Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro Biomédico Instituto de Nutrição

Maria da Glória Pinheiro Rezende

Desinvisibilizando os fazeressaberes das criançaspraticantes no cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”

Rio de Janeiro 2015

Maria da Glória Pinheiro Rezende

Desinvisibilizando os fazeressaberes das criançaspraticantes no cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós- Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Determinantes individuais e contextuais do estado nutricional e seus impactos na Saúde Coletiva.

Orientadora: Profª. Dra. Eliane de Abreu Soares Coorientadora: Profª. Dra. Inês Barbosa de Oliveira

Rio de Janeiro 2015

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/B

R467 Rezende, Maria da Glória Pinheiro. Desinvisibilizando os fazeresssaberes das criançapraticantes do cotidiano da oficina “Corpo, cor e sabor”. / Maria da Glória Pinheiro Rezende . – 2015. 156 f.

Orientadora: Eliane de Abreu Soares. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Nutrição.

1. Alimentação escolar - Teses. 2. Educação alimentar e nutricional - Teses. 3. Cotidiano escolar - Teses. 4. Nutrição infantil - Teses. I. Soares, Eliane de Abreu. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Nutrição. III. Título.

bs CDU: 613.22

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a fonte.

______Assinatura Data

Maria da Glória Pinheiro Rezende

Desinvisibilizando os fazeressaberes das criançaspraticantes do cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós- Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Aprovada em 07 de julho de 2015. Banca Examinadora:

______Profª. Drª Eliane de Abreu Soares (Orientadora) Instituto de Nutrição – UERJ

______Profª. Drª Alexandra Garcia Ferreira Lima Faculdade de Formação de Professores - UERJ

______Profª. Drª Mirian Ribeiro Baião Instituto de Nutrição Josué de Castro - UFRJ

______Profª. Drª Thais Salema Nogueira de Sousa Instituto de Nutrição - UNIRIO

______Profº. Drº Francisco Romão Ferreira Instituto de Nutrição – UERJ

Rio de Janeiro 2015

DEDICATÓRIA

Ao meu pai Hugo Rezende

AGRADECIMENTOS

À Eliane de Abreu Soares por mais uma vez ter me acolhido, me orientado e me permitido voar em busca de outros saberes para a tessitura de nosso trabalho.

À Inês Barbosa de Oliveira por ter me dado as mãos em pleno voo, sem saber de onde eu vinha e se teria “fôlego” para chegarmos, juntas, a algum lugar.

À Luciléia Colares pela delicadeza e generosidade que me permitiram pensarfazer diferentemente.

Aos amigosparceiros André Brilhante e Renata Versari pelas experiências, únicas e inesquecíveis, que NosDosCom vivemos dentrofora da oficina “Corpo, Cor e Sabor”. Sem vocês, sem o nosso prazer e a nossa alegria, não teria sido possível.

Às minhas queridas amigaschefinhas Tereza e Leninha por terem sempre vibrado com as nossas conquistas e pela imensa disponibilidade em fazer tudo acontecer.

Aos meus amigosparceiros do Núcleo de Arte Leblon – Flávio, Isabel, Mila, Mindja, Perla e Túlio – pelas nossas conversas e por tudo que aprendi com vocês ao longo desses anos de deliciosa convivência.

Ao Zeca Teixeira – o meu maior desorientador – por ter me apresentado à pesquisa nosdoscom os cotidianos.

Às criançaspraticantes que (re)encantaram os nossos cotidianos na oficina “Corpo, Cor e Sabor”.

À Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro por ter autorizado a pesquisa em sua unidade escolar.

À direção e às professoras da Escola Municipal Sérgio Vieira de Mello pelas trocas constantes e por terem acreditado no nosso trabalho.

À Prefeitura Municipal de Duque de Caxias por ter concedido a licença para a realização do doutorado.

Às professoras e professores do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde e do ProPEd/UERJ que me instigaram a sentirpensarfazer diferentemente ao longo do percurso do doutorado.

Ao Chico pela leitura desse trabalho e pela sua ciência, cafés e prosas.

Às professoras Mirian Baião, Thais Salema, Alexandra Garcia, Maria Cláudia Carvalho e Luciléia Colares por terem aceitado, juntamente com o professor Francisco Romão, compor a banca examinadora da tese.

A todxs do grupo de pesquisa “Redes de conhecimento e práticas emancipatórias no cotidiano escolar” por tudo que aprendi com seus escritosfalas.

À Gabriela Morgado por ter, amorosamente, realizado as traduções da tese e dos artigos.

À nossa querida Haydée de Lima – sem a sua presença jamais teria me aventurado.

À minha Vó Eny Pinheiro por sempre se encantar com a minha vida.

Aos meus pais Wanda e Hugo por terem me recebido nessa vida e me permitido saborear o aprenderensinar.

Aos meus filhotes Ana Terra, Breno e Hugo por terem torcido para que tudo desse certo. E acabasse logo! Amo mais que tudo!

Ao meu gato Wallace Vettori, amor de todas as vidas, por sempre me fazer acreditar que eu conseguiria.

A Deus e aos meus amigos invisíveis por terem conspirado para que esses encontros potentes acontecessem.

[...] de cujo contato todo mundo sai mais rico, não agraciado e surpreendido, não beneficiado e oprimido como por um bem alheio, mas sim mais rico de si mesmo, mais novo do que antes, removido, arejado e surrupiado por um vento leve, talvez mais inseguro, mais delicado, mais frágil, mais quebradiço, porém cheio de esperanças que ainda não tem nome, cheio de nova vontade e novo fluir, cheio de nova contra-vontade e novo refluir.

Nietzsche

RESUMO

REZENDE, Maria da Glória Pinheiro. Desinvisibilizando os fazeressaberes das criançaspraticantes no cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”. 2015. 152 f. Tese (Doutorado em Alimentação, Nutrição e Saúde) – Instituto de Nutrição, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

Esta tese, tecida e (com)partilhada no cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”, no Núcleo de Arte Leblon – Centro de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, com crianças do 3º ano do ensino fundamental, defende a ideia de que as criançaspraticantes, desse espaçotempo escolar, possuem uma pluralidade de conhecimentos em alimentação, nutrição e saúde que precisam ser levados em consideração quando se pensa em produzir conhecimentos e instrumentos no campo da educação alimentar e nutricional. Tem, portanto, como objetivo principal desinvisibilizar os fazeressaberes dessas criançaspraticantes, além de conhecer os modos de aprenderensinar por elas valorizados e suas redes de valores e crenças frente ao tema. No seu percurso políticoteóricoepistemológicometodológico apoia-se nas “artes de fazer” dos praticantes ordinários apresentadas por Michel de Certeau, nos movimentos da pesquisa nosdoscom os cotidianos organizados por Nilda Alves de Oliveira, no “Pensamento Complexo” de Edgar Morin, no “Paradigma Indiciário” delineado por Carlo Ginzburg, na “Sociologia das Ausências e das Emergências” propostas por Boaventura de Sousa Santos, nos “Currículos pensadospraticados” tecidos por Inês Barbosa de Oliveira e na inteireza da práticateoria de . Os fazeressaberes das criançaspraticantes são desinvisibilizados, e tornados credíveis, em sete narrativas das experiênciaspráticas do cotidiano da oficina, confirmando a hipótese da tese de que há uma constelação de conhecimentos em alimentação, nutrição e saúde, tecidos e compartilhados, cotidianamente, pelas criançaspraticantes, que não podem, de maneira alguma, ser negligenciados por pesquisadoresprofessores do campo da educacional alimentar e nutricional comprometidos com um presente não desperdiçado e com um futuro de possibilidades. Um futuro com mais saberes, cores, cheiros e sabores.

Palavras-chave: Alimentação. Cotidiano. Crianças. Alimentação. Currículos pensadospraticados.

ABSTRACT

REZENDE, Maria da Glória Pinheiro. Making visible the doing/knowledge of the practitioners/children in the everyday life of the workshop “Body, Color and Flavor” . 2015. 156 f. Tese (Doutorado em Alimentação, Nutrição e Saúde) – Instituto de Nutrição, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

This thesis was developed and shared in the everyday life of the workshop "Body, Color and Flavor" in Leblon Art Center - Center for Research on Formation in School Education Art and Sport of the Municipal Department of Education of Rio de Janeiro, with children of the 3rd grade of elementary school. It has hypothesized that practitioners/children, from this scholar space/time, have a plurality of knowledge on food, nutrition and health that need to be taken into consideration when thinking about producing knowledge and tools in the field of food and nutrition education. Therefore, this thesis has as its main objective to become visible the doings/knowledge from these practitioners/children, besides knowing the ways of learning/teaching valued by them in addition to their values and beliefs grid across the theme. In his political/theoretical/epistemological/methodological route, it is based on the "arts of doing" of ordinary practitioners presented by Michel de Certeau, in the movements of the research with/of/at the day by day organized by Nilda Alves de Oliveira, in the paradigm of complexity by Edgar Morin, in the indiciary paradigm by Carlo Ginzburg, in the sociology of absences and emergencies proposed by Boaventura de Sousa Santos, in the curriculum thought/performed developed by Inês Barbosa de Oliveira and in the completeness of the practical/theory from Paulo Freire. The doings/knowledge of practitioners/children are made visible, and made credible in seven narratives of experiences/practices from the day by day of workshop, confirming the hypothesis of the thesis that there is a constellation of knowledge on food, nutrition and health, developed and shared, daily, by practitioners/children, which can not in any way be neglected by researchers/professors of food and nutrition education field committed with a not wasted present not wasted and a future of possibilities. A future with more knowledge, colors, smells and flavors. Keywords: Food. Everyday life. Children. thought/performed Curriculum.

RESUMEM

REZENDE, Maria da Glória Pinheiro. Haciendo visible los haceres-saberes de los niñospracticantes em el cotidiano del taller “Cuerpo, Color y Sabor”. 2015. 156 f. Tese (Doutorado em Alimentação, Nutrição e Saúde) – Instituto de Nutrição, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

Esta tesis, tejida y compartida en el cotidiano del taller “Cuerpo, Color y Sabor”, en el Núcleo de Arte Leblon – Centro de Investigación en Formación y en Enseñanza Escolar de Arte y Deportes de la Secretaria Municipal de Educación de la ciudad de Rio de Janeiro, con niños del tercer grado de la enseñanza fundamental, tiene como hipótesis la idea de que los niños-practicantes, de este espacio-tiempo escolar, poseen una pluralidad de conocimientos en alimentación, nutrición y salud que deben tenerse en cuenta en la producción de conocimientos y herramientas en el campo de la educación alimentar y nutricional. Por lo tanto, tiene como objetivo principal hacer visible los haceres y saberes de estos niños- practicantes, además de conocer los modos de aprender-enseñar valorados por ellos y sus redes de valores y creencias sobre el tema. Su recorrido político-teórico- epistemológico-metodológico se apoya en las “artes de hacer” de los practicantes ordinarios presentados por Michel de Certeau, en los movimientos de investigación en-de-con los cotidianos organizados por Nilda Alves de Oliveira, en lo concepto de la complejidade por Edgar Morin, en lo paradigma indiciario por Carlo Ginzburg, en la sociología de las ausencias y de las emergencias propuestas por Boaventura de Sousa Santos, en los currículos pensados-practicados tejidos por Inês Barbosa de Oliveira, además de las propuestas practicas-teóricas de Paulo Freire. Los haceres y saberes de los niños-practicantes son hechos visibles y creíbles en siete narrativas de las experiencias prácticas del cotidiano del taller, lo que confirma la hipótesis de la tesis de que hay una constelación de conocimientos en alimentación, nutrición y salud, tejidos y compartidos, en el cotidiano, por los niños-practicantes, que no pueden de ninguna manera ser olvidados por investigadores-profesores del campo de la educación alimentar y nutricional comprometidos con un presente sin desperdicios y con un futuro de amplias posibilidades. Un futuro, por lo tanto, lleno de saberes, colores, olores y sabores. Palabras-clave: Alimentación. Cotidiano. Niños. Currículos Pensados-Practicados.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Partes minhas, partes tuas, corpos nossos ...... Figura 1 - 40 Descobertas ...... Figura 2 - 43

Figura 3 - Contornos ...... 44

Figura 4 - Preenchendo os corpos...... 46

Figura 5 - Tecendo conhecimentos...... 47

Figura 6 - Casal em cena ...... 51

Figura 7 - Produtos inventados ...... 61

Figura 8 - (Com)partilhando saberes ...... 63

Figura 9 - Em busca de indícios ...... 66

Figura 10 - Decifrando ...... 67

Figura 11 - Você sabe o quanto de açúcar tem aqui? ...... 68

Figura 12 - O que é isto? ...... 70

Figura 13 - Burlando o que não nos representa ...... 72

Figura 14 - Tecendo os agrupamentos ...... 83

Figura 15 - Viajando compelas histórias ...... 85

Figura 16 - Saboreando juntos ...... 88

Figura 17 - Um cheiro ...... 89

Figura 18 - Experimentando pela primeira vez ...... 90

Figura 19 - Saboreando ...... 91

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CRE Coordenadoria Regional de Educação

SME Secretaria Municipal de Educação

UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 15

1 CAMINHOS DA PESQUISA NOSDOSCOM OS COTIDIANOS ...... 18

Fundamentos teóricopolíticoepistemológicometodológicos: como 1.1 18 caminhei ......

1.1.1 Michel de Certeau e os praticantes do cotidiano ...... 19

1.1.2 Nilda Alves e os movimentos da pesquisa nosdoscom os cotidianos .... 20 1.1.3 Edgar Morin e o pensamento complexo...... 23 1.1.4 Carlo Ginzburg e os indícios dos praticantes do cotidiano ...... 25 1.1.5 Inês Barbosa de Oliveira e os currículos pensadospraticados ...... 27 1.1.6 Boaventura de Sousa Santos e a desinvisibilização dos fazeressaberes dos pensantespraticantes ...... 29 1.1.7 Paulo Freire e a boniteza da sua coerência ...... 31

1.2 Espaçotempo da pesquisa: por onde e quando caminhei ...... 33

1.2.1 Núcleo de Arte Leblon ...... 34

1.2.2 Oficina “Corpo, Cor e Sabor”...... 36

1.3 Questões éticas da pesquisa ...... 38

DESINVISIBILIZANDO OS FAZERESSABERES DAS 2 CRIANÇASPRATICANTES ...... 39

2.1 Partes minhas, partes tuas, corpos nossos ...... 40

Encenando os cotidianos: as “artes de fazer” e as “artes de 2.2 nutrir” ...... 49

2.3 “No tempo em que a televisão mandava no Carlinhos” ...... 54

2.4. Sete saquinhos de açúcar: você sabia disto? ...... 61

Lance a lance: os usos astuciosos das 2.5 criançaspraticantes...... 69

Representações gráficas dos guias alimentares: leituras plurais 2.6 das criançaspraticantes ...... 75

2.7 (Re)tecendo saberes, sabores, cheiros e cores ...... 84

3 E POR ÚLTIMO UMA HISTÓRIA PRIMEIRA QUE MUDOU O COMEÇO ...... 93

ALINHAVANDO UM PONTO FINAL ...... 97

REFERÊNCIAS ...... 99

APÊNDICE A – Termo de consentimento livre e esclarecido ...... 104

APÊNDICE B – “Representações gráficas de guias alimentares:

leituras plurais das criançaspraticantes” ...... 107

APÊNDICE C – “Artigo a ser submetido à Revista Interface” ...... 125

APÊNDICE D – “Encenando os cotidianos: as ‘artes de fazer’ e as

‘artes de nutrir’ de Certeau” ...... 140

ANEXO A – Parecer consubstanciado do comitê de ética ...... 155

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INTRODUÇÃO

Esta tese defende a ideia de que os praticantes comuns da vida cotidiana possuem uma pluralidade de conhecimentos em alimentação e nutrição que precisam ser levados em consideração quando se pensa em produzir conhecimentos e instrumentos no campo da educação alimentar e nutricional. Tecida e (com)partilhada no cotidiano escolar, a pesquisa tem como objetivo principal desinvisibilizar os fazeressaberes1 das criançaspraticantes do cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”, permitindo conhecer os modos de pensaraprenderensinar por elas valorizados, bem como suas redes de valores e crenças frente ao tema. Assumo, portanto, agenciada pelo potente encontro com as pesquisas nosdoscom os cotidianos, a minha prática educativa como lócus da pesquisa. Estes estudos, que vêm se constituindo e se consolidando no campo da Educação há mais de 20 anos no Brasil, seguem o fio de pensamento articulado por Michel de Certeau no livro intitulado “A invenção do Cotidiano: artes de fazer”, tendo como centralidade as práticas cotidianas, os modos de fazer de seus praticantes e as criações que envolvem. As pesquisas nosdoscom os cotidianos conferem a nós professores a possibilidade primorosa, e mais do que legítima e necessária, de pesquisarmos a nossa prática e os praticantes que (con)vivem, habitam e (re)inventam o nosso cotidiano escolar, exigindo de nós uma vigilância epistemológica às teorias, métodos e conceitos que nos foram ensinados pela ciência moderna que é homogeneizante e hegemônica. Para pesquisar o cotidiano escolar, aqui entendido como espaçotempo no qual, além de tecermos a nós mesmos, também produzimos conhecimentos, inclusive os chamados conhecimentos científicos, faz-se necessário mergulhar com todos os sentidos para tentar ver/ouvir/sentir/tocar/cheirar/saborear o que “ali se passa mesmo quando nada se parece passar” (PAIS, 2003). É preciso ter os sentidos voltados para as sutilezas, as singularidades, os detalhes, as miudezas e

1 Nilda Alves tem se valido de aglutinação de palavras consideradas antagônicas para transpor as dicotomias e os binarismos, conferindo outro sentido às expressões. Usarei as junções das palavras, ao longo do texto, com a mesma intenção. 16

as complexidades do cotidiano e de seus praticantes ordinários. É preciso, portanto, estar imerso naquilo que é pequeno demais para ser visto de longe. Nesse sentido, é preciso um processo de (re)invenção permanente do ato de pesquisar. É preciso, sobremaneira, que criemos outros modos (não hegemônicos) para darmos visibilidade e credibilidade aos fazeressaberes das criançaspraticantes do cotidiano escolar. A pesquisa nosdoscom os cotidianos também requer que narremos a vida e literaturizemos a ciência (ALVES, 2001). É preciso, pois, uma outra escrita, outras “artes de dizer” (CERTEAU, 2012), a arte de contar histórias. Histórias que, nesse texto, serão narradas na primeira pessoa do plural porque tecidas cotidiana e coletivamente por todos os praticantes dessa pesquisa. Esta forma de sentirpensarfazer pesquisa ainda nos aponta a necessidade de, astuta e taticamente, juntarmos palavras a fim de mostrarmos que os binarismos e as dicotomias são insuficientes para narrar e entender o cotidiano que habitamos e estamos a pesquisar. Por isso, o leitor encontrará ao longo da narrativa, junções de palavras com a intenção de mostrar a indissociabilidade das mesmas ou para conferir a elas um outro sentido (ALVES; GARCIA, 2008). Contei, portanto, para desenvolver e defender esta ideia, com os fios de pensamento de alguns autores cujos conceitos me puseram a caminhar e que produziram acontecimentos durante a minha caminhada. Fui agenciada pelas “Artes de fazer” dos praticantes do cotidiano apresentadas pelo historiador francês Michel de Certeau, pelos movimentos da pesquisa nosdoscom os cotidianos desenhados pela cotidianista Nilda Alves, pelo “Pensamento Complexo” do sociólogo francês Edgar Morin, pelas pistas reveladoras do “Paradigma Indiciário” do historiador italiano Carlo Ginzburg, pelos “Currículos pensadospraticados” da cotidianista Inês Barbosa de Oliveira, pelas “Sociologias das Ausências e Emergências” do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos e pela boniteza da coerência do educador do mundo Paulo Freire. Estes conceitos, que agenciaram em mim outras possibilidades de pensarfazer pesquisa, serão apresentados no texto inicial – Caminhos da pesquisa nosdoscom os cotidianos. Ainda nesse capítulo, contextualizarei o espaçotempo no qual mergulhei para a realização da pesquisa – Núcleo de Arte Leblon e Oficina “Corpo, Cor e Sabor”. Em seguida, na parte intitulada Desinvisibilizando os fazeressaberes das criançaspraticantes, apresento as sete narrativas que contam as 17

experiênciaspráticas vividas, (res)significadas, (re)inventadas por estes praticantes que deslocam as nossas certezas e que (re)encantam os nossos cotidianos, com a intenção de tornar visível e credível os seus fazeressaberes. E por último uma história primeira que mudou o começo revela a potência de encontros práticosteóricos que corroboram para a construção e a confirmação da hipótese e que instigaram em mim outras possibilidades de sentirpensarfazer a pesquisa e a vida. Vale ressaltar que esta tese, ainda que apresentada no chamado formato tradicional, contém em seu apêndice os seguintes artigos derivados da pesquisa: “Representações gráficas dos guias alimentares: leituras plurais das criançaspraticantes” submetido à revista Saúde e Sociedade, “Encenando os cotidianos: as ‘artes de fazer’ e as ‘artes de nutrir’ de Certeau” submetido à revista DEMETRA: Alimentação, Nutrição e Saúde e “Jogos de nutrição e a inventividade das criançaspraticantes” submetido à revista INTERFACE – Comunicação, Saúde e Educação. Esses, para além de cumprirem as exigências de publicação no campo da ciência, têm o desejo de desinvisibilizar e compartilhar os fazeressaberes das criançaspraticantes, bem como a potência das pesquisas nosdoscom os cotidianos no campo da alimentação, nutrição e saúde. Acredito que, ao tornarmos visíveis e credíveis os fazeressaberes das criançaspraticantes, estaremos exercendo uma ciência prudente para uma vida decente (SANTOS, 2010c), pois ao ampliarmos as experiências de um presente não desperdiçado, potencializaremos um futuro de possibilidades. Um futuro desejante de mais saberes, cores, cheiros e sabores.

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1 CAMINHOS DA PESQUISA NOSDOSCOM OS COTIDIANOS

1.1 Fundamentos teóricopolíticoepistemológicometodológicos: com quem e como caminhei

Nesta pesquisa, tecida e partilhada nodocom o cotidiano escolar, contei com fios de pensamentos de diferentes tons e texturas, alguns mais recentes, outros nem tanto, que me permitiram alterar a rota previamente delineada, mas ainda assim caminhar adiante, correndo todos os riscos que o desconhecido, o imprevisível, pode nos trazer. Muitos pensadores enlaçaram-me com seus fios, não coincidentemente, no cotidiano escolar durante os nossos momentos de fuga; quando nós professores2 nos reunimos, subvertendo a ordem, para tomar um café, prosear e fazer ciência (por que não?). De outros fui seguindo as pistas deixadas, em um texto aqui outro acolá, pelas tessituras de saberes feitas pelos cotidianistas. Fui encontrando, assim, autores que foram me proporcionando o encantamento de se pesquisar a própria prática e o cotidiano que habitamos. Nessa travessia – do sabido ao desconhecido, do provável ao improvável, do visível ao invisível – caminhei com as ideias e conceitos, especialmente, de Michel de Certeau, Nilda Alves, Edgar Morin, Carlo Ginzburg, Inês Barbosa de Oliveira, Boaventura de Sousa Santos e Paulo Freire. Destes, vieram outros fios que aparecerão ao longo das narrativas, mas, nesse momento, venho esclarecer os conceitos desses autores que me colocaram a caminhar. Farei uso, intencionalmente, de citações mais longas dos autores, com a finalidade de apresentar na íntegra, para além dos conceitos, alguns de seus escritos, uma vez que o ato de escrever, também é uma escrita de si.

2 José Carlos Teixeira, um amigoprofessor, na época doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação – PROPED-UERJ, colocou em minhas mãos, após muitas prosas e cafés, dois livros agenciadores dessa pesquisa: “A Invenção do Cotidiano: artes de fazer” de Michel de Certeau e “A pesquisa no/do cotidiano das escolas: sobre redes de saberes” organizado por Nilda Alves e Inês Barbosa de Oliveira. 19

1.1.1 Michel de Certeau e os praticantes dos cotidianos

Michel de Certeau me acionou com as ideias presentes no livro “A invenção do cotidiano”, onde traz para o centro da cena o homem comum, fala de todos nós que, com as nossas táticas, astúcias e maneiras de fazer, inventamos o nosso cotidiano. Certeau (2012), nessa obra, confere ao cotidiano e aos seus praticantes anônimos o estatuto de ser e fazer pesquisa, quando muitos ainda insistem em acreditar que nesse espaçotempo só há senso comum, repetição, reprodução e consumo passivo daquilo que nos é imposto cotidianamente. O cotidiano certeauniano, assim como o nosso, é um espaço praticado, vivido por pessoas que, com suas falas, gestos, movimentos e objetos, exercem anonimamente suas táticas, operando outros procedimentos de consumo e criando, astuciosamente, uma rede de antidisciplina (CERTEAU, 2012). Uma rede que insiste em nos apresentar, ainda que não tenhamos “olhos para ver”, novas maneiras de fazer, de consumir e de utilizar aquilo que nos é dado e, supostamente, imposto pelo poder instituído.

[...] diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular, barulhenta, posta-se uma produção do tipo totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem como característica suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas “piratarias”, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar?), mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos (CERTEAU, 2012, p.88-89).

Nesse sentido, em suas vidas cotidianas, os supostos consumidores passivos, através de suas “artes de fazer” – táticas e astúcias, fabricam formas alternativas de uso, dando origem a novas “maneiras de utilizar a ordem imposta” (CERTEAU, 2012, p. 87). As táticas, desviacionistas e de resistência, seriam, portanto

Movimento “dentro do campo de visão do inimigo” como dizia von Bullow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem, portanto, a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base para estocar benefícios, 20

aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva. Este não lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no voo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É a astúcia. Em suma, a tática é a arte do fraco” (CERTEAU, 2012, p.94-95).

A tática, enquanto arte do fraco, não tem lugar próprio e nem visão globalizante, distinguindo-se da noção de estratégia que, própria de um poder, permite a “‘prática panóptica’ a partir de um lugar de onde a vista transforma as forças estranhas em objetos que se podem observar e medir, controlar, portanto, e ‘incluir na sua visão’” (CERTEAU, 2012, p.94).

Diferentemente das táticas, nessa relação de poder, as estratégias são

[...] ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem. Elas combinam esses três tipos de lugares e visam dominá-los uns pelos outros. Privilegiam, portanto, as relações espaciais [...] (CERTEAU, 2012, p.96).

Sobre as táticas e estratégias, Certeau ainda esclarece:

[...] a diferença entre umas e outras remete a duas opções históricas em matéria de ação e segurança (opções que respondem aliás mais às coerções que a possibilidades): as estratégias apontam para a resistência que o estabelecimento de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder (CERTEAU, 2012, p.96).

Busquei apropriar-me, portanto, dos conceitos de maneiras de fazer, táticas e estratégias apresentados por Certeau (2012), para mergulhar no cotidiano praticadopesquisado, percebendo as práticas microbianas, singulares e plurais dos praticantespensantes desse espaçotempo.

1.1.2 Nilda Alves e os movimentos da pesquisa nosdoscom os cotidianos

Nilda Alves nos propõe cinco movimentos para pensarmos como devemos nos deslocar na complexidade da pesquisa nosdoscom os cotidianos. Movimentos 21

que, muitas vezes, nos exigem desaprender o pensar e o saber sobre pesquisa que nos formaram, nos constituíram (ALVES, 2001; 2008). O primeiro movimento a autora chama, a partir de Drummond3, de sentimento do mundo. É preciso mergulhar com todos os sentidos no que se deseja investigar: o cotidiano. Devemos “sentir o mundo e não só olhá-lo, soberbamente, do alto ou de longe” (ALVES, 2001, p.16, grifo da autora) e, exatamente por isso, devemos assumir e correr todos os riscos que esse mergulho possa significar.

Assim, ao contrário da formação aprendida e desenvolvida na maioria das pesquisas do campo educacional, inclusive em muitas sobre o cotidiano escolar, que, de maneira muito frequente, têm assumido uma forma de pensar que vem negando o cotidiano como espaço / tempo de saber e criação, vou reafirmá-lo como sendo de prazer, inteligência, imaginação, memória, solidariedade, precisando ser entendido, também e sobretudo, como espaço/tempo de grande diversidade (ALVES, 2001, p. 16-17).

Sentir o mundo nada mais é do que seguir as pistas das “artes de fazer” das crianças praticantes do cotidiano escolar. É, como elas, não se contentar a ver com os olhos, mas sim se dispor a tocar com as mãos e os pés, a cheirar com o nariz, a saborear com a boca. É viver a pesquisa, mergulhando com todos os sentidos na complexidade do cotidiano. O segundo movimento, “Virar de ponta cabeça” volta-se para compreender aquilo que herdamos da modernidade – teorias, categorias, conceitos e noções –, como limites ao que precisa ser capturado e compreendido nas pesquisas nosodoscom os cotidianos. Trabalhar com o cotidiano e se preocupar como aí se tecem em redes os conhecimentos, significa, ao contrário, escolher entre várias teorias à disposição e muitas vezes usar várias, bem como entendê-las, não como apoio e verdade, mas como limites, pois permitem ir só até um ponto, que não foi atingido, até aqui pelo menos, afirmando a criatividade do cotidiano. Isso exige um processo de negação delas mesmas e dos próprios limites anunciados, assumindo-os, no início mesmo do processo e não ao final quando “outra verdade as substituir”. Ou seja, essas teorias precisam ser percebidas, desde o começo do trabalho, como meras hipóteses a serem, necessariamente, negadas e jamais confirmadas, para meu/nosso desespero, com a “bagagem” sobre teorias e as práticas de pesquisa que antes acumulei” (ALVES, 2001, p.22).

É um movimento que nos despe do já sabido, das verdades apriorísticas, que nos tira o peso da bagagem, para que outros saberes e outras lógicas possam ser incorporadas durante o mergulho com todos os nossos sentidos no cotidiano.

3 A autora refere-se a Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), mineiro, poeta, contista, que publicou, em 1940, o livro intitulado “Sentimento de mundo”, onde reuniu 28 poemas que revelavam sua inquietude frente às transformações do mundo daquela época. 22

O movimento seguinte, Nilda Alves chama de “Beber em todas fontes”. É aquele que, ao exigir a ampliação do que entendemos por fonte, possibilita a análise e o registro de práticas comuns que, até então, eram desprezadas, consideradas como menores ou insignificantes.

Quando, no entanto, se entende que, para além de mero reflexo ou redução de uma outra realidade, o cotidiano, mantendo múltiplas e complexas relações com o mais amplo, é tecido por caminhos próprios trançados com outros caminhos, começa-se a entender que as fontes usadas para “ver” a totalidade do social não são nem suficientes, nem apropriadas. Ao lidar com o cotidiano preciso, portanto, ir além dos modos de produzir conhecimento do pensamento herdado, me dedicando a buscar outras fontes, todas as fontes, na tessitura de novos saberes necessários (ALVES, 2001, p.27).

“Narrar a vida e literaturizar a ciência” é o quarto movimento que a cotidianista propõe. Ela entende ser preciso uma outra escrita para dar conta de falar sobre as “artes de fazer” no cotidiano.

É preciso, pois, que eu incorpore a idéia que ao narrar uma história, eu a faço e sou um narrador praticante ao traçar/trançar as redes dos múltiplos relatos que chegaram / chegam até mim, neles inserindo, sempre, o fio do meu modo de contar. Exerço, assim, a arte de contar histórias, tão importante para quem vive o cotidiano do aprender / ensinar (ALVES, 2001, p. 32-33).

Nilda Alves, ao propor que narremos a vida e literaturizemos a ciência, recorre a “A invenção do cotidiano” onde Certeau (2012, p.141) afirma que “a narrativização das práticas seria uma ‘maneira de fazer’ textual, com seus procedimentos e táticas próprios”. Esse movimento, proposto pela autora, e que, de algum modo, já estava presente em outros autores – Foucault e Bourdieu – como relata Certeau (2102), que nos permite compreender

As alternâncias e cumplicidades, as homologias de procedimentos e as imbricações sociais que ligam “as artes de dizer” às “artes de fazer’: as mesmas práticas se produziriam ora num campo verbal, ora num campo gestual; elas jogariam de um ao outro, igualmente táticas e sutis cá e lá; fariam uma troca entre si – do trabalho no serão, da culinária às lendas e às conversas de comadres, das astúcias da história vivida às da história narrada (CERTEAU, 2012, p. 141-142).

Esse outro modo de “saber-dizer”, de contar sobre as táticas e maneiras de fazer dos pensantespraticantes do cotidiano, rompe com a descrição impessoal praticada pelas pesquisas no paradigma hegemônico. Ao narrar, o contador, com sua “arte de dizer”, insere fios na nova trama/trança que tece ao contar. 23

Nilda Alves, após formular os quatro movimentos, desenha um quinto que, ao meu ver, é exatamente aquele que dá sentido aos outros. Ele me faz pensar por quem e com quem me movo, pois, de fato, me interesso, tal como Pina Bausch4, pelo que move esses praticantes do cotidiano.

Ao me preocupar com os movimentos que como pesquisadora precisava fazer – compreender todos os acontecimentos que meus tantos sentidos permitiam sentir, esqueci o que Willian Blake poetiza: “Como saber se cada pássaro que cruza os caminhos do ar não é um imenso mundo de prazer, vedado por nossos cinco sentidos? (ALVES, 2008, p.25).

A autora deixa claro que, para além dos movimentos da pesquisa, o que de fato nos interessa nas pesquisas nosdoscom os cotidianos são as pessoas, os praticantes, porque os vê em ato o tempo todo. Nessa “pesquisa-dança”, proposta por Nilda Alves, incorporei os movimentos, fechando os olhos para as teorias que me limitavam, e mergulhei com todos os sentidos na complexidade da minha práticapesquisa cotidiana, na tentativa de narrar as “artes de fazer” dos praticantes anônimos.

1.1.3 Edgar Morin e o pensamento complexo

O fio de pensamento de Edgar Morin puxei de Nilda Alves quando a cotidianista delineia o terceiro movimento das pesquisas nosdoscom os cotidianos - “Beber em todas as fontes”. A autora nos fala que este “vai exigir a ampliação do que é entendido como fonte e a discussão sobre os modos de lidar com a diversidade, o diferente e o heterogêneo. Para “Beber em todas as fontes” é preciso unir noções, conceitos e teorias que estão catalogadas e organizadas em compartimentos estanques.

4 Pina Bausch, dançarina, coreógrafa e pedagoga em dança, subverteu a estética clássica do balé e inaugurou o que chamam de “teatro-dança”. Suas coreografias eram baseadas nas experiências de vida dos bailarinos e relacionadas às suas passagens pelas diferentes cidades do mundo. O trabalho de Pina Bausch é criado na exata medida de sua fala: “O que me interessa não é como as pessoas se movem, mas sim o que as move.”

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Morin revela no prefácio do livro “Introdução ao pensamento complexo” (2011) que jamais se resignou ao saber fragmentado e que sempre aspirou a um pensamento multidimensional. Animou-se, ao longo da vida, pela

tensão permanente entre a aspiração a um saber não fragmentado, não compartimentado, não redutor e o reconhecimento do inacabado e da incompletude de qualquer conhecimento (MORIN, 2011, p.7)

O sociólogo propõe, portanto, em complemento ao “paradigma da simplificação”, o paradigma da complexidade. Este não se opõe ao primeiro, mas o integra, operando a união da simplicidade e da complexidade (MORIN; LE MOIGNE, 2000). Enquanto o primeiro põe ordem no universo, separando o que está ligado [disjunção] e unificando o que é diverso [redução], o segundo reconhece que a parte está no todo ao mesmo tempo que o todo está na parte, operando a disjunção, a conjunção e a implicação. Ou seja, o princípio dialógico do pensamento complexo nos permite manter a dualidade no seio da unidade.

A um primeiro olhar a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta com traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza...Por isso o conhecimento necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é, selecionar os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir, hierarquizar... (MORIN, 2011, p. 14)

Contudo, segundo o autor, as fragmentações, as disciplinarizações, as especializações, as hierarquizações, ou seja, as operações da ciência moderna, podem provocar cegueiras ao eliminarem a riqueza da complexidade (MORIN, 2011). A ambição da complexidade é

prestar contas das articulações despedaçadas pelos cortes entre disciplinas, entre categorias cognitivas e entre tipos de conhecimento [...]. Isto é, tudo se entrecruza, tudo se entrelaça para formar a unidade da complexidade; porém, a unidade do complexus não destrói a variedade e a diversidade das complexidades que o teceram (MORIN, 1996, p. 176).

Morin aponta, ainda, que a questão da complexidade não entra em cena apenas em função dos novos progressos científicos, nos aconselhando a busca-la 25

“lá onde ela parece em geral ausente, como, por exemplo, na vida cotidiana” (MORIN, 2011, p.57). Nesse sentido, os estudos nosdoscom os cotidianos “bebem”, portanto, do pensamento complexo de Edgar Morin, na tentativa de superar as fragmentações e as mutilações cientificistas tão caras ao pensamento simplificador da modernidade. Buscam, assim, uma (re)invenção permanente do ato de pesquisar um espaçotempo vivido por praticantes com suas redes de subjetividades, saberes, fazeres, crenças e valores e, portanto, constituído por multiplicidades, provisoriedades, imprevisibilidades e complexidades. As pesquisas nosdoscom os cotidianos, ao reconhecerem a complexidade, requerem uma permeabilidade, uma fluidez, um diálogo, uma escuta, um olhar, uma intuição para inventar outros caminhos durante a caminhada. Uma caminhada que consiste, para nós pesquisadorespraticantes, em “um ir e vir incessante entre certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o separável e o inseparável” (MORIN; LE MOIGNE, 2000).

1.1.4 Carlo Ginzburg e os indícios dos praticantes do cotidiano

Ginzburg, em “Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história” (1989), nos fala de formas de saber que nascem da concretude da experiência aprendida, não nos livros, mas a viva voz pelos gestos, pelos olhares, fundadas sobre as sutilezas. O autor propõe o paradigma indiciário delineando uma analogia entre os métodos de Morelli [signos pictóricos], de Sherlock Holmes [indícios] e Freud [sintomas]. Os três métodos utilizam pistas infinitesimais para captar uma realidade mais profunda, de outra forma inalcançável. Morelli, um estudioso das obras de arte, afirmava que, para distinguir os originais das cópias, seria preciso não se basear em características mais vistosas, mais evidentes. “Pelo contrário, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia” (GINZBURG, 1989, p. 144). Morelli catalogou as minúcias dos lóbulos das orelhas, das unhas, das formas dos dedos das mãos e dos pés. Sutilezas presentes nos originais que se perdiam nas cópias que se importavam, especialmente, com os 26

aspectos mais evidentes. Morelli apreciava os pormenores da obra, a fim de distinguir os originais de suas cópias. Em busca dos indícios, o método de Morelli foi associado ao de Sherlock Holmes, por seu criador, Arthur Conan Doyle, que afirmava que “o conhecedor de arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis para a maioria” (GINZBURG, 1989, p. 145). A aproximação com Freud, apresentada por Ginzburg (1989), encontra-se no ensaio do psicanalista “O Moíses de Michelangelo” datado de 1914, quando no texto ele [Freud] revela

Creio que o seu método [Morelli] está estreitamente aparentado à técnica da psicanálise médica. Esta também tem por hábito penetrar em coisas concretas e ocultas através de elementos pouco notados ou desapercebidos, dos detritos ou refugos da nossa observação (GINZBURG, 1989, p. 147, grifo nosso).

Morelli, ao afirmar que a personalidade deve ser procurada onde o esforço pessoal é menos intenso, permite a associação de Freud com a psicanálise, onde os “pequenos gestos inconscientes revelam o nosso caráter mais que qualquer atitude formal, cuidadosamente preparada por nós” (GINZBURG, 1989, p. 146). Ginzburg, ao capturar o paralelismo entre Morelli, Sherlock Holmes e Freud, delineia um método precioso para as pesquisas nosdoscom os cotidianos que, como propõe a cotidianista Nilda Alves, devem mergulhar na complexidade do cotidiano com todos os sentidos para ver/ouvir/sentir/cheirar/saborear/tocar as sutilezas e minúcias desse espaçotempo. O método indiciário nos faz caminhar nos cotidianos, na medida em que aumenta a escala, decifrando os acontecimentos sutis, efêmeros, singulares e pequenos demais para serem vistos de longe. Adquirem relevo, portanto, os pequenos gestos, os olhares, os burburinhos e as “artes de fazer” (CERTEAU, 2012) dos praticantes comuns dos cotidianos. Esse paradigma indiciário que Ginzburg nos apresenta tem como ponto essencial a ideia de que indícios permitem captar elementos da realidade não compreensíveis por meio de métodos e procedimentos de pesquisas preconizados pela ciência moderna. Ele ainda nos alerta que

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Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição (GINZBURG, 1989, p. 179).

Com essas ideias, procurei mergulhar na minha práticapesquisa, travestida de Morelli, Sherlock e Freud, em busca de indícios, pistas e sinais para tornar visível a constelação de fazeressaberes tecida e compartilhada no cotidiano escolar.

1.1.5 Inês Barbosa de Oliveira e os currículos pensadospraticados

Inês Barbosa de Oliveira (2012b), tecendo uma nova trama com os fios de Boaventura e de Certeau, me instigou com o potente conceito de currículos pensadospraticados. A cotidianista deixa claro, pelo neologismo empregado, a indissociabilidade existente entre práticateoria, reflexãoação. Seria, portanto, no cotidiano escolar que seus praticantes ordinários, ao tensionarem, dialogarem e ressignificarem os currículos e outros artefatos oficiais, criariam os currículos pensadospraticados. Currículos que abarcam a pluralidade e singularidade de fazeressaberes dos sujeitos que habitam a escola.

Quando me refiro aos praticantes cotidianos das escolas como criadores de currículos nos cotidianos, assumo esse processo criador como resultado, sempre provisório e, por isso, recriado cotidianamente, de diálogos e enredamentos entre conhecimentos formais – advindos das diferentes teorias com as quais entram em contato em diversos momentos e circunstâncias de suas vidas – e outros conhecimentos, aprendidos pelos praticantespensantes por meio de outros processos (OLIVEIRA, 2012b, p. 8).

A autora está convencida de que, para além do consumo passivo, os praticantespensantes dos cotidianos escolares fabricam alternativas credíveis e legítimas ao currículo instituído, tornando-se, portanto, criadores de currículos, mesmo que de modo invisível e marginal.

Assim, nos diferentes e múltiplos momentos de suas vidas pessoais e profissionais, em virtude do acionamento de umas ou outras de suas subjetividades, em relação com outras diferentes e plurais redes de conhecimentos e sujeitos que habitam, fisicamente ou não, os cotidianos 28

das escolas, os praticantespensantes das escolas criam currículos únicos, inéditos, “irrepetíveis” (OLIVEIRA, 2012b, p. 90).

Nessa perspectiva, o cotidiano escolar constitui-se, sobretudo, como um espaço privilegiado de produção curricular, para além do previsto oficialmente. Os currículos oficiais, sempre implicados com relações assimétricas de poder, ao entrarem em contato com os praticantes do cotidiano, são tensionados e ressignificados. Essa zona de contato, estabelecida no cotidiano, faz emergir diálogos, conflitos, contradições e negociações que permitem aos seus praticantes, para além de um consumo supostamente passivo dos produtos recebidos, exercerem suas “artes de fazer” (CERTEAU, 2012), experimentando, criando e inventando outros modos de fazer e de existir. São as táticas desviacionistas e de resistência, dos professores e alunos praticantes, que não permitem que o poder do currículo oficial se realize conforme as intenções de seus formuladores. Como nos diz a autora,

Há sempre uma saudável e necessária contaminação das propostas no momento em que elas entram no diálogo com a história, a cultura, as formas de inserção social daqueles que as implantam, nelas interferindo, transformando-as cotidianamente no contexto da realidade vivida, sempre complexa e, portanto, irredutível aos seus elementos estruturais, planejáveis e reconhecíveis (OLIVEIRA, 2012b, p. 101).

Os currículos pensadospraticados que a autora nos apresenta são, portanto, criações cotidianas tecidas através do diálogo entre os diferentes saberes, fazeres, valores, crenças e convicções dos praticantes ordinários e das propostas curriculares oficiais. Nesse sentido ao compreendermos

[...] os currículos como criações cotidianas dos praticantespensantes das escolas, produzidas por meio dos usos singulares que fazem das normas e regras que lhe são dadas para consumo, num diálogo permanente entre essas diferentes instâncias, podemos supor que as redes de conhecimentos por eles tecidas dão origem a algumas práticas emancipatórias e são, também, fruto dos diversos modos de sua inserção social no mundo, inclusive no campo do embate político e ideológico que habita a sociedade e, portanto, as escolas e as políticas curriculares. (OLIVEIRA, 2012b, p.12).

Os currículos pensadospraticados, compreendidos como criação invisibilizada pelo pensamento hegemônico, deslocam os nossos saberes apriorísticos sobre currículos e sobre aprenderensinar, na medida em que incluem, além de outros 29

conhecimentos, as relações entre os diferentes praticantes do cotidiano (OLIVEIRA, 2013). Mergulhei, portanto, com a potência dessa noção, no cotidiano praticadopesquisado, não a procura do que foi ou do que poderia ter sido aprendido sobre alimentação, nutrição e saúde com os currículos oficiais, mas, especialmente, para tentar capturar aquilo que neles é criação e reinvenção dos praticantes ordinários, que com suas “artes de fazer” assumem a autoria dos currículos que, de fato, são praticadospensados nas escolas.

1.1.6 Boaventura de Sousa Santos e a desinvisibilização dos fazeressaberes dos praticantespensantes do cotidiano

Os fios de pensamentos de Boaventura puxei seguindo as pistas que Inês Barbosa de Oliveira5 deixou nos seus escritosfalas. Ao trançar esses fios junto aos seus, a cotidianista vem propondo em suas pesquisas a apropriação da “Sociologia das Ausências” e da “Sociologia das Emergências”, formuladas pelo autor, não apenas como referencial teórico-epistemológico, mas também como parte dos procedimentos metodológicos. As pesquisas nosdoscom os cotidianos trazem, portanto, para as suas redes as premissas e os objetivos dessas sociologias, mantendo o compromisso político- epistemológico de tornar visível e credível o que se cria e se inventa anonimamente no cotidiano escolar. Boaventura ao escrever “A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência”, faz uma crítica a essa razão preguiçosa e que, portanto, não se exerce, para reconhecer a riqueza inesgotável do mundo (SANTOS, 2011a). A razão indolente, segundo o autor, se manifesta de duas formas particularmente importantes: a razão metonímica e a razão proléptica. A primeira toma a parte pelo todo, contraindo o presente por deixar de fora muitas experiências, desperdiçando- as. A segunda, por já conhecer a história futura no presente, expande infinitamente o

5 A autora publicou o livro “Boaventura e a Educação”, pela editora Autêntica, em 2006, após concluir o pós-doutorado na Universidade de Coimbra sob a orientação de Boaventura de Sousa Santos. Escreveu, ainda, diversos artigos onde articulou/trançou o pensamento de Boaventura com as pesquisas nosdoscom os cotidianos escolares. 30

futuro (SANTOS, 2011b). Ao criticá-las, propõe o exercício inverso: expandir o presente e contrair o futuro. Para tal, formula a Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências. A sociologia das ausências é, sobretudo, um procedimento transgressivo que tenta mostrar que o que não existe é ativamente produzido como não existente.

Trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, activamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não credível ao que existe. O seu objeto empírico é considerado impossível à luz das ciências sociais convencionais, pelo que a sua simples formulação representa já uma ruptura com eles. O objectivo da sociologia das ausências é transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças (SANTOS, 2010a, p. 102).

As ausências, segundo o autor, são produzidas por cinco lógicas ou modos de não-existência: a monocultura do saber e do rigor; a monocultura do tempo linear; a monocultura da naturalização das diferenças; a monocultura da escala dominante e a monocultura do produtivismo capitalista. Essas lógicas, legitimadas pela razão metonímica, produziriam o ignorante, o residual, o inferior, o local ou particular e o improdutivo (SANTOS, 2010a). A produção social dessas ausências resultaria na contração do presente [pela monocultura do tempo linear] e, consequentemente, no desperdício da experiência. Desperdício este que diminuiria o campo das possibilidades de experiências sociais no futuro. Para ampliar o presente e não desperdiçar as experiências, a sociologia das ausências opera substituindo as monoculturas por ecologias, dentre elas, a ecologia de saberes. Esta se funda na premissa de que “não há conhecimento em geral; tampouco há ignorância em geral. Somos ignorantes de certos conhecimentos, mas não de todos” (SANTOS, 2011b, p. 52). A utopia do interconhecimento – do diálogo entre saberes incompletos – consistiria em “aprender novos e estranhos saberes sem necessariamente ter de esquecer os anteriores e próprios.” (SANTOS, 2010a, p. 106). Para contrair o futuro, a partir da crítica à razão proléptica, Boaventura propõe uma outra sociologia insurgente: a sociologia das emergências. Esta sociologia, de acordo com o autor, nos permite tentar ver quais são as latências, as possibilidades que existem no presente e os sinais embrionários de um futuro concreto (SANTOS, 2010a). 31

A sociologia das emergências, nessa linha de pensamento de Boaventura, surge para investigar em que medida as alternativas ao modelo hegemônico, tornadas visíveis no presente, podem ser inseridas num futuro de possibilidades. A respeito disso, o autor esclarece que:

Enquanto a sociologia das ausências expande o domínio das experiências sociais já disponíveis, a sociologia das emergências expande o domínio das experiências possíveis. As duas sociologias estão estreitamente associadas, visto que quanto mais experiências estiverem hoje disponíveis no mundo mais experiências são possíveis no futuro. Quanto mais ampla for a realidade credível, mais vasto é o campo dos sinais ou pistas credíveis e dos futuros possíveis e concretos. Quanto maior for a multiplicidade e diversidade das experiências disponíveis e possíveis (conhecimentos e agentes), maior será a expansão do presente e a contração do futuro (SANTOS, 2010a, p. 120).

A sociologia das ausências, como possibilidade metodológica nas pesquisas nosdoscom os cotidianos, me oportunizou, através do reconhecimento das ecologias, buscar as experiências desperdiçadas no cotidiano escolar, desinvisibilizando-as e fazendo-as presentes. A sociologia das emergências, ao romper com a ideia de um futuro dado, sem limites, me permitiu estar atenta ao “ainda não” – às possibilidades e às alternativas emergentes de um presente não desperdiçado.

1.1.7 Paulo Freire e a boniteza de sua coerência

Nessa trama de saberes, os fios de Paulo Freire são os mais antigos. Fui definitivamente atravessada por esses fios na minha primeira graduação e foram eles, certamente, depois de tantos anos, que me permitiram ser tocada, trançada, por todos os outros fios presentes nesta pesquisa. Paulo Freire, com toda a boniteza de sua fala e de sua prática, bem como com a necessária coerência entre elas, permite que eu esteja na docência ao acreditar, como e com ele, que, dentre outras exigências, ensinar [e também aprender] exige consciência do inacabamento, escuta, diálogo, respeito aos saberes dos educandos, coerência, ética e estética, curiosidade, pesquisa e, sobretudo, a convicção de que “mudar é difícil, mas é possível” (FREIRE, 2014a, p.132). 32

Lendo algumas obras de Paulo Freire, é possível perceber um pouco de Certeau, de Nilda, de Morin, de Ginzburg, de Inês e de Boaventura. Não é possível, contudo, saber quem tocou quem, de onde os fios foram puxados, mas essa não é a questão. O que realmente me interessa é a rede de saberes, fazeres, crenças, valores, afetos e subjetividades, onde tudo e todos se entrecruzam numa rede rizomática. Subvertendo a ordem da metáfora arbórea tradicional, que reproduz a fragmentação do saber fincado em solo firme e com hierarquias determinadas, o rizoma, formado por pequenas raízes emaranhadas, entrelaçadas,

[...] tem como tecido a conjunção “e...e...e...” Há nessa conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. Fazer tábula rasa, partir ou repartir do zero, buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento (metodológico, pedagógico, iniciático, simbólico...). [...] Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para a outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.37).

É nesse rizoma – onde qualquer ponto pode ser/estar conectado a qualquer outro – que transito, me constituo e de que também faço parte, que me nutro esteticamente, politicamente, epistemologicamente e metodologicamente para me colocar a caminhar como professorapesquisadora da minha prática educativa. Nessa trama, nessa multiplicidade de conexões, entradas e saídas, escolher o que me move em Paulo Freire – qual a sua fala, qual a sua prática, qual a sua boniteza – é uma das tarefas mais difíceis, pois ele, na sua inteireza, me move por inteiro. É preciso, contudo, fazer escolhas. Então, puxo o seu fio de pensamento que nos fala que “ensinar exige a convicção de que a mudança é possível”. Mudança, necessária e urgente, que já está em curso, em múltiplos espaçostempos, na rede de uma antidisciplina como pensa Certeau, nos movimentos de Nilda Alves, no pensamento complexo de Morin, no paradigma indiciário de Ginzburg, nos currículos pensadospraticados de Inês Barbosa de Oliveira e na ecologia de saberes de Boaventura de Sousa Santos. Paulo Freire quando nos diz - “O mundo não é. O mundo está sendo” (FREIRE, 1996, p. 76), nos coloca, enquanto educadores e sujeitos da história, 33

diante da responsabilidade de intervir, de provocar mudanças, acreditando que “se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental ela pode” (FREIRE, 1996, p. 112). A educação pode, dentre tantas outras coisas, nos dar a esperança que não se reduz à espera e o sonho possível de se sonhar. E sem nunca prescindir do sonho e da utopia, o autor nos traz à reflexão:

Nunca falo da utopia como uma impossibilidade que, às vezes, pode dar certo. Menos ainda, jamais falo da utopia como refúgio dos que não atuam ou [como] inalcançável pronúncia de quem apenas devaneia. Falo da utopia, pelo contrário, como necessidade fundamental do ser humano. Faz parte de sua natureza, histórica e socialmente constituindo-se, que homens e mulheres não prescindam em condições normais, do sonho e da utopia. As ideologias fatalistas são, por isso, negadoras das gentes, das mulheres e dos homens (FREIRE, 2014b, p. 77).

Mergulhei, assim, no meu cotidiano de professorapesquisadora, imbuída dessa utopia, em busca de pensaresfazeressaberes das “gentes” [miúdas] que foram, historicamente, descredibilizados, invisibillizados e produzidos como não existentes, sabedora da necessária coerência entre o que eu falo e o que eu faço – entre a minha teoria e a minha prática.

1.2 Espaçotempo da pesquisa: por onde e quando caminhei.

Essa pesquisa foi tecida no meu cotidiano escolar onde atuo como professorapraticante. Autorizei-me a fazê-la a partir das falas de Certeau (2012) e dos demais cotidianistas, que ao tecerem teorias sobre as práticas cotidianas conferem aos seus praticantes o estatuto de ser e fazer pesquisa. Pesquisar a própria prática é, inclusive, uma das exigências do ensinar, do ser professor. Paulo Freire, nesse sentido, diz que no seu entender

o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente, a indagação, a busca, a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador (FREIRE, 1996, p. 29).

Assumi, portanto, o cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”, do Núcleo de Arte Leblon, com crianças do 3º ano do ciclo do ensino fundamental, como lócus da 34

pesquisa, uma vez que atuo nesse espaço escolar há mais de 15 anos, conduzindo a referida oficina, com professoresparceiros - André6 e Renata7, desde 2012. Com a intenção de facilitar a compreensão do leitor sobre o Núcleo de Arte Leblon e a oficina propriamente dita, abro, na minha escrita, espaços específicos para apresentá-los.

1.2.1 Núcleo de Arte Leblon

O Programa Núcleo de Arte surgiu no antigo Departamento Cultural da Secretaria Municipal de Educação (SME) da cidade do Rio de Janeiro, no início da década de 1990, mais precisamente em 1992 na Escola Municipal Dídia Machado Fortes, na atual 7ª CRE (Coordenadoria Regional de Educação). Desde então, ao longo dos anos noventa e início do segundo milênio, foram sendo criados diversos Núcleos na tentativa de contemplar as dez CREs da rede municipal de ensino. A proposta inicial do programa baseava-se no trabalho com ateliê livre, em oficinas específicas das diferentes linguagens da arte, oferecidas aos alunos matriculados na rede no contraturno escolar. Originalmente, as oficinas de diferentes linguagens da arte – dança, teatro, música, artes visuais, vídeo e arte literária, aconteciam duas vezes por semana com duração de uma hora e meia. Ao longo desses anos, em função da política educacional de cada governo, muitas alterações foram acontecendo. Alguns Núcleos foram sendo fechados, outros reduziram o número de professores e, consequentemente, de oficinas oferecidas e algumas unidades, ao usarem táticas ceurteaunianas, criaram parcerias com unidades escolares para se fortalecerem junto à SME. Atualmente, existem sete Núcleos de Arte, dentre eles o Núcleo de Arte Leblon, que se configuram como Unidades de Extensão Educacional, incorporando

6 André Brilhante, professor da rede pública municipal e estadual na cidade do Rio de Janeiro, é mestre em Teatro-Educação pela UniRio; professor de vídeo e teatro do Núcleo de Arte Leblon e diretor da Companhia de Teatro Preto no Branco.

7 Renata Versari, professora da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, é formada em Artes Cênicas pela UniRio e em dança pela Escola Angel Viana, apresentando uma grande experiência no ensino de danças populares brasileiras.

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o papel de Centros de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte8. Como o nome já enuncia, o Núcleo de Arte Leblon, coordenado pela 2ª CRE9, está localizado no bairro do Leblon, na Zona Sul do Rio de Janeiro, situado no mesmo quarteirão das escolas municipais Sérgio Vieira de Mello e George Pfisterer. A primeira dedica-se ao ensino fundamental I e a segunda ao ensino fundamental II. Estas escolas, dada a proximidade geográfica, estabeleceram parcerias com o Núcleo de Arte Leblon, enviando suas turmas, no turno escolar, para participarem de oficinas concebidas pelos professores desta unidade, especialmente para as escolas parceiras. Além das parcerias, o Núcleo do Leblon [como o chamamos cotidianamente] oferece oficinas, em outros horários, para os alunos do contraturno que o procuram por demanda espontânea. Nesse grupo é possível encontrar, com frequência, aqueles alunos que frequentam / frequentaram, no horário escolar, as oficinas destinadas às escolas acima mencionadas. Este Núcleo, especialmente, oferece grande diversidade de oficinas por conta das formações híbridas de seus professores. Acrobacia; Arte Literária; Artes Visuais; Balé Clássico; Corpo, Cor e Sabor; Dança Contemporânea; Dança Popular, Multimídia; Música, Teatro e Vídeo são alguns exemplos de oficinas que acontecem duas vezes por semana, com duração de uma hora, ao longo de um ano letivo. O Núcleo de Arte Leblon, enquanto espaçotempo que pratica o diálogo entre os diferentes saberes nas suas oficinas, nos seus “corredores”, nos “cafezinhos proseados” e, também, no centro de estudo semanal de seus professores, permitiu que expandíssemos o nosso presente a fim de que não desperdiçássemos as experiências plurais e singulares vividas pelos pensantespraticantes que atravessavam, praticavam e habitavam os seus cotidianos.

8 O ensino de esporte, ainda que não exclusivamente, é de responsabilidade das Unidades de Extensão denominadas “Clubes Escolares”.

9 A 2ª CRE é responsável pelas escolas e unidades de extensão localizadas no Cosme Velho, Laranjeiras, Leme, Jardim Botânico, Vidigal, alto da Boa Vista, São Conrado, Ipanema, Andaraí, Morro do Andaraí, Jamelão, Tijuca, Comunidade , Praça da Bandeira, Botafogo, Glória, Praia Vermelha, Usina, Rocinha, Humaitá, Leblon, Urca, Grajaú, Morro Nova Divinéia, Maracanã, Copacabana, Morro dos Cabritos, Catete, Vila Isabel, Lagoa, Flamengo, Gávea, Rio Comprido.

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1.2.2 Oficina “Corpo, Cor e Sabor”

A oficina “Corpo, Cor e Sabor”10 é oferecida pelo Núcleo de Arte Leblon, desde 2012, às turmas da Escola Municipal Sérgio Vieira de Mello. As criançaspraticantes, no ano de 2014, quando assumimos o cotidiano da oficina como lócus da pesquisa, tinham entre 8 e 9 anos de idade e cursavam o 3º ano do ciclo do ensino fundamental. No período da pesquisa, recebemos três turmas, totalizando 94 criançaspraticantes. Estas, em sua grande maioria, são moradoras da Rocinha, do Vidigal e da Cruzada de São Sebastião, localizada também no bairro do Leblon. Os nossos encontros, que aconteciam/acontecem uma vez por semana11, com duração de 1h, tinham/tem como proposta estimular a “curiosidade epistemológica” e desinvisibilizar os currículos pensadospraticados, bem como as redes de saberes, fazeres, valores e crenças em alimentação, nutrição e saúde, permitindo, ainda, conhecer os modos de pensaraprenderensinar valorizados pelas crianças praticantes (CERTEAU, 2012). Movidos pelos pensamentos dos autores que nutrem essa pesquisa, mergulhamos com todos os sentidos (ALVES, 2001), no nosso cotidiano e na cotidianidade de nossas crianças, esperançosos de que, juntos, estaríamos a pensar em espaçostempos que garantissem a diversidade, a liberdade, a criatividade, a experimentação, a criticidade, a ética, a estética, a solidariedade, a esperança, o pensaraprenderensinar coletivamente e tudo o mais que fosse necessário para despertar em nossas crianças, e em nós também, a decência e a boniteza da prática educativa (FREIRE, 1996). Desfrutando da diversidade de espaços presentes no Núcleo de Arte Leblon, bem como do seu entorno, no decorrer de nossos encontros foram usadas diferentes estratégias metodológicas, nem todas narradas nesta tese, a fim de estimular a participação ativa das crianças como: atividades corporais; de desenho e pintura; de escrita de textos; de interpretação cênica das atividades cotidianas; de

10 Nas narrativas sobre a oficina “Corpo, Cor e Sabor”, farei uso, na maioria das vezes, da primeira pessoal do plural não para me esconder na impessoalidade, mas para revelar a existência de uma rede de sujeitos e subjetividades que pensam e que praticam noscom os cotidianos, da oficina e da pesquisa, ainda que anonimamente.

11 Uma das turmas passou a frequentar a oficina, no meio do ano letivo de 2014, duas vezes por semana. 37

peças de teatro, vídeos, de filmes e documentários que abordam o tema alimentação; de visitas aos mercados e à feira livre do bairro; de oficina sensorial com alimentos; de jogos de nutrição; de experimentação de receitas de família e de novos sabores; de leitura de livros; de plantio de mudas e de horta suspensa, dentre outros. Pretendíamos que essa pluralidade de experiências possibilitasse desconstruir a persistente afonia e invisibilidade das crianças nas investigações, conferindo a elas o papel de sujeitos de conhecimento, com voz e ação, atuando, assim, como coautores dos conhecimentos e da pesquisa ali tecidos. As atividades foram pensadas considerando as singularidades, as potencialidades das crianças e os caminhos que elas nos apontavam entre um encontro e outro, sempre articuladas pela via do prazer, da solidariedade e da autoria, tendo como fio condutor a alimentação, nutrição e saúde. Os encontros da oficina foram conduzidos por três professores. Em alguns encontros, André e eu, em outros eu e Renata e em alguns momentos os três. A parceria por nós estabelecida, além das afinidades epistemológicas e políticas, deu-se também em função das nossas formações híbridas e complementares [teatro, dança, vídeo, educação física e nutrição], constituindo-se em um espaçotempo permanente de trocas, experimentações e reflexões. A solidariedade, o prazer e a autoria, considerados tão caros nos processos de nossas oficinas das linguagens da arte, também foram elementos preciosos nessa experiência tecida, destecida e (re)tecida cotidianamente. Elementos estes, segundo Oliveira (2012a), considerados centrais nas lutas emancipatórias propostas por Boaventura de Sousa Santos. Nos anos de 2013 e 2014, por conta do momento de luta que vivíamos na educação pública da cidade do Rio de Janeiro, estávamos, talvez sem nos darmos conta, cada vez mais, em busca de práticas emancipatórias tanto para as crianças quanto para nós. A pesquisa, a nossa prática educativa [que desejava ser emancipatória] e a nossa parceria se fortaleceram na luta, e esta foi uma de nossas respostas à ofensa à educação pública brasileira, em especial, à educação pública da cidade do Rio de Janeiro. No decorrer das oficinas, realizávamos diariamente anotações no caderno de campo, fazendo registros, por escrito, que considerávamos interessantes, não somente para a pesquisa, mas, também, para caminharmos na oficina. Com a 38

intenção de registrar momentos que também acreditávamos importantes, fazíamos uso de fotografias e/ou de filmagens em todos os nossos encontros. Assim, ao longo das narrativas de nossas experiênciaspráticas na oficina lançarei mão de imagens e

[...] um dos motivos por que o uso de material imagético é metodologicamente importante na pesquisa no/do cotidiano reside, exatamente, no fato de ele conduzir às múltiplas realidades captadas pelas imagens, não traduzidas em textos, sejam eles discursos e propostas oficiais ou de outros tipos (OLIVEIRA, 2003, p. 90).

As imagens serão incorporadas ao texto não como prova de verdade, mas para reforçar as nossas falas e para falarem por nós de outras maneiras. As imagens serão, portanto, utilizadas como potencializadoras de nossos pensamentos e narrativas.

1.3 Questões Éticas da Pesquisa

O projeto de pesquisa foi submetido à Plataforma Brasil e aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Pedro Ernesto – UERJ, sob o número 642.493 (ANEXO A), visando à sua liberação pela Secretaria Municipal de Educação (SME). Seguindo os procedimentos obrigatórios, recebemos a autorização da 2ª CRE e da Escola Municipal Sérgio Vieira de Mello para darmos início à pesquisa no início do ano letivo de 2014. Esclarecemos, ainda, que todas as crianças participantes da oficina tiveram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (APÊNDICE A) assinado por seus responsáveis legais, após a leitura por todos, em reunião coletiva, do material e o esclarecimento de suas dúvidas sobre a oficina e a pesquisa. As criançaspraticantes, no primeiro encontro da oficina, também tomaram ciência de que as atividades seriam registradas, por escrito [caderno de campo] e por imagem [fotografias e vídeos], para serem utilizadas pela professorapesquisadora.

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2 DESINVISIBILIZANDO OS FAZERESSABERES DAS CRIANÇASPRATICANTES

Nas narrativas que se seguem, temos o objetivo de desinvisibilizar os pensaresfazeressaberes das criançaspraticantes do cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”. Não há a intenção de detalhar as atividades, indicando objetivos, materiais utilizados, tempo de duração, pois não se trata de apresentar planejamentos, nem considerar o trabalho realizado como experiência reprodutível. Trata-se de tornar visível e credível as artes de fazer dos sujeitos que experimentam, habitam e praticam este espaçotempo, criando currículos pensadospraticados com cor, sabor e cheiro. Ao realizarmos esse recorte do cotidiano que vivenciamos com as criançaspraticantes, escolhemos, como nos coloca Ferraço (2011), “as imagensnarrativas que se tornarão visíveis aos olhos” de nossos leitores, deixando de fora experiênciaspráticas outras que, em função de nossas redes, optamos por não trazer. Se fossem as crianças, as relatoras, provavelmente outras imagensnarrativas teriam adquirido relevo. Reforçamos, ainda, que as imagens entremeadas ao texto, não têm a intenção de provar a validade de nossas práticas, mas sim de potencializar as nossas falas e de falar por nós de outras maneiras. A partir desse momento farei uso da primeira pessoa do plural, não para me esconder na impessoalidade, mas para revelar a existência de uma rede de sujeitos e subjetividades que pensam e que praticam noscom os cotidianos, da oficina e da pesquisa, ainda que anonimamente. As experiências e práticas estão distribuídas em sete narrativas que, não necessariamente, aconteceram nessa sequência. Elas foram assim desenhadas em função dos seus desdobramentos e de suas afinidades, não tendo intenção alguma em ordená-las, classificá-las ou hierarquizá-las.

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2.1 Partes minhas, partes tuas, corpos nossos.

Figura 1 – Partes minhas, partes tuas, corpos nossos

Sempre que recebemos uma turma nova, procuramos acolhê-la com experiências corporais no início dos nossos encontros, com a finalidade de possibilitar uma maior consciência de si e um contato mais próximo com o corpo do outro. Propusemos uma atividade, muito comum em aulas de dança, na qual as crianças caminharam pela sala, em diferentes sentidos e direções e, ao parar a música, congelaram como se fossem estátuas. Na medida em que a atividade progredia, um novo desafio: ao parar a música, em duplas, trios, quartetos..., as crianças deveriam tocar a parte indicada no corpo do outro. Ou seja, testa com testa, ombro com ombro, pé com pé... E, aos poucos, na brincadeira, as crianças foram se soltando, ganhando mais confiança na sua relação com o outro. Ponto de partida, fundamental, para um grupo de crianças que ao longo do ano iria experimentar uma diversidade de possibilidades de conviver, habitar, praticar o espaçotempo da oficina “Corpo, Cor e Sabor”. Em duplas, demos sequência à atividade anterior, pedindo às crianças que tocassem partes do corpo no corpo do outro: antebraços, pés, pernas, costas... 41

Enfim, partes dos corpos que pudessem ser tocadas, apoiadas e observadas com a finalidade de identificarem semelhanças e diferenças quanto à forma, peso, tamanho. As crianças, após terem experimentado com o parceiro inicial, poderiam vivenciar a brincadeira com outras crianças se assim o desejassem. Muitas experimentaram com pares diversos, sendo possível ouvi-las comentando que uma parte ou outra era do mesmo tamanho, maior, menor, mais comprida, mais fina, mais pesada ... Um momento de descobertas de si e do outro. No encontro seguinte, depois dos contatos dos corpos no momento anterior, levamos para a sala uma fita métrica de parede, balança e muitos pedaços de barbantes. A proposta era: em dupla, cada um seria responsável por medir diferentes partes do corpo do outro, além da altura e do peso corporal. Anotariam tudo em um papel e depois conversaríamos sobre o que descobriram. Assim que falamos como seria realizada a atividade do dia, uma aluna na roda, levantou a mão e disse: “Professora! Você vai pedir para as meninas se pesarem? E se a gente não quiser mostrar o peso pra outra pessoa? Sabe como é mulher, né?”. Nesse instante pensei que as medidas poderiam, de fato, ser constrangedoras, ainda que não tivéssemos pretensão alguma de torná-las públicas; julgá-las ou fazer comparações. O que para nós seria apenas uma brincadeira, para algumas poderia ser coisa muito séria. Imediatamente, veio a imagem de uma menina da turma que, visivelmente, apresentava sobrepeso. Será que ela ficaria constrangida? Os (pré)conceitos meus e da menina, ou seja, o que trazíamos de nossas redes de saberes, práticas, valores e crenças já estavam a desestabilizar a prática prevista. Nesse intervalo de segundos, onde tudo passa rapidamente pela nossa cabeça, restou, a nós, responder que todas as atividades propostas seriam realizadas por quem quisesse. Cada um escolheria o que fazer; com quem fazer e como fazer. As meninas se olharam e ficamos na expectativa do que estaria por vir. Ainda em roda, perguntamos se as crianças já haviam se medido em algum lugar e pudemos perceber que a maioria tinha, por hábito, se pesar nas farmácias. Quanto à altura corporal, as crianças comentaram que não mediam há muito tempo e que estavam curiosas em saber se tinham crescido. Um menino logo disse: “Vai ser legal medir minha altura. Vou falar pra minha mãe. Ela me falou que eu estou crescendo rápido demais”. Nessa conversa inicial, aproveitamos para perguntar o que nos fazia crescer. Uma menina, imediatamente, respondeu: “Se a gente dormir e comer bem a gente 42

pode crescer mais”. Em seguida, outra resposta: “Se a mãe dela for alta, ela também pode ser”. E daí foram surgindo diferentes colocações, vindas de diferentes redes de conhecimento: “Sapato alto e chapéu deixa a gente alta”. “Basquete faz a gente crescer”, “Tem adulto que é baixo, tem adulto que é alto”. “A Alice come um doce e fica grande. Toma um líquido e fica menor.” E por fim, uma menina afirma nos perguntando: “Vocês sabiam que o ácido úrico pode deixar as pessoas baixas?”. As crianças, na roda de conversa, vão puxando fios de saberes de tantos lugares que atravessaram ou pelos quais foram atravessadas: saberes científicos, saberes de histórias infantis, saberes de família, saberes de pura inventividade... Terminada a roda de conversa [a qual se não fosse a nossa modernidade demasiada teria se estendido até o final do horário], explicamos e mostramos, com uma das duplas, como poderiam ser realizadas as medidas. Caminhando pela sala fomos, mais uma vez, nos surpreendendo com a desenvoltura e com o cuidado com que elas realizavam as medidas. Imaginávamos que não seria tarefa fácil medir as partes do corpo do amigo, com o barbante, e depois verificar a dimensão dirigindo- se até a fita métrica presa na parede. E elas, como dizem por aí, “tiraram de letra”. É lógico que as perguntas surgiam no momento de transcreverem as medidas para o papel: “Professora! Está errado. Ela tem 128 metros?” ou “Que número é esse que aparece depois do ponto aqui na balança, professora?”. Perguntas que, em alguns momentos, nos faziam pedir uma pausa geral, a fim de que a dúvida de uma criança pudesse vir a esclarecer as de todas. Surgem, ainda, outras perguntas: “A gente pode medir a nossa cabeça? O nosso pescoço?”. Se havíamos pensado em braços e pernas, as criançaspraticantes inventavam, a cada instante, uma nova parte a ser medida, comparada, conhecida.

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Figura 2 – Descobertas

Todas as crianças, inclusive a menina que nos questionou sobre a pesagem, bem como aquela que o meu apriorismo preconceituoso me fez, naquele instante, imaginar que não participaria, circulavam de forma alegre e curiosa mostrando e comparando os achados do seu corpo e do corpo do outro. Naquele dia, avançamos no horário da oficina, pois as crianças sempre pediam um minutinho a mais para medir uma parte ou outra que havia ficado de fora. Se conseguimos apressar a prosa inicial da roda, naquele momento não dávamos conta de finalizar o encontro.

Para o encontro seguinte combinamos, nós professorespesquisadores, que faríamos, em grupo, o contorno dos corpos. As crianças deitaram sobre o pano ou sobre uma folha de papel manteiga e tiveram seus corpos contornados pelo grupo. Deixamos claro, neste dia também, que cada uma participaria como quisesse: contornando o corpo do outro, deixando o seu corpo ser contornado, segurando o pano para não sair do lugar... Muitas são as funções que as crianças encontram quando, por um motivo ou outro, não se dispõem a fazer a proposta inicial. Não há, portanto, passividade no consumo daquilo que propomos o tempo todo. Muito pelo contrário, as criançaspraticantes fazem uso de táticas (CERTEAU, 2012) 44

desviacionistas e de resistência, burlando as propostas (im)postas. Além de criarem outras funções, pedem para beber água, ir ao banheiro – táticas astuciosas da rede de uma antidisciplina.

Figura 3 – Contornos

Esse corpo contornado e recortado do tecido foi, em um encontro posterior, preenchido com figuras de alimentos considerados, por elas, saudáveis [alimentos do bem] e não saudáveis [alimentos do mal].

Essa fala dualista12, trazida por eles, e muito presente nas histórias infantis, separa os alimentos do bem e do mal, associando o alimento com a presença de doenças que acometem seus pais, tios e avós.

No meio da negociação, entre colocar os alimentos [figuras que foram selecionadas em revistas em um momento anterior] no lado do bem ou do lado do mal, surgem falas antagônicas que mostram a possibilidade de matizes outras para os alimentos que comemos no nosso dia-a-dia: “Minha vó diz que ovo dá problema no coração. A gente pode morrer de doença do coração se comer muito ovo.” – fala

12 “Criamos categorias de alimentos – saudáveis e não saudáveis, convenientes e não convenientes, ordinários e festivos, boas e más, femininos e masculinos, adultos e infantis, quentes e frios, puros e impuros, sagrados e profanos etc. – e, por meio dessas classificações, construímos as normas que regem nossa relação com a comida e, inclusive, nossas relações com as demais pessoas, de acordo, também, com suas diferentes categorias” (CONTRERAS, J.; GRACIA, M., 2011). 45

de uma criança. Um menino rebate dizendo: “Dá problema se o ovo for frito, se for cozido não tem problema nenhum. Também não dá pra comer todo dia”. Uma criança, durante a negociação, se posicionou quando um colega colocou o achocolatado como um alimento do mal: “Como pode ser do mal, se comemos isto quase todo dia na escola? A escola ia dar um alimento do mal pra gente? Claro que não, né?” E o sorvete? Alimento, de um modo geral, adorado pelas crianças. Era do bem ou do mal? Algumas crianças disseram ser do bem porque era rico em cálcio. Outras disseram ser do mal porque era muito doce. O pão também transitou pelos dois lados: o pão francês era do bem, mas o doce era do mal. As carnes ora eram vilãs, ora eram mocinhas. Se fosse bife, peixe, filé de frango eram do bem, mas se fosse carne de porco, linguiça, certamente, eram do mal. As frutas e hortaliças tinham, contudo, lugar garantido no lado do bem. Quanto a elas não havia dúvidas: são alimentos saudáveis. Essas contradições, que também estão presentes no campo da ciência da nutrição, permeavam toda a discussão quando também entravam em cena outros elementos como o azeite e o sal. O primeiro ora do bem [era muito bom coração], ora do mal [muito gorduroso]. O segundo, na maioria das falas, era do mal porque estava sempre associado à pressão alta. Mas, uma criança instiga: “E se a pressão estiver baixa? Aí ele é do bem, né?”. As crianças estabeleceram um grande fórum de discussão trazendo, de suas redes de saberes, fazeres, valores, crenças, afetos e subjetividades, questões familiares, midiáticas e do cotidiano da escola para suas argumentações. Quando perguntamos de onde vinham tantos saberes, elas nos falaram que ouviam dos avós, das mães, dos pais e de dois programas de uma emissora de televisão – um com ênfase em culinária e outro no bem estar. Depois de preencherem os corpos recortados com os alimentos do bem [corpo saudável] e com os alimentos do mal [corpo não saudável], conversamos sobre o que poderia acontecer com as pessoas que se alimentavam desses diferentes tipos de alimentos. O binarismo surge, mais uma vez, na lógica da saúde e da doença. 46

Figura 4 – Preenchendo os corpos

Comer alimentos saudáveis, segundo as crianças, nos deixa fortes, com energia e com saúde. Aprendemos melhor, ficamos mais inteligentes. Comer alimentos não saudáveis nos deixa doentes. Podemos ter diabetes como a mãe; pressão alta como os avós; dor no peito como a madrinha ... Sempre há, em suas redes de família, a referência a uma doença relacionada [ainda que não obrigatoriamente] aos hábitos alimentares.

Seguindo a linha do bem e do mal, do saudável e não saudável, aproveitamos o período da eleição presidencial do ano de 2014 para lançarmos na oficina “Candidatos a alimento saudável”. Nesse sentido, as crianças se organizaram em grupos para definirem o seu candidato e, a partir daí, elaborarem suas campanhas. Fizeram textos, elaboraram cartazes, fizeram “santinhos”, criaram jingles e gravaram uma campanha para a TV. 47

Figura 5 – Tecendo conhecimentos

Como candidatos “presidenciáveis”, tivemos: maçã, uva, suco de laranja, laranja, tangerina, morango, banana, salada de frutas, suco de manga, suco de maracujá, suco de morango, tutti-frutti, brócolis, leite e água. Nesse momento, mais uma vez, fica evidente que, para as crianças, as frutas são, indubitavelmente, os alimentos mais saudáveis.

Vote no suco de maracujá. O maracujá quer cuidar da sua saúde. Vote no maracujá. Candidato que cuida de você e de sua família.

Vote no presidente brócolis, por um futuro saudável e sem gordura. Brócolis um presidente saudável. O presidente brócolis é um candidato limpo e saudável. Presidente brócolis, um futuro sem obesidade.

Vote no leite. O leite tem proteína e cálcio. Não é à toa que o bebê toma leite desde que nasceu. Leite o melhor candidato. Vote no leite 8998.

Vote na água. Ela é saudável. Ela é bonita e não deixa a garganta seca. Ela hidrata o nosso corpo. O nosso corpo tem 75% de água. Ela ajuda na limpeza do nosso corpo. Deixa a gente mais feliz. A maioria do mundo tem água.

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Vote no suco de morango. Ele é gostoso e saboroso. Tem muita vitamina C. Todas as crianças gostam porque é vermelhinho. Custa somente R$3,00.

Vote no tutti-frutti [suco]. Ele é delicioso. Ele tem todas frutas e vitaminas. Ele é bom para as crianças e para os adultos.

A banana tem muita vitamina e é saudável. A banana tem energia. Yes nós temos banana, banana menina tem vitamina, banana engorda e faz crescer.

Vote em salada de fruta. É o melhor. Não vote numa fruta qualquer, vote no conjunto das frutas.

O suco de laranja promete manter sua saúde. Ele tem vitamina A e C. Ele vai fazer bem para o seu organismo. Ele tem um visual lindo, seus olhos vão brilhar. Ele é natural. Ele é bom pra tudo. Quando você comer vai sentir o gosto da casca. Vote nele. Obrigado.

Pra presidente a maçã saudável 5225. Vote em mim, eu sou de confiança 5225. A maçã vermelhinha, a mais gostosinha. Você vai gostar, vai amar. Então, vote nela sem cansar.

As crianças teceram, coletivamente, conhecimentos sobre os seus candidatos e incorporaram nos seus textos de campanha falas que comumente ouvimos de políticos, além de saberes sobre os alimentos que pesquisaram em suas casas, em suas redes e nas tabelas nutricionais que levamos para a oficina. Saberes cotidianos também atravessados pela lógica do mercado e da ciência que, através do processo de medicalização13, vem encampando toda a experiência humana. Os “eleitores” são atraídos “a assumir o papel de consumidores no grande supermercado da saúde” (CAMARGO JR, 2013, p.845).

Em textos breves, tal como vemos nos horários eleitorais, as crianças conseguiram traduzir características nutricionais e sensoriais dos seus candidatos, fazendo algumas promessas possíveis, e outras nem tanto assim, aos seus eleitores. Qualquer semelhança, não é mera coincidência. É astúcia (CERTEAU, 2012)

13 Medicalização para Foucault diz respeito a imposição da medicina aos indivíduos como um ato de autoridade, onde o domínio de intervenção da medicina já não concerne apenas às enfermidades, mas à vida em geral (CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica, 2009).

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2.2 Encenando os cotidianos: as “artes de fazer” e as “artes de nutrir”

O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. Não se deve esquecer este “mundo memória”, segundo a expressão de Péguy. É um mundo que amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância, memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p.31).

Propusemos às crianças a encenação dos seus cotidianos. Num primeiro momento a cena do despertar até o chegar à escola. Num outro encontro, a cena da preparação e da realização de uma das refeições do dia em suas casas. Nesses dias de encenação, fomos todos para o teatro. Apostamos no palco e nas coxias como facilitadores do rememorar de um cotidiano que seria compartilhado em sua concretude. Pretendíamos que este espaço privado – o habitat de cada um, “lugar do corpo, lugar de vida” (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p. 205), fosse revelado a todos, especialmente para cada um que vive, habita e pratica os cotidianos em cena. Nesse espaço privado

[...] os corpos se lavam, se embelezam, se perfumam, têm tempo para viver e sonhar. Aqui as pessoas se estreitam, se abraçam e depois se separam. Aqui o corpo doente encontra refúgio e cuidados, provisoriamente dispensado de suas obrigações de trabalho e de representação no cenário social. Aqui o costume permite passar o tempo “sem fazer nada”, mesmo sabendo que “sempre há alguma coisa a fazer em casa”. Aqui a criança cresce e acumula na memória mil fragmentos de saber e de discurso que, mais tarde, determinarão sua maneira de agir, de sofrer e de desejar (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p. 205).

Assim que entramos no teatro, pedimos para que tirassem seus sapatos, subissem ao palco e deitassem, como se ainda estivessem dormindo em suas casas, em suas camas. Pedimos, inclusive, que tentassem se posicionar na forma que usualmente dormiam. Presenciamos, assim, corpos diferentes, fazendo desenhos e contornos únicos sobre o chão. Corpos que se abraçavam; pernas que se sobrepunham ao corpo do outro. Apoios e contatos que marcavam a diversidade e a singularidade de um “modo de fazer” cotidiano. Ao dormir fomos acrescentando o despertar e a este os fazeres que o sucediam. Cada um, na memória de sua cotidianidade, foi nos apresentando as 50

suas maneiras de fazer e de sua família. Era possível vê-las dormindo; acordando; espreguiçando; escovando os dentes; tomando o banho; penteando os cabelos; calçando os sapatos... Maneiras de fazer que iam se diferenciando pelos gestos, pelo ritmo, pela sequência... No “invisível cotidiano”, sob o sistema silencioso e repetitivo das tarefas cotidianas feitas como que por hábito, o espírito alheio, numa série de operações executadas maquinalmente cujo encadeamento segue um esboço tradicional dissimulado sob a máscara da evidência primeira, empilha-se de fato uma montagem sutil de gestos, de ritos e de códigos, de ritmos de opções, de hábitos herdados e de costumes repetidos (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p. 234).

Estas maneiras de fazer, de cada um, foram repetidas algumas vezes com a intenção de que as crianças pudessem ir se apropriando, mais conscientemente, do que por hábito executavam no seu cotidiano. Algumas crianças mantinham a mesma sequência, outras alternavam os fazeres da encenação anterior. Era possível observar, ainda, crianças que executavam, na mesma encenação, duas vezes o mesmo fazer cotidiano. Dando sequência à encenação, pedimos para que as crianças se organizassem em grupos para conversarem a respeito do que encenaram e, a partir daí, criarem coletivamente a cena daquele fragmento do cotidiano: do despertar ao chegar na escola. Observar a construção coletiva da cena nos permitia ouvir as narrativas do cotidiano das crianças e de suas famílias. As crianças relatavam com quem dormiam; como dormiam; quem as acordava; se tomavam banho; se escovavam os dentes; se tomavam café-da-manhã; com quem tomavam; quem preparava a primeira refeição do dia; como iam para a escola...As narrativas do cotidiano iam sendo tecidas, articuladas e entrecruzadas a fim de que, coletivamente, construíssem a cena. A cena final desta trama cotidiana era um híbrido das narrativas do cotidiano de cada criança que se dispôs a contar um pouco de sua história. Esta construção coletiva também era fruto de muitas negociações, onde os personagens eram aceitos, recusados, entrelaçados e hibridizados. Alguns grupos conseguiam colocar em cena um pouco do cotidiano de cada componente, em outros prevaleciam as ações cotidianas das crianças mais articuladas, com maior poder de convencimento sobre o grupo. 51

Era possível perceber na construção da cena final, de cada grupo, uma mistura de realidade e de desejo, pois, se em alguns relatos havia a ausência de fazeres e de familiares, nas cenas, as ausências podiam se fazer presentes. Essas articulações entre a realidade em que se vive e aquela em que gostaria de se viver, nos remeteu à fala de Augusto Boal14 quando ele nos diz que

Uma das principais funções da nossa arte é tornar conscientes esses espetáculos da vida diária onde os atores são os próprios espectadores, o palco é a plateia e a plateia, palco. Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver tão habituados estamos apenas a olhar. O que nos é familiar torna-se invisível: fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida cotidiana (BOAL, 2009).

Pensar e encenar os seus cotidianos, permitiu às crianças criarem cenicamente alternativas para vivê-los de outras maneiras. As presenças se fizeram ausências. As ausências transformaram-se em presenças (SANTOS, 2010a).

Figura 6 – Casal em cena

Na cena, o casal dormindo, que em seguida acorda para chamar seus filhos dando sequência ao banho, ao escovar os dentes, ao tomar café, ao trocar de

14 As citações do dramaturgo foram extraídas de seu discurso proferido, no dia 27 de março de 2009 - Dia Mundial do Teatro, em Paris, quando homenageado pela UNESCO. 52

roupa... Não necessariamente nessa ordem. A mãe, enquanto isso, prepara o café, coloca a mesa e chama a todos. Em outro grupo, é possível perceber a correria da manhã. Todos falando e correndo pela casa; tomando café às pressas e saindo correndo para não perder o ônibus. Este, construído em cena, leva as crianças até a escola. Se ao ouvirmos alguns relatos de crianças que acordam sozinhas e preparam o seu próprio café da manhã, em cena há sempre alguém que acorda, que acolhe e que cuida. Ainda que a cena final seja fruto de negociações, as crianças, que vivem a realidade que não se quer viver, podem optar [ou não] pela cena alheia. Num encontro seguinte, um novo desafio: criar cenas coletivamente, a partir das narrativas do grupo a respeito de uma refeição elaborada e partilhada em casa. Essas cenas nos permitiram conhecer um pouco do cotidiano de cada um, um pouco do cotidiano desejado por cada um. As cenas nos mostraram as diferentes configurações familiares e a distribuição de tarefas entre os componentes da casa. Ainda que um hibridismo de realidade e de fantasia componha a cena, podemos ver a presença feminina sempre com a responsabilidade pelas tarefas domésticas. Em cena, a arte de cozinhar, as “artes de nutrir” (CERTEAU, 2011), dizia respeito, principalmente, ao papel das mulheres. A estas cabia a tarefa de comprar e preparar as refeições para a família, ainda que trabalhassem fora. À irmã cabia a tarefa de esquentar a comida no micro-ondas [deixada pronta pela mãe no dia anterior], para seus irmãos. Aos pais, aos filhos, aos irmãos, ou seja, aos componentes familiares do sexo masculino cabia a tarefa de aguardar o momento de nutrir-se. As meninas, ao assumirem em cena o papel de mães, avós, madrinhas, reproduziam gestos das mulheres de sua casa cozinhando o feijão, batendo o bolo, passando o café, varrendo a casa, lavando a louça, cuidando das crianças. Nas cenas, portanto,

O gesto se decompõe numa sequência ordenada de ações elementares, coordenadas em sequências de duração variável segundo a intensidade do esforço exigido, organizada segundo um modelo aprendido de outra pessoa por imitação (alguém me mostrou como fazer), reconstituída de memória (eu a vi fazer assim), ou estabelecida por ensaios e erros a partir de ações vizinhas (acabei descobrindo como fazer) (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p.273).

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Em uma das cenas foi possível identificar: três mulheres [três meninas], um homem [um menino], três crianças [dois meninos e uma menina] e um cachorro [menina]. A avó materna, com perda de memória, varria a casa sem parar e suas duas filhas tentavam preparar o jantar enquanto as crianças corriam pela sala em companhia do cachorro. As mães das crianças pediam, aos berros, silêncio, mas a correria continuava. As mães discutiram entre si, pois uma delas imputou ao sobrinho a responsabilidade pela bagunça da casa. No meio da confusão, o marido de uma delas chegou do trabalho e disse: “Estou cansado. Vou para o quarto. Quando o jantar estiver pronto, me chama.” O óleo de cozinha acabou e deu início a uma nova confusão: quem daria o dinheiro para comprar na venda vizinha? Uma das crianças interferiu na discussão e disse: “Madrinha! Se você quer comer, tem que pagar. Minha mãe já comprou o arroz.” Cardápio do jantar: arroz, feijão, batata, cenoura e carne. Numa outra cena: duas mulheres [duas meninas], duas crianças [um menino e uma menina], um homem [um menino]. Os pais chegam do trabalho e encontram seus filhos, uma menina e um menino, que estavam sendo cuidados pela babá em casa. Todos se abraçam e se beijam, e a mãe vai até a cozinha preparar o jantar. Jantar pronto e todos sentam à mesa. Macarronada com molho de carne moída e suco de uva. A mãe avisa ao filho mais velho: “Se não comer tudo, está de castigo. Vai ficar sem comer bala de caramelo”. Ainda, em cena: uma mulher [uma menina] e três crianças [um menino e duas meninas]. A mãe acorda; dirige-se para a cozinha; prepara o almoço e sai para o trabalho, enquanto os filhos ainda dormem. Ao acordarem, as crianças preparam seus pratos e os aquecem no micro-ondas. Em seguida, sentam a mesa e almoçam, juntos, enquanto a mãe trabalha. Nas cenas dos cotidianos, onde tudo se entrecruza – afetos, memórias, gestos, poderes, saberes, ignorâncias, ausências, presenças, ordem, desordem, plateia, espectadores, desejos, as crianças praticantes, (re)inventam suas histórias e iluminam o palco da vida, pois como nos aconselha o dramaturgo

[...] temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com as nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida. [...] façam suas peças vocês mesmos e vejam o que jamais puderam ver: aquilo que salta aos olhos (BOAL, 2009).

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2.3 “No tempo em que a televisão mandava no Carlinhos”

“No tempo em que a televisão mandava no Carlinhos”, de autoria de Ruth Rocha15, foi um daqueles livros que não podíamos deixar de compartilhar com as crianças, pelo simples fato de ser de quem é e por abordar o tema alimentação, nutrição e saúde. Tínhamos dúvidas se as crianças gostariam do livro e se este aguçaria as curiosidades, as reflexões e os diálogos que desejávamos que acontecessem. Mais uma vez, as criançaspraticantes refutam os nossos apriorismos, nos fazendo pensar na potência do diálogo entre os diferentes saberes e as diferentes linguagens. Optamos por fazer uma leitura coletiva, projetando as páginas do livro na parede da sala de vídeo. Combinamos, logo no início, que a leitura seria realizada por quem se voluntariasse e que gostaríamos que cada página fosse lida por uma criança diferente. Umas leram com mais desenvoltura, com uma projeção de voz maior, outras leram mais devagar, mais baixinho, requerendo outro tipo de escuta e atenção. Foi um exercício de respeito às diferenças para todos nós. A projeção da imagem, por sua vez, permitiu que as crianças ficassem mais atentas à leitura do outro. No início, poucas crianças se voluntariaram, mas na medida em que a leitura prosseguia, foram aparecendo outros leitores, inclusive aqueles que, pelo nosso costumeiro apriorismo, não esperávamos que fossem se candidatar. Ao longo da leitura, era muito comum ouvir comentários sobre a história, perguntas, risadas e, sempre que possível, parávamos para conversar sobre o assunto. A primeira parada foi logo no início:

Com o Batata aconteceu uma coisa engraçada. Pelo apelido dele você pode imaginar como ele era gorducho. [...] Carlinhos já ganhou um montão de apelidos: Bola, Bolinha, Bolão, Bolacha, Gordo e, como eu já disse, Batata (ROCHA, 2000, p. 6 e 11).

Batata, apelido do gorducho Carlinhos, foi motivo de conversa assim que uma criança se pronunciou dizendo: “Isso é bullying”. E daí como um fio puxa o outro, começaram a falar de seus apelidos – dos que gostavam e dos que odiavam; do bullying que já haviam sofrido e daqueles que já fizeram.

15 Ruth Rocha, escritora brasileira premiada e membro da Academia Paulista de Letras, escreveu cerca de 45 livros infantis. Sua obra “Marcelo, Marmelo e Martelo” vendeu mais de um milhão de exemplares e “Escrever e Criar” recebeu, em 2002, o prêmio Jabuti. 55

Uma criança, que tinha problemas de relacionamento com a turma e que, muitas vezes, se mostrava arredia em se integrar logo no início, foi se chegando, aos poucos, quando começamos a leitura. No momento da história em que surgiram outros apelidos, além do Batata, a menina se manifestou falando de amigos que já sofreram bullying e a turma, trazendo para si a responsabilidade do ato, apontou palavras com as quais a nomeavam cotidianamente: bruxa, fedida, feia... Iniciamos, por conta disso, uma conversa mais pontual na tentativa de fazer com que todos percebessem o quanto as palavras são capazes de ferir, magoar, diminuir, desqualificar, alguém que merece o nosso respeito e o nosso cuidado, ainda que pensem e façam coisas que não nos agradam. Um menino comentou que, porque usava óculos, recebeu o apelido de ET [extraterrestre] dos amigos de sua rua e que não gostava nem um pouco disso. Outra menina disse que a chamavam de magrela, mas que ela adorava, diferentemente, de uma amiga, sentada ao seu lado, que disse odiar. Uma menina comentou que seu pai a chamava de “cor delícia” e que ela gostava muito. E no meio da conversa, surgiram apelidos dos amigos da rua, dos familiares, de conhecidos de outros lugares. Continuamos a leitura e, de repente, mais um alvoroço: a geladeira do Batata. Ao se depararem com a imagem da geladeira, as crianças falaram: “Por isso que ele está gordo, na geladeira só tem besteira: catchup, bolo, refrigerante... Ele não come frutas nem legumes”. As crianças se dirigiam até a projeção da imagem para tentar decifrar quais eram aqueles potes, latas, garrafas, que ocupavam toda a geladeira do Batata. No livro a autora deixa claro, pelo próprio título, que Carlinhos – o Batata, queria tudo que ele via anunciado pela televisão. A televisão, literalmente, mandava no Carlinhos. Ele queria

Queijinho que vale por um bifinho, achocolatado da Miúcha, macarrão da Patrícia, milquecheique do Bubu, pipoca do Gatinho, biscoito do Xuxu, Coca-bola e tudo! Acho que ele nem sabia se era gostoso ou se era uma porcaria. Era só mania de ir atrás do que a televisão dizia (ROCHA, 2000, p.8).

Surge, assim, mais uma curiosidade: quem também tinha mania de ir atrás do que a televisão dizia? Umas diziam que sim, outras diziam que não. Mas na medida 56

em que a conversa prosseguia sempre falavam em um produto ou outro que a vontade de experimentar aparecia junto com o que a televisão mostrava.

É difícil ver a propaganda do McDonald’s e não ter vontade de comer aquele sanduíche”, disse uma menina. E o Girafas? E o Bob’s? E o Habib’s? E a Coca-cola? Lá em casa quando a gente vê aquela propaganda da Coca-cola, dá vontade de ir na venda comprar uma.

Vão surgindo, nas falas das crianças, as grandes marcas, as grandes redes de fast-food, as promoções, os brindes, as caixinhas... E assim aproveitamos para perguntar: Quem vai a essas lanchonetes? Todos, com pouquíssimas exceções, levantaram as mãos. Alguns diziam que iam todos os dias, o que nos fez suspeitar da veracidade do comentário, não somente por conta da rotina, mas também pelo valor dos produtos das redes. Comer, todos os dias, nessas redes pode significar, para muitos, um status social. Isso nos remeteu a outro encontro que tivemos, quando uma criança comentou que sua colega de sala levava frutas para a escola, mas comia escondida no banheiro. Ao questionar o porquê de tal atitude, ela responde: “Vergonha. Todo mundo traz biscoito e ela traz fruta”. Ainda que a escola ofereça merenda, levar o seu próprio lanche, preferencialmente, os processados [embalados e coloridos], pode significar para algumas crianças e suas famílias uma distinção social, tal como nos revela Bourdieu ao descrever as condutas de cultivo da diferença nas diversas esferas da vida em sociedade, desde a linguagem, inclusive a do corpo, à alimentação.

[...] o gosto é o princípio de tudo o que se tem, pessoas e coisas, e de tudo o que se é para os outros, daquilo que serve de base para se classificar a si mesmo e pelo qual se é classificado (BOURDIEU, 2008, p. 56)

Aos poucos todas foram percebendo que, mesmo sem termos consciência, também somos influenciados em nossas escolhas de comer isto ou aquilo pelas propagandas da televisão. Um menino levantou, também, a seguinte questão: “A propaganda não faz a gente só querer comprar comida, ir ao McDonald’s. Ela faz a gente querer comprar brinquedos e roupas também”. Surgem, assim, novas falas sobre as propagandas nos intervalos dos desenhos animados e dos programas infantis. Muitos foram os anúncios que, nós professores, não fomos capazes de reconhecer, da mesma forma em que elas não reconheceram, no texto do livro, a 57

expressão “queijinho que vale por um bifinho” – que faz menção a uma propaganda bem popular de uma época em que eles nem eram nascidos. No decorrer da história, Batata vai engordando, engordando...

D. Mariquinhas, que é a mãe dele, vivia querendo que ele comesse verduras, legumes e frutas. Mas se tinha na mesa tomate e linguiça, o que é que você acha que ele comia? (ROCHA, 2000, p. 10).

Logo, uma criança se pronuncia: “Ih! Lá em casa é a mesma coisa. Minha mãe não come fruta, mas quer que eu coma. É engraçado, né?”. Em seguida, um menino: “Meu pai quer que eu tome suco no jantar, mas ele toma refrigerante”. Muitas são as incoerências presentes nas famílias e nas escolas16, como, por exemplo, as escolas receberem, como é comum, o “Ronald Mcdonald e sua turma” em eventos especiais. Ainda fazemos uso do lema “faça o que eu mando e não o que eu faço”. Como diz, Paulo Freire, “as palavras a que falta a corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem” (FREIRE, 1996). Incoerências, que, ao serem percebidas pelas crianças, abrem brechas para que elas, silenciosa e astuciosamente, comam à sua maneira, ainda que saibamos que muitas dessas “maneiras de comer” são fruto do investimento publicitário das grandes indústrias de alimentos. Carlinhos, cansado de ser chamado de Batata e de tantos outros apelidos,

resolveu fazer regime, sem falar com ninguém. Assim como ele comia tudo o que a televisão mostrava, resolveu também fazer o regime que a televisão mandava” (ROCHA, 2000, p. 12).

Após a leitura, a mesma menina que acabara de ler falou: “Minha mãe já fez regime. Dieta, né? Dieta da sopa. Só tomava sopa”. Muitas crianças começaram a falar que as mães, as avós, as tias, já tinham feito dieta para emagrecer. “Até a professora já tinha feito”. - uma menina comentou. Outra menina relatou que, como estava com o colesterol alto, também teve que fazer dieta. Ou seja, as palavras dieta e regime já faziam parte do repertório das crianças e de suas práticas cotidianas, bem como, da de seus familiares. Carlinhos viu um anúncio de uma tal Gororoba Dois Mil, o melhor regime do Brasil, importado dos Estados Unidos, e

16 A escola das crianças costumava receber o “Ronald Mcdonald e sua turma” em eventos especiais. 58

[...] não teve dúvidas: encomendou pelo telefone. Por que será que tem tanta porcaria que a gente pode encomendar por telefone? (ROCHA, 2000).

Bastava a leitura de uma nova página, para as crianças trazerem fatos das suas casas, dos seus cotidianos e de suas redes de saberes e fazeres: “Eu já encomendei porcaria pelo telefone! Comprei pizza. Eu e meu irmão. Meus pais nem viram” – comentou um menino. “Eu já pedi comida japonesa lá da rua de cima!” – disse uma menina. “A minha mãe já comprou uma panela pelo telefone” – falou outro menino. Cada um, aos poucos, foi lembrando de uma coisa ou outra que já havia comprado pelo telefone. Alguns estimulados pela televisão, outros por saberem que na geladeira estavam os imãs da pizzaria e do japonês da rua de cima. Tudo propaganda. O Batata, ou melhor, o Carlinhos

passou a tomar a Gororoba duas vezes por dia. Tinha sabor chocolate, sabor morango, sabor baunilha e sei lá mais o quê (ROCHA, 2000, p. 16).

E as crianças, mais uma vez, não deixaram a informação escapar: “Ah! É um pó que mistura com água. Minha mãe já comprou na farmácia. É ruim pra caraca. E ela nem emagreceu”. Continuando a história, Carlinhos, com o tempo, passou a ficar cansado, com dores de cabeça, de barriga e enjoo. Seus pais descobriram o tal regime e o levaram ao médico. O médico ficou furioso e perguntou:

Como é que as autoridades permitem essa propaganda mentirosa?

Ao perguntarmos às crianças se elas conheciam propagandas mentirosas, foram unânimes em dizer que sim. Algumas fizeram questão de explicar: “Sabe aquela panela que minha mãe comprou por telefone? Ela prometia fazer comida sem gordura, mas tem gordura do mesmo jeito”. Um menino comentou: “É igual àquele produto que diz que vai tirar a mancha, mas ela não sai”. “Aquele sanduíche na televisão é grandão, mas quando a gente compra é bem diferente”. As crianças foram trazendo produtos, cujas propagandas são veiculadas pela televisão, que ao serem adquiridos pela família não faziam o que prometiam ou não eram, exatamente, o que aparentavam ser. 59

Em seguida uma criança levanta e diz:

O Carlinhos foi enganado pela Gororoba Dois Mil porque na embalagem tinha uma porção de meninas de biquíni que tinham emagrecido 200 quilos. Eles [a criança se refere à televisão] usam o computador pra mostrar que as pessoas emagreceram. É tudo enganação.

No livro, a autora confere ao médico a responsabilidade pela dieta de Carlinhos:

O médico passou um regime pro Carlinhos de bife, frango, peixe, verduras, legumes [...] (ROCHA, 2000, p.20).

Nesse momento, sentimos a necessidade de perguntar às crianças se elas conheciam outro profissional que, dentre outras funções, era, de fato, o responsável por elaborar dietas. Muitos não sabiam, mas aquela menina que já havia comentado que tinha feito uma dieta por conta do colesterol elevado, disse que foi a uma nutricionista por orientação médica. Essa experiência de uma das crianças nos permitiu explicar as atividades e a importância da/do nutricionista que, por descuido, não havia aparecido na história. O médico prescreveu uma dieta para toda a família, argumentando:

Como é que vocês querem que criança coma alface enquanto os outros comem feijoada? Que coma frutas enquanto os outros comem pudim? [...] é bom que todo mundo entre no regime. E nada mais de seguir conselho dos anúncios da televisão (ROCHA, 2000, p. 22).

Uma criança retoma o início da história e anuncia: “Vão ter que mudar toda aquela geladeira!”

No final da história

É bom ver televisão, mas é preciso lembrar: todo mundo tem cabeça que serve para pensar! (ROCHA, 2000).

Aplausos das crianças. Elas adoraram o livro! Ruth Rocha, conhecedora da gente miúda, parece também conhecer os escritos de Paulo Freire, pois, através de sua linguagem literária, ela pratica algumas falas do educador. Corporifica, de certa maneira, as suas palavras.

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A alfabetização em televisão não é lutar contra a televisão, uma luta sem sentido, mas como estimular o desenvolvimento da curiosidade e do pensar críticos. Como desocultar verdades escondidas, como desmitificar a farsa ideológica, espécie de arapuca atraente que facilmente caímos. Como enfrentar o extraordinário poder da mídia, da linguagem da televisão, de sua “sintaxe” que reduz a um mesmo plano o passado e o presente e sugere que o que ainda não há já está feito (FREIRE, 2014a, p. 126).

Aplausos para as criançaspraticantes que (re)inventam, a cada dia, a oficina com as suas “maneiras de viver”. Motivados por suas inquietudes e curiosidades, propusemos uma oficina da propaganda. Conhecedoras de uma variedade delas, muito mais do que podíamos imaginar, as crianças foram trazendo falas, músicas, personagens, personalidades, enfim, todos os detalhes. Projetamos, assim, algumas propagandas e pedimos para que as crianças fossem observando o que chamava sua atenção. As crianças apontavam as músicas, os lugares, as pessoas bonitas e alegres, a bebida refrescante, o sanduíche saboroso, os brinquedos [brindes]. Muitas foram as minúcias percebidas por elas. Em algumas propagandas, chegavam a cantar a música em coro e pediam para repetir. Nesse caminho, pedimos para que elas deixassem de ser espectadoras e se tornassem criadoras dos produtos e de suas propagandas, tentando pensar em todos os detalhes que fariam da criança uma provável consumidora. Em grupos, criaram os produtos, construíram as embalagens e roteirizaram uma propaganda que foi encenada, gravada e apresentada à turma. Tudo muito simples, em função, obviamente, dos nossos limites técnicos e estruturais. Na verdade, não estávamos em busca do produto final, mas das maneiras processuais de fazerpensar coletivamente sobre a linguagem e as estratégias utilizadas pelas indústrias de alimentos. Os diálogos, entre os diferentes saberes dos componentes do grupo, iam permitindo ao outro, com suas ignorâncias parciais, (re)conhecer detalhes, estratégias, que ainda não tinham conseguido perceber. As embalagens dos produtos criados tinham sempre desenhos coloridos e os nomes, ainda que diferentes dos produtos do mercado, apresentavam sufixos bem semelhantes. Araritos, Frititos, Pinguinos, Lobits, Docitos são alguns exemplos de biscoitos criados pelas crianças. Nas propagandas, os atores falavam sobre o sabor [ou se deliciavam experimentando]; a textura [a maioria crocante] e as propriedades nutricionais [ricos em vitaminas]. Nas cenas, sempre um fundo musical, pessoas felizes, sorrindo, brincando. Em algumas propagandas, menção aos brindes e 61

promoções especiais. No dia da gravação, por iniciativa própria, as crianças trouxeram de casa figurinos de festas como vestidos, blusas e sapatos.

Figura 7 – Produtos inventados

As criançaspraticantes, com suas maneiras de fazer, inventaram pequenas cenas de comerciais que retratavam diferentes estratégias utilizadas pelo marketing publicitário para atrair o público infantil. É possível que, ao se colocarem no lugar do poder, articulando saberes que visam o domínio do outro, as crianças possam captar e utilizar as brechas e as falhas para dos poderes, astuciosamente, escaparem. São as táticas dos praticantes ordinários. A arte do fraco, como nos ensinou Certeau (2012).

2.4 Sete saquinhos de açúcar: você sabia disto?

Esta foi a descoberta mais impactante proporcionada às crianças pelo documentário “Muito além do peso”17. “Como assim? Sete saquinhos de açúcar

17 O documentário “Muito Além do Peso” (84 min, censura livre), lançado em 2012, discute a alimentação e a obesidade infantil, envolvendo a indústria, a publicidade, o governo, a família e toda a sociedade. 62

dentro de uma latinha de coca-cola?” – falaram em voz alta algumas crianças durante a projeção do documentário. Se estávamos em dúvida se o documentário estaria um tom acima do que as crianças poderiam capturar, mais uma vez nos enganamos quanto à necessidade de linearidade para se aprenderensinar. Elas, através de suas falas, dos seus burburinhos, dos seus olhares, nos deixavam indícios (GINZBURG, 1989) do quanto estavam atentas e capturando, cada uma a sua maneira, as informações apresentadas em diálogo [entrevistas], gráficos, imagens, propagandas. Antes de iniciarmos a projeção, distribuímos papel, lápis e prancheta, para que cada uma, individualmente ou em dupla, fosse anotando aquilo que tinha achado mais interessante. Combinamos, ainda, que após o término todos [se assim desejassem] teriam a oportunidade de ler ou falar com a turma sobre as suas impressões frente ao documentário: o que gostou; o que não gostou; o que achou curioso; o que já sabia; o que de novo descobriu... Durante o documentário, fizemos algumas pausas a pedido das crianças para traduzir algumas falas em inglês [cujas legendas passavam rápido demais]; para deixar alguns gráficos [repletos de números e figuras], por mais tempo; para observarem mais detalhadamente e anotarem em seus papéis ou para que voltássemos um pouco para ouvirem/verem melhor o que tinham perdido. As crianças estavam, de fato, interessadíssimas. Eram muitas anotações e muitos burburinhos que iam, cada vez mais, aumentando a nossa curiosidade a respeito do que elas estavam sentindopensando sobre o documentário. Em função do tempo da oficina, não conseguimos chegar até o fim do documentário. Comunicamos às crianças que iríamos ter que interromper a projeção e que guardaríamos os seus escritos para o próximo encontro. Foram muitas reclamações e pedidos para irmos até o fim, mas combinamos que continuaríamos na próxima aula. Algumas crianças perguntaram se poderiam ver em casa - pelo celular, tablet ou computador, e demos a elas o link para ser acessado. No encontro seguinte, chegamos com o que chamamos de plano B, ou seja, com outras possibilidades para além de assistir o documentário, caso não fosse mais o interesse da turma. Nos enganamos, mais uma vez. Alguns conseguiram ver em casa com os pais, irmãos ou primos, mas, a grande maioria, terminaria de ver

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naquele dia. E os que já tinham visto, estavam dispostos a ver novamente. Um menino, inclusive, comentou que ver no tablet não era tão legal quanto ver no telão [na parede da sala]. Devolvemos as pranchetas com os papéis e lápis e demos continuidade ao documentário do ponto em que havíamos parado. Ao término da projeção, as crianças puderam falar/ler para a turma sobre aquilo que ficou mais evidente, que chamou mais a atenção, conforme havíamos combinado no encontro anterior. Reproduziremos alguns recortes das falas com o intuito de tornar visível a diversidade de informações que as criançaspraticantes capturaram e compartilharam ao assistirem “Muito além do peso”.

Figura 8 – (Com)partilhando saberes

Ficou evidente que o consumo excessivo de açúcar por crianças, bem como a presença do mesmo em alimentos comumente consumidos por elas, foi a descoberta mais impactante que o documentário proporcionou. As crianças, para além de reproduzirem o que ouviram/leram, ressignificaram as informações e estabeleceram conexões com os seus familiares e com a vida cotidiana.

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O médico explicou que uma coca tem sete sacos de açúcar. Eles colocaram os desenhos nas embalagens e os brinquedos pra motivarem as crianças a consumirem, não deixando a gente perceber a quantidade de açúcar. Os brinquedos disfarçam o consumo excessivo de açúcar, sabia? Dentro de uma lata de coca tem sete saquinhos de açúcar. Vocês sabiam? O brasileiro consome cerca de 51kg de açúcar por ano. Na tabela nutricional do restaurante fast food não consta a palavra açúcar. Ela é substituída pela palavra carboidrato. Um todinho tem seis sacos de açúcar. As crianças gostam muito de coca-cola porque tem muito açúcar. As crianças bebem mais refrigerante do que água. Tinha uma menina que tinha açúcar no sangue igual ao meu avô. Uma menina de 11 anos bebe coca-cola todos os dias.

Nesse recorte de escritosfalas não temos a pretensão de fazer análises e, muito menos, emitir juízo de valores. Temos como objetivo tornar visível o que foi capturado e compartilhado pelas criançaspraticantes ao assistirem “Muito além do peso”. É possível, contudo, perceber, em alguns escritosfalas a seguir, a ideia de culpa e de responsabilidade pelas escolhas e suas consequências. As crianças e seus responsáveis tornam-se, no discurso do autocuidado, das tecnologias de si mesmo (FOUCAULT, 2010), “responsáveis pela gestão de riscos socialmente gerados” (CASTIEL; DIAZ, 2007).

As crianças se interessam pelas comidas que tem brinquedo. Muitas crianças se jogam para comer besteiras como biscoitos, chocolates... Se todas as crianças continuarem comendo assim vão ficar com diabete. As crianças compram biscoito porque tem brinquedo dentro. Muitas crianças gostam de comer biscoito por causa dos personagens. Crianças ficam obesas porque comem muita besteira. A pessoa vai comendo e depois vão botando apelidos horrorosos. A maioria das crianças obesas morre de doenças do coração. O coração de uma criança de 4 anos tem problema. O menino tem falta de ar na hora de dormir. Falava de um menino que trocava lápis e borracha por comida. Tem criança que não consegue correr por causa da gordura. As crianças passam 3 horas na escola e 5 horas de frente pra televisão. As crianças brasileiras ficam muito tempo na televisão. 65

Crianças na frente da TV se viciam nos comerciais de chocolate, hamburger, coca-cola... eu acho que o problema é a gordura e o açúcar.

Algumas crianças, em seus escritosfalas, também mostraram o desejo de compartilhar seus saberes e suas descobertas com seus familiares deixando claro que

Seria muito bom que os pais pensassem sobre isso.

Nossos pais não sabem disso.

Estimuladas pelo vídeo, no encontro seguinte, algumas crianças, em momentos distintos, nos abordaram com os seguintes comentários:

Hoje eu vi o pacote de fandangos vazio do meu irmão e como eu sabia que hoje tinha a nossa aula, eu olhei lá e vi que tinha um ácido. Ácido... Ah! Esqueci o nome do ácido. Professora! O miojo e os sucos de caixinha é pura ciência, pura química. Esse suco tem corante. Eu li na latinha da coca que ela tem aromatizante. Procurei a quantidade de açúcar no Todinho e não achei. Professor! Você toma muito café. Você sabia que café tem muita cafeína? Vou olhar no café lá de casa a quantidade.

Uma semana depois, as crianças ainda estavam “contaminadas” pelo que viram e ouviram no documentário, nos trazendo as suas curiosidades que, aos poucos, iam se criticizando (FREIRE, 1996). Curiosidades que as impulsionavam, e a nós também, para novas descobertas, novos saberes. Instigados pela curiosidade das crianças, propusemos que, no encontro seguinte, nos tornássemos detetives de alimentos. As crianças se dividiram em pequenos grupos, com o intuito de investigarem todas as informações presentes nas embalagens. Trouxemos para “análise” biscoitos doces e salgados, sucos em caixinha, refrigerante, mate, achocolatados, ou seja, os alimentos que com frequência víamos em suas mãos na hora do recreio. Alimento sobre a mesa, folha e papel na mão e olhares bem atentos. As crianças anotaram muitas informações: nome; ingrediente; composição nutricional; 66

validade; número do lote; tipo de embalagem [cor, desenhos, sons que produz]... Foram muito detalhistas em anotar tudo o que viam – como devem ser os detetives, mas tinham dúvidas sobre o que, de fato, queriam dizer letras e palavras como kcal, kj, carboidratos, gorduras saturadas e muitos outros nomes que complicavam ainda mais o trabalho.

Figura 9 – Em busca dos indícios

Anotações feitas, hora de compartilhar. Cada grupo teve um tempo para apresentar às outras crianças o que puderam descobrir com a sua investigação. Muitos números, muitas palavras, muitas dúvidas e muitas curiosidades. Ao compartilhar as informações do produto de seu grupo, uma menina comenta: “As pessoas que fazem essas embalagens escrevem os números bem pequenos pra que a gente não veja as besteiras que ele tem”.

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Figura 10 – Decifrando

Instigadas pelo documentário, as crianças estavam interessadas em saber o quanto de açúcar, em saquinhos, tinha nos biscoitos e nas bebidas, uma vez que no rótulo, elas encontravam apenas as gramaturas e os percentuais. As crianças queriam ver/pegar/sentir a quantidade de açúcar presente naqueles alimentos. E como de um fio puxamos outro, capturamos os indícios (GINZBURG,1989) deixados pelas criançaspraticantes e pensamos numa atividade que permitisse a dosagem de açúcar de alguns alimentos. Reunimos, assim, para o encontro seguinte, alguns alimentos processados que elas usualmente consumiam [biscoito recheado, suco de caixinha, achocolatado, suco a base de soja, iogurte e guaraná natural]; açúcar branco e copinhos descartáveis de café.

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Figura 11 – Você sabe o quanto de açúcar tem aqui?

Agora, seriam cientistas, em suas bancadas de laboratório [mesas da sala de artes visuais], que tentariam descobrir a quantidade de açúcar dentro de cada embalagem. Caberiam aos cientistas do grupo definir a quantidade de açúcar do produto, colocando-a dentro dos copinhos de café. A fim de definirem a quantidade de açúcar nos alimentos, as crianças leram os rótulos; conversaram; rememoraram o paladar [com a intenção de lembrar a sua doçura] e fizeram comparações com a “conhecida” coca-cola, ou seja, recorreram às suas redes de saberes, fazeres e sentidos em busca da exatidão da informação. Ainda impactadas pela descoberta dos sete saquinhos de açúcar dentro de uma latinha de coca-cola, as crianças, ao recorrerem às suas memórias gustativas, superestimaram a quantidade de açúcar presente nos alimentos analisados. Uma caixinha de achocolatado, segundo as crianças cientistas, seria, praticamente, açúcar. “Professora! Se na coca-cola tem sete saquinhos, imagina no (...)!

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2.5 Lance a lance: os usos astuciosos das criançaspraticantes

Acolhendo as ideias de Certeau (2012), acreditamos ser fundamental observar o que as crianças fazem dos produtos [filmes, livros, jogos, atividades, currículos...] impostos no seu dia a dia. Perceber suas táticas, subversões e linhas de fuga, especialmente frente às regras impostas pelos jogos com fins educativos, nos faz pensar nas inconsistências entre aquilo que os seus idealizadores articulam e aquilo que é aceito (CERTEAU, 2012). Essas inconsistências foram observadas na experimentação de três jogos educativos que adquirimos com uma editora18 especializada em produtos direcionados aos nutricionistas. “De olho nos alimentos”, “Beto e Bia: a corrida da boa alimentação e dos hábitos saudáveis” e “Come-Bem”, cada um com suas particularidades, deixaram brechas para que as crianças pudessem colocar em prática suas artes de fazer (CERTEAU, 2012).

Precisamos esclarecer que não tínhamos como objetivo descrever os jogos e suas regras em detalhes, pois o que nos interessava, de fato, era perceber as burlas, as subversões, as táticas utilizadas pelas criançaspraticantes para jogarem à sua maneira.

Mergulhamos, portanto, com todos os sentidos (ALVES, 2001) à caça das “artes de fazer” das criançaspraticantes (CERTEAU, 2012), tentando capturar, para tornar visível (SANTOS, 2010a), o que de novo elas inseriam, reinventavam, criavam sobre o produto que lhes fora proposto [imposto].

Ao longo de dois encontros, as crianças se dividiram em grupos para experimentarem os três jogos que havíamos comprado, especialmente, para a oficina. Cada jogo apresentava uma dinâmica diferente, o que gerava interesses e tempos distintos. Alguns grupos terminavam e voltavam a jogar, enquanto outros ainda nem tinham lido todas as regras. Outros, por já terem jogado mais de três vezes, deslocavam-se até o grupo ao lado para “bisbilhotar” o jogo do outro. E assim íamos, juntos, caminhando, experimentando, aprendendoensinando e nos surpreendendo.

18 Editora Metha comercializa livros, jogos e equipamentos destinados aos nutricionistas. 70

Era interessante observar como eles negociavam os agrupamentos e as funções de cada um no jogo: quem leria as regras; quem seria o menino “X” ou a menina “Y”; quem seria o responsável pelo dinheiro; quem começaria o jogo; quem jogaria com quem por ter excedido o número de participantes. Enfim, inúmeras possibilidades de negociações que nem sempre chegavam a um consenso. Crianças que se recusavam a assumir determinadas funções, também fizeram parte do cenário de um “jogo” que aconteceu no tabuleiro e fora dele. “De olho nos alimentos”, um jogo destinado a crianças maiores de seis anos de idade, tem a intenção de apresentar os diferentes alimentos. Ele é composto por um tabuleiro e por dezenas de mini círculos, com imagens de alimentos dos grupos dos cereais e derivados; das frutas; dos legumes, verduras e tubérculos; das leguminosas; do leite e derivados; dos doces; dos ovos, peixes, carne e derivados, outros alimentos e preparações19. Cada jogador recebe quantidades iguais de mini círculos, que deverão ser alocados sobre a mesma imagem do tabuleiro. Ganha o jogo quem encontrar os alimentos espalhados antes dos seus adversários.

Figura 12 – O que é isto?

À primeira vista, parece a todos, muito simples. Basta achar a figura igual e pronto. E é isso mesmo. Interessante, era ouvi-las perguntando [depois de já terem

19 Os grupos citados mantêm a ordem e a denominação referida pelo Manual de Instrução do jogo. 71

jogado duas, três vezes, dada a agilidade do jogo], umas às outras, que alimento era aquele. Muitas não sabiam responder. E para sermos sinceros, nós também não. Mangas que pareciam pêssegos [ou pêssegos que pareciam mangas]; alfaces que eram repolhos; laranjas que lembravam tangerinas... Até chegarmos a um consenso era uma diversão. Era possível, ainda, ouvir sons ou vê-las fazendo caretas quando um alimento não era do seu agrado, tendo sido experimentado ou não. Se o jogo, em si, era bem simples, as dúvidas, geradas por algumas imagens que se distanciavam da realidade, abriram brechas para que as criançaspraticantes criassem outro modo de usá-lo. Uma “maneira de utilizar” (CERTEAU, 2012) que permitiu a elas conversarem sobre os alimentos, reconhecendo as suas preferências e aversões, bem como a de seus colegas, as quais iam se diferenciando em função de suas redes de saberes, de práticas, de valores, crenças, afetos e subjetividades. “Beto e Bia”, um jogo desenvolvido por nutricionistas, tem o intuito de incentivar a boa alimentação e os hábitos saudáveis em crianças acima dos seis anos de idade. É composto por um tabuleiro, um dado e quatro pinos de “Bia” e “Beto”, com os quais os participantes devem se deslocar da saída até a chegada, ou seja, da casa 1 até a 90. No meio da corrida, os participantes podem cair em vinte e seis casas [casas amarelas] que contêm dicas de uma boa alimentação e de um estilo de vida saudável. As dicas contornadas em azul parabenizam o jogador e pedem para que ele avance para as casas à frente. As dicas contornadas em vermelho criticam a atitude do jogador e o fazem andar para trás. Lê as dicas quem para, ao acaso, em uma dessas casas, caso contrário o jogador chega ao fim sem ter lido dica alguma. Na chegada, contudo, lê-se: “Parabéns! Você é o vencedor! Pratique tudo o que aprendeu! Pratique uma vida saudável!”

72

Figua 13 – Burlando o que não nos representa

No início do jogo, muitas crianças começaram a ler as dicas quando paravam nas casas amarelas, mas, na medida em que o jogo prosseguia, passaram a burlar as regras, fazendo uso de táticas desviacionistas (CERTEAU, 2012). O jogo, como o próprio nome propõe, é uma corrida. Entre a saída e a chegada, a regra, ainda que não descrita no jogo, não deixa dúvidas: ao parar nas casas leiam as dicas e façam o que se pede. Algumas dicas:

Você evita comer doces porque em excesso eles fazem mal à saúde e ainda podem deixá-lo (a) gordinho (a). Muito bem! Ande 4 casas ou Você adora comer lanches de ‘cachorro quente’ com refrigerante. Cuidado, você pode ficar obeso e ainda doente. Infelizmente terá que voltar para casa 35.

Todos sabiam, a princípio, o que deveriam fazer, mas as criançaspraticantes, astuciosamente, liam apenas a frase final da dica nutricional, que indicava o número da casa para onde deveriam se deslocar [andar ou voltar determinado número de casas], ignorando toda a informação formulada com a intenção de ensinar sobre alimentação e saúde. Elas burlaram a regra do jogo a fim de que pudessem atingir a linha de chegada mais rapidamente. Deslocaram-se de um consumo supostamente passivo para uma criação singular, nascida da prática, do desvio no uso dos 73

produtos impostos (OLIVEIRA, 2001) que colocam em dúvida a pretendida função primeira do produto. Foi possível perceber que há “maneiras de fazer” (caminhar, ler, produzir, falar, cozinhar, comer, jogar...), “maneiras de utilizar” que se tecem em redes de ações concretas, que não são mera repetição de uma ordem previamente estabelecida do alto e de longe. As criançaspraticantes, ao inserirem criatividade, modificam as regras e o poder de dominação a que estariam, supostamente, submetidas. “Come-bem”, também concebido por nutricionistas, tinha o objetivo de ensinar às crianças o valor nutricional dos alimentos e a importância de uma boa alimentação para a saúde20. Uma releitura, digamos assim, do conhecido “Banco Imobiliário”. “Come-bem”, pelo colorido de sua caixa, foi aquele que despertou mais euforia nas turmas quando apresentamos os jogos no primeiro encontro. Assim que ele foi colocado sobre a mesa do grupo, as crianças abriram a caixa e começaram a mexer em todos os componentes do jogo: um tabuleiro; quatro pirâmides alimentares e bolinhas avulsas vermelhas para representar os alimentos; pinos coloridos para a movimentação; um dado; dinheiros de papel para comprar alimentos; fichas de dicas da nutricionista e fichas de perguntas e respostas. No verso da caixa, as regras. Diante de tanto alvoroço, as regras ficaram esquecidas e os participantes já se organizavam para começar, quando uma menina mostra a todos o verso da caixa com as regras escritas. Nisso um menino diz: “É muita coisa pra ler. Dá pra jogar sem ler as regras!”. Alguns concordaram, outros não, mas foram tentando seguir adiante. Contudo, as dúvidas foram surgindo e resolveram recorrer às regras. Escolheram uma criança que, segundo elas, lia melhor e deram início à leitura. Ficamos ali, próximos, para tirar dúvidas se as crianças precisassem. Liam, conversavam, brigavam, reliam e, assim, foram tentando entender as regras, bem mais complexas que as dos dois outros jogos mencionados. Negociar as funções foi a etapa de maior conflito: quem iria ficar com a pirâmide; quem mexeria com o dinheiro [o banco]; quem leria as dicas da nutricionista; quem faria as perguntas; quem jogaria os dados. O conflito permitiu que se inventassem outras funções: ficar com a caixa na mão para ler as regras

20 O objetivo encontra-se escrito no fundo da caixa do referido jogo. 74

[para qualquer dúvida que aparecesse]; ser o “banco” [a mais concorrida] e formar algumas duplas passaram a fazer parte do jogo. Depois de tudo, aparentemente, combinado, e de peças e dinheiros distribuídos, as crianças deram início ao “Come-bem”. Ao longo do jogo, os participantes podiam parar nas “casas de alimentos”, onde eram descritas informações nutricionais e o preço de venda do referido alimento.

Berinjela: Hortaliça. Boa fonte de sais minerais. R$ 3,00 ou Bolo e pão: Alimento rico em carboidrato. Fornece energia. R$ 2,00 ou Alface: rica em fibras, vitamina A, C e do complexo B. R$ 2,00 ou Batata frita: Tem alto valor calórico podendo levar à obesidade. R$ 3,50.

As crianças, em sua maioria, ao pararem nessas casas passaram a identificar, apenas, qual era o alimento e o preço referente, não mostrando mais interesse em ler a informação nutricional. Quando liam, contudo, era uma leitura rápida, sem nenhum questionamento e sem pausas para refletir sobre o conteúdo. Ficamos pensando, no momento do jogo, se todos sabiam o que eram sais minerais, calorias, carboidratos, fibras, complexo B e todos as outras palavras que estavam presentes nos textos. E se não sabiam, por que não perguntaram? Será que não leram? Leram sem prestar atenção? Leram, mas não entenderam? E se não entenderam, fez alguma diferença para o jogo que elas estavam jogando com suas “artes de fazer”? No percurso dos pinos, ao jogar os dados, as crianças também podiam parar na “casa da nutricionista”. Ao cair nesta casa, o jogador deveria pegar a carta da nutricionista, ler em voz alta e fazer o que se pedia. A nutricionista poderia dar os “parabéns” ou chamar a “atenção”.

Parabéns! Você conseguiu controlar seu colesterol sanguíneo e não gastará mais com remédios. Receba do banco a quantia de R$ 7,00 ou Atenção. Todos os jogadores estão gordinhos. E você, como um conhecedor de nutrição, retirará de suas pirâmides a batata e devolverá ao banco.

É possível perceber que, na leitura das cartas da nutricionista, assim como na leitura sobre a informação nutricional do alimento, as crianças estavam muito mais interessadas em saber para onde iam, e quanto gastariam para comprar os alimentos, do que em aprenderensinar sobre alimentação e saúde. O dinheiro, desde o início, foi a grande atração do jogo. Inclusive, como comentamos anteriormente, ser o “banco” foi inserção de criatividade, astúcia e “arte de fazer” das 75

criançaspraticantes para que todos pudessem experimentar o jogo, independentemente do limite máximo de participantes.

Burlar as regras, usar de táticas silenciosas, inventar maneiras outras de jogar o jogo, são astúcias das criançaspraticantes que não se reconheciam nas estratégias educativas prescritivas e normativas dos jogos “Come-Bem” e “Beto-Bia”. Era possível ouvi-las falando, sozinhas ou comentando com a criança ao seu lado, que aquelas atitudes mencionadas nas dicas nutricionais ou nas cartas da nutricionista não eram por elas executadas. Nesse sentido, o não reconhecimento de si e a recusa ao governamento (FOUCAULT, 2002) podem ter potencializado as práticas inventivas e as táticas de resistência das criançaspraticantes.

Muitos são os indícios (GINZBURG, 1989) deixados pelas criançaspraticantes ao experimentarem os jogos. Pistas que poderiam ter permanecido invisíveis, se estivéssemos mergulhando no nosso cotidiano sem os fios de pensamentos dos autores que nos puseram a caminhar. Possivelmente, não estaríamos atentos aos processos, aos usos, às subversões, às táticas astuciosas e desviacionistas das criançaspraticantes ao experimentarem os jogos. Talvez, nos interessássemos, apenas, pelo que elas, supostamente, aprenderam [ou não] tal como aprendemos com a modernidade. Munidos de nossas “cegueiras epistemológicas” (OLIVEIRA, 2007) estaríamos a observar as regularidades e não os desvios, as operações homogêneas e não as heterogêneas.

A cada encontro ficávamos mais convictos

Da criatividade das pessoas ordinárias. Uma criatividade que se esconde num emaranhado de astúcias silenciosas e sutis, eficazes, pelas quais cada um inventa para si mesmo uma “maneira própria” de caminhar pela floresta dos produtos impostos (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p.13).

2.6 Representações gráficas dos guias alimentares: leituras plurais das criançaspraticantes

Ao longo da convivência potente com nossas criançaspraticantes, muitos foram os seus fazeressaberes que desnaturalizaram nossas práticas e saberes, nossas percepções preconceituosas sobre o nosso trabalho. Dentre eles, a 76

pluralidade e a singularidade de leituras das representações gráficas de guias alimentares de diferentes países. Os guias alimentares, segundo estudiosos (BARBOSA et al, 2008), vêm sendo elaborados, por diferentes países, especialmente a partir da década de 90, como um importante facilitador da educação alimentar e nutricional ao adaptar conhecimentos científicos sobre recomendações nutricionais e composição de alimentos à linguagem popular. Mais de cem países espalhados pelos diferentes continentes, em momentos distintos, elaboraram guias, mas não necessariamente o expressaram graficamente (FAO/WHO, 2015). Os ícones, em um guia alimentar, teriam o objetivo de auxiliar o público alvo a identificar com mais facilidade o modo como os alimentos devem ser incluídos na dieta, expressando os conceitos de variedade, frequência e proporção (CALDERÓN; MORÓN, 1999). A diferença na representação gráfica se dá, na maioria das vezes, em função da adequação dela à cultura de cada país. Atualmente, para citar alguns exemplos, podemos dizer que os Estados Unidos, Inglaterra e Austrália optaram por um prato; China pelo pagode; Alemanha e Costa Rica pelo círculo; Canadá pelo arco-íris, Tailândia pelo formato de uma flâmula; Guatemala e Honduras por uma caçarola; Venezuela por um peão; Portugal pela roda e Aústria, Bélgica, Espanha, Nigéria e Israel optaram pela pirâmide. O Brasil, por sua vez, utilizou, até 2014, uma pirâmide alimentar cujo ícone foi adaptado da versão americana publicada em 1992 (PHILIPPI et al, 1999). Enfim, os países procuram eleger, através de processos diversos e apropriados às suas culturas, um ícone significativo ao grupo a que se destina a fim de favorecer a educação alimentar e nutricional. Tendo em vista a presença de ícones de guias, especialmente a pirâmide alimentar, em livros didáticos, em jogos educativos em nutrição e em embalagens de alguns alimentos, consideramos interessante apresentar às crianças as representações de diferentes guias com o objetivo de tornar visível a pluralidade e a singularidade de leituras possíveis diante de imagens, naturalizadas pelo saberpoder científico monolítico. Nossa “curiosidade epistemológica” (FREIRE, 1996) direcionava os nossos sentidos para identificar os conflitos, os diálogos e os usos que as crianças fariam desses artefatos curriculares, criados, comumente, com e para especialistas, desconsiderando, na maioria das vezes, o fazer com os seus praticantes ordinários. 77

Nesse encontro, antes de apresentarmos as imagens que seriam transmitidas por um projetor na sala de vídeo do Núcleo de Arte, conversamos com as crianças sobre a ideia de observarem as figuras como se detetives fossem, ou seja, com aquele olhar investigativo tentando descobrir o que seus criadores tentavam nos dizer com seus desenhos e cores. Apresentamos, assim, às crianças: a roda de Portugal; o arco-íris do Canadá; a pirâmide americana de 1992 (USDA, 1992), a pirâmide alimentar adaptada por Philippi et al (1999); o prato americano (FAO/WHO, 2015) e o prato do Reino Unido (FAO/WHO, 2015). Fomos surpreendidos por diversas leituras possíveis frente às imagens pensadas pelos especialistas no assunto. O que para nós especialistas foi naturalizado como ideia de proporção e variedade, por exemplo, foi entendido numa lógica totalmente diferente, colocando em “xeque” todo o discurso semiótico de que a representação gráfica dos guias possui o potencial de comunicar aquilo que se quer transmitir. Há, portanto, na concretude do cotidiano escolar, nos usos de seus praticantes, uma pluralidade de leituras daquilo que a ciência, supostamente, nos impõe como uma única leitura possível. O guia alimentar português, produzido em parceria com os profissionais da Universidade do Porto (2004) e intitulado “Guia – Os Alimentos na Roda”, elegeu, como o título já enuncia, a roda como a sua representação gráfica, a qual tem sido, segundo o texto oficial, utilizada como instrumento essencial na promoção de hábitos alimentares saudáveis. A roda é formada por sete grupos de alimentos, em diferentes dimensões, com a finalidade de transmitir a ideia de proporção e variedade. Após observarem a imagem, começaram por demanda espontânea, cada um no seu tempo, a falar o que perceberam e entenderam sobre a roda portuguesa. Fizemos, logo de início, a seguinte pergunta: “Que imagem é essa?”. Muitas, e diversas, foram as respostas: “Um CD de alimentação”; “Uma roda gigante.”; “Uma bola de futebol.”; “Uma pizza saudável.”; Uma nave espacial” e “Um planeta saudável”. Percebe-se que todas as nomeações transbordam sentidos e significados que fazem parte do universo infantil. O CD das músicas e dos vídeos; a roda gigante dos parques de diversão; a bola de futebol que dispensa maiores explicações; a pizza, que ainda sendo uma invenção do outro lado do hemisfério, está presente nos momentos de celebração de muitas famílias brasileiras. A nave espacial que, presente em livros e filmes infantis, sempre mexe com o imaginário de todos nós. O planeta saudável e sustentável é a retórica de noticiários e programas de televisão, 78

bem como de livros didáticos e programas pedagógicos das escolas. Todos esses elementos fazem parte da concretude de seus praticantes. A roda, solta nesse guia, não reverbera significados, pois encontra-se fora da sua funcionalidade. Ali, ela não é a roda da bicicleta, a roda do carrinho de ferro ou do carrinho de rolimã. Ali, ela é a roda pensada por especialistas que, apesar de escreverem em seus documentos sobre a importância de permitir que todas as partes relevantes da comunidade se envolvam com a produção do material educativo (FAO/WHO, 1996), possivelmente, não consideram relevantes os fazeressaberes das crianças nos seus cotidianos. Ainda sobre a “Roda dos Alimentos” ouvimos que os pedaços – como eles denominam os grupos de alimentos, representariam lugares: o grupo das frutas seria o Rio de Janeiro; o grupo das leguminosas, que as crianças nomeiam, simplesmente, como o pedaço dos feijões seria a Paraíba e o grupo do leite representaria a fazenda, a alimentação do campo. Nesse momento, ouvindo os diferentes saberes sobre a imagem, uma menina pediu a fala e discordou dos colegas que entendiam dessa maneira. Estabeleceu-se um fórum de discussão, de negociação e de tessitura de novos saberes. Ela afirmou que não via os lugares que algumas crianças descreviam, mas que achava que os pedaços maiores [grupos] diziam respeito ao que as pessoas mais “comem hoje em dia e os pedaços menores é o que menos se come, mas o que deveria se comer mais por ser o mais saudável.” Ao ouvirmos as considerações da estudante, nós professorespesquisadores, dirigimo-nos, novamente, para a imagem a fim de fazer a leitura trazida para a discussão. Observamos que os grupos com dimensões maiores, ou seja, aqueles que de fato, segundo o guia português, deveriam ser consumidos em maior quantidade como os cereais, hortaliças e frutas, eram, pelo ponto de vista da estudante, os mais consumidos, mas, os mais saudáveis, que para ela era os grupos do feijão, do leite e o das carnes, precisariam ter o seu consumo aumentado. Essa lógica de pensar o consumo de alimentos saudáveis desta criança, e de tantas outras que com ela concordaram, é construída culturalmente num país onde não pode, ou ao menos não deveria, faltar o feijão com arroz e, se possível for, a carne, na mesa de cada dia. Quanto ao leite, como grupo que também deveria ser consumido em maior quantidade, ouvimos a explicação de que as crianças precisam tomar leite todo dia. Quando perguntamos de onde vieram tais afirmativas, nos respondiam que foram suas mães, avós ou “aquele programa de televisão”. Mais 79

uma vez, nos deparamos com outras leituras possíveis que deslocam os nossos pensaresfazeressaberes sobre esses artefatos no campo da alimentação e nutrição. Em um momento seguinte, apresentamos a imagem de uma roda de alimentos espanhola, que apresentava outra coloração como pano de fundo dos diferentes grupos: frutas e hortaliças [verde]; cereais e óleos [amarelo] e carnes e leguminosas, bem como leite e derivados [vermelho]. Pedimos, então, mais uma vez, para que as crianças observassem a imagem, procurando identificar as diferenças e semelhanças entre esta e a outra que viram anteriormente. Uma das meninas levantou-se; dirigiu-se até a tela e discursou sobre a sua descoberta:

Aqui eles colocaram o verde pra mostrar que os alimentos mais saudáveis são as frutas e os legumes; o amarelo nesse daqui [cereais] pra mostrar que são mais ou menos saudáveis e vermelho no feijão, na carne e no leite pra mostrarem que são os menos saudáveis. Aqueles que podemos comer muito pouco.

Em seguida, um menino argumentou:

Esquisito isso. O pão que está no amarelo a gente pode comer mais que o peixe? O peixe é que devemos comer sempre. Pão engorda e peixe faz bem pra memória. Minha vó falou isso. Por que ele está no vermelho?

Essa discussão mostra, mais uma vez, como as lógicas operatórias são múltiplas e tecidas por diferentes redes de saberes culturais, midiáticos, familiares e tantos outros. O semáforo, tão presente na cidade do Rio de Janeiro, passa a fazer parte da leitura possível. As crianças visualizam o movimento de alimentar-se com os diferentes grupos de alimentos, como sendo o tráfego da área urbana: verde – siga – coma à vontade; amarelo - atenção – coma com moderação [mais ou menos]; vermelho – pare – coma muito pouco. Esta leitura, ainda que seja intencional por parte dos indivíduos que conceberam a imagem, tensiona e faz emergir diálogos outros com e sobre a imagem. No encontro subsequente, trouxemos a representação gráfica do Canadá – o arco-íris. Esse ícone, diferentemente da roda que possibilitou uma infinidade de interpretações, não suscitou dúvidas, pois todos o reconheceram como o arco-íris.

No arco-íris as quatro cores ficam em evidência, uma vez que constituem a própria imagem. Nessa direção, os quatro grupos de alimentos, na interpretação das crianças, seguem a lógica das cores. Para as crianças, o verde mostra os alimentos saudáveis [frutas e hortaliças]; o amarelo é o café da manhã porque tem o pão 80

[grupo dos cereais]; o azul mostra o leite e outras bebidas [leite e derivados], e o vermelho, por mostrar as carnes, o feijão e o ovo, representaria a “comida”. Quando perguntamos “Como assim a comida?” as crianças nos responderam: “É o que a gente come no almoço e no jantar”. Entra em cena mais uma discussão: “O que se come, então, no café da manhã, por exemplo, não é comida?”. Para muitos, comida é aquilo que dá “sustância”, a qual, segundo as crianças, obtemos, especialmente, nas grandes refeições – arroz, feijão e carne. Na leitura dessa representação gráfica, também se faz presente a lógica do semáforo, ou seja, a faixa verde do arco-íris, onde estão os alimentos considerados saudáveis, indica que podemos comer livremente. Surgem, como podemos ver, as associações entre os grupos e as refeições diárias em função dos alimentos que ali se encontram. Seguindo o propósito de apresentar outras formas de representação gráfica de guias alimentares, trouxemos para a discussão um dos ícones mais difundidos – a pirâmide alimentar. Esta assumiu várias versões, especialmente nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, ao longo dos últimos anos. Optamos, portanto, por apresentar duas versões: a versão americana de 1992 (USDA, 1992) e a pirâmide brasileira, adaptada a partir da primeira, por Philippi et al (1999). A pirâmide alimentar americana, tal como o arco-íris, não causou dúvidas. As crianças estavam, de fato, a observar uma pirâmide. A pirâmide americana apresentava seis grupos [cereais; frutas; hortaliças; carnes, ovos e leguminosas; leite e derivados; óleos e açúcares] e a brasileira, num processo de adaptação, desmembrava o grupo das carnes, ovos e leguminosas, com o argumento, mais do que pertinente, de que o feijão, por ser um alimento presente na alimentação básica do brasileiro e por não possuir o mesmo valor nutritivo que as carnes e os ovos, deveria ser colocado em um grupo específico (Philippi et al, 1999). Cria-se, portanto, o grupo das leguminosas que já se fazia presente, por exemplo, na roda de Portugal. Também, diferentemente da roda, mas seguindo a lógica já iniciada na leitura do arco-íris, a maioria das crianças identifica os grupos como se fossem as diferentes refeições do dia. Uma criança fez questão de dirigir-se até a tela, onde projetávamos as imagens, para apontar cada grupo de alimentos fazendo menção à refeição correspondente. O grupo dos cereais, por ter o pão era o café da manhã; o grupo das carnes representava o almoço e o grupo do leite e derivados, por exemplo, o lanche. A grande maioria concordou e quando um ou outro fazia uma nova observação era apenas no sentido de dizer que aquele determinado grupo, por 81

exemplo, representava o lanche da tarde e não o café da manhã. É interessante notar que, distintamente da leitura dos especialistas, as crianças visualizam os conceitos de hierarquias, proporções, variedades e frequências a partir de lógicas operatórias outras tecidas por diferentes fios de pensaresfazeressaberes. Fios que se entrelaçam muito mais pela sua funcionalidade cotidiana do que pelo monolitismo acadêmico e que já se faziam presentes nas redes de cada praticante. Redes, que nesse processo dialógico, “vão ganhando um sentido próprio, não necessariamente aquele que o transmissor da informação pressupõe” (OLIVEIRA, 2012, p. 69). Vale ressaltar que Philippi et al (1999), quando tornaram pública a “Pirâmide Alimentar Adaptada”, justificaram a utilização da mesma representação gráfica por ter sido a sua imagem aprovada pela população americana após a testagem de várias outras formas. Ficamos a pensar se não seria esse mais um “epistemicídio” (SANTOS, 2007) cometido pelo saberpoder hegemônico norte-americano tão presente no campo da nutrição – e em outros – no nosso país, na medida em que a população brasileira, consumidora provável do guia [e de todo material dele derivado], tem seus pensaresfazeressaberes desqualificados, subalternizados, menosprezados e desperdiçados na construção da sua representação gráfica. Estaríamos, como tantas outras vezes, a “engolir” no Sul o que “escorrega” do Norte, sem, ao menos, dialogar com o contexto local? (FREIRE, 2011). Apresentamos também, em outros encontros, a imagem do prato como ícone – a nova representação gráfica americana e o prato do Reino Unido (FAO/WHO, 2015). Ambos, pela presença do garfo, foram imediatamente nomeados como o prato. Inicialmente, a leitura foi a mais simples e consensual possível: “eles querem dizer pra gente comer tudo isso. Comer frutas, verduras, pão, macarrão, leite, chocolate, refrigerante, carne, ovo...”. Até que de repente uma criança se levanta e pergunta: “Mas é pra gente comer isso tudo de uma vez só?”. Outra, imediatamente, responde: “Não. Tem coisa que a gente come no café da manhã, outras a gente come no almoço”. Em seguida, uma criança diz: “Eles deveriam fazer um prato pra cada refeição. Um prato pro almoço, um prato pro jantar, um prato pro café da manhã (...). Assim ia ser melhor pra gente entender.” Uma menina levanta e, passando as mãos pela parede onde a imagem estava sendo projetada, fala: “Eles poderiam fazer um relógio grande e colocar os pratos de cada refeição na hora certa!”. Muitos acharam uma ótima ideia. Nesse momento, quando muitos já haviam se colocado e tantos outros já estavam a brincar com as sombras do seu corpo 82

sobre a projeção da imagem, uma criança se pronuncia: “Podia usar o corpo da gente, colocando os alimentos na cabeça, na barriga, nos braços, nas pernas (...), não podia?”. Começaram, assim, a posicionar as diferentes partes do corpo à frente das imagens [alimentos] que gostariam que ali se alocassem. Aproveitando os indícios, as pistas (GINZBURG, 1989) que essas crianças potentes iam nos deixando a cada encontro, pensávamos sobre a próxima atividade, a próxima conversa, o próximo pensaraprender com elas. Nesse sentido, no encontro seguinte, pedimos para que as crianças se transformassem em criadores dessas imagens, ou seja, seriam elas, agora, os cientistas que, em seus laboratórios, construiriam as representações gráficas a serem utilizadas por elas. Distribuímos, na sala de artes, papéis, lápis, borrachas e réguas, a fim de que dessem início às suas construções individuais ou coletivas. Surgiram desenhos diversos, mas sempre com o fio condutor do cotidiano e do brincar. Eram ícones em forma de escorrega, toboágua, geladeira, prato, relógio, caminhão e semáforo. Uma menina iniciou o desenho de uma criança, cujo corpo estava a ser preenchido pelos alimentos. Esses desenhos, essas representações distintas da pirâmide, do arco- íris, da roda e de tantos outros que não fazem sentido para os nossos praticantes, nos fazem crer na potência dos pensaresfazeressaberes dessas crianças, historicamente, marginalizados nas pesquisas. Paralelamente, motivados por uma turma que chegava ao Núcleo trazendo o lanche do recreio que viria logo a seguir, pedimos às crianças que trouxessem de suas casas as embalagens de todos os alimentos processados [industrializados] que consumiam. Mais uma vez fomos surpreendidos com a quantidade e variedade de embalagens que chegavam a cada aula. Motivados pela discussão e pelo engajamento do outro, a quantidade foi crescendo progressivamente.

83

Figura 14 – Tecendo novos agrupamentos

Reunimos, assim, todas as embalagens e pedimos para que eles fossem separando em grupos, como fazem na aula de matemática, por exemplo, quando reúnem diferentes objetos com a mesma forma geométrica. Percebemos, logo no início, a dificuldade de agruparem a grande diversidade de alimentos. As crianças agruparam, por exemplo, todas as bebidas, independentemente de ser suco de fruta, água, mate ou refrigerante. Agruparam também todas as embalagens de arroz, açúcar, sal, farinha de trigo e de fubá. Achocolatados, café em pó, café solúvel, farinha láctea, ou seja, tudo que poderia ser adicionado no leite também foi alocado no mesmo grupo. Suas lógicas operatórias eram bem diferentes daquelas que nos foram colocadas, naturalizadas pela ciência da nutrição, nos fazendo pensar sobre a possibilidade de arranjos outros, sem que consideremos apenas as afinidades nutricionais. As crianças, mais uma vez, estavam a agrupar as embalagens seguindo a lógica de sua funcionalidade na concretude de seu cotidiano. As criançaspraticantes nos surpreenderam com a pluralização das possibilidades de se interpretar artefatos curriculares que vêm sendo, ao longo dos anos, naturalizados na e pela construção do campo da alimentação, nutrição e saúde. A cada representação gráfica apresentada, elas nos revelaram múltiplas invenções, subversões e transgressões em suas maneiras de fazerpensar, ainda que muitos possam supor que no cotidiano escolar só exista repetição, reprodução e 84

consumo passivo daquilo que é supostamente instituído pelas autoridades científicas e governamentais.

2.7 (Re) tececendo saberes, sabores, cheiros e cores

Um dos fios desses saberes e sabores puxamos de Ruth Rocha, quando, ao se apresentar aos leitores de seu livro “No tempo em que a televisão mandava no Carlinhos”, disse:

Eu sou paulista. Nas minhas origens, baianos, mineiros, cariocas. Com muitos portugueses bem lá atrás e algum sangue bugre ou negro – quem sabe? -, que se traduz na minha cor de cuia quando apanho sol (ROCHA, 2000, p.30).

Nesse instante, nós professores falamos: “Também sou um pouco mineira. Meu pai é de Minas.” – disse às crianças. Renata, em seguida, falou: “E eu paulista! E vocês? Vocês têm um pouco de quê?”. Cada criança que se lembrava [e que sabia] dizia de onde eram seus pais, suas mães, avós. Ceará, Paraíba, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Espírito Santo, Minas e São Paulo foram, pouco a pouco, aparecendo nas origens de muitos de nós. E para aproveitarmos a boa prosa e as novas descobertas, começamos uma brincadeira, onde a cada lugar anunciado, quem tivesse um fio de lá, corria para o centro da roda. Tinha gente que não ficava parado, pois sempre lembrava de um avô, de uma avó... Descobrimos que somos feitos de muitas “gentes” e de muitos lugares. São tantos fios, que podemos trançar uma rede.

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Figura 15 – Viajando compelas histórias

E aquela curiosidade que parece não ter fim, nos levou a perguntar: “Quem já foi a um destes lugares? O que vocês lembram de lá? O que viram? O que ouviram? O que comeram? Quais são os sabores de lá? E as cores?”. Como muitos queriam contar, organizamos da seguinte forma: cada criança falaria o que quisesse e lembrasse, mas sem dizer o nome do lugar. Os ouvintes, após toda a história contada, tentariam adivinhar de onde o contador estava falando. Em uma manhã, viajamos para muitos lugares.

Quando a gente chega lá, a gente vai pescar com meu avô. Lá a gente não pesca muito de vara não. A gente pesca mais é de tarrafa mesmo. A gente pesca no canal. Professora você não vai perguntar que música que a gente escuta lá? É louvor. Meu avô é pastor. Ah! Lá tem árvore de seriguela. Ela é pequenininha, mas tem um sabor grande.

Meu pai me contou que onde ele morava tinha rio e cachoeira. Ele adorava tomar banho de rio. Ele me contou que já tomou sopa de cérebro de carneiro. E lá as pessoas falam “ôchente”.

Lá tem rio e tem mar. Tem galinha e porco na casa do meu avô. Lá tem quadrilha e é bem diferente da Rocinha. Na Rocinha é muita bagunça.

Lá tem praia. Quando penso na casa da minha vó, me lembro do gosto da pamonha.

Tem muita manga no terreno do meu avô. Como muita manga quando vou lá. Meu avô ouve forro e samba. Tem praia lá.

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Os meus pais são do mesmo lugar. Lá tem moradores pobres. Lá tem muito camaleão. Tem gente que cria pintinho e galinha.

Meu pai falou que ele vem de um lugar muito pobre. Comeu chifre de besouro que colocavam na sopa. Lá tem bastante rio e a gente pescava lá. Lá na casa do meu avô tem árvore de açaí. Eu jogo bola com os filhos dos amigos do meu avô. A gente pesca muito Baiacu. Lá tem muito rio. Tinha bastante quadrilha.

Nessa viagem matutina, conhecemos muitos lugares, suas cores, seus sabores, suas músicas, suas falas, seus rios, seus mares. E para celebrar as nossas viagens e descobertas, depois de tanta história de pescador, dançamos uma ciranda, uma dança praieira, dançada na beira da praia, onde a “jangada vai sair pro mar”. Rememorando os lugares, rememoramos, também, os seus sabores. Sabores de comida de vó, como a pamonha de Pernambuco, que nos deu vontade de conhecer mais um pouquinho do sabor de família de cada um. Pedimos, então, que trouxessem receitas de família – receitas com “sabor de família”. Além dos ingredientes e do modo de preparo, as famílias escreveram a origem da receita e por que a consideravam “sabor de família”.

Bobó de camarão. Esta receita tem sabor de família porque vem desde da minha Vó que é baiana. Virou tradicional aos domingos.

Galinha caipira. Essa é uma receita paraibana que a gente gosta de fazer em família no final de semana.

Escondidinho com aipim. Essa receita é nordestina. Quando faço a família toda adora.

Estrogonofe de frango. Essa receita é carioca e é tradição da minha família. Todos gostam.

Bolo de fubá. Porque lembra a minha cidade Recife e o pai dela gosta muito de bolo de fubá porque é mineiro. Essa receita é carioca.

Quarenta de milho. Essa receita é da Paraíba e todo mundo da minha família faz.

Sanduíche do Papai. Porque meu pai faz no café da manhã de vez em quando. A receita é carioca.

E como de um fio puxamos outros, passamos a conversar sobre as receitas de família que curam alguns males do dia a dia. Começamos falando de um chá, bem quentinho de erva cidreira, que eu havia tomado na noite anterior na tentativa de me acalmar e dormir melhor. E como criança tem uma disponibilidade 87

encantadora para compartilhar acontecimentos, fomos saboreando os saberes e práticas dos seus cotidianos.

Pra dormir eu tomo leite quente! Chocolate quente! Alface debaixo do travesseiro do bebê ajuda ele a dormir. Minha mãe pra eu dormir me dá aquela olhada. Fui pra casa da minha vó comecei a tossir à noite e minha vó me deu chá de maçã dizendo que era bom pra tosse. Tomei e melhorei. Maçã faz bem pro intestino. Mel com limão é bom pra garganta. Eu nem chego perto de mel. Eu sou alérgica. Gengibre é bom pra garganta. Gengibre ajuda a emagrecer. Cabeça de peixe é bom pra memória. Comer queijo demais faz a gente esquecer das coisas. Um dia fiquei muito triste porque briguei com uma amiga e ela ficou sem falar comigo. Comi chocolate e fiquei feliz de novo.

E nesse diálogo entre redes de saberes, fazeres e crenças que são tecidas noscom os nossos cotidianos, vamos ouvindo e contando histórias que vão entremeando outros fios na trama de nossas redes. Buscamos, assim, mais fios de saberes, pedindo às crianças que perguntassem às suas famílias o que era bom para gripe, dor de ouvido, dor de garganta, febre, cansaço, tristeza, memória, dor de cabeça... para aqueles males cotidianos que surgiram na nossa conversa inicial. No encontro seguinte, muitas dicas. Dicas (com)partilhadas, em roda, pela leitura do professor, com o cuidado de não expor a criança que, por algum motivo, não levou as da sua família. Em muitos momentos, contudo, uma criança ou outra fazia questão de dizer: “Essa é minha! Fiz com a minha mãe e minha irmã”; “Fiz com a minha avó. Ela adorou fazer isso”. “A mesma coisa que eu coloquei no meu”. Algumas dicas das famílias para ...

Dor de cabeça: batata na testa, água de coco, café sem açúcar, chá de gengibre, água com uma fatia de limão, ir ao médico, chá de alecrim, gelo na cabeça, chá preto, chá de casca de laranja, chá de folhas de abacateiro, chá de flores de camomila ... Insônia: alface, leite quente, chá de camomila, suco de maracujá, chá de erva-cidreira, sopa de macarrão, chá de capim limão... Cansaço: mate, guaraná em pó, dormir, chocolate com banana, massagem, açaí, ir ao médico, banho gelado, nebulização, banho morno, café... 88

Gripe/resfriado: suco de laranja, chá de alho, mel com limão, chá de limão, vitamina C, acerola, chupar laranja, sumo de limão, chá de limão com alho, chá de sabugueiro e eucalipto, caju, agrião, gengibre... Tristeza: carinho, chocolate, chá natural, castanha do Pará, sorrir, abacate, alegria, brincar, comer brigadeiro, pensar em coisa boa, atividade física, cebola [para chorar e mandar a tristeza embora], abraços e beijos...

Entrelaçados por estes saberes, saímos, todos, à caça de novos sabores, cheiros e cores nas feiras e mercados do entorno. Por entre flores, ervas, pimentas, pastéis e tapiocas, fomos nos encantando pelas hortaliças e frutas nunca vistas, nunca saboreadas. Depois de muito cheirar com o nariz e tocar com as mãos, saboreamos [algumas crianças pela primeira vez] melancias e bananas presenteadas pelos feirantes mais acolhedores. Alguns se incomodaram com a presença de tantas crianças que, provavelmente, estariam por lá só a passeio, apenas para ver. Enganaram-se, pois, aqueles que assim pensaram. Estávamos lá para ver/sentir/cheirar/saborear/aprender... Depois de andarmos por todas as barracas e conversarmos com os feirantes e moradores, compramos algumas frutas, escolhidas pelas crianças, para que pudéssemos saborear. Enchemos nossas sacolas, depois de muitas negociações e contas, com ameixa, pêssego, kiwi, maçã verde, sapoti, uva roxa, jabuticaba e fruta do conde e, ansiosos, voltamos para o Núcleo para, enfim, saboreá-las.

Figura 16 – Saboreando juntos

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Figura 17 – Um cheiro

Sabores doces, ácidos e azedos misturavam-se aos sorrisos e caretas das crianças que experimentavam pela primeira vez a maioria destas frutas. Na dúvida, entre experimentar ou não, uma encorajava a outra como se estivessem a descer de um grande escorrega em um parque de diversão. Depois da primeira mordida, muitas viriam a seguir.

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Figura 18 – Experimentando pela primeira vez

As crianças se permitiram experimentar o novo, ainda que toda prática alimentar dependa de uma rede de pulsões – de atração e de repulsa (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011) quanto aos odores, formas, texturas e consistências. Saborear algumas daquelas frutas, possivelmente, não fazia parte da prática alimentar do habitus (BOURDIEU, 2008) de classe de muitos de nós. Foi preciso, portanto, ampliar o gosto [ou ao menos experimentar novos sabores] a partir de um encontro inesperado, (com)partilhado pelos pares. Os praticantes do cotidiano – as crianças e nós professorespesquisadores, diferentemente do que Bourdieu poderia imaginar [nesta fase dos seus escritos], inseriram criatividade e agiram de um modo diverso dos seus estratos de origem. Segundo a interpretação de Bourdieu,

Cada grupo se definiria por sua posição de classe e seu modo de agir dependendo de uma circulação obrigatória em um “conjunto de ações totalmente preparadas, de possíveis objetivamente instituídos”. Deste modo, a criatividade do grupo ou do indivíduo é descartada de antemão, nada de novo que realmente importa pode advir, nem o gosto pode ser ampliado por uma descoberta ocasional (como ouvir uma ária que intriga pelo rádio ou 91

um anúncio com novo estilo gráfico que prende o olhar), nem encontro marcante com um novo interlocutor que faça conhecer outras práticas culturais, nem desejo pessoal de uma autoformação num determinado domínio estético [...].Na perspectiva de Bourdieu, as práticas alimentares são tão imóveis quanto as outras, ou até mais, pois estão sempre ligadas à primeira infância, ao mundo maternal (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p. 248-249).

As criançaspraticantes, astuciosamente, aproveitaram a ocasião para experimentar e conhecer novos sabores, ainda que estes não sejam os escolhidos, os permitidos, os preferidos no final das suas exclusões e das suas escolhas. A escolha será sempre atravessada por uma

etno-história, uma biologia, uma climatologia e uma economia regional, uma invenção cultural e uma experiência pessoal. Sua escolha depende [...] da contingência indecifrável de micro-histórias” (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2011, p.251).

Figura 19 - Saboreando

Viajamos, com as crianças, por diferentes lugares – conhecendo seus sons, suas cores, seus sabores, suas dores, seus cheiros. Cheiros e sabores de casa de vô, de memória de pai, de pescarias nos rios, de fruta no pé e de tantos outros fios. Saberes de suas famílias que podem curar nossos males cotidianos. Crianças [muitas em um só] que contam histórias, que fazem rir [e que também fazem chorar], 92

que compartilham seus saberes [e que tecem juntas tantos outros], que descobrem [juntas] novos sabores [e também dessabores] que (re) inventam seus cotidianos [e os nossos também]. Crianças que se encantam com o singelo, ordinário, e que se deixam atravessar por intensidades de encontros. Criança é como seriguela: “Ela é pequenininha, mas tem um sabor grande”.

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3 E POR ÚLTIMO UMA HISTÓRIA PRIMEIRA QUE MUDOU O COMEÇO

Essa história poderia não estar aqui, se eu ainda, modernamente, acreditasse que aquilo que não aconteceu deveria ser escondido, deixando aparente apenas os passos dados, dando a falsa impressão – ainda que pudéssemos legitimá-las como verdade – de que estaria eu, desde o início, a pesquisar a minha prática cotidiana, a partir dos pressupostos teóricopolíticoepistemológicometodológicos das pesquisas nosdoscom os cotidianos. Deixei algumas pistas nos textos anteriores quando falei em rotas alteradas e em livros colocados em minhas mãos, mas, fazendo uso das táticas certeaunianas, optei por contá-la no final. Certeau e suas redes enlaçaram-me com seus fios, não coincidentemente, no cotidiano escolar durante os nossos momentos de fuga; quando nós professores nos reunimos, subvertendo a ordem, para tomar um café, prosear e fazer ciência. E como de um fio puxamos outros, vieram entrelaçados a Certeau, Nilda Alves, Ferraço, Inês Barbosa de Oliveira, Boaventura de Sousa Santos, Foucault...Se muitos inquietaram minhas verdades, esses me viraram de ponta à cabeça. Encontro-me encantada pela pesquisa nosdoscom os cotidianos que, como nos diz Alves (2001), vira-nos de ponta a cabeça, nos fazendo criar uma nova organização de pensamento, invertendo todo o processo aprendido, exigindo múltiplos caminhos. E nesses caminhos não cabe mais o pensamento linear, disciplinarizado, compartimentado e hierarquizado que aprisiona nossos saberesfazeres na ciência hegemônica. Não cabe mais seguir à risca os caminhos apriorísticos e os métodos ainda tão valorizados no fazer ciência do campo da saúde. Precisamos, sobretudo, percorrer caminhos, muitas vezes, impossíveis de serem antecipados e que só se revelam durante a caminhada. Os cotidianistas, inspirados por Certeau (2012), nos ensinam, nos incitam, a conviver com o imprevisível, com o inesperado, com as ações concretas, com as artes de fazer – táticas e astúcias – dos praticantes do cotidiano. Nesse pensar diferentemente, instaurado por Certeau e suas redes, encontro-me, desde então, subvertendo a lógica que sustenta a minha linha de pesquisa “Determinantes individuais e contextuais do estado nutricional e seus impactos na saúde coletiva” do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da UERJ. Venho criando espaços e fazendo escolhas não previstas numa linha de pesquisa que, muitas vezes, autoriza a epidemiologia e a estatística a instituir verdades. A 94

fragmentação do conhecimento, da cultura, que herdamos da modernidade, ainda se faz demasiadamente presente nas instituições de ensino [especialmente na área biomédica], nos obrigando a inventar o cotidiano, a alterar as propostas curriculares, a criar caminhos próprios, a “burlar” as “regras oficiais”. São as táticas do cotidiano como sinaliza Certeau (2012) que me permitiram/permitem estabelecer outros diálogos, pontos de contato e conexões. Penso ser necessário esclarecer que meu projeto de doutorado tinha como proposta “Elaborar e validar um guia alimentar para escolares do 3º ano do ciclo do ensino fundamental do Município do Rio de Janeiro”. Preciso também dizer que as quatro palavras em negrito, carregadas de significados e sentidos, que compõem esse enunciado, me incomodaram, me inquietaram. Validar porque o conceito de validade vem sendo amplamente discutido no campo da estatística projetado pela modernidade e, certamente, não era esse rumo que pretendia dar à pesquisa; guia pela ideia vinculada ao guia de conduta, de autocondução e condução do outro e escolares uma vez que pressupõe indivíduos que estão muito mais para aprender do que para ensinar. A preposição para já havia, desde o início da pesquisa, sido substituída não apenas no enunciado, mas especialmente na forma de se fazer pesquisa, por outra preposição que diz respeito ao fazer coletivo, ao fazer com o outro. Tentei, ao longo do caminho, flexibilizar seus significados, permitindo dar a elas e ao projeto um outro sentido, compartilhando da ideia de que as palavras deslocam-se permanentemente, assumindo diferentes significados “de acordo com as circunstâncias, objetivos e modos de expressão de quem as profere” (GARCIA; OLIVEIRA, 2010). Contudo, ainda que eu usasse outras expressões, ainda que eu conduzisse a pesquisa de forma diferente, ainda que eu pensasse num guia com outro tom, ainda assim seria um GUIA. E como nos diz Foucault: “o saber decepciona, inquieta, secciona, fere”21. Feri-me com a possibilidade de estar elaborando um material afinado com o exercício do poder, na medida em que um guia configura-se como uma das estratégias de educação em saúde, com a pretensão, dentre outras, de interferir nas escolhas e no estilo de vida dos indivíduos. E uma das poucas certezas em que me ancoro, desde sempre, é que não quero ser veículo da normatização; não quero

21Frase citada por Rosa Maria Bueno Fischer no texto “Na companhia de Foucault: multiplicar acontecimentos” publicado pela Revista Educação & Realidade em 2004. 95

ampliar a rede de micropoderes que produz gestos, comportamentos e corpos; não quero elaborar estratégias de governamento para a infância. Os Guias Alimentares no Brasil, e em diferentes países, são concebidos a partir de dados epidemiológicos que, ao dimensionar o risco, desencadeiam ações em saúde norteadas pelo estilo de vida saudável. Estilo esse que deve ser assumido [consumido], preventivamente, como uma atitude de autocuidado. Essas tecnologias de si, travestidas de uma autonomia individual [autonomia desde que...], torna-se, nesse contexto, uma forma de controle sutil que incita o autocontrole e suscita a culpabilização, justamente pela falta de controle frente aos riscos que nos são predimensionados [hiperdimensionados], pela mídia e pelos especialistas, referendados, obviamente, pelo cientificismo biomédico (CASTIEL; DIAZ, 2007). Vivemos assim a hipervigilância: eu me vigio, você me vigia, nós nos vigiamos [...] todas as pessoas vigiam umas às outras. O indivíduo vigiado vigia, o indivíduo obediente ordena [...] (NETO, 2010). É o panóptico22 e o sinóptico23 atuando em sinergismo. Articulam-se, desse modo, o mecanismo disciplinar e o regulamentador. O poder se incumbiu tanto do corpo quanto da vida (FOUCAULT, 2002). Foucault, ao pensar as relações de poder – os modos de ação sobre a ação dos outros – além de desterritoralizar meus saberes frente ao “objeto” de estudo, me instigou a pensar, sobretudo, como me constituí como sujeito do conhecimento [e o quanto me assujeitei às práticas discursivas do saber-poder] e como sujeito de ação sobre o outro (VEIGA-NETO, 2011). Nessa mesma direção, fui acionada por Boaventura de Sousa Santos (2005; 2010b) a refletir sobre o campo da nutrição, trazendo questões que muito contribuíram para a mudança de rota: o quanto o campo tem de colonizado e de colonizador? Em que dimensão pensamosagimos, nós nutricionistas/especialistas, como se europeus ou norte-americanos fôssemos? O quanto reforçamos a assimetria entre o Norte e o Sul ao embasarmos as nossas práticas cotidianas no recomendar/seguir (eles recomendam e nós seguimos)? O que foi/é deixado de fora pelos currículos que nos formaram/formam? O quanto as políticas públicas

22 Panóptico é metaforicamente utilizado por Foucault para falar do olhar invisível que tudo vê sem ser visto. Olhar que ao impregnar quem é vigiado, faz com que o funcionamento do poder se dê permanentemente mesmo quando as ações são descontínuas (Machado, 1982; Veiga-Neto, 2011).

23 Diferentemente de panóptico, onde muitos podem ser controlados por poucos, no sinóptico muitos observam passivamente a poucos e se autocontrolam por efeito de demonstração e convencimento (Castiel; Diaz, 2007). 96

brasileiras em educação e saúde estão sujeitas ao fracasso pela monocultura da ciência moderna? Como podemos, cotidianamente, reconhecer a existência de outros saberes? Como podemos “aprender com o Sul usando uma epistemologia do Sul”? Como pensarfazer uma “ciência que seja prudente para uma vida decente”? Ferraço – um cotidianista instigante apresentado por Inês Barbosa de Oliveira e Paulo Sgarbi no livro “Estudos do cotidiano e Educação”, alimenta as minhas subversões quando nos fala - a partir do paradigma de um conhecimento prudente (paradigma científico) para uma vida decente (paradigma social) de Boaventura Santos (2010c), de “uma ciência que possa ver-se como capaz de proporcionar melhores condições de vida aos seres humanos. Que tenha cor, sabor e cheiro. Que seja mais lúdica, mais solta” (FERRAÇO, 1999). Fui, portanto, afetada pela experiência de ser atravessada pelos fios de Certeau e de suas redes. Experiência compreendida no sentido de Larrosa (2002) como “aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” e como complementa Veiga-Neto (2010) – “e efetivamente nos transforma”. Fomos transformados - eu e meu projeto. Nesse novo modo de pensarfazer pesquisa [que estou a aprender fazendo], os praticantes do cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor” deixaram de compor as estratégias metodológicas para a elaboração de um “Guia Alimentar” e passaram a ser atores/autores centrais da pesquisa. Compartilhar como fui/fomos nos modificando e nos constituindo cotidianamente na nossa pesquisa, reforça a ideia de que nem tudo está posto e que nada é permanente, instigando a nós e a nossos pares a fazer novas travessias, a priori, inimagináveis. E voltando ao começo com Paulo Freire: “mudar é difícil, mas é possível”.

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ALINHAVANDO UM PONTO FINAL

Posicionei-me, ao longo dessa pesquisa, de modo a não perder de vista os vagalumes – Certeau, Nilda Alves, Morin, Ginzburg, Inês Barbosa de Oliveira, Boaventura de Sousa Santos, Paulo Freire e tantas outras luzes pulsantes. Luzes, ainda que intermitentes, capazes de fazer sobreviver em nós uma atitude de valorização da experiência, da criação, da invenção, da liberdade, da imaginação e da instauração de outros modos de sentirpensarfazer que resistem [assim como os vagalumes24] ao saberpoder de uma ciência moderna que se pretende totalitária, colonizadora e homogeneizante. Nessa experiência, aqui entendida como aquilo que nos passa, que nos acontece, que nos toca (LARROSA, 2002), fui tocada pela potência da pesquisa nosdoscom os cotidianos e atravessada pelos pensaresfazeressaberes dessas crianças que deslocaram minhas certezas e me fizeram (re)pensar a prática educativa e o pensarfazer pesquisa. As crianças praticantes revelaram, a cada instante, as múltiplas invenções, subversões e transgressões possíveis nocom o cotidiano escolar, ainda que muitos possam supor que nesse espaçotempo só exista repetição, reprodução, mesmidade e consumo passivo daquilo que é supostamente instituído pelas autoridades científicas e governamentais. Vivendo o cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor” desinvisibilizamos uma constelação (SANTOS, 2010a) de conhecimentos em alimentação, nutrição e saúde, produzidos e compartilhados pelas criançaspraticantes, que não podem, de maneira alguma, ser negligenciados por nós pesquisadoresprofessores e especialistas outros do campo da educação alimentar e nutricional. Estou convencida de que os conhecimentos e instrumentos, inclusive os guias alimentares, precisam ser tecidos com e não para ou sobre elas. Tecidos a partir de seus pensaresfazeressaberes com toda a decência e boniteza que a tarefa de pesquisaraprenderensinar exige de nós. Estou convicta de que precisamos de menos regras, normas e prescrições e de mais ecologias das práticas de saberes dentrofora das escolas.

24 Didi-Huberman (2011), no livro “Sobrevivência dos vaga-lumes”, atravessa pensamentos de diferentes filósofos, escritores e artistas, trazendo a metáfora do vagalume na perspectiva da resistência a diferentes formas de opressão. Aproprio-me, portanto, dos vagalumes metafóricos com a mesma intenção. 98

Precisamos, insistentemente, caminhar atentos para não cairmos nas armadilhas da modernidade que nos formou [e que ainda nos forma]; precisamos exigir, de nós, a coerência entre o discurso e a prática; precisamos, sobretudo, saber para quem, por que, contra quem, a favor de quem pesquisamos e produzimos, cientes de que as nossas escolhas presentes serão responsáveis pela construção dos futuros possíveis. Futuros que, criticamente esperançosa, desejo que sejam mais cheios de cores, cheiros, saberes e sabores.

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APÊNDICE A – Termo de consentimento livre e esclarecido

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO BIOMÉDICO INSTITUTO DE NUTRIÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ALIMENTAÇÃO, NUTRIÇÃO E SAÚDE

Termo de consentimento livre e esclarecido

Este documento lhe dará informações e solicitará sua autorização para que seu (sua) filho (a) participe das aulas da oficina “Corpo, Cor e Sabor” oferecida pelo Núcleo de Arte Leblon à turma do 3º ano do ciclo do ensino fundamental. As aulas acontecerão no horário escolar e serão conduzidas pelos professores da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro André dos Santos Brilhante e Maria da Glória Pinheiro Rezende. As informações sobre alimentação, nutrição e saúde serão discutidas a partir de atividades educativas com jogos de tabuleiro, vídeos, encenações teatrais, leituras de livros e contações de histórias. Deixamos claro, ainda, que não serão utilizados materiais e objetos cortantes, como facas e similares, bem como equipamentos de cozimento de alimentos, como forno e fogão, que coloquem em risco a integridade física de seu (sua) filho (a). Essa oficina – “Corpo, Cor e Sabor”, faz parte da pesquisa intitulada “Currículos pensadospraticados, em alimentação, nutrição e saúde no cotidiano escolar”, que está sendo desenvolvida pela Professora-Pesquisadora Maria da Glória Pinheiro Rezende e coordenada pela Professora- Doutora Eliane de Abreu Soares. A pesquisa tem como objetivo tornar visível os currículos pensados e praticados, em Alimentação, Nutrição e Saúde, pelos alunos e professores no cotidiano escolar, contribuindo para o ensino- aprendizagem desses conteúdos. Os participantes da pesquisa [alunos e professores] serão beneficiados pela possibilidade de dialogar [conversar] sobre questões relativas à alimentação e saúde, construindo coletivamente outros modos de pensar, aprender e ensinar sobre este tema de grande importância nas escolas, nas famílias e em toda a sociedade. Gostaríamos de esclarecer que a participação de seu (sua) filho(a) não terá nenhuma despesa e será totalmente voluntária, podendo você: recusar-se a autorizar tal participação, ou mesmo desistir a qualquer momento, sem que isto 105

acarrete qualquer prejuízo à sua pessoa ou a seu (sua) filho(a). Esclarecemos, ainda, que as informações e imagens das crianças serão utilizadas somente para fins específicos das aulas e da pesquisa. É assegurado o completo sigilo de identidade de seu (sua) filho (a) quanto à participação neste estudo, incluindo a eventualidade da apresentação dos resultados deste estudo em congressos e periódicos científicos. Ao final dos dois semestres letivos, realizaremos um encontro com os responsáveis para conversarmos sobre a participação de seus (suas) filhos (as) nas aulas e trocarmos ideias sobre a alimentação dos mesmos. Possíveis riscos associados à pesquisa, como constrangimentos [vergonha, acanhamento] ou falta de vontade por parte de seu (sua) filho (a) em participar das atividades com a turma, serão considerados e respeitados pelos professores, conferindo a ele (ela) o amplo direito de não participar. Em caso de dúvidas:

Profª Drª Eliane Abreu Soares ([email protected]) e Profª Ms. Maria da Glória Pinheiro Rezende ([email protected]).Telefone: (21) 998192006 Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Centro Biomédico / Instituto de Nutrição Endereço: Rua São Francisco Xavier, 524, Pavilhão João Lyra Filho, 12º andar, Bloco D, sala 12.023 - Rio de Janeiro. Telefones: (21) 2334-0679 ou 2334-0722

Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Pedro Ernesto (CEP/HUPE) Endereço: Avenida 28 de Setembro 77 – Térreo, Vila Isabel – Rio de Janeiro. Telefone: (21) 2868-8253

Diante do exposto nos parágrafos anteriores eu, firmado abaixo, ______concordo com a participação de meu (minha) filho (filha) na oficina “Corpo, Cor e Sabor” e na pesquisa intitulada “Currículos pensados e praticados, em Alimentação, Nutrição e Saúde, no cotidiano escolar”. Eu fui completamente orientado (a) pela Professora Maria da Glória Pinheiro Rezende de acordo com sua natureza, propósito e duração. Eu pude questioná-la sobre todos os aspectos do estudo. Além disto, ela me entregou uma cópia das folhas de informações para os participantes, a qual li e compreendi. Deu-me, ainda, plena liberdade para decidir acerca da espontânea participação de meu (minha) filho 106

(a) nesta pesquisa. Estou recebendo uma cópia assinada deste termo, estando as duas páginas do mesmo rubricadas pelo responsável pela pesquisa e por mim.

Responsável pelo aluno participante: ______Data: ______Assinatura: ______

Responsável pela pesquisa: ______Data: ______Assinatura: ______

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APÊNDICE B – Artigo submetido à Revista Saúde e Sociedade

Representações gráficas de guias alimentares: leituras plurais das criançaspraticantes

Maria da Glória Pinheiro Rezende Nutricionista e Professora de Educação Física. Doutoranda em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professora do Núcleo de Arte Leblon – Centro de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Endereço: Praça Nossa Senhora Auxiliadora, s/nº, Leblon, CEP 22441-050, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

Luciléia Granhen Tavares Colares Nutricionista. Professora Associada do Instituto de Nutrição Josué de Castro da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ Endereço: Avenida Brigadeiro Trompowisk, S/N. Centro de Ciências da Saúde (CCS), Bloco J, 2º andar, Sala 24, Cidade Universitária, CEP 21941-599, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

Inês Barbosa de Oliveira Pedagoga. Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Endereço: Rua São Francisco Xavier, 524, Maracanã, CEP 20550-900, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

Eliane de Abreu Soares Nutricionista. Professora Associada do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Endereço: Rua São Francisco Xavier, 524, 12ºandar, Bloco D, Maracanã, CEP 20550-900, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Comprovante de submissão

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Representações gráficas de guias alimentares: leituras plurais das criançaspraticantes

Resumo

Neste artigo narraremos parte do nosso caminhar no cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”, conduzida por professores com formação em diferentes linguagens [Nutrição, Educação Física, Artes Cênicas, Dança e Vídeo], no Núcleo de Arte Leblon – Espaço de Extensividade da Secretaria Municipal de Educação da cidade do Rio de Janeiro. Essa oficina tem como proposta estimular a “curiosidade epistemológica” e desinvisibilizar os currículos pensadospraticados em alimentação, nutrição e saúde, permitindo conhecer os modos de pensaraprenderensinar valorizados pelas criançaspraticantes, bem como suas redes de valores e crenças frente ao tema. Pretendemos trazer para o centro da nossa narrativa, os diálogos, as tensões, os conflitos, as negociações e as tessituras de conhecimentos das criançaspraticantes do 3º ano do ensino fundamental, que com suas “artes de fazer”, revelam uma pluralidade de leituras sobre as representações gráficas de guias alimentares de diferentes países. Estamos convencidos de que, ao recriarem, subverterem e ressignificarem os guias alimentares e outros artefatos oficiais, os praticantes, com suas “artes de fazer”, produzem os currículos pensadospraticados nos cotidianos escolares. Currículos que abarcam a pluralidade e a singularidade dos fazeressaberes dos sujeitos que habitam as escolas. Currículos com cor, sabor e cheiro. Nesse percurso metodológico, somos agenciados pelo pensamento potente de Boaventura de Sousa Santos, Paulo Freire, Michel de Certeau e de cotidianistas brasileiras como Nilda Alves e Inês Barbosa de Oliveira.

Palavras-chave: currículos pensadospraticados; criançaspraticantes; cotidiano escolar; alimentação.

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Graphical representations of food guides: plural readings of practitioners/children

Abstract

In this article we will tell part of our daily walk in the workshop "Body, color and flavor," conducted by teachers trained in different languages [Nutrition, Physical Education, Performing Arts, Dance and Video] in Leblon Art Center - extensiveness space of the Municipal Department of Education of the city of Rio de Janeiro. This workshop has the purpose to stimulate the "epistemological curiosity" and make visible the thought/performed curriculum in food, nutrition and health, allowing to know the ways of thinking/learning /teaching valued by practitioners/children as well as their grid of values and beliefs across the theme. We intend to bring to the center of our narrative, the dialogues, tensions, conflicts, negotiations and compositions of the knowledge of practitioners/children from the 3rd grade of elementary school, which with its "arts of making" reveal a plurality of readings on graphical representations of food guides from different countries. We are convinced that by recreating, subverting, and resignifying the food guides and other official artifacts, the practitioners, with its "arts of making" produce thought/performed curriculum in school routine. Curriculum that embrace the diversity and the uniqueness of doings/knowledge of the subjects inhabiting the schools. Curriculum with color, taste and smell. In this methodological course, we are touted by powerful thoughts of Boaventura de Sousa Santos, Paulo Freire, Michel de Certeau and of the Brazilians Nilda Alves and Inês Barbosa de Oliveira.

Keywords: thought/performed curriculum; practitioners/children; school routine; food.

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Introdução

Nesse texto pretendemos desinvisibilizar os pensaresfazeressaberes tecidos coletivamente pelas criançaspraticantes (Certeau, 2012) do cotidiano escolar da oficina “Corpo, Cor e Sabor” que, com suas astúcias, táticas e modos de pensaraprenderensinar, desestabilizam as nossas certezas e desnaturalizam os nossos pensaresfazeressaberes no campo da alimentação, nutrição e saúde. As crianças, muito mais potentes do que supostamente somos capazes de imaginar, com suas “curiosidades epistemológicas” (Freire, 1996) e lógicas operatórias outras, nos fazem pensar diferentemente sobre os conhecimentos, currículos e artefatos oficiais que foram sendo naturalizados pelo pensamento hegemônico da modernidade cientificista. Os fazeressaberes destas crianças e os deslocamentos que eles produzem em nós professorespesquisadores, cotidianamente, nos remetem à frase clássica do dramaturgo Bertold Brecht onde “nada deve parecer natural”. Traremos, assim, para o centro da nossa narrativa, os diálogos, as tensões, os conflitos, as negociações e as tessituras de conhecimentos desses praticantes do cotidiano, que com suas “artes de fazer” (Certeau, 2012), revelam uma pluralidade de leituras sobre as representações gráficas de guias alimentares de diferentes países. Guias e ícones que deveriam, segundo documentos oficiais, ser uma ferramenta da educação em alimentação e nutrição, ao “facilitar a adoção de escolhas alimentares mais saudáveis em uma linguagem que seja compreendida por todas as pessoas e que leve em conta a cultura local” (Brasil, 2014). Estamos “criticamente esperançosos” (Freire, 1996) que, ao tornamos visível e credível os pensaresfazeressaberes dessas crianças, bem como os usos que as mesmas fazem de um artefato curricular amplamente difundido nas diferentes esferas de ensino, possamos contribuir para a revalorização dos saberes cotidianos (Oliveira, 2006), instigando processos de construção de ferramentas em educação alimentar e nutricional [os próprios guias e tantos outros] que experenciem a horizontalização das relações de saberes (Santos, 2010a) e que reconheçam os praticantes comuns como sujeitos e produtores de conhecimentos válidos.

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Fundamentos teórico-epistemológico-metodológicos

Nessa pesquisa, tecida e partilhada no cotidiano escolar, nos apoiamos, especialmente, sobre as ideias de Boaventura de Sousa Santos, Michel de Certeau, Inês Barbosa de Oliveira e Paulo Freire. Boaventura de Sousa Santos ao propor a “Sociologia das Ausências” nos desafia à desinvisibilização de práticas e saberes que foram historicamente invisibilizados, silenciados e ativamente produzidos como não existentes pelas lógicas monolíticas da modernidade. A sociologia das ausências atua, segundo o autor, substituindo monoculturas por ecologias, dentre elas a ecologia de práticas de saberes, a qual vem confrontar a lógica da monocultura do saber e do rigor científicos com outros saberes e outros critérios de rigor que se fazem presentes nas práticas cotidianas (Santos, 2010a). Michel de Certeau (2012), ao escrever “A invenção do cotidiano”, nos inspira a entender o cotidiano escolar como um espaçotempo de invenção para além de um lugar de reprodução, repetição e consumo passivo, buscando ali perceber as microdiferenças nas maneiras de fazer de seus praticantes. A partir de suas ideias observamos as artes de fazer que se tecem em redes de ações concretas - de usos e táticas - das crianças e professores praticantes que inserem criatividade e pluralidade no cotidiano, potencializando o pensaraprenderensinar de conteúdos, comportamentos e valores para além do previsto oficialmente. Inês Barbosa de Oliveira (2012), tecendo uma nova trama com os fios de Boaventura e de Certeau, nos instiga com o conceito de currículos pensadospraticados, deixando clara, pelo neologismo empregado, a indissociabilidade existente entre reflexãoação, práticateoria. Seria, portanto, no cotidiano escolar que seus praticantes comuns [alunos e professores], ao tensionarem, dialogarem e ressignificarem os currículos e outros artefatos oficiais [dentre eles o guia alimentar e sua representação gráfica], criam os currículos pensadospraticados nas escolas. Currículos que abarcam a pluralidade e singularidade de fazeressaberes dos sujeitos que habitam a escola. Nilda Alves (2001) delineia os movimentos das pesquisas nosdoscom os cotidianos propondo que mergulhemos na complexidade do cotidiano com todos os sentidos – com um “sentimento de mundo”, nos permitindo cheirar, tocar, ouvir, saborear... e mais do que ver para crer, crer para ver, para perceber e compreender os fazeressaberes dos praticantes comuns. Propõe, ainda, que nos permitamos “virar de ponta cabeça” para nos despirmos do já sabido, do que herdamos da modernidade. Nesse mergulho devemos “beber de todas as 113

fontes”, considerando, inclusive e especialmente, aquelas comumente desprezadas, desqualificadas pelo cientificismo. Nos aconselha a “narrar a vida e literaturizar a ciência”, aprendendo a narrativizar as práticas, deixando de lado a descrição impessoal praticada pelas pesquisas afinadas com o paradigma hegemônico. E por fim, deixa claro que o que interessa às pesquisas nosdoscom os cotidianos são as pessoas, os praticantes porque os vê em ato o tempo todo. Paulo Freire (1996), com a boniteza de sua fala e de sua prática, bem como com a necessária coerência entre elas, nos acompanha desde o início de nossa formação, como professorespesquisadores, permitindo que aqui estejamos, por mais de duas décadas, ao acreditarmos, como e com ele, que, dentre outras exigências, ensinar [e também aprender] exige a consciência do inacabamento, a escuta, o diálogo, o respeito aos saberes dos educandos e a convicção de que “mudar é difícil, mas é possível” (Freire, 2014a, p. 132). Estamos a caminhar, com ele, convictos de que “o grande valor da educação está em que, não podendo tudo, pode muita coisa” (Freire, 2014b, p. 214). Movidos por esses pensamentos, mergulhamos com todos os sentidos (Alves, 2001), no nosso cotidiano e na cotidianidade de nossas crianças, esperançosos de que, juntos, estaríamos a pensar em espaçostempos que garantissem a diversidade, a liberdade, a criatividade, a experimentação, a criticidade, a ética, a estética, a solidariedade, a esperança, o pensaraprenderensinar coletivamente e tudo o mais que for necessário para despertar em nossas crianças, e em nós também, a decência e a boniteza da prática educativa (Freire, 1996). Nossos encontros potentes com as crianças, centro dessa narrativa, aconteceram em 2014 na oficina “Corpo, Cor e Sabor” no Núcleo de Arte Leblon – Centro de Pesquisa e Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte da Rede Municipal de Educação do Rio de Janeiro. As crianças, que tinham entre 8 e 9 anos de idade, cursavam o 3º ano do ensino fundamental na Escola Municipal Sérgio Vieira de Melo, vizinha ao Núcleo, localizada no bairro do Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro. Essa oficina, que acontecia duas vezes por semana, com duração de 1h, tinha como proposta estimular a “curiosidade epistemológica” (Freire, 1996) e desinvisibilizar (Santos, 2010a) os currículos pensadospraticados (Oliveira, 2012) em alimentação, nutrição e saúde, permitindo conhecer os modos de pensaraprenderensinar valorizados pelas crianças praticantes (Certeau, 2012), bem como suas redes de valores e crenças frente ao tema. Ao longo desse ano letivo, tivemos três turmas do 3º ano frequentando a oficina, totalizando 94 crianças participantes. Desfrutando da diversidade de espaços presentes no Núcleo de Arte Leblon, bem como do seu entorno, no decorrer de nossos encontros foram usadas diferentes estratégias 114

metodológicas a fim de estimular a participação ativa das crianças como: Atividades corporais; de desenho e pintura; de escrita de textos; de interpretação cênica das atividades cotidianas; de peças de teatro, de vídeos, de filmes e documentários que abordam o tema alimentação; de visitas aos mercados e à feira livre do bairro; de oficina sensorial com alimentos; de jogos de nutrição; de experimentação de receitas de família e de novos sabores; de leitura de livros; de plantio de mudas e de horta suspensa, dentre outros. Pretendíamos que essa pluralidade de experiências possibilitasse desconstruir a persistente afonia e invisibilidade das crianças nas investigações, conferindo a elas o papel de sujeitos de conhecimento, com voz e ação, atuando, assim, como autores do conhecimento e da pesquisa ali tecida. As atividades foram pensadas considerando as singularidades, as potencialidades das crianças e os caminhos que elas nos apontavam entre um encontro e outro, sempre articuladas pela via do prazer, da solidariedade e da autoria, tendo como fio condutor a alimentação, nutrição e saúde. Os encontros foram conduzidos por três professores, incluindo a professorapesquisadora, com formações híbridas e complementares [teatro, dança, vídeo, educação física e nutrição], que já atuavam em parcerias na oficina “Corpo, Cor e Sabor” antes mesmo de assumirmos o nosso espaçotempo cotidiano como lócus da pesquisa. Percebemos, lendo os cotidianistas e vivenciando as nossas experiênciapráticas, que a pesquisa nosdoscom o cotidiano requer um processo de (re)invenção permanente do ato de pesquisar, requerendo, como nos diz Boaventura de Sousa Santos, a pluralidade e transgressão metodológicas (Santos, 2010b). Requer, sobretudo, “considerar, como formas de saber/fazer/pensar/sentir/estar no mundo válidas, tudo aquilo que a escola tem sido levada a negligenciar em nome da primazia do saber científico (...)” (Oliveira, 2008, p.111). A pesquisa nosdoscom o cotidiano também requer, como nos ensina Nilda Alves (Alves, 2001) que narremos a vida e literaturizemos a ciência. É preciso, pois, uma outra escrita, outras “artes de dizer” (Certeau, 2012), a arte de contar histórias. Histórias que, nesse texto, serão narradas na primeira pessoa do plural porque tecidas cotidiana e coletivamente por todos os praticantes dessa pesquisa. Esta forma de sentirpensarfazer pesquisa ainda nos aponta a necessidade de, astuta e taticamente, juntarmos palavras a fim de mostrarmos que os binarismos e as dicotomias são insuficientes para narrar e entender o cotidiano que habitamos e estamos a pesquisar. Por isso, o leitor encontrará [encontrou] ao longo da narrativa, junções de palavras com a intenção de mostrar a indissociabilidade dos mesmos ou para conferir a eles um outro sentido (Alves e Garcia, 2008). 115

Esclarecemos que todas as crianças participantes da oficina tiveram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado por seus responsáveis legais, após aprovação do projeto de pesquisa pelo comitê de ética e pesquisa do Hospital Pedro Ernesto – UERJ, sob o número 642.493, e pelos setores responsáveis vinculados à Secretaria Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro. As crianças também tomaram ciência de que as atividades da oficina seriam registradas, por escrito [caderno de campo] e por imagem [fotografias e vídeos], para serem utilizadas em trabalhos científicos, congressos e na tese de doutorado de sua professorapesquisadora.

Narrando os encontros potentes com as crianças no cotidiano escolar

Ao longo da convivência potente com nossas criançaspraticantes, muitos foram os seus fazeressaberes que desnaturalizaram nossas práticas e saberes, nossas percepções preconceituosas sobre o nosso trabalho. Dentre eles, a pluralidade e a singularidade de leituras das representações gráficas de guias alimentares de diferentes países. Os guias alimentares, segundo estudiosos (Barbosa et al, 2008), vêm sendo elaborados, por diferentes países, especialmente a partir da década de 90, como um importante facilitador da educação alimentar e nutricional ao adaptar conhecimentos científicos sobre recomendações nutricionais e composição de alimentos à linguagem popular. Mais de cem países espalhados pelos diferentes continentes, em momentos distintos, elaboraram guias, mas não necessariamente o expressaram graficamente (FAO/WHO, 2015). As representações gráficas, em um guia alimentar, teriam o objetivo de auxiliar o público alvo a identificar com mais facilidade o modo como os alimentos devem ser incluídos na dieta, expressando os conceitos de variedade, frequência e proporção (Calderón & Morón, 1999). A diferença na representação gráfica se dá, na maioria das vezes, em função da adequação dela à cultura de cada país. Atualmente, para citar alguns exemplos, podemos dizer que os Estados Unidos, Inglaterra e Austrália optaram por um prato; China pelo pagode; Alemanha e Costa Rica pelo círculo; Canadá pelo arco-íris, Tailândia pelo formato de uma flâmula; Guatemala e Honduras por uma caçarola; Venezuela por um peão; Portugal pela roda e Aústria, Bélgica, Espanha, Nigéria e Israel optaram pela pirâmide. O Brasil, por sua vez, utilizou, até 2014, uma pirâmide alimentar cujo ícone foi adaptado da versão americana publicada em 1992 (Philippi et al, 1999). Enfim, os países, procuram eleger, através de processos diversos e apropriados às suas culturas, um ícone significativo ao grupo a que se destina a fim de favorecer a educação alimentar e nutricional. 116

Tendo em vista a presença de ícones de guias, especialmente a pirâmide alimentar, em livros didáticos, em jogos educativos em nutrição e em embalagens de alguns alimentos, consideramos interessante apresentar às crianças as representações de diferentes guias com o objetivo de tornar visível a pluralidade e a singularidade de leituras possíveis diante de imagens, naturalizadas pelo saberpoder científico monolítico. Nossa “curiosidade epistemológica” (Freire, 1996) direcionava os nossos sentidos para identificar os conflitos, os diálogos e os usos que as crianças fariam desses artefatos curriculares, criados, comumente, com e para especialistas, desconsiderando, na maioria das vezes, o fazer com os seus praticantes ordinários. Nesse encontro, antes de apresentarmos as imagens que seriam transmitidas por um projetor na sala de vídeo do Núcleo de Arte, conversamos com as crianças sobre a ideia de observarem as figuras como se detetives fossem, ou seja, com aquele olhar investigativo tentando descobrir o que seus criadores tentavam nos dizer com seus desenhos e cores. Apresentamos, assim, às crianças: a roda de Portugal; o arco-íris do Canadá; a pirâmide americana de 1992 (USDA, 1992), a pirâmide alimentar adaptada por Philippi et al (1999); o prato americano (FAO/WHO, 2015) e o prato do Reino Unido (FAO/WHO, 2015). Fomos surpreendidos por diversas leituras possíveis frente às imagens pensadas pelos especialistas no assunto. O que para nós especialistas foi naturalizado como ideia de proporção e variedade, por exemplo, foi entendido numa lógica totalmente diferente, colocando em “xeque” todo o discurso semiótico de que a representação gráfica dos guias possui o potencial de comunicar aquilo que se quer transmitir. Há, portanto, na concretude do cotidiano escolar, nos usos de seus praticantes, uma pluralidade de leituras daquilo que a ciência, supostamente, nos impõe como uma única leitura possível. O guia alimentar português, produzido em parceria com os profissionais da Universidade do Porto (2004) e intitulado “Guia – Os Alimentos na Roda”, elegeu, como o título já enuncia, a roda como a sua representação gráfica, a qual tem sido, segundo o texto oficial, utilizada como instrumento essencial na promoção de hábitos alimentares saudáveis. A roda é formada por sete grupos de alimentos, em diferentes dimensões, com a finalidade de transmitir a ideia de proporção e variedade. Após observarem a imagem, começaram por demanda espontânea, cada um no seu tempo, a falar o que perceberam e entenderam sobre a roda portuguesa. Fizemos, logo de início, a seguinte pergunta: “Que imagem é essa?”. Muitas, e diversas, foram as respostas: “Um CD de alimentação”; “Uma roda gigante”; “Uma bola de futebol.”; “Uma pizza saudável.”; Uma nave espacial” e “Um planeta saudável”. Percebe-se que todas as nomeações transbordam sentidos e significados que fazem parte do universo 117

infantil. O CD das músicas e dos vídeos; a roda gigante dos parques de diversão; a bola de futebol que dispensa maiores explicações; a pizza, que ainda sendo uma invenção do outro lado do hemisfério, está presente nos momentos de celebração de muitas famílias brasileiras. A nave espacial que, presente em livros e filmes infantis, sempre mexe com o imaginário de todos nós. O planeta saudável e sustentável é a retórica de noticiários e programas de televisão, bem como de livros didáticos e programas pedagógicos das escolas. Todos esses elementos fazem parte da concretude de seus praticantes. A roda, solta nesse guia, não reverbera significados, pois encontra-se fora da sua funcionalidade. Ali, ela não é a roda da bicicleta, a roda do carrinho de ferro ou do carrinho de rolimã. Ali, ela é a roda pensada por especialistas que, apesar de escreverem em seus documentos sobre a importância de permitir que todas as partes relevantes da comunidade se envolvam com a produção do material educativo (FAO/WHO, 1996), possivelmente, não consideram relevantes os fazeressaberes das crianças nos seus cotidianos. Ainda sobre a “Roda dos Alimentos” ouvimos que os pedaços – como eles denominam os grupos de alimentos, representariam lugares: o grupo das frutas seria o Rio de Janeiro; o grupo das leguminosas, que as crianças nomeiam, simplesmente, como o pedaço dos feijões seria a Paraíba e o grupo do leite representaria a fazenda, a alimentação do campo. Nesse momento, ouvindo os diferentes saberes sobre a imagem, uma menina pediu a fala e discordou dos colegas que entendiam dessa maneira. Estabeleceu-se um fórum de discussão, de negociação e de tessitura de novos saberes. Ela afirmou que não via os lugares que algumas crianças descreviam, mas que achava que os pedaços maiores [grupos] diziam respeito ao que as pessoas mais “comem hoje em dia e os pedaços menores é o que menos se come, mas o que deveria se comer mais por ser o mais saudável”. Ao ouvirmos as considerações da estudante, nós professorespesquisadores, dirigimo- nos, novamente, para a imagem a fim de fazer a leitura trazida para a discussão. Observamos que os grupos com dimensões maiores, ou seja, aqueles que de fato, segundo o guia português, deveriam ser consumidos em maior quantidade como os cereais, hortaliças e frutas, eram, pelo ponto de vista da estudante, os mais consumidos, mas, os mais saudáveis, que para ela era os grupos do feijão, do leite e o das carnes, precisariam ter o seu consumo aumentado. Essa lógica de pensar o consumo de alimentos saudáveis desta criança, e de tantas outras que com ela concordaram, é construída culturalmente num país onde não pode, ou ao menos não deveria, faltar o feijão com arroz e, se possível for, a carne, na mesa de cada dia. Quanto ao leite, como grupo que também deveria ser consumido em maior quantidade, ouvimos a explicação de que as crianças precisam tomar leite todo dia. Quando perguntamos 118

de onde vieram tais afirmativas, nos respondiam que foram suas mães, avós ou “aquele programa de televisão”. Mais uma vez, nos deparamos com outras leituras possíveis que deslocam os nossos pensaresfazeressaberes sobre esses artefatos no campo da alimentação e nutrição. Em um momento seguinte, apresentamos a imagem de uma roda de alimentos espanhola, que apresentava outra coloração como pano de fundo dos diferentes grupos: frutas e hortaliças [verde]; cereais e óleos [amarelo] e carnes e leguminosas, bem como leite e derivados [vermelho]. Pedimos, então, mais uma vez, para que as crianças observassem a imagem, procurando identificar as diferenças e semelhanças entre esta e a outra que viram anteriormente. Uma das meninas levantou-se; dirigiu-se até a tela e discursou sobre a sua descoberta:

Aqui eles colocaram o verde pra mostrar que os alimentos mais saudáveis são as frutas e os legumes; o amarelo nesse daqui [cereais] pra mostrar que são mais ou menos saudáveis e vermelho no feijão, na carne e no leite pra mostrarem que são os menos saudáveis. Aqueles que podemos comer muito pouco.

Em seguida, um menino argumentou:

Esquisito isso. O pão que está no amarelo a gente pode comer mais que o peixe? O peixe é que devemos comer sempre. Pão engorda e peixe faz bem pra memória. Minha vó falou isso. Por que ele está no vermelho?.

Essa discussão mostra, mais uma vez, como as lógicas operatórias são múltiplas e tecidas por diferentes redes de saberes culturais, midiáticos, familiares e tantos outros. O semáforo, tão presente na cidade do Rio de Janeiro, passa a fazer parte da leitura possível. As crianças visualizam o movimento de alimentar-se com os diferentes grupos de alimentos, como sendo o tráfego da área urbana: verde – siga – coma à vontade; amarelo - atenção – coma com moderação [mais ou menos]; vermelho – pare – coma muito pouco. Esta leitura, ainda que seja intencional por parte dos indivíduos que conceberam a imagem, tensiona e faz emergir diálogos outros com e sobre a imagem. No encontro subsequente, trouxemos a representação gráfica do Canadá – o arco-íris. Esse ícone, diferentemente da roda que possibilitou uma infinidade de interpretações, não suscitou dúvidas, pois todos o reconheceram como o arco-íris. No arco-íris as quatro cores ficam em evidência, uma vez que constituem a própria imagem. Nessa direção, os quatro grupos de alimentos, na interpretação das crianças, seguem a lógica das cores. Para as crianças, o verde mostra os alimentos saudáveis [frutas e hortaliças]; o amarelo é o café da manhã porque tem o pão [grupo dos cereais]; o azul mostra o leite e outras bebidas [leite e 119

derivados], e o vermelho, por mostrar as carnes, o feijão e o ovo, representaria a “comida”. Quando perguntamos “Como assim a comida?” as crianças nos responderam: “É o que a gente come no almoço e no jantar”. Entra em cena mais uma discussão: “O que se come, então, no café da manhã, por exemplo, não é comida?”. Para muitos, comida é aquilo que dá “sustância”, a qual, segundo as crianças, obtemos, especialmente, nas grandes refeições – arroz, feijão e carne. Na leitura dessa representação gráfica, também se faz presente a lógica do semáforo, ou seja, a faixa verde do arco-íris, onde estão os alimentos considerados saudáveis, indica que podemos comer livremente. Surgem, como podemos ver, as associações entre os grupos e as refeições diárias em função dos alimentos que ali se encontram. Seguindo o propósito de apresentar outras formas de representação gráfica de guias alimentares, trouxemos para a discussão um dos ícones mais difundidos – a pirâmide alimentar. Esta assumiu várias versões, especialmente nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, ao longo dos últimos anos. Optamos, portanto, por apresentar duas versões: a versão americana de 1992 (USDA, 1992) e a pirâmide brasileira, adaptada a partir da primeira, por Philippi et al (1999). A pirâmide alimentar americana, tal como o arco-íris, não causou dúvidas. As crianças estavam, de fato, a observar uma pirâmide. A pirâmide americana apresentava seis grupos [cereais; frutas; hortaliças; carnes, ovos e leguminosas; leite e derivados; óleos e açúcares] e a brasileira, num processo de adaptação, desmembrava o grupo das carnes, ovos e leguminosas, com o argumento, mais do que pertinente, de que o feijão, por ser um alimento presente na alimentação básica do brasileiro e por não possuir o mesmo valor nutritivo que as carnes e os ovos, deveria ser colocado em um grupo específico (Philippi et al, 1999). Cria-se, portanto, o grupo das leguminosas que já se fazia presente, por exemplo, na roda de Portugal. Também, diferentemente da roda, mas seguindo a lógica já iniciada na leitura do arco-íris, a maioria das crianças identifica os grupos como se fossem as diferentes refeições do dia. Uma criança fez questão de dirigir-se até a tela, onde projetávamos as imagens, para apontar cada grupo de alimentos fazendo menção à refeição correspondente. O grupo dos cereais, por ter o pão era o café da manhã; o grupo das carnes representava o almoço e o grupo do leite e derivados, por exemplo, o lanche. A grande maioria concordou e quando um ou outro fazia uma nova observação era apenas no sentido de dizer que aquele determinado grupo, por exemplo, representava o lanche da tarde e não o café da manhã. É interessante notar que, distintamente da leitura dos especialistas, as crianças visualizam os conceitos de hierarquias, proporções, variedades e frequências a partir de lógicas operatórias outras tecidas por diferentes fios de pensaresfazeressaberes. Fios que se entrelaçam muito mais pela sua funcionalidade cotidiana 120

do que pelo monolitismo acadêmico e que já se faziam presentes nas redes de cada praticante. Redes, que nesse processo dialógico, “vão ganhando um sentido próprio, não necessariamente aquele que o transmissor da informação pressupõe” (Oliveira, 2012, p. 69). Vale ressaltar que Philippi et al (1999), quando tornaram pública a “Pirâmide Alimentar Adaptada”, justificaram a utilização da mesma representação gráfica por ter sido a sua imagem aprovada pela população americana após a testagem de várias outras formas. Ficamos a pensar se não seria esse mais um “epistemicídio” (Santos, 2007) cometido pelo saberpoder hegemônico norte-americano tão presente no campo da nutrição – e em outros – no nosso país, na medida em que a população brasileira, consumidora provável do guia [e de todo material dele derivado], tem seus pensaresfazeressaberes desqualificados, subalternizados, menosprezados e desperdiçados na construção da sua representação gráfica. Estaríamos, como tantas outras vezes, a “engolir” no Sul o que “escorrega” do Norte, sem, ao menos, dialogar com o contexto local? (Freire, 2011). Apresentamos também, em outros encontros, a imagem do prato como ícone – a nova representação gráfica americana e o prato do Reino Unido (FAO/WHO, 2015). Ambos, pela presença do garfo, foram imediatamente nomeados como o prato. Inicialmente, a leitura foi a mais simples e consensual possível: “eles querem dizer pra gente comer tudo isso. Comer frutas, verduras, pão, macarrão, leite, chocolate, refrigerante, carne, ovo...”. Até que de repente uma criança se levanta e pergunta: “Mas é pra gente comer isso tudo de uma vez só?”. Outra, imediatamente, responde: “Não. Tem coisa que a gente come no café da manhã, outras a gente come no almoço”. Em seguida, uma criança diz: “Eles deveriam fazer um prato pra cada refeição. Um prato pro almoço, um prato pro jantar, um prato pro café da manhã (...). Assim ia ser melhor pra gente entender.” Uma menina levanta e, passando as mãos pela parede onde a imagem estava sendo projetada, fala: “Eles poderiam fazer um relógio grande e colocar os pratos de cada refeição na hora certa!”. Muitos acharam uma ótima ideia. Nesse momento, quando muitos já haviam se colocado e tantos outros já estavam a brincar com as sombras do seu corpo sobre a projeção da imagem, uma criança se pronuncia: “Podia usar o corpo da gente, colocando os alimentos na cabeça, na barriga, nos braços, nas pernas (...), não podia?”. Começaram, assim, a posicionar as diferentes partes do corpo à frente das imagens [alimentos] que gostariam que ali se alocassem. Aproveitando os indícios, as pistas (Ginzburg, 1989) que essas crianças potentes iam nos deixando a cada encontro, pensávamos sobre a próxima atividade, a próxima conversa, o próximo pensaraprender com elas. Nesse sentido, no encontro seguinte, pedimos para que as crianças se transformassem em criadores dessas imagens, ou seja, seriam elas, agora, os 121

cientistas que, em seus laboratórios, construiriam as representações gráficas a serem utilizadas por elas. Distribuímos, na sala de artes, papéis, lápis, borrachas e réguas, a fim de que dessem início às suas construções individuais ou coletivas. Surgiram desenhos diversos, mas sempre com o fio condutor do cotidiano e do brincar. Eram ícones em forma de escorrega, toboágua, geladeira, prato, relógio, caminhão e semáforo. Uma menina iniciou o desenho de uma criança, cujo corpo estava a ser preenchido pelos alimentos. Esses desenhos, essas representações distintas da pirâmide, do arco-íris, da roda e de tantos outros que não fazem sentido para os nossos praticantes, nos fazem crer na potência dos pensaresfazeressaberes dessas crianças, historicamente, marginalizados nas pesquisas. Paralelamente, motivados por uma turma que chegava ao Núcleo trazendo o lanche do recreio que viria logo a seguir, pedimos às crianças que trouxessem de suas casas as embalagens de todos os alimentos processados [industrializados] que consumiam. Mais uma vez fomos surpreendidos com a quantidade e variedade de embalagens que chegavam a cada aula. Motivados pela discussão e pelo engajamento do outro, a quantidade foi crescendo progressivamente. Reunimos, assim, todas as embalagens e pedimos para que eles fossem separando em grupos, como fazem na aula de matemática, por exemplo, quando reúnem diferentes objetos com a mesma forma geométrica. Percebemos, logo no início, a dificuldade de agruparem a grande diversidade de alimentos. As crianças agruparam, por exemplo, todas as bebidas, independentemente de ser suco de fruta, água, mate ou refrigerante. Agruparam também todas as embalagens de arroz, açúcar, sal, farinha de trigo e de fubá. Achocolatados, café em pó, café solúvel, farinha láctea, ou seja, tudo que poderia ser adicionado no leite também foi alocado no mesmo grupo. Suas lógicas operatórias eram bem diferentes daquelas que nos foram colocadas, naturalizadas pela ciência da nutrição, nos fazendo pensar sobre a possibilidade de arranjos outros, sem que consideremos apenas as afinidades nutricionais. As crianças, mais uma vez, estavam a agrupar as embalagens seguindo a lógica de sua funcionalidade na concretude de seu cotidiano. As criançaspraticantes nos surpreenderam com a pluralização das possibilidades de se interpretar artefatos curriculares que vêm sendo, ao longo dos anos, naturalizados na e pela construção do campo da alimentação, nutrição e saúde. A cada representação gráfica apresentada, elas nos revelaram múltiplas invenções, subversões e transgressões em suas maneiras de fazer e pensar, ainda que muitos possam supor que no cotidiano escolar só exista repetição, reprodução e consumo passivo daquilo que é supostamente instituído pelas autoridades científicas e governamentais. 122

Reflexões finais

Nessa experiência, aqui entendida como aquilo que nos passa, que nos acontece, que nos toca (Larrosa, 2002), fomos tocados pela potência da pesquisa nosdoscom os cotidianos e atravessados pelos pensaresfazeressaberes dessas crianças que deslocaram nossas certezas e nos fizeram (re) pensar a nossa prática educativa e o nosso modo de pensarfazer pesquisa. As crianças praticantes nos revelaram, a cada instante, as múltiplas invenções, subversões e transgressões possíveis nocom o cotidiano escolar, ainda que muitos possam supor que nesse espaçotempo só exista repetição, reprodução, mesmidade e consumo passivo daquilo que é supostamente instituído pelas autoridades científicas e governamentais. Elas nos fizeram crer que “nada deve parecer natural e impossível de mudar”, quando com as suas “artes de fazer” nos surpreenderam com a pluralização das possibilidades de se interpretar artefatos curriculares que vêm sendo, ao longo dos anos, naturalizados na e pela construção do campo da alimentação, nutrição e saúde. Os guias e suas expressões gráficas, por não terem sido tecidos com, não vêm produzindo as curiosidades epistemológicas e os diálogos tão necessários para a experiência de aprenderensinar. Estamos convictos, após vivermos o cotidiano com essas crianças, de que os conhecimentos e instrumentos, no campo da alimentação, nutrição e saúde, precisam ser tecidos com e não para ou sobre elas. Tecidos a partir de seus pensaresfazeressaberes que, sendo o ponto de partida, não devem ser o ponto de chegada. E, entre um ponto e outro, precisamos caminhar atentos para não cairmos nas armadilhas da modernidade; precisamos exigir, de nós, a coerência entre o discurso e a prática; precisamos, sobretudo, saber para quem, por que, contra quem e a favor de quem pesquisamos e produzimos, cientes de que as nossas escolhas presentes serão responsáveis pela construção dos futuros possíveis. Futuros que, criticamente esperançosos, desejamos que sejam mais cheios de cor, cheiro e sabor.

As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de elaboração do artigo.

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Referências

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APÊNDICE C - Artigo a ser submetido à Revista Interface

Jogos de nutrição e a inventividade das criançaspraticantes

Maria da Glória Pinheiro Rezende Nutricionista e Professora de Educação Física. Doutoranda em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professora do Núcleo de Arte Leblon – Centro de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Endereço: Praça Nossa Senhora Auxiliadora, s/nº, Leblon, CEP 22441-050, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

Inês Barbosa de Oliveira Pedagoga. Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Endereço: Rua São Francisco Xavier, 524, Maracanã, CEP 20550-900, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

Eliane de Abreu Soares Nutricionista. Professora Associada do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Endereço: Rua São Francisco Xavier, 524, 12ºandar, Bloco D, Maracanã, CEP 20550-900, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Comprovante de submissão

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Jogos de Nutrição e a inventividade das criançaspraticantes

Resumo

Neste artigo temos como objetivo desinvisibilizar as “artes de fazer das criançaspraticantes em uma experiênciaprática do cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”, no Núcleo de Arte Leblon da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Essa oficina tem como proposta desinvisibilizar os currículos pensadospraticados, bem como as redes de saberes, fazeres, valores e crenças em alimentação, nutrição e saúde das criançaspraticantes do 3º ano do ensino fundamental. Estamos convencidos de que, ao subverterem e ressignificarem os artefatos oficiais, os praticantes produzem os currículos pensadospraticados nos cotidianos das escolas. Esperamos que ao desinvisibilizarmos esses fazeressaberes possamos instigar o exercício da ecologia de saberes na elaboração desses instrumentos e nas práticas educativas dentrofora das escolas. Nesse percurso metodológico, somos agenciados pelo pensamento potente de Boaventura de Sousa Santos, Foucault, Paulo Freire, Certeau, Nilda Alves e Inês Barbosa de Oliveira.

Palavras-chave: currículos pensadospraticados; crianças; cotidiano; alimentação.

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Nutrition Games and inventiveness of practitioners/children

Abstract

In this article we aim to become visible the "arts of making” from the practitioners/children in a practical/experience of the day by day of the workshop "Body, Color and Flavor" in Leblon Art Center of the Municipal Department of Education of Rio de Janeiro. This workshop has the purpose to make visible the thought/performed curriculum, as well as the grid of knowledge, doings, values and beliefs in food, nutrition and health of practitioners/children of the 3rd grade of elementary school. We are convinced that by subverting and resignify the official artifacts, the practitioners produce the thought/performed curriculum in the school routine. We hope that as we make visible these doings/knowledge, we can instigate the exercise of ecology knowledge in the development of these instruments and educational practices in the inside/outside of schools. In this methodological course, we are touted by powerful thoughts of Boaventura de Sousa Santos, Foucault, Paulo Freire, Certeau, Nilda Alves and Inês Barbosa de Oliveira.

Keywords: thought/performed curriculum; children; everyday life; food.

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Los Juegos de Nutrición y la Creatividad de los Niños-Practicantes

Resumem

En este artículo nos proponemos a hacer visible las “artes de hacer” de los niños- practicantes en una experiencia-practica del cotidiano del taller “Cuerpo, Color y Sabor”, del Núcleo de Arte Leblon, de la Secretaria Municipal de Educación de la ciudad de Rio de Janeiro. Dicho taller tiene como propuesta hacer visible los currículos pensados-practicados, así como las redes de saberes, haceres, valores y creencias en alimentación, nutrición y salud de los niños-practicantes del tercer grado de la enseñanza fundamental. Estamos convencidos de que, al subvertir y resignificar los artefactos oficiales, los practicantes producen currículos pensados- practicados en el cotidiano de las escuelas. Creemos, por lo tanto, que al hacer visible estos haceres y saberes podemos estimular un ejercicio de ecología de saberes en la elaboración de estos instrumentos y en las prácticas educativas dentro-afuera de las escuelas. En este recorrido metodológico, somos agenciados por el potente pensamiento de Boaventura de Sousa Santos, Michel Foucault, Paulo Freire, Michel de Certeau, Nilda Alves e Inês Barbosa de Oliveira.

Palabras-clave: Currículos Pensados-Practicados; Niños; Cotidiano; Alimentación.

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Reflexões iniciais

Nesse artigo temos como objetivo desinvisibilizar as “artes de fazer” – as astúcias, as subversões, os usos e as inventividades – das criançaspraticantes em uma experiênciaprática do cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor” no Núcleo de Arte Leblon – Unidade de Extensão Educacional da Secretaria Municipal de Educação da rede de ensino da cidade do Rio de Janeiro que exerce o papel de Centro de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte. Motivados por nossas afinidades e por nossas formações híbridas e complementares [dança, teatro, vídeo, educação física, nutrição] sonhamos juntos um sonho possível, pois, como nos diz Paulo Freire, é “impossível existir sem sonhos”1, especialmente no momento político que vivemos a educação no Rio de Janeiro. A nossa resposta cotidiana ao descaso com a educação, aconteceria, dentrofora de sala de aula, convictos de que a mudança é possível, ainda que difícil. Imbuídos de uma criticidade esperançosa2, pensamos em uma oficina que tivesse como proposta estimular a “curiosidade epistemológica”2 e desinvisibilizar3 os currículos pensadospraticados4 em alimentação, nutrição e saúde, permitindo conhecer os modos de pensaraprenderensinar valorizados pelas crianças praticantes5, bem como suas redes de valores e crenças frente ao tema. Precisamos dizer que a nossa inflexão ao cotidiano não se deu ao acaso. Fomos capturados por Certeau e suas redes na concretude do nosso cotidiano, quando nós professores em nossos momentos de fuga, nos reunimos, subvertendo a ordem, para tomar um café, prosear e fazer ciência (por que não?). Esse encontro potente, com um amigoprofessor, colocou em nossas mãos duas leituras agenciadoras: “A invenção do cotidiano” de Michel de Certeau5 e “Pesquisa no/do cotidiano das escolas – sobre rede de saberes, organizado por Oliveira & Alves6. E como de um fio puxamos outros, vieram entrelaçados Certeau, Nilda Alves, Ferraço, Inês Barbosa de Oliveira, Boaventura de Sousa Santos, Foucault...Se muitos inquietaram nossas verdades, esses nos viraram de ponta a cabeça. Encontramo-nos encantados pela pesquisa nosdoscom os cotidianos que, como nos diz Alves7, nos vira de ponta a cabeça, nos faz criar uma nova organização de pensamento, invertendo todo o processo aprendido, exigindo múltiplos caminhos. E nesses caminhos não cabe mais o pensamento linear, disciplinarizado e hierarquizado que aprisiona nossos fazeressaberes nos currículos oficiais. Não cabe mais seguir à 131

risca os caminhos apriorísticos e os modos de ensinar e aprender ainda tão valorizados no campo da educação. Precisamos, sobretudo, percorrer caminhos, muitas vezes, impossíveis de serem antecipados e que só se revelam durante a caminhada. Os cotidianistas, inspirados por Certeau5, nos ensinam, nos incitam, a conviver com o imprevisível, com o inesperado, com as ações concretas, com as artes de fazer – táticas e astúcias – dos praticantes do cotidiano. A pesquisa nosdoscom o cotidiano requer que, ao narrarmos a vida e literaturizarmos a ciência7, astuta e taticamente, juntemos palavras a fim de mostrarmos que os binarismos e as dicotomias são insuficientes para narrar e entender o cotidiano que habitamos e estamos a pesquisar. As junções têm, portanto, a intenção de mostrar a indissociabilidade das palavras ou para conferir a elas um outro sentido8. Nesse sentirpensarfazer diferentemente, instaurado por Certeau e suas redes, estamos, desde então, subvertendo a lógica que sustenta os espaçostempos da escola. Estamos a caminhar criando espaçostempos outros não previstos na lógica escolar. Estamos a pensar em espaçostempos que garantam a diversidade, a liberdade, a criatividade, a experimentação, a criticidade, a ética, a estética, a solidariedade, a esperança, o aprenderensinar coletivamente e tudo o mais que for necessário para despertar em nossas crianças, e em nós também, a decência e a boniteza da prática educativa2. O ideário neoliberal e a fragmentação do conhecimento que herdamos da modernidade nos obrigam a inventar o cotidiano, a alterar as propostas curriculares, a criar caminhos próprios, a “burlar” as “regras oficiais”. São as táticas do cotidiano nos permitindo estabelecer pontos de contato, conexões e encontros potentes. As pesquisas nosdoscom os cotidianos, como nos sinaliza Oliveira4 têm a convicção epistemológica e política de que os currículos enquanto criações cotidianas dos praticantespensantes das escolas podem contribuir para a tessitura da emancipação social defendida por Boaventura de Sousa Santos3. Ao desinvisibilizarmos os currículos pensadospraticados no nosso cotidiano por aqueles que o praticam [alunos e professores] estamos, portanto, trazendo para a cena o que se (re)cria e (re)inventa, apesar da insistência dos governantes e “autoridades” burocráticas em manter o protagonismo na monocultura hegemônica e em tornar invisível o que de pluralsingular se faz no cotidiano escolar. Somos também acionados por Boaventura de Sousa Santos9,3,10,11 a refletir sobre os diferentes campos de conhecimento, levantando algumas questões: O quanto o campo da educação [e outros também] têm de colonizado e de colonizador? O que foi/é 132

deixado de fora pelos currículos que nos formaram/formam? Como podemos, cotidianamente, exercer a ecologia de saberes? Como podemos “aprender com o Sul usando uma epistemologia do Sul”? Como pensarfazer uma “ciência que seja prudente para uma vida decente”? Desenhamos, essa oficina, esperançosos de que nossos conhecimentos seriam construídos coletivamente se mergulhássemos com todos os sentidos na cotidianidade de nossas crianças. Desejávamos um cotidiano com mais cor, sabor e cheiro, um cotidiano mais solto, mais cheio de alegria, onde os praticantes, através de suas “artes de fazer”5, ao entrarem em contato com os currículos oficiais e seus artefatos recriassem, ressignificassem e subvertessem seus usos, desnaturalizando saberes, fazeres e poderes hegemônicos. A experiênciaprática, centro dessa narrativa, aconteceu em 2014 com as criançaspraticantes de três turmas do 3º ano do ensino fundamental da Escola Municipal Sérgio Vieira de Melo, vizinha ao Núcleo de Arte, localizada no bairro do Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro, que frequentavam a oficina, no turno escolar, duas vezes por semana, com duração de 1h. Esclarecemos que todas as crianças participantes da oficina tiveram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado por seus responsáveis legais, após a aprovação do projeto de pesquisa pelo comitê de ética e pesquisa do Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob o número 642.493. As crianças também tomaram ciência de que as atividades seriam registradas, por escrito e por imagem, para serem utilizadas em trabalhos científicos.

Lance a lance: os usos astuciosos das criançaspraticantes

Acolhendo as ideias de Certeau5, acreditamos ser fundamental observar o que as crianças fazem dos produtos [filmes, livros, jogos, atividades, currículos...] impostos no seu dia a dia. Perceber suas táticas, subversões e linhas de fuga, especialmente frente às regras impostas pelos jogos com fins educativos, nos faz pensar nas inconsistências entre aquilo que os seus idealizadores articulam e aquilo que é aceito5. Essas inconsistências foram observadas na experimentação de três jogos adquiridos com uma editora especializada em produtos direcionados aos nutricionistas. “De olho nos alimentos”, “Beto e Bia: a corrida da boa alimentação e 133

dos hábitos saudáveis” e “Come-Bem”, cada um com suas particularidades, deixaram brechas para que as crianças pudessem colocar em prática suas “artes de fazer”5.

Precisamos esclarecer que não tínhamos como objetivo descrever os jogos e suas regras em todas as suas minúcias, pois o que nos interessava, de fato, era perceber as burlas, as subversões, as táticas utilizadas pelas criançaspraticantes para jogarem à sua maneira.

Mergulhamos, portanto, com todos os sentidos7 à caça das “artes de fazer” das criançaspraticantes5, tentando capturar, para tornar visível3, o que de novo elas inseriam, reinventavam, criavam sobre o produto que lhes fora imposto.

Ao longo de dois encontros, as crianças se dividiram em grupos para experimentarem os três jogos que havíamos comprado, especialmente, para a oficina. Cada jogo apresentava uma dinâmica diferente, gerando interesses e tempos distintos. Alguns grupos terminavam e voltavam a jogar, enquanto outros ainda nem tinham lido todas as regras. Outros, por já terem jogado mais de três vezes, deslocavam-se até o grupo ao lado para “bisbilhotar” o jogo do outro. E assim íamos, juntos, caminhando, experimentando, aprendendoensinando e nos surpreendendo.

Era interessante observar como eles negociavam os agrupamentos e as funções de cada um no jogo: quem leria as regras; quem seria o menino “X” ou a menina “Y”; quem seria o responsável pelo dinheiro; quem começaria o jogo; quem jogaria com quem por ter excedido o número de participantes. Enfim, inúmeras possibilidades de negociações que nem sempre chegavam a um consenso. Crianças que se recusavam a assumir determinadas funções, também fizeram parte do cenário de um “jogo” que aconteceu no tabuleiro e fora dele. “De olho nos alimentos”, um jogo destinado a crianças maiores de seis anos de idade, tem a intenção de apresentar às crianças os diferentes alimentos. Ele é composto por um tabuleiro e por dezenas de mini círculos, com imagens de alimentos dos grupos dos cereais e derivados; das frutas; dos legumes, verduras e tubérculos; das leguminosas; do leite e derivados; dos doces; dos ovos, peixes, carne e derivados, outros alimentos e preparações. Cada jogador recebe quantidades iguais de mini círculos, que deverão ser alocados sobre a mesma 134

imagem do tabuleiro. Ganha o jogo quem encontrar os alimentos espalhados antes dos seus adversários. À primeira vista, parece a todos, muito simples. Basta achar a figura igual e pronto. E é isso mesmo. Interessante, era ouvi-las perguntando [depois de já terem jogado duas, três vezes, dada a agilidade do jogo], umas às outras, que alimento era aquele. Muitas não sabiam responder. E para sermos sinceros, nós também não. Mangas que pareciam pêssegos [ou pêssegos que pareciam mangas]; alfaces que eram repolhos; laranjas que lembravam tangerinas... Até chegarmos a um consenso era uma diversão. Era possível, ainda, ouvir sons ou vê-las fazendo caretas quando um alimento não era do seu agrado, tendo sido experimentado ou não. Se o jogo, em si, era bem simples, as dúvidas, geradas por algumas imagens que se distanciavam da realidade, abriram brechas para que as criançaspraticantes criassem outro modo de usá-lo. Uma “maneira de utilizar”5 que permitiu a elas conversarem sobre os alimentos, reconhecendo as suas preferências e aversões, bem como a de seus colegas, as quais iam se diferenciando em função de suas redes de saberes, de práticas, de valores, crenças, afetos e subjetividades. “Beto e Bia”, um jogo desenvolvido por nutricionistas, tem o intuito de incentivar a boa alimentação e os hábitos saudáveis em crianças acima dos seis anos de idade. É composto por um tabuleiro, um dado e quatro pinos de “Bia” e “Beto”, com os quais os participantes devem se deslocar da saída até a chegada, ou seja, da casa 1 até a 90. No meio da corrida, os participantes podem cair em vinte e seis casas [casas amarelas] que contêm dicas de uma boa alimentação e de um estilo de vida saudável. As dicas contornadas em azul parabenizam o jogador e pedem para que ele avance para as casas à frente. As dicas contornadas em vermelho criticam a atitude do jogador e o fazem andar para trás. Lê as dicas quem para, ao acaso, em uma dessas casas, caso contrário o jogador chega ao fim sem ter lido dica alguma. Na chegada, contudo, lê-se: “Parabéns! Você é o vencedor! Pratique tudo o que aprendeu! Pratique uma vida saudável!”.

No início do jogo, muitas crianças começaram a ler as dicas quando paravam nas casas amarelas, mas, na medida em que o jogo prosseguia, passaram a burlar as regras, fazendo uso de táticas desviacionistas5. O jogo, como o próprio nome propõe, é uma corrida. Entre a saída e a chegada, a regra, ainda que não descrita 135

no jogo, não deixa dúvidas: ao parar nas casas leiam as dicas e façam o que se pede. Algumas dicas:

Você evita comer doces porque em excesso eles fazem mal à saúde e ainda podem deixá-lo (a) gordinho (a). Muito bem! Ande 4 casas ou Você adora comer lanches de ‘cachorro quente’ com refrigerante. Cuidado, você pode ficar obeso e ainda doente. Infelizmente terá que voltar para casa 35.

Todos sabiam, a princípio, o que deveriam fazer, mas as criançaspraticantes, astuciosamente, liam apenas a frase final da dica nutricional, que indicava o número da casa para onde deveriam se deslocar [andar ou voltar determinado número de casas], ignorando toda a informação formulada com a intenção de ensinar sobre alimentação e saúde. Elas burlaram a regra do jogo a fim de que pudessem atingir a linha de chegada mais rapidamente. Deslocaram-se de um consumo supostamente passivo para uma criação singular, nascida da prática, do desvio no uso dos produtos impostos12 que colocam em dúvida a pretendida função primeira do produto. Foi possível perceber que há “maneiras de fazer” (caminhar, ler, produzir, falar, cozinhar, comer, jogar...), “maneiras de utilizar” que se tecem em redes de ações concretas, que não são mera repetição de uma ordem previamente estabelecida do alto e de longe. As criançaspraticantes, ao inserirem criatividade, modificam as regras e o poder de dominação a que estariam, supostamente, submetidas. “Come-bem”, também concebido por nutricionistas, tinha o objetivo de ensinar às crianças o valor nutricional dos alimentos e a importância de uma boa alimentação para a saúde. Uma releitura, digamos assim, do conhecido “Banco Imobiliário”. “Come-bem”, pelo colorido de sua caixa, foi aquele que despertou mais euforia nas turmas quando apresentamos os jogos no primeiro encontro. Assim que ele foi colocado sobre a mesa do grupo, as crianças abriram a caixa e começaram a mexer em todos os componentes do jogo: um tabuleiro; quatro pirâmides alimentares e bolinhas avulsas vermelhas para representar os alimentos; pinos coloridos para a movimentação; um dado; dinheiros de papel para comprar alimentos; fichas de dicas da nutricionista e fichas de perguntas e respostas. No verso da caixa, as regras. Diante de tanto alvoroço, as regras ficaram esquecidas e os participantes já se organizavam para começar, quando uma menina mostra a 136

todos o verso da caixa com as regras escritas. Nisso um menino diz: “É muita coisa pra ler. Dá pra jogar sem ler as regras!”. Alguns concordaram, outros não, mas foram tentando seguir adiante. Contudo, as dúvidas foram surgindo e resolveram recorrer às regras. Escolheram uma criança que, segundo elas, lia melhor e deram início à leitura. Ficamos ali, próximos, para tirar dúvidas se as crianças precisassem. Liam; conversavam; brigavam, reliam e, assim, foram tentando entender as regras, bem mais complexas que as dos dois outros jogos mencionados. Negociar as funções foi a etapa de maior conflito: quem iria ficar com a pirâmide; quem mexeria com o dinheiro; quem leria as dicas da nutricionista; quem faria as perguntas; quem jogaria os dados. O conflito permitiu que se inventassem outras funções: ficar com a caixa na mão para ler as regras [para qualquer dúvida que aparecesse]; ser o “banco” [a mais concorrida] e formar algumas duplas passaram a fazer parte do jogo. Depois de tudo, aparentemente, combinado, e de peças e dinheiros distribuídos, as crianças deram início ao “Come-bem”. Ao longo do jogo, os participantes podiam parar nas “casas de alimentos”, onde eram descritas informações nutricionais e o preço de venda do referido alimento.

Berinjela: Hortaliça. Boa fonte de sais minerais. R$ 3,00” ou “Bolo e pão: Alimento rico em carboidrato. Fornece energia. R$ 2,00” ou “Alface: rica em fibras, vitamina A, C e do complexo B. R$ 2,00” ou “Batata frita: Tem alto valor calórico podendo levar à obesidade. R$ 3,50.

As crianças, em sua maioria, ao pararem nessas casas passaram a identificar, apenas, qual era o alimento e o preço referente, não mostrando mais interesse em ler a informação nutricional. Quando liam, contudo, era uma leitura rápida, sem nenhum questionamento e sem pausas para refletir sobre o conteúdo. Ficamos pensando, no momento do jogo, se todos sabiam o que eram sais minerais, calorias, carboidratos, fibras, complexo B e todos as outras palavras que estavam presentes nos textos. E se não sabiam, por que não perguntaram? Será que não leram? Leram sem prestar atenção? Leram, mas não entenderam? E se não entenderam, fez alguma diferença para o jogo que elas estavam jogando com suas “artes de fazer”? No percurso dos pinos, ao jogar os dados, as crianças também podiam parar na “casa da nutricionista”. Ao cair nesta casa, o jogador deveria pegar a carta da nutricionista, ler em voz alta e fazer o que se pedia. A nutricionista poderia dar os “parabéns” ou chamar a “atenção”. 137

Parabéns! Você conseguiu controlar seu colesterol sanguíneo e não gastará mais com remédios. Receba do banco a quantia de R$ 7,00 ou Atenção. Todos os jogadores estão gordinhos. E você, como um conhecedor de nutrição, retirará de suas pirâmides a batata e devolverá ao banco.

É possível perceber que, na leitura das cartas da nutricionista, assim como na leitura sobre a informação nutricional do alimento, as crianças estavam muito mais interessadas em saber para onde iam, e quanto gastariam para comprar os alimentos, do que em aprenderensinar sobre alimentação e saúde. O dinheiro, desde o início, foi a grande atração do jogo. Inclusive, como comentamos anteriormente, ser o “banco” foi inserção de criatividade, astúcia e “arte de fazer” das criançaspraticantes para que todos pudessem experimentar o jogo, independentemente do limite máximo de participantes.

Burlar as regras, usar de táticas silenciosas, inventar maneiras outras de jogar o jogo, são astúcias das criançaspraticantes que não se reconheciam nas estratégias educativas prescritivas e normativas dos jogos “Come-Bem” e “Beto-Bia”. Era possível ouvi-las falando, sozinhas ou comentando com a criança ao seu lado, que aquelas atitudes mencionadas nas dicas nutricionais ou nas cartas da nutricionista não eram por elas executadas. Nesse sentido, o não reconhecimento de si e a recusa ao governamento13 podem ter potencializado as práticas inventivas e as táticas de resistência das criançaspraticantes. As crianças exerceram, astuciosamente, a “arte do fraco”5 diante das brechas e fissuras do saberpoder.

Reflexões finais

Muitos são os indícios14 deixados pelas criançaspraticantes ao experimentarem os jogos educativos em nutrição. Pistas que poderiam ter permanecido invisíveis, se estivéssemos mergulhando no nosso cotidiano sem os fios de pensamentos dos autores que nos puseram a caminhar. Possivelmente, não estaríamos atentos aos processos, aos usos, às subversões, às táticas astuciosas e desviacionistas das criançaspraticantes ao experimentarem os jogos. Talvez, nos interessássemos, apenas, pelo que elas, supostamente, aprenderam [ou não] tal 138

como aprendemos com a modernidade. Munidos de nossas “cegueiras epistemológicas”15 estaríamos a observar as regularidades e não os desvios, as operações homogêneas e não as heterogêneas.

As criançaspraticantes, portanto, ao subverterem e ressignificarem os jogos educativos [artefatos curriculares], produziram os currículos pensadospraticados nos cotidianos escolares4. Currículos que abarcam a pluralidade e a singularidade de fazeressaberes dos sujeitos que habitam a escola.

Estamos, criticamente, esperançosos que ao desinvisibilizarmos esses fazeressaberes possamos instigar o exercício da ecologia de saberes na elaboração desses instrumentos e nas práticas educativas dentrofora das escolas, pois a cada encontro potente com as criançaspraticantes ficávamos mais convictos

Da criatividade das pessoas ordinárias. Uma criatividade que se esconde num emaranhado de astúcias silenciosas e sutis, eficazes, pelas quais cada um inventa para si mesmo uma ´maneira própria´ de caminhar pela floresta dos produtos impostos16

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do texto.

REFERÊNCIAS

1.Freire P. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Paz e Terra; 2014b.

2.Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 1996.

3.Santos, B. de S. A gramática do tempo: para uma nova política. São Paulo: Cortez, 2010a.

4.Oliveira IB. O currículo como criação cotidiana. Rio de Janeiro: FAPERJ; 2012.

5.Certeau M de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes; 2012.

6.Oliveira IB, Alves, N. Pesquisa no/do cotidiano das escolas – sobre redes de saberes. Rio de janeiro: DP&A; 2001. 139

7.Alves N. Decifrando o pergaminho – o cotidiano das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In: Oliveira IB, Alves, N. Pesquisa no/do cotidiano das escolas – sobre redes de saberes. Rio de janeiro: DP&A; 2001. p. 9-13.

8.Alves N, Garcia RL. Continuando a conversa – apresentando o livro. In: Ferraço CE, Vidal CL, Oliveira IB. Aprendizagens cotidianas com a pesquisa: novas reflexões em pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas. Petrópolis: DP et Alii; 2008. p. 13-38.

9.Santos B de S. Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2005.

10.Santos B de S, Meneses MP. Epistemologias do Sul. Editora Cortez: Rio de Porto (Portugal): Edições Afrontamento; 2010b.

11.Santos B de S. Um discurso sobre as ciências. Porto (Portugal): Edições Afrontamento; 2010c.

12.Oliveira IB. Certeau e as artes de fazer: as noções de uso, tática e trajetória na pesquisa em educação. In: Oliveira IB, Alves N. organizadoras. Pesquisa no/do cotidiano das escolas – sobre redes de saberes. Rio de janeiro: DP&A; 2001. p. 39- 54.

13.Foucault M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2002.

14.Ginzburg C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras; 1989.

15.Oliveira IB. Aprendendo nos/dos/com os cotidianos a ver/ler/ouvir/sentir o mundo. Educação & Sociedade (Campinas). 2007; 28(98):47-72.

16.Certeau M de, Giard L, Mayol P de. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes; 2011.

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APÊNDICE D – Artigo submetido à Revista DEMETRA

Encenando os cotidianos: as “artes de fazer” e as “artes de nutrir” de Certeau

Maria da Glória Pinheiro Rezende Nutricionista e Professora de Educação Física. Doutoranda em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professora do Núcleo de Arte Leblon – Centro de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.

Endereço: Praça Nossa Senhora Auxiliadora, s/nº, Leblon, CEP 22441-050, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Comprovante de submissão

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Encenando os cotidianos: as “artes de fazer” e as “artes de nutrir” de Certeau

Resumo

Este artigo tem como objetivo narrar uma experiênciaprática vivida com criançaspraticantes, do 3º ano do ensino fundamental, que frequentam a oficina “Corpo, Cor e Sabor” no Núcleo de Arte Leblon – Centro de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte da Secretaria Municipal de Educação da cidade do Rio de Janeiro. A oficina, que tem como proposta promover a reflexão, o diálogo e a tessitura de saberes sobre alimentação, nutrição e saúde, utiliza uma diversidade de estratégias metodológicas a fim de estimular a participação ativa das crianças, dentre elas, a interpretação cênica das suas práticas cotidianas. As criançaspraticantes ao compartilharam suas histórias, construíram coletivamente cenas de suas práticas cotidianas, deixando indícios do hibridismo entre o que se deseja e o que se vive, especialmente no que se refere às suas práticas alimentares. Acolhendo os pensamentos de Certeau, somos convidados a interpretar as práticas culturais que habitam a vida cotidiana a partir das astúcias e táticas das criançaspraticantes, que com suas artes de fazer e de nutrir, inventam uma vida possível de se viver.

Palavras-chave: criançaspraticantes, alimentação, cotidiano

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The practices of everyday life: Certeau’s arts

Abstract

This article intention is to demonstrate a practical experience lived with crianças praticantes, in the 3rd year of primary school, attending the "Body, Color and Flavor" workshop in Leblon’s Art Center - Research Center for Education in School of Art Teaching and sports of the Department of Education of the Rio de Janeiro’s city. The workshop, whose proposal is to promote reflection, dialogue and the building of knowledge about nutrition and health, utilizing a variety of methodological strategies in order to stimulate the active participation of children, among them, the scenic interpretation of their daily practices .The criançaspraticantes by sharing their stories, collectively built scenes of their daily practices, leaving pieces of hybridist between what is desired and what is lived, especially when it comes to their eating habits. By using the ideas of Certeau we are invited to analyze the cultural practices that inhabits the daily life from the cunning and tactics of crianças praticantes that with your own art to make and nutrition, invents a life which is possible to live.

Keywords: crianças praticantes, food, everyday.

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Introdução

Nesse artigo, tenho como objetivo narrar uma das experiênciaspráticas25 vividas com as criançaspraticantes do cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”. Esta experiênciaprática teve como fio condutor a encenação dos fazeressaberes e da comensalidade praticada pelas crianças e seus familiares nos seus cotidianos, a partir do uso dos conceitos apresentados por Michel de Certeau nos livros “A invenção do cotidiano: 1 artes de fazer” e “A invenção do cotidiano: 2. morar, cozinhar”. Na narrativa das experênciaspráticas – uma “maneira de fazer” textual, segundo Certeau1, temos a intenção de trazer para a cena, os movimentos, os gestos, as falas, as personagens [reais, idealizadas e hibridizadas] que tecem o cotidiano das criançaspraticantes, especialmente no que diz respeito às “artes de fazer”, às “artes de nutrir” e às “artes de viver”. Compartilho estas experiênciaspráticas, acreditando que, as mesmas, possam instigar novas maneiras [não hegemônicas] de conhecer e de dialogar com os fazeressaberes das criançaspraticantes que (re) inventam, astuciosamente, maneiras plurais de fazer e de nutrir cotidianamente.

Certeau e os praticantes do cotidiano

Michel de Certeau me acionou com as ideias presentes no livro a “Invenção do Cotidiano”, onde traz para o centro da cena o homem ordinário, fala de todos nós que, com as nossas táticas, astúcias e maneiras de fazer, inventamos o nosso cotidiano. Certeau1, nessa obra, confere ao cotidiano e aos seus praticantes anônimos o estatuto de ser e fazer pesquisa, quando muitos ainda insistem em acreditar que nesse espaçotempo só há senso comum, repetição, reprodução e consumo passivo daquilo que nos é imposto cotidianamente.

25 Nilda Alves, uma cotidianista da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), tem se valido de junções de palavras para transpor as dicotomias e os binarismos, conferindo outro sentido às expressões. Usarei as junções, ao longo do texto, com a mesma intenção. 145

O cotidiano certeauniano, assim como o nosso, é um espaço praticado, vivido por pessoas que, com suas falas, gestos, movimentos e objetos, exercem anonimamente suas táticas, operando outros procedimentos de consumo e criando, astuciosamente, a rede de uma antidisciplina. Uma rede que insiste em nos apresentar, ainda que não tenhamos “olhos para ver”, novas maneiras de fazer, de consumir e de utilizar aquilo que nos é dado e, supostamente, imposto pelo poder instituído.

[...] diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular, barulhenta, posta-se uma produção do tipo totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem como característica suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas “piratarias”, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar?), mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos (Certeau, 20121, p.88-89).

Nesse sentido, em suas vidas cotidianas, os supostos consumidores passivos, através de suas “artes de fazer” – táticas e astúcias, fabricam formas alternativas de uso, dando origem a novas maneiras de utilizar a ordem imposta. As táticas, desviacionistas e de resistência, seriam, portanto

Movimento “dentro do campo de visão do inimigo” como dizia von Bullow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem, portanto, a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva. Este não lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no voo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É a astúcia. Em suma, a tática é a arte do fraco” (Certeau1, 2012, p.94-95).

A tática, enquanto arte do fraco, não tem lugar próprio e nem visão globalizante, distinguindo-se da noção de estratégia que, própria de um poder, permite a “‘prática panóptica’ a partir de um lugar de onde a vista transforma as forças estranhas em objetos que se podem observar e medir, controlar, portanto, e incluir na sua visão. Contrapondo-se as táticas, nessa relação de poder, as estratégias são

[...] ações que, graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), 146

capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem. Elas combinam esses três tipos de lugares e visam dominá-los uns pelos outros. Privilegiam portanto as relações espaciais [...] (Certeau1, 2012, p.96).

Sobre as táticas e estratégias, o autor ainda esclarece:

[...] a diferença entre umas e outras remete a duas opções históricas em matéria de ação e segurança (opções que respondem aliás mais as coerções que a possibilidades): as estratégias apontam para a resistência que o estabelecimento de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder (Certeau1, 2012, p.96).

Apropriei-me, portanto, dos conceitos de cotidiano, maneiras de fazer, táticas e estratégias apresentadas por Certeau, para mergulhar no cotidiano da oficina “Corpo, Cor e Sabor”, percebendo as práticas microbianas, singulares e plurais dos praticantespensantes desse espaçotempo. Certeau, ao narras as práticas comuns, dos praticantes ordinários, desloca o nosso “olhar”, nos convidando a interpretar as práticas culturais que habitam a vida cotidiana a partir das astúcias e táticas dos praticantes anônimos que, com suas artes de fazer inventam uma vida possível de se viver.

Contextualizando o espaçotempo das experiênciaspráticas: Núcleo de Arte Leblon e oficina “Corpo, Cor e Sabor”

Atualmente, existem, vinculados à Secretaria Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro, sete Núcleos de Arte, dentre eles o Núcleo de Arte Leblon, que se configuram como Unidades de Extensão Educacional, incorporando o papel de Centros de Pesquisa em Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte. Como o nome já enuncia, o Núcleo de Arte Leblon, coordenado pela 2ª CRE, está localizado no bairro do Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, situado no mesmo quarteirão das escolas municipais Sérgio Vieira de Mello e George Pfisterer. A primeira dedica-se ao ensino fundamental I e a segunda ao ensino fundamental II. Estas escolas, dada a proximidade geográfica, estabeleceram parcerias com o Núcleo de Arte Leblon, enviando suas turmas, no turno escolar, para participarem de 147

oficinas concebidas, pelos professores desta unidade, especialmente para as escolas parceiras. Além das parcerias, o Núcleo do Leblon [como o chamamos cotidianamente] oferece oficinas, em outros horários, para os alunos do contraturno que o procuram por demanda espontânea. Este Núcleo, especialmente, oferece uma grande diversidade de oficinas por conta das formações híbridas de seus professores. Acrobacia; Arte Literária; Artes Visuais; Balé Clássico; Corpo, Cor e Sabor; Dança Contemporânea; Dança Popular, Multimídia; Música, Teatro e Vídeo são alguns exemplos de oficinas que acontecem duas vezes por semana, com duração de uma hora, ao longo de um ano letivo. O Núcleo de Arte Leblon, enquanto espaçotempo que pratica o diálogo entre os diferentes saberes nas suas oficinas, nos seus “corredores”, nos “cafezinhos proseados” e, também, no centro de estudo semanal de seus professores, permitiu que pensássemos uma oficina que permitisse aos seus praticantes [professores e alunos] a reflexão sobre “Alimentação, Nutrição e Saúde” a partir das diferentes linguagens das artes, dentre elas, as artes cênicas. A oficina “Corpo, Cor e Sabor”26 é oferecida, pelo Núcleo de Arte Leblon, desde 2012, às turmas da Escola Municipal Sérgio Vieira de Mello. As criançaspraticantes, no ano de 2014, quando assumimos o cotidiano da oficina como lócus de uma pesquisa vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, tinham entre 8 e 9 anos de idade e cursavam o 3º ano do ciclo do ensino fundamental. No período da pesquisa, recebemos três turmas, totalizando 94 criançaspraticantes. Estas, em sua grande maioria, eram moradoras da Rocinha, do Vidigal e da Cruzada de São Sebastião, localizada também no bairro do Leblon. Os nossos encontros, que aconteciam uma vez por semana, com duração de 1h, tinham como proposta estimular a “curiosidade epistemológica” e desinvisibilizar os currículos pensadospraticados, bem como as redes de saberes, fazeres, valores e crenças em alimentação, nutrição e saúde, permitindo, ainda, conhecer os modos de pensaraprenderensinar valorizados pelas crianças praticantes.

26 Nas narrativas sobre a oficina “Corpo, Cor e Sabor”, farei uso, na maioria das vezes, da primeira pessoal do plural não para me esconder na impessoalidade, mas para revelar a existência de uma rede de sujeitos e subjetividades que pensam e que praticam noscom os cotidianos, da oficina e da pesquisa, ainda que anonimamente 148

Movidos pelos pensamentos dos autores que nutrem os nossos fazeressaberes, mergulhamos com todos os sentidos, no nosso cotidiano e na cotidianidade de nossas crianças, esperançosos de que, juntos, estaríamos a pensar em espaçostempos que garantissem a diversidade, a liberdade, a criatividade, a experimentação, a criticidade, a ética, a estética, a solidariedade, a esperança, o pensaraprenderensinar coletivamente e tudo o mais que fosse necessário para despertar em nossas crianças, e em nós também, a decência e a boniteza da prática educativa2. Desfrutando da diversidade de espaços presentes no Núcleo de Arte Leblon, bem como do seu entorno, no decorrer de nossos encontros foram usadas diferentes estratégias metodológicas a fim de estimular a participação ativa das crianças como: atividades corporais; desenho e pintura; escrita de textos; interpretação cênica das atividades cotidianas; peças de teatro, vídeos, filmes e documentários que abordam o tema alimentação; visitas aos mercados e à feira livre do bairro; oficina sensorial com alimentos; jogos de nutrição; experimentação de receitas de família e de novos sabores; leitura de livros; plantio de mudas e de horta suspensa, dentre outros. As atividades foram pensadas considerando as singularidades, as potencialidades das crianças e os caminhos que elas nos apontavam entre um encontro e outro, sempre articuladas pela via do prazer, da solidariedade e da autoria, tendo como fio condutor a alimentação, nutrição e saúde. Os encontros da oficina foram conduzidos por três professoresparceiros que, na maioria dos encontros, atuavam em dupla. A parceria por nós estabelecida, além das afinidades epistemológicas e políticas, deu-se também em função das nossas formações híbridas e complementares [teatro, dança, vídeo, educação física e nutrição], constituindo-se em um espaçotempo permanente de trocas, experimentações e reflexões. A solidariedade, o prazer e a autoria, considerados tão caros nos processos de nossas oficinas das linguagens da arte, também foram elementos preciosos nessa experiência tecida, destecida e (re)tecida cotidianamente. Elementos estes, segundo Oliveira3, considerados centrais nas lutas emancipatórias propostas por Boaventura de Sousa Santos. Nos anos de 2013 e 2014, por conta do momento de luta que vivíamos na educação pública da cidade do Rio de Janeiro, estávamos, talvez sem darmos conta disso, cada vez mais, em busca de práticas emancipatórias tanto para 149

as crianças quanto para nós. A pesquisa, a nossa prática educativa [que desejava ser emancipatória] e a nossa parceria se fortaleceram na luta, e esta foi uma de nossas respostas à ofensa à educação pública brasileira, em especial, à educação pública da cidade do Rio de Janeiro.

Encenando o cotidiano: “artes de fazer” e “artes de nutrir”

O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. Não se deve esquecer este “mundo memória”, segundo a expressão de Péguy. É um mundo que amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância, memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres (Certeau 4 M, Giard L; Mayol P , 2011, p.31).

Propusemos às crianças a encenação dos seus cotidianos. Num primeiro momento a cena do despertar até o chegar à escola. Num outro encontro, a cena da preparação e da realização de uma das refeições do dia em suas casas. Nesses dias de encenação, fomos todos para o teatro. Apostamos no palco e nas coxias como facilitadores do rememorar de um cotidiano que seria compartilhado na sua concretude. Pretendíamos que este espaço privado – o habitat de cada um, “lugar do corpo, lugar de vida”4, fosse revelado a todos, especialmente para cada um que vive, habita e pratica os cotidianos em cena. Nesse espaço privado

[...] os corpos se lavam, se embelezam, se perfumam, têm tempo para viver e sonhar. Aqui as pessoas se estreitam, se abraçam e depois se separam. Aqui o corpo doente encontra refúgio e cuidados, provisoriamente dispensado de suas obrigações de trabalho e de representação no cenário social. Aqui o costume permite passar o tempo “sem fazer nada”, mesmo sabendo que “sempre há alguma coisa a fazer em casa”. Aqui a criança cresce e acumula na memória mil fragmentos de saber e de discurso que, mais tarde, determinarão sua maneira de agir, de sofrer e de desejar (Certeau M, Giard L, Mayol P4, 2011, p. 205).

Assim que entramos no teatro, pedimos para que tirassem seus sapatos, subissem ao palco e deitassem, como se ainda estivessem dormindo em suas casas, em suas camas. Pedimos, inclusive, que tentassem se posicionar na forma 150

que usualmente dormiam. Presenciamos, assim, corpos diferentes, fazendo desenhos e contornos únicos sobre o chão. Corpos que se abraçavam; pernas que se sobrepunham ao corpo do outro. Apoios e contatos que marcavam a diversidade e a singularidade de um “modo de fazer” cotidiano. Ao dormir fomos acrescentando o despertar e a este os fazeres que o sucediam. Cada um, na memória de sua cotidianidade, foi nos apresentando as suas maneiras de fazer e de sua família. Era possível vê-las dormindo; acordando; espreguiçando; escovando os dentes; tomando o banho; penteando os cabelos; calçando os sapatos... Maneiras de fazer que iam se diferenciando pelos gestos, pelo ritmo, pela sequência...

No “invisível cotidiano”, sob o sistema silencioso e repetitivo das tarefas cotidianas feitas como que por hábito, o espírito alheio, numa série de operações executadas maquinalmente cujo encadeamento segue um esboço tradicional dissimulado sob a máscara da evidência primeira, empilha-se de fato uma montagem sutil de gestos, de ritos e de códigos, de ritmos de opções, de hábitos herdados e de costumes repetidos (Certeau M, Giard L, Mayol P, 2011, p. 234).

Estas maneiras de fazer, de cada um, foram repetidas algumas vezes com a intenção de que as crianças pudessem ir se apropriando, mais conscientemente, do que por hábito executavam no seu cotidiano. Algumas crianças mantinham a mesma sequência, outras alternavam os fazeres da encenação anterior. Era possível observar, ainda, crianças que executavam, na mesma encenação, duas vezes o mesmo fazer cotidiano. Dando sequência a encenação, pedimos para que as crianças se organizassem em grupos para conversarem a respeito do que encenaram e, a partir daí, criarem coletivamente a cena deste fragmento do cotidiano: do despertar ao chegar na escola. Observar a construção coletiva da cena nos permitia ouvir as narrativas do cotidiano das crianças e de suas famílias. As crianças relatavam com quem dormiam; como dormiam; quem as acordavam; se tomavam banho; se escovavam os dentes; se tomavam café-da-manhã; com quem tomavam; quem preparava a primeira refeição do dia; como iam para a escola... As narrativas do cotidiano iam sendo tecidas, articuladas, entrecruzadas a fim de que, coletivamente, construíssem a cena. 151

A cena final, desta trama cotidiana, era um hibridismo das narrativas do cotidiano de cada criança que se dispôs a contar um pouco de sua história. Esta construção coletiva também era fruto de muitas negociações, onde os personagens eram aceitos, recusados, entrelaçados e hibridizados. Alguns grupos conseguiam colocar em cena um pouco do cotidiano de cada componente, em outros prevaleciam as ações cotidianas das crianças mais articuladas, com maior poder de convencimento sobre o grupo. Era possível perceber na construção da cena final, de cada grupo, uma mistura de realidade e de desejo, pois, se em alguns relatos havia a ausência de fazeres e de familiares, nas cenas, as ausências podiam se fazer presentes. Estas articulações entre a realidade em que se vive e aquela em que gostaria de se viver, nos remeteu a fala de Augusto Boal27 quando ele nos diz que

Uma das principais funções da nossa arte é tomar conscientes esses espetáculos da vida diária onde os atores são os próprios espectadores, o palco é a plateia e a plateia, palco. Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver tão habituados estamos apenas a olhar. O que nos é familiar torna-se invisível: fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida cotidiana (Boal5, 2009).

Pensar e encenar os seus cotidianos, permitiram às crianças criarem cenicamente alternativas para vivê-los de outras maneiras. As presenças se fizeram ausências. As ausências transformaram-se em presenças6. Na cena, o casal dormindo, que em seguida acorda para chamar seus filhos dando sequência ao banho, ao escovar os dentes, ao tomar café, ao trocar de roupa... Não necessariamente nessa ordem. A mãe, enquanto isso, prepara o café, coloca a mesa e chama a todos. Em outro grupo, é possível perceber a correria da manhã. Todos falando e correndo pela casa; tomando café às pressas e saindo correndo para não perder o ônibus. Este, construído em cena, leva as crianças até a escola. Se ao ouvirmos alguns relatos de crianças que acordam sozinhas e preparam o seu próprio café da manhã, em cena há sempre alguém que acorda, que acolhe e que cuida. Ainda que a cena final seja fruto de negociações, as crianças, que vivem a realidade que não se quer viver, podem optar [ou não] pela cena alheia.

27 As citações do dramaturgo Augusto Boal foram extraídas de seu discurso proferido, no dia 27 de março de 2009 - Dia Mundial do Teatro, em Paris, quando homenageado pela UNESCO. 152

Num encontro seguinte, um novo desafio: criar cenas coletivamente, a partir das narrativas do grupo a respeito de uma refeição elaborada e partilhada em casa. Essas cenas nos permitiram conhecer um pouco do cotidiano de cada um, um pouco do cotidiano desejado por cada um. As cenas nos mostraram as diferentes configurações familiares e a distribuição de tarefas entre os componentes da casa. Ainda que um hibridismo de realidade e de fantasia componha a cena, podemos ver a presença feminina sempre com a responsabilidade pelas tarefas domésticas. Em cena, a arte de cozinhar, as “artes de nutrir”4, dizia respeito, principalmente, ao papel das mulheres. A estas cabiam a tarefa de comprar e preparar as refeições para a família, ainda que trabalhassem fora. À irmã cabia a tarefa de esquentar a comida no micro-ondas [deixada pronta pela mãe no dia anterior], para seus irmãos. Aos pais, aos filhos, aos irmãos, ou seja, aos componentes familiares do sexo masculino cabia a tarefa de aguardar o momento de nutrir-se. As meninas, ao assumirem em cena o papel de mães, avós, madrinhas, reproduziam gestos das mulheres de sua casa cozinhando o feijão, batendo o bolo, passando o café, varrendo a casa, lavando a louça, cuidando das crianças. Nas cenas, portanto,

O gesto se decompõe numa sequência ordenada de ações elementares, coordenadas em sequências de duração variável segundo a intensidade do esforço exigido, organizada segundo um modelo aprendido de outra pessoa por imitação (alguém me mostrou como fazer), reconstituída de memória (eu a vi fazer assim), ou estabelecida por ensaios e erros a partir de ações vizinhas (acabei descobrindo como fazer) (Certeau M, Giard L, Mayol P4, 2011, p.273).

Em uma das cenas foi possível identificar: três mulheres [três meninas], um homem [um menino], três crianças [dois meninos e uma menina] e um cachorro [menina]. A avó materna, com perda de memória, varria a casa sem parar e suas duas filhas tentavam preparar o jantar enquanto as crianças corriam pela sala em companhia do cachorro. As mães das crianças pediam, aos berros, silêncio, mas a correria continuava. As mães discutiram entre si, pois uma delas imputou ao sobrinho a responsabilidade pela bagunça da casa. No meio da confusão, o marido de uma delas chegou do trabalho e disse: “Estou cansado. Vou para o quarto. Quando o jantar estiver pronto, me chama”. O óleo de cozinha acabou e deu início a 153

uma nova confusão: quem daria o dinheiro para comprar na venda vizinha? Uma das crianças interferiu na discussão e disse: “Madrinha! Se você quer comer, tem que pagar. Minha mãe já comprou o arroz”. Cardápio do jantar: arroz, feijão, batata, cenoura e carne. Numa outra cena: duas mulheres [duas meninas], duas crianças [um menino e uma menina], um homem [um menino]. Os pais chegam do trabalho e encontram seus filhos, uma menina e um menino, que estavam sendo cuidados pela babá em casa. Todos se abraçam e se beijam, e a mãe vai até a cozinha preparar o jantar. Jantar pronto e todos sentam à mesa. Macarronada com molho de carne moída e suco de uva. A mãe avisa ao filho mais velho: “Se não comer tudo, está de castigo. Vai ficar sem comer bala de caramelo”. Ainda, em cena: uma mulher [uma menina] e três crianças [um menino e duas meninas]. A mãe acorda; dirige-se para a cozinha; prepara o almoço e sai para o trabalho, enquanto os filhos ainda dormem. Ao acordarem, as crianças preparam seus pratos e os aquecem no micro-ondas. Em seguida, sentam a mesa e almoçam, juntos, enquanto a mãe trabalha. Nas cenas dos cotidianos, onde tudo se entrecruza – afetos, memórias, gestos, poderes, saberes, ignorâncias, ausências, presenças, ordem, desordem, plateia, espectadores, desejos, as crianças praticantes, (re) inventam suas histórias e iluminam o palco da vida, pois como nos aconselha o dramaturgo

[...] temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com as nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida. [...] façam suas peças vocês mesmos e vejam o que jamais puderam ver: aquilo que salta aos olhos (Boal5, 2009).

Considerações finais

As criançaspraticantes ao compartilharam suas histórias, construíram coletivamente cenas híbridas das narrativas do cotidiano de cada uma, deixando, contudo, indícios, do que se deseja e do que se vive, especialmente no que se refere às suas práticas alimentares. Esta experiênciaprática, portanto, aponta caminhos possíveis de investigação, de diálogo e de (re) conhecimento das práticas alimentares das crianças, bem como de suas redes de saberes, fazeres, valores, afetos, crenças e subjetividades. Caminhos, contra-hegemônicos, que permitem [para além de fragmentar, 154

classificar, ordenar...] ver/sentir/ouvir/saborear as criançaspraticantes em ato, iluminando o palco da vida cotidiana.

REFERÊNCIAS

Certeau M de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes, 2012.

Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. Oliveira I B. Contribuições de Boaventura de Sousa Santos para a reflexão curricular: princípios emancipatórios e currículos. Revista e-curriculum 2012; 8(2): 1- 22.

Certeau M de, Giard L, MAYOL, P de. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2011.

Boal A P. Dia mundial de teatro. Paris, 2009. [discurso]

Santos B de S. A gramática do tempo: para uma nova política. São Paulo: Cortez, 2010.

155

ANEXO A – Parecer consubstanciado do comitê de ética

HOSPITAL UNIVERSITÁRIO PEDRO ERNESTO/ UNIVERSIDADE DO ESTADO

PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP

DADOS DO PROJETO DE PESQUISA

Título da Pesquisa: Currículos pensadospraticados, em Alimentação, Nutrição e Saúde, no/com o cotidiano escolar. Pesquisador: Eliane de Abreu Soares Área Temática: Versão: 3 CAAE: 24118113.4.0000.5259 Instituição Proponente: Instituto de Nutrição Patrocinador Principal: Financiamento Próprio

DADOS DO PARECER

Número do Parecer: 642.493 Data da Relatoria: 14/05/2014

Apresentação do Projeto: Adequada. Objetivo da Pesquisa: Objetivo Primário: Desinvisibilizar os currículos pensadospraticados, em Alimentação, Nutrição e Saúde, pelos praticantes do/no cotidiano escolar. Objetivo Secundário: - Favorecer o emergir de diálogos, conflitos e tensões entre o currículo oficial em Alimentação, Nutrição e Saúde e o currículos pensadospraticados no cotidiano escolar; - Conhecer os modos de pensaraprenderensinar sobre Alimentação, Nutrição e Saúde valorizados pelos praticantes do cotidiano; - Compreender os modos pelos quais algumas práticas curriculares vividas no cotidiano escolar podem vir a ser contribuições à emancipação 156

Avaliação dos Riscos e Benefícios: Adequada.

Comentários e Considerações sobre a Pesquisa: Pesquisa qualitativa ancorada nos pressupostos teórico-epistemológico-políticos dos estudos nos/dos/com os cotidianos. A pesquisa-ação será realizada com crianças do 3º ano do ciclo do ensino fundamental da rede municipal de ensino da cidade do Rio de Janeiro no cotidiano escolar de uma oficina em Alimentação, Nutrição e Saúde - "Corpo, Cor e Sabor", desenvolvida no Núcleo de Arte Leblon, Unidade de Extensão Educacional da Secretaria Municipal de Educação.

Considerações sobre os Termos de apresentação obrigatória: Adequados.

Recomendações:

Conclusões ou Pendências e Lista de Inadequações: Foram atendidas as solicitações do Parecer Consubstanciado anterior. Projeto aprovado. Situação do Parecer: Aprovado Necessita Apreciação da CONEP: Não Considerações Finais a critério do CEP: 1. Comunicar toda e qualquer alteração do projeto e termo de consentimento livre e esclarecido. Nestas circunstâncias a inclusão de pacientes deve ser temporariamente interrompida até a resposta do Comitê, após análise das mudanças propostas. 2. Os dados individuais de todas as etapas da pesquisa devem ser mantidos em local seguro por 5 anos para possível auditoria dos órgãos competentes. 3. O Comitê de Ética solicita a V. Sª., que ao término da pesquisa encaminhe a esta comissão um sumário dos resultados do projeto.

RIO DE JANEIRO, 09 de Maio de 2014

Assinador por: ANTONIO FELIPE SANJULIANI (Coordenador)