 1 af 1 1 gi 1 1 ág 1 1 Ia 1 1 ío 1 1 cê 1 1 hó 1 1 áu 1 1 Ío 1 1 ót 1 1 dô 1 1 hu 1 1 êm 1 1 Íz 1 1 úb 1 1 iu 1 1 jó 1 1 óx 1 1 ôq 1 1 ax 1 1 ju 1 1 je 1 1 ôh 1 1 úf 1 1 bó 1 1 lç 1 1 lã 1 1 dó 1 1 úr 1 1 cõ 1 1 ld 1 1 lé 1 1 gã 1 1 ae 1 1 eu 1 1 lg 1 1 li 1 1 gn 1 1 ao 1 1 fõ 1 1 lm 1 1 mã 1 1 hí 1 1 ej 1 1 iz 1 1 nô 1 1 nê 1 1 ji 1 1 Ft 1 1 jõ 1 1 nu 1 1 ni 1 1 mâ 1 1 ga 1 1 mõ 1 1 pê 1 1 pá 1 1 né 1 1 hm 1 1 mf 1 1 rç 1 1 pó 1 1 nô 1 1 Iê 1 1 né 1 1 ró 1 1 rô 1 1 og 1 1 nj 1 1 nl 1 1 rô 1 1 rs 1 1 pê 1 1 oj 1 1 oj 1 1 sp 1 1 tá 1 1 sê 1 1 ox 1 1 ps 1 1 ug 1 1 ur 1 1 Nota: BG = Bigrama; TY= Type; TK = Token

Justi, C. N. G. & Justi, F.R.R. 95 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 96-109 | julho-dezembro de 2009

Discurso sobre Ciência e Tecnologia na Formação Docente: contribuição da Teoria das Representações Sociais*

Speech on Science and Technology in the Teaching Formation: contribution of the Theory of the Social Representations

Alcina Maria Testa Braz da Silva I

RESUMO Este artigo se propõe a examinar o discurso sobre Ciência e Tecnologia no Curso de formação docente, visando contribuir para a discussão sobre o ensino de ciências voltado para a Educação infantil e séries iniciais. O trabalho encontra-se norteado pelas seguintes questões: i) Quais as concepções apresentadas no discurso do estudante de pedagogia com relação ao papel desempenhado pela Ciência e pela Tecnologia na Sociedade? ii) Tais concepções podem ser entendidas com base no referencial das Representações Sociais? iii) Como os futuros professores pensam sobre trabalhar Ciências em sua prática docente? A pesquisa desenvolvida teve como objetivo analisar o conteúdo do discurso dos estudantes do Curso de Pedagogia de uma instituição de ensino superior do Estado do Rio de Janeiro. O sistema de categorias, obtido a partir da análise categorial temática, teve como principais núcleos de significação: Ciência contemplativa, Ciência verdade e Ciência vivência.

Palavras-chave: representações sociais; ciência; tecnologia; formação docente.

ABSTRACT This article is proposed to examine the speech on Science and Technology in the Course of teachers´ formation, aiming at to contribute for discussion on the teaching of sciences toward the pre-school and initial series education. The objective of this meets guided by the following questions: i) Which the conceptions presented in the speech of the student of pedagogy with relation to the role played for Science and the Technology in the Society? ii) Can such conceptions be understood on basis of the referential of the Social Representations? iii) As the future teachers think about working Sciences in his teaching practice? The research involved the analysis of content of the speech of the students of Pedagogy’s Course of private university of State of Rio de Janeiro. The system of categories, obtained from the thematic analysis, had as main nuclei of signification: Science contemplative, Science truth and Science experience.

Keywords: social representations; science; technology; teacher formation.

______I Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO / Niterói

Do ponto de vista epistemológico, posterior” (Piaget e Garcia, 1987, p.22). o desenvolvimento histórico do Elementos novos surgem constantemente conhecimento científico permite afirmar no horizonte social e geram um que a Ciência se encontra em constante movimento imbricado que produz muitos progresso, de maneira que nenhum setor, questionamentos. O progresso científico, por mais limitado que seja, pode ser ou melhor, a trajetória da Ciência, não é considerado “como definitivamente apenas de natureza contínua, o que estabelecido sobre as suas bases e também não implica o predomínio de protegido de qualquer modificação descontinuidades ou cortes

Silva, A. M. T. B. 96 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 96-109 | julho-dezembro de 2009 epistemológicos, “ambos intervêm em que envolvam ensino-aprendizagem, ou todo o desenvolvimento” (op. cit.). Mais seja, situações que mobilizam os atores adequado seria fazer referência às sociais do cenário educacional em torno trajetórias científicas nas quais a não de objetos constituintes e constituidores linearidade reside justamente nessa dupla desse cenário, pode ser o caminho para se intervenção. investigar a geração e difusão de A ciência considerada representações sociais acerca de tais fundamentalmente um elemento cultural objetos. (Pretto, 1995) e, portanto, uma construção Acrescente-se, ainda, a essa humana, uma forma simbólica criada pelo discussão sobre as ciências e a tecnologia homem, contém as contradições inerentes no espaço educativo, que as diversas a essa perspectiva. Aliada à tecnologia, a pesquisas sobre a questão da inserção das ciência tem levado o homem à construção tecnologias no ambiente escolar apontam de um mundo por vezes contraditório, para a necessidade de se proceder a um sendo ele próprio (homem) o criador das exame crítico a esse respeito, de modo a diversas formas simbólicas de cultura se considerar “as relações que se (linguagem, religião, arte), entre elas a estabelecem entre os sujeitos em processo própria Ciência. Por intermédio dessas de ensino-aprendizagem” (Gouvêa e formas simbólicas, o homem interage Oliveira, 2006, p.7). com o mundo, mas também representa as Segundo Grispun (1999), de uma imagens que estas formas lhe transmitem forma geral, a tecnologia caracteriza-se do mundo. “como um conjunto de conhecimentos, Além disso, não sendo um sistema informações e habilidades que provém de fechado em si próprio, nem blocos uma inovação ou invenção científica, que herméticos de informações acabadas, mas se operacionaliza através de diferentes campos teóricos e de pesquisa, métodos e técnicas e que é utilizado na merecedores do “status” de produzir produção e consumo de bens e serviços” conhecimento confiável, que busque (p.51). investigar as relações existentes entre os A autora ressalta ainda que fenômenos, torna-se importante examinar “Ciência e tecnologia estão sempre a Ciência ou as Ciências, segundo suas juntas, não apenas em termos do especificidades, como objeto gerador de conhecimento estruturado e Representações Sociais. Segundo Sá fundamentado, mas também em termos (1998), os princípios intuitivos de da prática efetivada” (Grispun, 199, p.51). “espessura social” e “relevância cultural” Essa prática efetivada relaciona-se à de um objeto, os quais justificariam a prática docente na medida em que o existência de representações acerca do conhecimento adquire significado na mesmo objeto, corresponde a que este se relação do ensinar a aprender. A encontre “implicado, de forma formação docente representa, portanto, consistente, em alguma prática do grupo, um espaço privilegiado para se repensar aí incluída a da conversação e a da estratégias relativas ao ensinar a aprender, exposição aos meios de comunicação de o que, segundo Freire (1996), não é massa” (Sá, op.cit., p.50). possível “sem ensinar um certo [grifo Desse modo, examinar as meu] conteúdo através de cujo concepções que são construídas e conhecimento se aprende a aprender”, apreendidas na rede de significações dos enfatizando a necessidade do educando a indivíduos, em particular, em situações

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“aprender a razão de ser do objeto ou do Tecnologia? ii) Tais concepções podem conteúdo” (p.82). ser entendidas com base no referencial A ênfase recai, então, em que esse das Representações Sociais? iii) Como os conteúdo se esvazia de sentido se pensado futuros professores pensam trabalhar em um vácuo social e cultural. O caminho Ciências em sua prática docente na apontado pela teoria das representações Educação infantil e nas séries iniciais? sociais vai ao encontro de se buscar O enfoque deste trabalho é entender que o mundo social nos examinar essas concepções, no âmbito sensibiliza, mas também sensibilizamos o pedagógico do Curso de formação mundo social em um processo de docente, à luz da teoria das construção mútua de representações Representações Sociais, visando sociais. contribuir na discussão sobre o ensino de Moscovici (1978), ao apresentar o ciências para a Educação infantil e séries conceito de representações sociais como iniciais. uma nova perspectiva de olhar o indivíduo, o contexto social que o envolve e as relações entre eles, assume o Quadro Teórico simbólico em uma valoração psicossociológica, encaminhando a Nas últimas três décadas a discussão para o que ele enfatiza serem os sociedade vem passando por aceleradas pontos nevrálgicos para se entender a mudanças com o avanço da tecnologia realidade física e social. cada vez maior e mais intenso em todos A teoria das Representações os setores da vida do ser humano, Sociais (TRS) considera que é por introduzindo com isso novos elementos intermédio dessa modalidade de para a produção do conhecimento. A conhecimento socialmente elaborada e educação, portanto, vem passando por partilhada (Jodelet, 2001), a qual consiste uma reformulação tecnológica tão intensa da noção básica de representação social, que entusiasma e ao mesmo tempo que um grupo se expressa, definindo, com assusta quem trabalha nesta área. A base em suas crenças e valores, diversas Educação ganhou novas dimensões com o perspectivas de olhar um determinado avanço da tecnologia e novos espaços de objeto e as interações com o entorno ação. Ao se pensar a Educação em um social no qual se encontra inserido. Tais mundo em constante transformação é perspectivas constituem-se no campo da preciso voltar o olhar para as relações do representação, estabelecendo relações homem com a realidade. É necessário entre si, carregadas de significados. Pelos refletir sobre essas novas dimensões em argumentos apresentados, o estudo das seu caráter de essência e de construção. Representações Sociais torna-se de Os novos espaços de ação agora incluem especial interesse para este trabalho. também o virtual. Tendo em vista este quadro de Questões relevantes no campo da discussão, o objetivo da pesquisa Educação, como formação de qualidade e realizada, cujos resultados serão o papel do educador na apresentados neste artigo, foi norteado contemporaneidade, ganham cada vez pelas seguintes questões: i) Quais as mais espaço entre as preocupações de concepções apresentadas no discurso do pesquisa e dos projetos de intervenção. O estudante de pedagogia com relação ao debate que se estabelece, dentro do papel desempenhado pela Ciência e pela contexto da discussão sobre tais questões,

Silva, A. M. T. B. 98 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 96-109 | julho-dezembro de 2009 carece de uma reflexão mais aprofundada circulação, alianças. A especificidade em relação à função necessária a ser dessa rede de atores, a qual se refere desempenhada pelos professores na Latour (op. cit.), é a conexão de mediação da construção de significados elementos humanos e não humanos e a por parte dos alunos em suas não previsibilidade do vínculo existente interpretações do mundo. Assim sendo, entre as entidades, naturais ou sociais, no processo de sua formação, os que a compõem. Tais entidades permitem professores precisam se apropriar dos uma redefinição da identidade da rede e vários saberes docentes, com o propósito de suas relações, trazendo elementos de se prepararem para exercer esta novos para estendê-la. Assim, uma rede mediação. de atores se constitui ao mesmo tempo A problematização do homem- em um ator e em uma rede, considerando mundo, ou do homem em suas relações respectivamente o estabelecimento de com o mundo e com os homens, alianças com novos elementos e a possibilita que se aprofunde a tomada de capacidade de redefinir e transformar seus consciência da realidade na qual se está componentes (Callon citado por Moraes, inserido e com a qual se estabelece 2004). relações, de maneira que ele vai Jovchelovitch (2004) afirma que “dinamizando o seu mundo. Vai base do pensamento moderno se encontra dominando a realidade. Vai “definida em termos de uma razão humanizando-a. Vai acrescentando a ela progressiva e da capacidade do sujeito do algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai conhecimento colocar a si próprio como temporalizando os espaços geográficos. objeto e aprender suas próprias condições Faz cultura” (Freire, 1989, p.43). de possibilidade” (p. 20). A autora Ao se referir ao nosso mundo apresenta, a partir de uma perspectiva como não moderno, Latour (1994) coloca psicossocial, uma reflexão sobre as em pauta uma crítica no que diz respeito relações que envolvem o saber, a ao adjetivo moderno atribuído a nossa comunidade e a cultura, de modo a sociedade, no sentido de destacar a enfatizar a concepção da própria proliferação dos objetos híbridos, que Psicologia social como a ciência do tanto pertencem à natureza quanto à “entre”, ou seja, assumindo o que ela cultura, como algo contraditório à idéia denomina de zona nebulosa e híbrida da tradicional divisão a partir da qual a como lugar privilegiado da investigação natureza e cultura são sistemas psicossocial, a qual comporta o indivíduo representacionais radicalmente separados e a sociedade. um do outro. A reintegração dos objetos Essa busca por abordagens que das ciências e das técnicas, chamados possibilitem ampliar a análise da relação também de quase-objetos pelo autor, é Ciência - Tecnologia, em uma perspectiva enfatizada como o caminho para lidarmos que inclua o tecido social e cultural não com os viezes desvelados pela própria como fatores externos, se torna cada vez modernidade e resgatar a continuidade do mais necessária, tendo em vista que coletivo. A teoria Ator-Rede traz esse “nossos modos individuais de viver e mundo não moderno para as Ciências construir significados são diferentes não (Moraes, 2004). apenas de acordo com as comunidades A teoria Ator-Rede apresenta a nas quais vivemos, mas também segundo noção de rede com um caráter dinâmico os papéis que nós escolhemos e aqueles no sentido de movimento, fluxo,

Ciência-Tecnologia: Teoria das Representações Sociais 99 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 96-109 | julho-dezembro de 2009 que atribuímos para os outros” (Lemke, contexto de significados, construídos nas 2001, p.297). relações sociais a partir das práticas O caminho apontado pela profissionais dos vários atores perspectiva teórico-metodológica das envolvidos. Representações Sociais, segundo A teoria das Representações Moscovici (1978, 1984, 1988, 2003), a Sociais, segundo a abordagem de qual se refere a um processo de Moscovici (op. cit), constitui-se em um constituição de saberes próprios de um domínio de pesquisa que busca grupo social e aos produtos daquele compreender o modo pelo qual o processo, permite um exame psicossocial significado é atribuído ao objeto; como os dessa relação. atores sociais interpretam o universo Segundo Freire (op.cit.), “é ainda social; as relações sociais em função das o jogo destas relações do homem com o representações elaboradas; e, ainda, como mundo e do homem com os homens, estas representações são integradas ao desafiado e respondendo ao desafio, sistema cognitivo pré - existente dos alterando, criando, que não permite a sujeitos sociais (Jodelet, 2001). imobilidade, a não ser em termos de Os conceitos, teorias, artefatos e relativa preponderância, nem das outras “coisas” produzidas pelas ciências sociedades nem das culturas. E, na e técnicas apresentam-se como algo que medida em cria, recria e decide, vão se precisa ser incorporado ao repertório de conformando as épocas históricas. É um grupo social por razões que o grupo também criando, recriando e decidindo mesmo dá para si. Tais representações se que o homem deve participar destas expressam, no âmbito da Educação, em épocas” (p. 43). termos dos elementos presentes no As ciências, ao deixarem de ser cotidiano pedagógico, formando uma rede discutidas apenas em seus aspectos de de relações carregadas de significados. conteúdo, desvelam a importância de se Esse cotidiano pedagógico constitui-se considerar o seu desenvolvimento em lócus de produção e circulação de histórico e o contexto sociocultural. representações sociais. Portanto, as ciências como construções Compreender os diversos conceituais, analisadas historicamente em significados construídos sobre a temática seu movimento de rupturas e “Ciência e Tecnologia” no discurso dos ultrapassagens paradigmáticas, abrem futuros pedagogos, à luz da teoria das espaço para enfoques novos da discussão Representações Sociais, significa ir além de questões socioculturais e psicossociais dos limites que a questão aparentemente no âmbito epistemológico. A abordagem impõe e situá-la no contexto social. Dessa das Representações Sociais, sendo de maneira, refletir sobre este assunto, com natureza psicossocial, abre o caminho base na teoria das representações sociais, para esse outro olhar. O interfaceamento implica aceitar que o sentido atribuído a cognitivo-social que este referencial um determinado objeto é uma construção apresenta, no qual o objeto de interesse é psicossocial do indivíduo (Moscovici, construído e assimilado na rede de 2003) que contém em sua bagagem o significação dos indivíduos em seus conhecimento do grupo ao qual pertence. grupos de referência, fornece elementos para a constituição de uma pedagogia científica, de modo que se compreenda o processo de ensino/aprendizagem em um

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MÉTODO Conhecimento Científico”. O texto, escrito e ilustrado, tendo por foco reflexões sobre “Ciência e Verdade”, A pesquisa desenvolvida teve “Ciência e Natureza”, “Ciência e como objetivo analisar o conteúdo do Tecnologia”, foi trabalhado durante um discurso dos estudantes do Curso de debate no qual era pedido aos alunos que Pedagogia de uma instituição de ensino desenvolvessem essas temáticas. A partir superior do Estado do Rio de Janeiro, a de questões referentes aos temas Universidade Salgado de Oliveira. Com propostos, a análise interpretativa base na leitura e na discussão de um texto possibilitou o desdobramento da sobre “Ciência e Visões de mundo”, discussão em torno da relação “Ciência e balizadas por reflexões em torno dos Tecnologia”. Uma das questões abordou seguintes temas: Ciência e Verdade, explicitamente a futura prática docente Ciência e Natureza, Ciência e Tecnologia, desse professor ao pedir-lhe que foi aplicado um questionário com as apresentasse argumentos, em termos de questões semiestruturadas: viabilidade e dos objetivos que pretendia 1. Reflita sobre a conclusão atingir, sobre como trabalhar na Educação do texto no que se refere às questões infantil e nas séries iniciais a concepção ciência e verdade? Explicite o que você de ciência identificada por ele no texto. O pensa a esse respeito. discurso escrito dos estudantes foi 2. Qual a concepção de analisado tendo por base a análise 1 ciência ilustrada pela gravura do texto? categorial temática de conteúdo (Bardin, Você concorda? Explicite seus 1977). argumentos. 3. Como trabalhar essa concepção de ciência na Educação Procedimento de análise Infantil e nas Séries Iniciais? Apresente seus argumentos em termos da viabilidade das estratégias e dos objetivos A análise categorial temática, uma que se deseja atingir neste nível das técnicas de análise de conteúdo educacional. (Bardin, 1977), foi escolhida como procedimento de análise deste trabalho por ser adequada aos estudos que Procedimento de coleta de dados envolvem Representações Sociais, pois procura identificar os núcleos de sentido de uma comunicação “cuja presença, ou Os alunos de Graduação do Curso frequência de aparição pode significar de Pedagogia/4° período (24 estudantes) alguma coisa para o objetivo analítico da referida instituição tiveram contato escolhido” (Bardin, 1977, p. 105). com um texto de leitura sobre a temática A análise categorial temática se “Ciência e visões de mundo”, durante faz por meio de uma pré-análise baseada uma das avaliações bimestrais da em uma leitura flutuante do material. Um disciplina “Ciências Naturais e tema corresponde a uma unidade de significação complexa, representando um 1 A gravura apresentada no texto representava a recorte de sentido, com dimensão natureza em forma bucólica, na qual a figura do variável, cuja validade é de ordem homem aparece em atitude reflexiva em harmonia com o meio ambiente. psicológica, podendo “constituir um

Ciência-Tecnologia: Teoria das Representações Sociais 101 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 96-109 | julho-dezembro de 2009 tema, tanto uma afirmação como uma O sistema de categorias obtido a alusão”, ou “inversamente, um tema pode partir da análise categorial temática teve ser desenvolvido em várias afirmações como principais núcleos: “Ciência (ou proposições)” (d’Unrug citado por contemplativa”, “Ciência verdade”, e Bardin, 1977, p. 105). Além disso, o tema “Ciência vivência”. O critério de escolha consiste de uma unidade de registro dessas categorias preliminares foi a sua comumente usada nos estudos que representatividade para a investigação das envolvem atitudes, valores, opiniões, questões norteadoras do trabalho e as entre outros tipos de motivações sociais. relações que estabelecem entre si e com o Os critérios para a avaliação dos dados fenômeno de investigação. Ressalto, neste tiveram por índice de referência o tema, e ponto, uma argumentação pertinente de o indicador escolhido consistiu na Arruda (2005), referente ao papel da presença/ausência deste tema. O processo interpretação em estudos qualitativos, de codificação iniciou-se pelo recorte dos incluindo aqueles que envolvem a textos em unidades de registro, as quais abordagem das Representações Sociais, foram enumeradas para se chegar a uma que diz respeito à necessidade de se correspondência entre a exercitar a “visão holística e integradora”, presença/ausência dessas unidades e as de modo que se “trace a relação dos variáveis inferidas (significações), dados entre si, com o universo/objeto e completando-se com a classificação com grandes categorias de pensamento” desses elementos e constituindo um (p.254). sistema de categorias baseado em Um dos núcleos de significação critérios semânticos ou análise categorial extraído do sistema de categorias é temática. representado pela categoria “Ciência A análise categorial temática contemplativa”. Os significados permitiu a identificação de núcleos que se expressos nos discursos apontam para a encontravam, de modo direto ou indireto, compreensão de que a tecnologia envolve associados à temática “Ciência e a uma ruptura com o modelo contemplativo Tecnologia”. Esses núcleos, apresentados de Ciência, representado de forma na forma de expressões e palavras hegemônica pela natureza. A tecnologia, explícitas no texto ou em alusões representada pelo homem no centro da implícitas, foram agrupados em ação, ora é responsabilizada por essa categorias temáticas. ruptura, ora é harmonizada a esse cenário. Alguns trechos extraídos do discurso analisado são representativos desse RESULTADOS E ANÁLISE núcleo de significação:

“O homem modifica tanto o meio Os elementos categoriais, ambiente que acaba destruindo as identificadas pela análise categorial belezas naturais, interferindo na sua temática, são os elementos da qualidade de vida. Mas deixar de lado a representação, na medida em que tecnologia já alcançada para ficar apenas envolvem significados em um discurso contemplando a natureza, (...) é voltar a estruturado2.

expressões-chave, as quais consistem naquelas 2 Na apresentação dos trechos do discurso é que são mais representativas da fala dos futuros utilizado negrito para descartar as palavras e/ou professores.

Silva, A. M. T. B. 102 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 96-109 | julho-dezembro de 2009 viver como homem primitivo, ou seja, Outro núcleo encontrado se refere regredir.” à relação entre a Ciência e a busca do conhecimento verdadeiro, denominada “Uma ciência onde busque o categoria “Ciência verdade”, que aparece, natural, onde as coisas naturais, o ar tem ao longo dos discursos, ligada aos mais sentido do que uma ciência conceitos de observação, realidade e tecnicista. (....) nós os seres humanos já natureza, perpassados ora por um sentido somos acostumados em viver em uma absoluto de verdade, ora por um sociedade que está em constante relativismo. Esses conceitos não se mudança, ou seja, através da apresentam de forma clara nos discursos tecnologia.” analisados. O conceito de observação se refere à observação pura, o conceito de “Quem não concorda com uma realidade aparece associado à idéia do ciência humanista e contemplativa? (...) concreto, do real, do que pode ser visto Porém precisamos ter os pés no chão e ou sentido, assim como a idéia de analisar que também precisamos dos natureza. Essa posição se caracteriza por recursos que temos (tecnológico), para uma concepção ingênua de olhar a completar o cenário tão rico, mas com Ciência e, dessa forma, sua relação com a uma ressalva que não sejam tecnologia. ultrapassados limites que natureza nos Os seguintes extratos foram coloca e o homem com sua fome de levantados: querer sempre mais vai fazendo conquistas de destruição.” “(...) em Ciências temos que ter o ensaio do acerto ou erro, para termos Uma variação dessa argumentação conclusões por vários olhares.” assume uma incompatibilidade entre o modelo contemplativo de “Vida” e a “A ciência está presente em todos “Ciência atual”, ou seja, aquela que, os campos do conhecimento e na nossa segundo os discursos analisados, vida. Isto porque tudo que utilizamos e encontra-se caracterizada pelo método adquirimos em nossos lares existe lá a científico. Alguns extratos exemplificam ciência, a tecnologia para oferecer-nos esta posição: conforto e satisfação. Agora, verdade é algo muito relativo. O que é verdade “(...) o processo de resgate da para um, pode não ser para mim. contemplação da vida (...) deixa de lado Entendo verdade aquilo que é a Ciência atual e seus métodos para convincente (...).” assumir a contemplação da vida para a reconstrução científica do equilíbrio “Ciência só é verdade quando perdido.” comprovada, observada, seguindo determinados padrões, técnicas, “(...) ciência contemplativa onde segundo os resultados que queremos se deixa de lado a ciência atual e seus obter.” métodos e resgata-se a contemplação da vida para reconstruir o equilíbrio do “A ciência apresenta uma planeta.” verdade da natureza do que realmente é. E é esta verdade que nos é apresentada

Ciência-Tecnologia: Teoria das Representações Sociais 103 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 96-109 | julho-dezembro de 2009 quando contemplamos a beleza do que “Nada se encontra pronto se está está à nossa volta.” em análise, a visão do pesquisador é trabalhar em cima de fatos concretos, mas “(...) a ciência tem o dever de ao analisá-los em vários contextos. Quando menos mostrar o caminho da verdade se trabalha com visões em vários com o propósito de construir algo de ângulos, não podemos destruir o que já concreto para a humanidade.” está pronto e sim adaptá-lo para a realidade do momento, enriquecendo-o, “A Ciência busca a comprovação abrindo variáveis para a melhoria do dos conhecimentos e posteriormente objeto ou algo observado, dando demonstrar seu verdadeiro valor, subsídios para ser mais rico (...) ao promover o bem comum. Essa é a contexto. Recriando ou criando para verdade.” uma realidade e nunca acabado com a verdade.” Uma posição que vai em direção a uma concepção realista da Ciência se “(...) a verdadeira ciência encontra ausente em todos os discursos /conhecimento é aquela que te dá a analisados, embora em alguns trechos capacidade de estudar e entender para que possa ser identificada, ainda que de forma possa argumentar sobre o que já foi dúbia, uma aproximação a esta estabelecido, podendo assim, discordar concepção, a qual se apresenta ou não, é claro, sempre com base para estruturada em torno dos seguintes uma boa argumentação.” elementos: a impossibilidade de se alcançar a verdade em sua totalidade, o Essa posição menos ingênua conhecimento como algo alcançado de referente à categoria “Ciência verdade”, forma aproximativa, os modelos como ou seja, a ausência da necessidade de se limites do conhecimento, os limites dos buscar uma relação de implicação direta modelos científicos determinando as entre a Ciência e o conhecimento crises e as ultrapassagens (Holton, 1982, verdadeiro, foi observada em somente Gewandsznajder, 1995). Alguns extratos 20% dos discursos analisados, ou seja, no mais representativos são apresentados a discurso de 5 (cinco) estudantes, e nesses seguir: casos a discussão caminhou para uma suplementação ética, no sentido de “(...) a questão da verdade está atribuir uma necessidade de se encontrar muito relacionada a quem vê, a forma os objetivos ou fins da Ciência, seja para como vê, as observações que o mesmo o ambiente ou para a sociedade, o que faz, as ponderações. (....) o valor da aparece também em todos os outros pesquisa, a fim de se chegar à verdade, discursos analisados. ainda que a mesma seja superada posteriormente (...) deve-se fazer jus à “Ciência humanista. (...) o proposta da ciência que é o fato de está homem ao buscar o caminho de novas sempre em busca de novas questões, conquistas, muitas vezes deixa de lado o questionando, investigando, compromisso com o equilíbrio da reformulando-as com o propósito de natureza, com o ser humano.” alcançar a verdade.” “(...) os que fazem a ciência não estão dando muito valor em saber o que

Silva, A. M. T. B. 104 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 96-109 | julho-dezembro de 2009 fazer com a Ciência cientificamente, e aquela planta cresce, como ela se com isso acabam atropelando este reproduz e como ela morre, assim o seu mundo “maravilhoso” que poderia ser aluno irá aprender com prazer porque mais livre, puro e humano, sem estará vivenciando (...).” prioridade de status, autonomia e poder.” “Levando o aluno à busca de investigações proporcionando-lhe ”(...) a ciência vem buscando vivência com situações do seu dia-a- junto de nós educadores uma maneira dia.” de acabar com vários obstáculos que vêm surgindo no nosso planeta (...).” “Propiciando um espaço e atividades onde a criança descubra os “A Ciência conquistou tantos valores e as transformações da avanços nos últimos tempos, mas ainda natureza. Exemplo: como vivem os assim ela não é destinada a atender as animais. Uma vez que o educando necessidades humanas e sim direcionada conheça e vivencie dessas coisas, com a atender as necessidades econômicas e a certeza, no futuro dará mais valor ao quem detém o poder, A Ciência é um mundo em que vive.” meio que podemos usar para questionar a realidade e procurar alternativas para a “Será que não é necessário e solução de problemas.” importante construir conhecimentos com a criança sobre seu próprio corpo, “(...) a ciência tem o dever de ao sobre a higiene? Além desses, há outros menos tentar mostrar o caminho da aspectos como alimentação, por verdade com o propósito de construir exemplo, o contato com animais, com algo de concreto para a humanidade.” plantas. Estamos precisando resgatar (...) a verdadeira função da ciência, a A categoria ”Ciência vivência” busca de conhecimento e nessa vivência representa outro núcleo de significação, o das crianças, aguçar cada vez mais a qual aparece nos discursos quando os curiosidade delas, o encanto por estudantes se referem ao papel da Ciência descobertas e produzir com elas, como na Educação infantil. Nessa categoria, a um mediador, os seus próprios relação da Ciência com a Tecnologia não conceitos, mesmo que para muitos aparece de forma explícita. Entretanto, a pareçam não ter importância.” importância atribuída ao processo de vivenciar situações concretas, ligadas à A função do professor, como um natureza e ao cotidiano da criança, para mediador, aparece no discurso de futuros aprender ciências, é a tônica do discurso professores, assim como a necessidade de desses estudantes. Os trechos abaixo estimular a curiosidade e o podem ser destacados: questionamento da criança. Além disso, a articulação entre o ensino das ciências, “Pode-se trabalhar Ciência na pautado na vivência do aluno, e a educação infantil mostrando à criança o formação de cidadãos críticos, no sentido concreto, fazendo com que ela tenha a de preservação do meio ambiente, concepção de Ciência no seu dia-a-dia. respeito à natureza, e atuação como Se o professor for dar uma aula sobre agentes transformadores da sociedade, se plantas, ele deve mostrar à criança como encontra presente na maioria dos

Ciência-Tecnologia: Teoria das Representações Sociais 105 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 96-109 | julho-dezembro de 2009 discursos. A tecnologia aparece ligada a tecnologia com relação à natureza e ao essas questões apenas como pano de próprio ser humano. Nesse processo, fundo no cotidiano do mundo evidencia-se a contraposição entre a contemporâneo, cuja inserção se faz cada concepção da Ciência em harmonia com vez mais ampla. o meio ambiente e o homem e a concepção da Ciência que produz avanços tecnológicos, mas não necessariamente de CONSIDERAÇÕES FINAIS destruição. Poder-se-ia supor que se trata de opiniões, devido ao caráter dúbio com que podem ser interpretadas, porém Os resultados obtidos, a partir da consiste em elementos do campo das análise de conteúdo do discurso dos Representações Sociais por se tratar de estudantes do Curso de Pedagogia, um discurso estruturado em torno de apontam como principais núcleos de elementos do senso comum, o qual é significação: Ciência contemplativa, caracterizado pela ênfase na observação Ciência verdade, Ciência vivência. É pura, como mecanismo para a apreensão importante neste ponto ressaltar o papel da realidade, na totalidade e na da etapa de interpretação na análise neutralidade do conhecimento adquirido. qualitativa, de um modo geral, e, em Tais núcleos de significação particular, na análise de conteúdo. Arruda configuram-se em uma representação da (2005) discute essa questão no campo relação Ciência e Tecnologia pautada no metodológico das Representações papel ora complementar, ora destrutivo da Sociais. Segundo a autora, “a Tecnologia por uma Ciência que deveria interpretação acontece ao longo da preservar a harmonia do meio ambiente e, pesquisa, na leitura de cada etapa por extensão, do planeta. Embora os (observação, entrevistas, tabelas, etc.) e argumentos utilizados resvalem em do conjunto de dados obtidos” (p.230). muitos momentos para a defesa de Assim sendo, tanto no que diz respeito à posições ingênuas, tanto em relação à identificação dos núcleos de significação Ciência quanto ao próprio conhecimento nos discursos analisados quanto ao olhar científico, não se pode descartar um olhar voltado para esses núcleos como crítico no sentido da preocupação com elementos do campo das Representações valores ambientais. Sociais, é fundamental considerar que Os resultados apontam ainda para “essa leitura tem sentido compreensivo, uma suplementação ética da Ciência, ou seja, entender o que aquelas etapas, sustentada possivelmente por uma aqueles dados significam, a partir do(s) necessidade de os estudantes justificarem contexto(s) em que são produzidos, do a sua utilidade. Os objetivos ressaltados referencial teórico que os orienta e do nos discursos dos futuros professores problema que se está a estudar” (Arruda, foram motivacionais em relação ao ganho 2005, p.230). Nesse sentido, os resultados social e ao meio ambiente. A dessa pesquisa apontam caminhos para suplementação com valores éticos foi refinar o sistema de categorias encontrada de maneira semelhante na apresentado. pesquisa sobre a “Representação Social Esses núcleos de significação de problema ambiental” (Mazzotti, 1997). sugerem um processo de reflexão por Nesta pesquisa, a suplementação ética parte desses estudantes sobre o papel a ser tinha como propósito a conscientização, desempenhado pela Ciência e pela

Silva, A. M. T. B. 106 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 96-109 | julho-dezembro de 2009 como objetivo da Educação Ambiental, cidadãos críticos e conscientes de seu com vistas à mudança na vida econômica. papel social. Com relação ao processo de As categorias analisadas de ensino-aprendizagem de Ciências na maneira articulada, com base no discurso Educação Infantil e séries iniciais, os desses futuros docentes, permitem futuros professores atribuíram perceber a contribuição que a teoria das importância à vivência de situações Representações Sociais, na perspectiva concretas por parte das crianças, ou seja, apontada por Moscovici (1978, 1984, relacionadas à natureza e ao seu 1988, 2003), anteriormente apresentada e cotidiano. discutida no quadro teórico, pode Esses estudantes consideram ainda fornecer no sentido de entender essa que a mediação, o estímulo à curiosidade relação, por vezes contraditória e outras e o incentivo ao questionamento vezes complementar, entre Ciência e consistem em ações necessárias para que Tecnologia. Essa relação com certeza a aprendizagem em Ciências ocorra, e a possui reflexos que merecem ser formação do cidadão crítico e consciente investigados no ensino das Ciências, não seja alcançada. apenas no âmbito da Educação Infantil e Esta análise fornece elementos Séries Iniciais, mas nos outros segmentos também para que se possa refletir sobre a educacionais, incluindo os vários grupos relação ensino-aprendizagem que se sociais que fazem parte do contexto deseja desenvolver na Educação Infantil e educacional contemporâneo. nas Séries Iniciais. A prática docente dos Importante lembrar a questão da futuros professores precisa ser discutida alteridade e a ligação estreita que pode ser em função dos caminhos a serem estabelecida com a discussão sobre os percorridos para a construção dos saberes novos papéis que construímos em um no Curso de Formação Docente. Tais mundo que hoje inclui as tecnologias. A caminhos precisam envolver esses futuros alteridade demarca a diferença e sustenta professores em um processo de a atividade simbólica humana, por meio reestruturação de suas próprias da qual o "sujeito constrói a sua ação no concepções, o que no caso do ensino de mundo, conformando-a à realidade" Ciências significa que eles possam se (Veronese e Guareschi, 2007, p.10). Mas apropriar do conhecimento científico essa realidade não se encontra submissa entendendo-o como uma construção ao material, ela é construída de forma histórica, a qual implica rupturas e compartilhada em uma teia de continuidades e na qual o objeto é significados, que são discursivos, sociais inserido em uma rede de significações, e culturais. Retomando Latour (1994), criada pela ação representativa dos com a teoria Ator-Rede, os quase-objetos sujeitos e, portanto, não é dado e só pode ou híbridos, produzidos pela rede de ser conhecido de forma aproximativa. atores, correspondem ao objeto-discurso- Dessa maneira, eles poderão, como natureza-sociedade que pertence ao mediadores do processo educativo, Parlamento das coisas, acessíveis pelas contribuir para a construção de um práticas de mediação. Entre elas podem currículo escolar de Ciências, voltado ser consideradas as práticas científicas e para a Educação Infantil e Séries Iniciais, educacionais, de modo a se compreender que atinja os objetivos que pretendem, ou essa realidade em sua dinâmica histórica seja, a apreensão do saber científico pelas desvelada em múltiplas facetas. crianças contribuindo para a formação de

Ciência-Tecnologia: Teoria das Representações Sociais 107 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 96-109 | julho-dezembro de 2009

Este é um caminho viável que se Grispun, M. P. S. Z. (1999). (Org.) apresenta para que a discussão sobre Educação tecnológica: desafios e formação de qualidade não caia nos perspectivas. São Paulo: Cortez. impasses e desvios que tantas vezes Holton, G. (1982). Ensayos sobre el criticamos, ao nos depararmos com pensamiento científico en la época de resultados da implementação de políticas Einstein. Madrid: Alianza Editorial públicas vazias de consistência e S.A. profundidade, as quais acabam por tornar Jodelet, D. (2001). Representações a escola um cenário de exclusão, sociais: um domínio em expansão. In afastando-se cada vez mais da tão Jodelet, D. (Org.), As Representações almejada meta de inclusão social. Sociais (pp.17-44). Rio de Janeiro: EdUERJ. Jovchelovitch, S. (2004). Psicologia REFERÊNCIAS Social, saber, comunidade e cultura. Psicologia & Sociedade, 16 (2), 20- 31. Arruda, A. (2005). Despertando do Latour, B. (1994). Jamais fomos pesadelo: interpretação. In Moreira, modernos. São Paulo: Editora 34 A. S. P. & Camargo, B. V., Jesuíno, J. Ltda. C. & Nóbrega, S. M. (Orgs.), Lemke, J. L. (2001). Articulating Perspectivas teórico-metodológicas communities: sociocultural em Representações Sociais (pp. 229- perspectives on science education. 258). João Pessoa: Editora Journal of Research in Science Universitária UFPB. Teaching, 38(3), 296-316. Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Mazzotti, T. B. (1997). Representação Lisboa: Edições 70. social de 'problema ambiental': uma Freire, P. (1989) Educação como prática contribuição à educação ambiental. da liberdade. São Paulo: Paz e Terra. Revista Brasileira de Estudos Freire, P. (1996). Pedagogia da Pedagógicos, 75 (188), 53-66. autonomia: saberes necessários á Moraes, M. (2004). A ciência como rede prática educativa. Rio de Janeiro: Paz de atores: ressonâncias filosóficas. e Terra. História, Ciências, Saúde - Gewandsznajder, F. (1995). A Manguinhos, 11(2), 321-333. aprendizagem por mudança Moscovici, S. (1978). A representação conceitual: uma crítica ao modelo social da psicanálise. Rio de Janeiro: PSHG. Tese de Doutorado não Zahar Editores. (original publicado de publicada. Programa de Pós 1961). Graduação em Educação. Moscovici, S. (1984). The phenomenon Universidade Federal do Rio de of social representations. In Farr, M. Janeiro. Rio de Janeiro: Faculdade de & Moscovici, S. (Eds.), Social Educação. representations (pp. 3-69). Paris- Gouvêa, G. & Oliveira, C. I. C. de Cambridge: Maison des Sciences de (2006). Educação a distância na l’homme e Cambridge University formação de professores. Rio de Press. Janeiro: Vieira & Lent Casa Editorial Moscovici, S. (1988). Notes towards a Ltda. description of social representations.

Silva, A. M. T. B. 108 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 96-109 | julho-dezembro de 2009

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Déficits nas habilidades metalinguísticas em crianças com dificuldades na leitura*, **

Deficits in metalinguistic abilities in children with reading difficulties

Daniele Andrade Silva I Márcia Maria Peruzzi Elia da Mota I

RESUMO O objetivo do presente trabalho é estudar se há uma dificuldade específica dos maus leitores na consciência morfológica. Participaram desta pesquisa seis crianças que faziam parte do estudo “Consciência morfológica: um estudo longitudinal”. Elas pertenciam a classes de segundo e terceiro ano de escolas particulares no interior de Minas Gerais. Três delas com média de idade 91,0 meses e que liam de acordo com esperado pela sua idade no TDE (grupos de bons leitores) e três crianças com 97,7 meses, classificados como leitores de nível inferior (grupo de maus leitores). As crianças realizaram tarefas de habilidades metalingüísticas e de leitura. Os resultados da pesquisa não identificaram um déficit especifico da consciência morfológica na leitura dos leitores com dificuldade.

Palavras-chave: leitura, consciência morfológica, dificuldades de leitura.

ABSTRACT The aim of this study was to investigate whether a specific deficit in morphological awareness could be found among children with reading difficulties. Six children from the study “Morphological awareness- a longitudinal study” participated in this study. They were drawn from second and third grade classes from private schools from the interior of Minas Gerais. Three were 91,0 months old and their reading level was appropriated for their age, the three others were 97,7 months old and were classified as having reading difficulties. The results of the research did not identified a specific deficit in morphological awareness among the readers with reading difficulties.

Keywords: reading, morphological awareness, reading dificulties.

______I Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) – Juiz de Fora

No Brasil, as cifras de dificuldade necessidade imediata de se contribuir para o escolar são assustadoras: cerca de 30 a 40% da aprofundamento do conhecimento dessas população que frequenta os primeiros anos do dificuldades. Ensino Fundamental tem algum tipo de A leitura é uma atividade mental dificuldade. Desse percentual, em torno de 3 a complexa, requer vários níveis de análise e o 5% da população, tanto no Brasil quanto em uso de diferentes processos cognitivos, que vão países, como a Inglaterra e os Estados Unidos, desde o reconhecimento de palavras e o acesso apresentam uma dificuldade específica na ao seu significado e pronúncia, passando pela aprendizagem da leitura (Ciasca, 2003). Diante análise sintático/semântica das sentenças e pela desse percentual embora baixo, mas que não compreensão de todo o texto lido. Do ponto de pode ser negligenciado, torna-se clara a vista das habilidades cognitivas, que facilitam a

Silva, D. A. &. Mota, M. M. P. E 110 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 110-118 | julho-dezembro de 2009 leitura, a habilidade metalinguística é a que contextual. A consciência sintática ajudaria na mais tem sido estudada. leitura e na escrita porque, ao reconhecer e Gombert (2003) defende que algum controlar deliberadamente tais aspectos, a grau de consciência metalingüística é criança usa essas informações contextuais como necessário para que se possa aprender a ler; no pistas na leitura para reconhecer as palavras no entanto, a habilidade verdadeiramente texto as quais não conseguem decifrar ou metalinguística dependeria de aprendizagens compreender (Correa, 2005). explícitas, principalmente da aprendizagem da Desde a publicação do trabalho de leitura e escrita no contexto escolar. As Gombert (1992), várias questões têm sido atividades metalinguísticas são efetuadas levantadas em relação à definição e ao estudo conscientemente pelo sujeito e exigem da consciência sintática. Um dos problemas é habilidades de reflexão e autocontrole, por que as tarefas de consciência sintática exemplo, corrigir a sintaxe de uma frase ou confundem os aspectos morfológicos com texto. Ler é uma atividade linguística formal e aqueles de natureza sintática. Embora não se sua aprendizagem requer que a criança possam separar totalmente esses dois aspectos, desenvolva uma consciência explícita das como aponta Correa (2009) estudiosos estruturas linguísticas que deverão ser interessados no processamento morfológico manipuladas intencionalmente. preferem deixar claro os aspectos observados. Gombert (1992) define consciência Neste trabalho focaremos apenas na metalinguística como a habilidade de refletir e consciência morfológica derivacional. manipular intencionalmente os componentes da A consciência morfológica pode língua. Dentre os componentes da consciência contribuir para a leitura e a escrita de forma metalinguística, que influenciam mais diferente, dependendo da ortografia estudada diretamente a aquisição inicial da alfabetização, (Mann, 2000). O princípio alfabético é o de que destaca a consciência sintática e a consciência letras devem ser mapeadas aos sons das fonológica. palavras, mas as línguas alfabéticas variam Especificamente a consciência quanto ao grau de correspondência entre as fonológica é a capacidade de refletir e letras e os sons da fala. No inglês, há muitas manipular os sons que compõem as palavras palavras irregulares (que não obedecem às (Cardoso-Martins, 1995). Ela ajuda na correspondências entre letra e som), e várias alfabetização, pois facilita a aquisição das das irregularidades encontradas no inglês correspondências letra-som, que são utilizadas podem ser explicadas pela estrutura na decodificação e, assim, são necessárias à morfológica das palavras. Por isso, o aquisição do princípio alfabético. A processamento das palavras no nível do decodificação facilita o reconhecimento de morfema pode ajudar as crianças a ler e palavras que, por sua vez, facilita o processo de escrever. compreensão do texto (Tunmer, 1990; Rego, No português, uma língua alfabética 1995). O papel facilitador da consciência mais regular do que o inglês, há evidências de fonológica na aprendizagem da leitura vem uma relação entre a consciência morfológica e sendo confirmado por numerosas pesquisas desempenho na escrita (Mota, 1996; Mota, realizadas com indivíduos de diversas idades, Annibal e Lima, 2008; Queiroga, Lins & diversos níveis de instrução e falantes de Pereira, 2006; Rego & Buarque, 1997). Isso diferentes ortografias. (Goswami & Bryant, ocorre provavelmente porque, apesar de o 1990). português ser uma língua regular, há muitas A consciência sintática é a capacidade ocasiões em que a morfologia pode ajudar na de refletir sobre os aspectos sintáticos das escolha da grafia correta das palavras (por sentenças, e envolve o controle deliberado da exemplo, nos pares de palavras ‘marcaram’ e aplicação dos aspectos sintático-semânticos da ‘marcarão’; ‘beleza’ e ‘princesa’). língua, também chamada de informação

Déficits nas habilidades metalinguísticas e leitura 111 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 110-118 | julho-dezembro de 2009 É possível que a consciência pessoas com dificuldades de leitura. Bryant e morfológica esteja associada ao bom Bradley (1987) apresentaram esse desenho desempenho da leitura no Português, e experimental como uma boa maneira de se conhecer a morfologia da língua pode ajudar a estabelecer relações causais no criança a reconhecer o significado das palavras desenvolvimento. Entretanto, a maioria dos (Mota et. al. 2009). Alguns estudos estudos usando esse delineamento focou no investigaram a possibilidade de existir um papel da consciência fonológica nas déficit específico da consciência fonológica na dificuldades de leitura (ver Goswami & Bryant, leitura. Por exemplo, Bradley e Bryant (1983), 1990 para uma revisão). Poucos estudos em um estudo clássico, mostraram que a exploraram déficits específicos na consciência consciência fonológica de crianças não leitoras sintática ou morfológica (Mota, 2009). contribuía para aquisição de leitura dessas Guthrie (1973) comparou um grupo de crianças um ano mais tarde. No mesmo estudo, crianças de 10 anos de idade, com dificuldades mostraram que crianças com dificuldade na de leitura, com um grupo de crianças de sete leitura se beneficiavam de uma intervenção que anos de idade; ambos os grupos apresentavam desenvolvia a consciência fonológica com o nível de leitura equivalente a sete anos de auxílio de letras plásticas. No entanto, poucos idade. O referido pesquisador constatou que as estudos investigaram a possibilidade de haver crianças mais novas, que apresentavam nível de um déficit morfológico nas dificuldades de leitura adequado para a sua idade, tiveram um leitura (Mota. 2008). desempenho significativamente melhor que as Neste estudo, utilizaremos um crianças mais velhas em uma tarefa de leitura, delineamento que compara bons e maus leitores na qual as crianças eram solicitadas a escolher, com mesma habilidade de leitura. As a cada cinco palavras (aproximadamente), qual estratégias de leitura diferem na medida em que dentre três palavras alternativas seria a palavra a criança progride na escolarização. correta a inserir naquele ponto no texto. Os Comparação entre maus e bons leitores de dados obtidos nesse estudo levaram o autor a mesma idade cronológica, mas com diferenças concluir que as crianças com dificuldades de no nível de leitura podem apontar déficits de leitura têm menor habilidade que as outras processamento que, na verdade, são resultado crianças para utilizar pistas gramaticais na do uso de diferentes estratégias de leitura. O leitura. delineamento proposto consiste em tomar um No Brasil, Guimarães (2005) investigou grupo de crianças atrasadas em leitura, por a influência da variação linguística e da exemplo, crianças de dez anos de idade, e que consciência morfossintática nas diferenças de estejam, com dois anos de atraso em leitura, e desempenho em leitura e escrita de alunos da que, portanto lêem no nível de uma criança 2ª, 3ª e 4ª séries do ensino fundamental. típica de oito anos de idade. Faz-se a Participaram da pesquisa 36 alunos de escolas comparação deles com um grupo de crianças de públicas de Curitiba/PR: 18 crianças com oito anos que, sendo crianças típicas, também dificuldades de aprendizagem da leitura e da lêem no nível de oito anos de idade. Ambos os escrita (grupo 1) e outras 18 sem dificuldades grupos atingiram o mesmo nível de leitura. Isso de aprendizagem (grupo 2). Os instrumentos de significa que, tendo a mesma experiência com a coleta de dados avaliaram: a variação língua escrita, diferenças qualitativas no linguística; a consciência morfossintática e o processamento cognitivo não podem ser desempenho das crianças em provas de leitura e atribuídas aos níveis de leitura, mas sim a ditado. A autora não encontrou evidências para diferenças qualitativas no processamento um déficit na consciência sintática de crianças cognitivo. com dificuldades na leitura. Esse delineamento tem sido usado em Um único estudo, no entanto, não muitos estudos que investigaram déficits oferece evidências suficientes para específicos nas habilidades metalinguísticas de generalizarmos os resultados. Além disso, o

Silva, D. A. &. Mota, M. M. P. E 112 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 110-118 | julho-dezembro de 2009 estudo de Guimarães focou na consciência bons e maus leitores em relação à consciência sintática. O presente estudo se concentra na morfológica. O objetivo do presente trabalho é consciência morfológica e seu papel na estudar se há uma dificuldade específica dos alfabetização. Consciência morfológica é maus leitores na consciência morfológica. habilidade de refletir sobre os morfemas (Carlisle, 1995). Estes são as menores unidades de significado que compõem a palavra; assim MÉTODO esta habilidade pode auxiliar na leitura se o significado das palavras não for conhecido, ele Participantes pode ser inferido se for conhecida a palavra de origem. Por exemplo, a palavra “laranjada” é Os participantes desta pesquisa foram morfologicamente relacionada à palavra seis crianças que faziam parte do estudo “laranja”. Consciência morfológica: um estudo A consciência morfológica está longitudinal. Elas pertenciam a classes de associada à reflexão sobre o processo de segundo e terceiro ano de escolas particulares formação das palavras. A investigação sobre o no interior de Minas Gerais. Três delas com desenvolvimento da consciência morfológica média de idade 91,0 meses (DP 1,0) e que liam tem incidido sobre a sensibilidade da criança de acordo com esperado pela sua idade no TDE aos processos de derivação lexical (morfologia (grupos de bons leitores) e três crianças com derivacional) ou aos processos de flexão das 97,7 (DP. 5,03), classificados como leitores de palavras (morfologia flexional) de forma nível inferior (grupo de maus leitores). Os pais separada. De fato Deacon e Bryant (2005) das crianças deram seu consentimento livre e mostraram que as crianças reagem de forma esclarecido para a participação no estudo. O diferente a esses dois tipos de morfema. Ao trabalho foi aprovado pelo comitê de Ética em contrário do que acontece na consciência Pesquisa com Seres Humanos da UFJF. fonológica, poucos estudos têm investigado o desenvolvimento da consciência morfológica e Instrumentos sua relação com a alfabetização. Focaremos aqui apenas no papel da morfologia 1)Tarefas de consciência morfológica derivacional. Uma série de estudos explorou a relação A)Tarefas de Decisão Morfológica – entre a consciência morfológica e a raiz (Uma variação de Besse, in press, and alfabetização e demonstrou sua associação ao Vidigal de Paula , Gombert & da Silva Leme, desempenho na leitura de palavras isoladas e na in press) compreensão de leitura (Carlisle, 1995, 2000; Carlisle & Fleming, 2003; Deacon & Kirby, A tarefa de Besse, Vidigal de Paula e 2004; Nagy, Berninger & Abbot, 2006), e Gombert (setembro, 2005, em comunicação também ao desempenho da escrita (Carlisle, pessoal) foi inicialmente delineada para 1988; 1996; Deacon & Bryant, 2005; Nunes, crianças mais velhas do que as que participaram Bindman & Bryant, 1997). Os estudos citados deste estudo. Com o objetivo de simplificar a foram realizados em crianças de língua inglesa. tarefa original, uma variação do trabalho foi Resultados semelhantes foram encontrados no criada investigando o conhecimento da raiz das francês (Colé, Marec-Breton, Royer & palavras. Utilizamos o termo variação e não Gombert, 2003; Plaza & Cohen, 2004) e no adaptação, pois se tratou de uma modificação português (Mota, 2007; Mota, Annibal e Lima, da tarefa e não de uma adaptação da mesma 2008, Mota e Silva; 2007; Queiroga, Lins e tarefa para o contexto deste estudo. Nesta tarefa Pereira, 2006). a criança tinha que decidir qual palavra era da Com exceção do trabalho de Guimarães mesma família que a palavra-alvo. (2003), nenhum outro comparou grupos de

Déficits nas habilidades metalinguísticas e leitura 113 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 110-118 | julho-dezembro de 2009 Os pares de palavra foram escolhidos bom índice de consistência interna (α>0,70), foi em razão do número de letras e da frequência avaliado o desempenho na leitura e escrita das de ocorrência na escrita, todas elas extraídas da crianças. tabela para primeira série proposta por Pinheiro (1996). Como não há índices de familiaridade Procedimento para o português, as palavras foram pareadas por frequência para garantir minimamente um No estudo original, as crianças foram equilíbrio na familiaridade das palavras. A lista avaliadas individualmente em três sessões de 20 de palavras consistia de dez grupos de três a 30 minutos. Na primeira delas, foram palavras envolvendo prefixos (Ex: Tornar – realizados os testes de consciência morfológica Retorna – Resolve) e dez grupos de palavra e de consciência fonológica, e os testes de envolvendo sufixos (Ex. Pinta – Tambor – consciência morfológica discutidos nesse Pintor). As crianças poderiam obter um total de estudo foram aplicados tal como descrito a 10 pontos nessa análise. seguir. Nas Tarefas de Decisão Morfológica – B) Tarefa de Analogia Gramatical raiz era dada a seguinte instrução: “algumas (adaptada de Nunes, Bindman & Bradley, palavrinhas são da mesma família do que 1997) outras. Por exemplo, a palavra “conta” e a A tarefa inicial de Nunes, Bindman & palavra “reconta” são da mesma família. Já a Bradley (1997) foi adaptada, considerando a palavra “bola” e “rebola” não são da mesma especificidade da morfologia derivacional do família. Eu vou falar para você uma palavra e português. Sob essa perspectiva, foram criados depois vou falar mais outras duas e você vai me dez itens a partir dos quais a criança devia dizer qual das duas é da mesma família da produzir uma palavra morfologicamente primeira”. Por fim, realizava-se um exemplo complexa de uma palavra alvo, aplicando a com a criança: “a palavra “gela” é da mesma mesma relação de derivação de um par família que “congela” ou “conversa”? Caso a previamente dado. O total de pontos possíveis criança errasse, explicava-se a forma correta, e era 10. se acertasse iniciava-se a tarefa. Depois do exemplo, iniciava-se a testagem, mesmo que a 2) Tarefas de consciência fonológica criança não conseguisse acertá-la. A Tarefa de Analogia Gramatical Foi usada a versão brasileira adaptada (adaptada de Nunes, Bindman & Bradley, por Cardoso Martins (1997) do oddity test de 1997) era aplicada com a instrução de que Bradley e Bryant (1983), investigando a muitas palavras poderiam ser relacionadas. A categorização de rima e de aliteração. Nesta aplicadora apresentava um par de palavras tarefa a criança deve decidir qual palavra não relacionadas e pedia à criança depois de ouvir tem o mesmo som que outras em duas listas, uma palavra que ela criasse uma outra palavra sendo a primeira de rima (Ex. ‘morcego’, relacionada como no exemplo. A tarefa era ‘panela’ e ‘janela’) e a segunda de aliteração iniciada sempre pelo exemplo: “pedra-pedreiro; (Ex., ‘selo’, ‘casa’ e ‘sopa’). Nesta tarefa eram leite- ?” e assim, sucessivamente, eram 12 pontos possíveis no total. pronunciadas as demais palavras-alvo. Na última sessão foram aplicados os dois subtestes 3) Desempenho escolar do Teste de Desempenho Escolar também Foram utilizados os itens de leitura de seguindo o procedimento de aplicação descrito palavras isoladas e escritas do Teste de para o Teste. Desempenho Escolar-TDE (Stein, 1994). Por meio deste instrumento, que apresenta propriedades psicométricas satisfatórias, incluindo evidências de validade de critério e

Silva, D. A. &. Mota, M. M. P. E 114 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 110-118 | julho-dezembro de 2009 RESULTADOS estratégias de leitura e não diferenças qualitativas no processamento cognitivo. Após a aplicação do TDE, subteste de Comparando bons e maus leitores que leitura, as crianças foram categorizadas quanto tenham a mesma experiência com a leitura, ao seu grupo de leitura por série e a média de podemos identificar déficits específicos na acertos no TDE foi calculada. A média de habilidade investigada. Nesse caso, leitura das crianças de segundo ano leitoras em especificamente nas habilidades nível médio era de 55,67 (DP = 5,13) palavras, metalinguísticas. Se o mau leitor, apesar de sua comparável aos das três crianças de terceiro ano idade, apresenta níveis de consciência leitoras em nível inferior cuja média foi 50,0 morfológica ou fonológica inferiores aos dos (DP = 4,0) palavras, e não diferiu de forma bons leitores, podemos concluir que tais leitores estatisticamente significante (U= 1,5, Z= -1,3; P apresentam diferenças qualitativas no seu = 0,18). Assim, foram formados dois grupos: processamento metalinguístico, quando bons leitores, crianças de segundo ano leitores comparado com bons leitores. classificados como nível médio no TDE e maus Nossos resultados são compatíveis com leitores, leitores de terceiro ano lendo pelo TDE diversos estudos que mostram uma relação em nível inferior cada um com 3 alunos. específica entre déficits em consciência As crianças possuíam então experiências fonológica e a leitura. Os bons leitores tiveram de leitura semelhantes, mas os leitores mais desempenho superior ao dos maus leitores em velhos apresentavam atrasos no desempenho da relação à tarefa de rima. Dificuldades no leitura. Diferenças nas habilidades desses dois processamento morfológico de leitores com tipos de leitores podem dar indicativos dos dificuldades foram encontrados em diversas déficits na leitura das crianças. línguas alfabéticas, inclusive no português A seguir, devido ao número muito (Guimarães, 2003). reduzido de sujeitos participantes, testes não Não achamos diferenças no desempenho paramétricos Mann-Whitney foram realizados das tarefas de consciência morfológica. Há duas para comparar o desempenho dos bons e maus explicações possíveis para esses resultados. Em leitores nas tarefas de rima, aliteração, decisão primeiro lugar, como afirma Mann (2000), morfológica de sufixo e prefixo e analogia línguas alfabéticas podem necessitar menos do gramatical. Os resultados apresentaram conhecimento da morfologia do que do resultados não significativos para todas as conhecimento das relações letra e som. comparações entre grupos menos para a rima Habilidade diretamente ligada à consciência (U = 0,0001, Z = -1,99, P = 0,046). A Tabela 1 fonológica. Lehtonen e Bryant (2005) mostra o resultado das análises. mostraram que em finlandês, língua com correspondência letra e som regular, a consciência morfológica contribuiu para a DISCUSSÃO escrita em geral, mas não para tarefas de escrita de palavras morfologicamente complexas. É Comparações entre bons e maus leitores possível que no português a consciência pareados por habilidade de leitura têm sido morfológica tenha um peso menor no usadas como alternativa para a busca de desenvolvimento da escrita. informações sobre as causas das dificuldades de Os resultados de Mota et al (2009) leitura (Bryant & Bradley, 1987). mostram que a consciência morfológica está Delineamentos que comparam bons e maus associada à leitura contextual no português e leitores com diferentes níveis de leitura não se que, até certo ponto, essa contribuição é adequam para responder a essas perguntas. As independente do processamento fonológico. diferentes experiências com a leitura dessas Miranda, Vieira, Bastos e Mota (não crianças podem causar mudanças qualitativas publicado), porém, verificaram que a nas habilidades utilizadas para devidas às consciência morfológica contribui para a leitura

Déficits nas habilidades metalinguísticas e leitura 115 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 110-118 | julho-dezembro de 2009 medida pelo TDE quando os escores inseridos Bryant, P. e Bradley, L. (1987). Problemas de na equação da regressão múltipla são as tarefas leitura na criança. Porto Alegre: Artes de dígitos e subtração de fonema, ambas tarefas Médicas. de processamento fonológico. Entretanto, Capovilla. A. G. S. (1999). Leitura, escrita e quando se tirou a variância atribuída à consciência fonológica: desenvolvimento, consciência fonológica medida pela tarefa de intercorrelações e intervenções. Tese spooneirismo, os escores da consciência apresentada ao instituto de Psicologia da morfológica deixaram de ser significativos. A USP como parte integrante dos requisitos tarefa de spooneirismo é uma tarefa que exige para a obtenção do grau de Doutor em um maior grau de habilidade metafonológica do Psicologia. que a de subtração de fonemas, e pode ter sido Cardoso-Martins, C. (Org.) (1995). Consciência mais sensível para detectar diferenças no nível fonológica e alfabetização. Petrópolis: do processamento fonológico das crianças. Vozes. Assim, a contribuição específica da consciência Carlisle, J. (1988). Knowledge of derivational morfológica para o português ainda não está morphology and spelling ability in fourth, determinada. six, and eight graders. Applied A segunda razão que pode explicar os Psycholinguistics, 9, 247-266. resultados encontrados diz respeito à idade das Carlisle, J. (1995). Morphological awareness crianças. No início do processo de and early reading achievement. Em L. escolarização, a consciência fonológica tem um Feldman (Ed.) Morphological aspects of papel maior a desempenhar na leitura e escrita à language processing (pp.189-211). medida que a criança cresce esse a consciência Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates. morfológica passa a desempenhar um papel Carlisle, J. (1996). An exploratory study of maior na aquisição da língua escrita (Nunes, morphological errors in children`s written Bindman & Bryant, 1997). Neste estudo as stories. Reading and Writing: An crianças estavam iniciando o segundo e terceiro Interdisciplinary Journal, 8, 61-72. ano de escolarização. Nessa fase o Carlisle, J. (2000). Awareness of the structure processamento fonológico pode ser mais and meaning of morphologically complex importante. Mota (2008b) mostrou um aumento words: impact on reading. Reading and na capacidade de processamento morfológico Writing: An Interdisciplinary Journal, 12, das crianças brasileiras com a série escolar. 169-190. O número muito reduzido de Carlisle, J. & Fleming, J. (2003). Lexical participantes não permite que façamos processing of morphologically complex generalizações sobre os resultados. Não words in the elementary years). Scientific obstante, apontam para questões importantes Studies of Reading, 7 (3), 239-253. que precisam ser investigadas. Estabelecer as Ciasca, S. M. (2003). Distúrbios de causas das dificuldades de leitura permite a aprendizagem: propostas de avaliação criação de intervenções que podem promover a interdisciplinar. São Paulo: Casa do leitura de crianças com dificuldades, bem como Psicólogo. oferecerem importantes informações para serem Colé, P., Marec-Breton, N., Royer, C. & aplicadas no cotidiano escolar. Gombert, J. E. (2003). Morphologie des mots et apprentissage de la lecture. Reeducation Orthophonic, 213, 57-60. REFERÊNCIAS Correa, (2005). Avaliação da consciência morfossintática na criança. Psicologia: Bradley, L., & Bryant, P. (1983). Categorizing Reflexão e Crítica, 18(1), 91-97. sounds and learning to read: A causal Correa, (2009). Habilidades Metalingüísticas connection. Nature, 301, 419-421. ligadas à sintaxe e morfossintaxe. Em M. Mota. Desenvolvimento Metalinguístico:

Silva, D. A. &. Mota, M. M. P. E 116 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 110-118 | julho-dezembro de 2009 questões contemporâneas. São Paulo (Casa literatura. Psicologia Escolar e do Psicólogo). Educacional, 12 (2), 347-355. Deacon, S. & Bryant, P. (2005). What young Mota, M.(2008b). Algumas considerações a children do and do not know about the respeito do que as crianças sabem sobre a spelling of inflections and derivations. morfologia derivacional. Interação Developmental Science, 8(6), 583-594. (Curitiba), 12(1), 115-123. Deacon, S. & Kirby, J. (2004). Morphological Mota. M.; Anibal, L.; Lima, S. (2008). A Awareness: Just “more phonological”? The Morfologia Derivacional Contribui para a roles of morphological and phonological Leitura e Escrita no Português? Psicologia: awareness in reading development. Applied Reflexão e Crítica, 21(2), 311-318. Psycholinguistics, 25, 223-238. Mota, M.. & Silva, K.C. (2007). Consciência Gombert, J. (1992). Metalinguistic Morfológica e desenvolvimento Development. Hertfordshire: Harverster Ortográfico: um Estudo Exploratório. Whesheaf. Psicologia em Pesquisa, 1(2), 86- 92. Gombert, J. (2003). Atividades metalingüística Mota, M.; Mansur-Lisboa, S. F.; Calzavara, A.; e aquisição da leitura. Em M. R. Maluf Annibal, L.; Lima, S. A.; Cota, J. et al. (Org.), Metalinguagem e Aquisição da (2006). O papel das habilidades escrita (pp. 19-64). São Paulo: Casa do metalingüísticas na alfabetização. Virtú, 4, Psicólogo. 1-8. Goswami, U., & Bryant, P. (1990). Mota, M.; Dias, J. ; Gontijo, R.; Paiva, N.; Phonological Skills and Learning to Read. Mansur-Lisboa, S. F.; Silva, D. A. et al. London: Lawrence Erlbaun Associates. (2009). Relação entre Consciência Guaraldo, C. N. (2005). A hipótese de duplo- Morfológica e Leitura Contextual medida déficit e o desenvolvimento da leitura e da pelo teste de Cloze. Psicologia: Reflexão e escrita. Dissertação apresentada ao curso de Crítica, 22(2), 223-229. Pós- graduação em Psicologia do Mann, V. (2000). Introduction to special issue Desenvolviemnto Humano da FAFICH/ on morphology and the acquisition of UFMG. alphabetic writing systems. Reading and Guimarães, S. (2003). Dificuldades no Writing: an Interdisciplinary Journal, 12, desenvolvimento da lectoescrita: o papel das 143-147. habilidades metalinguísticas. Psicologia: Nagy, W., Berninger, V. & Abbot, R. (2006). Teoria e Pesquisa, 19 (1), p. 33-45. Contributions of morphology beyond Guthrie, J.T. Reading comprehension and phonology to literacy outcome of upper syntactic responses in good and poor elementary and middle-school students. readers. Journal of Educational Psychology, Journal of Educational Psychology, 98(1), 65(3), 294-299, 1973. 134-147. Lehtonen, A., & Bryant, P. (2005). Active Nunes, T,. Bindman, M. & Bryant, P. (1997). players or just passive bystanders? The role Morphological strategies: developmental of morphemes in spelling development in a stages and processes. Developmental transparent orthography. Applied Psychology, 33(4), 637-649. psycholinguistics, 26(2), 137-155. Plaza, M., & Cohen, H. (2004). Predictive Mota, M. (1996) Children’s role of influence of phonological processing, grammatical rules in spelling. Tese de morphological/syntactic skill, and naming doutorado não publicada, departamento de speed on spelling performance. Brain and Psicologia Experimental, Universidade de Cognition, 55, 368-373. Oxford, Inglaterra, 1996. Rego, L., & Bryant, P. (1993). The connections Mota. M. (2008a). Considerações sobre o papel between phonological, syntactic and da consciência morfológica nas dificuldades semantic skills and children’s reading and de leitura e escrita: uma revisão da

Déficits nas habilidades metalinguísticas e leitura 117 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 110-118 | julho-dezembro de 2009 spelling. European Journal of psychology, 3, 235-246. Endereço para correspondência: Rego, L., & Buarque, L. (1997). Consciência Márcia Maria P. Elia da Mota: Universidade sintática, consciência fonológica e aquisição Federal de Juiz de Fora – ICH – Campus de regras ortográficas. Psicologia: Reflexão Universitário Martelos – CEP: 36036330 - Juiz e Crítica, 10(2), 199-217. de Fora-MG. Queiroga, B., Lins, M., & Pereira, M. (2006). Conhecimento morfossintático e ortografia Recebido em Julho de 2009 em crianças do ensino fundamental. Aceito em Setembro de 2009 Psicologia: Teoria e Pesquisa, 22(1), 95-99. Tunmer, W. (1990). The role of language prediction skills in beginning reading. New * Agradecimentos ao financiamento do CNPq Zealand Journal of Educational Studies, Edital MCT/CNPq 50/2006 - Ciências 25(2), 95-112. Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas. ** Comitê de ética: protocolo CEP/UFJF 956 002 2007

Tabela 1 Resultado da análise não paramétrica Mann-Whitney

Decisão Decisão Analogia aliteração Rima TDE

prefixo sufixo

Mann-Whitney U 4,00 4,50 3,50 2,50 0,00 1,50

Wilcoxon W 10,00 10,50 9,50 8,50 6,00 7,50

Z -,26 0,00 -0,45 -0,89 -1,99 -1,33

Asymp. Sig. (2-tailed) ,80 1,00 0,65 0,38 0,046* 0,18

Exact Sig. [2*(1-tailed 1,00a 1,00a 0,70a 0,40a 0,10a 0,20a

Sig.)]

a. Not corrected for ties.

*P < 0,05

Silva, D. A. &. Mota, M. M. P. E 118

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RESENHA “THE END OF STIGMA? Changes in the Social Experience of Long-Term Illness”

Pollyanna Santos da Silveira Rhaisa Gontijo Soares Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

O processo de estigmatização tem mentais. como características fundamentais o No capítulo 1 o autor discute a reconhecimento da diferença com base fragmentação com a quebra das relações em alguma característica distinguível ou sociais e o aparecimento da identidade “marca” e uma conseqüente multifacetada, o que poderia trazer uma desvalorização do seu portador (Dovidio, redução no estigma associado às Major, & Crocker, 2003). Além de condições de longo prazo. Segundo o enfrentarem doenças que causam autor, como a marca do mundo pós- sintomas negativos e incapacidades moderno é a variedade infinita e ilimitada sociais que impedem que essas pessoas de liberdade cultural, nós deveríamos desempenhem muitos dos papéis sociais estar testemunhando o fim do estigma e alcancem objetivos de vida, os Este livro pergunta se essas mudanças portadores dessas condições ainda estão realmente acontecendo e examina precisam enfrentar as reações sociais às os desafios contemporâneos do estigma formas severas de algumas doenças as associado às condições de longo prazo quais podem ser igualmente seja na perspectiva organizacional, devastadoras. pessoal ou tecnológica, bem como a Gill Green é professor de mudança nas relações entre doenças de sociologia médica em University of longo prazo e estigma. Essex, no Reino Unido, sua principal área No capítulo 2 o autor começa a de interesse são as conseqüências sociais delinear o conceito de estigma. O autor das doenças de longo prazo. Em 1999, utiliza a definição de Link e Phelan recebeu o diagnóstico de esclerose (2001) na qual a estigmatização é múltipla e viveu com essa doença por dependente do acesso social, econômico cerca de 10 anos sem apresentar qualquer e político de poder, principalmente na sintoma, entretanto, por medo da identificação de diferenças, de construção estigmatização resolveu manter a doença de estereótipos, da separação de rótulos em segredo. O livro “THE END OF das pessoas, na distinção de categorias e STIGMA? Changes in the Social assim ter a expressão da desaprovação, Experience of Long-Term Illness” rejeição, exclusão e discriminação Além investiga a raiz da experiência de disso, o autor discorre sobre o conceito estigma, na sociedade contemporânea, de auto-estigma em que pessoas examinando uma variedade de doenças incorporam e internalizam com de longo prazo tais como HIV/AIDS, freqüência o rigoroso padrão cultural na dependência de substâncias e transtornos busca da perfeição na sociedade a qual

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Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 119-121 | julho-dezembro de 2009 fazem parte. Essa internalização pode realizadas, pelo autor, com populações produzir auto-ódio, vergonha, baixa auto- com HIV. estima, evitação social e isolamento. O estigma do uso de drogas está O foco do capítulo 3 incide sobre relacionado à construção social do os desafios do estigma relacionado às “dependente de drogas” como um doenças, e vem ilustrar como os fatores indivíduo perigoso, descritos, geralmente que contribuem para a produção do como uma ameaça a ordem social. No estigma estão mudando na sociedade capítulo 5, o autor descreve como o contemporânea. O autor divide este estereótipo do dependente de drogas capítulo em três partes. A primeira parte possui uma conotação fortemente examina a natureza cada vez mais estigmatizante em função do uso de flexível do corpo à luz de uma cultura substâncias estar associado a incontáveis consumista e dos avanços tecnológicos. comportamentos desviantes e a grupo Retrata o processo de construção de uma potencialmente estigmatizados. identidade pós-moderna associada a uma O autor começa o capítulo 6 “celebração da diferença”, e analisa os citando a obra de Hinshaw (2007) “The avanços tecnológicos que permitem um Mark of Shame”, demonstrando como a molde, uma mudança do corpo em algo doença mental é uma condição que reflete e projeta uma auto-identidade. estigmatizada na sociedade Na segunda parte o autor aborda o contemporânea. Neste capítulo o autor desafio pessoal do estigma e registra a examina atitudes em relação aos usuários mudança de “perda do eu” e vitimização dos serviços de saúde mental e a natureza tradicionalmente associada às doenças de do estigma associado à doença mental. longo prazo, para uma construção pós- Além disso, descrevem-se os desafios moderna de identidades empoderadas. A organizacionais, nos níveis locais, última parte deste capítulo analisa o nacionais e internacionais, envolvendo impacto desses desafios e argumenta que tanto os usuários dos serviços de saúde eles transformaram a experiência de viver mental como os provedores destes com uma doença de longo prazo, dando serviços. Sendo assim, o foco deste àqueles que estão doentes uma voz e capítulo incide no impacto dos desafios maiores oportunidades para se organizacionais sobre o estigma envolverem com, e na, sociedade associado à doença mental, examinando contemporânea. os a legislação, campanhas anti-estigma, No capítulo 4 o autor aborda o protesto, educação e o contato têm sobre desafio tecnológico e sua relação com o as atitudes em relação a doença mental e HIV, especialmente os avanços das a experiência dos usuários dos serviços. terapias farmacológicas que mudou o No último capítulo, a partir da modo de se viver com HIV. Este capítulo discussão lançada nos capítulos aborda ainda o impacto da terapia anteriores, o autor busca compreender a antiretroviral que surgiu em 1996, para validade teórica do conceito de estigma auxiliar o tratamento de pessoas para doenças de longo prazo e ainda soropositivas que viviam em países ricos. busca enumerar os três desafios O autor discute em que medida o avanço relacionados ao fim do estigma - do tratamento para pessoas com HIV tecnológico, pessoal e organizacional. diminui o estigma associado a essa Para isso, o conceito do estigma será condição, baseando-se em duas pesquisas discutido bem como as críticas envolvendo sua formulação, serão

Silveira, P. S. & Soares, R. G. 120

Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 119-121 | julho-dezembro de 2009 mostrados os resultados de pesquisa Link, B. G., & Phelan, J. C. (2001). sobre Esclerose Múltipla. Por fim, é Conceptualizing Stigma. Annual Rev. apresentada uma conclusão sobre a Sociol, 27, 363 – 385. pergunta que confere nome ao livro. A literatura aponta a necessidade de operacionalização dos conceitos, considerando o estigma como um processo complexo. Os estudos sobre estigma encontram dificuldade de mensuração de atitudes e preconceitos implícitos, devido à tendência a dar respostas socialmente aceitáveis e, além disso, existe uma desconexão entre estudos de atitudes e os de indicadores de comportamento. Considerando que o tema em questão é indispensável para o planejamento das políticas públicas e estratégias de redução de estigma, torna- se de grande importância o trabalho de Green, o qual contribui para a ampliação da discussão sobre o processo de estigmatização e suas implicações nos indivíduos estigmatizados, entretanto ainda é necessário maior investimento nas pesquisas para a produção do conhecimento na área.

Referências

Green, G. (2009). The end of stigma? Changes in the Social Experience of Long-Term Illness. New York. Taylor & Francis e-Library. Dovidio, J. F., Major, B., & Crocker, J. (2003). Stigma: Introduction and Overview. In T. F. Heatherton, R. E. Kleck, M. R. Hebl & J. G. Hull (Eds.), The Social Psychology of Stigma (pp. 1-28). New York: The Guilford Press. Hinshaw, S. P. (2007). What is Mental Disorder and What is Stigma? In S. P. Hinshaw (Ed.), The Mark of s ame (pp. 3-27). New York: Oxford University Press.

Silveira, P. S. & Soares, R. G. 121

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TEMA EM DEBATE A formação clínica do psicólogo em Universidade

Maria das Graças Vasconcelos Paiva* Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – Rio de Janeiro

O estágio supervisionado em psicologia, nem possuir um bom Psicologia é um componente fundamental curriculum vitae, ter essa ou aquela do curso de graduação nesta disciplina. É o formação teórica para dominar essa prática veículo primário através do qual se profissional em uma universidade. É desenvolvem as competências necessárias verdade, inclusive, que a formação para a formação profissional de psicólogo. sistemática de um profissional para exercer Esta modalidade de estágio, área central na tal tarefa tem sido largamente formação clínica psicológica universitária, negligenciada. No caso do magistério é uma das exigências estabelecidas para a superior, o profissional que ocupará a formação do psicólogo, segundo o função de supervisor deve ter uma visão do Conselho Federal de Psicologia, 1987. todo institucional, sem perder de vista as É essencial que o curso de características próprias de sua formação graduação destinado unicamente à profissional, a dinâmica de funcionamento transmissão e aquisição de conhecimentos do estágio, a abrangência e os limites de teóricos seja complementado com horas de sua atuação. Deve ser selecionado por estágio e supervisão, sendo essa supervisão preencher os requisitos da cadeira docente, normalmente realizada por um profissional possuindo assim a mesma titulação e categorizado e com grande experiência em experiência em ensino, pesquisa e sua área de atuação. A relação entre o extensão. Caso contrário, corre-se o risco supervisor e o estagiário é de natureza de haver a improvisação ou que avaliativa e estende-se pelo tempo. Possui profissionais despreparados repitam na o propósito simultâneo de aumentar a supervisão experiências que tiveram como competência profissional dos estagiários alunos. Uma formação específica monitorando a qualidade dos serviços garantiria que eles adotassem modelos profissionais que eles oferecem aos adequados e únicos para cada estagiário, clientes. Tais propósitos servirão para levar tratando-os de forma heterogênea, o estagiário a entrar numa vida profissional revertendo a intenção de imitar, atribuída particular. Estaremos aqui enfocando o comumente aos supervisionados. supervisor e suas competências. O supervisor deve possuir, Supervisionar, etiologicamente, significa sobretudo, algumas condições pessoais vigiar, fiscalizar, dirigir. básicas: conhecimento de si, bem como capacidade de relacionamento interpessoal, O Supervisor transmitindo segurança e confiabilidade, capacidade de crítica, comportamento O destaque ao supervisor é respeitoso e ético. Acima de tudo, deve importante para que fiquem claros os possuir competência em sua área que objetivos deste trabalho. A este compreende: conhecimento, habilidades e profissional não basta ser formado em valores, ou seja, o conhecimento da teoria

TEMA EM DEBATE: A formação clínica do psicólogo em Universidade 122 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 122-128 | julho-dezembro de 2009 e da técnica, para que possa orientar, com Essa delimitação representa um esforço consistência e lucidez, seus estagiários. preliminar para definir competências de supervisão na formação do psicólogo. As Competências do Supervisor Fatores do Desenvolvimento Profissional O uso de competências como um do Supervisor padrão serve para mover a psicologia de normativa para avaliativa baseada em Fatores do desenvolvimento critérios. Trata-se de preparar e avaliar o profissional contribuem como estudante contra um padrão comum e não componentes-chave para a prática da para compará-lo com outro. De acordo supervisão e requerem consideração dentro com Falender e colaboradores (2004), as da formação e do estágio como um assunto competências do supervisor seriam: de investigação sistemática e empírica. -Permitir a integração de conhecimento Cada fator requer conhecimento (teoria e pesquisa empírica) com específico, habilidade e valor. habilidades técnicas e valores -Reconhecimento de que adquirir profissionais; competência para supervisionar é um -Encorajar a socialização de valores processo de vida a longo prazo, profissionais através de exposição a acumulativo e evolutivo com níveis de práticas supervisionadas com proficiência além de competência; retroalimentação; -Reconhecimento de atenção para -Desenvolver o metaconhecimento, o diversidade em todas as formas. conhecimento sobre o conhecimento, que é -Reconhecimento de que o estágio é um significante componente do processo influenciado tanto por fatores pessoais de autovalorização que amplia o como por fatores profissionais. Este inclui desenvolvimento profissional; valores, crenças, viéses interpessoais e -Desenvolver a habilidade para avaliar conflitos que podem ser a fonte de apuradamente a eficácia e uso do contratransferências. conhecimento aplicado tão bem como a - Reconhecimento da necessidade de que habilidade para desenvolver competências tanto a avaliação como a autoavaliação dos pessoais suplementares. pares podem ocorrer regularmente através Cabe observar que as competências de todos os níveis de supervisão. do supervisor não é um conceito unitário, Os fatores supra-ordenados, mas é um produto de muitos componentes atravessando todos os aspectos do de competência que se juntam e desenvolvimento profissional, são assim combinam, determinando a competência propostos, incluindo a perspectiva da do psicólogo como supervisor. Se este formação como um processo acumulativo tiver condições de exercer suas funções, o e contínuo, requerendo atenção para a que se espera é que o estagiário adquira as diversidade e para as condutas legais e competências mínimas para trabalhar com étnicas, para os fatores pessoais, autonomia no final do estágio de profissionais auto-avaliativos e avaliativos. graduação. Embora apresentados como diferentes, todos os elementos que Considerando a Diversidade compõem as competências interagem e influenciam-se mutuamente. As Outra lente através da qual a habilidades requerem conhecimentos que supervisão deve ser contornada é a mais sempre incluem uma perspectiva de valor. ampla diversidade cultural. De uma

Paiva, M. G. V. 123 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 122-128 | julho-dezembro de 2009 maneira crescente, linhas indicadoras estão prática profissional derive de sendo propostas para a prática da conhecimento científico e da pesquisa psicologia e devem ser extrapoladas para a corrente. supervisão informada por competência de diversidade. Competências culturais têm Habilidades sido propostas e operacionalizadas. Stoltenberg e Grus (2004) indicam que só Habilidades intrínsecas à recentemente a atenção dos estudiosos tem supervisão podem ser consideradas a se dirigido para a competência de avaliação e autoavaliação. Através de diversidades que inclui idade, cultura, retroalimentação avaliativa e formativa etnocentrismo, gênero, identidade de (coisa muitas vezes negligenciada), o gênero, linguagem, condição de atraso supervisor se habilita a fornecer um mental, religião, orientação sexual e status modelo que permita o crescimento do socioeconômico. Supervisores têm sido supervisando. Segundo Bernard e limitados por conceituações de grupo Goodyear (2004), este modelo atende a unitário sem considerar as variáveis de autoavaliação a longo prazo, pois esta pode múltipla relevância ao descrever a ser modelada ativamente pelo supervisor. identidade individual, refletindo a O supervisor deve possuir a identidade coletiva. O supervisor deve habilidade de programar o modelo de considerar outros fatores, incluindo desenvolvimento, avaliando as congruência de visão de mundo e, necessidades de aprendizagem e o nível de inclusive, dimensões como: tempo, desenvolvimento do supervisando como crenças, mitos, tradições, dependência, fatores orientadores do processo. autonomia e componentes críticos da Supervisionar é uma atividade avaliativa supervisão. de mão dupla, que cada lado da dupla oferece retorno avaliativo ao outro. Sendo Conhecimento assim, o supervisor deve ter capacidade didática e demonstrar flexibilidade no O conhecimento é a base sobre a processo de supervisão e nos serviços aos qual a competência é construída. O clientes. A capacidade de usar o psicólogo supervisor deve possuir pensamento científico e transladá-lo para a conhecimentos em áreas distintas que lhe prática é outra habilidade de valor. dão possibilidades de alcançar níveis mínimos de competência em supervisão, o Valores que inclui áreas que estão sendo supervisionadas, modelos de supervisão, Valores centrais necessários foram teorias e modalidades de pesquisas. estabelecidos para os supervisores serem Conhecimentos práticos de questões éticas considerados minimamente competentes: a e legais específicas à supervisão deveriam responsabilidade pelo supervisando e pelos incluir dimensões de relações múltiplas e clientes em todos os aspectos de seu consentimento informado, entre outros. O desenvolvimento e a sensibilidade à supervisor deve conhecer procedimentos diversidade em todas as suas formas. de avaliação e medição dos resultados e a É significativo valorizar a diversidade dentro dos pares realização de um equilíbrio entre apoio e supervisor/supervisando. Tanto as práticas, desafio na supervisão tanto quanto quanto a ética devem estar baseadas na valorizar a importância do supervisando. ciência da profissão. Isso requer que a Há a suposição de um compromisso de

TEMA EM DEBATE: A formação clínica do psicólogo em Universidade 124 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 3(02) | 122-128 | julho-dezembro de 2009 aprendizagem contínua a longo prazo e -Princípios étnicos e legais (postura, crescimento profissional, não só para os comportamento, atitude) estagiários, mas também para o supervisor. -Processos evolutivos O supervisor também tem um -Conhecimento do sistema imediato e compromisso de alcançar um equilíbrio expectativa dentro dos quais se conduz a apropriado entre necessidades clínicas e de supervisão. treinamento, avaliando cliente e -Atenção ao contexto sociopolítico dentro supervisionando, mas reconhecendo a do qual a supervisão é conduzida. prevalência que o bem-estar do cliente tem -Criação de um clima em que a norma seja sobre os desejos do supervisionando um retorno honesto, tolerável e desafiador. quando discrepâncias entre eles surgem. Avaliar princípios éticos e o compromisso Avaliação para procurar usar a ciência psicológica disponível à medida que ela tem papel A conclusão de um curso bem- crítico na supervisão. O supervisor tem de sucedido sobre supervisão poderia ser uma se comprometer em reconhecer seus maneira de avaliar a competência do próprios limites. psicólogo para o cargo de supervisor. Evidências de observação direta de Contexto Social supervisão (videotape, audiotape) podem ser consideradas um excelente jeito para Como complemento, o contexto avaliar a competência em supervisão. social e a perspectiva evolutiva devem ser Documentação de experiência em considerados no processo de supervisão e supervisão, refletindo diversidade, pode ser em sua avaliação. As díades em supervisão considerada importante e retorno de não existem em isolamento. Elas estão supervisionando. Autoavaliação é vista enredadas nos contextos sociais que como integral para consideração de constituem um arranjo de contextos competência em uma área em que proximais (local dos ajustes de definição, além disso, é necessária. Milne treinamento, de aplicação das regras) e (2006) descreve um protótipo de avaliação contextos distais (agências de saúde, de de autoconsciência de disposição para polícia, da justiça e outros fatores do meio oferecer serviços para pacientes com que afetam a supervisão). problemas médicos cirúrgicos que levaria Uma perspectiva sistêmica realça a os praticantes a definirem as dimensões multiplicidade de forças (legal, das competências além do nível da entrada. sociopolítica, econômica, corporação Finalmente, a avaliação de resultado de profissional, etc) que dá forma ao processo supervisão (individual ou em grupo) é de supervisão. Isso influencia o contexto sempre descrito como vital por incluir particularmente se for relevante nos ajustes mais medidas válidas e seguras de multidisciplinares em que a fidelidade supervisionados e resultados de clientes profissional do psicólogo pode ser para serem usados através do estágio e da confrontada com diferenças relação clínica. Lambert e Hawkins (apud transdisciplinares em status e autoridades e Stoltenberg & Grus, 2004), sugeriram o por modelos de treinamento que diferem Questionário de Resultados (OQ) como daqueles prevalentes em Psicologia. ferramenta de retorno do paciente para o Como observa Stoltenberg e Grus (2004), terapeuta via supervisor. parâmetros contextuais incluem: - Diversidade

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Modelos Teóricos de Transmissão ficou relacionada à própria formação Transgeracionais profissional de psicoterapeutas de todas as abordagens psicológicas cujo enfoque tem Os modelos de supervisão a função de colocar o método psicanalítico desenvolvimentistas são baseados na idéia em ação, e o supervisor se coloca no lugar de desenvolvimento como uma metáfora de escutar a própria escuta, deparando-se para o processo de crescimento com a realidade, nem sempre fácil, dos supervisionado. Dentro desse enfoque, a estágios supervisionados (dificuldades mudança é vista antes como um contínuo institucionais, burocráticas, teóricas, processo de desenvolvimento dentro dos técnicas e metodológicas) que permeiam a estágios (de conhecimento ordenado e cena do ato de supervisionar e ser acumulativo e quantitativo) com diferenças supervisionado, acompanhado da qualitativas no nível de complexidade e do subjetividade de cada um dos uso de habilidade entre os estágios. O protagonistas: o supervisor e o estagiário. supervisor deve ajustar a supervisão de Para que essa aprendizagem seja acordo com o domínio dentro de uma dada significativa, o estagiário não deve sessão de supervisão. Proficiência em idealizar o supervisor como aquele que terapia individual pode ser mais sofisticada sabe e fazer com ele e não como ele. Assim do que avaliação psicológica. Segundo potencializado, o aprendiz estará em Pagotti e Quagliatto (2004), a supervisão condições mais favoráveis de construir clínica pode ocorrer embasada no modelo uma relação com seu cliente. teórico da Psicanálise. Os autores Conclui-se que a função do ressaltam seus reflexos históricos com o supervisor é dupla: pedagógica e risco de transposição para o contexto terapêutica, compreendendo esta última de acadêmico, que visa à formação de uma capacidade de relação humana, em psicólogos, e as particularidades das que sejam significativos o encontro, a especializações da Psicanálise. Depois que escuta e o reconhecimento da verdade do esta experiência foi introduzida, em 1920, outro para possibilitar o seu na formação de analistas, a supervisão desenvolvimento afetivo-emocional.

QUADRO I Quadro Sinóptico das áreas centrais de atuação do supervisor e distribuição do conteúdo de supervisão para estudante de psicologia segundo o modelo de Stoltenberg,Cal e Grus C. (2004).

Áreas centrais Elementos constituintes das atividades de supervisão do supervisor

Conhecimento Psicoterapia, diagnóstico, avaliação, pesquisa. Modelos teóricos, modalidades e pesquisas. Desenvolvimento de terapeutas. Diversidade entre o supervisor/supervisando. Conhecimento de resultados legais, éticos e específicos para supervisão. Procedimentos de avaliação, técnicas e outras estratégias de medição dos resultados. Consciência de diversidade em todas suas formas.

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Habilidades Habilidades para estabelecer relacionamento em supervisão; para multiplicar e desempenhar múltiplos papéis; para fornecer retroalimentação efetiva na formação; para fornecer crescimento e autoavaliação ao estagiário; para condução do processo de autoavaliação; para avaliar as necessidades de

aprendizagem; para encorajar e usar retroalimentação avaliativa do estagiário; para colocar fronteiras apropriadas e procurar consultas quando os resultados das supervisões estão fora do domínio de competência do supervisor.

Contexto social Atitude receptiva à diversidade. Princípios éticos e legais. Processos de desenvolvimento. Colaboração com o sistema imediato e expectativas dentro das quais se conduz a supervisão. Consciência do contexto sociopolítico dentro do qual se conduz a supervisão. Criação de um clima onde o retorno seja de

apoio e desafiador.

Avaliação Documentação de experiência em supervisão, refletindo diversidade. Retorno documentado via supervisionado. Autoavaliação e avaliação de resultados da supervisão, tanto individual como em grupo. Avaliar a capacidade didática e de demonstrar flexibilidade no processo de supervisão e nos serviços aos clientes. Avaliar a capacidade de usar o pensamento científico e de transladá-lo à prática.

Valores Responsabilidade pelo cliente e supervisando. Respeito pelo estagiário e pelo cliente. Sensibilidade por diversidade em todas suas formas. Equilíbrio entre apoio e desafio e atribuição de importância ao estagiário. Compromisso com aprendizagem a longo prazo e crescimento profissional contínuo. Equilíbrio

entre necessidades clínicas e do estagiário. Valores e princípios éticos. Compromisso em conhecer e usar a ciência psicológica disponível relacionada à supervisão. Compromisso em reconhecer as próprias limitações.

Referências bibliográficas 3. Milne, D. (2006). Development clinical supervision research through reasoned 1. Bernard, J. M., Goodyear, R. K. analogies with therapy. Clinical (2004). Fundamentals of clinical Psychology & Psychotherapy, 13(3), supervision. Boston: Allyn and 215-222. Bacon. 4. Pagotti, A. W. & Quagliatto, H. S. M. 2. Falender, A. C., Jennifer A. Cornish, (2004). O Supervisor Clínico: E., Goodyear R., Hatcher, R. et al investigando suas funções na (2004). Defining competencies in formação acadêmica de psicólogos. psychology supervision: A consensus Rev. da Sociedade de Psicologia do statement. Journal of Clinical Triângulo Mineiro, 8 (1), 83-90. Psychology, 60(7), 713-723. 5. Stoltenberg, Cal & Grus C. (2004). Overview of Supervision

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Competencies. Journal of Clinical Psychology, 60 (7), 771-785. * Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Instituto de Psicologia, Departamento de Fundamentos da Psicologia. Endereço para correspondência: Avenida Henrique Dodsworth, 83 Apto. 503. CEP 22061-030 - Rio de Janeiro, RJ E-mail: [email protected]

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