Perspective Actualité en histoire de l’art

2 | 2013 Brasil

Electronic version URL: http://journals.openedition.org/perspective/5956 DOI: 10.4000/perspective.5956 ISSN: 2269-7721

Publisher Institut national d'histoire de l'art

Electronic reference Perspective, 2 | 2013, « Brasil » [Online], Online since 01 December 2013, connection on 01 October 2020. URL : http://journals.openedition.org/perspective/5956 ; DOI : https://doi.org/10.4000/ perspective.5956

This text was automatically generated on 1 October 2020. 1

• Esta edição online Brasil dá continuidade a um número especial da revista dedicado à história da arte desse país e nele realizada que foi publicado em dezembro de 2013 em formato impresso. Essa versão digital inaugural evidentemente é um reflexo e uma derivação do número impresso, entretanto nós conservamos apenas cinco da dezena de artigos publicados inicialmente. A recepção desse primeiro número dessa nova coleção contribuirá para aperfeiçoar o formato que nós aplicaremos aos próximos. Os leitores lusófonos terão o prazer de descobrir textos – inéditos em português – que tratam dos momentos mais importantes da arte no Brasil e, principalmente, da questão identitária que está em jogo nas obras, nos objetos e nos discursos sobre a arte desde o período barroco até os nossos dias. • Ce numéro en ligne et en portugais, Brasil, fait donc suite à un numéro spécial de la revue paru en décembre 2013 en format papier et consacré à l’histoire de l’art dans ce pays. Ce numéro électronique inaugural de la collection versions originales est une extraction de celui imprimé un an auparavant. Cette première étape nous a conduits à ne publier que six articles sur la dizaine parue initialement mais la forme de ces numéros spéciaux est amenée à évoluer dans le temps. Toutefois, nous espérons que, dès maintenant, le lectorat lusophone se réjouira de découvrir des textes – jusqu'alors inédits en portugais – traitant des temps forts de l’art au Brésil et, notamment, de la question identitaire qui se joue dans les œuvres, dans les objets et dans les discours sur l’art de la période baroque à nos jours.

Perspective, 2 | 2013 2

TABLE OF CONTENTS

Porque « a história da arte no Brasil »? Marion Boudon-Machuel

Fabricação e promoção da brasilidade: arte e questões nacionais Jorge Coli

O Barroco colonizador: a produção historiográfico-artística no Brasil e suas principais orientações teóricas Jens Baumgarten and André Tavares

Reflexões sobre a pintura de paisagem no Brasil no século XIX Pablo Diener

Modernismo brasileiro: entre a consagração e a contestação Ana Paula Cavalcanti Simioni

Existe uma arte brasileira? Luiz Marques, Claudia Mattos, Mônica Zielinsky and Roberto Conduru

Perspective, 2 | 2013 3

Porque « a história da arte no Brasil »?

Marion Boudon-Machuel Tradução : Constança Vigneron

1 Quem na França conhece a história da arte que se faz no Brasil ou da qual a arte brasileira é o objeto? É preciso admitir, apenas alguns poucos curadores e universitários. Entretanto o projeto de consagrar um número de Perspective a este país, depois da Suíça, Canadá, Grã-Bretanha, Espanha e Países Baixos, despertou um verdadeiro entusiasmo por parte dos especialistas consultados e dos membros dos comitês da revista. Este entusiasmo não tem nada de superficial, ele demonstra o interesse pelo desenvolvimento original e pelas especificidades da história da arte no Brasil. Se o historiador da arte francês souber olhar para isto, deveria felizmente, ser impulsionado e estimulado; o exemplo brasileiro poderia mesmo nos levar à novas reflexões sobre a disciplina em nosso país.

2 Desde o sumário deste número, cuja composição pode parecer lacunar para a periodização tradicional, a história da arte brasileira se distingue de forma talvez mais marcada do que em outros países pelo que é “história” e pelo que é “arte”. Os colegas norte-americanos se localizarão sem dúvida mais facilmente nesta paisagem que contém vales – a arte medieval não existiu ali –, montes – o século XIX é um terreno muito estudado –, e até mesmo montanhas – como o da arte contemporânea –, ou que demanda um olhar diferente para objetos que não entram no campo disciplinar no senso estrito. Sobre os assuntos mais trabalhados, o especialista do velho continente é assim convidado a sair de seu quadro, a modificar o epicentro da análise e a abordar a arte dos séculos XVII, XVIII e XIX, e até mesmo dos séculos XX e XXI por uma vertente que ele pouco ou nada frequenta. Ao contrário, ele deve também procurar compreender o que pode ser uma história da arte em negativo: como ensinar a arte medieval sem obra? Como dialogar com a antropologia ou a filosofia quando estas disciplinas irmãs acolheram desde cedo objetos como os produzidos pela arte indígena, que a história da arte não soube tratar e geralmente ignorou? É preciso, como certos pesquisadores brasileiros, chegar ao ponto de considerar que a obra de arte nos períodos antigos não existe no Brasil, ou quase, e que então o historiador da arte brasileiro deve se limitar a

Perspective, 2 | 2013 4

participar da história da arte europeia? Estas questões atravessam o número e explicam em parte alguns artigos no limite da linha editorial de Perspective, já que ainda não é possível estabelecer balanços historiográficos onde a produção científica é ainda embrionária ou mesmo inexistente. Através dos períodos e temas abordados em profundidade, ou ao contrário, que chamam a atenção por sua ausência, é a própria disciplina que é interrogada. Já que se trata do Brasil, esta interrogação é ainda mais presente por se referir aos próprios fundamentos e estruturas da matéria. Esta última se caracteriza, na verdade, por sua extrema juventude institucional, se considerarmos como um sintoma a existência muito recente e localizada de um primeiro ciclo em história da arte. Os historiadores da arte brasileiros – é este o caso da maioria dos autores deste número – receberam primeiro uma formação de historiadores, literatos, antropólogos, sociólogos e até mesmo de economistas, e às vezes de historiadores da arte, mas neste caso fora do país. Nutridos de interdisciplinaridade, e também de internacionalidade eles têm a facilidade de um povo que conhece de fato a questão do outro e da pluralidade cultural. Estes pesquisadores, que em grande parte fizeram seus estudos fora do país, viajam muito e mantém colaborações fecundas com numerosos países. Na escala brasileira, a cartografia da disciplina é assim bastante contrastada, aqui, com uma matéria que toma a forma ainda bastante tímida de um ciclo completo ou que se afirma com força há muito tempo, mas a partir do segundo ciclo apenas, e lá, com uma coabitação com outras ciências humanas entre as quais a história da arte é apenas um ramo dependente que tem dificuldade em se impor.

3 Esta diversidade é reforçada por aquela dos museus e das exposições que, do museu de belas artes às bienais de arte contemporânea, passando pelos museus de história, localizados nos grandes centros ou isolados em plena floresta, constituem um terreno não menos variado da reflexão sobre o objeto da história da arte não importando qual seja a sua época de produção. Em alguns casos, o convite para pensar diferente vem da própria forma da instituição, como a notável, apesar de atípica e surpreendente mesmo para o Brasil, de um museu que expõe a produção artística passada e presente de uma minoria, lembrando a sua história, questionando sua atualidade e que, através dela, colocam perguntas que ainda dividem fortemente a sociedade. No momento em que a globalização nem sempre ajuda a história da arte a se definir, talvez o Brasil abra outras vias.

4 Este número de Perspective pretende mostrar isto: Afinal o Brasil não é uma terra tão distante, e a história da arte que se desenvolve lá, em suas semelhanças assim como em suas diferenças, poderia bem nos servir de exemplo. Seria interessante principalmente questionar a validade dos métodos e das formações norte-americanas e europeias que foram uteis aos pesquisadores brasileiros, tentando distinguir aquilo que foi ignorado daquilo que foi importado e que permitiu semear a história da arte neste país e sob que formas. Ainda é um pouco cedo para fazê-lo, mas podemos sem dúvida quantificar isto dentro de alguns anos, e por que não, graças a um segundo número de Perspective sobre o Brasil? A evolução sem precedentes que a disciplina conhece ali merece de qualquer forma, ser acompanhada de perto.

Perspective, 2 | 2013 5

Fabricação e promoção da brasilidade: arte e questões nacionais

Jorge Coli

NOTA DO EDITOR

Cet article existe en traduction française : Fabrique et promotion de la brésilianité : art et enjeux nationaux.

1 Não é difícil constatar que, ao longo de sua história, a cultura artística formada no Brasil sempre recusou a observação. Nas artes plásticas e na literatura, artistas, intelectuais e escritores fecham-se em um mundo imaginário, cegos diante daquilo que os envolve.

2 Apesar de simples e genérica, essa observação inicial revela características fundamentais da produção artística brasileira. Essas particularidades estão vinculadas a crenças ideológicas, principalmente às noções de identidade nacional e de raízes originárias. Trata-se de ficções, de construtos e de fabulações que intervêm de modo definitivo nas percepções e nas expectativas dos comportamentos individuais e coletivos, nas formas de pensar e na concepção de mundo. Para a história das artes, tal situação significou uma inflexão fortemente nacionalista, que substituiu o exame e a análise aprofundada dos objetos considerados.

3 Portanto, se considerarmos duas categorias de produção artística – uma que constrói a partir do imaginário e outra que se baseia na observação – podemos afirmar que, na cultura brasileira, a primeira é consideravelmente dominante.

4 O breve episódio de ocupação holandesa no Nordeste brasileiro ocorrido no século XVII1, época em que o Brasil era colônia portuguesa (1500-1822), nos fornece um elemento de comparação: as obras de arte executadas no Brasil pelos holandeses baseavam-se em processos de observação imediata e presencial. Essa era uma das características mais

Perspective, 2 | 2013 6

ricas desses artistas protestantes, modernos, científicos em vários sentidos. Franz Post, por exemplo, mesmo quando pintava o Brasil de memória após seu retorno à Holanda, sempre se fundamentou em um olhar testemunhal. Em 300 anos de colônia portuguesa, a maior parte dos documentos históricos visuais que retratam a vida cotidiana daqueles tempos provém dos oito anos em que Maurício de Nassau governou o Nordeste do país.

5 É interessante pôr em contraste com essa produção holandesa “realista” o quadro A morte do Padre Philippe Bourel, um dos raros exemplos de pintura colonial que foge dos temas religiosos canônicos (século XVII, , Museu Nacional de Belas Artes). O catálogo museu atribui a obra a um autor desconhecido pertencente à “Escola Portuguesa” do século XVIII2 e algumas hipóteses a situam por volta de 1730. A sua decifração iconográfica é fascinante3. A localização em uma colina próximo a duas cidades fortificadas (que não encontram equivalente na arquitetura brasileira) e as palmeiras exóticas, que na realidade são tamareiras – espécie não local, mas fortemente carregada de ressonâncias iconográficas (árvore do paraíso e da fuga ao Egito e também metáfora da cruz); o papagaio, ave exótica abundante no Brasil, é fato, mas, antes disso, símbolo da palavra missionária, empregado, por exemplo, pelo Padre Andrea Pozzo no teto da Igreja de Santo Inácio, em Roma, para ilustrar a Alegoria do trabalho missionário dos jesuítas4; a cabana, abrigo precário que protege o missionário em sua agonia e cuja fragilidade contrasta com a solidez das cidades ao longe, revela, sobretudo, os fundamentos da cultura erudita e humanista sobre a qual a imagem repousa. Para o pintor, não se trata de modo algum de reproduzir empiricamente uma choupana brasileira e, muito menos, uma oca (que, desde as primeiras ilustrações para as aventuras de Hans Staden no Brasil, era representada de maneira totalmente diferente, com suas coberturas semicilíndricas). O pintor não foi buscar nenhuma referência local. Procedeu por meio do raciocínio humanista e clássico: devo representar uma cabana primitiva; procuro portanto a autoridade que me oferece seu modelo. Essa autoridade é uma só: Vitrúvio. O modelo da cabana procede claramente de ilustrações das edições renascentistas do De Architectura.

6 Essa situação se prolongou no século XIX. A independência do Brasil, em 1822, e a constituição do império brasileiro estimularam a fabricação de um projeto histórico – a construção de uma história para a nova nação – fundamentado tanto em instituições científicas (como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838) quanto em formas mais difusas da cultura.

7 Na época do romantismo, surgiu uma corrente artística e literária cujas consequências foram além do âmbito propriamente cultural e interferiram, com força ideológica, nos campos histórico e historiográfico. Trata-se do “indianismo”, movimento que celebrava os indígenas brasileiros, atribuindo-lhes nobreza, força heroica e caráter altaneiro5. Está claro que esse índio idealizado era puramente imaginário, e sua exaltação cultural correspondia temporalmente ao início da exterminação que se prolongou pelo século XX afora.

8 Ao tornar-se símbolo, o índio imaginário encarnava o ancestral nobre invocado pelos brasileiros. Ele permitia neutralizar o passado colonial, oferecendo uma origem elevada e autóctone. Essa imagem estava presente até mesmo na simbologia oficial: o manto de coroação do imperador Pedro I era recoberto de penas de tucano, evocando a maneira de enfeitar-se dos indígenas, como se ele tivesse recebido essa insígnia de poder dos ancestrais locais, eliminando os séculos de colonização. Um quadro anônimo, exposto no Museu Padre Toledo da Fundação Rodrigo Mello Franco de Andrade, revela o caráter

Perspective, 2 | 2013 7

institucional desses processos alegóricos: diante do imperador, ajoelha-se o índio – a personificação o império brasileiro. O caráter autônomo do jovem império reforçava assim a expressão de sua independência em relação à antiga metrópole. Nas caricaturas de jornais do século XIX, o índio, muitas vezes apresentado como Sr. Brasil, encarnou o país, atuando em situações políticas diversas.

9 A celebração do indígena como força suprema e entidade ancestral incidia sobre um outro aspecto, além do já mencionado: ela bloqueava a incorporação do negro pela cultura local. Ao contrário dos índios, que permaneciam em seu habitat natural, os africanos, que chegaram ao Brasil como escravos, eram presença evidente nos universos rural e urbano. Esses escravos eram percebidos como inferiores e como a manifestação quotidiana de um arcaísmo que se tornava cada vez mais insuportável: a escravidão foi abolida apenas em 1888. Graças ao índio, descartava-se o negro do imaginário brasileiro. Salvo exceções, a literatura e as artes plásticas consagraram-se pouco a tomar os negros como tema.

10 Foram sobretudo os artistas estrangeiros, principalmente os franceses, que se interessaram em retratar os tipos e os comportamentos da sociedade brasileira no século XIX. Depois da queda de Napoleão, a corte portuguesa – que havia fugido de Lisboa quando Portugal foi invadido pelo exército de Junot – permaneceu no Rio de Janeiro, então capital do reino de Portugal, prolongando assim o que foi chamado de “inversão metropolitana”. A antiga colônia, até então muito fechada aos estrangeiros, abria assim as suas fronteiras. Em 1816, um grupo de artistas franceses chefiados por Joachim Lebreton chegou ao Rio de Janeiro, na chamada Missão Artística Francesa.

11 Dois desses artistas tiveram um papel fundamental no retrato do Brasil daquele período: Nicolas-Antoine Taunay e Jean-Baptiste Debret, ambos formados por Jacques- Louis David (que era primo de Debret). Taunay retomou o tema da paisagem, interrompido desde os tempos de Frans Post, e produziu admiráveis vistas do Rio de Janeiro. Debret, com seu Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, ou séjour d´un artiste française au Brésil, depuis 1816 jusqu´en en 1831 inclusivement6 – obra composta de 153 pranchas litografadas e de um grande número de desenhos e aquarelas, em um espírito propriamente antropológico – retratou um quotidiano carioca sem eufemismos e deixou visualmente documentada a terrível situação dos negros, vítimas de castigos atrozes. Por ironia, os franceses que trouxeram as práticas neoclássicas para o Brasil no século XIX foram percebidos como “inimigos” pelos “modernos” no século XX: eles os acusavam de terem introduzido uma arte espúria a uma cultura nacional, alegando que o passado artístico com características “verdadeiramente” brasileiras seria o “autêntico” barroco, como se o barroco, ele próprio, não tivesse raízes europeias.

12 Sempre foram os artistas estrangeiros que retrataram o Brasil: os ingleses Edwin Landseer e Chamberlain, o austríaco Thomas Ender, o bávaro Johann Moritz Rugendas, o prussiano Ferdinand Theodor Hildebrandt, entre outros. Todos eles produziram imagens de verdadeira qualidade artística, mas também de grande interesse documental. Sem eles, não haveria registro visual histórico do país, de seus habitantes e de seus comportamentos ao longo de boa parte do século XIX. Os artistas brasileiros, ao contrário, dedicavam-se à nobre construção de uma bela história, na qual os índios, sublimes de caráter e de sacrifício, surgiam em imagens grandiosas: Moema, de , que ressurge em uma escultura importante de mesmo nome de Rodolpho Bernardelli; Marabá, de Rodolpho Amoedo, e O último Tamoio, do mesmo artista; Iracema, de José Maria de Medeiros (inspirado no romance homônimo de José de Alencar – note-

Perspective, 2 | 2013 8

se que Iracema é o anagrama de “América”); a grande escultura em terracota Alegoria do Império Brasileiro, de Chaves Pinheiro, para citar alguns exemplos conhecidos7. Apenas no final do século, o pintor paulista Almeida Júnior, influenciado por Gustave Courbet, deu atenção ao personagem do caipira interiorano, construindo suas obras a partir do vivido e do observado.

13 Junto com a exaltação indígena construiu-se outro mito ideológico: o da fusão das três raças. Ao índio, que sem dúvida continuou sendo o grande ancestral protagonista, se juntaram o português e o negro, em uma miscigenação harmoniosa. Esse mito foi reforçado pelo surgimento, em 1936 – momento de forte ideologia nacionalista – , do “homem cordial”, criado por Sérgio Buarque de Hollanda, que caracterizou o traço psicológico brasileiro e positivo8. Ele foi ainda retomado com muita força recentemente, em 1995, em O povo brasileiro, de Darci Ribeiro, que oferece uma versão dramática dessa miscigenação, sem desmistificar, porém, o resultado final, ou seja, a fusão das três matrizes básicas que formam “o brasileiro”9. Essa síntese matricial exclui, por suposto, todos os “estrangeiros”: os imigrantes italianos, japoneses, alemães, coreanos, etc., que chegaram ao Brasil no final do século XIX e remodelaram completamente a geografia humana do país ao longo do século XX.

14 Algumas obras de arte consagraram-se a instituir essa fusão. Duas delas foram capitais: A primeira missa no Brasil (1860, Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes) e A batalha dos Guararapes (1872-1877, Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes), ambas de Victor Meirelles. A primeira, pintada em Paris e exposta no Salon de 1861, foi inspirada em um documento histórico, a Carta de Pero Vaz de Caminha, na qual o escrivão da frota lusitana comandada por Pedro Álvares Cabral conta ao rei de Portugal a descoberta do Brasil em 1500. Celebrada no século XIX, essa carta, com efeito admirável de narração viva, foi publicada apenas em 181710 – ou seja, no momento em que se fazia necessário identificar um documento fundador de uma nova história – e tornou-se “o ato de batismo da Nação”, no dizer de um historiador da época. A aceitação desse quadro pelo júri do Salon foi um fato relevante: pela primeira vez um pintor brasileiro, que havia recebido uma bolsa do governo imperial, era reconhecido por uma instituição europeia prestigiosa. Nessa obra, Meirelles procede à interação pacífica entre os recém- chegados portugueses e os indígenas locais, em uma cerimônia cristã a céu aberto da qual participa toda a natureza. O segundo quadro, a imensa tela A batalha dos Guararapes (494,5 x 923 cm), retrata um combate que uniu portugueses, índios e negros contra o invasor holandês em 1654, batalha definitiva que pôs um termo à ocupação. Essa união, considerada a primeira manifestação de efetiva “brasilidade” pela história nacional, é proclamada em grande espetáculo pela pintura de Victor Meirelles.

15 No início do século XX, afora conferir uma nova forma às obras e uma irreverência divertida aos discursos, os modernos não mudaram grande coisa nesse panorama: em 1928, o escritor modernista Oswald de Andrade lançou seu “Manifesto Antropofágico”11 e Mário de Andrade, o romance Macunaíma12. Ambos reiteram a celebração indígena e, no caso do romance, a reafirmação do mito matricial das três raças.

16 Uma obra de exceção que exemplifica as soluções modernistas ao recuperar a presença africana é a tela A negra, de Tarsila do Amaral. Datada de “Paris, 1923”, ela foi realizada em pleno apogeu do primitivismo art nègre e ocupa um lugar icônico dentro das artes brasileiras, como expressão autêntica de uma negritude nacional. Está claro, porém, que o caráter emblemático da imagem – forte e admirável – elimina qualquer referência

Perspective, 2 | 2013 9

a um realismo individual ou social, projetando o personagem em um universo fantástico.

17 Acrescente-se que a presença do negro nas artes não suplantou, ao menos na primeira metade do século, a simbologia indígena. Um caso específico é o de Emiliano Di Cavalcanti. Esse pintor explorou a mitologia erótica das mulatas, objeto de desejo sexual brasileiro emblemático, conferindo a ele um tratamento de aspecto “moderno”. Suas célebres mulatas, tão prezadas pelos colecionadores, constituem um caso de “espírito brasileiro” em que a recuperação negra se faz por meio da erotização das mulheres.

18 É bem óbvio que a história da arte não ficou ilesa diante desse nacionalismo. No final do século XIX, Gonzaga Duque13, primeira presença verdadeiramente forte da história da arte no Brasil, publicou Arte Brasileira, livro essencial que faz um balanço histórico da produção artística local. Nele, o crítico a condena como convencional, arcaica e ultrapassada: sua postura é moderna. Sem originalidade, repetindo velhas fórmulas, essa arte que nasce velha deve, segundo ele, ser vencida por uma renovação baseada em um princípio de expressões propriamente brasileiras. Insiste em afirmar que o mundo artificial apresentado pelos artistas é incapaz fundar uma escola “autenticamente nacional”. Seu desejo é, portanto, o de uma arte que ultrapasse os temas e que encontre, ao mesmo tempo, uma forma moderna e brasileira. Essa obra sem dúvida anunciou as posturas modernistas que surgiram no século XX.

19 A história cultural brasileira assinala 1922 como o momento em que o modernismo artístico despontou no país. Está claro que houve outras experiências modernas antes disso, mas a Semana de Arte Moderna, ocorrida no Teatro Municipal de São Paulo, tinha condições para chocar uma cidade provinciana que conservava um núcleo intelectual e cultural pouco numeroso – apesar de sua população ter passado de 65.000 habitantes, em 1890, a 580.000, em 1920, graças às imigrações. Mesmo se as obras musicais, literárias e plásticas que foram então apresentadas não eram portadoras de um extremismo vanguardista, eram suficientemente inovadoras para provocar um forte escândalo. No meio desse alvoroço, afirmou-se a personalidade marcante de Mário de Andrade. Teórico fundamental do nacionalismo moderno, ele militava por uma arte autenticamente brasileira que não se baseasse em um exotismo romântico, mas que encontrasse suas raízes profundas e pudesse, assim, ser moderna e atual.

20 Como na época do indianismo romântico, essa preocupação nacionalista era fruto de estímulos internacionais: as demandas de primitivismo bárbaro, degustadas gulosamente na Europa, fazia com que a cultura brasileira produzisse a barbárie que dela se esperava – barbárie essa que foi tomada como essência e incorporada pelos brasileiros como característica própria e natural.

21 Macunaíma, o romance – ou a rapsódia – de Mário de Andrade, cuja ficção combina elementos mitológicos e traços culturais vindos de todas as partes do Brasil, foi publicado em 1928, no mesmo ano em que o seu Ensaio sobre a música brasileira, livro de caráter teórico cujos fundamentos ultrapassam largamente o campo musical para oferecer bases normativas a uma prática geral das artes14. Essas duas obras formam, assim, o projeto teórico e o seu exemplo prático. Em ambos, encontra-se a eliminação de todo regionalismo em benefício de uma síntese (a qual Mário de Andrade certamente estava convencido de possuir dentro de si), sem contar, está claro, o efeito próprio a todo nacionalismo, que é o de apagar diferenças de classe em benefício de uma identidade nacional.

Perspective, 2 | 2013 10

22 A defesa de tais posturas situava-se no momento da afirmação dos poderes totalitários que despontavam na Europa e também na América Latina. Inútil insistir sobre as afinidades entre tais convicções e a ditadura dos anos 1930 de Getúlio Vargas, que sabia arregimentar os nacionalismos de várias procedências e usá-los a serviço do poder autoritário. Depois de um período na Europa durante o qual sua música buscou experimentações mais livres e ousadas, marcadas por certo exotismo, como esperado pelo público europeu – é a época de seus Choros –, Heitor Villa-Lobos (que participara da Semana de Arte Moderna em São Paulo) voltou ao Brasil e tornou-se o grande compositor do regime: criou imensos corais infantis e juvenis nas escolas, compôs obras patrióticas e promoveu um forte retorno à ordem com suas Bachianas, em que mesclou a inspiração do mestre de Leipzig com temas do folclore brasileiro. O próprio Mário de Andrade foi chamado ao Rio de Janeiro para exercer uma função semelhante à de assessor do ministro da Educação, Gustavo Capanema, que se encarregava também das questões culturais. Além dele, Candido Portinari, vinculado à história do Partido Comunista, foi convidado para decorar, entre 1944 e 1947, o palácio do Ministério da Educação e Saúde, cuja arquitetura foi inspirada em um projeto de Le Corbusier e realizada por Lucio Costa, chefe de uma equipe de arquitetos que contava também com Oscar Niemeyer. Escultores da importância de Bruno Giorgi e Jacques Lipschitz, assim como o paisagista Roberto Burle Marx, se associaram nessa empreitada que afirmava o caráter oficial dos modernistas.

23 As posições teóricas e nacionalistas de Mário de Andrade pressupunham dois inimigos principais. Um deles era o prestígio da cultura internacional, particularmente das culturas europeia e francesa, esta última de grande presença no Brasil. Era preciso proteger-se de influências indesejáveis que traíssem aquilo que considerava ser uma “essência” nacional. O segundo, mais delicado e de inflexões sociais mais complexas, era a chegada de centenas de milhares de imigrantes italianos, japoneses, alemães, sírio-libaneses, entre outras origens, que privilegiavam a cidade ou o estado de São Paulo como escolha principal, atingindo exatamente o universo geográfico de Mário de Andrade e dos modernos de 1922. O mito orgânico da fusão das três raças servia para excluir a cultura não brasileira trazida por esses imigrantes e para exigir deles uma integração nesse ideário nacional, o que significava o sacrifício de seus aportes próprios.

24 Os princípios teóricos e ideológicos baseados nos fundamentos dessa “cultura brasileira” alicerçada no século XIX foram assim retomados pelo movimento modernista no século XX. Essa construção, totalmente ideológica, foi – e ainda é em grande parte – vivida coletivamente de maneira orgânica, ontogenética. O mito das três raças serviu para excluir a cultura dos imigrantes, que tinham, além de tudo, um handicap: eram trabalhadores braçais ou pequenos comerciantes, ao contrário da elite local, que se vangloriava de suas origens luso-indígenas (nunca negras) com fumos de aristocracia e que se mostrou incentivadora dos modernos. Era também um modo persistente e repetitivo de reiterar uma estratégia sentimental coletiva.

25 Nesse espírito, Mario de Andrade inventou uma história das artes teleológica, promovendo uma engenhosa revisão do passado. Ela já aparece constituída em seu Ensaio sobre a música brasileira, no qual ele diz querer consolidar um “espírito de raça” e imagina, grosso modo, três fases históricas para a criação artística no Brasil, começando pelo período que poderíamos chamar de “inconsciente”. Os criadores, ao longo da história, se deixaram penetrar por um espírito brasileiro sem darem por isso.

Perspective, 2 | 2013 11

Como corolário, o estudioso deve tratar de identificar, por exemplo, no padre José Maurício, importante compositor da corte portuguesa no Rio de Janeiro, os traços de brasilidade. Este é o papel essencial do historiador da arte: detectar as características brasileiras. Depois, vem o momento “voluntarioso”, para empregar a palavra de Mário de Andrade, em que ele próprio e seus contemporâneos se encontram. É preciso “querer ser” brasileiro, disciplinar-se, servindo-se dos exemplos locais, preferencialmente buscados em uma perspectiva antropológica. Enfim, Mário de Andrade prevê um futuro plenamente nacional: “ela [a música e, implicitamente, todas as artes] terá que se elevar ainda à fase que chamarei de Cultural, livremente estética, e sempre se entendendo que não poderá haver cultura que não reflita as realidades profundas da terra em que se realiza. E então a nossa música será, não mais nacionalista, mas simplesmente nacional, no sentido em que são nacionais um gigante como Monteverdi e um molusco como Leoncavallo”15. Os artistas contemporâneos deveriam, portanto, fazer um esforço para serem “nacionais”, antes de se tornarem “naturalmente” nacionais.

26 A história das artes proposta por Mário de Andrade pretendia buscar indícios nacionais nas obras do passado. Tratava-se, portanto, de descobrir os precursores, artistas que, no mais das vezes contra suas próprias intenções de obedecerem aos modelos europeus, incorporaram traços brasileiros em suas características e maneiras; ou seja, agentes inconscientes de brasilidade contra as grandes referências internacionais. Mário de Andrade traçara um vetor no tempo: quanto mais antigos eram os artistas, mais as marcas de brasilidade eram fracas. À medida em que, progressivamente, uma cultura brasileira se afirmava, esses traços também se evidenciavam mais e mais. Não importava a qualidade das obras. Mário de Andrade reiteradamente repetiu sua desconfiança diante do “gênio”: uma personalidade criadora excepcional, com seus particularismos, compromete o desenvolvimento coletivo “médio” da criação artística. Essa “média” torna-se o ponto principal da questão: as obras de fato significativas que a história da arte e da cultura brasileiras deveria levar em conta não eram as mais inovadoras, nem as mais elaboradas, nem as mais inventivas e excepcionais. O que contava para essa história da arte era o grau de brasilidade, maior ou menor, mais tardio ou mais precoce. Quanto mais escapassem aos modelos internacionais, melhores elas eram.

27 Esses processos simplificadores eram baseados em premissas fortemente ideológicas, já que se tratava de definir o que era ou não era “brasileiro”, o fundamento axiomático mais profundo das distinções nacionais.

28 Essas formulações teóricas tiveram como consequência a valorização das deficiências técnicas, do caráter rudimentar e da falta de habilidade dos artistas brasileiros nas práticas de seus ofícios. Defeitos ou erros que, comparados à maestria hábil estrangeira, podiam revelar uma carência em relação às práticas europeias, mas se definiam, em verdade, como soluções locais que manifestavam uma “alma” artística brasileira, pontos de resistência diante do domínio técnico presente nos centros internacionais. O gosto difuso na época – internacionalmente, se entende – por um primitivismo genérico naturalmente deu apoio a essas convicções.

29 O folclore foi um dos melhores instrumentos para a caracterização nacional. Serviu para a inspiração artística e foi objeto de pesquisa, a começar pelo polimorfo Mário de Andrade, que foi também etnólogo, antropólogo e folclorista. A modernidade brasileira

Perspective, 2 | 2013 12

não foi certamente a única a se voltar para o primitivismo e para o arcaísmo, mas é preciso sublinhar a extrema importância dessas noções para esse movimento.

30 O evolucionismo de Mário de Andrade acompanhava-se também de uma paradoxal negação da história, substituída pelo que poderia ser chamado de uma antropologia atemporal. Isso se manifesta também no pensamento de Lucio Costa, arquiteto e urbanista que se lançou na história da arquitetura brasileira ao publicar muito cedo, em 1929, O Aleijadinho e a Arquitetura Tradicional16, mais tarde, em 1937, Documentação necessária17, e, enfim, em 1952, Considerações sobre a arte contemporânea18, três obras que marcaram e ainda marcam as práticas interpretativas. Esses textos se afinam com as visões de Mário de Andrade. O gênio de Aleijadinho não compartilha “com o espírito geral de nossa arquitetura”, diz Lucio Costa. Para ele, o centro de referência para a brasilidade é a arquitetura vernácula, doméstica: a casa colonial. Marcelo Puppi fez uma admirável análise em seu Por uma história não moderna da arquitetura brasileira, concluindo a esse respeito que Lucio Costa “pretende instaurar uma antropologia da arquitetura; esta não por acaso torna desnecessário o conhecimento efetivo da própria história disciplinar: a ‘história’ antropológica elimina a história ‘histórica’. A procura do tradicional – vale dizer, o retorno às raízes culturais da nação – equivale à busca de nossa arquitetura primitiva”19. Dessa forma, o passado colonial, que age contra as modas estrangeiras e deletérias do século XIX, deve inspirar os arquitetos do presente.

31 Há claras incidências dessas posturas sobre a preservação do patrimônio, incluindo a maquiagem das assim chamadas cidades históricas de Minas Gerais, como Tiradentes e Ouro Preto, cujas regras de proteção eliminaram os aportes dos séculos XIX e XX e impuseram às novas construções o estilo do século XVIII.

32 No que concerne os estudos sobre o barroco brasileiro, a consequência mais forte é o fechamento sobre si, buscando processos genéticos e evolutivos internos e recusando as práticas comparativas internacionais. Quando Germain Bazin vem ao Brasil em 1945, no élan da política cultural do ministro Gustavo Capanema, para desenvolver seus trabalhos sobre arte e arquitetura barroca, ele se alinha às normas nacionalistas. Isso também ocorre bem mais tarde no livro de Yves Bruand Arquitetura contemporânea no Brasil20, primeira obra sistemática sobre o assunto, mas que também adere às teses nacionalistas existentes. Independentemente dos indiscutíveis méritos desses autores franceses, seus horizontes são sempre aqueles estabelecidos pelo campo ideológico local.

33 Esse campo sofreu, no entanto, um estremecimento nos anos 1950, momento de desenvolvimento industrial e de prosperidade econômica que criou uma forte abertura internacional. Assim, foram criados o Museu de Arte de São Paulo, com uma coleção de obras-primas universais compradas em poucos anos, e a Bienal Internacional de São Paulo, que articulava o Brasil com a produção artística mundial. Acontecimentos importantes, mas insuficientes para se imporem ideologicamente e que sofreram o revés do golpe militar de 1964, quando o projeto nacionalista foi fortemente retomado.

34 Por diversas razões, a história da arte no Brasil se afirmou como disciplina universitária sólida e autônoma somente muito tarde, nos anos 1990. Foram criados, então, vários programas de pós-graduação e, nos últimos anos, algumas graduações específicas. Antes disso, os estudos eram feitos por eruditos de formações as mais diversas, que deixaram obras preciosas, mas que não se articulavam de maneira sistemática e crítica, como era necessário.

Perspective, 2 | 2013 13

35 Com essa mudança fundamental, jovens historiadores formados no rigor das disciplinas acadêmicas voltaram-se para um trabalho sem preconceitos nacionalistas e atualizado internacionalmente. Muitos deles dedicaram-se ao estudo de obras estrangeiras, sobretudo daquelas pertencentes a coleções brasileiras, mas não apenas. Outros se interessaram por obras suscitadas pela presença cultural dos imigrantes e que até então não despertavam interesse – um caso exemplar é o da escultura monumental italiana no século XX. Nos últimos anos, a arte brasileira, acima de tudo, tem sidoposta em perspectiva internacional, seja pelo estudo comparativo, seja pelo trabalho arquivístico executado no exterior ligado aos artistas brasileiros viajantes. Seria impossível enumerar a variedade desses estudos recentes que trouxeram um novo alento e novas compreensões para a história da arte no Brasil.

NOTAS

1. Após tomarem a cidade de Salvador da em 1624 e a ocuparem por um ano, os holandeses apossaram-se de Pernambuco, controlando o Nordeste quase que por 24 anos. Entre 1637, quando chegou a Pernambuco, e 1644, quando retornou à Europa, o conde Maurício de Nassau ocupou o cargo de Governador dos domínios conquistados e a conquistar pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais no Brasil. Excelente administrador, ele era também um humanista interessado em desenvolver um projeto científico e artístico no Brasil. Trouxe consigo eruditos e artistas e criou um museu de história natural, um jardim botânico, um zoológico e um observatório astronômico. 2. Alcídio Mafra Souza E., O Museu Nacional de Belas Artes, São Paulo, 1985, p. 238. 3. Cf. Jorge Coli, “Episódio e alegoria”, in Anuário do Museu Nacional de Belas Artes, v. 1, 2009, p. 105-128. 4. Cf. Erwin Panofsky, Problems in Titian: Mostly Iconographic, New York, 1969, p. 28-29. 5. Os nomes mais importantes na literatura, entre outros, são, na prosa, José de Alencar, com os romances O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874); na poesia épica, Gonçalves Dias, com I-Juca-Pirama (1851) e Os Timbiras (1856), e Gonçalves de Magalhães, com A confederação dos Tamoios (1856). Na pintura, de manifestação um pouco mais tardia, os principais nomes são Victor Meirelles, e Antônio Parreiras. Um lugar relevante deve ser reservado ao compositor Antonio Carlos Gomes, que apresentou em 1870, no Teatro alla Scala de Milão, a ópera Il Guarany, baseada no romance de Alencar, e criou Lo Schiavo, que estreou no Rio de Janeiro em 1889. 6. Jean-Baptiste Debret, Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou Séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en 1831 inclusivement, Paris, 1834. 7. Victor Meirelles, Moema (1866, São Paulo, Museu de Arte de São Paulo), inspirado no poema épico , de Santa Rita Durão (1781); Rodolpho Bernardelli, Moema (1895, Pinacoteca do Estado de São Paulo); Rodolpho Amoedo, Marabá (1882, Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes), inspirado no poema homônimo de Gonçalves Dias (1851); Rodolpho Amoedo, O último Tamoio (1883, Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes), inspirado no poema épico de Gonçalves de Magalhães A confederação dos Tamoios (1856); José Maria de Medeiros, Iracema (1884, Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes), inspirado no romance homônimo de José de

Perspective, 2 | 2013 14

Alencar (1865); Chaves Pinheiro, Alegoria do Império Brasileiro (1871, Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes). 8. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, São Paulo, 1936. 9. Darcy Ribeiro, O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, 1995. 10. A Carta de Pero Vaz de Caminha foi publicada no livro Corografia Brasílica, de Manuel Aires de Casal (Rio de Janeiro, 1817). 11. Oswald de Andrade (1890-1954), poeta, romancista, ensaísta e polemista, foi um dos percursores do movimento modernista e um dos criadores e participantes da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo. Seu “Manifesto Antropofágico”, publicado em maio de 1928 na primeira edição da Revista de Antropofagia, criada por ele, defendia a ideia de que o canibalismo cultural, naturalmente inspirado de práticas indígenas – absorção de todas as formas de cultura internacional para, com a digestão, transformá-las em cultura brasileira – era a maneira de afirmar uma cultura nacional contra a Europa. 12. Mário de Andrade (1893-1945), poeta, romancista, musicólogo, professor no conservatório de São Paulo, crítico e historiador da arte, e principal teórico do movimento modernista, também teve um papel fundamental na realização da Semana de Arte Moderna de 1922. Seu prestígio como erudito era imenso, e suas intervenções entre os artistas brasileiros de todos os campos foram definitivas. Macunaíma (São Paulo, 1928) é um romance – que o autor chama de “rapsódia” – em que, por meio de situações irreais, baseadas em grande parte na mitologia indígena, ele pretende fornecer uma síntese do que poderia ser chamado de “brasilidade”. 13. Luiz Gonzaga Duque Estrada exerceu a crítica de arte no Rio de Janeiro; publicou A arte brasileira: pintura e esculptura (Rio de Janeiro, 1888) e, entre outros textos consagrados à arte, o romance à clef Mocidade morta, (Rio de Janeiro, 1899), em que faz um retrato do meio artístico carioca do final do século XIX. 14. Andrade, 1928, citação no 12; Mário de Andrade, Ensaio sobre música brasileira, São Paulo, (1928) 1962. 15. Andrade, [1928] 1962, citação no 15, p. 33-34. Esse esquema foi retomado, com uma perspectiva histórica mais fortemente acentuada, em 1941, no estudo “Evolução Social da Música no Brasil”, editado posteriormente no volume Aspectos da música brasileira das obras completas de Mário de Andrade (São Paulo, 1965). 16. Lúcio Costa, “O Aleijadinho e a arquitetura tradicional”, in Sobre arquitetura, Porto Alegre, 1966, p. 12-16 [ed. orig. in O Jornal, 1929]. 17. Lúcio Costa, “Documentação necessária”, in Costa, 1966, citação no 17, p. 202-229 [ed. orig. in Revista do SPHAN, 1, 1937]. 18. Costa, 1966, citação no 16, p. 202-229 [ed. orig.: Considerações sobre a arte contemporânea, Rio de Janeiro, 1952]. 19. Marcelo Puppi, Por uma história não moderna da arquitetura brasileira, Campinas, 1998. 20. Yves Bruand, Arquitetura contemporânea no Brasil, Campinas, 1981.

Perspective, 2 | 2013 15

O Barroco colonizador: a produção historiográfico-artística no Brasil e suas principais orientações teóricas

Jens Baumgarten e André Tavares

NOTA DO EDITOR

Cet article existe en traduction française : Le baroque colonisateur : principales orientations théoriques dans la production historiographique

1 Os discursos pós-modernos e pós-coloniais abriram na historiografia européia e norte- americana novos espaços para publicações de áreas geográficas que por muito tempo foram consideradas secundárias. Com isso, objetos produzidos fora do cânone ocidental passaram a integrar uma história da arte mundial. A partir desse cenário, é importante repensar as consequências teóricas e metodológicas para a arte colonial, ou a chamada arte barroca, no Brasil. O presente artigo pretende, dessa forma, apresentar uma revisão historiográfica dessa área1, inserir essa bibliografia nos debates críticos atuais e, assim, apresentar uma visão geral a respeito dessa produção historiográfica, considerando que nenhuma subárea temática, cronológica e geográfica permite uma “ histoire totale” que englobe a produção completa.

Arte colonial e/ou barroco: considerações metodológicas e teóricas

2 O tema da arte colonial é indissoluvemente ligado ao discurso sobre o barroco. O termo começou a ser usado a partir do final do século XVIII e se transformou em um conceito com as publicações de Cornelius Gurlitt e Heinrich Wölfflin, sobretudo com os livros Renascimento e Barroco, de 1888, e Conceitos Fundamentais da História da Arte, de 19152. O período conhecido como barroco, situado tradicionalmente entre os séculos XVII e XVIII,

Perspective, 2 | 2013 16

não pode ser visto apenas como um fenômeno histórico; esse termo refere-se à historiografia e, em especial, à história da arte, mas também à literatura. Nesse contexto, o barroco foi classificado como degenerescência (Jacob Burckhardt), como categoria estilística (Wölfflin), como alegoria (Walter Benjamin), como projeção do desejo (Germain Bazin) e foi relacionado à época contemporânea por meio do conceito de neobarroco (Omar Calabrese)3. Nos últimos anos, o uso do termo barroco passa por uma verdadeira “inflação” nas ciências humanas – e não apenas no Brasil.

3 Nesse país, esse conceito foi mais discutido no âmbito da teoria e da crítica literária, como mostra o debate entre Haroldo de Campos e João Adolfo Hansen (DE CAMPOS, 1979, 1989; HANSEN, 1992, 2003) e também a revisão crítica de Guilherme Gomes Júnior (GOMES JÚNIOR, 1998; sobre as artes plásticas, cf. p. 31-88). Apesar de ter sido aplicado tardiamente, o termo estilístico wölffliniano, que foi usado em várias circunstâncias como sinônimo de “arte colonial”, teve muito sucesso na segunda metade do século XX. Enquanto o desenvolvimento desse conceito suscitou em países como o México, por exemplo, uma outra periodização e uma denominação mais política – a arte da conquista espanhola, a arte virreinal etc. –, no Brasil, a terminologia formalista domina o cenário até hoje.

4 O primeiro autor a mencionar esse assunto foi o pai da historiografia da arte brasileira, Manuel Araújo Porto-Alegre (1806-1879) que, ligado à tendência neoclássica dos pintores franceses que participaram da Missão Artística Francesa de 1816, analisou as obras da época colonial a partir de uma abordagem formal e política. Como ressalta Guilherme Gomes Júnior, “Além de ser provavelmente, no Brasil, o primeiro a utilizar a palavra barroca em um sentido estilístico, Porto-Alegre já esboça em suas reflexões uma teoria pendular da história da arte, baseada na ideia de um ir e vir entre formas clássicas e formas amaneiradas” (GOMES JÚNIOR, 1998, p. 41). Nesse sentido, é interessante constatar que o contexto da formação do Estado, a partir de meados do século XIX, também está vinculado ao tema estilístico apresentado por Wölfflin a respeito do desenvolvimento dos conceitos (WARNKE, 1989).

5 As traduções dos textos de Wölfflin exerceram grande influência sobre a produção literária e científica no Brasil. De acordo com João Adolfo Hansen: “Desde que Wölfflin usou o termo como categoria estética positiva, a extensão dos cinco esquemas constitutivos de ‘barroco’ – pictórico, visão em profundidade, forma aberta, unificação das partes a um todo, clareza relativa – passou a ser ampliada, (....) para em seguida classificar e unificar as políticas, as economias, as populações, as culturas, as ‘mentalidades’ e, finalmente, [as] sociedades europeias do século XVII, principalmente as ibéricas contra- reformistas, com suas colônias americanas, na forma de essências: ‘o homem barroco’, ‘a cultura barroca’, ‘a sociedade barroca’ etc. Dedutivas e exteriores, as apropriações a- críticas de Wölfflin substancializam a categoria, constituindo ‘barroco’ como fato e essência que existem em si” (HANSEN, 2003, p. 172-173).

6 No Brasil, o estilo barroco ganhou a partir da década de 1920, com o modernismo, uma importância predominante na construção de uma identidade cultural e estética própria – a chamada “brasilidade”. O termo “barroco” provocou uma controvérsia, discutida até hoje, não somente por historiadores e críticos de arte. Assim como muitos outros artistas e críticos modernistas dos anos 1930, Mário de Andrade e seu aluno Luiz Saia viajaram a Minas Gerais e desenvolveram o conceito de uma arte brasileira nacional autóctone construída com base no “barroco de Minas” (barroco mineiro ; ANDRADE, 1928;

Perspective, 2 | 2013 17

GOMES JÚNIOR, 1998, p. 50-63; CHIARELLI, 2007, p. 69-96 et p. 247-248). A obra de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, arquiteto e escultor da era colonial, serviu de evidência principal dessa arte, ainda que sua própria existência seja posta em dúvida por alguns críticos (CHIARELLI, 2007, p. 173-175). Aleijadinho era o tema ideal para a apoteóse brasileira, uma vez que representava, por meio de sua própria personalidade, a mestiçagem por excelência. Apresentado como um artista autóctone que trabalhava no centro do Brasil, ele serviu de núcleo para o nascimento da nação brasileira e de sua representação artística, especialmente para os modernistas, mas também, principalmente na arquitetura, para os representantes do movimento neocolonial (movimento do final do século XX que deve ser diferenciado do movimento neobarroco da segunda metade do século XX, caracterizado por abordagens transculturais e trans- históricas).

7 Por meio de suas interpretações podemos compreender o discurso renovador e emocional sobre a identidade nacional desenvolvido por Mário de Andrade em um artigo publicado em 1921 na crítica revista Ilustração Brasileira: “Mas o que há de mais glorioso para nós é o novo estylo néo-colonial, que um grupo de architectos nacionaes e portuguezes, com o Sr. Ricardo Severo à frente procura lançar (…) Não me consta que já tenha havido no Brasil uma tentativa de nacionalizar a architectura, estylizando e aproveitando os motivos que nos apresenta o nosso pequeno passado artístico, e formando construções mais adaptados ao meio. (…) O néo-colonial que por aqui se discute é infinitamente mais audaz e de maior alcance. Si o público, bastante educado, ajudar a interessante iniciativa, teremos ao menos para a edificação particular (e é o que importa) um estylo nosso, bem mais grato ao nosso olhar, hereditariamene saudoso de linhas anciãs e proprio ao nosso clima a ao nosso passado” (ANDRADE, 1921). Nesse contexto, temos que distinguir, juntamente com Maria Lúcia Bressan, que estudou o modernismo e a proteção do patrimônio nos debates culturais da década de 1920 (BRESSAN, 1997, 2011), o entusiasmo de Mário de Andrade e sua busca de raízes nacionais, que caracterizaram o movimento modernista brasileiro, do conservadorismo de Ricardo Severo, que aderiu ao neobarroco e defendeu a reavaliação da ideia de pátria como reação ao cosmopolitismo destrutivo que, em seu ponto de vista, ameaçava a sociedade paulista nas primeiras décadas do século XX (AMARAL, 1994, p. 150-152). Nesse sentido, a elite paulista defendia a ideia de que o neobarroco ou o neocolonial poderia funcionar como um apelo afirmativo com seu caráter de “bastião dos valores nacionais” que evitaria a ameaça representada pelo grande fluxo de imigrantes europeus, principalmente italianos, que se estabeleceram na região nesse período. Houve, assim, uma mescla e uma justaposição de discursos ideológico-políticos e estéticos com relação à ideia de “nação” e o desejo de uma reafirmação social: os “paulistas quatrocentões” contra os “novos ricos sem pátria”.

8 Uma nova reflexão sobre o barroco começou a ser desenvolvida nos anos 1940 pela historiadora da arte Hannah Levy4, que introduziu os conceitos do barroco e ajudou divulgá-los por meio do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), onde trabalhou a convite do diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade. Originária da Alemanha, ela emigrou em 1934 para Paris, onde publicou sua primeira crítica aos conceitos wölfflinianos baseada na sociologia da arte (LEVY, 1936) e, em seguida, instalou-se no Rio de Janeiro, onde trabalhou no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico. Ela publicou, então, na revista do Sphan, uma série de artigos teóricos dedicados principalmente aos estudos da história do barroco no Brasil (LEVY, 1940, 1941,

Perspective, 2 | 2013 18

1942, 1944, 1945), nos quais propôs uma releitura com o propósito de estabelecer novas abordagens para a análise de obras artísticas da época colonial5. Ela sintetizou metodologicamente abordagens tradicionais, criticando-as por meio da experiência da “instabilidade” (referimo-nos aqui ao conceito desenvolvido por Moser in MOSER, 2001). O trabalho realizado por Levy nos anos 1940 foi bastante notável já que a arte não- europeia não dispunha de nenhum destaque na história da arte acadêmica na primeira metade do século XX, ao contrário da arte moderna, que tinha alguns de seus representantes ocupando cargos de curadores de museus e de críticos de arte6.

9 Para compreender o trabalho de Levy, é importante mencionar a tese de doutorado que a historiadora da arte defendeu em Paris sob orientação de Charles Lalo e Henri Focillon e que foi publicada em 1936 por uma pequena editora judaico-alemã – fato que não permitiu a divulgação merecida da obra, nem mesmo após a Segunda Guerra Mundial (LEVY, 1936 ; BELOW, 2005). Nesse estudo, ela avalia o pensamento e a análise científica de Heinrich Wölfflin e de seus precursores, Konrad Fiedler, Adolf Hildebrandt e Jacobr Burckhardt, perante o cenário de desenvolvimento social e econômico de sua época. Seu enfoque baseia-se em uma metodologia fundamentada no marxismo dialético de Max Raphael e contempla também as posições de autores alemães como Max Horkheimer, Walter Benjamin, Karl Mannheim, Erwin Panofsky e Edgar Wind, além, é claro, de seus professores e orientadores na Sorbonne. Apesar da grande estima que exprime por Wölfflin em sua tese e a despeito do grande sucesso que ele havia conquistado com a publicação de Renascença e Barroco e de Conceitos fundamentais da história da arte, ela não deixa de criticar enfaticamente as suas posições. A recepção de Conceitos, que pode ser vista como a publicação de história da arte mais bem sucedida (considerando o número de traduções e reedições que ela obteve), não somente no Brasil, mas no mundo inteiro, ainda não foi analisada detalhadamente.

10 Destacando a importância de Wölfflin para o processo de cientificação da história da arte e a relevância de suas análises de obras singulares, a crítica de Levy concentra-se no conceito idealístico da história. Ela destaca sobretudo o enfoque de Wölfflin, que defende uma história independente da observação e autônoma em relação aos desdobramentos artísticos; isso sublinha também a rejeição de um estilo uniforme e homogêneo em uma época constituída e modificada pelas noções de nação e raça. Segundo Levy, a história deve ser entendida como um processo dialético no qual as diferentes esferas culturais dispõem a princípio de uma dinâmica própria, vinculadas, porém, à história social. Desse modo, a reflexão acerca da relação entre arte e sociedade precisa ser aplicada às análises de obras singulares, à conceituação das épocas da história da arte e às instituições das artes e ciências. A temática dos artigos publicados na revista do Sphan, além de ser inédita, representou um progresso na teoria e na metodologia da disciplina. Em seus dois primeiros artigos sobre o “valor artístico e o valor histórico”, bem como nos textos acerca das três teorias do barroco (LEVY, 1940, 1941), Levy esboçou as linhas gerais da sua metodologia. Seus três últimos artigos apresentam, por sua vez, suas ideias sobre a arte colonial do Rio de Janeiro e de Minas Gerais (LEVY, 1942, 1944, 1945).

11 Segundo Levy, uma obra de arte que desencadeou a formação de uma “escola” no Brasil colonial possui um valor histórico inerente, sem que tenha obrigatoriamente um valor artístico. A esses dois valores, soma-se também o de documentação, que se aplica às representações de eventos importantes da história brasileira (LEVY, 1940). A distinção em si desses três valores não é inovadora, mas o texto de Levy ressalta que eles “não

Perspective, 2 | 2013 19

constituem, na historia concreta, valores absolutos, mas, relativos” (LEVY, 1940, p. 188). Ao dar prosseguimento à sua tese, ela critica também o eurocentrismo: “Esse sentido relativo dos valores evidencia-se se considerar uma obra (sucessivamente) em relação à produção total de um só artista, a uma escola local, à história da arte de um país ou à história mundial da arte, etc.” (LEVY, 1940, p. 188). Essa citação revela também um outro aspecto do pensamento e da linguagem da autora: ela evita mencionar termos como “nação” ou “nacional”, contrariamente a modernistas como Mário de Andrade e a historiadores da arte como Lourival Gomes Machado, que, na busca pela nacionalidade, falam da “nossa cultura” e constroem a brasilidade a partir da arte colonial de Minas Gerais. Citando os possíveis padrões de julgamento, ela se posiciona em relação às críticas: “Esta verificação não implica absolutamente, [c]omo consequência pela impossibilidade de qualquer julgamento, uma vez que ‘tudo é relativo’. Trata-se apenas de delimitar exatamente o alcance (concreto e teórico) do juizo expendido” (LEVY, 1940, p. 189).

12 A importância desse enfoque para a arte brasileira, latino-americana ou até mesmo para a arte mundial reside uma vez mais nas pré-valorizações. Levy demonstra que “a simples verificação da influencia exercida por uma determinada obra sobre outra não contem em si nenhum julgamento de valor. Somente um estudo minucioso relativo tanto à análise da estrutura artística interna e à análise histórica da obra que exerceu influência como da obra que a sofreu decidirá a questão de saber que valor (histórico ou artístico) se deve atribuir a uma e outra das duas obras” (LEVY, 1940, p. 190-191). Ao abordar a arte brasileira livre de qualquer preconceito, ela observa que a constatação da existência de uma influência européia não possui nenhum significado: “Se amanhã um historiador trouxesse a prova irrefutável de que existe uma influência certa de tal obra de determinado artista europeu sobre as estátuas dos profetas de Congonhas, este fato seria certamente de grande interesse sob muitos aspetos. Mas o fato dessa influência em si não dirá jamais nada do valor histórico ou do valor artístico da obra de Antonio Francisco Lisboa” (LEVY, 1940, p. 191). Com essa posição, Levy questiona a primazia de uma história da arte europeia sobre uma história da arte não-europeia. Seu ponto de vista direciona-se implicitamente ao interesse na relação entre centro e periferia – questão igualmente presente nas ideias de George Kubler (KUBLER, 1959, 1962) e discutida contemporaneamente por Thomas DaCosta Kaufmann no debate sobre os conceitos de uma nova geografia da arte (KAUFMANN, 2004). Nesse sentido, ela quebra as hierarquizações sem perder o foco da obra singular e de seu contexto individual, como demonstra nos artigos sobre a pintura mineira e carioca.

13 O clima de meados do século XX pode ser reconstruído ao citarmos Lourival Gomes Machado e seus diversos ensaios que foram reunidos e publicados sob o título de Barroco Mineiro (GOMES MACHADO, 1969 ; cf. também GOMES JÚNIOR, 1998, p. 76-87) e a já mencionada Hannah Levy, com o artigo “A Propósito de Três Teorias Sobre o Barroco” (LEVY, 1941) – dois pesquisadores que sintetizaram as principais linhas de argumentação das teorias explicativas sobre o barroco. Em seu artigo “Modelos europeus na pintura colonial”, publicado em 1944, Levy afirma que não há dúvida de “que grande número de pintores nacionais se utilizou de modelos da arte europeia. Daí o caráter eclético da pintura colonial, vista em conjunto, e daí também o caráter heterogêneo que se nota frequentemente nas obras de um mesmo artista” (LEVY, 1944, p. 64). Gravuras de diferentes origens (tanto em termos artísticos quanto cronológicos), principalmente alemãs e flamengas, por exemplo, foram indistintamente usadas como modelos por

Perspective, 2 | 2013 20

artistas de Minas Gerais. Resumindo suas observações, Levy destaca que se o pintor colonial copiou fielmente o modelo no que se refere à composição, à distribuição dos tons luminosos e sombrios, às atitudes, aos objetos menores, à indumentária, etc., observa-se igualmente uma redução parcial da cena quanto ao número de figuras representadas, bem como uma simplificação parcial dos fundos. Os gestos expressivos foram minuciosamente conservados pelo copista. Na opinião de Levy, “os painéis traduziram perfeitamente o caráter dramático e agitado das representações gravadas [...] ou ainda ofereceram até um efeito mais dramático de que o das próprias gravuras originais [...]. Por outro lado, a impressão de agitação suscitada pelas pinturas resulta, também, da circunstância de haver o pintor, simplificando os fundos, concentrado [....] todo o interesse sobre as figuras humanas” (LEVY, 1944, p. 48-49). Sem aprofundar-me nesse tema nem criticar suas observações, entendo que precisamos levar em consideração os pressupostos conceituais de seu pensamento: Levy aplicou, em suas análises de obras singulares, o método de Wölfflin aos exemplos brasileiros, abrindo-o porém a abordagens sociológicas. Além disso, suas análises dão início a uma ruptura com o esquema dicotômico que distingue uma cultura produtiva e uma cultura receptiva.

14 Duramente criticados por Lourival Gomes Machado como sendo uma simples vulgarização das abordagens de Wölfflin e Leo Balet, por exemplo, (MACHADO, 1969, p. 46)7 os trabalhos Hannah Levy ultrapassam claramente o âmbito de uma simples apresentação e revelam sua preferência pelos métodos sociológicos na análise do contexto colonial do Brasil: “A teoria de Balet [...] explica os fenômenos artísticos pelas suas relaç[õ]es [c]om a totalidade das condições históricas existentes numa época determinada, [isto] nos parece ser, por isso mesmo, a [forma] mais apta a resolver também os problemas da historia da arte brasileira” (LEVY, 1941, p. 284). Específica a uma história da arte brasileira, a metodologia desenvolvida por Levy emancipou-se das abordagens europeias, sem no entanto enveredar-se pelo caminho de uma história da arte nacional ou mesmo nacionalista, em busca da essência de uma arte nacional, nos termos defendidos por Mário de Andrade e pelos adeptos da brasilidade. Ela não somente questionou o cânone europeu, mas também defendeu a importância da conceituação teórica para uma história da arte não-nacionalista e não-eurocentrista. Esse enfoque é particularmente interessante por não rejeitar a princípio as posições de fundadores da disciplina, como Wölfflin ou Max Dvořák. Ao defender as análises estruturais e formais das obras, ela revela as hierarquizações e as pré-valorizações dessas abordagens formalistas, em uma perspectiva que em décadas posteriores recebeu o nome de “crítica da ideologia” (Ideologiekritik), conceito desenvolvido pelos neomarxistas e pelos membros da Escola de Frankfurt. Neste sentido, é possível considerar Levy como uma das predecessoras de uma história da arte pós-colonial.

15 Um discurso nesses termos contrariava necessariamente os diversos discursos oficias sobre a arte do século XVIII que vinham sendo sedimentados no Brasil desde os anos 1950 por meio da intervenção de um outro autor fundamental para a divulgação do assim chamado barroco brasileiro: Germain Bazin. O trabalho de Bazin, que oferece uma síntese da produção artística, sobretudo arquitetônica, inclui um esforço interpretativo mais amplo e, ao mesmo tempo, uma análise do patrimônio artístico organizada por estados brasileiros. O autor valeu-se de investigações anteriores, como as realizadas por Raimundo Trindade ou Fernando Pio (PIO, 1957 ; TRINDADE C., 1958), que estavam ligadas mais ao âmbito religioso e à história da Igreja Católica no Brasil do que

Perspective, 2 | 2013 21

ao universo da história da arte. Ao dedicar-se a Aleijadinho em 1963, Bazin retornou ao tema do artista símbolo do barroco nacional brasileiro e estabeleceu, assim, a continuidade das pesquisas sobre essa temática, pavimentando o caminho para pesquisadores que ampliaram a investigação, como é caso da imensa contribuição de Myriam Andrade Ribeiro ou de Lélia Coelho Frota (cf., entre outros, FROTA, 1982 ; OLIVEIRA, 2003).

16 Os textos de autores que se defrontaram com o problema da preservação e sobretudo do estabelecimento de critérios para a “estabilização” da imagem (em referência à “instabilidade ontológica” de Moser, cf. MOSER, 2001) e para o restauro das cidades históricas brasileiras são também profundamente relevantes. Os textos científicos, assim como todo o material de estudo – incluindo cartas, desenhos, levantamentos e rascunhos – de Lucio Costa, Paulo Santos e Sylvio de Vasconcellos (SANTOS, 1951, 2001 ; VASCONCELLOS, 1968 ; COSTA, [1941] 1997) constituem uma fonte incontornável para a compreensão do processo de criação de um projeto de gestão do patrimônio artístico barroco no Brasil. Essas personalidades marcantes – cada uma a sua maneira – combinaram o trabalho de pesquisa com a intervenção em projetos concretos. Suas ações extrapolam a atividade acadêmica e reforçam uma tendência fortemente arraigada na cultura brasileira: a fusão da formação em arquitetura com a ideia de salvaguarda do patrimônio. Particularmente no caso de Lucio Costa, o interesse pela arte colonial converteu-se em uma forma moderna de reabilitação do barroco, em uma ponte hermenêutica que se assemelha à apropriação modernista dos artistas mineiros pela vanguarda paulista dos anos 1920.

17 Nos últimos anos, uma das publicações mais polêmicas sobre a arte colonial retomou os estudos desde o século XIX sobre o personagem central glorificado pelos modernistas, o Aleijadinho. Em sua tese de doutorado, publicada com o título de O Aleijadinho e o aeroplano, Guiomar de Grammont desconstrói os atos que, segundo ela, inventaram a figura do artista a partir de fontes duvidosas (GRAMMONT, 2008). Não por acaso, a pesquisa se inscreve no campo dos discursos literários e apresenta uma abordagem de tradição francesa, evidenciada pela escolha de seus orientadores, João Adolfo Hansen e Roger Chartier. A pesquisa inclui também reflexões desenvolvidas por Ângela Brandão (BRANDÃO, 1998) e por Sônia Fonseca, em sua polêmica dissertação de mestrado (FONSECA, 2001), na qual sugere que o modelo utilizado por Rodrigo Bretas para a elaboração de sua pioneira biografia sobre Aleijadinho no século XIX teria sido o personagem do Quasímodo do romance Notre Dame de Paris, de Victor-Hugo. O texto de Grammont foi criticado, sobretudo pelos historiadores mineiros, por não considerar os estudos de caso dedicados a essa região, que, embora não tenham sido amplamente divulgados por meio de edições comerciais – como de praxe nas universidades brasileiras –, são disponibilizados nas bibliotecas universitárias ou, mais recentemente, em bancos digitais que dão acesso a teses e dissertações acadêmicas. A crítica veio também de agentes envolvidos com o mercado de arte, no qual a confirmação de autenticidade de uma obra de Aleijadinho pode facilmente multiplicar o seu preço.

18 De maneira geral, as publicações sobre a arte colonial podem ser divididas em três eixos: pesquisas formais e estilísticas; pesquisas históricas e/ou iconográficas; pesquisas teóricas e/ou de tradição literária. Em todos os casos, os diferentes aspectos das discussões sobre a arte colonial no contexto dos territórios espanhóis e dos discursos em torno da chamada “arte mundial” não foram amplamente recebidos. Nos últimos anos, o efeito da globalização não somente para a economia e para a sociedade, mas

Perspective, 2 | 2013 22

também para as ciências humanas, tem sido tema de infindáveis discussões. Esse fenômeno da “virada pós-colonial” foi marcado sobretudo pelas obras de Edward Said sobre o orientalismo e de Homi Bhaba acerca da nação, da narração e dos lugares de cultura8. No âmbito da história da arte, essa discussão considerou problemático o eurocentrismo e passou a buscar uma reformulação, que se consolidou com o conceito de arte mundial e, por conseqüência, com a criação de uma história da arte mundial. Inúmeros congressos na Europa e nos Estados Unidos refletiram a respeito dessa reforma e várias instituições, tais como o Getty Institute, em Los Angeles, e outros órgãos universitários, respondem a essa nova demanda. O congresso internacional do Comitê Internacional de História da Arte (CIHA), ocorrido em 2008 em Melbourne, por exemplo, teve como tema “Crossing Cultures: Conflict, Migration and Convergence”9. Dentre as inúmeras publicações sobre o tema, é necessário mencionar as obras de David Summers, Real Spaces: World Art and the Rise of Western Modernism, publicada em 2003, e de Thomas DaCosta Kaufmann, Towards a Geography of Art, publicada em 200410. Ambas as abordagens não somente ampliaram o cânone da história da arte tradicional, como também defenderam a importância de uma revisão teórica e metodológica. Nesse contexto, o enfoque de George Kubler (KUBLER, 1959, 1962), que buscou estabelecer uma geografia da arte na historiografia da arte dos territórios latino-americanos, serviu de base à referida obra de Thomas DaCosta Kaufmann. Paralelamente a essas publicações, várias iniciativas, incluindo exposições e a criação de novos cursos e departamentos de história da arte no Brasil, permitiram uma reformulação da categoria da arte colonial, que até então era considerada uma subárea.

O Barroco em transformação: do local ao global e todo o caminho de volta

19 Em 2002, uma grande exposição dedicada à produção artística brasileira foi inaugurada no Guggenheim Museum, em Nova York. No amplo vão livre do edifício, iluminado de modo dramático para a ocasião, brilhava, contra a penumbra, a madeira coberta de folhas de ouro do altar do Mosteiro de São Bento de Olinda. A exposição : Body and Soul (Brazil, 2001) reafirmava algumas das chaves de interpretação da produção artística do séculos XVII e XVIII, a saber o sincretismo dos artefatos religiosos e dos objetos litúrgicos e ex-votos, a conexão com o modernismo e com a vanguarda nacionalista de inícios do século XX e as ressonâncias na arte popular, indígena ou africana, tudo celebrando a invenção de uma arte local, original e nova que tinha encontrado na talha e na escultura setecentistas seu âmbito de maior experimentação. A exposição acertou na seleção de imagens processionais, indicando a importância dos rituais religiosos públicos e da dramatização sacra dos espaços urbanos, e sublinhou as singularidades notáveis de artistas como Francisco Xavier de Brito, Inácio Manuel da Costa e Aleijadinho.

20 A mostra do Guggenheim, entretanto, não foi um fato isolado; ao contrário, ela encerrava um período de reinvenção da ideia do barroco brasileiro que, desde 1998, vinha sendo revisitado no Brasil em mostras mais ou menos espetaculares (sobre os usos do conceito de barroco nessas exposições, cf. MORESCHI, 2004). Naquele ano, a exposição O Universo Mágico do Barroco (O Universo…, 1998) celebrava e exibia a profusão inventiva da escultura, da pintura, dos ornamentos corporais – como como colares, brincos e pingentes característicos das baianas (os balangandãs) – além da prataria

Perspective, 2 | 2013 23

litúrgica das credências, dos crucifixos, dos tocheiros e das palmas. Ali, igualmente, reafirmava-se alguns dos argumentos centrais do pensamento sobre esse barroco local e ideal, forma característica de um hipotético ethos brasileiro. A exposição destacava a continuidade do barroco ao longo dos séculos XIX e XX, sobretudo por meio dos rituais, das festividades religiosas, do sistema social das irmandades e de seu programa iconográfico e simbólico. A ideia era, em parte, retomar uma hipótese similar aventada na excepcional mostra Tradição e Ruptura: síntese da arte e cultura brasileira, realizada em 1984 no pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque do Ibirapuera, com curadoria do literato e historiador da arte Alexandre Eulálio (Tradição e Ruptura, 1984).

21 Em 2000, na ocasião da celebração dos quinhentos anos do descobrimento do Brasil – ápice desse movimento de revisão – foi organizada uma gigantesca mostra que recuperava, ao menos em duas seções – Arte barroca (Arte barroca, 2000) e Negro de corpo e alma (Negro de corpo…, 2000) – aspectos vitais da tradição escultórica religiosa desenvolvida no Brasil. Se a primeira seção, cujo catálogo foi assinado por Myriam Ribeiro A. de Oliveira, buscava definir as declinações e as “maneiras” locais, assim como as soluções formais características de cada uma das regiões brasileiras ao longo do século XVIII, a segunda organizava-se em torno do argumento étnico e do tema da contribuição africana à cultura brasileira. Fruto do trabalho do artista e curador Emanoel Araújo e da coleção por ele constituída, as peças dessa seção deram origem ao Museu Afro Brasil, em São Paulo. Embora não seja constituída especificamente de obras do século XVIII, essa coleção é uma das mais bem sucedidas para a visualização dessa “fronteira” entre as mãos africanas e as convenções de representação portuguesas. A imagem de devoção popular, os santos negros representados em esculturas do século XVIII e os diversos ex-votos em pintura sublinham o encontro dessas práticas representativas.

22 A quarta Bienal de Arquitetura de São Paulo, realizada em 1999, e a exposição Robert Smith: investigação na história da arte (Robert C. Smith, 2000) permitiram reintroduzir no circuito brasileiro o acervo desse historiador norte-americano, nome essencial para a definição e para o estabelecimento de uma terminologia específica para a análise da produção em talha decorativa em Portugal e no Brasil. Seus cadernos de notas, suas fotografias e sua correspondência oficial foram expostos, revelando assim aspectos diversos da construção da análise estilística no Brasil. A bienal dedicou igualmente à produção arquitetônica brasileira uma ampla exposição retrospectiva, organizada por Roberto Montezuma e intitulada Arquitetura Brasil 500 anos: uma invenção recíproca, apresentada em seguida no Museu de Arte Moderna de Recife, em 2000 (MONTEZUMA, 2002). Na mesma época, Rogério Amorim do Carmo, da Universidade Federal Juiz de Fora, apresentou um trabalho universitário intitulado Ouro Preto: experiência imaginária da paisagem e gesto projetual, dedicado a um dos temas mais candentes do cenário brasileiro, a saber, como projetar uma nova arquitetura para os centros históricos ditos barrocos – um tópico que até hoje ainda não foi resolvido a contento (CARMO, 1999).

23 A partir dos anos 1990, entretanto, estabeleceu-se no Brasil um forte movimento de recuperação filológica das poéticas desenvolvidas entre os séculos XVI e XVII. Esse interesse pela preceptiva e pelas retóricas do primeiro período moderno nasce, em sua grande maioria, nos estudos literários e dele estende-se aos demais campos de estudo da produção artística. O livro Guilherme Simões Gomes Júnior, Palavra Peregrina: o barroco e o pensamento sobre artes e letras no Brasil, publicado em 1998, é um testemunho dessa nova análise do período em questão que nasce na literatura (GOMES JÚNIOR, 1998).

Perspective, 2 | 2013 24

Entre as considerações originais do texto, encontra-se a sistematização pioneira da historiografia do barroco luso-brasileiro que incorpora de um modo mais consistente os debates do século XIX. Ele destaca também as peculiaridades de percepção sobre a herança dos séculos de colonização em contraste com certo discurso hegemônico sobre as artes do século XVIII, sobretudo a partir da fundação do Serviço de Patrimônio Histórico Nacional, em 1937.

24 Os trabalhos de João Adolfo Hansen e de Adma Muhana, ambos vinculados à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, ou de Alcir Pécora, do Instituto de Estudos Linguísticos da Universidade Estadual de Campinas, são de grande relevância para a afirmação dessa corrente. Suas contribuições têm sido capitais para a reconstrução das mentalidades e da sensibilidade dos séculos XVII e XVIII, ainda que abordem poesia, história ou teoria literária, em obras como A Sátira e o Engenho (HANSEN, 1989) e Alegoria ( HANSEN, 1987), Máquina de Gêneros ( PÉCORA, 2001) e Teatro do Sacramento (PÉCORA, 1994) ou Poesia e Pintura ou Pintura e Poesia (MUHANA, 2002, reedição comentada de um tratado português seiscentista de autoria de Manuel Pires de Almeida).

25 O estudo da história literária, e em particular da figura de Antônio Vieira e de seus sermões, teve um efeito subsidiário bastante relevante no âmbito da investigação artística. Personagem de biografia complexa, que se desenvolveu em territórios geográfica e simbolicamente diversos, Vieira transitou entre Roma, Lisboa, Maranhão e Salvador. O interesse pela sua trajetória colocou em questão a relevância da ressonância internacional dessa literatura, mas também de suas conexões com os meios eruditos europeus, particularmente com os modelos romanos e com a sua difusão na Península Ibérica e, daí, para as Américas. Fala-se não apenas da aplicação de modelos artísticos italianos em Portugal ou, mais tarde, da utilização de modelos originários da Áustria ou da Europa central no mundo português, mas também dos processos de apropriação e transformação desses modelos e dessas fontes visuais pelo ambiente artístico local assim como da transferência de mão de obra artística qualificada e de obras entre os grandes centros e o circuito ibérico de modo geral. A força e o significado do sermão entre os séculos XVII e XVIII, bem como dos aparatos visuais dispostos em torno do predicador e das circunstâncias da prédica – o púlpito, o gestual, o concurso de pinturas e de outras imagens – inspiraram trabalhos como o de Marina Massimi acerca dos usos da imagem ou do conceito de memória nos sermões de Vieira (MASSIMI, 2012). Também renovaram o interesse pela obra de Eusébio de Mattos, recentemente recuperada em edição contemporânea – ao menos sua coletânea de sermões Ecce Homo (MATOS, 2007a; cf. também MATOS, 2007b) – por Américo Miranda, Valéria M. P. Ferreira e pela já mencionada Adma Muhana (MUHANA, 2002).

26 Ainda no campo da literatura e da investigação sobre a sensibilidade específica do período, podemos citar os trabalhos de Ivan Teixeira. Suas pesquisas concentraram-se na compreensão do mecenato artístico e literário durante a segunda metade do século XVIII, período conhecido como Pombalino, em alusão ao reinado de D. João I e ao seu primeiro ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. Seu livro Mecenato Pombalino de Poesia Neoclássica (TEIXEIRA, 1999) não apenas faz uma introdução à poética neo-horaciana que caracteriza a criação literária luso-brasileira do período, mas também apresenta uma época de intensas mudanças no campo político e pedagógico. Entre essas transformações, que tiveram grande influência para a produção artística, estão a expansão urbana na colônia brasileira e a demarcação efetiva do

Perspective, 2 | 2013 25

território, após disputas com a Espanha, com a assinatura, em 1750, do Tratado de Madri, que definiu as fronteiras com a América espanhola, assim como a expulsão dos Jesuítas, em 1759. Nesse campo, os trabalhos da historiadora estadunidense Roberta Marx são também bastante relevantes, ao lado de obras clássicas nessa área no Brasil, como as de Paulo Santos (SANTOS, 2001), Nestor Goulart Reis Filho (REIS FILHO, 2000, 2001) e Maria Helena Ochi Flexor (FLEXOR, 1974, 2011).

27 Na faculdade de arquitetura da Universidade Federal da Bahia, em Salvador, estabeleceu-se uma ampla tradição de estudos ligados à história do urbanismo no período colonial, associados aos cursos de restauro do patrimônio imóvel, um dos mais importantes do Brasil. Eugênio de Ávila Lins bem como Paulo Ormindo Azevedo estão ligados a esse grupo. Os trabalhos de José Luís da Mota Menezes (MENEZES, 1984, 1988), Fernando Guerra (GUERRA, 1989), Leonardo Dantas (DANTAS, 2004) e Fernando Ponce de Leon (LEON et al., 1998), todos de Pernambuco, também merecem ser citados. Este último é autor de um valioso guia bibliográfico da arte luso-brasileira, escrito em colaboração com Lúcia Gaspar (LEON, GASPAR, 1998).

28 Os estudos urbanísticos, campo autônomo na tradição historiográfica e artística brasileira, encontram no período colonial um amplo campo de investigações. Textos como os de Cláudia Damasceno Fonseca, Des Terres aux villes de l’or (FONSECA, 2003), ampliam as pesquisas sobre a formação das cidades durante o ciclo da mineração em Minas Gerais e propõem avanços no campo da análise da cartografia e da iconografia urbanas, deslocando-as de certa função ilustrativa para uma posição de protagonismo que estrutura os argumentos da autora. O tema dos possíveis modelos europeus utilizados na arquitetura da segunda metade do século XVIII – particularmente sensível em regiões como Minas Gerais, Rio de Janeiro e Pernambuco – foi abordado por Rodrigo Espinha Baeta, da Universidade Federal da Bahia, em seu livro Barroco, a Arquitetura e a cidade nos séculos XVII e XVIII (BAETA, 2010).

29 O estudo de Baeta reorganiza, aprofunda e discute ideias presentes em obras anteriores capitais, como é o caso de O Rococó religioso no Brasil e seus antecedentes europeus, de Myriam R. A. de Oliveira (OLIVEIRA, 2003), ou de “Medieval ou Barroco: proposta de leitura da cidade colonial”, um pequeno, mas precioso artigo com título provocador, que reúne as seminais intuições da pesquisadora italiana Giovanna Rosso del Brenna e que foi em publicado na Revista Barroco, da Universidade Federal de Minas Gerais – veículo essencial para a definição desse campo de estudos no Brasil a partir dos anos 1970 (BRENNA, 1982-1983). Superando a eterna discussão entre os modos portugueses e espanhóis de planejar a cidade e ocupar o território – tópico analítico que ganha contornos precisos em Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (BUARQUE DE HOLANDA, 1936) –, Del Brenna aponta um novo modo de agir sobre o território baseado em uma concepção de cenografia urbana que, sobretudo no século XVIII, assume uma função simbólica particular.

30 Para além do âmbito específico do planejamento urbano estrito, o tema da cenografia urbana, baseado em estudos de caso, superpondo legislação, regulamentação e políticas urbanas, mas fundamentado também na análise de uma cultura visual para a cidade que inclui as múltiplas tradições de vedutistas e pintores de paisagem, foi mencionado pelos historiadores portugueses do urbanismo e da arquitetura Walter Rossa e Paulo Varela Gomes (GOMES, 1988 ; ROSSA, 2002) em estudos que influenciaram a percepção geral sobre as cidades do Brasil colonial. Rodrigo Almeida Bastos contribuiu de forma relevante

Perspective, 2 | 2013 26

para a compreensão da retórica aplicada à história do urbanismo colonial no Brasil com o seu livro A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822), que articula elementos de tratadística, crônica e história urbana. O autor oferece uma superposição sensível da vertente filológica com certa história das mentalidades aplicada às cidades e à ornamentação do território no século XVIII (BASTOS, 2009).

31 A tradição historiográfica paulista dedicada à arquitetura urbana é igualmente ampla. Ela inclui trabalhos de fôlego sobre a tipologia específica das residências e dos edifícios civis na região de São Paulo, como é o caso dos textos de Luís Saia (SAIA, 1978), Carlos Lemos (LEMOS, 1979, 1999), Dalton Sala e, em tempos mais recentes, Paulo Garcez (MARINS, 2001 ; Aleijadinho..., 2002). Aracy Amaral nos legou um instigante estudo acerca da produção arquitetônica paulista e suas possíveis conexões com a arquitetura da América espanhola (AMARAL, 1981). Nele, ela desenvolve o importante tema das rotas comerciais sul-americanas, dos encontros e dos confrontos entre portugueses e espanhóis durante os anos da colonização e de seu impacto na produção artística, o que constitui atualmente um campo de pesquisa em plena expansão. Ao sul do Brasil, na área de confronto com a cultura espanhola, é preciso destacar a produção pioneira de Eduardo Etzel, que mapeou o território de expansão urbana e artística do Brasil meridional em seus textos dos anos 1970 (ETZEL, 1974).

32 O estudo de caráter estilístico mais estrito ampliou-se no Brasil igualmente a partir dos anos 1990. As pesquisas sobre o trânsito de objetos entre Portugal e a América portuguesa, indicando de modo preciso as trajetórias pelo Atlântico de artefatos, livros, gravuras e imagens religiosas, encontram-se em ainda em fase de consolidação, mas têm ganhado crescente complexidade. A identificação de processos de transferência formal via gravuras, livros e desenhos, bem como por meio de agentes efetivamente identificáveis, ganha relevância em estudos como o de Luís Alberto Ribeiro Freire acerca da renovação da talha decorativa na Bahia entre os séculos XVIII e XIX. O seu livro A Talha Neoclássica na Bahia (FREIRE, 2006), além de apresentar uma precisão documental no que tange à identificação das alterações dos modelos ornamentais e do processo de organização das oficinas de artistas e artífices na região de Salvador, pode ser lido igualmente como um estudo sobre o gosto e sobre as relações de mecenato durante o início do século XIX.

33 No campo das pesquisas sobre arte produzida ou presente em acervos setecentistas no Brasil, há ainda grandes áreas a serem estudadas principalmente em relação ao mobiliário e ao design. Estudos precursores como Mobiliário Baiano, da já mencionada Maria Helena Flexor (FLEXOR, 2009), foram retomados em trabalhos como os de Ângela Brandão, dedicados à investigação da mobília pertencente à antiga arquidiocese da cidade de Mariana, no estado de Minas Gerais. Metodologicamente, a história do colecionismo de mobília e da relação entre a mobília e a talha decorativa religiosa – parte essencial da produção dos entalhadores na América portuguesa – requer o exame de toda a documentação de inventários, testamentos e registros cartoriais, de cartas pastorais e de registros de encomendas e despesas com esse gênero de aparato luxuoso – documentos conservados em arquivos como o da arquidiocese de Mariana, da Casa Setecentista, na mesma cidade, ou o da Casa do Pilar, em Ouro Preto, antiga Vila Rica. No caso brasileiro, a dispersão dos acervos e a ausência de estudos consistentes sobre as suas proveniências dificultam sobremaneira a recomposição dos conjuntos antes dispostos em um mesmo ambiente.

Perspective, 2 | 2013 27

34 Outros estudos, como Espaço doméstico, devoção e arte: a construção histórica do acervo de oratórios brasileiro, séculos XVIII e XIX, de Silveli Toledo Russo, seguem o mesmo caminho (RUSSO, 2010). Dedicado aos oratorios domésticos presentes em casas e fazendas de províncias de São Paulo, o trabalho procura não apenas reconstruir a gestação formal dos oratórios, mas também identificar as autorizações formais concedidas pelo poder religioso para a instalação desses objetos em ambiente privado. Trata-se, portanto, de uma articulação entre elementos da antropologia, da história social e das religiões e da história dos objetos de arte e de devoção. Um grupo de investigadores que compartilham do mesmo espírito formou-se na Universidade Federal de Minas Gerais em torno de Adalgisa Arantes Campos, autora de A Terceira devoção do setecentos mineiro: o culto a São Miguel e Almas, um significativo estudo acerca dos rituais e das práticas relacionadas à morte bem como da organização das irmandades religiosas (CAMPOS, 1994)11. Sobre esse mesmo assunto, destacamos também trabalhos recentes como A boa Morte e o bem morrer: culto, doutrina e icoonografia nas irmandades mineiras, de Sabrina Sant’anna (SANT’ANNA, 2006) e a tese de doutorado de Maria Regina Emery Quites sobre as imagens de vestir. Intitulada Imagem de vestir : revisão de conceitos através de estudo comparativo entre as Ordens Terceiras Franciscanas no Brasil (QUITES, 2006), essa pesquisa apresenta uma nova compreensão sobre esse gênero de escultura religiosa e sobre as atitudes a ele ligadas, expondo igualmente a necessidade da recuperação de uma história dos têxteis no Brasil e de sua integração ao processo de criação artística do barroco brasileiro.

35 A história da circulação de artistas e artífices entre o reino português e as colônias avança graças a investigações pontuais e estudos de caso. Esse foi o tema do quinto Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte, discutido em um volume organizado por Fausto Sanches Martins, Artistas e Artífices e a sua mobilidade no mundo de expressão portuguesa (SANCHES MARTINS, 2007). Em trabalho recente, Andre L. Tavares Pereira cuidou de ampliar a compreensão da trajetória de artistas como Manoel Dias de Oliveira – artista próximo de Domingos Antônio Sequeira, o principal pintor português de seu tempo – entre o Rio de Janeiro, Lisboa e Roma, bem como de suas articulações com o ambiente português no final do século XVIII (TAVARES, 2012). Estabelecida em Portugal, a pesquisadora Patrícia D. Telles, da Universidade de Évora, desenvolve uma pesquisa pioneira sobre a retratística portuguesa do final dos setecentos, recuperando assim um contexto não apenas pouco divulgado no âmbito brasileiro como também negligenciado com freqüência em Portugal (TELLES, 2013).

36 Outros pintores atuantes no final do século XVIII, particularmente na passagem ao século XIX, como João Francisco Muzzi, Leandro Joaquim ou o italiano Manoel Julião, têm recebido a atenção de pesquisadores como Valéria Piccoli e Luciano Migliaccio (MIGLIACCIO, 2007 ; PICCOLI, 2013). Enquanto este ultimo interessa-se pelo tema da criação da pintura de história no Brasil no início do século XIX, Jaelson Bitran Trindade (TRINDADE J., 1998) se dedica ao tema da formação e da profissionalização dos artistas no contexto colonial na mesma época. Aproveitamos para mencionar também o trabalho pioneiro realizado por Judith Martins, para a região de Minas Gerais (MARTINS J., 1974), Marieta Alves, para a Bahia (ALVES, 1976), e, mais recentemente, Vera Acioli, para Pernambuco (ACIOLY, 2008), na elaboração de dicionários de artistas atuantes entre os séculos XVII e XIX. O esforço enciclopédico de Carlos del Negro (DEL NEGRO, 1958), essencial para a compreensão do desenvolvimento da pintura em Minas Gerais, merece ser destacado, além de Carlos Ott (OTT, 1982) e Clarival do Prado Valladares (VALLADARES,

Perspective, 2 | 2013 28

1982-1991), nomes capitais na definição da historiografia sobre a produção artística baiana do século XVII ao século XIX.

37 A história dos meios, das técnicas e dos materiais é um campo amplamente difundido entre os investigadores ligados aos principais centros de restauro, como é o caso do Centro de Conservação e Restauração da Universidade Federal de Minas Gerais. O trabalho de Renata Almeida Martins em Tintas da terra tintas do reino: arquitetura e arte nas Missões Jesuíticas do Grão-Pará (MARTINS R., 2009) oferece uma visão ampla sobre os meios de execução da obra de arte e sobre a adaptação de modelos visuais no âmbito dos colégios jesuítas do norte do Brasil entre os séculos XVII e XIX, no que era então o estado do Grão-Pará e Maranhão, uma das províncias aministrativas da América portuguesa. Seguindo sua investigação, a autora desenvolve uma nova pesquisa sobre o naturalista e correspondente da Academia Portuguesa de Ciência de Lisboa Alexandre Rodrigues Ferreira e sua obra mais importante, Viagem Filosófica, um amplo compêndio ilustrado sobre a sua expedição de 1783-1792 pela Amazônia e pelo o Mato Grosso que inclui notícias sobre a produção de pigmentos para pintura extraídos de plantas locais.

38 Pesquisas interdisciplinares conectando conhecimentos e competências em restauro, pesquisa histórica e gestão cultural são ainda raras. Apesar de louváveis iniciativas no sentido oposto, ainda sobrevive no Brasil uma divisão temática entre disciplinas como arquitetura, urbanismo, estudo da escultura religiosa (capitaneado pelo trabalho zeloso de instituições como o Centro de Estudos da Imaginária Brasileira), iconografia (como no trabalho de Maria Beatriz de Mello e Souza), ou estudos de cunho sociológico ou antropológico (SOUZA, 1999, p. 475-489). A tese de doutorado de Eliana Ambrósio, Presépio Napolitano do Museu de Arte Sacra de São Paulo e de coleções internacionais: cenografia e expografia (AMBRÓSIO, 2012) é um dos casos em que se somam a acuidade da recontrução de imagens escultóricas dos séculos XVII e XVIII – no caso, um presépio de origem napolitana exposto no Museu de Arte Sacra de São Paulo –, reflexões sobre os eventuais resultados práticos da investigação sobre o contexto de produção das peças e a história da musealização dos presépios em coleções e conjuntos similares existentes no Brasil. Na mesma vertente, estabelecendo cruzamentos entre os campos da música, da ópera e da arquitetura teatral, Rosana Marreco Brescia inventaria e analisa os modelos de arquitetura dos teatros dos séculos XVIII e XIX no Brasil (BRESCIA, 2012). Todo o campo de investigação sobre os espetáculos e a música setecentista encontra-se em franca expansão no Brasil. Esse tema, assim como o das festividades coloniais, que foi objeto de um amplo debate ainda nos anos 1990, mereceria um capítulo à parte dada a sua complexidade (JANCSO, KANTOR, 2002).

39 As relações com a Itália têm sido abordadas também a partir de pesquisas sobre a presença, no contexto português dos setecentos, de artistas italianos como Vincenzo Baccherelli, e a respeito da difusão da pintura de quadratura, tema desenvolvido por pesquisadores como Magno Mello, da Universidade Federal de Minas Gerais (MELLO, 2007), e Giuseppina Raggi, Universidade Nova de Lisboa (RAGGI, 2003). O grande esforço de compreensão do legado do bolonhês Antônio José Landi em Belém, por meio da plataforma digital Forum Landi12, desenvolvida pela Universidade Federal do Pará, também é um passo importante para a compreensão dos processos de transferência artística ocorridos em meados do século XVIII. Ampliada por Nancy Davenport (DAVENPORT, 1975) e por Santiago Sebastián (SEBASTIÁN, 1989), a investigação sobre modelos iconográficos e sobre a circulação de gravuras, algo que depende de um amplo

Perspective, 2 | 2013 29

trabalho arquivístico – ainda em curso no Brasil –, também foi desenvolvida por investigadores como Pedro Queiroz Leite (LEITE, 2011).

40 Nesses últimos anos, o projeto “Barroco Global”, fruto de uma colaboração entre várias instituições (Getty Research Institute, Zürich Universität, Universidade Federal de São Paulo), permitiu uma ampla discussão a respeito das atuais abordagens teóricas e metodológicas da história da arte em relação à questão da “arte mundial” e aos debates transculturais e transdisciplinares com outras áreas, como a teoria literária, a antropologia, etc. Essa ampliação permitiu inserir a arte colonial no contexto das discussões sobre a cultura ibérica. Além do projeto “Researching and Teaching Art History in a Global World”, desenvolvido pelo departamento de história da arte da Universidade Federal de São Paulo em parceria com a Universidade de Zurique, podemos mencionar também o projeto “Hispanic Baroque”, criado no Canadá. Essa inclusão abrange também a abordagem trans-histórica do neobarroco. Jens Baumgarten desenvolveu esses temas a partir de sua abordagem de “sistemas visuais” que inclui a arte colonial no Brasil e as transferências de conceitos e artefatos (BAUMGARTEN, 2010). Ele insere a arte brasileira da época colonial em um sistema global ao propor um conjunto de microteorias a partir do artefato.

41 O tema da formação artística antes da academia tem se ampliado consideravelmente. Ao trabalho basilar do português Rafael Moreira (MOREIRA, 1994) ou de Ana Maria Monteiro de Carvalho (CARVALHO, 1999), somam-se os novos esforços de compreensão do papel da engenharia militar para a formação de arquitetos e mestres brasileiros do século XVIII. O capítulo mais recente dessa história é a obra de Beatriz Piccoloto S. Bueno, Desenho e Desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (BUENO, 2012).

42 A produção crítica e a pesquisa sobre o barroco no Brasil são campos vastos e dinâmicos. O tema, que já atraia o interesse de historiadores da arte no século XIX, transformou-se no século XX em uma grande área de interesse, símbolo da nação e da origem da especificidade estética brasileira, em uma operação que nem sempre foi regra para a produção artística latino-americana. A identificação do barroco com o nacional e os múltiplos debates sobre o tipo de intercâmbio com as fontes internacionais, assim como os sincretismos formais entre elementos locais e europeus, africanos ou asiáticos, recentemente ampliaram o debate, provocando assim uma revisão das abordagens tradicionais. Estas, por sua vez, transformam-se e aperfeiçoam- se na medida em que dados referentes às artes dos séculos XVII e XVIII são progressivamente disponibilizados e a sistematizados. A nova produção acadêmica busca adaptar-se ao debate internacional, mas oferece, ao dedicar-se à análise da de uma produção artística complexa concebida em ambiente de superposição cultural intensa, novas vias de interpretação do material visual. Vista dessa perspectiva, essa seleção crítica de textos possibilita a compreensão do ritmo das inovações e das grandes linhas analíticas que definem a produção historiográfica e artística sobre um barroco necessariamente multiforme.

Perspective, 2 | 2013 30

BIBLIOGRAFIA

– ACIOLY, 2008: Vera Lúcia C. Acioly, A identidade da beleza: dicionário de artistas e artífices do século XVI ao XIX em Pernambuco, Recife, 2008.

– Aleijadinho..., 2002: Aleijadinho e Mestre Piranga: processos de atribuição e história da arte, Dalton Sala E., (cat. expo., São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2002-2003), São Paulo, 2002.

– ALVES, 1976: Marieta Alves, Dicionário de artistas e artífices na Bahia, Salvador, 1976.

– AMARAL, 1981: Aracy Amaral, A hispanidade em São Paulo: da casa rural à Capela de Santo Antônio, São Paulo, 1981.

– AMARAL, 1994: Aracy Amaral E., Arquitectura neocolonial: América Latina, Caribe, Estados Unidos, São Paulo, 1994.

– AMBRÓSIO, 2012: Eliana Ribeiro Ambrósio, Presépio napolitano do Museu de Arte Sacra de São Paulo e de coleções internacionais: cenografia e expografia, tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2012.

– ANDRADE, 1921: Mário de Andrade, “De São Paulo”, in Ilustração Brasileira, Fevereiro, 1921.

– ANDRADE, 1928: Mário de Andrade, “Aleijadinho: posição histórica”, in O Jornal, 1928.

– Arte barroca, 2000: Mostra do redescobrimento: Arte barroca, Nelson Aguilar, Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira EE., (cat. expo., São Paulo, Bienal de São Paulo, 2000), São Paulo, 2000.

– BAETA, 2010: Rodrigo Espinha Baeta, O Barroco, a arquitetura e a cidade nos séculos XVII e XVIII, Salvador, 2010.

– BASTOS, 2009: Rodrigo Almeida Bastos, A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822), tese de doutorado, Universidade Federal de São Paulo, 2009.

– BAUMGARTEN, 2010: Jens Baumgarten, “Staging Baroque Worship in Brazil”, in David Morgan E., Religion and Material Culture: The Matter of Belief, Londres/New York, 2010, p. 173-192.

– BAZIN, 1956-1958: Germain Bazin, L’Architecture religieuse baroque au Bresil, Paris, 1956-1958.

– BELOW, 2005: Ingrid Below, “‘Jene widerspenstige Leichtigkeit der Innovation’ Hanna Deinhards Wissenschaftskritik, Kunstsoziologie und Kunstvermittlung”, in Ursula Hudson-Wiedenmann, Beate Schmeichel-Falkenberg E., Grenzen Überschreiten: Frauen, Kunst und Exil, Würzburg, 2005, p. 151-179.

– BRANDÃO, 1998: Ângela Brandão, Abrasileirando a coisa lusa: O Aleijadinho pelo olhar de Mário de Andrade, Ouro Preto, 1998.

– Brazil: Body and Soul, 2001 : Brazil: Body and Soul, Edward J. Sullivan E., (cat. expo., New York, Guggenheim Museum, 2001-2002), New York, 2001.

– BRENNA, 1982-1983: Giovanna Rosso Brenna, “Medieval ou barroco? Proposta de leitura do espaço urbano colonial”, in Revista Barroco, 12, 1982-1983, p. 141-146.

– BRESCIA, 2012: Rosana Marreco Brescia, É lá que se representa a comédia: A Casa da Ópera de Vila Rica, 1770-1822, Jundiaí, 2012.

Perspective, 2 | 2013 31

– BRESSAN, 1997: Maria Lúcia Bressan, Modernizada ou Moderna? A arquitetura em São Paulo, 1938-45, tese de doutorado, Universidade Federal de São Paulo, 1997.

– BRESSAN, 2011: Maria Lúcia Bressan, Neocolonial, modernismo e preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil, São Paulo, 2011.

– BUARQUE DE HOLANDA, 1936: Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, Rio de Janeiro, 1936.

– BUENO, 2012: Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno, Desenho e Desígnio: o Brasil dos engenheiros militares, 1500-1822, São Paulo, 2012.

– CAMPOS, 2005: Adalgisa Arantes Campos, Mestre Ataíde: aspectos históricos, estilísticos, iconográficos e técnicos, Belo Horizonte, 2005.

– CARMO, 1999: Rogério Amorim do Carmo, Ouro Preto: experiência imaginária da paisagem e gesto projetual, dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, 1999.

– CARVALHO, 1999: Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho, Mestre Valentim, São Paulo, 1999.

– CHIARELLI, 2007: Tadeu Chiarelli, Pintura não é só beleza: a crítica de arte de Mário de Andrade, Florianópolis, 2007.

– CAMPOS, 1994: Adalgisa Arantes Campos, A terceira devoção do setecentos mineiro: o culto a São Miguel e Almas, tese de doutorado, Universidade Federal de São Paulo, 1994.

– CAMPOS, 2005: Adalgisa Arantes Campos, Manoel da Costa Ataíde: aspectos históricos, estilísticos, iconográficos e técnicos, Belo Horizonte, 2005.

– COSTA, (1941) 1997: Lucio Costa, “A arquitetura dos jesuítas no Brasil”, in Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 26, (1941) 1997, p. 105-169 ;

– DACOSTA KAUFMANN, 2004: Thomas DaCosta Kaufmann, Towards a Geography of Art, Chicago, 2004.

– DANTAS, 2004: Leonardo Dantas, Pernambuco Preservado, Recife, 2004.

– DAVENPORT, 1975: Nancy Davenport, “European sources for the prophets at Congonhas do Campo”, in Revista Barroco, 7, 1975, p. 407-421.

– DE CAMPOS, 1979: Haroldo de Campos, “Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana”, in César Fernández Moreno E., América Latina em sua literatura, São Paulo, 1979, p. 281-305.

– DE CAMPOS, 1989: Haroldo de Campos, O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos, Salvador, 1989.

– DEINHARD, 1967: Hanna Deinhard, Bedeutung und Ausdruck, Neuwied/Berlin, 1967.

– DEL NEGRO, 1958: Carlos Del Negro, Contribuição ao estudo da pintura mineira, Rio de Janeiro, 1958.

– ETZEL, 1974: Eduardo Etzel, O Barroco no Brasil: psicologia – remanescentes em São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo, 1974.

– FONSECA, 2001: Sônia Maria Fonseca, A invenção do Aleijadinho: historiografia e colecionismo em torno de Antônio Francisco Lisboa, dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 2001.

– FONSECA, 2003: Cláudia Damasceno Fonseca, Des terres aux villes de l’or : pouvoirs et territoires urbains au Minas Gerais, Brésil, XVIIIe siècle, Paris, 2003.

– FLEXOR, 1974: Maria Helena Ochi Flexor, Oficiais mecânicos na cidade do Salvador, Salvador, 1974.

– FLEXOR, 2009: Maria Helena Ochi Flexor, Mobiliário baiano, Brasília, 2009.

Perspective, 2 | 2013 32

– FLEXOR, 2011:Maria Helena Ochi Flexor, Igrejas e conventos da Bahia, Brasília, 2011.

– FREIRE, 2006: Luiz Alberto Ribeiro Freire, A Talha neoclássica na Bahia, Rio de Janeiro, 2006.

– FROTA, 1982: Lélia Coelho Frota, Ataíde: vida e obra de Manoel da Costa Ataíde, Rio de Janeiro, 1982.

– GOMES, 1988: Paulo Varela Gomes, A cultura arquitectónica e artística em Portugal no século XVIII, Lisboa, 1988.

– GOMES JÚNIOR, 1998: Guilherme Simões Gomes Júnior, Palavra peregrina: O Barroco e o pensamento sobre artes e letras no Brasil, São Paulo, 1998.

– GRAMMONT, 2008: Guiomar de Grammont, O Aleijadinho e o aeroplano: O Paraíso e a construção do herói colonial, Rio de Janeiro, 2008.

– GUERRA, 1989: Fernando Guerra, A igreja de São Pedro dos clérigos do Recife, Recife, 1989.

– HANSEN, 1987: João Adolfo Hansen, Alegoria: construção e interpretação da metáfora, São Paulo, 1987.

– HANSEN, 1989: João Adolfo Hansen, A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII, São Paulo, 1989.

– HANSEN, 1992: João Adolfo Hansen, “Colonial e barroco”, in Jayme Salomão E., América: descoberta ou invenção, (colóquio, Rio de Janeiro, 1992), Rio de Janeiro, 1992, p. 347-361.

– HANSEN, 2003 : João Adolfo Hansen, “Barroco, neobarroco e outras ruínas”, in Estudios Portugueses, 3, 2003, p. 171-217.

– JANCSO, KANTOR, 2002: István Jancsó, Iris Kantor E., Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa, (colóquio, São Paulo, 1999), São Paulo, 2001.

– KUBLER, 1959: George Kubler, The Art and Architecture of Spain and Portugal and Their American Dominions, Baltimore, 1959.

– KUBLER, 1962: George Kubler, The Shape of Time, New Haven, 1962.

– LEITE, 2011: Pedro Queiroz Leite, “O Missal da Régia Officina Typographica e seu legado na pintura Rococó mineira: uma refutação à influência de Bartolozzi”, in Anais do VII Encontro de História da Arte da UNICAMP, Campinas, 2011, p. 405-415, disponível em: http://www.unicamp.br/ chaa/eha/atasIIIeha.html (Acesso em: 10 novembro 2013).

– Lemos, 1979: Carlos Lemos, A casa colonial Paulista, São Paulo, 1979.

– Lemos, 1999: Carlos Lemos, A imaginária paulista, São Paulo, 1999.

– Leon et al., 1998: , Fernando Ponce de Leon et al., História da arte luso-brasileira: guia bibliográfico, Recife, 1998.

– Leon, Gaspar, 1998: Fernando Ponce de León, Lúcia Gaspar, História da arte luso-brasileira: Guia bibliográfico, Recife, 1998.

– Levy, 1936: Hanna Levy, Henri Wölfflin, sa théorie, ses prédécesseurs, (tese de doutorqdo, faculté des lettres de l’université de Paris, 1936), Rotweil, 1936.

– Levy, 1940: Hanna Levy, “Valor artístico e valor histórico: importante problema da história da arte”, in Revista do patrimônio histórico e artístico nacional, 4, 1940, p. 181-192.

– Levy, 1941: Hannah Levy, “A propósito de três teorias sobre o barroco”, in Revista do patrimônio histórico e artístico nacional, 5, 1941, p. 250-284.

– Levy, 1942: Hannah Levy, “A pintura colonial no Rio de Janeiro”, in Revista do patrimônio histórico e artístico nacional, 6, 1942, p. 7-79.

Perspective, 2 | 2013 33

– Levy, 1944: Hannah Levy, “Modelos Europeus na pintura colonial”, in Revista do patrimônio histórico e artístico nacional, 8, 1944, p. 7-66.

– Levy, 1945: Hannah Levy, “Retratos coloniais”, in Revista do patrimônio histórico e artístico nacional, 9, 1945, p. 251-290.

– MACHADO, 1969: Lourival Gomes Machado, “Teorias do Barroco”, in MACHADO, 1969, p. 29-78.

– MACHADO, 1969: Lourival Gomes Machado, Barroco mineiro, São Paulo, 1969.

– MARINS, 2001: Paulo C. Garcez Marins, Através da rótula: sociedade e arquitetura no Brasil, séculos XVII a XX, São Paulo, 2001.

– MARTINS J., 1974: Judith Martins, Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais, Rio de Janeiro, 1974.

– MARTINS R., 2009: Renata Maria de Almeida Martins, Tintas da terra tintas do reino: arquitetura e arte nas Missões Jesuíticas do Grão-Pará, tese de doutorado, Universidade Federal de São Paulo, 2009.

– MASSIMI, 2012: Marina Massimi E., A novela história do predestinado peregrino e seu irmão Precito (1682): compêndio dos saberes antropológicos e psicológicos dos jesuítas no Brasil colonial, São Paulo, 2012.

– MATOS, 2007a: Eusébio de Matos, Ecce Homo, Porto Alegre, publicado no século XVII, 2007.

– MATOS, 2007b: Eusébio de Matos, A Paixão de Cristo Senhor Nosso: desde a instituição do sacramento na ceia até a lastimosa soledade de Maria Santíssima, José Américo Miranda, Nilton de Paiva Pinto E., Belo Horizonte, publicado no século XVII, 2007.

– MELLO, 2007: Magno Mello, “Retórica e persuasão na arte barroca: o teto da igreja do seminário jesuítico em Santarém”, in Anais do III Encontro de História da Arte da UNICAMP, 2007, p. 418-430.

– MENEZES, 1984: José Luiz da Mota Menezes, Dois monumentos do Recife, Recife, 1984.

– MENEZES, 1988: José Luiz da Mota Menezes, Atlas histórico cartográfico do Recife, Recife, 1988.

– MIGLIACCIO, 2007: Luciano Migliaccio, Arte brasiliana del XIX seccolo, Udine, 2007.

– MONTEZUMA, 2002: Roberto Montezuma, Arquitetura Brasil 500 anos: uma invenção recíproca, Recife, 2002.

– MOREIRA, 1994: Rafael Moreira E., A Arquitectura militar na expansão portuguesa, Lisbonne, 1994.

– MORESCHI, 2004: Marcelo S. Moreschi, A Inclusão de “barroco” no Brasil: o caso dos catálogos, dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 2004.

– MOSER, 2001: Walter Moser, “Résurgences et valences du baroque”, in Résurgences baroques : trajectoires d’un processus transculturel, Bruxelles, 2001, p. 25-44.

– MUHANA, 2002: Adma Muhana, Poesia e pintura ou Pintura e poesia: tratado seiscentista de Manuel Pires de Almeida, São Paulo, 2002.

– Negro de corpo..., 2000: Mostra do redescobrimento: negro de corpo e alma, Nelson Aguilar, Emanoel Araújo E., (cat. expo., São Paulo, Bienal de São Paulo, 2000), São Paulo, 2000.

– OLIVEIRA, 2003: Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, O Rococó religioso no Brasil e seus antecedentes europeus, São Paulo, 2003.

– OTT, 1982: Carlos Ott, A escola baiana de pintura: 1764/1850, São Paulo, 1982.

Perspective, 2 | 2013 34

– O Universo..., 1998: O Universo mágico do barroco brasileiro, Emanoel Araújo E., (cat. expo., São Paulo, Galeria de Arte do SESI, 1998), São Paulo, 1998.

– PÉCORA, 2001: Alcir Pécora, Máquina de gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefoucauld, Gonzaga, Silva Alvarenga e Bocage, São Paulo, 2001.

– PÉCORA, 1994: Alcir Pécora, Teatro do sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antonio Vieira, Campinas, 1994.

– PICCOLI, 2013: Valeria Piccoli, “Carlos Julião e o desenho etnográfico no mundo português”, in Camila Dazzi, Isabel Portella, Artur Valle E., Oitocentos: intercâmbios culturais entre Brasil e Portugal, Rio de Janeiro, 2013, p. 496-508.

– PIO, 1957: Fernando Pio, A ordem terceira de São Francisco do Recife, Recife, 1957.

– QUITES, 2006: Maria Regina E. Quites, Imagem de vestir: revisão de conceitos através de estudo comparativo entre as ordens terceiras franciscanas no Brasil, tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2006.

– RAGGI, 2003: Giusepina Raggi, “Pinturas de fundais e falsos interiores : Decorações pictóricas integrais de Pasquale Parente”, in Revista Monumentos, 18, 2003.

– REIS FILHO, 2000: Nestor Goulart Reis Filho, Contribuição ao estudo da evolução urbana do Brasil, 1500-1720, São Paulo, 2000.

– REIS FILHO, 2001: Nestor Goulart Reis Filho, Imagens de Vilas e cidades no Brasil Colonial, São Paulo, 2001.

– Robert C. Smith, 2000: Robert C. Smith, 1912-1975: a investigação na história da arte, Manuel da Costa Cabral, Jorge Rodrigues E., (cat. expo., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000), Lisboa, 2000.

– ROSSA, 2002: Walter Rossa, A Urbe e o traço, Coimbra, 2002.

– RUSSO, 2010: Silveli Maria de Toledo Russo, Espaço doméstico, devoção e arte: a construção histórica do acervo de oratórios brasileiro, séculos XVIII e XIX, tese de doutorado, Universidade Federal de São Paulo, 2010.

– SAIA, 1978: Luís Saia, Morada Paulista, São Paulo, 1978.

– SANCHES MARTINS, 2007 : Fausto Sanches Martins, Artistas e artífices e a sua mobilidade no mundo de expressão portuguesa, (colloque, Porto, 2005), Porto, 2007.

– SANT’ANNA, 2006: Sabrina Mara Sant’anna, A boa morte e o bem morrer: culto, doutrina, iconografia e irmandades mineiras (1721 a 1822), tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais , 2006.

– SANTOS, 1951: Paulo Santos, O barroco e o jesuítico na arquitetura brasileira, Rio de Janeiro, 1951.

– SANTOS, 2001: Paulo Santos, Formação de cidades no Brasil Colonial, Rio de Janeiro, 2001.

– SEBASTIÁN, 1989: Santiago Sebastián, Contrareforma y barroco: lecturas iconográficas y iconológicas, Madrid, 1989.

– SOUZA, 1999: Maria Beatriz de Mello e Souza, Les Images de la Vierge Marie au Brésil colonial: Brésil Baroque. Entre Ciel et Terre, Paris, 1999.

– TAVARES, 2012: André L. Tavares Pereira, “Displaying the Traslatio Imperii: Roman Art and Iconography between Portugal and Portuguese America in late 18th century”, in Giovanna Capitelli, Stefano Grandesso, Carla Mazzarelli E., Roma fuori di Roma: l’esportazione dell’arte moderna da Pio VI all’Unità, 1775-1870, Rome, 2012, p. 323-333.

Perspective, 2 | 2013 35

– TEIXEIRA, 1999: Ivan Teixeira, Mecenato pombalino e poesia neoclássica: Basílio da Gama e a poética do encômio, São Paulo, 1999.

– TELLES, 2013: Patrícia Delayti Telles, « Brasil e Portugal à sombra de Saint-Sulpice: Retrato dos viscondes da Pedra Branca com a sua filha », in Oitocentos: intercâmbios culturais entre Brasil e Portugal, (colóquio, Rio de Janeiro, 2012), Rio de Janeiro, 2013, p. 412-423.

– TIRAPELLI, 2003: Percival Tirapelli, Igrejas paulistas: barroco e rococó, São Paulo, 2003.

– Tradição e Ruptura, 1984: Tradição e ruptura: síntese da arte e cultura brasileira, (cat. expo., São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo, 1984-1985), São Paulo, 1984.

– TRINDADE C., 1958: Cônego Raimundo Trindade, São Francisco de Assis de Ouro Preto, Rio de Janeiro, 1958.

– TRINDADE J., 1998: Jaelson Bitran Trindade, “Corporação e as Artes Plásticas: o Pintor, de Artesão a Artista”, in O universo..., 1998, p. 246-269.

– VALLADARES, 1982-1991: Clarival do Prado Valladares, Nordeste histórico e monumental, Salvador, 1982-1991.

– VASCONCELLOS, 1968: Sylvio de Vasconcellos, Minas: cidades barrocas, São Paulo, 1968.

– WARNKE, 1989: Martin Warnke, “On Heinrich Wölfflin”, in Representations, 27, 1989, p. 172-187.

NOTAS

1. A vasta produção das universidades, sobretudo brasileiras, de teses de doutorado e dissertações de mestrado não foi considerada aqui devido ao acesso restrito a esses textos. 2. Cornelius Gurlitt, Geschichte des Barockstiles, des Rococo und des Klassicismus in Belgien, Holland, Frankreich, England, Stuttgart, 1887-1889; Heinrich Wölfflin, Renascença e Barroco, São Paulo, 2005 [ed. orig.: Renaissance und Barock, Munich, 1888]; Conceitos fundamentais da história da arte : o problema da evolução dos estilos na arte mais recente, São Paulo, 2006 [ed. orig.: Kunstgeschichtliche Grundbegriffe: Das Problem der Stilentwickelung in der neueren Kunst, Munich, 1915]. 3. Jacob Burckhardt, Wilhelm Lübke, Geschichte der neueren Baukunst, Stuttgart, 1904 ; Wölfflin, (1888) 1961, citação no 2 ; BAZIN, 1956-1958 ; Walter Benjamin, Ursprung des deutschen Trauerspiels, Berlin 1928 ; Omar Calabrese, L’età neobarocca, Bari, 1987. 4. A partir de seu artigo de 1941 (LEVY, 1941), Hannah Levy passou a escrever o seu nome com um “h” no final. 5. Esses artigos podem ser vistos como uma tese de livre-docência. 6. Neste contexto, gostaria de lembrar a proeminente obra de Carl Einstein, Die Negerplastik (Leipzig, 1915) que propõe uma análise da arte africana livre de exotismos, encaixando-se assim nos padrões de uma nova interpretação. 7. Machado não considerou os desdobramentos da teoria de Levy que culminaram na publicação de Bedeutung und Ausdruck, de Hanna Deinhard (DEINHARD, 1967). 8. Edward Said, Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente, São Paulo, 1990 [ed. orig.: Orientalism: Western Representations of the Orient, Londres, 1978]; Homi Bhabha, Nation and Narration, Londres, 1990; Homi Bhabha, O Local da Cultura, Belo Horizonte, 1998 [ed. orig. : The Location of Culture, Londres/New York, 1994]. 9. Jaynie Anderson E., Crossing Cultures: Conflict, Migration and Convergence, (colóquio, Melbourne, 2008), Carlton, 2009. 10. David Summers, Real Spaces: World Art and the Rise of Western Modernism, Londres/New York, 2003; Thomas DaCosta Kaufmann, Toward a Geography of Art, Chicago/Londres, 2004.

Perspective, 2 | 2013 36

11. Recentemente, a autora organizou a publicação de um dossiê sobre Manoel da Costa Ataíde que se tornou o estudo mais completo sobre a obra do pintor mineiro, ampliando as investigações anteriores, como as de Lélia Coelho Frota (FROTA, 1982 ; CAMPOS, 2005). 12. Disponível em: http://ufpa.br/forumlandi (Acesso em: 10 novembro 2013).

Perspective, 2 | 2013 37

Reflexões sobre a pintura de paisagem no Brasil no século XIX

Pablo Diener

NOTA DO EDITOR

Cet article existe en traduction française : Réflexions sur la peinture de paysage au Brésil au XIXe siècle

1 Em 1855, Manoel Araújo Porto-Alegre, então diretor da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, elaborou um documento sobre a pintura de paisagem no Brasil com o objetivo de questionar o programa de ensino dessa disciplina no seio da academia1. Nesse texto fundador para a história da crítica de arte brasileira desse gênero, o autor realiza um meticuloso exame da pintura de paisagem tal como vinha sendo praticada nas décadas precedentes. Porto-Alegre se mostra bastante crítico em relação aos artistas que haviam abraçado essa pintura em terras luso-americanas ao longo do século XIX, como Charles Othon Frédéric Jean-Baptiste, conde de Clarac, Nicolas-Antoine Taunay, Abraham-Louis Buvelot, Jean-Baptiste Debret e Félix-Émile Taunay – todos estrangeiros, sem exceção. Não poderia ser diferente já que, cabe lembrar, a pintura de paisagem havia sido introduzida no Brasil por artistas que estiveram no país nas mais diversas circunstâncias. O autor revisa a obra desses pintores e objeta imprecisões na representação das espécies florais e incoerências na composição dos conjuntos, o que atribui à justaposição em um mesmo espaço de plantas procedentes de diversos ambientes naturais. Mas a ideia reitora de toda a sua análise é a de que os pintores não souberam apreender o caráter singular da paisagem nessas latitudes, com exceção de Félix-Émile Taunay, a quem, não obstante, faltou um certo “talento manual de paisagista”. Porto-Alegre conclui com uma invocação aos artistas: “Os nossos paisagistas devem ser americanos porque da natureza da América e particularmente da do Brasil, é que tirarão a sua glória e o seu pão”2.

2 O propósito aqui não é o de discutir a pertinência dos juízos formulados por Porto- Alegre a respeito de cada um desses artistas. O seu texto merece a nossa atenção na

Perspective, 2 | 2013 38

medida em que destaca alguns aspectos relevantes para a apreciação da pintura de paisagem naquele momento. No estudo de Porto-Alegre, o seu juízo se sustenta na avaliação da autenticidade da representação a partir de um ponto de vista botânico e na coerência do meio natural visto em sua globalidade. Esse princípio já figurava no tratado teórico de Pierre-Henri de Valenciennes3 e foi retomado por Alexander von Humboldt em sua vasta obra4, na qual propunha instruções para os artistas que viajavam ao continente americano5. Adicionalmente, em sua invocação final, Porto- Alegre permite vislumbrar a importância que o registro do território e de seu entorno natural havia adquirido para o processo de constituição da identidade nacional brasileira. As suas observações, que aludem ao significado atribuído à pintura de paisagem naquela época, referem-se a questões vistas como assuntos essenciais desse gênero na historiografia que lhe é contemporânea.

3 Neste ensaio propomos uma revisão dos trabalhos realizados durante as últimas três décadas pelos pesquisadores especializados nesse campo no Brasil, mostrando, por um lado, a preocupação em estudar e em evidenciar a presença dominante do pensamento de Humboldt na prática dos pintores de paisagem no que diz respeito à exigência de verossimilhança e de coerência na representação da natureza e, de outro, o interesse que a conotação nacionalista desperta, de maneira mais ou menos explícita, na modalidade de abordagem da natureza brasileira. Essa produção intelectual é bastante rica: ainda que a história da arte seja uma disciplina recente no espaço acadêmico do Brasil, constatamos que, ao longo das últimas décadas, os pesquisadores têm publicado estudos monográficos e catálogos raisonnés da obra de pintores do século XIX, empreendendo assim uma análise rigorosa do repertório conceitual da estética em vigor na época e da sua aplicação nas manifestações artísticas do espaço cultural brasileiro.

Os inícios da pintura de paisagem no século XIX no Brasil

4 Para os dois artistas que marcam o nascimento da tradição da pintura de paisagem no Brasil, o conde de Clarac e Nicolas-Antoine Taunay, dispomos atualmente de monografias substanciais.

5 Clarac foi objeto de uma atenção particular a partir de 2004, quando a sua esplêndida aquarela Forêt vierge du Brèsil foi posta à venda. O folheto de apresentação elaborado para a ocasião incluía uma breve síntese dos principais estudos dedicados até aquele momento ao artista6. No ano seguinte, depois de sua aquisição pelo Museu do Louvre, foi publicado um catálogo de exposição que trazia uma ampla documentação sobre a obra e a situava no contexto da investigação americanista de inícios do século XIX7. O desenho representa uma paisagem da floresta tropical da Mata Atlântica que o autor localiza nas proximidades do Rio de Janeiro. Concebida em 1816, quando o artista se encontrava no Brasil, a pintura foi concluída em Paris com o auxílio de diversas informações botânicas fornecidas por outros viajantes. A aquarela foi exposta em 1819 no Salão de Paris, onde experimentou um sucesso notável. Três anos mais tarde foi gravada em cobre e alcançou assim uma ampla difusão. Desta feita passou a ser considerada na Europa como a representação por excelência da natureza tropical

Perspective, 2 | 2013 39

americana e Humboldt chegou a qualificá-la como a imagem mais acabada da floresta virgem do ultramar8.

6 Como têm evidenciado os estudos monográficos a seu respeito, a obra de Clarac apreende a paisagem aplicando uma linguagem formal inovadora ao registro da natureza extraeuropeia, procurando fundir a precisão botânica com uma composição na qual o jogo de luz e sombra contribui a modelar cada um dos elementos da flora, organizando no conjunto uma visão tão coerente como atrativa. Aos olhos de Humboldt, a obra de Clarac sintetiza pressupostos científicos e artísticos, constituindo, dessa forma, um arquétipo para os artistas viajantes na América. Os estudos mais recentes dedicados aos quadros de Nicolas-Antoine Taunay constatam, por sua vez, que o artista não segue uma vertente estética naturalista nas suas paisagens: os princípios reitores dessa obra têm sido estudados e vinculados à pintura de história.

7 A obra de Taunay é atualmente objeto de dois magníficos catálogos de obra, frutos de investigações realizadas na última década. O primeiro, de Claudine Lebrun Jouve, reúne a totalidade da obra desse prolífico pintor9; o segundo, de Pedro Corrêa do Lago, oferece um inventário crítico da sua obra brasileira e dedica especial atenção aos dezoito óleos consagrados à paisagem10. Nessa catalogação dos quadros pintados no Brasil, cada uma das telas do artista francês é descrita com erudição, fornecendo dados de estudos recentes para a sua identificação. Na segunda parte do livro, o autor oferece um registro sumário da obra pictórica dos filhos de Nicolas-Antoine Taunay, Hippolyte, Félix-Émile e Aimé-Adrien. Para completar essa revisão da contundente investigação da produção do patriarca dessa dinastia de artistas, cabe mencionar também a biografia publicada por Lilia Moritz Schwarcz, que o apresenta em um amplo contexto histórico11.

8 É bastante evidente que Taunay, enquanto pintor de paisagem, se interessava sobretudo pela cidade do Rio de Janeiro e pelos seus arredores, de modo que a natureza tropical é objeto do seu trabalho somente de forma marginal. No Brasil, o artista permaneceu fiel aos preceitos da pintura neoclássica, cultivando assim um modelo bem definido tanto na composição como na abordagem de cada um dos motivos representados. Sua estadia nos trópicos não trouxe mudanças nem na sua paleta nem, de maneira geral, na execução técnica de suas telas. Dito de outra forma, nas palavras de Corrêa do Lago, o pintor “não adaptou sua pintura ao Brasil, mas o Brasil à sua pintura”12. Foi seguindo essa mesma linha de argumentação que Luciano Migliaccio estudou as paisagens de Taunay13, inscrevendo-a numa tradição pictórica. O historiador leva a cabo uma análise minuciosa da biografia artística do personagem, descrito por ele como um pintor natural da França e vinculado à academia, presente em todas as exposições do Salão e que havia sido reconhecido e aplaudido sob o império napoleônico. A marginação que sofreu com a Restauração o levou a viajar para o Brasil, como parte da comitiva de artistas conhecida hoje sob o nome de “Missão Artística Francesa”14. Nas suas investigações, Migliaccio vincula o trabalho de Taunay a uma tradição de pintura de paisagem com conotações históricas, sociais e econômicas que surge na segunda metade do século XVIII na França e no sul da Itália. Suas observações ganham um caráter particularmente concludente quando ele relaciona os trabalhos de Taunay realizados no Brasil com a obra do alemão Jacob Philipp Hackert, pintor da corte de Fernando IV de Nápoles. Migliaccio se apoia na interpretação sociocultural da obra de Hackert formulada por Thomas Weidner15, que propõe uma releitura das paisagens pintadas na Itália meridional. Segundo Weidner, as qualidades naturais,

Perspective, 2 | 2013 40

arqueológicas e pitorescas tradicionalmente atribuídas a essa região, em Hackert se encontram acrescentadas de uma modernidade idealizada. Concretamente, a nova pintura de paisagem ganha força expressiva ao tematizar as obras de infraestrutura urbana e rural empreendida pelo rei de Nápoles, compondo assim uma nova visão idílica do espaço italiano. Essas paisagens passaram a ser uma comemoração da coroa e da sua politica esclarecida. Na sua análise, Migliaccio lança a hipótese de que Taunay traduziu o discurso pictórico de Hackert para o espaço brasileiro, onde uma corte de origem europeia havia se estabelecido. No coração de uma paisagem natural majestosa, a coroa aspirava a ser reconhecida como impulsionadora de um progresso civilizador, impondo a sua ação sobre uma natureza domesticada.

9 Desconsiderando as intenções explícitas do artista ao conceber suas vistas do Rio de Janeiro e lembrando que Taunay era um personagem pouco dado às genuflexões cortesãs, a interpretação de Migliaccio oferece uma explicação possível sobre o contexto que, do estrito ponto de vista da tradição artística, pôde nutrir o trabalho desse ilustre pintor de paisagem. De fato, ao esboçar uma análise da evolução dessa tendência do gênero, o autor menciona os encargos feitos pela coroa no início dos anos de 1820 a outro artista imigrado, o francês Arnaud Julien Pallière, para que pintasse não somente a capital imperial, mas também São Paulo e Vila Rica, atual Ouro Preto. Verificamos a pertinência dessa análise ao folhear o catálogo da obra de Pallière16, que, não contente em pintar diversas vistas urbanas, também se dedicou com afinco a uma série de registros planimétricos, o que constitui uma das formas mais explícitas da apropriação simbólica do território.

Naturalismo e historicismo

10 Nas duas vertentes da pintura de paisagem brasileira identificadas pelos investigadores da atividade artística de inícios do século XIX, a naturalista e a histórica, encontramos uma representação do território com conotações múltiplas. Para conhecer esse legado, dispomos atualmente de um bom número de catálogos raisonnés, assim como de diversas publicações que analisam vastos conjuntos de obras, seja na forma de catálogos publicados por ocasião de exposições temporárias ou de estudos de importantes coleções privadas. Os catálogos dedicados a Thomas Ender17, Jean-Baptiste Debret18, Johann Moritz Rugendas19 e à dinastia dos Taunay 20 merecem menção particular. Dentre os trabalhos concebidos com um olhar transversal e mais abrangente, o catálogo da grande exposição O Brasil dos viajantes21 e os volumes O olhar distante e Arte do Século XIX, do catálogo da Mostra do Redescobrimento22, assim como as obras dedicadas às coleções de Paulo Geyer23, da Fundação Estudar24 e do Banco Itaú 25 se impõem pela abundância do material estudado e reproduzido. No âmbito dos estudos da pintura topográfica, a pesquisa que Gilberto Ferrez dedicou ao Rio de Janeiro26 é magistral. Essas publicações põem em evidência, mais uma vez, o caráter fundador da obra dos artistas estrangeiros para a pintura de paisagem no Brasil. Confirmam também a longa vigência das duas tendências conceptuais desse gênero evocadas anteriormente, ainda que, com o passar dos anos, elas tenham convergido, sobretudo na medida em que, de forma paralela ao registro naturalista e inclusive nas obras destinadas a ilustrar as expedições científicas, emergiu lentamente uma representação do espaço marcada por conotações de tipo histórico-cultural que culmina nas paisagens de Félix-Émile Taunay.

Perspective, 2 | 2013 41

11 Em um estudo sobre as ilustrações científicas realizadas por Aimé-Adrien Taunay, o filho mais novo de Nicolas-Antoine, quando fez parte da expedição naturalista de Georg Heinrich von Langsdorff, Maria de Fátima Costa chama a atenção para as aspirações historicistas desse pintor genial27. Ainda que a tarefa que lhe havia sido encomendada consistia substancialmente em realizar um registro fisionômico e para-cartográfico das terras interioranas do Brasil, ele foi além de um registro meramente naturalista e incorporou um ponto de vista que o conduziu à criação de paisagens como espaços humanos.

12 Mesmo uma obra de caráter estritamente botânico, como é o caso de Flora Brasiliensis, de Carl Friedrich Philipp von Martius, revela uma construção com conotações nacionais, conforme mostrou Heitor de Assis Júnior na sua primorosa investigação sobre o volume das “Tabulae Physionomicae”28. Essa compilação de cinquenta e nove vistas de paisagens brasileiras da mais diversas precedências, editada em forma de fascículos ao longo de um período de quase trinta anos (entre 1840 e 1869) e contendo desenhos de numerosos autores, respondia para Martius ao objetivo de ilustrar os diferentes ecossistemas com a sua flora específica. Na sua introdução, o cientista alemão explicita a intenção de mostrar “uma visão das diversas regiões do Brasil”29. No entanto, quando essa obra é confrontada com os escritos de teor histórico do autor, nos quais ele enfatiza a pluralidade natural do território luso-americano como um traço específico dessa jovem nação30, fica evidente que essas obras essencialmente botânicas estão impregnadas de uma intenção historicista.

13 A dimensão histórica da pintura de paisagem, inclusive quando caraterizada como essencialmente naturalista, foi analisada, no contexto brasileiro, por Claudia Valladão de Mattos31. A autora refere-se às descrições de Humboldt em Quadros da Natureza32, nas quais a noção de paisagem é construída a partir de uma integração de elementos físicos e morais, especialmente nos capítulos sobre as estepes e os desertos ou nas descrições da Serra de Cajamarca33. Ela lembra que essa visão globalizante dos fenômenos naturais que abrange a história humana remonta especialmente a Johann Wolfgang von Goethe, que estabeleceu um vínculo essencial entre o homem e o mundo natural e para quem é impossível separar o afazer do espírito da vida material. Nesse sentido, as aspirações histórico-culturais que os artistas de tradição humboldtiana embutem nas representações naturalistas são para eles uma forma de contribuir, por meio da sensibilidade e da intuição, aos estudos científicos com o objetivo de alcançar uma apreensão totalizadora do universo.

14 Esse tipo de construção da paisagem com evocações múltiplas tem sido classificado na categoria das representações pitorescas. O conceito adquire assim um sentido substancialmente novo. Se antes era habitual qualificar de pitorescas as representações moldadas seguindo modelos pictóricos, no contexto da pintura da paisagem americana do século XIX , o termo passou a designar um ideal enraizado na procura de uma interação entre arte e ciência. Esse ideal estimulou os artistas a criar rotas pitorescas, na expectativa de que essa imagem global em algum momento se manifestasse diante dos seus olhos34.

15 Por meio desse patrimônio artístico, podemos constatar que o historicismo foi progressivamente ganhando importância na pintura de paisagem dedicada ao Brasil e que, quando a produção de obras nesse campo temático foi impulsionada por encomendas da coroa, esse aspecto se erigiu em um fator de necessidade. O trabalho de Félix-Émile Taunay, o terceiro dos filhos de Nicolas-Antoine, é paradigmático a esse

Perspective, 2 | 2013 42

respeito. Como demostrou Elaine Dias35, sua pintura paisagística, inicialmente situada na linha artística de seu pai, esteve igualmente vinculada à tradição de Hackert. No entanto, a partir de 1834, ano em que Félix-Émile Taunay assumiu a direção da Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, a sua obra passou a ser marcada por um novo modelo de paisagem, no qual o artista lançou mão de um registro bem próximo da ilustração científica, próprio dos artistas viajantes, combinado com motivos históricos. Seus quadros abrangem um leque temático amplo que vai de uma Vista da Mãe d’Água, no qual representa uma canalização de águas empreendida no século XVIII, comemorando assim a realização de obras de interesse público, à Vista de um mato virgem que está sendo reduzido a carvão, no qual o registro da apropriação do território por meio da derrubada de uma floresta traz implícita uma crítica de caráter ambientalista36. Citando documentos da imprensa da época, Elaine Dias mostra os elogios que foram feitos às telas de Félix-Émile Taunay, avaliadas então como “obras verdadeiramente nacionais”37.

16 A intenção didática inegável dessas pinturas corrobora as observações de Sonia Gomes Pereira quanto ao desempenho da Academia Imperial de Belas Artes e à sua participação no projeto político imperial de construção simbólica da nação desenvolvido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro38. A tradicional preferência das academias pela pintura de história não representou, pois, obstáculo ao desenvolvimento da pintura de paisagem histórica no seio da academia. Foi a partir da segunda metade do século XIX que esse gênero se confundiu com uma pintura centrada em motivos históricos, mas atendendo minuciosamente a um registro da paisagem, como é o caso das obras de Victor Meirelles de Lima ou de Pedro Américo de Figueiredo e Mello39.

17 Essa revisão sumária da produção intelectual dedicada à pintura de paisagem no século XIX no Brasil, e mais particularmente ao período de formação do estado brasileiro durante a primeira metade do século XIX, mostra que pesquisas monográficas fundamentais têm sido desenvolvidas nas últimas décadas. Não obstante, a historiografia – com exceção de alguns ensaios parciais40 – ainda não empreendeu um estudo de síntese consistente acerca do papel desempenhado pelas artes figurativas na formação da identidade cultural da nação e, em particular, na construção simbólica do território.

18 A história da literatura do século XIX, por sua vez, conta nesse âmbito com um trabalho incitante, o livro de Flora Süssekind O Brasil não é longe daqui41. Esse contundente ensaio, que também lança luzes sobre as modalidades de apreensão do espaço físico e da natureza, se sustenta em dezenas de investigações levadas a cabo ao longo do século XX. A autora utiliza essas pesquisas como trampolim para propor uma análise de alto nível sobre a literatura ficcional escrita no século em que o Brasil conquistou a sua independência. Ao definir os fatores primordiais que intervieram no surgimento de uma literatura nacional, ela esboça um rico repertório de ideias para abordar a fundação artística da nacionalidade. Além disso, nessa síntese, a autora também chama a atenção para a necessidade, própria daquela época, de fundar uma geografia e uma paisagem, afirmando que a ciência das viagens desempenhou nessa matéria a função de um mestre, tanto para a literatura como para as artes figurativas.

19 Nesse contexto torna-se compreensível o desejo de modelar uma imagem visual de um estado-nação que as ideias de Porto-Alegre evocadas na introdução atestam. A sua exigência de um registro visual cientificamente válido dos elementos naturais remete

Perspective, 2 | 2013 43

de forma inequívoca à tradição das ciências das viagens, algo que esse autor quis incorporar no projeto nacional em meados do século XIX. Os aspectos cruciais abordados por Porto-Alegre na sua análise da pintura de paisagem têm sido até recentemente objeto de investigações. Essas ideias abrem caminhos que provavelmente contribuirão a estabelecer um diálogo bem alicerçado entre a história da arte e o vasto campo da história cultural, no qual as investigações teóricas e as releituras das artes figurativas poderão contribuir, por meio de novas leituras, a revelar o que pensavam e sentiam os forjadores da nação brasileira.

NOTAS

1. Alfredo Galvão, “Manuel de Araújo Porto-Alegre, sua influência na Academia Imperial e no meio artístico nacional”, in Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 14, 1959, p. 19-120. 2. Manuel de Araújo Porto-Alegre, in Galvão, 1959, citação no 1, p. 52 et 55. 3. Pierre-Henri de Valenciennes, Éléments de perspective pratique à l’usage des artistes, suivis de réflexions et conseils à un élève sur la peinture et particulièrement sur le genre du paysage, Paris, 1799. 4. Cf. Alexander von Humboldt, Essai sur la géographie des plantes, Paris, 1805; Ansichten der Natur, Tübingen, 1808; Kosmos, Stuttgart, 1845-1862. 5. Para uma visão geral da influência das ideias de Humboldt entre os artistas viajantes na América, cf. Pablo Diener, Maria de Fátima Costa, “A arte de viajantes: de documentadores a artistas viajantes. Perspectivas de um novo gênero”, Porto Arte, 25, 2008, p. 75-89. A sua influência sobre os artistas que estiveram no Brasil foi abordada em Bilder aus Brasilien im 19. Jahrhundert, Renate Löschner E., (cat. expo., Berlim, Staatsbibliothek zu Berlin, Preussischer Kulturbesitz, 2001), Berlim, 2001. A respeito da recepção das ideias de Humboldt no Brasil, um território que o naturalista jamais visitou, cf. Maria de Fátima Costa, “Humboldt y Brasil”, Amerística: la ciencia del nuevo mundo, 2/3, 1999, p. 31-40. 6. Essa publicação (Thomas Le Claire, Charles Othon Frédéric J.-B., comte de Clarac, ‘Forêt vierge du Brésil’, Hambourg, 2004) remete aos estudos de Renate Löschner, Lateinamerikanische Landschaftsdarstellungen der Maler aus dem Umkreis von Alexander von Humboldt, thèse, Technische Universität Berlim, 1976, e de Pablo Diener, “Die reisenden Künstler und die Landschaftsmalerei in Iberoamerika”, in Expedition Kunst: Die Entdeckung der Natur von C.D. Friedrich bis Humboldt, Jenns E. Howoldt, Uwe M. Schneede E., (cat. expo., Hamburgo, Hamburger Kunsthalle, 2002-2003), Hamburgo, 2002, p. 47-55. 7. Le Comte de Clarac et la ‘Forêt vierge du Brésil’, Pedro Corrêa do Lago, Louis Frank EE., (cat. expo., Paris, Museu do Louvre, 2005), Paris, 2005. 8. Alexander von Humboldt enviou essa gravura ao seu irmão Wilhelm, acompanhada de um comentário elogioso, em uma carta datada de 19 novembro de 1823. Cf. Bilder aus Brasilien, 2001, citação no 5, p. 25. 9. Claudine Lebrun Jouve, Nicolas-Antoine Taunay : 1755-1830, Paris, 2003. 10. Pedro Corrêa do Lago, Taunay e o Brasil: obra completa, 1816-1821, Rio de Janeiro, 2008. 11. Lilia Moritz Schwarcz, O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João, São Paulo, 2008. 12. Corrêa do Lago, 2008, citação no 10, p. 24.

Perspective, 2 | 2013 44

13. Luciano Migliaccio, “Nicolas-Antoine Taunay. Pintura de vista e pintura de paisagem entre Europa e Brasil”, in Nicolas-Antoine Taunay no Brasil, Lilia Moritz Schwarcz, Elaine Dias, (cat. expo., Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes, 2008), Rio de Janeiro, 2008, p. 102-107 ; Luciano Migliaccio, “A paisagem clássica como alegoria do poder do soberano: Hackert na corte de Nápoles e as origens da pintura de paisagem no Brasil”, in Cláudia Valladão de Mattos E., Goethe e Hackert: sobre a pintura de paisagem, Cotia, 2008, p. 87-125. 14. A Missão Artística Francesa tem sido objeto de numerosos estudos. A monografia de referência é assinada pelo bisneto do pintor: Afonso d’Escragnolle Taunay, “A Missão artística de 1816”, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 74, 1911, p. 5-202. 15. Thomas Weidner, Jakob Philipp Hackert: Landschaftsmaler im 18. Jahrhundert, Berlim, 1998. 16. Ana Pessoa, Júlio Bandeira, Pedro Corrêa do Lago, Pallière e o Brasil: obra completa, Rio de Janeiro, 2011. 17. Robert Wagner, Júlio Bandeira, Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender, 1817-1818, Petrópolis, 2000. 18. Júlio Bandeira, Pedro Corrêa do Lago, Debret e o Brasil: obra completa, 1816-1831, Rio de Janeiro, 2007. 19. Pablo Diener, Maria de Fátima Costa, Rugendas e o Brasil, Rio de Janeiro, (2002) 2012. 20. Corrêa do Lago, 2008, citação no 10. 21. O Brasil dos viajantes, Ana Maria de Moraes Belluzzo E., (cat. expo., São Paulo, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 1994), 3 vols., São Paulo, 1994. 22. Mostra do redescobrimento, Nelson Aguilar E., (cat. expo., São Paulo, Bienal de São Paulo, 2000), São Paulo, 2000. 23. Visões do Rio na coleção Geyer, Maria de Lourdes Parreiras Horta E., (cat. expo., Rio de Janeiro, Centro Cultural Banco do Brasil, 2000), Rio de Janeiro, 2000. 24. Revelando um acervo, Carlos Martins E., (cat. expo., São Paulo, Coleção Brasiliana/Fundação Rank-Packard/ Fundação Estudar, 2000), São Paulo, 2000. 25. Pedro Corrêa do Lago, Brasiliana Itaú: uma grande coleção dedicada ao Brasil, São Paulo, 2009. 26. Gilberto Ferrez, Iconografía do Rio de Janeiro, 1530-1890: catálogo analítico, Rio de Janeiro, 2000. 27. Maria de Fátima Costa, “Aimé-Adrien Taunay: um artista romântico no interior de uma expedição científica”, in Fênix: revista de história e estudos culturais, 4/4, 2007, p. 1-17. 28. Heitor de Assis Júnior, Relações de von Martius com imagens naturalísticas e artísticas do século XIX, dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 2004; Carl von Martius E., Flora Brasiliensis, Munique, 1840-1906, vol. 1, parte 1. 29. “Hoc igitur consilio diversarum Brasiliae regionum imagines proposuimus ita expressas, ut herbas et arbores conspicere possis, quae in quavis regione prae ceteris peculiares proveniunt, easque ita consociatas, ut regioni singularem quendam impertiant colorem illique solemnem, quem quidem in Brasiliae diversis regionibus esse diversissimum nemo est, qui ignoret” (Martius, 1840-1906, citação no 28, coluna 1). 30. Cf. o ensaio particularmente significativo de Carl von Martius : “Como se deve escrever a história do Brasil”, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 6/24, 1845, p. 381-403. 31. Claudia Valladão de Mattos, “A pintura de paisagem entre arte e ciência: Goethe, Hackert, Humboldt”, Terceira Margem, 10, 2004, p. 152-169. 32. Humboldt, 1808, citação no 4. 33. Cf. os capítulos “Über die Steppen und Wüsten” e “Das Hochland von Caxamarca” em Humboldt, 1808, citação no 4. 34. Pablo Diener,”A viagem pitoresca como categoria estética e a prática de viajantes”, in Porto Arte, 15/25, 2008, p. 59-73. 35. Elaine Dias, Paisagem e Academia: Félix-Émile Taunay e o Brasil, Campinas, 2009.

Perspective, 2 | 2013 45

36. Cf. também Cláudia Valladão de Mattos, “Paisagem, monumento e crítica ambiental na obra de Félix-Émile Taunay”, in 19&20, 5/2, 2010, disponível em: www.dezenovevinte.net/obras/ obras_fet_cvm.htm (Acesso em: 5 de novembro de 2013). 37. Dias, 2009, citação no 35, p. 334. 38. Sonia Gomes Pereira, “Revisão historiográfica da arte brasileira do século XIX”, in Revista IEB, 54, 2012, p. 87-106. 39. Jorge Coli, Como estudar a arte brasileira do século XIX?, São Paulo, 2005. 40. Cf. os escritos de Lilia Moritz Schwarcz : “A natureza como paisagem: imagem e representação no Segundo Reinado”, in Revista USP, 58, 2003, p. 6-29; Lilia Moritz Schwarcz, “Paisagem e identidade: A construção de um modelo de nacionalidade herdado do período joanino”, in Revista Acervo, 22/1, 2009, p. 19-52. 41. Flora Süssekind, O Brasil não é longe daqui: O narrador, a viagem, São Paulo, 1990.

Perspective, 2 | 2013 46

Modernismo brasileiro: entre a consagração e a contestação

Ana Paula Cavalcanti Simioni

NOTA DO EDITOR

Cet article existe en traduction française : Le modernisme brésilien, entre consécration et contestation

1 Em 1995, o colecionador argentino Eduardo Constantini adquiriu na Christie’s de Nova York a tela Abaporu, de Tarsila do Amaral, finalizada em 1928. A transação foi emblemática por tratar-se de o maior valor já atingido por uma pintura brasileira no mercado internacional (1,3 milhões de dólares), bem como por toda a comoção que sua venda causou no país. O fato de hoje estar exposta no importante Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (MALBA), ombreada a nomes consagrados como os de Frida Kahlo, Wilfredo Lam, Xul Solar e Antonio Berni, não foi suficiente para que o episódio deixasse de ser compreendido como uma perda para a cultura nacional. Esse episódio é uma evidência do quanto essa obra possui um valor paradigmático, ao lado de outras pinturas e esculturas realizadas pelos artistas designados “modernistas”. Na realidade, o modernismo brasileiro, cuja primeira fase compreende a produção realizada entre finais dos anos de 1910 e os anos de 1940, consolidou um lugar ímpar na história da cultura no Brasil. Suas principais obras foram, e ainda são, vistas como artefatos materiais capazes de cristalizar simbolicamente uma cultura nacional de valor internacional. A elas foram atribuídos não apenas valores artísticos, mas também valores culturais e políticos mais amplos, como o de símbolos identitários.

2 A glorificação do modernismo no Brasil é um processo que perpassa todo o século XX e que envolve um conjunto de agentes – críticos, historiadores, curadores de arte – e diversas práticas sociais, como o mercado de arte, as aquisições realizadas pelos museus e, ainda por vezes, uma política cultural explicita levada a cabo pelo Estado, em sua dimensão nacional ou regional. Em linhas gerais, pode-se dividir esse processo em três fases. O primeiro momento, que compreende o intervalo de 1917 a 1940, caracteriza-se

Perspective, 2 | 2013 47

pela construção de uma história da arte moderna no Brasil em que se toma como ponto de vista a fala dos próprios participantes do movimento. A segunda fase, que vai da década de 1940 até o final da década de 1970, pode ser entendida como o momento de institucionalização da crença no valor da arte moderna no Brasil, processo que contou com a chancela dos trabalhos produzidos no interior do sistema universitário, bem como das aquisições oficiais de acervos notórios de artistas modernistas. No final da década de 1970, inicia-se um momento de revisionismo crítico marcado pela emergência de diversos tipos de contestação sobre o caráter efetivamente moderno do modernismo brasileiro, sobre os limites formais desse movimento e ainda sobre a posição central de certos grupos e regiões do país na construção de um discurso canônico, ao mesmo tempo em que houve tentativas de se repensar, de maneira mais matizada, o alcance e a especificidade de tais produções no país.

Os primeiros tempos modernistas

3 As origens do modernismo no Brasil estão permanentemente em discussão. Tais contendas revelam não apenas dicotomias entre modalidades de interpretação e de definição do que se entende por modernismo, mas também clivagens regionais que envolvem grupos de intelectuais, universidades com prestígios hierarquicamente distintos, museus, galerias e colecionadores1.

4 No entanto, a visão mais difundida considera que o estopim do movimento modernista ocorreu em 1922 em São Paulo. Em fevereiro desse ano, organizou-se no Teatro Municipal de São Paulo – uma instituição central da conservadora elite paulistana inaugurada em 1914 – uma série de eventos literários, musicais e plásticos que recebeu o nome de Semana de Arte Moderna (em referência a modelos estrangeiros, notadamente à Semana de Deauville)2. Para muitos autores, esse episódio é considerado um divisor de águas na história da arte brasileira, um marco zero do modernismo nacional. Essa concepção do modernismo como movimento predominantemente paulista, defendida inicialmente pelos seus protagonistas, foi retomada e reafirmada em estudos publicados na década de 1970 (AMARAL, 1970; BRITO, [1958] 1974; ALMEIDA, [1961] 1976).

5 A adoção da “Semana de 22” como um marco resulta do processo de construção da memória do modernismo brasileiro, que contou inicialmente com os textos propagados pelos próprios intelectuais e artistas pertencentes ao círculo modernista. Eles não se configuraram como um grupo até 1917, quando a exposição de Anita Malfatti, artista paulista que retornava de seus estudos feitos na Alemanha e nos Estados Unidos3, exibiu obras que chocaram os meios locais. Seus vigorosos nus a carvão e, especialmente, suas pinturas expressionistas, as quais apresentavam um cromatismo livre e uma tematização incomum de figuras humanas – como imigrantes (O Japonês, 1915-1916, São Paulo, Instituto de Estudos Brasileiros) ou loucos (A boba, 1915-1916, Museu da Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo) – foram mal recebidos por um público acostumado às estéticas naturalistas e pós-impressionistas então dominantes.

6 Nesse mesmo ano, em reação à exposição de Anita Malfatti, Monteiro Lobato, o mais importante crítico de São Paulo, publicou o artigo intitulado “Paranoia ou mistificação?”, no qual expressava sua rejeição pelas vanguardas históricas, vistas como correntes opostas ao figurativismo naturalista4 (cf. CHIARELLI, 1995). A severa crítica propagada por Lobato contra as obras da artista, que considerava distorções de mau

Perspective, 2 | 2013 48

gosto, provocou a reação de jovens literatos e artistas visuais, como Oswald de Andrade, Menotti del Picchia e Emiliano Di Cavalcanti, os quais passaram a defendê-la nos jornais. Dessa feita, começaram a se reconhecer e a atuar como grupo, tendo como principal lastro institucional a imprensa. Ainda que São Paulo fosse nesse momento a cidade mais rica do país – graças ao capital oriundo das exportações de café, a um acelerado processo de modernização, intensificado por levas de imigrantes, e a um embrionário processo de industrialização –, possuía relativamente poucas instituições culturais. Dentre elas, destacavam-se a Faculdade de Direito; o Museu Paulista, fundado em 1895 e incorporado posteriormente à Universidade de São Paulo; a Pinacoteca do Estado de São Paulo, inaugurada em 1905 (único museu da cidade dedicado exclusivamente às belas artes); e o Liceu de Artes e Ofícios, um espaço de formação de artistas que, como o nome indica, destinava-se mais às artes aplicadas do que às artes puras. Por isso, como observa o sociólogo Sergio Miceli, nesse período “em termos concretos, toda a vida intelectual era dominada pela grande imprensa, que constituía a principal instância de produção cultural da época e que fornecia a maioria das gratificações e posições intelectuais” (MICELI, [2001] 2005, p. 17). Os jornais e revistas ilustrados constituíam o lócus em que tais intelectuais se encontravam, expunham seus trabalhos e propagavam seus ideais. Foi por meio das publicações na imprensa paulistana que a primeira geração de modernistas aos poucos se impôs localmente. As críticas deflagradas por Lobato contra Anita Malfatti suscitaram, assim, respostas em sua defesa nos jornais: ao artigo assinado por Oswald de Andrade no Jornal do Commercio em 1918, somaram-se os textos de Menotti Del Picchia, publicado no Correio Paulistano em 1920, e de Mario de Andrade, no Jornal de Debates em 19215.

7 Ainda que não estivessem reunidos em torno de princípios coesos capazes de gerar manifestos, se viam e eram vistos por seus adversários como “futuristas”, em referência ao célebre Manifesto Futurista, do escritor italiano Filippo Tommaso Marinetti. Preocupados em superar tudo aquilo que viam como retrógrado na cultura brasileira, como a tradição agrária, regional e popular, além da acadêmica e parnasiana, buscavam o compasso com o cosmopolitismo irradiado pelas vanguardas europeias. Nesse projeto, construíam em suas obras uma imagem de São Paulo como cidade aberta à modernização, em constante mudança, livre do passado e em permanente marcha para o futuro. Nesse desejo de atualização imediata, São Paulo emergia como um “mito tecnicizado” (FABRIS, 1994a), lugar de ininterrupta destruição das tradições, ansiosa por todos os tipos de inovação, receptiva às novas linguagens artísticas e às transformações sociais, politicas e culturais caudatárias das ondas imigratórias. Mesmo se tais imagens correspondessem mais aos desejos desses “futuristas” do que à realidade cotidiana dos habitantes da metrópole, ainda hoje estão implantadas no imaginário que projeta a cidade como “carro-chefe da nação”.

8 Assim, nesse momento, as produções dos “futuristas” não procuravam reivindicar as particularidades da cultura brasileira, mas bem o contrário: desejavam compassar a cultura nacional, vista como atrasada, às experiências internacionais, consideradas cosmopolitas e progressistas. Essa ambição encontra-se bem expressa no romance Pauliceia desvairada (1922), de Mário de Andrade, e no álbum Fantoches da meia-noite (1921), de Di Cavalcanti. Com efeito, as obras expostas na “Semana de 22” – com exceção das enviadas por Anita Malfatti e John Graz – não podiam ser tomadas nem como radicalmente modernas, devido ao predomínio das linguagens pós-

Perspective, 2 | 2013 49

impressionistas e neocoloniais, nem como eivadas de uma preocupação com a “cultura nacional” (AMARAL, 1970).

9 Foi ao longo da década de 1920, quando muitos artistas brasileiros usufruíram de longas estadias em Paris com vistas a aprimorar seus estudos, que, curiosamente, as particularidades da cultura brasileira passaram a lhes interessar. Em 1921, Antonio Gomide e Victor Brecheret aportaram em Paris, onde já se encontrava Vicente do Rego Monteiro; em 1923, chegaram Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Celso Antônio, entre tantos outros (BATISTA, 2012). É em Paris que Di Cavalcanti realiza os primeiros desenhos de mulatas – tema que se tornou emblemático de seu trabalho e foi diversas vezes explorado em suas obras até o fim de sua vida. Em sua autobiografia, ele explica que: “[....] Paris pôs uma marca na minha inteligência. Foi como criar em mim uma nova natureza e o meu amor à Europa transformou meu amor à vida em amor a tudo que é civilizado. E como civilizado comecei a conhecer minha terra” (DI CAVALCANTI, [1955] 1995, p. 142).

10 Tarsila do Amaral é quem talvez melhor explicite essa transformação súbita de linguagem, temática e consciência. Em 1921, inscrita na Academie Julian, ela exercitou- se em nus pós-impressionistas; em 1923, quando aluna de Léger, compôs uma de suas obras mais emblemáticas, A negra (1923, São Paulo, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo), considerada “pioneira de um estilo modernista brasileiro” (AMARAL, [1975] 2003, p. 97). Em uma carta escrita à família, a pintora assinala estar consciente do interesse que as culturas exógenas despertavam nos meios intelectuais franceses: “[...] Sinto-me cada vez mais brasileira: quero ser a pintora de minha terra. Como agradeço por ter passado na fazenda a minha infância toda. As reminiscências desse tempo vão se tornando preciosas para mim. Quero, na arte, ser a caipirinha de São Bernardo, brincando com bonecas de mato, como no último quadro que estou pintando. Não pensem que essa tendência é mal vista aqui. Pelo contrário. O que se quer aqui é que cada um traga contribuição do seu próprio país. Assim se explicam os sucessos dos bailados russos, das gravuras japonesas e da musica negra. Paris está farta de arte parisiense” (AMARAL, [1975] 2003, p. 78).

11 Com efeito, a experiência de Tarsila é considerada o exemplo da viagem artística ideal, um caso “paradigmático da relação entre condição abastada, aculturação francesa e alinhamento modernista” (DURAND, [1989] 2009, p. 77). Casada com o poeta modernista Oswald de Andrade e, assim como ele, beneficiária de uma considerável fortuna advinda do café e do capital imobiliário, Tarsila logrou inserir-se nos círculos internacionais da vanguarda constituídos em Paris por meio de inúmeras estratégias, como a participação como aluna nos ateliês dos já célebres Albert Gleizes, André Lhote e Fernand Léger; a formação de uma alentada coleção de obras modernistas, viabilizada pelo contato direto com os próprios artistas ou com seus representantes galeristas, como Léonce Rosemberg; e ainda o investimento na criação de sua própria imagem de pintora plenamente moderna, como bem evidencia seu autorretrato de 1923 (Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes), em que porta um manteau de Paul Poiret, cuja fama de costureiro elegante, moderno e “exótico” assegurou às suas criações um capital simbólico explorado pela artista nesse quadro (MICELI, 2003).

12 A essa inserção estratégica da pintora na vanguarda cubista francesa, soma-se um outro dado também muito aclamado pela intelligentzia brasileira: a criação de uma série de obras modernas que dialogava com as vanguardas internacionais de seu tempo, mas a partir de elementos tidos como “nacionais”. Essa “fase Pau-Brasil”6, como foi

Perspective, 2 | 2013 50

denominada, compreende as produções realizadas por Tarsila do Amaral na década de 1920. Em uma carta à pintora, Mário de Andrade, o líder intelectual do grupo modernista paulista, mostrava o quanto ele se preocupava com a possibilidade de os brasileiros se afastarem de sua missão, a saber, a de representarem seu país: “Tarsila, minha querida amiga/Cuidado! Fortifiquem-se bem de teorias e desculpas e coisas vistas em Paris. Quando vocês aqui chegarem, temos briga, na certa. Desde já, desafio vocês todos juntos, Tarsila, Osvaldo e Sergio para uma discussão formidável. Vocês foram a Paris como burgueses. Estão épatés. E se fizeram futuristas! hi!hi!hi! choro de inveja UI! Ui! Ui! Mas que viado! Mas é verdade que considero vocês todos uns caipiras em Paris. Vocês se parisianizaram na epiderme. Isso é horrível! Tarsila, Tarsila, volta para dentro de ti mesma. Abandona o Gris e o Lhote, empresários de criticismos decrépitos e de estesias de ardentes! Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata virgem, onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis. Há MATA VIRGEM. Criei o matavirgismo. Sou matavirgista. Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam. [...] Um abraço muito amigo do Mário” (Mário de Andrade, in AMARAL, [1975] 2003, p. 369).

13 Ao longo da década de 1920, essa visão do modernismo como um movimento de valor nacional e internacional cujo ponto inicial seria a “Semana de 22” foi se constituindo como um dogma, principalmente graças ao espaço que seus membros cultivaram na imprensa da época, tornada uma espécie de arena de propagação dos ideais do grupo. Menotti del Picchia, um de seus mais fervorosos defensores, detinha uma coluna diária no Correio Paulistano, enquanto Oswald de Andrade possuía ampla liberdade para escrever no Jornal do Commercio, além do que era proprietário da importante revista O Pirralho. Não por acaso, a maior realização dos modernistas enquanto grupo, findada a “Semana de 22”, foi a publicação da revista Klaxon, vitrine de sua produção literária, plástica e intelectual que circulou entre 1922 e 1923 (MORAES, 2011, p. 163-167).

14 Alçado à condição de primeiro movimento genuinamente brasileiro e compreendido como um grito da consciência nacional, o modernismo garantiu a certos grupos e a seus protagonistas um lugar de grande proeminência; eles tornaram-se, assim, símbolos culturais – e políticos – dos poderes de transformação oriundos das nações “periféricas”. Andrea Giunta analisa a força das estratégias periféricas que permitiram a vários artistas latino-americanos e, em particular, ao movimento Pau-Brasil, que eclode com Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, apropriar-se das estruturas formais primitivas, deslocando o sentido da “outridade” para o centro do discurso das vanguardas. Ao fazê-lo, esses modernistas contribuíram ativamente para um discurso universalizante da modernidade (GIUNTA, 2011, p. 300). Discurso esse que, no caso das “modernidades periféricas” (SARLO, 1988), parecia possuir a força de uma ação libertadora. As periferias tornaram-se, enfim, partícipes dos movimentos culturais centrais, mas a partir de valores e estratégias que lhe eram próprios.

15 Se os anos 1920 foram o momento de efervescência do modernismo em formação, a década de 1930 pode ser considerada a época de maturação e oficialização do movimento. O governo de Getúlio Vargas (1937-1945), visando a se contrapor ao liberalismo e ao regionalismo que caracterizaram a Primeira República, levou a cabo uma política centralizadora que objetivava produzir um “novo homem brasileiro”. Para tanto, a cultura e a educação tornaram-se dimensões prioritárias, responsáveis por moldar a “alma da nação” (SCHWARZTMAN, 1984). Uma série de políticas culturais foram implementadas no sentido de se promover a integração nacional por meio de símbolos

Perspective, 2 | 2013 51

que até hoje identificam os sinais de “brasilidade”, tais como a feijoada7, a capoeira e o samba: práticas anteriormente combatidas, posto que associadas ao passado escravista, foram então consideradas sinais da convivência pacífica entre raças e culturas, permitindo celebrar a “mestiçagem” como elemento nacional integrador (SCHWARCZ, 1995).

16 No campo das artes e da arquitetura, o ministério liderado por Gustavo Capanema decidiu fazer da área da cultura um negócio de Estado, atribuindo-lhe um orçamento que permitia a realização de encomendas e criando uma intelligentzia, um corpo tecnicamente qualificado para dar vazão a suas realizações (MICELI, [2001] 2005). Inaugurou-se um campo frutífero de possibilidades para intelectuais, artistas e arquitetos – vários dentre eles de orientação modernista –, os quais foram chamados a participar de um regime claramente autoritário. O caso mais emblemático é o da sede do Ministério da Educação e Saúde, cuja construção devia materializar os discursos sobre a nação. Para tanto, abriu-se um concurso para escolha dos melhores projetos e o vencedor foi o arquiteto neocolonial Archimedes Memória. Esse fato desagradou o ministro, que desejava uma linguagem mais moderna. Capanema anulou o concurso e convidou o arquiteto e urbanista de orientação modernista Lucio Costa, cujo projeto havia sido inicialmente desclassificado. Formou-se então uma equipe composta por Affonso Reidy, Carlos Leão, Jorge Moreira e Oscar Niemeyer, a qual contou com a assessoria prestigiosa de Le Corbusier, arquiteto modernista franco-suíço que possuía então uma relativa projeção internacional. O edifício constitui uma primorosa síntese visual do modernismo brasileiro. Por um lado, absorve elementos do paradigma internacional defendido por Le Corbusier, como o uso de pilotis para liberar o piso térreo, de uma fachada em vidro, de uma planta livre e de brise-soleil, fatores associados a um discurso progressista voltado à celebração do futuro. Por outro lado, relê e reinsere uma suposta “tradição” arquitetônica brasileira na medida em que se vale de materiais como azulejos brancos e azuis – concebidos pelo pintor mais afamado da época, Candido Portinari – para revestir as paredes externas do prédio; nobres madeiras nacionais (como a sucupira) para a confecção do mobiliário; lioz8 português para revestir os pisos nobres e ainda gnaisse carioca para revestir as empenas – duas pedras muito empregadas pelos escultores barrocos cariocas. Tais elementos materializam a retomada imaginária de um certo passado vinculado ao barroco, de sorte que, nesse edifício, futuro e passado encontram-se interligados (WILLIAMS, 2001; CAVALCANTI, 2006).

17 Em seu interior, destaca-se o conjunto de pinturas murais encomendas a Candido Portinari, que consagrara-se em 1934 com a composição O Mestiço (1934, São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo), mostrando ser capaz de heroicizar tipos humanos populares, especialmente mestiços e negros. Essa assimilação visual de questões raciais alinhava-se com os discursos então vigentes junto a setores da intelectualidade nacional, e sua arte ganhou rapidamente a aprovação do Estado Novo, aderindo ao ideário governamental. Portinari realizou dez painéis para o Ministério, cada um figurando um dos momentos específicos dos diversos ciclos econômicos que constituem a trajetória da nação: Pau-Brasil, Borracha, Açúcar, Café, etc. Ao combinar elementos clássicos e modernos, utilizando-se da deformação e de elementos expressionistas, o artista criou tensões não apenas entre os planos compositivos mas também entre a ideologia trabalhista e racial propagada pelo governo, de um lado, e a figuração particular de heroísmo construída nessa série, de outro. O pintor ousou ao representar

Perspective, 2 | 2013 52

os negros e mestiços como protagonistas da história do país: homens e mulheres anônimos, força de trabalho expropriada e vitimada (FABRIS, 1996).

18 Com o Estado Novo, o modernismo alcançou uma proeminência notável. Após o Ministério da Educação e Saúde, o Conjunto da Pampulha, construído entre 1942 e 19439, também mobilizou grandes nomes da arquitetura e das artes plásticas. Realizado em Belo Horizonte, o projeto consagrou definitivamente Niemeyer e Portinari como expoentes, respectivamente, da arquitetura e da pintura modernista brasileira. Nos anos seguintes, seguiram-se outras encomendas de destaque, como o Parque do Ibirapuera, inaugurado em 1954 em São Paulo, e a cidade de Brasília, construída entre 1956 e 1960. Consagrado nacionalmente, o modernismo passou também a ser exportado como “imagem do país”.

19 Durante o Estado Novo, em um contexto político de aproximação entre os Estados Unidos e a América Latina, fomentou-se uma série de eventos com o objetivo de elaborar uma imagem positiva do Brasil. Em 1940, foi realizada a exposição Portinari of Brazil no Museum of Modern Art (MoMA) e, em 1943, a importantíssima Brazil Builds, também ocorrida no MOMA10. Idealizada por Philipp Goodwin, curador da instituição, essa exposição contou com um catálogo que se tornou uma referência internacional sobre a arquitetura brasileira, representada por meio de imagens de edificações barrocas e construções modernistas. É importante lembrar também a participação do país na Feira Mundial de Nova York, em 1939-1940, com um pavilhão projetado por Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Na década seguinte, Niemeyer e Portinari foram consagrados definitivamente no âmbito internacional ao colaborarem na construção da sede das Nações Unidas: o arquiteto carioca foi um dos coautores do projeto arquitetônico e o pintor paulista realizou dois imensos painéis representando a Guerra e a Paz. A batalha para expandir e consolidar o modernismo brasileiro havia sido vencida.

20 O modernismo se impôs como cânon nacional incontestável até o ingresso das linguagens construtivas no país durante os anos 1950. A introdução das correntes abstratas, especialmente com a inauguração da Bienal de São Paulo em 1951, colocou em cheque o predomínio das linguagens figurativas constitutivas do programa modernista que se propagara no Brasil desde os anos 1920. Ao longo da década de 1950, presenciou-se a ascensão do abstracionismo geométrico (mais conhecido no Brasil pelo nome de concretismo) como uma nova vanguarda nacional (BRITO, 1985; COUTO, 2004). A ascensão da arte abstrata trouxe consigo a desvalorização da produção das gerações anteriores e, com isso, uma certa marginalização das obras e dos artistas modernistas.

A consagração histórica do modernismo

21 Em 1952, no trigésimo aniversário da “Semana de 1922”, pouco havia a se comemorar. No entanto, no momento em que o modernismo recalcitrava, entrou em curso um processo que culminará em sua legitimação. A origem dessa consagração histórica deu- se não tanto no campo artístico, dominado pela força dos concretistas, mas no acadêmico. Em 1953, Antonio Candido de Mello e Souza – um dos mais respeitados intelectuais brasileiros, casado com a crítica e professora de estética Gilda de Mello e Souza, prima de Mário de Andrade – desenvolveu, em um ensaio intitulado “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, uma noção que já se encontrava esboçada nos trabalhos de Mario de Andrade. Ao defender um programa de valorização da especificidade da cultura local, Mario de Andrade havia reestabelecido certas premissas comuns ao

Perspective, 2 | 2013 53

romantismo brasileiro, uma espécie de estética oficial do Segundo Reinado brasileiro (1840-1889). Para Antonio Candido de Mello e Souza, a dialética entre o localismo e o cosmopolitismo destacada por Mario de Andrade é um topos de longa duração e constitui a “lei de evolução da nossa vida espiritual” (SOUZA, [1965] 2000, p. 101)11. O romantismo e o modernismo são por ele considerados os dois momentos culminantes desse processo. No entanto, enquanto o romantismo brasileiro não foi capaz de romper completamente com o modelo europeu, o modernismo promoveu uma efetiva autonomia cultural ao incentivar a “libertação de uma série de recalques históricos, sociais, étnicos, que são trazidos triunfalmente à tona da consciência literária. Este sentimento de triunfo, que assinala o fim da posição de inferioridade no diálogo secular com Portugal e já nem o leva mais em conta define a originalidade própria do Modernismo na dialética do geral e do particular” (SOUZA, [1953] 2000, p. 110). De acordo com ele, essa transformação foi promovida por intermédio da reinterpretação de legados históricos – heranças em tudo distantes da Europa e difíceis de serem superadas pelo país, como a escravidão, a mestiçagem e a relação com natureza e a paisagem. Para o autor, é com o modernismo que as “nossas deficiências, supostas ou reais são reinterpretadas como superioridades” e, finalmente, “o mulato e no negro são definitivamente incorporados como temas de estudo, inspiração, exemplo. O primitivismo é agora fonte de beleza e não mais empecilho à elaboração da cultura. Isso na literatura, na pintura, na música, nas ciências do homem” (CANDIDO, [1953] 2000, p. 110).

22 Por sua importância literária, estética e também política, a obra de Antonio Candido de Mello e Souza desempenhou um papel fundamental na veiculação da concepção do modernismo como um modelo canônico para o Brasil. Para tanto, também contribuiu a posição que ele viria a ocupar na cultura brasileira como docente de grande destaque na Universidade de São Paulo, onde formou gerações de professores, pesquisadores e críticos, ainda hoje atuantes nos campos artísticos e literários. Como já se notou, houve uma continuidade entre a geração modernista da década de 1920 e as análises de Antonio Candido Mello e Souza, bem como de outros intelectuais que despontaram nos anos 1940 reunidos em torno da revista Clima (PONTES, 1998; PASSIANI, 2003). O fato de que vários dos expoentes dessa revista, como Candido, Gilda de Mello e Souza, Paulo Emilio Sales Gomes e Décio de Almeida Prado, tenham sido professores da Universidade de São Paulo, uma das mais importantes do país, possibilitou o que Pierre Bourdieu chama de “imposição da taxionomia legítima” dos campos literário e artístico (BOURDIEU, [1992] 1996, p. 253). Realizadas no interior do sistema universitário e tomadas como referência de qualidade, rigor e erudição, as obras desses intelectuais contaram, assim, com a legitimação concreta e simbólica outorgada pela instituição.

23 Após a publicação do artigo de Antonio Candido de Mello e Souza, seguiu-se uma série de obras de teor semelhante, nas quais é possível identificar topos reiterados, tais como a centralidade da inteligentzia paulista na difusão do modernismo em escala nacional; a “Semana de 1922” como marco fundador; e a capacidade do movimento em sincronizar a produção cultural brasileira com a dos mais importantes centros de seu tempo, superando o suposto atraso histórico do Brasil, e concomitantemente em exaltar as particularidades locais, de matrizes populares e mestiças, atrelando-as a um hipotético resgate da cultura nacional.

24 Para além desses elementos mais substantivos, outro aspecto comum a essas narrativas é o seu caráter teleológico. Elas tendem a alinhavar cronologicamente diversos fatos

Perspective, 2 | 2013 54

históricos de sorte a estabelecer continuidades entre a formação do grupo modernista em 1917, a “Semana de 22” e outros episódios mais recentes, como a fundação, em São Paulo, do Museu de Arte Moderna (MAM), em 1948, e do Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 1949. Tal perspectiva encontra-se em publicações até hoje tidas como obras de referência para a história da arte brasileira, como História do modernismo no Brasil, de Mário da Silva Brito, publicada originalmente em 1958 (BRITO, [1958] 1974); e De Anita ao Museu, de Paulo Mendes de Almeida, cuja primeira edição é de 1961 (ALMEIDA, [1961] 1976). Frequentemente lidas por seu suposto teor informativo, essas obras estão inteiramente ancoradas em um partido estético previamente definido que apresenta esses dois museus como fruto das ações realizadas pelos modernistas desde a década de 1920.

25 Paralelamente ao surgimento dessas obras, que hoje fazem parte da historiografia modernista, vale assinalar um outro tipo de publicação lançado nesse período, menos analítico, mas igualmente relevante para a disseminação generalizada da importância da geração de 1920: os testemunhos e as memórias dos protagonistas da primeira geração modernista. Em 1954, foi publicado o Testamento de Mario de Andrade e outras reportagens, de Francisco de Assis Barbosa (BARBOSA, 1954); em seguida, em 1955, o livro de memórias de Di Cavalcanti, intitulado Viagem da Minha Vida: o testamento da alvorada (DI CAVALCANTI, [1955] 1995); dois anos depois, Manuel Bandeira publicou Itinerário a Pasárgada (BANDEIRA, 1957), de teor autobiográfico; e, no ano seguinte, uma coletânea de cartas escritas por Mário de Andrade foi editada com o título de Cartas a Manuel Bandeira (ANDRADE, BANDEIRA, 1958; a respeito da correspondência entre os dois escritores, cf. MORAES, 2000). A publicação desse material – incentivada pelos mais jovens defensores do movimento, como Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza – constituiu um passo decisivo para a legitimação do ponto de vista dos próprios modernistas dos anos 1920 e 1930 acerca de sua importância para a cultura nacional (COELHO, 2012).

26 Ao longo da década de 1960, não apenas novas publicações adensaram a perspectiva triunfal do modernismo, mas também certas ações, notadamente as que foram levadas a cabo pelo Estado, somaram-se a esse processo de consagração do movimento. Os muitos estudos existentes sobre a intervenção do Estado no campo das artes plásticas durante os anos autoritários, de 1964 a 1988, (cf., por exemplo, RIDENTI, 2000; NAPOLITANO, 2011) geralmente priorizam a análise de obras e artistas sob o prisma da resistência, de sorte a identificar nas políticas oficiais diretrizes voltadas somente a cercear e a obstaculizar a liberdade artística. No entanto, é importante salientar que a interferência do Estado no campo das artes plásticas não se restringiu apenas a uma dinâmica negativa e simplesmente coercitiva de um Estado censor; pode-se perceber também uma agenda construtiva de promoção de determinadas tendências, grupos e/ ou linguagens artísticas, ainda que subjugada a orientações ideológicas de caráter autoritário (DURAND, [1989] 2009; ORTIZ, 1988).

27 Um elemento essencial para se perceber isso é o processo de aquisição de coleções modernistas, praticamente em sua totalidade patrocinado pelo poder púbico. Em 1968, por intermédio de Antonio Candido de Mello e Souza, a Universidade de São Paulo adquiriu a coleção de artes visuais de Mário de Andrade, acompanhada pelo arquivo pessoal do escritor – que reunia um impressionante acervos de cartas trocadas com personalidades de seu tempo –, bem como de sua biblioteca (BATISTA, LIMA, 1998). No ano seguinte, o Estado de São Paulo fez a aquisição da coleção, do arquivo e da biblioteca de Guilherme de Almeida, outro grande escritor e colecionador modernista12. A compra de

Perspective, 2 | 2013 55

tais conjuntos documentais evidencia uma preferencia estatal no sentido de consagrar as memórias e as produções dos modernistas, posto que não havia medidas equivalentes em termos de aquisições, mecenato ou patrocínio direto aos artistas então vivos (BRITO, [1975] 2005). Vale considerar o efeito póstumo produzido por tais aquisições na medida em que a sua dimensão pública implica um acesso permanente e renovado a tais fontes, suscitando continuamente pesquisas (acadêmicas ou não) sobre essas coleções, o que amplia, assim, sua importância e sua legitimidade até os dias de hoje (COELHO, 2012).

28 Também nessa época, entre meados da década de 1960 e de 1970, consolidou-se um mercado de arte no Brasil, graças principalmente ao apoio indireto do Estado, que estabeleceu acordos com sistema bancário nacional no sentido de facultar linhas de crédito específicas para aquisição de obras. Nesse período, conhecido como “milagre econômico”, as obras de arte adquiriram um caráter manifesto de investimento, participando da constituição de um mercado de bens simbólicos no país (ORTIZ, 1988). Inicialmente benemerente, esse sistema alimentado por leilões de arte assumiu aos poucos um caráter nitidamente comercial, e os preços nele praticados passaram a servir de baliza orientadora para as galerias privadas, então em plena proliferação.

29 Nesse contexto, as obras dos artistas modernistas brasileiros paulatinamente se consolidaram como as mais cobiçadas mercadorias disponíveis. No final da década de 1960, em uma clara estratégia comercial, marchands atuantes em São Paulo adquiriram a preços baixos obras de pintores modernistas que naquele momento eram pouco valiosas e estavam relativamente esquecidas e as estocaram. Concomitantemente, investiram em construir uma história da pintura brasileira a partir do material que detinham, lançando livros dedicados aos artistas em questão e exibindo suas obras em suas próprias galerias (DURAND, [1989] 2009; BUENO, 2012). Esse período de valorização mercadológica da produção modernista coincidiu com o da morte de seus mais notáveis membros (Segall faleceu em 1957; Pancetti, em 1959; Portinari e Guignard, em 1962; Anita Malfatti, em 1964; Vicente do Rego Monteiro, em 1970; e Tarsila do Amaral e Flávio de Carvalho, em 1973), o que acentuou a raridade de suas produções, posto que datadas e limitadas, e aumentou o valor dessas obras em um mercado caracterizado pela circulação de bens restritos.

30 Em 1972, no cinquentenário da Semana de Arte Moderna, o modernismo atingira sua consagração absoluta, chancelado pela crítica, pela universidade, pelo mercado, pelos museus, pelos colecionadores, e, mesmo que indiretamente, pelo Estado Nacional. Ao longo da década de 1970, vários de seus mais destacados membros foram temas de estudos monográficos rigorosos, realizados por pesquisadores reputados, geralmente vinculados à universidade. Essas obras logo foram publicadas e constituem ainda hoje os principais livros de referência sobre cada um desses artistas, como Portinari, pintor social, mestrado defendido por Annateresa Fabris em 1975 (FABRIS, [1975] 1990), Tarsila, sua obra e seu tempo, doutorado defendido por Aracy Amaral em 1976 (AMARAL, [1975] 2003) e Anita Malfatti e o início da arte moderna no Brasil, mestrado defendido por Marta Rossetti Batista em 1980 (BATISTA, [1980] 2006). Reconhecidos enquanto grupo, os modernistas foram então compreendidos como singularidades artísticas, potências criativas individualizadas. O ciclo de consagração se completara.

Perspective, 2 | 2013 56

Modernismo em disputa:

31 As críticas a esse fenômeno não tardaram a surgir. Já em 1975, em um importante artigo intitulado “Análise do circuito”, Ronaldo Brito apontou os limites e os vícios da relação entre arte e mercado no Brasil durante o início da década de 1970 (BRITO, [1975] 2005). Contrastando com o tom otimista e ufanista que predominava nos discursos sobre o crescimento do mercado consumidor de artes – visto como um dos sinais do “milagre econômico do país” –, ele expôs seu caráter restrito e elitista. Os críticos e historiadores também não ficaram ilesos à reprovação: naquele momento, mais do que cumprirem suas funções com independência, eram os principais responsáveis pela “descoberta” de autores e artistas esquecidos no passado, inscrevendo-os em uma tradição cultural nacional e construindo assim uma história da arte brasileira conduzida não por seus aspectos formais e estéticos, mas pelos interesses das galerias que representavam (BRITO, [1975] 2005, p. 58).

32 Ronaldo Brito voltou a escrever diversas vezes sobre os limites do modernismo brasileiro, construindo, ao longo de sua produção, um arcabouço interpretativo refratário à historiografia até então dominante. A rigor, para Brito, bem como para a geração que lhe sucedeu e que hoje detém uma posição de prestígio na crítica cultural nacional, as primeiras produções modernistas não foram propriamente modernas. Por estarem incumbidas de representar uma “cultura genuinamente nacional”, consistiram antes em um “rito de passagem para a modernidade”. E o fizeram “paradoxalmente às custas da conquista cultural moderna por excelência: a autonomia da experiência do eu lírico moderno e sua entrega total à aventura da obra” (BRITO, [1975] 2005, p. 137). Em seu entender, apenas na década de 1950, com o triunfo das linguagens abstratas no país (o concretismo) e, em especial, com a internacionalização promovida com as Bienais de Arte de São Paulo, é que se configurou uma consciência estética propriamente moderna no Brasil (BRITO, 1985).

33 Assinala-se assim uma interessante contradição: o que parecia ser a força cultural do primeiro modernismo – a sua capacidade de plasmar uma arte concomitantemente nacional e moderna – é também o seu próprio limite. Para autores como Ronaldo Brito, Rodrigo Naves (NAVES, 1996) e mesmo Tadeu Chiarelli (CHIARELLI, 2012), a geração modernista da década de 1920, ao responder às necessidades ideológicas daquele momento, foi compelida a representar em suas obras uma suposta “realidade nacional”. Esses artistas mantiveram-se assim presos a um esquema tradicional de representação, com referentes precisos, de sorte a esboçar uma concepção quase narrativa de pintura. Como afirma Brito, as telas dessa primeira geração “significam muito”; seus criadores estiveram presos a uma retórica social e humana que não lhes permitiu tomar o espaço da tela como plenamente autônomo, um campo de pesquisas eminentemente formais (BRITO, 1985, p. 13). Diferindo do modernismo francês, do qual se sentiam herdeiros distantes, os modernistas brasileiros se limitaram ao tema e à sujeição da pintura a um conteúdo. Na tela Cinco moças de Guaratinguetá, de Di Cavalcanti – uma releitura de Demoiselles d’Avignon de Pablo Picasso –, por exemplo, o tema da prostituição e do nu feminino parece ter inspirado o artista mais do que a dissolução da perspectiva que fez da obra de Picasso um marco na história da arte. Da mesma forma, Tarsila do Amaral, na época em que era aluna do ateliê de Léger, utilizou como referência Paysages animés, a série menos audaciosa e mais figurativa de seu mestre, sem conservar sua perspectiva crítica em relação à modernidade (MICELI, 2003). No entanto, convém notar que as

Perspective, 2 | 2013 57

críticas ao caráter pouco moderno do modernismo brasileiro estão balizadas em uma perspectiva teórico-metodológica particular, estabelecida notadamente por Clement Greenberg13. Nela, privilegia-se a auto-referencialidade como critério de valor, excluindo as injunções sociais, históricas e políticas em que as obras se inserem. Além disso, há nessa abordagem uma evidente preferência por certas modalidades artísticas, como a pintura e a escultura, o que significa a exclusão a priori de certos movimentos e práticas artísticas, como o art nouveau, o art déco, o design e a moda, ou ainda de outras correntes artísticas de caráter figurativo, como o surrealismo. Finalmente, ela toma como exemplar a lógica de desenvolvimento dos campos artísticos francês e norte-americano, abstraindo os contextos e as condições em que eles se desenvolveram e fazendo dessas experiências modelos abstratos e universais a serem seguidos por países cuja vida artística possui uma história própria e frequentemente distinta das apontadas como exemplares.

34 No caso brasileiro, esse último aspecto é decisivo. Segundo a historiadora da arte Annateresa Fabris, ainda que as obras dos modernistas não possam ser consideradas modernas de acordo com os prismas defendidos pelo paradigma greenbergniano, de um outro ponto de vista, elas o foram, na medida em que produziram uma consciência estética e cultural nova e radical para os meios locais (FABRIS, 1994b). Assim, é possível pensar que tenha havido no Brasil uma vanguarda antes do modernismo ou, ainda melhor, um modernismo que se afirmou não pelas potencialidades das linguagens artísticas em vias de autonomização, mas pelas estratégias de intervenção coletivas e pela relação com o público que visava provocar. Como afirma: “Paradoxal vanguarda a nossa, dividida entre passado e presente, ainda incerta sobre o significado da arte moderna, polêmica em relação a algumas de suas propostas mais extremistas, mas assim mesmo consciente da necessidade de uma ação violenta se quisessem imprimir novos ritmos à criação cultural no Brasil” (FABRIS, 1994a, p. 24-25).

35 Além das divergências no que tange a própria definição do modernismo e a conciliação da experiência histórica particular do caso brasileiro com conceitos que se pretendem universais, outras tensões marcam hoje o debate historiográfico. Dentre elas, a questão geopolítica que perpassa as narrativas modernistas. Trata-se de questionar a crença amplamente disseminada de que o modernismo brasileiro é um produto originalmente paulista que teria se propagado para todo o Brasil a partir desse epicentro. Alguns estudos publicados nos últimos anos insistem na importância das artes gráficas e de algumas obras plásticas realizadas no Rio de Janeiro na virada do século XIX para o século XX no que tange à formação de uma nova visualidade compassada com as transformações urbanas em vigor na capital da Primeira República – concepção que teria antecedido a consciência moderna urbana reivindicada pelos defensores da “Semana de 22” (VELLOSO, 1996; HERKENHOFF, 2002). Outros estudos apontam o quanto as narrativas tendem a desconhecer e a desvalorizar a dinâmica própria de produção e circulação de obras em vigor em outras capitais regionais (BULHÕES, 1995; TEJO, 2012).

36 É preciso ainda mencionar os muitos trabalhos acadêmicos que têm proposto uma reinterpretação das críticas disparadas pelos modernistas de São Paulo contra as práticas acadêmicas (COLI, 2005; MIGLIACCIO, 2000; MARQUES, 2001; CHIARELLI, 2010; DAZZI, 2011). As pesquisas atuais sobre a produção realizada ao longo do século XIX e no início do século XX no Brasil demonstram ser incorreta a tese de que a academia teria permanecido avessa às intensas transformações políticas e sociais ocorridas após a proclamação da República, em 1889. Tais análises têm ampliado consideravelmente a

Perspective, 2 | 2013 58

compreensão do significado histórico do termo “moderno” no Brasil, contestando o monopólio reivindicado pelos estudos canônicos sobre modernismo realizado nas décadas de 1970 e 1980.

37 Tais contendas em relação às origens, às datas, aos locais e aos sentidos do que é ou não é moderno no Brasil trazem à tona a vitalidade e centralidade desse tema para a arte e a cultura do país. Mais do que resolver tais impasses, parece-nos melhor mencionar Pierre Bourdieu, que caracteriza a arte moderna justamente como uma luta permanente entre os membros do campo artístico pelo direito de impor sua própria definição do que é arte e de quem é artista (BOURDIEU, [1992] 1996, p. 255-281). O conceito de modernismo não implica assim um estilo único, facilmente identificável por meio de características formais ou históricas precisas, com origens e mestres inquestionáveis. Antes, trata-se de um termo em disputa cujos sentidos específicos são reivindicados por cada um dos grupos, artistas, críticos e historiadores inseridos nesse universo concorrencial – todos eles investidos de confiança em suas próprias crenças, de paixão pelo que fazem e de incertezas quanto às vitórias futuras.

– WILLIAMS, 2001: Daryle Williams, Culture Wars in Brazil: The First Vargas Regime, 1930-1945, Durham (VA), 2001.

BIBLIOGRAFIA

– ALMEIDA, (1961) 1976: Paulo Mendes de Almeida, De Anita ao museu, São Paulo, (1961) 1976.

– AMARAL, 1970: Aracy Amaral, Artes plásticas na Semana de 22, São Paulo, 1970.

– AMARAL, (1975) 2003: Aracy Amaral, Tarsila, sua obra e seu tempo, São Paulo, (1975) 2003.

– AMARAL, 1998: Aracy Amaral, Artes plásticas na Semana de 22, São Paulo, 1998.

– ANDRADE, BANDEIRA, 1958: Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, Rio de Janeiro, 1958.

– BANDEIRA, 1957: Manuel Bandeira, Itinerário de Pasárgada: de poetas e de poesia, Rio de Janeiro, 1957.

– BARBOSA, 1954: Francisco de Assis Barbosa, Testamento de Mário de Andrade e outras reportagens, Brasília, 1954.

– BATISTA, 1972: Marta Rossetti Batista, Brasil: I tempo Modernista, 1917-1929, São Paulo, 1972.

– BATISTA, (1985) 2006: Marta Rossetti Batista, Anita Malfatti: no tempo e no espaço, São Paulo, (1985) 2006.

– BATISTA, LIMA, 1998: Marta Rossetti Batista, Yone Soares de Lima, Coleção Mário de Andrade: Artes plásticas, São Paulo, 1998.

– BATISTA, 2012: Marta Rossetti Batista, Os artistas brasileiros na Escola de Paris: anos 1920, São Paulo, 2012.

– BOURDIEU, (1992) 1996: Pierre Bourdieu, As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário, São Paulo, 1996 [ed. fr.: Les Règles de l’art : genèse et structure du champ littéraire, Paris, 1992].

Perspective, 2 | 2013 59

– BRITO, (1958) 1974: Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro, 1, Antecedentes: a Semana de Arte Moderna, São Paulo, (1958) 1974.

– BRITO, 1983: Ronaldo Brito, “A semana de 22: o trauma do moderno”, in Sérgio Tolipan et al., Sete ensaios sobre o modernismo, Rio de Janeiro, 1983, p. 13-18.

– BRITO, 1985: Ronaldo Brito, Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro, Rio de Janeiro, 1985.

– BRITO, (1975) 2005: Ronaldo Brito, “Análise do circuito”, in Ronaldo Brito, Experiência crítica, Sueli de Lima E., São Paulo, 2005, p. 53-63 [ed. orig. in Malasartes, 1, 1975].

– BUENO, 2012: Maria Lucia Bueno, “Arte e mercado no Brasil em meados do século XX”, in Maria Lucia Bueno, Sociologia das Artes Visuais no Brasil, São Paulo, 2012, p. 75-95.

– BULHÕES, 1995: Maria Amélia Bulhões E., Artes plásticas no Rio Grande do Sul: pesquisas recentes, Porto Alegre, 1995.

– CAVALCANTI, 2006: Lauro Cavalcanti, Moderno e brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-60), Rio de Janeiro, 2006.

– CHIARELLI, 1995: Tadeu Chiarelli, Um jeca nos vernissages: Monteiro Lobato e o desejo de uma arte nacional no Brasil, São Paulo, 1995.

– CHIARELLI, 2010: Tadeu Chiarelli, “De Anita à academia”, in Novos Estudos, 88, 2010, p. 113-132.

– CHIARELLI, 2012: Tadeu Chiarelli, Um modernismo que veio depois: arte no Brasil, primeira metade do século XX, São Paulo, 2012.

– COELHO, 2012: Frederico Coelho, A semana sem fim: celebrações e memória da Semana de Arte Moderna de 1922, Rio de Janeiro, 2012.

– COLI, 2005: Jorge Coli, Como estudar a arte brasileira do século XIX?, São Paulo, 2005.

– COUTO, 2004: Maria de Fatima Morethy Couto, Por uma vanguarda nacional: a crítica brasileira em busca de uma identidade artística (1940-1960), São Paulo, 2004.

– COUTO, 2012: Maria de Fatima Morethy Couto, “Arte engajada e transformação social: Hélio Oiticica e a exposição Nova Objetividade Brasileira”, in Estudos Históricos, 25/49, janeiro-junho de 2012, p. 71-87.

– CYPRIANO, 2012: Fabio Cypriano, : O Banco de dados do Itaú Cultural: sobre o passado e o futuro”, in Observatório Itaú Cultural, 13, 2013, disponível em: http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp- content/uploads/2013/01/Revista-Observat%C3%B3rio-IC-n.13.pdf (Acesso em: 28 novembro 2013).

– DAZZI, 2011: Camila Dazzi, “Pôr em prática a Reforma da antiga Academia”: a concepção e a implementação da reforma que instituiu a Escola Nacional de Belas Artes em 1890, tese, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011.

– DI CAVALCANTI, (1955) 1995: Emiliano Di Cavalcanti, Viagem da minha vida (memórias), Rio de Janeiro, (1955) 1995.

– DURAND, (1989) 2009: José Carlos Durand, Arte, privilégio e distinção: artes plásticas, arquitetura e classe dirigente no Brasil, 1855/1985, São Paulo, (1989) 2009.

– FABRIS, 1990: Annateresa Fabris, Portinari, pintor social, São Paulo, 1990.

– FABRIS, 1994a: Annateresa Fabris, O futurismo paulista: hipóteses para o estudo da chegada da vanguarda ao Brasil, São Paulo, 1994.

Perspective, 2 | 2013 60

– FABRIS, 1994b: Annateresa Fabris, Modernidade e modernismo no Brasil, Campinas, 1994.

– FABRIS, 1996: Annateresa Fabris, Candido Portinari, São Paulo, 1996.

– FIALHO, 2012: Ana Letícia Fialho, “‘Economias’ das exposições de arte contemporânea no Brasil: notas de uma pesquisa”, in Lia Calabre E., Políticas culturais: pesquisa e formação, São Paulo/Rio de Janeiro, 2012.

– FONSECA, 1997: Maria Cecília Londres Fonseca, O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil, Rio de Janeiro, 1997.

– GIUNTA, 2011: Andrea Giunta, Escribir las imágenes: ensayos sobre arte argentino y latinoamericano, Buenos Aires, 2011.

– HERKENHOFF, 2002: Paulo Herkenhoff, Arte brasileira na coleção Fadel: da inquietação do moderno à autonomia da linguagem, Rio de Janeiro, 2002.

– MARQUES, 2001: Luiz Marques, 30 Mestres da Pintura no Brasil: 30 anos Credicard, São Paulo, 2001.

– MARTINS, 2002: Carlos Ferreira Martins, “Construir uma arquitetura, construir um país”, in Brasil: da Antropofagia à Brasília, 1920-1950, Jorge Schwartz E., (cat. expo., São Paulo, Museu de Arte Brasileira, 2002-2003), São Paulo, 2002, p. 373-384.

– MICELI, 2003: Sergio Miceli, Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico em São Paulo, São Paulo, 2003.

– MICELI, (2001) 2005: Sergio Miceli, Intelectuais à brasileira, São Paulo, (2001) 2005.

– MIGLIACCIO, 2000: Luciano Migliaccio, “O século XIX”, in Mostra do Redescobrimento: arte do Século XIX, Nelson Aguilar E., (cat. expo., São Paulo, Parque Ibirapuera, 2000), São Paulo, 2000, p. 36-217.

– MORAES, 2000: Marco Antonio Moraes E., Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, São Paulo, 2000.

– MORAES, 2011: Rubens Borba de Moraes, Testemunha ocular (recordações), Brasília, 2011.

– NAPOLITANO, 2011: Marcos Napolitano, Coração Civil: arte, resistência e lutas culturais durante o regime militar brasileiro (1964-1980), tese, Universidade de São Paulo, 2011.

– NAVES, 1996: Rodrigo Naves, A forma difícil: ensaios sobre a arte brasileira, São Paulo, 1996.

– ORTIZ, 1988: Renato Ortiz, A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural, São Paulo, 1988.

– PASSIANI, 2003: Enio Passiani, Nas trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no brasil, São Paulo, 2003.

– PONTES, 1998: Heloisa Pontes, Destinos mistos: os críticos do grupo Clima em São Paulo, 1940-68, São Paulo, 1998.

– RIDENTI, 2000: Marcelo Ridenti, Em busca do povo brasileiro: artistas de Revolução, do CPC à Era da TV, Rio de Janeiro/São Paulo, 2000.

– RUBINO, 1992: Silvana Rubino, As fachadas da história, dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 1992.

– SARLO, 1988: Beatriz Sarlo, Una modernidad periférica. Buenos Aires 1920 y 1930, Buenos Aires, 1988.

– SCHWARTZMAN, 1984: Simon Schwartzman et al., Tempos de Capanema, São Paulo/Rio de Janeiro, 1984.

Perspective, 2 | 2013 61

– SCHWARCZ, 1995: Lília Schwarcz, “Complexo de Zé Carioca. Notas sobre uma identidade mestiça e malandra”, in Revista Brasileira de Ciências Sociais, 10/29, outubro 1995, p. 6-29.

– SOUZA, (1953) 2000: Antonio Candido de Mello e Souza, “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, in Literatura e sociedade, São Paulo, (1953) 2000.

– TEJO, 2012: Cristiana Tejo et al., Uma historia da arte?, Recife, 2012.

– VELLOSO, 1996: Mônica Pimenta Velloso, Modernismo no Rio de Janeiro: Turunas e Quixotes, Rio de Janeiro, 1996.

NOTAS

1. O Brasil é um país complexo, composto por estados com relativa autonomía. No entanto, os principais recursos estão concentrados nas regiões Sudeste e Sul; nesse sentido, sublinha-se a concentração do mercado da arte em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, as quais tendem a competir pelo título de “capital artística e intelectual” do país, a despeito da importância da produção crítica e historiográfica de outros estados. Sobre o campo artístico brasileiro, os museus e as políticas públicas, cf. FIALHO, 2012; sobre a concentração de exposições e curadores em São Paulo e no Rio de Janeiro, cf. CYPRIANO, 2012. 2. A ideia de usar a Semana de Deauville como modelo para a Semana de Arte Moderna de 1922 foi uma sugestão de Marinette Prado, esposa de Paulo Prado, um rico intelectual de São Paulo e também um dos mecenas da “Semana de 22”. De acordo com o seu depoimento a Aracy Amaral, a Semana de Deauville, que existia desde o século XIX, ocorria durante o verão e reunia exposições de arte, de moda, etc. (cf. AMARAL, 1998, p. 128-129). 3. Anita Malfatti estudou artes plásticas com Fritz Burger e Lovis Corinth em Berlim entre 1910 e 1914, quando retornou ao Brasil após o início da Primeira Guerra Mundial. No ano seguinte, sempre contando com o apoio e com a ajuda financeira de sua família, foi para Nova York dar sequência à sua formação. Estudou inicialmente na Art Students League e, em seguida, com Homer Bross, na Independent School of Art, onde ficou até o seu retorno definitivo ao Brasil, em 1917 (BATISTA, [1985] 2006). 4. Monteiro Lobato, “A Propósito da Exposição Malfatti”, in O Estado de S. Paulo, 20 de dezembro de 1917. 5. Vários dos primeiros artigos escritos pelos modernistas foram publicados nos livros de Marta R. Batista (BATISTA, 1972) e Mário da Silva Brito (BRITO, [1958] 1974). 6. O pau-brasil, uma espécie vegetal bastante comum no momento da chegada dos colonizadores portugueses ao Novo Mundo, deu nome ao país. O uso dessa expressão pelos modernistas brasileiros revela, assim, a importância que eles atribuíam às questões “nativas”. 7. A feijoada, prato tradicional consumido pelos escravos no Brasil, é composta de feijão e pedaços de carne de porco misturados com arroz (introduzido no século XIX por imigrantes japoneses) e couve (uma planta indígena). Durante o governo de Getúlio Vargas, ela foi considerada “o prato típico nacional”, pois permitia celebrar a noção de mestiçagem defendida pelo regime. 8. Pedra calcária branca utilizada em esculturas e obras arquitetônicas; também pode ser usada como material de revestimento. 9. O Conjunto da Pampulha, situado às margens de um lago artificial a 18 km de Belo Horizonte, era composto de quatro prédios: o Cassino (hoje transformado em museu de belas artes), a Casa de Bailes (onde hoje funciona um centro de estudos sobre urbanismo, arquitetura e design), o Iate Clube e a Igreja de São Francisco de Assis, totalmente decorada por Portinari. Esse foi o primeiro grande projeto de Oscar Niemeyer.

Perspective, 2 | 2013 62

10. Portinari of Brazil, (cat. expo., New York, The Museum of Modern Art, 1940), Nova York, 1940; Brazil Builds: Architecture New and Old, 1652-1942, Philip L. Goodwin E., (cat. expo., New York, The Museum of Modern Art, 1943), Nova York, 1943. 11. A primeira parte do artigo foi publicada inicialmente em 1953, em uma revista alemã intitulada Staden-Jahrbuch, e, em seguida, na primeira edição do livro de Candido de Mello e Souza, Literatura e sociedade: estudos de teoria et história literária, editado em 1965 em São Paulo (COELHO, 2012, p. 90). 12. Cf. o site de seus arquivos : www.casaguilhermedealmeida.org.br (Acesso em: 15 setembro 2013). 13. Sobre a importância Clement Greenberg para a crítica brasileira, cf. FABRIS, 1994a e também uma entrevista com o crítico de arte Rodrigo Naves: www.forumpermanente.org/rede/numero/ rev-numero7/entrevRodrigoNav (Acesso em: 15 setembro 2013).

AUTOR

ANA PAULA CAVALCANTI SIMIONI Doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo, é docente e pesquisadora no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, onde desenvolve investigações sobre arte e gênero no Brasil, práticas e produções modernistas brasileiras e arte e cultura na Primeira República brasileira (1889-1930).

Perspective, 2 | 2013 63

Existe uma arte brasileira?

Luiz Marques, Claudia Mattos, Mônica Zielinsky e Roberto Conduru

NOTA DO EDITOR

Cet article existe en traduction française : Existe-t-il un art brésilien ?

Luiz Marques | Debilidade e aporias da historiografia artística brasileira

Introdução

1 Propor um panorama geral sobre a relação entre as artes figurativas no Brasil e os esforços de reflexão histórica que elas suscitam no país (e, mais raramente, no exterior) é um grande desafio. Em primeiro lugar, essa historiografia não foi até hoje objeto de um estudo completo ou de reflexões gerais. Ao nos aventurarmos nessa área, percebemos que o terreno e a paisagem não estão bem definidos. Não houve no Brasil historiadores da arte que estruturaram o cenário intelectual e definiram as suas linhas de força, como, por exemplo, Henri Focillon, na França, Roberto Longhi, na Itália, Julius von Schlosser, na Áustria, Erwin Panofsky e Edgar Wind, na Alemanha, Roger Fry, na Inglaterra, etc. Naturalmente, existem alguns nomes de referência, mas se trata em geral de escritores, ensaístas e jornalistas que eventualmente se dedicaram – para o bem ou para o mal – à história da arte. Além disso, até os anos 1980, a história da arte entendida como conhecimento metódico e como disciplina universitária associada a diplomas de graduação, mestrado e doutorado simplesmente não existia no Brasil. Ainda hoje, aliás, os cursos de história da arte são bem pouco numerosos.

2 Um segundo motivo a explicar a dificuldade de propor uma visão geral da historiografia artística brasileira associa-se ao fato de que os estudos sobre a arte no Brasil concentravam-se basicamente, até há pouco, em dois períodos históricos e em duas regiões do país: o barroco mineiro, com incursões isoladas no Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Paraíba (entenda-se por “barroco” a arte praticada durante o período

Perspective, 2 | 2013 64

colonial, grosso modo, entre o início do século XVIII e o início do século XIX) e o modernismo, termo utilizado aqui para designar a arte impregnada de nacionalismo produzida a partir da segunda década do século XX principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro e, um pouco mais tarde, em Minas Gerais. Por esse motivo, momentos importantes da história das artes no Brasil – principalmente da arte produzida no século XIX – permaneceram quase esquecidos até os anos 1990. Enfim, e sobretudo, se a historiografia artística brasileira apresentou lacunas e careceu até os anos 1980 de rigor universitário, foi também porque as artes figurativas produzidas no Brasil não mereceram, e em minha opinião com razão, a mesma atenção que outras artes, como a literatura e a música, cuja densidade atraiu a atenção mais metódica dos historiadores.

3 Essa terceira razão advém de um juízo de valor que deve ser explicitado e assumido. A esse respeito, duas precisões impõem-se. Primeiramente, como o foco do meu trabalho não é a história da arquitetura, nem a das artes decorativas ou a da chamada “arte contemporânea”, limitarei minhas análises ao campo de estudos das artes figurativas stricto sensu. Em segundo lugar, é provável que a maioria dos colegas brasileiros provavelmente não compartilhe esse ponto de vista. É compreensível que quem quer que se dedique à história das artes figurativas no Brasil tenda a valorizar seu objeto de estudo e a lhe atribuir uma importância histórica e estética maior. Com exceção de casos específicos (Aleijadinho, algumas obras de Amoedo, Di desenhista nos anos ‘20, Portinari retratista, Goeldi...), a história da arte figurativa no Brasil, e especialmente a pintura, não parece, em meu entender, exibir uma relevância segura fora do âmbito da história local.

Debilidade histórica das artes figurativas

4 A debilidade da tradição figurativa e especialmente pictórica no Brasil é constitutiva. Sua matriz é lusitana. Tal como em Portugal, também na colônia a arte da figura no espaço sofre se comparada com outras artes, tais como a arquitetura, as artes decorativas, a literatura e a música. As oficinas mais exímias na arte da mobília e na de cinzelar e modelar o metal deixaram, tanto na metrópole quanto na colônia, monumentos dignos de figurar no mais seleto patrimônio artístico universal. Não há, contudo, nenhum pintor ou escultor português dos séculos XVI e XVII que figure, em qualquer sentido, ao lado de Camões ou de Antônio Vieira. Tampouco algum pintor da colônia equipara-se a Gregório de Matos, a poetas árcades luso-brasileiros, como Tomas Antônio Gonzaga (1744-1810) ou, de novo, a Antônio Vieira (por sua biografia e pelos destinatários de muitos de seus Sermões, Vieira é luso-brasileiro). Este déficit luso- brasileiro da representação da figura e do espaço figurativo em relação às demais artes prolonga-se nos séculos XIX e XX. Quem é o pintor, em Portugal ou no Brasil, que possa ser lembrado (com a única exceção, talvez, de Domingos Sequeira em seus melhores momentos) quando se evocam nomes como os de Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Machado de Assis, Fernando Pessoa e Guimarães Rosa?1

5 Não esqueço aqui o conjunto admirável de esculturas que se atribui a Aleijadinho, mas este é, antes de mais nada, um arquiteto-escultor, educado que foi por seu pai, um arquiteto português. Como escultor monumental, ele se ergue (com perdão do clichê) como uma torre isolada numa cultura coral do entalhe cujo desenvolvimento histórico foi drasticamente limitado pelos seguintes fatores:

Perspective, 2 | 2013 65

essa escultura restringe-se à arte sacra e, com exceção de Aleijadinho, não é jamais monumental, em pedra ou mármore, e destinada a um espaço público; longe de criar um mundo de fábula, como ocorre, por exemplo, no Presépio napolitano ou nas figurinhas de feira do Nordeste do Brasil, seu repertório iconográfico é pobre: o Cristo, a Sagrada Família, a Virgem em suas infinitas declinações, a Educação da Virgem, anjos, arcanjos, anjinhos e santos, não raro anônimos, dada a exiguidade de seus atributos; com exceção novamente de Aleijadinho e de alguns raros casos, há nessa escultura pouco interesse pelo universo da expressão fisionômica; a exuberância “barroca” dos drapeados compensaria a ausência do nu se o jogo dos panos não fosse, na média, de um convencionalismo “industrial”. Não são raras, contudo, as exceções de bela musicalidade nas linhas, massas e ritmos dos panos; enfim, trata-se de uma escultura sem grandes contrastes de poética, malgrado os esforços dos estudiosos e do mercado de arte brasileiros para criar “personalidades” e genealogias, agrupadas em imaginosas “escolas”. Sem ser um estudioso dessa escultura, penso que alguns “não-Aleijadinhos” de alta qualidade artística que se encontram em museus e coleções privadas brasileiros são obras ibéricas (na tradição, por exemplo, de Frei Cipriano da Cruz Souza) ou boêmias (na tradição, por exemplo, de Ferdinand Maximilien Brokof), transplantadas para o Brasil em tempos diversos.

6 Na pintura colonial, esse déficit em relação à literatura e à música acusa-se de modo mais cruel. Sendo o espaço pictórico em perspectiva um construto muito intelectualizado, para cujo exercício é imprescindível um longo treino acadêmico, não surpreende a ausência de um Aleijadinho pintor. A pintura na colônia portuguesa manteve-se assim, sem exceção, num nível elementar e muito aquém não apenas, como dito, da proficiência das demais artes na colônia portuguesa, mas também da pintura das colônias hispano-americanas, como o comprovou mais uma vez a exposição proposta por Jonathan Brown em 2010-2011 em Madrid, intitulada, justamente, Pintura de los reinos. Identidades compartidas em el mundo hispânico, onde se percebe que não há praticamente fratura estética e sociológica entre a arte espanhola e a arte de suas colônias. Não se desenvolveu no Brasil dos séculos XVI ao XVIII uma estatuária monumental e uma pintura de um nível elevado por simples inexistência de demanda. A estatuária monumental pública pressupõe a necessidade de legitimação simbólica do poder político, necessidade inexistente na colônia portuguesa. O mesmo pode-se dizer da retratística e da grande decoração pictórica. Contrariamente à Nueva España no México e no Peru, ao Virreinato de Nueva Granada na Colômbia, à Nouvelle- na Louisiane de Luís XIV e à New England do Nordeste dos Estados Unidos, o Brasil colônia, em sua esmagadora maioria composto de escravos e de mulatos bastardos como Aleijadinho, nunca foi e nunca se concebeu como um “Novo Portugal”2.

7 No Brasil colônia, tudo o que a pintura pode oferecer aos historiadores são relíquias venerandas de uma prática artística que apenas excepcionalmente (Mestre Ataíde, talvez, se o afeto prevalecer sobre o juízo) elevou-se acima de um tosco artesanato serial. Nessas circunstâncias históricas, não se pode esperar dessa pintura que se mova no alto repertório, que seja culta em invenção, que saiba representar o espaço em perspectiva, o corpo nu segundo cânones clássicos ou outros, a complexidade dramática da narrativa visual e o calibrado comércio entre forma e expressão. Mas se poderia esperar que, tal como a arte popular afro-brasileira, indígena, “cabocla”, etc, ela

Perspective, 2 | 2013 66

soubesse exprimir, com seus próprios meios, uma própria complexidade, algo de singularmente belo, ao invés de uma incontornável inépcia.

8 Naturalmente, como nossos tempos são os da global art e da caça ao eurocentrismo, muitos são os que acreditam que há uma própria inteligência na mera desinteligência dos códigos culturais do cristianismo e da cultura clássica. E engenham-se em descobri- la. São esforços generosos e, por vezes, brilhantes, mas temo que os resultados se devam mais à inteligência do historiador que à do fenômeno estudado.

Debilidade histórica da historiografia artística

9 Apenas a partir de meados do século XIX pode-se falar da existência de uma historiografia artística no Brasil. Em 1858, Rodrigo Ferreira Bretas escreveu uma biografia de Aleijadinho, na realidade, a única biografia artística do século. No mais, crônicas dos prêmios, das exposições e dos percalços da Academia Imperial, publicadas numa imprensa diversa e abundante, mas não raro efêmera, resumem a historiografia artística do século XIX na capital do Império. Seus autores conhecidos são em número de quatro: Félix-Émile Taunay, Manuel de Araújo Porto Alegre, Gonzaga Duque e Angelo Agostini, número irrisório, se comparado com a historiografia artística e a crítica de arte no México no mesmo período3. É claro que não há historiografia artística onde não há o que a suscite: uma classe média letrada e uma classe dominante visualmente educada, que reconheça no colecionismo uma estratégia de emulação e de afirmação cultural4. Mas esse raquitismo historiográfico deve-se também à acima discutida debilidade constitutiva da cultura figurativa brasileira. Pois as deficiências sociológicas acima apontadas não impediram enfrentamentos jornalísticos de bela têmpera retórica, como o que opõe Joaquim Nabuco (1849-1910) a José de Alencar (1829-1877) em torno da questão da escravidão. Não impediram tampouco uma crítica jornalística e uma produção historiográfica no campo da literatura. Basta lembrar da História da Literatura Brasileira publicada em 1882 (e na 5ª edição de 1953 em cinco volumes) por Sílvio Romero. Nada de remotamente comparável pode-se afirmar de qualquer produção coeva da historiografia artística no Brasil.

A historiografia nacional-modernista

10 Nos outros países do Novo Mundo e nos países da Europa central, oriental, escandinava, balcânica e ibérica – periféricos em relação ao núcleo Itália, França, Países-Baixos e Inglaterra –, o modernismo e a historiografia do período prolongaram uma tradição romântica e nacionalista, de cunho oitocentista, que marcou seus materiais e seu ideário. De onde se poder designar o modernismo e a historiografia do período nesses países pelo termo nacional-modernista, algo substancialmente diverso do modernismo de matriz parisiense, isento de romantismo e pouco afeito à expressão de essências nacionais ou de psicologias profundas, ainda que à maneira de Worringer.

11 O Brasil não escapou ao típico. Mas há nele uma singularidade em relação aos demais nacional-modernismos. Diversamente dos países europeus “periféricos”, ricos de tradição histórica; diversamente também da América hispânica, lastreada nas civilizações pré-colombianas, no Brasil o nacional-modernismo carecia de “material histórico”: (1) não havia aqui quase nenhum registro documental e monumental de um passado multissecular; (2) dizimado, assimilado, refugiado em enclaves ou na selva

Perspective, 2 | 2013 67

amazônica, o índio era até meados do século XX uma abstração para o país urbano do litoral. Era ademais trademark do nativismo romântico do século XIX e fora tematicamente esgotado por José de Alencar, Carlos Gomes e por certos quadros de Pedro Américo e Amoedo. Em inícios do século XX, com exceção de algumas aquarelas parisienses de Vicente do Rego Monteiro, ele se reduzia ao trocadilho “Tupi or not Tupi” (1928) de Oswald de Andrade, excelente em tudo, e não menos por condensar o dilema hamletiano dos nacional-modernistas brasileiros; (3) enfim, a antiga cultura africana não fornecia um modelo viável num país visceralmente racista em relação aos negros, que tinha (e continua tendo) na escravidão o maior trauma de sua história e que buscava por todos os meios “embranquecer”.

12 Premido por esse vácuo de referência histórica, ao nacional-modernismo brasileiro restava o estratagema de inventá-la ex nihilo. A certidão de nascimento dessa operação inverossímil é o impacto no Brasil da atuação tentacular de Ricardo Severo (1869-1940), um arquiteto português exilado no Brasil, conservador em sua prática arquitetônica e particularmente refratário ao modernismo europeu5. Figura erudita e influente nos círculos da elite paulistana, A atuação de Ricardo Severo promoverá uma transição sem tropeços de seu ideal de “reaportuguesamento” de Portugal ao ideal de “abrasileirização” do Brasil6. Lá, essa operação era uma reação ao abismo de um Portugal sem Império. No Brasil, ao menos em São Paulo, ela será em parte uma reação das elites locais à “invasão” de imigrantes, sobretudo italianos, cujos padrões superiores de cultura (inclusive política) e proficiência profissional ameaçavam sua hegemonia ideológica. Essa reação parece-me um ingrediente tácito, mas mais importante do que se costuma admitir, da mentalidade das elites patrícias que patrocinarão “seus” artistas na Semana de ’22 e em outras jornadas. Da cruzada de Severo, o nacional-modernismo herdaria a ideia de que a Missão francesa de 1816 – ponto de partida de todo o esforço institucional de construção no Rio de Janeiro de uma cultura urbana moderna – havia desnaturado e recalcado as origens “barrocas” primordiais de nossa cultura.

13 Essa interpretação foi consagrada em 1955 por um intelectual de esquerda e crítico de arte sagaz das artes plásticas de seu tempo, Mário Pedrosa, que em sua Tese de 1955 afirmava: “os nobres davidianos vinham alterar o curso de nossa verdadeira tradição artística, que era barroca, via Lisboa”7. Em oposição a essa tese, tive mais de uma vez a oportunidade de lembrar que o barroco, fora de sua acepção estrita (isto é, a arte de Roma e de Nápoles nos anos 1620-1720 circa), presta-se particularmente mal a caracterizar o “temperamento de um povo” não-europeu, pois é uma arte europeia. E tanto mais europeia o é em Portugal, onde, longe de emanar de um não sei quê de profundamente português, ela adentra o país por meio de encomendas régias e de corte a artistas italianos tais como Agostino Cornacchini, Camilo Rusconi e dezenas de outros. Sobretudo sob D. João V, o barroco português é uma arte de estrita observância romana. Portanto, a Missão Francesa, não significa, como pensa Pedrosa, o recalque de “nossa verdadeira tradição artística, que era barroca, via Lisboa” por uma cultura francesa estranha a essa “tradição”. A Missão de 1816 é apenas o reflexo, no Brasil, da lenta passagem da hegemonia romana à hegemonia francesa nas Academias europeias, passagem que se inicia, se precisarmos de datas, com as encomendas vaticanas a Pierre Subleyras nos anos 1740 e se consuma com David.

14 Com raras exceções, que não podem ser consideradas neste espaço, a historiografia artística brasileira evolui até bem tarde no século XX no âmbito desse esquema triádico:

Perspective, 2 | 2013 68

(1) Barroco (origem); (2) Missão Francesa e seus desdobramentos (desvio); (3) Modernismo a partir das paisagens de (reencontro). Não se atina então para o fato que a busca da “identidade” como programa é uma tautologia, pois não se pode desejar ser o que, inevitavelmente, já se é. De onde duas aporias: (1) reivindicar uma “identidade” é ipso facto a confissão de sua impossibilidade, já que tal reivindicação remete a um circuito fechado, um efeito de espelhos contrapostos, de strange loops autoreferenciais; (2) reivindicá-la é também uma contradição nos termos, já que supõe mimetizar o modelo europeu (já dotado de identidade). Essas aporias ganharam tanto maior pregnância e longevidade por emanarem da figura central do nacional- modernismo, Mario de Andrade, em cujo ensaio de 1928 sobre Aleijadinho a “mulatice muita” do escultor adquire valor de DNA da arte “brasileira”.

A sabedoria de Angelo Agostini

15 Felizmente, a atual geração de historiadores da arte no Brasil interessa-se cada vez menos por esse gênero de retórica e por essa herança ideológica ao estudar a arte que se conserva no país e, sobretudo, aventura-se cada vez mais pela arte internacional. Percebe que na arte produzida no Brasil o adjetivo “brasileiro” não é uma categoria crítica, isto é, não aporta nada à sua inteligibilidade; percebe que essa inteligibilidade não emana de uma fantasmática instância autóctone, mas da rede de relações e condicionantes internacionais de que o Brasil e a arte que aqui se fez são o resultado. Pode hoje, enfim, entender a ironia de Angelo Agostini (1843-1910) em sua sátira do Salão de 1879 da Academia Imperial de Belas Artes, no qual se inaugurava candidamente uma sala intitulada “Escola Brasileira”8:

16 “Salão de 1879. Deixem-me aproveitar o fechamento da exposição, para fallar um pouco sizudamente (hum! hum!) sobre as pretensões do catálogo em que deparamos com o seguinte: ‘Quadros, etc. etc. formando a ESCOLA BRASILEIRA’. (...) Mas tem graça a escola brasileira... A nossa Academia ouviu certamente falar em escola flamenga, italiana, e pensou ainda mais naturalmente que todo quadro pintado na Itália pertence à escola Italiana (...), assim como os quadros pintados no Brasil formam a escola brasileira. Isso é que é resolver a questão do nó górdio sem olhar nem à direita, nem à esquerda, como Alexandre. Mas eu, por mais que pense, que reflita, que estude os quadros da Pinacoteca, sempre que me falam em escola brasileira, lembro-me logo da escola da Glória, e fujo antes que caia em cima uma conferência”.

17 Agostini exprime seu receio de que o tema da “Escola Brasileira” de pintura viesse a se tornar um entediante tema de preleção numa das Conferências da Glória que, desde 1873, tinham por objetivo a divulgação de temas científicos, filosóficos e literários9. Profético temor de incorrer na sorte de Sísifo de que só recentemente, enfim, nos liberamos.

Claudia Mattos | Novos horizontes para a História da Arte no Brasil

18 A história da arte como campo específico do saber no Brasil constituiu-se em primeiro lugar como herdeira direta da tradição historiográfica modernista. Como observa Luiz Marques, ela se concentrou nos três temas viscerais dessa historiografia: a arte barroca, com foco principal no barroco mineiro e na figura de Aleijadinho; a arte dita

Perspective, 2 | 2013 69

“acadêmica”, centrada principalmente na análise da produção da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro; e, principalmente, o próprio modernismo. Esse último tornou-se de fato o campo articulador dos discursos hegemônicos sobre a história da arte no Brasil, ao menos até a década de 1980. A busca por uma identidade artística própria e a ideia de construção de uma arte de caráter especificamente nacional, características típicas do modernismo, repercutiram no campo da história da arte como um desejo de se concentrar na produção artística nacional e na tradição historiográfica local para construir uma história da arte essencialmente brasileira. É por esse motivo que as artes da Europa, incluindo as importantes coleções existentes no Brasil, como as do Museu de Arte de São Paulo ou do Museu Nacional de Belas Artes, permaneceram pouco estudadas durante um bom tempo, assim como todo o âmbito das artes de tradição não-europeia, como a arte africana, pré-colombiana, asiática, islâmica, entre outras. Devido a essa restrição histórica do campo aos temas mencionados, as significativas produções artísticas afro-brasileiras e ameríndias também foram esquecidas e, em larga medida, ainda são ignoradas por historiadores da arte no país, que constroem assim uma história da arte identificada com a história dos conquistadores europeus.

19 A falta de instituições capazes de oferecer uma formação específica na área de história da arte assim como a escassez de traduções de textos clássicos e recentes centrais à disciplina também dificultaram, por muito tempo, uma abordagem teoricamente complexa e atualizada do material estudado. Na verdade, durante várias décadas, o Brasil contou apenas com o curso de história da arte oferecido pelo Instituto de Belas Artes do Rio de Janeiro, inaugurado em 1961 e transferido para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 1978. O primeiro curso de graduação em história da arte foi aberto em 2009 na Universidade Federal de São Paulo. No mesmo período, outros cursos similares foram criados em outras universidades. A partir dos anos 1990 acelerou-se o processo de tradução para o português de textos clássicos e mais recentes, fundamentais à formação de historiadores da arte. Foram então publicadas obras de autores como Erwin Panofsky, Giulio Carlo Argan, Michael Baxandall, Svetlana Alpers, Louis Marin, assim como de Hans Belting, Georges Didi-Hubermann, etc. Nesse contexto, também merece destaque o trabalho de tradução desenvolvido por algumas revistas acadêmicas, como Concinnitas, publicada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ou a Revista de História da Arte e Arqueologia da Universidade Estadual de Campinas, entre outras.

20 Com algumas raras exceções, a produção na área de história da arte no Brasil reduzia-se assim, até recentemente, a narrativas sobre trajetórias de artistas, com pouca ênfase na análise das obras. Raros trabalhos abordavam temas de relevância, como a história do colecionismo, as questões de patrimônio ou os aspectos da historia material da obra. Reflexões sobre o estatuto do objeto de arte ou sobre as teorias da imagem, por exemplo, estiveram igualmente em grande parte ausentes. Uma história da arte fundamentalmente documental – principalmente no caso da literatura sobre século XIX – e cronista, muitas vezes marcada pela falta de distanciamento teórico e crítico em relação ao objeto de estudo, configurava o tom predominante nesse campo até o fim da década de 1980.

21 Era frequentemente fora do âmbito específico da história da arte que se podiam encontrar interpretações mais vivas e ousadas sobre produção artística local, como nas reflexões dos próprios artistas, ou em campos afins, como a antropologia, a sociologia

Perspective, 2 | 2013 70

ou a filosofia. Nos anos 1970, em paralelo ao desenvolvimento da história da arte, figuras como Vilém Flusser e Haroldo de Campos tiveram importância central no desenvolvimento de uma reflexão teórica sobre arte no Brasil. Esses e outros autores estão na raiz de uma tradição semiótica da teoria da arte no Brasil que inclui intelectuais como Arlindo Machado e Lúcia Santaella – ambos ligados ao programa de pós-graduação em semiótica da Universidade Católica de São Paulo. Também no contexto intelectual paulista, podemos citar o trabalho da psicanalista e crítica de arte Suely Rolnik, que contribuiu para a difusão no Brasil das teorias de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Além disso, desde os anos 1970, o campo da crítica de arte trouxe contribuições fundamentais às reflexões sobre arte, especialmente por meio da figura de Ronaldo Brito10. Nomes como Paulo Herkenhoff e Moacir dos Anjos, no campo da curadoria, e Sergio Miceli (responsável pela publicação em português de obras de Pierre Bourdieu pela editora da Universidade de São Paulo nos anos 1990), no da sociologia da arte, também ajudaram a enriquecer o debate artístico. Enfim, mais recentemente, o historiador e arqueólogo Ulpiano Bezerra de Meneses contribuiu de forma significativa para o desenvolvimento teórico da disciplina ao introduzir importantes discussões sobre teoria da imagem e dos estudos visuais no Brasil11.

22 Até o final dos anos 1980, a dificuldade de circulação dos historiadores da arte brasileiros no exterior e uma falta de interesse da comunidade internacional pelo caso específico da América Latina e, em especial, do Brasil agravaram ainda mais a situação, produzindo um quadro de relativo isolamento do Brasil diante do contexto global. Vale ressaltar, no entanto, que a história da arte contemporânea era então uma exceção no país. Alimentados pelo vivo debate com os artistas, historiadores da arte como Ronaldo Brito, no Rio de Janeiro, ou Walter Zanini, em São Paulo, produziram uma historiografia artística de relevância. Do ponto de vista da articulação institucional do campo, é importante citar ainda a presença do Comité Brasileiro de História da Arte, fundado em 1972 e filiado ao Comité Internacional de História da Arte, como tênue canal de comunicação com a comunidade internacional e como espaço de encontro e articulação profissional dos historiadores da arte no país.

23 A situação geral da história da arte no Brasil começou a mudar rapidamente a partir da década de 1980, quando foram abertos diversos cursos de pós-graduação na área e muitos profissionais buscaram qualificar-se fora do país, ainda que esse fenômeno infelizmente tenha permanecido demasiadamente restrito às regiões Sudeste e Sul. Aos poucos, uma nova geração com experiência e contatos internacionais passou a atuar no Brasil, expandindo as fronteiras temáticas e entendendo o campo da história da arte em sintonia com os rumos internacionais da disciplina. Essa mudança coincidiu com o desenvolvimento de uma atitude crítica em relação aos caminhos da própria história da arte no mundo, o que incluiu uma abertura para a incorporação de novos objetos no horizonte dos estudiosos, assim como uma revisão dos princípios teórico- metodológicos que fundamentavam o conhecimento do historiador da arte até então. A retomada de Aby Warbug e Alois Riegl, por exemplo, como modelos para uma história da arte crítica ajudou a reduzir as distâncias entre “alta” e “baixa” arte, expandiu o campo de expertise do historiador da arte para o contexto mais amplo da cultura visual e ofereceu uma referência mais dinâmica em relação à questão da circulação da cultura material (e imaterial) através do globo, desconstruindo assim uma história da arte ainda marcada pelo conceito de escolas locais. O lugar da fala dos protagonistas de uma

Perspective, 2 | 2013 71

história da arte tradicional também começou a ser revisto por meio de abordagens pós- coloniais.

24 Ao observar o novo quadro que se configurou para a história da arte no Brasil a partir dos anos 1980 e 1990, notamos mudanças significativas, tanto no que diz respeito aos objetos e temas abordados, quanto à qualidade da reflexão teórico-metodológica. Do ponto de vista da abrangência temática, podemos dizer que, aos poucos, os limites impostos historicamente à disciplina foram sendo transpassados. Os trabalhos sobre a produção do século XIX, por exemplo, – como os desenvolvidos por Jorge Coli, Alexandre Eulálio, Luciano Migliaccio, Rafael Cardoso, Ana Paula Simioni Cavalcanti, Maraliz Christo12, entre outros – mostraram uma tendência salutar a não mais se restringir à criação dos gêneros tradicionais da pintura e escultura reconhecidos pela academia, e de sua relação com a tradição europeia, mas ao contrário, a procurar entender a produção do século XIX sob uma ótica mais dinâmica, ressaltando a importância da fotografia, da imprensa ilustrada, da participação de artistas acadêmicos em expedições científicas, ou mesmo de seus envolvimentos diretos com outras instituições relevantes, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Com isso ressaltou-se, por exemplo, a importância da fotografia para a representação do Estado durante o Segundo Império. O foco em questões de gênero e as tentativas de compreender a vasta produção afro- brasileira em relação ao campo da arte acrescentaram riqueza e complexidade aos estudos realizados entre as décadas de 1980 e 1990. O mesmo pode ser dito com relação ao barroco. Da historiográfica tradicional, centrada no caso mineiro e em figuras excepcionais, como Aleijadinho e Ataíde, passou-se a uma abordagem muito mais dinâmica, focada na circulação da cultura material, não só no Brasil, mas no âmbito global do império português. Tentativas de compreender o sentido e a função dos diversos programas religiosos e o seu caráter performático, em um ambiente marcado pelo encontro de diversas tradições visuais e por contextos políticos específicos, diluíram os discursos essencialistas e nacionalistas, preocupados como o “autêntico” e o “original” na cultura barroca local13. Estudos importantes sobre o período colonial em diversas regiões do país, como Belém do Pará e capitais do Nordeste, ajudaram a construir um novo quadro para os estudos sobre o período colonial no Brasil14. Por último, uma revisão sistemática da noção do modernismo como “marco zero” da arte contemporânea no país, assim como uma tentativa de compreender suas manifestações em associação com as vanguardas latino-americanas e através do mundo, ajudou a situar o modernismo em um contexto internacional e a posicioná-lo de forma mais adequada no processo de desenvolvimento das artes no país15. Mais recentemente, em grande parte devido ao desenvolvimento de programas de graduação e pós-graduação em história da arte que incluem arte não-europeia em seus currículos, como é o caso dos programas de graduação da Universidade Federal de São Paulo e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, assim como da recém-inaugurada linha de arte não- europeia do programa de pós-graduação da Universidade Estadual de Campinas, a produção artística de raiz não-europeia – africana, ameríndia, asiática, islâmica, entre outras – passou também a ser objeto de análise de historiadores da arte no Brasil, algo que ganha especial relevância diante da multiplicidade cultural do país. A grande lição que tiramos de tudo isso é que a aparente debilidade da arte e da história da arte no Brasil depende diretamente da lente que usamos para avaliá-la. Renovados os óculos, a realidade adquire complexidade e riqueza.

25 Do meu ponto de vista, portanto, a principal diferença entre a historiografia da arte anterior aos anos 1980 e a produção atual encontra-se no âmbito da qualidade da

Perspective, 2 | 2013 72

reflexão teórico-metodológica. Em sintonia com os desenvolvimentos da história da arte no mundo, aos poucos construíram-se modelos muito mais dinâmicos e complexos para a compreensão da produção artística e da historiografia da arte do Brasil. A profissionalização do campo impulsionou a integração do Brasil à comunidade internacional de historiadores da arte. A consequência foi um aumento significativo do número de traduções de textos-chave para os atuais debates teóricos da disciplina, assim como o aumento de publicações sobre o Brasil em revistas internacionais. O crescimento da colaboração internacional também foi significativo. Nesse ponto, faz-se necessário mencionar o apoio oferecido nestes últimos anos pelo instituto Getty de Los Angeles, que tem fomentado o desenvolvimento do campo por meio de projetos como “Connecting Art Histories” – três projetos dessa natureza foram aprovados recentemente para a história da arte no Brasil – ou por meio de convites a historiadores da arte brasileiros para integrar o programa de pesquisadores visitantes junto ao Getty Research Institute. Hoje esses profissionais estão mais presentes do que nunca nos principais fóruns internacionais da disciplina. É fascinante observar o resultado desse encontro, também para os rumos de uma nova história da arte global.

Mônica Zielinsky | Historiografia da arte brasileira, em busca de seu lugar

26 Na parte final de seu texto, Luiz Marques afirma que “na arte produzida no Brasil o adjetivo ‘brasileiro’ não é uma categoria crítica [...] essa inteligibilidade não emana de uma fantasmática instância autóctone, mas da rede de relações e condicionantes internacionais de que o Brasil e a arte que aqui se faz são os resultados”. Essa constatação, de suma importância para as reflexões sobre a existência de uma arte brasileira e de sua historiografia, é apresentada por Marques a partir de alguns exemplos da arte colonial brasileira e da historiografia desse período.

27 Entre as várias ponderações emergentes do texto de Marques, uma se evidencia: ele afirma considerar, antes de tudo, o “fenômeno artístico, antes de tratar [...] da historiografia artística”. No entanto, em sua abordagem da arte e especialmente da arte do período colonial, percebe-se uma ótica depreciativa em relação à produção artística no país, sugerindo, por meio de juízos quase sempre de cunho formalista, sua pouca qualidade plástica. Ele assinala a debilidade da tradição figurativa, o repertório formal pobre de Aleijadinho, o pouco interesse pelo universo da expressão fisionômica; situa a pintura da colônia portuguesa em um nível elementar, afirmando que ela carece de longo treino acadêmico e apresenta características de um tosco artesanato serial; nega a existência de uma escultura em escala monumental entre os séculos XVI e XIX, alegando a ausência de encomendas e, dessa forma, de uma legitimação simbólica e expressiva da parte do poder político na colônia portuguesa.

28 Uma historiografia do período já estaria, em seu ponto de vista, comprometida na medida em que não daria conta de uma produção artística tão débil e inconsistente, incapaz de oferecer, por essa debilidade, um material valioso para o desenvolvimento de uma historiografia mais adensada. O autor também menciona a arte popular afro- brasileira, indígena ou “cabocla” – que poderia revelar-se como algo “singularmente belo” – como um possível caminho para a criação de problemáticas próprias. Ele a julga, também aqui, “de uma incontornável inépcia”, apesar de reconhecer que existem

Perspective, 2 | 2013 73

estudos de qualidade na abordagem dessas práticas por parte de alguns historiadores brasileiros.

29 Todas essas observações estimulam algumas conclusões sobre esse ensaio: nele, a arte desenvolvida no país é considerada precária; não se percebe no texto de Marques uma predisposição para compreendê-la em maior profundidade. Não há menção a dados documentais nem a metodologias de análise condizentes com os processos de construção das histórias locais e que contemplem suas implicações mais amplas e comparativas com outras culturas. O ensaio também não considera os nexos sociais e políticos, nem o papel das migrações e as diferenças presentes na anatomia dessa arte. Na verdade, ele não aposta efetivamente no fenômeno artístico citado. Diante de uma produção historiográfica apresentada como débil e praticamente inexistente, é preciso questionar o tipo de historiografia que, de uma maneira diferente, poderia um dia vir a se constituir.

30 Vale rever as posições sobre esse assunto assumidas por alguns estudiosos brasileiros, começando por Rodrigo Naves16. Em A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira, o crítico e historiador da arte considera a produção das artes plásticas brasileiras irregular e esparsa, “um material incerto” em relação à boa parte das reputações públicas de sua tradição17. Mas o mais importante é a menção ao fato de que a condição da arte no país jamais justificaria a falta de conhecimentos e o despreparo da área para a constituição de um meio historiográfico mais rigoroso e enriquecedor18, que pudesse aprofundar sua natureza e reconhecer suas particularidades históricas e antropológicas. Essa posição se distingue da reflexão de Marques, para quem não há historiografia artística “simplesmente porque não há o que a suscite”.

31 Diante dessas controvérsias, Naves se propõe a buscar nas próprias obras de arte as razões sobre a sua pouca repercussão no exterior e se interessa em compreender o que ocorre na produção brasileira ao incorporar as mudanças modernas e ao assumir, nessa perspectiva, “um viés todo particular”19. Detém-se na especificidade dos trabalhos, apontando “a sua forma difícil” em relação aos modelos da arte moderna internacional, de natureza ambiciosa e amparada por uma densa tradição criativa. Salienta a morosidade perceptiva da arte desenvolvida no Brasil e a timidez de suas configurações, cores e imagens, que ele considera distantes das inovações e das rupturas da arte dos circuitos dominantes. Reconhece os contornos diferenciados das artes plásticas no país em relação aos da arte dos centros hegemônicos, afirmando que as produções brasileiras extraem das dificuldades que lhes são inerentes – principalmente da sua dificuldade de formalização – uma força estética admirável20. Esse seu texto de 1996 apresenta uma ambivalência: por um lado, não chega a aprofundar as conexões entre os fluxos culturais e históricos da arte no país e suas articulações com a estrutura multicultural da sociedade contemporânea, nem as questões a respeito dos contingentes institucionais que nela se tramam. Por outro, é um estudo que tenta fugir à perspectiva homogeneizante da cultura global e busca as diferenças e as particularidades dessa arte em sua concepção e em suas práticas. Ele a considera uma recriação local com seus contornos próprios e ressalta a importância em “compreender melhor a arte que produzimos, a partir de seus valores intrínsecos e de sua historicidade [...]”21, fatos que Marques aparentemente parece esquecer ao apresentar a arte colonial desenvolvida no Brasil. Ao refletir não apenas baseado em diferenças, mas principalmente a partir das diferenças22, Naves contribui de forma valiosa para a reflexão aqui proposta.

Perspective, 2 | 2013 74

32 Um segundo caminho se apresenta às discussões motivadas pelo ensaio de Luiz Marques, propiciando um terreno fértil para a ampliação da questão historiográfica no Brasil. Esse enfoque é desenvolvido pelo pesquisador francês (residente no Brasil) Stéphane Huchet23, o qual, ao contrário de Luiz Marques, considera a arte brasileira dotada de uma qualidade irrefutável, pois assegura que “quem não vive no Brasil não tem ideia do vigor da criação artística no país”24. Com foco na arte contemporânea brasileira, ele contrapõe, por meio de uma análise minuciosa, a qualidade incontestável da arte produzida no país a uma historiografia da arte inconsistente e que ainda não conquistou o seu lugar – fato igualmente apresentado por Naves. Para o estudioso francês, a historiografia brasileira carece de uma formação teórica mais aprofundada e pertinente que lhe possibilite embates meta-históricos e conceituais. Faltam-lhe igualmente métodos atualizados, assim como um incremento das pesquisas de campo. Huchet aponta problemas de inconsistência institucional, tanto na área acadêmica (que oferece poucos cursos de bacharelado em história da arte), quanto no meio editorial (edição, tradução e difusão de publicações) – fatos que atrasam o fortalecimento da repercussão local e internacional das produções artísticas e acadêmicas brasileiras. A difusão desses trabalhos não alcança as condições citadas no texto de Marques, que menciona a necessidade de se projetar a arte que aqui se fez e que aqui se faz em uma rede de relações internacionais na qual ela possa ser mais reconhecida e difundida. No entanto, Huchet apresenta o ganho que as exposições internacionais têm trazido à visibilidade dessa arte e menciona alguns exemplos, como Les Magiciens de la terre, apresentada em 1989 em Paris25. Com foco primordial na descentralização cultural, essa mostra permitiu colocar em xeque as práticas artísticas situadas às margens sociais e geopolíticas26. O autor menciona o impulso dado por essa exposição ao desenvolvimento de várias outras e, sob esse prisma, afirma que “a arte brasileira passa a ser do mundo, plenamente. As instituições internacionais finalmente a compreenderam”27.

33 Ainda que tenha exposto a importância dessa inserção da arte produzida no Brasil na dinâmica artística mundial – ideia também delineada na parte final do texto de Marques –, Huchet não chega a considerar o tipo de investimento político e simbólico que essas articulações implicariam – discussão que também mereceria uma uma cuidadosa reflexão. Sobre esse aspecto, a historiografia da arte brasileira certamente teria muito a dizer. É lacunar ainda, nos estudos de história da arte no país, a presença de pesquisas que esclareçam a importância das articulações dessa arte com a pluralidade de outros campos – sociais, políticos, econômicos e antropológicos –, todos imprescindíveis para a compreensão dos fenômenos artísticos brasileiros no contexto de uma história da arte global e cosmopolita que, com frequência, omite as histórias e as aspirações locais de onde estes fenômenos provêm. Ao apresentar em seu ensaio a produção artística da colônia portuguesa que considera tão depauperada, Luiz Marques poderia ter feito a sua história emergir no presente. Isso porque essa arte solicita uma visão periférica, voltada aos seus aspectos híbridos, relacionais e apropriativos, que não foram mencionados por ele. Como afirma Amílcar Cabral, lembrado por Gerardo Mosquera, a análise dessa produção talvez pudesse erigir novos mundos para o nosso mundo atual28.

34 Cabe a essa historiografia da arte brasileira gerar as necessárias transformações epistemológicas29 e suscitar novos desafios disciplinares acadêmicos por meio de modelos relacionais de diversidade adaptados à história dessa cultura e dessa arte. Ela poderia, assim, permitir o florescimento de um pensamento construído a partir de seus

Perspective, 2 | 2013 75

limites, um pensamento de borda e que provém do “habitar a borda”30. Essa posição não é defendida nem por Marques, tampouco por Naves ou por Huchet. Ao conceber o adjetivo “brasileiro” como emanado de uma rede de relações e condicionantes internacionais, Luiz Marques não particulariza a posição e as características próprias do Brasil nesse contexto. Naves, em sua busca pelo viés particular da arte brasileira, não reflete sobre o lugar que essa particularidade poderia assumir em uma historiografia contemporânea em tempos de globalização. Huchet, ao contrário, omite o particular, ao refletir sobre a inserção artística brasileira nas dinâmicas globais da arte, sem mencionar as negociações e as rearticulações que poderiam ser estimuladas pela integração da arte brasileira nesse sistema mundial.

35 Para que a arte brasileira seja reconhecida no contexto geopolítico mundial, é preciso que ela circule de forma efetiva na rede global da arte contemporânea – mas isso não é suficiente. A constituição de uma historiografia crítica e atualizada que acompanhe, discuta e amplie essa produção e os seus processos de inserção é imprescindível à própria natureza da chamada arte “brasileira”. Como uma “identidade em ação”31, essa historiografia, em seu modo específico de fazer a contemporaneidade, exige que os marcos locais sejam ultrapassados e que uma nova cartografia da arte no país seja criada. Em uma perspectiva jamais monolítica, mas por meio dos referidos modelos de alteridade, essa historiografia deve articular as confluências e as influências dessa arte em meio às culturas que a constituem e que com ela se associam. Longe de ser marcada pela fragilidade, a arte desenvolvida no Brasil deve se identificar com uma historiografia em processo, a que marcará suas diferenças e será sem dúvida politicamente inovadora, ao reconhecer assim o seu devido lugar na cultura mundial.

Roberto Conduru | A história da Arte no Brasil, “de cá para lá”

36 Apesar do tom laudatório de seus textos publicados em 1835 e 1841, que deram início à reflexão crítica sobre a arte no Brasil, Manuel de Araújo Porto-Alegre não deixou de indicar as limitações da produção artística da antiga colônia portuguesa e mesmo da produção anterior à presença europeia na América32. Hoje parece difícil encontrar quem defenda a existência de uma forte tradição historiográfica da arte no Brasil. Um indício recente da persistência desse juízo negativo é a interpretação feita por Rodrigo Naves da “dificuldade de forma” que “perpassa boa parte da melhor arte brasileira”33. É comum o sentimento de inferioridade na comparação com os domínios da música e das letras no país, assim como com outras tradições historiográficas. Em vez de ser um elemento mobilizador, a pequena quantidade de obras, em sua maioria não extensas e pouco ambiciosas (mas não por isso menos importantes e até, por vezes, grandiosas), assim como a falta de sistematicidade – em suma, a ausência de uma tradição – é um travo para quem se dedica a refletir sobre arte no Brasil e que precisa enfrentar o peso do silêncio e dos mitos gerados pela descontinuidade crítica em um ambiente profissional rarefeito.

37 Os fatores que recentemente têm dinamizado a historiografia da arte no Brasil também não são totalmente positivos, pois não chegam a romper completamente certos impasses históricos, reforçando assim antigos problemas ou constituindo novos empecilhos. A proliferação de cursos de graduação34 e de pós-graduação35 em história da arte, especialmente na última década, não consegue reverter a tradicional

Perspective, 2 | 2013 76

concentração de recursos pessoais, físicos e financeiros do país, que decresce a partir da região Sudeste em direção às regiões Sul, Centro, Nordeste e Norte; ou seja, trata-se de um fenômeno que está em compasso com a desigualdade social brasileira.

38 Embora o crescente trânsito internacional de pesquisadores radicados no Brasil esteja promovendo maior intercâmbio profissional, essa dinâmica ainda é refreada por uma menor mobilidade se comparada a outros contextos. A ampliação do interesse de pesquisadores estrangeiros pela arte brasileira ainda não teve a sua correspondente reflexão incorporada ao debate no país. A maior interação entre esses grupos pode gerar atritos e consonâncias, configurando um diferencial no campo historiográfico, interna e externamente.

39 Apesar de ser notório o salto quantitativo e qualitativo das publicações sobre arte nos últimos 20 anos – algo que têm ampliado a condição pública da arte no Brasil –, a preponderância do modelo de coffee table book e as pequenas tiragens limitam o pensamento crítico e a sua difusão. A concentração de monografias sobre as trajetórias e as realizações de indivíduos, sobretudo de artistas, também é dominante, em um processo de diferenciação que rompe com as visões essencialistas e homogêneas (embora não esteja de todo desvinculado do culto à personalidade, tão caro ao mercado de arte). É importante destacar aqui os estudos sobre artistas, entre os quais se sobressaem coletâneas de textos de críticos e historiadores dos últimos 50 anos, que, ao constituir um corpus, viabilizam e demandam maior reflexividade na historiografia da arte no Brasil.

40 Tomando como mote o título de um texto de Mário Pedrosa, “A Bienal de cá para lá”36, pode-se pensar a historiografia da arte no Brasil a partir da situação atual da arte e de sua reflexão crítica, em vez de tomar os valores pretéritos europeus como parâmetros de juízo. Em vez de operar com concepções de arte e de história geográfica e historicamente fixadas, parece mais produtivo partir de um aqui e agora móveis, mutantes: “cá” não é necessariamente o Brasil, mas a situação social de ideias, coisas e sujeitos, mesmo em trânsito; “lá” também é a princípio vago, temporal e espacialmente extensível, podendo alcançar a pré-história – as sociedades existentes no território sul- americano antes da presença europeia –, a África porosa, plural e ativa, e ir além, o que pode acarretar em uma ampla alteridade. A posição contemporânea pode ajudar a ver e pensar a multipolaridade do mundo, não apenas agora, mas, sobretudo, no passado.

41 Talvez a arte produzida no Brasil nos últimos 70 anos37, bem acolhida por instituições e agentes artísticos estrangeiros, possa ativar outras visões, sejam retrospectos ou proposições historiográficas. “Da adversidade vivemos”: a sentença de Hélio Oiticica, tantas vezes citada, pode ajudar nesse contexto38. Para uma historiografia que precisa lidar com deficiências, as realizações artísticas nutridas na precariedade podem servir como estímulos. Podem ser citados, entre outros, a incorporação do abjeto e da alteridade proposta por Lygia Clark em Baba antropofágica, de 1973; o modo como Frans Krajcberg reverte a violência humana ao potencializar destroços calcinados da natureza; a capacidade de reinvenção de si e do mundo de Arthur Bispo do Rosário ao manipular artefatos supostamente insignificantes e dejetos.

42 Uma outra formulação de Oiticica também pode nos servir de alento: trata-se de, a partir da posição “subterrânea” do Brasil, “erguer-se como algo específico ainda em formação”, insistindo na “posição crítica universal permanente e o experimental”39. Para se pensar a historiografia da arte produzida na complexa experiência (pós-)colonial, pode ser necessário garimpar aqui e ali autores, obras, trechos e até

Perspective, 2 | 2013 77

fragmentos, não exclusivamente publicados no Brasil, que iluminem outros caminhos. No conjunto um tanto errático de história, crítica, crônica e memória, entre outros gêneros, que esse garimpo pode produzir, talvez haja algo comparável à obra de Manuel Mousinho, o crítico português atuante no Brasil inventado por Ronaldo Brito em 1983 e sobre o qual ele escreveu: “dispersas, perdidas quase, em suas inúmeras notas, vamos encontrar idéias, comentários e indicações acerca das artes plásticas que merecem ser consideradas, no mínimo, provocantes, e, algumas delas, geniais até”40.

43 A história da arte esboçada por Porto-Alegre é nacionalista, monárquica, clerical, antilusitana, francófila, linear e evolucionista, mas, apesar de tudo, ele chegou a pensar em potenciais aberturas. Embora ele entendesse o processo histórico da arte no Brasil, na passagem da condição de colônia à de nação, como reflexo da mudança da centralidade artística da Itália à França, em suas considerações, o Egito é uma referência, assim como o Oriente. É possível assim ver como a ideia de uma história da arte mais inclusiva, ainda que centrada na Europa, germinava mesmo nas margens do sistema ocidental. Essa amplitude também foi delineada nas categorias artísticas e nas origens dos artistas citados. Em seu texto de 1835, ele menciona realizações nas áreas de arquitetura, escultura, pintura, cerâmica, numismática e joalheria41, constituindo assim um precedente local para uma prática historiográfica que, coerentemente com a não restrição da arte a um tipo de objeto, amplia seu campo de ação, dando valor a vários tipos de obras e textos. Ao apresentar artistas que “honram a terra em que nasceram”, Porto-Alegre inclui um alemão, um filho de italianos e um ex-escravo afro- descendente entre os oito artistas constitutivos da escola fluminense (originária do Rio de Janeiro) de pintura42, delineando assim uma “brasilidade” irrestrita ao Brasil.

44 Nos escritos do arquiteto e urbanista Lúcio Costa, encontra-se de modo claro a defesa do nacionalismo e o entendimento do modernismo como movimento que reativou a tradição genuína da “arte brasileira”, estancou a desarticulação anteriormente introduzida pelo sistema acadêmico e se conectou com a arte produzida no período em que o Brasil era uma colônia portuguesa. Essa leitura culmina na eleição de Aleijadinho e do arquiteto Oscar Niemeyer, emparelhados, como expressões máximas do “gênio nacional”43. Por outro lado, ele cita Paris, o paisagismo inglês, a relação entre arquitetura e território na China, estradas e viadutos nos arredores de Nova York, além de Diamantina44, como os “'ingredientes'” da concepção urbanística de Brasília, a capital inventada para o futuro da nação45. Seria possível encontrar em seu trabalho, assim como em outras obra artísticas e historiográficas, elementos que ajudem a transformar e a reverter o universalismo simultaneamente submisso ao nacionalismo e ao eurocentrismo? Uma reflexão crítica do processo de mundialização cultural poderia contribuir ao desenvolvimento de práticas historiográficas livres de centros e margens, avessas ao nacionalismo e a seu oposto, sem deixarem de estar situadas socialmente?

NOTAS

1. O balanço é igualmente adverso para a pintura luso-brasileira quando a comparação se faz com a música. Enquanto Vieira Lusitano (1699-1783) evolui à sombra de Trevisani, Carlos Seixas

Perspective, 2 | 2013 78

(1704-1742) é digno interlocutor de Domenico Scarlatti na Capela Real de Lisboa. Da mesma maneira, jamais um pintor brasileiro gozará do reconhecimento coletivo de Carlos Gomes, Villa- Lobos, Pixinguinha, Noel Rosa, Nazaré ou Antônio Carlos Jobim,. 2. De resto, nem em Portugal a escultura monumental pública tinha então uma tradição importante. A estátua equestre de D. José I, para o Terreiro do Paço, por Joaquim Machado de Castro, um discípulo de Alexandre Giusti, é a primeira estátua pública em bronze realizada naquele país. 3. Cf. Ida Rodrigues Prampolini, La critica de arte en Mexico en el siglo XIX (Estudios y fuentes del arte en Mexico), 3 volumes, Universidad Nacional Autonoma de Mexico, 1997. 4. Em 1854, no discurso de posse na direção da Academia Imperial de Belas Artes, Manuel de Araújo Porto Alegre afirmava, conformado: "Não venho com desejos infundados, nem com a vaidade de ostentar exposições públicas em um país novo, no qual a riqueza e a aristocracia ainda não chamaram as belas artes para adornarem seus brasões e suas liberalidades”. Cf. Luciano Migliaccio, Luciano. O Século XIX, N. Aguilar, Nelson (org). Mostra do Redescobrimento: Arte do Século XIX. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2000, p. 101. 5. Cf. Joana Mello, Ricardo Severo: da arqueologia portuguesa à arquitetura brasileira. São Paulo, Annablume, FAPESP, 2007, com Prefácio de José Tavares Correia de Lira. 6. O termo, como se sabe, é de Mário de Andrade. Cf. Marcos Antonio de Moraes, “‘Abrasileirar o Brasil’. Arte e literatura na epistolografia de Mário de Andrade”. Caravelle, Toulouse, 80, 2003, pp 33-47 . 7. Cf. Mario Pedrosa, “Da Missão francesa: seus obstáculos políticos” (1955), in O. Arantes, (org.) Mario Pedrosa: Acadêmicos e Modernos. Textos Escolhidos III. São Paulo, Edusp, 1998, pp. 83-84. 8. Revista Ilustrada, Ano 4, 157, 16 de abril de 1879 (em rede). 9. Cf. Karoline Carula, As Conferências Populares da Glória e as discussões do darwinismo na imprensa carioca (1873-1880). Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, 2007 . 10. Nessa tradição da crítica de arte, devemos citar também Nelson Aguilar, Paulo Venâncio Filho, Rodrigo Naves, Lorenzo Mammí, Sonia Salzstein, entre outros. Cf. Mônica Zielinsky, La Critique d’art contemporaine au Brésil : parcours, enjeux et perspectives, Lille, 1999. 11. Ulpiano Bezerra de Meneses, “Fontes Visuais, Cultura Visual, História Visual. Balanço provisório, propostas cautelares”, in Revista brasileira de história, 23/45, julho 2003. 12. Sobre esse assunto, cf. os trabalhos de Luciano Migliaccio no catálogo da Mostra do redescobrimento, 2000, citação n o 6; Rafael Cardoso, O design brasileiro antes do design: aspectos da história gráfica, 1870-1960, São Paulo, 2005; Rafael Cardoso, A arte brasileira em 25 quadros, Rio de Janeiro, 2008; Ana Paula Cavalcanti Simioni, Profissão artista: pintoras e escultoras acadêmicas no Brasil, São Paulo, 2008. Cf. também os seguintes trabalhos acadêmicos: Claudio José Alves, Natureza e Cultura nas Ilustrações da Comissão de Exploração Científica (1859-1861), tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2012; Maria Antônia Couto da Silva, Um Monumento ao Brasil: considerações acerca da recepção do livro Brasil Pitoresco, de Victor Frond em Charles Ribeyrolles (1859-1861), tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2011; Rosângela de Jesus Silva, O Brasil de Angelo Agostini: Política e sociedade nas imagens de um artista (1864-1910), tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2010. 13. Sobre esse processo de revisão teórico-metodológica do barroco no Brasil, cf. os trabalhos de Jens Baumgarten e André Tavares Pereira (Universidade Federal de São Paulo): Jens Baumgarten, “Staging Baroque Worship in Brazil”, in David Morgan E., Religion and Material Culture: The Matter of Belief, Londres, 2010, 1 v., p. 173-192; Jens Baumgarten, “O Corpo, a Alma e o Amor: Esculturas do Brasil Colonial entre o Performático e o Religioso”, in Desígnio, 3, 2005, p. 27-36; André Tavares Pereira, “Zeferino da costa e as pinturas da candelária”, in Thule, Dinámica de la Religiosidad en América Latina, 2003. 14. Cf. Renata Maria de Almeida Martins, Tintas da terra tintas do reino: arquitetura e arte nas Missões Jesuíticas do Grão-Pará (1653-1759), tese de doutorado, Universidade de São Paulo, 2009; André

Perspective, 2 | 2013 79

Tavares Pereira, A constituição do programa iconográfico das irmandades de clérigos seculares no Brasil e em Portugal no século XVIII: estudos de caso, tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2006. 15. Um dos primeiros a questionar a história do modernismo foi Carlos Zílio com a publicação de seu livro A querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira, a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari, 1922-1945 (Rio de Janiero, 1982). Em 1995, Tadeu Chiarelli publicou sua tese de doutorado Um Jeca nos Vernissages (São Paulo, 1995) que propunha uma importante revisão do papel de Monteiro Lobato na história da crítica de arte no Brasil. Cf. também: Sergio Miceli, Nacional Estrangeiro, São Paulo, 2003; Letícia Squeff, “Paris sob o olho selvagem: Quelques Visages de Paris, de Vicente do Rego Monteiro”, in Alex Miyoshi E., O selvagem e o civilizado nas artes, fotografia e literatura do Brasil, Campinas, 2010, 1 v., p. 57-81. Sobre a tentativa de compreender o modernismo em seu contexto latino-americano, cf. Maria Amélia Bulhões, Maria Lúcia Kern EE., Territorialidade e práticas artísticas na América Latina, Porto Alegre, 2002; Jorge Schwartz, Vanguardas Latino- Americanas, São Paulo, 2010. 16. Rodrigo Naves, doutor em filosofia e bolsista do Centre of Brazilian Studies do St. Antony`s College, em Oxford, é crítico e historiador da arte reconhecido no Brasil. Foi editor do suplemento Folhetim do jornal Folha de São Paulo e da revista Novos Estudos do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP); também participou das publicações A parte do fogo e Beijo e é responsável pelo projeto editorial da coleção Espaços da arte brasileira da editora Cosac Naify. É autor de El Greco: um mundo turvo (São Paulo, 1985), Amílcar de Castro (São Paulo, 1991), A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira (São Paulo, 1996) et do romance O filantropo (São Paulo, 1998). 17. Naves, 1996, citação no 23, p. 10. 18. Naves, 1996, citação no 23, p. 10. 19. Naves, 1996, citação no 23, p. 12. 20. Rodrigo Naves, “[...] Um azar histórico. Desencontros entre moderno e contemporâneo na arte brasileira”, in Novos Estudos Cebrap, 64, novembro de 2002, p. 18. 21. Naves, 2002, citação no 27, p. 18. 22. Gerardo Mosquera e Jean Fisher destacam a importância dessa ótica na introdução da obra editada por eles: Over Here : International Perspectives on Art and Culture, New York/Cambridge (MA), 2004. 23. Stéphane Huchet, “Presença da arte brasileira: história e visibilidade internacional”, in Concinnitas: revista do Instituto de Artes da UERJ, 1/12, 9, julho de 2008, p. 48-65 [ed. orig.: “Présence de l’art brésilien : histoire et visibilité internationale”, in Revue art histoire : Cahiers du Centre Pierre Francastel, número “Histoire et historiographie. L’art du second XXe siècle”, 5-6, outono de 2007, p. 229-246]. 24. Huchet, 2008, citação no 30, p. 49. 25. Les Magiciens de la terre, Jean-Hubert Martin E., (cat. expo., Paris, Centre Georges-Pompidou, 1989), Paris, 1989. 26. Vale consultar a minuciosa entrevista de Benjamin Buchloh com Jean-Hubert Martin sobre os princípios norteadores dessa exposição: “Entretien Benjamin H. D. Buchloh et Jean-Hubert Martin”, in Les Cahiers du MNAM, 28, verão 1989, p. 5-14. Recentemente reproduzida in Sophie Orlando, Catherine Grenier EE., Art et mondialisation : décentrements, anthologie de textes de 1950 à nos jours, Paris, 2013. 27. Huchet, 2008, citação no 30, p. 64. 28. Amílcar Cabral se refere à dominação imperialista. Amílcar Cabral, “O papel da cultura na luta pela independência”, in Obras escolhidas de Amílcar Cabral, Lisboa, 1, p. 234-235 ; Gerardo Mosquera, “The Marco Pólo syndrome: some problems around art and eurocentrism”, in Zoya Kocur, Simon Leung E., Theory in Contemporary Art Since 1985, Malden (MA), 2005, p. 219. 29. Cf. Hal Foster, “O artista como etnógrafo”, in Arte e Ensaios, 12/12, 2005, p. 138.

Perspective, 2 | 2013 80

30. Expressão empregada por Walter Mignolo, in Local Histories/Global Designs: Coloniality, Subaltern Knowledges and Border Thinking, Princeton, 2000. Cf. a análise dessa obra feita por Serge Gruzinski, in Annales: histoire, sciences sociales, 2002, 57/1, p. 234-235, e Walter Mignolo, “Géopolitique de la sensibilité et du savoir. (Dé)colonialité, pensée frontalière et désobéissance épistémologique”, in Mouvements, n° 72, dezembro de 2012, disponível em: www.mouvements.info/Geopolitique-de-la- sensibilite-et.html (Acesso em: 15 de novembro de 2013). 31. Cf. Gerardo Mosquera, “Notas sobre globalización, arte y diferencia cultural”, in Zonas Silenciosas, Amsterdam, 2001. 32. Manuel de Araújo Porto-Alegre, “Résumé de l’histoire de la littérature, des sciences et des arts au Brésil”, in Jean-Baptiste Debret, Voyage pittoresque et historique au Brésil, 3 v., Paris, 1839, p. 84-87 [ed. orig. : Journal de l’Institut Historique, 1, 1835]; Manuel de Araújo Porto-Alegre, “Memória sobre a antiga escola fluminense de pintura”, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 3, 1841, p. 547-557. 33. Naves, 1996, citação no 23, p. 21. 34. Sobre cursos de graduação em história da arte, cf. Carlos Terra E., Arquivos da Escola de Belas Artes, Rio de Janeiro, 2010, p. 41-90. 35. Sobre cursos de pós-graduação em história da arte, cf. Almerinda Lopes, “Reflexões sobre a história da arte e o historiador de arte no Brasil”, in Vis, Brasília, 2006, p. 33-50. 36. Mário Pedrosa, “A Bienal de cá para lá”, in Otília Arantes E., Mário Pedrosa: política das artes, São Paulo, (1970) 1995, p. 217-284 [ed. orig. : Ferreira Gullar E., Arte brasileira, hoje, Rio de Janeiro, 1973, p. 1-64]. 37. Ao menos desde a exposição Brazil Builds: architecture new and old, 1652-1942, realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York em 1943. 38. Hélio Oiticica, “Esquema geral da nova objetividade” [1967], in Luciano Figueiredo et al. E., Hélio Oiticica: aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro, 1986, p. 98. 39. Hélio Oiticica, “Brasil diarreia” [1970], in Ronaldo Brito et al., O Moderno e o contemporâneo, Rio de Janeiro, 1980, p. 27. 40. Ronaldo Brito, “Manuel Mousinho, um polemista secreto” [1983], in Sueli de Lima E., Ronaldo Brito: experiência crítica, São Paulo, 2005, p. 103 41. Porto-Alegre, 1839, citação no 39. 42. Porto-Alegre, 1841, citação no 39. 43. Lúcio Costa, Registro de uma Vivência, São Paulo, 1995, p. 199. 44. Cidade criada em 1713 na região Sudeste do Brasil. 45. Costa, citação no 50, p. 282.

Perspective, 2 | 2013