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7º ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

De 23 a 26 de julho de 2019

RELAÇÕES SINO-ANGOLANAS EM TORNO DA AGRICULTURA: CONTEXTUALIZAÇÃO E ESTUDO DE CASO ENVOLVENDO A EMPRESA JIANGZHOU

Economia Política Internacional

Trabalho Avulso

Luísa Correia Filho e Hoyêdo Nunes Lins Universidade Federal de Santa Catarina

Belo Horizonte 2019 2

RESUMO

A busca por recursos naturais, incluindo terra arável e água potável, tem sobressaído nas investidas internacionais de alguns países. A China constitui uma das melhores ilustrações desse tipo de movimento, como sugerido pela sua crescente presença na América Latina e, talvez sobretudo, na África, com investimentos (em infraestrutura, produtivos e outros) e articulações institucionais. Isso não surpreende, referindo-se a país que exibe tanto a maior população do mundo como uma marcada carência de recursos essenciais. De fato, representa motivação central para uma política externa com as características aludidas, a exploração de novas possibilidades de abastecimento em, principalmente, matérias primas energéticas e também em produtos da agricultura, em geral com seu envio in natura ao território chinês. Para as áreas além-mar implicadas nesse tipo de projeção internacional, todavia, a realidade pode se mostrar problemática para agricultores e comunidades, devido, talvez em primeiro lugar, às disputas por recursos essenciais. Este estudo se ocupa desse assunto, investigando a parceria governamental entre China e que resultou na criação da empresa Jiangzhou. Entre as atividades dessa organização, perfila-se a plantação de soja – sendo o produto enviado à China – em uma grande fazenda instalada no Município da Tchicala Cholohanga, pertencente à Província do , localizada praticamente no centro daquele país africano. Baseado em pesquisa documental e bibliográfica e, notadamente, em trabalho de campo na forma de levantamento de dados e informações in situ e de numerosas entrevistas realizadas no mês de setembro de 2018 – com agricultores, trabalhadores da empresa Jiangzhou e integrantes do staff de ministérios e de ONGs – , o estudo contextualiza a referida cooperação sino-angolana, caracteriza e descreve o respectivo empreendimento agrícola e aponta, com discussão, alguns de seus aspectos, sobretudo os relativos à disputa com a população nativa por terra e água e às condições impostas aos trabalhadores de origem local.

Palavras-Chave

Jiangzhou; Agricultura; Conflitos

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1 Introdução Angola é país da costa ocidental da África, com população estimada de 25,8 milhões em 2014, distribuídos entre 18 províncias, 162 municípios e 559 comunas. Luanda, a capital, é a cidade mais populosa, com 6,9 milhões de habitantes, representando 27% da totalidade dos angolanos. A língua oficial é o português, falada por 71% da população (sobretudo nas áreas urbanas), e também umbundu (a segunda mais falada), kikongo, côkwe, kimbundu, nganguela e kwanyama constituem línguas nacionais. A moeda do país é o kwanza, que em dezembro de 2018 figurava frente ao US$ na relação de 308 para 1. Como outros países da África subsaariana, Angola vem recebendo volumosos investimentos chineses. Uma importante manifestação no setor agrícola é o empreendimento sino-angolano denominado Jiangzhou Agriculture, Lda, uma parceria entre a empresa chinesa de Desenvolvimento de Tecnologia Agrícola Jiangsu Jiangzhou Co. Lda. e a empresa angolana Dajiang Construction Co. Lda. A incidência é quase o centro geográfico do país, na Província do Huambo, mais precisamente no Município da Tchicala Cholohanga. Essa província fica em área de planalto, acima de 1.774 metros de altitude, com população estimada de 2 milhões em 2014; isso representa 8% da população angolana, 52,3% residindo na zona rural. A Figura 1 permite observar a localização da Província de Huambo.

Figura 1 – Mapa de Angola com a localização da Província do Huambo

Fonte: Angola( 2017) 4

A província possui 11 municípios e 37 comunas. Tchicala Cholohanga, situado a 42 quilômetros a leste da sede da província, tem 103,6 habitantes, distribuídos em quatro comunas: Mbave, Samboto, Tchicala e Sambo, sendo a última o local da fazenda Jiangzhou Agriculture, Lda., que é adjacente à aldeia do Sachitemo. As comunidades rurais representam 52% população total, e a principal atividade econômica na província é a agropecuária. Ajudam a entender a atração sobre investimentos agrícolas, sobretudo estrangeiros, as condições climáticas e a fertilidade do solo, que favorecem produção e produtividade elevadas. De fato, Tchicala Cholohanga é rico em minerais e recursos hídricos, sendo origem de rios como Keve, e Cunene (este se encontra na área da fazenda da Jiangzhou). Os solos cultiváveis registram plantio de milho, feijão, batata (rena e doce), soja, trigo e hortícolas diversas, ao lado da pecuária bovina, caprina e ovina. Atributos como esses, presentes também em outras áreas do país, têm canalizado crescente interesse de investidores estrangeiros. Os chineses sobressaem fortemente, em relações sino-angolanas marcadas por projetos de financiamento ou investimentos na construção de infraestruturas, principalmente no setor energético. Mas se verifica igualmente uma atenção progressiva para com o setor agrícola de Angola, refletindo land grabbing também incidente na atuação da Jiangzhou na Tchicala Cholohanga. Este estudo se ocupa da presença da Jiangzhou Agriculture, Lda. no referido município. Seu objetivo principal, ao lado da contextualização da investida chinesa na África como um todo e em Angola em particular, é analisar o significado da atuação da empresa. A questão central diz respeito à expropriação de terras, origem de relações conflituosas com habitantes da aldeia do Sachitemo. A base do estudo registra, além de pesquisa bibliográfica e documental realizada inclusive em Angola, entrevistas in loco efetuadas em dois momentos: janeiro de 2018, com estudo exploratório para contatos com trabalhadores locais engajados pela empresa, objetivando-se perceber as chances de levantamento de informações; setembro de 2018, com as entrevistas. Cinco grupos de interlocutores participaram das entrevistas: agricultores individuais e residentes na aldeia do Sachitemo (13 entrevistas), trabalhadores nacionais da Jiangzhou (10 entrevistas), chefe de departamento do Instituto de Desenvolvimento Agrário (IDA), do Ministério da Agricultura (1 entrevista), chefe interino do Instituto Nacional de Cereais (INCER), do Ministério da Agricultura (1 entrevista), diretora da Organização Não Governamental (ONG) ADRA – Ação para o Desenvolvimento Rural e Ambiente (1 entrevista), totalizando 26 entrevistas. Também deram informações o advogado que defende os interesses da comunidade do Sachitemo e a Rádio MAIS, emissora local que disponibilizou depoimentos de moradores gravados para reportagens sobre a atuação da fazenda.

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2 Projeção chinesa na África subsaariana: aspectos gerais e foco em Angola O processo de abertura e reformas iniciado por Deng Xiaoping nos anos 1970 ajudou a China a atingir o posto de segunda maior economia no mundo algumas décadas depois, projetando-se internacionalmente em termos econômicos e políticos. Essa projeção se escora sobretudo em diplomacia e em capacidade financeira, além do próprio e irrecusável vigor industrial e comercial do país. Nesse processo, a China se aproximou crescentemente da África, com salto qualitativo nas relações sino-africanas, tendo esse continente passado a exibir grande importância na progressiva proeminência internacional da economia chinesa.

2.1 Uma nota sobre a presença chinesa na África Historicamente, o início das relações sino-africanas ocorreu em abril de 1955, na Conferência de Bandung, na Indonésia, com 29 países de Ásia e África. Somente 6 eram africanos – Costa do Ouro (atual Gana), , Etiópia, Libéria, Líbia e Sudão – sendo o reduzido número também explicado pelo fato de a maioria dos países africanos ainda se encontrar sob jugo colonial naquele momento. A conferência visou promover uma nova força política para estimular a cooperação econômica e cultural afro-asiática, em oposição ao que se via como colonialismo dos Estados Unidos e da (então) União Soviética, que em contexto de Guerra Fria disputavam abertamente a influência sobre todos os países. Na visão predominante em Bandung, as potências do norte, industrializadas, oprimiam os países do sul, inibindo o seu desenvolvimento. Com esse pano de fundo, a Conferência de Bandung enunciou 10 disposições sobre as relações internacionais, escoradas na Carta das Nações Unidas de 1945. Grande destaque foi atribuído à cooperação sul-sul. Nesse ambiente, a China, em contraste ao que prevalecia entre países ocidentais, apresentava alternativas à África com argumentos sedutores e conquistava a confiança de várias lideranças no continente. Assim, apesar das controvérsias e do desconhecimento sobre as reais intenções da China, as relações sino-africanas representaram, na esteira de Bandung, uma nova abordagem sobre o desenvolvimento no continente africano. O ponto central do discurso chinês sobre a relação com a África era o fortalecimento dos vínculos, sem ataques ou críticas ao Ocidente e sem a tentativa de incutir ideologias nos países africanos. Desde Bandung, as questões econômicas prevalecem nessas interações. O interesse da China por recursos naturais – por exemplo, urânio no Níger, fosfatos no Marrocos, petróleo em Angola, Sudão e Nigéria, ouro na Líbia e no Chade, manganês e minério de ferro na Argélia, coltan no Congo (Kinshasa) – é visto como traço maior das relações. Em vários países, esse interesse se manifesta acompanhado de investimentos chineses em infraestruturas, principalmente em conexão com o setor energético. Angola constitui eloquente ilustração, pois os principais investimentos chineses têm ocorrido nesse setor e também em obras públicas, incluindo barragens e estações hidroelétricas, 6

No final dos anos 1990 e início dos 2000, o comércio bilateral e os investimentos chineses se mostraram crescentes na maioria dos países africanos, sob o signo da política chinesa intitulada Going Global. Assinale-se que essa presença tem sido objeto de críticas diversas, nas quais não falta a indicação de neocolonialismo. Mas as posições são diversificadas, entre autores que pesquisam em áreas como economia política internacional, liderança e políticas globais e desenvolvimento regional, entre outras. Merecem realce, por exemplo, Moyo (2012), Hodzi (2018), Xu et al (2016), Chen (2018), Dreher et al (2017), Jin e Callagher (2018). Com efeito, para Visentini (2013), por exemplo, as relações sino-africanas são típicas da cooperação do tipo sul-sul e contribuem para criar um espaço geopolítico meridional em que os oceanos Atlântico sul e Índico adquirem papel econômico e político estratégico. De outra parte, entre as críticas esgrimidas no Ocidente, destacam-se as que sugerem estar a cooperação sino-africana impulsionando o declínio da importância dos países ocidentais na África. Contudo, pesquisadores e líderes políticos africanos argumentam que a China representaria um “parceiro sincero” para seus países. Por exemplo, o diretor do Instituto de Pesquisa e Diálogo para a Paz, instalado em Kigali (capital de Ruanda), considera que “[...] a China está oferecendo uma alternativa mais confiável aos investimentos mais tradicionais em relação aos países ocidentais” (XINHUA NEWS, 2018, S.p). Isso é visto com tanto mais bons olhos na medida em que a chamada “tragédia africana”, amargada desde meados dos anos 1970, tem sido em grande parte atribuída às ações ocidentais, principalmente dos Estados Unidos (ARRIGHI, 2002). A Cooperação China-África exibe duas modalidades básicas: uma multilateral, que abrange o conjunto dos países envolvidos nos fóruns de cooperação, e uma bilateral, que concerne às relações da China com cada país individualmente. Na primeira, as relações econômicas e comerciais com a China ocorrem através do Fórum de Cooperação China- África (FOCAC) e do Fórum para Cooperação Econômica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, também designado Fórum de Macau. O FOCAC, instituído em outubro de 2000, representa mecanismo de consulta e diálogo coletivo. Além de ser o primeiro fórum desse tipo na história das relações sino-africanas, representa um grande passo nessa cooperação, orientado ao futuro, e sobressaindo como importante modelo na cooperação sul– sul (VISENTINI, 2013). Não é fácil sistematizar as visões sobre a política externa chinesa para continente com 54 países. Assim, o conhecimento sobre o assunto cresce com pesquisas sobre as relações bilaterais entre a China e países específicos, observando os reflexos de longo prazo nas estruturas políticas e econômicas dessas sociedades. Como maior parceiro comercial da China na África, e anfitrião de cerca 250 mil migrantes chineses, Angola representa uma 7

significativa experiência nesse sentido, mesmo que a estimativa sobre esses migrantes seja precária (SCHMITZ, 2018). Além das dificuldades de registro, fatores como corrupção e ineficácia no controle das fronteiras e da imigração dificultam a obtenção de dados confiáveis, um problema aparentemente generalizado na África (COOK et al, 2016).

2.2 Angola no roteiro africano da China Conversações na França, em janeiro de 1983, entre as delegações comerciais de Angola e China marcaram o início das relações diplomáticas oficiais entre os dois países. O objetivo era alargar a cooperação em termos econômicos, comerciais e sociais (ANGOLA, 2015). Depois, almejando obter financiamentos devido à queda do preço do petróleo na década de 1990, o governo angolano tentou aproximação com Taiwan, o que, todavia, não resultou em relações diplomáticas, pois a China passou a importar petróleo de Angola, em 1993, evitando o aprofundamento daquela cooperação: era exigência chinesa o não reconhecimento do governo de Taiwan por Angola (VISENTINI, 2013). Com a paz no país africano, atingida em abril de 2002 após persistente instabilidade política, definiu-se como prioridade reconstruir as principais infraestruturas angolanas. Instituições internacionais, como o FMI, haviam recusado o financiamento, alegando falta de transparência do governo. Nesse contexto, desde novembro de 2003 as relações de cooperação econômica entre Angola e China foram impulsionadas, com recursos financeiros canalizados pela segunda no marco do Programa de Reconstrução Nacional do governo angolano. Mirava-se um grande volume de projetos de desenvolvimento econômico e social, principalmente envolvendo infraestruturas (ANGOLA, 2015). O pilar dessas relações foi o financiamento, via instituições como o Banco de Desenvolvimento da China e o Banco de Exportação-Importação da China. O país asiático aceitara criar linha de crédito de US$ 3 bilhões para a reconstrução de Angola, inaugurando “modelo” tipificado pela troca de recursos do país parceiro por infraestruturas instaladas. Melhorias em portos, rodovias, ferrovias e minas foram pagas com produtos primários, sem gerar dívidas, um instrumento crescentemente usado na política externa chinesa para o continente africano. Observe-se que, embora visto como investimento pelo governo chinês, para o angolano isso significava financiamento ao desenvolvimento (CARMO, 2013). As motivações para tais acordos variam conforme os traços de cada país africano. Além disso, há evidências de implicações como armadilha da dívida, enfrentada por muitos deles. Outro aspecto é o interesse da China em ativos estratégicos nesse continente (ativos de índole militar e de inteligência), assim como em recursos energéticos, e interesse também em supervisionar grandes contratos de infraestruturas e recursos naturais (ABI-HABIB, 2018). O arranjo financeiro geralmente inclui o uso de mão de obra chinesa nos países africanos, provocando intenso fluxo migratório. Dado o grande desemprego, isso não deixou 8

de provocar situações conflituosas em Angola envolvendo a população local. Os empréstimos são operacionalizados como uma conta corrente mantida na China, sob titularidade do governo do país devedor, e as parcelas dos contratos são pagas diretamente às empresas selecionadas. A linha de crédito concedida a Angola implica banco em Hong Kong, que, em convênio com o Banco Nacional de Angola, avalia o montante a ser direcionado a cada projeto de investimento (MENEZES, 2013; ANGOLA, 2015). Para Chen (2018), ao combinar ajuda oficial e créditos de exportação, a China desafia o paradigma de financiamento ao desenvolvimento dos países industrializados – permeado da ideia de “doação” do Norte – e pratica modo simultaneamente apoiado pelo Estado e baseado no mercado. Esse sistema (espécie de capitalismo estatal) ganhou força sobretudo na África subsaariana, mostrando-se atraente por prometer, aparentemente, os melhores e mais rápidos avanços nos padrões de vida da população. O Estado chinês proporciona financiamento de infraestrutura não através da alocação direta de receita fiscal, mas pelo aumento de credibilidade dos projetos por torná-los financeiramente acessíveis ao mercado. A maioria dos empréstimos assim concedidos dirigiu-se às regiões em desenvolvimento, e entre os 20 principais tomadores, entre 2000 e 2014, estão 5 países africanos: Nigéria, Etiópia, Gana, Mali e Angola, que ocupa o 8º lugar na lista total (CHEN, 2018; DREHER et al, 2017). Em Angola, grande parte desse financiamento se dirige ao setor energético, mormente à construção de barragens, destacando-se o projeto da barragem de Caculo–Cabaça, localizada na bacia do médio Kwanza, província do Kwanza Norte, iniciado em agosto de 2017. De estimados US$ 4,5 bilhões, o contrato prevê aumento da capacidade de produção elétrica do país para 9.000 Mwe. Também ilustram o destaque concedido às infraestruturas estratégicas o novo aeroporto internacional de Luanda, o caminho de ferro de e a reabilitação dos sistemas de irrigação de barragens (OURIQUES; AVELAR, 2017). O “modelo angolano” de assistência ao desenvolvimento imprimiu intensidade aos vínculos comerciais China-Angola, com reflexos nas economias de ambos os países. O petróleo figurou no centro dessas relações, e Angola se tornou o principal fornecedor africano desse recurso para a China (CARMO, 2013). Em 2015, a China importou US$ 16 bilhões de petróleo de Angola, o equivalente a 8% do total das correspondentes importações chinesas, figurando o país africano como 3º maior parceiro comercial da China no tocante ao petróleo, e o 1º na África (EOM et al., 2017). A forte entrada de receitas oriundas das vendas de petróleo permitiu ao governo angolano reconstruir o país e estimulou algum desenvolvimento de outras atividades. Trata- se de algo importante, pois cerca de 80% das receitas fiscais de Angola provinham do petróleo, que representava perto de 98% das exportações desse país. De todo modo, Angola permanece muito dependente desse setor, justificando um permanente empenho para 9

diversificar a economia, em processo no qual se atribui à agricultura um papel chave, estratégico (CARMO, 2013). Cabe observar que o crescente comércio entre China e Angola (e também com outros países africanos) baseia-se igualmente na criação de zonas econômicas especiais (ZEEs). Representando uma das formas de atuação da China na África, essas zonas foram um importante instrumento de promoção da própria economia chinesa, com fomento industrial e das exportações (GEREFFI, 2007). A criação de ZEEs africanas começou em 2006, quando o governo chinês anunciou apoiar cerca de 50 dessas zonas no continente. Em Angola, foi criada em 2009 a ZEE Luanda–Bengo, compreendendo 7 reservas industriais, 6 reservas agrícolas e 8 reservas minerais, nos municípios de Viana, e Icolo e Bengo, na Província de Luanda, e nos de e , na Província do Bengo. Além de comércio e investimentos mormente em infraestruturas para o setor energético, também a agricultura tem sobressaído nas relações sino-africanas, não representando exceção as sino-angolanas. Em 2002, o governo chinês institucionalizou a já mencionada política Going Global, com portfólio de numerosos projetos de infraestruturas e incentivos para promover a internacionalização de suas empresas. Isso incluiu financiamentos e facilitação de processos administrativos, com apoio fiscal e empréstimos, para investimentos diretos no exterior. O destaque da agricultura transparece no fato de que mais de 40 empresas chinesas compraram 253 mil hectares de terra em 23 países africanos entre 1987 e 2016; desse total, 41% foram adquiridos em Camarões. Em Angola, entre 2011 e 2014 mais de 91 mil hectares foram adquiridos por 4 empresas chinesas: CITIC Construction, CAMC, CEIEC e CAMC Engineering. As atividades realizadas incluem, principalmente, plantio de grãos, leguminosas e cereais, assim como criação de gado (BRAUTIGAM, 2018). Outra forma de engajamento de empresas chinesas na agricultura africana refere-se à cooperação técnica, pela construção de centros de demonstração de tecnologias agrícolas (Agricultural Technology Demonstration Centers, ATDCs, em inglês), considerados um modelo alternativo de busca de sustentabilidade nessa ajuda externa. Foram 23 os países africanos que receberam ATDCs, cujas principais atividades incluem treinamento e demonstração de tecnologias agrícolas, além do cultivo de grãos. Embora envolvidos com tecnologia, integram processo social e político em implementação no continente africano (XU et al., 2016). Em Angola está em construção desde 2016 o Centro Piloto de Tecnologia Agrícola, primeiro ATDC do país, no Munícipio do Icolo e Bengo (Província de Luanda). De conclusão prevista para o final de 2019, a obra é realizada pela chinesa Xingjian Bei Xin Construção e Engenharia Co., Ltda. O Ministério da Agricultura de Angola fornece energia elétrica, água e segurança no local da obra (ANGOLA, 2015). 10

A China tem enviado técnicos agrícolas e pessoal para treinamento na África, um aspecto das relações sino-africanas representativo do soft power chinês na intervenção no continente. Também cresceu a cooperação cultural e educacional, pela concessão de bolsas para estudantes e capacitação para técnicos dos governos africanos (VISENTINI, 2013; MENEZES, 2013). Em 2015, mais de 160 agrônomos chineses haviam passado ao menos dois anos em países africanos, analisando os desafios do setor agrícola e as oportunidades na troca agricultura-tecnologia entre China e África. Mas não é só de agricultura que se trata. Em abril de 2018, as 200 bolsas de formação técnica anunciadas pela Embaixada da China em Angola para jovens angolanos, referiam-se a finanças, infraestruturas, saúde, logística, minas, comunicação social, turismo, comércio e investimento (BUCKLEY et al, 2017; ANGOP, 2018a). Realizados nas cidades chinesas de Beijing, Shanghai, Changsha e Nanjing, os cursos durariam de 20 a 30 dias. A parte chinesa assumiria os encargos de logística na estadia dos bolsistas, permitindo-lhes conhecer experiências de desenvolvimento e costumes locais. A China mira o aprendizado da sua língua pelos africanos. Reportagem da alemã Deutsche Welle (2018) mostrou que em Ruiro, ao norte da capital do Quênia, crianças e adolescentes estão aprendendo o mandarim; em Moçambique, iniciou-se a construção de um centro cultural Moçambique-China; em Cabo Verde, em 2017 o ensino de mandarim passou a estar disponível em escolas no 9º ano do ensino fundamental, mudando situação anterior em que só estudantes universitários tinham acesso. A crescente presença chinesa, sobretudo na agricultura, impõe o conhecimento dessa lingua, pelo interesse no emprego. Em comunidades como a angolana Sachitemo, por exemplo, não há muitas alternativas ao trabalho com empregadores chineses, apesar dos problemas de comunicação. Esse aspecto, entre outros, marca o investimento agrícola sino- angolano materializado na Jiangzhou Agriculture, Lda.

3 A Jiangzhou no Município da Tchicala Cholohanga: perfil e implicações O agente corporativo cujas atividades motivaram a realização deste estudo é uma joint-venture entre duas empresas. De um lado, a Empresa de Desenvolvimento de Tecnologia Agrícola Jiangzhou Co. Lda., que operou entre 2013 e 2015 no Município de (Província do Bié), porém teve o seu contrato com o governo provincial interrompido quando sua fazenda passou à tutela do Fundo Soberano de Angola (FSDEA). De outro lado, a empresa angolana Dajiang Construction Co. Lda., que se dedica maioritariamente às atividades de construção e engenharia. A joint-venture é a Jiangzhou Agriculture, Lda. (doravante referida simplesmente como Jiangzhou), aprovada sob regime contratual segundo despacho do Presidente de Angola (de n.º 173/17 de 10 de julho de 2017). 11

O empreendimento da Jiangzhou no Município da Tchicala Cholohanga dedica-se ao cultivo de cereais e leguminosas (milho, trigo, soja, arroz) e de produtos hortícolas, e também à criação de gado bovino e caprino, com produção destinada a mercados como China, Portugal e Brasil. Suas atividades locais começaram em julho de 2016, embora o contrato de investimento com o governo angolano tenha sido firmado um ano depois. Segundo informação da agência de notícias angolana (ANGOP, 2017), no tocante à responsabilidade social a iniciativa sino-angolana previa a construção de uma escola com 12 salas de aula e um centro de saúde, e a atribuição de 12 bolsas de estudos para habitantes da aldeia do Sachitemo, contigua ao empreendimento. A seguir expõem-se e discutem-se pontos de vista captados na pesquisa de campo sobre a presença e a atuação da Jiangzhou nessa área. As considerações mais agudas referem-se aos seguintes problemas: expropriação de terras (comunitárias), originando conflito entre a empresa e famílias de agricultores; restrição da prática agrícola familiar; falta de diálogo entre as instituições governamentais locais e a comunidade para resolver o conflito. De outra parte, depoimentos de trabalhadores angolanos recrutados apontaram jornada de trabalho excessivamente longa e extenuante, péssimas condições laborais (incluindo agressões físicas), salário baixo e dificuldades na comunicação com os chineses, sendo a língua uma importante barreira.

3.1 Expropriação de terras: conflito entre a Jiangzhou e agricultores do Sachitemo A expropriação de terras e os problemas associados configuram tema dominante em Angola, pela alta frequência de conflitos. Em 2016, 2,5 mil registros de ocupação figuravam na base de dados do Instituto Geográfico Cadastral de Angola (IGCA), na Província do Huambo. No primeiro trimestre de 2018, no Município da Tchicala Cholohanga, 230 conflitos foram detectados pela direção local do Ordenamento do Território, Urbanismo e Ambiente (ANGOP, 2016; ANGOP, 2018b). Dois enfoques marcam os debates sobre esse assunto. Um deles é jurídico–estatal, permeado pelo que dispõe a Lei de Terras (Lei nº 9/04, de 9 de novembro de 2004). O outro tem como objeto as terras comunitárias em zonas rurais, onde tende a incidir o Direito costumeiro por intermédio dos Sobas, líderes rurais ou tradicionais que organizam e mobilizam as comunidades. Segundo informações disponíveis em FAO (2018a), a própria Lei de Terras preserva o direito das comunidades e dos sistemas tradicionais de posse. Nos seus termos, o Estado é o proprietário de origem, e a utilização privada para agricultura rege-se pela transferência dos direitos de posse perpétua, com exigência de justificativa para cada ação nesse sentido. Conforme essa lei, as licenças ou os títulos de propriedade e posse são concedidos por: autoridades tradicionais da aldeia (Sobas), para parcelas que não excedam 2 hectares; 12

autoridades municipais/comunais para áreas compreendidas entre 2 e 1000 hectares; governadores ou autoridades provinciais, para as áreas de 1 mil a 10 mil hectares; governo central, para áreas superiores a 10 mil hectares. Sobre o projeto da Jiangzhou, em área inicial de 7 mil hectares, houve manifestação de interesse pela administração municipal da Tchicala Cholohanga, após nota divulgada pelo governo provincial. Mas, nos sistemas tradicionais (rurais) de gestão das terras, é o chefe da linhagem, sobretudo o Soba da aldeia, que divide os terrenos pelos membros ativos da comunidade, conforme as necessidades de alimentos e lenha. Tal situação faz recordar a abordagem de Zaoual (2006) sobre o desenvolvimento em realidades especialmente do Sul, com epistemologia que “[...] associa os mundos simbólicos e morais dos homens e suas práticas cotidianas” (ZAOUAL, 2006, p. 31). O Soba também pode conceder o direito de exploração de terras a imigrantes, consultando o chefe geral da aldeia (conhecido como Seculu, geralmente um ancião local). Na prática, cada membro adulto da família tem ao menos duas parcelas: uma para a estação chuvosa e outra para a estação seca. Tudo isso significa que, em ambientes nos quais a obtenção da posse da terra se baseia no direito comunitário, tradicional, não ocorre emissão de títulos de propriedade por parte de órgãos governamentais (FAO, 2018b). Dessa forma, os conflitos registrados têm a ver, fundamentalmente, com a falta de títulos de propriedade junto a uma das partes envolvidas. Esse problema se apresentou com respeito ao empreendimento da Jiangzhou. Segundo o advogado que defende os interesses da comunidade do Sachitemo, entrevistado no Município do Huambo em 24/09/2018, houve negociação com participação tanto de membros da empresa como de representantes do governo provincial. Segundo o advogado, “Durante as negociações apuramos que a empresa não tinha nenhum documento, como título de propriedade, para exploração da área. Um dos representantes da empresa começou a dar algum dinheiro às pessoas da comunidade, por trás das negociações”. Era, portanto, de suborno que se tratava, e, sobre isso, o Soba da comunidade do Sachitemo, entrevistado em 22/09/2018, assinalou: “Ouvi dizer que alguns recebiam dinheiro, [...] e as pessoas abandonavam as suas lavras e tinham de procurar onde trabalhar. Nós não queremos isso; queremos que nos façam um hospital e uma escola, mas desde o início até hoje nada está a aparecer”. O problema se agudizou com o processo de expansão das atividades da Jiangzhou, em curso desde julho de 2016, que reverberou em conflito sobre as terras comunitárias. São sugestivas a respeito as declarações do Soba local, colhidas em entrevista na comunidade do Sachitemo em 22/09/2018, e as palavras de agricultores locais extraídas de reportagens de uma rádio do município do Huambo, que agregam detalhes sobre a situação:

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As nossas terras foram desapropriadas; não temos mais o que fazer. Desapropriaram no Pungúa, Kangalo, Kasseque e Sachitemo. Estão a arrancar tudo, a partir da Fátima, para os chineses (Depoimento de agricultora do Sachitemo registrado pela Rádio MAIS em 21/02/2017).

Essa realidade conflituosa, com elevada tensão, deu origem a processo judicial no tribunal provincial do Huambo a partir do ajuizamento de ação de restituição de posse pelo advogado que defende os interesses dos agricultores. O processo encontra-se em andamento, sendo o quadro, contudo, complexo. De fato, o acesso à terra no meio rural ocorre mediante compra, empréstimo ou herança, na maioria das vezes com obediência ao direito costumeiro. Embora o direito positivo estabeleça que a terra é propriedade originária do Estado, as comunidades rurais têm enfrentado dificuldades para gerir conflitos provocados por apropriação/expropriação de terras. São sugestivos os comentários do Regedor, uma autoridade local, sobre o assunto:

O projeto, quando veio nesta, área já encontrou lavras; esta é uma área em que o Sachitemo já estava. O terreno é mesmo do povo; aqui não há reserva do governo. Há reserva do governo, talvez, [só] na área de entrada da aldeia [...]. No início, quando reclamamos, o administrador municipal disse que a terra é do governo, conforme a lei. Nós sabemos que terra do governo [é só em algumas...] parcelas. Apesar disso, nós aceitando ou não, o projeto não para; estão sempre a derrubar as lavras [e ampliando a área de produção] (Entrevista com o Regedor do Sachitemo em 22/09/2018).

Também eloquentes são os depoimentos de agricultores do Sachitemo extraídos das aludidas reportagens da Rádio MAIS:

Esses terrenos antes eram dos nossos mais velhos [avôs]; aí deixaram para os nossos pais e estes deixaram para nós; é muito tempo. Depois nossos filhos vão cultivar onde? Não tem lugar (Depoimento de agricultora do Sachitemo registrado pela Rádio MAIS em 21/02/2017).

Nós temos filhos, daqui a nada vamos ter netos. Agora, como faremos? [...] temos que fazer qualquer coisa (Depoimento de agricultor do Sachitemo registrado pela Rádio MAIS em 23/02/2017).

Pegaram nossas terras, não temos mais o que fazer. O Governador deve fazer tudo para nos ajudar; nos deixarem alguma parcela só para trabalharmos. Quando vamos [trabalhar] nas terras dos outros, começam a nos enxotar: [dizem que] aqui não é vossa terra. Esses terrenos eram dos nossos bisavôs e nos ajudavam com a agricultura (Depoimento de agricultor do Sachitemo registrado pela Rádio MAIS em 21/02/2017).

Para além da questão dos direitos costumeiros, outra preocupação causada pelo conflito de terras refere-se à restrição à agricultura familiar, principal atividade – com cultivo de mandioca, batata-doce e milho, por exemplo – e fonte básica de subsistência e renda das famílias do Sachitemo. Os agricultores com terrenos (lavras) dentro da área do projeto da Jiangzhou afirmaram enfrentar grandes dificuldades para irrigar suas terras em períodos não chuvosos, porque ficaram sem acesso ao rio Cunene. 14

O problema da irrigação ameaça a própria subsistência dos agricultores. Assim, é aspecto da problemática da fome e da pobreza no meio rural, de uma maneira geral e, em particular, na comunidade em questão. Nesse contexto, mostra-se pleno de significado um depoimento como este, colhido junto a uma agricultora do Sachitemo em 21/02/2017 pela Rádio MAIS: “Os nossos terrenos [foram tomados]; não tenho marido; tenho de trabalhar para as crianças comerem, não tenho quem me ajude; está mal, estamos mesmo a chorar. [...] O governo tem que fazer algo, para podermos cultivar”. Não foram poupados de críticas, relativamente à conduta e à forma de condução do problema, os quadros técnicos e administrativos do setor público em nível comunitário e municipal. Segundo o Regedor, entrevistado no Sachitemo em 22/09/2018, “O Administrador [comunal] do Sambo, que assistiu a vinda do projeto, [...] sensibilizou o povo com muitas mentiras; como somos povo simples, onde podemos nos queixar se o governo nos faz essas coisas?” A falta de diálogo foi problema salientado: “Isso só está assim por falta de falar com a população”, afirmou agricultor entrevistado no Sachitemo em 22/09/2018. Quando se perguntou se os agricultores haviam buscado instâncias superiores, como a administração comunal e municipal, ouviu-se que “A administração da Tchicala Cholohanga é a mesma que está a desapropriar a terra das pessoas. Vão resolver o quê? Não conseguem resolver nada!” (Depoimento de agricultor registrado no Sachitemo pela Rádio MAIS em 23/02/2017). A falta de diálogo entre as partes envolvidas foi apontada entre as causas principais do agravamento do conflito sobre terras entre a Jiangzhou e as famílias do Sachitemo: “O administrador [municipal] não se mostrava disponível para o diálogo”, afirmou o Regedor local em entrevista no Sachitemo em 22/09/2018. Outro fator da intensificação é a dificuldade dos agricultores para legalizar suas terras junto à administração pública. Fala de agricultor local, registrada pela Rádio MAIS em 23/02/2017, destacou que “Há certos dirigentes que trabalham muito mal. É complicado; você é o dono da terra, tenta legalizar e quem está à frente numa administração não aceita [...]. Agora não sei se a própria Angola é só para os dirigentes, ou se é para a maioria”.

3.2 Posições sobre a atuação da Jiangzhou registradas em instituições Apreciações institucionais foram levantadas em órgãos do governo, como o Instituto de Desenvolvimento Agrário (IDA) e o Instituto Nacional de Cereais (INCER), ambos do Ministério da Agricultura. Também se consultou a ONG nacional ADRA, já mencionada. As considerações registradas mostraram semelhança e focalizaram as características do empreendimento da Jiangzhou, o problema da expansão da área da fazenda (origem principal dos conflitos mais agudos) e os reflexos locais das atividades em questão. 15

Chamou a atenção a unanimidade das manifestações sobre a falta de informações e o consequente desconhecimento que prevalecia sobre as atividades da Jiangzhou. O chefe de departamento do IDA, entrevistado no Município de Huambo em 24/09/2018, assinalou: “Já ouvi falar, mas nunca fui lá”. O chefe interino de departamento do INCER, também entrevistado em Huambo na mesma data, destacou: “Temos conhecimento da empresa, mas nunca fomos lá; não temos pernas para andar: digo isso porque não temos meios de lá chegar, pela falta de transporte”. A diretora da ADRA, entrevistada em Huambo em 21/09/2018, corroborou o problema da opacidade: “Temos conhecimento da existência da empresa, mas com pouca informação. Não temos informação sobre a essência do trabalho que desenvolve. Percebemos a existência por causa desse conflito que surgiu”. Sobre a pretensão da empresa em ampliar a área de produção, origem básica do agravamento do conflito com os agricultores da aldeia do Sachitemo, assim se manifestaram os entrevistados:

A questão de posse e uso de terras é de inteira responsabilidade do governo da província [...]. O IDA [...] não tem nenhuma interferência; mas, em termos de informação aos camponeses, temos, nas Escolas de Campos de Agricultores, a [...] formação [...] sobre a necessidade de legalização das terras [...]. É preocupação do governo de Angola clarificar a questão das terras comunitárias, que não devem ser usurpadas por terceiros. [...] Nós, enquanto instituição que apoia o desenvolvimento comunitário, temos que fazer chegar [essa preocupação] às instituições e dar o nosso ponto de vista para que as comunidades consigam delimitar as suas terras, isso em parceria com instituições como a FAO, que desenvolveu o projeto Terras. O posicionamento do IDA é dar informação aos grupos para que despertem para a importância da legalização de terras, e procurar parceiros nacionais e internacionais que possam trabalhar de forma prática na delimitação de terras comunitárias (Entrevista com o chefe do departamento do IDA realizada no Município do Huambo em 24/09/2018).

O chefe interino de departamento do INCER, em entrevista efetuada no Município do Huambo em 24/09/2018, registrou o seguinte:

Nós já ouvíamos falar desse tipo de conflito; inclusive havia uma comissão criada pelo Governador para que fosse lá tentar mitigar a situação. Havia muitas queixas por parte de alguns camponeses isolados, que viam as suas terras serem ocupadas por essa empresa. Bem, isso é mau, porque é um grupo de famílias que fica sem produzir, é um grupo de famílias que poderão passar fome, e em benefício de uma empresa que a própria produção em si tem sido escoada para fora. Acredito que esta situação está sendo resolvida por essa comissão. É um processo que não tem de parar aqui, e que envolve outras instituições, como o Instituto Geográfico Cadastral de Angola, que trata da legalização dos espaços.

Já a diretora da ADRA – Antena Huambo, em entrevista nesse município em 21/09/2018, considerou que essa instituição,

[...] dentro do seu plano estratégico, tem como desafio trabalhar a componente terra, e prestaríamos a advocacia nessas comunidades. Não travaríamos as atividades da empresa, mas colocaríamos limites, de tal modo que se pudessem preservar os direitos das próprias comunidades. A ADRA não está para colocar barreiras ao desenvolvimento, não está para 16

travar as intenções dos grandes investidores, desde que respeitem também os interesses dos cidadãos.

Indagada sobre a importância do investimento chinês para o setor agrícola angolano, a diretora da ADRA manifestou-se da seguinte maneira, na entrevista concedida no Município de Huambo em 21/09/2018:

Angola está num processo de desenvolvimento e, para o efeito, tem recorrido a parcerias com países como a China. [...] Essa parceria traz benefícios para Angola, mas, por outro lado, se calharem as estratégias que Angola tem vindo a adotar no processo de negociação com a China, cremos que poderá também trazer alguns problemas [...]. Têm-se feito grandes investimentos, em quase todos os setores, e interessa falar do setor agrícola, mas a metodologia que tem sido adotada é que não é [...] a mais adequada. Não atribuo muito [...] as falhas à China, mas sim a nós, os angolanos. Porque nós somos os donos da terra, e nós é que devemos ditar as regras ao negociarmos essas parcerias. Temos vindo a constatar que, ao longo desses anos, o governo angolano não optou pela via do diálogo com as comunidades; a tendência foi sempre, enquanto governo, impor-se e não ouvir a opinião da sociedade civil e das comunidades [rurais].

[..] os chineses encontram maior facilidade nas zonas rurais devido à falta de conhecimento, de acesso à informação dessas comunidades para poderem defender os seus direitos e salvaguardar os seus interesses. Precisamos, neste contexto atual [de revitalização da democracia] em que o país está a viver, que se dê a volta nessa situação, que haja maior diálogo. É importante que os investimentos agrícolas aconteçam, mas é igualmente importante que estes passem pela via de um diálogo com as próprias comunidades locais, para que se tenham em conta as opiniões das comunidades rurais.

4 Tangenciando o problema dos reflexos socioeconômicos da presença da Jiangzhou Fala-se primeiramente dos aspectos relativos ao trabalho na Jiangzhou. Em seguida aborda-se o compromisso da empresa para com a localidade no tocante aos acordados termos da sua responsabilidade social.

4.1 Problemas do trabalho no empreendimento da Jiangzhou Do conjunto de trabalhadores angolanos entrevistados da empresa Jiangzhou, 90% eram do sexo masculino. Essa mão de obra, para além das atividades agrícolas, é também utilizada nas atividades de construção, como nas instalações para armazenamento dos produtos. Trata-se de jovens, com idades entre 18 e 25 anos, a escolaridade, para 80% dos entrevistados masculinos, atingia o ensino primário e secundário, com 10% exibindo o ensino médio concluído. Entre as trabalhadoras, 10% apresentavam o ensino primário (fundamental I). Aspectos como condições de trabalho, jornada laboral e salários podem ser tangenciados com base nos depoimentos obtidos nas entrevistas. São manifestações que expressam, além do modo como a empresa atua, as preocupações vivenciadas pelos trabalhadores locais. 17

Não há, pelo que se pode observar, vínculo empregatício com a empresa Jiangzhou; os trabalhadores atuam sob o regime conhecido como de “boia-fria”. Sobre condições de trabalho, foram registrados depoimentos como estes, captados em entrevistas com trabalhadores na fazenda da empresa, na Comuna do Sambo, realizadas em 22/09/2018:

[...] eles nos tratam tipo “somos escravos deles”. A pessoa não pode descansar, te mandam logo trabalhar; nem ao menos uns 5 minutos eles permitem (Entrevista com o trabalhador nº4).

Quero que trabalhemos bem com eles [chineses]; então, não nos façam mal porque nós chegamos aqui para trabalhar e não roubar; [...] se falhas um trabalho, para te ensinarem levas primeiro uma chapada [tapa]. Se não queres levar uma chapada, tens de ter força para medir com ele (Entrevista com o trabalhador nº 1).

[...] o próprio trabalho é para entrar às 6h e sair às 18h, pelo menos até às 16h (Entrevista com o trabalhador nº 6).

O trabalho estamos a levar, o que tem sido difícil é o horário; entramos às 6h e terminamos às 11:30 para repouso do almoço, voltamos às 13h para sair às 18h; pelo menos regressar [ao trabalho] às 14h e sair às 17:30, seria normal (Entrevista com o trabalhador nº 8).

As mulheres, diferentemente dos homens, trabalham por um período mínimo de 10 horas. O depoimento da trabalhadora nº 10, em entrevista realizada na fazenda da Jiangzhou, na Comuna do Sambo, em 22/09/2018, apresentou este teor: “Sou nova a trabalhar aqui, mas nós, mulheres, trabalhamos das 6h às 16h30min”. Observe-se que uma das grandes dificuldades na interação com os chineses refere- se à língua. Segundo o trabalhador nº 9, entrevistado na fazenda da Jiangzhou, na Comuna do Sambo, em 22/09/2018, “A experiência é complicada. O idioma é diferente; depois, aqui [falamos] é umbundu, e a língua oficial é o português; a dificuldade é de ambas as partes.” Outro aspecto é que, além das atuação como agricultores, os trabalhadores praticam uma segunda atividade como auxiliares de obras (pedreiro). A maioria não possui experiência nesse tipo de tarefa, que consideram ser bastante cansativa. A isso acrescentam-se problemas com o salário, também devido às despesas com a alimentação, que se referem à principal despesa dos trabalhadores, conforme os registros a seguir, obtidos em entrevistas com trabalhadores realizadas na fazenda da Jiangzhou, na Comuna do Sambo, em 22/09/2018.

Queremos que diminuam o horário do almoço e aumentem o salário, de 700 AKZ por dia [equivalente a 2,32 USD] para 1300 AKZ por dia [equivalente a 4,30 USD], porque o trabalho é muito pesado; chegamos em casa e dormimos mal, com o corpo bem cansado (Entrevista com o trabalhador nº 1).

Aqui, o trabalho, às vezes nós vamos no campo, às vezes ficamos aqui na obra a fazer blocos, descarregar os materiais dos caminhões, e o salário é pouco. Entramos às 6h e saímos às 18h (Entrevista com o trabalhador nº 7).

18

Trabalhar aqui tem sido mais ou menos, porque [...] a comida trazemos de nossas casas. Se descontarmos a comida, estamos a ganhar 400 AKZ/dia [equivalente a 1,30 USD]; uma das nossas principais dificuldades é a comida (Entrevista com o trabalhador nº 5).

O valor do salário depende de si [próprio]; se trabalhas todos os dias da semana, podes receber 21.000 AKZ [equivalente a 69 USD] no final do mês; se trabalhas uma vez ou outra na semana, consegues tirar de 13.000 a 14.000 AKZ no mês [cerca de 45 a 46 USD]. Se mudassem o salário, eu continuaria, mas se for o mesmo, acho que não vou conseguir, porque o trabalho é muito pesado (Entrevista com o trabalhador nº8).

A situação ganha em adversidade pela falta de opções de trabalho na região. Isso força, praticamente, a continuidade dos trabalhadores locais nas atividades da Jiangzhou, conforme se pode observar nas exposições abaixo, obtidas em entrevistas com trabalhadores realizadas na fazenda da Jiangzhou, na Comuna do Sambo, em 22/09/2018.

No Huambo o trabalho também está difícil; só encontramos trabalho de segurança [vigilante] e não queremos por causa dos perigos (Entrevista com o trabalhador nº 5).

O trabalho é muito forçado e o dinheiro é pouco; estamos a depender deles; aqui é só fazer por fazer, não é intenção de a pessoa ficar tanto tempo a trabalhar aqui; se tivesse outra opção, mudaria (Entrevista com o trabalhador nº 3).

Não tenho gostado de trabalhar aqui, mas pretendo continuar; se houvesse outro lugar sairia (Entrevista com o trabalhador nº 2).

Pretendo continuar a trabalhar aqui porque não tenho mais aonde ir (Entrevista com o trabalhador nº1).

Sim, pretendo [continuar a trabalhar aqui]; a pessoa tem que trabalhar; se tivesse outra opção, deixaria. O salário é muito baixo; uns 1300 AKZ [cerca de 4, 30 USD] por dia já seria normal (Entrevista com o trabalhador nº4).

Pretendo ficar, mas se aparecer outro trabalho vou sair (Entrevista com o trabalhador nº7).

Vou continuar; é o único trabalho que temos aqui (Entrevista com a trabalhadora nº 10).

Bastante sugestivas foram as palavras do Soba, ancião e líder da comunidade de Sachitemo:

Nós trabalhamos com os colonos [portugueses], que nos escravizaram, mas o trabalho do colono era melhor, porque entrávamos às 7h e logo às 12h parávamos para o almoço, e às 17h voltávamos para as nossas casas. Mas esses brancos [chineses] que vieram para aqui, é uma coisa que a gente não compreende. É para esses pequenos [jovens], que não sabem como nós vivíamos aqui no tempo colonial. Quem viveu no tempo do colono [português] não trabalha para ganhar 700 AKZ/dia e sem comida (Entrevista com o Soba Malengue, realizada na comunidade do Sachitemo, em 22/09/2018).

Cabe assinalar que o Decreto Presidencial nº 91/17, de 7 de junho de 2017, atualizou o salário mínimo nacional e os salários mínimos dos agregados econômicos. Fixou-se em AKZ 16.503,30 (equivalente a USD 53,56) o salário mínimo nacional, e para os grandes agregados econômicos estabeleceram-se: para comércio e indústria extrativa, AKZ 24.754,95 19

(equivalente a USD 80,35); para transportes, serviços e indústria transformadora, AKZ 20.629, 13 (cerca de USD 66,94); para o setor da agricultura, AKZ 16.503,30, o mesmo do salário mínimo nacional. Como se vê, o setor agrícola apresenta a mais baixa remuneração dentre os agregados econômicos, o que explica, em grande medida, a baixa renda dos trabalhadores nacionais da Jiangzhou, embora estes enfrentem duplicidade de tarefas, como se falou.

4.2 Repercussões locais, prevalência de frustrações No contrato de investimento aprovado por despacho presidencial em julho de 2017, como mencionado, definiram-se ações enfeixadas em cláusula sobre a responsabilidade social da Jiangzhou para com os moradores do Município da Tchicala Cholohanga, incluindo, naturalmente, os do Sachitemo. Essas ações mostravam sintonia com numerosos objetivos econômicos e sociais definidos para nortear as interações angolanas com investidores estrangeiros, de um modo geral. Esses objetivos amplos incluíam: incentivo ao crescimento da economia; promoção do bem-estar econômico das populações; apoio às regiões mais desfavorecidas, sobretudo no interior do país; aumento da capacidade produtiva nacional, com base na incorporação de matérias primas locais e elevação do valor agregado dos bens produzidos no país; indução à criação de novos postos de trabalho para trabalhadores nacionais e elevação da qualificação da mão de obra angolana; transferência de tecnologia e aumento da eficiência produtiva; alcance de situação de abastecimento eficaz do mercado interno; promoção da eficiência empresarial e da qualidade dos produtos; reabilitação, expansão ou modernização das infraestruturas destinadas à atividade econômica; estímulo ao desenvolvimento tecnológico e à eficiência empresarial. As informações coletadas na pesquisa de campo, mormente por meio das entrevistas, permitem uma ideia sobre o que de fato resultou, até o presente momento da atuação da Jiangzhou no Sachitemo, no marco da responsabilidade social da empresa. O contexto geral seria o indicado pela diretora da ADRA, em entrevista realizada em 21/09/2018 no Município do Huambo:

Temos vindo a constatar que as empresas estrangeiras que decidem investir em Angola, a par dos investimentos que fazem, têm sempre responsabilidades sociais para com as comunidades da área em que pretendem intervir. Muitas das vezes, não cumprem; no início, se comprometem, mas na prática não fazem nada.

Na aldeia do Sachitemo constatou-se existir, durante a pesquisa, uma pequena escola onde se lecionam os níveis primário e secundário (Fundamental I e II), com professores que residem no município sede da província. Não foi possível conversar com os professores, mas logrou-se dialogar com o único enfermeiro do pequeno posto de saúde do Sachitemo, também 20

residente no munícipio sede. Esse interlocutor informou, em entrevista realizada no Sachitemo em 22/09/2018, que os protagonistas do investimento da Jiangzhou “Não deram nada ao povo; até houve grande confusão: passaram um ano a discutir; é quando surgiu a promessa de darem o centro de saúde e a escola”. A promessa de construção de uma escola e um centro de saúde pela Jiangzhou, apresentada durante as negociações, poderia ser considerada um ato próprio das responsabilidades sociais da empresa em relação à comunidade da região, e associado ao cumprimento dos objetivos do projeto de investimento no prazo da sua vigência. Mas o prometido não se materializou, o que em parte decorreria, segundo as justificativas da Jiangzhou, da não concessão da licença para a obra por parte do governo provincial. Sobre a problemática da ativação da economia local, como reflexo do funcionamento da empresa, constatou-se que sequer ocorreu aumento do comércio de grãos na área. Os produtos da Jiangzhou são remetidos à capital angolana, e daí ao exterior. O chefe interino do INCER, entrevistado no Município de Huambo em 24/09/2018, assinalou tratar-se de processo que ocorre “[...] em benefício de uma grande empresa; que a própria produção, em si, se calhar, tem sido escoada para fora”. À ausência de encadeamentos locais, com adensamento econômico no território, soma-se uma retração de atividades ligada aos problemas de terra. O já mencionado enfermeiro do posto de saúde do Sachitemo, observador da realidade local, revelou na entrevista realizada em 22/09/2018 que

Ano antepassado [2016], as senhoras que [depois] perderam suas terras andavam a colocar algumas coisas na pracinha para vender. Mas desde que perderam essas terras não estão a conseguir vender nada, e só agora é que estão a vender mechas de frutas que apanham na mata. Isso para mim demonstra que, como perderam as lavras, há uma falha e um prejuízo para o povo.

Pelo que se percebe, a presença chinesa ligada ao investimento sino-angolano da Jiangzhou, nesses dois anos de atuação no Munícipio da Tchicala Cholohanga não tem gerado, de fato, benefícios para os agricultores e moradores da aldeia de Sachitemo. Como se falou, os trabalhadores locais não têm vínculo empregatício com a empresa e, geralmente, são objeto de engajamento apenas sazonal. Observe-se que na pesquisa de campo exploratória, realizada em janeiro de 2018, registrara-se um número considerável de trabalhadores oriundos de províncias e municípios vizinhos. Em setembro daquele ano, na pesquisa envolvendo as entrevistas propriamente ditas a situação havia mudando. Pelas informações, a maioria dos trabalhadores residia na Comuna do Sambo, no Município da Tchicala Cholohanga. Como se viu, os trabalhadores locais da Jiangzhou sofrem com excessiva jornada de trabalho, baixos salários, dificuldade no acesso à alimentação e dificuldade na comunicação 21

com os técnicos chineses, não faltando agressões físicas. Entre os agricultores e moradores do Sachitemo, as preocupações têm a ver com conflito de terras, retração da atividade agrícola e falta de diálogo entre a comunidade, a empresa e as administrações governamentais locais no intuito de equacionar o referido conflito. Apesar de existir um processo no tribunal provincial, pelo que se constatou a resolução do conflito de terras poderá demorar algum tempo, até que ocorram as audiências e se avance rumo ao desfecho da questão. Assim, embora se possa reconhecer o potencial representado pela empresa como contribuição para a economia em escala nacional, é difícil enxergar contrapartida no âmbito do território, como verificado entre as famílias do Sachitemo. Em torno desse aspecto, a diretora da ADRA comentou o seguinte, em entrevista realizada no Município do Huambo, em 21/09/2018:

Muitas das vezes os direitos dos cidadãos são violados por falta de conhecimento sobre estes. Em alguns casos, atropelam-se as normas de convivência, e a nossa própria legislação não respeitamos. Se, por um lado, a China traz um valor acrescido ao nosso país, pelo investimento que está a fazer, por outro lado cria problemas, principalmente para as zonas rurais.

Também eloquente mostrou-se a fala do Regedor da comunidade do Sachitemo, em reportagem feita pela Rádio MAIS, dessa localidade, em 21/02/2017:

O que nós queríamos desde a nossa discussão com os nossos dirigentes era que tirassem este projeto para outro sítio. É verdade que não conheço Angola completa, mas é [também] verdade que os terrenos, ainda temos em Angola. Não quero dizer que o Sachitemo não quer o projeto, mas as lavras ficarem dentro do projeto, fica muito mal.

5 Considerações finais Nos primeiros anos deste século, a relação sino-angolana ganhou nova dimensão na esteira da concessão de crédito chinês para o programa de reconstrução nacional do governo angolano. O objetivo era a execução de numerosos projetos, na maioria envolvendo infraestruturas, voltados à promoção do desenvolvimento econômico e social no país. Desde então, Angola tem recebido diversos financiamentos da China, que são acompanhados de grandes investimentos em várias atividades econômicas, o que tem contribuído para aprofundar as relações comerciais entre ambos. Nesse processo, Angola logrou figurar, em fevereiro de 2006, como o maior fornecedor mundial de petróleo para a China (comercializando cerca de 2,1 milhões de toneladas desse recurso), em tendência que favoreceu o, por assim dizer, boom econômico que Angola registrou em 2008. Os investimentos chineses em Angola, assim como em outros países, foram em grande medida determinados pela promoção da política Going Global daquele país. Essa 22

política prioriza os investimentos no setor agrícola com o objetivo de atender a elevada demanda por alimentos da população chinesa, dada a sua carência em recursos naturais como terra e água. Por conta dessa escassez, a China se volta para mercados como os de países dos continentes africano e latino-americano, almejando adquirir terras em larga escala, em geral na forma de joint-venture. Isso é observado no caso do empreendimento Jiangzhou Agriculture, Lda, cuja presença na região do Sachitemo evidencia sinais de land grabbing. Na pesquisa de campo que embasou este estudo se apurou junto a um dos representantes nacionais do empreendimento sino-angolano que a fazenda tinha área de produção de 7 mil hectares (fora a área de residência dos técnicos chineses), e que era objetivo a ampliação para 10 mil hectares. Dessa pretensão de aumento resultou agudo conflito em torno da expropriação de terras comunitárias e da restrição da prática agrícola familiar que acabou recaindo sobre os agricultores do Sachitemo. A intervenção chinesa na agricultura africana, e na angolana de forma particular, ocorre por meio de investimentos diretos ou de programas de cooperação agrícola com foco em transmissão de know-how e tecnologia, modernização e fomento das atividades do setor, agregando valores ao PIB e gerando impactos sobre as economias locais. Apesar desse fato, e pela experiência exposta no caso da iniciativa sino-angolana Jiangzhou, mostra-se necessário um estudo prévio de viabilidade e, principalmente, diálogo com as comunidades rurais locais antes da implementação de projetos de investimentos dessa dimensão. Isso é importante para evitar tensões entre as partes envolvidas, conforme relatado pelos agricultores do Sachitemo, e para que as ações possam beneficiar de fato as comunidades locais. Outro fator que merece grande atenção tem a ver com a restrição da agricultura familiar, que coloca em causa a subsistência das famílias dos agricultores e agrava o problema da fome nas áreas rurais. Isso é constatado sobretudo no sul de Angola, onde o problema da seca ganha magnitude devido à variação climática que o país tem enfrentado haja vista a escassez de chuvas. Quanto às preocupações manifestadas pelos trabalhadores com o empreendimento sino-angolano, o foco principal é a questão salarial, devido às elevadas despesas com a alimentação, um problema ligado à permanência no trabalho e ao próprio exercício das atividades. Os trabalhadores da Jiangzhou, se comparados aos de empresas do setor de construção, auferem remunerações muito baixas. Aparentemente, esse fato traduziria, ao menos em parte, a importância que o governo angolano atribui à agricultura, demonstrada, entre outros aspectos, na determinação de um reduzido salário mínimo para o setor, em termos comparativos. O alcance de um desenvolvimento “sustentável” em Angola haveria de ser favorecido com o diálogo e a participação efetiva das comunidades rurais. Esse processo promoveria o 23

setor agrícola, principalmente a agricultura familiar, refletindo na vida da população no longo prazo, sobretudo nessas comunidades Seria também necessário que os membros das instituições governamentais, principalmente em nível provincial e central, pudessem fiscalizar as atividades das empresas, no que toca às técnicas de produção e, notadamente, ao cumprimento das responsabilidades sociais propostas quando se negociam os contratos de investimento no país.

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