Anpuh Rio de Janeiro Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ Praia de Botafogo, 480 – 2º andar - Rio de Janeiro – RJ CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380

ANTÔNIO GENOVESI NA BIBLIOGRAFIA OFICIAL DO MARQUÊS DE POMBAL

Aline Brito de Oliveira – UFF Orientador: Guilherme Pereira das Neves - UFF

O século XVIII de nossa era pode ser caracterizado como aquele em que se erigiu um abismo praticamente intransponível entre duas realidades um tanto distintas: de um lado, a “vida como liturgia” 1, regrada, relativamente segura, tradicional, católica, ritualística, cuja memória é volátil e predominantemente oral; de outro lado, o advento de uma sociedade marcada pela crescente secularização, por progressiva tolerância religiosa, pela disseminação da alfabetização e pelo ataque direto às bases que mantinham firme e em pleno funcionamento a sociedade estamental e hierarquizada (típica de um período que será posteriormente qualificado como Antigo Regime ). O conflito inevitável entre estas duas formas de concepção da realidade deixou marcas profundas nos governos e em indivíduos como o Marquês de Pombal, em Portugal, e Antônio Genovesi, em Nápoles. A publicação da Enciclopédia francesa – empreendimento editorial a cargo do filósofo e do matemático Jean le Rond d’Alembert – promoveu uma espécie de revolução cultural que ultrapassou as fronteiras francesas e abalou as estruturas sociais instituídas desde o momento em que se propôs a ser, simultaneamente, uma obra de referência que pretendia colocar a disposição dos leitores todo tipo de conhecimento útil e empiricamente testado, e um manifesto dos princípios ilustrados, que deveriam ordenar o mundo cotidiano segundo pressupostos mais racionais. É neste complexo e relativamente disseminado contexto de ágil comunicação de novas idéias que vislumbramos o Império Português e seu modo praticamente feudal de lidar com as ciências, a educação, a economia e a política. A filosofia escolástica oficialmente continuava a impregnar Portugal e suas possessões até o dia 3 de setembro de 1759 quando, por uma decisão política que foi fruto de intensas disputas e debates, a Companhia de Jesus foi expulsa dos territórios portugueses e a educação, antes sob responsabilidade dos religiosos jesuítas, passou aos cuidados de um Diretoria Geral para ser ministrada

1 Guilherme Pereira das Neves. Rebeldia, intriga e temor no Rio de Janeiro de 1794. Comunicação à Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica. Curitiba: 26 a 30 de julho de 2004. p. 7. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2 aos súditos do Reino e das colônias em Aulas Régias, por professores qualificados e previamente examinados. A Reforma dos Estudos Menores de 1759 e a posterior Reforma da Universidade de Coimbra em 1772 se inserem em um quadro mais amplo de modificações e reorganizações levadas a cabo pelo paradoxal Sebastião José de Carvalho e Melo, nos termos de Kenneth Maxwell. 2 Nascido em Lisboa em 1699, estudante da Universidade de Coimbra, representante de Portugal em Londres e Viena entre 1738 e 1749 e ministro de D. José em um dos mais controversos períodos da história portuguesa, o Conde de Oeiras, posteriormente intitulado Marquês de Pombal, aproveitou conjunturas desfavoráveis à política e à economia portuguesa para testar as conclusões a que chegara no serviço diplomático e para colocar em prática uma série de modificações ansiadas e propostas há tempos por um certo meio intelectual específico de Portugal. De fato, o heterogêneo grupo dos estrangeirados promovia, com suas idéias importadas de vários cantos do continente, uma espécie de “crise de consciência”, que abalava a rigidez da tradição escolástica e trazia à tona uma releitura de Portugal no contexto das nações européias em formação, ou já em largo desenvolvimento. 3 Antônio Nunes Ribeiro Sanches, Luís Antônio Vernei, D. Luís da Cunha, Martinho de Pina e de Proença e Frei Manuel do Cenáculo contribuíram de forma definitiva para as reformas pombalinas do ensino, foram os mais importantes estudiosos a criticar a atuação jesuíta nos territórios portugueses e a enfrentar os diversos obstáculos institucionais e ideológicos que se opuseram ao intercâmbio com o exterior, ignorando o alheamento, a desconfiança, a intolerância religiosa e o insulamento político-diplomático para propor a filosofia racional como antídoto a toda paralisia reinante. Porém, apesar de toda ousadia e modernidade demonstradas através de atos e palavras, os estrangeirados não conseguiram fugir de uma espécie de “triagem” ou “filtro” ibérico, vinculado à manutenção, no ideário geral do Império Português, de um espírito ultra-católico e anti-reformista, que remonta às resoluções do Concílio de Trento, realizado entre 1545 e 1563. Arno Wehling sugere que a adesão à Contra-Reforma religiosa se deu pelo reforço da filosofia escolástica, representada em sua integridade pela ação jesuíta; pela instauração da Santa Inquisição no Reino e no Ultramar, sob responsabilidade da Ordem Dominicana; e pelo afastamento da filosofia laica e do experimentalismo

2 Kenneth Maxwell. Marquês de Pombal: o paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. 3 Francisco José Calazans Falcon opõe em A época pombalina duas vertentes historiográficas: a inaugurada por J. S. Silva Dias, que vislumbra uma relação ininterrupta de identidade portuguesa com o restante do continente europeu, ao longo de toda a Idade Moderna; e a de Hernani Cidade e Antonio Coimbra Martins, que não consideram um lento processo de integração portuguesa, sem maiores contendas ou choques, mas uma efetiva ruptura gerada pela crise mental da Restauração em 1640 ou, como especifica Coimbra Martins, um processo que se inicia com as guerras de 1688 e vai, pelo menos, até a Revolução Liberal de 1820. Cf. Francisco José Calazans Falcon. A Época Pombalina (Política Econômica e Monarquia Ilustrada). São Paulo: Ática, 1982. p. 316-318. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 3 científico dos quadros de todas as instituições de ensino, o que culminaria, finalmente, em uma distância significativa entre as formas de pensar da Europa “culta” e da Península Ibérica. 4 Certamente, os estrangeirados se pronunciaram contra a supervivência destas e de inúmeras outras indesejáveis heranças do passado, mas não abriram mão de certo pensamento eclético, que buscava preservar a fé católica e firmá-la, na medida do possível, sobre as sólidas bases da moderna filosofia européia. Pela necessidade de respeitar a tradicional herança católica e de manter a sociedade de ordens sob constante equilíbrio, esta “sociedade de Letrados” portuguesa foi buscar auxílio nas Luzes católicas, moderadas, mitigadas, oblíquas ou mediterrâneas; graças a apropriações específicas das leituras que fizeram e renegando todas as proposições deístas da filosofia moderna, este grupo vai preferir a Thomas Hobbes, Antônio Genovesi a , a Jean-Jacques Rousseau. Esta atitude meramente reformista – e nem de longe revolucionária – de adequação aos parâmetros gerais do pensamento europeu e de busca por um progresso dinâmico e funcional respeitador dos ditames cristãos guiará Vernei e Ribeiro Sanches, por exemplo, às obras do italiano Antônio Genovesi. A mediação que este filósofo proporciona entre os estrangeirados anteriormente referidos e a Ilustração francesa ou inglesa é extremamente agradável à “fôrma mental” 5 luso-brasileira e transforma algumas das maiores contribuições deste movimento intelectual em instrumentos palatáveis à edificação de um aparelho estatal renovado, de caráter menos dependente, mais público, racional, controlador e, por que não, absolutista. 6 Primogênito dos agricultores Salvatore Genovesi e Adriana Alfinito di San Mango, Antônio Genovesi nasceu em Castiglione, perto de Salermo, em 1º de novembro de 1713. Aparentemente influenciado pelo padre Dom Saverio Parrilli, transladou entre os estudos clássicos e filosóficos e os romances cavalheirescos, passando pelas pesquisas em Grego, Latim e Teologia Dogmática; acabou sendo ordenado sacerdote diante do Arcebispo de Salermo, Dom Fabrizio de Cápua, em 22 de dezembro de 1736.

4 Arno Wehling. A incorporação do Brasil ao mundo moderno. In: Maria Stephanou e Maria Helena Câmara Bastos (Org). Histórias e memórias da educação no Brasil, séculos XVI-XVIII. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. v. 1, p. 46. 5 Esta expressão foi formulada por Guilherme Pereira das Neves para se referir a Mariano José Pereira da Fonseca, implicado na Devassa de 1794 no Rio de Janeiro, mas define perfeitamente a tradição intelectual luso-brasileira em seus mais variados momentos. Cf. Guilherme Pereira das Neves. As máximas do Marquês: moral e política na trajetória de Mariano José Pereira da Fonseca. Comunicação ao 1º Colóquio Internacional da Companhia das Índias: Biografias e Microbiografias no Império Colonial Português. Niterói, 29 de março a 1º de abril de 2005. 6 Discussões recentes sobre o suposto caráter absolutista das monarquias européias podem ser encontradas em Fanny Cosandey e Robert Descimon. L’ Absolutisme en France: histoire et historiographie. Paris: Seuil, 2002; Marcelo Jasmim. Aléxis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política. Rio de Janeiro: Access, 1997 e Xavier Gil Pujol. Centralismo e localismo. Sobre as relações políticas e culturais entre capital e territórios nas Monarquias Européias dos séculos XVI e XVII. In: Penélope: Fazer e desfazer História , n. 6, 1991. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 4

Professor de Retórica no Seminário de Salermo por quase dois anos, Genovesi se transferiu para Nápoles em outubro de 1738 a fim de estudar com o padre Dom Sabbato Alfinito, ocasião em que manteve estreito contato com Giovanbattista Vico, iniciou seus estudos em Direito e suas classes de metafísica na Universidade de Nápoles. Foi nesta mesma Universidade que Genovesi, com o apoio de seu patrono florentino Bartolomeo Intieri, deixou de lado as “perigosas” indagações filosóficas para se tornar professor da primeira cátedra de Economia Política da Europa. Nesta oportunidade, desenvolveu suas três grandes obras: Metafísica Elementar (1743), A Instituição da Lógica (1746) e Lições de Comércio (1765); além do panfleto A verdadeira finalidade das Letras e das Ciências (1753), em que define, de acordo com preocupações ilustradas típicas daquele momento, a função social do aprendizado das letras e da língua materna e suas implicações filosóficas; além dos tratados Meditação filosófica sobre a religião e a moral ; Instituições lógicas para ensinar aos jovens e Cartas acadêmicas sobre a questão se mais felizes os ignorantes ou os sábios , cujos títulos bem delimitam os tópicos tratados. Antonio Genovesi foi herdeiro das questões suscitadas pela disputa entre a Accademia degli Oziosi (centrada nas figuras de Vico e Paolo Mattia Doria) e a Accademia delle Scienze (formada por Celestino Galiani e Bartolomeo Intieri), que tentavam definir se a aplicação dos métodos empíricos das ciências naturais era ou não compatível com a moral católica. 7 Influenciado principalmente pelas conclusões dos novatores da Accademia delle Scienze , Genovesi se utilizou largamente das teorias newtonianas para explicar o funcionamento do ser humano isoladamente e em sociedade, sem abrir mão da ortodoxia e da tradição e sem apelar para qualquer tipo de ceticismo ou ateísmo. Para ele, os estudos de Spinoza, por exemplo, eram inaceitáveis e heréticos, na medida em que identificavam Deus e Natureza; o Criador Supremo, relacional, que se fez humano, e sua criação complexa, mas destrutível e sujeita às mais diversas paixões. Sua “via média”, entre o racionalismo puro e a fé, compreendia uma ordem racional criada pela vontade divina e outra, secundária, capaz da auto-regulagem dos processos naturais. Em suma, Genovesi adaptou a mecânica de Newton à doutrina da criação do Gênesis. A obra selecionada pelos reformistas da Universidade de Coimbra para compor a bibliografia básica do recém-criado curso de Filosofia foi A Instituição da Lógica. 8 Dividida em cinco partes básicas (ou Livros), a Instituição trata, inicialmente, da natureza da mente e da alma humana, suas principais faculdades e operações; depois, discute sobre as idéias, seus tipos e classificações; em

7 Richard Bellamy. ‘Da metafísico a mercatante’ – Antonio Genovesi and the development of a new language of commerce in eighteenth-century . In: Anthony Pagden (ed.). The Languages of political theory in early-modern Europe . England: Cambridge University, 1990. 8 Laerte Ramos de Carvalho. As reformas pombalinas da instrução pública . São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1978. p. 169. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 5 terceiro lugar, aponta critérios para a apreensão da Verdade, da Falsidade e dos níveis de conhecimento do ser humano; em quarto lugar, expõe sobre o uso da Autoridade e da arte crítica; e, finalmente, discute os métodos de ordenamento de nossos pensamentos. Inúmeras proposições desta obra concorrem para que Antônio Genovesi seja classificado como um filósofo ilustrado aos moldes franceses, em especial aquelas que tratam dos temas gerais das Luzes, como a busca pela utilidade da Ciência e do Saber; a imperatividade dos sentidos na apreensão da realidade; a busca pela verdade universal dos fenômenos naturais e sociais; o rigor metodológico; a Lógica enquanto instância governante da razão ou a possibilidade que todos os seres humanos têm de indagar ou questionar as supostas verdades que se colocam através da tradição. Certas conclusões gerais, identificadas com as propostas da Enciclopédia francesa, deixam em evidência as marcas de um pensamento ilustrado, que valoriza mais a experiência e a prática do que tradição; um pensamento ilustrado que prega o exercício e a criação de um conhecimento útil a diversos fins; que ensaia a possibilidade de profissionalização dos filósofos-cientistas que se dedicariam exclusivamente ao desvendamento dos mistérios não mais sobrenaturais da natureza, à comparação dos fatos, ao estabelecimentos dos elos e à dedução das leis mais complexas que regem o funcionamento do universo. No entanto, mais interessantes são as conclusões que depõem a favor de um apego à Ilustração católica ou mediterrânica. Ao contrário do que se esperaria de um filósofo confiante nos benefícios e nas certezas do experimentalismo científico, Genovesi habitualmente duvida da capacidade humana de alcançar todo tipo de conhecimento. De acordo com o que declara nos capítulos IV e V do Livro Primeiro, muitas são as causas da ignorância e dos erros em geral, desde “doenças da alma” até amor próprio, soberba e inconstância; graças às suas incontáveis limitações intelectuais, às falhas dos sistemas do corpo humano (e conseqüente fragilidade dos sentidos) e à ingerência das forças divinas, com seu poder que se sobrepõem a todo e qualquer esforço dos mortais, o Homem não consegue alcançar a Verdade plena. Assim como Luís Antônio Vernei advogava o ensino de uma teologia positiva, fundada na História civil e eclesiástica, e Antonio Nunes Ribeiro Sanches aconselhava a criação de cadeiras de História sagrada e profana mesmo para o ensino primário, Antônio Genovesi fez uso da figura do historiador para discutir o que chamou de autoridade humana, que existe quando fatos ou dogmas não podem ser claramente observados ou compreendidos por todos. O historiador justo, “testemunha de ouvido”, deve ter crédito em seu trabalho já que, como os filósofos ilustrados, observava uma série de preceitos: perspicácia de entendimento, juízo, probidade. Mais uma vez, a hesitação diante da ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 6 potencialidade humana e do rigor metodológico justificam a adoção desta obra por reformistas que, segundo Laerte Ramos de Carvalho, “procuram harmonizar os interesses do sacerdócio com os do Império”. Cabe destacar o ecletismo, conceito imensamente valorizado pelos Ilustrados portugueses em suas reformas educacionais (e em sua filosofia pessoal, certamente) e várias vezes explicitado por Antônio Genovesi nas instruções que coleciona ao fim de cada um dos capítulos de sua obra. “Não jurarás em palavras de alguém; filosofarás com a liberdade dos ecléticos” 9 e “Terás liberdade na Filosofia; a ninguém darás mais crédito do que é justo; a ninguém te sujeitarás totalmente; filosofarás à maneira dos ecléticos” 10 são exemplos possíveis para se compreender a especificidade destas Luzes católicas, que sempre permitem uma “via média”, um caminho superficial e menos comprometedor entre os mais conservadores e os extremos radicais. Sujeitando a razão à moral, que é uma tendência gravada no coração humano pelas mãos divinas, Genovesi amortece o impacto, no mundo italiano e ibérico, das mais modernas teorias explicativas da realidade. Certamente, é um desafio maior do que o habitual analisar a trajetória ilustrada dos reformadores portugueses e de sua inspiração italiana, estando o pensamento ilustrado (e os estudos que sobre ele se realizam) tão vinculado às manifestações francesa ou inglesa; tanto mais quando se trata dos momentos capitaneados pelo Marquês de Pombal e de uma das obras adotadas em sua reforma pedagógica que, polêmicas à parte, pretendeu incorporar à administração portuguesa algum tipo de configuração racional. Antônio Genovesi e A instituição da lógica marcaram, de alguma forma, o pensamento e o currículo escolar até o século XIX, contribuindo para a já consagrada “Ilustração mitigada”, própria da formação intelectual luso-brasileira. Suas idéias manifestas o incluem em um grupo distinto daquele formado por d’Alembert e Diderot e reforçam o abismo que separa o mundo tradicional e cristão do Antigo Regime daquele secular, alfabetizado e de livre concorrência que se anuncia em fins do século XVIII. Em suas próprias palavras: “não sejas nada e nem muito amante de novidades: porque, primeiro, faz o homem um pouco mais estúpido e, segundo, mais arrogante”. 11

9 Antônio Genovesi. A instituição da lógica. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, 1977. p. 36. Textos Didáticos do Pensamento Brasileiro. 10 Ibid, p. 46. 11 Ibid, p. 36.