Copyright © Editora Patuá, 2016. O vestido de laise © Thiago Sogayar Bechara, 2016.

Editor Eduardo Lacerda

Ilustração, Projeto gráfico e Diagramação Leonardo Mathias | flickr.com/leonardomathias

Assistente Editorial Ricardo Escudeiro

Revisão Mário Sérgio Baggio

B391o Bechara, Thiago Sogayar.

O vestido de laise. / Thiago Sogayar Bechara.

São Paulo: Patuá, 2016.

ISBN 978-85-8297-354-7

1. Contos Brasileiros I. Título. CDD – 869.93

Índice para catálogo sistemático:

1. Contos Brasileiros I. Título. 869.93

Todos os direitos desta edição reservados à: Editora Patuá Rua Manuel Luiz de Araujo Costa, 287 – Casa 1 CEP 03280-020 São Paulo – SP Brasil Tel.: (11) 2216-0407 / (11) 974928378 www.editorapatua.com.br

“Sentir é pensar sem ideias e, por isso, sentir é compreender, visto que o universo não tem ideias.”

(Fernando Pessoa)

“A arte é sempre uma proposição de verdade por intermédio da beleza.”

(Mário de Andrade, em carta de 24/12/1943 ao jovem Fernando Sabino)

Para meu pai e minha mãe, que me deram as luzes e a cidade de Ribeirão Claro.

Para Fátima Regina Gonçalves Fortunato, que me ensinou a redescobri-la. Glossário Prefácio | 11 De almas e águas | 19

O vestido de laise |25 O boi no telhado | 42 Longo amanhã de uma vida breve | 47 Oníria | 50 Água-furtada | 56 A chuva e Paulinho | 64 Balada | 68 O voo do tamarindeiro | 70 A casa da frente | 78 Domingo | 89 A estante dos lidos | 92 O presente | 97 Eça Menina | 105 São Bento | 107 O casamento | 112 São Cristóvão | 118 Lealdade | 126 mãe | 135 Mas são assim mesmo as coisas do avesso | 137 A mão invisível | 141 O molho | 160 Quando escrevo, é de noite | 162 Harmônica | 166 Maxixes de outro | 168 Antonico | 173 Um sonho de laise | 175 A Voz | 180

Agradecimentos | 272 O autor | 274

Destecendo memórias, fiando palavras: o conto “vocal” de Thiago Sogayar Bechara

Por Milena Wanderley

Ler e escutar Thiago Bechara. Foram esses dois modos de in- teração com a poética que me arrebataram diante da multiplici- dade de sua Voz. Aqui temos um artista que não nega sua rela- ção com a música, com a palavra pensada para a fala, para a cena, que entende as possibilidades infindas dos diálogos que podem se estabelecer quando as formas composicionais se constroem, desconstroem e se ressignificam para que se crie uma nova for- ma de sentir e perceber o mundo.

Lendo, escrevendo, desescrevendo e reescrevendo desde os no- ve anos de idade, Thiago Sogayar Bechara parece ter plena cons- ciência dos efeitos das imagens construídas, pois tanto em sua poesia, quanto nos seus contos, é perceptível a intenção artesa- nal comum a todo indivíduo que pensa seu próprio tecer, tanto que consegue transportar poesia para as biografias que se dedi- cou a construir transformando os biografados em personagens de suas próprias vidas.

A delicadeza e a dedicação com que encara suas empreitas, seja dentro do contexto jornalístico, seja no artístico, fazem dele, como diria Pound, uma das antenas da raça nesse início de sécu- lo XXI, pois mesmo sem estar comprometido com alguma per- petuação de herança estética, esse paulistano nascido em 1987

O vestido de laise 11 consegue dar andamento a uma ruptura com o imediatamente anterior, característica que Octávio Paz aponta como fundadora do espírito crítico e literário diante da dicotomia do que é tra- dição e modernidade.

Um livro de corpo inteiro; e a laise é a imagem da tecitura da própria existência. Como se a linha da vida fosse feita da mesma substância de que é feita a poesia. Assim, o universo que explode em supernova nos contos de Thiago move os interiores à inquie- tação, a um estado de catarse que faz o indivíduo submergir em si mesmo através da voz do outro. E, embora ele por vezes sinta seus livros como uma espécie de pedido de desculpas ao univer- so pela incompletude de ser, diante da complexidade que é exis- tir, suas tentativas em traduzir o intraduzível por meio da Lite- ratura têm sido deveras exitosas.

A pluralidade da articulação de seus contos nos vem sonora, como que em fados (Thiago atualmente vive em Portugal, onde cursa seu mestrado em Estudos de Teatro pela Universidade de Lisboa desde setembro de 2015). As imagens que são construídas nas cenas são embaladas, ou pela cadência do diálogo articulado pelas personagens, ou pelas lembranças que delineiam a caracte- rização volitivo-emocional delas. Assim, ao passo que a cena vai tomando forma, um universo lírico também vai se delineando - ou através da expressão das suas personagens quando a elas é da- da voz, ou através do mergulho que o narrador articula no inte- rior delas.

Os espaços são construídos de modo a permitir tanto a flui- dez da ação como a caracterização dos gestos das personagens. Ora singelas a costurar fazendas de laise, ora terrenas a transformar o amargor da vida em doce. Nos contos de “O vestido de laise”,

12 Thiago Sogayar Bechara a essência da existência, frequentemente, aparece apregoada à poesia, à atividade artística/literária. No conto “A chuva e Pauli- nho”, a continência presente na economia de sentir o mundo leva a personagem a subverter o tempo, já que funde dentro de si mes- mo, no presente, o passado e o futuro, fazendo das letras mudas as que mais falam. Aqui, o diálogo com é assu- mido não só pela referência da significação do silêncio nas pala- vras, mas também no modo arquitetônico que Thiago S. Bechara escolhe para articular seus contos.

Nele, a angústia da influência reside num compartilhar de in- quietação diante do fazer literário. Sua poesia, repleta de imagens e buscas de existência, fornece a condensação natural à forma atomizada dos seus contos e microcontos, ora articulados com o fôlego da cena construída para os personagens existirem nela, ora residindo na economia de palavras, mas não de significados.

A liquidez destes seus contos não aparece apenas nas imagens de chuva, córregos, cachoeiras, mas, sobretudo, nas interiorida- des que se movem como torrentes quando, ao deparar-se com a difícil tarefa de existir, o indivíduo se multiplica ao passo que as paredes de sua residência o tentam comprimir. Múltipla e com- primida. A linha que fia o conto de Thiago Bechara é assim, poéti- ca, cênica e sonora. Seus contos, embora não comprometidos com uma estética específica que se reproduza, dialogam, na verdade, com a caótica pulsão de criação que move a pena do escritor a construir mundos para desconstruir/dissecar existências.

Outro ponto necessário de observação é a sutileza das descri- ções que, nesses contos, revela um compromisso não apenas com a cena, mas também com a relação entre as personagens e os es- paços que habitam, quase todos, internos, como é interno o

O vestido de laise 13 trabalho de quem borda com palavras. Todavia, há também os contos exteriormente ambientados, como “O voo do tamarindei- ro” cujo ponto de vista narrativo transita entre o autor oniscien- te intruso e o “eu” como testemunha, já que o narrador é o sobri- nho do protagonista que conta uma história ouvida sem se furtar a narrar detalhes referentes às interioridades das personagens bem como do ambiente em que se passa a ação. Essa falta de ân- cora numa voz definida faz a voz narradora se imiscuir com a ação do leitor quando a primeira pessoa do plural é utilizada.

As mulheres nos contos de Thiago Sogayar Bechara são forja- das na adversidade. São fortes e concomitantemente singelas. As Jussaras, Teresas, Onírias, Fátimas são resilientes, daquelas ár- vores que, diante das tempestades, envergam, mas não quebram. Que passam a existência provando que o enfrentamento cotidia- no consigo mesmas e com os outros é o que dá substância à vida. Os seus interiores, diante dos desafios impelidos pelos espaços que habitam, são poeticamente construídos, como se o sentido do ser, na verdade, habitasse a forma como elas veem e cons- troem o mundo - e não o contrário. A forma como os diálogos são organicamente construídos fornece às personagens uma carac- terização equilibrada diante do que eles representam na narra- tiva. Aqui, o escritor não faz de seus personagens a caricatura de alguma representação social, ao passo que trabalha linguis- ticamente suas falas de modo que suas vozes sejam fiéis às suas caracterizações volitivo-emocionais, tarefa que nem todo autor, ao construir um narrador heterodiegético, cumpre quando dá voz aos personagens.

O obturador da câmera de Thiago Bechara trabalha incansavel- mente em um vaivêm constante, por vezes afastando, por vezes

14 Thiago Sogayar Bechara aproximando o leitor da voz que fala no texto. Esse movimento fica mais grave e perceptível no conto “A casa da frente” em que, a princípio, o “menino-eu” é apresentado e caracterizado através de uma onisciência neutra que é subvertida no antepenúltimo parágrafo, quando o narrador rompe com o modo de narrar an- terior e passa a articular a voz como o próprio personagem que descrevera. Com forte pulsão metalinguística, esse conto talvez seja o mais pessoal e plural da série que compõe essa primeira coletânea de narrativas curtas do autor o qual, desse conto em diante, vai experimentar as vozes num rompimento com a estru- tura de “narrativa organizada” pluralizando-se como quem se- meia a si mesmo num campo de palavras.

Se há caos na criação; se, de acordo com a Teogonia de Hesíodo, reside no khaos a primeira pulsão criadora, diante do exercício literário, de olhar o avesso das coisas, através delas ou sob a perspectiva delas, o escritor, cavalo da própria existência, busca organizar o caótico emaranhado de significado que reside den- tro de si. E nessa imersão, não raro, ele se depara com o khaos, essa força que precede o próprio universo, ou universos, que são criados para que caibam os múltiplos de si fora dele e dentro dos outros. Como quem assiste a si mesmo, Thiago passa a emprestar sua experiência khaótica com a Poesia aos personagens que cria. Nesse sentido, os universos das narrativas vão se tornando cada vez mais múltiplos, poéticos e instigantes.

Como que numa gradação rumo aos experimentos com a rein- venção narrativa, os contos vão se delineando também através do diálogo que empreende com outros escritores, tanto por meio de paratextos, quanto por meio de referências, intertextualidades e

O vestido de laise 15 personificações. Nesse âmbito, o dialogismo articulado nos con- tos dentro de uma perspectiva também extratextual extrapola as convenções estruturais de gênero ampliando as possibilidades de artesania literária, sobretudo, por meio da metalinguagem.

Diante da pulsão que move a criação, “A mão invisível” é a me- táfora da significação daquilo que impulsiona o indivíduo a cons- truir, com palavras, a ponte que estabelecerá as interações “álmi- cas” que , por exemplo, considerava como seu cerne de existência e que Emil Staiguer resolve, através da ideia de “cor- rente” anímica, quando trata do Lírico em “Conceitos fundamen- tais de poética”. Esse reverberar dentro do outro supera a própria ideia de morte e dá sentido à existência do ser e da palavra diante da vida e da multiplicidade existente no poeta. Abrigar muitos dentro de si é o fardo que todo artista parece carregar; todavia, poucos fazem esses tantos dialogar de modo consistente, tendo em vista que essa tarefa não é das mais simples. E, convenhamos, não há professor melhor que Fernando Pessoa para o aprendizado de tal empreita, já que, “também ele um desajustado”, esteve em bus- ca de articular esse toque na alma do outro por meio da poesia.

O custo da catarse diante dos contos de Thiago Bechara é o silêncio. É o estado de imersão que iniciamos dentro de nós mes- mos quando nos deparamos com a ideia de que compartilhamos das mesmas angústias e naturezas dos muitos que habitam seus textos. A semidesestruturação das vozes que compõem as narrati- vas de “O vestido de laise”, assim, nos leva também ao reconhe- cimento de que vivemos diante da tarefa de procurar organizar o estado das coisas que experienciamos e sentimos. Todavia, esse reconhecimento também nos mostra que quase nunca as vozes dentro de nós estão estruturadas, organizadas em pastas com no-

16 Thiago Sogayar Bechara mes e datas. Nesse sentido, o questionamento que alimenta esse transe silencioso reside justamente no cerne do que nos é essên- cia, como se houvesse, dentro de nós, uma pulsão primordial que trata de registrar as frequências de vozes que construirão o nos- so modo de perceber e receber o mundo.

Receber os muitos que habitam os contos de Thiago Sogayar Bechara é receber o próprio universo em seu mais humano e caó- tico estado de vastidão. É perceber que, na existência, a beleza reside justamente nesse eterno reverberar de vozes dentro de nós e aceitar que nossa alma precisa ser tocada para que ampliemos nossas frequências através dos timbres que ainda estamos por descobrir. Que seja palavra. Que seja som.

Milena Karine Wanderley de Morais,

Professora e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – Três Lagoas e doutoranda em Estudos Literários pela mesma instituição, ingressante em 2015. 08 de abril de 2016, Ilha Solteira, Brasil.

O vestido de laise 17

De almas e águas1

Por Joaquim Maria Botelho

No princípio era o Verbo. A cada novo Verbo é como um novo princípio, nova noite de trabalhos escritos. A cada começar um nascer outro. E o Deus que sou faz-se carne a cada instante, porque há a Palavra. E a cada nova Palavra, Deus também nasce Outro. Em cada um de nós. Está aí toda a tragédia de não sobreviver do (ao) próprio Verbo; eterno anseio renovado.

Thiago Sogayar Bechara (Colofão de “Literatura de quintal”, Ed. Patuá, 2013)

Parece que avesso é uma palavra boa para explicar a percepção que Thiago Sogayar Bechara tem de suas personagens – como ele mesmo diz, “tão atormentadinhas”. Acompanhar a leitura desses patchworks de geométrica linguagem, cosidos como quem junta pedaços para tecer um painel de intenções e de desintenções, é como pegar uma carona nessa procura do eu. Eu, aquele ente de quem Heidegger dizia que estará sempre por ficar pronto. Avesso,

1 Crítica escrita a partir da primeira versão do livro e publicada originalmente no jornal “O Trem Itabirano”, nº 121, em setembro de 2015, Ano 10, Itabira-MG, página 15. Sessão “Dica de livro: Thiago Bechara – De almas e águas”, de Joaquim Maria Botelho. Durante os dois anos subsequen- tes à redação do texto, os contos foram retrabalhados e, neste sentido, o resultado que hoje o leitor tem em mãos encontra-se depurado a partir de importantes interlocuções, tais como a de Joaquim Maria Botelho, Mário Sérgio Baggio, Milena Wanderley e Viviane Almeida.

O vestido de laise 19 portanto – vida do lado de dentro. Como a metáfora, anacrônica e contrária, da Jussara do primeiro conto, que deixa que o vestido a decifre. Ou do encontro que doeu “como dói guardar o próprio luto”. Boas licenças.

Histórias? Bem, estão lá, simplesinhas, com certas minudên- cias que denotam datação e localização. Não é o que importa, po- rém. O que o autor quer, e consegue, é a investigação dos misté- rios da alma.

Enquanto eu iniciava a leitura destes originais, anotando o que me chamava a atenção para compor esta crítica modesta, Thiago me escreveu, avisando que ia mexer em alguns pontos do livro, porque ideias surgiam e aparos podiam ser necessários. Não reli o texto refeito. Fiquei com o original, porque achei melhor topar com o primeiro impulso do escritor, que assim se revela. No trato com as frases, percebe-se, há ainda certos maneirismos à moda da prosa poética, umas ordens indiretas, que aqui e ali destoam da narrativa. Mas estilo é coisa que o dono tem, e só quem pode dar palpite nisso é o outro dono – o leitor, aquele que passa a possuir o texto depois que o autor o entrega ao mundo, desapegando-se dele como quem emancipa um filho. Pois é isso. Neste momento, sou proprietário destes contos. Estou orgulhoso deles. E por isso mesmo me atrevo a dizer que Thiago tem um defeitinho aqui, outro ali, escondidinhos na gostosura dos seus dizeres. Talvez que ele resolva cortar este trecho do meu prefácio, rearranjar as teias do discurso, recobrar a limpidez... e calar a minha boca. Talento para isso não lhe falta. E literatura é isto mesmo, companheiro Thiago: trabalho e retrabalho.

20 Thiago Sogayar Bechara A alma tem quatro gigantes, dizia Mira y Lopez. Medo, ira, amor e dever. Maria Olívia, do terceiro conto, juntou três deles – deixou de lado a ira, que é o avesso, o lado B, do amor, mas foi impecável no cumprimento do dever. Oníria também (e a ono- mástica tem seu papel matreiro de desvendar segredos que o au- tor pensa, quis/não quis?, ocultar) é a imagem do dever amoroso. E personifica, abraçada a Conceição (eu não disse? Concepção...), o enlear de duas almas que entram pela mesma e desgraçada por- ta. De novo, tão “atormentadinhas”.

E vai o autor retomar, a páginas tantas, a ideia do vestido do primeiro conto, e conta que tio Ciano “estancou, sob a saia roda- da do pé de jamelão, que arrastava a barra da fazenda de folhas lustrosas pela encosta carcomida de erosão e tingida pela madu- reza arroxeada de seus frutos”. Boas licenças, novamente. E, no mesmo “Voo do tamarindeiro”, é quase impossível não pensar na árvore da infância de Augusto dos Anjos: “Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,/guarda, como uma caixa derradeira/o passado da Flora Brasileira/e a paleontologia dos Carvalhos!”.

Vamos a uma avaliação protossemântica. Água, como chuva, ou na pia da louça lavada, ou na garrafa esquecida no carro, ou no banho, respinga ao longo do livro. Líquida, ou como névoa – água sublimada. Elemento complementar, não intruso, que o diga o au- tor, que em certo ponto se declara: “Amo a chuva e as infinitas sensações que ela me traz”. A natureza, aspergida pelo texto. Mistérios. Ou não. A água é transparente, não guarda segredos. A água, na antropologia, está nos mitos de criação. É o sangue do mundo, a mediação mais evidente entre céu e terra. E lembre-

O vestido de laise 21 mos que a pessoa, no útero, está imersa em água. Observará o leitor que na narrativa de Thiago S. Bechara quase não compare- ce água do mar, nem lágrimas. Apenas aquela destituída do sal, por isso doce.

A água, movente, inquieta, conteúdo que precisa de continen- te, pode ser a referência psicológica da juventude. Pode ser a ima- gem do autor, impressionado pelas suas personagens, na leveza da idade pré-adulta. E, jovem e emocionado, descobre seu avesso ao perscrutar os mistérios das pessoas que observou.

Joaquim Maria Botelho,

jornalista, escritor, tradutor e (então) Presidente da UBE – União Brasileira de Escritores. 10 de dezembro de 2014, São Paulo, Brasil.

22 Thiago Sogayar Bechara

O vestido de laise

Para Giovanna Crispim Costacurta

I - O croqui

É teu, disse a velha Mercedes, estendendo a fazenda em dire- ção a Jussara. A menina manteve-se impassível, olhando como quem não vê. Quase recuando. Enfim, recebeu a tábua em torno da qual se enrolava o tecido. Aerado. Ficou tão vexada que seu ímpeto foi esconder o próprio rosto. E de tal forma que se reve- lasse inteira. Mas não o fez, para que o tremor dos dedos não resvalasse pela voz, caso a soltasse por força de tecer qualquer comentário. Corou apenas. E julgou isso já um excesso de dar nos nervos.

A patroa zombou afetuosamente, virando-se e pegando os mo- delos sugeridos, enquanto um risinho esboçava-se em sua face redonda. Eram páginas de revistas, indicações a lápis desenha- das pela própria Filomena Arraes, filha do estimado barão de Monte Claro, cafeicultor do pequeno distrito.

Corria fatídico o ano de 1929 quando, dos raros avanços ali aportados, o mais notável era um faraônico prédio de varanda balaustrada onde se instalara, não o primeiro, mas, àquele tem- po de crise, único cinema das redondezas.

O vestido de laise 25 Para ir ao grande baile de sua inauguração, no dia seguinte ao da sessão de estreia, a jovem Anita Arraes implorara à mãe por um vestido novo, imersa em suspiros calculados. Filomena retrucou. Arguiu, mostrou a caderneta de contas. O tempo não era para luxos, que dirá para laises de corpo inteiro.

Voluntariosa, contudo, Anita parecia crer ainda estar nos tem- pos do avô. O vestido era de ocasião, não convinha ir ao baile a arrastar barras gastas. Em cinema é que nada pensava. Faria vis- ta. Ao menos isso, suplicou à mãe. E foi o tiro de misericórdia que deitou por terra as boas horas de conversação, falidas desde a manjedoura.

Filomena pensou menos nas manguinhas bufantes da filha, que nas organzas, tafetás, banquetes e saraus dançantes que ou- trora também vestiram com folga os anos de sua meninice. E saí- ram do secos-e-molhados carregadas de tecido, para dona Mercedes.

Quando, passada uma hora, despediram-se eufóricas da costu- reira, foram avistadas, saindo de lá, por Jussara que apontava ao longe, na esquina de baixo. Subia em direção à casa da patroa, e a cena despertou nela um frêmito de quem pressente. Aquele bater rangido de portão trancava estranhamente alguma coisa sua no passado.

II – A fazenda

Iam-se lá três ou quatro meses desde que passara a costurar na dependência dos fundos de dona Mercedes. Mas aquela era a primeira vez que Jussara tinha sobre si o peso de fazer sozinha:

26 Thiago Sogayar Bechara um vestido. Aquele é teu da patroa passou a ecoar nos pensamen- tos de grandeza da miúda.

Dar vida à laise para a filha de Filomena – gelou! Fosse com ela, Jussara, e trocaria sem pestanejar o baile pelo filme. Sonhava sa- ber uma sala de cinema de verdade, embarafustada de gente res- pirando a mesma expectativa; a espera do embarque numa outra dimensão da vida. Mas logo retornou os olhos para a fazenda enrolada sob suas mãos.

A jovem costureira, meses antes, completara quinze anos. Magra, de cabelos sempre presos e olhar de quem vive por den- tro. E as mãos tão frágeis que, do fundo macilento, chegavam as tonalidades mais improváveis. Seus olhos tropeçavam nas pai- sagens. Os pés torciam-se pisando errado as serragens do tapete de Corpus Christi, quando a procissão escorria pelas ruas.

Mercedes não se casara. Corria à beira dos sessenta invernos – primaveras ia deixando aos de menor idade. Vivera sempre em silêncios de relógio. E o menos que fazia era exibir demais os den- tes. Dona de um carisma próprio, não se podia, contudo, afirmar a respeito do qual se lhe era premeditado ou mesmo consciente.

Bufava ruidosa como que ainda a purgar os desencontros ju- venis. Também ela tivera – pasme – direito a habitá-los. Contudo, após a morte de don´Anna, o tempo sussurrou ao seu ouvido; não tardou a carecer de auxílio com as fazendas a acumularem-se so- bre as mesas de sua antiga despensa. Eram as costureiras da ci- dade desde há muito, e Jussara, ofertada como em sacrifício por sua mãe, não pôde tardar ao primeiro emprego.

Foi; num freio interno que era o enjoo de calçar as sapatilhas de couro verde e sair de casa para um mundo que não era seu.

O vestido de laise 27 A vida fora-lhe senão uma pintura malfeita, enquadrada pelos batentes da janela, e feitinha somente para ela apreciar do fun- do de sua inanição.

Os primeiros dias de trabalho encontraram-na tensionada e obscura; momentos de respiração mais curta. Espreitava o entor- no. O quarto sombreado e sujo de retalhos colorindo o chão; te- cidos feito teias, unindo o encosto encardido do sofá à ponta do mancebo detrás da máquina.

Aquela festividade acinzentada pelo cômodo oprimia-lhe os sentidos. E essa contradição luminosa entrava-lhe aos borbo- tões, punha nela uma amargura. Borboletas ventrais, anestesia nas solas dos pés. Retesava os músculos, contraía-se inteira. Man- tinha-se ouvinte em sua contrariedade de aluna ainda que, para a patroa, começasse já, ao cabo do primeiro mês, a transpirar partes da alma. Aquela mesma – mesma? - alma que lhe endure- cera o olhar aos primeiros momentos, agora como que se lique- fazia lentamente pelos poros, emergindo à superfície.

Meses depois, sentada à máquina, Jussara olhou para a ma- téria-prima de seu primeiro vestido e foi aos poucos sentindo- -se costureira. Entrando nessas coisas de autoria. Aceitando, so- nhando o fruto de seu trabalho. Afinal, Mercedes dissera: É teu. E um sentido de posse instalou-se, inflamando instintos... ador- mecidos?, não; talvez semicerrados? da guria. Não despertados, enfim, em todo seu potencial. A crença em si primeiro espre- guiçou lentamente; mas o gesto foi depois tão largo que ecoou pela humildade da casa sob a luz pesada daqueles fins de ma- nhã morosos.

28 Thiago Sogayar Bechara Com esses ares de mudez, Jussara passava a viver fora dos ponteiros tiquetaqueando a vida. Depois olhou para as mãos e projetou a vista na direção apontada pelos dedos, apoiados sobre a mesa na falta de melhor local onde entendê-los. Deu com a pa- rede do provador, onde se emprestavam das clientes suas me- didas para devolvê-las em caimentos e cores e texturas.

Quando gelou as órbitas num trinco da argamassa foi que pen- sou: deveria começar. Não deixar nada para os últimos momentos. Vibrava, retumbava de avidez em meio à agilidade das primeiras providências que sabia dever tomar, se quisesse transformar a vida em resultado palpável de sua simbólica saída de casa.

Num primeiro momento forjou pressa; fingiu sentir-se pro- dutiva, cumpridora dos deveres, capaz. Em seguida, quando a euforia lhe mostrou a força de sua inutilidade, deu-se conta da fazenda que a esperava e trepidou de lucidez. Agônica. Entreo- lharam-se e o que Jussara recebeu foi a passividade em sua forma pura; como o que deflagra apenas um você está só.

Deu início aos recortes da laise que brilhava em seus pensa- mentos como facho de meio-dia pela entranha da caverna. Seguiu à risca as medidas deixadas. E viu rodar, num salão ornado, sua rosa já desabrochada. Estaria bela Anita, valsando ao farfalhar daqueles panos...

Qual; panos? Verdadeiros bálsamos sensórios a colher da alma a quietude e o contentamento. Um roçar leve sobre a pele e a distinção tão clara das matérias de seu corpo e do tecido para, em seguida, amalgamarem-se. Assim sentiu Jussara sem que pu- desse aperceber-se; com a consciência de incorporação orgânica daquela fantasia porosa. E o mundo entrava pelos pequenos furinhos rendados próprios da fazenda.

O vestido de laise 29 Deixou por horas de viver o som do mundo; cegou-se pa- ra tudo e apenas no vestido esteve concentrada, ignorando até as recomendações da patroa, quando esta vinha do fogão, pretinha de fuligem nas horas em que confiava os tecidos à pupila. Logo retornava à colher de pau ou às outras peças de encomenda, enquanto Jussara esteve assim... embevecida por milênios.

III – O recorte

De noite em casa, mal deitava e punha-se a sonhar com o pon- to final daquela festa. Se desejava o fim, para ver pronto o re- sultado dos esforços depositados, em seguida destecia o pensa- mento cogitando prolongar ao máximo a empreita, como quem, assim, salva a própria cabeça. Para ir junto da costura, arrastando- se com o tempo de satisfação, alongando a virtude da existên- cia, alinhavando-se.

Queria preservar o gozo do processo. Ele a acolhia como não se lembrava de já lhe haverem feito. E deu-se que o vestido pôs-se a compreendê-la, a decifrá-la. Respondia ao manejo dos seus an- seios e desmandos, treinada que fora para aquela autoridade junto à sua obra. Viu nele um modo possível, viável de ser, ela. Passava para um lado da vida com o qual tinha pouca intimidade, até então seu avesso. Um avesso que trazia a percepção plena das existências fisiológica e espiritual, imbricadas uma na outra.

Jussara aos poucos dava a ver a sutileza das verdades que o embotamento de seu rosto escondia. Como um desabrochar. Tam- bém ansiava pelo fim de tudo para deter a prova de sua utilidade

30 Thiago Sogayar Bechara terrena. Era-lhe devolvida, ponto a ponto, a força para a vida; uma força por tanto tempo desacreditada. Agora Jussara tecia a ima- gem que traria para si, para o mundo e para sempre dela mesma.

Cerzia num cuidado louco de parir o exemplo dos ensinamen- tos de sua mestra. Chegou a pensar delicadamente na figura de don´Anna, que só conheceu de ouvir contar a patroa, de modo que a saudava no respeito acanhado com que estava habituada a cumprimentar desconhecidos pela rua ou a invocar um santo, o que dava no mesmo. Aquela mestra dos retroses fora quem legou à dona Mercedes os segredos do ofício que agora lhe chegavam. Jussara pensou nisso com solenidade e comoção. Gostando de ser a nova etapa deste processo de transmissão.

Se antes a menina agia esquivando-se da ameaça que cada indivíduo traz gratuitamente em si, pressentindo a invasão de seu mundo por alguma realidade aterrorizante (e melhor intuí- da, não sabia bem porque, quando pisava descalça os azulejos do chuveiro), agora aos poucos começava a transmutar essa espécie de limbo que explode na gente o apelo de um esconderijo.

Observara dona Mercedes em seu leque curto de fisionomias a ensinar-lhe. A patroa foi-se afeiçoando à presença inicialmente intrusa e que, imperceptível, virava ternura: pau-la-ti-na-men-te. Por fim, afeição materna. De resto, a despeito do trabalho natural que havia-lhe dado no início, Jussara aprendera com efeito e, justiça se faça, estava ainda por tornar-se o braço esquerdo de dona Mercedes - que era canhota.

Costureirinha se fizera. Arremedando, de alfinete entre os dentes, os gestos da patroa junto à máquina. E, silenciosamente, como que criando um alfabeto todo delas pelo som da costura,

O vestido de laise 31 pareciam entender-se em longas conversas mudas que passaram a cerzir com o olhar; mimetizando trejeitos, entendendo lógicas, semblantes, decorando as vias têxteis pelas quais trafegaria em seu percurso lento de quem conduz com os pés na embreagem.

IV – A iluminação

Era segunda, após arder em espasmos solitários de fim de se- mana, quando Mercedes apontou à porta do cômodo, a coxear so- bre o próprio peso. Absorvida que estava Jussara a dedicar-se ao seu début, tão mal dera por isso que a patroa inebriou-se, evitando transmitir-lhe de chofre um recado recebido à véspera, para não estorvar tanta concentração, que ali parecera-lhe sagrada.

Ao fim do dia somente foi que prestou contas de que lhe de- via o convite, feito por ninguém menos que o dono do cinema. Convidou-nos para a estreia de sábado. Jussara apenas levantou os olhos desconcertada e fez que nem deu fé. Pois se te digo! É amigo meu... desde a infância. Jussara assobiou para evitar dizer que então fazia tempo. Lá pra semana cumpro mais um inverno, e ele não quis me fazer este agrado? – Mercedes não perderia a oportunidade de gabar-se - A fita, diz que chegou inda ontem de São Paulo; e suspirou intencionalmente, para en- corajar Jussara a acreditar.

E é filme de romance?, enfim cedeu a menina, brilhando por dentro e antegozando a veracidade da proposta. Mal pôde se conter, ao se certificar de estar ao átrio do que sonhara. Não es- perou resposta da patroa. Desembestou correndo à porta. Desceu,

32 Thiago Sogayar Bechara arfante, os três degraus que davam à edícula ladrilhada entre o cômodo externo e a casa.

Respirou aquele ar gelado e julino, de olhinhos fechados quase; e consagrou-se numa epifania que era um modo de comemorar. Ouviu pombas distantes arrulhando sobre os fios da rua, sobre a folha quase em branco que era o som daquele seu dia, e cada pássaro pousado pareceu uma nota viva escrita sobre aquela partitura de fiações. Ela sorveu da negritude avermelhada que se fez no interior dos olhos quando os fechou em direção ao sol. Soltou o ar represado num suspiro longo e aliviado. E estava qua- se pairando, sentindo a dimensão de leveza do seu corpo, quan- do um viiiiiiiiiii de bem-te-viiiiiiii rasgou-lhe a seda da pureza.

Veio súbita a lembrança do vestido, como as regras destecen- do-lhe as entranhas e fazendo-a mulher. Uma dureza repentina petrificou então o pensamento que a atordoou num baque frus- trado que cessava bruscamente sua pequena festa particular.

Não compreendeu porque lhe chegara assim aquela espécie de culpa clarividente. Que razões a punham nesse novo estado de espírito, desaquecido em segundos pela lembrança, pela volta ao exterior; forçada pela claridade da segunda-feira a bem-se-ver e resistir ao universo etéreo de fantasias e pousar de sua parti- tura a pensar, embora não sem prazer, no seu vestido.

Endoidou, menina, foi?, riu-se Mercedes lá de dentro, diver- tida com o rompante da garota. Faltava apenas a patroa lhe cha- mar maluca. E o vestido?, censurou-se a menina entredentes. Mas a patroa ouviu e replicou que era para o baile de domingo. Terminavam a costura na sexta. Sábado após o filme chamavam Anita para a prova e pronto; ela não vai à inauguração... e ainda

O vestido de laise 33 tem domingo cedo... Então, Jussara? – As duas olharam-se co- mo que a esperar de uma terceira pessoa a resposta definidora da vida de ambas.

Romperam num grande abraço, comovidas, preenchendo o va- zio do silêncio com seus corações. Mas lembraram-se logo que não tinham tanta intimidade assim e voltaram já outras para a máquina. Jussara era pura consagração, e assim retomaram, con- versadas, seus afazeres. Pacificadas, numa plenitude quase tão solene, que as horas pareceram conter uma assentada percepção do fascínio que há na simplicidade. Mercedes metralhando a má- quina. Jussara, em seguida, passando a pregar botões e lante- joulas, como se a explicação do mundo estivesse contida naque- la leveza com que alguns raios de sol entravam em feixes pela janela, dando um bom significado a tudo.

Jussara, chamou a patroa. Às vezes penso simplesmente que estou viva... Hein, dona Mercedes? Que estou viva. Não é engra- çado que uma velha de tantos invernos pense assim? Está a fal- tar um botão da cor desses aqui, a senhora passa aquela cai- xa... Engraçado?

Engraçado, ter vivido tanto tempo e se surpreender agora com o fato de estar viva. Ora, é no mínimo ridículo. – mas fascinada com as palavras que saíam de si e entregando a caixinha de bo- tões para a menina. Dona Mercedes era neste instante mais inér- cia que força motriz.

Enquanto isso, o vestido ampliava-se todo junto ao coração de Jussarinha, como se espelho, refratando os feixes de luz do dia.

34 Thiago Sogayar Bechara Um carinho autoral, nascido apenas da espontaneidade, fazia com que, descuidada, ela tivesse apenas olhos-mãos-ouvidos-pensamen- tos para seu pedaço de laise aceso feito candeeiro, e que nem de fato dela era.

Foi descobrindo-se toda ao contrário do que julgava ser. Era co- mo que a revelação de uma possibilidade íntima; de um outro método possível de existência por meio da obra. Desvendamen- to de um segredo que dizia ao pé de seu ouvido que a criação de um vínculo concreto com o mundo passava vorazmente a inte- ressar-lhe, bem mais do que lhe interessava a mera beleza do te- cido artefeito.

Esse encontro foi que lhe doeu como dói guardar o próprio luto. Ela aprendia a sofrer e em seguida a lapidar a pedra até que esta ficasse bela como o nascimento de nosso outro lado. Mi- neradorinha se fizera. Sentindo as dores do parto e não sabendo o quanto desejava dar à luz.

O prazo de entrega do vestido era bem mais o endosso de que ela existia nessa lógica das coisas reais do que propriamente uma noção de tempo pressionado; e isso trazia-lhe certo riso de satisfação aos lábios.

As vivências mundanas tornaram-se, aliás, naquele instante, o auge do sacralizado; era daquilo que ela precisava. Sentir-se humana, pobre, viva, pertencente. Integrada a qualquer coisa do plano terreno que fizesse dela alguém distante da lógica fotos- sintética do mundo em que brotara.

O vestido de laise 35 V – O arremate

Chegou o sábado marcado nos bilhetes de entrada do velho Cine-Brasil. Jussara apareceu subindo a rua disposta e trajada com seus melhores trapinhos, como raras foram as vezes em que dona Mercedes flagrara a amiga-mirim. O vestido, em vias de acabamento, tinha de ser provado pela dona. Aprovado por cer- to que estava, pela patroa que na sexta dera-lhe a nota do ir- repreensível. Jussara sorriu com os olhos unidos aos dedões dos pés à mostra e agradeceu, retumbante e silente.

Na volta da sessão passariam então pela Filomena e marca- riam a hora para os últimos ajustes. Jussara pôs-se elétrica. Radiante, fez-se autômata recolhendo retalhos da mesa e do chão, varrendo a poeira do cômodo, abrindo as duas folhas das jane- las, clareando as dependências do quartinho.

Lá é dia de faxina? Larga disso, menina! Com roupa de ir-ver- -deus? E essa sandália, minha filha? Depois dou conta do negócio. Anda!, larga! – Mas qualquer coisa ressoou em Mercedes a intui- ção do portão de sua casa, que em breve rangeria.

Melhor que não - respondeu Jussara com lepidez e uma voz que a si já não lhe parecera sua, mas que era enfim o primeiro momento da vida em que dissera uma sílaba vinda do próprio pulmão - Vou precisar do quarto limpo para os últimos retoques de noite. Não quero que nadinha saia errado, dona Mercedes, na- -di-nha; ainda mais hoje... – esboçou naturalidade, mas freou.

´Toques, que retoques! Ainda mais hoje quê? Estamos quase à porta. E é seu primeiro vestido de muitos; Ala, que haverá

36 Thiago Sogayar Bechara tempo pra tudo – o coração da menina encheu-se de alfinetes e, ainda mais reluzente, seu sorriso (ar)riscou: É que não vou, do- na Mercedes...

O relógio reinou sozinho por um átimo de eternidade... qua- se emperrou.

A veterana empalideceu. ´Senhora me perdoe... é que decidi que não vou mais... E toda murcha, Mercedes foi quedando-se sem sílabas nem ações prostradas que pudessem responder à al- tura do que ouvira. Jamais pensara esperar tanto pela companhia de alguém e, no entanto, via o significado disso ali se arrematar em ponto-cruz.

Mas se agorinha mesmo respondeu que estava... – balbuciou a patroa como que alcoolizada. Tudo pronto pr´eu dar cabo do que comecei – cortou Jussara - Mas avisei mamãe, pedi que ela acom- panhasse a senhora; aliás, ela já está quase aí. Não queria que entendesse mal, dona Mercedes. Sou muito grata pelo convite...

Ficará sozinha para costurar o que já bem se vê pronto? Ama- nhã cedo põe fim nisso, que eu ajudo. O baile da Anita é à noi- te... – ainda tentou inconformada a patroa, mas já se afrou- xando em resignação, ao sentir a decisão naquele gesto de arrou- bo incompreensível.

Se não se ofende, dona Mercedes... – estava serena, autora de sua resolução e inadiavelmente feliz por abrir mão de si sem uma razão explicável pela lógica comezinha.

Não é por ofender, ora menina!

Pois se não se ofende... Prefiro – justo hoje...

O vestido de laise 37 Por primeira vez olhou realmente a patroa. Enxergou com seus botões os sentimentos à clareza, e surpreendeu-se. Consi- go. Jussara espantou-se com o deter total controle sobre sua ação, bordando as palavras junto ao outro coração; ideias que re- velaram dona Mercedes para as duas. Esta, tentando recompor-se da nudez:

Se prefere, bom, tua mãe concorda. Que se pode contra? – embaraçou-se sem entender as palavras que dizia - Sento e es- pero – quis prosseguir com uma demonstração de afeto qualquer mas não pôde. Fora pega de supetão pelo próprio desejo de dizer- -lhe que a queria bem, ao simples fato de que acabara de encon- trar isso dentro de si. Mas assustara-se com a descoberta. Soltou apenas que era uma bruta duma teimosia aquela. Peste de costu- reirinha. E tua mãe, como demora! – Foi quando o portão rangeu.

Jussara andou até a mãe, Abigail, com um corpo na voz que ninguém nos arredores poderia dizer que ela fosse capaz de emitir. Não era volume, era sabença. A mulher chegara não me- nos intrigada com a mudança da filha. As duas amigas entreo- lharam-se inconclusas, e esboçaram qualquer coisa que queria exprimir apenas que, na volta, elas...

Sim, na volta... - endossava a mãe, prometendo-lhe os deta- lhes de tudo; desajeitada, partida na insondável certeza de que algo sucedera. Mas Jussara apenas assentiu com um sorriso ter- no e acenou um adeus, induzindo sem autopiedade a saída das duas. Deram-se as devidas recomendações quanto ao arremate

38 Thiago Sogayar Bechara do vestido, estrilou a porta da frente, rangeu outra vez o portão, passos na escada; sumiram afobadas, dobrando a esquina, baten- do os tacos de seus sapatos de missa no chão. Que não se atrasas- sem um isto – estalara Mercedes o dedão à unha do mindinho. Àquela altura, o salão principal do prédio deveria estar ronro- nando de buchichos e muxoxos, num dia em que cada espectador fazia, também, sua própria estreia pessoal.

A menina fechou a porta lentamente, suspirou e voltou a pas- sos de passeio para os fundos da casa que era agora toda sua. Va- zia e, não obstante, tão repleta. Demorando cada pé suspenso no ar, saboreando cada passada, o que lhe dava a clara sensação de que sua alma se expandia. Ela era Deus, na sua divina amplidão.

VI - A festa

Entrou no quarto, que lhe pareceu imenso, e dirigiu-se paci- ente para a mesa do vestido. Estancou e deslizou, por sobre a laise renascida, as mãos adolescentes. Tinha nos olhos a reminis- cência das viúvas que acarinham as fotos do marido. Depois pe- gou com cuidado o fruto de seu trabalho e o susteve, estendido com as duas mãos espalmadas por baixo, reconhecendo-se ne- le como a se olhar num lago, reflexo de si mesma; embalando, cantando cantigas, ninando o filho, admirada pela costura de seus dois lados.

O vestido de laise 39 Deixou-o escorregar pelas mãos e o posicionou verticalmen- te, distante de si, tanto quanto seus braços podiam, segurando com a ponta dos dedos os ombrinhos daquele duplo, e o contem- plando longamente num mergulho a seu interior atômico de tecido.

Jussara despiu-se de súbito, impensadamente... e por completo, deixando escorrer até as canelas o vestido de chita que a co- bria. Em seguida, dirigiu-se com a laise envolta no pescoço para o grande espelho que há no provador. Olhou-se sem euforia, nem urgência.

Soltou os cabelos e dedicou longos minutos a mirar seu pró- prio corpo. Tentava entender sua nudez, percorrendo reentrân- cias, tons, protuberâncias como quem reinventa ali um modo de olhar para seus contornos, velhos companheiros de jornada. Sen- tiu uma brisa leve que entrava pela janela a lamber-lhe as costas e entendeu as palavras de dona Mercedes sobre lembrar-se viva.

Os seios apontaram-lhe o trajeto do reflexo. A breve cintura, a fineza de sua arte. Os pelos pubianos deram-lhe a aspereza e o emaranhado de seus longos sentimentos que confundiam uma vida crespa e tão desordenada, ocultando a pureza intacta do ribeirão sagrado que serpenteava próximo de sua casa. De repen- te, num frêmito, fez o vestido escorregar por sobre si. Um pouco largo, mas que a vestiu de uma luz solar que era agora seu nome e sua religião.

A visão turvou-se. E em seguida tentou se enxergar verda- deiramente, distanciando-se da certeza de saber-se ela mesma.

40 Thiago Sogayar Bechara Ver-se de fora; e seguiu mirando longamente até sentar-se dian- te do espelho, experimentando poses, novas cenas da sessão pri- vada que apresentava para si em câmera lenta, nos trajes que seriam, breve, só de Anita Arraes.

Reteve, como que vingada, a respiração. Aos poucos, chorou baixinho pela nova camada de vida que veio-lhe à garganta e que, afinal, a vestiria eternamente a partir dali. Enxugando os olhi- nhos com as costas das mesmas – mesmas? - mãos, pensou sem nenhum arrependimento no filme que perdera. A mãe e a patroa assistiam-no naquele instante por ela. Seria filme de romance?

12/2011 a 08/2016

Ribeirão Claro e São Paulo.

O vestido de laise 41 O boi no telhado

1.

Descia o boi pelo telhado da casa alta. Descia eriçado, com as pernas finas e compridas para o corpo franzino e magro. A casa era branca e, além de alta, estreita. E como o céu muito azul emoldurava o ocre das telhas, também o couro encardido do boi contrastava com o alvo das nuvens. Descia medroso, entre pa- rarraios e parabólicas; e a despeito da inconsciência típica dos bois, qualquer coisa nas pisadas deste animal revelava o arrepio assustadiço com que não compreendia, instintivamente, o que fa- zia, ele, um boi, ali.

Cuidadoso ao extremo, tateando com as patas, escolhendo ca- da telha em que apoiar seu corpo fantasmagórico. Magricelas, mas pronto: era uma carcaça de boi, embora qualquer coisa nele lembrasse a intenção de movimentos civilizados. E seus olhos bovinos... ah, como acusavam sua quase percepção lúcida de que não podia nunca ter ido parar ali. Por vezes, entre as rajadas de vento, sacudia as orelhas desconcertado, e por vezes olhava pa- ra os lados em desconsolo. Parecia querer certificar-se de que ali ninguém seria testemunha deste desamparo ridículo em que se metera. Ameaçava mudar a rota, ensaiando um virar de corpo

42 Thiago Sogayar Bechara para a direção da água-furtada, mas era justo ali que o telhado findava em calha e, se calhasse, ficaria encalhado a não poder transpor o pequeno triângulo que cobria a janelinha de Alfama. Nem recuar para onde estivera sem grande risco de sua operação resultar desastrosa. A robustez selvagem e desengonçada embur- recia ainda mais o boi em seu pavor de desabar.

Arrepiava-se o bovino feito gato, arqueando a coluna para o alto em espichadas de pernas e o rabo erguido, como antena a perscrutar sinais, em sondagem de solo, das telhas mais frágeis a serem evitadas. Para onde olhava, não ia. Onde quer que amea- çasse descobrir enfim a solução segura e rápida daquilo, só descia porque era o que havia para se fazer. E o som seco de cada casco pondo a estalar o barro ardendo ao sol era um segundo suspenso de apreensão e apuro, a espera do pior.

Descia o boi atônito, incrédulo, já quase humano em sua in- capacidade de conferir sentido às coisas e encontrar saídas. Já feito a gente que ali assentara cada telha, a proteger abaixo e a castigar acima. Mal podia sequer respirar, o boi de olhos semi- cerrados, com a ponta da língua já para fora do grande focinho negro. Atônito, soterrado em instintos de incompreensão e pa- vor, no temor de um passo em falso desde que tivera de escolher para qual dos lados desceria, ao ver-se inconfundivelmente so- bre um telhado de Alfama a olhar o Tejo. Tudo nele era bovini- dade e penúria impressentida. Chegou à beira. Calculou a altura em que estava, bufando fundamente como num descanso provi- sório. Voltou o pescoço para trás, admirando toda a inclinação do telhado que redundava nele próprio. Não encontrando em seu campo de visão porteira que lhe abrisse o pasto dos céus, sentiu a brisa soprar-lhe de leve as pestanas e pulou.

O vestido de laise 43 2.

Como quem mergulha para o infinito, a mulher deu-se ao la- jeado de seu terreiro, no quintal da casa em Ribeirão Claro, onde estava na manhã de sol em que jogou-se da mangueira. A árvore era alta e encopada e em torno de si orbitava, como se vivo em sua fantasmagoria, o casario da pequena cidade paranaense, cuja população só mais tarde associaria o baque surdo do corpo contra a pedra com o que de fato acontecera. Com extensos braços en- folhados de um verdor escuro e arroxeado, era pelas frestas da co- pa que o sol ardia e inundava o terreiro em poças que malhavam de oiro as pedras agora cobertas pelo sangue espesso e brilhante.

As pernas da mulher, a coisa de dois metros entre si, separavam- -se também do corpo a cerca de um, como se houvessem sido ape- nas encaixadas e agora voassem para suas independências, com os nervos macerados pela tirania com que se rasgaram. Fios elétri- cos partidos, fiação queimada do que se destecera para o nunca. Os braços abertos, ainda no corpo, e este enlanguescido, em forma de S a deslocar-se da memória de uma carnalidade humana, da- vam a ideia de um pássaro fossilizado que ali se imprimira, cunha- do à pedra, plano como formigas mortas e esquecidas há décadas, achatadas entre as páginas de um livro.

As asas em baile estático eram nada metafóricas do voo que se lhes antecedera. A mulher era toda músculos expostos, carne moída entre ossos a saltar de sua disforme fisionomia. Restou um escombro ensanguentado de miolos a escapar do crânio, era já coisa, em sua vulgaridade. Vulgaridade de matéria orgânica mis- turada pelo ar a liquidificar a vida. Contudo, as pernas separadas

44 Thiago Sogayar Bechara do corpo faziam a impressão dos que ali afluíam para lembrar do que havia também por dentro de si.

Quando o marido da mulher rompeu em desespero o velho portão azul, fazendo o estrondo do trinco emperrado, voou por sobre o que restou do corpo, e pôs-se a ganir, lambuzado das vís- ceras de seu amor. Nada pensava, nada podia pensar. Diante da- quilo. A morte era um detalhe em face ao desmantelo da fragili- dade daquela máquina que funcionou por tantos anos no forma- to de sua esposa.

Tinha fés e desejos, ânsias e manias. Fora temente a Deus, mãe prestimosa, puro zelo com a casa, o que denotava nela algo mais que um sistema fisiológico em processamento. Fora doenças, fei- tios, e um brilho naqueles mesmos olhos agora gelados, quando dizia que o amava antes de dormirem mais uma noite sobre a mesma cama. Aquilo era uma pessoa. Uma legítima pessoa, cons- ciente de sua animalidade, mas por isso mesmo à parte do gran- de rebanho. E restavam-se-lhe apenas ossos e matérias bran- cas entre órgãos espalhados por um chão de pedra que, de tão presente em suas vidas, parecia até ele próprio uma extensão consciente da humanidade.

Como aquele quadro de duas existências – a mulher e o chão - se compunha na fusão das matérias podres que estiveram sempre ali, dentro dela. Ele afinal dormira ao lado de todo aquele hor- ror repulsivo durante anos sem pressentir que seus filhos foram gerados em meio a essa massa remota, a esse bolo amorfo de in- testinos e fezes. Coubera nela tudo. E ela, efetivamente? Quem fora? Onde estava, agora que só restavam seus por-dentros. O cor- po ali, esquartejado pela soberania do vento, era em si mera subs- tância. Mas e ela? Queria saber ele, onde estivera esse tempo

O vestido de laise 45 todo? E onde estava agora. E ela?, repetia já estendido com o cor- po todo sobre o ventre aberto, a deslizar por entre as viscosi- dades musculares.

Suas mãos afundavam-se nas rachaduras do crânio; seus pés debatiam-se nos pés dela. Mas e ela? Nadava em sua mulher, como dono de tudo aquilo que lhe pertencia agora por direito, em herança funesta. E ela? Foi quando, enlameado de sangue e incompreensão bovina, subira ao telhado.

17/02/2016,

Travessa dos Fieis de Deus, Lisboa.

46 Thiago Sogayar Bechara Longo amanhã de uma vida breve2

Para Maria Olívia Fabiani

A mim o que ficou, em verdade, foi o tempo das coisas fugi- dias. E esse foi o único sentir que ele aprendeu a transformar num raciocínio claro, àquela manhã ensolarada em que morreu. Pouco antes, no silêncio, viu entrar Maria Olívia, pronta, como de resto sempre o fora, a dar-lhe o que ele próprio não entendia tantas vezes precisar. Ela exclamava, música!, cantadamente, co- mo a soletrar fórmulas definitivas para a cura da angústia dis- farçada que dele emanava, não obstante notar, da cama, que ela mesmo não cria na eficácia de suas bulas.

O velho içou os olhos, manteve o corpo respaldado. Sobre as pernas, a manta xadrez. Sobre a manta, as mãos ósseas, com seus dedos longos e quebradiços, como a prolongação expressiva do olhar que acabara de suspender. Fixou nela. Mirou-a como quem ouve o que sente e empenhou-se em esboçar aquele sor- riso dos dias em que procurava apenas não desapontar quem lhe tentava ofertar consolo. Seguia descrente, em quase indiferença a isso. Sorria a meio, num apenas. Mecanicamente. E, verdade seja dita, era antes um mostrar das penas do mundo como ele era, a bater asas de ribaçã-de-sede. A mulher somente talvez notas- se; era prática, rompeu para a vitrola e cumpriu seu oráculo, dan- do de si o melhor.

2 Publicado em sua versão original na edição nº 61 do jornal semanal Folha de Andirá, página 02, na semana de 28 de maio a 04 de junho de 2014.

O vestido de laise 47 Uma voz (re)conhecida sobreviveu aos chiados do vinil já gas- to e talhou a existência de ambos em duas partes como se, pela primeira vez audível, a voz chocasse contra suas certezas mais primárias um meteorito de gozo abundante, prazer estético. Das manias de que ele não se esquecera, uma era buscar retorno à sensação da primeira audição, quando a canção fosse velha ami- ga. Nessa manhã, fechou os olhos. Vibrou junto dos metais, arfou respirações, aqueceu-se pela proximidade da cantora, esperou pe- la primeira frase. O desenho melódico que tentou tornar desco- nhecido e que, de fato, surpreendeu-o em grande medida. A vida era uma bailarina serena, traçando no espaço sua doce esperança/ Esperança brejeira que trouxe a saudade primeira de alguém que partiu. Como esta letra continua?, fingiu esquecer-se o velho.

A mulher saiu para buscar chumaços de algodão. A fresta da porta. A alma escancarada. Uma nuvem encobriu o sol e o quar- to apagou-se num repente. Antes que o cômodo voltasse a ser inundado de luz em dilúvio, Dalva de Oliveira o matou serena- mente. Respingando as dores de Herivelto. E o sorriso que restou no canto esquerdo de seu lábio entreaberto permaneceu intacto. Feito a agulha no disco. Quem gira é a vida.

Após entrar pelo quarto, esperou que o primeiro lado do vi- nil findasse, até notar que a fisionomia estava enfim congelada. Chorou, desesperou-se, beijou-lhe o rosto. Tratou de acionar pro- vidências fúnebres; depois velou-lhe o corpo e foi digna e som- bria o bastante ao receber as condolências, guardar seu luto, fechar as portas e janelas de casa e tentar ser feliz sem ele. Agora ornamento sobre o piano. E uma lembrança – viva? - na memória.

O risco maior que ele enxergara em viver tornar-se-ia a cada dia mais legítimo e próximo – de quem?, pois que ele não estaria

48 Thiago Sogayar Bechara ali para comprová-lo; seus bisnetos pouco saberiam sobre ele. Aos saltos, os netos de seus bisnetos nem sequer pensariam na- quela existência como condição das suas. E os carros continua- riam dobrando esquinas, pássaros nos fios dos postes a bem-te- -ver-Jussaras, tardes de domingo, matinês de cinema, sol, morma- ço e muita gente ao largo, levando os cães e sacolas de compras.

Lutara consigo pela permanência. Rabiscara sonhos solitário, como o fora. E, em maratona desabrida contra a areia que escor- re desde os gregos, deu tudo do pouco que teve à única histó- ria que, enfim, de fato escreveu – deixou-a para epitáfio. Mas hoje o velho cemitério da vila é o parking de um loteamento de casas populares.

S/d a 12/2015,

São Paulo e Ribeirão Claro.

O vestido de laise 49 Oníria

A cidade era para dona Oníria um amor não correspondido. E ela nem notava. Vivia como criança, rindo-se de tudo quanto ouvisse de passagem por açougues e armazéns, tanto mais di- vertida quanto mais grave fosse o tom da prosa. Era a carência de discernimento desta negra baixa para distinguir a natureza dos assuntos. Braços grossos e lenço vermelho sempre atado à nuca sobre os bobes rijos, a doceira era de um arredondamento nas bochechas que alargavam-se à rua num sorriso como que perene, o que talvez compensasse a ausência de festejos nos seus olhos. Em seu pisar, ancestral, uma ginga a sacudia aos trancos de um lado a outro, trazendo sempre ao tornozelo esquerdo uma ata- dura já puída, à altura da canela, protegendo um ferimento que parecia tentar impedir para sempre um caminhar sem dores.

Morava aos fundos de um terreno suburbano, baldio e esque- cido pela prefeitura, em seu recuo do mundo. O espaço era toma- do por touceiras altas de capim, algumas goiabeiras feito praga a brotar; e, em meio, a construção que, só com esforço se fazia notar, mal chegava a casa. Oníria mesma havia levantado com as próprias mãos o amontoado de tábuas encontradas num a esmo, em suas andanças. Cobrira-as com o zinco sabe Deus achado on- de; e assim via-se habitando. Estando, transitoriamente, como quem, frente a um banco de praça, senta-se e espera a olhar o céu, sem sombra de futuro a perscrutar seu íntimo.

50 Thiago Sogayar Bechara Pois era assim, somente colocada dentro, que Oníria vivia. Nu- la de amálgama entre o espírito e os limites físicos do espaço a que fizera vistas grossas o governo. Piedade forjada para evitar despejos ou medidas pouco populares, depois que o prefeito an- dou prendendo inocentes por equívoco muito comum nos locais onde o mexerico eleva-se à Constituição.

Também Oníria por um triz, há coisa de dois anos, não fora levada. Fosse outra a reação de uns poucos conhecidos, que não o alarido em forma de abaixo-assinado, e a velha andeja estaria hoje muito longe, é certo, de seu palmo e meio de terra.

Era neste terreno que desaguava grande parte da tubulação de esgoto do vilarejo, recebido por um córrego a céu aberto; há pou- co mais de dez metros entre o leito e a porta de madeira de do- na Oníria - um compensado fino e róseo que, no alto, decompunha- -se em lascas esculpidas pelo tempo. O terreno descampado co- bria-se também de pragas que alastravam-se livres feito instinto de mambembe. E já chegando ao asfalto, havia duas laranjeiras próximas à ponte que saltava o córrego. Aquelas árvores garan- tiam a Oníria o rendimento de uns vinténs. Fazia suas compo- tas de doces que vendia casa-em-casa desde a juventude, ao pé da mãe. Agora, do alto dos oitenta, sustinha a tradição cristalizada, como o doce. Uma prolongação genético-instintiva do subsistir.

Naqueles tempos, eram sabidos na cidade os maus bocados que enfrentava Oníria. E não mais que sabidos. Quando muito lamentados por alguns clientes seus. Pudera, que a cada janeiro as chuvas de verão transbordavam o corguinho, e era sempre aque- le mesmo desmantelo. Imundo, o esgoto a lhe invadir a casa sem bater à porta, imundo. Como jamais teria imaginado ela em sua meninice quando, ainda límpido, o regato esbanjava o som das

O vestido de laise 51 coisas que apenas transcorrem. Um caso de mácula insondável para a mente da jovem Onirinha que um dia ela fora. Mas à cida- de aquilo pouco fazia calos.

No entanto, as chuvas daquele janeiro ultrapassaram suas pró- prias marcas. Inundaram de esgoto até os pensamentos, a cobrir o assoalho de madeira com a podridão da cidade. Foi numa tar- de assombrada que vieram as águas. Não eram só dejetos que va- zavam lentamente pelas frestas do soalho. Nesse dia, todo aquele esquecimento, as excreções morais de toda gente, de certa ma- neira, também vieram à tona... assombrar, minar sua paz, encur- ralar o corpo de Oníria, àquela altura enlameado. Ela, não se soube ao certo, protegeu-se mais com o instinto do que com a dimensão ciosa de viver a perda de uma casa.

Toda aquela expulsão, todo o som da enxurrada se precipitan- do, o desmoronamento de um lar correspondia ao desmoronar também dos seus sentimentos derretidos. Exaurida após salvar o pouco que sabia a pertences, pôs-se enfim a assistir; já do lado de fora, na impotência com que, em certo instante, passou a admirar o espetáculo; aprendendo a amar sua igreja abrindo os braços para o rio de sua infância e de seus bucolismos, deixando entrar com fúria seu passado naquele resto de presente. Um per- meando o outro, numa ligação indissolúvel, cíclica, perpétua; co- mo a serpente que mordeu a própria cauda. Ouroboros. Duas subs- tâncias que agora se misturavam aos pensamentos de Oníria.

Ela confundia os tempos à espera somente de findar-se tudo e enfim voltar para o colchão posto ao canto dos tachos, tornado sua cama, e se esquentar nele... e se aninhar sob a coberta fina, e se encolher, e se cheirar e ver que o dia - finalmente um ou- tro dia - ela vencera. Mas o colchão também cedera, empapado, coberto pelo zinco do telhado e pelo lodo.

52 Thiago Sogayar Bechara Calmamente, ela depositou em grandes sacos negros de lixo os objetos necessários. Roupas, um par de sapatos, o retratinho de sua mãe; foi tudo aos poucos enfileirar-se ao distante, lon- ge o que bastava das paredinhas, frágeis como o olhar da mulher que protegeram. Mas pouco restou dos pertences, o temporal não cedia. Poucos também foram os que testemunharam o ir e vir daquela mulher, reduzida apenas a si em meio à ventania. Tudo o que encontrasse, vinha salvar às laranjeiras enquanto a vida prosseguia.

Finalmente, demolida de cansaço, Oníria parou junto aos seus pertences e suspirou profundo com as mãos escoradas na cin- tura e o peito cheio, como que orgulhosa de sua rapidez e ati- lamento. Olhou para os lados apenas por falta de melhor gesto a executar. Viu ninguém. Debaixo de um estrondo aquoso... só, sobre a lâmina prateada do asfalto. Rigorosamente obrigada a ver-se em sua essência.

Foi quando pareceu brotar nela um indício de intenção, até que decididamente pôs-se a rumar em direção da rua íngreme, deixando os sacos ao largo, sem olhar para trás nem vacilar. Atra- vessou para o outro lado da rua e começou a subir, arrastando o corpo rente à calçada, em suas sandálias antiquíssimas, os dedos enrugados recebendo o fluxo da correnteza, grossos e lavados. Estancou diante do segundo casebre do quarteirão de cima.

Era uma casa pálida, de um amarelo descascado e algumas trin- cas na parede. As árvores pendiam com o peso da água; e, entris- tecidas, fincavam seus olhos nas raízes para resistir ao vento. Oníria, ofegante, tentou recompor-se, passando com força as mãos pelos cabelos encharcados que emolduravam seu rosto.

O vestido de laise 53 Chegou-se à portinha que lhe pareceu bem ornada pelo homo- gêneo da cascatinha que se fizera deslizando sobre a madeira; bateu. De forma autômata e arbitrariamente. Bateu.

Após alguma demora, o que fez com que o som dos trovões parecesse para ela um anúncio do desterro, abriram finalmente a porta. Oníria forçou sorriso à vizinha que surgiu. Era Concei- ção. Também morava só, e foi só que, pingando pelo piso, chegou até a porta, irritada com quem quer que lhe batesse uma hora daquelas. Pois também ela retirava, aos baldes, a água do quintal. Arre!, que não atinava mais com nada, atarantada em desespero, em sua humilde casa alagada.

Mas quando abriu, toda sua intenção de rispidez esmigalhou- -se. Desconheceu a velha conhecida e seu desconforto forjou nela o anúncio da piedade. Seus olhos migraram de forma quase ins- tantânea para o cenário ao fundo da figura enquadrada pelo batente. Por trás do corpanzil de Oníria, Conceição não viu bar- raco algum. Por entre as laranjeiras, apenas o vulto dos sacos de lixo. Levou não mais que três segundos esta cena eterna. Não viu telhas, não viu zinco, não viu nada, viu escombros. Enfim compreendeu. Pálida, estava diante da negritude lavada daquela personagem que habitara ao seu lado até então...

Com o semblante de sempre e a voz ainda mais doce que suas laranjas, Oníria pôs-se a falar muito baixo. Era como se mendigasse a atenção dos ouvidos que pingavam em sua frente. Perdão pelo incômodo, cumadre; queria saber apenas se... saber se a Conceição... se ela precisava auxílio com os baldes. Sim, com um quintal daqueles. Se carecia ajuda ao recolher das águas.

54 Thiago Sogayar Bechara Enquanto balbuciava, seus fios de cabelo escapados do len- cinho escorriam-lhe por cima de um dos olhos. Com um gesto resignado, punha a mecha grisalha de lado com os dedos da mão grossa e rachada, ao que tornava a cair. Dessa vez, sobre o nariz, lagarteava com o balé da chuva que descia em enxurrada por seu rosto. Logo, todo o cabelo pesava pela face. E Conceição, ante aquele gesto, deteve muda o olhar em Oníria. E começou a so- luçar tão baixo, tão baixinho, que não fossem os pulinhos com os ombros, e nem se teria notado o choro a rebentar de seus olhos constrangidos, a inundar mais o dia com os córregos de dentro.

Oníria repetiu a pergunta. Se precisasse de uma mão, que a chamasse. Era toda préstimos e sequer notara o choro que se di- luía sob o temporal, como duas finas membranas que se colam para sempre em suas transparências. Contudo, também turvada por um início de pranto, Oníria apenas ficou. Somente. Ali, em frente à outra, olhares marejando o salgado das lágrimas. Dois corpos a se defrontar, unidos tão somente pela condição da car- ne, da humanidade líquida; das roupas demarcando os seios far- tos, do umbigo formando um círculo-vácuo de entristecimento. O centro gravitacional de duas carcaças.

Entraram pálidas, por fim, em absoluto silêncio. A porta fe- chou-se num estrondo que ecoou pela cidade e a chuva ainda continuou sua romaria por mais algumas horas.

27/12/2008 a 22/12/2015,

Ribeirão Claro e São Paulo.

O vestido de laise 55 A água-furtada

Encontrei o seguinte: que o filtro do instagram não é uma falsificação da realidade. Mas um melhor ajuste do modo como esta se constrói no olhar de cada um.

Thiago Sogayar Bechara Lisboa, 2016.

Naquela noite, com os olhos fechados e o corpo encolhido so- bre a cama estreita, coberto por um felpudo breu, tecido pela ine- xistência, Manel percebeu que formavam-se amebas luminosas nas paredes internas de suas pálpebras. Inquieto, notou que eram como que formatos ocultos que se iam desenhando e desdobran- do-se noutros, uma espécie de movimentação opressora; de um mundo interno que devia estar a dormitar, mas que movia-se como uma pluma que flutua, absorta e lentamente. E, com isso, vinha-lhe a estranha impressão de poder pressentir, na escuridão, uma movimentação também das paredes do quarto, em sua água- -furtada na Madragoa. O mundo passava a reduzir a cada segundo seu entorno, e a sensação era a de que as paredes se aproximavam mais e mais de sua cama, fechando o cerco contra Manel, cujos membros, involuntariamente, se foram comprimindo contra si mesmos, escondidos naquela quase gruta de lã. Quando abriu os olhos repentinamente, para flagrar o inimigo em ação, era apenas o quarto, em meio à noite, já não em breu, mas banhado de uma claridade amarelada que a água-furtada deixava entrar em fa- chos, pelas gelosias empoeiradas. Suspirou, certo de ter sido ape- nas imaginação.

Mas aquela espécie de êxtase não tardou a recomeçar mexendo- -lhe novamente os sentidos e, como que alcoolizado, vendo girar

56 Thiago Sogayar Bechara tudo, mesmo com os olhos cerrados, Manel passou então a sentir na pele a proximidade de todos os móveis do seu estreito cômo- do, vindo estes junto do aproximar das paredes, mesmo arrasta- dos por elas, chegando-se a ele, oprimindo-o, por fim, sufocando-o. E então, quase que justapostas aos quatro lados da sua cama, as quatro paredes brancas e frias poderiam enfim ser tocadas se ele tivesse sentido a coragem de esticar um braço. Não sentiu. Percebia tudo apenas com a movimentação do quarto dentro de seus olhos fechados. A substância de que o inverso de suas pál- pebras se tingia rodava feito descarga na patente, em câmera len- ta, descendo em roda, dançando abaixo para todo o sempre, num infinito desenho circular que fazia de todo aquele negror move- diço matéria viva. Parecia-lhe que, se totalmente às escuras, o quarto estaria finalmente vazio de qualquer espécie de sombra. Levantou-se para fechar as cortinas da janela. Mas a escuridão era a própria sombra-mestra. O grande reservatório de sombras, aquele piche que pintava espaços vazios. Era a madre superiora daquele convento que emprestava singelos e pontuais momentos de clausura às caudas-de-ausência das pessoas que seguissem iluminadas pela rua.

À luz, todos tinham seu quinhão de ausência a perseguir-lhes pelos pés. Mas ao fim do dia, aquele batalhão de espectros som- brios voltava ao seu lar, como todos ao fim de um dia de traba- lho. E a garagem onde habitavam noturnamente essas pequenas e inexistentes criaturinhas, era uma só; nenhuma outra senão a água-furtada de Manel. Naquele dia em que sentiu, pela movi- mentação do escuro dentro dos seus olhos, que todo o quarto se lhe chegava ao alcance, era senão apenas mais um dia. Contudo, somente aquele. E, desde essa primeira vez, todas as outras se

O vestido de laise 57 apresentaram não menos lúdicas que aflitivas. E achou, a partir daí, mais esse brinquedo a entreter sua vida de dias atrás de dias; era como bois atrás de bois, pelas trilhas do pasto. Brinquedos são espaços extras que fundamos sem precisarmos desapropriar qualquer dos espaços já existentes a cada vez que uma nova subs- tância põe-se a mexer-se por dentro dos olhos, como também a brincar de ser algo mais que simplesmente uma ausência diária de luz.

Manel levara por volta de seis meses neste jogo de deliciar-se pela tortura, quando decidiu que era chegada a hora de inter- romper aquilo de brincadeiras com o olhar. Carecia de mais se- riedade e método de vida. Tinha já idade para deitar fora a possibilidade de acontecimentos de natureza alheia à da vida adulta, responsável e disciplinada. Ora, que ver sombras amorfas e coloridas espectrando o interior das pálpebras ou bem era de- feito nos olhos, ou doença degenerativa grave. E como imaginara- -se, dali a alguns anos, completamente incapaz de distinguir o mundo das coisas estáticas do das que se movem por aí fora, decidiu, sem sombra de dúvidas, que seus olhos padeciam duma qualquer enfermidade, e que precisava urgente d´óculos novos que lhe restabelecessem o evoluir natural de sua visão enfermiça. Foi ter ao oftalmologista, o qual não lhe tirou as esperanças de que, fosse o que fosse, o gajo estivesse descansado com a degene- ração ocular. Deu-lhe lições oftalmológicas, fez-lhe desenhos dos nervos óticos e explicou-lhe em pormenor o funcionamento de leitura das imagens coloridas produzidas em espiral pela fantás- tica e moderna aparelhagem que tinha ali mesmo, na clínica (ima- gens estas, diga-se, até bem parecidas com as que vira à noite), com intuito de acalmar o jovem; e prescreveu nova gradação que

58 Thiago Sogayar Bechara deveria encomendar, e uns colírios que dariam a Manel o alívio momentâneo enquanto não chegassem as novas lentes.

O doutor, contudo, não ficara sabendo que antes de caminhar loja adentro, Manel deter-se-ia à vitrine, aliciado por um mo- delo de armação que o fecundara de um brilho rejuvenescedor. E proferiu para si mesmo, antes sequer de o provar que, com tal modelo, e as novas lentes, poderia considerar-se enfim o jovem adulto que ansiara, por intermédio do frescor que, surpreenden- temente, lhe traria ares mais maduros. Dir-se-ia ter ele ali dado com a própria fisionomia no expositor. Como se enfim reencon- trado com a moldura que, em sendo a sua ideal, devolveria ao olhar as formas originais das coisas tais como elas são. Isto, con- sequentemente, se refletiria na forma como as pessoas olha- riam para ele. Sim, era claro! Como Manel não havia pensado nisso antes. Corrigisse as imperfeições dos seus olhares, e seria ele igualmente olhado doutra forma, uma vez que sua postura perante a vida mudaria também, por ter-se condicionado à nova visão. Estava decidido, e mal voltara de seu transe, viu-se a sair da loja, com a armação comprada e, nas mãos, o pedido de que nela fossem postas as novas lentes. Chegou em casa numa eu- foria tal, que a mãe não teve coragem de repreender-lhe o uso abusado do cartão de crédito. Era demasiado o impacto de fe- licidade que a novidade parecia reverberar no filho, como se dos novos óculos se pudesse emanar um fluido luminoso a trans- formar o mundo e a justapor-se às imagens bailarinas que lhe vinham acometendo o interior das pálpebras noites a fio.

Os dias que a partir dali seguiram-se foram de uma ansiedade que beirou as raias da impertinência. Tudo em Manel era autori- dade, segurança, nobreza de gestos e até o modo de ele se sentar

O vestido de laise 59 mudou sensivelmente para qualquer um que tivesse os olhos atentos o bastante para distinguir a montanha do rato que pa- rira. E a cada ação cotidiana, reverberavam as armações no- vas de Manel, sem que dos óculos antigos ele ainda tivesse se desvencilhado – não via a hora de o fazer. Até mesmo os gestos mais corriqueiros do rapaz emanavam isto. Manel a pentear-se; Manel a lavar loiça, Manel a preparar o café; trazia-lhe tudo um sentimento de importância, justificando sua utilidade na vida de sua família. A seriedade com que, por exemplo, media as duas colheres de pó, a primeira bem cheia, a segunda menos, enquan- to a água fervia ao lume, continha uma urgência, mas também uma serenidade, habilidade ancestral de quem sabe o que faz. Era como um caráter litúrgico, de tarefa imprescindível, inadiável e cumpridora de um dever que, por sua vez, fazia parte de todo um roteiro de vida. Mas a única obrigação real deste seu rosário era mesmo passar o café para ele, sozinho, de tarde a desenhar, quan- do a tarefa da escola já estivesse pronta. Tentava convencer-se de que também ele, de algum modo, naqueles desenhos trabalhava em algo tão importante quanto o serviço de seus pais, que tra- ziam comida para dentro de casa. Era um bocado culposo pa- ra ele chamar de trabalho uma atividade lúdica do seu espírito. Em todo caso, era um resquício da identidade anterior em que ainda se apegava. Afinal, era graças a isso que se satisfazia em poder exclamar que era um artista! E essa comida não era me- nos importante.

Logo no terceiro dia, após encomendados os novos óculos, Manel notou algo curioso quando passou pela Lapa e cruzou ocasionalmente com um seu conhecido. “Que giros os teus ócu- los novos, Manel!”. E a partir dali, todos achavam que os óculos

60 Thiago Sogayar Bechara do rapaz eram já novos antes de o serem, e, claro, sem que ninguém além dos pais soubesse da importante aquisição, pres- tes a ficar pronta. Aquilo deixou o rapaz aturdido da primeira vez em que acontecera. Dir-se-ia mesmo perturbado. Acontece que não foi apenas uma vez que amigos e conhecidos elogiavam as novas armações. “Armado em novidades, Manel”. E como isto era possível, se ele estava ainda com as velhas lentes, que, de resto, eram as de sempre, com as quais toda gente o via há tanto tem- po? Como podia… enxergarem errado a tal ponto? A ponto de verem os óculos novos sem que estes sequer existissem ainda. Vissem que algo diferente acontecera com seu rosto sem que sou- bessem detectar o quê, vá lá. Agora, constatar a transformação sem que esta ainda se tivesse processado, era caso para pensar-se numa terrível epidemia ocular a espraiar-se por Lisboa. O estra- nho era: justo às beiras de mudar as molduras de seus globos oculares. Manel duvidou do que lhe estava a suceder. E, incré- dulo, de um lado a outro de sua água-furtada, em mais um dia no qual, dessa vez, seu melhor amigo da escola dissera-lhe o mesmo sobre os óculos, repetiu consigo, como que a buscar sentido para o absurdo da frase: “Sem que os novos sequer existam...”. Foi quando uma luz se chocou contra sua mente, abrindo um canal de novas ideias. “Sequer existam? Existem, eu próprio já existo com eles, mesmo sem que estejam sendo usados”.

Quem veio primeiro? A mudança dera-se por causa dos no- vos óculos, ou os novos óculos só foram comprados por causa da mudança? Será que foi justamente por já ter-se transformado que nasceu nele o sintoma físico das luzes interiores ou o contrário? Tratar-se-ia, então, duma adequação à nova autoimagem que aos poucos se delineava? Ele parecia ir tomando consciência dessas

O vestido de laise 61 perguntas de modo muito claro e surpreendente. Queria fazer durar por muito tempo este seu consigo mesmo daqueles instan- tes da pré-chegada dos novos “emolduradores” de seu mundo. Enfim, chegaram à loja. Ligaram a avisá-lo de que as novas len- tes já haviam sido postas na armação escolhida. E como ele ti- vesse ansiado ardentemente pela nova fisionomia que aqueles óculos dariam à sua alma, quando saiu pelas ruas da velha cida- de queimando de satisfação e expectativa do que se lhe seria dito a partir daquele dia, ninguém notou absolutamente nada. Manel era apenas ele mesmo.

Travessa dos Fieis de Deus, Lisboa,

18/06/2016.

62 Thiago Sogayar Bechara Naquela cidade onde chovia sempre às quinze, o menino recém-chegado não saía de casa à hora da chuva. Via do quarto pela janela os colegas passearem de coluna ereta, e não entendia nada e se encolhia por eles, a sentir o estorvo da umidade; à cama, que era pequena demais para tanta chuva a lhe empapar retinas e ideias. Apenas lia, em seus livros vindos do sul, o sonho de dar-se por lá o milagre das águas. Achava que molhar-se àquela maneira não devia ser normal, ao passo que todos andavam ensopados como se em dias de sol. Certa vez, porém, pensou no molhar-se como uma forma de secar o corpo da aridez do espírito, e resolveu provar. Gostou. Hoje ele toma banho de chuva sempre que o relógio soa quinze. E marca hora para esquentar-se à lareira e ler os livros que trouxe do sul.

Thiago Sogayar Bechara 02/01/2014, 4h38 e 23/12/2015, Ribeirão Claro e São Paulo.

O vestido de laise 63 A chuva e Paulinho

“A lua branca, de luz prateada faz a jornada no alto dos céus como se fosse uma sombra altaneira da cachoeira fazendo escarcéus”

(Trecho de “Chuá, chuá”, de Ary Pavão e Pedro de Sá Pereira)

As primeiras gotas foram como a infância de Paulinho. Tímidas. E como que querendo acontecer. Você alguma vez sentiu o cheiro do frio?, ele perguntava a um tio naquele tempo, ouvindo a fina garoa da noite. Já experimentou encaixar as narinas bem abertas pela fresta da janela e aspirar profundamente? Inalar a temperatura junto ao assombro que é trazer para dentro de si o próprio tempo da vida lá de fora?

Pouco antes dessas primeiras gotas, a criança atônita inspirava um ar que não deixava de ser também uma expiração de outrem; que eram hálitos das magnólias da calçada, emanando sua madei- ra de outono. Eram hálitos quase sonoros, num existir muito dis- tante de tudo que é apreendido pela cultura - que é tudo aquilo que o Homem planta em sua história e depois colhe de si mesmo.

O ar foi aos poucos esquentando, a umidade penetrando no ti- lintar das gotas. A chuva avolumava, um ar moroso se esgueirava por entre os pingos grossos e cumpria seu percurso até a janela do quarto; e aí Paulinho se tornava adolescente. Estava prestes a esse tanto que é a ilusão da liberdade, ainda que enjaulado. Pela for- ça do cimento ao seu redor. Não que não houvesse portas. E as portas estavam destrancadas, mas sair seria conceder ao cosmos. Aceitar; integrar-se a seu tom de banalidade.

64 Thiago Sogayar Bechara É que, depois de conhecido, o novo envelhece muito rápido. E Paulinho queria ainda se surpreender e aterrorizar inúmeras vezes. Por isso economizava. Os carros, os bêbados, festas de do- mingo nos vizinhos, existências presas para lá de seu cubículo. Tudo economizado. E ele cá. Eram dois mundos: ambos admira- dores das artesanias um do outro. Vinha o medo de abrir o ca- deado, que era na verdade um medo do fundir-se e então se di- luir. Paulinho era concentração. A noite sussurrava em seu ouvi- do, reclamando o amálgama desses dois corpos. Queria se tocar, transpiravam seus poros; a única penetração real. Eu e a matéria física do meu texto.

Primeiros trovões: deu-se a confirmação de que a chuva come- çava a cumprir sua promessa de buscá-lo para si. Cantares de Iara. Mas as vizinhas punham-se a fechar tramelas e a colher as rou- pas do varal. Sua vida fora esse ir e recuar; esse bailado de de- sencontros. Um dia, Paulinho pensou que bebendo a vida a goles curtos num pratinho ao pé da porta, junto ao leite do gato, me- lhor degustaria o sabor da cachoeira. Era ainda continuar con- solando-se com a falsa ideia de que economizava o mundo, pos- tergando o primeiro passo para além da soleira. E chegou certa vez ao requinte de formular a ideia de que sentir-se só, no fundo, era o mesmo que estar rodeado, só que sem achar um modo es- piritual de correspondência com os que o rodeavam.

Paulinho passava a mão molhada de suor pelos cabelos secos e os sentia ásperos roçando, fio a fio, célula a célula de seu tecido cutâneo espalmado. Entrava com os dedos pelo couro cabeludo detendo todo o maço da cabeleira como se a fertilidade de seu ser coubesse neste gesto. O contato de si para consigo redimensio- nava aos poucos a existência de cada coisa a seu redor. Restava

O vestido de laise 65 apenas a certeza de saber-se vivo; o resto se esvaía junto aos fios sobre o colchão, amassado por seu corpo a revirar-se insone.

A chuva dava um passo atrás: como Paulinho que troveja à toa, adolescente, sem razão e desproporcional. Quando ele trovejou, gritou, brigou em meio ao restaurante lotado, não teve vergo- nha, antes orgulho. Pelo clamor que incendiou sua alma – deus? – de sede por justiça e de paixão pela razão. Paulinho não tardou a tomar corpo de recém-formado: a chuva embalou. Pôs-se a cres- cer e com trovões mais esparsos passou a gotejar das calhas es- palhando a força de sua fertilidade, fecundando o barro das telhas que já não absorviam com sua porosidade o volume excedido de seu crescimento. E a virilidade de seu tronco brotou novas folhas e frutos àquelas - mesmas? – árvores ao pé de si.

Daí que, a todo instante, os objetos conhecidos de sua casa tornavam-se, na periferia de seu olhar atento à televisão, uma pe- rigosa legião de seres monstruosos movendo-se melífluos, à es- preita de Paulinho, em seu entorno, vivos; lagarteando lenta- mente, lesmas gigantes em suas antigas memórias de abajures, ameaçando os pensamentos todos. Como se esse filme externo de terror voltasse ao play em seu ritmo misterioso somente quan- do os olhos do rapaz estivessem na tela da televisão. E era o bas- tante para essa horda reviver. Interruptores, quadros, campainha, tomadas e reflexos do vidro. A vida verticalizada nas paredes da casa acontecendo à margem do olhar, mas surpreendentemente sobre ele.

Onde você descobriu a palavra recôndito? Ela é minha, respon- dia. Desde criança que ela é minha. Pensava ele que ninguém mais a tinha e, excitado pela descoberta, cresceu velando o privilégio

66 Thiago Sogayar Bechara de deter o desconhecimento alheio de sua pepita. E desde quan- do, afinal, esta palavra existe em seu vocabulário? Ora, direito de exclusividade, orgulho ferido. Inclusive por algumas outras palavras que não digo para você não procurar no dicionário. Não se pode correr risco nenhum nos tempos atuais, em que os cômodos da casa ganham certa vivacidade em seus aspectos.

Aspecto: o medo de duas consoantes seguidas.

Lispector: letras mudas são as que mais falam, dizia Paulinho nas entrelinhas de seus devaneios de homem maduro e pai e esposo e avô aposentado, pouco antes de morrer, ouvindo Dalva de Oliveira.

Bem no fundo de sua mudez, essas letras interpõem-se num espaço vazio, como na subtextualidade que talvez haja na pulsa- ção sanguínea; e fazem gerar, em sua repartição pública de letras, o desconforto léxico, vocabular, semântico, aeronáutico de um si- lêncio incompreendido porque não apreendido. No choque seco entre as duas letras; estava aí o mistério intocável do Tempo.

A velhice de Paulinho era já outra linguagem. Foi cessando seu idioma como o som das gotas que agora distinguiam-se, uma a uma, sempre que caíam solitárias, como o eco da última apresen- tação na plateia vazia. Até que o ar foi esfriando novamente. E, numa manhã de sol, enfim, a chuva parou.

28/02/2012 a 18/11/2014,

Ribeirão Claro e São Paulo.

O vestido de laise 67 Balada3

Encontrei o seguinte: que o filtro do instagram não é uma falsificação da realidade. Mas um melhor ajuste do modo como esta se constrói no olhar de cada um.

Thiago Sogayar Bechara Lisboa, 2016.

Em torno daquela fogueira, acesa em meio à pista da boate, a menina Neiva dava-se lépida ao dançar e a proferir saudações para santos de sua tribo. O calor e o ritmo dos tambores metáli- cos emprestavam vida à sequência dos passos embriagados na- quele terreiro de xamanismo eletrônico.

Incorporada a bebida ritual, girava, ria-se, e apenas agia, (plu- gada na) :- tomada. Sem questionar a natureza estroboscópica de seu transe sob a luz que, intermitente, vacilava, frenética noi- te afora, fragmentando cada braço suspenso no ar, como se eles dançassem em frames de uma câmera lenta ancestral. Paralisação de seu tempo histórico.

Embevecida por sua própria anestesia visual e com um lapso de consciência do autoperceber-se, esta mênade clamou a esmo um: Não corra tanto, volte aqui!, e agitou no ar seu tirso fluorescente de bacante dionisíaca. Mas a voz era já bem outra.

Como se a rítmica estivesse congelada à imagem e semelhança de seu bisavô, nosso Senhor, e os ameríndios da balada danças- sem em celebração à fuga do real (isto existe?), ela escapa dali,

3 Escrito a partir de trabalho de redação universitária, com título original de “Catarse”, elaborada para o curso de cinema da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP, em 2005.

68 Thiago Sogayar Bechara catártica, ritualística e vê-se numa ofegante perseguição de seus desdobramentos luminosos.

Deixado para trás, o rastro tortuoso de suas pegadas desapa- recia tão logo eram impressas ao chão. Guiada pelo vulto anôni- mo que lhe fugira, etílico, até o espelho d´água, ao deparar-se com seu reflexo, viu-se nua a empunhar, noutro tempo, um vestido solar que nunca vira, e que era contudo o traje de sua libertação, e apenas satisfez-se ao encontro de si. Defrontou-se com seus dois mundos tribais e aceitou-se em duplo, simplesmente. Nunca sou- be se era feliz. Amanheceu com dor de cabeça.

2005 a 12/2015,

São Paulo, capital.

O vestido de laise 69 O voo do tamarindeiro

“Volta pra vida serena da roça daquela palhoça no alto da serra”

(Trecho de “Chuá, chuá”, de Ary Pavão e Pedro de Sá Pereira)

Para Jaime Jorge Bechara

I

Como arrancar as horas ao relógio sem destroçar as engrena- gens; foi nesta dúvida-desejo que tio Ciano nos contava que ficou quando, naquela manhã de infância, não teve uma borracha se- quer com que apagar o destino que acabara de se concretizar, literalmente sob seu nariz. Vou logo ao ponto e digo que matou. Foi este seu inferno e sua expiação. Ter apontado ao sanhaço que pousou num tamarindo do pomar. E não o executou com a sanha de seus amigos que, quando faziam vítima os traupídeos, punham- -se a correr para dona Carmen, que fritava as carnes mirradinhas dos inocentes. Tio Ciano não!, matou nem ele soube ao certo por quê. Era assim ao menos que sempre contava a história.

Penso, contudo, que algo mais em sua corriqueira narrativa ge- rou em tio Ciano a possibilidade de uma remissão. Talvez porque o ato de contar lhe fizesse sentir que tinha as asas do perdão, as quais perdeu quando tirou a vida ao pássaro. E agora o faço em tributo a quem mais nos ensinou, a mim e a meu mano Paulinho.

Naquele quadro matutino que se forjou num mês de junho, quando abriu com os olhos ramelados as janelas de seu quarto na

70 Thiago Sogayar Bechara fazenda, um enovelado sonoro encheu os tímpanos de tio Ciano. A brisa de leve acarinhou a flanela de seu pijama ainda quente das cobertas e, ao alvoroço daquele som estridente e multicolori- do, logo fez-se a claridade. Foi quando as pupilas firmaram-se encontrando o foco e, com este, o mamoeiro abarrotado de sa- nhaços sombreados pela copa de um jatobá próximo, naquele antigo quintal.

Ouvíamos, eu e Paulinho, muito atentamente, como quem re- vive o ímpeto e o arrefecimento a um só tempo. Queríamos aque- la história para nós; no entanto, nos contorcíamos de desespero e alívio por ela pertencer a outro corpo, outra carne impregnada dessas forças todas. Aquele menino que ele fora nunca havia pensado em fazer uso da espingarda de chumbo tão desejada pe- los primos e amigos nas caçadas pelas grotas e capoeiras da in- vernada. O máximo que teria conseguido tio Ciano, numa manhã de céu turquesa como aquela, seria chegar ao fundo do pomar, próximo à cerca que o divisava com o pasto do gado de ordenha, e espiar admirado o vazio repleto de acontecimentos. Mas algo descarrilou dentro dele naquele dia.

Quase podia tocá-los com a mão, tangíveis que eram os gritos do bando em torno das papaias penduradas. Nosso tio-contador cingiu as cordas de uma viola imaginária em nossos pensamen- tos e fez reverberar com força seu incrível intuito juvenil de con- cretizar o ato que, em sua vida de criança, não pôde ao menos tolerar. Enquanto isso, os primos se divertiam com aquilo como quem simplesmente taca pedras ao regato, vendo os círculos ino- fensivos d´água se ampliarem circunscritos um ao outro em torno da memória da pedra.

O vestido de laise 71 Seu intuito durou apenas as poucas horas de uma ensolarada manhã de junho, mas que o feriu na consciência para sempre. É que o incômodo pela algazarra empreendida pelas aves serviu a tio Ciano como espécie de álibi muito mal arquitetado, aliás, para justificar o ânimo que, sem mais explicações, atordoou sua alma. Sabia que nada compensaria o erro que constituía aquela rede de cogitações prestes a serem engatilhadas. Mas transpassou seu cor- po um frio de orgulho por sentir a ousadia àquele feito necessária.

Era a força da coragem que almejava ter na vida. A realização do gesto veio como forma de um ultrapassar-se. Então vestiu-se feito jato, calçou-se num foguete, bebeu leite nas nuvens, arrom- bou a porta como açoite e lançou-se ao mundo, rumo à venda na cidade, onde robustos sacos de farelo e milho aguardavam que os clientes mergulhassem os canecos de alumínio antes de pesar as porções. Comprou da vendeira uma caixa de chumbinho para a espingarda e disparou de volta para o sítio; passos largos, calças curtas, olhos longos. Singrou a rua até o fim, atravessou o ponti- lhão, alcançando a estrada de terra. E neste ponto da história, tio Ciano não falhava em mencionar dois fatos que chamaram sua atenção no retorno.

Havia uma árvore bem grande na beirinha dessa estrada, era uma taiuveira, e em si trazia sempre um urubu pousado, quase que por capricho ou miragem. Tio Ciano dizia que o catartídeo – ele sempre mencionava a família a que pertenciam os seres de sua convivência -, enfim, que a ave morava por ali, pois sempre esteve empoleirada, e no mesmo local. Costumava apostar com os amigos que ele estaria lá agora, e corriam todos para a velha taiuveira com seus galhos ocres que cresciam em espirais de ago- nia. Naquele dia de chumbinhos na alma, a aposta estaria perdida,

72 Thiago Sogayar Bechara se tivesse sido feita. A ave encontrava-se morta. Isto é, tio Ciano assim a julgou, por não tê-la visto nunca mais a partir de então, o que, no momento daquele seu retorno, pareceu-lhe um presságio.

Adiante, já quase em casa, notou que no pasto vizinho que mar- geava a estrada havia uma vaca, os chifres-banana nascidos para o chão, a lhe espiar e lhe despir da própria pele. Titio descobrira ali que não soubera nunca olhar para uma vaca. Definitivamente, não havia aprendido. E dizia isso pela experiência própria da- quele constrangimento, porque parece que a bovina, em sua in- discrição, a cada passo de titio, virava-se também; lentamente o acompanhava feito Monalisa, em seu olhar de vaca. Para isso en- tão ela era vaca? Para acabrunhar serenamente enquanto regur- gitava? Para devassar o mais recôndito do que, timidamente, nos ia por dentro? Esperanças se fizeram nele de que aquilo repre- sentasse mera curiosidade, mas algo lhe dizia que a displicência excessiva do animal queria falar-lhe por meio dos seus negros olhos, grandes, bem redondos e brilhantes, impondo ao nosso tio o desconforto de não ter em si espaço suficiente para habitar o próprio corpo. Definitivamente não!, não havia como aceitar tu- do aquilo. Eram olhos de vaca, aquilo lhe bastava. Não aprendera a ser olhado assim e tratou de acelerar o passo. Nós concordáva- mos com a cabeça e nos aliviávamos pela aposta do urubu.

Cruzada a porteira do sítio, subiu a estrada de brita até al- cançar a portinhola que acessava o piquete do pomar. Dali para dentro, eram imensas as jaqueiras, castanheiras, pitombeiras, goiabeiras; um universo todo, sem eiras nem beiras. Todas som- breando a cegueira da existência naqueles seus passos firmes, es- talados sobre as folhas secas na terra úmida, minada pelos for- migueiros. E ele só sentia essa coloração cinza-azulada de seus

O vestido de laise 73 instintos (des)enraizados. Cruzou os fundos do galinheiro, abai- xou-se para não bater a cabeça no galho pendido do pé de araçá e contornou por trás da gabiroba até o ponto mais alto do terreno. Sabia que àquela hora o velho Eleutério, caseiro da chácara, já ha- via tratado de ir regar o jardim da sede, o que já teria espantado o bando dos sanhaços do mamoeiro de tia Bita. Era no pomar que agora eles talvez estivessem.

Estancou, sob a saia rodada do pé de jamelão. Ela arrastava a barra da fazenda de folhas lustrosas pela encosta carcomida de erosão; tingida pela madureza arroxeada de seus frutos. Ali tra- tou de fazer o menos barulho quanto pudesse, tirando do embor- nal os chumbinhos, quebrando ao meio o cano da espingarda, munindo-a, elétrico, do material metálico que lhe traria a honra de experimentar. Neste momento foi que sua respiração – e a nossa – pôs-se a acontecer desordenada e assimétrica, como os ponteiros do relógio cujas horas foram ali torpemente furtadas. O jovem tio Ciano pulsava em frêmitos de desejo e de erotismo, com o cano longo que detinha em suas mãos. Guardava em si o desenlace do futuro alheio, e este poder lhe dava uma virilidade que dificilmente já havia provado. Deixou seus apetrechos esco- rados no tronco próximo da sapucaia e, olhando os frutos de um cambucizeiro vizinho, acabou por enxergar neles ora potes de ce- râmica indígena, ora as naves extraterrenas que capturavam, pas- so a passo, sua percepção racional de um mundo organizado pela lógica humana.

Naquele instante em que pôs nas costas a arma que pegara escondida do pai, aconteceu nele o espírito da libertação e este sentimento ditou-lhe as letras de uma cartilha avessa à moral do seu mundo aculturado. Seu corpo, seus pelos, o cheiro da sua

74 Thiago Sogayar Bechara pele, a carne nova e lisa, toda sua constituição entendeu de sú- bito que tudo é mortal, que basta viver. Mas mesmo as pedras e arames farpados pareceram-lhe vivos e finitos, falíveis, susce- tivelmente humanos. Nele, a certeza palpitava, os deuses desa- pareciam enchendo sua boca de uma saliva grossa e quente que ele poderia muito bem lançar ao chão num cuspe espumado, co- mo sempre fazia Eleutério. Bastava querer, bastava agir para ser, e ele estava prestes a ser algo que jamais quisera. Um dia após o outro já era o futuro.

Ele aceitara incluir em sua história o ato que macularia para sempre a maior particularidade que o distinguia dos amigos, que o isolava... ele não percebia ao certo, mas queria como nunca hu- manizar-se, harmonizar-se, ferir sua imagem asséptica e ter nas mãos o gosto amargo do arrependimento. Assim o fez, quando estancou decidido diante do tamarindeiro, após alguns minutos de ouvidos aguçados, à caça auditiva dos sanhaços que nunca, ele dizia, nunca poderia esquecer.

II

Depois de tudo concluído, correra então desenfreado, final- mente em posse de sua consciência, buscando a ajuda de Eleutério para socorrer o animal que agonizava pelo tiro mal mirado. Mas o funcionário, ao invés de se penalizar pelo pássaro e pelo autodesprezo arrependido de tio Ciano, mostrou-se calmo e mais interessado na possível utilidade do defunto; se fosse “dos bons” faria para a janta com farofa, acostumado que era àquele espor- te, o que desesperava ainda mais o garoto. E, claro, a nós.

O vestido de laise 75 No entanto, o final trágico fora menos importante nos re- latos posteriores que tivemos, do que o momento em si, que pôs termo à vida de um e iniciou a liberdade do outro. Ante a visão agônica da ave que voara em espirais até o chão e debatia as asas saudosas do mamoeiro, aquela criança agora igual ao mundo, na qual se tornara, odiou com todo seu terror o olhar de Eleutério e a intenção sem traço de remorso. Odiou porque não via no ami- go sequer o tom da reprovação; passou a odiar a si. Experimen- tara, à custa de uma vida. Uma vida inocente que não tinha na- da a ver com as sombras da sua alma. Agora desejava que tudo se desfizesse, que o sanhaço fosse curado, devolvido ao espaço inalcançável do tamarindeiro. Olhou ao redor, temendo ser visto, mas não havia alguém, senão ele. E as plantas todas do pomar... elas representavam a rebelião passiva da natureza contra sua vergonha e humilhação.

Naquela noite sonhou – sanhaço -, empapado de um suor aflito, que o urubu de sua taiuveira devorava as carnes mortas da vaca e ele novamente não pudera compreender. Mas num instante, a vaca abriu um de seus olhos ainda não bicados pelo carniceiro e espreitou tio Ciano como antes, renascida e bri- lhante, constrangendo-o pelos créditos de vida que ele dera à ave em suas antigas apostas; e pela morte que impusera ao ser oculto que lhe havia vigiado as vísceras até então. De fato, nos- so tio-azul nascera outro quando abriu a janela de seu quarto no dia seguinte e deparou com o mamoeiro abarrotado de tantos sanhaços como antes. A vida transcorreria. Serena, como nunca

76 Thiago Sogayar Bechara o fora. E ele permitiu, em sua ressurreição, que certa satisfa- ção assentada imprimisse em seus lábios um sorriso impercep- tível que agora gabava-se de já ter feito aquilo que temera. Mas me adianto, isso ele não nos disse. Nem nada do resto, que eu e o mano sonhamos a partir dos silêncios do tio. Ele terminava sempre a história assumindo que, contudo, nunca mais seus ou- vidos teriam esquecido o baque surdo do tiro de chumbo, quando a ave tombou no capim que forrava o pasto.

21/02/2012 a 01/02/2015,

Ribeirão Claro e São Paulo.

O vestido de laise 77 A casa da frente

Ver da janela de meu quarto a esfinge que era aquela casa velha jamais havia me causado a imensa curiosidade de conhecê-la que tenho hoje, após tê-la conhecido. Aquela construção propiciava qualquer coisa como compreender a verdadeira dimensão de um segredo. No dia em que finalmente tomei forças para penetrar o interior desta fachada inabitada, quanto mais eu adentrava, menos entendia que mundo era aquele e mais sem fim o imóvel ia ficando; mais ele se agigantava ante meus olhos e me inebriava com sua umidade abandonada. A sala desencadeou logo em mim a consciência da finitude. Era um salão gélido, vazio de qualquer mobília e que fazia eco ao simples caminhar. Tão outro planeta que era, mas rigorosamente em frente à janela do meu quarto.4

Thiago Sogayar Bechara, 2013. São Paulo, capital.

Prólogo

Ela era o melhor segredo daquele menino-eu. Talvez por sim- plesmente julgá-lo um segredo. Daí que, naquele tempo, o silêncio de algumas noites ainda fazia zunir seu coração adolescente, co- mo a iminência de um assalto. O frio das madrugadas calava sua respiração aflita e, não raro, ele afundava estático na caminha ao pé da janela, como quem teme a próxima rajada. As faces de vi- dro que se uniam sobre o trilho trovejavam à ventania de sem- pre. E estavam tão próximas dele que era o menino quem vi- brava. Estanque, o coração com pressa, como quem se esconde atrás da cristaleira, antes da bronca.

4 Texto publicado originalmente em agosto de 2013 sob o título “A vista” na editoria “Formas breves” do jornal “O Pimenteiro” (nº 06, p. 06) que circulou no bairro dos Pimentas, em Guaru- lhos, São Paulo.

78 Thiago Sogayar Bechara Do outro lado daquela parede, o mundo dos humanos e o som de duas ou três folhas secas que escorriam feito ladrões pelo cimento, fustigadas pelo vendaval; seu ouvido acompanhava o tra- jeto até que elas se fossem: para além do ao redor da casa. Na rua, um poste vacilava sua luz todas as noites, fazendo bruxulear a sombra de uns galhos no chão do estreito corredor que havia en- tre o muro e a janela. Vacilava até quase apagar a imagem dos insetos que o cortejavam, celebrando sua hegemonia de poste. Eram noites sem terror, mas de um escuro que, justamente por isso, o aterrava. Sobretudo quando os quero-queros passavam vo- ando e cobriam, aos gritos intercalados, o céu dos seus senti- mentos. Em seguida, dias que se repetiam à espera do momento em que seus sonhos sabiam poder parecer reais. Era nas madru- gadas, debaixo das grossas cobertas, que ele protegia o corpo febril de desejo.

A cidade. Era ela seu segredo, porque frutificava, dentro dele, versos escritos para conquistas imaginadas. Ambos flertaram pe- los anos; e a vida se resumia a querer algo intensamente da ci- dade mas não conseguir. Quis tudo, até entender que era capaz. Só assim pôde não querer tanto. O ritmo frequente e arrastado daquelas ruas trouxe para sua percepção a noção de uma vida encenada. Escrita para mera contemplação; e (disso tinha cons- ciência) ele queria fazer parte. Sentir com ardor o gozo que por certo existe em vir a ser paisagem. Seu desejo era fundir-se à luz daquele espaço.

Era frequente ele acordar aturdido pelo silêncio que o domingo do vizinho produzia em sua manhã. O ferreiro dormia. Mas a fal- ta do baque vivo das folhas de metal reverberando do outro lado da rua gerava no rapaz certa saudade, quase que dissimulada,

O vestido de laise 79 de todo o som da solda. Uma devassidão da própria carne que o expunha indefeso ao vazio de si mesmo. Num dia ouvira a voz de um dos funcionários daquela ferraria avisando qualquer coisa ao chefe. Prestes a subir à moto encostada na calçada, este resmun- gou algo em resposta, girou a chave num estrondo e desapareceu dobrando a esquina, decompondo-se dos pensamentos ao redor. Isto tudo se sabia pelo som que cada gesto produzia. Também pe- los silêncios; dos passos, dos molhos de chave. Cada coisa tem seu silêncio. Mas agora era domingo. Que inconsequência do tempo.

Domingos para ele eram de uma paz insuportável, como se aquele silêncio sufocante fosse capaz de retirar-lhe a consciência de existir. Entrava, logo cedo – ao notar que mais uma vez o ciclo se cumpria – num desespero mudo de estar só. Havia naquela va- cuidade a ilusão de que, com o tempo, o sofrimento se arrefece- ria na força do costume, mas era pego de surpresa novamente; assim despertava no prenúncio de uma nova semana. A vida acontecendo do lado de lá de seu muro baixo. E ele incapaz de pertencer aos sons da manhã, como Paulinho em dias de chuva.

Sobre como essas pequenas cidades ainda o amparam e deso- lam, é improvável que algum dia ele possa falar. Dificilmente saiba explicar o quanto isso tudo o lembra algo ou faz com que pressinta o que virá. Vozes de sua infância, feita de asfalto e barro. Ecos internos e surdos de tudo que há de ser um dia. Como um caminhão de gás passando na rua de trás.

Seu pulsar cardíaco, por sua vez, parecia ser sempre apresen- tado ao mundo como se vivesse numa espécie de amnésia visual, que o fazia feliz pelos instantes de descuido e, claro, quando não era domingo, nos dias em que os afazeres preenchiam o tempo,

80 Thiago Sogayar Bechara anestesiando seus espasmos. Tinha o olhar fascinado e que fin- gia deslumbrar-se com o que o deslumbrava. De tal modo que não era falso, mas intérprete de si mesmo. Tomava por vulgares fatos extraordinários e, apenas quando estes se banalizavam à exaltação da coletividade, é que lhes dava o justo reconhecimen- to. Possuía um modo pueril de ver as coisas. E adotava uma for- ma genuína de achar tudo lindo – porque, de fato, achava, mes- mo quando fingia achar.

Contudo, era notável sua capacidade de amanhecer escureci- do num belo dia de sol. Seguia em flerte comovido com a cidade, que era nele um misto de colo e angústia. Aquele vilarejo nunca lhe diria não. Nem sim. Manteve sempre a chama da pro- messa suspensa em suas tardes pachorrentas. E isso era prático para quem teme silêncios de domingo. Ele sonhava com a au- sência de conflitos que há na paz das plantas. Mas seu amor pela existência bem sabia que do confronto é que nasce algo. Era o dentro comprimindo seu corpo contra a parede branca e gela- da. Seu medo de viver era um fantasma a lhe assombrar as vís- ceras. E a noite era para ele uma permissão.

Faltavam-lhe, nesse tempo, as forças necessárias para que plantasse em si sua própria seiva; queria-se como ao enorme ipê que há detrás de um banco da pracinha. Sentia a sua natureza oculta transbordar serena pelos poros, em jorro que a muitos de seus poemas juvenis surpreenderia. Ele plantava sem saber ao certo o quê. E esperava ansioso pelos frutos, sabendo declamar sonoramente o nome de cada uma das espécies, como o botânico que – ousassem insultar que ele não era.

Ter a cidade em si dava-lhe certa luz aos olhos, além de uma talvez falsa satisfação de dobrar a esquina de sua rua. Como se

O vestido de laise 81 aquele gesto, belo por si só, e repleto de insondáveis significa- ções, fizesse dele alguém digno de um tipo particular de admi- ração. Era a cidade dentro dele. Todo um congestionamento in- terno que o ocupava tanto, que roubava do asfalto o tráfego real com que esteve acostumado na cidade grande. Por isso as ruas eram tão vazias? E tanto mais silenciosas quanto mais os carros escoassem pelo bueiro de seus olhos, para dentro das alamedas de terra batida e um pedregulho tão sentimental. Era a espécie de planejamento urbanístico que lhe rasgava a alma.

Quando chovia, era um atoleiro todo pessoal. Sentia dores durante a chuva, que muito lamentava ao perder. Um estado ou- tro de apreensão das luzes, sons e gestos que o faziam sentir-se melhor. Sensível, ao menos. Ou até mesmo inteligente, fosse o caso de um grande temporal. E seus segredos iam crescendo a ca- da gota grossa que encharcava suas certezas, enquanto ele olhava o céu e tentava entender. O céu, para ele, tinha seu ponto mais alto na última manga do último galho da árvore centenária que havia em seu quintal. Havia, em sua literatura de quintal, um pé centenário. Mas possuísse metade desse tempo, e a velha man- gueira seria já rainha: sua igreja e túmulo.

Na imensa copa, ele parava o olhar admirado – era dele. E es- taria sempre lá, dignamente plantada em si, enterrada no mesmo jardim. Ela sempre lhe sorriria a perguntar como fora a manhã, regozijando-se de a dela ter transcorrido bem mais calma e fo- tossintética quando, à hora do almoço, ele singrasse o quintal, ao som distante da panela de pressão.

Pedia licença, como de costume, sentava-se num balaústre da varanda e almoçava o desejo por aquele dia. Naquelas horas, o jovem faminto alimentava-se de cada partícula do que a vida

82 Thiago Sogayar Bechara emana. Tudo que chegasse aos olhos e aos poros virava fome de beleza e ele cortava com o garfo na procura de um quem sou.

Primeiro ato

Meio-dia era o horário exato. Não se esquecera do som da- quele portão. Nem da hora em que rangia. O portão da casa da frente. E a moto azul sempre aguardando paciente, sobre a cal- çada. Era algo que afirmava a existência dentro dele. Por isso, es- perava, em sua casa, o ranger do portão de seu Victorio para, só então, vestir-se de si mesmo e abrir a porta. Pronto para haver.

A construção era como devem mesmo ser as casas da frente. Acolhedora do sonho de pertencimento que povoa o imaginário dos vizinhos todos. Branca e austera, por trás do gramado que, desde o portão até a pequena varanda, gestava os botões de ca- pitães multicoloridos. Além do sol que pegava nas paredes la- terais, o que mais fazia o rapaz feliz nessa fachada era sabê-la passível de interior. E havia ainda nela - não bastasse – o seu por dentro; e uma família inteira. Que não morava ali.

Mas, desde o passamento do velho Victorio, a rua andava quie- ta, naquele tipo de silêncio que ecoa. A família já não lhe vinha dar almoço e banho. Todo prazer que se forjava ao entrar ali sem bater palmas, sendo o causador do ranger do portão, foi se esvaindo do menino.

Adentrada a casa da frente, noutros tempos, o céu imediata- mente se converteria. Ficaria mais leve. Como se redentor de to- dos os pecados. Mas o fim disso tudo não veio ao garoto pela

O vestido de laise 83 ausência física do dono da casa. Veio antes pela ausência dos sons que sua morte extinguia.

Tudo o que dali emanou causou o bem de conviver com aque- la gente. Sentir a vida pulsando por um motivo tão claro naquele lugar é que fascinava. Dificilmente sabe-se com tal precisão o motivo de existir das coisas. Ali fora evidente. Tudo se reduzira a ele. O porquê de todos serem. Como era bom ter essa resposta. Ao menos essa. Alguma lógica para um mundo de interrogações vazias. Mas, no instante em que o portão da casa da frente pa- rasse de ranger, algo pararia de ranger também dentro de si, por- que era parte de sua vida que também se tornava passado com a morte de um vizinho que gostava de ouvir Dalva de Oliveira. Eram somente eles dois naquela rua, cidade, país que a escutavam ainda.

O rapaz sentiu, com isso, uma luz nostálgica que tardou a abandonar suas retinas. E quando o céu, gradativamente, foi tin- gindo-se de um incêndio vivo e crepitando por detrás das nu- vens, a tristeza daquela noite impediu que ele olhasse com a mesma poesia para a casa. Sua doçura pela vida foi, aos poucos, se estragando, sendo substituída por um gosto avinagrado que ele lamentou apenas, com os olhos baixos, sempre acompanhan- do os frisos imperfeitos das tábuas que compunham, uma a uma, o chão de madeira de sua infância.

Então dirigiu-se ao quarto. Deitou-se e abriu um livro, eno- jado da vida, como quem só vai olhar as páginas pelo prazer de ter um objeto em mãos. Mas, quando viu, estava já agarrado à história de Oníria, uma senhora desamparada da cidade. Foi até seu fim. Atônito. Sentindo o mesmo que uma “Felicidade clan- destina”, por tê-lo feito às altas da madrugada, quando é dever de todos descansar. Depois pegou outro volume. Mas ele sabia

84 Thiago Sogayar Bechara que abrira aquele livro de Clarice Lispector no intuito mesmo de desvendá-la. E como o sono lhe impedisse as forças, fingiu não querer para trair-se em seguida. Foi assim que o engoliu mais um conto encantado de reverberar a alma.

E outro... mais outro. Como se, a cada história, algo se edifi- casse sobre sua vida. Algo de que não poderia prescindir por nem um minuto sequer. Exatamente como a paixão de um primeiro beijo, segundo G.H. Urgente e revelador. Capaz de saciar a sede num jorro de retalhos afetivos. Era algo como saber-se vivo di- ante de um livro vivo. Dois organismos defrontando-se. E, mais do que isso, decifrando-se um ao outro. Devorando-se da mesma maneira que fizera a menina numa de suas histórias de tanto amor, ao comer a galinha de estimação certa de que, assim, a incorporaria plenamente ao próprio ser. Tão simples quanto Lis- pector ao molho pardo, em breve instante de delírio.

Por tanto amor, teria esse rapaz fugido com o livro para uma paragem distante, não estivesse o volume já dentro de si, que foi o lugar mais longínquo que pôde encontrar. Lá, nesse interior, foi que guardou suas páginas, como a uma Flor de Liz. Na prate- leira de seu peito, quando voltou ao primeiro conto e se espan- tou ao deparar-se com a descrição perfeita do momento que vivia. Tomou a liberdade de reproduzi-lo. Afinal, foi também de sua au- toria, naquele instante. Não era mais um menino com um livro: era um homem com sua amante... vestida de laise.

Fechou o volume às duas horas sem saber se aquele enjoo vertiginoso era do sono ou da tristeza pela morte do velhinho; sem saber se ele próprio era real ou literário. Mas compreendeu haver todo um universo, inteirinho pronto para seu consumo. E dormiu.

O vestido de laise 85 Segundo ato

Ainda sinto, no entanto, e isso me dá esperanças de ser poeta, uma alegria descomunal quando lambe meu rosto a força de uma brisa mais veloz, como a que segredava-me a noite pelo tilintar da janela, na infância. Como se fosse a prova de que aquele lu- gar existiu, mesmo sem a civilização que o habitava e isso, não sei por que, dá-me um conforto. O mesmo ocorre com as chuvas de Paulinho. Amo as infinitas sensações que elas me trazem. Sinto o descontrole da natureza aos pés de mim e me encho de esperan- ças quando caem. E as guardo de maneira que as não explico, co- mo se não chovesse assim noutras cidades. Só lá, na minha ci- dadezinha inventada de criança.

A terra virgem dos meus pensamentos. Poesia edificada. Suas sombras, esquinas. Posso sentir a presença de cada habitante nas suas ruas, mesmo quando em hora de almoço, que é quando nin- guém sai de casa. Pois os cheiros dos almoços, sim, saem e se cruzam no ar sobre as árvores e os postes. Dão-se as mãos. E se molham na chuva; e assim a cidade engole mais uma garfa- da desse feijão ensopado de Amor. Amor que é estar dentro de casa com a família e as janelas fechadas para não molhar o piso.

Mas volto a me desesperar quando, às vezes, ao atinar com as coisas, entro num estado tal que não as vejo mais, senão o mate- rial de que são feitas. E o significado se dilui por trás do signifi- cante. E volto a ser criança, quando uma calçada deixa de ser calçada para ser apenas pedaços de pedras justapostos. Quando uma torneira passa a ser apenas matéria plástica, bruta e vulgar. As coisas às vezes se reduzem e perdem seus sentidos sociais.

86 Thiago Sogayar Bechara Olhar e não ver me deprime. E me faz achar que tudo é tão simples e normal, que não pode nem fazer parte da vida; co- mo se fosse eu quem materializasse tudo com meus olhos de Midas invertido.

Escrevo, é bom que se diga, com a inconsciência. E isso não é ter nenhum gabarito, me perdoem... é, sim, soltar o freio de mão na ribanceira... isso é que é, reconhecendo no real a ficção. Talvez um pouco de coragem. O resto, a gravidade (des)constrói. É o resultado do meu pânico delirante no labirinto. Da impaciên- cia do convívio. Todo um imenso percurso atordoado para de- pois ser devolvido integralmente à percepção de um sentimen- to viciado sobre o que é a vida. São novos vícios, é bem verdade. Mas também representantes de um método de compreensão, o que se trai naturalmente na origem, porque viver é abolir qual- quer tipo de metodologia ou acostumação com o novo-pensar, que leva ao tédio, do outro lado desse pêndulo.

S/d a 02/12/2014,

Ribeirão Claro e São Paulo.

O vestido de laise 87 O coração do jovenzinho apertou-se ao contemplar como espectador solitário, conforme seu temperamento, toda aquela beleza. Desejava tanto ir para lá e estar ali no meio, gozar a festa junto de sua noiva e de seus amigos; entretanto, preferiu mais ainda assistir àquilo tudo como um espectador sensível e tornar a mostra-lo numa poesia perfeita: o azulado da noite e o jogo de luzes na água, assim como a alegria dos convidados e a melancolia do espectador silencioso, que se apoia ao tronco da árvore sobre a margem. Sentiu que em meio a todas as festas e alegrias desta Terra, nunca seu coração poderia ficar tranquilo e sereno, que ele mesmo estaria sempre no meio da vida como um solitário e de certo modo como um espectador e um estranho, e sentiu que, entre tantas outras, apenas sua alma fora feita de tal maneira que precisava sentir ao mesmo tempo a beleza da Terra e a secreta nostalgia do desconhecido.

(Trecho do conto “O poeta”, de Hermann Hesse)

88 Thiago Sogayar Bechara Domingo

Para Giselle Sogayar Bechara

Quando a louça do almoço terminou de ser lavada, a Vida era uma tarde sonolenta e de ar pesado, sintetizada na morosidade do tempo lá de fora. E a intensa claridade que entrava através do vitrô alto de nossa cozinha era de um nublado festivo, exuberante que suspendia nossos deveres de continuarmos devendo qualquer coisa à existência; e isso era bom. Bom como o momento de des- canso e segurança, quando esticam-se as pernas na cama ao fim do dia e as canelas suspiram a celebração de mais um término. O som da pia sendo enxugada pelos braços ágeis da Tia resvalan- do pelos copos já virados no escorredor; aquele som era antes a consciência da percepção de que havia alguém cuidando de tudo, e naquele momento do dia essa certeza nos trazia algum signifi- cado especial, cá da sala.

O almoço terminara, (já que) a Vida não. E enquanto prosse- guíamos, a rua emanava em ecos distantes, tão importantes pa- ra o meu apaziguar-se, indícios sonoros da estagnação digestiva de que todos carecem quando de barrigas saciadas. A sabiá no ipê do quintal vizinho era minha casa alada da frente; ela trocava as penas pois cantava sua modinha imperial trazendo em si toda a história do mundo, o embrião daqueles sentimentos. Morava naquela luz a invisível poltrona de contentamento que me abar- cava macia. E a Vida cingia sua viola como num prelúdio de Villa- -Lobos sob o abajur.

O vestido de laise 89 A família rumou para a sala como uma manada em procissão de Senhor Morto, era o café. A Segunda Tia premiu o interruptor e a luz da cozinha vacilou no seu ritual até estralar-se inteira e por fim se apagar, deixando para trás toda uma ideia de cozinha, agora morta e silenciosa, como o resquício azulejado do abando- no provisório. Pusemos a cozinha no andor. Mas, mesmo da sala, a sabiá ainda flauteava em cantochão, e agora era eu quem tro- cava de penas. Enquanto minha mãe servia uma chávena à minha avó, entregando-a em câmera lenta à sua mão esquerda, eu me dava todo ao desejo de que a operação se concluísse em êxito, an- tes que o canto do pires fosse enfim confiado.

A Terceira Tia fazia o levantamento de quem era com adoçante. Sentado, eu respondia açúcar e aguardava que o tumulto servisse- -me o sentimento de ser parte do culto. Não conseguia. Quase sempre punha-me ao lado de minha avó, que segurava a xícara com as duas mãos grossas, levando-a devagar à ponta do lábio inferior que se esticava, preparado já para o queimar-se. Toda aquela artimanha impercebida garantia que seu tremor não der- rubaria nenhuma gota, e era bom ver como aquilo era irrelevan- te para todos. Eu sorvia os pequenos restos como oxigênio em- baixo d´água. E afogava o corpo em um não caber em nada.

Era, portanto, um vigia, observador contumaz de cada gesto das vozes ou comentário mudo dos braços, em meu silêncio. Não quer dizer que eu não falasse. E até fazendo rir no mais das ve- zes. A Quarta Tia era quem mais apreciava as pequenas porno- grafias que eu dizia com desenvoltura às vezes chocante. E a Quinta ria-se com a cumplicidade ingênua das tias-avós que não envelheceram no espírito.

90 Thiago Sogayar Bechara - É assim toda semana lá em casa – dizia vovó, com quem àquele tempo eu almoçava todos os dias, dada a proximidade dos edifícios – Isso é que é uma avó moderna – gabava-se –; Outro dia falávamos sobre certo tipo de zunido que dá no ouvido causado pelo excesso da ingestão de açúcar. Pois ele respondeu que era por isso que as moscas não paravam de zumbir – gargalhava. Nin- guém mais achou graça. Nem a Sexta Tia. Não era, de resto, um exemplo de minhas pornografias.

E eu, bem... eu-sabiá. Nos carros passando lá fora, no calor da sala e no término de mais um fim de semana. Fui à janela do apartamento da alameda Santos, ampla e de vidro, basculante; deixei o ar entrar. A Sétima espirrou... ventinho nas costas...

Voltei ao sofá, perto da Oitava Tia, como quem volta à sua guarita e cruzei os braços enfadado, sentando sobre uma das pernas, como fizera minha bisavó até morrer aos 94. Falar eu falava, mas eu era Nove, e o Décimo de mim observava enquan- to o Décimo Primeiro buscava integrar-se, ou antes, incitava rea- ções observáveis nos outros por meio do Décimo Segundo, para suprir a própria curiosidade do Décimo Terceiro sobre os li- mites da percepção humana e suas multifacetadas reações. Mas o Décimo Quarto...

20/09/2012 a 02/12/2014,

Ribeirão Claro e São Paulo.

O vestido de laise 91 A estante dos lidos

Para Fernando Rodrigues

Era comum que, nas histórias dos livros que lia, determinados fatos parecessem, ao Fernando, invejáveis de serem realmente vi- vidos. Dos sofrimentos de Natacha por não ver-se convidada a dançar em seu primeiro baile em sociedade, no “Guerra e paz” de Tolstói, até as fugas atribuladas que Balzac tinha de empreender pelas portas dos fundos de sua casa, para escapar-se à cobrança de suas eternas dívidas – da cama de Fernando, tudo era-lhe tão gracioso e ganhava tais ares de beleza poética, que qualquer coi- sa em todo o desassossego pessoano dava-lhe um conforto vil por ver-se ali imbricado. Claro está que, quando os lia, tornava-se ele próprio o alvo das angústias e alegrias que acometiam, uma a uma, as personagens de Pirandello ou Zola. Estas sucediam-se diante de seus olhos, a cada livro que, lido, ia para a estante dos lidos. E assim, com os olhos postos na pilha que aumentava, Fernando contabilizava com júbilo a espessura em centímetros de seus co- nhecimentos literários.

Era comum também, contudo, que parte desta alegria se tur- vasse nos átimos de retorno à própria consciência, que era quando Fernando, quase sem notar, voltava a ser Fernando. Isto porque, quando dirigia o olhar perdido para a janela da varanda, ao ouvir o escarnecer sombrio de duas gaivotas a cantar intercaladas, era aí que percebia que se fosse ele a viver a angústia de Natacha no

92 Thiago Sogayar Bechara baile, ou mesmo sua exultação infantil quando o príncipe André lhe viesse pedir a mão semanas depois, que nem uma coisa nem outra traria nenhum dos contornos de beleza que algures se lhe aconteciam na imaginação, no momento em que desfrutava de tais cenas literariamente.

Se é certo que esta dor a picar-lhe a percepção não impedia que ele voltasse os olhos novamente ao remorso de Teresa Raquin e conseguisse retomar seu mergulho pelas delícias que era estar momentaneamente na dor alheia, não foi menos verdadeiro o amargo a que lhe soube especialmente a primavera de um certo poema, pintada com as mesmas cores refrescantes e ensolaradas com que também ele, internamente, imaginara sempre a prima- vera num plano ideal. Ao olhar pela janela daquela vez, como era costume, e ver sobre o muro que dava ao quintal vizinho as florinhas dos matinhos muito coscuvilheiros a vibrarem das mais remotas fendas do concreto, notou que também cá por fora das páginas era primavera, e que em nada esta assemelhava-se à ideia que ele, assim como o autor do poema, tinha sobre o que fosse a estação.

As aranhinhas simpáticas apareciam-lhe vez por outra aos can- tos ladrilhados de sua cozinha em Queijas. As borboletas eviden- ciavam a novidade das flores pelos canteiros da avenida da Liber- dade. A aragem tangia as peles desnudas das austríacas pelas docas de Belém. As bandeiras das embaixadas tremulavam no Restelo. E em nada aquilo era a primavera. A primavera era o poe- ma sobre a primavera. E Fernando desta vez não voltou os olhos da varanda para o livro novamente. Antes fechou-o e perdeu-se dentro de si. Mas em não querendo assumir o constrangimento em que ficou por não saber ele próprio o que fazer de seu dia,

O vestido de laise 93 levantou-se de chofre e andou até a casa de banhos, onde mirou- -se no espelho. Resolveu escovar os dentes, que era um bom álibi – hálito - para a existência, já que estava ali. Voltou decidido pa- ra a cozinha, abriu o frigorífico e ficou alguns minutos a olhar as friezas que este exibia-lhe. Entristeceu, afinal; ou, por outra, aceitou a ideia de que estava triste, em plena primavera. Em ple- na primavera! Foi à estante dos não-lidos, como se vai à montra da Betrand ou da Barata, à avenida de Roma. Mas não se sen- tiu aquecido pelas capas fechadas. “Viagem a Itália”, de Goethe; “O beijo e outras histórias”, de Tchékhov; uma biografia de Bocage, outra da imperatriz Sisi. Arre! Eram tão primaveris co- mo a aranha pelos ladrilhados; eram o externo da alegria, o que não significava alegria.

Soubesse ele romper a letargia que o impediu de começar um Eça ou mergulhar noutra projeção que lhe florisse os sentidos (soubesse ele isso, e ele não sabia), e Fernando ainda teria podido dizer de si para si: “Entrei na primavera que há em qualquer das estações”. Mas como se lhe viesse a ideia de que abrir a aranha ao meio ou colher papoilas e alecrins não dissecaria a vida de modo a dela libertar suas linhas sanguíneas, disse apenas de si para si: “Chiça, estou tramado”. E guardou o livro que lera, na estante dos não-lidos. Não apanhou outro, de-estante-nenhuma. Distante-de- -estante. Nenhuma. Que era um delírio mesmo, descarrilado das liras de sua pequena cotidianidade. Vira-se empastado sem po- der rumar para nenhures. Retirado bruscamente dos sulcos que dão sentido à existência, justamente por perceber ali que os sul- cos apenas parecem dar sentido à existência. Mas são engano- sos, porque a vida não tem lira, nem por quê. Ela delira, sem mais. E, portanto, qualquer resposta ou justificação é falsa.

94 Thiago Sogayar Bechara Fernando não queria viver na falsidade. Mas não podia tam- bém dormir eternamente na cama de espinhos que era a verdade da ausência de uma verdade. Assim, os portugueses importaram a tragédia dos gregos antigos, como o bacalhau dos noruegueses, deram tratos à bola e nasceu o fado.

Travessa dos Fieis de Deus, Lisboa.

13/06/2016, Santo António e aniversário de Fernando Pessoa.

O vestido de laise 95 “Meu caro senhor Kappus, o senhor não deve ficar sem um cumprimento meu quando o natal se aproxima e, no meio da festa, sua solidão pesa mais do que nunca. Mas se perceber então que ela é grande, alegre-se com isso; pois o que (pergunte a si mesmo) seria uma solidão sem grandeza? Existe apenas uma solidão, e ela é grande, nada fácil de suportar. Acabam chegando as horas em que quase todos gostariam de trocá-la por uma união qualquer, por mais banal e sem valor que seja, trocá-la pela aparência de uma mínima concordância com o próximo, mesmo que com a pessoa mais indigna... No entanto, talvez sejam justamente essas as horas em que a solidão cresce, pois o seu crescimento é doloroso como o crescimento de um menino e triste como o início da primavera. Mas isso não deve confundi-lo. O que é necessário é apenas o seguinte: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo e não encontrar ninguém durante horas, é preciso conseguir isso. Ser solitário como se era quando criança, quando os adultos passavam para lá e para cá, envolvidos com coisas que pareciam importantes e grandiosas, porque esses adultos davam a impressão de estarem tão ocupados e porque a criança não entendia nada de seus afazeres. E um dia, percebemos que suas ocupações são mesquinhas (...)”.

(Trecho da carta de 23/12/1903, de Rainer Maria Rilke para Franz Xaver Kappus, em “Cartas a um jovem poeta”)

96 Thiago Sogayar Bechara O presente

“Deixa a cidade, formosa morena; linda pequena e volta pro sertão”

(Trecho de “Chuá, chuá”, de Ary Pavão e Pedro de Sá Pereira)

Para Táta

A noite terminou da maneira mais improvável para João e Fá- tima, renascidos em silêncio a cada gota da fina garoa que passou a se precipitar sobre o asfalto gelado. Rodas de carros rompiam o fino tapete celeste que recobria a rua e aqueles sons distantes das poças misturados aos motores entristeciam ainda mais o ca- sal, recém-mudado de seu sítio para a cidade. Viraram, cada qual para um lado da cama, moldando os pensamentos em seus tra- vesseiros feitos de memória. Choraram juntos um pranto duro e aos soluços, como acontece quando enfim se consegue chorar, após uma vida de lágrimas reprimidas. Choraram as cenas do fi- nal daquela tarde.

Para Fátima, Natal era data de remorso. Quando tudo passa a ter seu próprio peso. Quando tudo lembra o feito e o deixado pa- ra trás. Mas se havia alguma coisa certa nessa vida, e não para a consciência doer menos, era o amor que aquela lavradora pas- sou a nutrir pelas visitas que fazia à dona Teresa, velha tia de João. Sempre assim: no Natal. O ano voava, nem se davam con- ta. E, enfim, compensava-se a ausência com as aparições inespe- radamente programadas naquele casebre onde eles dois entra- ram, horas antes desta noite de garoa às vistas.

O vestido de laise 97 Dona Teresa dava o ar de muito idosa, embora não houvesse completado ainda setenta. Vivia uma pobreza de fazer doer. Fá- tima e João não eram ricos, nem lá jovens. Mas como era velha e pobre, Teresa! Teria parecido, talvez por isso, que a visita do sobrinho fosse de remorso. Condescendência egoísta que os obri- gasse a tal. Mas qual, que os dois gostavam – pasme - verdadeira- mente daquela esquecida parenta. Fátima, então, adorava com as entranhas aquela pobreza inteira. E já ninguém a demovia da ideia de que havia ali uma riqueza muito oculta.

A dona da casa morava há quarenta anos no pequeno terre- no cedido dentro de uma chácara, com o esposo, mas sem filhos. Pudera, dar vida sem bem tê-la.

O abandono, contudo, não fizera de dona Teresa mulher amar- ga, menos sorridente ou sequer solitária. Tal condição cabe a cada um impor ou não a si, havendo sempre aqueles que, cercados, ja- mais saíram do vazio da inexistência. Distante do convívio com as normas da cidade, Tereza não sofreu as dores da imposição comportamental, padrões sociais, comparações. Artefatos de lu- xo. Até porque, de fato, não havia nada minimamente com que se a pudesse comparar.

O sol vinha descendo pelos vértices da abóbada, beirando a quase roçar as esquinas daquele dia vinte e quatro. E a casinha havia ainda em meio aos mesmos arvoredos; beirando a estrada de chão rumo à Pinhalzinho, fazenda ancestral daqueles confins. Passasse distraído, e a qualquer um se lhe aconteceria de perder, com efeito, a trilha de pedra que dava caminho entre as moitas de sansão-do-campo, até o fundo do terreno.

98 Thiago Sogayar Bechara Da portinhola de madeira até a camuflada construção, feita todinha em material doado, João e Fátima pararam, sem contar as vezes em que ergueram os olhos, admirados do descaso agres- te e fundamentalmente belo que era a natureza crescendo numa dignidade sem par. O quintal forrado dos milenares ipês, os mais altos já nascidos nos redores. Poucas vezes entraram com o corpo tão fundo nas águas daquele abandono tão cuidado; e parecia ser aquela a primeira vez que de fato enxergavam. A cerca erguida em bambu, encardida de estrada, margeava as touceiras de espirra- deira, por mãos plantadas, mas à ordem do acaso.

As sobras que dona Teresa catava na rua tapavam o buraco que devassava o terreno vizinho em pilhas monumentais de lixo, quando não servissem às revendas. E o cheiro ácido de comida estragada e deitada fora misturava odores florais quase inexpli- cáveis para um local que, como aquele, parecia nem haver.

Foram entrando sem batidas e deram logo com o Preto, que sorriu-lhes largo. Teresa estava no banho, disse o velho Jurandir. Mas ao ouvir as vozes deu-se que largou tudo ao meio, ansiosa, como que temendo perder a festa que ocorria em seu próprio salão. Entrou pingando na salinha. Embrulhadinha numa falta de pudores muito própria de quem tem na comunhão com o instin- tivo os valores da ausência de malícia. Dona Teresa parecia es- tar sempre à espera do imprevisto. Beijou o sobrinho e abraçou forte o corpanzil de Fátima, que se encharcou daquele banho; e a saudou com sua metálica gargalhada.

A nostalgia da saudade agora os reinventava e reunia nova- mente. Teresa pediu o minuto de ir vestir a roupa, e à sua última palavra já estava dentro do quarto, afobada, fazendo ecoar a voz encabulada, quase que arrancada das cordas vocais, ardentes de

O vestido de laise 99 alegria. Voltou num ímpeto. Aquelas paredes de caiação raro viam gente nova. Quase que só mesmo a antiga Virgem Maria da fo- lhinha pendurada na parede e muito suja de dedos de terra. Mui- tos anos de oração. Ocês me dão de aparecer assim?, voltou res- folegando. Nem ajambrei foi nada. Não havia o que arrumar. Bronqueou radiante mais um pouco, e foi passar o café.

Não tinha os dentes todos; os cabelos eram quase tão bran- cos quanto flor de laranjeira. Baixa, murcha, arqueadinha. E um sorriso que nunca mirrava, feito estampa, fazia-a comparável a uma solene rainha. Vivia do lixo que colhia. O resto era sua la- voura. O fogão, o fez de barro, mas ficava para fora. Um zelo com a brancura das paredes que só vendo. Não seria cinza de lenha que lhe sujaria o branco, ah, isto que não! Logo a cal que conse- guira a duras penas para alvejar suas quatro fronteirinhas.

Assim, mantinha as aparências de que o pau a pique de sua vida se vestia. Sentia-se entre laises. E o gosto da comida era forjado assim. No estalo dos angicos. Na urdidura do artesão. A lâmpada, dependurada por um fio e apagada. A luz pouca vi- nha do resto do sol daquele dia. Disso era composta a vida. Restos dos dias, restos dos outros. A sombra das árvores começava a tremer nas paredes frente à porta.

Gritavam pássaros detrás da casa pelas bananeiras; eriçavam o coração daquela tarde, alheia aos sons urbanos. Fátima virou- -se para o marido e instintivamente fez sinal com um meneio sutil da cabeça, apontando com os olhos para um dos cantos do breve cômodo. Além de flagrar o altarzinho habitado por três santos, um sem braço, e a vela acesa num pires, o olhar dos dois foi, como que simultaneamente, imantado para a mesinha co- berta com toalha de papel. Sobre ela repousava uma pequena

100 Thiago Sogayar Bechara árvore de Natal. Não se tinha quase o de comer; no entanto, a fé dependurada na secura de um pezinho de jabuticaba, essa fé não haveria de faltar.

Da galhada, retorcida feito a sombra das árvores refletida no entorno, pendiam os apetrechos igualmente encontrados mun- do afora e, como forjassem uma vitrine afetiva, expunham amos- tras do que o passar daquele ano fez restar na vida de cada mo- rador da cidadezinha. Uns tantos enovelados de paina colhida no quintal mesclavam seu branco encardido aos retalhos dos plásticos de um ovo de Páscoa; eram pequenos quadrados colo- ridos e recortados irregularmente que traziam certo espanto co- memorativo àquele raquitismo.

Enquanto um soldadinho-de-chumbo-de-plástico vigiava com sua mira para que ninguém atentasse contra a ordem instituída daquela trincheira, um pé solitário de chinela arrebentada sus- pirava do galho mais alto por seu par, sonhando o dia de trilhar novos caminhos, calçada de esperanças. Por fim, o caule enter- rava-se na areia dentro da lata enferrujada de óleo.

Dona Teresa enfim voltou com o café nas xícaras de ágata esmaltadas e o bule vermelho achado na entrada de trás da ci- dade, junto ao cemitério, com umas velas em volta e uma ga- linha estranhamente recheada de farofa. Achou um tremendo desperdício e, não compreendendo o que aquele banquete fazia em lugar tão amortecido, trouxe o bule e todo o resto em seu al- forje de caçadora. Nem se deu conta de que João e Fátima ali sentados em silêncio a esperavam consternados, sorrindo deso- ladamente com as pontas dos lábios retorcidas para baixo, fazen- do força genuína para se prenderem à palestra de seu Jurandir.

O vestido de laise 101 Este enganchava um assunto ao outro, de modo a não deixar notar que também ele havia flagrado um instante que de, alguma maneira, dizia-lhe respeito.

Vamos tomando que se esfria, gritava Teresa como se todos a ensurdecessem de ternura. São grãos aqui do quintal, conta pr´eles, meu Preto. E os visitantes pendurados junto às sucatinhas en- contradas pela rua. Entre caixas vazias de medicamentos e uma embalagem plástica de iogurte havia todo o mundo; estava tudo ali. Fátima, João, os galhos. Todos secos, e sem presentes debaixo.

Dos chinelos ao guarda-chuva, dos talheres ao relógio sobre a cômoda, tudo ali vinha do lixo. Exceto uma vassoura feita com folhas do alecrim lá de fora. Terreiro bem varrido e perfumado era outra coisa. E que capricho! Na parede uns quadros velhos, já desbotados, talvez da Santa Ceia; não se podia vê-los bem, mas valiam o ouro de sua crença no Divino.

Como se fosse a primeira vez, Fátima estava enredada por aquele cômodo, transformado numa vida extraordinária, que ou- tros olhos não tardariam em rejeitar imediatamente. João pas- sou também a mergulhar na profundeza do oceano. Viu algas, bolhas e universos que o deixaram sem ar, oculto em tanta sim- plicidade a partir do instante em que lhe ocorreu, de volta, a ideia de estarem numa fatia anônima de terra circundada por denso matagal. Isolados do planeta; numa existência muito resguarda- da e absolutamente privilegiada.

Aqueles sentimentos, permeando a conversa durante todo o tempo da visita, instauraram silenciosamente um desconforto que

102 Thiago Sogayar Bechara dava-lhes orgulho sentir, coisa inédita a subir do estômago; cúm- plices, João e Fátima; surpresos por não terem sentido assim nos anos anteriores. E, do encantamento da cumplicidade, emergiu a Beleza com toda sua força e pureza. A pobreza deflagrou a nudez da vida, e a vida nua tem nuances como um corpo de mulher, prestes a pôr seu primeiro vestido de festa.

A vida é simples e transcorre livre. E de repente aconteceu- -lhes que ser pobre, visto assim, era ter o direito à maior das riquezas, a possibilidade de enxergar. De não possuir contami- nada a própria visão pelos adereços que turvam nossos senti- mentos para o inusitado. Inusitar-se é associar-se a cada instan- te; a cada quadro vivo imposto por um pintor soberano; este artista que nos legou certo dom de autoencantamento, jamais utilizado em sua plenitude pelo Homem.

Foi por descuido das visitas que dona Teresa, hora e meia de- pois, quase pôs mais água no feijão. Que lá jantassem todos. Não podiam. A filharada que requisitava, a vida que urgia, o tempo que invejava. Enquanto as duas despediam-se, o velho Jurandir foi acompanhando João à porta, com as mãos sobre seu ombro, contando sobre os planos de um muro novo que ergueria em breve, projeto que lhe tomava dias e noites entre os conflitos concebidos com todo amor; criados por quem ama saber ser ca- paz de solucioná-los. Ávido de que aquela empreita preenchesse mais dias do que o previsto para inteirar-se dos empecilhos da vida. Ter razão de reclamar, com aquela satisfação de quem vê nos problemas motivo bastante prazeroso de conversas intermi- náveis. Durasse a construção do muro e assunto não lhe faltaria para justificar a existência.

O vestido de laise 103 Naquela noite, João e Fátima entenderam o que não tinham percebido durante a visita. Eles foram os presentes que não es- tavam embaixo daqueles mirrados galhos. E a árvore, o jeito de dona Teresa agradecer.

2003 a 09/12/2014,

Ribeirão Claro e São Paulo.

104 Thiago Sogayar Bechara Eça Menina

Para Carla Francisco

Ela entrou pé ante pé pela porta e O pressentiu desprevini- do. Mal deteve-se na antessala, e dirigiu-se ao centro do salão, como se displicente da existência daquela camarinha. Ele fuma- va seu charuto, confortável na grande poltrona de couro, macia; macio no transcorrer das horas em sua leitura descuidada. A som- bra dEla se esgueirou pelos rodapés e projetou-se angulosa, lan- çando-se aos beirais e peitoris. Ele ouviu o som Chiado de seus pés descalços rascunhando o percurso que em breve passaria a limpo, relembrando tantas vezes o episódio.

Ele ouviu e não se moveu; sentiu a presença que se anuncia- va e suspendeu no ar a respiração; e até sua última baforada pa- receu subir num desenrolar-se mais lento por entre os anéis da fumaça. Tudo nEle cheirava a aguardo, cônscio de estar vivendo o prólogo de um (re)encontro que não teria mais epílogo. O chão daquela sua morada estava já tragado pelo tempo, opaco e des- gastado pela poeira que se apoderara dos poros, inflitrada nos tacos de peroba. Os passos de menina refrescaram o em redor de seu salão. Pés de Midas, rainha-enceradeira, aproximando-se cada vez mais, fazedora de brilhos que se refletiram nas pupilas até então desesperançadas daquela casa que hoje sei que era meu coração.

O vestido de laise 105 Quando enfim deu-se o encontro, Ele levantou o olhar das lâminas de papel do volume que tinha nas mãos; sobreviveu da ficção, desconfiado do inverossímil da Vida. Mas Ele soube que, daquela vez, as pupilas finalmente encontrariam no novo hori- zonte a continuação orgânica de sua literatura própria. Esta fora concebida quando, na noite anterior, em vigília, Ele, com um so- brevoo do dedo, levou delicadamente uma mecha de cabelo sobre o olho verde para detrás da orelha dela.

Dentro daquele sonho, Ela sorriu apenas, trazendo o mundo dos encantamentos a transbordar das íris. Iluminou-se com tudo de presente e inteira que soube encontrar por dentro. Ele afagou com a mão seu rosto. Ela baixou as pálpebras, Ele estremeceu. E quando os lábios se tocaram, o salão valsou em torno dEles; o chão refletindo agora, de tão renovado, aqueles corações como em espelho. E as janelas daquele salão foram abertas, para a luz varrer a poeira. E ninguém sequer se preocupou em cadear a camarinha. Na liberdade fez-se a mais doce das prisões. A de um aquário, permeável de luz e pura navegação. Agora a Vida é como Iara dormindo à Vitória-Régia. A vitória d’Eça alfacinha que fez de um salão cá dentro a sua grande praça em frente ao Tejo; e, da minha vida, seu inequívoco e inconteste pastelinho de nata.

Ele voltou da lembrança do sonho e A recebeu, afinal, em sua vida, pondo o livro sobre a secretária; o coração a escorrer, feito doce d´ovos moles.

25/08/2014 a 02/12/2014,

Ribeirão Claro, Paraná.

106 Thiago Sogayar Bechara São Bento

Um gajo é encontrado morto boiando pela manhã no chafariz do Jardim Fialho de Almeida, na Praça das Flores, região de São Bento. A luz é tépida e amarelada, sente-se uma brisa mansa por entre as árvores. Há alguns turistas pouco acima fotografando a placa que há na casa da rua de São Marçal, onde viveu “anos de sua infância” Fernando Pessoa. A quadra é péssima, mas todos acham-na linda porque é dele. De nada os turistas aperceberam- -se, inacreditavelmente. Há gente que viaja apenas para ver o evidente. Outras, o contrário. Acontece, porém, que o conceito de evidência é absolutamente condicionado pelo grau de interesse de cada um pelo mundo, e isto anula a sentença anterior.

A garota-gaivota por quem o gajo deitou-se em lençóis de li- quidez na noite anterior passara voando perto dali, vinda da Es- trela para o Bairro Alto, mas só saberia ao final do dia a respeito do trágico incidente, ao assistir pelo telejornal as imagens da polí- cia isolando o lugar, o que decidiu diretamente o domingo da pequena Sofia, que todos os finais de semana brinca ali com seu pai e Clotilda, a cadelinha. O que a garota-gaivota e a pequena Sofia têm em comum? Nada. Por uma, Bentinho achou por bem dar cabo da vida. Por outra, Bentinho nem se deu conta de que vivia, por isso não achou por bem nada, ignorando que sua morte seria incômoda à rotina das crianças. Quando, ao cabo de três

O vestido de laise 107 anos de correspondência solitária com a garota-gaivota, Bentinho olhou-se ao espelho e constatou que não era quem pensava ser, decidiu que não havia no mundo quem desejasse viajar para além do que fosse o evidente em seu rosto, e achando-se irremediavel- mente desinteressante, queimou todas as suas quadras e foi ter ao fundo do chafariz raso. “Povo que lavas no rio, que talhas com teu machado as tábuas do meu caixão”, passou cantando horas antes a empregada gorda da tabacaria.

Bentinho fez tanto esforço para não vir à tona e sobreviver a si mesmo no momento em que imergiu o corpo todo nas águas da praça, que virou de bruços e enquanto tampava o nariz com a cabeça mergulhada, procurou não pensar na garota-gaivota para não sentir raiva num momento tão importante. Afinal, ela era o estopim, mas Bentinho tinha a clareza e a lucidez de que aquela era antes uma medida preventiva de que novas mensagens por whatsapp não ficariam sem respostas. Antes isto que dar cabo da vida por uma rapariga que nunca notara que na rua de São Marçal havia uma placa informando que ali morara um poeta importan- te. “Ó terras de Portugal/ ó terras onde nasci/ por muito que gos- te delas/ inda gosto mais de ti”.

O fato era que Bentinho sentia-se, nos últimos tempos, pro- fundamente triste porque era feio demasiado. A descoberta não havia sido feita há pouco, mas a consciência do quão decisivo era aquele pormenor para sua vida amorosa tornou-se mais aguda após ter conhecido a garota-gaivota, o que fez com que o espelho se lhe afigurasse, cada dia mais, como um “pormaior”. Os enjoos que sempre sentia, desde criança, quando acordava cedo demais, passaram a aumentar sempre que, ao abrir os olhos, lembrava-se da figura esguia e soberba da rapariga de olhar cortante, tez lisa

108 Thiago Sogayar Bechara e peitos livres a esvoaçar sobre o Tejo, ondulante, com suas asas reais e o bico lustroso a resplandecer de sangue das outras aves que comera. Tinha os ombros largos e a cintura afilada, uma co- luna perfeitamente delineada de modo que a lombar fizesse a entrada no ângulo exato para o impulso que dava ensejo ao salto mortal das ancas. E estas… estas redundavam em algo que, consta, perturbara certa vez o dormitar de D. Pedro IV no Rossio, no alto de seu estatismo, muito comum nas estátuas, e que só abre exce- ções para as exceções da vida. A garota-gaivota subjugava o mun- do com os anéis acobreados de suas madeixas bastas. E a brancu- ra de seu pescoço punha toda a gente a sonhar ali uma noite.

Bentinho era, em suma, feio. Magricelas, orelhas de abano, um olhar opaco de prata guardada há anos na cristaleira empenada, apertada à parede do corredor, ou qualquer outra imagem que o valha. Nunca pensara em lustrar-se. Brilhava nele era o sonho – e, claro, as carnes da gaivota, que se o devorassem a si, sabia-lhe bem, e bem morria sem relutar. Tinha mesmo um anseio de o seu próprio sangue dar-lho à matreira, ver-se dilacerado por suas mãos finas e bem desenhadas que… quanta força tinham para lhe cavar o espírito. Também Bentinho pretendia pôr as mãos por sobre a gaja. Colaria seu umbigo ao dela, já previra tudo, para depois enlaçar-lhe as costas nuas e quentes com a mão esquerda espalmada para cobrir assim o maior perímetro de fêmea possí- vel, dando-lhe a intuição da proteção que somente um homem de verdade como ele, Bentinho, poderia ser para ela. Com a mão direita subia-lhe, determinado, pelo pescoço; depois para a nuca num ímpeto de entrar pelos cabelos com os dedos a emaranha- rem-se entre os fios e com uma violência que fosse ao mesmo

O vestido de laise 109 tempo terna e cúmplice, puxar-lhe-ia para trás a cabeça e a bei- jaria, sempre a observar suas reações deliciadas. Primeiro o quei- xo, para depois colar a tumidez de seus lábios ao canto úmido dos dela, deixando-a no frêmito do quase, anseio delirante a ponto de fechar os olhos, alheia aos bons modos e gemer baixinho, implorando por ser descomposta.

Se a imaginação não é, por sê-la, menos real, ou vivenciada em menor intensidade - antes o contrário -, é forçoso reconhe- cer que, após viver tudo o que acima relatou-se, constatar que se é tão repugnante que a rapariga não olhará jamais para si, é o mesmo que chegar ao ápice do maior prazer proporcionado por Deus e ver-se interrompido pelo ladrar encardido de Clotilda a brincar com Sofia no chafariz da praça. Também eu me mataria a mim, pela crueldade que é brincar de ver cenas impossíveis, coisa que faço covardemente todos os dias escrevendo histórias. Alguém capaz de assim se torturar a si, vejamos o que não é ca- paz de cometer a outrem. Não existe moral em gente desta espé- cie. Donde se constata a lucidez de Bentinho e a grande razão que se lhe possa ser atribuída com este gesto que, de si, salvou em grande estilo toda a vida futura de Sofia, de Clotilda e tan- tas outras – quem sabe até da gorda da tabacaria. E a vida da ga- rota-gaivota - que diante do aparelho televisor apenas comentou com os pais espantadíssima: “Meu Deus! Mas era tão meu amigo!”.

Travessa dos Fieis de Deus, Lisboa,

13/06/2016.

110 Thiago Sogayar Bechara Ontem, ao pedir pizza, falaste dotada de uma segurança ao telefone... Pus-me a fabular se assim seria que tu abordas teus entrevistados quando fazes-te de rapariga comportada, lá na redação da revista. És mesmo tal e qual? Com esta superioridade velada?, para ninguém intimidares nem furtares-te a impor respeito? Afinal, tua repetição impaciente - mas sem perda de elegância -, tua repetição do endereço que a telefonista não ouviu direito; aquilo eletrizou-me intensamente. Aquele modo de deixares vazar pela voz da miúda a erupção da mulher… aquilo encheu-me de nuances, e minha pele recobriu-se de pontos sensíveis, luminosos, à espera do teu toque casual sobre a minha coxa, enquanto recomendavas tão compenetrada que precisavas de troco para cinquenta.

Thiago Sogayar Bechara 17/03/2014, São Paulo, capital.

O vestido de laise 111 O casamento

Enrijecidos pela seriedade que só as roupas de festa empres- tam, saímos do quarto pelo silêncio do corredor do hotel. Lá fo- ra havia um resto de sol, um sol contido pelas graves e pesadas cortinas. E nos mantivemos em quietude, pela beleza luminosa das nossas palavras anteriores, que este silêncio agora selava e realçava. O pacto que não dizer pode firmar - e nós o firmamos segundos antes de baterem à porta, alertando para as horas.

Olhamo-nos, ela ajeitou minha gravata e eu lhe perguntei se estava bem. Ela respondeu: te amo – Dita daquele modo, a frase suspendeu nossa pressa por já estarmos atrasados para a cerimô- nia em função da qual viajamos para o interior do estado. Não sei por quanto tempo estivemos assim imersos na lembrança do que acontecera naquele fim de tarde, pouco antes de entrarmos no banho. Entender a novidade que há no encantar-se com o já vivido uniu-nos ainda mais. E ainda mais por não termos dito palavra a respeito.

Ela tinha dezessete anos e seu longo cabelo loiro estava solto, baloiçando feito pêndulo sobre as costas, e revelando, sim e não, a lisura de sua pele. Eu tinha vinte e quatro e trajava terno. Fui beijá-la já no carro, mas seu rosto virou-se a tempo de eu não lhe borrar a maquiagem. Homens… Em seguida ela me beijou.

112 Thiago Sogayar Bechara Comedida, apaixonada. Olhamo-nos e ela encostou o indicador em minha boca para que eu beijasse. Como se aquele fosse um ve- lho hábito, índice do nosso amor. E ela sorriu indefesa, prome- tendo com ele algo que nenhum de nós sabia ao certo o quê, mas que consagraria o espírito da continuação. Mulheres…

Nossa dinda!, apontou para o céu indicando a lua que já dava- -se a ver em meio àquela penumbra nebulosa, e deitou a cabeça em meu ombro para melhor apropriar-se de seu sentido lunar. Tremeu-nos no corpo a consciência de que pertencíamos ao uni- verso, em rede, mas somente por sermos distintos em nossas in- dividualidades. Formou-se com mais clareza a fronteira de onde termina carnalmente o corpo de um e começa o do outro. Um realce de nossa percepção corpórea de cada coisa. Engraçado, por- que foi nesse segundo de lucidez da demarcação que sentimo- -nos imiscuídos um no outro, como tinta derramada à piscina. E também nós, um único (uni)verso.

Seguimos caminho no silêncio. Mas aquela noite, sem saber, beirou o misturar-se das nossas substâncias oníricas num só ti- po de susto sobre a vida e a intuição fatal acerca do que é ser humano. Éramos como dois objetos que se sabem fisiologica- mente constituídos – e disso dependia a certeza de nossa corren- te elétrica. Quando olhamos a lua passar enquadrada pelo vidro do carro – e ela nunca passava – foi que entendemos que nossa correspondência astral era terrena, concreta e imperfeita, como tudo aquilo que deriva do falível. E sentir-se como exemplo vivo dessa imperfeição num mundo imperfeito deu-nos uma incrível sensação de pertencimento porque em consonância e adequa- ção. Ao mesmo tempo de uma unidade individual poderosa. Que, como a lua, também não passaria. O que queríamos do mundo,

O vestido de laise 113 naquele percurso tornava-se corpo e sangue. E em nome do Pai, do mesmo modo que chegamos, também saímos da capela onde, inebriados, mal víramos o casamento de nossos amigos, milagro- samente contraído sob nossos olhos e exercido sobre nossas mentes como se simulação do nosso (não do que talvez um dia ocorreria, ou não; daquele. Daquilo que ali já éramos). Morrer e renascer a cada instante podia não ser tão sacrificado assim.

De lá, rumamos para a festa. Ela desceu do carro apoiando-se em mim e endireitou-se rapidamente sobre o salto, reavendo a realeza de quem sabe estar dentro de si. Sutil consciência da própria coluna-dorso-espiritual que a levaria até as escadas do sa- lão, onde sentamos e apenas nos olhamos e então rimos da en- cenação de uma sobriedade. Algumas faíscas foram vistas sobre nós, pensei. E algumas entradas servidas. Espessa toalha azul e branca, talheres, luz difusa em nossos co(r)pos. E flores também azuis. Em certo momento deslizei uma em botão por sobre sua orelha esquerda. Ela atravessou a haste de outra por entre meus dentes e zombou que eu lhe invitasse a um tango majestoso. Escorregamos pelo salão, bailando entre outros tantos casais. Mas invulgares. Únicos, por tantos minutos quantos foram aqueles em que nos entregamos à marcação rítmica da pulsação eletrô- nica. Encenávamos um papel. Mas o fazíamos com o prazer de quem sabe desempenhá-lo. Notamos com o olhar como todos acreditavam (com aquela crença de quando a encenação é tão con- vincente, que ninguém percebe que há algo para se acreditar). Desempenhamos nosso tango-social na diluição que concentrava em nós a graça de existirmos. Era fluido como ter nas veias o impulso erótico que leva adiante um despir-se lentamente.

114 Thiago Sogayar Bechara Despi-a, len-ta-men-te, quando a puxei pelo braço, rumo à va- randa. Sentamos numa baixa murada de alvenaria e meus dedos correram-lhe os cabelos. Ela fechou os olhos e, apaziguada den- tro de si, permitiu-se ser a dama mais amada da festa, incluindo, claro, a noiva. Todas as noivas deste mundo - e de todos. Sen- tiu também a força de viver um mítico momento de harmonia. Virou-se, no vagaroso beijo que nos demos, uma das páginas de nossas vidas. Naquele beijo não éramos leitores, mas persona- gens. Fugimos pela trilha detrás do salão, em meio ao gramado. Afastamo-nos da música, das risadas, do zum-zum frenético e etílico da grande recepção, que foi aos poucos se apequenando em nossos pensamentos dilatados.

Vou te contar uma coisa, eu lhe disse. E ela me seguiu. Era o estacionamento da festa. Mas era na realidade o interno de nos- sos corações, geograficamente situado. Eu a fui conduzindo pela mão. Ela não perguntou por onde, e sua confiança em mim me encheu de um tremor que eletrizou todo meu corpo. Fui tomado de uma excitação que transcendeu meus músculos. Um prazer profundo de ter nas mãos o desenlace de nosso futuro próximo. Não passasse daquilo. E de um breve passeio. E não havia outra razão de existirmos senão encostarmo-nos àquele ipê a que che- gamos e nos beijarmos no desespero de quem não dormirá jun- to aquela noite.

Já não cabíamos em nenhum lugar, de tanto que era tanto nosso amor. Como nunca nenhum romance testemunhara. Pare- cia que nunca tanta simplicidade fora capaz de encher de ter- nura um ser humano. E neste beijo não foram nossos lábios somente que se uniram. Beijaram-se nossas mãos e nossos um- bigos por um cordão refeito. Minha mão protegeu suas costas da

O vestido de laise 115 rudeza daquele caule. Então giramos e lhe protegi, dando à planta o apoio do meu tronco.

Amei-a como outrora. E como sempre, mesmo antes de co- nhecê-la. Porque sempre que sonhei com alguém ou quis não ser sozinho, era daquilo que eu precisava. Compreendi naquele instante. Então promete. Acho que chorei uma lágrima e ela go- zou pela primeira vez aquele enorme instante de felicidade. Um oceano que explode por dentro, magnético na condução de sentimentos. E era real. Concreto, ao mesmo tempo que, inebria- dos, supúnhamo-nos num sonho indigno da literatura porque isento de conflito.

Inventada nossa loucura transcendental, materializaram-se naquele todos os instantes já vividos. Houve nas árvores o so- pro de todas as nossas experiências brotadas. E de repente éra- mos o corpo de todos os astros e deuses e choros e alegrias já experimentados desde o dia em que nos olhamos pela primeira vez ao acaso no saguão do teatro – que naquela noite pareceu- -nos nosso dia inaugural de vida. Sentimos, em verdade, toda a vibração que alterou-nos as rotas sanguíneas repetir-se nova- mente. Um estar pleno de achar coisas belas. Pressa intrínseca de nosso dentro, buscando alcançar coisa alguma. Como uma ânsia de bem querer. Assim nos quedamos abraçados por um tempo – que não soubemos quanto. Revimos a dinda-lua e a notamos inda fixa no céu a velar-nos as vozes do silêncio, quando o real se interpôs em nossa pequena solenidade particular. Quero, de quero-quero.

Desencostamos da árvore e voltamos caminhando para a fes- ta, braços dados, ora afivelados à cintura, sem palavra. E ficamos sabendo da existência de um local que apenas viveria em nossa

116 Thiago Sogayar Bechara história, porque nunca lá voltaríamos. No salão, alguns amigos dos noivos ainda dançavam, cansados e descalços num canto en- tre as mesas; e as luzes pararam de girar, pouco antes de servi- da a sobremesa. Ninguém deu por nossas doçuras. Quando notei, a flor que eu pus sobre sua orelha havia desabrochado.

28/02/2011 a 08/11/2014,

São Paulo e Ribeirão Claro, originalmente

intitulado “Uma noite de existência”

O vestido de laise 117 São Cristóvão

Joana saiu de casa batendo com força a porta. O silêncio da noite realçou o ecoar enferrujado do trinco, e os baques de seus tacos firmes sobre os paralelepípedos fizeram como que uma cau- da daquele som, em eco. Era um rés-de-chão no Largo de São Cristóvão, mas a menina não estava para santos. Pegou pela es- cadinha e foi toda a descer, mas antes deteve-se em frente à leitaria, logo ao primeiro patamar, como a lembrar-se súbito de algo. Seguiu. Desistiu do pensamento inoportuno que a detivera. Quantos gatos havia neste beco, cruzes! A luz do sensor acendeu um dos enormes candeeiros de ferro; a estreiteza do sítio ilumi- nou-se precariamente de um amarelo a derramar-se, dando a ver uma Severa quase cubista pintada em tons berrantes na ruína da parede. O conjunto era, com efeito, curioso.

Vacilante, a luz assustou Joana como órgão vivo a pulsar na cidade. Estava pelos arames, dava já em doida quando enxugou o suor da testa e cruzou o arco que liga o beco à rua da Madalena; e atravessou-a em rompante, sem dar pelo carro que vinha. Aqueles poucos degraus que iniciavam a rua de Santa Justa foram-lhe eternos. Parecera-lhe já outra estação do ano, tamanha a ansieda- de com que esperou passar o elétrico à rua dos Fanqueiros. Foi direita ter ao largo, na esperança de encontrar a farmácia aberta. A funcionária, que tratava já de dar cabo daquilo, deixou em

118 Thiago Sogayar Bechara meio o gesto de fechar a porta, lendo-lhe as faces transtornadas à rapariga.

- A menina Joana tá boinha? – testou, com as mãos in- da suspensas.

- Rés-vés-Campo-de-Ourique, dona Catarina! Foi por um isto que não dou com o nariz à porta.

- Então?

Joana certificou-se de que nenhum conhecido passava; tomou pelo braço a velhota e deu-lhe entrada, sutilmente, à loja. Con- duziu-a até os fundos sem dizer palavra, e a mulher só impa- cientou-se quando, já detrás do balcão, pronta a sumir-se entre as prateleiras de remédios, Joana pediu o teste de gravidez. Dona Catarina sorriu a descrer.

- A menina tá a falar a sério?

Joana desandou num choro sentido, que era sua súplica pelo silêncio ético da mulher que mal tinha forças de encarar. Queria livrar-se daquela humilhação, esconder-se do confrangimento que era estar submetida ao julgamento duma quase estranha, e quis, para tanto, ter a velha segundo os preceitos profissionais que a deviam reger. Esperava uma reação técnica o bastante pa- ra não sentir-se desmascarada, mas também afetuosa o bastante que, em sendo profissional, não fosse fria e pudesse, assim, ofe- recer-lhe algumas poucas palavras, talvez, de consolo. Ora, por vê-la na angústia daquela dúvida. Seja! Uma vez grávida, era a desgraça. Mas uma desgraça consumada. A dúvida não. A dúvida era ainda a chance de ter-se exposto à toa. E em não estando a

O vestido de laise 119 esperar um filho de Lourenço, teria, então, dado a ver de graça à funcionária os maus limites de sua conduta.

Sabia o que significava a remota possibilidade de estar grá- vida aos quinze anos, sem pretendente ou sequer namorado. Aquilo tinha menos a ver, bem entendido, com todos os percal- ços práticos e reviravoltas porque sofreria sua vida com a chegada de um bebé, do que propriamente com ser descoberta, por ter-se dado à vadiagem com o filho do dono do talho; assim ao menos seria visto o romance. Estaria desmoralizada perante a Mouraria, e era este o ponto que engasgava-lhe de choros a garganta. A ver que não era troça e que a rapariga não parava de deitar lágrimas fora, a empregada da farmácia disse um pronto pouco convicto e condescendeu. Senta-te aí, e incentivou Joana a ver nela uma interlocutora digna de confiança. Se calhar, pouco adiantava a menina dar-se aos choramingos em desespero; antes abrir-se - que, nestas coisas, compartilhar é sempre já um alívio. E de mu- lher para mulher: isto é que é! Pois do contrário, não há Carmo nem Trindade que resista ao terramoto da coscuvilhice. E neste ponto a menina Joana podia estar certa de ter nela uma amiga. Tomasse lá um lenço para assoar-se, respirasse fundo e, antes de pensar em partos, que desse à luz o ocorrido. Posso mesmo confiar em si, dona Catarina? Olha que mais tarde ou cedo… E vai de lá, e vem… Foi o relato a seguir que a velha Catarina ouviu, extasiada, da pequena, após um preâmbulo cuidadoso em que esta procurou dar a ver os juízos muito rigorosos que fazia do sentido e da im- portância da moralidade, antes de narrar o modo como contra- disse, ponto a ponto, a si mesma.

120 Thiago Sogayar Bechara Colegas de escola desde miúdos, Joana e Lourenço foram dis- tantes por razões circunstanciais até o ano anterior, quando to- maram efetivamente conhecimento um do outro, numa oportu- nidade que tiveram de conversar longamente sobre a banda de rock preferida de ambos, na festa de uma colega no largo de São Miguel, em Alfama. Enquanto as vozes dilaceradas das fadistas escapavam dos retiros e das tascas e entrecruzavam-se no ar, por entre as bandeirolas e distintivos pendurados com a palavra FADO, indicando aos turistas a zona maruja da canção castiça, Joana e Lourenço estavam-se nas tintas para as guitarras. Ao me- nos as portuguesas. E entre uma sangria e outra, eletrocutavam- -se com olhares a um metro de distância - que Lourenço era res- peitador e seguia à risca os conselhos do pai, dono do talho e que, por isso, de carnes, era quem sabia, mais ninguém. Deitar-lhes a mão à primeira, só cá na loja, ó pá. Às gajas – às vivas, pelo menos – é primeiro amaciar-lhes.

Joana, contudo, não fora menos disciplinada pela mãe – fora antes mais - para que seguisse um convívio adequado dentro do que lhe fosse permitido quando chegada a hora. E pouca coisa era- -lhe permitida. Sobretudo porque a hora, na mente mesmo fe- chada de seus pais, nunca chegava; e Joana, a bem da verdade, jamais recebera uma explicação a contento sobre o objeto espe- cífico de espera da tal hora. Um namorico, ainda que singelo, como aquele até então o era, teria escandalizado a moral relutante da família, que buscava postergar ao máximo o início dos fulgores no coração da filha única, como se de tal recurso pudesse al- guém lançar mão sobre os hormônios duma miúda cujas formas do corpo não queriam deixar dúvidas. Havia já, contudo, e a des- peito deste excesso de proteção, quase um mês de sucos e cafés

O vestido de laise 121 às escusas entre os dois jovens quando Lourenço tocou com a ponta dos dedos a face de Joana, iluminada pelo pôr-do-sol sé- pia de Lisboa, em pleno miradouro da Graça. Ao aproximar seu rosto e constatar, emocionado, que ela não recuava, como da pri- meira vez em que o tentara, viu nisto a autorização inequívoca para consumar os esforços hercúleos daquelas semanas todas; e o beijo de Joana desabrochou doce e profundo, dando a ambos a percepção pacificadora do reencontro e da fusão. O busto de Sofia de Mello Breyner teria parecido sorrir, caso ambos a tivessem podido contemplar naquele instante. Seguiram dando-se às es- condidas, em encontros que tinham de almejados e intensos o mesmo que de tímidos e recatados.

Viram-se sempre nos sítios mais românticos e aprazíveis da velha cidade. Do miradouro de Santa Luzia às Portas do Sol, de São Pedro de Alcântara ao pé do Adamastor, viram-se aos finais de semana, à luz do dia e sob o pretexto de que Joana ia ter com as amigas à Ribeira ou algo que o valesse. Mas qualquer coisa nela vibrou, ao passar sozinha, certa vez, pelo Terreiro do Paço, e ver um casal de estrangeiros em plenos degraus da estátua de D. José I, a beijarem-se de modo descomposto, num assinte ao decoro, deliciosamente entregues ao bel prazer de suas vontades, as mais primárias, sem repressão nem vexame. Aquilo despertou seus instintos. Não só os físicos, mas, bem entendido, também racionalmente; e a rapariga, enquanto subia a rua da Madalena, pôs-se a indagar sobre porque também ela não poderia protago- nizar uma cena de entrega tórrida como aquela, somente porque seus pais a proibiram de libertinagens antes de casar-se. A per- gunta instalara-se em sua mente. Projetou tudo às minúcias. E para ela, era como se tramasse o pior dos pecados, ainda que

122 Thiago Sogayar Bechara internamente se enternecesse toda ao descobrir-se a si. Não ofe- receu-se nem foi vulgar, garantiu à velhota farmacêutica. Apenas deixou as coisas correrem mais soltas. Nem sequer cuidou mais nem menos da aparência, senão pelos cabelos que hidratou.

Certo final de semana, alegou à mãe que ia ter, como sempre, com as colegas ao centro comercial Vasco da Gama, e foi encontrar- -se com Lourenço ao Jardim da Estrela. O jovem a esperava no pátio externo da Basílica com um vasinho de manjerico e um cravo colorido de papel enterrado. Eram vésperas de Santo António e o jardim estava cheio. Ele sorriu-lhe, entregou a prenda e foram tomar um suco na esplanada do parque. Puseram-se a andar depois, as mãos entrelaçadas, diferente do que faziam sempre, quando imaginavam nunca estar a salvo de encontrar com algum conhecido, escusando-se de fazer os caminhos mais movimen- tados. Naquele dia, porém, qualquer coisa brilhou nos olhos de Joana, que assumiu para o mundo seus dedos entrecruzados num dos sítios mais frequentados de Lisboa. E Lourenço não teria deixado de perceber imediatamente o degrau que ali aca- bara de galgar. Ambos os corações disparados porque conscien- tes de tudo isto.

Após o suco, nesta caminhada muda, Joana estancou lentamen- te e, muito dona de seus movimentos e muito mulher, virou-se de frente para ele, olhou-o nos olhos, e fingiu que limpava qual- quer pluma de plátano que lhe houvesse sido deitada à barba rala. Apenas isso. Voltou para sua posição original e continuaram a andar após um sorriso de Lourenço, rumo a um dos bancos do jardim, para os lados do coreto. O calor do toque despretensioso de Joana manteve-se impresso à brasa no jovem. Havia tanta pu- reza naquele partilhar de um momento singelo, que ele sentiu-se

O vestido de laise 123 enfim homem, acompanhado de sua mulher. E este “crescerem” de ambos cresceu-lhe também no espírito, inflamando os canais sensíveis da sua constituição. Sua pele eriçou-se e um suspiro de prazer chegou-lhe à tona da respiração, como para salvar-se do desespero aflito daquela repentina excitação. Vazou assim seu desejo. Mas aos hálitos por ele deitados cá para fora, Joana não ficou indiferente. Recebeu tudo com frêmito, sem que nada fosse dito. Quando sentaram-se, estavam já ambos entregues ao único pensamento que lhes podia entrar pele abaixo. De resto, eram só sensações. E mesmo este resquício de racionalidade expresso nas poucas palavras que trocaram, não eram outra coisa senão a tra- dução de ímpetos. Lourenço voltou a cabeça para trás certifi- cando-se de não haver ninguém muito perto e, quando regressou, já quase colando os lábios aos ouvidos de Joana, sussurrou ape- nas: “Mas aqui há gente demais, pois não?”.

Ela levantou-se, tomou-lhe a mão e conduziu-o devagar ao fun- do do jardim, para trás dos vastos ramos de uma folhagem densa e escura que guardava para eles, como um ninho, o nicho úmido de terra fresca.

Dona Catarina, nesta altura, levantou-se sobressaltada e foi fe- char as portas da farmácia. Voltou, constrangidamente curiosa, após tê-las preso ali dentro, protegendo, assim, a jovem de qual- quer intrusão é certo que desconsoladora, sobretudo perante os rumos que a história tomava. Mas era, em verdade, não tanto a prudência ditada por sua generosidade quanto o desejo de não ser flagrada em deleite absoluto, ela própria, vivendo por meio da miúda o que jamais tivera sequer a ideia de pôr em prática.

Joana teve a iniciativa de beijar os lábios grossos de Lourenço, e quando ele umedeceu com sua saliva o batom da amante, foi

124 Thiago Sogayar Bechara ainda ela quem abriu-lhe a boca com a própria língua e incitou-o a ir adiante, com os olhos ávidos que brilhavam feito diamante, molhados de uma comoção jamais vista. Fizeram amor pela pri- meira vez; perderam suas virgindades devolvidos às raízes, fo- lhas secas e frutos apodrecidos, na mais alta profusão a que tal- vez seja capaz de alcançar o ser humano. Houve dores e medos, sangue deitado às sementes e desconforto após vestidas as rou- pas, não tão sujas de terra quanto suas peles imundas, e lavadas pelo bater apressado das mãos no corpo ainda quente um do ou- tro. O que não houve jamais foi solidão nem arrependimento.

Com os olhos rasos d´água, Joana levantou-se, enxugou-se e estendeu a mão à dona Catarina. Fez a senhora jurar que mor- reria com aquela história. De preferência esquecê-la. Também lim- pando os olhos com as costas dos dedos, a funcionária garantiu que de esquecer não seria capaz. Joana agradeceu e tencionou sair da farmácia quando, aturdida, a senhora gritou: E então? O teste? Joana respondeu: Ah, pois. Já me ia esquecer. Dê lá um, se faz fa- vor. E saiu da farmácia ainda desconcertada; voltou serenam- ente para casa, respirando o ar fresco da noite. Sua calma foi in- terrompida num átimo por um raio de preocupação que lhe fran- ziu o cenho. Mas logo prosseguiu. Na semana seguinte, havia uma placa à porta da farmácia, solicitando nova empregada para o balcão. O largo estava emudecido. A velha Catarina fora achada morta para os lados de Santa Apolónia.

Travessa dos Fieis de Deus, Lisboa

04 e 05/06/2016.

O vestido de laise 125 Lealdade

Estava ela debruçada sobre o balaústre de uma antiga ponte pênsil afastada da cidade. Olhava a noite como quem buscasse a origem daqueles tempos, brisa que ondeava seus cabelos negros. Apenas olhos no infinito, com o corpo magro e rígido, transpa- recia ares que emanavam a aristocracia de sua postura; as mãos finas e brancas viam-se somente pousadas lado a lado sobre o concreto. Eram também de uma concretude fria. O nariz, este apontava para o alto, como num gesto reflexivo, mas, ao que tudo indicava, absolutamente alheio a esta faculdade humana.

A noite era de cerração e o vento sibilava qualquer coisa inin- teligível por seus lábios que, somente quando em vez, ela umedecia com a língua. Autômata, era o retrato de uma Vênus, arrepiada e bela, com a fartura pétrea que há em toda juventude. Contudo, era habitada por imagens que o frio tratava de anestesiar em sua memória.

Discretamente, essa mulher franzia o cenho e estava prenhe de sua feminilidade, plena de uma agitação interior que lhe tra- ria finalmente ao mundo das trincas marmóreas. O dia então des- pontaria em breve; a fome de existir a faria esquecer das leis dos homens; seria enfim feliz como tudo aquilo que beira o não se pen- sar, que é a única liberdade real, a que estava prestes a alcançar.

126 Thiago Sogayar Bechara No entanto, fracassava e era toda um perscrutar-se, em sonda- gem de fatos de sua história. Inteiramente autopercepção e culpa. Um retrocesso analítico, e seguia repassando a fita em sua men- te; era o que se adivinhava em seus olhos, esmeraldas suspensas no gelo da noite.

Foi quando atrás de si, por entre a névoa, delineou-se um vulto. Muito lentamente, como a emergir do vazio. Um espectro robus- to que ela mal notou e que se acercava, pouco a pouco, enquanto a noite prosseguia seu sarau ritualístico de sapos a coaxar invi- sivelmente. Ela orava, muito displicente daquela aproximação gra- dual. Mas um rosto gordo começou a desvendar-se por entre os raios de luz da lua; rosto de homem neblinento, contrito e denso como a bruma de onde se refazia, talvez de outra vida, protegido pelo deslizar cúmplice do rio anônimo e ruidoso que havia abaixo de si. As águas iam amassando seu celofane líquido por entre os ingás da margem e as tentaculares raízes que flutuavam, bailando presas à encosta. Levavam consigo qualquer coisa de irrecuperável.

A mulher não o pareceu pressentir mais nem menos quan- do ele, já quase encostado em seu corpo, foi tocar-lhe com as grandes mãos peludas. Enfim relou-lhe os ombros lisos, cober- tos de pequenas sardas. Trazendo-a para si, fez com que umbigo e costas se comprimissem irreversivelmente, e ela não poderia mais esquivar-se.

Sentiu-o apenas e aguardou. Sem tentar nada, nem mesmo mo- ver um músculo da face. Manteve sua posição cérea. Firmou-se inda mais, presa entre a frieza dura da ponte e o calor macio do corpo que a tomava. Agora era ela a ponte entre esses dois mun- dos térmicos. Entre as capacidades de despir-se ou revestir-se

O vestido de laise 127 de lãs protetoras. Se entregaria para aquele homem ou faria me- lhor optando vestir-se no agasalho cerzido pelo despeito?

Entre no carro, chegamos já longe com isso!, rompeu uma voz grave contra o vento. E apontou com o dedo o automóvel esta- cionado no outro lado da pista. Este gesto ele o fez com sin- gular intenção de afeto, apesar do tom enérgico que não pôde dispensar, pela autoridade pretendida. Mas interlocutora ela não se fizera; continuou sem mover-se nem nada falar; antes pros- seguiu inerte, mirando o brilho de uma lua ondulada que até parecia correr refletida embaixo dos seus pés.

Apenas tremia imperceptivelmente; era deus líquido. Mas nem o passo invisível do homem, tampouco seu intuito de colher para si seus pensamentos com o toque de suas mãos, nem mesmo o contraste que ela pressentiu existir entre esses dois gestos; na- da fora capaz de arrancar dela qualquer reação passível de ser descrita. E, no entanto, era como se o esperasse. Não haveria, contudo, ordem como aquela que a trouxesse de volta. E o ho- mem repetiu, temos que conversar. Havia muito a ser explicado, que ele merecesse ao menos esta última oportunidade.

Não te dou nada!, virou-se num espasmo inesperado, voltan- do enfim de seu transe. Não te dou mais nada! É o fim da tua dinastia e vê se aceita porque de ti não quero explicação nenhu- ma. Dela, sim! Ouviu? Só dela! E escutou-se um grilo distante e intermitente que pareceu aguardar o término da frase para dar novamente início aos trabalhos.

Impávida, pronunciou aquelas palavras que ouviu de si com o susto de quem as tivesse ouvido de outra pessoa. Apenas dela, e se virou afastando-o com força para voltar a simular deleite

128 Thiago Sogayar Bechara contemplativo com a paisagem. Agora uma lágrima rolou sem que ela pudesse controlar. Ele ordenava, ela negava. Ele insis- tia. Ela, vazio? Fingir-se indiferente não lhe traria mais brio, está cega? Mas cega ela já estivera, retrucou, e como lhe ocorreu que ele a tivesse seguido, inquiriu-o a tal respeito com ódio, mas ele não disse nada. Antes, puxou-a pelo braço, mas logo com sua ou- tra mão teve de defender-se do murro que ela desferiu, ordenan- do que a soltasse ou então. Tá ouvindo? E suma da minha vida!

A cena da véspera havia sido trágica, mas justificava o tama- nho daquele despropósito? Talvez ela tivesse enlouquecido; ou ele não dimensionasse de fato a importância que o flagrante assu- mira para a mulher. Seus pensamentos vacilavam, incompletos dentro da caixa craniana. Estancou e assumiu uma posição de quem se orgulha do que se lhe ocorre à mente, antes de firmar a voz e bradar que também eu tenho meus direitos! Ao menos de defesa!

Direito nenhum!, reagiu ela. Eu já sei tudo! Melhor que nin- guém, aliás. Vi tudo, esqueceu? Foi o bastante. Mas ele parecia estar certo de haver algo naquela história que não se encaixava, a despeito das razões que a esposa evidentemente possuía diante do espetáculo que ele lhe apresentou. Ela imaginava, por certo, que o que vira fosse tudo, mas havia outro lado naquela histó- ria; o dele, e por isso dizia que deviam conversar feito adultos. E o somos? Que houvesse tudo se acabado, mas um último olhar traria certas verdades à tona, ele retomava, o que não o redimia de seu erro, bem sabia, mas... Calava-se. Fosse repulsa o que ela lhe tivesse, mas concedesse a última conversa; uma última, é o que peço.

O vestido de laise 129 Eu a amava, você sabia. Sabia, não sabia?, e se calou de sú- bito, suspensa pelo que lhe deram as próprias palavras.

O homem empalideceu.

Tamanha fora a desordem vinda da descoberta, que ambos só puderam abrandar suas respirações e silenciar novamente. Bus- cavam por dentro o sentimento que fosse o mais adequado de ser sentido naquela hora tão grande; de ser trazido à pele, aos ossos, aos cabelos. Completa investigação na busca de referências emo- cionais que correspondessem à experimentação de algo que fazia deles completos desconhecidos, após tantos anos de casados. Verdadeiros estranhos, apresentados pelas mãos da crueza de uma rajada de vento trazida do rio; uma rajada que devolvia a ca- da um o direito de uma individualidade finalmente desvinculada.

Não, ele não sabia.

E nós dois?, ele pensou. Mas como os anos de casamento a ensinaram a ler seus pensamentos, ela cortou o silêncio outra vez adivinhando que nós jamais existimos; te peço que esqueça essa entidade. Ele não podia acreditar. Mesmo que ela… nunca, aliás, desde o altar, ela o houvesse feito acreditar que o amava. Mesmo assim. Fora sempre honesta. E jamais traíra o juramento que fi- zera. Mas isso não o acalmava quanto à descoberta de um não ha- ver a cumplicidade do nós, que, sim, ele entendia haver, em to- do caso. Os filhos, as festas, as férias, as fúrias. Nós. E não pôde conceber que, mesmo sem amor, não houvesse sido ao menos al- vo de algum carinho e cumplicidade, mesmo depois de ouvir que ela vivera anos de arrependimento e de incompreensão. Décadas privadas, toda uma correspondência sufocada, ela dizia, pela tua existência, que eu respeitei apenas; mas até ontem. Hoje chega.

130 Thiago Sogayar Bechara Ele entendeu enfim que não era a sua traição que a demolia, mas aquela particularidade; o fato de ter sido com quem foi. Es- tava ali, posta em espelho (só agora entendia), a razão para que a outra o tivesse ido tentar daquela forma; conquista de arrou- bos, ávida de arrebatamentos a ponto de ele nada poder con- tra, compelido pelo susto com que fora pego desprevenido, misto de um desejo também reprimido e que, mesmo sem compreender a motivação de ser extravasado naquele momento, era bastante grande para deitar fora. E então cedera. Mas qualquer coisa que dissesse a esse respeito soaria ridícula e mentirosa.

A vista dele turvou-se, sem compreender com que direito ela lhe escondera. E novamente ela o adivinhou e prosseguiu protes- tando: e os meus direitos, onde colocamos? O casamento fora ape- nas um acordo, o que nunca a impedira de dizer-lhe a verdade; fui sempre franca. Aguentei tudo, por você compreender minha solidão, ou aceitar pelo menos meus momentos de tristeza, sem saber de onde vinham. Ou que eu achei que aceitava, porque ho- je entendo que você nunca nem sequer soube algo de mim.

Você não me deixou saber, ele arguiu. Essa é apenas parte da verdade. Mas agora ela queria, com o olhar injetado de uma iro- nia cáustica, perguntar se ele estava feliz. Se estava finalmente satisfeito por saber de tudo; com o despudor a que ele próprio a obrigou, por ter sido incapaz de notar sozinho. Talvez que até agira premeditadamente. Ela bradava sua inconsciência libertá- ria. No entanto, ele lhe dera o melhor tempo de sua vida. Queria-a com verdade e vivera convicto de ter com ela construído algo, apesar do que fora honestamente confessado desde o princípio. Agora somente é que notava, fora poupado de saber o princi- pal. Aquilo o abateu de tal maneira que ele se sentou no asfalto

O vestido de laise 131 aos pés dela e entregou as costas ao balaústre da ponte; exau- rido, derrotado por uma desconhecida. Ela compreendeu o cho- que e por alguns segundos deixou a mente desviar-se da cena vergonhosa que ela flagrara na noite anterior, na cama de seu próprio quarto. No entanto, estava já farta das convenções, e a trégua durou pouco.

Farta!, repetia; a face convulsa do choro que a transformou de repente na adolescente romântica que fora, apaixonada pela vizinha da casa da frente. Correspondida com o olhar, ela sabia. Nunca haviam trocado palavra a respeito, mas ambas guarda- vam a impossibilidade daquela união como a primeira chama de vida a ter-lhes animado o ventre, a fazê-las sentirem-se mulhe- res, a quererem-se ardentemente no silêncio mais significativo que jamais experimentariam dali em diante. Farta! – ela em- bargou novamente, pela profanação do seu sagrado. Violada, nua, humilhada.

Por um momento a força de sua voz se amorteceu e então veio à tona uma fragilidade quase fetal, ao rever o beijo ávido entre as duas únicas pessoas a quem ela jurara fidelidade. Dois tipos muito distintos de fidelidade. Virou-se novamente para a lua. E ele sugeriu, mecanicamente: Vamos para o carro. Termi- namos de conversar amanhã, em casa, e então você decide o que quiser. Mas ela não queria, respondera suavemente, voltada já de costas e acrescentando que toleraria tudo, enxugando disfar- çadamente o rosto. Mas aquilo!

Ele disse que a amava. Que apesar do que acontecera, acredi- tasse ou não; amava! Ela sorriu. Ele quis continuar, mas o sor- riso que viu o amainou, desencorajando-o. Ela explodiu numa gargalhada. Um estrondo para si mesma, desesperada, entregue

132 Thiago Sogayar Bechara à dor e à exaustão de ter caminhado até ali um dia inteiro, sem rumo e sem saber o que pensar. Sem saber quem odiar, o que sentir. E desatou então num choro convulsivo, de nada compreen- der. Enquanto soluçava, balbuciava juras de amor que lhe entra- vam à mente como que pelo lado mais obscuro da inconsciência. Até que lhe ocorreram os filhos. Os meninos, que espécie de mãe fora, e o que seria. Ela sentou-se também lentamente à pedra molhada do calçamento da ponte. Aveludado verde de umidade ancestral. Enquanto ele a observava estático no seu pasmo de culpa e horror. De medo nem sabia ao certo de quê.

E ela? Queria falar com ela, disse ao marido quase sem voz, com os cotovelos sobre os joelhos. E então ouviu-o dizer que para ninguém estava sendo fácil; que entrassem logo no carro e assim conversariam sobre tudo. Todos ficaram aflitíssimos com a fuga. Principalmente ela, você não imagina. Ela quase... Mas não terminou. E os olhos fugitivos recobraram um pouco do brilho de repente. Ele insistiu que ficaria tudo bem. As coisas logo se acertariam em meio a tantas normas sociais perversas.

Ela continuava sorrindo de cinismo, mas aos poucos foi se levantando do chão com a ajuda do marido, ajeitando reticente o vestido, mecânica, batendo nele com as mãos, como se aquele fosse o único índice de lucidez que lhe sobrasse. Atravessou a pis- ta seguindo-o para o outro lado da ponte e quedou-se muda em frente ao carro.

Ele, por sua vez, abriu a porta de trás e entrou com metade do corpo, tateando, buscando uma garrafa d´água açucarada que trouxera. Afofou uma pequena almofada cor de laranja que le- vavam nas viagens com os filhos, para ali pô-la deitada. Parecia

O vestido de laise 133 um pesadelo; o que ele diria aos filhos se não a tivesse conse- guido convencer! O futuro naquele momento não passava de uma noite em claro. Todo o resto eram conversas que ainda aconteceriam.

A garrafa!, gritou vitorioso lá de dentro com a voz abafada pelo corpo dobrado. Disse mesmo com um bom humor infantil por tê-la encontrado, ao sair do carro. Tirou a cabeça, aprumou- -se sobre a própria coluna dolorida e enfim buscou com os olhos a mulher para conduzi-la para dentro, mas ela já havia pulado.

Ele não soube se as juras de amor que ela dissera minutos antes foram somente seu delírio de desejo ou a lembrança con- creta de algum raro momento de felicidade vivida.

10/08/2012 a 16/12/2014,

São Paulo e Ribeirão Claro.

134 Thiago Sogayar Bechara mãe5

para claudia mello

ao caminhar pela rua percebi, no cimo da sombra que nascia de meus pés, a borboleta que me acompanhava por todo o tra- jeto. não quis olhar para o lado nem saber sua cor. contentei-me em saber, por sua projeção na calçada, que eu não estava só. e achei bonito esse desperdiçar-se da natureza, que ademais é far- ta. foi quando deu-se o a seguir, em que o encontrei: valter hugo mãe!, exclamei eléctrico, aos 28. o escritor olhou-me de chofre e assustadiço. peço desculpas, abordá-lo assim, desconjuntado, eu... ele continuou a olhar-me. sorri para o tempo de um respiro que organizasse-me as ideias produzidas pelo prazer imenso de ter- -me diante dele. e só então disse aquilo que talvez fosse defi- nir alguma coisa, leio-te. e novamente calei-me. hugo mãe sor- riu. talvez para o tempo de um respiro que lhe organizasse a iminência de sentir medo pelo abrupto do meu grito em um português redondo mas estridente, menos chiado enfim que seu lusitanês d´angola com vila do conde. que grande honra o encon- tro com uma importância como a sua, bajulei. e ele de pronto arrefeceu ainda mais com os ombros e perguntou como fazia-se

5 Publicado em sua versão original na edição nº 60 do jornal semanal Folha de Andirá, página 02, na semana de 14 a 21 de maio de 2014, sob o título “Mais um filho de mil homens”, precedido de uma introdução sobre o caráter premonitório que este texto assumiu para o autor, por ter sido escrito poucos dias antes de um encontro ocasional com Valter Hugo Mãe na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, a 05 de maio de 2014.

O vestido de laise 135 para sentir-se importante após, em plena avenida Paulista, to- mar um choque daqueles. rimo-nos um bocado e compreendi a importância real da rua como instituição legitimadora de desim- portâncias. elas destroem qualquer soberba, por mais bem inten- cionado que um gajo esteja na vida em sentir-se de algum modo distinto da massa. não era evidentemente o caso de hugo mãe, o que realçou ainda mais em mim a ideia falaciosa de massa; a massa, nós a vemos quando de cima. cá por baixo, o mundo corre entre medos, sustos e borboletas.

assim sonhei. assim se deu dias depois.

30/04/2014, São Paulo, capital

136 Thiago Sogayar Bechara Mas são assim mesmo as coisas do avesso6

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra”

(Clarice Lispector, Água viva)

Saí de casa asfixiado como que para forçar minha entrada no universo. E agora a cidade novamente voltava a ser o meu lugar. Subindo a rua a contemplar a lentidão com que a calçada desfi- lava sob meus pés, tudo foi me conduzindo para, ao fim, chegar àquela construção. E, da porta de onde saí até este lugar, fui nas- cendo novamente e edificando sobre mim uma outra vida. Uma vida mais propícia à sua autopercepção e que, a cada passo, me tornaria mais capaz de acessá-la. Assim, o mundo foi-se colorin- do como se eu, por minha pele, o recebesse menos hesitante.

A primeira vez que se olha o céu. Aos vinte anos. E, em segui- da, se descobre que uma grade enferrujada é apenas uma grade enferrujada. E como isso é belo e simplesmente material, além de limpo. É limpo como é limpa uma foto deste local. Uma foto fo- cada na ferrugem da grade e não naquilo que esta protege. A lim- pidez e a beleza do ser de cada coisa. Hoje cada folha seca no chão por onde andei está tão digna – é tão digna - quanto um rei do alto de sua majestade. Mesmo um rei seco ou enferrujado. Todo rei é

6 Crônica produzida como trabalho acadêmico para o curso de Jornalismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie, publicada originalmente com o título “A grade” na página 163 da cole- tânea “Crônicas da UBE – União Brasileira de Escritores” (Ed. Pasavento, 2014), organizada por Marcelo Nocelli e lançada no primeiro dia da 23ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo (22 a 31 de agosto de 2014).

O vestido de laise 137 um pouco enferrujado e nem por isso menos austero do alto de sua importância.

Olhei o céu.

Neste caminho por que passei notei coisas que, já o tendo per- corrido antes de outros modos, não notara. E concluí que só se está vivo mesmo a pé. Ao menos para se ver a vida como um rei- no irreversivelmente enferrujado, mas, ainda assim, belo. Aquele céu me perseguiu o trajeto inteiro. E está ainda sobre mim co- mo uma ave a zelar pela cria no ninho. Ele ali, me espreitando. Eu cá, me alimentando do que seu grande bico azul me oferta. Uma grade enferrujada ante mim. Uma grade ao contrário. Quem já viu uma grade enferrujada ao contrário? Eu mesmo só fiquei conhecendo porque nasci de novo nesse dia. Do contrário, ela não existiria.

Essa grade que chegou até mim, ela era de um feio que nes- se dia de flores na pele, pareceu tão lindo. Tinha uns ramos an- tigos ainda vivos de uma trepadeirinha decrépita confundindo-se sem pedir com os ferros retorcidos. Nunca havia me flagrado ante algo semelhante. Mas aquilo me fisgou como se fisga um peixe em meio ao deserto: que é o mar. Aconteceu que me li- vrei da grade vazada e tive a sublime curiosidade de focar mi- nha visão naquilo que ela guardava.

A grade era baixa, mas tinha por função proteger a cidade do abandono daquela casa. A planta, pobrezinha, tentava de toda maneira se esgueirar para fora. O que ela não supunha, e a grade sim - por isso a impedia de transpor os limites do quintal –, é que a raiz desta integrava aquele cenário e parecia nunca mais

138 Thiago Sogayar Bechara querer emancipar-se de tal condição; a de ser planta de jardim abandonado. De casa abandonada. De mundo abandonado. Olhei em volta e a vida continuava como que por milagre. O mundo ainda ali. As pessoas caminhavam, olhavam para os lados e atra- vessavam a rua sonhando apenas o fim do percurso, com a mai- or naturalidade. Como havia ainda espaço nesta metrópole para locais tão suspeitos?

Foi quando num canto quase puído daquele painel avistei um portão de ferro trancado a cadeado, de onde descia uma escada – e ela seria eterna, não fosse a bananeira encerrando-a e dando início ao terreno, igualmente baldio, rastejando pelos fundos da casa. E era só isso mesmo, mais nada. Só que endossava o perigo de se ter uma casa como aquela justo ali, naquela rua movimen- tada. E se esse abandono todo der de pernas pela rua? Por isso a grade? Eis a função de tamanha ferrugem? Proteger a cidade de seu abandono? Tudo belo demais para aparentar dessa maneira. Mas são assim mesmo as coisas do avesso. Tão alguma coisa que se assemelham aos seus opostos. Mas a grade também estava ao contrário e eu só notei depois. Teria de inverter todas as lógicas e voltar talvez para casa pisando o céu e sendo alimentado pelo grande bico preto do asfalto sobre mim?

Enfim, cansei de estar apenas do lado certo. Passei, depois da- quele dia, a querer o avesso, que me pareceu mais útil para se ver: a solidão daquela casa: o grande risco, causa dos ocultamen- tos. Quanto descuido de quem se privou de arriscar-se. Há belos. A casa permanece no mesmo local. Quem for, me encontrará. Grudado na ferrugem. Se chover, estou perdido. Enferrujo junto.

O vestido de laise 139 Mas já sou aquilo. E solitário como aquilo. Abandonado como tudo aquilo. Só não tenho uma grade para proteger o mundo do meu delírio abandonado. Por enquanto. Questão de continuar escrevendo. Onde está minha casa? Onde estive o tempo todo sem saber? Oculto, sim, no abandono das aparências? O céu de bico azul principiou se fechando.

21/09/2007 a 08/11/2014,

São Paulo, capital.

140 Thiago Sogayar Bechara A mão invisível

Talvez seja leveza a palavra capaz de resumir esses meus dois últimos anos penais. E algo me diz que este novo estágio atingido constitui para sempre um voo alçado. Senão, vejamos: Aconteceu em mim uma estranha transformação. Seu primeiro sintoma foi simples como querer livros menos duros e mais aveludados. Ah, sim, porque eles, aqui, nessa cadeia em que me vejo encarcera- do, eles aqui me trazem livros. Alfarrábios da pequena biblioteca aqui do vilarejo. Uma pequena cortesia que mereci pelos anos prestados à comunidade, na qualidade de medíocre professor de literatura, no tempo em que eu ainda achava que podia ensinar algo para alguém. Eles me trazem esses livros. Exemplares que me permitiram a leitura do mundo feita agora sem tantos com- promissos com a importância de cânones. Poder desejar estes vo- lumes de desimportância foi o início da minha bendita salvação. Foi assim, pelo menos, que ela se anunciou. Aparentemente tão inofensiva. Mas tão profunda que serviu de habeas corpus. Não do corpo, está claro. Habeas... mentes?

Meu nome é Jasel Ribeiro. Tenho quarenta e sete anos. Estou preso há três. O único crime que cometi foi um rol de crimes con- tra mim mesmo. E nenhum deles é a razão pela qual estou aqui. Seria ridículo, seria mesmo uma afronta, a quem quer que me es- cute, que esta razão fosse por mim revelada ou ocasionalmente

O vestido de laise 141 viesse à tona. Ela é irrelevante: mesmo vulgar, já adianto. Ela é injusta, vexatória e pouco reveladora da condição em que eu es- tava, quando vim preso. E menos ainda do homem em que aqui me tornei, quando me libertei. Digo que me libertei, porque também preso se encontra alguma vastidão. E a leveza, no tempo presente. Ouço esta música suave ao piano entrar pela janela.

Não é mesmo, que nós agora convivemos? Ah, convenhamos que de modo até bastante sadio... Eu e a senhorita. Não é verdade? Existe entre nós... entre mim e... esta jovem dama feita de notas, uma amizade. Foi mesmo como um acordo (acorde!), em que seu despojamento do sentir passou a me invadir o coração, pela ja- nela, em forma musical. Aqui dentro faço pequenas caminhadas, durante o banho de sol. Mas como me é caro o momento de re- gressar. De me reencontrar com a força de sua pureza. Com a segurança inédita que eu nunca experimentei lá fora, em nenhu- ma das vezes em que me lançaram giz à cara, bem no meio da explanação. Não é incrível? Não foram raras as vezes. E pouco a pouco fui ficando menos hermético. Logo eu, o obsoleto profes- sor de literatura que gosta de usar palavras... obsoletas. Logo eu, lendo sem culpa as passagens mais tortuosas que tive na vida.

Sem moralismos inúteis é que pretendo deixar-me conduzir pelas lembranças que resolvi contar. Da janela da minha me- mória, vejo com tanta clareza os momentos vividos. É para isso que existo neste local. Para saborear no escuro a vida. E também para ser saboreado, porque estar preso sempre gera alguma ale- gria... para alguém. Mas, de toda forma, poder viajar - aqui den- tro mesmo. Fingir que ainda posso encantar o mundo com meu sorriso amarelo... de detento; e um deixar também encantar-se por ele: pelo mundo... e pelo meu próprio sorriso... amarelo... de detento.

142 Thiago Sogayar Bechara Ah, eu poderia ser hipócrita, mas já estou preso. Este mim- -mesmo de hoje será sem lentes corretoras. Parado, foi que me pus realmente em ação. Isso também me faz sentir mais leve. Até mesmo realizado. Os abutres da primeira cela não gostavam dis- so. Não gostavam nada. Eles me achavam suspeito, hostilizavam. Não poderia haver equilíbrio entre as instâncias da existência num cômodo como este. Eu só podia mesmo ser muito perigoso. Eles diziam que eu falava como quem escreve, com certa elo- quência; era o meu modo de estar no mundo. Mas para eles isso me distanciava ferozmente. Eu explicava que também tinha meus garranchos vocais, que eu tinha as minhas buscas e eles achavam que eu estava bêbado. “Sãos os meus garranchos. Todo homem tem os seus”, eles repetiam, esganiçando a voz. Não adiantava.

Agora finalmente flui uma onda de pensamentos claros sobre tantas coisas que antes não eram percebidas, apesar da minha pretensa erudição, que não servia para nada. Hoje eu quero go- zar. Gozar muito, litros... mundos, quilos, risos. Gozar sem culpa. Adentrar a vida com meu falo seguro de si. Flagrar minhas mãos de homem; um homem-mulher, feminino, sensível e raro. Mas, mesmo assim, fálico, masculino... ao mesmo tempo. Me ver ho- mem e me sentir macho, dono-dona da minha praia, rei da mi- nha selva e livre para cometer atos falhos... falhíssimos... agu- díssimos. Não é divertido? É divino. Minha leveza reside na am- bivalência entre o homem e a mulher. E o homem repousa na mulher... desde sempre... desde antes de nascer, porque não há nada mais livre e lindo do que a fêmea... a fêmea que seduz sem se importar com isso. Por essa razão, sou também mulher; uma mulher... fálica. Porque amo a mulher, porque aprendo a ser mais homem desejando a mulher. A mulher me humaniza porque

O vestido de laise 143 finalmente o contraponto com o feminino me fez enxergar a humanidade que é ser masculino. Só hoje, preso, dei-me o direi- to de libertar essas e outras tantas verdades. Muito prazer em pagar o custo disso, mesmo o custo sendo alto, doído, fruto de lágrimas densas, acumuladas desde tempos imemoriais, e não choradas até se alcançar algum prenúncio dessa claridade.

“Sou eu mesmo o trocado”, como Fernando Pessoa. Também ele um desajustado, tecendo livros de desassossego. Qual terá si- do o custo dele na Terra? Sentir, buscar compreender, até talvez- -quase-talvez! Mas compreender é iluminação, é prêmio. E tam- bém punição. Quando Prometeu iluminou com fogo a soberania dos homens, após roubar dos deuses a tocha do saber, o abutre comeu-lhe o fígado. Não sei ao certo, ainda hoje, se Prometeu agiu bem, roubando dos deuses o domínio deste conhecimento. Seu gesto heroico parece um tanto ambíguo. Se o fogo era dos deuses, ele não tinha nada que trazer para nós essa responsabili- dade. Não sem antes calcular nossa força para aguentar o fardo. Mas hoje pareço curtir essa zona híbrida, feita de contrasenso e paradoxo. Como o gesto mítico de Prometeu. De toda forma, uma zona iluminada pelo fogo. Agora que já está feito...

Antes, a falta dessa clareza me triturava e regurgitava de volta para uma aparência asséptica da vida. Gizes voando numa sala de aula. Um plano forçadamente, tragicamente previsível. Tão previsível quanto era o trajeto que eu fazia de casa até a sala de aula, dobrando sempre as mesmas esquinas, arcado, carregado feito besta, de livros que ninguém jamais leria. Um certo Padre Antônio Vieira, não o dos sermões, está claro, mas um cearense lá de Várzea Alegre, fazia campanhas pelo nordeste proclamando que o jumento é nosso irmão. Só se fosse dele, porque o burro

144 Thiago Sogayar Bechara de carga aqui, sem eira nem Vieira, carecia de irmandade. Quais- quer que fossem seus pares na vida. Mas era um desgraçado fi- lho único sem paralelas nem perpendiculares. Carente de uma individualidade que se prestasse ao relacionamento com outras. Será que Pirandello lidava no seu cotidiano com o fato de ser um, nenhum e cem mil ao mesmo tempo? Se eu aprender a lidar, volto a não precisar da minha escrita? Ou melhor dizendo: um dia hou- ve em que, de fato, dela não precisei? Talvez no útero. Não, nem isso, que eu rabiscava as paredes internas daquela cela. O útero de minha mãe já era o meu limite aquoso com tudo o que seria um dia o subterrâneo da minha memória seca.

II

Ah, muito prazer – eu disse a mim mesmo - Jasel Ribeiro, a seu dispor. A meu? A seu, sim. Ao dispor das boas aparências e das convenções. É, mas pelo menos até agora, eu não estive sozinho nisso. Ah, claro!, é que você sou eu. Somos a mesma coisa. Não? Não se faça de cínico. Não fica nem bem para um homem com a sua inteligência. Me perdoe, mas... há muito tempo eu não preciso da minha inteligên- cia. Também não precisa desdenhar. Você deveria saber que, sem mim, dificilmente teria chegado onde chegou. Mas quanta pretensão. Desde quando você se julga minha inteligência? Por essa razão, aliás, é que não me sinto só... Você não se sente. Já eu... Então? Então o que? Muito prazer! Em te reencontrar.

É para dizer que sinto o mesmo? – Nós dois por ve- zes conversamos…

O vestido de laise 145 Quando ele veio apresentar-se, contou-me coisas de sua vida pregressa que até para mim, que tinha sido ele, eram completa- mente estranhas. Ele havia sido professor, um estudioso da lite- ratura, um leitor voraz de contos de Tchékhov e romances de Tolstói (isso tudo eu sabia), até que num determinado momento de sua vida, ele cometeu um crime. Foi nessa parte da história que fiquei confuso. Essa informação, dita num tribunal gelado, fez com que eu enfim percebesse que éramos dois. Afinal, eu não teria sido capaz de reconhecer crime nenhum no gesto que ele cometera. Para mim, era tão pueril como autodefesa. E, contudo, fato, eu estava sendo julgado. Era, portanto, outro lado de mim que julgavam. Não eu. Foi nesse momento, acho, que nos distanciamos, porque, enfim, passamos a saber, a perceber a existência um do outro.

Em nossa melancólica infância, tivemos tudo que pensavam ser o bom e o necessário para se criar um cidadão. Enquadrado o bastante para não sairmos cometendo crimes. Nem mesmo os mais insignificantes. Tivemos aulas de música, frequentamos con- certos e peças quando íamos para a capital. Castigos, poucos. E ja- mais físicos. Meu pai fora um lorde. Senhor esclarecido de famí- lia emergente. Antes de se fixarem neste vilarejo, durante anos mascatearam pelas redondezas, certos de que seria esta a melhor forma de sustentar a família e reproduzir o padrão de que tanto se gabavam. O padrão ético, a correção. O trabalho digno. A for- mação religiosa.

Qualquer que fosse a intenção deles, não poderiam nunca ima- ginar o quanto eu desprezaria, no futuro, tudo isso. O quanto to- das essas instituições foram-me perniciosas e nocivas. Nós íamos todos os domingos à missa – a igreja foi a segunda das celas em que me vi encarcerado, depois da minha família. Tudo começou

146 Thiago Sogayar Bechara com a noção da obrigatoriedade. Não sou nenhum permissivo. Mas a justificativa daquela obrigatoriedade (ou melhor dizendo, a ausência real de uma justificativa) faziam com que as obrigações para com Deus assumissem uma feição obsessiva, vazia e, por isso, mais próxima da profanação e do pecado do que de algum sentido de religação.

Como éramos filhos... filho... único - pelo menos naquela altura -, era mais fácil aos adultos cuidar de nós. Minha avó fazia questão de nos levar à missa. Houve o dia da minha primeira comunhão. Conduzido para isso, naturalmente, de modo que não aventasse a possibilidade de não querer. Questionar nunca existiu. Então, com os olhos marejados de medo e culpado por não sentir culpa nenhuma; por não ter, portanto, o que confessar, foi que confes- sei, pela primeira vez um crime não cometido. Empurrado por uma mão invisível que insuflou meus pés e retraiu meu coração, fui jogado, por mim mesmo, naquela arena. Eu achava que era por mim mesmo.

Deixamo-nos conduzir pelas verdades que nos cercam. Hoje sei que essas verdades foram uma mão... invisível. E forte, meu Deus. Forte! Como a mão da culpa, que é a principal ferramenta de trabalho de quem se julga representante de Deus. Só mesmo a culpa obriga daquela maneira o enfrentamento com a própria vergonha; humilhar-se daquele jeito, à frente de um homem em nada superior. Foi como olhar-me ao espelho completamente nu e me sentir ridículo. Acho até que foi aí, e não no tribunal, anos depois, que comecei a perceber que, embora agisse de um jeito, havia outro em mim querendo dizer não.

Et nomine patris et filii et spiritus sancti. Quando me ajoelhei di- ante do confessionário, vi, por entre aquelas treliças carcomidas,

O vestido de laise 147 apenas a sombra de quem eu teria de encarar à luz, quando an- dasse pela rua e cruzasse com o padre Amaro sem querer. Eu não queria! Eu não queria, mas a culpa me empurrava para aquilo. E foi assim que, no dia da minha primeira eucaristia, confessei ao padre... Repetir o crime-primeiro. Mais um clichê dentre tan- tos alimentados pelas igrejas ao longo da História. Mais provável que ele tivesse respondido um lacônico: “Pois também eu, meu filho, também eu...”. Não deve ser nada fácil para eles, conve- nhamos. Não disse nada.

As palavras mal saíam de tão monstruosas. Elas cresciam nos meus pensamentos e entalavam na hora de serem ditas. Eu es- crevia Deus com letra maiúscula e, no entanto... Essas coisas que todo mundo faz. Verdade seja dita, são muitos os modos de mas- turbarmos a vida, repetindo gestos mecânicos em busca de um prazer passageiro, mas frequentemente nada legítimos. Eu bem devia ter pecado ali mesmo, instalando delicadamente meu Círio Pascal por entre os vãos da madeira, para que o padre compreen- desse de uma vez por todas como é bom crescer e se multiplicar. Devia ter feito. Eu soube, tempos depois, que ele teria adorado.

Não teria sido nada bom para a tua santa imagem. Cala-a-boca! Estou cagando para minha imagem. Gentileza gera gentileza. Gen- tileza gera gente-lesa. Você está sendo um bocado radical. Vai me prender? A cadeia é o local de maior liberdade que eu encontrei em toda minha vida. Daqui, não há mais para onde ir. Olha que te matam! Eu não mereço tanto. Essa é a única liberdade que existe acima da minha. Você se bandeou para a suposta equerda. Isso aqui dentro não existe. E, na verdade, nem lá fora. Presta atenção. Eu não sou tão vendido quanto você imagina. O conforto da aceitação

148 Thiago Sogayar Bechara não deixa de ser um pagamento, pois não? Puta. Pior você, que lutou tanto para ver-se livre das convenções e acabou preso. Pois sai- ba que eu amo esse lugar. O único mal de estar aqui é o fato de ter você junto. Você é minha cara metade. Pensa só: quando o padre deu a penitência, nós dois, eu e você, dissemos para nós mesmos: se pa- ra entrar no céu, basta pagar esse pedágio, para que deixar de pecar? Três Ave-Marias, quatro Padre-Nossos e tá feito! A gente até se acos- tuma. Eu não me lembro de nada disso. E se fizermos a concessão assim, sabendo que a estamos cometendo, justamente para nos dei- xarem em paz? Não deixa de ser também uma liberdade. Você mes- mo disse: se basta pagar o pedágio... Agora somos dois, dá para dividir o fardo.

Somos dois presos. Fiz uma opção, estou feliz assim. Pelo menos não entreguei os pontos. Naquele tempo, eu cogitava: se é logo que se nasce, ou então em qual momento da vida que uma pessoa entrega assim os pontos? Todos fazem força para estar sempre dentro de tudo. Mas eu tive essa vontade louca de desobedecer para ser finalmente meu próprio presente.

Da sacristia, logo vi-me ancião. Acumulando novas transgres- sões. No mundo de Cristo foi que me encontrei com a noção do pecado. E, cada vez mais, eu chorava. Chorava baixinho, agachado de cócoras atrás de uma poltrona antiga. Ou da cristaleira de ca- sa. Esperando a bronca chegar de algum lado, de algum jeito. A casa do Nosso Senhor pareceu muito perto das nossas casas mu- ndanas. O mundo é um grande bordel. As pessoas se vendem e censuram seus irmãos porque agem e pensam dessa mesma for- ma. Decidi viver a minha própria vida, até a última gota. Era o que eu ainda estava fazendo, décadas após a sacristia – não sem Deus, mas com o meu deus -; era o que eu ainda estava fazendo quando vim preso.

O vestido de laise 149 III

“Me solta! Solta! Sai daí! Dá o fora, seu...! Ahhh, obrigado, seu policial. Alguma coisa está acontecendo nesta cela, eu gostaria de entender. Desde que o som do piano cessou, tem sido esse tormento. Eles não param de me hostilizar, querem comprar bri- ga, me agredir. Sai! Como que piano? O piano. Olha... eu não sei o que está acontecendo. Não entendo a razão do incômdo. O meu incômodo é porque o piano parou de tocar. O deles eu não sei qual é. O meu é real, é concreto. Entende? Não entende. Tem for- ma de som. Eu até vejo o rosto dela sentada ao piano. Com seu vestido rodado, cor de champanhe... o espartilho demarcando suas ondas e trazendo para a tona o colo dos seus seios róseos... entumescidos, excitados por baixo da renda, eriçados pelo calor da cançoneta”.

Foi assim, desde que ela começou a tocar para mim.

Para nós, você quis dizer. Não, para mim mesmo. O som chegava- -me todos os dias, às quinze horas. To-dos-os-dias, às quinze, aqui na cela. Eu sentia que era só para mim. O que eles têm, sempre tiveram, é inveja. Não tinham uma cançoneta para eles. “Para ou- tra cela, seu policial? Vocês vão me tirar daqui? Mas... Não, é claro que eu prefiro ficar sozinho. Esses trogloditas! Só que... da cela nova eu vou poder ouvir? Tá, tá, tá certo, então eu vou”.

Nós fomos! Eles me disseram que eu não tinha querer. Falaram que eu já havia criado problemas o bastante. É boa. Eu era a vítima. Agredido, até fisicamente. Eles não suportavam minha paz. Não toleravam em nenhuma hipótese qualquer sinal do meu prazer e da minha felicidade por estar livre, vivendo a poesia de se estar

150 Thiago Sogayar Bechara numa cadeia. Como se todo o humor que viesse da minha leveza os ofendesse. Eu não entendo a razão disso. Para eles, era como se eu estivesse traindo a causa. Virando a casaca. Faz parte da regra do jogo não destoar demais. Principalmente quando se des- toa para melhor. Pensei que aqui dentro eu estaria a salvo dessas questões. Mas eles impunham a pergunta: quem é que pode ser feliz dentro de uma prisão, por um crime cometido com crença irredutível? Um louco, decerto. É o que eles pensam. Então eu respondi para um deles: eu posso ser feliz aqui.

Foi como se eu dissesse: comi o cu da sua mãe. Ele partiu para cima de mim. Era um insulto, eu era um conspirador. Onde é que já se viu? Felicidade em meio à úmida friagem de uma cadeia esquecida. Coabitando com a corja pútrida de uma sociedade tam- bém ela corja. Queriam que eu fosse um pária, como eles. Queriam mais um cúmplice. E eu disse não. Novamente esta pequena so- ciedade interna que se forma quando não cabemos na exterior, reproduziu fielmente o modelo aprendido. “Sou cúmplice apenas dos meus pecados”, falei. Mal dou conta deles. E acho que estar aqui dentro por uma razão que não considero pecado é problema a menos. E problema meu. Ou melhor, nosso.

Não, esse é só seu. Eu tentei avisar que aqui não seria diferente. Ah, mas claro que é, não diga asneiras. E, de mais a mais, estar preso é privilégio porque enfim tem-se tempo de expiar os ma- les que, de fato, cometemos. De que adianta? Nós nunca paramos de espalhar males pelo mundo. Todos nós já causamos mal a alguma pessoa. Você não, seu policial? Mais uma razão. Por isso, todos de- viam estar aqui, comigo. Então você teria de ser preso novamente, posto para fora. A loucura é ser sadio. E criminosos, todos somos em alguma medida. Mas a liberdade, quando excessiva, também deixa

O vestido de laise 151 fugirem as boas reflexões e os sentimentos. E os carcereiros lá de fora, mesmo sem esse nome, minam a clareza da existência porque legitimam-se com outras aparências. Mas lá estão. E não nos resta meios para duelar porque não se duela com o invisível. “Sai!”, eu tentava me defender no vazio. Cheguei a propor diálo- go, que ingenuidade. Eles não queriam só me cegar. Queriam me foder. Queriam me ensurdecer, naturalmente. Tirar de mim a mi- nha sensibilidade de músico que nunca fui. Queriam tirar aquele piano do meio da sala da casa da frente.

Aquelas mãos de pianista tinham de ser muito leves e finas. E bem torneadas, os dedos longilíneos, como a extensão do bra- ço gracioso, repousado sobre o peso de si mesmo. Equilibrado so- bre seu próprio eixo, navegando de um lado ao outro daquele ins- trumento que era todo meu universo. Foi quando ele... o meu... outro... começou, deliberadamente, a cortejá-la. Achei aquilo um verdadeiro desaforo. Fui para a outra cela. Não criei problemas. Eles foram honestos quando me asseguraram de que eu ouviria de lá meu piano. Minha pianista. E quando nos mudamos, ele veio com essa para cima dela:

- Eu disse a ele que podíamos muito bem conviver os três em har- monia. Ele, com essa obsessão do pronome possessivo, ainda cai em desgraça, querendo aprisionar uma dama tão liberta quanto a senhorita.

- Psiu. Cala a boca! Ninguém aqui está querendo aprisionar ninguém. Ela entra aqui todos os dias, às quinze horas, porque quer. Diz a ele. Mas ouve então você mesmo o que ela diz, meu caro. Para bom ouvinte, meia ária vale pela sinfonia inteira.

152 Thiago Sogayar Bechara Enquanto isso, os policiais, certos de que nós dois éramos loucos, diziam, apenas para mim, que embora não tivesse querer, eu ainda assim ouviria, da nova cela, o “meu” piano. E aquilo deixava de ser apenas um pronome possessivo e assumia um tom de perjúrio, como se subestimasse a única coisa que realmente era valiosa para mim. “Não se preocupe”, diziam, com um sorri- so perverso. “Não se preocupe com seu piano. Você vai conti- nuar ouvindo o seu piano. Olha aí, galera! Silêncio que o rapaz quer ouvir”.

Eram muito sofisticados. Eu já não era nem rapaz. Será que eles achavam que só eu ouvia? Eles achavam que me humilha- riam falando daquela maneira. Eu percebi... Mas me alegrei por- que, afinal, eles foram honestos. De fato, continuei ouvindo o meu piano. Já eles... Cada som, cada nota ferida, criava um sen- tido na minha mente... do mesmo modo como são armados cada um daqueles acordes pelo teclado. Às vezes, dissonantes, iam gerando em mim pensamentos tão reais. Então eu passava a bus- car na vida algum correspondente para o que acontecia comple- tamente anônimo pela minha alma.

Só que a beleza de um acorde... (daqueles acordes)... ela não se encontra na vida. Porque o acorde é o que ele mesmo diz: uma ordem para que o mundo ACORDE! É a vida depurada, a vida destilada... para ser bebida cowboy. É a vida transformada por al- gum processo de purificação. Então entendi que aquele piano era meu filtro para atingir o mundo-cowboy. Para não deixar de estar fora dele. Entendi que eu também era para aquele som a tradução de algum universo. Mesmo que ele não me soubesse. Mesmo que não me compreendesse, eu filtrava o som para dentro do presí- dio. Éramos dois prismas, se autorefletindo. Estavamos embebi- dos um no outro.

O vestido de laise 153 A pianista não sabia de nada, evidentemente. Ou melhor: não conscientemente. Mas ela tocava. Todos os dias, durante trinta ou quarenta minutos, que eram para mim a minha rendição, por- que me desarmavam. Não sei até hoje se ela era professora ou aluna. Se era compositora. Se aquele era o ensaio da função da madrugada, ou se tocava para nós, seus vizinhos detidos. Mas aprendi a lacear os nós. Se era homem? Não, isso não era. Eu sei sabendo. Essas coisas a gente sabe, ó seu policial.

Que intuitivo... Cala a boca. Olha que assim a moça se assusta. Se assusta com essa tua cara de vendido. Ela é inteligente, bem se vê. Capaz de discernir entre a mediocridade instituída, preocupada em bajular, em nome da ganância pelo poder, por menor que seja, e o gesto genuíno da coerência, a delimitação do que se é. Porque só sabendo melhor quem somos é que nosso limite para com a loucura dos outros fica definido. Ela sabe tudo isso, é? Sabe até mais. Quem toca o piano como ela, não ignora a essên- cia da sua plateia. Muito bem. Suponho que tenha razão. Mas você falou aí de ganância. Você julga que, sem mim, resulta vazio de am- bições? Ora, que doce provocação. Bem se vê que, mais cedo ou mais tarde, aconteceria tal confusão. A diferença entre minha ambição e a sua ganância está no modo com que as buscamos. Minha ambição é estar bem comigo. O que vier, então, é que já era meu. Já a sua, é estar bem para o mundo. Olhe para você, so- zinho. Nem companheiros de cela tem mais. Melhor assim do que acompanhado deles. Você fala como se fosse pecado querer ser aceito. Ser amado.

Não a qualquer custo. Silêncio.

O que houve?

154 Thiago Sogayar Bechara IV

Aconteceu de o relógio soar quinze horas... quinze e cinco... quinze e dez; e um silêncio inundou minha apreensão. Quinze e vinte. Primeiro, fiz um gracejo solitário; um desprezo encenado, zombando do seu atraso. Depois, uma impaciência... infantil, can- sada de esperar que a sinhazinha estivesse a postos. Comecei a inquietar-me. Quinze e trinta e cinco. Por fim, a cogitação de que aquela poderia ser uma tarde em silêncio. Quinze e quarenta. E, imediatamente em seguida à cogitação, remota e banal, o ódio por aquele pensamento que não tinha cabimento. Quinze e quarenta e três... Coisas sem cabimento geram ódio. Por fim, o desespero!, um tremor, a nostalgia. Quinze e cinquenta e cinco. Uma frustração enorme, um medo profundo da solidão.

Entrei em abstinência daquele som às dezesseis. Era um pro- cesso físico, certamente. Tanta energia empreendi para buscar no infinito do silêncio uma primeira partícula sonora que fosse, que anunciasse o início de qualquer canção. Eu queria reencon- trar aquele Jasel que eu fora um dia. Fraco, capaz de subjugar- -se para ser aceito. Queria voltar a ser um só. Aquele criminoso contra si mesmo, que cede por um suposto bom convívio com o mundo. Para ser tolerado. Sim, porque aquele silêncio era a rejei- ção do mundo. A impaciência do mundo em relação a mim levada ao limite. O horror do mundo contra a bipartição da minha exis- tência. Contra um Jasel que não se arrepende de seus crimes. Eu queria liquidar com aquilo.

Você sabe que ainda tem a mim dentro de si.

O vestido de laise 155 Cala a boca! Já disse. Afinal, que mão é essa que nos cela? Que nos empurra a agirmos contra nós e que nos aprisiona? Que mãos? Porque é plural. Quais são as mãos que fecham o gradio da cadeia? Estamos cercados o tempo inteiro. E eu ainda estava nisso, às dezessete. Foi quando me esvaí em lágrimas, num torpor apavorado. Esgotado e banido de qualquer possibilidade lógica. Não havia mais como duvidar. O dia já acabava. Eu nem havia visto o tempo passar, tamanha a minha conta das horas; minha consumição em constatar, incrédulo, o ponteiro do relógio chegando às vinte e três. E foi forçoso assumir, mas não houve meios de o negar; naquele dia, eu tive de pegar no sono sem ouvir. O meu piano. Teria de dormir, certo de que jamais reencontraria o outro que fui. Ele sumira de repente.

Será que eles fugiram juntos? Ele e a mão invisível da pianis- ta? Aquele filho da puta. Ou ele já estava morto? Tremenda peça me pregou. Induziu-me a achar que ele morreu para voltar e zás. Mas quando entendi que ele continuava aqui dentro, então é que sumiu. Foi-se com o som da janela. E, exausto, com as costas em frangalhos, pus o colchão ao pé da parede em que fica a pequena abertura por onde as cançonetas entravam, como se me estives- se apegando ao que houvesse de mais próximo do meu piano. A parede da pequena abertura. A que eles dão o nome de janela. Ao mesmo tempo estava contra ela justamente porque era ela que me negava a minha própria vida. Contra ela. E então morri. Tudo que não está previsto, de certa forma é crime. E refletir sobre a morte leva sempre ao imprevisto. Morri, novamente cri- minoso, como se morre a cada dia; como morri quando encontrei- -me bipartido, como se espera a cada segundo pela ressurreição, a cada noite. Morri.

156 Thiago Sogayar Bechara V

Talvez leveza seja mesmo a palavra que me rege nesses novos dias. Cada vez mais eu noto. Eles me trazem livros, tomo banho de sol e faço atividade física; essa é a minha vida atualmente. Agora a cela é apenas minha, o que, em verdade, nem seria mais preciso, afinal há meses o piano parou e concentrei-me em meu contentamento de um modo que não os incomodaria mais com isso. Entendi o que tanto afligia a gente da primeira cela. Não estou aqui para diminuir ninguém. Nem para obrigá-los a ser felizes, se não quiserem. Cada um que use a felicidade da manei- ra como bem entender. Eles devem tirar algum proveito disso. Como um dia eu mesmo talvez tenha tirado. No começo, logo em seguida ao silêncio do piano, achei que fosse enlouquecer. Era uma cama vazia, depois de anos de um casamento feliz. A solidão do corpo. A inércia da mão em busca de autopiedade. O oco do mundo que em nós passeia. Em busca de algum cheiro, algo re- conhecível. Mas, em seguida, vi que nada efetivamente mudara.

Nada mudou nem nunca mudará. Talvez na aparência, sim, eu tenha me tornado outro. Ou no modo de lidar com meu entor- no. Está nessa instância do “lidar com o entorno” a leveza em que vivo. E penso, bastante satisfeito, que é já alguma coisa. O mesmo encanto, para cada um, revela-se como um segredo único enfim desvendado. E quando tudo se ilumina, parecemos ser sempre as únicas pessoas capazes de entender aquele fenômeno. De receber, enfim, as chaves que nos tiram da nossa própria cela.

As chaves...

O que é que você está fazendo aqui?

O vestido de laise 157 Você mudou, tornando-se o mesmo. Também eu bebi deste cálice, tornando-me minha própria essência, sem deixar de me manter eter- namente igual a você. Foi rebelando-se contra mim que você veio pa- rar aqui. Agora serei eu quem te soltará. Acho que nos devemos esse aperto de mãos invisíveis.

Psiu. É ela, ouça…

VI

Sorrio pelo teu retorno. Confesso que não te esperava. Agrade- ço, mas... não preciso mais de ti. Quando não precisamos mais de alguma coisa é que realmente podemos nos dar ao luxo de esco- lher tê-la. Já disse, estou livre. Sou feito pluma. Voa também tu, com tua música, senhorita. Não aceito beija-mão. Não me venha com salamaleques. O tempo do Império acabou. Aqui não tem Pedro Nenhum. Insistes em me cortejar. Que dama audaciosa, hã? Bovary do novo século? De todos, este é o mais antiquado, o mais perverso dos séculos; o que aprendeu com as crueldades dos anteriores e as depurou.

Cuidado para não caíres na tua própria desgraça. Queres ago- ra passar a mão pelo colchão vazio da nossa cama? Vive tu mes- ma a dor do teu silêncio. Peca tu: contra quem achares mais conveniente. Peca contra teu vizinho, se queres conselho. Peca contra mim. Já não estarás cometendo crime inédito. Eu, por meu turno, encontro-me imune. Faz o que te digo. Se te voltas con- tra ti mesma, acabas enclausurada na tua própria cela. Contra outro, que não tu-mesma, é que não te mandarão ao calabouço.

158 Thiago Sogayar Bechara Se for esta a tua angústia, apazigue-se. Porque, para que neste país, no tempo que vivemos, sejas merecedora de algum degre- do, só mesmo se atentares contra tua própria integridade. Como atentei. Contra o outro, dificilmente.

Não, não te vá. Eu ainda não terminei. Se a dileta pianista pen- sa que é tão honrada que não sirva de escárnio para teu povo, olha então para dentro do teu decote até entrares por inteiro no peito que guarda tua essência prostituta. Fica! Fica e me ator- menta. Porque te desprezo. Porque aprendi a viver sem ti, por- que não mais te quero. Faz-me de novo escravo da tua bondade, e estarás livre, pelo indulto da impunidade. Fica e me diga quem és tu. As damas perversas do teu salão seguem sempre encon- trando maneiras de amarrar a todos nós em seus julgos e crivos.

Estaremos sempre presos por algum membro ao código. Um braço, uma perna. E por mais presos que estivermos, nunca es- taremos a salvo totalmente. Peca contra o outro, já te disse e ago- ra fico farto de to repetir. Vejo agora uma miragem vertiginosa em que me lanço a cada dia. E olho para mim lá ao fim daquele penhasco e penso: que as cenas do meu próprio monólogo um dia estarão penduradas em meu molho de chaves, tilintando incerte- zas pela madrugada, agora tornada dia: e abrindo o ciclo de novos – e tão velhos - recomeços.

Ribeirão Claro, Paraná, 2014.

O vestido de laise 159 O molho

Sou eu o velho senhor das chaves que ronda encantado pela madrugada da casa, encerando o chão com seus pés de veludo. Eu, o gato pardo se esgueirando pelos cantos sombrios do sobrado, abrindo portas, vistoriando as geladeiras, esquentando o coração com a paz da noite. Sou eu quem abre portas e celas. “O emissá- rio sem cartas nem credenciais”. Eu, a fonte permanente, inesgo- tável de loucura mansa, sombreando o alpendre enquanto todos dormem. Sou eu, à brisa fria, batendo as ferragens dos toldos contra as muretas de alvenaria. Sou eu o gato vivo, grande e gor- do, gato branco salpicando o telhado feito pés de gente, enquanto um ronco de motor distante ao chegar perto se revela vento forte num crescendo, até uivar feroz. Enquanto isso, abro e fecho portas, andando com o molho de chaves de todos os cômodos da casa tilintando entre os dedos.

O escritório, a cozinha de dentro, as portas de vidro do salão principal e as trancas de ferro que dão para os quartos. Sou eu o senhor deste molho de chaves. Eu, velhinho de barbas vetustas e muito longas, um velho casaco de mujique russo sobre os om- bros, feito alma detentora dos umbrais; o cobrador do pedágio, o lavrador da vida deste imenso quintal que se abre e fecha como a flor desconhecida da noite, ao toque do meu sexo revelador de escritórios e geladeiras. A fome da vida, o cio de todo um legado

160 Thiago Sogayar Bechara nas mãos velhas e magras que seguram seu molho. As chaves mes- tras que destrancam o mundo todo num sorriso. Sou eu, descul- pem, esta figura híbrida e mágica desatadora de nós e amarra- dora de outros. Este velho Tolstói oracular que detém a doçura e a tirania num girar de chaves. Figura fantasiosa das antigas fá- bulas, sou eu o onipresente pai dos novos caminhos; o bandei- rante de mais esta noite em que nos protegemos atrás de por- tas trancafiadas.

Sou eu quem abre a própria vida para o escárnio e a louvação. O único que tem a coragem de ter as chaves e ainda usá-las, a descortinar futuros, a dar choques, provocar misérias e opulên- cias. Eu, a chave para a aceitação do não e do sim, ao mesmo tempo. A luz e a sombra passam pela mesma porta de vidro, com ou sem chaves. E mesmo as paredes, por vezes, podem tão pou- co. Mas no que concerne ao mundo das trancas, sou eu mesmo o velho encantado. Rondando a cidade, arrastando seu manto imundo e benéfico para o plantio do porvir.

07/01/2014,

Ribeirão Claro, Paraná.

O vestido de laise 161 Quando escrevo, é de noite7

Tenho dormido tarde ultimamente. Aproveitado o que a noite possa ter de útil. Toda hora do dia em que eu escreva é de noite e, por isso, vejo que esta é, de fato, a melhor hora para se estar vivo. Quando canto, também algo há de noturno e me envelhe- ce. Minha paixão pelas palavras é a mesma que nutro pela chuva. Só que não sei chover com elas. Nem molhar o coração de quem me lê. O meu, sim, inunda-se. De não palavras.

Chover legitima a existência das coisas. Parece que com o chão molhado elas existem mais. Ficam realçadas pela nossa de- satenção sobre elas. E eu precisava dizer sobre isso. E sobre co- mo me comove ver que elas existem. Elas todas como prédios, carros, asfalto, fiação, escapamento e sabiás. Para tudo, há uma alternativa de ser. Vai-se sendo assim ou assado. E quando chove, também é uma espécie de assado. Um jeito outro de ser o mesmo. Cada gota traz em si o reflexo do mundo onde cai. Olho da janela estes espelhinhos caídos do céu que apresentam para mim seu

7 Publicado originalmente na página 286 da coletânea “Antologia UBE” (Ed. Global, 2015), da União Brasileira de Escritores, organizada por Joaquim Maria Botelho e lançada em 23 de março de 2015 na Academia Paulista de Letras, em São Paulo. Do mesmo volume fizeram parte autores como Antonio Candido, , Menalton Braff, Renata Pallotini, Ruth Guimarães e outros.

162 Thiago Sogayar Bechara teatro mágico. Misteriosos, porque também cantam. A minha voz, sim, eu sei molhada. Mas na chuva, é seca. Enxuta e bela como o gesto sábio de um monge. Apenas necessária. E essa contenção me obriga a ser passivo e a aprender rapidamente os ensina- mentos da chuva antes que ela pare. Antes que faça doer de novo a consciência de estar vivo. Como agora.

Aí então passo a dormir mais tarde. Se é que há algo de útil na noite, senão a anestesia de saber-se resguardado. De qualquer forma, há minha simpatia por ela. E é tão bom ter algo por que sentir essa incondicional simpatia, que isso me acarinha. Será que escureço meus leitores, como se no momento em que se abrissem meus livros esta névoa de anoitecimento levantasse ta- mbém de suas páginas? Essas dúvidas vêm me tirando o sono, me obrigando mais e mais a pensar nelas e a escrever mais livros. O que é isso, afinal? Algum tipo de destino que não espere de mim menos que uma grande resposta a isso tudo? Não. Isso sou eu quem me cobro. Mas um destino que persiga a ideia de que a mim fora dada a inquietação da lucidez? Que lucidez é esta, se quanto mais me busco menos encontro quem de fato eu seja?

Talvez eu nem seja nada e pronto. Nem ninguém. E não há cau- sa para texto algum. Nem mesmo destino haja. É que tudo se re- sume ao já e, neste já, algo está me deixando aberto como um pedaço de carne talhada sobre a mesa. Inconcluso por não ter aprendido a ser. E é neste já que tudo ocorre. Mas não se trata de complô do acaso. Estou, ainda, em tempo de esquecer-me en- quanto centro de qualquer coisa que seja. Mas há meu sofri-

O vestido de laise 163 mento e esse ninguém me toma. A certeza da lacuna aberta.

A noite, em mim, é o dia de um eu perfeito e sem lacunas. Eu seria todo durante o dia. E pronto. Gozando do que eu fosse e do que os outros saberiam que eu era. Mas uma parte de mim ainda tem de ser à noite. Não há como prescindir desse momento. Seria luxo ter o aval de tanta luz + acidez = lucidez. Digo isso porque é nessas horas que aproveito para projetar novamente tudo que desejo de minha antimatemática existência. E sabendo-me, por hora, incapaz de executar o projeto e resolver a equação, ainda tomar fôlego para mais um dia de incubação deste novo eu que me pergunto se algum dia haverá.

Entretanto, ainda sabendo dessa não serventia utilíssima da noite em mim, há meu amor, o que a torna bem-vinda em qual- quer circunstância e isso me surpreende. Surpreende por não haver motivo para se estar surpreso. É que em toda minha vida não há ineditismo em amar incondicionalmente as coisas. E quan- do amo, entretanto, me alivio e me espanto. Por que não simpati- zaria com a noite que me traz, senão salvação, alívio momentâneo?

Deixei a antiga casa de Ribeirão Claro e vim-me embora para São Paulo ter a vida que eu não pedi a ninguém. Estou bem. Ao menos por estar vivo. Tem tudo transcorrido – isto é tudo. É o que importa. À noite é quando o mundo baixa a guarda e deixa em paz a angústia dos que se atormentam ao saber que alguém pode ainda não ter se deitado.

164 Thiago Sogayar Bechara Mas faz parte da calmaria sabê-la frágil. E todo mar, ainda que manso, é fundo e desconhecido. Assim é o dia em mim, aguar- dando seu término. E eu duro o tanto quanto for profundo esse oceano. Por isso é que, mesmo desatento ao chão molhado, algo nele me realça a certeza de pertencimento a um universo, a al- guma lógica. Porque de solidão já basta esta de ser dono das palavras que me escapam. Que chova, mas que todos saiam en- charcados. Por isso deito em seus úmidos braços e bebo cada gota desse bálsamo sagrado. A garantia de alguma existência nisso aqui.

27/08/2007,

Ribeirão Claro e São Paulo.

O vestido de laise 165 Harmônica

Imprevisto, sim senhor; sua professora de harmônica a rasgar, sem pena, folha por folha a primeira valsinha que você foi capaz de compor e, ainda assim, manter-se atônito, armado em frialda des diante do crime, olhando as migalhas da partitura perderem- -se. Geladas, para sempre defuntas, nas lajotas encardidas do chão de ardósia. Sua letra tão bem torneada sobre o pentagrama, a cada semifusa. Qualquer coisa seria menos criminosa para um futuro músico do que não agir sobre esta mulher. E eu não fiz: nada! Nem sequer a matei. Nem me tornei um músico. No que errei gravemente. Quem nunca teve esse instinto? De matar e de se tornar músico. Sufocá-lo foi outro crime cometido contra mim mesmo para evitar deus sabe o que...

Mas o ímpeto de partir para seu pescoço mole e vê-la afogar com a língua de fora, e os olhos esbugalhando para quase caí- rem das órbitas sobre meu colo... sem desespero... apenas... ash... esse ímpeto eu tive. Dentro do código, contudo, não transgredi. Porque, para o código, às favas com a intenção. Pouco importa que essa ideia se me tivesse surgido com certa vivacidade. Só não agi, por naquele tempo eu ainda não estar claro como hoje. Curei-me. Neste presídio que é os meus pensamentos a tanger re- banhos tantos. Teria sido bom também estar aqui por causa dela.

166 Thiago Sogayar Bechara Teria...! pela capacidade de deixar-me solfejando ao hall e ir ver telenovela, ao cômodo pegado. Era o quarto de visitas, onde poucas vezes estive. Ficava num plano mais alto que o da sala ordinária, ao rés-do-chão onde eu teoricamente recebia aulas prá- ticas, de modo que ela subia dois degraus e corrigia as notas lá de cima de sua petulante guarita, a gritar displicente, e ao mesmo tempo numa indisfarçada raiva - porque precisava de mim: “Er- rado! Errado! É Sol sustenido!”

Quando perguntei aos carcereiros se ouviria o piano aqui da cela nova, eles me disseram que eu não tinha querer e que eu dormisse, porque não havia piano em lado algum. Entendi, pois, que até querer é um tipo de habeas corpus, de acordo com a gravida- de dos nossos pecados (o status do meu crime não me concedia o direito de querer); de acordo com a gravidade do pecado, mas, claro, antes que me esqueça: de acordo com a utilidade que esse pecado possa vir a ter para alguém. Alguém que, evidentemente, detenha o poder de autorizar: que você queira ou deixe de querer compor suas próprias modinhas.

Março de 2014-2016,

Ribeirão Claro, Paraná.

O vestido de laise 167 Maxixes de outro

Para Mário Sérgio Baggio

Anos depois, tentando decalcar-me da voz da professora de harmônica que me rasgara as partituras recém-compostas, cami- nhava eu rumo à dentista quando detive-me de modo premedi- tado em frente à casa geminada ao consultório. Era ali. Entrei, para devolver à viúva do antigo acordeonista da cidade as parti- turas com que me presenteara há alguns anos, logo quando do passamento do marido. E apenas isso. Mas algo em mim rever- berou feito o fole silencioso da minha sanfona. É que se desfazer de algo que é seu e que, ao mesmo tempo, pertence sentimental- mente à história de outra pessoa é como dar adeus a um defun- to que, em verdade, não existiu. É enlutar-se pela morte de algo vivo. Ou despedir-se de quem não chegou e que, portanto... ah, como queiram.

Eram tantos boleros, tangos e maxixes de outro, que nunca tive a coragem de abrir o fole para executá-los; e assim foram-se meses nesse pudor. Mas que no fundo era mais o temor da apro- priação do que nos é alheio. Vivo também nesse tempo das coi- sas que nasceram objetos para pertencerem sentimentalmente a alguém. E não adianta mudar de casa. A doçura do lar continua. Só que com aquela tortura eu já não podia.

168 Thiago Sogayar Bechara Saí com o Sol para devolver aquele grande saco cheio de cho- rinhos, Pregoneras e Nazarés. Depois, prossegui meu trajeto res- tante rumo à dentista. O horário anterior era do meu pai. Lá fui ter para encontrá-lo. E o som do motorzinho obturador, mistu- rado à voz dele por entre os dentes fez com que eu entrasse pela sala e em sua música titubeante de motor, sem nem pedir licença. Receio dizer, mas arriscarei: também ele, sim, o motor, tem sua partitura que não é só sua, mas afetivamente do ofício que lhe impõem.

Era jogado para o alto em agudos dilacerantes e depois tom- bava num vertiginoso oscilar, ir-e-vir das entranhas da vida; ou- tro fole a soprar a identidade em sua alma. Incorporava o som da vida frenética em si de modo exuberante e, enquanto eu espe- rava meu pai sair da sala e dar-me a vez, o danado sabia travestir- -se até de motorzinho. Fingi não dar por isso. Era como uma voz interna que se imbricasse por frestas e becos, minha pseudo- protetora, vigia de mim, capaz de extrair dentes e almas. A voz daquela mulher que certa vez rasgara a minha primeira valsinha.

Em todo caso, a situação manda fazer constar o alívio que me invadiu após devolver aquela pilha imensa de papeis à viúva do acordeonista. Até porque, há tanto tempo eu me culpava por não me lembrar mais o pouco que soubera sobre ler música, que livrar-me daquilo tudo foi como redimensionar a força das mi- nhas cobranças. Não só neste sofrível relato, que também é par- titura. Mas de outras formas, fazendo com que certas canções não saiam nunca da agulha da minha vitrola, que são meus olhos: e olhar me torna capaz de ouvir (poucas vezes de ver; em todo

O vestido de laise 169 caso...). O fato é que me senti aliviado. E o motor parou seu cantochão patético – sutilmente feito para ser visto – dentro da boca barbuda de meu pai.

Não saber mais ler partituras voltou a ser, naquela sala odon- tológica, destas coisas que não nos fazem mostrar os dentes. O aborto da música na minha vida tanto me fere. Não digo bem aborto pois, como falei, enxergo e ouço, e a canção persiste até nos moucos. Que dirá nos loucos. Trago um rádio ininterrupto no interior dos ouvidos. Mas o processo sistemático da apren- dizagem foi suspenso e, este sim, foi o aborto de que falo – cantar todos os dias no chuveiro não pode ser também uma escola?

Revivida essa angústia de esquecer o aprendido, tomei uma xícara de chá com formigas na pequena cozinha do consultório, cheia de invisíveis insetos em busca de açúcar, rapidamente lu- tando contra o tempo da minha escrita – voz em punho - porque meu pai saiu da sala e eu estava prestes a ser chamado, boquia- berto. Será o fim de meses escusos, esquecendo o fio dental. Bronca. Orei para estar tudo bem, em ordem. Sou solicitado. Por meu pai. Em vias do desvendamento. Dobro o papel, guardo-o no bolso. Afasto a xícara vazia com algumas formigas ainda vivas. Chacoalham patinhas a nadar. Sou eu me debatendo. E agora, sim, chamado. Pela doutora. Para a cadeira.

2014-2016,

Ribeirão Claro, Paraná.

170 Thiago Sogayar Bechara Para Ana Lucia Torre

“Não gostaria de ser visto como um homem saudosista”, disse André, “mas era clara a predisposição de espírito para um bom gosto superior, quando o assunto fosse a inteligência, a arte do diálogo, a cultura!” Marcos era seu amigo desde os tempos dos cueiros, e discordava com frequência das elucubrações filosóficas a que o companheiro se costumava entregar. “A predisposição de espírito de quais homens? No nosso tempo havia por acaso a liberdade de pensamento de hoje? A folga com que a nova era abre caminhos para o intelecto, desvendando meandros até então insuspeitos do cérebro e do coração!” Era quando André ria-se das predisposições médicas de Marcos, que era enfermeiro. Tudo analogias de centro cirúrgico. Pois ficasse o nobre amigo sabendo que o espírito e o corpo funcionavam de forma conectada. Estudos comprovam a superioridade do cérebro humano neste século. De resto, era uma ideia fantasiosa a de que as pessoas fossem mais cultas ou interessadas nas atividades do espírito. André se inflamava: “Ah sim? É o que me tem a dizer! Quer então me convencer a mim de que havia entre nós, na faculdade, os energúmenos mentais capazes das atrocidades que hoje assistimos pela televisão? Para não mencionar a onda de vulgaridade musical, como mero exemplo

O vestido de laise 171 da lama em que o capitalismo nos lançou!” E Marcos se impertigava sem acreditar no que ouvia: “Meu caro, mas como podíamos nós saber das atrocidades televisivas a que se refere se nem televisão tínhamos?” E a conversa estendia-se por horas, num prazer que há anos ambos nutriam pelo desafio que era buscar argumentos contra a inteligência do outro. Estivessem em qual lado fosse, de qualquer assunto, o importante, a regra mesmo da plena convivência, era divergir; antes como forma de fornecer ao outro o trampolim que impulsionaria o salto de uma sacada brilhante, do que com o intuito real de desancar a validade dos argumentos a que se contrapunham. Era uma amizade. Erigida sobre as fundações da diferença. E o gozo silencioso de afirmarem-se a si próprios, muito intimamente; de serem capazes de amar o que se lhes distinguia, era o principal fermento de júbilo, pois isto era prova de uma generosidade de olhar para o mundo, reflexo de suas grandiosidades afins e de admiração recíproca. E tanto mais intenso era o prazer quanto mais grave fosse a radicalidade da discordância.

Thiago Sogayar Bechara 16/08/2016, Sao Paulo, capital.

172 Thiago Sogayar Bechara Antonico

Uma frase, disse-me um dia Antonico, qualquer que seja, é sempre como um passo para a própria vida, e respirou com ur- gência, como quem nascesse. Como um passo para a vida: uma vez dado, tem de ser concluído; uma vez iniciado, precisa de finaliza- ção para que não se caia no desequilíbrio de uma perna só. Como o gesto de um pintor, em que cada pincelada tem seu ciclo. Quantos dão-se conta da responsabilidade que é começar uma frase, tin- gindo com uma primeira palavra a folha de papel invisível da vida? É como entrar num túnel sem retorno, sabendo que o risco de se perder no labirinto até encontrar a porta de saída é tão pe- rigoso quanto inevitável.

Escrever, ato de fé e coragem. É um destemor perante aquilo que nos suga e que, portanto, obriga a soluções inadiáveis, ainda que provisórias, já que parece não existir nenhuma chance de se abandonar uma frase em meio sem que soframos as consequên- cias. Ela sempre nos perseguirá, voluntariosa, cobrando o cum- primento de seus caprichos. Como um tumor crescente em forma de assombração, virá de noite sussurrar horrores aos nossos ou- vidos. Eu sei porque já tive experiências aterrorizantes com pa- lavras, em que uma frase perneta mancou feito morta-viva até meu quarto e penetrou meus sonhos de menino em busca de sua face amputada.

O vestido de laise 173 Quanta dor em seu rosto aleijado. Quanta ausência de sen- tido, quando na verdade frases servem justamente para por al- guma ordem neste plano tão caótico da existência, em que nada de fato significa ou possui função pré-definida. Quanta distor- ção naquela frase medonha que não existia para nada - a despeito de cada uma de suas palavras sendo sacudidas como tentáculos sobre mim, esbanjando sua incompreensão de si mesma – que não existia para nada, posto não cumprir a única obrigação que se pede de uma simples estrutura gramaticalmente organizada.

Simples, geradora de insondáveis complexidades, como o leitor arguto teria podido testemunhar ao contato com Antonico, caso eu o tivesse terminado de escrever, tal como o vi em meus pensa- mentos. Pensar devia ser também gesto estético, pois busca dar algum sentido à frase inconclusa que é a obra inédita e quase fa- dada ao anonimato desta personagem artefeita, talhada por seus sonhos tecidos de escombro, mesclada à sua própria ficção. Ou tal- vez nada disso nunca venha à tona. Por isso este registro, para ter no coração as frases que ele um dia sussurrou ao meu ouvido...

Sempre quis dançar com as palavras. Entrar em seu ritmo, por meio de meu contato físico com elas. Entrar propriamente em cada uma. No entanto, agora serás tu, que me lerás um dia, já no escuro de minha morte, que bailarás sobre as minhas palavras. E eu bailarei contigo, tocando seu corpo, e então seremos par- ceiros eternos de contradança nesse intermezzo que é a vida.

2012-2013,

Ribeirão Claro, Paraná.

174 Thiago Sogayar Bechara Um sonho de laise

Na madrugada anterior, Jussara tivera um sonho que lhe des- coseu a alma. Seu avô materno, que morrera de doença duradou- ra há sete anos, vivia ainda, e encontrava-se internado à Santa Casa da cidade. Nós da família, contou ela, tínhamos nos esqueci- do dele. Completamente. E a Jussara do sonho já lidava há muito com a memória do avô como quem lida com a de um morto. E, sem notar, a menina desteceu um ponto que dera errado no vestido novo que lhe encomendaram, sobre o qual se debruçava enquan- to narrava o pavor de seus dormires à dona Mercedes, a patroa. Melhor, prosseguiu ela, nem sequer lidava com a memória dele morto; havia muito tempo, anos talvez, que simplesmente tinha- -se esquecido do avô. Como se nunca houvesse nascido.

Recapitulou o que pôde do sonho, buscando cerzir os fatos desconexos ao seu modelo desenhado pela cliente, de modo a usá-los para segurar seu mal-estar numa nesga da memória:

- Foi numa conversa lá em casa; lembro que estávamos eu, a senhora, mamãe... Ah! Sim. A vovó também. Foi quando, em torno da mesa, veio à tona para mim a lembrança disto, de que não o tínhamos enterrado e que, portanto, vovô ainda esta- ria vivo; não foi sem grande vergonha que perguntei sobre ele, como se pergunta de um primo distante que se casou e foi

O vestido de laise 175 morar fora do país (displicente, para não dar a ver o constrangi- mento: “... e o vovô, hein?”). Qual não foi minha surpresa quan- do notei que também minha mãe e minha avó sabiam quase nada a respeito. Nós o havíamos abandonado, pouco a pouco, nos desligando; ele, em estado terminal. E a senhora me olhava de canto de olho, tentando parecer invisível.

No sono intranquilo de Jussara, o quadro arrastava-se por anos, a nunca encerrar-se, como se o avô não morresse a propó- sito; havia naquilo intenção, menos para testá-las, checar o quan- to era de fato amado, do que para impingir-lhes culpa.

A costureirinha estava novamente perplexa, aturdida ao con- tar, e quase furou o dedo, muito vexada. Cuidado, menina, gritou dona Mercedes. Jussara estava pálida por toda a raça humana. Mas principalmente e, em verdade, por si. Era um dia seguinte, de coroas e velas, após o primeiro baile de sua vida (ao qual não fora), e que pusera termo a uma Jussara para o vir de outra. As coroas e as velas do salão em que Anita Arraes cobriu-se de brilhantes e luzes em seu vestido de laise; as mesmas coroas e velas do velório que Jussara fez de si quando, ao provar o vestido antes da clien- te, trajou-se de uma nova camada de conhecimento, sepultando- -se para renascer. Muito se lhe ia embora ao entregar sua obra à vulgaridade do mercantilismo, e muito ganhara naquelas horas de solidão da tarde anterior. Estivera feliz por isso.

- Mas como fomos capazes de esquecer o vovô?, dizia acarician- do o vestido novo sobre colo; como se o esquecimento ocorrido no sonho houvesse de fato se abatido sobre aquela vida. Como fomos capazes de esquecê-lo num hospital à beira da morte por tanto tempo? Mas também... que beira da morte era aquela, dona Mercedes, se morte mesmo era nunca que vinha?

176 Thiago Sogayar Bechara Esquecia-se novamente que o avô, em verdade, já havia morrido.

Depois, a Jussara do sonho soube que o avô já não falava mais por causa do tratamento. E que teria amputado uma das pernas, não se sabia a razão, afinal o tumor era no intestino. E ela não havia percebido bem se ele estava a vegetar ou consciente.

Entendeu que sua mãe e a avó lembravam-se melhor. Talvez pelas questões burocráticas do hospital, que não deixavam esque- cer, sabiam ao menos que ele ainda vivia; Jussara nem nisso ha- via mais pensado. Claro que isto atordoou demais a ideia que a menina tinha a seu próprio respeito, porque descosturou muito de um lado que ninguém gosta de saber que tem. E, para qualquer conserto, há que se reconhecer primeiro o desmantelo. Egoísta, pobre, seca, mesquinha, sem capacidade de amar ou sequer lem- brar. Deu-lhe revolta a impressão que o sonho lhe fizera. Mas tudo acabou-se nesta altura - arrematou a costureira, (como que não querendo lembrar-se do resto), de modo que não permitia a chance de se redimir. E agora tampouco a terá porque acordara.

O vestido no colo de Jussara estava aos retalhos, feito trapo gotejado por suas lágrimas miudinhas. Nada a fazer, senão espe- rar no absurdo que é conviver com culpas, lutos, fomes de nasci- mentos; a vergonha de um sonho desses, Jussara. Todas essas subs- tâncias, fazendas que giram artefeitas nos bailes da experiência que cada um de nós traja.

- Minha família não se surpreendeu. Talvez elas tenham se resignado há mais tempo com o esquecimento. E que susto foi para mim também o esquecimento delas. Mas isso não atenua nada. Nem importa. Importa que eu esqueci, matei meu avô an- tes do tempo e provei de uma ressurreição que não foi redentora

O vestido de laise 177 de nada. Foi amarga como se sabê-lo vivo comprovasse ainda mais o quanto ele estava morto dentro de mim – terminou Jussara, deixando outra lágrima cair delicadamente. E isso a encheu de uma tristeza ainda maior, com cujo contato agora revestiu sua alma ainda mais cheia de furinhos do que a laise que a menina Anita vestira no dia anterior.

No ateliê, dona Mercedes olhava a menina com olhos tristes, após ouvir o relato do sonho, e apenas chacoalhou a cabeça para ninguém. Com um sorriso menos chocado que resignado, e que só queria dizer para si mesma: coisas da nova Jussara... acostuma-te, Mercedes. E seguiram costurando em silêncio.

13/09/2014 a 16/12/2014,

São Paulo, capital.

178 Thiago Sogayar Bechara “Minha vida, ai ai ai, é um barquinho, ai ai ai, navegando sem leme, sem luz; quem me dera, ai ai ai, ver um dia, ai ai ai, o farol dos teus olhos azuis”

(Trecho de “Serenô”, de Antonio Almeida)

O vestido de laise 179 A voz

Novela rural em setenta quadros.

PRIMEIRA PARTE

I

No princípio eram os ranchos, no Verbo daquela tradição. Eram moradas de pau-a-pique cobertas de palha e muito levemente as- sentadas sobre o solo em meio às picadas. E dentro dos limites destas, o Verbo fazia-se seiva ao plantio dos roçados de milho, de mandioca. Os caiçaras, ou mandioqueiros; capicongos e brocoiós; estes filhos da Palavra-muda que nas clareiras moravam, ao cabo dos anos viam estafar-se o solo, e seu recurso natural era queimá- -lo. A vegetação rasteira sempre estalou no Brasil pela mazela dos recursos esgotados. E, a despeito dos primeiros movimentos da sedentarização, não só os bisavós do Menino, como outros tantos imigrantes europeus por ali aportados nos Oitocentos, ainda se mudavam periodicamente atrás do cio da lavra. Trouxas nas cos- tas, resistentes botas de couro de anta e os pares de touros atrela- dos aos canzis, puxando enormes carros de cabreúva; rangendo na madeira o sentimento da partida.

180 Thiago Sogayar Bechara II

Quem visse, mesmo que de soslaio, aquele animal sendo tra- zido de seu piquete pelo cabresto até o mangueirão, não teria co- mo ignorar a resistência apesar da qual o animal se permitia con- duzir. Pura obediência sem reflexão, apenas condicionamento; e, não obstante os lapsos de esperança em que tentava libertar-se, voltava sempre à posição exigida pelo homem de botinas e cha- péu de feltro. A fêmea era uma pampa de porte médio e corpulen- ta, donde se adivinhava sua prenhez, pouco considerada toda vez que sua força equina se fizesse mais importante que o zelo a ela devido. O pai do Menino vinha dando-lhe trancos, puxando rispi- damente o cabresto para baixo sempre que, mesmo sem convic- ção, ela resolvesse demonstrar-se insatisfeita. Como que em lam- pejos de uma consciência revolucionária, cujo fôlego, porém, du- rava tempo insuficiente para efetivar-se o gesto da rebelião. Ao passo que a casa de arreios se abriu inteira, um hálito gelado e úmido saído de dentro de seu ventre de alvenaria fez entrever as ferragens e pelegos de carneiro, carcomidos pelo uso, que lá se guardavam.

O pai do Menino entrava e saía do quartinho agilmente, como se não desse por isso. Mas o cenho franzido o acusava, e ele tra- zia sempre novas peças ao arreamento da velha pampa que cha- coalhava as orelhas levantadas, desafiando a habilidade do cava- leiro em encaixá-las no encordoamento do freio. Enquanto ape- trechava o animal, com braços expostos e em cuja musculatura fazia-se toda uma cartografia dos percursos de sua virilidade, cobrindo-lhe o lombo com espuma e, sobre a qual, punha-se o arreio, ocorrera-lhe, com o olhar perdido, que aquela manhã de trabalho deveria transcorrer de outra maneira. Não transcorria.

O vestido de laise 181 III

O curral, feito em mourões de aroeira e cinco tábuas largas, horizontalmente equidistantes, ficava a vinte metros da casa, e havia trazido, antes da fuga, para dentro do quarto do Menino, com o cheiro do estrume, o efeito inebriante da fermentação dos seus sonhos juvenis. Sonhos que se puseram certo dia a crescer, ao sabor das luas e das estações; sonhos com o calçamento que ele concretava nas retinas, recobrindo de urbanidade o horizonte inteiro, feito dos pastos e pedreiras que o cercavam por todos os lados, na pequena propriedade. Ele atrasava e adiantava os pensamentos, como quem vai e vem no tempo pelas frestas da imaginação, para degustá-la de diversos modos; buscar novas realidades sempre que o livro que tivesse em mãos o transpor- tasse para outro recanto, existente apenas dentro dele. E isto o salvava. Provisoriamente.

IV

A propriedade era um grande útero cercado por colinas, de on- de escorria o vento que impunha às árvores um curioso cresci- mento inclinado. Nesta grande taça que era o vale formou-se uma arena para os conflitos eólicos do mundo; ágora grega gestando um modo específico de os habitantes dali relacionarem-se com a limitação natural dos olhos constituída pelos montes ao redor. Era próprio daqueles nativos certo comodismo de quem se sabe inatingível, pois as serras protegiam-nos; assim como reprimiam

182 Thiago Sogayar Bechara o instinto natural para o sonho da transposição na maioria de seus moradores, o que no Menino havia gerado o efeito inverso. Fugira.

V

Nenhuma notícia do pequeno chegava ao sítio para amainar a respiração daqueles pais órfãos de sua paternidade. Os defuntos encadernados que eram as cinzas dos livros à fogueira já fria, em sua memória fuliginosa, traziam para dentro da casa um cheiro de passado, como testemunhas da não passagem. Do tempo. Como que provando a inexistência dessa divisão convencional; provan- do que a qualquer momento um corpo se desenterraria em for- ma gráfica para vir à tona da vida novamente, exclamando coisas a não mais poder e que, somadas, diziam apenas que nunca se pode enterrar de fato aquilo que se nos sucede. O pai do Menino desprezava isso. E queimara-lhe os livros, como se a mente do fi- lho fosse pasto, na esperança de que se lhe rebrotassem outros, mais ajustados ao que dele era esperado. Não brotaram.

VI

Um dedo de prosa sobre a safra e o tempo era o descuido ca- muflado a que se permitia o pai, em sábados durante os quais fosse à venda para comprar moringa ou lâmina de foice; cachaça ou corda de cabresto. Vez houvera em que levara o filho, ainda

O vestido de laise 183 pequeno, a tiracolo. Naqueles tempos de que a esposa tanto sen- tia saudades, o pai batia um prego bem no centro da tampa me- tálica de uma garrafa empoeirada de tubaína, produzida artesa- nalmente num velho galpão do vilarejo. O Menino nunca perderia das vistas da memória a cena em que, ainda de martelo em punho e prego - entre o dedão e o indicador da outra mão -, pronto a ser, breve, reaproveitado, o pai chamava-o do terreirão, onde brin- cava com as galinhas, para beber pelo furinho do refresco rosa, ao invés de abrir a tampa convencionalmente. Até chegar à ida- de em que desejaria ele próprio abrir por conta seus refrescos enquanto o pai comprasse bilhas; e um dia, enfim, já não iria mais a tiracolo para a venda. Não porque fugira e agora estivesse lon- ge, mas porque, bem antes de isto ocorrer, já encontrava mais sabor nos livros que bebia sem prego nem ferrugem. Era como se, com aqueles cabrestos que via o pai fazer, o pequeno pressentis- se que estava também prestes a ser selado e conduzido; mas en- trava já na fase de aboiar o próprio destino. E algo saía do controle, dos planos do pai, porque o Menino seguia em suas leituras, in- diferente às obrigações da terra, com os olhos fincados no asfalto do papel. A Voz que no futuro narrou tais lembranças aos seus ouvidos, cambiando as pessoas, nunca foi de amargura; continha apenas uma solidão irremediável que nunca ninguém pôde, por mais que se fizesse, distrair por inteira.

VII

Para quem, como aquele pai, emanava de dentro de si o hálito quente da terra roxa revolvida e o zelo para que não fossem vãos

184 Thiago Sogayar Bechara seus esforços em fecundá-la; para quem o sentido dos vendavais quase sempre era decisivo porque trazia ou levava as chuvas de que tanto se carecia em tempo de estio; para quem a alvura de uma geada não congelava pela boniteza dos campos polvilhados mas pelo temor da secura gélida que queima, uma a uma, as fo- lhas dos cafeeiros; ou para quem tinha na natureza, antes de tu- do, a fonte básica do sustento de sua família, aqueles poemas que o Menino principiara a escrever meses atrás, gestando ainda uma ideia distante do que era ser lido, possuíam tanta utilidade quan- to lenha verde para atiçar o fogo do almoço!

VIII

“Papai entrou no meu quarto com os olhos em fogo, ele estava realmente enfurecido; e eu me assustei porque não tinha feito nada; ao menos achava que não, talvez fosse esse o problema. Não fazer nada. Baixei o livro rapidamente; no fundo eu sabia que precisava protegê-lo; mas meu pai entendeu tudo e ordenou que eu o largasse imediatamente. Foi um grito estridente, altís- simo. Nunca na vida me ocorreu desobedecê-lo ou contrariá-lo. Nem a ele nem a minha mãe, de modo que fui automaticamen- te levando o livro ao criado-mudo. Mas não sei que me deu. Num instante, sem pensar, voltei o braço e depositei o livro no colo, com as mãos sobrepostas a ele com força. Quando dei por mim, já ti- nha apenas perguntado por quê. E se fez de repente um silêncio que me sufocou. Não senti ter perguntado em desafio; muito me- nos o fiz com essa intenção, já que não o fiz com intenção ne- nhuma; eu só queria mesmo era entender. Por quê? Mas essa

O vestido de laise 185 minha reação descontrolada... inofensiva porém descontrolada... essa reação inflamou os nervos dele. E vi meu pai partir para cima de mim.

“Tomou simplesmente o livro das minhas mãos. E disse: ‘Por- que sim, moleque!’ Nunca vi meu pai assim, juro que nunca tinha visto! Ele parecia outra pessoa, tinha outra Voz. E tomou o livro com tanta raiva, com uma violência e uma rapidez, que a minha vontade foi voar para cima dele e ordenar que nunca mais fizes- se aquilo com um livro meu! Me assustei com a raiva que senti dele. Era meu pai. Nunca mais, está entendendo? O livro era da biblioteca da escola, mas era como se fosse meu. Meu Deus!, a bibliotecária! Só agora me dei conta! Terei de pagar pelo estrago. O livro não era meu, não era!, e ele simplesmente o arremessou contra o armário com tamanha força que algumas páginas se des- pedaçaram no ar. Estavam já comidas pelas traças, livro de uns quarenta anos. A bibliotecária!

“Papai pensava que só porque personagem vem da imagina- ção, então não existe! Eu mesmo tinha criado uma história dia daqueles e descobri coisas sobre meu personagem. Mas só de- pois de muito tempo, porque antes ele não me tinha deixado ver. Essas criaturas são espertas e voluntariosas, vão se mostrando aos poucos... deixando-se seduzir devagar. Não se vão entregando aos seus autores assim, de chofre, dando cria. Carecem de preli- minares! E depois vêm dizer que não existem?”

IX

Não havia naquele rapaz nenhum resquício do ímpeto que se espera de um jovem de treze ou quatorze anos que funcionasse

186 Thiago Sogayar Bechara ao menos como uma possibilidade de conciliar seu mundo com os planos do pai; sua íntima blasfêmia; sua ínfima habilidade com o que quer que fosse referente aos desígnios da vida no campo era inversamente proporcional à imensa expectativa que o pai nu- tria para que aqueles fervores lunáticos se amainassem. O pai era sempre uma esperança aflita, guardada sob pressão, de ver confirmados seus preceitos para que o filho prosseguisse com a tocha de suas tradições; se impregnasse de todo o legítimo ins- tinto que devia existir com uma dimensão que fosse mais seu sentido simbólico do que qualquer outra coisa; muito maior, por- tanto, do que a produção em si de uma lavoura. Mas que obede- cia a uma ordem genética e espiritual; a um impulso animal que identificava o pai de modo fulminante ao que os seus pais ensi- naram a ele quando pequeno e que cumpria agora transmitir, com uma finalidade obscura sobre a qual nunca pensara muito, já que suas justificativas giravam em torno da preocupação com o sustento do filho; aquelas terras seriam dele - e cumpria instruí- -lo para que as soubesse um dia governar. E isto bastava.

X

Os dias sucediam-se uns aos outros com tamanha obviedade que a menina, que a mãe do Menino fora, mal notara o escorrer das horas até sua maturidade. Sentia o tempo como algo absolu- to, sem seções, de modo que era fácil entender-se ainda presa à sua juventude; ao tempo em que havia, nos meses de agosto, fes- ta de São Roque no Patrimônio. Tinha culto na capelinha com o ministro que dava a eucaristia embora não rezasse a missa.

O vestido de laise 187 Apenas assistia o padre. Depois acontecia o baile num barracão ao lado da venda e da escola; e o sanfoneiro era um homem fran- zino mas incrivelmente forte e capaz de aguentar o vaneirão por toda a noite, o que queria dizer das oito e meia às duas da ma- tina, sem choro nem vela, acompanhado de bateria e violão. Tam- bém, conjunto assim era uma vez ao ano e fim de xote! Daí que o barracão virava o alvo das maiores expectativas: das mocinhas casadoiras, assim como das mais salientes; dos rapazes respei- tadores e dos desonradores de donzelas, durante todo o mês que antecedia o arrasta-chita pelo chão batido, sujando as barras dos tecidos comprados de uma rural que trazia fazendas de mui- to longe.

XI

“Tentei responder em voz baixa e sem olhar diretamente pa- ra os olhos do meu pai, mas cheio de orgulho, que leitura não era coisa de gente afrescalhada. Pensei que ele nem tinha ouvido; mas a alegria de ter dito me queimou por dentro quando ele per- guntou irado se eu o estava afrontando! Claro que eu não estava, mas alguma coisa em mim tinha de se expressar, eu já não cabia de sufoco, a respiração curta, o amor ferido; então gostei de ter gerado nele a dúvida sobre se o estava ou não desafiando. Pensei que fosse me espancar, mas minha mãe tinha chegado de man- sinho e se precipitou bem a tempo de segurar o braço dele no ar, rápida e enérgica, dentro de seu silêncio tão frágil; chorava quie- ta, soluçando para dentro.

188 Thiago Sogayar Bechara “Um livro, ele não entende, não adianta, ele não entende; um livro é como uma criança. Se ele batesse em mim não teria me machucado tanto quanto aquela cena do livro dando com tudo na porta do guarda-roupa. Meu filho..., repetiu a mãe do Menino. Mas o pai bradou. Vai devolver cada livro desses e, chegando da escola, vai pra roça comigo. Não quero choramingo, vou começar a te ensinar o que já devia ter feito há muito tempo!”

XII

O mundo no pai era senão isso de transferir conhecimento recebido; assimilá-lo como lhe fora entregue, intocado para a ga- rantia da sequência, como se apenas deste gesto cíclico dependes- se mecanicamente o girar do universo. E agora estava bloqueado. Este impulso punha o pai do Menino claramente como peça de uma engrenagem, ferramenta. Era desse modo que ele enten- dia, portanto, a existência de um Deus. O Deus do pai era patrão. O do filho, espírito santo, colega; o conforto de sua casa. Esse era um tipo de relação com a instância da religiosidade que perten- cia não apenas ao Menino, mas a grande parte dos colegas com quem tinha contato na escola; uma geração talvez menos teme- rosa da hierarquia divina, ao passo que mais perceptiva da tal presença em cada uma das coisas – muito embora tementes a Deus e frequentadores com os pais das missas de domingo.

Os sermões noturnos do pai sobre o que seu Deus maiúsculo esperava da conduta de vida do filho, ainda mais quando à luz das torcidas de algodão dos candeeiros, ganhavam para o Menino os contornos tremulantes de uma equivocada distorção que revelava

O vestido de laise 189 um pai assustador, projetado em sua sombra no armarinho de madeira - e isso confundia o coração do pequeno, ininterrupto em sua tarefa de emanar amor e admiração por seu herói. Quase que por convenção social, mas não por isso menos legitimado, ao passo que se via internamente cada vez mais longe do local onde estava prestes a ser obrigado a habitar funcionalmente. E se envergonhava por sentir-se responsável pela profanação daquelas duas existências, sem saber se a vergonha era de o pai não entender nada do próprio filho; ou de si mesmo, desacatan- do a grandiosidade da tradição de modo tão inofensivo, mas por isso mesmo presunçoso e inalcançável para o abecedário do pai, para quem toda aquela situação figurava como outro idioma.

XIII

O avô da mãe chegara de Lisboa em 1890; consigo trouxe os sentidos prontos para encantarem-se com o cheiro da terra que ele também desposaria dentro em breve. Ali mesmo, cruz no pei- to e o sentimento da inauguração, fora ele o gentio convertido; o silvícola catequizado. E os jesuítas eram as árvores, as cores e os perfumes, os risos nas bocas encarnadas das sinhás e os olhos langorosos das cafuzas que o escravizavam mais e mais àquele mundo, demarcando os limites de suas capitanias interiores. Eram eles seus bandeirantes, delineando sua própria nação particular, entregando-a aos seus donatários espirituais.

Então seu feitio militarizado desarmava-se para os facões ma- cios que debastariam suas capoeiras cerradas de perobas e ingás, umbus e jatobás; conquistavam assim o solo piçarrento de sua

190 Thiago Sogayar Bechara alma, vencendo a brita e o cascalho, enquanto ele... ele se dava às vertigens da liberdade. Ele era as próprias disposições jurídicas e religiosas de sua expedição; ele era o arauto do desvendamento; a força da religação, o marco de outra era; ele era o bisavô de toda uma nova linhagem que um dia recomeçaria no Menino.

Foi desse modo que as bandeiras desbravaram as origens fa- miliares de um miúdo que despontou para a vida feito pendão de milho, em meio às ruas do milharal todo embonecado. Boneca de milho é coisa linda em que também ninguém repara. E fora naquela mesma roça embonecada que sua mãe, aos dez anos, ou- viu do avô as histórias dos caboclos, mestiços de índio, que ele havia achado nas picadas. Dos rios e vales transpostos em igaras ou lombos de jegues. Da fome passada, dos medos vividos; das corredeiras de água doce que agora lembravam a força do amor nos olhos da velha avó, que a neta não conheceu. E o sexagenário avô breve estaria reduzido a algumas imagens na memória da menina, como o Menino décadas depois, sobre a lareira de seus netos, cumprindo um ciclo inevitável.

Aos onze foi que a mãe viu o avô com vida pela última fresta de porta, agonizando ao leito. E o velho português repetia o jorro de seu subconsciente, trazia à língua febril as cenas desordena- das de sua entrada na nave central da igreja de São Miguel, em Alfama; então fugiam dele alguns fragmentos inarticuláveis de altar, grinalda, Tejo, ubás, facões: o Atlântico! Por fim, planície. A vida conjugal, remanso. Casara-se, mas não sem antes obter ga- rantias de que, contraído o matrimônio, a noiva se transferiria junto dele para o trópico. E quão feliz fora este homem na alian- ça que fizera ao cruzar o horizonte de Belém. Quão satisfeito, afinal, em seu delírio derradeiro; misturavam-se os lampejos de

O vestido de laise 191 sua mocidade; por fim, terços, velas; as coroas de flores para a esposa, sua devolução ao mundo sagrado das energias. E uma lá- grima inconsciente despontou dos seus olhos fadistas; e dos da neta, sempre que narrava a cena ao filho, revivendo cada uma das últimas palavras do avô clamando pela esposa, aos sussurros, ca- da vez mais fracos e menos aflitos, como se a distância existente entre os dois de alguma maneira estivesse de fato, pouco a pou- co, se estreitando. Até que se reencontrassem, talvez nalgum beco da Baixa lisboeta.

XIV

Como que recobrando a fúria apaziguada pela mão da esposa, o pai do Menino partiu em seguida para a cômoda, onde desco- briu um calhamaço de papeis amarfanhados e borrados de lápis, apagados mais de uma vez. Eram os poemas do filho. Os que ele começara a escrever desde que sentira no corpo uma fisgada, uma vibração quando entrou na escola uma aluna vinda de outro distrito. Era Clara.

Rasgou tudo e queimou! O Menino desatou num choro magoa- do de desconsolo, para dentro, a mal poder-se ouvir. Rasgou! Acendeu uma fogueira e depois... Ele nunca saberá o mal que fez, nunca!, pensou o pequeno e não pronunciou palavra. Não por- que as não tivesse, mas por percebê-las inúteis e insignificantes. Adormeceu, após muitas horas intranquilas, o seu sono de cons- telação. Mas crepitaram nos sonhos cada uma das estrelas em incandescências celestes infernais.

192 Thiago Sogayar Bechara XV

Este desajuste com a lógica de sua família acuava-o entre a violação de sua alma - que era abrir mão de si para o contenta- mento de seu exterior, o pai - e uma corrida desabrida pelos so- nhos que o conduziriam muito antes do tempo para seu futuro, a fuga – e nem seu deus talvez soubesse a que este sentimento correspondia, já que o Menino não via meios de aderir a valores que não eram próprios, tampouco de livrar-se daquelas suas fan- tasias porque isto implicava, em grande medida - e tão simples- mente -, subsistir longe dali.

Além disso, o pai era uma raiz tão funda que o único meio de conhecê-la realmente era enterrar-se junto. Mas o miúdo queria os ares, olhava para o céu de seu balanço e carecia voar. Lá de cima, os pais e o cafezal inteiro ficavam lindos de pequenos; eram a paisagem que ele lembraria, do cume de sua história.

Talvez o preço a ser saldado por ter nascido dentro de tal con- formidade (inconformada) fosse, de fato, o de nunca na vida ter tido a chance de um encontro verdadeiro com seu próprio autor.

XVI

A revolta... a profunda tristeza, o vazio estupefato do único reflexo das chamas puseram o rapaz num estado de descrença, como se o olhar do pai também estivesse fazendo sua pele cre- pitar junto das folhas e ir derretendo sua personalidade debaixo

O vestido de laise 193 do fogo. Não tinha cópia daqueles seus textos. Só lhe restou de- pois lembrar fragmentos que remetessem aos originais. Nada como poder voltar aos originais para reencontrar a pureza, o ins- tinto primeiro de uma personagem. Retomar, assim, sentidos e sentimentos perdidos. Entender melhor a origem de situações desencadeadas. Confirmar se o que foi para o lixo deve mesmo continuar lá, e aceitar sobretudo que isso tudo não é só litera- tura, mas o exercicio diário que compõe o processo de compre- ensão e construção da vida. O Menino chorava seu choro mais interior. O choro de quem achava ter perdido o caminho trilhado até ali.

Aquela cena humilhava-o, atingia sua dignidade porque era um tapa em sua consciência de não ter protegido a tempo seus filhos, como deveria; e ainda mais por não tê-los protegido como gostaria que seu próprio pai tivesse feito consigo. Enquanto um pai destruía as extensões literárias de seu filho, este filho via nascer em si um instinto brutal de defender seus papeis daque- las labaredas cada vez mais altas, jogadas nas lajotas de pedra do terreirão de trás, até extinguir-se tudo e só restarem fuligens e pedaços informes de papel preto e derretido.

Enquanto o fogo não cessou, o Menino não parou de chorar em frente àquela fogueira de si, em pé, atônito, empapado da in- credulidade que dele emanava. Dir-se-ia estar frente ao próprio velório. O pai já havia entrado em casa, ainda mais furioso com o filho, por ver a cena tão sentida, o que despertara nele uma piedade que jamais deveria ter sentido naquele instante, após o que fez. Até nisso o pequeno o desacatava, pois impingia a ele sentimentos impertinentes de um arrependimento que não havia meios de ser assumido pela consciência.

194 Thiago Sogayar Bechara Num dos poucos pedaços de papel dos quais o Menino ousou se aproximar, com a solenidade de quem vela também seu pai morto, pôde ler a palavra “amor”, entre outras letras retorcidas, pouco legíveis. Milagrosamente sobrara intacta. E ele logo pen- sou, limpando com as mãos suas lágrimas grossas, que se trata- va do amor de seu pai. Quis pensar nisso, a bem dizer. Talvez o único resquício desse sentimento ali preservado. A única possi- bilidade de seu pai se fundir ao amor pelas palavras, e de entrar em contato, ainda que superficialmente, com o objeto amoroso daquele poema, embora o soubesse escrito para Clara, a garota nova do colégio. A pureza límpida de uma pele branca e lisa feito seda. O amor por seu pai, ao contrário, era um amor torto que, apesar de torto, e agora mais do que nunca ferido pelas chamas, ainda assim, sabia-se amor.

Já havia tomado sua decisão.

XVII

Tudo que o pai possuía na vida era a certeza de sua função semeadora junto à esposa e ao filho, na busca natural da trans- missão. Mas o Menino nunca tivera o instinto do recato e da subserviência. Não se escondera atrás da saia da mãe quando pequeno, ao sinal de estranhos; teve desde sempre um desem- baraço quase improvável no abrir a janela, curioso quando da ausência dos pais em casa, após ouvir estalidos de palmas se- cundados por ôs, de casa costumeiros. Esses pequenos descuidos geravam, contudo, no pai, um embaraço redobrado; e não foram poucas as advertências e castigos em forma de relhos e correias

O vestido de laise 195 que o rapaz sofrera, ainda que já possuísse idade suficiente para ser incorporado ao eito nas lavouras. Não se portava como ho- mem, não merecia ser tratado como tal! E agora já não havia mais com que se preocupar neste sentido. O Menino fugira. E sua existência mostrava-se muito maior do que se pudera supor. Em parte pelo desespero dos gemidos da mulher que não via meios de aceitar o ocorrido, e ainda menos seu caráter de irreversibili- dade. Mas sobretudo pelo amor que o pai fora obrigado a assumir para si que sentia.

XVIII

Selada a égua, o homem fechou a casa de arreios com a corren- te, impulsionou o corpo pesado após ter calçado a botina esquer- da no estribo, e lançou-se numa notável agilidade que se fez sen- tir sobretudo pelo animal, que arriou-se ligeiramente num susto; depois deu uma bufada de alívio e resignação, aprumando-se e deixando-se conduzir pelas mãos ásperas do caipira. Montado, o cavaleiro não se deu por isso e instigou-lhe os sovacos com o calcanhar esporado, exigindo das rédeas o caminho da porteira menor. Era àquelas sombras que o gado de leite recostava-se para digerir o enfado da ordenha a pôr logo cedo cada cabeça do rebanho nos trilhos do automatismo. Instalada à esquerda de sua casa, a pequena porteira punha término à estreita trilha mar- geada de coqueiros guariroba e sulcada no solo pelas rodas bam- bas da carroça que se guardava no abrigo coberto de telhas es- verdeadas do musgo. Naquele dia, o pai saiu em busca do filho pelos arredores.

196 Thiago Sogayar Bechara XIX

Dobrou o calombo da estrada por onde o Menino também pas- sara. E o ar parado daquela manhã ensolarada foi, ao longo do caminho, transformando-se no vento que caracterizava toda a instabilidade da região e que fazia bailar os eucaliptos e greví- leas, feito dia de arraial. Um uivo cortante tornava muitas vezes indesejado o vento que noutras partes teria significado verda- deiro alívio para o mormaço que vinha judiando da lavoura, empoeirada pelo estio. O pai, àquele zunir furioso, sentia a de- solação dos ares e, apenas ao fundo, como à grande distância e vencendo insondáveis barreiras sonoras, percebia o trotar dos cascos de sua própria égua. Sapateavam contra o cascalho e os lajotões de pedra branca, na estrada trançada, por cima, de cipós que compunham uma espécie de túnel vegetal. Saindo dele, o sol voltava a arder de modo tão intenso que o cheiro exalado pela terra podia mesmo ser o de uma farinha após pilada.

Enquanto se deixava hipnotizar pelo mantra dos cascos, sufo- cado pelo vento – e acrescido dos cantos desordenados e muito agudos dos anus-brancos que cortavam o céu de uma copa à outra com suas longas caudas eriçadas –; enquanto este quadro mati- nal se tingia, o sacolejo que produzia o caminhar monótono e ritmado das ancas de sua fêmea jogava para lá e para cá os pen- samentos do pai do Menino.

O vestido de laise 197 XX

O patriarca cavalgava a pensar que era ele a representação máxima do instinto de prover, herdado tanto dos avós índios quanto dos portugueses. Era a busca essencial de conservar va- lores por gerações, ainda inconformado pelo que se lhe sucera à história familiar. Nele, brilhava o signo da honra. E honrado era o homem que sabia fazer jus ao legado construído por seus ancestrais. Essa moral vinha logicamente pelo esforço do traba- lho; da íntima relação construída com o solo ao longo dos sécu- los; da conservação de um patrimônio que extrapolava os limi- tes de uma produção material com fins alimentares, mas que acontecia nela. E agora tocava-lhe a si a fatalidade de uma mácula.

Honrado aquele que tem as plantas dos pés no chão morno do roçado, repisava em pensamentos. Nestes, a chaga da humilda- de ante os ensinamentos dos antigos; naqueles, o achego caloroso da morena trigueira; mestiça trazendo no ventre a dádiva, o em- brião de todos os encantos e desdobramentos. Honrado aquele que se curva ante a magnitude e segue semeando pela divindade do próximo, tirando da mata aquilo que trouxer em si semente fér- til, grávida de germinação; a paz do alimento, a questão primor- dial da saciedade que movia a inconsciência daquele pai. Gostava de não pensar. O estado cru e o desprovido de verniz que tra- zem as ações de certas pessoas desmascara por demais alguns aspectos do mundo que a maquiagem da hipocrisia esforça-se por esconder.

198 Thiago Sogayar Bechara XXI

O rapaz trouxera desde sempre um brilho nos olhos que o di- ferenciava de certa opacidade característica que tingia o exterior das pessoas daquelas redondezas. Como se concebido de modo especial e raro, desde muito pequeno o Menino possuísse em seu jeito de estar presente qualquer fascínio que o tornava logo alvo de atenções. Não havia em sua concisão o acanhamento dos que sofrem de uma timidez muitas vezes onerosa à própria cons- ciência. Ele trazia no espírito certa superioridade. Não sentia, contudo, que o mundo lhe fosse inferior. Sua beleza estava jus- tamente em colocar-se entre as pessoas na posição de aprendiz, buscando de modo não racional fazer-se despercebido. Como se, invisível entre a multidão, ele pudesse se entranhar melhor nela e conhecer mais profundamente seus segredos; os ensinamen- tos que ela teria para oferecer. Aprender o mundo na prática. Era impossível não notar que todas essas cintilâncias passavam feito faróis atrás de seus olhos muito vivos. E sua busca de entender, camuflado, a dinâmica do relacionamento das pessoas, os códi- gos de comportamento - diferentes da festa de São Roque para os dias de missa na capela, por exemplo -, todo esse instinto de diluição o distinguia ainda mais, sem que ele notasse. Era um rapaz diferente, sem saber sob qual aspecto; assim os cumpadres, ministros, rezadeiras o tratavam; com uma atenção quase devota, quando o paravam em seu trajeto para a escola, honestamente felizes por tê-lo encontrado.

Era como se houvesse em sua energia vital uma verdade tão grande sendo emanada que a vizinhança toda reconhecia em si

O vestido de laise 199 um grande prazer de estar com ele, mesmo que nos poucos minutos em que apenas se dessem os bons dias e mandassem recomendações em casa para os pais (os quais jamais notaram esta espécie de carisma - senão certo exagero incompreendido no tratamento dispensado comumente ao filho). Parecia que cruzar com o rapaz era verdadeiramente sinal de bom augúrio; pre- núncio de boa jornada, repleta de sossegos interiores, advindos da honestidade de sentimentos refletidos em cada gesto dele. Por meio dele, todos reencontravam suas próprias purezas. Aquela mudez falava por si e está claro que o que dizia eram sempre sorrisos largos e francos, pois aquela gente simplesmente sentia- -se bem perto do garoto.

XXII

Como o pai ansiou pela rebentação do filho! Quanto deposi- tou, a cada vagido do recém-nascido, a fé de seu clã paupérrimo mas com ares de nobreza e brio. É que enxergava no pequeno o resultado de uma continuação tão óbvia, necessária e incontor- nável que não existiria sequer opção capaz de ameaçar tal garan- tia, ou que a contrapusesse, como os livros passaram a contrapô- -la, numa espécie de afronta. O peso da expectativa depositada sobre o Menino fora por ele retribuído por meio de sua fuga, de forma intolerável para a má alfabetização daquele patriarca, a contemplar os muros caiados da escola rural enquanto passava por ela a procura do filho. Ele não estava ali dentro.

Neste pai, a vida não era forjada nem ao menos num instan- te. Brotava ávida, inteira, real. Era feito olho d´água, dando em

200 Thiago Sogayar Bechara borbotões, ao arbitrário, suas golfadas de existência pelos ares. Olhava seu entorno e transcorria líquida; vida sem se saber, sem precisar de cabimento. Rolava como brota a mina da serra, na espontaneidade simples e fresca; livre, sobretudo, que era uma forma desejada de ignorância. E o cavaleiro tudo ignorava senão seu dever de pai-marido.

Isso dera-lhe sempre o prazer do dever cumprido, como se a clareza iluminasse por completo o sentido, a razão única de sua existência. E isto o contentava de modo abrupto e devastador, tornando-o discípulo fiel de uma seita inquestionável: a do amor a cada golpe de alvião no solo pedregoso, limpando as vassouri- nhas e barbas-de-bode que ameaçassem tomar conta de seu rei- no, seu território adquirido por merecimento, concedido sobera- namente por seu Superior, via escritura puríssima que nada ti- nha a ver com o registro físico de suas terras no cartório antigo do distrito.

Possuir era mais sentimento que convenção humana, e nada poderia o mundo contra a certeza divina que o fazia sentir-se dono, porque era ele quem engravidava, a cada dia, cada grão de terra com seus membros rijos de homem forte; virilidade agreste, penetrando o solo, possuindo, como se possui a fêmea; como se possui o cio dos óvulos vegetais. Era seu instinto possuidor que o tornava bandeirante de seu próprio rebanho, redescobrindo a cada grotão o segredo úmido da semeadura, o sêmen ágil de suas mãos grossas e venosas, transbordando a pulsação sanguínea que emergia seus instintos para um estado de consciência alterado pelo sol que ondeava o horizonte, turvando sua visão, que pas- sava a só enxergar diante de si a meta, a produtividade obsessi- va, o egoísmo supremo que é saber-se bom, provedor; Senhor

O vestido de laise 201 da tribo, chefe da repartição dos pães, xamã, doutor, cardeal de sua gleba, ourives da profanação subterrânea - para a entrega bendita, igualitária e dadivosa entre os seus. Acontece que tudo mudara para sempre.

XXIII

Para o Menino, o mundo era de todo o mundo; não fazia sen- tido a noção de deter, conter, reter a terra que fica, enquanto o Homem vai. E isto o pai também ignorava não porque ignorasse o fim concreto de cada um, mas porque via no seu legado sua for- ma de imortalidade. A agregação das imortalidades todas de seus pais e avós estava acumulada nele e era tarefa inadiável pros- seguir, dando continuidade a todo conhecimento ao qual os pri- meiros paulistas bandeirantes tiveram de aderir, sobretudo como meio de sobrevivência. Essa era sua vitalidade máxima, cedendo poucamente às raras horas de um lazer incipiente, também meio de obter seu objetivo – porque não se descuida de uma enxada quem dela careça para garimpar a persistência instintiva e inex- plicável da Vida. Esta intuição do alimento norteando cada gesto era o álibi que o pai usava para justificar em grande medida cer- ta aparência de conservadorismo exagerado em relação àqueles novos tempos de modernidades vazias. Também para o menino tudo isso havia mudado para sempre.

202 Thiago Sogayar Bechara XXIV

Hoje, ele é uma foto sobre um armarinho azul. Mas dias após ter arrumado suas coisas e fugido de casa, aos quinze anos, pensava no futuro como num oceano. Quando enfim fertilizado por seu gesto, pôs-se a buscar um significado último de utilidade naquilo que seus olhos vissem, percebeu que não era nunca capaz de encontrar. Talvez porque não se tratasse de uma utilidade terrena, mas do espírito. Qual a função da existência de cada coi- sa?, pensava imerso em sua inquietação de não saber para que servia um abacateiro; ou então a razão de, em ele já existindo, ter também havido a caneleira e o guapuruvú. Bem entendido, o homem era quem tornava úteis as coisas da vida, moldando-as às suas necessidades. Transformando-as em pequenos núcleos pre- destinados, desde o nascedouro, a servir para isto ou aquilo. Mas e a utilidade original delas, na ausência dos homens? – era como dizer: em que deus pensou quando inventou as espécies de plan- tas e não somente a planta em sua forma absoluta; o Menino era como que um querer-já-ter-conhecido: os sentidos íntimos dos galhos, o contorno dos veios, o formato da sombra de uma árvore que ainda não passasse então de mera semente, ignorante de seu plantio. Como querer pertencer à constituição orgânica de seu quintal; estar dentro da matéria de cada objeto; viver jun- to, fazer parte e ao mesmo tempo ser tudo que lhe assaltasse. A força que impulsiona a seiva. Qual era o significado de ele ter existido numa família para a qual sua serventia no mundo não fora suficiente?

O vestido de laise 203 A grandeza desses pensamentos rondava já a cabeça do jovem desde suas antigas aulas. Voltava da escola para casa imerso, e era sem acesso às respostas que saltava a pinguela de um córrego no pasto por onde cortava caminho e matutava no novo Menino que estava prestes a criar para si.

XXV

Quando, dias antes, tomara da prateleira aquela velha edição do romance russo, o Menino logo sentiu nos dedos a importân- cia de seu conteúdo pela lisura da capa de couro que o envolvia, indício das muitas mãos que já o haviam desgastado. Os veios da lombada quase sumiam, puídos, enquadrando o título impres- so num dourado opaco. E a própria textura do couro deixava entressentir as diferentes espessuras dos locais mais manusea- dos da encadernação.

Desde que iniciara a leitura, o impacto que o ser humano tem sempre que vê partes de si refletidas em outro tomara conta do Menino. O mundo transforma-se, as culturas distinguem-se umas das outras, mas o jovem soube logo que há o essencial, o inal- terável, o subumano que é também humano. Antes das leis existe o instinto, o desejo, real e cruel. E a soberania necessária da trans- gressão para a evolução da humanidade. E o que aconteceria se os homens simplesmente se deixassem conduzir por seus ímpetos, como aquele protagonista de Dostoiévski? O Menino era apenas um adolescente. E já se questionava se a camada de verniz da cultura nos protege de nós mesmos ou se é tão somente um mo- do de nos revelarmos ainda mais, opressores? Esta máscara, este

204 Thiago Sogayar Bechara condicionamento comportamental que adotamos para parecer civilizados, sérios ou honestos, estabelece qual relação com a ver- dade? Seria a máscara menos verdadeira que o perigo que corre- mos sendo nós mesmos? Ou sermos nós mesmos é a loucura em seu conceito mais bem acabado? Existe um nós mesmos? Existe a verdade?

Tratava-se, portanto, pressentia o Menino, de uma opção a que se tem direito desde que nascemos: a proteção ou a verdade. Tratava-se de medir qual (ou quanto) delas será mais vantajoso para cada tipo de animal humano que, a cada dia, passa a ocupar o planeta? O Menino aturdia-se com o tamanho das questões que um mero livro, encontrado numa estante antiga de um prédio per- dido no meio de um distrito rural de uma cidade remota como a sua era capaz de suscitar. Chacoalhava a cabeça e suspirava or- gulhoso; afinal, se era capaz de formular questões tão grandes, era por trazer em si alguma fagulha desta dimensão. Quando voltou à tona do mergulho da leitura; quando retornou à superfície do oceano em que estava prestes a se afogar, ele inspirou profunda- mente o ar como que para recobrar o fôlego preso durante os mi- nutos de suspensão da vida, o momento da travessia, e relembrou quem era.

Pensava então nos colegas de classe que desconheciam o ro- mance (muitos jamais o teriam nas mãos). O que é que acendia no Menino o fogo da necessidade por aquelas descobertas, e que não era capaz de crepitar em outras pessoas tão próximas – isto tomava grande parte de seus pensamentos porque definia seu modo de se relacionar (e também o dos demais). Fazia toda diferença saber qual era sua distinção em relação aos colegas; a partir de quando esta distinção tornava-o um adolescente ilhado

O vestido de laise 205 em sentimentos e conhecimentos que o impediam de encontrar pontes para o continente de seus amigos. Sempre a ponte. E como era interessante a vista do outro lado. Ao mesmo tempo estranha, já que o objeto que o ilhava de seus colegas era exatamente o mesmo que lançava entre seu mundo e o daqueles autores tão longínquos uma espécie de atalho, o que para ele ficava cada vez mais indispensável. Mas entre seus colegas e seus autores havia o mar. Ou entre o Menino e os outros meninos havia autores.

Livros como aquele faziam-no pensar em assuntos tão presen- tes em sua vida, mas a respeito dos quais ele pouco ou nada tinha consciência. Vira seus pais contratando colonos e carretos para o transporte da safra e nunca havia pensado no quanto aqueles homens eram reféns de empregos sazonais como este, que em nada mudariam suas vidas, mas apenas a prolongariam indistintamente, sem ceder o direito ao sonho; sem qualquer fan- tasiar que os pusesse, em algum momento do dia, em contato com seus mundos de criança, fora daquela engrenagem voraz que era a urgência de se produzir, de se otimizar o tempo, a colheita, o dinheiro da venda das sacas, de sobreviver. Como pensar nisso entristecera o Menino…

Então seus pais, modestos e humildes, serventes igualmente ao ciclo de exploração, vendendo sua produção arrancada com força de um solo branco ou de um inverno impiedoso, também eles exploravam (!), de modo que eram nem algozes nem conde- nados, mas engrenagens simplesmente de uma máquina em inin- terrupto movimento; assim como a agiota que aceita os utensí- lios de Raskólnikov, estando este sempre em natural desvantagem. A quem não paga o empréstimo, ela não devolve a peça. E aquele que não goste das condições, que se arrume de outra forma ou

206 Thiago Sogayar Bechara então que se utilize dos meios mais ortodoxos. Impossível. Então que a mate e pilhe, posto ser este o desejo de muitos e a coragem de quase nenhum. Exceto a fulgurante personagem daquele ro- mance, capaz de executar pensamentos, dar forma a sonhos, fa- zer justiça a mais este tipo de exploração humana. E arcar com o frio degredo na Sibéria. O Menino foi ao mapa mundi do colégio para saber se a Sibéria existia de verdade.

A culpa, em seguida a tais conjecturas, obrigou-o a sentir-se mal e perverso, sem saber se de fato o era. Matar é justo em algu- ma situação? Moral, ético?, mesmo quando feito em retribuição à falta de moral de alguém? Como a velha usurária, em relação a Rodion Românovitch, também alguém a sugava impunemente, sem qualquer resquício de compaixão por sua condição de vida pri- mária ou mesmo por sua idade avançada. O Menino deixava de ser menino; pensava que jamais suportaria sequer a ideia de ser deportado como a personagem do livro; sua intolerância para com certas normas sociais era diretamente proporcional ao seu hor- ror pelo degredo, de modo que o conflito entre esses dois veto- res o rasgava ao meio, paralisando seus sentidos durante muito tempo. Supôs, como fazia, ver-se na pele das personagens; não, não toleraria ser expatriado, isto jamais!, queria sair espontanea- mente e poder voltar quando entendesse.

Ademais, sua terra, por si só já era de certa forma um modo muito particular de exílio. Uma espécie de condenação ao apri- sionamento das linhagens. E a ideia da prisão logo se infiltrou nele porque se insinuava em sua própria casa; era preso que ele se sentia; preso ficaria cedendo ao Deus de seu pai se não to- masse Providência; e estes pensamentos, cerzindo o livro a si próprio, confirmavam aquela sua intuição da conjunção de todas

O vestido de laise 207 as coisas; era o suficiente para embargar-lhe a Voz; o entendi- mento de que todos os livros, afinal, contavam a mesma história.

O Menino acabou dando-se conta de que, quando pensou na prisão, viveu o mesmo sufocamento que tivera por não poder compartilhar com a família essas novas e revolucionárias desco- bertas. E isso era também uma forma de se ver atado. O pai fa- zia parte então do enredo do livro e, contraditoriamente, não o conhecia, nem sequer o toleraria.

Em pleno século XX, o rapaz pensou estar ele próprio em sua colonização. Abriu o livro novamente e, ao virar aleatoriamente uma das páginas amarelecidas, encontrou prensado há sabe-deus- -quanto-tempo um inseto com as perninhas tortas e as asinhas a ponto de se esfarinhar. Tomou-se de um horror incomparável. Parecia uma barata, mas era bem menor. Devia fazer anos que estava ali, fossilizado numa das estantes poeirentas da bibliote- ca da escola. Com a unha, tentou discretamente desencavá-lo do papel de grossa gramatura e cheiro forte, mas só saiu um pedaço. Um organismo morto prensado num organismo vivo. A repulsa o fez sentir a vida no seu aspecto mais rebelado. Por fim, a liber- dade daquele ex-indivíduo alado se concretizava, tendo a morte como castigo. O Menino pensou em qual teria sido o crime. Houvera algum dia velhas-insetas-agiotas?

XXVI

Meses antes da fuga ainda, iluminou-se na mente do Menino um novo desejo pela cidade. Não o distrito a que pertenciam as

208 Thiago Sogayar Bechara terras de seu bairro rural, mas a cidade mítica de seus ideais; aquela que carecia existir precisamente em contraponto ao sítio em que morava. Mas em que deus havia pensado para a utilidade original das cidades, se foi o homem quem criou as cidades, ape- sar de o homem ter sido criado por deus?

Os postes dessa sua cidade ideal eram candeeiros e faiscavam enquanto ele voava em torno, atraído pelas luzes através seus olhos de cão farejador. A caça dele era, contudo, uma massa em- baraçada de dúvidas que faziam pressão para fora, e que ele pou- co detectava com clareza, porque aquele era o anseio do passado mesclando-se ao futuro; era o contraste de sua curiosidade pelo novo em relação ao amor que lhe tinham aquelas paragens. Na- quele tempo ele ainda não havia descoberto o seu amor por elas.

Era assim que ele se consolava do medo miúdo que às vezes agulhava o peito - o medo de perder certa segurança em que vivia. Mas qual segurança, se ali mesmo era seu próprio abismo? Sua realidade atual era bem menos segura do que provavelmente se- ria caso perdesse esta suposta proteção; caso tivesse respostas para cada uma de suas perguntas, pois respostas são sempre pe- rigosas, mas não mais do que ficar com as perguntas sem ao me- nos tentar respondê-las. Ele se consolava, portanto, às avessas. Quando temia a solidão do mundo lá fora, encorajava-se pen- sando que dentro de casa também vivia só. Era verdade, o que não impedia que o medo abocanhasse-lhe os órgãos. Depois dor- mia, quando a lua anunciasse a era de seus tempos adiantados.

O vestido de laise 209 XXVII

A cada garfada, o Menino apoiava os cotovelos na mesa e sus- tentava o queixo com as mãos, mastigando para cima, para baixo e junto do feijão um novo pensamento sobre ele adulto, já dis- tante daqueles talhões cultivados pelos caboclos de seu colonato e para os quais o pai pretendia, mais do que nunca, convocá-lo, entre velhas crises e novas geadas.

Há tempos o pai vinha resistindo à única alternativa viável que se apresentava. A substituição do café pela pecuária solucionava em grande parte a perspectiva de prejuízos, mas ainda deixava na boca o gosto amargo de uma traição aos seus. Houve noites em que sonhara com cafezais soterrados sob a terra revolvida pelos tratores. Uma grande reforma clareava o horizonte, deixando to- cos secos como resquício de uma memória. Cada talhão de café, protegido do vento pelos grandes cercados vivos de grevíleas se- riam longas extensões de pastagens; e aquelas árvores, paredes rígidas de uma casa abandonada e sem teto - protegendo o vazio de sua própria desolação.

XXVIII

Todo o futuro que chegava ao coração do Menino em forma de cobrança não passava da antecipação de problemas que estavam, em tese, longe de se apresentar. Mas muito pouco se acalmava nele caso a mãe o acolhesse ao colo em busca de lhe restaurar a paz-do-açude na respiração acelerada. Ele era tão pouco, tão fran-

210 Thiago Sogayar Bechara zino, quase nada. E, já moleque, um turbilhão. Repulsa e fascínio expandiam-se nele e, quase sempre o preço a saldar por acionar seu mundo de fabulações pré-ocupadas, era ter de resistir a uma enxurrada de apreensões. Suas expectativas o arrancavam de seu chão, num tornado que o transplantava para fora do verdadeiro Amor, que é o ventre de onde se nasce.

O amor de quem passa cinco, dez, vinte e cinco minutos a entregar os olhos em direção ao perder de vista, contemplando o topo da colina ao pé da qual está plantada sua casa; guardando em silêncio a sensação de pertencimento. Silêncio não, que havia as aves, o vento; a mãe sintonizando chiados ininteligíveis pela rá- dio; é que este era o som da sua mudez, coroando a fundação de uma cidade inteira dentro dele enquanto a natureza o abraçava. E ele se dividia.

Os rochedos já se incrustavam nele, como na serra, entre a diversa gama de verdes que embrulhava sua terra arenosa. E um desejo jamais se esvaíra: o de saber por trás dela, o que have- ria; mesmas casinhas caiadas e pomares fora do alcance de seus olhos? Taipas, tulhas, paiois e terreirões lajotados, atapetados de café em coco secando seu negrume de um lado enquanto, de outro, montes cobertos pela lona – fixada por quatro tijolos em cada uma de suas extremidades - esperavam para entrar numa antiga e ruidosa máquina beneficiadora, pegada ao grande alpendre late- ral? Ou a varanda de alguma cozinha em que galinhas ciscassem seu ressabio, acomodando-se por fim sobre o fogão à lenha para desfrutar do calor restante do almoço? Haveria aquelas mesmas invernadas a perder de vista ou então um luzidio acimentado de civilização que o conduziria de sua aldeia para a urbe iluminada, modernamente iluminada por seus paralelepípedos reluzentes?;

O vestido de laise 211 porque em suas auto-explanações tudo nesta nova era irradiava uma luz transformadora que ele só conhecia à distância.

Foi num diário manuscrito futuro, escrito anos após sua fuga e achado na velha arca onde depositava seus textos – o diário es- tava envolto em papel pardo amarrado com dois barbantes em cruz –, foi lá que se encontrou uma pequena anotação feita ao centro da página. Ela reinava sozinha, numa letra miúda e bem desenhada, embora nem sempre muito legível, e rogava afinal: “Que eu seja sempre um homem de livros por perto que continuem me abrindo gentilmente as portas para o abismo”.

Fora em sua adolescência, contudo, aos treze, que ele primei- ro despencara, numa das infinitas vezes em que chegou da aula, caminhando desde muito antes do bosque de eucaliptos que se via da janela de madeira da cozinha; uma janela sobre a pia. Na- quele dia, que era para ser mais um, o Menino suspirou por suas costas aliviadas do peso da mochila de pano; e neste suspiro havia mais que alívio, havia mais que libertação, havia certa nostalgia. Aquele suspiro fez desabrochar em seus olhos um grande trilho luminoso em direção às nuvens; e este trilho, se fosse seguido, conduziria à vivência turbulenta de um grande centro urbano.

Desvencilhou a corrente presa num prego torto, batido na ma- deira dura do mourão e, com certa resignação pela repetição do ritual, esgueirou seu corpo franzino pela fresta que ele conseguiu abrir, empurrando com os ombros a porteira e deslizando para dentro. Ela se tornava ainda mais pesada por estar proposital- mente num declive do terreno, de modo que se fechasse a si mes- ma quando esquecida aberta, o que evitava fugas da criação. Ele transferia para a porteira o impulso contido de seus desejos, im- primindo àquele gesto de abri-la uma simbologia, a da libertação

212 Thiago Sogayar Bechara criativa de seu rebanho. E era um corisco para lançar-se inteiro, a salvo, dentro das redomas de seu terreno, fantasiando que se- ria assim que ele de fato abriria para sempre sua passagem – como o fez pouco tempo depois, quando finalmente tocou pela última vez aquelas correntes.

Mas até lá, foi sempre o mesmo ritual. A porteira batia, pe- sando sobre o mundo num estalido seco de madeira contra ma- deira e que reverberava por todos os vértices do horizonte. Seu baque agudo tiquetaqueava até os ouvidos da mãe, e esta marca- va o tempo do eco com os sentidos. Assim desdobrava-se até ela o anúncio de que o filho estancaria no degrau da varanda, chega- do da escola. Debaixo ainda do sol, se desvestiria do guarda-pó antes de bater os pés nos lajotões de pedra com as botinas rotas no calcanhar e, em seguida, esfregá-las pela grelha de ferro posi- cionada à porta para reter o barro das solas. Depois, guardaria o material no quarto e logo surgiria novamente à porta da cozinha com um livro em mãos. Só então a mãe virava-se para confir- mar, com ternura nos olhos, seus presságios diários, mas que ela sabia não pelo hábito da repetição, e sim com a intuição reno- vada a cada dia, legitimada por seu instinto.

Quando ele a espreitou naquele dia de despenhadeiro por suas novas ideias de renascimento, ela estava de costas picando ce- bola, quebrando ovos e atiçando a lenha sob as panelas. Mas es- tranhamente não se virou! Fazia tudo como que ao mesmo tem- po, o que conferia aos seus gestos uma agilidade bastante hábil e, para o filho, insubstituível. Como sempre. Contudo, não se vi- rou. E o Menino, sem isto ignorar, apenas cumpriu sua parte nas formalidades domésticas ensinadas desde cedo.

O vestido de laise 213 Louvado seja!, saudou. E ouviu um muxoxo entredentes em forma de Para sempre seja Deus, e, sendo assim, evitou destampar os panelões, como era costume, levando as baforadas quentes que escapariam de cada um para descobrir qual era a “bóia” do dia, e que era sempre a mesma. Ressabiou-se a ponto de não troçar da mãe, dizendo: Não chora, não... não chora, pelas lágrimas que lhe picavam as pupilas aceboladas. Silenciou apenas e voltou en- simesmado para lá da soleira, indo dependurar-se no balanço do quintal para nutrir a fome com literatura. Rosto tomado de um semblante altaneiro, semântico, cheio de pretensas significações para enganar a estranheza; sussurrou bem baixo de si para si um resignado é… – não era -, que ele mal soube dizer com um tom de voz que soasse menos alheio a si.

XXIX

Do mesmo modo que em 1929 queimou-se, no Brasil, grande parte da produção cafeeira como combustível de locomotivas, ao invés de lenha, também o sacrifício da parca produção daquele ano da fuga acabaria, na casa do Menino, sendo um propulsor às avessas deste vagão familiar, prestes a descarrilhar. Enquanto o pai evitava a todo custo vislumbrar a ferrovia, o filho frustrava-o, mais e mais, em sua íntima expectativa, por olhar para o horizon- te em busca de saber o destino daqueles trilhos; o pequeno era todo planejamentos minuciosos do momento no qual deveria sentir saudades de sua meninice, o que implicava distanciar-se dela. Como quem olha para trás do alto de um trono, repassando o orgulho do caminho percorrido. E de repente, a cadeirinha de

214 Thiago Sogayar Bechara madeira, bamba e pintadinha de um azul lascado, em que almo- çava todos os dias, transformou-se no altar de onde contaria aos filhos e netos as agruras de cada escalada. Embora insatisfeitos com o modo como crescia o filho, tais planos não puderam os pais prever, de modo que foram paralisados por uma surpresa apavorada, no dia em que tudo aconteceu.

XXX

Antes de fugir de fato aos quinze, sentava-se no balanço, aos treze. Era ainda sua forma de estar fora. Abria o livro maquinal- mente, empreendendo investigações menos etéreas sobre o per- fume dos fogões à lenha de sua mãe e da velha vizinha de sítio. Esta também cozinhava de cheirar longe e sua casa era próxima o bastante para que os almoços se encontrassem a meio caminho, nas cercas de arame farpado penduradas, frouxas, nos antigos palanques de eucalipto inclinados que divisavam as duas pro- priedades. O aroma dava piruetas no ar, entrelaçando seus dedos e ofuscando os sentidos famintos do Menino, que se detinha na irrelevância da questão com todo o amor que ele tinha por tu- do que soasse irrelevante. Era uma forma de se aproximar da mãe sem que ela soubesse. Fechava o livro.

Penetrar naquele aroma trouxe-lhe, certa vez, um sentido de rotina para o garoto, que pareceu despertar-se para uma abertura de seus poros, numa espécie de boa vontade nova para com o transcorrer dos dias. Era rara aquela plenitude, se é que assim se poderia chamar a fome reativada no menino; se é que assim se poderia chamar qualquer que fosse o momento do dia em que

O vestido de laise 215 se suspendesse nele a busca frenética pela imaginação de um fu- turo em favor de uma realidade carnal; se é que de algo se po- deria chamar qualquer dos brilhos da vida refletidos nos espe- lhos que revestiam a superfície cutânea inteira do Menino.

Haveria um dia de chegar a fração de segundo durante a qual nada nele teria nome; nada teria como ser nomeado, nem po- deria, porque ele próprio nesta fração que duraria séculos teria retornado irreversivelmente ao estado mais primário e integrado de seus antepassados, e não se chamaria coisa alguma. Nem me- do, nem desejo, nem fascínio. Neste século de horas, neste mi- lênio infinitesimal, ele teria podido entender-se como um galo ou mesmo como um boi, o que resultaria igual, porque também o boi seria galo; e o galo, boi, na suprema conjunção ancestral, no divi- no embaralhamento das convenções, na finalmente una vivência confluente de um planeta, um sistema inteiro vivo e interligado desde a gênese.

No galho do ipê que se lançava em direção à janela de seu quarto, ficava o balanço, brinquedo da primeira infância onde fora empurrado de leve enquanto, agarrado com as mãozinhas às cordas puídas, o pequeno sentira a brisa mordendo-lhe as maçãs do rosto e os cabelos lisos, a sentir que o mundo, enfim, era so- mente aquilo. Era lá agora que ele, já adolescente, sentava-se até o almoço sair, distraindo-se com o estalido dos angicos secos queimando no fogão e manchando de fuligem a parede branca. O mundo era bem mais! Seus olhos anestesiavam-se com a im- ponência daquela serra tão próxima de seu terreiro e ao mesmo tempo intocável.

216 Thiago Sogayar Bechara XXXI

Muitas esposas e filhos dos vizinhos acabaram sacrificando afazeres domésticos e estudos, obrigados a engrossar precoce- mente os braços: replantando, adubando os cafeeiros restantes, ajudando a derriçar frutos ao chão com os próprios calos, raste- lando e, por fim, abanando as folhas, gravetos, pedriscos, torrões e grãos verdes que, com a derriça, misturavam-se às “cerejas” que sobreviveriam à devastação de julho. Tudo para que a seriedade da crise não se agravasse ainda mais, nem se ressentissem tan- to os roceiros da dispensa de seus poucos funcionários. E também ver que seus vizinhos contavam com o apoio dos filhos fazia com que o pai se sentisse alheio à lógica de sua comunidade; posto à parte, vivenciando o fel da distinção. Invejava um gesto tão sim- ples, mas que denotava a comunhão. A convenção de um mesmo idioma. O diálogo capaz de afastar a solidão que era ser pai de um único filho, agora desaparecido.

O Menino, sempre poupado, vira o mundo entrar aos galopes pelas rédeas do pai, em franco antagonismo com sua interiorida- de, suas demandas e identificações psíquicas. Uma pressão silen- ciosa o impelia a compactuar de alguma maneira com os cenhos franzidos dentro de casa; as tensões iam pondo no ar uma atmos- fera de preocupação crescente, feito nuvem negra a aproximar-se, fechando o tempo, asfixiando a vida sem recuar, e encurralando sem que nada se pudesse contra. Mas em sua existência caiada, o Menino não tinha forças para a luta, não via meios de canalizar energias para qualquer questão que fosse alheia ao seu embate interno, oculto pela confiança de que tudo não passava de uma onda. Mas ele nunca havia visto o mar.

O vestido de laise 217 XXXII

Ficava horas embaixo da árvore, olhando flores caindo feito neve no gramado, e ele também nunca havia visto neve. Só pen- sava em alguém e em como queria poder ler livros para ela, para o mundo; compartilhar, desafogar-se de tanta solidão, a solidão que é saber só para si. Lembrava-se de alguns dos colegas da clas- se, todos eles sabiam coisas interessantes. Quase todos tinham o conhecimento de algum outro mundo. Falavam da casa de um tio em Ribeirão Claro, comentavam como era quente e movimentada a estrada depois da grande ponte pênsil que levava à Chavantes. Ouviam os primos de São Paulo contar como era viver conectado, o que era ser globalizado e como odiavam não saber de nada dis- so que estes primos diziam; como era estranho o isolamento no século da interligação.

Para o Menino não importava o que era. Eles conheciam, bem ou mal, o tamanho de seus prejuízos pelo confronto direto ou indireto com o outro lado da ponte. E era como se uma barreira se interpusesse tirânica entre as ondas radiofônicas pelo ar e a fazenda onde vivia. Sentia como se nada lhe chegasse, senão o improvável acervo de sua biblioteca escolar. Impressionavam-no os resquícios desse mundo que mal atingia aquelas crianças-fonte- -de-sua-angústia, mas que para ele era já muito. Não conseguia iniciar a leitura quando estes pensamentos o assaltavam, exta- siado que ficava, mirando, rezando pelo seu quintal que aderia com força dentro dele, dizendo coisas, tantas, a não mais poder, e ele sem dar conta de alcançá-las, como os frutos mais altos do pé de uvaia. Obstruído pela paixão, bloqueado pelo fascínio e pe- lo vazio de não-saber. Religava-se com sua própria vida futura

218 Thiago Sogayar Bechara onde veria florescer ipês como aquele, só que plantados em que terras? Abria o livro novamente.

XXXIII

O contraste desses mundos o habitara o tempo inteiro até ali. O atraso e o adiantamento, como seu balanço no quintal, indo e vindo, pareciam reflexos do que ele teria vivido num passado distante e que permaneceria vivo dentro dele. Mas esse passa- do ainda era seu presente. Pensar nisso dava o impulso de erguer- -se dali com a mesma dignidade com que gostaria de lembrar-se um dia. Mas fracassava, sempre que o pai estivesse por perto.

Essa era a forma de existência do Menino, indo e vindo na história... do mundo, das coisas, da sua própria, sempre pronta para a dinâmica do tempo, constantemente prestes a rebentar, ser resgatada e redimensionada no futuro, e assimilada de novas maneiras; novas sombras, novas paredes do mesmo espaço; não obstante a surpresa pelo que permanece intacto e não pelo que muda. Este é o real sentimento da História, ele intuía; o de algo que foi e ainda é; da essência que apenas existe, assiste, resiste às transformações superficiais do mundo ao seu redor, enquanto o cerne...

Essa era a instância última da memória intocada, de uma vi- vência marcada a ferro, feito rês, e arquivada; sempre latente e ativa nas dinâmicas futuras. Como o retorno, após décadas, ao antigo prédio da escola onde foi nossa infância. Como o retorno

O vestido de laise 219 à esquecida estrada de terra, percorrida todo dia junto dos co- legas, driblando o gado solto, fugitivo das cercas frouxas e en- ferrujadas. Era sobre coisas como essas que o Menino debruçava- -se durante o almoço, dissecando animais dentro de livros antes de fugir; ele mesmo inseto, escancarado em sua obscenidade.

XXXIV

Enfim percorria detidamente com os olhos muito redondos as primeiras linhas de determinada página onde havia parado. Na noite anterior ele havia percebido, achando graça, ter lido menos do que o que sua curiosidade ansiava realmente, apenas para economizar o livro; potencializar a necessidade de chegar logo em casa da escola, no dia seguinte. Sentir aquela urgência pela leitura fazia com que ele se sentisse mais pertencente ao rol das coisas vivas, mais frágil, mais humano porque aquilo era fo- me de conhecer melhor sua própria espécie, as várias civiliza- ções capazes de serem construídas pelas várias configurações de caráteres e personalidades contidas numa estrutura biológica que pouco diferia de indivíduo para indivíduo, na sua essência. E que direta ou indiretamente se refratavam para as páginas. Com um livro em mãos, ele segurava o mundo.

Veio-lhe com força à mente uma luz: éramos todos muito iguais em nossa maquinaria, nossas engrenagens e roldanas, e disso derivava seu incômodo de não decifrar, afinal, onde estaria o ponto de dissociação; aquele que faria de cada criança nasci- da todo um universo à parte; à parte do mundo em que nasce, à parte de si mesmo até, que talvez sejam os instantes em que nos

220 Thiago Sogayar Bechara contradizemos ou voamos para as histórias; histórias que faziam não com que respostas se lhe vacilassem na mente ou na compre- ensão; ao contrário; mas ao menos uma perspectiva provisória de que se aproximava, grão em grão, de alguma verdade. Já era algo em forma de esperança... em forma de mão de mãe acalmando novamente sua respiração revolta, até que ele dormisse. Afinal, seus livros não traziam senão certo alívio de notar que outros, além dele, sentiram as mesmas necessidades e, ademais, sabiam formulá-las de alguma maneira, o que o redimia em grande me- dida, pela noção da pertinência de seus questionamentos, pelo afrouxamento de sua solidão, por sua existência em sua própria época, logo ele que atrasava e adiantava a vida sem nunca parar em seu tempo. E todos esses pensamentos ocorriam-lhe em pa- ralelo à leitura, em forma de sensações físicas nunca organizadas em linguagem.

XXXV

O rapaz não deixara de notar naquele pai, que viera conversar amavelmente meses antes de queimar-lhe os escritos, a capacida- de de uma variação sensível de temperamento, e isso revelava com surpresa o grande domínio deste homem sobre seus humores, pois mostrava-se capaz de conduzi-los conforme a ocasião, o que nunca havia sido notado antes, ao menos não com essa clareza. Tal virtuosismo de camaleão realçava a opção que o pai fazia de- liberadamente em tratar sempre o filho por meio de imperativos rudes e intolerantes. Afinal, sabia ser de outro modo. E aquela venenosa intolerância, afinal, fora sempre calculada?, donde o

O vestido de laise 221 Menino entendeu, com um tremor no corpo mirrado, que a ris- pidez não era o único modo possível daquele homem, mas uma conduta aplicada. A instância da doçura não era uma impossi- bilidade, apenas uma descrença. Aquilo fez grande impressão ao jovem nos dias que se seguiram.

Na Voz grave do pai, rebombava o eco de toda uma civilização. Ele buscava dentro de si as histórias de família que mais con- tivessem, segundo seu crivo próprio, a força de comoção com que ele desejava tocar a alma do filho. Esperava que, comovendo-o pelas memórias afetivas de seus avós, o interesse do Menino se- ria acionado, como o adubo certo para determinado tipo de terra. E que, por meio deste interesse, acontecesse afinal sua vinculação.

Principiou narrando métodos de aproveitamento do solo, mas de tal forma que aquele conteúdo se parecesse com um material de história ou do que ele imaginava ser um arremedo de literatura, para buscar falar a língua do filho. Sem saber que o fazia, o pai fabulava, recriando as lembranças, buscando cores e brilhos com que revesti-las; e o Menino, ainda que notando o artifício enge- nhoso, permitiu-se adentrar, achar curiosos fatos como o noma- dismo de seus ancestrais (e dos humores do pai). Deixando a ma- ta reerguer-se, abrindo novos assentamentos, ficara sabendo que os primeiros caboclos desbravadores daquela região iam rabis- cando, revolvendo o solo para depois desenhá-lo na mente com arados movidos a bestas, estercando-lhes os sulcos. E que, há muito, os rudimentos coloniais da tecnologia agrícola manti- nham-se praticamente intactos. Assim permaneciam essas lavou- ras, do tempo das bandeiras em diante, durante todo um trans- correr inominável desta matéria tão gasosa quanto impermeável que é o Tempo.

222 Thiago Sogayar Bechara Noutra época, o pai engravidara terras alheias. Hoje se fundia à própria casa, amarrando os cipós não barreados de sua memó- ria às pequenas e honradas janelas do cômodo de entrada, dan- do para o alpendre frontal de seu entardecer. Muito orgulho sen- tia pela força de seus braços, acalentado ao final do dia pelo chapéu de palha de junco posto ao canto; fumo de corda picado e enrolado; a viola dedilhada gemendo os lamentos de um final de tarde que terçava com os arrulhos da asa-branca, na velha mo- dinha de João Pacífico. O choro de sua vibração posta junto ao peito para acompanhar os sentimentos engrolados do cantador. Este, esparramado na rede em seu camisolão sobre as ceroulas curtas, cachimbava sua madrugada prestes a despontar justa- posta ao entardecer. Eram verdadeiros quadros vivos de um Almeida Júnior aquelas cenas pintadas pelos gestos do pai, sa- gradamente ignorante da existência do pintor ituense; mas fiel aos seus traços.

O menino atentava para as histórias enquanto engolia seu al- moço. Admirava-se, com efeito, de tudo aquilo que o pai possuía na memória sobre sua gente, e ele não. Olhava-o, sem perceber, de um modo que não o via apenas como seu pai, mas como pai de todo um modo de viver que ele sintetizava em suas contações com a mesma rapidez e ferocidade com que a terra suga a chuva após o estio. No entanto, ainda assim, as necessidades do jovem já não cabiam mais naquela sociedade de séculos atrás, forjada dentro de sua casa. Nem mesmo o pai encontrava mais o equilí- brio necessário entre as necessidades da família e um meio básico de satisfazê-las, embora isto não assumisse nem para si.

O que o Menino fazia involuntariamente era reforçar ainda mais a ideia de diluição desses valores em que o patriarca se

O vestido de laise 223 encontrava. Como se o filho o puxasse à força para frente, pelo cabresto, e o arrastasse no tempo, mostrando-lhe enfim a im- pactante realidade: ele não vivia mais naquele mundo herdado do avô, mas numa nova lógica que começou a desintegrar os elemen- tos básicos da cultura naqueles bairros rurais há pelo menos cinco décadas. Agora era o filho quem puxava o pai pelo cabresto que é a linha tênue que existe entre fabulação e realidade. O embrião da cultura caipira, amparada por um regime de parceria entre as comunidades, foi aos poucos se transformando. Do mesmo modo como se transformara também a dança mais típica dos caboclos daqueles arredores incalculáveis, que era o cururu. Era como se o pai ainda buscasse seus parceiros na antiga coreografia, enquan- to a função socializadora de outrora que a dança tivera se resu- misse, sempre mais, somente à prática do desafio, não à toa es- tabelecido por meio de um confronto apenas interpessoal dos dançarinos. O mundo agora dançava só.

XXXVI

Nada adiantou a conversa dos meses anteriores. O Menino se- guia em sonhos de cidade, embora, até antes de ver seus poemas arderem, aquilo fossem somente sentimentos vagos. Climas inte- riores produzidos por um simples oscilar da luz ou da temperatura do quintal. Pensava solto, dando com tudo de supetão na cons- ciência; os quero-queros rasgando repentinamente o céu, desman- chando sua atenção do enredo de seu livro; desviando os olhos para o capão de mata virgem que havia na metade da colina, onde as aves estridentes sobrevoavam, como que a pedir que ele voltas- se a intuir o fluxo dos rios, sem que os avistasse.

224 Thiago Sogayar Bechara Era daquele regato ao pé da colina que vinham os cantos que- brando a oração do fim da manhã; distantes como abismo, seus gorjeios sobrepostos. O Menino quis ser também do bando para cantar; durante toda a revoada ir margeando a vida; dentro de ca- da pensamento em branco rabiscar. Como se fosse a própria mata quem cantasse; ou escrevesse seus pensamentos; aquela úmida e fresca reunião das espécies vegetais mais agrestes e desconheci- das dos botânicos nascia bem no coração daquela profusão de fo- lhas brilhantes e cipós retorcidos, vadios apoiando-se nos galhos dos caules mais velhos.

Ficava ali a mina. E o rapaz lembrou-se também de sua hones- ta amizade por ela. Era dela que vinha o provimento de sua sede e a higiene de sua alma; era graças à altura daquela serra que as torneirinhas de plástico, tão quentes quando o sol ardia o telha- do, recebiam com pressão o líquido morno encanado pelo próprio pai. Mãos lavradoras, capazes de antagonismos impensáveis. Mãos de maestro ferindo o ar com doçura e em seguida com presteza e rapidez cortantes.

Até então, o Menino apenas pressentira os realces existentes entre os vários pais que habitavam seu próprio pai. E por pres- sentir apenas é que se instalava nele uma dubiedade incômoda; uma luz vermelha que se acendia e que era um irrefreável discor- dar, que o picava; logo o pai que era um obedecedor sagaz e que o ensinara com determinação a importância de uma boa camufla- gem social; a indispensável faculdade do respeito aos superiores; a correção de gestos integrados às lógicas, às leis; o desacato su- premo que era infringir a ordem do estabelecido.

E isso era tudo, quando o Menino olhava a cada tarde para o horizonte, após mais três ou quatro linhas do romance que ele ia

O vestido de laise 225 intercalando, assim, com sua própria narrativa visual. E, ao cabo de umas horas, espreitava vazio para a terra sob seus pés e de- tectava internamente, com qualquer mudança na direção dos ven- tos, um pequeno enjoo a lhe cozer a alma, mas que era ao mesmo tempo bom, fonte de prazer e de missão cumprida; a missão que ele secretamente cumpria como uma vigança pessoal, destecendo – ponto a ponto – os principais tecidos que embrulhavam os cor- pos daquela família; desfrutando do deleite que era poder não concordar sem que ninguém soubesse. Eletrizava-o a descoberta desta nova possibilidade - a possibilidade de ser outro, que era ser mais ele mesmo. O gozo travesso que era errar deu-lhe um sa- bor indescritível da vida; um friúme percorria-lhe os ossos, e ele se contraiu inteiro, sentindo em cada membro o contraste entre a quietude da paisagem e sua artimanha recém-descoberta de botar-se para ebulir.

XXXVII

O Menino possuía a mesma força e o delírio de seu bisavô, no olhar brilhante e desbravador. O modo matreiro e sorridente, o passo lento e calculado. A paixão por suas raízes, não obstante o sonho de transformá-las. O cafezal de seus pais trazia em si a história do próprio Menino. E o Menino, a genética toda de seus antepassados maternos. Queria abrir estradas, conhecer o mundo e lembrar com amor sua lavourinha de gravetos enterrados à bei- ra da cerca, no talhão perto de casa, enquanto os pais trabalhas- sem com os colonos de enxada nas mãos, carpindo entre as mu- das recém-plantadas. Nos tomatinhos do mato, ele espetava qua-

226 Thiago Sogayar Bechara tro palitos à guiza de seu rebanho mocho. E aquilo seria uma boa imagem para ser lembrada quando tivesse saciado sua fome de correr vales, atravessar rios, varar cercas e roçados até chegar noutra cidade, repleta de ruas, sobrados, livreiros, cinemas, cafés – o Tejo!

XXXVIII

O Menino desenhava na memória cada pincelada daquele qua- dro que para sempre existiria em sua frente e, inconformado com o desvendamento, punha-se às vezes a desconstruir a visão, fe- chando os olhos e meneando rapidamente para os lados a cabeça, para depois sondar detalhes não percebidos ou sutis alternâncias da paisagem, decorridas talvez das mudanças de estação, das chu- vas de borrasca após o estio ou das açoitadeiras; dos vendavais diários tão propícios ao útero que era a baixada cercada de mon- tanhas em que ficavam as terras daquela família. E pensava em como a mesma serra era a cada dia outra. Costurava os conteúdos aprendidos, alinhavando os livros às montanhas. Mesclando as formas e os odores. Cerzindo sua fazenda própria e recriando as- sim os sentidos e os autores, a cada dia, a cada tom de verde, a cada luz sobre a serra. Vidrado em cada descoberta; lambendo os bei- ços de prazer por ter em mãos sua ponte, uma passagem para o mundo inteiro, paragem sem cercas nem limites; algo tão saboroso quanto caminhar sobre cada página, o que não raro lhe impedia o começo da leitura, amando em silêncio a dor de tan- to encantamento.

O vestido de laise 227 XXXIX

Aquele sentimento moveu, um após outro, os dias de sua in- fância. O de buscar religar-se consigo por meio do contato com a civilização. E o desejo se estampava em cada minúcia de sua vida, como quando ele escolhia na biblioteca da escola o próximo romance; como quando ele colhia do galho mais baixo a mexerica mais literária do pomar.

Um ano antes da fuga, havia plantado um pé de manga, atrás da casa. Vez por outra ia até ele, ter com a novidade de seu futu- ro. Aquele pé estaria ainda ali quando ele por fim virasse ape- nas um retrato? E ainda assim, se isto acontecesse, qual função o pé teria? E quanto do doce de seus frutos restaria em sua lem- brança quando se tornasse adulto, com seus pés já bem longe dali? As folhas novas que murcharam com o sol nos dois primeiros dias de plantadas logo haviam recobrado o ânimo e sustentavam o pró- prio peso, altivas para a eclosão dos novos brotos arroxeados. O Menino sentava-se num tronco caído atrás da muda e punha-se a olhar sua mangueira, namorando o esplendor de sua existência, a surpresa pela força de sua delicadeza, aguardando com os olhos o seu crescimento, aprendendo ele próprio o brotar e o amadurecer de cada folha, inerte e ativíssima.

XL

Ele demoraria a descobrir, mas também estivera autor em cer- tos momentos daqueles dias, pois adequava a compreensão dos

228 Thiago Sogayar Bechara volumes aos limites de seu espaço visual, enquanto munia-se das histórias para inventar outro sítio, outro ipê, outro ele próprio, numa expansão desenfreada e necessária para completar as gro- tas que se abriam no seu peito.

Sua mãe gritou de repente, chamando para a mesa com sua Voz de siriema. Mas o que ouviu nela, estranhamente, foi um ele próprio; como se escutasse o que já esperava ouvir, ouvindo o que ele fora antes de nascer. Relâmpago sonoro em que um som de fora transmutava-se em dentro, inexplicavelmente. Resgatando a lembrança de que ele descendia de elementos exteriores – e an- teriores - a ele, mas assustadora e irremediavelmente interioriza- dos. Assim deu seus primeiros sinais, antes da fuga, o fenômeno da Voz que o acompanhou pelo resto da vida.

Nova pausa na leitura. E viu-se intrigado pelo abrupto da secção; em seguida... apenas reticências pois, na dúvida, fora enredado num embate que, no fundo, o que fazia era inquirir qual daqueles dois alimentos cheirava melhor. O da mãe ou o da vizinha. Pensou, contudo, no grunhido que seu estômago emitira, e resolveu, en- fim, levantar-se do balanço e ir almoçar, não obstante o livro, cuidadosamente posto sobre seu pequeno colo atônito. Feito o embalar de um filho – o que também é alimento.

XLI

A cada bocado de almoço, naquele dia em que confeccionara os gestos dos próximos dias – os últimos ali, sem que soubesse -, o Menino forjava também o traçado de algumas linhas, embora

O vestido de laise 229 não as pudesse formular como sentia. E, certificando-se de que o pai já estava longe, entretido com o ir e vir ritmado de sua foice, olhava com determinação para aquele trampolim de taquaras que era um livro em seu regaço, como que pensando estarem nele os saltos todos de seus netos, contrastando violentamente com o mundo em que estava; jamais compreendera inteiramente a di- mensão de suas disparidades.

O Menino levantou-se, por fim, limpando a boca na manga da camisa, e voltou vagaroso para o balanço onde suspirava apenas, engasgado pelo silêncio, e sorvia com força nos pulmões a matéria gasosa de que se compunha seu desajuste. A mãe, vez por outra, chamava-o pelo nome, e indicava com um meneio sutil da cabeça o pai, distante no talhão, como que a encorajá-lo a oferecer qual- quer resquício que fosse de sua presença. O rapaz ronronava co- mo quem assim, muxoxando qualquer coisa, satisfizesse plena- mente a solicitação da mãe, e ela desistia então, paralisada por sua impotência; silenciosa quando o filho chegava da escola em pura inabilidade para com a instância do não; para com a esfera das obrigatoriedades. Calando era que ela se protegia da angús- tia que a obrigaria a desprotegê-lo. E ele sabia virem desse ins- tinto sombrio de preservação da mãe as razões daquela sua for- jada e antinatural frieza. Por isso não se virara da pia quando o pressentiu entrar da escola. E, contudo, parecia apenas mais um dia.

230 Thiago Sogayar Bechara SEGUNDA PARTE

XLII

Para aqueles lados do bairro rural, o mulherio da comunidade, seguindo a tradição de estiagem, reunia-se em novena para lavar a figura de Nossa Senhora no rio Timburí. A molecada, a gran- de custo, convencia mães e avós de que se portariam enquanto as rezadeiras imergissem a santa, rogando pela chuva. E o ritual repetia-se pelos nove dias ao cabo dos quais, como que por mila- gre, o céu enegrecia-se abrindo as asas de leque de um São Pedro que ventava para longe a secura que já amarelava o chão das invernadas. Assim como as crianças no primeiro dia de reza, as primeiras gotas chegavam mansas; pipocando apenas cá e lá, man- chando de escuro as pedras do terreirão. As copas do pomar co- meçavam sua dança lenta até embalarem num ritmo frenético, digladiando-se em sinfonia e anunciando a tormenta que traria, gota a gota, o cheiro molhado de terra para o redor da casa. E era quando a criançada também se alvoroçava no ritmo da chuva que se intensificava.

Então o fervor daquelas mulheres se misturava à algazarra de felicidade que era para seus filhos descumprir as ordens do bom comportamento, meticulosamente, uma a uma, e sair correndo pelos pastos, chapinhando poças d´água debaixo da tromba e ra- lhando uns com os outros com vozezinhas de mãe a fazer troça do que sabiam que ouviriam quando chegassem em casa; arre- medo antecipado de suas próprias broncas, rindo às fartas o riso de sua leveza infantil.

O vestido de laise 231 XLIII

O pai roçava entre os arruamentos da lavoura e, quando vi- nha à tulha para apanhar qualquer apetrecho, não escondia do filho um olhar de pedregulhos, feito de inconformismo e culpa, misto de vergonha e raiva que lhe queimavam as entranhas, que obscureciam seu entendimento do que devesse ser a sucessão, a transferência natural e irremediável dos valores e tradições fa- miliares. Era a única praga que ele jamais conseguira extirpar daqueles pastos porque suas raízes estavam fincadas numa in- vernada analcançável dentro dele mesmo. Focava de esguelho a mulher. E seus olhares se cruzavam pelas mesmas vias aéreas, todos os dias – invisíveis, assim como o Menino imaginava fi- car; invisível, sempre que estava no balanço de livro em punho, fabulando, escrevendo, vendo os pais consumirem-se, incapazes de açoitá-lo por entenderem implicitamente que a iniciativa ti- nha de partir dele, com a espontaneidade que se espera dos her- deiros de uma linhagem como a deles; a imposição quebraria o fascínio da naturalidade. Mas algo então já havia trincado.

Nos carreadores dos pastos que ele recriava, o sonho desper- to do Menino o levava por trilhas invisíveis do gado enquanto amadurecia seu plano sem saber. Também ele trotava em seus próprios pensamentos. Certa vez, a relembrar-se, foi dar no dia em que, sentado às margens de um ribeirão na divisa com o vizinho para as bandas da pedreira, avistou ao longe a revoada de umas aves em V, singrando o céu. Trajeto antigo e não menos longo que o de sua ida às aulas; contudo, não havia sobre tal traçado invi- sível carroças que deixassem com suas rodas os sulcos na terra mole, onde ele normalmente pularia dentro e fora, dentro e fora,

232 Thiago Sogayar Bechara depois de secos. Era uma estrada azul feita de nuvens e eternida- de. E nem cerca não tinha.

XLIV

Um primeiro trovão principiava a rasgar o céu das rezadeiras, dando as primeiras notas de seus rugidos e ensaiando o cântico para reluzir nas mentes seus raios e ventanias, frias; e a água se precipitando, agora furiosa, batendo contra o chão o estrépito de suas lâminas aquosas. Novos esgares celestes em seus flashes cla- reavam os cômodos escuros da casa do Menino. Pairava, com isso, sobre toda a região mais um endosso da certeza de que o rito dos nove dias era, de fato, o tiro para a queda d´água. Bastava molhar a santa com crença e fervor no ribeirão, como há séculos se fazia, para chover às fartas toda a dádiva dos roçados e das pastagens. Como era bom poder pescar de peneira porque, nestes dias de água barrenta, além de lambaris, encontravam-se também os gran- des bagres que, em geral, só eram apanhados à noite.

Naquele estio, o Menino resolveu também descer à grota e re- lembrar os passos da procissão que ele só sabia vagamente pelo que guardara de sua última descida, quando ainda tinha nove pa- ra dez anos. Ele estendeu seu braço para que a mãe o enlaçasse, tal-qual deviam fazer os cavalheiros com as grandes damas, pro- vavelmente muito longe de currais e porteiras. Mas quem even- tualmente flagrasse a cena, surpreso, não teria sabido as origens europeias daquela família, às quais, vez por outra, um deles alu- dia silenciosamente com pequenas atitudes, que apenas reme- tiam suas imaginações ao que supunham ter sido o gestual de

O vestido de laise 233 seus antepassados longínquos e refinados. Isto com o rosto mui- to solene, um sorriso oblíquo mais para o cômico, interpretando a etiqueta de uma côrte que em algum lugar eles ouviram men- cionar que se compunha de tais modos empolados. Riram muito depois de desempenhado o papel de cada um naquele salão im- perial, e seguiram para a entrada do pasto que dava acesso ao trecho mais fundo do riacho, e que ficava para além do talhão de café que divisava o bosque.

Prosseguiram em silêncio, sandálias puídas arrastando os cas- calhos soltos da estrada, quando alguém avistou, contraluz, um vulto, pastando os acostamentos invisíveis de um verde viçoso, irradiando luz solar, que era onde ninguém pisava. A vaca era um verdadeiro monumento, tão displicente e esquecido do mundo quanto as esfinges. Cabeça baixa, dois ou três passos lentos, en- golia sem pressa o quanto pudesse do capim que passaria a tarde ruminando e intercalava um bocado e outro sacudindo as ore- lhas com força. Ruminava com a mesma competência de uma es- tátua, que também só vive para se regurgitar a si.

XLV

O Menino via-se, em tais lembranças emolduradas pelas es- tradas azuis de nuvens, como um efetivo anônimo, sentado ao chão com as pernas finas estendidas sobre a terra piçarrenta de um barranco malcoberto, e buscava compreender por que diabo de razão havia ele nascido em tal condição, com qual função. E não ia nessas sondagens, especificamente, rejeição, revolta ou algum tipo que fosse de descontentamento com sua vida; mas,

234 Thiago Sogayar Bechara a princípio, apenas a dúvida a respeito de que força oculta e im- ponderável o jogara nesta vida e não em outra; e não em outro: sistema social, cultural, econômico ou religioso; e por que não noutro planeta onde os tipos de distração fossem de outras or- dens e as coisas tivessem outros cheiros?, e que os lazeres não comportassem pescarias de domingo como aquela, que fisgava esse tipo de desejo sobre o que poderia ter sido - e sobre o por quê do que é.

Nos seus olhos de menino, brilhava a varinha de bambu (que ele segurava desengonçadamente com as duas mãos, suspensa até o centro do poção), lá no fim da ribanceira, formado de pe- dras brancas e polidas pelos séculos no entorno do local mais fundo do riacho. Tem peixe tanto que falta é água. E pintava-se o retrato da paciência, à espera do peixe feito de pratas escama- das, beijando o anzol.

Em seus devaneios, fixava os olhos de sua memória no bando de rolinhas fogo-pagou que surgia de dentro do canavial, farfa- lhando as asas como guizo de cobra, e o que queria o Menino era segui-las para onde rumassem, como que se esquecendo do limite próprio do olhar. Existo, teria escapado de sua boca, se ele ao me- nos tivesse esta certeza. E o som das águas foi que lhe deu este mimo, que era o pudor de não dizer o que não sabia. Seguiu son- dando sua pequena importância, que era a de integrar aquilo tudo, e as pequenezas de sua rotina foram aos poucos se agigan- tando, sendo sentidas como nunca, porque tudo agora se resumia a elas e isso também era bom, porque anulava a força do conflito externo vivido por seus pais. Como uma generosa dádiva que es- tende aos homens o gozo inesperado; profundo como aquele po- ço, quando se entra num estágio da percepção em que tudo figura

O vestido de laise 235 com brilho especial, espelhado, simétrico e dotado de certo sig- nificado oculto. Tudo tão ali para ser fisgado. Viver era apenas aquilo mesmo.

De súbito, transpassou-lhe a ânsia de perpetuar aquele enle- vo pelo tempo que durasse o seu para sempre de menino, e uma instantânea fome se formou em seu corpo; fome de experimen- tar rever todas as coisas que ele conhecia do mundo com aquela nova lente justaposta à janela dos olhos, preenchendo o oco que nascia nele a cada instante. Repassando a limpo bicho a bicho, folha a folha, vida a vida, tudo a tudo.

XLVI

A vizinha, que chegara para a descida ao rio, mal esperou o bom dia das amigas e já se pôs a tanger sua vaca; era dela o animal que escapara ao piquete, e ela o reconduzia com a firmeza más- cula de um sertanejo, vaquejando, gritando comandos tão severos e irascíveis que bicho nenhum em sua sã inconsciência ousaria descumprir. Aqueles aboios de Eia-á! Vâmo!, tão enérgicos, repre- sentavam como que o brado contra a solidão imposta pelos anos; a defesa de sua existência contra essa solidão e, ao mesmo tempo, seu canto de vitória, certa exteriorização vocalizada, exorcizada, de um alívio fulgurante por subsistir; o grito de guerra daquela velha roceira, por saber que a guerra não cessara.

Aquilo assustara o Menino que, já tendo ouvido os aboios da vizinha à distância, jamais se ativera no quão surpreendentes podiam ser quando tão próximos, vindos de uma mulher tão

236 Thiago Sogayar Bechara avançada em idade; então olhou para sua mãe, parada, compe- netrada em roer um pedaço de unha do dedão do pé com os den- tes, e depois para as demais senhoras e crianças do grupo à sua volta a espera da descida, até que o vulto da vizinha, com uma va- ra na mão e a vaca à frente, desapareceram no calombo da estra- da. O animal olhava para trás intermitentemente, checando a pre- sença da dona; e, a cada aboio rouco da velha, a vaca soltava um mugido primitivo, como se ambas conversassem num diálogo aflito e sagrado, em que cada qual sabia bem seu papel na cena e, por isso, cumpria-o da melhor maneira que pudesse, quase com a mesma sofisticação dos braços dados mui languidamente do Menino com sua mãe, num rito ancestral.

Quando a vizinha voltou, sem indício de cansaço na respira- ção, estavam todos já distraídos, conversando ou sentados nas grandes pedras, menos o Menino que ainda mantinha os olhos na estrada, absorto em pensamentos de ordens as mais ocultas, so- bretudo para ele mesmo.

XLVII

À beira do poção, os sentimentos misturavam-se e o Menino já não sabia mais o que pertencia às lembranças de suas pescarias ou ao balanço em que esteve sempre a sonhar tudo. Atrasava e adiantava o tempo, indo e vindo do poção para seu quintal, para frente e para trás... as imagens se mesclando nas retinas; indo e vindo e agora escorregava o corpo com as canelas soltas no va- zio, entregando-se ao frescor que perfumava a terra, gelando seu corpo, ora com o vento do balanço, ora com o orvalho da grama na

O vestido de laise 237 beira do rio. Tudo apenas para ele; as raízes de cada pé de capim e a brisa arrefecendo o mormaço exalado por sua pele. E de repen- te o livro em seu colo virava agora sua varinha de bambu, condão agreste, e os peixes literários que pegava eram nuvens coloridas sopradas para dentro e fora dele pelas entrelinhas de uma capa dura reluzente que ele nem sequer abrira, e que já se deixava in- teira permear. Então se levantava e arriscava um passo, como quem aprende agora a tatear o chão.

Quando entrou em casa já era noite e custou a recobrar o ajus- tamento de si, com suas mil vozes ecoando mundos desconexos. Frases que vão e vêm do espírito lunar. Naquele novo instante, com os olhos inda baços, nada era mais de ninguém. Nada pos- suía patrão ou senhor, senão certa força divina que regia e regu- lava o crescer de cada avenca, samambaia, erva-de-leite, caroba ou coroatá. Foi o mesmo que comungar numa capela imaginária e, então, o Menino pensou com ternura no terço que, às sextas- -feiras, sua mãe rezava em casa da vizinha com outras amigas das redondezas.

XLVIII

Aquelas vozes voltaram, em ladainha, a impregnar-se com to- da força em seus ouvidos; a revelar com mais clareza o corte epistemológico que representariam para sempre em sua vida; uma viagem que ele faria para dentro de seu próprio pasto, por meio de cada corda vocal. Cada um dos cinco mistérios invoca- dos pelas rezadeiras da novena sintetizava agora apenas o do prazer que atingira naquela sua reza particular, que era o de pastar-se, alimentando-se, interiormente, de si.

238 Thiago Sogayar Bechara Nasceu no Menino a sensação de partilhar daquele sentimen- to inóspito e ainda assim tão cheio de vida que continha a Voz da vizinha. E isto o tirara de seus próprios pés. A figura que ele sempre vira como mera sombra da mãe, dada a longa amizade de ambas, instantaneamente conquistou um espaço involuntário den- tro dele, embora ele não soubesse ao certo qual. Mas que era des- colado; agora independia da referência materna que aquela mu- lher sempre assumira. A vizinha passava a ser dele.

XLIX

Parecera ao Menino que a Voz da vizinha tinha qualquer coisa a ver com a força com que seu bisavô de certo modo também fu- gira de Portugal para nascer de novo em terras paranaenses. Era como se o som produzido pela garganta da mulher em sua tex- tura áspera se transformasse num longo e estreito tapete de ve- ludo pardo, sobre o qual o rapaz caminhasse agora indefinida- mente, sem precisar prever aonde o caminho levaria, mas que definitivamente o afastaria do mundo concreto de cobranças paternas; não porque o som de uma Voz encobriria o da outra, escamoteando o problema, mas sobretudo pelas alternativas que seriam abertas pelo contato com aquele novo caminho auditivo na hora do enfrentamento decisivo, que estava então prestes a chegar. E isso encheu-lhe da coragem de expulsar de si os freios que o retinham.

Era como se a Voz daquela senhora dissesse, muito intima- mente: eu quero é cantar, livremente. Sentir a textura do som ro- çar pelas minhas paredes internas até ele ser traduzido em algum

O vestido de laise 239 sabor sonoro. Ela cantaria... e as modinhas que ela entoaria para o mundo trariam para a fantasia do Menino pequenas cápsulas de novo-entendimento; e esta compreensão, por sua vez, traria um fortalecimento das certezas e modos de lidar com as torrentes; e desta força surgiria o homem aboiando seu próprio futuro; tudo isso em cada nota da canção imaginada naquela Voz, em cada ver- so de sua letra, em cada movimento de um acorde para outro, e em cada modulação na intensidade com que se daria a emissão do aboio. Viver era uma grande vaquejada.

L

O que o Menino sabia era que a descida ao rio ganhara outras cores; outros contornos e expectativas. A partir da Voz! Saiu de foco o primeiro plano da fotografia que seus olhos captavam, e o que as lentes de sua alma localizaram fora o fato que, de tão ba- nal, entrara para sempre no mundo de sua fantasia feita de ba- nalidades imantadas. O Menino tinha a percepção turvada pelo encanto. E pouco ou nada adiantaria narrar sobre o ritual que se seguiu, posto que isto em nada refletiria o estado de espírito em que se viu imerso nosso herói, que logo estava de volta em casa com as cenas da reza somente maltraçadas nas retinas, feito qua- dros pintados debaixo de chuva, borrados já no nascedouro e, portanto, mais capazes (do que qualquer outro) de retratar real- mente a alma inapreensível de um dia chuvoso, no arribar de suas cores.

240 Thiago Sogayar Bechara LI

O riacho ficava ao pé do grotão, cercado de uma encosta feita naturalmente de pedras brancas e irregulares que formavam a ideia de um oráculo. No dia seguinte deram vez à segunda des- cida àquele lugar para mergulhar a santa em rogo pelas águas. E, de esperanças deslocadas, o Menino fora já com o coração ba- tendo por se reencontrar nem bem sabia com o quê. O fato é que não conseguia tirar os olhos da vizinha, enfeitiçado pela força agreste da velha que ele nunca reparara com tanto pormenor e que agora parecia estar-se mostrando por inteiro pela primeira vez, como se tudo o que ele soubesse dela até então fosse cas- ca. Hoje ele tocava o sumo, a polpa com os olhos, e se magne- tizava; isso gerou nele uma instantânea precisão de entrar na- quele universo.

Reconheceu naquela Voz uma candura fêmea. Seu timbre, con- tudo, talvez por certa rouquidão, remetia às tessituras masculi- nas e a tornava metalicamente expressiva das dubiedades ances- trais de um querer ser para si e para os outros, porque era an- drógina; contraditória. De tão expressivo, esse “canto” emitia impulsos para os quais o rol de padrões e referências do menino simplesmente não estava preparado. Era um plano de apreensão outro; a apreensão dos elementos musicais que já não desven- davam música nem coisa alguma. Deste confronto entre ele- mentos nasceu a consciência da dubiedade. Mas não de sua acei- tação. E subitamente o Menino viu-se com a incumbência irre- mediável de integrar a Humanidade; de assumir para si este trono responsável. Pensou no pai, de repente e sentiu um vácuo sugar

O vestido de laise 241 seu estômago ainda mais para dentro. Lembrar-se do pai tirava-o da zona de alívio.

Entrou, com isso, em novo estado de antecipação, em ânsia acelerada de viver a priori aquilo tudo de um futuro que ainda não havia e que talvez não houvesse, mas que o Menino pôs-se a planejar porque quando se cai sobre esta manta da existência responsável; quando se rompe esta fina camada da não percep- ção rumo ao canhão de luz, nada é capaz de conter os instintos precipitados de alguém em busca de si. E ele não sabia ainda, mas naquele momento estava já em fuga.

LII

Naquela noite, os olhos do Menino enfarinharam-se de sono e ele não os podia mais manter abertos. Vez por outra, para des- cansá-los sem suspender a leitura, brincava, abrindo e fechando cada hora um olho, intercalando os movimentos de modo que quando um estivesse aberto, o outro se fechasse, e isso fazia com que cada globo ocular enxergasse a mesma página, evidentemen- te, só que de pontos de vista diferentes; um, ligeiramente deslo- cado em relação ao outro; e, com isso, trechos mais à direita ou mais à esquerda da página dançavam como na troca de quadros em câmera lenta de um filme antigo; indo e vindo, mas sem sair do mesmo assunto visual.

Também a literatura, pensava ele, não passava de pontos de vista sobre os mesmos objetos, desde tempos imemoriais. E aque- le livro, ao passo que era visto, também via: de infinitos modos

242 Thiago Sogayar Bechara em potencial; e agarrava-se ao Menino, que sustinha sua cons- ciência como um fio tênue, em sobrevida. Se estava ainda se- miacordado, era porque o impulso de sua teimosia protestava e o impelia para o mais recluso de si mesmo.

Havia em sua luta para não dormir menos o interesse por qualquer enredo do que o medo de uma frustração com o vazio do mundo real porque, naquela tarde, ele prometera guardar a noite; entregar-se à leitura e isso era grande demais porque criava a expectativa ainda que ilusória de ampliar a noite às vias do inacabável, tornando a promessa da reserva um verdadeiro dilatador temporal, como o fórceps criado à risca para seus an- seios de fazer durar um momento bom de adiamento e solidão. Mas fosse alternando os olhos, fosse pensando na Voz, o Menino mal pôde compenetrar-se.

Passara o dia saboreando cada pequena obrigação da escola e dos deveres de casa porque sabia estar guardada na noite toda a relíquia de suas esperanças, como recompensa pelo prazer que destinara às etapas de seu trajeto rumo ao pódio.

Ao fim da novena, a cantoria daquelas mulheres havia ade- rido aos tímpanos do Menino e reverberava agora em seu es- pírito, mesclando algumas das imagens vividas às que ele sim- plesmente criara, trazidas à tona do subterrâneo fértil daquele ser-tão isolado.

LIII

Chegava a hora de deitar-se e, conforme ela se aproximava, era como se as feições distorcidas de uma pintura fossem aos poucos

O vestido de laise 243 voltando à exuberância de sua nitidez, como se a miopia se fos- se corrigindo com lentes descompressoras do tempo. Paulatina- mente, a noite voltava a caber em suas enxutas horas, das quais muitas teriam de ser destinadas, irremediavelmente, à escuridão do sono.

Assim, o pouco restante era mesmo um pouco, restante, de olhos arenosos. O Menino frustrava-se conforme ia empedrando a certeza de que o fim do capítulo andava por demais distante... e o sono aumentando, remando contra sua meta, vencendo a disputa.

Tudo ele sentia, aflito, e, enquanto isso, as linhas pelas quais apenas escorregava os olhos iam se perdendo para todo o sempre pois ele não voltaria atrás no texto, que era feito vida, e também não notava que enquanto pensava em sua frustração, cada pala- vra era também uma palavra-não-lida porque se transformava em seu significante oco, casinha de joão-de-barro alada, torneira aber- ta num quarto vazio. Como se dormir fosse perder da vida o que ela tivesse para oferecer.

Esvaindo, foi-se toda a lucidez porque em poucos minutos o Menino teve de abrir mão de todo seu minucioso planejamento; e ressonava agora no escuro de seu cômodo, coberto somente pelo lençol listado, cerzido suavemente com as faixas de luz que escapavam das frestas que o tempo fizera nas tábuas da parede. E era uma injunção luzidia de fachos azuis, fluorescentes para o corpo mirrado e todo entregue do Menino ao manto celeste, projetado no soalho.

A casa dormia e a natureza esculpia a arquitetura de seu subterrâneo. Do lado de fora, o ar parado às vezes dava lugar a sopros leves que ondeavam o capim, esfriando os sonhos do ra-

244 Thiago Sogayar Bechara paz e os coachos do açude. Aquilo era literatura saltando do rei- no da ficção, materializada, viva, escapulindo das páginas aber- tas sobre o peito imberbe, que não as soubera conservar em proteção dentro do volume, pois dormira antes de fechá-lo. Agora essas páginas existiriam extraordinárias, em forma de mundo (in)comum.

O gado ruminava impenetrável sob a solidão das castanheiras e os potros em torno sacudiam a cauda espantando impertinên- cias voadoras da noite. Enquanto os suspiros de inconformação do Menino saíam de seu quarto a galope em sua cela áurea pela estrada aérea de estrelinhas britadas ao pé da pedreira, a lua que vazara para dentro o santificava, e ele era o próprio salvador em sua manjedoura, fecundando o mundo com sua fé.

LIV

Era uma Voz fora do cerne do tempo, a que ele ouvia. Talvez mesmo porque parecia trazer dentro dela toda a História do Homem e, por isso, de todos os tempos e todos os homens; to- dos os aprendizados e vivências. Um som que não era alheio, mas que remetia a algo alheio à ordem vigente das coisas. Um áudio avant gard. Porque sabia desde lá de trás o que deveria vir! Esta Voz carregada de meninice e malandragem jogava com o gotejar das horas e das vacas, e trazia em si a chama que, ao tocar os tímpa- nos do jovem, marcou a ferro a superfície contemplada. Era a chama quente que se acende no interior de uma caverna fria, e ela crepitava; estalava áspera, rude em sua natureza velada. Porque sabia. Sua razão de ser era mover os dias feito um bloco de pedra

O vestido de laise 245 para a beira daquele abismo. Esta pareceu ser sua missão quan- do, exaurido de escutar a Voz por intermédio da vizinha, final- mente o Menino a escutou de fato nos dias subsequentes – ga- nhara independência, como que fugida da garganta da senhora. E foi quando a rocha rolou pela ribanceira, sem freio, rumo à redefinição.

LV

A queda das antigas certezas do rapaz, com efeito, devastou grande extensão das folhagens da encosta. A força do pedregulho gigante que a Voz empurrara escalavrou com suas quinas rocho- sas os peitos ralos de grama e legou para o tempo cicatrizar a trilha aberta no precipício desmatado; feito chaga em carne viva, latejando a lembrança da existência do membro ferido. Quando então o Menino deu-se conta do que ouvia, sem que nada escu- tasse, ainda assim não pôde bem dimensionar o instante tão breve que lhe percorreu o sangue; momento no qual tudo fora desencadeado. O som havia escrito nele uma forma que ecoava, vibrando seus ossos na descida. Mas se esquecera de imprimir na gravura a tradução do significado.

Era o tempo de inscrições rupestres na alma do Menino, e qualquer que fosse a elaboração daquele signo, soava demasia- do arcaico para que ele a pudesse apreender; pensou que enlou- quecia. Para entender o que a Voz dizia, era preciso estar num agora que era o tempo de sua leitura; o instante correto para o léxico desses signos sonoros que não constam em nenhum alfa- beto, não encontram reconhecimento resultante de convenção

246 Thiago Sogayar Bechara humana. Foi quando entendeu não haver conceito algum para ser decifrado. Eram significados inapreensíveis para o Menino que ouvia Vozes, cuja pressa de viver passava de raspão sobre a se- mântica oculta de seu ser social, que era cru.

Somente a Voz sabia. Esse era o jogo dela com o tempo! Seria preciso aprender a retornar para o alto da ribanceira, como Sísifo, para aprender a desmembrar a tecnologia mais rudimentar do homem; para poder enfim dizer amém às ferramentas de que se dispõe?

LVI

Era um desejo de religação com o cosmos o que o perseguia. E sobretudo com o que de imperfeito há sobre a Terra. E, ele sa- bia, destoar é desacatar as convenções. Seja onde for e da ma- neira com que se dê a traição. E o Menino traía fundamental- mente um preceito-pilar daquela família que o religava à sua ver- dadeira imperfeição. Afinal, obedecer ou não a uma tonalidade pressupõe a fixação prévia de suas normas. E há os atonais que fixaram padrões de correções distintos dos ditos usuais e ampa- rados por lógicas tão harmoniosas dentro de seus parâmetros estabelecidos de harmonia, mas que também são pura conven- ção. Desafinando, as coisas remetem a existência à mais pura e original de suas formas. Por isto os ecos sabem!, pelo retorno a um passado que poderá voltar ao futuro de qualquer instante, pelas mãos da ciclicidade inerente às convenções. Ademais, há a vida em sua lógica permanente, que é a da falibilidade. E deste

O vestido de laise 247 desafinar ninguém escapa. No entanto, o Menino desejava tam- bém ardentemente este específico desacato de subir às alturas do infalível. E vivia entre querer pertencer à ordem instituída das coisas, e abandonar tudo com um gesto que era o mesmo que partir sem olhar para quem deixava para trás.

Ouvir a Voz da vizinha foi que o obrigou a conviver com um som que em nada se assemelhava às convenções que soavam co- mo inatas, isentas por completo de dissonâncias. E ao mesmo tempo o contrário disso. Pois a Voz que ele seguira ouvindo, a partir de certa manhã, era senão as matas gorjeando sobre as aves, o regato em seu passeio matinal lavando a encosta, e a tex- tura física do ser humano entoando camadas emocionais desme- didas; e também a célula rítmica do descontrole e da imperfeição corpórea, transmutada.

Os rios correm, igualmente, fora de um tom convencionado e os pássaros entoam fragmentos muitas vezes inapreensíveis de frases melódicas; e nem por isso deixam de estar afinados a cer- ta norma de convivência tonal. Seja pelo instrumento que for, nunca é preciso o escoar da vida. Perceber isso de forma incon- teste, e por meio da consciência de um parto que lhe fez pai, trouxe ao rapaz uma dor insuportável às entranhas; intolerável relação que se lhe afigurava entre a convenção de si mesmo e a da própria vida – conceito por si só apenas margeável e incon- vencionado. Sentiu horror pelo chão que se abria sem pena de dar-lhe crua uma nova vista para a terra que pisava, uma nova casa abaixo da qual moraria seu lençol freático. Agora era como se também o mundo ajustasse sua ótica sobre aquele Menino como se ambos se defrontassem pela primeira vez; e ele com isso pas- sava a existir, a integrar alguma coisa, após anos imaginando

248 Thiago Sogayar Bechara fazer parte de algo que não semitonasse nunca e que, por isso, descobrira inexistir.

A nova terra abrira-se e quedara-se aberta porque enfim ele notava que fora sempre assim. Trincada pela seca ou erodida pe- los ventos tempestuosos; os pássaros morriam, as mangas apo- dreciam a cada dia ou se transformavam imperfeitas dentro dele. As minas que secavam, a música que não parava em seus ouvi- dos, a Voz a lhe esfregar coisas à cara e a solicitar dele também outro tempo, que era o de parar para notar apenas tudo isto. Segredar não é talento da natureza. O homem foi que aprimo- rou para si um não olhar de frente tudo aquilo que há, e então se deleitou atrás de um espelho deformado, em busca da con- templação de uma praticidade ilusória porque lhe tira o direito sagrado do erro.

Viver dói; mas privar-se desta dor é anestesiar a satisfação insubstituível de vê-la debelada após a luta travada ferozmente. Tais angústias frutificaram a partir da consciência de que o Me- nino vivia autoidealizado. A Voz, latente, por fim se fixou e, des- de então, passou a perseguir tudo quanto no Menino fosse este querer-se absurdamente. Foi esta a responsabilidade que se pos- tou ante seus sentidos como uma doença, obsessiva – vida ou morte - e o fez ouvir aquilo de que mais tinha medo. Ser e estar dentro de algo que não fosse sua própria mente jogou-o na arena com os leões, que eram vozes rugidas, até chegar o tempo em que sua descoberta fosse a de que estes sons jamais existiram.

E, como ele só percebesse que o açúcar estava habitado de- pois que mexia a colher no copo, o Menino tomava chá com for- migas para ingerir um pouco mais da vida. É sempre bom fazer

O vestido de laise 249 coisas de que possamos rir depois. Sobretudo porque chá parecia- -lhe algo péssimo e ele bebia, pois isso era ótimo: para ser con- tado. Feito seus ancestrais indígenas que, soube depois, comiam formigas cozidas e as achavam saborosíssimas. Sorria, com efeito, quando lembrava disso, e tentava voltar as papilas ao paladar das formigas no chá daquele dia. Mas achara que elas não tinham gosto.

LVII

O Menino seguira refugando naturalmente os chamados do pai feito mula chucra; alegava qualquer dever escolar que amansasse o pai, e tudo não passava disso: o cavaleiro a montava após selá- -la e apetrechar-se de chicote e espora. Sentindo o peso do peão no lombo, a besta abaixava-se toda, contraindo as ancas e coiceando como quem dá a largada com os pés no ar, ganhando impulso com o empurrão na parede invisível. Ancha, corcoveando em círculo; as orelhas baixas e os dentes à mostra, tentando se livrar dos freios, empurrando o gosto do ferro. E o cavaleiro saltando, agarrado ao cabresto, quebrava para a esquerda, quebrava para a direita; aboiava seus gritos ancestrais mais primários, mas as Fúrias do animal eram mais Antigas e ele não desistia de sua ânsia de li- vrar-se das amarras que fadavam todo o futuro de sua liberdade de animal. Até que o vaqueiro, vendo esgotar-se a ampulheta da condescendência e pensando estar a ponto de domar tal inso- lência, é pego finalmente num tranco que, de súbito, o jogou pa- ra o alto, num rodopio em câmera lenta, que era a anestesia da incompreensão do momento que vivia. E quando anteviu o chão

250 Thiago Sogayar Bechara gramado se aproximando, a mula já estava tão longe que seus últimos rinchados mal se ouviam em eco, para lá da tulha velha.

Naquela tarde de nuvens escuras, o pai chegou da roça com os olhos incendiados pelo cansaço. Mas, inquieto, estancou na por- ta de casa, tirou dos ombros a enxada que deixou escorada na parede do lado de fora, e inquiriu a esposa rispidamente pelo moleque. A mãe, num relance, compreendeu tudo e sua fisiono- mia se alterou inteira porque ela se afligia antecipadamente pelo embate que, de um modo ou de outro, era o por vir daqueles mi- nutos suspensos. Limitou-se a responder silenciosamente, olhan- do amedrontada em direção do quarto num leve subir de ombros que queriam apenas dizer que não poderia o filho estar noutra parte. Mas os olhos da mulher, mesmo em silêncio, pediram cle- mência ao marido que passou a mão pela barba grossa num fer- vor que lhe corroeu por dentro, feito caruncho, a alma; e cruzou firmemente o degrau da soleira.

O Menino, de Machado em punho e sentado na cadeirinha ao lado da janela, por causa da luz, ao levantar os olhos, deu com as botas sujas do pai, que cheirava a pelego suado, e desviou no ato para seus chinelos, limpos de andar pelo quintal.

O vestido de laise 251 TERCEIRA PARTE

LVIII

Aquele Menino era Eu.

Vi meu pai irado, tomado de afronta, assaltar meu pequeno criado-mudo bradando nomes injuriosos e rasgando, um a um, meus primeiros poemas de amor; o amor por Clara que, sem que ninguém soubesse, já principiava despontando em meu peito. O amor que, a cada insulto, eu via hostilizado, diminuído; o amor que foi se transformando em ojeriza, em repulsa, enquanto meu próprio pai invalidava com as mãos aquilo que eu julgava ter de melhor e me derrotava a cada vez que ouvia as folhas rasgarem- -se ao meio; o amor pelo ódio que cresceu em progressão den- tro da minha impossibilidade de representar internamente aqui- lo tudo. Era demasiado grande. O amor fendido ao meio, latejan- do espalhado, desconexo nos cantos, sobre o chão do quarto; vivo, resfolegante, buscando seus instantes de sobrevida, até que coiceei para dentro e dei com meus músculos tesos, trabalhan- do involuntariamente, empenhados na tarefa de me conduzir em alta velocidade para a porta de casa, que eu batera sem pensar ou olhar para trás, até dar com a primeira construção que avistei, após passar desenfreado pela porteira. A casa da vizinha.

Mas tudo ainda não passara de pensamentos sonhados num átimo, enquanto me refugiei no quarto ao lado, chorando incom- preendido, depois de assistir incrédulo à fogueira que me devorava.

252 Thiago Sogayar Bechara LIX

Impreciso e vago como tudo que adolesce, adormeci exausto. Busquei um modo de ser vingado. Eu era o filho legítimo que ou- vira de sua pátria os conselhos maternos mais engenhosos da emancipação, ao passo que me prendia a si. Sentira o calor da mi- nha liberdade aproximando-se. Contudo, aquele meu Menino so- mou também às correntes seu próprio instinto de manter-se vinculado. Não obstante, claro, sua urgência de saber-se; de rom- per com tudo que lhe fora dito até então sobre ele próprio. Por- que isto não o era, evidentemente. Era senão o que lhe fora dito a seu respeito. E não bastava! Porém ainda assim, atordoado, ha- via nele o instinto; este desejo, que era umbilical, da perma- nência, o medo, enquanto, do outro lado, latejava o imperativo do renascimento.

Acordou-se ali uma espécie de solicitação interna sem cha- mamento. Bruta, ao passo que muito ciosa do que era o certo naquele momento de minha história. O Menino passou a viver refugiado, sempre ávido dos elementos reais de sua constitui- ção. Sua hibridação ancestral, talhada a golpes de tempo, carecia um sentido qualquer de unidade, que fosse seu. O tempo-mesmo em que seria eu alguma coisa sem nome, vista ao espelho, por olhos finalmente também definidos e que, só transformados em si, poderiam enxergar-se.

Acordar diante do impasse de estar vivo! Também esta situa- ção inabitual tirou-me da zona conhecida em relação ao estar no mundo. Que fazer com mais um dia no balaio, se afinal viver só serve mesmo para se estar vivo? E o que é isso, senão se saber?

O vestido de laise 253 E se saber serve para quem? Não conheci até hoje quem de fato se soubesse, mas nem por isso deixaram de estar vivos; vivos para si, e principalmente para mim! Principalmente para mim, digo, que é porque às vezes só mesmo o outro enxerga determinadas vidas em nós.

Será mesmo que alguém é capaz hoje de notar nas minhas ex- terioridades qualquer fagulha que seja da existência cativa que experimentei naquele tempo?, que foram como os momentos em que por dentro chegamos a uma encruzilhada, mas com am- bas as passagens obstruídas? – e não se é permitido pular as can- celas! Este fora meu estado de estagnação, e o mundo notava; deus! O mundo entende tudo! E como isso era importante para mim. Contudo, como me custava abrir este olhar e assumir, dar-me a mim a possibilidade de reconhecimento desta realidade que, afi- nal, era tudo que eu tinha.

Mas era aos outros, afinal, que me dirigia, enquanto escrevia para ninguém. E me esquecia de me dirigir a mim! Talvez seja este o grande e verdadeiro impasse do viver. Dói, como me doía nas carnes. Mas amo ainda o outro e estou no mais das vezes dispo- nível externamente para agradar. Por dentro é que é difícil eu me dar – e é nisso que quero mais ser aceito! Como o outro é importante! Como me dói assumir. Reconhecer é o vexame ri- dículo da existência. Não posso me desligar. Mas este palco alme- jado tanto assusta e amedronta quanto fascina, e este também é o impasse da manhã seguinte àquela minha morte. O de estar vivo e o de querer ser algo, sem saber com precisão, ao certo, se se é. Porque não basta querer.

A labareda da criação destes pensamentos projetou eus ho- méricos! Mendigos ao espaço! E roçava meu sentimento sobre

254 Thiago Sogayar Bechara isso tudo na lixa com que reduzi as unhas dos meus pés ao fator primordial da minha exteriorização e minha aceitação, horas de- pois do primeiro instante de emissão do novo som daquele úl- timo-primeiro amanhecer. Para eu realmente me lixar. Salvo: por mais este dia para a cena do existir. Hoje, pelo menos, posso sair de casa sem vergonhas nem tensões. Hoje já posso andar de novo aos chinelos pelo quintal.

LX

Viver é muito perigoso; a gente espera das coisas suas pró- prias existências, por definição. Acontece que nem tudo existe, por definição. Há aquelas que só habitam o terreno do indefini- do. E, nestes casos, buscar seus conceitos é o mesmo que atirar-se ao despenhadeiro. Estaca zero para desconstruir o falso e come- çar de novo a construção. Tudo é almejado enquanto não sabe- mos a que reino pertence cada partícula do mundo. Depois que chegamos à beira do precipício é que surge a dúvida: se vale ou não a pena darmos o primeiro passo, rumo àquele conceito.

No entanto, deste passo depende estarmos em nós mesmos. E com a pátria atada ao pé da cama, o medo desta revelação me subia pelas pernas ainda colonizadas. Chamei inconformado, con- strangido, pela Voz. Agora era eu quem a chamava, como quem suspeita estar nela o foco recém-criado de todos os meus dese- jos. Mas não podia imaginar que ao encontrá-la, me depararia com um desconhecido jamais quisto. E assim foi que tive um impacto de acidez quando levei a primeira manga do quintal até a boca, como gesto de despedida, antes de partir.

O vestido de laise 255 LXI

Virei rapidamente o corpo, me inclinando para atender outro chamado da Voz, quando um raio fez-me em dois; atônito, vazio! Não havia nada. Nada, não havia ninguém. Um oco. Busquei, nas frações dos segundos silenciosos que se seguiram, a fonte do eco que havia se criado em meu ouvido, porque aquela Voz... aquele som... aquela era uma Voz alheia ao mundo lá de casa mas que nascera dele - e que, por isso mesmo, fixara-se mais densa, e eu fui movido pelo instinto de encontrá-la e me desapegar logo da- quilo, porque fui desconfiando que ela não existia. E a gente nun- ca está preparado para lidar com o que não existe.

Quando a notei pela primeira vez, e tive a sensação de ter sido chamado, percebi meu querer seguir com a acidez das mangas. Mas seu desdobrar posterior já era um canto, entoando melodias anônimas, feito mantras, e eu... eu já estava para sempre enreda- do em seu encanto hipnótico. Um cantar de tal forma humano que sequer parecia de gente, e de tanto que vinha do núcleo real perseguido do tempo, voltava a reverberar como fala, palavrório anônimo, enovelando-se, já uma coisa noutra.

LXII

Após a fuga de casa, senti a solidão que há meses não batia à minha porta. Com o pouco dinheiro que pude encontrar posto em meio aos meus documentos, vi-me num quarto de pensão de uma cidade próxima e que ao mesmo tempo parecia outro país.

256 Thiago Sogayar Bechara Levantei, sozinho, para ser tragado novamente pelo imponderá- vel enquanto decidia meu futuro e, antes de seguir viagem, após ter colaborado com a cozinha da pensão, lavando copos em troca de um pequeno ordenado, uma garoa fina esfriava os ossos; en- tão caminhei lentamente em direção à fechadura do cômodo; des- tranquei com certo prazer sua chavezinha, girando-a como se gira o rosto num beijo em câmera lenta e lá estávamos os dois, nova- mente nos olhando em silêncio, a espera da primeira palavra ou gesto que rompesse o vazio de uma manhã úmida.

Eu e minha incansável solidão, como nos velhos tempos, afinal, também em casa a solidão chegava, e então me disse que sentira minha falta. Perdão, havia me esquecido como eram distantes de tudo e todos os dias chuvosos, e de como, com eles, tudo fazia tempo demais. Na mosca. Uma mosca enorme. E verde. Ela entrou como mensageira pela porta, e zunia, zunia, zunia!

Eu estava farto! Dessa mosca verde e asquerosa. É isso o que você é!, eu dizia à sensação que encarnou em meus músculos, pernas, ventre, boca. A boca! Começava então a ser esse o motivo de tanto abandono? A boca da solidão mantinha-se na minha. Não era nos pensamentos nem no tesão dos músculos; era na boca, apenas, o vestígio do toque. A memória de nenhum contato, os lábios secos. E a saliva umedeceu a minha vida de sertanejo. Isso era o que me importava. Era o que eu mais queria. Só isso. Pediria eu tanto que não me fosse legítimo receber dos céus a dádiva de um consentimento?

Aquela garoa constante me lembrava os dias em que eu per- guntava à minha mãe: Mas estava chovendo? Sim, meu amor. A mamãe ama dormir com o som da chuva. Não quando ele traz à tona o que me fez sentir aquele dia, eu teria respondido. E a

O vestido de laise 257 boca não possuía dona. Eram apenas dois lábios conduzindo a vida. Dois lábios e depois dois olhos como a prolongação de- les. Dois seios medianos cresciam à espera do encaixe perfeito, e então duas pernas, duas mãos entrelaçadas às minhas, duas al- mas, duas vidas. E eu um só, desejando ardentemente estar com. Feito floresta, que é sempre um insistente estar com mulheres, desabrochando eroticamente suas corolas para o meu mundo. Apenas para meu universo de pólens e delícias. Clara! Um ribei- rão Claro.

Voltei para dentro, apanhei minhas coisas e zarpei no meio da chuva. Até que me dei conta, durante a caminhada; eu já era uma coisa com passado. Apenas isso. E que só me acompanha- vam na vida ideias, pensamentos, imagens e sentimentos. De or- dens muito variadas. Mas tudo buscava reduzir o mundo à sua essência. E isso me ocorreu como um relâmpago. Meus sonhos corriam do bairro rural onde nasci para a funcionalidade das ca- naletas de água instaladas nos gramados e acostamentos ao lado das estradas que eu um dia percorreria. Em algumas horas, con- tudo, eu ainda estaria numa estreita via esburacada, dentro do ônibus intermunicipal.

Naquele veículo, olhando através da janela, fui entendendo co- mo tudo é extremamente solitário. E esta é uma descoberta que ainda hoje me forja uma companhia. Basta existir para se estar irremediavelmente só. E eu sou da natureza também, feito as ár- vores daquelas matas que passavam velozes por mim. Então por que a solidão seria algo mau, assim como se me apresentara, se não existe afinal nenhuma alternativa a ela? Por que ruim, se não existe a opção do bom? Afinal, a tristeza só existe em contra- ponto com a alegria. Quando não há a opção de contraponto,

258 Thiago Sogayar Bechara simplesmente se é. E isso também é solitário, porque ter opção é uma forma de ter companhia.

LXIII

Nada - senão nós mesmos - pode ser de fato nosso acompa- nhante. As árvores não reclamam. Elas aceitam sua função. Aceitam até a morte. Nós, humanos, temos consciência disso. Por essa consciência é que jamais aceitaremos um fim absoluto. E co- mo só nós temos essa distinção em relação aos outros bichos, às plantas, às pedras, então nos sentimos culpados por esta “su- perioridade”, que é achar que sabemos mais que eles. Só que na verdade sabemos tanto quanto. Isto é, nada. Daí não represen- tarmos nenhuma superioridade. E mesmo este parco relato da minha vida antes da fuga, e o dizer que nada sabemos, é como se nas suas entrelinhas e subtextos se traísse, isto é, ainda não acreditasse em suas próprias palavras. Afinal, sou humano. Penso e escrevo sobre isso, como agora. E, mesmo ao dizer que não sou nada (talvez principalmente quando digo que não sou nada), no fundo o que faço – e o que mais quero! – é afirmar que, sim, sei mais do que as pedras e as matas. Mas de que isto vale se vou morrer e se sou tão solitário quanto elas?; ou quanto todos os outros humanos, sejam bêbados, mendigos, marinheiros, con- des, reis ou chefes de estação? Todos nos juntaremos às pedras e às matas.

O vestido de laise 259 Daí que, mesmo culpados por nossa pretensa superioridade, preferimos a solidão desta distinção. Não é incrível? Porém, o que eu buscava naquele momento era outra solidão. A solidão da reintegração. Porque se eu encontrava e ainda encontro beleza na mata, a mesma beleza há em mim. Somos da mesma matéria. Solitária e única. Cercados de outras plantas, mas plantados em nós mesmos. Incapazes de sair de nosso silêncio básico e fotos- sintético. Porque falar e ouvir, bem entendido, definitivamente não nos tira do silêncio. De modo que a única maneira de sermos verdadeiramente nós mesmos é sermos sós e silenciosos. Todo o resto existe em convívio. Mas só se tivermos condição de viver sem esse resto. Só se o fizermos por opção. Pois opção é compa- nhia. Talvez a única. E o trânsito agora, dentro do ônibus, havia parado completamente.

Engavetado, em meio a tantos outros ônibus parados, ainda assim eu sigo: sozinho e em movimento. Não sei a razão, mas me ocorreu a seguinte imagem: a arte de viver é a mesma da profes- sora que empunha uma tesoura e faz recortes mal contornados de figuras que, fora de seu contexto, não querem dizer nada, mas que grudam na cartolina branca de modo que não há como se- rem descoladas ou revistas. E esse risco é demais para quem só crê numa vida, ou não aposta na segunda, embora a queira como todos. Neste ser como todos existe uma dor indizível. A dor de ser apenas mais um ônibus engavetado, dentre tantos outros. E não um exemplo da distinção que ansiamos. Em meio à multi- dão, parimos apenas mais uma unidade que o rebanho apenas in- corpora. Temos dentro da gente muitos rebanhos. É gado dentro de gado mas... e o final da vida... está nas mãos de que professora?

260 Thiago Sogayar Bechara LXIV

Saí tantas vezes de quartos, pensões e favores alheios, acla- mado por brisas que me convidavam a estrear mais uma manhã chuvosa de gala ou de sol morno... Saía e fugia novamente, ca- nalizando para dentro dos pulmões todo o perfume daquele novo ciclo que se cumpria. O do dia que renasce. Cheirei imensas ve- zes meus braços buscando neles qualquer fundamento da minha humanidade. Gosto acre de cama quente e sexo ardendo embaixo das cobertas. Aqueles breves momentos gelados, matutinos, tão- -vida eram que me fundiram aos sons da manhã, colorindo meu céu da boca com a esperança de uma manga que fosse capaz de continuar aquela inércia passiva do sono, e não me arrepiasse por demais as papilas, como no dia da fuga.

Durante aquelas primeiras semanas de autoexílio, degustei lembranças, pensei no choque de mundos que me inundou, apesar das realidades cotidianas tão próximas. Geograficamente, tudo remetia à minha casa: o cheiro daquele lugar, daquela terra bran- ca, o vento, o hálito daqueles animais e plantas, e pássaros e abe- lhas, a cor viva de cada coisa que cresce.

O silêncio do universo voltou a morar em mim. O que inclu- ía aquela pressão interna me dizendo coisas a não mais poder. E do meu coração acuado pelo som forjou-se a fera, filha da ira que somente o medo gesta. Preconceber a vida extingue dela a naturalidade porque coloca ordem, sentido e precisão à selva e ao cangaço. Enjaula. Impõe sistematização ao fluir que é por essên- cia antimetodológico e impreciso. Impreciso no sentido também de desnecessário. A vida é imprecisa, polissêmica na medida em

O vestido de laise 261 que não necessitamos pensar nela, mas vivê-la. Ou deixar que ela viva em nós. E muitas vezes nos voltamos contra isso.

Este silêncio de que falo é a real natureza, repleta de rochedos e vegetais eternizando-se na ausência de sentidos, com que cres- cem misteriosamente. Quando açoitada, posta ao canto da jaula, minha silenciosa ponderação se destempera e reage impetuosa com seu urro mais cortante. Foi esta a manifestação interior que se deixou retratar em mim, quando o silêncio, aquele silêncio to- do útil e propício, principiou notando que era invadido. Quando o assentamento mais conveniente de uma alma que oculta cer- tas ebulições é chicoteado pelo som ameaçador da vida, é como se finalmente fora das cavernas, se lhes doessem de revolta os olhos aos homens. E a lâmina-luminosa ofuscasse também a ra- zão e o princípio básico de qualquer entendimento do universo, porque revelava um estado de coisas mais ruidoso do que qual- quer de suas certezas poderia supor.

No silêncio que é a escuridão, o mistério não se mostra por inteiro. É parcial e vacilante. Por isso penso que no silêncio se compreende mais, pois indaga-se menos. Perguntar (ao menos determinadas coisas) é buscar fora o que há dentro. Silenciar é responder ao que não se inquiriu, pois toda e qualquer revela- ção acabava por só poder ser instintiva; é o tipo de presente que somente a nós mesmos nos podemos regalar.

LXV

De venda em venda, comprava-me a mim: assim foi, naqueles primeiros dias, meu silenciar. E daí nasceu um mistério ainda

262 Thiago Sogayar Bechara maior que é o do paradoxo, pois tenho a cada dia percebido que no silêncio é que se escuta. Tantas vezes minhas vozes interiores me fustigaram em sua inconsciente pretensão; a pretensão que é se querer dizer qualquer coisa! Nada nunca se acrescentará ao saber do homem; dizer algo será sempre dizer menos do que se diz ao ficar calado.

E, no entanto, foi naquele tempo que principiei escrevendo, e ainda escrevo. E, no entanto, aquela Voz vizinha continuava escrevendo (em mim) coisas insondáveis para o acervo léxico de qualquer criatura. O mistério que são os paradoxos. Existe dor mais misteriosa que a contradição? E aquela Voz doía, porque era antagônica, chamava meu corpo para o lado oposto ao que ela estava; ecoava em meus pensamentos e seu timbre represa- do entrava em erupção.

Frenético vaivém dos ônibus pelas estradas infinitas do meu país, reverberação de suas ondas por meu corpo. E meu cérebro tomava de repente a chuva do sertão. Pois nela está também mi- nha fuga. Fujo fora e dentro. Do dentro no fora e do fora no den- tro. E talvez isto seja dizer algo. Porque diz sobre o que se cala. E o que se cala é o que melhor se exprime.

Principiei desconfiando que delirava e que, quanto mais dizia, não dizia nada. Tinha razão. Este som no meu ouvido que não se definia e me enraivecia e atordoava. Esta Voz que se expressa ain- da sem convenções de linguagem verbal, mas sem, contudo, per- tencer ao reino do silêncio, é simplesmente desesperadora.

Decidi que não era, não podia ser esta a minha loucura. Decidi apenas. Que fossem quaisquer outras. Fossem todas, mas esta ja- mais. Até porque não ouço vozes. Ouço uma só Voz, multiplicada,

O vestido de laise 263 e que é como se já fosse: minha! E me enlouquece. Gera minha loucura, não é fruto dela. Quem sabe se, finalmente enlouque- cido, eu não aprenda a não querer de tudo extrair sentido, co- mo se faz com um sumo de laranja. Nem tudo tem sumo. Há até o que nem mesmo bagaço possua. E, de mais a mais, na rede toda deste som entrecruzado vou acabar – ou começar – encontrando novos silêncios.

LXVI

O tempo são águas de rio sem tempo para o cais.

Lutei – vesti carapaças ferozmente protegendo-me da caatin- ga da minha salvação, porque esta Voz que cantava toda errada era rouca e imprecisa e ao mesmo tempo doce, e esta contrarie- dade me exigiu que eu comprasse um gibão e me sentasse alco- olizado pelo ar puro. Tal imprecisão, notei mais tarde, são as matérias de que se compõe a vida, que corre par e passo junto ao tempo. Essa Voz personificada na vizinha, me apontara uma lança porque era a representação sonora da própria lógica de fun- cionamento da vida; a vida do que habita fora da nossa casa. Nunca igual; imperfeita e pré-humana, porque urdia um som apre- ensível por qualquer vegetal, mesmo emitido das cordas vocais de um coração. Talvez mesmo uma Voz que existisse mais plena para os vegetais, por ter sido criada para as paisagens, para os altiplanos, os montes e os grotões do Rosa.

Cantada para ser introjetada ao sentimento de mundo das coisas, e não propriamente para ser ouvida. Era um som que se

264 Thiago Sogayar Bechara metamorfoseava em outros tantos; era como o transcorrer do tempo, que a cada instante também vira outra coisa, sem deixar de ser o mesmo. O tempo é mesmo o auge criativo tão almeja- do. E o humano não o será jamais, por ser tangido pelo tempo? E o boiadeiro nunca ensina a experiência ao seu rebanho? O tem- po é de uma coragem invejável porque, no que se cria, se aban- dona e reinventa. E então já está partindo novamente. O tempo são águas de rio sem tempo para o cais. O tempo, conceito em si mesmo! Eterno desdobrar-se. Nunca mais nem menos. Eu estou sempre em descompasso. Se fosse possível viver nesta sintonia, a imprecisão se tornaria absolutamente afinada, já que a vida tem lá suas imprecisões e nada mais perfeito para representar sua imperfeição que o som de uma Voz semitonada.

LXVII

A angústia desta Voz me fez querer gritar, abrir ao mundo o jogo em que me vi metido! Senti no corpo o impulso incontro- lável de publicar a todo custo o fruto dos meus momentos mais íntimos e condenáveis. Na rede em que nos enredamos! Como eu pedia aos céus o compartilhamento desta minha solidão. Alguém talvez também sofresse do outro lado do mundo o pulsar daque- les, destes, pensamentos todos. Talvez mesmo se um autofalan- te se justapusesse à foz desta maldita; mas nem boca ela teria e isto proibia meus planos de exibir ao mundo a minha alma in- digna e vulgar em busca de pares. Ao mesmo tempo apaixona- da pelas vivências que rompiam minha vida ao meio, deixavam para trás o meu passado e me abriam as portas de uma nova

O vestido de laise 265 existência. Eu chorava, eu gania por isso. Desejo e ódio interca- lados, num confronto sem vencedores, porque não tive outra saí- da senão sair.

Como eu quis desmascarar aquela tintura capilar que me aden- trava o couro cabeludo absorvida pela superfície porosa da mi- nha pele. Eu incorporava tudo, permitia que se me adentrasse a substância; ela foi se infiltrando, inundando meu cérebro e tomando pouco a pouco cada momento interior de minha cor- poreidade. Onde está meu corpo que se viu capaz de permitir o arrombamento de uma porta que por anos zelei que se quedasse bem cerrada. O mundo, o mundo, o mundo; onde estão todos, pa- ra que me ouçam sem Voz, clamando por este gotejamento, mi- nando a força das minhas palavras não expressas?

Intuí de repente que componho a multidão de condenados ao exílio que se mascara na condescendência, porque é o exílio em nós mesmos. E ele exige estranhos padrões de produtividade. Produzir sentido para meus delírios, explicar a solidão que é es- tar dilacerado numa vitrine. Produzir dinheiro, produzir boas sensações, produzir o tempo, e os espectadores do lado de fora da loja tão conectados a mim quanto eu às suas desesperadas insatisfações e todos ao mesmo tempo; tudo ao mesmo tempo, absolutamente só e silencioso no deserto de Vozes caladas. Sós, como sempre as quisemos. E aflitos por não sermos capazes de ouvir. Torturados. Tudo ao mesmo tempo! Porque nascemos num estado posterior ao arcaico, que é o de ao menos saber de certas funções que a vida assume. E que dentre elas está a de nos ensinar a abrir os ouvidos e os olhos: para a nossa miséria.

266 Thiago Sogayar Bechara LXVIII

As redes em que caí me embrulharam para presente, num cli- que que me despachou para fora de minha máquina; num pon- tapé que me tirou de mim. Voei para outra conexão e, na via- gem, fechei as pálpebras e vi, de cima, o mapa de um planeta que soou tão simples, tão honesto, tão pouco, e tão medíocre, que esta cartografia falida me encheu de um horror do desperdício. Sofrer às vezes não requer razão justificável e esta é uma das im- perfeições para a qual nos preparemos!; para que se nos amenize o susto de uma descoberta súbita e de uma energia gasta para não se alcançar lugar nenhum. A arte pela arte, assim é o sofrer deste novo tempo.

O fato é que me vi em meio a esta multidão de sons anôni- mos em festa eufórica que me abalava o equilíbrio dos sentidos. E, em meio à massa, não se é permitido vacilar; em meio à mas- sa não se é mais nada além de massa. No entanto, este é o único modo de pertencer e integrar alguma coisa? É que esta busca pela própria anulação também fascina e ser ignorado, finalmente, é o calo que tanto queremos que lateje. Desde que na vitrine. A fon- te de cada anonimato me chegava como dor de pertencer tam- bém à mesma condição oculta, mísera e mesquinha daquilo o que carece de senhas para existir; e, de repente, vi meus pais se le- vantarem novamente, a vizinha, meu círculo pequeno de ami- zades e mais ninguém era ninguém senão máquinas carnais cum- prindo os impulsos elétricos de suas programações até que a mor- te os separasse. Graças aos céus por tê-los abandonado. Ninguém me acesse a existência porque perdi o código alfanumérico que

O vestido de laise 267 legitima o ir-e-vir do meu sangue dentro das minhas vias sub- terrâneas. A profusão da massa em festa; bem, esta não se deleta porque é pública e livre para ser baixada a qualquer instante, em download infinito. Todos a desejam porque intuem nesta profu- são o ar puro finalmente pronto para o consumo – da criação dos nossos perfis pós-modernos.

LXIX

Foi dentro do avião a cruzar o céu: minha Voz gritava e – sim – pela primeira vez eu pude compreender; ela não queria meu per- fil, queria-me por inteiro; um nu frontal, somente para ela. Para seu deleite, para seu desfrute. Sensual, lânguida. Foi apenas isso sua (des)entonação, capaz de revelar objetivamente. Fui sendo lentamente carregado para o leito e despido dos velhos panos rotos que sempre me cobriram as vergonhas. Eu perdia agora es- tes pudores. Podia resistir, mas aquele som sagrado, enquanto me divinizava, profanava. Enfim, desvirginou-me de minha vesti- menta e a atirou para longe, não me deixando outra opção senão a de me olhar ao espelho e ouvir meu corpo. Enfim, minha Voz me enxergava. E era eu mesmo, o anônimo de fiapos de manga entre os dentes, não fosse aquele novo fio dental que me lim- pava. Eu estava mais limpo do que nunca. Obcecado pelo reco- nhecimento de uma imagem que eu já conhecia, mas que agora transparecia ao avesso, de modo que era a mesma coisa ao con- trário, e isto era eu, que não sabia mirar estranhos ao espelho.

Olhei pela janela do avião e a mangueira lá de casa seguia sua tarefa fotossintética e diária de existir enterrada. Sem perfis

268 Thiago Sogayar Bechara falsos nem senhas que forjassem a fecundação de novas flores ou nascimento de seus frutos; sem alfanuméricos que aden- trassem o portal da identidade construída. Saber-se e viver-se são coisas que existem, mas que, ao mesmo tempo, geram o impasse matutino do ansiolítico. Pasmei, porque saber-se é freio de mão; e viver-se, como escrever na descida e com os pés no acelerador. Contudo, não havia nada naquele quintal que não fosse algo e, ao mesmo tempo, seu oposto. A manga boa endossa o transcorrer de seu próprio processo de apodrecimento. E o tempo em que tudo é faz-se presente para o desespero e a delícia de tudo que nasce e brota e cria e arrebata. O próprio som ouvido naquela distante manhã; a Voz que me ensurdece ainda a alma, é a mesma que – a única que – me faz ouvir de fato alguma coisa. Eu a odeio por isso e já não sei sentir sem sua presença. Não tolero o ruído de seus silenciares, mas não sei viver sem ele, e velo pé ante pé para não acordá-la de seu sono magnífico e ressonante, freneticamen- te serenado. Tudo é algo e seu próprio oposto – ao mesmo tempo!

Enquanto lá em casa as ovelhas seguirão balindo de filhotes ao pé, eu cá sobrevivo ao imperativo de tanger meus próprios reba- nhos, que é continuar escrevendo em busca de sentidos. Lutar contra o invencível. Batalhar contra a força superior do tempo e querer a todo custo a graça da expressão, mesmo que nada digam minhas parcas injunções de ideias e histórias familiares. Ademais, a Voz permanece reverberando; dizendo um não dizer; soando um não soar coisas inaudíveis, multiplicadas pela caixa sonora do meu crânio; e o som emitido debate-se com o eco do que fora dito por meu pai, e aquela profusão desesperada vai suavemente me ensurdecendo de outras coisas que eu não queira me dizer a mim.

O vestido de laise 269 Mas eu mesmo já não me debato. Sinto a agulha perfurar as carnes mas não sinto dor. Anaestesis. Esta possibilidade de ob- servação externa da sutura, lenta e metódica, foi aos poucos de- volvendo a mim uma capacidade de contemplação assentada do mundo; talvez até, se possa dizer, serena.

LXX

Desacelerando o ofegar e suspendendo provisoriamente o sig- nificado histórico e simbólico daquele espaço sagrado que se for- mou em mim, me permiti senti-lo em seu estado puro e cimentado de paredes cobertas de telhas. Somente isso, o dia em que real- mente estive numa igreja longe de casa, inteiro e efetivamente. Não lembro de tê-lo feito em-nome-do-Pai; nem de ninguém; entrei por minhas próprias pernas, conta e risco; e passei a se- guir, uma a uma, as cenas da via-sacra envidraçadas pelos frag- mentos coloridos que compunham cada vitral iluminado, e que levavam um indivíduo a renascer.

Estanquei nu, sem imunizações e chorei, colocado no tempo de cada cena, experimentando vivenciar uma a uma, as partes daquela narrativa silenciosa; sentindo-me integrado à estética do caminho percorrido, entrando no instante preciso do sentimen- to que cada representação por sua vez projetava para dentro de minha alma, forjando um existir conjunto, não em paralelo, mas imiscuído naquela trajetória que redundou no renascimento de mim.

270 Thiago Sogayar Bechara Mas chorei tanto e tão convulsivamente que os santos de olhares mais piedosos estavam ali somente para o meu consolo. Inquietos e - me pareceu até (perdão) – curiosos em certa medida. Pudera, com tamanho abatimento. Mas o eco da igreja e o eco da Voz se justapuseram tão acertadamente que silenciaram ambos, junto às chagas de Jesus, sossegados, serenando, e eu me cruci- fiquei para entender, depois, um pouco o significado da minha futura religação.

Ribeirão Claro, São Paulo e Lisboa,

1º/10/2012 a 26/09/2016.

O vestido de laise 271 Agradecimentos Aos que me ensinaram a ouvir e amar boas histórias…

Ana Lucia Torre, Cida Moreira, Claudia Alencar, Claudia Borioni, Claudia Mello, Daniela Rigotto, Delvayr Mazzucato Sogayar, Denise Del Vecchio, Eliana Bueno Ribeiro, Eliana Pace, Fátima Regina Gonçalves Fortunato (Ribeirão Claro), Fernanda Fazzio, Fernando Polignano, Giovanna Crispim Costacurta, Gabriela Alves Toulier, Giselle Sogayar Bechara, Imara Reis, Jaime Jorge Bechara, João Pedro Fortunato (Ribeirão Claro), Joaquim Maria Botelho, Lara Pires, Lia Pitliuk, Lilian Blanc, Marco Antonio Fabiani, Maria Regina Moiana, Mariana Muniz, Mário Sérgio Baggio, Milena Wanderley, Naum Alves de Souza, Nilsilene Roman, Regina Duarte, Sandra Genes Borghi, Tato Fischer, Vera Casare, Vera Mancini.

Aos amigos de Lisboa que dão à minha vida portuguesa, com certeza, um abraço maior que o Tejo…

Anabela Mendes, Carla Francisco, Christiana Higgins Ricciardi, Christopher Damien Auretta, Edward Luiz Ayres d´Abreu, Elsa Ribeiro Alves, Fernanda Azougado, Fernando Rodrigues, Joana Saraiva, Joaquim Paulo Nogueira, Luiza Sawaya, Margarida Louro, Maria Adelina Amorim, Maria do Céu Guerra, Sebastiana Fadda, Vasco Vaz, Vera San Payo de Lemos, Viviane Almeida.

(In memoriam) Amália e Fernando.

O vestido de laise 273 foto: Tato Fischer Thiago Sogayar Bechara www.thiagobechara.com.br

Paulistano de 1987, Thiago publicou nove livros, desde que estreou aos quin- ze anos de idade; dentre eles os perfis “Imara Reis: Van Filosofia” (2010) e “Cida Moreira: A Dona das Canções” (2012), da Coleção Aplauso, editada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, além da biografia “Luiz Carlos Paraná: O Boêmio do Leite” (2012) e da coletânea de poesias “Literatura de quintal” (Ed. Patuá, 2013). Jornalista de formação, especializou-se em jornalismo cul- tural e é mestrando em Estudos de Teatro pela Universidade de Lisboa. Após dedicar-se brevemente à assessoria de imprensa, idealizou, produziu e apre- sentou o programa “Memória Brasil” de 11/2012 a 05/2013 pela TV Geração Z (UOL). Recebeu nomes como Beatriz Segall, Ruy Castro, Claudia Alencar, Ana Lucia Torre e Suzy Rêgo. Músico diletante, sua primeira canção “Minhas janelas” estreou no disco “Santa ignorância”, de 2011, na voz do parceiro, o veterano José Domingos, recebendo segunda gravação do mesmo intérprete. A faixa conta com acordeom de Toninho Ferragutti. Em 2013, a Câmara Muni- cipal da cidade de Ribeirão Claro - PR concedeu-lhe o título de Cidadão Ho- norário. Em 2014, funda a Academia Ribeirão-Clarense de Letras e Artes. Já membro da União Brasileira de Escritores, integra em 04/09/2014 o grupo de pesquisas dramatúrgicas fundado por Regina Duarte, estando na gênese da produção de um piloto proposto para a TV Globo, dentre outras atividades ligadas à escrita e edição teatrais, exercidas a convite da atriz, tendo partici- pado dos ensaios de “A volta para casa”, de Matéi Visniec, por ela dirigidos. Em 2015, sua peça teatral “A moldura” ganha leitura pública no Teatro Sérgio Cardoso (SP), com elenco e direção da trupe do espetáculo dirigido por Re- gina. Em Portugal, foi em 2015 que estreou num portal de notícias. Como jornalista, Thiago guarda depoimentos inéditos e entrevistas de personalida- des emblemáticas como Dercy Gonçalves, Antonio Candido, , , , Sábato Magaldi, , - material que vem sendo reunido para futura edição, assim como uma ainda inédita produção poética e dramatúrgica. Esta obra foi composta em Chaparral Pro em dezembro de 2016 para a Editora Patuá.

Libertador é o libertado

Vejo as tintas derramadas da minha caligrafia e sinto-me a mim prensado nas entranhas da parede sépia, pólen, que se abre, porosa para o desenho do meu espírito em espiral, transmutação constante. É como tracejar meu sombreado ao Tejo e ter ali certezas de impalpáveis permanências, no meu eterno rio – que é o ter um dia existido neste leito, e só - !

Thiago Sogayar Bechara 05/09/2015 – Hotel Miraparque, Lisboa, Portugal.

Tiragem de 100 exemplares