Vidas como produto de invenção: uma análise da escrita de Fernando Sabino como biógrafo e autobiógrafo

Vivian Bezerra da Silva* Fátima Cristina Dias Rocha**

Resumo Considerações iniciais Este artigo tem por intuito contribuir para as pesquisas no âmbito das es- Observamos, na contemporaneidade, critas de si ao analisar a obra do que as escritas de si atingiram uma escritor Fernando Sabino, autor que relevância raras vezes alcançada an- utilizou constantemente a vida como produto de invenção literária. Para teriormente: além das formas clássicas tal objetivo, será investigado o teor – correspondências, memórias, diários autobiográfico que permeia a obra íntimos e autobiografia –, surgiram do escritor mineiro a partir de dois livros seus: o esboço de autobiogra- novas modalidades de manifestações do fia O tabuleiro de damas (1988) e o eu: blogs, vlogs, entrevistas, autoficção, livro de perfis Gente (1975). Na auto- entre outros formatos, abrindo um vasto biografia, observaremos que Fernan- do Sabino privilegia o relato de suas campo de estudos para investigações. experiências literárias em detrimento Devido ao advento tecnológico e ao das pessoais, contribuindo assim para avanço dos meios de comunicação, as a construção de uma imagem auto- ral. Em diversas passagens da nar- formas de escrita e/ou exposição de si rativa é possível verificar, também, desenvolvem-se cada vez mais. Hoje, o desvio do foco para a descrição de outras personalidades ao passo que no livro Gente, em que a proposta é evidenciar o outro, há, muitas vezes, * Mestra em Literatura Brasileira pela Universidade a representação daquele que escreve. Estadual do . E-mail: letras.vivian@ Assim, este trabalho não se limita à gmail.com escrita autobiográfica de Fernando ** Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Sabino, mas também analisa outra Federal do Rio de Janeiro. Professora no Instituto de faceta do autor: a biográfica. Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] Palavras-chave: Fernando Sabino. Au- tobiografia. Biografia. Autoimagem. Data de submissão: mar. 2016 – Data de aceite: maio 2016 http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v12i1.5835

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 existem maneiras várias de se autocons- O tabuleiro de damas: truir artisticamente, e verifica-se, de modo gradativo, uma procura do público uma autobiografia? por indícios de realidade nas diferentes Segundo meu amigo jornalista Edwaldo manifestações culturais e literárias. Pacote, Otto Lara Resende costumava Também, como nos dias atuais, nunca sustentar que escrever minha biografia foi tão fácil o acesso à informação sobre era fácil, pois teria apenas duas frases, a vida de qualquer personalidade. uma na primeira página e outra na O autor contemporâneo, consciente última. Primeira: “ninguém sabe quem é Fernando Sabino.” Última: “nem ele dessa tendência, muitas vezes, embara- próprio.” (SABINO, 1999, p. 59) lha propositalmente as fronteiras entre realidade e ficção, provocando, assim, O tabuleiro de damas distingue-se um desvelar de si mesmo à medida que de outras obras escritas por Fernando se mantém à sombra. Sabino anteriormente, como O encontro Constatamos, assim, que as frontei- marcado (1956) e O menino no espelho ras entre os gêneros estão cada vez mais (1982), devido ao pacto estabelecido com tênues, escapando de definições. Tal as- o leitor: o pacto autobiográfico. Ou seja, pecto pode ser observado na obra de um nesse livro existe a indicação por parte dos mais atuantes escritores brasileiros do autor de que nós, leitores, iremos do século XX, Fernando Sabino. encontrar, no texto, a voz do sujeito Este artigo, considerando a expres- empírico, suas memórias e experiências siva produção de teor autobiográfico de de vida. Fernando Sabino e a relevância que têm E realmente encontramos. No entan- hoje as escritas de si, debruça-se sobre to, o leitor, que espera descobrir a his- duas obras do autor mineiro, a autobio- tória completa de um Fernando Sabino grafia O tabuleiro de damas (1988) e o pleno, frustra-se, pois, na narrativa, até livro de perfis Gente (1975), a fim de ana- mesmo o autor demonstra querer saber lisar a constituição do sujeito Fernando quem de fato é. E essa descoberta é o que Sabino enquanto escritor a partir de sua pretende alcançar por meio da escrita: relação com outros escritores. O que busco, escrevendo, é saber quem sou. Por meio dessas duas narrativas Para que eu seja do meu tamanho, como será investigada a hipótese de que, em todo mundo deve ser do seu: nem maior, sua escrita, Fernando Sabino textualiza nem menor. Quero dar o melhor de mim, ir elementos autobiográficos por meio de ao extremo de mim mesmo. Não pretendo me exceder, mas também não quero ficar estratégias de ficcionalização que têm devendo. Esse é o meu objetivo na literatura por resultado um texto híbrido, em que e na vida (SABINO, 1999, p. 59-60). as fronteiras entre o real e o ficcional não Para Zygmunt Bauman, entretanto, a podem ser delimitadas. “identidade só nos é revelada como algo

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 a ser inventado, e não descoberto; como cor, com quadrados pretos e brancos. A alvo de um esforço, um objetivo” (2005, partir dessa metáfora, Fernando Sabino p. 21). Seguindo essa afirmação, a escrita rompe com a noção de verdade e até de O tabuleiro de damas não seria um mesmo com a ideia de que seja possível modo de Fernando Sabino descobrir a alcançá-la, a menos que essa busca se si mesmo, mas, sim, de se autoconstruir faça por meio da ficção: “uma verdade narrativamente. além da realidade, que só se alcança Bauman também discorre sobre a im- através da imaginação, da fantasia e do possibilidade de se alcançar a identidade sonho” (SABINO, 1999, p. 61). de modo homogêneo, uma vez que o mun- Logo no primeiro capítulo, Primeira do ao nosso redor está repartido em múlti- vez, o autor declara não querer ter com- plos fragmentos, fazendo, dessa maneira, promisso com a realidade, apenas com com que transitemos por diversos meios, a verdade. “Mas o que é a verdade? Era ideias e princípios que não estabelecem o que Pilatos já perguntava ao próprio entre si nenhuma unidade aparente. Um Cristo” (SABINO, 1999, p. 23). Assim, escritor, por exemplo, pode ser professor, Fernando Sabino, em seu esboço au- judeu, brasileiro, jornalista, etc., e todas tobiográfico, relativiza conceitos como essas identidades encontradas em uma realidade e verdade, e também questiona única pessoa não necessariamente pos- o próprio fazer literário: suem relação entre si. Num levantamento da minha vida literária, Em consonância com o pensamento vejo nela que não tenho feito outra coisa de Bauman, a ideia de incompletude senão me revelar, me expor, contar aquilo que vivi, testemunhei, pensei, aconteceu e também é sugerida em O tabuleiro de da- chegou ao meu conhecimento – sempre atra- mas, pois Fernando Sabino não atribui vés da mais torturante maneira de recriar ao livro a categoria de autobiografia ou a realidade. Deus sabe, por exemplo, o que me custa, na elaboração de despretensioso memórias, mas de “esboço autobiográfi- esboço autobiográfico como este, não entrar co”, o que indica o caráter fragmentário, de cabeça na ficção adentro. São lembranças inacabado da identidade, impossível de e considerações misturadas que afluem ao ser abrangida de forma total em uma correr da pena (ou das teclas) sem muita ordem lógica (ou cronológica), cheias de narrativa. parênteses mentais (1999, p. 60). A tênue distinção entre realidade e Como garantir, então, que o autor, fantasia é outra questão problematizada no momento da escrita, não tenha nessa obra. O título do livro refere-se a ingressado na ficção? Até porque a re- uma novela policial do autor – O outro cuperação das experiências vividas se gume da faca –, em que um personagem dá pelo sujeito no presente, e “[...] essa diz que o tabuleiro de damas não é nem autorreferência atual pode se mostrar preto com quadrados brancos, nem bran- um obstáculo para a captação fiel e a co com quadrados pretos, mas de outra reprodução exata dos acontecimentos

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 passados” (STAROBINSKI, [1970] 1974 A confluência entre biografia e inven- apud ARFUCH, 2010, p. 54, grifo da ção, como pudemos notar a partir dos autora). Desta forma: exemplos expostos, surge, vez ou outra, A autobiografia, mesmo se limitada a uma em O tabuleiro de damas, como objeto de pura narração, é sempre uma auto-interpre- reflexão. Fernando Sabino, na escrita de tação, sendo o estilo o índice não só da rela- um livro declaradamente autobiográfico, ção entre aquele que escreve e seu próprio passado, mas também o do projeto de uma parece contestar a questão referencial maneira de dar-se a conhecer ao outro, o que que a própria narrativa propõe. não impede o risco permanente do desliza- Quando se refere, porém, a uma obra mento da autobiografia para o campo ficcio- cujo pacto é romanesco, como o romance nal, o seu revestir-se da mais livre invenção. Apesar do aval de sinceridade, o conteúdo O encontro marcado, o autor declara: “O da narração autobiográfica pode perder-se encontro marcado é a minha vida: é a na ficção, sem que nenhuma marca decisiva súmula da minha experiência vital até revele, de modo absoluto, essa passagem, porquanto a qualidade original do estilo, ao aquele momento” (SABINO, 1985, p. 12). privilegiar o ato de escrever, parece favore- E, de fato, identificamos diversas seme- cer mais o caráter arbitrário da narração lhanças entre as experiências vivencia- que a fidelidade estrita à reminiscência ou o caráter documental do narrado (MIRANDA, das pelo personagem Eduardo Marciano 1992, p. 30). e aquelas de que temos conhecimento sobre Fernando Sabino por meio de en- “A fidelidade estrita à reminiscência” trevistas, excertos biográficos constantes faria da autobiografia somente um texto nos paratextos e nas crônicas do autor. documental e, portanto, não literário. Muitas dessas experiências, contudo, Porém, nas autobiografias em geral, e não são narradas em O tabuleiro de da- principalmente no caso das autobiogra- mas. Outras, ainda, foram suprimidas fias de escritores, é ingênuo pensar que pelo autor em edições posteriores. É o são textos produzidos com o objetivo caso, por exemplo, do texto sobre Lygia último de retratar a história real de Marina, esposa de Fernando Sabino no uma vida, tal como ela aconteceu. Essa ano da publicação do livro, em 1988. Nas pretensão desfaz-se, como vimos, pela versões posteriores à separação do casal, própria impossibilidade de apreensão in- em 1993, os parágrafos relacionados a tegral do passado. Além desse fator, todo Lygia desapareceram. autobiógrafo, no exercício de reconstruir De acordo com Bloch, os ajustes que o vivido a fim de revelá-lo ao leitor, o faz Fernando Sabino fez a cada nova edição de modo que essa revelação se harmonize de sua obra, com a imagem idealizada de si. Em ou- tras palavras, a recriação da realidade [...] dado o forte conteúdo autobiográfico de seus escritos, acabam por alterar, ao sabor se dá em consonância com a autoimagem das circunstâncias, o retrato que o leitor que o escritor deseja projetar. guardará dos fatos, e da realidade (2005, p. 123).

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 Sabino estaria, dessa maneira, vio- na obra é a prevalência da autoimagem lando o pacto referencial proposto pelo social de Fernando Sabino, uma vez que livro. Mas não o pacto que estabeleceu a narrativa valoriza mais a sua formação consigo, pois, ao relativizar conceitos literária, suas leituras e influências, sua como o de realidade, o autor se mantém experiência como cineasta e editor e seu fiel ao seu compromisso literário em convívio com outros escritores do que a detrimento do documental. E também sua vida íntima de fato. a própria definição de “esboço” sugere Há, contudo, no final da narrativa, que o texto está “em construção”, sendo uma espécie de compilação das pessoas passível de modificações. mais importantes da vida pessoal do Assim, o controle que o escritor exer- autor. O capítulo intitulado Quatro ami- ce em sua autobiografia é equivalente gos versa sobre a intensa amizade entre ao que exerce sobre sua obra ficcional. Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Otto As confissões “reveladas” no texto auto- Lara Resende e Paulo Mendes Campos: biográfico são produtos das escolhas do Tive outros amigos além deles. Entre meus autor no presente da enunciação, e, como parentes, há pessoas admiráveis, a quem o passar do tempo provoca mudanças, quero bem: primos, genros, e noras, sobri- nhos e até netos que me são caros. Meus com o escritor não é diferente. O autor, irmãos, sem exceção, sempre foram maravi- em períodos distintos, também poderá lhosos para comigo: Luisa, com sua música; tornar-se outro, e, portanto, renovada Conceição, com seu coração acolhedor; Ger- son, com seu generoso dinamismo; Antônio, será a sua perspectiva do lugar de fala, com sua sábia mansidão; Berenice, tão que- repercutindo, consequentemente, na rida, que só deixou saudade. Os filhos, dos história de sua vida. A autobiografia é, quais me orgulho – Eliana, Leonora, Pedro então, a narrativa de uma decisão do Domingos, Verônica, Bernardo e Mariana, fonte permanente de alegria no convívio. autobiógrafo no presente e não de uma E Virgínia, viva na eternidade e no meu vida completa e definitiva. coração. Mas posso afirmar que, se eu não A declaração sobre Lygia era a única tivesse conseguido mais nada na vida, esta relação tão duradoura de quatro amigos já referência consistente, em O tabuleiro de teria sido o melhor que eu poderia desejar damas, sobre a vida amorosa do autor. neste mundo (SABINO, 1999, p. 204). Depois de sua exclusão, não encontra- Essa ausência de elementos da bio- mos citações a respeito de tal assunto, grafia pessoal de Fernando Sabino em mesmo o escritor tendo sido casado por O tabuleiro de damas pode ser explicada três vezes. Poucas também são as vezes pela intenção do autor em escrever uma em que o autor fala sobre a família e autobiografia nos moldes de Itinerário as experiências extraliterárias. Assim, de Pasárgada: uma autobiografia in- diferentemente do subtítulo que figura telectual, portanto. A autobiografia de na capa do livro – “trajetória do menino “privilegia os episódios ao homem feito” –, o que encontramos relevantes para a formação de poeta,

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 ‘deixando na sombra’ muitos outros que como matéria para a sua obra de ficção. não se incluem no seu ‘ponto de mira’” Em conformidade com esse pensamento (ROCHA, 2009, p. 68). encontra-se a seguinte frase de Oscar Tal como o poeta, Fernando Sabino, Wilde, lembrada por Leite: “[...] o homem em sua autobiografia literária, evidencia quase nada nos diz quando fala em seu as experiências referentes à sua forma- nome; dêem-lhe uma máscara, e ele dirá ção de escritor. O autor conta que a ideia a verdade” (2007, p. 45). de escrever O tabuleiro de damas surgiu De outro modo, Lejeune afirma que, desde que incentivou Manuel Bandeira a independentemente das semelhanças escrever o Itinerário. E, como dizia não encontradas nos textos ficcionais ou gostar de entrevistas, escrever um livro das discrepâncias descobertas na auto- desse gênero seria uma forma de respon- biografia, o que impera na narrativa é der às perguntas que insistentemente o contrato estabelecido entre o autor e lhe faziam: o leitor: Não gosto muito de entrevistas – embora A importância do contrato pode ser, aliás, a ideia deste livro, que me acompanha há comprovada pela própria atitude do leitor anos, ao longo da minha vida literária, que é determinada por ele: se a identidade renove-se a cada entrevista que tenho dado não for afirmada (caso da ficção), o leitor pro- (SABINO, 1999, p. 23, grifo nosso). curará estabelecer semelhanças, apesar do que diz o autor; se for afirmada (caso da au- Por tais motivos, é comum encon- tobiografia), a tendência será tentar buscar trarmos mais elementos biográficos no as diferenças (erros, deformações etc.). Dian- romance O encontro marcado e nas crô- te de uma narrativa de aspecto autobiográfi- co, a tendência do leitor é, frequentemente, nicas de Fernando Sabino do que em sua agir como um cão de caça, isto é, procurar “autobiografia”. Em geral, parece que “os as rupturas do contrato (qualquer que seja gêneros autorreflexivos, que se supõem ele). Daí nasceu o mito do romance “mais verdadeiro” que a autobiografia: sempre se os mais referenciais, talvez sejam exa- considera mais verdadeiro e mais profundo o tamente o contrário” (MAN, 1979 apud que se descobriu através do texto, a despeito MOLLOY, 2003, p. 32). do autor (LEJEUNE, 2008, p. 26-27). Para Dante Moreira Leite (2007), é De modo diverso ao dos escritores possível que na ficção o autor conte mais que decidem se construir em textos re- a respeito de si próprio do que no texto ferenciais, como as autobiografias e as assumidamente autobiográfico. Como memórias, para determinados autores: exemplo para sua hipótese, o teórico cita [...] a confissão só é possível por figuras os livros ficcionais de Sartre. De acordo imaginadas, em que o autor projeta suas com Leite, na autobiografia de Simone experiências e sua maneira de ver o mundo, de Beauvoir, A força da idade, podemos ou, ao contrário, em que revela o que não quis ou não pôde ser (LEITE, 2007, p. 48). observar, pelos relatos da escritora, que o filósofo francês utilizou, “às vezes quase Essa diferenciação nos modos de diretamente”, suas experiências de vida autorrepresentação narrativa ocorre na

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 medida em que “[...] a confissão direta Quanto a essa questão, Klinger es- pode ser frustrada, perdendo-se na su- clarece que: perficialidade ou gratuidade” (LEITE, [...] no depoimento de muitos escritores se 2007, p. 48). vislumbra uma intenção de intensificar a Fernando Sabino, por exemplo, com ambiguidade, quando eles sustentam uma ideia de verdade na arte, ou seja, da superio- sua literatura notadamente autobiográ- ridade do texto artístico sobre o referencial fica, ao escrever sua autobiografia de (2012, p. 35). forma declarada, cria diversas estraté- Nesse viés, Sabino esclarece: gias, como o título do livro e sua definição de esboço, a fim de tensionar os limites Quando falo de mim mesmo e vou fundo na alma, sinto que estou matando a galinha entre realidade e ficção. E, na própria dos ovos de ouro, desmotivando a minha narrativa, discorre sobre a dificuldade literatura, acabando com a minha razão de em elaborar um texto que tem “compro- escrever (1999, p. 24). misso com a realidade”. Existe, portanto, um limite para o O próprio autor, no entanto, foi um que pode ser “revelado”, e esse limite é incentivador de textos autobiográficos. estipulado pelo próprio escritor. Além de estimular Manuel Bandeira Em seu esboço autobiográfico, Fer- a escrever o Itinerário de Pasárgada, nando Sabino, com humor, parece falar confessa-se orgulhoso por, junto com Otto de si mesmo abertamente: relata sua Lara Resende, ter incentivado Pedro iniciação literária, suas primeiras lei- Nava a escrever suas memórias e ter turas e influências, sua experiência de sido o primeiro a editá-las: estrangeiro – como auxiliar no Escritório Com isso a literatura brasileira se viu Comercial do Brasil em Nova Iorque e enriquecida de uma obra monumental (em- como adido cultural na embaixada em bora eu achasse que ele melhor faria se a Londres –, o convívio com políticos e concebesse em forma de romance, à feição de Proust – que me confessou haver lido escritores e a impressão que eles lhe cau- seis vezes). Preferiu usar a realidade como sam. Não hesita em mencionar nomes matéria-prima, limitando a imaginação. de pessoas “atestadamente reais” que Desceu até o fundo de si mesmo e acabou não conseguindo voltar (SABINO, 1999, p. 107). fazem, por exemplo, parte do seu círculo de amigos, além de situações pelas quais O autor ressalta que preferiria se passou com essas pessoas. Pedro Nava tivesse escrito suas memó- Todos esses relatos nos remetem a um rias em forma de romance. Desse modo, discurso verídico, mas, ao mesmo tempo, podemos observar que, mesmo a escrita artisticamente intencionado, pois, como de si tendo papel de destaque na obra de nos esclarece Arfuch, a referencialidade Fernando Sabino, há uma preocupação não é o que mais importa nas narrativas por parte do autor em evidenciar a am- atribuídas a personagens realmente biguidade na narrativa. existentes, e sim as estratégias ficcionais de autorrepresentação:

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 Não tanto a “verdade” do ocorrido, mas sua Ao saber que se tratava de seios postiços, construção narrativa, os modos de (se) no- considerou se, por via das dúvidas, não mear no relato, o vaivém da vivência ou da seria o caso de fazer com que as candidatas lembrança, o ponto do olhar, o que se deixa se apresentassem sem sutiã. E ante meu na sombra; em última instância, que histó- pasmo, esclareceu, em tom sério: ria (qual delas) alguém conta de si mesmo – Só para nós, jurados, é claro (SABINO, ou de outro eu. E é essa qualidade autorre- 1999, p. 128). flexiva, esse caminho de narração, que será, afinal de contas, significante (2010, p. 73, Os trechos que se seguem tratam da grifo do autor). convivência entre Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Jayme Ovalle e Vinicius de Mo- As estratégias de raes, respectivamente: autorrepresentação de Carlos e eu nos tornamos muito amigos. Eu Fernando Sabino gostava de lhe passar trotes pelo telefone, e ele sabia se vingar à altura (1999, p. 104). Pedro Nava e eu também nos víamos com Uma estratégia notadamente utiliza- frequência. E muitas vezes eu me valia da pelo autor em O tabuleiro de damas da condição de cliente para ir ao seu con- é o deslocamento do foco da narração sultório, em geral ao fim da tarde, o que redundava em horas de conversa. Segundo para a história de outras personalida- sustentava ele, o cliente que não sai do des. No decorrer dos trinta capítulos consultório melhor do que entrou não devia que compõem seu esboço autobiográfico, pagar consulta. Sabino narra os encontros com diversos Não era o meu caso: nunca me cobrou, sem- pre saí melhor do que entrei. E nos diverti- escritores e a importância que muitos mos com a sua brilhante atuação como ator deles tiveram para a sua formação. As no filme que fiz sobre ele (1999, p. 106). histórias que o autor escolheu contar Ovalle tinha uma dimensão mágica, com pleno domínio da arte de ir até onde a ima- sobre sua vivência com esses escritores ginação alcança, sem ficar louco. Só conheci são geralmente pautadas pela leveza e outro com esse poder: Hélio Pellegrino. Em pelo humor. Em uma delas, descreve a compensação, Ovalle não conseguia respon- participação que teve como jurado no der uma carta (eu respondia para ele), mal sabia usar o telefone. Não parecia mesmo concurso de Miss Brasil, em 1954, ao ser deste mundo. lado de outros escritores. Entre eles, Era íntimo dos passarinhos. Houve um Manuel Bandeira: tempo em que andou noivo de uma pomba. Costumava dizer que Deus é poeta – basta A propósito, me lembro que, hospedado no identificar suas obras poéticas na natureza. Hotel Quintandinha onde se realizava o con- Só que Deus fez muito rascunho: o hipopó- curso, às tantas Manuel Bandeira me con- tamo, a girafa, o canguru, o rinoceronte são vocou ao seu quarto. E me confidenciou ter rascunhos. Quando Deus chegou à perfeição ouvido dizer que algumas daquelas lindas do cavalo, a obra estava pronta. E passari- concorrentes usava algo chamado “falsies”. nho é um soneto, a Sua obra mais perfeita – Que vem a ser isso? – perguntou, apre- (1999, p. 113). ensivo. Vinicius [...] Viajou para os Estados Unidos no mesmo avião, e resolveu se dar por per-

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 dido comigo em Nova York, durante uns dois A aura de pureza que Fernando Sabi- meses. Levamos quatro dias para chegar, no atribui a Clarice é uma das estratégias numa viagem cheia de peripécias, com me- morável noitada em Ciudad Trujillo. utilizadas pelo autor para recriar a rea- Conviver com Vinicius era um eterno festim, lidade. O escritor demonstra exercitar, como no verso de Rimbaud (1999, p. 112). tanto na literatura quanto na vida, uma A citação do verso de Rimbaud no frag- espécie de olhar infantil. Desse modo, a mento sobre evidencia visão que expressa das coisas e das pesso- uma das leituras de Fernando Sabino. as, no texto, é frequentemente aprazível. A propósito, ao longo de O tabuleiro de O olhar de menino, em conjunto com damas, observamos, embora de modo es- o otimismo, a simplicidade e o humor, pontâneo, diversas referências às leituras perfaz a imagem que o autobiógrafo feitas por Sabino. Tal aspecto demonstra constrói de si. Essas características con- sua vasta experiência enquanto leitor e feridas ao escritor Fernando Sabino em conhecedor da literatura mundial. sua “autobiografia” também são notadas Diversas são as pessoas biografa- nas entrevistas e, guardadas as propor- das em O tabuleiro de damas, além do ções, em toda a obra do autor. Assim, a próprio autor. Uma, inclusive, mereceu validação de uma imagem autoral “existe destaque, com capítulo intitulado por como impulso que governa o projeto au- seu nome, Clarice. Nesse capítulo, Fer- tobiográfico” (MOLLOY, 2003, p. 22) de nando Sabino narra seu encontro com Fernando Sabino. e a intensa amizade Como O tabuleiro de damas privile- que os uniu “ante o enigma que o futuro gia a figura do escritor e não do autor reservava” para o destino dos dois jovens enquanto pessoa, a maioria das lembran- como escritores. Sabino manifesta, de ças, ainda que da infância e juventude, modo nítido, seu encanto pela escritora: são de episódios referentes à iniciação literária: Era desconcertante certa aura de pureza, de primitiva inocência que dela se irradiava. Ali pelos onze, doze anos, já na fase de ler Um dia, por exemplo, falávamos em Proust romances policiais, passei a colaborar com e ela me perguntou se era verdade que sua alguns mestres do gênero: Edgar Wallace, personagem Albertine na vida real vinha a principalmente, mas também Sax Rommer, ser um homem. Mostrou-se espantada ao SS. Van Dine... Então criei meu próprio de- imaginar – e pela primeira vez! – que um tetive: Fred Smith, 22 anos de idade, alto, homem pudesse ter relação de amor com moreno, simpático, que “trafalgava” por outro homem. Londres com sua bengala de castão de ouro. Reação surpreendente de que também me Algumas de minhas histórias, graças ao recordo foi a sua, quando eu lhe disse que meu irmão Gerson, foram publicadas numa mais um filho meu estava a caminho. revista da polícia mineira chamada Argus. – Mais um? – exclamou ela: – Será que você Estreei na literatura sob os auspícios da não para? Pedi-lhe desculpas, dizendo que polícia (1999, p. 30). não me levasse a mal – acontecia nas melho- res famílias (1999, p. 116).

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 Há, porém, em alguns momentos da sem preocupação com rótulos literários e narrativa, reminiscências do convívio disposto a desempenhar com qualidade o com a família: papel que escolheu para si na literatura: Já em se tratando da minha vivência, pro- Para certas pessoas, não sendo romance, priamente, tenho na lembrança até hoje não vale. Lembro-me que um dia Guimarães vários princípios que gostaria de praticar: Rosa me telefonou e perguntou o que eu es- os que meu pai, um filósofo à sua maneira, tava fazendo. Eu disse que estava tentando costumava ensinar aos filhos. Enquanto escrever uma peça de teatro. E ele, meio Dona Odete, minha mãe, era a doçura per- paternal: sonificada, nos cobrindo de carinho, Seu – Não faça biscoitos, faça pirâmides. Domingos nos dispensava docemente outra Fiquei algum tempo encafifado com aquilo, espécie de desvelo. Homem simples, de pou- sem saber se a obra literária se impunha cas ambições, ele era, apesar disso, ou por também pelo gênero e pelo tamanho, além causa disso, de extremo bom senso. [...] Ele da qualidade. [...] Ninguém é obrigado a vivia dizendo: “O que não tem solução, solu- ser Tolstói na vida [...] Nem julgado por ser cionado está.” Ou então: “As coisas são como biscoiteiro ou faraó (1999, p. 49). são e não como deviam ser.” O melhor, talvez que me lembre, foi o que me disse um dia ao Nas entrevistas, o discurso é seme- me encontrar entregue à aflição de espírito: lhante: – Meu filho, tudo no fim dá certo. Se não deu, é porque ainda não chegou ao fim Quando li Dostoiévski pensei em desistir, (1999, p. 75-76). porque ele já tinha escrito tudo o que eu queria escrever. Você percebe então que tem A partir do trecho citado e de outros alguma coisa a dizer que é pequenina, é um contidos na obra referentes à família do biscoitinho, mas que vale tanto quanto a pirâmide dos outros, porque é sua. É a sua autor, principalmente nas lições trans- visão de mundo (SABINO, 1985, p. 23). mitidas pelo pai, podemos perceber que: Por meio de algumas entrevistas de [...] o passado evocado molda-se por uma Fernando Sabino, é possível perceber autoimagem sustentada no presente – a imagem que o autobiógrafo tem, aquela que que o autor se mostrava preocupado em ele [...] deseja projetar ou aquela que o pú- produzir uma literatura que dialogasse blico pede (MOLLOY, 2003, p. 22). com os leitores da sociedade contem- Ou seja, Fernando Sabino, em O tabu- porânea: “Não pretendo praticar uma leiro de damas, elabora seu passado em literatura só para mim, e só para uma conformidade com sua imagem de figura meia dúzia, e sim para o maior número pública, a do escritor bem-humorado, oti- possível de pessoas” (SABINO, 2002, mista e simples. Tal autocaracterização, p. 313). Talvez por esse motivo, Sabino construída pelo autor, teria origem nos tenha optado pelos “biscoitos” para ensinamentos familiares. compor a maior parte de sua obra. A Sabino, em sua autobiografia, além crônica seria, então, uma das maneiras das características abordadas que reme- encontradas por Sabino para aliar a tem simultaneamente à figura pessoal e expressão literária à comunicação do à pública, inscreve-se como um escritor nosso tempo.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 Em suas crônicas, verificamos diver- texto autoficcional ao contribuir para a sas semelhanças entre os acontecimen- construção do mito do escritor. tos narrados e os vivenciados pelo autor. A reiteração de experiências e de Essas semelhanças são reiteradas em O cenas na obra do escritor mineiro não tabuleiro de damas, no qual, em diversas se estabelece apenas entre as crônicas partes da narrativa, há um asterisco que e O tabuleiro de damas, mas em diver- indica, ao final da página, em que crônica sos textos e entrevistas do autor, o que aquela história foi contada. O que pode caracteriza uma marca de estilo. As ser interpretado como uma estratégia cenas de leitura de Fernando Sabino de legitimar a realidade nas crônicas, ou em O tabuleiro de damas, por exemplo, ao contrário, de ficcionalizar os relatos são semelhantes às do protagonista do da autobiografia, ou, ainda, evidenciar romance O encontro marcado. o trânsito entre experiência pessoal e criação literária. A cena de leitura Além da transição entre vida e obra, há também, na narrativa, a transição Sylvia Molloy, em sua pesquisa sobre entre gêneros literários, já que os capí- a escrita autobiográfica na América his- tulos de O tabuleiro de damas podem ser pânica, evidencia a cena de leitura como lidos individualmente como se fossem uma estratégia do autobiógrafo – neste crônicas. Não há uma linearidade narra- caso, também escritor –, para confirmar tiva que subordine um capítulo a outro, uma vocação literária revelada ainda na iniciada com as primeiras lembranças mocidade: até o desenvolvimento do sujeito, como A importância dada à cena de leitura na geralmente se espera dos gêneros que juventude do autobiógrafo pode ter sido têm como base a vida. originalmente feita como um truque realis- Mas, em alguns momentos da nar- ta, destinado a dar verossimilhança (e, em retrospecto, uma pequena porção de glória rativa, como verificamos, existe uma precoce) a uma história de escritor. Na ver- desestabilização da leitura referencial, dade, funciona como uma estratégia autor- provocada por declarações e dúvidas reflexiva que confirma a natureza textual do exercício autobiográfico, lembrando-nos do do autor quanto à (im)possibilidade da livro por trás dele (2003, p. 38). escrita autobiográfica e, também, da apreensão total do sujeito. Essas (im) O livro “por trás” do autobiógrafo – possibilidades são sugeridas no trecho suas primeiras leituras e influências citado que dá início ao presente trabalho: literárias – nunca é gratuito. Ou seja, a “ninguém sabe quem é Fernando Sabino, exposição, na autobiografia, dos autores [...] nem ele próprio”. Assim, O tabuleiro que contribuíram para a formação lite- de damas, livro declaradamente auto- rária do autobiógrafo será feita sempre biográfico, apresenta também traços do de modo a valorizar sua imagem como

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 escritor; será, portanto, literariamente Eduardo Marciano. No romance, entre- intencionada: tanto, quem estabelece o contato entre [...] o autobiógrafo não poderá ser pego em o protagonista e seu mentor é o pai de falta, culturalmente desarmado, um inte- Eduardo: lectual simplório aos olhos dos outros, por isso, a ostensiva preferência pelos clássicos Seu Marciano mandou que procurasse Tole- (MOLLOY, 2003, p. 40). do, um amigo que era escritor. Toledo acabara de publicar um romance em Assim ocorre na evocação das leituras editora do Rio, seu nome era conhecido nos preponderantes para a formação do es- meios literários. [...] Eduardo foi à casa do romancista, levando critor Fernando Sabino. O autor relata seus contos numa pasta, debaixo do braço. [...] o encontro com Guilhermino César, seu – Você quer ser romancista, não é? – e Toledo primeiro orientador literário. Guilhermi- o reteve, quando se despedia: – Pois então leia isso... E isso... E isso. no apresenta ao jovem Fernando nada Emprestou-lhe três livros de contos em menos que três escritores pertencentes Francês: Merimée, Flaubert e Maupassant ao cânone da literatura universal: (SABINO, 2010, p. 55). Um dia, por insistência minha, meu irmão Além dos autores franceses, Fernando me apresentou a Guilhermino César, seu e Eduardo têm em comum o deslumbra- conhecido, e que tinha publicado um livro na Editora José Olympio – o auge da glória, mento que sentiram, ainda na juventude, o Olimpo dos escritores. por outro escritor clássico, Dostoiévski: Levei meus contos à casa do Guilhermi- [...] Quando descobri Dostoiévski, por pouco no num domingo. Chovia muito naquela não desisti: tudo que eu queria escrever ele manhã, e três coisas me impressionaram: já havia escrito (1999, p. 42). primeiro, Guilhermino me disse que ter sido [...] Leu os romancistas brasileiros, alguns premiado não era garantia de qualidade; franceses, esqueceu tudo em favor de Dos- segundo, depois de ler os contos, apanhou na toiévski. Sentia-se encarnado em Raskol- estante três contistas para me emprestar – nikoff, chegou a pensar em cometer o crime Maupassant, Merimée e Flaubert; terceiro, perfeito (2010, p. 65). ele disse “merda”, porque a água da chuva havia inundado seu escritório. Eu não podia Aliás, tanto O tabuleiro de damas acreditar que escritor também falasse pala- quanto O encontro marcado são obras vrão (SABINO, 1999, p. 33). recheadas por citações e referências a Interessante perceber que, em O livros e autores. Há inclusive, no final tabuleiro de damas, Fernando Sabino de O encontro marcado, um anexo in- relaciona a cena de leitura a um mentor. titulado “Citações e referências em O Aspecto verificado com frequência, por encontro marcado apresentadas pelo au- Molloy (2003, p. 35), nas autobiografias tor”, no qual Fernando Sabino faz breves hispano-americanas. comentários sobre a intertextualidade Podemos observar, também, que a presente no romance. Tais referências cena representativa da iniciação literá- demonstram que a construção do escri- ria de Fernando Sabino é semelhante à tor ocorreu a partir de sua relação com do protagonista de O encontro marcado, outras leituras e escritores.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 Ao investigar o passado, Fernando contada foi a vida literária. Talvez por- Sabino, em seu esboço autobiográfico, que o Fernando Sabino “real” só esteja narra a descoberta de uma lista escrita disponível narrativamente, no lugar que há 35 anos de distância do presente da a imaginação alcança, e, mesmo quando enunciação: surpreendido fora do livro, parece um Há pouco tempo encontrei a seguinte ano- personagem dele. tação minha, aos trinta anos, com uma lista Fernando Sabino em alguns capítulos de escritores que me inspiravam simpatia de O tabuleiro de damas, como vimos, e antipatia: Antipatia: Goethe, Montaigne, Flaubert, dá destaque a outros escritores. Dessa Turgueniev, Gide, Valéri, Claudel, Mauriac, maneira, o autor desvia o foco narrativo Papini, D’Anunzio, Sartre, Camus, Huxley, do que deveria ser a história de sua vida Joyce, Proust, Longfellow, Kafka, Alberti, para evidenciar características de outras Eliot, Rimbaud, Breton, Jarry, Faulkner, Shaw, Chesterton. personalidades. Em outro livro do autor, Simpatia: Rabelais, Cervantes, Molière, Gente, a proposta é, justamente, retratar Donne, Blake, Lautréamont, Cocteau, perfis de diversos artistas, Fernando Apollinaire, Saint-Exupery, Bernanos, Hemingway, Fitzgerald, Henry James, Sabino, muitas vezes, faz o contrário. Eric Gill, Herbert Read, Ruskin, William O autor acaba mudando a perspectiva Morris, Milosz, Fernando Pessoa, Lawrence, e enfocando a si próprio, como veremos Pirandelo, Ezra Pound, Stendhal, Verlaine, Antonin Artaud, Mark Twain, Svevo, Dos- a seguir. toievski, Conrad, Tolstoi (1999, p. 44). A descoberta dessa lista de escritores, Fernando Sabino e além de colaborar para uma impressão sua gente de resgate do passado, confirma a insis- tência do autor na cena de leitura. De Os textos que compõem o livro Gente acordo com Molloy, são pequenos perfis escritos por Fer- [...] seria estranho se não fosse assim, pois, nando Sabino de personalidades das no momento em que ele [o autor] decide ex- áreas mais variadas: literatura, música, plorar o passado, verá sem dúvida com bons esporte, dramaturgia, etc. Esses perfis, olhos qualquer experiência de sua juventude a princípio biográficos, misturam-se que possa ser interpretada como a promessa de uma futura vocação e, por isso, insistirá com evocações e impressões de quem os nela (2003, p. 37-38). escreve. Assim, Fernando Sabino como A partir dos exemplos expostos, biógrafo não deixa de ser autobiógrafo, observamos que “o autobiógrafo [...] vive pois, em todos esses textos, é possível no livro que escreve e se refere incan- perceber sua forte presença autoral; e, savelmente a outros livros” (MOLLOY, além desse aspecto, a recriação literária 2003, p. 32). Assim sendo, concluímos do outro se dá, visivelmente, a partir da que, dentre outras histórias de vida percepção do autor. possíveis, a escolhida pelo autor para ser

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 Diferentemente do que, via de regra, personagem. Ao ficcionalizar pessoas re- ocorre em textos biográficos, Fernando ais e seu encontro com elas, ficcionaliza Sabino não se anula nos perfis que es- a si mesmo. O autor apresenta, assim, creve. Embora saibamos que, mesmo todo um grupo de personalidades artís- em textos biográficos, é difícil o autor ticas que fizeram parte de sua geração apagar-se por completo, geralmente é e que, de certa forma, colaboraram para desta forma que se costuma escrever o escritor que ele se tornou. Para Otto tal gênero: focalizando preferencial- Lara Resende, mente – e, às vezes, exclusivamente – o Gente contribui para descodificar e até biografado. complementar a mensagem de O encontro Fernando Sabino, ao contrário, pa- marcado, que, tanto quanto pessoal, pode ser também de uma geração (1996 apud rece estar sempre propenso a mostrar a SABINO, 1996, p. 10). si próprio, ainda que o compromisso do texto seja com a exibição do outro, como Todos os encontros relatados em Gente é o caso desses perfis. Nas palavras de transmitem uma imagem do biografado Betella: – e também do narrador – humanizada, como a de pessoas comuns. Fernando parece não segurar o entusiasmo pela participação na narrativa, tomando A crônica, como assinala Antonio a palavra sem o anteparo de um narrador, Candido, também apresenta esse caráter melhor dizendo, sem a criação de um sujeito, humanizador: personificado ou não. A forma de organiza- ção do discurso não tem, aparentemente, Por meio dos assuntos, da composição apa- nenhuma estratégia para encobrir, disfarçar rentemente solta, do ar de coisa sem neces- ou obstruir a primeira pessoa, no caso, real sidade que costuma assumir, ela se ajusta à (2005, p. 130). sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de Esse efeito de identificação da voz perto ao nosso modo de ser mais natural. narrativa à voz do próprio autor Fer- Na sua despretensão, humaniza; e esta hu- manização lhe permite, como compensação nando Sabino é provocado pelo fato de sorrateira, recuperar com a outra mão uma as minibiografias serem concebidas no certa profundidade de significado e um certo estilo de crônica, gênero caracterizado acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta pelo uso da primeira pessoa e pelo tom candidata à perfeição (1979, p. 5). informal. Gênero também predominante na obra de Fernando Sabino e no qual Assim, podemos inferir que Fernando ele se destaca como um dos mestres no Sabino vale-se de sua experiência como Brasil. Na maioria das crônicas do autor cronista para a produção de seus textos mineiro, observamos o pacto identitário narrativos mais longos e de maior porte. entre autor, narrador e personagem. A leveza, a simplicidade, o humor e o O mesmo verifica-se na narrativa dos próprio relato pessoal característicos da perfis: o autor Fernando Sabino posicio- crônica são encontrados, como aponta- na-se simultaneamente como narrador e mos, em toda a obra de Sabino.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 Desse modo, no perfil Duas mãos e o texto jornalístico e não literário. Ao sentimento do mundo, a ideia da figu- mesmo tempo, é possível perceber que ra do pianista como um “sujeito sério, a entrevista não está toda ali, mas ape- compenetrado, em geral de casaca”, que nas algumas declarações selecionadas não “olha para a gente, não fala nada, pelo próprio Fernando Sabino e que não sorri”, é desconstruída pelo autor, contribuem para compor a imagem do que apresenta o grande pianista Arthur biografado que o autor deseja transmitir. Moreira Lima como um “cara alegre, Assim como no perfil Duas mãos e o engraçado, descontraído e até mesmo sentimento do mundo, no qual Fernando desengonçado” (SABINO, 1996, p. 291). Sabino compara a Tal estratégia de humanização transfor- um “meninão”, também em A criança que ma, pela perspectiva de Sabino, um dos existe em nós, pa- maiores pianistas do mundo em menino: rece levar sempre consigo a criança que O que eu acho é que este garoto de 36 anos um dia foi. As declarações da dramatur- que tenho hoje à minha frente, simpático ga, portanto, são inseridas na narrativa e comunicativo, tomando uísque na minha casa e quase que só falando em futebol (a a fim de atestar essa imagem de menina: todo momento tenho de interrompê-lo e levar – Quando escrevo minhas peças, não penso o assunto de novo para a música) só deve se em crianças. Penso nas impressões mais tornar mesmo um pianista quando tem dian- vivas da minha infância. te de si um piano. Coisa, aliás, que ele con- Seus olhos brilham – os mesmos olhos da fessa detestar, quando não está trabalhando: – Casa que tem piano é fogo: não me dá sos- menina que eu via passeando na Praça da sego. Já bastam os pianos que a gente tem Liberdade, em : de enfrentar por aí nos concertos, cada um – Eu me dirijo a uma idade que não é nem pior que o outro. Há pouco tempo num con- das crianças nem dos adultos, fora do tempo, certo aqui no Brasil, me disseram: esse pia- aquela idade ideal que todos nós deveríamos no é respeitável, Rubinstein já tocou nele. ter (SABINO, 1996, p. 122). E eu comigo: pois então é respeitável de tão velho, deve ter mais de cinco anos. Um pia- Ao mesmo tempo em que escreve no, para ser bom mesmo, não pode ter mais sobre Maria Clara Machado, o autor de dois (SABINO, 1996, p. 191-192). escreve sobre si mesmo, ao relembrar a A narrativa desses pequenos ins- juventude de ambos na cidade de Belo tantes biográficos é, por vezes, como Horizonte. A narrativa, inicialmente podemos observar no fragmento citado, biográfica e jornalística, adquire um tom entrecruzada pela voz da personalida- nostálgico semelhante ao das memórias: de biografada. Isso porque Fernando Conversamos durante duas horas, sem se- Sabino, para a composição dos perfis, quer iniciar a entrevista que eu pretendia entrevistou muitos daqueles que seriam fazer com ela. Somos dois velhos amigos que se reencontram, na lembrança dos tempos personagens em Gente, a fim de ter ma- de infância vividos na cidade em que nasce- terial para a sua escrita. A transcrição mos. Aos poucos, fomos nos transformando naquilo que ela busca atingir com sua arte: dessas falas, entretanto, pode causar a criança que existe em nós (SABINO, a impressão de estarmos diante de um 1996, p. 124, grifo nosso).

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 A imagem da escritora, contudo, per- Temos em comum o gosto humilde da ale- manece em destaque na narrativa e, mais gria, a partir do hábito de nos tratarmos por apelidos. Para ele sou o De Lesseps (Ferdi- do que isso, figura como um reflexo da ima- nand de Lesseps), ou o Bacharel da Cana- gem que o próprio autor construiu de si. néia (“Cana”, na intimidade); para mim, ele A reevocação da infância e da juven- se chama Nicodemus, Nicanor. Nicomedes ou Nicobar, conforme a ocasião. tude do autor aparece também em outros Tenho flores silvestres. Faço versos nas perfis, principalmente nas biografias em ocasiões. Estudei o que dava para passar. que a personalidade retratada fez parte Mas nasci para dançar (SABINO, 1996, da sua mocidade, como é o caso dos perfis p. 244-245). de Paulo Mendes Campos e Ivo Pitanguy. No perfil de Ivo Pitanguy, Doutor Em Domingo azul do bar, Sabino relata 48 horas por dia, apenas descobrimos como conheceu Paulo Mendes Campos: a identidade do biografado na última A primeira vez que o vi, ele já era um rapa- linha do texto. Essa estratégia, de não zinho, cabelo caído na testa – e já o copo na anunciar de imediato quem é a perso- mão: o Paulinho, “perdido na dramaticidade nalidade em questão, ocorre na maioria existencial da poesia”. E eu, outro rapazi- nho, perdido na dramaticidade existencial dos perfis. Fernando Sabino inicia os da prosa. Numa festa na casa do cônsul textos descrevendo alguém que, em um inglês em Belo Horizonte, eu havia buscado primeiro momento, não sabemos quem é. com a namorada o recanto de uma varanda deserta, para ver se lhe furtava um beijo. As pistas deixadas na narrativa, entre- E dei com ele ali, copo na mão, sozinho, a tanto, nos permitem deduzir, em alguns conversar consigo mesmo e atrapalhar-nos casos, a identidade do biografado antes com a sua presença indiscreta. Tive de adiar de sua revelação pelo narrador. Mas, em o beijo. Mais tarde nosso primeiro encontro se Doutor 48 horas por dia, a identidade faria em termos já literários, aos dezesseis de Pitanguy pode ser confundida, em ou dezessete anos, no ardor de uma con- alguns momentos, com a de Hélio Pelle- versa em que discutíamos se Dom Quixote era escrito em prosa ou em verso. E nos grino, pois, tal como o cirurgião plástico, tornamos amigos para sempre (SABINO, Pellegrino também era estudante de 1996, p. 242). medicina e amigo de Fernando Sabino O perfil de Paulo Mendes Campos, desde a infância. de maneira semelhante aos demais que O cenário desenhado no perfil de Pi- integram Gente, entrelaça a narrativa tanguy é o da cidade de Belo Horizonte do autor com a fala do biografado. Essas na década de 1940, o mesmo da juven- falas são retiradas tanto das entrevistas tude do protagonista Eduardo Marciano quanto, no caso dos escritores, da sua em O encontro marcado: obra literária. Abaixo um exemplo desse entrelaçamento encontrado na narrativa sobre Campos:

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 Eu me lembro dele desde a infância – no característico da prosa do autor mineiro. tempo em que as quadrilhas de meninos em A narrativa assume, portanto, um cará- Belo Horizonte guerreavam a pedradas num lugar chamado buracão, onde é hoje o Minas ter híbrido, ao transitar livremente entre Tênis Club. Juntos disputamos as mesmas a biografia e a invenção literária. namoradas, no footing da Praça da Liberda- Ainda no mesmo perfil, depois de to- de e conhecemos as primeiras mulheres, no trottoir da Praça da Estação. Juntos fomos das as recriações da memória, o biografa- escoteiros, andamos de bicicleta, praticamos do tem, enfim, sua identidade revelada: natação, viajamos para Uberaba, Uberlân- Tudo considerado, posso dizer que o Helcius, dia, Caxambu, São Paulo, Rio, disputando como então ele era chamado, é meu amigo campeonatos (SABINO, 1996, p. 95). desde que nos entendemos por gente. Ivo A história de vida do biografado é, Helcius Jardim de Campos Pitanguy – Dr. Ivo Pitanguy, nome que se tornou uma le- então, misturada às lembranças, expe- genda (SABINO, 1996, p. 96). riências e percepções do narrador: Já em O menestrel de nosso tempo, Já era estudante de Medicina e a vocação herdada do pai se manifestava em toda a as características apresentadas não sua pujança. Quando me levou à sala de deixam dúvidas quanto à identidade do anatomia da Faculdade, era de se ver o biografado, e logo reconhecemos a figura prazer meio sádico com que ele abria, para de Vinicius de Moraes: me mostrar, umas caixas enormes cheias de cadáveres mergulhados em formol. Passei Outro dia ele me telefonou de Porto Alegre. três dias sem comer. Como vão as coisas? E aqueles longos silên- E ainda: caímos dos mesmos cavalos, pres- cios que me obrigam a falar sem parar, dan- tando serviço militar no CPOR. Tomamos do notícias, inventando assunto. O interlo- um de nossos primeiros pileques (de gim, cutor em geral não sabe que ele está fa- num botequim da Rua São José) e me lembro lando de dentro de uma banheira, onde que ele quis dar uma gravata no motorista permanece horas, copinho de uísque à do táxi que nos transportou até o hotel. No mão, papel e lápis para qualquer even- dia seguinte fomos curar nossa ressaca na tualidade, e o telefone para saber dos ressaca maior do Lido, enfrentando teme- amigos como vão as coisas. Telefona de rariamente as ondas gigantescas, como se onde estiver: de São Paulo, Recife, Lisboa, fôssemos imortais (SABINO, 1996, p. 95-96). Paris. Telefonava de Los Angeles para Nova York, onde eu morava, e me dava aflição a Não sabemos, todavia, até que ponto o distância entre as duas cidades, implicando papel da memória, na narrativa, é utili- uma conta de interurbano catastrófica para zado para contar o que de fato aconteceu. ele naquela época: Que é que você manda? Está precisando de alguma informação? É possível que muitas das rememorações Algum recado urgente? do autor sejam baseadas somente em E ele, com a voz descansada: situações ficcionais. Em algumas pas- – Não, é só pra saber como vão as coisas (SA- BINO, 1996, p. 19-20, grifo nosso). sagens, inclusive, nos deparamos clara- mente com um discurso ficcional, como Os relatos divertidos que compõem o quando o autor diz: “Passei três dias sem perfil de Vinicius de Moraes contribuem comer”. A exposição exagerada de tal epi- para a imagem que temos do poeta sódio confere ao texto um tom de humor como alguém “imperturbável”. Essa ca-

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 racterística, por conseguinte, pode ser Então, ao longo das leituras das crôni- associada à despreocupação própria da cas que compõem o livro, concluímos que idade infantil. Desta forma, Sabino, ao “mais do que o autor fala dessa gente, recriar um encontro entre ele e Vinicius essa gente fala do autor” (RESENDE, de Moraes, o faz de modo espelhado: 1996 apud SABINO, 1996, p. 10). E, de Trinta anos de convivência! Um dia desses modo especial, observamos essa marca marcamos um encontro. Escolhemos um bar de estilo no perfil “Improviso do amigo pouco frequentado, onde pudéssemos con- morto”, sobre Mário de Andrade. versar calmamente. E de súbito, solenizados diante de nosso uísque, em silêncio até ali, A narrativa sobre Mário é iniciada nos olhamos e começamos a rir: engra- dando destaque às correspondências çado esse nosso encontro para conversar. que o autor recebia, em sua casa, no Conversar o quê? Já não está tudo con- versado? Pois então vamos embora, não é famoso endereço da Rua Lopes Chaves, isso mesmo? E começamos a rir feito dois número 546, em São Paulo. Nesse ende- meninos, sem perceber que estávamos exer- reço, Mário de Andrade recebia cartas cendo o simples ritual da amizade além das palavras (SABINO, 1996, p. 21, grifo nosso). de escritores, artistas e amigos de todo o país; sua incontestável qualidade de Não fica claro, na narrativa, quem missivista também foi responsável pela proferiu as perguntas. Consta apenas amizade que criou com Fernando Sabino. que os escritores se olharam simulta- Sabino, no auge de sua juventude e neamente depois de um período em aspiração literária, envia a Mário seu pri- silêncio, e as atitudes seguintes também meiro livro, Os grilos não cantam mais. parecem ter sido simultâneas. É como se E recebe, para sua surpresa e satisfação, um escritor estivesse refletido no outro uma carta do missivista. No perfil, Sabi- e, nós, leitores, já não sabemos quem é no narra a impressão de tal momento: um e quem é o outro, talvez porque sejam Uma delas certo dia me chegou às mãos idênticos em sua meninice. Afinal, todos em Belo Horizonte. Mãos pressurosas em se transformam em menino nas histórias rasgar avidamente o envelope, na excitação de Fernando Sabino. dos dezoito anos, tão logo dei com o nome do remetente e o famoso endereço. Desse modo, observamos que, em Passei a ser respeitado em casa. [...] Ne- se tratando da produção de Fernando nhum estímulo poderia ser maior para um estreante na literatura que aquelas palavras Sabino, mesmo os textos que objetivam de aguda compreensão, apontando qualida- evidenciar a imagem do outro são utili- des e perdoando defeitos, que denunciava zados pelo autor como um veículo para com precisão (SABINO, 1996, p. 97-98). a construção de si próprio, pois A narrativa prossegue, mesclando [...] não estamos mais em um regime discur- recordações do autor com fragmentos sivo em que determinado número de normas de cartas e poemas de Mário de Andra- se impõe aos escritores; entramos num universo em que o escritor deve constante- de. Sabino descreve as dúvidas que o mente legitimar seu processo criativo ela- atormentavam na juventude, tanto na borando uma imagem de autor à medida de literatura quanto na vida, e a paciência sua obra (MAINGUENEAU, 2010, p. 152).

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 de Mário em responder a tamanhas O autor, em tom elogioso, narra uma inquietações: situação que o deixou decepcionado com Eu lhe confiava as minhas dúvidas e pre- Mário de Andrade. O missivista teria ocupações literárias, com o ardor dos que recusado o convite de ser padrinho de querem vencer a todo custo: o problema da casamento de Fernando Sabino. Com o sinceridade do artista, a importância ou desimportância do sucesso, a necessidade de passar do tempo, entretanto, Sabino per- escrever e ao mesmo tempo ganhar a vida, cebe o real motivo da recusa. Ao transpor o aprimoramento do estilo, a opção entre a tal situação para a narrativa, Sabino arte social e a arte-pela-arte, e outros temas oferece ao leitor o lado mais humano do em moda na época. Com sua paciência apos- tolar, ele me respondia longa e minuciosa- escritor paulista: mente, procurando me orientar no cipoal de [...] quem vivia praticamente da mão para minhas contradições. [...] a boca, conforme ele próprio fazia saber em Aos poucos fui passando das questões ar- suas cartas, sobrevivendo à custa de parca tísticas ou meramente estéticas para os remuneração pelo trabalho de professor problemas pessoais. Deveria ou não aceitar e pelos seus artigos em jornais e revistas, aquele emprego? Resistiria às tentações da quem às vezes não tinha nem como pagar facilidade, por mim confundida, segundo ele, o selo da correspondência mais avultada, com um falso conceito de felicidade? Em ou- quem não dispunha de recursos para uma tras palavras: o casamento em perspectiva, simples viagem de São Paulo para o Rio, não sendo eu tão jovem, não seria fatal para a poderia enfrentar por conta própria trans- minha vocação de escritor? (SABINO, 1996, porte e hospedagem em Belo Horizonte, ser p. 99). padrinho de um solene casamento realizado Nesse momento do perfil, observa- em ambiente oficial no próprio Palácio do Governo, vestido no mínimo de fraque. E mos semelhanças entre a narrativa de ainda por cima arcar com um presente que, “Improviso do amigo morto” e o romance a seus olhos, fosse digno de tão altas para- O encontro marcado: as incertezas que ninfagens. [...] Não se humilhou nas explicações que me afligiam o narrador-personagem Fer- deu, não era do seu feitio. Mas hoje posso nando Sabino na juventude parecem ver de maneira bem simples que seus empe- as mesmas que angustiam Eduardo cilhos deviam ser de ordem material – nem Marciano, a ponto de surgir em nós a por isso menos respeitáveis. E, de certa maneira, meu respeito e minha estima por seguinte questão: o texto é mesmo sobre ele aumentam ainda mais (SABINO, 1996, Mário de Andrade ou sobre Fernando p. 100-101). Sabino quando jovem? Ou, ainda, sobre Assim como o perfil de Mário de a recriação, no presente, do próprio autor Andrade, todos os textos reunidos em quando jovem? Gente assumem, como já observamos, Na verdade, “Improviso do amigo um caráter híbrido. Essa hibridização morto”, mais do que falar sobre Mário ultrapassa o problema da biografia e da ou Fernando, aborda a intensa amizade ficção, alcançando outros dois compostos: entre os dois escritores, a importância e biografia e autobiografia e, também, a influência que o “papa” do modernismo jornalismo e literatura. teve na vida e na obra de Sabino.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 A combinação entre biografia e au- sua literatura, pois, como observamos, tobiografia ocorre na medida em que, o próprio título atribuído ao livro, O para cada perfil delineado, constrói-se tabuleiro de damas, além da ideia de um segundo: o do próprio autor. E, entre um jogo entre o autor e o leitor, remete jornalismo e literatura, em razão da pu- a uma impossibilidade de encontrarmos blicação original dos perfis. Esses textos a verdade por meio do real. A verdade, foram escritos inicialmente para a im- segundo o autor, só pode ser alcançada prensa; no entanto, ao serem transferidos por meio da imaginação. Esses aspectos, para o livro, transcendem seu caráter efê- somados a outros, como a definição de mero, demonstrando qualidade literária. “esboço” conferida ao livro, os questio- A verve autobiográfica de Fernando namentos levantados sobre realidade e Sabino era de tal modo atuante que a ficção ao longo do texto e as alterações reinvenção de sua própria vida parece realizadas em edições posteriores da não ter sido suficiente para ele. Foi obra, esgarçam o pacto autobiográfico necessário, então, recriar outras vidas. estabelecido com o leitor. Ao menos é o que podemos notar nos A oscilação entre realidade e ficção, quarenta e quatro perfis que compõem entretanto, não parece ser provocada Gente. Assim, podemos concluir que, ex- pelo autor quando a narrativa aborda periência pessoal e representação literá- a formação literária. Nesses momentos, ria sempre foram os temas que ocuparam observamos a manutenção do pacto o campo de atuação do escritor. autobiográfico (identidade entre autor, narrador e personagem), até porque essa Considerações finais estabilização é importante para a ima- gem de si que o autor deseja construir. Os textos que misturam experiência Esse hibridismo característico dos pessoal e ficção ocupam, na atualidade, textos autobiográficos de Fernando um espaço expressivo nos estudos literá- Sabino é observado também no livro de rios, visto que as renovações e produções perfis do autor. Parece que o interesse no campo das escritas de si avolumam-se em recriar experiências pessoais por sobremaneira e não ameaçam cessar. meio da arte fez o escritor exceder a Nesse contexto, considerou-se pertinen- sua própria vida e elaborar também a te analisar a obra do escritor Fernando de outros escritores, como acontece em Sabino devido à notável tendência auto- Gente. A proposta do livro é apresentar biográfica de sua literatura e ao caráter aos leitores pequenas biografias de per- ambíguo dos textos do autor ao aproxi- sonalidades que fazem parte do universo marem vida e criação literária. pessoal e artístico de Fernando Sabino. Nem mesmo a “autobiografia” de No entanto, como vimos, não é possível Sabino afastou-se do caráter híbrido de ao autor apagar-se. Desta forma, en-

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 quanto descreve o outro, Sabino também Referências fala de si, terminando por misturar bio- grafia com autobiografia. ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dile- mas da subjetividade contemporânea. Rio de Lives as an invention product: Janeiro: EDUERJ, 2010. an analysis of Fernando BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Sabino’s writing as a Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. biographer and autobiographer BETELLA, Gabriela Kvacek. A lealdade da busca: Fernando Sabino fala sobre os outros Abstract e encontra ele mesmo, ou vice-versa. Ipotesi, This article aims to contribute to the Juiz de Fora, v. 9, n. 1-2, p. 123-124, jan./ research within the scope of the self- jun., jul./dez. 2005. Disponível em: . Acesso em: 10 no, author who made constant use of nov. 2014. life as a literary invention product. BLOCH, Arnaldo. Fernando Sabino: reen- For such purpose, the autobiographi- contro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, cal tenor pervading the work by the 2005. writer from will be in- CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. vestigated from two of his books: the In: SABINO, Fernando et al. Para gostar de autobiography draft O tabuleiro de ler: crônicas. São Paulo: Ática, 1979. p. 5-13. damas (1988) and the profiles book Gente (1975). In the autobiography, KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas we will notice that Fernando Sabino do outro: o retorno do autor e a virada etno- privileges the account of his literary gráfica. 2. ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. experiences to the detriment of his LEITE, Dante Moreira. Ficção, biografia e personal ones, thereby contributing to autobiografia. In: LEITE, Rui Moreira (Org.). the construction of an authorial ima- O amor romântico e outros temas. São Paulo: ge: the biographical one. In several Unesp, 2007. p. 43-52. passages of the narrative it is pos- sible to verify, too, the focus shift to LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfi- the description of other personalities co: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: wheras in the book Gente, in which UFMG, 2008. (Organização de Jovita Maria the intent is to evince the other, the- G. Noronha). re is, quite often, the representation MAINGUENEAU, Dominique. Imagem de of the writer. Thus, this paper is not autor: não há autor sem imagem. In: ______. limited to Fernando Sabino’s auto- Doze conceitos em análise do discurso. São biographical writing, it also analizes Paulo: Parábola, 2010. p. 139-156. another facet of the author: the bio- MIRANDA, Wander Melo. A ilusão auto- graphical one. biográfica. In: ______. Corpos escritos. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: UFMG, 1992. Keywords: Fernando Sabino. Autobio- p. 25-41. graphy. Biography. Self-image.

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - p. 217-238 - jan./jun. 2016 MOLLOY, Sylvia. Vale o escrito: a escrita au- tobiográfica na América Hispânica. Chapecó: Argos, 2003. ROCHA, Fátima Cristina Dias. Manuel Bandeira e as memórias de um simples poeta lírico. In: CHIARA, Ana; ROCHA, Fátima Cristina Dias (Org.). Literatura brasileira em foco: escritas da intimidade. Rio de Janeiro: Casa Doze, 2009. p. 65-82. SABINO, Fernando. Gente. Rio de Janeiro: Record, 1996. ______. O encontro marcado. 90. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. ______. O tabuleiro de damas. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. ______. Os quatro mineiros do apocalipse. Entrevista coordenada por Narceu de Almei- da Filho para Ele e Ela, 1979. In: ______. Cartas na mesa. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 303-315. ______. Um escritor na biblioteca: Fernando Sabino. Curitiba: BPP/SECE, 1985.

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