UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

LINDJANE DOS SANTOS PEREIRA DE MEDEIROS

“CHEGA MAIS PERTO E CONTEMPLA AS PALAVRAS”: OS MODOS DE REPRESENTAÇÃO EM A ROSA DO POVO

JOÃO PESSOA – PB

LINDJANE DOS SANTOS PEREIRA DE MEDEIROS

“CHEGA MAIS PERTO E CONTEMPLA AS PALAVRAS”: OS MODOS DE REPRESENTAÇÃO EM A ROSA DO POVO

Dissertação apresentada à Universidade Federal da Paraíba, como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação em Letras, para a obtenção do título de Mestre.

Área de concentração: Linguagens e Cultura

Linha de pesquisa: Estudos Semióticos

Orientador: Prof. Dr. Expedito Ferraz Júnior

JOÃO PESSOA – PB 2015

LINDJANE DOS SANTOS PEREIRA DE MEDEIROS

“CHEGA MAIS PERTO E CONTEMPLA AS PALAVRAS”: OS MODOS DE REPRESENTAÇÃO EM A ROSA DO POVO

Dissertação apresentada à Universidade Federal da Paraíba, como parte das exigências do Programa de Pós- Graduação em Letras, para a obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Literatura e Cultura Linha de pesquisa: Estudos Semióticos

______em ____ de agosto de 2015

______

Prof. Dr. Expedito Ferraz Júnior Orientador – UFPB

______

Prof.ª Dra. Genilda Azerêdo Examinadora interna – UFPB

______

Prof.ª Dra. Glaucia Vieira Machado Examinadora Externa – UFAL

______

Prof.ª Dra. Socorro Pacífico Barbosa Suplente – UFPB

M488c Medeiros, Lindjane dos Santos Pereira de. Chega mais perto e contempla as palavras: os modos de representação em A Rosa do Povo / Lindjane dos Santos Pereira de Medeiros.- João Pessoa, 2015. 115f. Orientador: Expedito Ferraz Júnior Dissertação (Mestrado) - UFPB/CCHL 1. Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987 - crítica e interpretação. 2. Literatura brasileira - crítica e interpretação. 3. Poesia - análise. 4. Semiótica. 5. Representação.

UFPB/BC CDU: 869.0(81)(043)

AGRADECIMENTOS

Um simples e sincero muito obrigada aos que, de alguma forma, estenderam-me a mão não só nesses dois anos de pesquisa, mas durante toda a minha vida.

 Aos meus pais, Pedro e Cícera, e irmãos, Pedrinho, Thiago e João e minha cunhada Suênia, que me fazem agradecer sempre pela família maravilhosa que tenho.  Às minhas amigas Pollyana (minha irmã querida, que nunca mediu esforços para me ajudar), Líllian, Simone, Adryana, Leninha por acreditarem em mim até mais do que eu mesma e, claro, pelas ótimas conversas do clube da “Lulu”. À Maria Ellen, pela torcida sincera e pelo meu abstract.  Ao meu marido Helton, que preencheu minha vida de amor e fez com que eu nunca mais me sentisse sozinha.  Aos meus sogros Hiel e Berenice, meus cunhados Hérlon e Soraya, à Vó Isabel, Tios Hilma, Hilka e Helma, Bilo e Zequinha pelos bons desejos e orações.  Às professoras Genilda Azerêdo e Glaucia Machado, pelas importantes observações sobre o trabalho feitas durante o exame de qualificação.  Em especial, ao meu orientador, Professor Expedito, pela atenção carinhosa que me dedicou ao longo desta pesquisa e por ter me contagiado com seu conhecimento e paixão pela semiótica e por Carlos Drummond de Andrade.

Obrigada!

RESUMO

A poesia de Carlos Drummond de Andrade (CDA), como forma de representação, é o objeto desta pesquisa, que tem como proposta a análise de sete poemas de A Rosa do Povo (1945) com base na semiótica desenvolvida pelo norte-americano Charles Sanders Peirce, no final do século XIX. A nossa questão central é: que efeitos estéticos são provocados pelos modos de representação icônico, indicial e simbólico nestes poemas de Drummond? A aplicação da semiótica peirciana ao texto de CDA amplia as possibilidades de leitura da sua poesia, ao destacar o processo de representação, e ratifica o trabalho do poeta com a linguagem, mostrando que, em A Rosa do Povo, ele explora o ícone, o índice e o símbolo de forma bastante equilibrada, usando as diversas potencialidades sígnicas da palavra.

Palavras-chave: Poesia. Semiótica. Representação. Drummond.

ABSTRACT

The poetry of Carlos Drummond de Andrade (CDA), as a form of representation, is the object of this research that has the proposal of analyzing seven poems from A Rosa do Povo (1945) based on the semiotics developed by the North American Charles Sanders Peirce in the end of the nineteenth-century. Our central question is: which aesthetic effects are provoked by the iconic, indicial and symbolic forms of representation in these poems of Drummond? The application of Peircean semiotics to the work of CDA expands the reading possibilities of his poetry, as long as it highlights the process of representation and ratifies the poet’s craft with language, showing that in A Rosa do Povo he explores the icon, the index and the symbol in a very balanced way, using the various signifying potentialities of the word.

Keywords: Poetry. Semiotics. Representation. Drummond.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 9

1. O MUNDO É SEMIÓTICO ...... 16

1.1 A TEORIA GERAL DOS SIGNOS ...... 17 1.1.1 Uma teoria sistemática ...... 20 1.1.2 Fenomenologia ...... 21 1.1.3 Signo, Objeto e Interpretante: a semiose ...... 23 1.1.4 Tricotomias ...... 26 1.1.5 Relação signo-signo ...... 27 1.1.6 Relação signo-interpretante ...... 28 1.1.7 Relações signo-objeto: a representação ...... 29 1.1.7.1 O ícone ...... 29 1.1.7.2 O índice ...... 31 1.1.7.3 O símbolo...... 32

1.2 SEMIÓTICA APLICADA À LITERATURA ...... 34 1.2.1 Algumas leituras semióticas do texto literário ...... 37 1.2.2 Os modos de representação ...... 39

2. OS MODOS DE REPRESENTAÇÃO NA POESIA DE DRUMMOND ...... 45

2.1 ANÁLISE SEMIÓTICA ...... 46

2.2 NOVA CANÇÃO DO EXÍLIO ...... 48 2.2.1 Reinventando “A canção” ...... 49

2.3 A REPRESENTAÇÃO ICÔNICA ...... 53 2.3.1 ÁPORO ...... 59 2.3.1.1 Um inseto cava o poema ...... 60 2.3.2 ANÚNCIO DA ROSA ...... 64 2.3.2.1 A poesia que (não) se vende ...... 65

2.4 A REPRESENTAÇÃO INDICIAL ...... 70 2.4.1 VISÃO 1944 ...... 74 2.4.1.1 O poeta canta a Grande Guerra ...... 77 2.4.2 COM O RUSSO EM BERLIM ...... 82 2.4.2.1 A poesia que convoca ...... 84

2.5 A REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA ...... 88 2.5.1 PROCURA DA POESIA ...... 93 2.5.1.1 “Isso ainda não é poesia” ...... 95 2.5.2 O MITO ...... 101 2.5.2.1 Sobre Fulanas e Lauras ...... 106

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 111

4. REFERÊNCIAS...... 114

INTRODUÇÃO

A poesia de Carlos Drummond de Andrade (Itabira, MG, 1902 – Rio de Janeiro, RJ, 1987), como forma de representação, é o objeto desta pesquisa, que tem como proposta a análise de sete poemas de A Rosa do Povo (1945) com base na Teoria Geral dos Signos, desenvolvida pelo norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), no final do século XIX. A nossa questão central é: que efeitos estéticos são provocados pelos modos de representação icônico, simbólico e indicial nos poemas que serão analisados? Assim, a semiótica é usada como uma ferramenta analítica para o estudo da expressividade do texto poético. Neste sentido, Expedito Ferraz Jr. (2012, p.13) expõe como a semiótica de Peirce pode ajudar-nos a compreender a estética de textos literários em prosa ou verso.

No caso específico da literatura, a semiótica pode inclusive ajudar-nos a explicar certas impressões “plásticas” ou “musicais” que experimentamos diante de um poema, de um texto dramático ou de uma narrativa de ficção, quando as cores, formas, sons e ações a que os textos se referem se atualizam de maneira muito nítida em nossos sentidos, fazendo coexistir com o mundo real esse outro mundo, que funciona muitas vezes como reflexo do primeiro, mas é inteiramente feito de palavra. Na perspectiva de uma abordagem semiótica, esses efeitos deixam de ser interpretados apenas como reações subjetivas do leitor e passam a ser encarados como semiose (ação dos signos), isto é, como parte do processo de cognição que caracterizaria o fenômeno literário.

Ao longo de décadas de trabalho, CDA produziu uma vasta e complexa obra, muitas vezes objeto de pesquisas acadêmicas. Ao seu livro de estreia, Alguma Poesia (1930), seguiram-se Brejo das Almas (1934), Sentimento do Mundo (1940), José (1942), A Rosa do Povo (1945), Novos Poemas (1947), Claro Enigma (1951), Fazendeiro do Ar (1953), Vida Passada a Limpo (1958), Lição de Coisas (1964) e Boitempo (1968)1, além de algumas produções publicadas postumamente. Apesar de ter sido consagrado como poeta, o mineiro também produziu em prosa, a exemplo dos textos Contos de Aprendiz (1952) e Cadeira de balanço (1966). Drummond é o primeiro grande poeta brasileiro que emerge depois do Movimento Modernista de 1922. Desde então, o mineiro desperta o interesse dos

1 Ao longo dessa dissertação, adotamos as seguintes siglas nas citações de obras poéticas de Drummond: 1. A Rosa do Povo: RP; 2. Alguma poesia: AP; 3. Sentimento do mundo: SM. Todos os poemas são extraídos do livro Poesia 1930-62: de Alguma Poesia a Lição de Coisas, edição crítica de 10 livros de Carlos Drummond de Andrade, organizada por Júlio Castañon Guimarães e publicada pela Cosac Naify, em 2012. 9

leitores – atraídos, por exemplo, pela temática do cotidiano presente em muitos dos seus versos e pelo tom prosaico de alguns – e de críticos que tentam desvendar os enigmas da sua poética, analisando dos motivos à forma, entre tantos outros aspectos. Admirador de Mário de Andrade, um dos líderes do Movimento, o itabirano dedicou-lhe um dos seus poemas mais conhecidos, publicado em A Rosa do Povo: “Mário de Andrade desce aos Infernos”. Segundo José Guilherme Merquior (2012, p.83), Drummond manteve pontos em comum com os poetas modernistas, como a experimentação poética e temática em torno dos impactos da “modernização” sobre o homem. Para o crítico, a linguagem poética drummondiana nasceu modernista, o que pode ser observado já em Alguma Poesia.

Várias indicações já se encontram, no jovem Drummond, que o ligam à literatura de vanguarda: a) versificação variada, “herética” de seus poemas; b) o papel do humor (até o poema-piada); e, principalmente, c) a frequência com que são tratados os problemas humanos em uma perspectiva grotesca; d) a escrita mesclada ou Stilmischung (correlato estilístico da escrita grotesca), bastante permeável às associações surrealistas (no plano verbal e no plano da imagem ao mesmo tempo); e, finalmente, o uso de “efeitos de distanciamento” (Brecht) testemunham uma concepção não empática, antipatética do lirismo.

Com “Inquietudes na poesia de Drummond”, ensaio publicado na coletânea Vários Escritos, Antonio Candido escreve uma das mais importantes análises sobre a poética, marcada por tensões, do itabirano. Em boa parte da obra drummondiana, há, segundo o crítico, um eu-lírico dilemático, que se encontra em um mundo moderno, cercado de máquinas, indústrias, mas tem, em muitos momentos, os olhos voltados para a sua infância rural, o patriarcalismo familiar; um “eu” que defende a poesia social, ao mesmo tempo em que diz “não faça versos sobre acontecimentos”; e, principalmente, uma persona dominada por um subjetivismo não aceito, “pois cada grão de egocentrismo é comprado pelo poeta com uma taxa de remorso e incerteza que o leva a querer escapar do eu, sentir e conhecer , situar-se no mundo a fim de aplacar-se as vertigens interiores”. (CANDIDO, 2004, p.68). Os conflitos entre o “eu” e o “mundo” são, para Afonso Romano de Sant’anna, o fio condutor da obra de Drummond, que seria essencialmente dialética. Em um primeiro momento ou fase da sua poesia, teríamos o “Eu maior que o Mundo” (que caracterizaria, por exemplo, Alguma Poesia, no qual se introduz a imagem do poeta “gauche”): o “personagem está postado num canto, escuro, imóvel e torto, contemplando a cena à distância e assumindo uma posição predominantemente irônica e 10

egocêntrica” (SANT’ANNA, 2008, p. 17). Em seguida, teríamos o momento “Eu menor que o Mundo”, no qual o eu-lírico sente o peso da realidade e da passagem do tempo. Por fim, chegaríamos à fase de equilíbrio, do “Eu igual ao Mundo”:

A essa altura, sua poesia converte-se num sistema de memória, numa maneira de se reunir através do tempo. O sujeito (gauche), que vinha interagindo com o objeto (mundo), encontra o equilíbrio (relativo). A ironia inicial que se entretinha no simples humorístico desenvolve sua dialética latente e transmuta-se num exercício metafísico (SANT’ANNA, 2008, p. 17).

Entre os principais livros do itabirano, A Rosa do Povo (RP) – com 55 poemas escritos entre 1943 e 1945 – ganhou destaque por trazer versos que representam um contexto social conturbado, marcado pela Segunda Grande Guerra, em âmbito mundial, e pela Ditadura Vargas, no Brasil. Apesar disso, na obra encontramos um complexo trabalho com a linguagem que está longe de ser usada apenas como um meio para se transmitir uma mensagem social. É o que destaca Simon (1978, p.17), ao considerá-la um marco na trajetória poética de Drummond, pois “conjugam-se nela o máximo empenho de participação social e a máxima liberdade de experimentação poética”. Justamente por causa dessa riqueza estética, ainda há muito a ser feito para desvendar “o reino das palavras” criado pelo itabirano, especialmente no que se refere ao uso do código verbal como forma de representação, o que neste estudo relacionamos à Teoria Geral dos Signos. A aplicação da semiótica peirciana ao texto de Drummond amplia as possibilidades de leitura de sua poesia, ao destacar o processo de representação, e ratifica o trabalho do poeta com a linguagem. Nesta pesquisa, pretendemos demonstrar que, em A Rosa do Povo, CDA utiliza o ícone, o índice e o símbolo de forma bastante equilibrada, explorando as três formas de representação, ou seja, as diversas potencialidades da palavra/signo. A semiótica peirciana surgiu como a teoria de todas as linguagens e carrega uma proposta ousada: explicar que o homem significa todas as coisas do mundo representando-as por meio de signos, sendo estes, de maneira muito simplificada, tudo aquilo que substitui algo (seu objeto), evocando-o na mente de alguém, de certa forma. No século XX, com a ascensão da sociedade da informação, as ideias de Peirce foram se tornando cada vez mais valorizadas e usadas em estudos sobre as linguagens das mais variadas ciências, interessando de maneira especial às ciências da comunicação e às artes, chegando à literatura. Nessa mesma época, paralelamente, se desenvolveram outras correntes de estudo da linguagem também denominadas semiótica, como a Semiótica Francesa ou Greimasiana, a Semiótica Russa ou da Cultura e a vertente 11

italiana de Umberto Eco. Embora recebam o mesmo título, essas correntes são bem diferentes da que adotamos, apesar de todas se voltarem, de forma geral, para os processos de significação. De acordo com a teoria de Peirce, o signo pode representar seu objeto de três modos: icônico, indicial e simbólico. Na primeira forma, o processo de representação acontece porque o signo mantém uma relação de semelhança com o que está representando, compartilha com ele uma qualidade (como em uma pintura figurativa); na segunda, há uma ligação física entre signo e objeto (como a pegada de um animal); e na terceira o signo só representa o seu objeto por força de uma lei, como acontece com a linguagem verbal, que nos interessa especialmente. Ao usar essa classificação para a análise de textos literários, é preciso lembrar que, antes de tudo, a palavra é signo simbólico, o que, contudo, não a faz perder as suas potencialidades icônica e indicial, mediadas pelo símbolo. Assim, ao longo das análises, buscamos mostrar que, com o símbolo, a poesia drummondiana explora a dimensão convencional da palavra, lidando com códigos sociais e literários, rompendo com eles ou confirmando-os. Com o índice, o poeta trabalha a palavra como meio de referir-se a algo real, concreto, apontando para o contexto de produção da obra. O ícone dá vida à poesia, mostrando-nos visual e sonoramente (e em alguns casos de forma tátil) o que está sendo representado ou nos fazendo viver sensações semelhantes às que estão sendo evocadas no processo de representação. Com propósitos apresentados, a dissertação foi organizada em dois capítulos, o primeiro teórico e o segundo analítico. O Capítulo I divide-se em duas partes: a primeira dedicada à apresentação inicial das ideias sobre representação e signo formuladas ao longo do tempo e, principalmente, à leitura da Teoria Geral dos Signos desenvolvida por Peirce. Neste momento, recorremos à obra traduzida Semiótica e Filosofia (1975), de Peirce, na qual encontramos as bases da semiótica norte-americana, e nos servimos, principalmente, de obras de Lucia Santaella, maior referência nos estudos da semiótica peirciana no Brasil, entre outros nomes importantes, como Winfred Nöth. Ainda no Capítulo I, voltamo-nos para a origem da Teoria Geral dos Signos, lembrando a fenomenologia peirciana, segundo a qual todo fenômeno aparece à mente humana em gradação de três: primeiridade, secundidade e terceiridade. Essa noção fundamental nos permitiu, então, falar sobre o signo e as principais tricotomias da teoria peirciana, centradas nas relações entre signo, objeto e interpretante.

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Santaella (1986, p.12) apresenta o seguinte conceito peirciano de signo:

Um signo intenta representar, em parte pelo menos, um objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo se o signo representar seu objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afeta uma mente, de tal modo que, de certa maneira, determine naquela mente algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa mediata é o objeto, pode ser chamada de interpretante.

O objeto é aquilo que é representado pelo signo e o interpretante o resultado da ação do signo ou uma espécie de tradução do signo que na verdade é outro signo. Ao processo de ação do signo chamamos semiose, como nos explica Nöth (2003, p.66):

A interpretação de um signo é, assim, um processo dinâmico na mente do receptor. Peirce (CP, 5.472) introduziu o termo semiose para caracterizar tal processo, referido como a “ação do signo”. Também conceituou semiose como o “processo no qual o signo tem um efeito cognitivo sobre o intérprete”.

O mesmo estudioso (NOTH, 2003, p. 66), aliás, faz uma afirmação muito importante: “para definir a semiótica peirciana é preciso dizer que não é bem o signo, mas a semiose que é o objeto de estudo”. Com esse esclarecimento, podemos ressaltar que não nos interessa apenas identificar o signo, mas, sobretudo, estudar a semiose, ação dos signos. Voltando às tricotomias da Teoria Geral dos Signos, no capítulo explicamos que as principais são baseadas no signo consigo mesmo, no signo com o seu objeto, e no signo com o seu interpretante, sendo a segunda divisão a mais importante por tratar da representação propriamente dita. Na segunda parte do primeiro capítulo, falamos sobre as pesquisas de aplicação da semiótica norte-americana à literatura, usando como referências textos de Décio Pignatari, Ferraz Jr. e Santaella. Lembramos o pioneirismo de Décio Pignatari com sua tese Semiótica e Literatura que, mesmo focada na representação icônica, foi fundamental para que a teoria de Peirce fosse usada para a análise literária. Nessa etapa, também trouxemos trechos de análises realizadas por pesquisadores como Ferraz Jr (2012), nas quais se demonstra que, no texto literário, os modos de representação simbólico e indicial podem ser tão ou mais expressivos do que o icônico. No Capítulo II, apresentamos a análise de sete poemas de A Rosa do Povo, escolhidos principalmente por causa da relação entre a expressividade e o modo de representação sígnica que consideramos preponderantes em cada um deles. Desta forma, selecionamos alguns poemas cujo valor estético se relaciona, predominantemente, aos modos de representação icônico (“Áporo” e “Anúncio da 13

Rosa”), indicial (“Visão 1944” e “Com o russo em Berlim”) e simbólico (“Procura da Poesia” e “O mito”). Mas, é preciso destacar que em muitos deles encontramos, além do modo de representação predominante, os outros dois, com maior ou menor força expressiva, o que demonstra a riqueza representativa da poesia de Drummond. Também apresentamos separadamente uma leitura de “Nova Canção do Exílio”, poema cuja significação está ligada aos três modos de representação de maneira bastante equilibrada. Sobre a análise semiótica, Ferraz Jr. (2012, p. 33) esclarece:

As situações práticas de comunicação envolvem, em geral, a atuação simultânea de símbolos, índices e ícones. A semiose de um texto literário não é diferente, o que torna praticamente impossível isolarmos um texto puramente simbólico, indexical ou icônico. Podemos, todavia, identificar contextos em que um desses modos de representar sobressai aos demais, tornando-se determinante para a compreensão dos efeitos expressivos que o texto busca ressaltar.

Com fins didáticos, dividimos a análise dos poemas segundo o modo de representação que se destaca, ou seja, o Capítulo II é subdividido em três partes que abordam, respectivamente, a representação icônica, a indicial e a simbólica. Apesar dessa organização, esclarecemos que o nosso propósito não é classificatório. A ordenação servirá apenas para alcançarmos um melhor entendimento da poética drummondiana, ao mesmo tempo em que acreditamos estar contribuindo para o desenvolvimento dos estudos da semiótica peirciana aplicada à literatura no Brasil. Nas três partes do capítulo também há uma introdução sobre como cada um dos modos de representação aparece, de forma geral, em A Rosa do Povo. Assim, além dos sete poemas analisados, realizamos pequenas leituras de outros poemas do mesmo livro, na tentativa de desenhar uma ideia mais ampla da representação na obra estudada. Para a realização das análises, além das leituras teóricas sobre a semiótica de Peirce, foi fundamental o levantamento da fortuna crítica a respeito da obra de Drummond e, mais especificamente, sobre A Rosa do Povo. Fizemos, entre outras, a leitura de Antonio Candido, autor do citado “Inquietudes na Poesia de Drummond”. Além dele, foram fundamentais as teses de Iumma Maria Simon, José Guilherme Merquior e Afonso Romano de Sant’anna. Destacamos, entre os três, a tese de Simon sobre A Rosa do Povo que, mesmo sem ter usado a semiótica como fundamentação teórica, ao nosso entender comunga, em alguns pontos, com ideias semióticas, o que se tornou fundamental em muitos momentos da nossa análise. Nessa perspectiva, sobre a leitura dos poemas, paralelamente à nossa percepção crítica, reconhecemos tudo de 14

significativo que já foi dito por estudiosos da poesia. Boa parte dos poemas aqui colocados como corpus foi lida por grandes críticos, como é o caso de Áporo, que recebeu uma análise de Décio Pignatari da qual nos valemos. Na última parte da dissertação, apresentamos as conclusões relativas à análise dos poemas citados, demonstrando as relações entre os modos de representação sígnica e o poder expressivo dos poemas estudados. Percebemos que em A Rosa do Povo a linguagem – com o seu poder de símbolo, de ícone e de índice - é a questão central. Em Drummond, a palavra realmente tem “mil faces secretas sob a face neutra”, como o eu- lírico bem afirma em “Procura da Poesia”. Então, deixemos o convite do poeta: “chega mais perto e contempla as palavras”.

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CAPÍTULO I

O MUNDO É SEMIÓTICO

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1.1 A TEORIA GERAL DOS SIGNOS

A semiótica peirceana é, antes de tudo, uma teoria sígnica do conhecimento, que desenha, num diagrama lógico, a planta de uma nova fundação para se repensar as eternas e imemoriais interrogações acerca da realidade e da verdade (SANTAELLA, 2004a, p.90).

Um desejo antigo e eterno de compreensão do mundo e de si mesmo levou o homem a pensar e repensar a natureza daquela que não só media, mas que também é constitutiva dessa relação homem-mundo: a linguagem. Palavras, imagens, sons, aromas, gestos nos dizem coisas o tempo inteiro, inserindo-nos em um universo carregado de significações. Mas, como as linguagens funcionam? Como elas se colocam entre um ser e tudo que o rodeia? A tentativa de responder essas perguntas passa necessariamente pela palavra representação. Para entender o mundo, nós o representamos com o uso de linguagens diversas, sendo estas, segundo o lógico e filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce, constituídas de signos, entes que evocam outras coisas por possuir uma ligação com elas, por semelhança, por convenção ou por uma relação física/existencial. Buscando explicar como uma mente apreende e entende tudo aquilo que se coloca diante dela, Peirce desenvolveu a denominada Teoria Geral dos Signos ou semiótica peirceana. A semiótica norte-americana, como também é conhecida, emergiu no final do século XIX, dando status de ciência aos estudos das linguagens em geral e, em certos aspectos, unindo e sistematizando alguns conhecimentos sobre os signos que foram sendo desenvolvidos, principalmente por filósofos, desde a Antiguidade. Apesar disso, segundo Santaella (2004a, p.108), é preciso lembrar que Peirce chegou ao signo e sua divisão em ícones, índices e símbolos dentro de uma concepção sistemática e não por meio de pesquisas bibliográficas.

As distinções técnicas por ele elaboradas são partes integrantes de uma concepção sistemática e coesamente entrelaçada da semiótica, de modo que essas distinções não podem ser atomizadas e desligadas desse contexto para serem usadas dentro de molduras de pressupostos e postulações que lhe são radicalmente estranhas.

As ideias semióticas estão em processo de gestação desde a Antiguidade, o que demonstra a própria etimologia da palavra, de origem grega e centrada na noção de signo. “A Semiótica como teoria geral dos signos teve várias denominações no decorrer

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da história da filosofia. A etimologia do termo nos remete ao grego semeîon, que significa ‘signo’, e sêma, que pode ser traduzido como ‘sinal’ ou também ‘signo’”. (NÖTH, 2003, p.21). Traçando um panorama da semiótica, Nöth (2003) mostra a preocupação dos filósofos com a linguagem em diferentes períodos da história da humanidade, dando- nos a oportunidade de entender como esse estudo se desenvolveu até chegar à moderna Teoria Geral dos Signos. Em muitos momentos, é clara a ligação entre o pensamento de Peirce e a filosofia de alguns semioticistas precursores. Nesse contexto, uma das primeiras noções de signo surgiu na Antiguidade Clássica com Platão (427-347), que criou um modelo de estrutura triádica constituído por nome, noção ou ideia, e coisa. Para o filósofo, o nome (signo) carrega uma noção relacionada à coisa, o que já lembra a relação de representação trazida por Peirce, centrada na relação entre signo, objeto e interpretante, o que detalharemos a seguir. Aqui, contudo, é preciso se anunciar uma diferença importante entre tais concepções, porque para Platão as cognições “concebidas por meio de signos são apreensões indiretas e, por esse motivo, inferiores às cognições diretas” (NÖTH, 2003, p.28). Ou seja, para o filósofo, poderíamos apreender o mundo sem signo, o que para Peirce era impossível. A ideia de que toda a compreensão do mundo é mediada por signos é um dos pilares da semiótica de extração peirceana, que não concebe uma ligação direta entre uma mente e o mundo. Nesse mesmo caminho, contrariando Platão, na Idade Média os escolásticos entendem semiótica principalmente como lógica e João de São Tomás afirma que toda cognição se dá por meio de signos. De acordo com Nöth (2003, p. 36), com João de São Tomás se marca a ideia de signo como meio e a “afirmação de que os signos não são apenas instrumentos de comunicação, mas também de cognição”. Santaella (1986, p.3-4), ao apresentar a trajetória de Peirce no desenvolvimento da semiótica, lembra que antes de tudo ele era um lógico. Desde criança, estudando as mais diversas ciências, na verdade o norte-americano tentava entender o funcionamento delas como lógica, ou seja, entender seus métodos de raciocínio, suas linguagens, o que para ele sempre foi concebido dentro de uma visão semiótica do mundo. Mas Peirce também era filósofo e se aprofundou em estudos de diversas correntes da filosofia “dos pré-socráticos e gregos aos empiristas ingleses, dos escolásticos a Descartes e todos os alemães” (SANTAELLA, 1986, p.3-4). Assim, a semiótica peirceana é fruto dos estudos de lógica e filosofia do norte-americano e dialoga com séculos de conhecimento

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sobre linguagem.

De tudo isso, cumpre, por enquanto, ser enfatizado que foi de dentro do diálogo de um só homem com 25 séculos de tradição filosófica ocidental, assim como foi de dentro de um gigantesco corpo teórico que veio gradativamente emergindo a sua teoria lógica, filosófica e científica da linguagem, isto é, a Semiótica. Aproximar-se, portanto, dessa Semiótica, ignorando suas fundações e seu caráter de diálogo com a tradição, é perder 99% de seu potencial instigador e enriquecedor para a história da Filosofia. (SANTAELLA, 1986, p.4).

Ainda estabelecendo essa relação das ideias de Peirce com pensamentos sobre o signo desenvolvidos anteriormente, Nöth (2003) cita a noção lógica de signo proposta por Aristóteles (384-322), que o definia como uma relação em que se (q) implica (p), (q) atua como signo de (p). Também na Antiguidade, Aurélio Agostinho (354-430), considerado o maior dos semioticistas de seu tempo, faz uma distinção entre coisas que são signos e coisas que não são signos, sendo estas tudo aquilo que nunca foi usado como signo.

Agostinho via as duas esferas do mundo ligadas pelo processo de semiose. Por isso concluiu que ‘as coisas são conhecidas por meio de signos (I, 2,2)’. (...) Uma dimensão inovadora na semiótica de Agostinho foi o fato de ter estendido os estudos semióticos dos signos verbais aos signos não verbais (NÖTH, 2003, p. 33).

Essa concepção de signos verbais e signos não verbais lançada por Agostinho, aliás, merece destaque porque nos remete à expansão da semiótica em relação à linguística, outra ciência que ganhou notoriedade no século XIX, e que se centra nos estudos das línguas (verbal) e não das linguagens em geral. Com a semiótica, o que fica ainda mais evidente no contexto tecnológico em que vivemos, a noção de linguagem se ampliou de forma a extrapolar os limites da mente humana, passando aos universos microcelular e das máquinas. Assim, entender o funcionamento dos signos, a semiose, torna-se cada vez mais importante para a compreensão do significado que damos a tudo que está ao nosso redor.

Ora, a proliferação ininterrupta de signos vem criando cada vez mais a necessidade de lê-los, dialogar com eles em um nível um pouco mais profundo do que aquele que nasce da mera convivência e familiaridade. O aparecimento da ciência semiótica desde o final do século XIX coincidiu com o processo expansivo das tecnologias da linguagem. A própria realidade está exigindo de nós uma ciência que dê conta dessa realidade dos signos em evolução contínua (SANTAELLA, 2012, p.XIV).

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1.1.1 Uma teoria sistemática

Ao fazer a ressalva de que a Teoria Geral dos Signos, apesar de dialogar com uma longa tradição de estudos sobre a linguagem, faz parte de uma concepção sistemática e coesa, Santaella (2004a) lembra que a compreensão do pensamento de Peirce passa pelo estudo da sua teoria do conhecimento, que tem por base sua fenomenologia, para chegar à semiótica propriamente dita. Como ponto de partida, podemos lembrar que a grande preocupação de Peirce era o estabelecimento de um método para que as ciências chegassem à verdade, o que, para o teórico, só seria possível por meio da lógica, dividida em: 1. Gramática especulativa, na qual encontramos a Teoria Geral dos Signos; 2. Lógica crítica, que trata de inferências, raciocínios ou argumentos; 3. E metodêutica ou retórica especulativa, que analisa os métodos provenientes dos diversos tipos de raciocínio.

Por isso, a lógica, também chamada de semiótica, trata não apenas das leis do pensamento e das condições da verdade, mas, para tratar das leis do pensamento e da sua evolução, deve debruçar-se, antes, sobre as condições de geração dos signos (SANTAELLA, 2012, p. 3).

Percorrendo esse caminho, destacamos que, entre 1868 e 1869, Peirce publicou um conjunto de artigos sobre a cognição nos quais, segundo Santaella (2004b, p.31), “se voltou imediatamente para as questões de metodologia filosófica, colocando a hegemônica herança cartesiana sob interrogação”. Desses estudos, podemos apreender algumas das ideias que fundamentam a semiótica peirceana e que o levaram a um dos axiomas mais lembrados quando se fala dessa teoria: o de que o homem é um signo. Em oposição aos Escolásticos, em 1637 René Descartes publica O Discurso do Método, um tratado matemático e filosófico que destaca a razão e a capacidade do homem de chegar à verdade e ao conhecimento por meio dela, sem a necessidade dos sentidos. As ideias cartesianas são ancoradas no conceito de intuição, que, como explica Santaella (2004b, p.33), “trata-se de um ato de conhecimento imediato, instantâneo, direto, enfim, não mediado por nenhuma cognição prévia”. Mas se a cognição do homem é intuitiva, direta, sem as cognições prévias, então é possível pensar sem signos? Essa foi uma das questões que incomodaram Peirce e que o levaram a lançar os estudos que tentaram desconstruir o cartesianismo. Para Peirce, a cognição não é intuitiva e sim inferencial porque chegamos a certas conclusões ao abrirmos uma espécie de baú de conhecimentos/signos que vamos adquirindo com a 20

experiência. A natureza do signo é evolutiva e, com isso, o conhecimento humano vai sendo expandido em um processo que ficou conhecido dentro dessa teoria como semiose ilimitada.

Como consequência do terceiro princípio, o de que só podemos pensar em signos, decorre que em qualquer momento que tenhamos um pensamento, estará presente na consciência algum sentimento, imagem ou concepção, ou outra representação, que serve como um signo (SANTAELLA, 2004b, p.50).

A teoria peirceana do conhecimento é muito vasta e aqui não podemos e nem pretendemos abarcá-la, existindo apenas o propósito de apresentar um dos pontos que consideramos de grande importância para a compreensão do processo sígnico. Para Peirce, a cognição é um processo que se desenvolve continuamente e sempre através de signos. E voltando à palavra processo, podemos falar sobre como aquilo que nos é exterior chega a nossa mente, uma das questões mais importantes para a Teoria Geral dos Signos. De acordo com Santaella (2004b, p.30), por volta de 1902 Peirce retoma um estudo iniciado em 1867 (“Sobre uma nova lista de categorias”) e desenvolve o que ficou conhecido como sua fenomenologia ou faneroscopia. A compreensão da fenomenologia peirceana é imprescindível para chegarmos ao real entendimento da Semiótica, já que o conceito de signo e dos seus tipos está intimamente relacionado às categorias.

1.1.2 Fenomenologia

De forma simples, a fenomenologia é o estudo de como se apreendem todos os fenômenos, sendo estes tudo o que se coloca diante de uma mente, seja isso real ou imaginado.

Como ponto de partida, sem nenhum pressuposto de qualquer espécie, Peirce voltou-se para a experiência ela mesma. Como entidade experiencial (fenômeno ou phaneron), considerou tudo aquilo que aparece à mente. Sem nenhuma moldura preestabelecida, sua noção de fenômeno não se restringia a algo que podemos sentir, perceber, inferir, lembrar, ou localizar na ordem espaço-temporal que o senso comum nos faz identificar como sendo o “mundo real”. Fenômeno é qualquer coisa que aparece à mente, seja ela meramente sonhada, imaginada, concebida, vislumbrada, alucinada... Um devaneio, um cheiro, uma ideia geral e abstrata da ciência... Enfim, qualquer coisa. (SANTAELLA, 2004a, p.7).

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Observando os fenômenos, Peirce chegou à conclusão de que eles se apresentam à mente em gradação de três categorias denominadas inicialmente de qualidade, relação e representação e, depois, de primeiridade, secundidade e terceiridade. A noção de primeiridade tem como referência o próprio fenômeno que possui qualidades, ou seja, características próprias, que o distingue de outros, independentemente de se colocar ou não diante de uma mente. O conceito de secundidade, por sua vez, é carregado pela ideia de ocorrência, da corporificação de uma qualidade em determinado espaço e tempo. A terceiridade, por fim, ocorre quando uma mente se vê diante de um fenômeno e o compreende e é nela que nos deparamos com o signo propriamente. Peirce (1975, p.136) fala sobre as categorias:

Primariedade é o modo de ser daquilo que é tal como é, positivamente e sem referência a qualquer outra coisa. Secundariedade é o modo de ser daquilo que é tal como é com respeito a um segundo, mas independentemente de qualquer terceiro. Terciariedade é o modo de ser daquilo que é tal como é, colocando em relação recíproca um segundo e um terceiro2.

Se no campo da primeiridade encontramos apenas as possibilidades, porque estamos falando de qualidades não corporificadas, é na secundidade que o fenômeno passa a existir propriamente e na terceiridade que ele passa a ser inteligível a uma mente interpretadora. Alguns estudiosos, na tentativa de diminuir o alto grau de abstração da teoria, deram exemplos de como encontramos na vida prática a primeiridade, a secundidade e a terceiridade. Pignatari (2004, p. 43) cria a seguinte situação:

Estou caminhando por uma via de um grande centro urbano, sem que nenhuma ideia me ocupe a mente de modo particular e nenhum estímulo exterior enrijeça a minha atenção: em estado aberto de percepção cândida, digamos. Ou seja, em estado de primeiridade. Por um acidente qualquer – um raio de sol refletido no vidro de um edifício – minha atenção isola o referido edifício do conjunto urbano, arrancando-me da indeterminada situação perceptiva do estado anterior, ancorando-me no aqui-e-agora da secundidade. Em seguida, constato que essa construção é um “arranha-céu de vidro”, que se insere no sistema criado por Mies van der Roher, nos anos 20; que Mies, por seu lado, nada mais fez que desenvolver as possibilidades construtivas do aço e do vidro, coisa que Paxton já havia feito no seu famoso “palace made o’windows” (Thackeray), o Palácio de Cristal, de Londres, em 1851, etc, etc. Este estado de consciência corresponde à terceiridade.

Esse exemplo, no qual a terceiridade aparece como uma série de conclusões, lembra-nos que as ideias de cognição de Peirce são baseadas em inferências, o que demonstra que a ação dos signos está diretamente relacionada à outra noção: a de que a

2 Em Semiótica e Filosofia (1975), tradução da obra de Peirce, algumas vezes aparecem os termos primariedade, secundariedade e terciariedade, ao invés das formas primeiridade, secundidade e terceiridade adotadas pela maior parte dos estudiosos desta semiótica, a exemplo de Lúcia Santaella. 22

cognição é um processo contínuo, um pensamento sempre é fruto de um anterior. Assim, algo só é entendido como signo porque a mente que assim o interpreta possui conhecimentos prévios que a remetem ao objeto que é representado. Se o signo substitui algo em determinado aspecto, esse aspecto deve ser familiar para quem o interpreta. A fenomenologia peirceana, que, como vai ficar mais claro, guia todo o caminho do conceito, da classificação e ação dos signos, mostra como o nosso corpo está em constante processo de interação com tudo o que nos rodeia, traduzindo esse contato em sensações, sentimentos e, de maneira mais elaborada, em pensamentos, argumentos, significados. Para finalizar esse tópico, citamos uma passagem de Santaella (1986, p.11) que consideramos esclarecedora em relação a conceitos tão abstratos:

Primeiridade é a categoria que dá à experiência sua qualidade distintiva, seu frescor, originalidade irrepetível e liberdade. Não a liberdade em relação a uma determinação física, pois que isso seria uma proposição metafísica, mas liberdade em relação a qualquer elemento segundo. O azul de um certo céu, sem o céu, a mera e simples qualidade do azul, que poderia também estar em seus olhos, só o azul é aquilo que é tal qual é, independente de qualquer outra coisa. Mas, ao mesmo tempo, primeiridade é um componente de um segundo.

Secundidade é aquilo que dá a experiência seu caráter factual, de luta e confronto. Ação e reação ainda em nível de binaridade pura, sem o governo da camada mediadora da intencionalidade, razão ou lei.

Finalmente, terceiridade, que aproxima um primeiro de um segundo numa síntese intelectual, corresponde à camada de inteligibilidade, ou pensamento em signos, através da qual representamos e interpretamos o mundo. Por exemplo, o azul simples e positivo do céu é o primeiro. O céu, como lugar e tempo, aqui e agora, onde se encarna o azul é o segundo. A síntese intelectual, elaboração cognitiva – ao azul no céu, ou o azul do céu – é o terceiro.

1.1.3 Signo, Objeto e Interpretante: a semiose

Ao longo de sua obra, Peirce apresentou vários conceitos de signo, mas em todos fica claro que a ação sígnica é de natureza triádica, envolvendo o signo, o objeto e o interpretante. De forma bastante elementar, dizemos que o signo se relaciona a um objeto ao representá-lo, mas nesse processo afeta uma mente e produz outro signo, denominado seu interpretante. Segundo Peirce (1975, p.94):

Um signo, ou representamem, é algo que, sob certo aspecto ou de algum modo, representa alguma coisa para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo melhor desenvolvido. Ao signo, assim criado, denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, o seu objeto. Coloca-se no lugar desse objeto, não sob todos os aspectos, mas com referência a um tipo de ideia que tenho, por vezes, denominado fundamento do representamem.

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Podemos recorrer a um exemplo bastante simples para explicar o processo de representação. Uma palavra, ao representar o seu objeto (sendo este qualquer coisa existente ou não), gera na mente de quem a lê uma imagem dele que é um novo signo, ou seja, o seu interpretante. Sobre o conceito de representação, é interessante expor o que Santaella (2004a, p.23) diz, citando Peirce.

Um excelente sinônimo para “representa” é a expressão “está para”, ou melhor, “está no lugar lógico de”, ou conforme Peirce nos diz: “representar: estar em lugar de, isto é, estar numa relação com outro que, para certos propósitos, é considerado por alguma mente como se fosse esse outro” (2.273). Ou então: “o signo está no lugar de algo para a ideia que produz ou modifica” (1.339).

Definindo o signo dentro de um processo de representação que se dá em uma relação de três, Peirce (1975, p.115) destaca a denominada relação triádica genuína.

Um Signo, ou representamem, é um Primeiro que se põe numa relação triádica genuína com um Segundo, chamado seu Objeto, de modo a ser capaz de determinar um Terceiro, chamado seu Interpretante, o qual se coloca em relação ao Objeto na mesma relação triádica em que ele próprio está em relação a esse mesmo Objeto. A relação triádica é genuína, isto é, seus três elementos estão por ela relacionados de maneira tal que não consiste em qualquer complexo de relações diádicas.

Nessa relação, o signo é o que primeiro aparece no processo de representação. Da relação entre signo e objeto (o segundo) é que se gera o terceiro, o seu interpretante. Ao processo de representação desencadeado por essa relação triádica denominamos semiose.

A interpretação de um signo é, assim, um processo dinâmico na mente do receptor. Peirce (CP, 5.472) introduz o termo semiose para caracterizar tal processo, referido como “a ação do signo”. Também conceituou semiose como “o processo no qual o signo tem um efeito cognitivo sobre o intérprete” (CP, 5.484). (NÖTH, 2003, p.66)

A semiose pode ser ilustrada pela figura abaixo, extraída de Pignatari (2004,p.48). Figura I:

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Santaella (1986, p. 12) esclarece: “a partir da relação de representação que o signo mantém com o seu objeto, produz-se na mente interpretadora outro signo que traduz o significado do primeiro (é o interpretante do primeiro). Portanto, o significado do signo é outro signo”. Denominamos semiose ilimitada o processo em que o signo gera outro signo ininterruptamente, sendo este determinado pelo fato do signo representar o seu objeto apenas em algum aspecto, não em todos. Mesmo que, teoricamente, esse processo seja potencialmente infinito, na vida prática a semiose sempre será interrompida. Sobre isso, são esclarecedoras as palavras de Santaella (2004a, p.30):

Como se pode ver, a ligação do signo com o objeto se dá sob algum aspecto ou qualidade, quer dizer: o signo está ligado ao objeto não em virtude de todos os aspectos do objeto, porque se assim fosse, ele seria o próprio objeto. Pois bem, ele é signo justamente porque não pode ser o objeto. Desse modo, haverá muitos aspectos do objeto que ele não tem poder de recobrir. O signo estará, nessa medida, sempre em falta com o objeto. Daí sua incompletude e consequente impotência, sua tendência a se desenvolver num interpretante onde busca se completar.

Como o signo só tem a capacidade de estar no lugar de alguma coisa em dado aspecto, classifica-se o objeto em dinâmico e imediato. Segundo a semiótica peirceana, a ideia da semiose ilimitada é sempre tentar se aproximar o máximo possível de algo real, mas quase intangível, denominado objeto dinâmico, e para que isso aconteça desenvolvemos signos (interpretantes) que representam o objeto imediato, sendo este também de natureza sígnica por se tratar de uma representação do verdadeiro objeto. Segundo Santaella (2004a, p.40),

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A noção de objeto imediato é introduzida por Peirce para demonstrar a impossibilidade de acesso direto ao objeto dinâmico do signo. O objeto dinâmico é inevitavelmente mediado pelo objeto imediato.

A mesma autora (2004a, p.39) expõe algumas características do objeto imediato: 1) Está dentro do próprio signo 2) É uma sugestão ou alusão que indica o objeto dinâmico 3) É o objeto tal como está representado no próprio signo, ou tal como o signo o apresenta; e 4) É o objeto tal como o signo permite que o conheçamos. No que se refere aos três elementos da relação triádica, citamos, por fim, a classificação peirceana dos interpretantes, que também é fundamental para a compreensão de como acontece a semiose. Conforme Santaella (2004a, p.67-68), existem três vastos princípios que norteiam a divisão do interpretante, mas aqui citamos apenas o que para ela “nos habilita a compreender o processo de geração do interpretante”. Trata-se da segunda classificação do interpretante que é baseada na fenomenologia peirceana e os divide em imediato (primeiridade), dinâmico (secundidade) e final (terceiridade). Nesse caso, é importante esclarecer que se trata do processo de tradução de um signo em outro, que aqui é o interpretante final. Destarte, mais uma vez nos deparamos com uma evidência de que a semiótica norte-americana é sistêmica ao voltarmos a um dos primeiros pensamentos de Peirce de que o signo se encontra na terceiridade como o resultado cumulativo de uma primeiridade em relação a uma secundidade.

1.1.4 Tricotomias

A partir da sua fenomenologia e da relação entre os três elementos da semiose, Peirce criou uma imensa classificação dos signos em tricotomias, ou seja, grupos de três. A primeira toma como referência a relação do signo consigo mesmo, a segunda a do signo com o objeto e a terceira a do signo com o interpretante. Apesar de falarmos da primeira e terceira tricotomias, nessa dissertação daremos atenção especial à relação do signo com o seu objeto porque é nela que acontece o processo de representação que estamos pesquisando.

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1.1.5 Relação signo-signo

A primeira tricotomia é a que considera o signo em si mesmo, ou seja, analisando o modo como ele aparece sem considerar sua relação com um objeto ou a geração do interpretante. Dessa forma, podemos ter um quali-signo, quando o signo se mostrar como uma mera qualidade, um sin-signo, quando ele for um existente, e um legi-signo, quando for uma lei. As três divisões, mais uma vez, lembram a primeiridade, a secundidade e a terceiridade da fenomenologia peirceana. Vamos explicá-las melhor. Ao considerarmos algo como um quali-signo, estamos afirmando que o que se coloca em evidência é uma qualidade, contudo é preciso que se faça isso com a ressalva de que estamos falando de uma possibilidade e que, na vida prática, as qualidades aparecem em objetos, corporificadas, levando-nos à secundidade e ao sin-signo. Apesar disso, em dadas situações, é a qualidade que se coloca diante dos nossos olhos, como exemplifica Santaella (1986, p.13):

Uma tela inteira de cinema que, durante alguns instantes, não é senão uma cor vermelha, forte e luminosa. Quem assistiu a Gritos e Sussuros, de Bergman, deve se lembrar disso. Era a pura cor, positiva e simples, tão proeminente e absorvente que, no caso, nem sequer se podia lembrar ou perceber que aquela cor estava em uma tela. É a qualidade apenas que funciona como signo, e assim o faz porque se dirige para alguém e produzirá na mente desse alguém alguma coisa com um sentido vago e indivisível. É esse sentimento indiscernível que funcionará como objeto do signo, visto que uma qualidade, na sua pureza de qualidade, não representa nenhum objeto. Ao contrário, ela está aberta e apta a criar um objeto possível.

Um sin-signo possui qualidades, assim como a secundidade pressupõe a primeiridade, mas nesse caso o que importa é o fato dele ser único (sin), significando que é a sua existência real, no tempo e no espaço, que o torna signo. Se os quali-signos abrem o campo das possibilidades (uma cor pode levar as pessoas a pensarem em coisas bem diferentes, por exemplo), os sin-signos o restringem por estarem diretamente relacionados a algo concreto, existente. Mais uma vez Santaella (2004a, p.101) traz o exemplo: “Um sinal vermelho, numa esquina, que nos faz estancar o carro, é prioritariamente um sin-signo, embora a qualidade da luz como vermelho seja um quali- signo”. Nesse caso, apesar de termos aprendido que a luz vermelha significa parar, o que interessa é o exato momento em que ela se coloca diante dos nossos olhos, como um fenômeno, que nos faz reagir.

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Finalizando a primeira tricotomia, temos os legi-signos, que funcionam “na medida em que a lei é tomada como propriedade que rege seu funcionamento sígnico” (SANTAELLA, 2004a, p.101). Assim, nesse caso, o que se evidencia não é a qualidade e nem a existência real do signo, mas uma convenção social que diz que aquela entidade irá representar outra coisa. A linguagem verbal, por exemplo, é composta de legi- signos. As palavras em si, de maneira geral, não possuem qualidades que nos remetam aos seus significados, sendo estes construídos por força de leis.

1.1.6 Relação signo-interpretante

Ao analisar a relação do signo com o seu interpretante, chegamos à tríade rema, dicente e argumento, que segundo Nöth (2003, p.87), citando Peirce, corresponde à antiga divisão da lógica em termo, proposição e argumento. Acrescentamos que essa divisão é baseada principalmente na noção de que o interpretante final é sempre uma ideia, o que não a impede de ser aplicada a outros tipos de interpretantes. Como dito, toda a teoria dos signos está relacionada à fenomenologia de Peirce e, na terceira tricotomia (como na primeira), as ideias de rema, dicente e argumento estão ligadas à primeiridade, à secundidade e à terceiridade. Um rema (do grego palavra) é algo que não pode ser analisado como verdadeiro ou falso por não estar inserido em uma proposição, sendo assim apenas uma possibilidade. Isso porque “as palavras enunciadas isoladamente não são incapazes de serem certificadas” (NÖTH, 2003, p.88). Um dicente é algo que já veicula informação e, por isso, pode ser avaliado como verdadeiro ou falso. O argumento é “o signo que supera o quadro proposicional e passa a participar de um discurso racional mais estendido” (NÖTH, 2003, p.88). Para esclarecer essa classificação, usamos Ferraz Jr. (2012, p. 26) que adota os termos mostrar, declarar e argumentar para explicar a terceira tricotomia, trazendo o seguinte exemplo para diferenciar esses tipos de signos:

O modo mais simples de ilustrar essa tricotomia é aplicá-la às unidades discursivas da linguagem verbal. Assim (1) uma palavra isolada, que não configure uma proposição, será um signo remático – não podemos concordar nem discordar do significado da palavra azul, por exemplo. (2) Já uma oração simples, como “a terra é azul”, constitui um dicissigno, através do qual se pode apenas afirmar algo sobre um sujeito, mas não explicitar as relações lógicas em que se baseia essa afirmação. (3) Somente através de estruturas linguísticas mais complexas (como os conectivos e orações de um período composto) seria possível estabelecer tais relações. 28

1.1.7 Relações signo-objeto: a representação

O processo de representação, que interessa de maneira especial a esta pesquisa, acontece quando o signo evoca um objeto por compartilhar com ele uma semelhança, uma ligação física ou uma relação estabelecida por força de lei. Com base nesses três modos de representação, Peirce estabeleceu a segunda tricotomia, que divide o signo em ícone, índice e símbolo. Essa representação acontece de formas diferentes, de acordo com a relação que o signo possui com o seu objeto, ou, nas palavras de Peirce (1975), com a qualidade representativa interna, relativa ou imputada. Dessa forma, um ícone possui uma qualidade interna porque ele evoca o seu objeto por conter em si mesmo algo que o objeto também tem (de forma semelhante); um índice representa algo por estar ligado fisicamente a ele e um símbolo não teria relação nenhuma com esse objeto, caso uma convenção social não a estabelecesse. Peirce (1975, p.116), ao falar da segunda tricotomia, mais uma vez demostrou a lógica sistêmica da sua teoria. Ao definir o ícone, o teórico afirma que nesse caso a qualidade representativa é a sua “Primariedade como Primeiro”, “isto é, uma qualidade que ele possui qua coisa torna-o apto a ser um Representamem”. Na semiótica norte-americana, muitas vezes podemos ler o termo representamen como sinônimo de signo, como acontece nessa citação. Já o índice mantém um elo com a secundidade porque ele é um existente, sua representação acontece por uma relação no espaço e no tempo com o objeto, como explicaremos melhor. O símbolo, por fim, é o signo da terceiridade.

1.1.7.1 O ícone

Para falar do ícone, precisamos relembrar que na fenomenologia peirceana a primeiridade é a categoria na qual se ressaltam qualidades – como uma cor, um aroma – que, na realidade, são possibilidades que só passam a existir em um segundo momento (secundidade), ao serem corporificadas em um existente – como a cor de um automóvel, o cheiro de uma rosa. Essa explicação é relevante para podermos ressalvar que para Peirce o ícone também é só uma possibilidade. O que vemos, ao estudar a representação, são hipo-ícones, ou ícones corporificados.

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Simples possibilidade é um ícone puramente por virtude de sua qualidade; e seu objeto só pode ser uma Primeiridade. Todavia, um signo pode ser icônico, ou seja, pode representar seu objeto principalmente por similaridade. Podemos denominar o Representamem icônico de hipo-ícone. (PEIRCE, 1975, p.116).

Mesmo com a qualidade presente em dado objeto, no modo de representação icônico (como chamado para facilitar o entendimento) o que é significativo é a forma de ser do signo. Santaella (1986, p.14) traz o seguinte exemplo que pode esclarecer a teoria:

Uma pintura, chamada abstrata, por exemplo, desconsiderando o fato de que é um quadro que está lá, o que já faria dela um existente singular e não uma pura qualidade, mas considerando-a apenas no seu caráter qualitativo (cores, luminosidade, volume, textura, formas...) só pode ser um ícone. E isto porque esse conjunto de qualidades inseparáveis, que lá se apresenta in totum não representa, de fato, nenhuma outra coisa. O objeto do ícone, portanto, é sempre uma simples possibilidade, isto é, possibilidade do efeito de impressão que ele está apto a produzir ao excitar nosso sentido.

A representação icônica pode se realizar de três formas. Ao ver uma pintura figurativa (um quadro do imperador Dom Pedro II, por exemplo), uma mente interpretadora lembra-se de algo (objeto) porque as duas coisas são semelhantes e, dessa forma, estamos diante de uma imagem ou ícone imagético. Um gráfico, por sua vez, representa o seu objeto não por se parecer com ele, mas porque se organiza de maneira análoga a ele, sendo assim um diagrama, ou ícone diagramático, chamado ainda de ícone de relações. Já ao afirmarmos que alguém tem olhos de esmeralda estamos estabelecendo um paralelismo entre as qualidades dos olhos e das esmeraldas (verdes e brilhantes) e, assim, temos uma metáfora ou ícone metafórico. Sobre essa divisão, Peirce (1975, p.117) afirma:

Os hipo-ícones, de acordo com o modo de primeiridade que participam, admitem uma divisão grosseira. Aqueles que participam de simples qualidades, ou Primeiras Primeiridades, são imagens; aqueles que representam as relações – principalmente relações diádicas ou relações assim consideradas – das partes de uma coisa, utilizando-se de relações análogas em suas próprias partes, são diagramas; aqueles que representam o caráter representativo de um Representamem, traçando-lhe um paralelismo com algo diverso, são metáforas.

Das três classes de ícones, sem dúvida a de mais simples compreensão é a da imagem porque nesse caso a representação acontece por semelhança, pela aparência, já que o signo carrega em si qualidades como cores, aromas, formas que lembram o objeto. No caso do diagrama, a semelhança acontece pela organização interna, como dito, o que torna a forma de representação icônica um pouco mais complexa, como 30

acontece na representação de dada região em um mapa, na qual, considerando as escalas, teremos um mesmo tamanho do território, localização, locais vizinhos. A metáfora é o signo que se encontra num terceiro nível de interpretação e exige o reconhecimento do caráter representativo de dois objetos, como nos explica Santaella (2004 a, p. 120):

As metáforas fazem um paralelo entre o caráter representativo do signo com o caráter representativo de um possível objeto. Ou melhor, e o que é mais engenhoso na definição de Peirce, elas representam o caráter representativo de um signo e traçam um paralelismo com algo diverso. Caráter representativo refere-se àquilo que dá ao signo poder para representar algo diverso dele. É assim que as metáforas representam. Extraem tão somente o caráter, o potencial representativo em nível de qualidade, de algo e fazem paralelo com alguma coisa diversa. Há sempre uma forte dose de mentalização e acionamento de significados nas metáforas, daí elas serem hipo-ícones de terceiridade. (p.120).

1.1.7.2 O índice

Ao falar dos índices ou indicadores, como também são chamados, pisamos o terreno da secundidade, da existência real do objeto, representado no tempo e no espaço, e da conexão real entre signo e objeto. Santaella (2004a, p.123) ressalta que a principal função dessa classe de signos é “chamar a atenção do intérprete para o objeto, exercendo sobre o receptor uma influência compulsiva”. A pegada de um bicho que o representa porque atesta que ele realmente passou por aquele local; o cheiro de fumaça, que nos indica fogo; um céu nublado, que anuncia a chuva, são exemplos comuns de indicadores. Já uma fotografia é um índice porque congela um dado instante, por mais que nesse signo se encontre um ícone imagético de dada pessoa ou lugar.

Fotografias, especialmente fotografias instantâneas, são muito instrutivas porque sabemos que, sob certos aspectos, são exatamente como os objetos que representam. Esta semelhança é devida ao fato de as fotografias serem produzidas em circunstâncias tais que se viram fisicamente compelidas a corresponder, ponto por ponto, à natureza. Sob esse aspecto, pertencem, pois, à segunda classe de signos que os são por conexão física. (PEIRCE, 1975, p. 118).

Além dos exemplos dados, que são de indicadores genuínos, outros signos podem exercer funções semelhantes ao apontar para o objeto, mesmo sem ter havido uma conexão real com ele. São os denominados indicadores degenerados ou designações, que se relacionam a uma ampla noção de referência. “Se a Secundidade é 31

uma relação existencial, o Indicador será genuíno. Se a secundidade é uma referência, o Indicador será degenerado”. (PEIRCE, 1975, p. 120). São exemplos de índices degenerados: pronomes pessoais, relativos e demonstrativos, nomes próprios, entre outros. Em todos esses casos, chama-se a atenção para um individual, algo próprio da secundidade.

1.1.7.3 O símbolo

O símbolo é o signo da terceiridade e, assim, o mais complexo. Por não se parecer com o objeto e nem se conectar a ele, só funciona como signo por força de uma lei, uma convenção social, que precisa ser conhecida pela mente interpretadora para que o processo de representação aconteça. O índice só funciona como signo porque é um individual, uma ocorrência singular, e o símbolo, ao contrário disso, atua numa mente por ser o geral, uma lei conhecida. O exemplo mais corriqueiro desse tipo de signo são as palavras, já que aprendemos a estabelecer as relações entre a sua parte física (significante) e o que ela signica. Ou seja, apenas por uma convenção social sabemos que o ser humano do sexo feminino se chama “mulher” e não “homem” e, por isso, em outras línguas, como no Inglês, o mesmo ser é chamado woman. Uma exceção são as onomatopeias, palavras cujo significante reproduz o som do objeto representado – como em “tic-tac” e “trim” – e que, por isso, possuem uma carga representativa muito mais icônica do que simbólica. Santaella (2004a. p. 132) faz uma comparação elucidativa entre ícones, índices e símbolos:

O ícone é um signo cuja virtualidade reside em qualidades que lhe são internas e o funcionamento como signo será sempre, a posteriori, dependente de um intérprete que estabeleça uma relação de comparação por semelhança entre duas qualidades: aquela que o próprio ícone exibe e uma outra que passará, então, a funcionar como objeto do ícone. O índice é um signo onde a virtude está na sua mera existência presente, em conexão com uma outra que tem por função chamar de algum intérprete para a conexão. O símbolo é um signo cuja virtude está na generalidade da lei, regra, hábito ou convenção de que ele é portador e a função como signo dependerá precisamente dessa lei ou regra determinará seu interpretante.

Por estar no campo da terceiridade, o símbolo traz em si um ícone e um índice e só assim funciona como signo. “Mas, uma vez que o ícone e o índice são partes integrantes do símbolo, este funciona como uma síntese de todas as variações”. (SANTAELLA, 2004a, p.133). Assim, ao vivenciar várias vezes uma experiência em

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particular, (uma secundidade que, como já dito, contém a primeiridade) vamos formando uma ideia geral de como ela funciona. Uma palavra, de forma geral, é um símbolo, mas pode funcionar como índice se for analisada em cada uma de suas ocorrências, denominadas por Peirce de “réplicas”, ou ao apontar para o objeto, como agem os citados pronomes. Ferraz Jr. (2012, p.30) criou um quadro-resumo das tricotomias peirceanas dos signos que reproduzimos para finalizar esse apanhado teórico e aclarar cada uma delas:

CRITÉRIO DE DEFINIÇÕES CLASSES DE CLASSIFICAÇÃO SIGNOS O signo em si Uma qualidade pura. Qualissigno (natureza do fenômeno considerado Uma ocorrência singular. Sinsigno como signo) Uma norma ou hábito de Legissigno interpretação. Relação Representa o objeto por Ícone Signo-Objeto semelhança. (modo de representação) Representa o objeto por Índice possuir uma relação factual com ele. Representa o objeto porque Símbolo assim determina uma regra ou convenção. A relação Signo-Interpretante Designa um objeto sem nada Rema (grau de complexidade lógica da asseverar. representação) Uma proposição simples Dicissigno sobre o objeto. Premissas e conclusões Argumento acerca do objeto.

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1.2 SEMIÓTICA APLICADA À LITERATURA

Mas, afinal, para que serve a Semiótica? Serve para estabelecer as ligações entre um código e outro código, entre uma linguagem e outra linguagem. Serve para ler o mundo não-verbal: “ler” uma dança, “ler” um filme3 – e para ensinar a ler o mundo verbal em ligação com o mundo icônico ou não- verbal. (PIGNATARI, 2004, p. 20).

Apesar de ter sido formulada como a teoria geral de todas as linguagens, a Semiótica peirceana é cada vez mais valorizada como uma ferramenta de análise de muitos dos diversos códigos que se multiplicam na sociedade contemporânea, especialmente por se apresentar como uma base conceitual comum para estudar as interrelações entre o signo verbal e o não-verbal, que caracterizam a linguagem intersemiótica presente especialmente nas artes e nas comunicações. Para Santaella (2012, p.XIV), podemos extrair da semiótica estratégias metodológicas para a análise dos processos de diversos tipos de signos.

Em síntese, trata-se de um percurso metodológico-analítico que promete dar conta das questões relativas às diferentes naturezas que as mensagens podem ter: verbal, imagética, sonora, incluindo suas misturas, palavra e imagem, ou imagem e som, etc. Pode dar conta também de seus processos de referência ou aplicabilidade, assim como dos modos como, no papel de receptores, percebemos, sentimos e entendemos as mensagens, enfim, como reagimos a elas. (SANTAELLA, 2012, p. 6).

Apesar da aplicabilidade que defende, a pesquisadora deixa a ressalva de que, por se tratar de uma teoria geral, a semiótica “reclama pelo diálogo com as teorias mais específicas dos processos de signos que estão sendo examinados” (SANTAELLA, 2012, p.6). No estudo específico da literatura, a semiótica peirceana aparece para demonstrar a complexidade do fenômeno literário no que se refere ao seu papel de representação. Desta forma, os textos literários são entendidos como signos constituídos não só pela dimensão verbal, mas também pela não-verbal, evidenciando que o trabalho realizado com a linguagem pelos artistas das palavras reflete uma noção ampla de representação: na busca incessante por presentificar o seu objeto (que pode ser real ou fictício), a literatura o evoca não só por meio de ideias, mas também pela sua imagem visual ou auditiva, pelo “modo de se comportar”, entre tantas outras formas, e é tudo isso que provoca as sensações, os efeitos estéticos dos textos literários.

3 Lembramos que, no cinema, usa-se também a linguagem verbal. 34

No que se refere à aplicação da Teoria Geral dos Signos à literatura, como já foi sugerido, o que se tem feito é a análise a partir da segunda tricotomia peirciana, que trata exatamente do processo de representação, ou de como o signo se coloca no lugar do seu objeto. Ao investigar a literatura em sua dimensão representativa, compreendemos que os efeitos do texto literário são, na verdade, efeitos da ação do signo que pode representar o seu objeto por compartilhar com ele uma qualidade (o que caracteriza o modo de representação icônico), por apontar especificamente para ele (modo de representação indexical) ou por meio de uma convenção social (representação simbólica). Esses três modos quase sempre aparecem imbricados, apesar de ser possível que um deles se destaque, tendo um papel mais relevante na significação e expressividade do texto, como demonstraremos. Mesmo afirmando que no texto literário os modos de representação sígnica estão presentes de maneira híbrida, é imprescindível lembrar que a literatura é o trabalho artístico com a palavra, ou seja, literatura é signo verbal, ou melhor, é representação simbólica. Apesar da ressalva, com a semiótica aprendemos que o signo deve ser estudado em suas diversas dimensões e o seu conceito entendido macro e microestruturalmente, pois se uma frase ou texto inteiro são signos, uma palavra ou apenas um fonema também o são.

A matéria-prima da literatura é composta predominantemente de símbolos, mas o artista os emprega de modo especial. Além da dimensão semântica, a palavra possui outros atributos semióticos: suas qualidades sonoras (a combinação de seus fonemas), sintáticas (a relação com outras palavras no enunciado) e até mesmo articulatórias (o modo como produzimos fisicamente essa sequência de sons); ou ainda, no código escrito, suas qualidades visuais (tamanho, cor, formato e disposição dos caracteres) e táteis, em certas formas de escritura. Esses múltiplos aspectos significantes conferem à linguagem verbal uma potencialidade representativa que vai além do símbolo, na medida em que os interpretamos como recursos expressivos. (FERRAZ JR, 2012, p. 31).

Se não se discute o fato da literatura lidar de maneira especial com a palavra, ainda há muito a ser explorado no que se refere ao estudo do fenômeno literário como um processo de representação que envolve diversos signos que, quanto mais complexos forem – representando por meio de ideias (símbolos), conexões (índices) e sensações (ícones) –, maior potencial estético apresentarão ao evocar um dado objeto. A ideia da literatura como uma linguagem na qual o ícone se destaca é o que norteia o trabalho de Pignatari (2004), pioneiro nos estudos em semiótica e literatura. Em tese publicada na década de 1960, o pesquisador retoma a ideia da função poética da linguagem, de Jakobson, para definir a literatura como a arte na qual o icônico se 35

sobrepõe ao verbal. Nessa dissertação, apesar de reconhecermos o papel fundamental da representação icônica para a literatura, adotamos a ideia de Ferraz Jr (2012) de que os três modos de representação são responsáveis pelos efeitos estéticos do texto literário. Sobre a literatura, Pignatari (2004, p.182) defende: “A linguagem verbal /particularmente a linguagem simbólica peirciana / adquire a tão falada função poética quando um sistema icônico lhe é infra, intra e superimposto”. E em outro momento, de maneira mais expansiva:

De modo que a projeção do eixo paradigmático sobre o sintagmático – que caracteriza, na notável visão de Jakobson, a função poética da linguagem – implica, consequentemente, a iconização do símbolo, a analogização do digital, a neutralização da hipotaxe pela parataxe, a sincronização da diacronia, a simultaneização da linearidade – enfim, a qualitatização da quantidade e a “primeirização” da terceiridade. O percurso oposto vai conduzindo à desdensificação, à descondensação da linguagem – à prosa. (PIGNATARI, 2004, p.67).

É importante se destacar que as pesquisas desenvolvidas por Pignatari combatiam um verbocentrismo que imperava (e por vezes ainda impera) nos estudos das linguagens. Ao destacar a representação icônica na literatura, o pesquisador buscou demonstrar que toda linguagem é intersemiótica, ou seja, envolve diversos sistemas de signos. A Semiótica evita o grave risco de “verbalizar” os demais sistemas de signos, convidando e instigando-nos a compreender melhor não apenas os signos não-verbais em suas naturezas específicas, como também a própria natureza do signo verbal em relação aos demais. Por aí, pode perceber-se a importância da Semiótica para o estudo da Literatura, uma vez que situar mais claramente o signo verbal em relação aos demais signos é uma tarefa de primeira ordem, uma verdadeira “prova vestibular” para a compreensão do fenômeno literário. (PIGNATARI, 2004, p.22)

A Revolução Industrial, e a consequente proliferação de códigos que ocorreu no Século XIX, são apontadas por Pignatari (2004) como as grandes causadoras do desenvolvimento de uma consciência de linguagem mais apurada, ao mesmo tempo em que isso provocou o surgimento de uma ciência que estudasse essas linguagens: a semiótica. Com a invenção da imprensa, muitos escritores passaram a perceber que os tipos móveis, usados para a impressão dos textos, poderiam carregar muito mais informações do que se poderia imaginar, pois também possuíam uma forte carga icônica.

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1.2.1 Algumas leituras semióticas do texto literário

Machado de Assis, acostumado ao universo da imprensa, brincava com os tipos como ícones. Segundo Pignatari (2004, p.133), o autor “não apenas utilizou os seus conhecimentos nesse setor: a tipografia impregnou a estrutura mesma de algumas de suas obras mais importantes, entre as quais Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881”. Nessa obra, os sinais gráficos e a organização das palavras no espaço em branco estão carregados de significações, como acontece, por exemplo, no capítulo 125 no qual, para falar da morte de uma das personagens do romance, o autor reproduz a própria lápide da defunta. “Sempre a vivificação sígnica do real na página, sempre os signos se aproximando do seu objeto. Como neste caso, em que temos texto e extratexto: o ícone da lápide inscrita no papel” (PIGNATARI, 2004, p.143).

EPITÁFIO ————— AQUI JAZ DONA EULÁLIA DAMASCENA DE BRITO MORTA AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE ORAI POR ELA! ————— (MACHADO DE ASSIS, 1971 apud PIGNATARI, 2004, p.146)

Outro exemplo de iconicidade, presente no mesmo livro de Machado de Assis, seria, segundo Pignatari (2004) encontrado no capítulo 142, chamado de “O pedido secreto”, no qual aparece uma carta de Virgília, assinada com uma grande letra “V”. Na leitura realizada pelo crítico, o destaque da letra, que, segundo o próprio narrador, era “um rabisco sem intenção alfabética” (PIGNATARI, 2004, p. 148), escondia a sugestão de “púbis, decote e colo feminino”. O trabalho com a linguagem e, mais do que isso, o uso dela como um jogo, fez, para Pinatari (2004, p.119), do escritor americano Edgar Allan Poe um mestre da representação. O pesquisador destaca o caráter anagramático de muitos textos de Poe, observando que sua obra deve ser lida por meio de uma abordagem semiótica, pois “apresenta elementos que configuram um parâmetro não-suscetível de ser apreendido

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por instrumentos puramente linguísticos, requerendo abordagens aplicáveis também a outros sistemas de signos”. O conto de horror Berenice, escrito por Poe e publicado pela primeira vez em 1835, é citado por Pignatari como um exemplo dos significados icônicos escondidos nos textos do americano. Na narrativa, Egeu, portador de uma monomania (obsessão por coisas insignificantes) está prestes a se casar com a prima Berenice, descrita como uma moça bonita e cheia de vida, mas que definha após ser acometida de uma grave doença. Apesar de ter tido a beleza roubada, Berenice possui algo que se torna o centro da obsessão do noivo: 32 dentes. Com a noiva morta, Egeu viola o seu túmulo e arranca um a um todos os dentes pelos quais nutre adoração. Observando a narrativa, Pignatari percebeu que a frase na qual Egeu fala dos dentes de Berenice é escrita em francês, enquanto a obra é narrada em inglês: ““que toures ses dents étaient des idées”. (que todos os seus dentes eram ideias)”. Mas, por que essa frase escrita em outra língua? Que significados estariam escondidos ali? Essa é a resposta de Pignatari (2004, p.125), que traz outro tipo de representação icônica encontrada na literatura, a diagramática, na qual o signo representa o seu objeto não por uma semelhança direta (como foi o caso da lápide do exemplo anterior), mas por se organizar de forma semelhante a ele:

Daí a “revelação”, o flash-heureca da visão icônica global: vi o enunciado- arcada dentária encarreirando-se no rosto da página e contei o número de letras da expressão “que toutes ses dents étaient des idées”. De fato, eram 32 letras/32 dentes.

Outra experiência de leitura de texto literário com o uso da semiótica foi realizada por Nöth (2003) em análise de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Nela o pesquisador buscou demonstrar o potencial criativo do texto literário que se concretiza muitas vezes por meio de desvios do que é convencional, ou melhor, por quebrar a semiose esperada. Alice, na verdade, é uma grande obra sobre a linguagem. Ao longo do estudo, Nöth (2003, p.105) aponta as transformações sígnicas empreendidas por Carrol em Alice, no qual “o processo de interpretação é frequentemente desorientador, incompreensível e até mesmo enganador”. Quase todo o processo de desorientação demonstrado pelo pesquisador no livro acontece por meio da relação entre símbolos e índices. No País das Maravilhas, Alice se vê em muitas situações em que não domina a convenção social que faz com que os símbolos sejam compreendidos e, dessa forma, só consegue realizar a semiose por meio de índices,

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signos que funcionam simplesmente por uma conexão real com o seu objeto. É o que acontece, por exemplo, no bosque em que as coisas não têm nomes.

A importância especial dos signos indexicais em situações nas quais a comunicação simbólica se rompe é particularmente evidente no bosque onde as coisas não têm nomes. No bosque, onde representamens simbólicos não estão disponíveis, os signos indexicais continuam a fornecer, pelo menos, uma orientação mínima para Alice. Ela designa a árvore por meio da palavra indicial “isso” e por meio do gesto indicial que aponta para o seu tronco (NÖTH, 2004, p. 113).

O índice orienta, mas também engana. O desconhecimento das regras simbólicas no País das Maravilhas faz com que Alice tente fazer associações com o próprio código que ela domina. Assim, diante do poema “Jaguadarte”, “Ea briluz. As lesmolisas touvas/Roldavam e relviam nos gramivos”, do qual não entende nada por desconhecer as raízes das palavras, a menina tenta fazer deduções que, ao final, se mostram enganadoras.

Ela considera o poema “um pouquinho difícil de entender”. No entanto, reconhece alguns morfemas gramaticais e derivacionais que funcionam como índice linguístico, tal como era, as, -as, -avam, -iam ou nos. Por isso, o poema, “de algum modo, parece encher a sua cabeça de ideias” (NÖTH, 2004, p. 113-114).

Ainda em seu jogo com os princípios da linguagem, Lewis Carroll brinca com ícones, já que “no País das Maravilhas, signos icônicos são, às vezes, auxiliares semióticos em meio à desorientação, mas outras vezes funcionam como surpresa, revelando até então um potencial desconhecido de criatividade”. (NÖTH, 2004, p. 117). Esse potencial, segundo Nöth (2004, p.118), aparece principalmente no poema figurativo em forma de rabo de rato (uma representação icônica imagética) e no uso de letras bem pequenas para representar uma vozinha baixa de um inseto (representação icônica diagramática).

1.2.2 Os modos de representação

Nesta pesquisa, adotamos o posicionamento de Ferraz Jr. (2012) de que os efeitos estéticos de um texto literário são reflexos da ação dos signos (semiose) que pode acontecer de três modos: icônico, indicial e simbólico. Ao adotar essa ideia, devemos ter em mente que os três modos de representação encontram-se imbricados no texto, contudo é possível que um deles seja mais relevante na geração dos efeitos expressivos de um poema ou narrativa de ficção. Então, como reconhecer que modo de 39

representação se destaca em um texto literário? Ferraz Jr. (2012) nos fornece alguns caminhos para a análise. Segundo o pesquisador (2012, p. 33), “a leitura de um texto literário enfatizará o modo simbólico de representação quando o seu significado for evocado principalmente pelo sentido convencional dos signos utilizados”. Nesse caso, a convenção não se restringe apenas ao código linguístico, ao significado que habitualmente damos às palavras, mas também ao próprio código literário que inclui as formas de composição, os estilos de época e dos escritores, as temáticas. Além disso, existe uma forte carga simbólica em textos de caráter metalinguístico, quando o código se volta sobre si mesmo. A representação simbólica na literatura também lida com hábitos e tradições sociais que se relacionam ao conceito de cultura. Como a literatura trabalha de forma especial com a linguagem, quase sempre o convencional serve de ponto de partida para a construção do texto literário, que o inverte, rompendo com ele, brincando com o senso comum. É preciso, porém, que se diga que essa ruptura só acontece se o intérprete conhecer a regra, se ele criar expectativas sobre ela e se vir surpreendido.

(...) percebe-se que ao se servir dos símbolos, a arte literária não se limita a aceitar passivamente as leis estabelecidas para o seu uso, mas questiona-as, transgride-as, transformando-as em objeto de reflexão. Na criação poética, a essência do funcionamento dos símbolos é a de que um hábito fixado está sempre sob tensão. (FERRAZ JR, 2012, p. 38).

Esse processo de ruptura (que pode acontecer ao se devolver à palavra o seu sentido próprio/denotativo, quando se tornar corriqueiro que ela seja associada a sentidos conotativos) é o que acontece no poema Satélite, de Manuel Bandeira (1985). O texto é citado por Ferraz Jr. (2012, p. 34) para exemplificar a leitura do texto literário com base na representação simbólica.

Satélite

Fim de tarde. No céu plúmbeo A lua baça Paira. Muito cosmograficamente Satélite.

Desmetaforizada, Desmitificada, Despojada do velho segredo de melancolia, Não é agora o golfão de cismas,

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O astro dos loucos e enamorados, Mas tão somente Satélite.

Ao tratar a lua apenas como um astro, satélite, o poeta brinca com os significados simbólicos/literários que ela foi recebendo, surpreendendo ao desnudá-la justamente dessas ideias.

O sentido geral do poema se apoia basicamente em conotações que atribuímos (por hábito ou norma cultural) a diferentes representações do objeto “lua”. Contrapõem-se aqui duas convenções: de um lado os sentidos conotativos que foram acumulados na tradição literária, especialmente naquelas correntes estéticas que investem na identificação da paisagem noturna como vazão das “disponibilidades sentimentais”, com destaque para o romantismo. Preterido, esse sentido se traduziria em expressões como “segredo de melancolia”, “golfão de cismas” e “astro dos loucos e dos enamorados” (versos 9, 10 e 11). Em lugar disso, impõe-se a visão do astro reduzida a uma dimensão racional, fixada num vocabulário de pensamento técnico-científico que aspira à monossemia e predispõe assim a uma maior objetividade. O signo escolhido para a tradução é a palavra “satélite” que dá título ao poema e se repete em destaque ao final de cada estrofe. (FERRAZ JR., 2012, p. 34-35).

Sobre o modo de representação indexical ou indicial, Ferraz Jr. (2012) lembra que a principal característica dos índices é manter uma conexão real com o objeto que representa. Então, sendo assim, como isso se daria no universo literário? De maneira geral, a indexicalidade do texto literário acontece por meio dos índices degenerados, dentre os quais se enquadram alguns pronomes, nomes próprios e referências. Além disso, esse modo de representação se destaca quando o texto literário se atualiza diante dos olhos do leitor, já que o índice, ligado à secundidade, é o signo que se coloca no espaço e no tempo. O exemplo dado por Ferraz Jr. (2012, p.42) é o poema Rever de Augusto de Campos (2002), cujo design faz com que, no ato de leitura, a palavra seja sempre revista.

Considerando que no texto literário o modo de representação indexical coincide especialmente com a noção ampla de referência, Ferraz Jr. (2012, p.44) lembra que encontramos uma problemática no fato da literatura poder se referir também a coisas que não existem, ao universo ficcional. “Uma das primeiras questões que nos desafiam neste tópico é a da velha dicotomia entre ficcionalidade e factualidade das circunstâncias que cercam o sujeito que se expressa em um poema lírico”. Outro ponto

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de discussão é o fato de estarmos destacando aqui o plano do conteúdo e o colocando como determinante para os efeitos estéticos da arte literária. Mesmo sendo símbolo, a palavra pode representar um objeto por semelhança, por meio de um ícone que pode ser imagético (por reproduzir qualidades imediatas de um objeto, uma semelhança física com ele), diagramático (por possuir uma estrutura lógica ou funcionamento semelhante ao objeto) ou metafórico (nesse caso dois objetos diferentes são associados por meio de uma qualidade comum entre eles). Um texto literário que representa alguma coisa por meio de um ícone imagético leva em consideração que a palavra é muito mais do que uma portadora de significados. Fonemas, palavras, frases, nesse caso, também são explorados em seu aspecto físico, como um corpo que, em uma folha em branco, pode sugerir uma imagem, como algo que emite um som, uma imagem sonora. “Dessa forma, não apenas o aspecto gráfico dos textos, mas também as onomatopeias e todos os efeitos rítmicos expressivos codificados na linguagem escrita seriam exemplos de iconicidade imagética” (FERRAZ JR, 2012, p.52). Para demonstrar como a iconicidade imagética pode ser encontrada no texto literário, Ferraz Jr. (2012) traz exemplos como o poema A voz do canavial, de João Cabral de Melo Neto (1986), através do qual somos transportados para o meio de um canavial ao ouvir o som característico do vento nas canas. “(...) no estrato sonoro do texto se entrelaçam três eixos aliterativos na sugestão das várias impressões produzidas pelo vento entre as folhas da cana” (FERRAZ JR, 2012, p.53).

Voz sem saliva da cigarra do papel seco que se amassa,

de quando se dobra o jornal: assim canta o canavial,

ao vento que por suas folhas, de navalha a navalha, soa

vento que o dia e a noite toda o folheia, e nele se esfola

No que se refere à imagem visual, o pesquisador cita o poema Ao pé da Letra, de José Paulo Paes (2008), no qual o poeta brinca com a chamada “lei de talião” por meio de alterações gráficas.

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“As alterações consistem na substituição de uma das letras o por um círculo cheio, na palavra olho, e na supressão da letra n na palavra dente”, explica Ferraz Jr. (2012, p. 54), que completa:

No primeiro caso, além da forma circular da letra o, que podemos associar ao desenho simplificado de um olho, o poema explora a coincidência no fato de a palavra olho possuir dois oo. Como há duas ocorrências da palavra no verso, cada um parece corresponder ao par de olhos, dos quais apenas um se encontra transfigurado. Por correspondência com primeira configuração, podemos cogitar igualmente certa semelhança entre a letra n e o contorno aproximado de um dente, embora a sua ausência na palavra seja o recurso mais significativo nesse caso. Dois conjuntos se dispõem assim no espaço gráfico, figurando rostos a que faltam, respectivamente, um olho e um dente (FERRAZ JR, 2012, p. 55).

Passando ao modo de representação icônico diagramático encontramos um signo que representa o seu objeto por possuir relações análogas entre as suas partes e as partes do objeto representado. Dessa forma, ao escrever um texto podemos optar por frases mais longas ou mais curtas (para passar a sensação de demora ou agilidade, por exemplo), usar vírgulas ou não (para que a leitura seja interrompida ou acelerada), alterar o tamanho da fonte, como acontece no exemplo dado de Alice no País das Maravilhas ou como ocorre em uma história em quadrinhos quando um personagem grita e as letras aparecem bem grandes.

Sabendo que o diagrama correlaciona, por analogia, processos de aspectos sensoriais distintos, produzindo uma semelhança de relações, não é difícil reconhecer os diversos modos como a literatura explora seus recursos visuais e linguísticos para construir essa espécie de sinestesia que é a iconicidade diagramática (FERRAZ JR, 2012, p. 61).

No texto narrativo, um bom exemplo de representação icônica diagramática é o uso do fluxo de consciência no qual o ritmo de leitura tenta reproduzir a desordem dos pensamentos notadamente por meio da simultaneidade, não existindo pausas entre as sentenças. Esse tipo de representação tem como efeito a transmissão para o leitor de “experiências sensoriais e afetivas análogas às que estão ali figuradas”. (FERRAZ JR, 2012, p. 63). Chegando, por fim, ao modo de representação icônico metafórico encontramos um processo de paralelismo, no qual dois signos equiparam-se porque seus objetos

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possuem qualidades equivalentes. Esse é, sem dúvida, um dos modos de representação mais complexos porque, mesmo a metáfora sendo um tipo de signo icônico, depende também de um processo lógico próprio mesmo da terceiridade, da representação simbólica, para que a associação entre signos e objetos se efetive. No universo literário, o mais comum é que se lembrem das metáforas aristotélicas que, contudo, se restringem ao signo verbal em estruturas do tipo “isso é aquilo”. Segundo Ferraz Jr. (2012, p.75), é na interação entre a linguagem verbal e não verbal que a representação metafórica ganha mais força, como no caso do poema Anticéu, de Augusto de Campos.

Cego do falso brilho das estrelas que escondem absurdos mundos mudos mergulho no anticéu brancas no branco brilham ex estrelas em braille palavras sem palavras na pele do papel

O poema tematiza a cegueira com um texto que leva o leitor a senti-la nos olhos. “Com o texto impresso em dégradé (o azul das primeiras linhas vai esmaecendo até tornar-se quase branco), a leitura evolui do visível para o (idealmente) invisível” (FERRAZ JR., 2012, p.75). Na parte invisível, o texto é transposto para o braille, o que instaura a metáfora signo-estrela. Nesse breve percurso, os exemplos de análises realizadas por Ferraz Jr. (2012) ratificam a ideia de que os efeitos estéticos dos textos literários são consequência da ação do signo. Mediados pelas convenções simbólicas, os índices conectam a literatura ao mundo exterior, mostram as conexões internas do texto, e os ícones despertam, sobretudo, nossas sensações. Tomando as análises citadas como modelo, é que no segundo capítulo dessa dissertação analisaremos alguns poemas de Drummond.

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CAPÍTULO II

OS MODOS DE REPRESENTAÇÃO NA POESIA DE DRUMMOND

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2.1 ANÁLISE SEMIÓTICA

Neste segundo capítulo, iniciamos a análise semiótica de alguns poemas que fazem parte de A Rosa do Povo, livro de Carlos Drummond de Andrade (CDA), publicado em 1945. Ao escolher como corpus uma das obras do itabirano mais discutidas pela crítica, objeto de diversos trabalhos acadêmicos, acreditamos estar fornecendo, por meio da teoria peirceana, um novo olhar, em que se destaca o processo de representação nos versos drummondianos: em sentido estrito, consideramos que a semiótica potencializa a leitura de cada poema ao nos dar condições de analisar os seus efeitos estéticos. Em sentido amplo, a análise nos mostra o trabalho consciente com a linguagem, a “luta com a palavra” 4, que Drummond empreende na obra, na qual nos deparamos com a representação em seus três modos: icônico, indicial e simbólico. Muitos críticos classificaram A Rosa do Povo (RP) como uma obra de poesia social, ligada a um contexto de guerra, repressão e, portanto, de forte representação indicial. Outros chamaram a atenção para a discussão metalinguística empreendida no livro, o que daria destaque à representação simbólica5. Apesar de identificarmos as duas vertentes na obra, nossa posição é a de que o livro é complexo e nos traz não só o índice e o símbolo de maneiras variadas, mas também o ícone imagético, por meio da imagem sonora e visual, e o diagramático, além de muitas metáforas. O que percebemos é que, na obra, os três modos do signo representar o seu objeto são usados de maneira expressiva, o que faz a obra rica esteticamente, como pretendemos demonstrar. Ao nosso entender, em A Rosa do Povo as representações indicial e simbólica sobressaem como dois polos (não necessariamente opostos), mas, nem por isso, a representação icônica é menos significativa. O que vemos é um Drummond que explora todas as potencialidades da linguagem:

4 Merquior (2012, p.118) destaca que em Drummond há, antes de tudo, o respeito pela linguagem revelado em poemas/poéticas como “Consideração do Poema” que abre A Rosa do Povo. De acordo com o crítico, “o que o poema diz calando (v.41-42), obedece a uma lei superior à simples vontade do escritor; a lei da linguagem”. 5 Simon (1978, p.11) defende que A Rosa do Povo é o livro de Drummond no qual se atinge o clímax da tensão entre uma poesia comunicativa, participante, usada como instrumento de lutas sociais e a poesia voltada para si mesma, criativa. Sua tese é a de que a obra traz uma “poética do risco”, pois, segundo ela, o poeta de um lado assume valores comunicativos da linguagem para poder se relacionar com a realidade e, de outro, “cria um espaço específico de inventividade, auto-orientado, o que se pode chamar de poético”. Ainda de acordo com Simon, nesse processo, o poeta assume as próprias dificuldades com o trabalho com as palavras. Ou seja, existe uma grande consciência de linguagem. As ideias de Simon (1978) lembram o já colocado por Candido (2004), em artigo chamado “Inquietudes na poesia de Drummond”. 46

1. A expressividade de muitos poemas está ligada aos significados sociais e literários atribuídos à palavra/símbolo e que recebem os desvios próprios ao trabalho literário. É o que acontece em poemas como “Procura da Poesia” e “O Mito”, que analisaremos adiante. 2. A linguagem pode apontar para a realidade (índice), o que na obra ganha força por meio de poemas que retratam o contexto social conturbado no qual foi escrita, “a vida presente” tão defendida por Drummond. É o aparece em poemas como “Visão 1944”, do qual faremos uma leitura. 3. Apesar de sua base simbólica, a palavra tem um forte potencial icônico. Ela pode criar uma imagem visual, como demonstraremos em “Anúncio da Rosa”, ou sonora; pode também se organizar de forma semelhante ao objeto representado (ícone diagramático), como em “Áporo”.

De fato, em boa parte dos poemas, os três modos de representação estão entrelaçados, com signos que nos direcionam para o objeto ao mesmo tempo apontando diretamente para ele (índice), por meio das convenções sociais (símbolo) e por meio das qualidades que compartilham com o objeto (ícone). Apesar disso, para podermos explorar melhor a expressividade de cada modo de representação, dividimos esta análise em três partes, deixando a ressalva de que, apesar do destaque dado a um deles, a leitura, quase sempre, abarca os outros dois. Assim, como base nas considerações anteriores, traremos a leitura de “Nova Canção do Exílio”, para demonstrar como a expressividade de um poema pode resultar da ação mútua de ícones, índices e símbolos, o que, ao nosso entender, presentifica o objeto representado de forma especial. Depois disso, para refletirmos acerca do processo representativo em cada um dos três modos, traremos leituras de poemas predominantemente icônicos, indiciais e simbólicos.

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2.2 NOVA CANÇÃO DO EXÍLIO

1. Um sabiá na 2. palmeira, longe. 3. Estas aves cantam 4. um outro canto.

5. O céu cintila 6. sobre flores úmidas. 7. Vozes na mata, 8. e o maior amor.

9. Só, na noite, 10. seria feliz: 11. um sabiá, 12. na palmeira, longe.

13. Onde tudo é belo 14. e fantástico, 15. só, na noite, 16. seria feliz. 17. (um sabiá, 18. na palmeira, longe.)

19. Ainda um grito de vida e 20. voltar 21. para onde tudo é belo 22. e fantástico: 23. a palmeira, o sabiá, 24. o longe. (DRUMMOND DE ANDRADE, 2012, p. 365-366).

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2.2.1 Reinventando “A canção”

Um mundo vago e distante, quase mítico, sobre o qual não podemos determinar nem lugar, nem tempo exato, aparece em “Nova canção do exílio”, de Drummond, publicado em A Rosa do Povo. O poema faz referência clara à “Canção do exílio”, de Gonçalves dias6 – texto romântico, ufanista, de 1843 – mas, ao mesmo tempo em que se refere a ele, reinventa-o, atribuindo-lhe novos significados. Usando a linguagem semiótica, consideramos o poema de Drummond um interpretante do primeiro signo, os versos de Gonçalves Dias. Lembramos que, para Peirce, o signo sempre gera outro signo em uma relação chamada de semiose ilimitada. Como esclarece Santaella (1986, p.12), trata-se de uma espécie de “tradução”: “a partir da relação de representação que o signo mantém com o seu objeto, produz-se na mente interpretadora outro signo que traduz o significado do primeiro (é o interpretante do primeiro). Portanto, o significado do signo é outro signo”. Dentre os modos de representação, o que primeiro salta aos olhos no poema é o indicial, que se caracteriza, como dito, pelo fato de Drummond fazer referência ao texto de Gonçalves Dias não só no título, mas em cada verso que aponta diretamente para os do poeta romântico. Apesar disso, nesse poema, a força representativa se intensifica porque encontramos, também com grande expressividade, os outros dois modos de representação: o icônico e o simbólico, o que demonstra o rico trabalho com a linguagem realizado pelo itabirano na obra estudada. A semiose do poema de Drummond pode acontecer sem que o intérprete conheça o de Gonçalves Dias, mas de maneira muito menos completa. No processo de representação, o poema romântico se torna um símbolo de saudade e idealização da terra, ponto de partida sobre o qual se pode criar o novo. Gonçalves Dias escreveu a “Canção do exílio” enquanto estava em Portugal e com seus versos eternizou a imagem do Brasil como uma terra maravilhosa, de natureza exuberante e inigualável: a terra que “tem palmeiras onde canta o sabiá”. Metrificado em redondilha maior, com rimas predominantemente externas, o poema é fácil de memorizar e se tornou um dos mais famosos da literatura brasileira. Distante do seu país, exilado, o eu-lírico enxerga o Brasil de forma idealizada, postura que caracteriza a literatura romântica da época.

6 “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, até por ter se tornado um símbolo de exaltação à pátria, é um poema que recebeu diversas versões, muitas delas paródicas. Além da “Nova Canção do exílio” de Drummond, o texto romântico foi recriado por Murilo Mendes em “Canção do Exílio”; Oswald de Andrade, em “Canto de Regresso à pátria”; Casimiro de Abreu, em “Canção do exílio”, entre outros. 49

Canção do exílio

Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer eu encontro lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar – sozinho, à noite – Mais prazer eu encontro lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu'inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. (GONÇALVES DIAS, s.d)

Os motivos gerais do poema de Gonçalves Dias – exílio, afastamento, solidão – reaparecem na “Nova Canção do Exílio”, contudo num contexto de indeterminação: ao contrário do poema original, no qual se identifica que o Brasil é a terra do eu-lírico, os versos de Drummond falam de um lugar não determinado, de “um sabiá/ na palmeira, longe”. (primeira estrofe). Conhecendo o poema de Gonçalves Dias e vendo-o como uma exaltação à pátria, o leitor tende a buscar as referências ao Brasil nos versos de Drummond, mas não as encontra, o que causa um estranhamento. O que percebemos é que, se o texto romântico gira em torno da saudosa terra natal do sujeito, da qual o sabiá é um dos símbolos, no poema de Drummond o pássaro torna-se protagonista. O sabiá, na “Nova Canção”, confunde-se com o próprio eu-lírico e é quem parece estar exiliado. É importante observarmos que em nenhum dos versos do poema de Gonçalves Dias aparece a palavra Brasil e que a associação direta entre a “terra que tem palmeiras onde canta o sabiá” e o País foi construída simbolicamente, ou seja, nós aprendemos que o Brasil é essa terra. No texto romântico, a determinação da terra a que se refere o eu-lírico é marcada, por exemplo, por advérbios de lugar, como “lá” e “cá”, pronomes

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possessivos, como o “nosso”, que se repete anaforicamente na segunda estrofe, ou “minha”, que abre o primeiro verso do poema, determinando, logo de início, que a terra que “tem palmeiras” não é qualquer uma e sim é a “minha terra” do eu-lírico. No poema de Drummond, as palavras estão muito menos conectadas e determinadas. A quebra da expectativa só acontece porque o leitor tem em mente o simbólico, ou seja, o modelo fixado que se tem do romantismo e da “Canção do Exílio”. Tudo o que no poema de Drummond confirma ou repete a “Canção do exílio”, o sentimento romântico e até o vocabulário, funciona como símbolo. As expectativas baseadas no hábito, na regra cultural do que seja o romantismo. As expectativas não confirmadas (a paródia ou atualização do texto), para serem lidas como nova informação (novo interpretante), ainda assim, precisam da comparação com o texto romântico. Para aqueles que conhecem a “Canção do exílio”, a referência que Drummond faz ao poema é nítida não só pela temática do isolamento, mas principalmente porque cada verso do novo poema, assim como o seu título, é um índice do primeiro. Enquanto o eu-lírico romântico repete em todas as estrofes os versos “minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá”, o moderno diz “um sabiá/ na palmeira, longe”. No primeiro verso da segunda estrofe, o poema de Gonçalves Dias anuncia que “nosso céu tem mais estrelas” e o de Drummond que o “Céu cintila”. Apesar da aparente paráfrase, os versos de Drummond trazem modificações vocabulares e rítmicas fundamentais para a ressignificação que realiza. Na “Nova canção”, o exílio é sentido não só porque no texto não está claro a que se refere o “longe” repetido pelo eu-lírico, mas, destacadamente, pela representação icônica diagramática do isolamento, que é criada pelo ritmo de leitura, contido por vírgulas, pontos, dois pontos e por enjambements. O ícone diagramático aparece logo nos dois primeiros versos quando se lê, separados por vírgula, os três termos que marcam o poema: “um sabiá, na palmeira, longe”. Na primeira, segunda e terceira estrofes, aliás, a separação entre o pássaro e a palmeira acontece nos versos. Na primeira estrofe, por exemplo, o pássaro aparece no primeiro e a palmeira no segundo verso, o que deixa a leitura mais contida e cortada pelo enjambement.

Um sabiá na palmeira, longe. Estas aves cantam um outro canto

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Na última estrofe, por sua vez, o distanciamento se intensifica não só pelo uso das vírgulas, mas pela substantivação dos termos, com destaque para “longe” que é personificado: “a palmeira, o sabiá, o longe” (quinto verso, última estrofe). O exílio no poema de Drummond é multissignificativo, justamente por não ter sido determinado. Algumas mudanças vocabulares em relação ao poema de Gonçalves Dias revelam que o eu-lírico também fala de um distanciamento em relação à visão idealizada da terra que o romantismo construiu. Na quinta estrofe, onde Gonçalves Dias exalta a superioridade da beleza da sua terra ao dizer “minha terra tem primores/ Que tais não encontro eu cá”, Drummond escreve “onde tudo é belo/e fantástico”. O termo “fantástico”, que reaparece na última estrofe do poema, remete-nos a algo que não é real, ao que é idealizado, inventado. De acordo com o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, também se refere à imaginação, ao que é quimérico, ou seja, criado pela ficção. Nesse sentido, também lembramos que à distância, permeadas pela memória e pela saudade, as coisas ganham contornos fantásticos, ou seja, tudo de longe pode parecer mais bonito. Ao substantivar “o longe” o poeta diz que ele equivale a “tudo” que é fantástico e nos alerta sobre o contexto de produção da “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias, que escreveu sobre o Brasil, de longe, exilado, e (aqui vale a repetição) de longe tudo é mais bonito. “Nova canção do exílio” é um poema que, por meio de representações indiciais, simbólicas e icônicas, alude e ressignifica a “Canção do exílio”. Explorando várias potencialidades da linguagem, Drummond constrói um poema cujo próprio título demonstra esse movimento de retomada e mudança de significados: ao acrescentar o adjetivo “nova” ao título original de Gonçalves Dias, o poeta itabirano nos previne de que estaremos diante de outro olhar sobre o mesmo tema. No processo de semiose, o interpretante mantém semelhanças com o signo a partir do qual foi gerado (até para funcionar como tal), mas não se iguala a ele, carregando novos significados.

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2.3 A REPRESENTAÇÃO ICÔNICA

Em diversos poemas de A Rosa do Povo, Drummond usa a capacidade que o signo linguístico tem de representar o seu objeto por compartilhar com ele algum tipo de qualidade, ou seja, por meio de ícones. Além das inúmeras e complexas metáforas verbais (nas quais não nos deteremos nesta pesquisa e que merecem um estudo aprofundado e independente), na obra também encontramos o ícone imagético (sonoro e visual) e o diagramático. Como vimos no Capítulo I, o ícone do tipo imagem representa o seu objeto por manter com ele uma semelhança imediata, o que em poesia acontece principalmente de forma visual ou sonora. Nesse tipo de representação, o signo/poema torna-se expressivo, por exemplo, pelas propriedades gráficas das palavras, que podem formar um desenho na página, como acontece em “Anúncio da Rosa”, texto que será analisado em um dos próximos subitens. Na leitura que será apresentada, buscamos mostrar em que sentido a forma gráfica do poema, que lembra uma flor, está interligada aos seus efeitos estéticos. Na obra, também encontramos a representação icônica imagética do tipo sonora, em poemas como “Nosso tempo”. Nele, um eu-lírico angustiado busca a poesia, denominada por ele de “precária síntese” (v.11), em um mundo “de homens partidos” (v.2) e, por isso, tem a palavra dura, presa na boca, a ponto de explodir. Nos versos, a dureza e a iminente explosão das palavras são ouvidas, ou sentidas na voz pelo leitor, por meio das aliterações. A aspereza das palavras é marcada pela presença constante da vibrante /r/, e a explosão pelas oclusivas/plosivas /p/, /t/ e /k/ /d/, que, fisicamente, explodem durante a passagem de ar pela boca: “este é tempo de partido,/tempo de homens partidos”. (v.1 e 2). Além da força expressiva de cada um dos fonemas, em muitos versos encontramos a combinação da vibrante com uma plosiva, formando um som ainda mais duro, como o que observamos em palavras como “pressentida” (v.5), “escreve-se” (v.8), “pedra” (v.9), “encontro” (v.10), “precária” (v.11), “empréstimo” (v.14) e “ombro” (v15). Toda essa aspereza e explosão fonética são constituídos pela representação icônica, o que fica ainda mais evidente na última estrofe da primeira parte do poema:

Mas eu não sou as coisas e me revolto. Tenho palavras em mim buscando canal, São roucas e duras Irritadas e energéticas, Comprimidas há tanto tempo, 53

Perderam o sentido, apenas querem explodir. (RP, p. 325).

“Rola mundo” é outro poema em que aliterações são ícones do tipo imagem. Nele, um eu-lírico tem visões dos tempos em tom de delírio e, assim como em outros versos de Drummond, os olhos tornam-se a fonte de angústia: “Depois de tantas visões / já não vale concluir se o melhor é deitar fora / a um tempo os olhos e os óculos / e se a vontade de ver / também cabe ser extinta,” (RP, p. 354). Essas visões angustiadas são levadas, carregadas, pelo vento – metáfora da passagem do tempo – que pode ser sentido na voz e ouvido por meio da aliteração da fricativa /v/ que percorre todo o poema, fazendo com que o poema “vente”.

Vi moças gritando Numa tempestade. O que elas diziam O vento largava, Logo devolvia. Pávido escutava, Não compreendia. Talvez avisassem: Mocidade é morta. Mas a chuva, mas o choro, mas a cascata caindo, tudo me atormentava sob a escureza do dia, e vendo, eu pobre de mim não via (RP, p. 350).

O ícone do tipo diagrama, no qual existe uma relação de semelhança de segundo grau, – já que o signo não se parece fisicamente com o seu objeto, mas se organiza, “age”, de forma semelhante a ele – é um tipo de representação bastante profícuo para a literatura por conseguir construir estruturas lógicas muito semelhantes ao que se pretende representar. Com base no diagrama, traremos, no próximo subitem, a leitura de Pignatari (2004) do poema “Áporo”, na qual o crítico mostra como, gráfica e foneticamente, as letras/fonemas realizam, dentro do poema, um percurso semelhante ao que está sendo representado. Nesse mesmo sentido, ilustramos a iconicidade diagramática em A Rosa do Povo com a leitura que Simon (1978) faz dos poemas “Economia dos Mares Terrestres” e “O elefante”. Apesar de não fundamentar a sua pesquisa na semiótica peirceana, e não citar, portanto, nela a representação diagramática, nós entendemos que a pesquisadora baseia a sua análise no fato do signo linguístico se comportar de maneira semelhante ao que ele está representando, como demonstraremos.

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Simon (1978, p. 182) destaca a redução das sílabas em “Economia dos Mares Terrestres”: “a compressão da ‘queixa’ na ‘garrafa’ é atualizada através de um procedimento que poderemos chamar de recuo dos versos que se reenviam uns aos outros através de ‘enjambements’ abruptos e da redução das sílabas poéticas”. Dessa forma, observamos que a compressão acontece não apenas no plano semântico, com a gradação dos adjetivos que caracterizam a queixa, como em “queixa comprimida”, “queixa menor” e “queixa mínima”, mas, o que nos interessa de forma especial, no próprio texto que se comprime (na presença de versos muito curtos entre os longos). É o que verificamos principalmente nos versos 1, 7, 8, 12, e 16, com destaque para os 7 (no vácuo) e 16 (limita-se) que reforçam a compressão também semanticamente.

1. A queixa 2. comprimida na garrafa 3. quer escapar 4. reunir os povos 5. dizer a Matilde que lhe perdoa 6. organizar a vida dos índios, 7. A queixa 8. No vácuo 9. lembra uma queixa menor. 10. Dir-se-ia, na chama, uma sombra, 11. Não arde, também se destrói. 12. A queixa mínima 13. já não pede ao vento que se cale, 14. aos estudantes que estudem, a Elza 15. que deposite flores sobre o retrato enterrado. 16. Limita-se 17. à contemplação metódica da mosca 18. Fora da garrafa 19. (mas já são outros problemas) (RP, p. 367).

Nesse poema, o que podemos observar é que o signo linguístico representa a compressão comprimindo-se a si mesmo em dados momentos, ou seja, a estrutura textual corrobora o que está sendo dito, o que acontece também em textos nos quais se pretende transmitir a ideia de algo dinâmico e, para isso, escrevem-se frases curtas ou, ao contrário, para que tudo se torne lento, opta-se por períodos longos. Em “O elefante”, o processo de montagem/colagem do elefante destaca-se por acontecer dentro da própria estrutura sintática do poema. É o que aponta Simon (1978), que mesmo sem usar os termos semióticos7, mostra que a representação diagramática é responsável por boa parte da expressividade do poema.

7 Simon (1978) adota em suas análises o termo “isomorfismo”, cunhado pelo movimento da Poesia Concreta, que emergiu no Brasil na década de 1950, e que tem a iconicidade diagramática como 55

Sob o ponto de vista do plano da expressão, a estrutura sintática dos primeiros versos (versos 1 a 14) é isomórfica ao processo de desarticulação da imagem do “elefante”. O texto fragmenta-se em períodos simples que, justapostos, representam a construção fragmentária do elefante poético. Em suma, uma sintaxe de “cola” evidencia a precariedade da montagem (SIMON, 1978, p. 77).

Como outros metapoemas da obra, o texto traz a discussão em torno da função social da poesia, metaforizada pela imagem do elefante: “grande”, “imponente”, porém “desajeitado”. O elefante, como o poema que ele metaforiza, é construído verso a verso, o que fica mais evidente nas primeiras estrofes do texto que são formadas por imagens justapostas das partes que compõem o elefante e organizadas, como ressalta Simon (1978), em períodos simples. Assim, se metaforicamente acontece a representação da fabricação do poema/elefante, no plano real o poema é construído palavra a palavra, verso a verso, estrofe a estrofe, em um processo de montagem real. Em um primeiro momento, estamos diante de fragmentos da imagem do elefante/poema, que vai sendo montado conforme a leitura. A montagem, feita por meio de imagens justapostas que não chegam a formar um todo, é frágil, já que realizada com “poucos recursos”, como diz o eu-lírico. Nessa primeira etapa, de acordo com Simon (1978), o processo de desautomatização deve ser destacado, pois o elefante que se configura não é formado apenas pelas partes que compõem o animal real, mas também por elementos de forte carga metafórica, como “algodão”, “paina” e “doçura”.

Fabrico um elefante de meus poucos recursos. Um tanto de madeira tirado a velhos móveis talvez lhe dê apoio. E o encho de algodão, de paina, de doçura. A cola vai fixar suas orelhas pensas. A tromba se enovela, é a parte mais feliz de sua arquitetura. (RP, p. 402)

Também segundo Simon (1978), após o processo de fabricação, o eu-lírico exibe o elefante pronto, ou seja, formando um todo, o que pode ser observado não só no plano do conteúdo, “Eis meu pobre elefante/pronto para sair” (v.24 e 25), mas também novamente na estrutura sintática do texto, que passa a ser formada predominantemente

fundamento, já que existe uma correspondência entre aquilo que o poema representa e a maneira como ele se desenvolve. 56

por períodos compostos por subordinação, nos quais a presença de conectivos subordinantes demonstra a ligação e relação de dependência entre as partes (op.cit).

Eis o meu pobre elefante pronto para sair à procura de amigos num mundo enfastiado que já não crê em bichos e duvida das coisas. Ei-lo, massa imponente e frágil, que se abana e move lentamente a pele costurada onde há flores de pano e nuvens, alusões a um mundo mais poético onde o amor reagrupa as formas naturais. (RP, p. 403).

Pronto, o elefante desfila “pela rua povoada”, mas “não o querem ver”. Assim, a imagem começa o seu processo de desmantelamento, voltando à fragmentação inicial. “Daí a projeção da imagem grotesca, absurda e fragmentada, a que corresponde, no nível da expressão, a fragmentação da sintaxe”. (Simon, 1978, p. 80).

Vai o meu elefante pela rua povoada, mas não o querem ver nem mesmo para rir da cauda que ameaça deixá-lo ir sozinho. É todo graça, embora as pernas não ajudem e seu ventre balofo se arrisque a desabar ao mais leve empurrão. Mostra com elegância sua mínima vida, e não há cidade alma que se disponha a recolher em si desse corpo sensível a fugitiva imagem, o passo desastrado mas faminto e tocante. (RP, p. 403/404).

No plano metafórico, o projeto do elefante acompanha todas as etapas da construção da lírica social: a fabricação da imagem, a contemplação crítica; a circulação pelas ruas e o risco do fracasso (SIMON, 1978, p. 83). Esse projeto poético, contudo, como pretendemos demonstrar por meio da análise feita pela pesquisadora, se realiza

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expressivamente por meio do ícone diagramático, já que a sintaxe textual se organiza de maneira semelhante ao que representa: a construção/desconstrução do elefante/poema. A nossa intenção, com esse pequeno apanhado, é mostrar como a representação icônica é rica em A Rosa do Povo, isso, como dito anteriormente, sem nem nos determos nas inúmeras metáforas verbais que há na obra. Nos próximos subitens, traremos uma análise mais detalhada de dois poemas para abordar as implicações estéticas do ícone no texto poético.

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2.3.1 ÁPORO

1. Um inseto cava 2. cava sem alarme 3. perfurando a terra 4. sem achar escape.

5. Que fazer, exausto, 6. em país bloqueado, 7. enlace de noite 8. raiz e minério?

9. Eis que o labirinto 10. (oh razão, mistério) 11. presto se desata:

12. em verde, sozinha, 13. antieuclidiana, 14. uma orquídea forma-se (DRUMMOND DE ANDRADE, 2012, p. 356)

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2.3.1.1 Um inseto cava o poema

Com “Áporo”, Drummond cria um verdadeiro labirinto com a linguagem que parte do símbolo, principalmente dos significados dicionarizados da palavra que dá título ao texto, para o ícone diagramático, aquele no qual o signo se parece com o seu objeto ao se “comportar” como ele, como bem demonstra a análise realizada por Pignatari (2004), base desta leitura. De acordo com o crítico, no poema encontramos os “percursos inseto/orquídea” que se realizam dentro dos versos por meio de “aliterações verticais”. Assim, ao mesmo tempo em que fala de um inseto que cava, o poema realiza essa escavação fono e graficamente dentro do próprio texto, o que para ele se relaciona ao método ideogrâmico de composição, que, mais de uma década depois da publicação de A Rosa do Povo, foi largamente defendido e usado pelo Movimento Concretista, também fortemente influenciado pela Semiótica de Peirce, nas décadas de 1950 e 1960. Assim, segundo o pesquisador, a composição do poema seria ideográfica e ideofônica. A escrita ideográfica chinesa está relacionada ao ícone em diversas dimensões, desde a sua base pictórica até o seu processo de produção de significado, centrado em uma relação de base metafórica 8. A relação do pictograma (signo) com o que ele representa pode ser imediata (um ícone visual), mas pode se configurar também por meio de relações análogas, ou seja, de forma diagramática. É o que explica Haroldo de Campos (1994, p. 49).

Desde logo o “pictograma” é decididamente um “ícone”: é uma pintura que, em virtude de suas próprias características, se relaciona, de algum modo, por similaridade, com o real, embora essa “qualidade representativa” possa não decorrer de imitação servil, mas de diferenciada configuração de relações segundo um critério seletivo e criativo.

Mesmo considerando a representação diagramática como a grande força expressiva em questão, é preciso lembrar que em “Áporo” o símbolo é o ponto de partida das significações. A polissemia da palavra que dá nome ao poema, ou seja, suas representações simbólicas, é a primeira chave de leitura do texto, pois os seus três

8 Campos (1994, p.50) traz uma leitura esclarecedora a respeito do método ideogrâmico de compor, segundo ele, equiparado à metáfora por Ernest Fenollosa no ensaio “The Chinese Written Character as Medium for Poetry”: “O uso de imagens materiais para sugerir relações imateriais ou como quer Eisenstein, a passagem do ‘pensamento por imagens’ ao ‘pensamento conceitual’. Mas a metáfora, na classificação triádica de Peirce, é também um ‘hipoícone’, embora um hipoícone terceiro, próximo ao polo de convencionalidade do símbolo (só que, enquanto na metáfora propriamente dita, como expõe Jakobson, ocorre uma equação no plano dos significados, entre um significado “primário” e outro “secundário”, no complexo ideogrâmico a notação visual corrobora a equação metafórica no nível do signans, como uma espécie de ‘paragrafia’ assimilável à ‘paronomásia’ Jakobsoniana)”. 60

principais significados, fundidos e ampliados pelo processo metafórico, carregam a sua ideia geral. Nos dicionários pesquisados por Pignatari (1971), o vocábulo aparece como sendo um inseto, um tipo de orquídea e um problema de difícil resolução. Ainda sobre a representação simbólica, destaca-se que a significação de áporo como um inseto se amplia ao observarmos que o poema é formado por dois quartetos e dois tercetos: a composição típica de um soneto. Soneto e inseto, por sua vez, formam quase um anagrama, como Pignatari (2004) chamou atenção. O soneto de Drummond, contudo, estaria cortado ao meio, já que os seus versos são de cinco e não dez sílabas poéticas. Assim, na verdade, o inseto seria o próprio soneto que “se cava”, o que só percebemos ao acionarmos o conhecimento da tradição literária no que se refere ao soneto, uma forma clássica de texto poético. Neste poema, encontramos dois aspectos que marcam A Rosa do Povo, como nos diria Simon (1978): o poema que se abre para o mundo (o que se chamou de poesia social de Drummond) e o que se fecha em si. Mesmo não sendo o foco deste tópico (esse aspecto será melhor trabalhado quando falarmos dos índices), é importante citarmos uma das principais leituras do poema, que o relacionam ao momento histórico mundial e nacional de sua produção, marcado pelo nazifascismo e pela Ditadura Vargas9. Nesse sentido, teremos um inseto que cava, em “país bloqueado”, como a metáfora da tentativa de se escapar da repressão. Percorrendo um labirinto, o inseto escapa, transforma-se em orquídea, a mesma metáfora da liberdade, da renovação, que encontramos em “A flor e a náusea”, também de A Rosa do Povo: “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Apesar dessa leitura contextualizada, para Simon (1978, p.174) “Áporo” é um dos textos da obra com grau máximo de oposição ao que ela chama de prática engajada: os poemas que privilegiam a comunicação (visam ser entendidos sem muita dificuldade) e assim exploram a estrutura lógico-discursiva, as funções referenciais e conativas da linguagem, em detrimento da função poética. Para ela, ao contrário disso, é o processo de condensação, em que é a experimentação poética que está em primeiro plano, que marca um bloco de poemas do livro, a exemplo de “Áporo”, “Ontem” e “Fragilidade”:

Inscrevem-se no campo vertical aberto pela experiência poética de “Uma pedra no meio do caminho” (Alguma poesia), reencontrada e/ou radicalizada em “cortes” verificáveis em toda a trajetória do poeta, até atingir “Isso é Aquilo” (Lição de Coisas) – “poema-dicionário dos acasos da composição, a girar sobre si mesmo num eixo mallarmaico, sem dúvida alguma um dos

9 Algumas leituras associam o 11º verso do poema, “presto se desata”, à libertação do líder do partido comunista Luís Carlos Prestes, que ocorreu na mesma época. 61

pontos altos da atual poesia brasileira (...)”, como afirma Haroldo de Campos. (SIMON, 1978, p. 175).

Desta forma, mesmo carregando um significado histórico, no poema de Drummond é o ícone que se destaca. Partindo dos significados dicionarizados de “áporo”, o inseto/orquídea/problema de difícil solução, Drummond mostra como o signo verbal pode fazer acontecer aquilo que representa. Escapar de um labirinto é, sem dúvida, um problema de difícil solução10, ainda mais quando o labirinto também é o próprio poema. Com sua análise, Pignatari mostra que, por meio do que chama de “aliterações verticais”, podemos acompanhar o percurso do inseto/orquídea que vai cavando o poema dentro de um processo de representação icônica diagramática11. Segundo o crítico, teremos o “percurso-inseto” e o “percurso- orquídea”. “Inserto no bastidor verbal (suporte), um texto-têxtil, ideográfico e ideofônico – inseto que, por isomorfismo, se fisicaliza e se metamorfoseia em flor- poema, à medida que percorre e faz, perfura e perfaz” (PIGNATARI, 2004, p. 139). No “percurso-inseto”, são identificadas três pistas a partir das sílabas da palavra in-se-to. “A pista que leva à saída do labirinto é a central, se, (com sua principal variante espelhada, es), ícone sutil de inseto e verme, signo inseto que, logo de início, se apresenta situado em si mesmo, in-se-to” (PIGNATARI, 2004, p. 139). Como vemos, o estudioso de semiótica também aponta o aspecto icônico visual da letra “s”, que pode lembrar o formato de um verme. Voltando ao percurso, na escavação (visual e sonora) o “se” também aparece transformado em outras fricativas, surgindo integralmente no fim da sílaba, na última palavra do poema, como a escapar dele: “forma-se” (v.14).

Percurso: inseto / Sem / EScape / fazer / Exausto / enlace / EiS / prESto SE dESata / forma-SE. É a trilha das fricativas. Sábia e encliticamente expelido da forma, vemos o inseto-flor-poema formando-se formado” (PIGNATARI, 2004, p. 139).

Nesse ponto, é interessante pensarmos na polissemia da palavra “forma”, que pode se referir também à própria estrutura do poema, assim como ao seu processo de composição.

10 Podemos pensar em como o texto poético é enigmático, um problema para qual buscamos a solução. No caso de “Áporo”, esse caráter fica ainda mais evidente se pensarmos, como Pignatari, na descoberta de pistas camufladas do percurso inseto/orquídea. Trata-se, sem dúvida, de um grande jogo de linguagem. 11 Como já dito, o pesquisador não classifica assim o processo de representação de “Áporo”, mas afirma que o poema é ideográfico e ideofônico. 62

Além do “se” e suas variantes, o crítico identifica como pista a nasalização contida na primeira sílaba de in-se-to, o que nomeia de “trilha das nasais” presente em termos como “UM/INseto”. Por fim, a terceira pista do percurso-inseto seria a da última sílaba da palavra, “to”, ou seja, a “trilha das oclusivas linguadentais” e apareceria em “Terra / exato / noite / labirinto / mistério / presto / desaTA”. (PIGNATARI, 2004, p. 139). Ainda sobre as pistas, o crítico chama a atenção para o sétimo verso do poema, no qual as três se cruzariam: “Enlace de noite”. Assim, destacando cada uma delas, teríamos a formação do termo EM-CE-TE, para ele um eco estocástico de inseto. Paralelamente ao “percurso-inseto”, acontece o “percurso-orquídea” por meio dos fonemas contidos no vocábulo ca-va. De acordo com Pignatari (2004, p. 141), “O percurso-orquídea segue a trilha das oclusivas velares: CAva/CAva/esCApe/que/bloQUEado/eis QUE/antieuCLIdiana/orQUÍdea”. É o percurso da transformação do inseto em flor ou da revelação da flor que já existia no inseto (lembrando que áporo é uma coisa e outra). Ainda sobre a orquídea que se forma, o pesquisador chama a atenção para o fato da palavra orquídea já está em formação dentro da palavra “antieuclidiana”: euclídia/orquídea. Com essas observações, pretendemos mostrar que “Áporo” é um poema complexo, no que se refere ao processo de representação, já que a sua força expressiva está atrelada à palavra em suas dimensões indicial, ao fazer referência ao contexto histórico de produção da obra; simbólica, ao explorar os significados dicionarizados do termo que dá nome ao texto; e, principalmente, icônica, já que o que se coloca em evidência é a materialidade do signo, a disposição de cada fonema destacado por Pignatari, que permite que o texto se concretize como um verdadeiro labirinto escavado por letras e sons.

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2.3.2 ANÚNCIO DA ROSA

1. Imenso trabalho nos custa a flor. 2. Por menos de oito contos vendê-la? Nunca. 3. Primavera não há mais doce, rosa tão meiga. 4. Onde abrirá? Não, cavalheiros, sede permeáveis.

5. Uma só pétala resume auroras e pontilhismos, 6. sugere estâncias, diz que te amam, beijai a rosa, 7. ela é sete flores, qual mais fragrante, todas exóticas, 8. todas históricas, todas catárticas, todas patéticas.

9. Vede o caule, 10. traço indeciso.

11. Autor da rosa, não me revelo, sou eu, quem sou? 12. Deus me ajudara, mas ele é neutro, e mesmo duvido 13. que em outro mundo alguém se curve, filtre a paisagem, 14. pense uma rosa na pura ausência, no amplo vazio.

15. Vinde, vive, 16. olhai o cálice

17. Por preço tão vil mas peça, como direi, aurilavrada, 18. não, é cruel existir assim em tempo filaucioso. 19. Injusto padecer exílio, pequenas cólicas cotidianas, 20. oferecer-vos alta mercancia estelar e sofrer vossa irrisão.

21. Rosa na roda, 22. rosa na máquina, 23. apenas rósea.

24. Selarei, venda murcha, meu comércio incompreendido, 25. pois jamais virão pedir-me, eu sei, o que de melhor se compôs na noite 26. e não há oito contos. Já não vejo amadores de rosa. 27. Ó fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia apodrece.

28. Aproveitem. A última 29. rosa desfolha-se.

(DRUMMOND DE ANDRADE, 2012, p. 373-374)

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2.3.2.1 A poesia que (não) se vende

“Anúncio da Rosa” é um poema composto de 29 versos, divididos em nove estrofes: cinco quartetos, três duetos e um terceto. A métrica é irregular. A estrutura do poema, aliás, é o que primeiro chama a atenção, especialmente pela existência de estrofes muito curtas centralizadas ao longo de todo o texto. No poema, ícone e símbolo se complementam dando expressividade ao texto, como pretendemos demonstrar. O título do texto e a sua estrutura são elementos fundamentais para a sua compreensão. No poema, o que se coloca diante de nós é um signo icônico imagético: a imagem aproximada da rosa12, composta de pétalas (as duas primeiras estrofes), do caule (terceira, quinta e sétima estrofes) e das folhas (quarta e sexta estrofes). De acordo com Ferraz Jr. (2012, p. 36), “as imagens são ícones que reproduzem as qualidades imediatas de um objeto – isto é, o seu aspecto sensorial –, sendo assim percebidas como réplicas daquilo que representam”. Assim, a rosa anunciada no título se configura primeiro visualmente, na organização das estrofes que lembram a flor por meio de um pictograma, já que não se trata de uma imagem óbvia, como seria, por exemplo, uma fotografia ou uma pintura da rosa. Philadelfo Menezes (1991, p. 32) esclarece que um pictograma é um signo que “mantém uma relação de semelhança fisionômica com o objeto a que se refere. É uma representação figurativa, estilizada pela simplificação dos traços no decorrer do tempo.” Nesse mesmo sentido, podemos aproximar o poema de Drummond também dos chamados caligramas, 13 conhecidos principalmente através da obra de Guillaume Apollinaire. Mas, é preciso ressaltar que a relação entre o ícone imagético e o que ele representa é de ordem metafórica: a rosa, como veremos, representa a arte poética

12 A palavra rosa é um símbolo bastante recorrente na obra de Carlos Drummond de Andrade, nomeando, por exemplo, o livro do qual extraímos o poema aqui analisado: A Rosa do Povo. Ela quase sempre é associada à renovação, esperança, como aquilo que resta de bom em meio a uma sociedade capitalista cinzenta. Muitas vezes, o poeta não adota a palavra rosa propriamente, mas usa vocabulários com significação semelhante como flor (A Flor e a Náusea), orquídea (Áporo). Afonso Romano de Sant’anna (2008) associa a simbologia da rosa à valorização do tempo presente em Drummond em A Rosa do Povo. “Mesmo desvestindo esse símbolo de todo sentido místico, não se pode deixar de fazer a ligação que Lefebvre fez entre rosa e cruz: a cruz é o tempo, o esquartejamento do presente no vir-a-ser entre o passado e o futuro, entre a ação e a paixão, entre as contradições que o movem. Sobre essa cruz dolorosa nasce a Rosa do Mundo, a flor do tempo que o homem deve colher e o filósofo flui inicialmente. Lembrem-se, finalmente, a própria etimologia do tempo-templum: cruzamento, e o fato de A Rosa do povo ser o livro mais firmemente irradiado do presente”. (SANT’ANNA, 2008, p. 21). 13 Segundo o Dicionário de Termos Literários de Massaud Moisés (1944, p.61): “O nome caligrama foi inventado por Guillaume Apollinaire (1880-1918), a partir de ‘caligrafia’ e ‘ideograma’, para servir de título a uma coletânea de poemas que publicou em 1918 (calligrammers)”. Nesses poemas, as palavras se organizavam graficamente de modo a dar ideia do conteúdo. 65

defendida pelo eu-lírico14. No poema, a rosa anuncia e é anunciada, ao mesmo tempo. Ao anunciar, no sentido de anunciação, a rosa em Drummond significa a chegada da esperança, da renovação (a boa-nova) em um mundo capitalista15, no qual a própria arte se torna mercadoria. Em um dos últimos poemas da obra, “Mário de Andrade desce aos infernos”, CDA retoma essa ideia de anunciação, o que se torna ainda mais especial por se tratar do momento da obra em que o seu título, A Rosa do Povo, aparece por completo.

A rosa do povo despetala-se ou ainda conserva o pudor da alva? É um anúncio, um chamado, uma esperança embora frágil [pranto infantil no berço? Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe. Mas há um ouvido mais fino que escuta, um peito de artista que incha e uma rosa se abre, um segredo comunica-se, o poeta anunciou o poeta, nas trevas, anunciou (RP, p. 509).

Mas, ironicamente, anunciar pode ser interpretado como uma estratégia comercial, publicitária, que, no poema, apela para uma das coisas que mais vendem no mundo capitalista: a imagem. A ironia drummondiana constrói um discurso contra a venda da arte poética, ao mesmo tempo em que se apropria de estratégias comerciais para fazer essa negação, sendo a primeira delas a representação icônica imagética da rosa. Trata-se de uma tática de convencimento em que, para anunciar a sua rosa, e dizer que ela não está à venda, o eu-lírico a exibe em praça pública, como em um pregão, e critica os poetas que fariam da sua arte um produto – usando os parnasianos16 como exemplo e se apropriando da linguagem deles. O objetivo do eu-lírico é mudar o conceito de poesia que é valorizado na sociedade capitalista e mostrar o valor da sua arte. Então, para tentar convencer os

14 Podemos pensar que essa metáfora foi construída a partir da ideia simbólica da flor. Ou seja, as qualidades da arte poética são equiparadas às qualidades da rosa, mas não só em sentido denotativo, relativo, por exemplo, à delicadeza e à beleza das flores. A rosa na poesia de Drummond, como colocado na nota anterior, tornou-se símbolo de esperança e renovação. 15 Merquior (2012, p. 127) lembra que em “Nosso tempo”, outro poema de A Rosa do Povo, também encontramos uma crítica de Drummond ao mundo capitalista. “De tudo o que pertence ao estilo de vida que ele engloba sob o nome de mundo capitalista, o poeta resolutamente se despede”. O poeta busca destruir o mundo capitalista: “O poeta / declina de toda responsabilidade / na marcha do mundo capitalista / e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas / promete ajudar/a destruí-lo / como uma pedreira, uma floresta/um verme”. (RP, p. 324). 16 O parnasianismo é um movimento literário do século XIX, contemporâneo do realismo-naturalismo, que segundo Bosi (2006, p. 219-220) tem os seguintes traços de relevo: “descrição nítida (a mimese pela mimese), concepções tradicionalistas sobre metro, ritmo e rima e, no fundo, o ideal de impessoalidade que partilhavam com os realistas do tempo”. Os poetas parnasianos, por cultuar a forma, a chamada “arte pela arte” não tinham qualquer compromisso com a realidade social, ideia que se contrapunha à poesia social que norteia grande parte de A Rosa do Povo. A função da poesia como meio ou como fim, aliás, é um dos grandes dilemas poéticos desse livro de Drummond. 66

“cavalheiros” (aqueles que ditam socialmente o que é poesia), aos quais se dirige na primeira estrofe, ele oferece a sua rosa por meio de ideias – atreladas ao signo simbólico – e qualidades, que se concretizam por meio do ícone imagético da rosa. Assim, a representação icônica do tipo imagem da rosa aparece como um reforço da ideia da rosa que é propagada por meio das palavras/símbolos, ou seja, signos que representam seu objeto por meio de convenções sociais. Nas duas primeiras estrofes do poema, que correspondem à imagem aproximada das pétalas da rosa, o eu-lírico apresenta a sua flor como algo que lhe custa imenso trabalho e que, por isso, não poderia ser vendida, o que também pode caracterizar uma estratégia comercial de valorização do produto. Para descrever a sua arte, ele emprega palavras ligadas a um universo semântico que, simbolicamente, são associadas à flor, como “doce” e “meiga” (vocabulário que pode tornar a rosa mais comercial, mas que carrega ironia por estar associado a um ideal romântico de flor). Além disso, no início da segunda estrofe, aparece a palavra pétala, demonstrando expressamente a associação entre as partes visuais do poema (rosa) e a ideia que pretende transmitir verbalmente. No sétimo verso, em uma associação entre os versos e as pétalas da flor, o eu-lírico diz da rosa que “ela é sete flores”. Os seus versos, ou seja, as suas pétalas, além de serem perfumadas (“fragrantes”), também são diferentes das demais (“exóticas”), “históricas”, “catárticas”, e “patéticas17”. A rosa que não se vende é o resultado de um “traço indeciso” (v. 10) do autor: “autor da rosa, não me revelo, sou eu quem sou?” (v.11). Traço esse que se concretiza por meio do ícone imagético (os dois versos centralizados), já que o caule é associado ao traço do poeta, “Vede o caule / traço indeciso” (v. 9 e 10), e também o relacionamos à função dessa parte da planta: aquela por onde a seiva/vida corre. “Vede o caule” (v. 9) diz o eu-lírico, o que no poema se realiza sensivelmente por meio do ícone, os versos centralizados que se aproximam da imagem dessa parte da planta. Neste caso, a forma verbal, além de denotar visualidade, mais uma vez carrega ironia, já que, mesmo negando a venda da rosa, o eu-lírico (que talvez por isso se caracterize como indeciso nos versos 10 e 11) conjuga o verbo no imperativo (vede), o que é corriqueiramente utilizado pela linguagem publicitária. Além disso, o rebuscamento do discurso aparece na escolha da forma como ele se dirige ao seu

17 Como em “O elefante” – que é caracterizado por seu “passo desastrado” e por ser uma matéria “que não sei figurar” – a rosa/poema é apresentada como “patética”, como uma prática poética em constante autoquestionamento e que, de acordo com o eu-lírico nos dois poemas, não seria aceita. 67

interlocutor: “vós” – 2ª pessoa do plural, historicamente associada a um tratamento mais formal – e não como “tu”, que daria certa informalidade a sua fala. Prosseguindo a apresentação da sua rosa, na quarta estrofe, que imageticamente corresponde às folhas, o eu-lírico, vivendo em um mundo em que sua arte se transformou em mercadoria, afirma que tem a ajuda de Deus (possível inspirador), mas Ele, na verdade, não se envolve nessa discussão em torno da função da poesia, pois é neutro, já que no outro mundo, “na pura ausência, no amplo vazio” (v.14) não se pensa na rosa. Para que essa discussão acontecesse no outro mundo (o que o eu-lírico duvida), é preciso que “alguém se curve, filtre a paisagem” (3º verso/4º estrofe), como a folha de uma planta filtra o ar, absorvendo o gás carbônico e devolvendo o oxigênio. Mais uma vez, com o emprego do verbo filtrar na parte que corresponde imageticamente à folha, vemos a união dos modos de representação icônico e simbólico para o reforço da significação do poema. Para que a verdadeira arte poética seja valorizada, é preciso que se filtre o ar, que se tire dele as impurezas, ou seja, aqueles que comercializam a poesia. Na quinta estrofe, o eu-lírico apresenta o cálice da flor. A palavra, que também é uma das partes constituintes das flores (conjunto de sépalas), remete a um objeto de valor revestido de sacralidade, se o seu significado for relacionado ao Cristianismo. A associação simbólica do cálice a algo valoroso e sagrado é reforçada pelo primeiro verso da sexta estrofe, no qual, metonimicamente representada pelo cálice, a rosa/poesia é descrita como uma peça lavrada em ouro: “Por preço tão vil, mas peça, como direi, aurilavrada18”. Esse tesouro que é a arte poética, contudo, não é valorizado, pois está sendo cultivado em tempo “filaucioso” (v.18), quer dizer, no tempo da falsidade, das inverdades, em que a poesia defendida pelo eu-lírico é exilada. Assim, neste tempo oferece-se algo de muito valioso, de “alta mercancia estelar (v.20)19”, mas o que se tem como resposta é a “vossa irrisão” (v.20) ou zombaria. O que chama a atenção nessa estrofe é que Drummond, de forma irônica e paródica, usa de forma destacada o modo de representação simbólico ao se apropriar de uma linguagem rebuscada, que se convencionou associar à arte ornamental, para criticá-la. Diante de um contexto em que a poesia a é ridicularizada, em que se coloca (7ª estrofe) a “Rosa na roda”, a “Rosa na máquina”, ou seja, em que a arte virou comércio,

18 Aurilavrada é um termo muito usado no parnasianismo para falar sobre o trabalho do poeta com a palavra. Ele aparece, por exemplo, no poema Sesta de Nero, de Olavo Bilac. Os parnasianos cultuavam a “arte pela arte”, valorizando o preciosismo rítmico e vocabular. 19 Mais uma vez o poeta usa um vocabulário tipicamente parnasiano. 68

apesar de ser “apenas rósea” (perfumada, delicada), o eu-lírico tem certeza de que se realizará apenas uma “venda murcha” de “seu comércio incompreendido” (v.24), já que, mesmo usando as estratégias comerciais para propagar a sua poesia, de ter mostrado a sua rosa e falado das qualidades dela, a sua poesia não será valorizada, “pois jamais virão pedir-me, eu sei, o que de melhor se compôs na noite” (v.25). A arte poética, desvalorizada em tempos filauciosos, é feita às escondidas, na noite, pois “já não vejo amadores de rosa” (v.26). Mas tudo isso não passa de um engano da sociedade capitalista que valoriza uma poesia feita de rebuscamento, reflete o eu-lírico. Para ele, contudo, essa poesia comercial também não serve: “Ó fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia apodrece” (v.27). Em um mundo marcado por tantos conflitos sociais, por guerras, fome, a arte pela arte não tem sentido: é vazia e só é apreciada por sua beleza aparente. Diante disso, sem amadores de rosa, o eu-lírico está sozinho e a sua rosa – exibida, anunciada, defendida – desfolha-se.

Aproveitem. A última rosa desfolha-se. (RP, p. 374).

“Anúncio da Rosa” é um exemplo de como os modos de representações sígnicas constroem as significações e efeitos estéticos de um poema. O eu-lírico – em um processo retórico – usa um ícone do tipo imagético, aliado ao modo de representação simbólico, para convencer o seu interlocutor das qualidades da sua poesia. Escolhemos expor a análise do poema neste tópico que fala sobre o ícone porque sua estrutura visual (e a expressividade relacionada a ela) é única em A Rosa do Povo. O ícone da rosa causa impacto. Chama a atenção daqueles que se deparam com a estrutura incomum do poema. Então, o primeiro efeito expressivo do poema está relacionado ao poder sensorial que o ícone possui por ser um signo que representa o seu objeto por meio das qualidades. Como um “poema-anúncio” que tem que, ironicamente, vender uma mercadoria que não se vende (a poesia), alia imagens e ideias (podemos lembrar os slogans das propagandas, por exemplo), ícone e símbolo, para convencer. No poema de Drummond é isso que acontece: a imagem chama a atenção, mas se ela atrai os sentidos, o processo de convencimento acontece mesmo é pelas ideias/símbolos.

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2.4 A REPRESENTAÇÃO INDICIAL

Simon (1978, p.53) destaca que muitos estudos relacionam a poesia de Drummond a “momentos determinados no processo histórico”. Ela afirma que, a partir de 1935, com Sentimento do Mundo, o poeta se vê impelido pela poesia como participação e empenho político. “A luta contra o fascismo, a guerra de Espanha e a Guerra Mundial favoreceram o desenvolvimento da literatura participante em todo o mundo”. Para Simon, é com A Rosa do Povo que Drummond atinge o clímax participante, “quando o ‘tempo presente’ se instaura como matéria do poema – ao mesmo tempo em que atinge a consciência mais profunda da ‘crise da poesia’”. (op.cit). Tais considerações têm como base, principalmente, o ensaio “A situação atual da poesia no Brasil”, de Décio Pignatari (2004), no qual o crítico afirma que, com a crise do artesanato do século XIX (provocada pela industrialização, entre outros fatores), o artista começa a se questionar sobre a sua função na sociedade. “Instala-se nele a mauvaise conscience e a atitude reflexiva, crítico-analítica, não só diante da própria obra, como face à vida, em busca de novas formas-conteúdos” (PIGNATARI, 2004, p.101). CDA, segundo Pignatari, seria um dos poetas brasileiros a sentir essa crise. O índice é uma das forças representativas de A Rosa do Povo, principalmente porque grande parte dos seus poemas, como adiantado acima, aponta para o contexto histórico de sua produção. A referencialidade de alguns textos é clara e inegável – principalmente nos que fazem parte das chamadas líricas de guerra20: neles aparecem, por exemplo, datas e lugares específicos, como em “Carta a Stalingrado”, “Telegrama de Moscou”, “Visão 1944” e “Com o russo em Berlim”. Lembramos que, como nos esclareceu Ferraz Jr. (2012), no universo literário, a indexicalidade acontece por meio dos chamados índices degenerados, nos quais se enquadram, entre outros, referências, pronomes demonstrativos e nomes próprios. Ferraz Jr. (2012) destaca que é possível reconhecer a força expressiva dos índices degenerados no texto literário, a exemplo do que acontece no poema “Carta a Stalingrado”, no qual a significação e a força estética estão intimamente relacionadas a um fato real ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial, ou seja, nesse caso, a referência não é de ficção.

20 Encontramos a expressão “líricas de guerra” em Drummond: uma poética do risco, de Iuma Simon. 70

Não se afirma com isso que o caminhar do poeta entre escombros da cidade arrasada se investe ali de factualidade, mas que o próprio poema consiste num gesto discursivo de referência aos acontecimentos de seu tempo – gesto este só identificável pela reiterada apóstrofe centrada no índice Stalingrado – tornando-se com isso signo de um evento e consequência dele. (FERRAZ JR., 2012, p.46). Por outro lado, nem sempre as referências aparecem de forma evidente na obra. Diante de um contexto histórico conturbado, marcado pela censura, muitas vezes é a mensagem cifrada que se destaca, como o poeta nos alerta em “A flor e a náusea”: “Em vão me tento explicar, os muros são surdos. / Sob a pele das palavras há cifras e códigos.” (RP, p.310). Em “Nosso tempo”, título bem apropriado para essa discussão, o eu-lírico afirma:

É tempo de meio silêncio de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na esquina. Tempo de cinco sentidos num só. O espião janta conosco. (RP, p. 328).

Em A Rosa do Povo a representação indicial extrapola o momento histórico, passando por casos de intertextualidade, como demonstrado na análise de “Nova Canção do Exílio”, texto no qual se aponta, verso a verso, para o poema de Gonçalves Dias. Mas, é preciso destacar que a obra também é bastante assinalada por índices que fazem referência à própria produção poética de Drummond, como acontece em “Procura da Poesia”, poema que analisaremos no próximo tópico, no qual trataremos especificamente do símbolo. Em “Consideração do Poema”, as autoreferências aparecem em versos como o que abre a sua segunda estrofe, retomando um dos poemas mais conhecidos e polêmicos de Drummond: “Uma pedra no meio do caminho”. Já na terceira estrofe do mesmo texto, o eu-lírico diz: “Estes poemas são meus. É minha terra”. A terra natal de Drummond, Itabira (MG), é uma das referências mais recorrentes de sua obra. Ainda em “Consideração do poema”, encontramos nomes próprios de poetas que teriam influenciado a trajetória de Drummond, outro tipo de indexicalidade:

Uma pedra no meio do caminho ou apenas um rastro, não importa. Estes poetas são meus. De todo o orgulho, de toda a precisão se incorporaram ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo. Que Neruda me dê sua gravata chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus Maiakovski.

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São todos meus irmãos, não são jornais nem deslizar de lancha entre camélias: é toda a minha vida que joguei. (RP, p. 302).

Essa mesma forma de indexicalidade aparece em dois outros importantes poemas da obra: “Mário de Andrade desce aos infernos” e “Canto ao homem do povo Charlie Chaplin”. No primeiro, há uma homenagem a Mário de Andrade, um dos pilares do Modernismo brasileiro, por quem Drummond nutria grande admiração. A indexicalidade do texto parte do seu título, que traz o nome próprio do poeta, mas se amplia em estrofes como a que expomos abaixo, na qual aparece o endereço onde residia Mário de Andrade. O local torna-se, metaforicamente, uma espécie de baú, onde se podem encontrar as influências, também referenciadas, da produção poética de Andrade.

Mais perto, e uma lâmpada. Mais perto, e quadros, quadros. Portinari aqui esteve, deixou sua garra. Aqui Cézanne e Picasso, os primitivos, os cantadores, a gente de pé no chão, a voz que vem do nordeste, os fetiches, as religiões, os bichos... Aqui tudo se acumulou, esta é a Rua Lopes Chaves, 546, outrora 108. Para aqui muitas vezes voou meu pensamento. Daqui vinha a palavra esperada na dúvida e no cacto. (RP, p. 510).

Não só no livro de 1945, mas em boa parte da sua obra, CDA utiliza-se de dados autobiográficos, de referências a episódios da sua vida familiar e até das próprias características físicas, como no “Poema das sete faces”, de Alguma poesia, em que aparece “o homem atrás dos óculos e do bigode”, o que corresponde à aparência do poeta à época. Sant’Anna (2008, p. 29) cita uma entrevista concedida pelo mineiro em março de 1955, ao Jornal de Letras do Rio de Janeiro, na qual ele comenta esse aspecto da sua poesia: “Minha poesia é autobiográfica (...). Assim sendo, quem se interessar pelos miúdos acontecimentos da vida do autor basta passar os olhos por esses nove volumes que, sob pequenos disfarces, dão a sua ficha civil, intelectual, sentimental e até comercial...”. De acordo com Sant’Anna (2008, p.29), a poesia de Drummond “invoca a problemática poesia e biografia”.

Ele constrói um tipo literário – o gauche – que partindo de componentes específicos de sua personalidade, atinge, no entanto, o plano universal. E, como tal, ele se converte num personagem em que se identifica com o leitor. (SANT’ANNA, 2008, p.30).

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Mesmo em torno da discussão complexa que é a relação entre vida e obra de escritores, a indexicalidade de alguns textos é inegável, já que, ainda que com uma capa de ficcionalidade, as referências existentes neles apontam para especificidades, para dados reais, como é o caso do nome e sobrenome do poeta que aparecem em poemas como “O país dos Andrades” e “Carrego Comigo”, no qual se lê no 44º verso: “Carlos! Não respondes”. Em “Últimos dias”, isso se torna ainda mais evidente, pois é o nome completo do CDA que aparece: “E a matéria se veja acabar: adeus, composição / que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade”. Lembremos que esse tipo de indexicalidade aparece desde Alguma Poesia, no já citado “Poema das sete faces”, no qual o eu-lírico abre o livro se chamando de Carlos: “Vai, Carlos! ser gauche na vida”. Com A Rosa do Povo, Drummond se utiliza da indexicalidade em sentido amplo. Se o contexto histórico, econômico e político marcam o livro, a vida e a obra do poeta também o fazem, em um processo de autoreferência que também é muito significativo. Nos próximos subitens, traremos a leitura de “Visão 1944” e de “Com o russo em Berlim”, dois poemas que compõem a citada lírica de guerra de A Rosa do povo. Nossa intenção é mostrar como o modo de representação indicial se relaciona à significação e aos efeitos estéticos nesses dois textos.

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2.4.1 VISÃO 1944

1. Meus olhos são pequenos para ver 2. a massa de silêncio concentrada 3. por sobre a onda severa, piso oceânico 4. esperando a passagem dos soldados.

5. Meus olhos são pequenos para ver 6. luzir na sombra a foice da invasão 7. e os olhos no relógio, fascinados, 8. ou as unhas brotando em dedos frios.

9. Meus olhos são pequenos para ver 10. o general com seu capote cinza 11. escolhendo no mapa uma cidade 12. que amanhã será pó e pus no arame.

13. Meus olhos são pequenos para ver 14. a bateria de rádio prevenindo 15. vultos a rastejar na praia obscura 16. aonde chegam pedaços de navios.

17. Meus olhos são pequenos para ver 18. o transporte de caixas de comida, 19. de roupas, de remédios, de bandagens 20. para um porto da Itália onde se morre.

21. Meus olhos são pequenos para ver 22. o corpo pegajento das mulheres 23. que foram lindas, beijo cancelado 24. na produção de tanques e granadas.

25. Meus olhos são pequenos para ver 26. a distância da casa na Alemanha 27. a uma ponte na Rússia, 28. onde retratos, cartas, dedos de pé boiam em sangue.

29. Meus olhos são pequenos para ver 30. uma casa sem fogo e sem janela 31. sem meninos em roda, sem talher, 32. sem cadeira, lampião, catre, assoalho.

33. Meus olhos são pequenos para ver 34. os milhares de casas invisíveis 35. na planície de neve onde se erguia 36. uma cidade, o amor e uma canção.

37. Meus olhos são pequenos para ver 38. as fábricas tiradas do lugar, 39. levadas para longe, num tapete, 74

40. funcionando com fúria e com carinho.

41. Meus olhos são pequenos para ver 42. na blusa do aviador esse botão 43. que balança no corpo, fita o espelho 44. e se desfolhará no céu de outono.

45. Meus olhos são pequenos para ver 46. o deslizar do peixe sob as minas, 47. e sua convivência silenciosa 48. com os que afundam, corpos repartidos.

49. Meus olhos são pequenos para ver 50. os coqueiros rasgados e tombados 51. entre latas, na areia, entre formigas 52. incompreensivas, feias e vorazes.

53. Meus olhos são pequenos para ver 54. a fila de judeus de roupa negra, 55. de barba negra, prontos a seguir 56. para perto do muro – e o muro é branco.

57. Meus olhos são pequenos para ver 58. essa fila de carne em qualquer parte, 59. de querosene, sal ou de esperança 60. que fugiu dos mercados deste tempo.

61. Meus olhos são pequenos para ver 62. a gente do Pará e de Quebec 63. sem notícias dos seus e perguntando 64. ao sonho, aos passarinhos, às ciganas.

65. Meus olhos são pequenos para ver 66. todos os mortos, todos os feridos, 67. e este sinal no queixo de uma velha 68. que não pôde esperar a voz dos sinos.

69. Meus olhos são pequenos para ver 70. países mutilados como troncos, 71. proibidos de viver, mas em que a vida 72. lateja subterrânea e vingadora.

73. Meus olhos são pequenos para ver 74. as mãos que se hão de erguer, os gritos roucos, 75. os rios desatados, e os poderes 76. ilimitados mais que todo exército.

77. Meus olhos são pequenos para ver 78. toda essa força aguda e martelante, 79. a rebentar do chão e das vidraças, 80. ou do ar, das ruas cheias e dos becos. 75

81. Meus olhos são pequenos para ver 82. tudo que uma hora tem, quando madura, 83. tudo que cabe em ti, na tua palma, 84. ó povo! que no mundo te dispersas.

85. Meus olhos são pequenos para ver 86. atrás da guerra, atrás de outras derrotas, 87. esta imagem calada, que se aviva, 88. que ganha em cor, em forma e profusão.

89. Meus olhos são pequenos para ver 90. tuas sonhadas ruas, teus objetos, 91. e uma ordem consentida (puro canto, 92. vai pastoreando sonos e trabalhos).

93. Meus olhos são pequenos para ver 94. esta mensagem franca pelos mares, 95. entre coisas outrora envilecidas 96. e agora a todos, todas ofertadas.

97. Meus olhos são pequenos para ver 98. o mundo que se esvai em sujo e sangue, 99. outro mundo que brota, qual nelumbo 100. - mas veem, pasmam, baixam deslumbrados.

(Drummond de Andrade, 2012, p. 483-487)

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2.4.1.1 O poeta canta a Grande Guerra

“Visão 1944”, “Carta a Stalingrado”, “Telegrama de Moscou”, “Mas Viveremos” e “Com o Russo em Berlim”, compõem o bloco das líricas de guerra de A Rosa do Povo porque todos fazem referência direta à Segunda Guerra Mundial, conflito armado que causou destruição e morte no mundo, especialmente na Europa e na Ásia, entre os anos de 1939 e 1945. Intimamente atrelados à História, esses poemas têm na representação indicial a sua grande força expressiva, apesar de, até por estarmos lidando com o texto poético, também explorarem de forma esteticamente relevante ícones e símbolos. Como vimos no Capítulo I desta pesquisa, em literatura lidamos com os denominados índices degenerados, que se confundem com a noção ampla de referência. Os índices, de forma geral, funcionam como setas que direcionam o nosso olhar para uma especificidade. As referências à Segunda Grande Guerra estão em todas as partes em “Visão 1944”, a começar pelo título do poema que o situa em um dos anos mais importantes do conflito, quando as forças nazifascistas começam a ser derrotadas. Além dessa primeira marcação temporal, encontramos no texto uma delimitação espacial, com a indicação nominal de países onde o conflito aconteceu, a exemplo da Alemanha, da Rússia e da Itália: “para um porto da Itália onde se morre” (v.20). O poema é longo: são cem versos, organizados em 25 quadras, que seguem o ritmo bem marcado dos decassílabos heroicos, o que, ao nosso entender, confere ao texto um tom épico muito adequado à representação da grandiosidade de uma guerra. O título do poema nos traz, além da data, outro dado significativo: estaremos diante da visão do eu-lírico sobre o conflito, que nos é apresentada cena a cena, como em um documentário. Apesar de explorar o substrato sonoro, com o uso de aliterações e assonâncias – como o som de /s/ e /a/ na primeira estrofe – percebe-se que o texto explora principalmente a capacidade que a palavra tem de gerar imagens visuais no campo do interpretante, o que nos lembra o conceito de Pound (2013, p. 48) de fanopeia21, ou seja, “a projeção de uma imagem visual sobre a mente”.

21 Pound (2013, p. 43) diz que grande literatura é “simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”. Para isso, dispomos de três meios principais: a fanopeia, a melopeia e a logopeia. De acordo com o crítico (2013, p. 69), com esses três recursos, respectivamente, podemos: “1. Projetar o objeto (fixo ou em movimento ) na imaginação visual. 2. Produzir correlações emocionais por intermédio do som e do ritmo da fala. 3. Produzir ambos os efeitos estimulando as associações (intelectuais ou emocionais ) que permaneceram na consciência do receptor em relação às palavras ou grupos de palavras efetivamente empregados”. 77

Como nos outros poemas do citado bloco, ao que parece, o sujeito lírico não está dentro da guerra, mas a observa de longe e nos repassa os impactos desse acontecimento sobre si mesmo, além do seu claro posicionamento do lado dos Aliados 22 e suas expectativas de que a realidade sombria possa ser transformada por meio do seu canto/ poesia. Mesmo diante de um texto que aponta para o contexto histórico, estamos lidando com uma leitura subjetiva do mundo e é daí que emana muito da riqueza estética do poema, característica que o diferencia de textos que buscam uma forma mais objetiva de retratar a realidade. O poema é marcado pelo estribilho que abre cada uma das suas 25 estrofes: “Meus olhos são pequenos para ver”, demonstrando que para o sujeito lírico o conflito e a realidade como um todo são muito maiores do que o seu poder de observação e de representação. O poema, como um signo que representa a guerra, nunca será capaz de mostrar o conflito na sua totalidade. Mesmo assim, por meio destacadamente da representação indicial, sob o olhar do eu-lírico, somos levados a conhecer alguns aspectos da Segunda Grande Guerra. Simon (1976, p.77) destaca que Drummond, especialmente nos poemas que chama de participantes, usa reiteradamente os “olhos” como uma forma de registro dos fatos do presente. Ela cita alguns versos da obra do itabirano, para ilustrar esse pensamento: “Olhos acesos” (“O Medo”); “meu olho que ri e despreza” (“Nosso Tempo”); “Os olhos sabem e calam-se (“América”); “Meus olhos são pequenos para ver” (reiterado no início de todas as 25 estrofes do poema “Visão 1944”); “Só os olhos/no retrato, no mapa. Só os olhos/ com o russo em Berlim” (“Com o russo em Berlim”); “Estou cego e vejo. Arranco os olhos e vejo./ Furo as paredes e vejo. Através do mar sanguíneo vejo” (“Mário de Andrade Desce aos Infernos”). (...).

O conhecimento dos fatos históricos torna-se fundamental para a compreensão do poema que os referencia, mas essa citação não acontece de maneira óbvia. O poema é construído em torno de índices, mas estes muitas vezes aparecem revestidos por metonímias, metáforas e símbolos. Cada estrofe parece nos trazer um aspecto da guerra e pode ser lida de forma independente, apesar de, em conjunto, formar um todo significativo, uma espécie de visão panorâmica do conflito.

22 Apesar de a Guerra ter envolvido direta ou indiretamente quase todos os países do mundo, algumas nações lideraram o conflito. De um lado, tínhamos as potências do Eixo, composto por Alemanha, Itália e Japão. Do outro, encontrávamos os Aliados, formados principalmente pela União Soviética, Estados Unidos e Inglaterra, além de França e China. Em A Rosa do Povo, Drummond assume uma postura claramente de esquerda, contra os valores capitalistas e contra o nazismo proliferado por Hitler, na Alemanha, e o fascismo difundido por Mussolini, na Itália. 78

Cruzando o texto com informações históricas, podemos deduzir, por exemplo, que na primeira estrofe estamos diante da chegada dos Aliados, pelo mar (“por sobre a onde severa, piso oceânico” v. 3), à Normandia, na França, que estava sob o domínio de Hitler. Já na segunda estrofe, o posicionamento do eu-lírico contra o nazifascismo torna-se claro: “Meus olhos são pequenos para ver / luzir na sombra a foice da invasão” (v.5 e 6). A foice é um dos símbolos do comunismo e está na bandeira soviética, junto com as imagens de um martelo e de uma estrela (aquela que ilumina, o que torna a escolha do verbo luzir ainda mais significativa). Assim, a chegada dos soviéticos ilumina, derrota a escuridão (a morte, a destruição) que assolava os territórios dominados pelo Eixo. A morte e a destruição, como consequências da guerra, são as imagens mais recorrentes do poema: “unhas brotando em dedos frios” (v.8); “onde retratos, cartas, dedos de pé boiam em sangue” (v.28); “com os que afundam corpos repartidos” (v.48). O conflito levou a beleza das mulheres e não deixou espaço para o amor (“que foram lindas; beijo cancelado” v. 23). Com a guerra, cidades deixaram de existir, casas e famílias foram destruídas:

Meus olhos são pequenos para ver Uma casa sem fogo e sem janela sem meninos em roda, sem talher sem cadeiras, lampião, catre, assoalho

Meus olhos são pequenos para ver os milhares de casas invisíveis a planície de neve onde se erguia uma cidade, o amor e uma canção (RP, p.484).

Além de referências generalizadas à morte e à destruição causadas pelo conflito (que na verdade poderiam apontar para qualquer batalha), encontramos no poema índices claros de que ele representa, especificamente, a Segunda Guerra Mundial. Na terceira estrofe, por exemplo, temos “o general de capote cinza / escolhendo no mapa uma cidade / que amanhã será pó e pus no arame”. A escolha dos adjuntos adnominais “o” e “de capote” mostra-nos que não se trata de qualquer general, mas daquele que usa o capote cinza (cor da farda nazifascista), ou seja, Hitler ou Mussolini. Na 14ª estrofe, vemos os judeus sendo executados (holocausto) no chamado paredão de fuzilamento. Nesses versos, a antítese entre branco e preto é bem demarcada. O negro, que é cor usada tradicionalmente pelos judeus ortodoxos é enfatizado, como a significar também o luto. O branco do muro é irônico, já que o local representa a morte. 79

Meus olhos são pequenos para ver a fila de judeus de roupa negra, de barba negra, prontos para seguir para perto do muro – e o muro é branco. (RP, p. 485).

Também encontramos no poema referências à participação do Brasil e de outros países, como o Canadá, na Guerra. As duas nações enviaram jovens para o conflito e, distantes, os parentes aguardavam notícias que quase nunca chegavam: “a gente do Pará e de Quebec / sem notícias dos seus e perguntando / ao sonho, aos passarinhos, às ciganas” (v.58-60). Outra possível referência à participação do Brasil na Guerra, por meio da Força Expedicionária Brasileira (FEB), aparece na quinta estrofe do poema já que os soldados brasileiros atuaram principalmente em ajuda humanitária. Os primeiros pracinhas brasileiros desembarcaram na Itália em 1944, onde travaram a chamada Batalha de Montecastelo. A partir da 18º estrofe, o eu-lírico passa a nos mostrar outra dimensão da sua visão da Guerra, conferindo ao substantivo um novo significado: o de profecia. A descrição do cenário de morte e de conformismo vai sendo substituída nos versos seguintes pela esperança, pela vida, que “lateja subterrânea e vingadora” (v.72). Em meio às derrotas, “esta imagem calada que se aviva/ que ganha em cor, em forma, em profusão”. (v.87-88). Essa ideia de resistência aparece constantemente em A Rosa do Povo e é reiterada na maior parte dos poemas que tratam da Guerra. Em “Carta a Stalingrado”, por exemplo, o eu-lírico diz: “Sabes que resistes / que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes”. (v.17 e 18). Nesse processo de reconstrução, o eu-lírico direciona o discurso para o povo, como a convocá-lo para a luta. É preciso que as pessoas deem as mãos, soltem o grito rouco.

Meus olhos são pequenos para ver tudo que uma hora tem, quando madura tudo que cabe em ti, na tua palma, ó povo! Que no mundo te dispersas. (RP, p. 487)

Em um cenário tão conflituoso, em que a própria vida está sob ameaça, a função do poeta é tratar da “vida presente”, pois, como se diz em “Carta a Stalingrado”, é lá que está a poesia: “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais” (v. 9). Nesse contexto, um dos índices mais fortes do poema aparece na sua penúltima estrofe, na qual o poema aponta para si mesmo, em uma autoreferência, o que fica claro pela

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escolha do pronome demonstrativo “esta”. O poema em análise é a mensagem ofertada aos homens para que eles estabeleçam uma nova ordem, construam um novo mundo:

Meus olhos são pequenos para ver Esta mensagem franca pelos mares, Entre coisas outrora envilecidas E agora a todos, todas ofertadas. (RP, p. 487)

Essa mesma ideia de poesia como uma mensagem que vai unir os povos em uma causa comum aparece de forma muito semelhante em “Consideração do poema”, no qual o canto/mensagem também é levado pelo mar. Em meio à escuridão do “mar negro”, existe uma esperança, pois há “dois ou três faróis”. O mergulho do poeta na realidade, tendo que necessariamente lidar com a linguagem sem a qual não se faz poesia é, segundo o eu-lírico, uma viagem mortal.

Poeta do finito e da matéria, cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas, boca tão seca, mas ardor tão casto. Dar tudo pela presença dos longínquos, sentir que há ecos, poucos, mas cristal, não rocha apenas, peixe circulando sob o navio que leva esta mensagem, as aves de bico longo conferindo sua derrota, e dois ou três faróis, últimos! esperança do mar negro. Essa viagem é mortal, e começá-la. Saber que há tudo. E mover-se em meio a milhões de formas raras, secretas, duras. Eis aí meu canto (RP, p. 303-304).

Assim como em outros textos de Drummond, em “Visão 1944” a esperança aparece simbolizada por uma flor. Em meio à morte, nasce um nelumbo, um gênero de planta aquática do qual uma das espécies é a flor de lótus, símbolo de purificação para os indianos por absorver toda a sujeira do ambiente (a mesma ideia de renovação e de esperança encontrada em “A flor e a náusea”). Os olhos do poeta/profeta deslumbram- se com a visão do novo mundo:

Meus olhos são pequenos para ver O mundo que se esvai em sujo e sangue outro mundo que brota, qual nelumbo mas veem, pasmam, baixam deslumbrados (RP, p.487 ).

Apesar de usar outros recursos expressivos, o que pretendemos demostrar é que a significação do poema em análise está intimamente atrelada a um fato histórico para o qual o signo aponta de várias maneiras. Esse fato histórico, contudo, é visto sob uma perspectiva lírica muito bem definida. O que se coloca sempre em primeiro plano são os impactos da guerra sobre um sujeito claramente posicionado contra o nazifascismo.

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2.4.2 COM O RUSSO EM BERLIM 1. Esperei (tanta espera), mas agora, 2. nem cansaço nem dor. Estou tranquilo, 3. um dia chegarei, ponta de lança, 4. com o russo em Berlim.

5. O tempo que esperei não foi em vão. 6. Na rua, no telhado. Espera em casa. 7. No curral; na oficina: um dia entrar 8. com o russo em Berlim.

9. Minha boca fechada se crispava. 10. Ai tempo de ódio e mãos descompassadas. 11. Como lutar, sem armas, penetrando 12. com o russo em Berlim?

13. Só palavras a dar, só pensamentos 14. ou nem isso: calados num café, 15. graves, lendo o jornal. Oh, tão melhor 16. com o russo em Berlim.

17. Pois também a palavra era proibida. 18. As bocas não diziam. Só os olhos 19. no retrato, no mapa. Só os olhos 20. com o russo em Berlim.

21. Eu esperei com esperança fria, 22. calei meu sentimento e ele ressurge 23. pisado de cavalos e de rádios 24. com o russo em Berlim.

25. Eu esperei na China e em todo canto, 26. em Paris, em Tobruc e nas Ardenas 27. para chegar, de um ponto em Stalingrado, 28. com o russo em Berlim.

29. Cidades que perdi, horas queimando 30. na pele e na visão: meus homens mortos, 31. colheita devastada, que ressurge 32. com o russo em Berlim.

33. O campo, o campo, sobretudo o campo 34. espalhado no mundo: prisioneiros 82

35. entre cordas e moscas; desfazendo-se 36. com o russo em Berlim.

37. Nas camadas marítimas, os peixes 38. me devorando; e a carga se perdendo, 39. a carga mais preciosa: para entrar 40. com o russo em Berlim.

41. Essa batalha no ar, que me traspassa 42. (mas estou no cinema, e tão pequeno 43. e volto triste à casa; por que não 44. com o russo em Berlim?).

45. Muitos de mim saíram pelo mar. 46. Em mim o que é melhor está lutando. 47. Possa também chegar, recompensado, 48. com o russo em Berlim.

49. Mas que não pare aí. Não chega o termo. 50. Um vento varre o mundo, varre a vida. 51. Este vento que passa, irretratável, 52. com o russo em Berlim.

53. Olha a esperança à frente dos exércitos, 54. olha a certeza. Nunca assim tão forte. 55. Nós que tanto esperamos, nós a temos 56. com o russo em Berlim.

57. Uma cidade existe poderosa 58. a conquistar. E não cairá tão cedo. 59. Colar de chamas forma-se a enlaçá-la, 60. com o russo em Berlim.

61. Uma cidade atroz, ventre metálico 62. pernas de escravos, boca de negócio, 63. ajuntamento estúpido, já treme 64. com o russo em Berlim.

65. Esta cidade oculta em mil cidades, 66. trabalhadores do mundo, reuni-vos 67. para esmagá-la, vós que penetrais 68. com o russo em Berlim. (DRUMMOND DE ANDRADE, 2012, p. 488-491)

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2.4.2.1 A poesia que convoca

A invasão das tropas russas a Berlim no final de 1945 culminou com o suicídio de Hitler e com a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, oficialmente encerrada naquele ano. Para os que se opunham aos ideais nazifascistas, apesar de toda a destruição que o mundo continuava vivenciando, começava um tempo de renovação de esperanças calcadas no sonho comunista liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Em “Com o russo em Berlim” destaca-se a representação indicial porque sua significação está relacionada principalmente ao acontecimento citado no parágrafo anterior: a presença histórica das tropas russas na capital Alemã, o que fica claro não só pelo título, mas pela repetição anafórica do verso “com o russo em Berlim” em todas as suas 17 estrofes, inclusive com o uso de um recurso gráfico (o adiantamento do verso em relação aos demais), que objetiva dar maior ênfase ao estribilho. O poema em análise possui menos referências claras ao conflito, se comparado ao já citado “Visão 1944”, que era cercado de índices, como demonstramos na análise anterior. Além da citação direta das tropas russas e da capital alemã, também são referenciados outros lugares que sofreram com o conflito, como a China, Tobruc, na Líbia, e Ardenas, na Bélgica, onde aconteceram batalhas. Como em outros poemas que representam a guerra, encontramos referências à morte, a prisioneiros e a campos de batalha: “O campo, o campo, sobretudo o campo/espalhado no mundo: prisioneiros/entre cordas e moscas; desfazendo-se/com o russo em Berlim”. Ao longo do texto, fica clara a existência de duas realidades vivenciadas por um eu-lírico que se encontra em um mundo de censura e observa a guerra de longe, com um forte desejo de participação. O sujeito, em muitos momentos, representa todos os homens que esperam pelo fim da guerra em espaços realmente atingidos pelo conflito: “Eu esperei na China e em todo canto”. (v.25). O posicionamento do eu-lírico a favor dos Aliados e sua necessidade de participação ficam claros pelo uso, no título e nos versos que se repetem no final de cada estrofe, da preposição “com”, que estabelece uma relação de companhia e cooperação. Ao longo do poema, destaca-se o desejo do eu-lírico, que acompanha o conflito mundial de longe, de contribuir, de colaborar com as tropas russas para que

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se alcance o grande objetivo de destruir Berlim, a cidade que simboliza o poder Nazista:

Uma cidade atroz, ventre metálico Pernas de escravos, boca de negócio, Ajuntamento estúpido, já treme Com o russo em Berlim. (RP, p. 491)

Se Berlim é a representação do poder nazista e sua destruição é, para o eu- lírico, o fim de uma época de injustiça e violência, Stalingrado é a representação da força dos Aliados. Stalingrado é o ponto de partida das tropas que destruirão Berlim: “para chegar, de um ponto em Stalingrado / com o russo em Berlim”. (v.23 e 24). Em “Carta a Stalingrado”, poema de A Rosa do Povo já citado em outros momentos desta pesquisa, o eu-lírico transforma a cidade russa de mesmo nome em símbolo de resistência e vislumbra a sua reconstrução. Assim como em “Com o russo em Berlim”, em “Carta a Stalingrado” o eu- lírico acompanha o conflito de longe e sua participação/comunicação acontece por meio da poesia/carta: “Stalingrado, quantas esperanças! / Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama”. (RP, p. 474). Em “Telegrama de Moscou”, encontramos uma espécie de resposta à carta enviada na qual se reafirma a reconstrução da cidade: “ reconstruiremos a cidade”. (RP, p. 476). Mesmo com toda a destruição causada pela guerra, o tom de “Com o russo em Berlim” é de esperança e renovação, o que se relaciona no texto, como já dito, à destruição da capital Alemã que começa a se concretizar com o desembarque das tropas russas em Berlim. Na primeira estrofe, já se observa o uso do verbo esperar no passado, “esperei”, repetido nos versos 1, 5, 21 e 25, o que indica o fim de uma longa espera, o começo de um novo tempo. O mesmo acontece com outros verbos ao longo do texto, como “crispava” (v.9), “era” (v.17), “diziam” (v.18), “calei” (v.22), “perdi” (v.29). O verbo ressurgir aparece em momentos-chave do poema:

Eu esperei com esperança fria, Calei meu sentimento e ele ressurge Pisado de cavalos e de rádios com o russo em Berlim

(...)

Cidades que perdi, horas queimando Na pele e na visão: meus homens mortos, Colheita devastada, que ressurge com o russo em Belim (RP, p. 489).

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A chegada das tropas russas a Berlim, como representação de um novo tempo, se torna ainda mais evidente na 14º estrofe:

Olha a esperança à frente dos exércitos, Olha a certeza. Nunca assim tão forte. Nós que tantos esperamos, nós a temos com o russo em Berlim. (RP, p. 491).

Assim como em outros textos de A Rosa do Povo, no poema em análise destaca-se a repressão e a censura vivenciadas no Brasil durante os anos da Ditadura Vargas. A passividade da população diante do regime incomoda o sujeito lírico. O tempo é de “ódio e de mãos descompassadas” (v. 10). As mãos, como símbolo recorrente23 na poesia de Drummond, significam a união ou desunião dos homens. Para mudar a realidade, é preciso que se deem as mãos, como o eu-lírico de “Mãos dadas” (Sentimento do mundo) defende: “O presente é tão grande, não nos afastemos/Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas” (Drummond de Andrade, 2012, p. 240). Acompanhando o conflito à distância, o sujeito busca não só a sua participação, mas a de todos. A sua luta, contudo, é sem armas: “Como lutar, sem armas, penetrando/com o russo em Berlim24” (v.7 e 8). A sua participação é por meio das palavras: “só palavras a dar, só pensamentos” (v.13), em um tempo em que a “palavra era proibida” (v.17), “as bocas não diziam” (v.18). Mas, se as bocas não podiam falar, os olhos eram a fonte do sofrimento, pois continuavam a ver as atrocidades que assolavam no mundo: “As bocas não diziam. Só os olhos/ no retrato, no mapa. Só os olhos” (v.18 e 19). Angustiado, o sujeito não quer só olhar: é preciso que se faça algo mais, é preciso participar.

Essa batalha no ar, que me traspassa (mas estou no cinema, e tão pequeno E volto triste à casa, por que não com o russo em Berlim. (RP, 2012, p. 491)

Como em “Visão 1944” e outros poemas de Drummond, a poesia torna-se um instrumento de promoção de união e convocação dos homens para a luta. A

23 Em “Mas viveremos”, também de A Rosa do Povo, encontramos a ausência das mãos dadas como representação da desunião: “Já não há mãos dadas no mundo/ Elas agora viajarão sozinhas/ Sem o fogo dos velhos contatos,/ que ardia por dentro e dava coragem”. (Drummond de Andrade, 2012, P. 478). 24 O verso lembra muito “A Flor e a Náusea”, poema também de A Rosa do Povo: “Posso, sem armas, revoltar-me?” (Drummond de Andrade, 2012, p. 310). 86

poesia participante é a maneira do poeta lutar: “Muitos de mim saíram pelo mar. Em mim o que é melhor está lutando” (v. 45 e 46). Como já dito, a invasão dos russos a Berlim trouxe a esperança, está varrendo a sujeira do mundo (v.50), mas a vitória final só será alcançada por meio da união dos homens convocados pelo poeta por meio de um vocativo: “trabalhadores do mundo”.

Essa cidade oculta em mil cidades Trabalhadores do mundo, reuni-vos Para esmagá-la, vós que penetrais Com o russo em Berlim. (RP, p. 491).

“Com o russo em Berlim” é um poema de métrica irregular, e de versos sem rima, mas usa recursos sonoros como a aliteração dos /r/ e a assonância do /a/. O seu tom é bastante prosaico e, nesse caso, ainda mais do que em outros poemas do bloco das líricas de guerra, concordamos com a visão de Simon (1976) de que há a abertura do discurso por meio do uso de uma linguagem voltada principalmente para a comunicação, ou seja, o texto é escrito para que seja entendido sem dificuldade pelo maior número de pessoas possível. Desta forma, comparado com “Visão 1944” ou “Carta a Stalingrado”, o poema possui uma mensagem ainda mais clara, com pouca dificuldade de leitura, o que acreditamos se relacionar ao seu objetivo de se tornar um poema-convocação dos homens para a luta contra o regime nazifascista. Assim, ao longo desta leitura, pretendemos demonstrar que a grande força estética do poema está no fato dele apontar diretamente para a realidade, como fazem os índices degenerados. Não só o poema em análise, mas todos os textos do bloco das líricas de guerra de A Rosa do Povo trazem informações específicas sobre a Segunda Grande Guerra, fazendo com que os espaços literários e históricos se comuniquem. É a vida real que atinge o poeta e se transforma em poesia.

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2.5 A REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA

A linguagem simbólica é a base da literatura. Esta, além de ser fundamentalmente uma arte de palavras, constituiu-se, ao longo do tempo, por sua maneira peculiar de organização da mensagem, que a diferencia de outras formas de comunicação verbal. Ademais, em cada época, a literatura adquire um modo próprio de significar o mundo, escolhendo o que representar e como fazer isso. Mesmo assim, nem sempre é o símbolo o signo mais esteticamente relevante em um texto literário. O próprio fazer literário muitas vezes é o objeto da representação, mas quase sempre isso acontece dentro de um movimento ininterrupto de autorrenovação: a literatura mantém-se por meio de um espírito contestador de modelos criados até por si mesma, com o objetivo de que o nosso olhar sobre a linguagem ( e a própria linguagem) sempre seja renovado, em uma espécie de transformação de símbolos em ícones. Nesse contexto, a poesia, como uma arte em que as potencialidades da linguagem são exploradas e experimentadas, muitas vezes usa o símbolo como ponto de partida para subvertê-lo, para questioná-lo ou mesmo para redescobri-lo. A representação simbólica em A Rosa do Povo aparece com destaque nos metapoemas, aqueles que discutem o que é a poesia, suas funções e seus processos criativos. É o que percebemos em “Procura da Poesia”, poema que será analisado no próximo subitem (2.5.1) e que reflete sobre toda uma tradição literária que ditou regras que definiam o que seria essa arte. Reiteramos que a discussão em torno da função da poesia em um contexto social marcado por conflitos, em âmbito nacional e mundial, é uma das forças motrizes da obra. Em “O mito”, que será analisado no subitem 2.5.2, identificamos uma relação direta entre a representação simbólica e a expressividade do poema. Entendemos que os principais efeitos estéticos do texto estão relacionados ao questionamento do símbolo literário da mulher idealizada, difundido por poetas como Francesco Petrarca, no século XIII, e Luís de Camões, no século XVI. Desta forma, a semiose do texto de Drummond só acontece de forma completa se nós conhecermos o modelo ideal da mulher e do amor criado pela literatura. Assim, é esse símbolo que é questionado, em um processo de representação semelhante ao que encontramos em “Nova Canção do Exílio”, que lidava com o conhecimento prévio, construído social e literariamente, sobre o que era o romantismo ufanista de Gonçalves Dias.

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Além do trabalho com símbolos do universo literário, na obra encontramos poemas que partem de hábitos e tradições culturais para atribuir-lhes novos significados, como “Interpretação de dezembro” e “Anoitecer”. A criação de símbolos tem uma relação muito próxima com a cultura, já que esta é uma construção social de leis, valores morais, hábitos que muitas vezes são representados artisticamente de forma também simbólica. É o que acontece no primeiro texto, no qual as tradições festivas de final de ano são reconfiguradas pelo olhar de um menino “recolhendo o mito” (v.86). No segundo, para atribuir um significado metafórico ao anoitecer, Drummond nos lembra dos significados que socialmente (e em alguns momentos também literariamente) atribuímos a esse momento de passagem do dia para a noite, em um jogo de oposições entre um passado, no qual o anoitecer significava a hora da paz e do descanso, e um presente, em que a hora torna-se sinônimo de medo. Em “Anoitecer”, assim como em outros poemas do itabirano, há um saudosismo que idealiza um passado que é o oposto de um presente moderno, marcado pelo processo de industrialização e pela massificação das pessoas. Candido (2004) já havia apontado a oposição entre o passado rural e o presente da cidade grande moderna como uma das “inquietudes na poesia de Drummond”. Lembrando-se da sua infância e da vida familiar vivida em uma pequena cidade, o eu-lírico drummondiano quase sempre tem uma visão negativa da vida na metrópole. Os homens que, como os pássaros, tinham liberdade e mantinham contato com a natureza tornaram-se apenas “multidões compactas” (v.10). A metáfora do pássaro que volta ao lar não pode mais representar o homem que vive em uma cidade grande, que o tornou apenas um na multidão de trabalhadores.

É a hora em que o pássaro volta, mas de há muito não há pássaros; só multidões compactas escorrendo exaustas como espesso óleo que impregna o lajedo; desta hora tenho medo. (RP, p. 318).

Para os que viveram em uma pequena cidade, a chegada da noite representa um momento de paz e descanso, no qual se ouve apenas o sino de uma igrejinha tocando ao longe, e é a esse tipo de imagem coletiva utópica, a esse símbolo, que o eu-lírico contrapõe a realidade da metrópole, marcada pelo barulho das buzinas dos carros, por apitos trágicos, “uivando escuros segredos”. (v.6)

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É a hora em que o sino toca, mas aqui não há sinos; há somente buzinas, sirenes roucas, apitos aflitos, pungentes, trágicos, uivando escuro segredo; desta hora tenho medo. (RP, p. 318).

No poema, o anoitecer é muito mais do que o momento em que o dia vai embora e ganha um significado metafórico ao ser colocado como o fim de uma época de e a chegada de tempos obscuros, medonhos, de desrespeito ao homem, o que também temos que relacionar ao momento histórico de produção de A Rosa do Povo, no qual o poeta empreende uma batalha contra o capitalismo, a Ditadura Vargas no Brasil e o nazifascismo que imperava na Europa. Esse processo de passagem, de transformação em andamento, é bem marcado pela escolha do verbo anoitecer, em detrimento do substantivo noite. Ao se voltar para o passado, o sujeito retrata um momento específico da chegada da noite e todos os hábitos culturais que o cercam: é o momento dos homens se recolherem em suas casas, do aconchego familiar, do silêncio, do descanso, “a hora de delicadeza” (v.22), momento predileto dos apaixonados, por exemplo. Em seu presente moderno, contudo, o anoitecer torna-se metáfora do fim dessa vida e do início de uma era de medo, o que é intensificado pela repetição anafórica do verso “desta hora tenho medo”, sempre ao final de cada uma das quatro estrofes que compõem o poema. Assim, com as mudanças sociais em andamento, o anoitecer, como símbolo do momento em que deveríamos deixar o trabalho e descansar, transforma-se apenas em sinônimo de medo. A vida na cidade grande, na qual o homem se vê atormentado pelo barulho, escorrendo óleo ao invés de suor, é na verdade uma noite eterna dominada por corvos, pássaros de mau agouro. Nesse cenário, só se consegue o descanso com a morte.

É a hora do descanso, mas o descanso vem tarde, o corpo não pede sono, depois de tanto rodar; pede paz – morte – mergulho no poço mais ermo e quedo; desta hora tenho medo.

Hora de delicadeza, gasalho, sombra, silêncio. Haverá disso no mundo? É antes a hora dos corvos, bicando em mim, meu passado,

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meu futuro, meu degredo; desta hora, sim, tenho medo. (RP, p. 318-319).

As festas de final de ano, épocas de realização de rituais ligados principalmente à tradição Cristã, ganham um novo significado ao serem representadas sob o olhar infantil do eu-lírico, em “Interpretação de dezembro”. No poema, de cunho nitidamente memorialista, imagens dos símbolos natalinos misturam-se às lembranças de um menino que enxerga as festividades de uma maneira muito particular. Para ele, o final do ano é um signo complexo relacionado a tradições, à família e a sua terra natal. Organizado como um ícone da memória, o poema tem 10 estrofes formadas por imagens justapostas que aparentemente não mantém nenhuma relação de continuidade. Essa suposta desconexão deixa de existir quando percebemos que todas as lembranças do menino envolvem as festas de dezembro, como o próprio título do poema já denuncia. Assim, o texto como um todo só faz sentido se acionarmos os nossos conhecimentos culturais, ligados principalmente às tradições natalinas, e percebermos que o lirismo do poema está na apresentação desses costumes cristãos na visão de uma criança, para quem os hábitos ganham outros significados. O rosto judaico – que remete à festa da tradição que comemora o nascimento de Cristo – mistura-se ao cheiro que vinha da cozinha – da ceia natalina sendo preparada –, à imagem das pessoas comendo e tomando vinho (“A mancha de vinho / na toalha bêbada”- v.55 e 56), ao “cântico da missa” (v.37), e à espera ansiosa pelo presente pedido a Papai Noel em uma carta enviada pelo correio.

É a carta escrita com letras difíceis, posta num correio sem selo e censura. A janela aberta onde se debruçam olhos caminhantes, olhos que te pedem e não sabes dar. (RP, p. 438)

Mas dezembro, para menino, é muito mais do que esses símbolos e rituais. Final de ano lembra as brincadeiras e o barulho do trem de ferro que, configurado como apenas uma lembrança, torna-se leve ao trazer a infância do sujeito de volta: “tão leve: não me esmaga, / antes me recorda”. Lembra também a “vida besta”, já defendida por Drummond em “Cidadezinha qualquer”, de Alguma Poesia. Na casa familiar, para o garoto ansioso, o dia parecia não se passar nunca:

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O velho dormindo na cadeira imprópria. O jornal rasgado. O cão farejando. A barata andando. O vento soprando. E o relógio inerte. (RP, p. 438)

Naqueles tempos, o olhar do menino tornava tudo ao seu redor fascinante, não só a esperança de receber um presente do Papai Noel e todas as lendas e crenças que o Natal traz. O mundo em si tem seu encantamento, pois está sendo visto com um eterno olhar de descoberta de uma criança. Às imagens natalinas, funde-se a observação atenta da natureza, que desperta a curiosidade e a imaginação: “o silêncio interessado / no país das formigas. / Sono de lagartos / que não ouvem o sino. Conversa de peixes / sobre coisas líquidas”. (v 62-67). Ao encantamento natural da criança, soma-se o fato de tudo estar sendo revivido por meio da memória, que por si só já reveste o passado de uma capa mítica. Para o menino que ainda existe no adulto que recorda a infância, dezembro torna-se um mês que extrapola qualquer tradição familiar e religiosa, sendo estas apenas uma parte de todo o complexo e encantado universo representativo construído na mente dele.

Algo irredutível ao sopro das lendas mas incorporado ao coração do mito. É o menino em nós ou fora de nós recolhendo o mito. (RP, p. 441)

Com esse pequeno percurso ilustrativo, pretendemos ratificar que em A Rosa do Povo os efeitos estéticos de alguns poemas são consequências, principalmente, da representação simbólica que aciona nossos conhecimentos socioculturais e literários para apresentar um olhar diferenciado sobre eles, tirando-nos do estado de automatização que o hábito nos causa. Nos próximos subitens, realizaremos uma leitura mais expansiva de dois outros textos da obra, com o objetivo de aclarar como acontece esse processo de representação e suas implicações na expressividade dos poemas.

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2.5.1 PROCURA DA POESIA

1. Não faças versos sobre acontecimentos. 2. Não há criação nem morte perante a poesia. 3. Diante dela, a vida é um sol estático, 4. não aquece nem ilumina. 5. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

6. Não faças poesia com o corpo, 7. esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. 8. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro 9. são indiferentes. 10. Nem me reveles teus sentimentos, 11. que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem. 12. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

13. Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. 14. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. 15. Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

16. O canto não é a natureza 17. nem os homens em sociedade. 18. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. 19. A poesia (não tires poesia das coisas) 20. elide sujeito e objeto.

21. Não dramatizes, não invoques, 22. não indagues. Não percas tempo em mentir. 23. Não te aborreças. 24. Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, 25. vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família 26. desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

27. Não recomponhas 28. tua sepultada e merencória infância. 29. Não osciles entre o espelho e a 30. memória em dissipação. 31. Que se dissipou, não era poesia. 32. Que se partiu, cristal não era.

33. Penetra surdamente no reino das palavras. 34. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. 35. Estão paralisados, mas não há desespero, 36. há calma e frescura na superfície intata.

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37. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. 38. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. 39. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. 40. Espera que cada um se realize e consume 41. com seu poder de palavra 42. e seu poder de silêncio. 43. Não forces o poema a desprender-se do limbo. 44. Não colhas no chão o poema que se perdeu. 45. Não adules o poema. Aceita-o 46. como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada 47. no espaço.

48. Chega mais perto e contempla as palavras. 49. Cada uma 50. tem mil faces secretas sob a face neutra 51. e te pergunta, sem interesse pela resposta, 52. pobre ou terrível, que lhe deres: 53. Trouxeste a chave?

54. Repara: 55. ermas de melodia e conceito 56. elas se refugiaram na noite, as palavras. 57. Ainda úmidas e impregnadas de sono, 58. rolam num rio difícil e se transformam em desprezo. (DRUMMOND DE ANDRADE, 2012, p. 306 - 309)

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2.5.1.1 “Isso ainda não é poesia”

A reflexão acerca da natureza e da função da linguagem poética é o tema de “Procura da Poesia” no qual encontramos um Drummond que, em busca do que considera a essência do fazer poético, ironicamente nega o que se produziu e se conceituou como tal anteriormente. No poema, os efeitos estéticos estão ancorados, principalmente, no modo de representação simbólico, já que nele se trabalha com as ideias construídas ao longo do tempo sobre o que seja poesia, o que um poeta pode ou não fazer, em um processo de desconstrução de símbolos e de criação de ícones, conforme explicaremos. Além disso, em dados momentos, Drummond faz referência à própria obra, em uma representação indicial que o coloca em meio à tradição que ele questiona. “Procura da Poesia” está estruturado, segundo Simon (1978), em três partes: a primeira seria constituída por negações que definem o que não é poesia, na qual a arte é negada como um meio de se falar sobre alguma coisa ou de se expressar sentimentos e sensações; a segunda seria construída a partir de instruções para que se chegue à poesia e na qual se destaca a primazia da linguagem que deve ser conhecida e respeitada pelo poeta; e a terceira seria uma espécie de conclusão, que interliga as duas partes anteriores e denuncia o estado de dissipação em que se encontram as palavras. Para se penetrar o estranho “reino das palavras”, e se descobrir o que é a poesia, é preciso que, inicialmente, desconstrua-se o símbolo, ou seja, tudo aquilo que se pensava ser poesia, e até o que o próprio poeta fez, “ainda não é poesia”. Essa afirmação, de maneira geral, é centrada na ideia de que a poesia não é algo sobre alguma coisa, o que quebra expectativas, especialmente porque “Procura da Poesia” segue “Consideração do poema”, outro texto no qual a representação simbólica se destaca. Nele, o que vemos é o rompimento da ideia construída ao longo de séculos de que a poesia deveria tratar de temas “elevados”. Assim, o símbolo também é questionado, contudo, com um viés diferenciado em relação ao poema aqui em análise. Se “Procura da Poesia” diz “não faça versos sobre acontecimentos” e “a vida é um sol estático”, “Consideração do poema” defende a liberdade do poeta para escolher sobre o que escrever, ou seja, qualquer coisa pode ser matéria de poesia, especialmente a vida e o povo:

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Estes poemas são meus. É minha terra e é ainda mais do que ela. É qualquer homem ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna em qualquer estalagem, se ainda as há. (RP, p. 302).

Candido (2004, p. 87) coloca a meditação constante sobre a poesia como uma das “inquietudes da poesia de Drummond” e, apresentando uma espécie de percurso estético do fazer poético drummondiano, afirma que “a sua poesia é em boa parte uma indagação sobre o problema da poesia”. De acordo com o crítico, no livro inicial do poeta, Alguma Poesia (1930), “domina a ideia de que a poesia vem de fora, é dada sobretudo pela natureza do objeto poético, segundo a reconsideração do mundo graças à qual os modernistas romperam com as convenções acadêmicas”. Nessa fase, “Drummond começa por integrar-se nesta orientação, fazendo o valor da poesia confundir-se com os sentimentos poéticos e reduzindo em consequência o poema a um simples condutor” (op.cit). Ele ilustra esse pensamento citando “Poesia”, um dos poemas do livro de estreia do itabirano:

Gastei uma hora pensando um verso Que a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentro inquieto, vivo. Ele está cá dentro e não quer sair Mas a poesia deste momento inunda a minha vida inteira (AP, p. 104).

Dando sequência a sua leitura, o crítico literário afirma que é a partir do seu segundo livro, Brejo das Almas (1934), que o poeta começa a descobrir “que os temas não importam em si mesmos, destacados da palavra que os traz ao mundo do poema. (...) O tema da inquietação transporta-se para o domínio estético” (CANDIDO, 2004, p. 88). Assim, se adota uma “posição que poderíamos chamar mallarmeana porque vê no ato poético uma luta com a palavra, para a qual se deslocam a sua dúvida e sua inquietação de artista” (CANDIDO, 2004, p. 89). É em “Procura da Poesia” que essa concepção poética de Drummond aparece de maneira mais nítida. “O drama desta pesquisa se desenrola de maneira mais completa em Procura da Poesia, de A Rosa do povo, cujos cinquenta e oito versos debatem o problema dos assuntos, para concluírem que em si eles nada são” (CANDIDO, 2004, p. 90). No poema, o questionamento sobre a poesia que até então se fez é o caminho para que se chegue ao que o eu-lírico considera ser poesia: a arte centrada na palavra.

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A abertura do poema com recomendações que na prática não são seguidas nem no próprio livro que as contém anuncia a presença da ironia que percorrerá todo o texto e que, segundo Merquior (2012, p.118-119), é a sua chave de leitura. Para o crítico, a ideia é apenas destacar a importância de se dominar a linguagem, independentemente do assunto tratado nos versos.

As oito interdições que precedem a instigação a “penetrar no reino das palavras” (v1 a 32) não têm outro sentido além do reconhecimento do primado da linguagem. Toda veleidade concernente à expressão “direta” do pensamento é ilusória; para exprimir o que quer que seja, é preciso passar pelo estranho reino das palavras. Entretanto, uma vez que se tenha aí “vivido”, cada uma das intenções expressivas defendidas na primeira parte do poema se torna princípio válido. Não é por acaso que o próprio Drummond muitas vezes – e precisamente em A Rosa do Povo – faz versos sobre acontecimentos (os da guerra, por exemplo), sobre as paixões da alma e do corpo, sobre a cidade, sobre as lembranças da infância... até mesmo “dramatizando, invocando e interrogando” muito. A relação entre o que é proibido (1ª parte) e o que se deve fazer (2ª parte) é, pois, dialeticamente irônica.

A primeira parte do poema, como já dito, é constituída de negações e é nela, principalmente, que encontramos representações simbólicas e indiciais, com destaque para o primeiro modo. Sua segunda estrofe diz “não me reveles os teus sentimentos” (verso 5) e “o que pensas e sentes ainda não é poesia” (verso 12) e traz a negação de toda uma tradição poética baseada na subjetividade, a exemplo do Romantismo25 e até de algo já feito pelo próprio poeta, como explicou Candido (2004). Com isso, Drummond “recusa a tradição realista da objetividade ou impessoalidade e a tradição romântica da subjetividade: negação do assunto seja qual for o tipo de tratamento poético que lhe seja dispensado” (SIMON, 1978, p.154). Apesar do destaque para o trabalho simbólico, no poema a representação indicial, na qual o signo aponta para o objeto em um processo de referenciação, também é muito significativa. Ela aparece em vários versos, como no primeiro já comentado. No 13º verso (3ª estrofe), “Não cantes tua cidade, deixa-a em paz”, encontramos uma referência à própria obra de Drummond, já que a sua terra natal, Itabira (MG), é tema de sua poesia, como em “Confidência do Itabirano”, publicado em Sentimento do Mundo (1940):

Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira.

25 Bosi (2006, p.93) afirma que “o fulcro da visão romântica é o sujeito”. Ainda de acordo com o crítico literário, “o eu romântico, objetivamente incapaz de resolver os conflitos com a sociedade, lança-se à evasão”. 97

Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. (SM, p.207).

Em “Procura da Poesia”, o uso de índices da obra de Drummond inclui a obra do poeta em uma tradição (símbolo) que está sendo questionada. Na 5ª estrofe (25º verso), mais uma vez nos deparamos com o índice, já que (no processo de negação irônica) se classificam como imprestáveis para a poesia os “vossos esqueletos de família”, mesmo sendo a poesia familiar um dos núcleos da poética drummondiana, como lembra Candido (2004, p.83): “É sem dúvida curioso que o maior poeta social da nossa literatura contemporânea seja, ao mesmo tempo, o grande cantor da família como grupo e tradição”. É o que aparece em “Viagem na família”, publicado em José (1942).

No deserto de Itabira a sombra de meu pai tomou-me pela mão. Tanto tempo perdido. Porém nada dizia. Não era dia nem noite. Suspiro? Voo de pássaro? Porém nada dizia. (José, p. 294)

Em literatura, o símbolo, ou seja, a ligação convencional entre o signo e o objeto, é apenas um ponto de partida para um processo de reinvenção, que culmina na criação de um ícone, já que ao passarmos pelo processo de desautomatização26 nos voltamos novamente para as qualidades dos signos. Ao usarmos uma palavra, habitualmente, para carregar uma ideia construída socialmente, muitas vezes nos desligamos da sua forma, som ou mesmo de outros sentidos que originalmente ela poderia ter. De qualquer modo, sempre se parte de um conhecimento aprendido, convencionado socialmente, e é com base nessa ideia que se constrói a estética de “Procura da poesia”. Na quinta estrofe (24º verso), por exemplo, é a poesia parnasiana que é negada por meio da citação atualizada de uma metáfora típica do parnaso, “torres de marfim” 27 : Assim, “teu iate de marfim, teu sapato de diamante,” são imprestáveis

26 Essa ideia do processo de desautomatização, ou estranhamento, que o texto literário causaria nasce com Viktor Chklovski, um dos principais nomes do Formalismo Russo iniciado em 1915. A linguagem literária teria como finalidade desautomatizar a maneira como se vê o mundo e a própria linguagem, causando uma espécie de epifania: tudo passa a ser visto de forma peculiar, como pela primeira vez. Dessa forma, podemos dizer, em linguagem semiótica, que símbolos passariam por um processo de iconização. 27 De acordo com o Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia ,“Literariamente, o termo aproxima- se do princípio da arte pela arte, exemplificado no Parnasianismo, que dita os moldes de uma nova estética voltada para a sublimação da beleza. Neste ponto, Baudelaire, entre outros, defende que a poesia 98

para a poesia. No mesmo conjunto de versos, nega-se que a poesia deva dramatizar, indagar e invocar, verbos tradicionalmente associados ao fazer poético ligado à emotividade e à busca de inspiração. Lembramos que na evocação, uma das partes da poesia épica, os poetas suplicavam para que os seres sobrenaturais, como as musas, inspirassem-nos, dando-lhes a capacidade de criar. Se o que foi feito antes não é poesia, o que ela é? Essa seria a pergunta respondida na segunda parte do texto, em que se instruiu o poeta a entrar no “reino das palavras”: “Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas que esperam ser escritos” (34º e 35º versos). Nele, o poeta vai encontrar as palavras, matéria-prima da poesia, intactas, em estado de dicionário, e assim vai poder compreender sua natureza e potencialidade, “com seu poder de palavra / e seu poder de silêncio”. (41º e 42º versos). Nesses versos, mais uma vez, o poeta tenta romper com a uma ideia socialmente construída (simbólica) de que a palavra é um veículo de comunicação de ideia e anuncia outras propriedades da palavra como a visual (que pode ser icônica) ressaltada nos últimos versos da mesma estrofe: “Não adules o poema. Aceita-o / como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada / no espaço.” (versos 45, 46 e 47). São importantes as ideias de Simon (1978, p. 161).

Ao invés de considerar o significante como mero veiculador de significados, o poeta propõe a exploração das várias potencialidades contidas em cada uma das faces do signo linguístico: as dimensões gráfico-sonora do significante, a plurivalência do significado em suas múltiplas possibilidades combinatórias.

Tudo o que foi feito antes, toda a tradição que privilegiava o assunto poético, as emoções do poeta, segundo o eu-lírico, não eram poesia. Nesse processo, parte-se do símbolo para desconstruí-lo, ao mesmo tempo em que se constrói uma nova ideia do que seja poesia, um ícone: a contemplação das palavras, e suas “mil faces secretas sobre a face neutra”, ou seja, com todas as suas potencialidades, é o único caminho para a poesia. Olhando a palavra apenas como uma mera veiculadora de informação, não se faz poesia e assim as palavras (e a poesia) se refugiam na noite, “Ainda úmidas e impregnadas de sono, / rolam num rio difícil e se transformam em desprezo”. (versos 57 e 58). Não por acaso, esse último verso do poema é marcado pela aliteração da vibrante

não tem outro objectivo senão ela mesma já que a arte é um mundo de perfeição fora deste mundo”. Disponível em: Acesso em 12.agos.2014

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/r/, tornando som da palavras iconicamente áspero, “difícil”, concretizando o que o eu- lírico defende sobre as potencialidades da linguagem. Nesse ponto, voltamos a Candido (2004, p. 92) que destaca não só que é a palavra que faz o poema, mas, o que nos interessa especialmente, que ela é revestida de novos significados, ou seja, o símbolo, ponto de partida, é reinventado. É preciso, assim, a partir do que já é convencionado, descobrir outros caminhos, outros significados. “Inicialmente, é preciso rejeitar os sistemas convencionais, que limitam e mesmo esterilizam a descoberta dos sentidos possíveis”.

O trabalho poético produz uma espécie de volta ou refluxo da palavra sobre a ideia, que então ganha uma segunda natureza, uma segunda inteligibilidade. Tanto assim que o poema é geralmente feito com o lugar-comum – a velha pena, a velha alegria, a velha perplexidade do homem. No entanto, quando o lemos ele parece novo, e só numa segunda fase identificamos os objetos de sempre; ele então completa a sua tarefa, ao parecer um enunciado muito mais claro e renovador daquilo que sentíamos e fazíamos. Nas mãos do poeta o lugar comum se torna revelação, graças à palavra na qual se encarnou.

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2.5.2 O MITO

1. Sequer conheço Fulana, 2. vejo Fulana tão curto 3. Fulana jamais me vê, 4. mas como eu amo Fulana.

5. Amarei mesmo Fulana? 6. ou é ilusão de sexo? 7. talvez a linha do busto, 8. da perna, talvez o ombro.

9. Amo Fulana tão forte, 10. amo Fulana tão dor, 11. que todo me despedaço 12. e choro,menino, choro

13. Mas Fulana vai se rindo... 14. Vejam Fulana dançando 15. No esporte ela está sozinha 16. No bar, quão acompanhada.

17. E Fulana diz mistérios, 18. diz marxismo, rimmel, gás. 19. Fulana me bombardeia, 20. no entanto sequer me vê.

21. E sequer nos compreendemos, 22. É dama de alta fidúcia, 23. tem latifúndios, iates, 24. sustenta cinco mil pobres,

25. Menos eu... que de orgulhoso 26. me basto pensando nela 27. Pensando com unha, plasma, 28. fúria, gilete, desânimo.

29. Amor tão disparatado, 30. Desbaratado é que é... 31. Nunca a sentei no meu colo 32. nem vi pela fechadura.

33. mas eu sei quanto me custa 34. manter esse gelo digno, 35. essa indiferença gaia, 36. e não gritar: Vem, Fulana!

37. Como deixar de invadir 38. sua casa de mil fechos 39. e sua veste arrancando 101

40. mostrá-la depois ao povo

41. tal como é, ou deve ser: 42. branca, intata, neutra, rara, 43. feita de pedra translúcida, 44. de ausência e ruivos ornatos.

45. Mas como será Fulana, 46. digamos, no seu banheiro? 47. Só de pensar em seu corpo, 48. o meu se punge... Pois sim.

49. Porque preciso do corpo 50. para mendigar Fulana, 51. rogar-lhe que pise em mim, 52. Que me maltrate... Assim não.

53. Mas Fulana será gente? 54. Estará somente em ópera? 55. Será figura de livros? 56. Será bicho? Saberei?

57. Não saberei? Só pegando, 58. pedindo: Dona, desculpe, 59. O seu vestido esconde algo? 60. tem coxas reais? cintura?

61. Fulana às vezes existe 62. demais: até me apavora. 63. Vou sozinho pela rua, 64. eis que Fulana me roça.

65. Olho: não tem mais Fulana. 66. Povo se rindo de mim. 67. (Na curva do seu sapato 68. o calcanhar rosa e puro.)

69. E eu insonte, pervagando 70. em ruas de peixe e lágrima 71. Aos operários: a vistes? 72. Não, dizem os operários.

73. Aos boiadeiros: A vistes? 74. Dizem não os boiadeiros. 75. Acaso a vistes, doutores? 76. Mas eles respondem: Não!

77. Pois é possível? pergunto 78. aos jornais: todos calados. 79. Não sabemos se Fulana 80. passou. De nada sabemos. 102

81. E são onze horas da noite, 82. são onze rodas de chope, 83. onze vezes dei a volta 84. de minha sede; e Fulana

85. talvez dance no cassino 86. ou, e será mais provável, 87. talvez beije no Leblon, 88. talvez se banhe na Cólquida;

89. talvez se pinte no espelho 90. do táxi; talvez aplauda 91. certa peça miserável 92. num teatro barroco e louco;

93. talvez cruze a perna e beba, 94. talvez corte figurinhas, 95. talvez fume de piteira, 96. talvez ria, talvez minta.

97. Esse insuportável riso 98. de Fulana de mil dentes 99. (anúncio de dentifrício) 100. é faca me escavacando.

101. Me ponho a correr na praia. 102. Venha o mar! Venham cações! 103. Que o farol me denuncie! 104. Que a fortaleza me ataque!

105. Quero morrer sufocado, 106. quero das mortes a hedionda, 107. quero voltar repelido 108. pela salsugem do largo,

109. já sem cabeça e sem perna, 110. à porta do apartamento, 111. para feder: de propósito, 112. somente para Fulana.

113. E Fulana apelará 114. para os frascos de perfume. 115. Abre-os todos: mas de todos 116. eu salto, e ofendo, e sujo.

117. E Fulana correrá 118. (nem se cobriu; vai chispando) 119. talvez se atire lá do alto. 120. Seu grito é: socorro! e deus.

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121. Mas não quero nada disso. 122. Para que chatear Fulana? 123. Pancada na sua nuca 124. na minha é que vai doer.

125. E daí não sou criança. 126. Fulana estuda meu rosto. 127. Coitado: de raça branca. 128. Tadinho: tinha gravata.

129. Já morto, me quererá? 130. Esconjuro se é necrófila... 131. Fulana é vida, ama as flores, 132. as artérias e as debêntures.

133. Sei que jamais me perdoará 134. matar-me para servi-la. 135. Fulana quer homens fortes, 136. couraçados, invasores.

137. Fulana é toda dinâmica, 138. tem um motor na barriga. 139. Suas unhas são elétricas, 140. seus beijos refrigerados,

141. desinfetados, gravados 142. em máquina multilite. 143. Fulana, como é sadia! 144. Os enfermos somos nós.

145. Sou eu, o poeta precário 146. que fez de Fulana um mito, 147. nutrindo-me de Petrarca, 148. Ronsard, Camões e Capim;

149. Que a sei embebida em leite, 150. carne, tomate, ginástica, 151. e lhe colo metafísicas, 152. enigmas, causas primeiras.

153. Mas, se tentasse construir 154. outra Fulana que não 155. essa de burguês sorriso 156. e de tão burro esplendor?

157. Mudo-lhe o nome; recorto-lhe 158. um traje de transparência; 159. já perde a carência humana; 160. e bato-a; de tirar sangue.

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161. E lhe dou todas as faces 162. de meu sonho que especula; 163. e abolimos a cidade 164. já sem peso e nitidez.

165. E vadeamos a ciência, 166. mar de hipóteses. A lua 167. fica sendo nosso esquema 168. de um território mais justo.

169. E colocamos os dados 170. de um mundo sem classes e imposto; 171. e nesse mundo instalamos 172. os nossos irmãos vingados.

173. E nessa fase gloriosa, 174. de contradições extintas, 175. eu e Fulana, abrasados, 176. queremos... que mais queremos?

177. E digo a Fulana: Amiga, 178. afinal nos compreendemos. 179. Já não sofro, já não brilhas, 180. mas somos a mesma coisa.

181. (Uma coisa tão diversa 182. da que pensava que fôssemos.)

(DRUMMOND DE ANDRADE, 2012, p. 379-388)

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2.5.2.1 Sobre Fulanas e Lauras

Um amor idealizado, no qual a mulher amada é inacessível ao eu-lírico, marca a poesia de Francesco Petrarca (Itália, 1304-1374), Luís de Camões (Portugal, 1524- 1580) e de toda uma geração de seguidores dos citados poetas, que se multiplicaram especialmente durante o Romantismo. As “Lauras”28 habitam os sonhos dos poetas, como musas ou anjos, mas não devem ser maculadas com pretensões sexuais e sim exaltadas por suas virtudes morais. Distantes, míticas, essas mulheres são perfeitas. É em um processo de desconstrução da mulher petrarquista e, portanto, de toda uma tradição literária que representou a figura feminina desta forma que Drummond escreve “O mito” com o qual, na verdade, realiza um processo de desmitificação da idealização da mulher na poesia. Assim, a expressividade do poema está ligada principalmente ao trabalho do poeta com esse símbolo literário, o que se torna ainda mais claro quando nos lembramos do caráter simbólico de toda narrativa mítica. O mito é eminentemente uma construção coletiva que passa a representar também uma coletividade (uma ideia geral), ao fixar modelos exemplares. Por outro lado, ao longo do tempo se associaram ao mito as ideias de ilusão, fantasia e ficção. Mesmo representando um amor platônico, o eu-lírico do poema em análise empreende um processo de desmitificação da mulher amada, que, ao contrário do que se fez na tradição petrarquista, não é caracterizada apenas por suas virtudes e passa a ser dotada de uma marcante dimensão erótica e mundana, como demonstraremos. Problematizando o mito, usando o símbolo construído pela literatura como matéria- prima da paródia, o poema faz com que a mulher ideal desça do panteão dos deuses a terra, seja dessacralizada. Uma das chaves de leitura do poema encontra-se na admissão do eu-lírico de que a sua amada é uma construção poética. A imagem da mulher ideal e inatingível foi forjada pela tradição literária que tem em Petrarca e Camões os seus maiores modelos.

Sou eu, o poeta precário Que fez de Fulana um mito, nutrindo-me de Petrarca, Ronsard, Camões e Capim. (RP, p. 386)

28Laura é a mulher amada cantada no Cancioneiro de Petrarca, escrito em italiano no século XIII. Ela tornou-se símbolo da mulher idealizada, um ser mitificado, dotado de todas as virtudes, mas que era inacessível e assim deixava o poeta obcecado. 106

A estética de “O mito” é baseada em um processo paródico de releitura do símbolo literário, o que começa a ficar claro na identificação da mulher amada como “Fulana”. Esse ser adorado pelo eu-lírico poderia ser qualquer mulher (generalizada como são os símbolos), um ser praticamente sem nome e que carrega uma alcunha que a iguala a todas as outras e planta seus pés desde o início na realidade: como dizer que uma mulher perfeita é somente uma “Fulana”? No Cancioneiro de Petrarca, a mulher amada recebe um nome próprio que a individualiza: é Laura. No poema de CDA, que, de início, falaria de um grande amor impossível, até mesmo a existência concreta do amor é questionada. A todo o momento, o que se coloca em evidência são os aspectos quiméricos da condição do eu-lírico, que pode forjar a imagem de uma mulher, assim como os próprios sentimentos. Em alguns versos, o amor platônico se mostra aparentemente desesperador, como na segunda estrofe do poema: “Amo Fulana tão forte, / amo Fulana tão dor, que todo me despedaço / e choro, menino, choro” (v.10-12). Em outros, o sentimento é colocado em dúvida, destacando-se que o desejo pode estar movendo o eu-lírico: “Amarei mesmo fulana? / ou é ilusão de sexo?”. (v.5 e 6). Amando ou não Fulana, o que o eu-lírico deseja é descobrir o que há por trás da sua imagem, o que existe além do mito, dos adjetivos que comumente caracterizam a mulher idealizada no universo literário: “branca, intata, neutra, rara / feita de pedra translúcida, / de ausência e ruivos ornatos” (p.381), ou seja, alguém que parece não ser dotado de matéria, mas só de espírito. Nesse verso, assim como faz em “Anúncio da Rosa”, o poeta parte do símbolo, ou seja, da linguagem utilizada por alguns poetas, para empreender um novo olhar sobre algo já representado. Contudo, essas características da Fulana mítica não bastam para o eu-lírico, que, movido pelo desejo do amor carnal, quer saber o que há de real/material nela:

Mas como será Fulana, digamos, no seu banheiro? só de pensar em seu corpo o meu se punge... Pois sim. (RP, p.381).

A desmitificação da mulher no poema acontece ao passo em que o eu-lírico a dessacraliza. Fulana, ao contrário de Laura, tem uma forte dimensão erótica. Em muitos momentos, é desvirtuosa e, em oposição ao que é sublime, chega a ser grotesca. Se nos poemas de Camões e Petrarca, a mulher amada, virtuosa e pura, jamais poderia ser tocada, no de Drummond ressalta-se o caráter carnal da adoração por Fulana. O sujeito

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apaixonado não a vê como um anjo imaculado e sim, ao contrário disso, como um ser erótico e esse desejo não lhe causa conflitos morais, como na tradição que idealizou a mulher. A concretização do amor por meio do toque é o caminho para que Fulana deixe de ser um mito e passe a ser uma mulher real.

Mas Fulana será gente? Estará somente em ópera? Será figura de livros? Será bicho? Saberei?

Não saberei? Só pegando, pedindo: Dona, desculpe, O seu vestido esconde algo? tem coxas reais? cintura? (RP, p.382).

O amor não correspondido torna o eu-lírico paranoico: ele procura por Fulana e pergunta por ela em todos os lugares, mas ninguém a vê. No auge da obsessão, o sujeito chega a sentir a amada por perto, como a um fantasma: “Fulana às vezes existe / demais; até me apavora. Vou sozinho pela rua / eis que Fulana me roça” (v.61-64). E é numa mesa de bar com “onze rodas de chope” que o ser apaixonado afoga a sua mágoa e imagina o que Fulana deve estar fazendo. A obsessão do eu-lírico por Fulana e a sua não possibilidade de saber o que realmente ela é são marcadas pela repetição anafórica do advérbio “talvez” nas estrofes 22, 23 e 24 do poema. A mulher amada, contudo, mesmo sendo apenas imaginada, não é colocada num pedestal e sim caracterizada como uma mulher qualquer, desvirtuosa, que bebe, fuma, beija, frequenta teatros miseráveis e mente: “talvez dance num cassino” (v.85), “talvez beije no Leblon” (v.87). Ou seja, a Fulana de “O mito” é só uma mulher comum, cheia de pecados e defeitos. Apesar disso, ainda mantém ares de musa, de deusa, de ser inatingível que “talvez se banhe na Cólquida”, um lugar mítico que escondia tesouros e era habitado por ninfas. Fulana é uma mulher de um mundo moderno, industrializado e capitalista e, nesse contexto, perdeu a sua aura como também aconteceu às obras de arte29. Integrada a esse contexto, a nova mulher é robótica, reificada, adquirindo características de uma máquina: “Fulana é toda dinâmica, / tem um motor na barriga. Suas unhas são elétricas, / seus beijos refrigerados” (RP, 2012, p. 386). Além disso, mesmo sendo objeto de adoração, ela, assim como o próprio eu-lírico, em muitos momentos recebe

29 Em 1936, Walter Benjamin escreveu o ensaio “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica”, no qual argumenta que, ao ser reproduzida em série pela indústria, a arte passou por um processo de dessacralização, perdendo a sua aura, sendo esta relativa a sua autenticidade e singularidade. Segundo Benjamin, é a aura que confere o valor de culto à obra de arte. 108

características grotescas30, o que se torna mais um meio de ir despindo o amor e a mulher de ligações com o sublime. Mais uma vez, o que se se destaca é que a Fulana perfeita é apenas uma construção:

Que a sei embebida em leite, carne, tomate, ginástica, e lhe colo metafísicas, enigmas, causas primeiras

Mas, se tentasse construir outra Fulana que não essa de burguês sorriso e tão burro esplendor? (RP, 2012, p. 387).

O poema é marcado por um movimento pendular que vai da imagem de um amante desesperado à autocrítica ferrenha sobre o seu sentimento, que beira ao ridículo e chega a ser colocado à prova. O suposto desespero do eu-lírico pela amada é tão grande que, como os poetas românticos da primeira geração, ele cogita o suicídio31: “Quero morrer sufocado, / quero das mortes a hedionda, / quero voltar repelido / pela salsugem do largo.” (RP, p. 384). Mas, o tom grandiloquente de sacrifício por amor em seguida é quebrado pela autocrítica e passa a nos parecer uma mera encenação sem sentido: “já morto, me quererá?” (v.129), questiona-se o eu-lírico, chegando à conclusão de que para essa outra mulher, diferentemente das amadas pelos românticos, esse tipo de prova de amor não interessa, já que “Fulana quer homens fortes, / couraçados, invasores”. (v.135-136). Fulana não quer saber de morte e não é necrófila. O romantismo não é suficiente para ela que ama, ao mesmo tempo, as flores e o dinheiro: “Fulana é vida, ama as flores, / as artérias e as debêntures” (v.130-131). Mesmo ganhando contornos de uma mulher real, Fulana continua sendo um ser inacessível para o eu-lírico porque existe um abismo social entre eles: além de ser moderna, Fulana faz parte da alta sociedade, de um universo ao qual o ser apaixonado não pertence e sobre o qual ele só pode fazer conjecturas. Por situarem-se em mundos

30 De acordo com Merquior (2012, p.37), em muitos poemas de Drummond pode-se identificar o gosto moderno pelo grotesco que “se serve da comicidade como uma arma antitrágica”. Ainda segundo o crítico, a poesia do itabirano é muito marcada pelo estilo mesclado, no qual se dá um tom problemático a assuntos vulgares, o que pode conferir muitas vezes um tom paródico ao texto. 31 Em 1774, Johann Wolfgang von Goethe publica o Sofrimentos do Jovem Werther, considerado o marco inicial do romantismo. Escrito em primeira pessoa, o romance traz a história de um jovem que se suicida por não conseguir concretizar seu amor por Charlotte, que, apesar de amá-lo, é prometida a outro homem.

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sociais antagônicos, não há possibilidade de comunicação entre o eu-lírico e sua amada, adjetivada como uma “dama de alta fidúcia32”. Sem poder frequentar o mundo de Fulana, resta ao eu-lírico inventá-la, torná-la um mito.

E sequer nos compreendemos, É dama de alta fidúcia, tem latifúndios, iates, sustenta cinco mil pobres,

Menos eu... que de orgulhoso me basto pensando nela Pensando com unha, plasma, fúria, gilete, desânimo. (RP, p.380)

Ao longo da análise, pretendemos expor as relações entre os efeitos estéticos de “O mito” e a representação simbólica, evidenciando a tradição literária de idealização da mulher e do amor que é ressignificada no poema. Apesar disso, a força do contexto (do índice) nunca pode ser desconsiderada em A Rosa do Povo e, no poema aqui estudado, a sociedade capitalista, criticada em muitos momentos pelo itabirano, é mais uma vez representada. Se, de início, o poema parecia tratar apenas de um amor obcecado pela mulher ideal, percebemos que ele representa um amor que é platônico por ocorrer em um contexto marcado por abismos construídos socialmente: Fulana é adorada e idealizada por ser inacessível, e, nesse processo de incomunicabilidade, ela também não é conhecida de verdade, tornando-se apenas um ser forjado, assim como o próprio amor também pode ser. O amor real só seria capaz de acontecer no momento em que o eu-lírico e sua amada passassem a ocupar o mesmo espaço social, o que, contudo, é apenas sonhado por ele: “E lhe dou todas as faces / de meu sonho que especula;” (v.161-162). É preciso que o eu-lírico construa um novo mundo para que o amor se realize, para que a comunicação aconteça.

E digo a Fulana: Amiga, Afinal nos compreendemos. Já não sofro, já não brilhas, Mas somos a mesma coisa.

(Uma coisa tão diversa Da que pensava que fôssemos). (RP, p. 388).

32 Percebe-se que o poema, de forma geral, usa um vocabulário popular como forma de melhor representar um eu-lírico humilde em oposição a uma amada burguesa: “nem se cobriu: vai chispando” (v.118). Contudo, em alguns momentos, utiliza-se de um vocabulário rebuscado, muitas vezes usado pela tradição literária, como forma de ironia. 110

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desta pesquisa, a semiótica de Charles Sanders Peirce foi usada para que refletíssemos sobre como o processo de representação e os efeitos estéticos de alguns poemas de A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade, estão entrelaçados. A leitura dos textos nos fez ver como ícones, índices e símbolos são usados de maneira expressiva na obra. Apesar de termos optado pela análise dos poemas de acordo com um dos modos de representação, vimos que neles ícones, índices e símbolos muitas vezes são corresponsáveis pelo valor estético do texto, como destacamos na análise de “Nova Canção do Exílio”. Se o signo é um ente incompleto, que representa o seu objeto apenas em dados aspectos, um poema (como um macrossigno formado de vários outros signos) que representa o seu objeto usando de maneira expressiva os três modos de representação presentifica esse objeto inatingível de maneira mais completa, ou seja, carrega o processo representativo de significações. A Rosa do Povo é um livro muito lembrado por retratar o contexto social de sua produção, marcado pela Segunda Guerra Mundial, pela disputa entre Capitalismo e Comunismo e, no Brasil, pela Ditadura de Getúlio Vargas que resultou no cerceamento da liberdade de expressão e de tantos outros direitos. Apesar disso, na obra a linguagem está longe de ser usada apenas como uma veiculadora de mensagens, ou seja, como um meio da literatura apontar para o mundo real. Os poemas analisados evidenciaram que o índice é uma das forças expressivas da obra, não só no que tange à representação da Grande Guerra (que, por exemplo, encontramos em “Visão 1944” e “Com o Russo em Berlim”), da Ditadura e da sociedade capitalista da época (vista por um eu-lírico simpatizante das ideias de esquerda), mas também pela presença constante de autorreferências à obra de Drummond e de dados da vida do poeta. Aliás, no que se refere à reflexão sobre os efeitos estéticos dos poemas, falar sobre a representação indicial se torna um desafio por estamos caminhando no campo do que está sendo dito, do conteúdo: de que forma o fato de o poema apontar para a realidade provoca efeitos estéticos? É uma questão difícil de responder, mas o que não podemos negar é que se não soubéssemos das íntimas conexões entre os citados poemas de base idexical e a realidade, a semiose seria outra. Ainda sobre a representação indicial, é importante deixamos o alerta de Ferraz Jr. (2012, p.79):

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Ao investir no modo indexical, a literatura ora se apoia em índices de autoreferência, tematizando os próprios atos enunciativos, ora constrói uma referencialidade precária, que hesita entre o mundo real e o mundo ficcional, numa correspondência entre objeto imediato e objeto dinâmico mais vaga do que aquela que ocorre fora do contexto literário.

Saber que poesia é uma arte de palavras é reconhecê-la como um signo arbitrário cujo valor é o resultado das convenções sociais, dos hábitos, da cultura. A própria literatura, nesse contexto, é o resultado de acordos, segue modelos, mesmo que depois os questione. Assim, vimos que em muitos poemas da obra, os efeitos estéticos se relacionam à quebra ou confirmação de expectativas relacionadas ao nosso universo simbólico, social ou literário. Em “Procura da Poesia”, lida-se com as tradições que foram construindo as nossas ideias do que seja ou não a arte poética. Em “O Mito”, o eu-lírico retoma a idealização petrarquista da mulher, para desconstruí-la. O que não se poderia esquecer, e Drummond não o fez, é do potencial icônico da palavra no universo literário, o que levou Décio Pignatari a dizer que a literatura é a projeção do icônico sobre o simbólico. Além das metáforas verbais (que não estudamos nesta pesquisa), também encontramos nos poemas analisados ícones do tipo imagem (sonora ou visual), como em “Anúncio da Rosa”, poema que, como um pictograma, lembra-nos as partes da flor; e do tipo diagrama, como em “Áporo”, no qual, por meio da leitura de Pignatari, vemos que os fonemas organizam-se de forma a concretizar o percurso inseto/orquídea/enigma representado. Em qualquer linguagem encontramos ícones, índices e símbolos, mas também é imprescindível ressaltar que a literatura estabelece relações especiais com esses modos de representação. Como nos explica Ferraz Jr. (2012, p.78), não devemos quantificar se a literatura, em relação a outras linguagens, tem mais ou menos signos simbólicos, icônicos ou indiciais, mas devemos pensar “na forma como a literatura tensiona e coloca em evidência os próprios fundamentos dessas representações, fazendo-nos refletir sobre eles”. Com esta pesquisa, esperamos ter dado mais alguns passos para a reflexão sobre a riqueza de linguagem da poesia de Carlos Drummond de Andrade, demonstrando a complexidade de representação que encontramos em A Rosa do Povo, um livro que não deveria receber definições redutoras, como a de obra de poesia social. Além disso, esperamos ter reforçado a ideia de que a semiótica de Peirce pode ser usada como mais uma ferramenta de compreensão do texto poético, ao nos dar condições de refletir sobre os mecanismos da poesia como linguagem, como signo, e sobre as implicações do processo de representação na expressividade/estética/significação do poema. 112

Ezra Pound diz que grande literatura é “simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível” (POUND, 2013 p.35) e que para isso podemos dispor de recursos como fanopeia, a melopeia e a logopeia. A teoria de Pound nos lembra, em alguns aspectos, o processo de representação que encontramos na semiótica de Peirce e, mais do que isso, faz-nos pensar que grande literatura é aquela que explora esteticamente os recursos da linguagem. É exatamente isso que encontramos em A Rosa do Povo, um livro no qual a palavra é entendida e usada em todas as suas potencialidades. Estas, por sua vez, estão intimamente relacionadas ao processo de representação.

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