A DEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA: UM BALANÇO DO PROCESSO POLÍTICO... A DEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA um balanço do processo político desde a transição

MARIA D’ALVA G. KINZO Professora do Departamento de Ciência Política da USP

Resumo: O objetivo do artigo é discutir a presente experiência democrática através de uma análise do caminho percorrido pelo processo de democratização brasileiro. A visão bastante crítica sobre tal experiência, presente no debate político atual, tem negligenciado o impacto que constrangimentos de várias naturezas tiveram sobre o processo de democratização. Uma análise retrospectiva que recupere as marchas e contramarchas da longa transição democrática ajuda a compreender alguns dos dilemas da atual conjuntura. Palavras-chave: transição democrática; democratização brasileira; partidos políticos.

presente conjuntura, marcada como tem sido por oposto, de tonalidades vivas, do que tem sido conquistado um suceder de crises políticas emaranhadas em em nossa experiência democrática. Trata-se, sim, de dar a A outras de natureza econômica e social, tem levado devida ênfase aos aspectos tanto negativos como positivos à muitos à percepção de que, se não chegamos a andar para luz dos constrangimentos antepostos ao processo de libera- trás, avançamos muito pouco na direção do aprimoramento lização política. Ou seja, procura-se valer do tão aludido democrático do sistema político brasileiro. A ineficácia dos conceito de path dependence para salientar a noção de que governos em tratar de solucionar os problemas econômicos as opções políticas postas em uma determinada conjuntura e sociais que afetam a porção majoritária da população bra- resultaram de decisões precedentes –, escolhas feitas pelos sileira, a onda de denúncias de práticas de corrupção em ór- atores relevantes –, as quais influenciaram o curso do pro- gãos públicos, envolvendo lideranças políticas importantes, cesso político, a ponto de limitar o leque de opções numa e a sensação de insegurança resultante não apenas da violên- conjuntura futura, e portanto os cursos de ação possíveis. Sob cia urbana, mas também de instabilidade econômica de vá- tal enfoque, a discussão sobre o cenário democrático atual rias naturezas, são elementos que se combinam para formar requer, primeiramente, uma referência ao ponto de partida o pessimismo geral que se tem alastrado, em relação aos fru- da democratização – isto é, o regime militar-autoritário que tos desses anos de democracia no país. Para uma população vigorou de 1964 a 1985 – bem como à dinâmica política que que, em sua maioria, tem mostrado pouco apego aos valores orientou a liberalização deste regime e sua transição para a democráticos – como várias pesquisas de opinião têm cons- democracia. Fazer uma retrospectiva deste processo será o tatado –, esses fatores aludidos acabam ocultando os avan- objetivo deste artigo, que não tem qualquer pretensão de ofe- ços democráticos conquistados nos últimos 16 anos. Por recer uma interpretação original sobre esta temática. A in- excesso de foco no presente, esquece-se do passado recente, tenção é apenas de trazer ao presente um pouco de nosso ou trata-se de vê-lo desprovido de seus espinhos, e julga-se passado recente, que tem sido negligenciado na maioria das o presente sob a perspectiva de um modelo idealizado do análises que dão suporte ao debate político atual. sistema político. É em função desse desencanto frente ao quadro político atual que parece oportuno rememorar o ca- GOVERNO MILITAR-AUTORITÁRIO minho percorrido pela democratização brasileira para, a partir daí, avaliar o presente regime democrático. Não se trata aqui Como já foi amplamente discutido na literatura, o caso de contrastar o clima geral de pessimismo com um cenário brasileiro, comparado a outras experiências autoritárias

3 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 vivenciadas na mesma época em outros países da Améri- Em contraste com o que aconteceu, por exemplo, no ca Latina, assentou-se sob alicerces singulares que mere- Chile, onde o governo militar provocou uma mudança sig- cem referência quando tratamos de analisar a influência nificativa no modelo econômico, no Brasil os militares não de fatores de longo prazo no processo de democratiza- inovaram em matéria de política econômica. Com exce- ção.1 Estas bases são de duas naturezas: uma tem a ver ção dos três primeiros anos de governo militar, quando com as instituições políticas sob as quais o governo mili- todos os esforços concentraram-se no programa de esta- tar operava; e a outra, no domínio econômico, refere-se bilização para conter as altas taxas de inflação, a política ao modelo de desenvolvimento seguido e suas conseqüên- econômica, durante o período militar, seguiu basicamen- cias. No âmbito da política, há que se lembrar a emergên- te o mesmo modelo vigente desde o governo Vargas. O cia de uma situação bastante paradoxal. Por um lado, tra- chamado “milagre brasileiro” do período 1967-73 teve tava-se de um regime tipicamente militar no sentido de como sustentáculo, por um lado, os resultados obtidos pela que as Forças Armadas, enquanto instituição, passavam política de estabilização de 1964-67 e, por outro, uma (após o golpe civil-militar que depôs João Goulart em política de desenvolvimento que consolidou e intensifi- 1964) a dirigir o país. Tal situação necessariamente leva- cou o modelo de substituição de importações que reser- ria a que a instituição militar passasse a ser também uma vava ao Estado um papel empreendedor ainda mais im- arena de disputa pelo poder político, o que teria conse- portante. Por volta de 1974, a despeito dos sinais de que qüências não apenas na coesão interna da organização, mas o milagre havia se desfeito – manifestos pelo impacto que também em toda a dinâmica política. Conflitos entre ofi- a crise mundial do petróleo exerceu no Brasil –, o mesmo ciais moderados e radicais permearam os 21 anos de go- caminho continuou a ser trilhado. Uma ambiciosa políti- verno militar gerando freqüente instabilidade política. Por ca de substituição de importações de bens de capital e outro lado, tratava-se de uma situação que manteve em matérias-primas, sustentada por investimentos do setor pú- funcionamento os mecanismos e os procedimentos de uma blico e por empréstimos estrangeiros, foi a estratégia se- democracia representativa: o Congresso e o Judiciário guida (Cardoso, 1983). Certamente, esta estratégia teve continuaram em funcionamento, a despeito de terem seus êxito ao garantir altas taxas de investimento e ao fazer da poderes drasticamente reduzidos e de vários de seus mem- experiência brasileira de regime militar-autoritário um caso bros serem expurgados; manteve-se a alternância na pre- de desempenho econômico bem-sucedido. Porém, foi tam- sidência da República; permaneceram as eleições perió- bém responsável por sérios desequilíbrios, e os proble- dicas, embora mantidas sob controles de várias naturezas; mas econômicos que haviam provocado a intervenção e os partidos políticos continuaram em funcionamento, militar em 1964 – inflação alta e estagnação econômica – apesar de a atividade partidária ser drasticamente limita- ressurgiram com ainda mais intensidade, permanecendo da. Em síntese, era um arranjo que combinava traços ca- como pano de fundo do processo de transição política.2 racterísticos de um regime militar autoritário com outros típicos de um regime democrático. Este arranjo peculiar A LONGA TRANSIÇÃO foi o responsável, em grande medida, por sucessivas cri- ses políticas que acompanharam o regime, fazendo-o se Não foi apenas o regime militar que, no Brasil, teve caracterizar por fases alternadas de repressão e liberali- traços peculiares. Também singular foi seu processo de zação permeadas por crises políticas resultantes de con- democratização.3 Tratou-se do caso mais longo de transi- flitos dentro do exército e entre estes grupos e a oposição ção democrática: um processo lento e gradual de liberali- democrática (Kinzo, 1988). A instabilidade que acompa- zação, em que se transcorreram 11 anos para que os civis nhou o governo dos militares no Brasil, indicativo da difi- retomassem o poder e outros cinco anos para que o presi- culdade de institucionalização do regime, levou Linz (1973) dente da República fosse eleito por voto popular. Para a caracterizar o autoritarismo brasileiro como uma situação propósito analítico, pode-se dividir este processo em três em vez de um regime propriamente dito. Regime ou situa- fases. A primeira, de 1974 a 1982, é o período em que a ção, o fato é que o estabelecimento desse arranjo político dinâmica política da transição estava sob total controle híbrido teve grande impacto na maneira como se deu a tran- dos militares, mais parecendo uma tentativa de reforma sição brasileira. Porém, antes de analisar o processo de tran- do regime do que os primeiros passos de uma transição sição, outra característica no modelo brasileiro, desta vez democrática de fato. A segunda fase, de 1982 a 1985, é no âmbito econômico, deve ser apontada. também caracterizada pelo domínio militar, mas outros

4 A DEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA: UM BALANÇO DO PROCESSO POLÍTICO... atores – civis – passam a ter um papel importante no pro- a fim de preservar a própria instituição.5 Porém, a inicia- cesso político. Na terceira fase, de 1985 a 1989, os mili- tiva de Geisel intensificaria o conflito dentro das Forças tares deixam de deter o papel principal (apesar de mante- Armadas, tornando mais agressiva a reação da chamada rem algum poder de veto), sendo substituídos pelos linha-dura contra a abertura do regime. A intensificação políticos civis, havendo também a participação dos seto- na repressão policial, empreendida pela linha-dura no res organizados da sociedade civil. Como estas fases pos- comando militar de São Paulo em 1975-76, foi claramen- suem diferentes componentes e dinâmicas resultantes do te uma reação à política de liberalização de Geisel. Trata- jogo dos principais atores políticos, uma análise com al- va-se, portanto, de neutralizar as pressões internas dos gum detalhe faz-se necessária. militares contra a distensão, de modo que eles não minas- sem o comando político de Geisel e tampouco interferis- Primeira Fase: 1974 a 1982 sem, mais tarde, na questão crucial que seria a sucessão presidencial. A ascensão do general Geisel na presidência da Repú- Geisel foi bem-sucedido ao lidar com ambos os pro- blica, em 1974, e o anúncio de seu projeto de distensão blemas, jogando nas duas direções ao mesmo tempo: de “gradual e segura” marcaram o início de um novo perío- um lado, puniu com a cassação do mandato alguns dos do do governo militar-autoritário, uma fase que passaria parlamentares de postura oposicionista mais aguerrida, a ser o ponto de partida do processo de democratização alterou leis eleitorais e procedimentos legislativos para no Brasil. A revogação parcial da censura à imprensa e os controlar a oposição, apaziguando assim os militares da sinais, por parte do governo, de valorização das eleições linha-dura, ao mesmo tempo em que reafirmava seu con- legislativas daquele ano (1974) indicavam que as decla- trole sobre a oposição democrática; de outro lado, reagiu rações do novo presidente eram algo mais do que promes- à radicalização dos militares da linha dura, demitindo o sas de retorno à democracia tão freqüentemente aludidas comandante das Forças Armadas de São Paulo após a por seus antecessores na presidência.4 O modo como este morte por tortura de um jornalista e de um trabalhador projeto de liberalização foi conduzido e a dinâmica do metalúrgico, nas dependências dos órgãos de repressão. processo político que acabou por levar à democracia fo- Reafirmando assim seu comando absoluto sobre o processo ram, no entanto, algo extremamente complicado. Esta fase político, Geisel conseguiu não apenas dar continuidade à da transição foi totalmente conduzida pelo governo militar, política de distensão, como também controlar o processo que definiu tanto seu ritmo como seu escopo. Entretanto, sucessório. vários fatores influenciaram o curso deste processo. Deste modo, ao final de 1978, reformas políticas de O primeiro fator foram as eleições. Os sinais de libera- cunho liberalizante foram implementadas de acordo com lização que permitiram a realização das eleições de 1974 o caráter gradual e seguro da política de distensão. Um em condições mais livres resultaram num surpreendente novo presidente, general João Figueiredo, encarregado de desempenho eleitoral do partido de oposição (MDB). Com dar continuidade à transição política nos seis anos seguin- isso, ficava evidente que, a despeito dos excelentes resul- tes, havia sido eleito estritamente de acordo com a deter- tados econômicos conseguidos sob regime militar, este minação de Geisel de impor o nome por ele escolhido. carecia de apoio popular. Também ficava claro que o ino- Se Geisel foi extremamente habilidoso ao tratar com po- fensivo MDB, criado para ser parceiro da Arena no bi- tenciais opositores a seus objetivos políticos, não teve a partidarismo de fachada instituído pelo regime, havia se mesma habilidade para lidar com um terceiro fator que in- tornado um instrumento efetivo de oposição democráti- fluenciou o processo de liberalização política: o problema ca, a ser utilizado não apenas na arena eleitoral, mas tam- econômico. Várias eram as evidências de que o “milagre eco- bém no processo político mais amplo, de modo que, se a nômico” brasileiro estava se esgotando.6 O problema econô- política de liberalização deveria ser mantida sob controle mico era certamente um elemento crucial a ser levado em do governo, esta tinha que neutralizar tanto as eleições conta se os militares quisessem retornar aos quartéis com como o MDB (Lamounier, 1988 e Kinzo, 1988). segurança. Ao que parece, considerações de natureza políti- O segundo fator era a instituição militar e seu conflito ca foram fundamentais no modo como Geisel decidiu lidar interno. Na realidade, uma das principais razões que ex- com a primeira crise mundial de petróleo e suas conseqüên- plicam a iniciativa do governo de iniciar a liberalização é cias recessivas. Em vez de optar pela contração econômica, a necessidade de os militares se retirarem da vida política como aconteceu na maioria dos países afetados pela crise, o

5 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 governo Geisel implementou uma política de expansão eco- Segunda Fase: 1982 a 1985 nômica através do aprofundamento do modelo de substitui- ção de importações, em detrimento dos conseqüentes Apesar dos percalços, o processo de liberalização teve desequilíbrios internos e externos. Assim, um ambicioso pro- continuidade, iniciando uma nova fase com as eleições de grama de substituição de importações nos setores de maté- 1982. Novos partidos políticos haviam sido criados e par- ria-prima e bens de capital foi implantado, envolvendo in- ticipado das eleições. Políticos que nos anos 60 tinham vestimento estatal significativo nos setores de energia e perdido seus direitos voltaram à vida pública e, pela pri- infra-estrutura às custas de grandes empréstimos estrangei- meira vez desde 1965, governadores estaduais foram elei- ros. O curso desta política não foi revertida durante os pri- tos pelo voto popular. Naquelas eleições, o governo mili- meiros anos da administração Figueiredo, o que significava tar teve importantes ganhos, assegurando sua maioria no que, enquanto a economia expandia, as contas externas e a Colégio Eleitoral que elegeria o próximo presidente. Po- inflação continuavam a crescer. O agravamento dos proble- rém, também a oposição obteve avanços significativos, par- mas externos obrigou a equipe econômica de Figueiredo a ticularmente o PMDB, que elegeu os governadores e se- mudar radicalmente a política econômica. Uma tentativa de nadores de nove Estados e conquistou 200 cadeiras na reajuste econômico foi pela primeira vez implementada, ge- Câmara dos Deputados. Assim, apesar de os militares rando uma queda brusca na atividade econômica e aumen- continuarem em sua posição inquestionável de jogador tando o desemprego. Outro choque externo em 1982 agra- principal, outros atores passariam, a partir de 1982, a in- vou ainda mais o cenário econômico extremamente vulnerável fluenciar o jogo, atrapalhando os planos do governo de às mudanças no ambiente externo (Lamounier e Moura, manter o controle total sobre o processo político. 1986). A partir daí a crise econômica acompanharia passo a O episódio mais importante foi a sucessão presiden- passo a transição política e os governos democráticos que cial, a qual deve ser analisada como uma peça em dois lhe seguiram. atos. O primeiro seria a tentativa do PMDB, em 1984, de Em suma, os três fatores apontados – o processo elei- mudar as regras das eleições presidenciais, propondo uma toral, o conflito interno dentro das forças armadas e a emenda constitucional que restabelecesse o voto direto. emergência de sérios problemas econômicos – concorre- Com o objetivo de obter apoio popular para a aprovação ram para fortalecer aquele padrão controlado e gradual da emenda, os partidos de oposição partiram para a mobi- que caracterizou a transição democrática no Brasil. Ini- lização da população. O resultado da campanha das “Di- ciada em 1974, a liberalização somente teve um avanço retas Já” foi uma impressionante mobilização popular com significativo em 1978, quando finalmente foi revogado o milhões de pessoas participando de comícios em todo o draconiano Ato Institucional n.5. Em 1979, já na admi- país. Observando-se aquela mobilização, a impressão era nistração Figueiredo, o Congresso aprovou a anistia, que, de que a sociedade civil – que havia mostrado sua exis- embora limitada, permitiu a reintegração à vida pública tência nos movimentos sociais surgidos em 1978 – tinha de políticos exilados e de ativistas de esquerda punidos decididamente despertado e, finalmente, alteraria o curso pelo regime militar. Uma nova lei partidária pôs fim ao da liberalização. Essa foi, na verdade, a percepção de al- bipartidarismo compulsório criado em 1966, levando à guns setores da oposição democrática, mas a emenda foi criação de novos partidos. derrotada no Congresso, uma vez que a pressão popular A reforma partidária representou importante avanço no não foi eficaz o suficiente para fazer frente a todas as processo de liberalização, mas foi também uma estratégia manobras usadas pelo governo para evitar sua aprovação. do governo para dividir a oposição e assim manter a tran- O desfecho deste episódio colocou mais uma vez em evi- sição sob controle. Entre os fatores a serem controlados dência que os militares estavam determinados a manter, a estava a sucessão presidencial de 1985, que deveria pos- qualquer custo, o controle sobre o processo sucessório pre- sibilitar o restabelecimento do governo civil. Tratava-se sidencial. Ficou também evidente que, apesar do apoio da de garantir não apenas que o próximo presidente fosse mobilização popular, a oposição era numericamente muito eleito via Colégio Eleitoral (e não por sufrágio universal), fraca no Congresso para ser capaz de desafiar o regime se mas também a maioria governista no Colégio Eleitoral. fosse para continuar jogando dentro das regras estabeleci- Assim, alteraram-se as regras eleitorais e mesmo a com- das. À oposição restava duas saídas: buscar simpatizantes posição do Colégio Eleitoral, de forma a reduzir as chan- dissidentes dentro do governo; ou romper as regras do jogo ces de a oposição obter a maioria. através da mobilização da sociedade civil. A decisão de qual

6 A DEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA: UM BALANÇO DO PROCESSO POLÍTICO... direção seguir dependia da posição e força relativa de cada qüências importantes: possibilitou que os dissidentes um dos diferentes grupos da oposição, ou seja, o PMDB com do regime autoritário desempenhassem um papel impor- suas divisões internas, o PT, o PDT e o PTB. Do PTB se tante no novo regime – na verdade passariam a ser par- esperava pouco de oposicionismo, dado que havia votado ceiros de todos os governos que se seguiram; e abriu contra a emenda das diretas em troca de cargos no governo. um amplo espaço para as críticas dos setores mais ra- O PDT, por sua vez, era imprevisível, uma vez que seu líder, dicais da oposição, mais especificamente o PT, contrá- Leonel Brizola, chegara a propor a prorrogação do mandato rios à participação no processo indireto da eleição pre- presidencial de Figueiredo em troca de eleições diretas para sidencial. Sob o argumento de que o Colégio Eleitoral seu sucessor. Deste modo, restaram apenas dois atores prin- era ilegítimo e não representativo, os parlamentares do cipais: a favor da primeira alternativa estava o PMDB, mais PT foram orientados a não participar da escolha do su- especificamente sua ala moderada, que era a mais numerosa cessor de Figueiredo. Como o número de votos do PT e liderava o partido; a favor da segunda estava o PT, seguido no Colégio Eleitoral não era decisivo, certamente era por um pequeno grupo de parlamentares do PMDB que man- mais lucrativo posicionar-se contra a transição nego- tinham relações mais próximas com os movimentos sociais. ciada, diferenciando-se assim da oposição moderada e A decisão do PMDB de optar pela primeira alternativa afirmando sua própria identidade mais à esquerda no – isto é, tentar influenciar o processo sucessório jogando sistema político que emergia. O problema, entretanto, conforme as regras estabelecidas – foi o segundo ato da estava no fato de que, ao denunciar as limitações da sucessão presidencial. Sem dúvida era o produto da posi- “transição negociada”, esta estratégia contribuiu para ção moderada dos líderes do partido, para quem uma so- que a nova ordem instaurada em 1985 desse seus pri- lução negociada evitaria a imprevisibilidade e os riscos meiros passos com sua legitimidade já questionada. de uma mobilização popular e, conseqüentemente, a rea- ção por parte dos militares da linha-dura contra qualquer Terceira Fase: 1985 a 1990 tentativa de mudança radical.7 De qualquer modo, os lí- deres do PMDB estavam dispostos a participar do pro- A segunda fase da transição findou-se com a eleição cesso sucessório mesmo que em condições limitadas. De de Tancredo Neves e José Sarney, em 15 de janeiro de fato, enquanto o PMDB trabalhava pela campanha pró- 1985. Porém, a inauguração de seu governo – que deu diretas, a ala moderada do partido já articulava uma es- início à terceira fase da transição – sofreria ainda o efeito tratégia alternativa caso a emenda não passasse no Con- do acaso: a doença repentina de Tancredo, seguida de sua gresso. A proposta era a candidatura Tancredo Neves para morte, levando à posse do vice, José Sarney, na presidên- concorrer pela oposição na eleição pelo Colégio Eleito- cia da República. Como conseqüência, além de a Nova ral, alternativa que ganhou força tão logo foi derrotada a República – como passou a ser chamado o restabele- Emenda das Diretas. Entretanto, viabilizar a candidatura cimento do governo civil – ter resultado de um acordo entre de Tancredo Neves não era uma tarefa simples, uma vez setores moderados da oposição e dissidentes do governo, que, para seu êxito, era necessário conseguir o apoio do sem o respaldo do voto popular, com a morte de Tancredo outro lado, ou seja, de parlamentares do partido do go- um outro complicador iria se antepor à democratização. verno. A oportunidade surgiu quando alguns políticos do Significava que a Nova República nascia sob circunstân- PDS recusaram-se a apoiar o candidato do governo no- cias bastante frágeis, especialmente para um presidente meado na convenção do partido. Negociações entre o que teria de enfrentar uma crise econômica e social que PMDB e dissidentes do partido do governo (que depois se avolumava. Assim, Sarney tomou posse sem um plano criariam o PFL) levaram à formação da Aliança Demo- de governo propriamente dito e com um sério déficit em crática, cujo objetivo era juntar forças para derrotar o legitimidade: uma figura política marcada por anos de vín- candidato do governo. Em troca do apoio dos dissidentes culos com os militares, que assumia o poder sem o respal- à candidatura Tancredo Neves, o senador José Sarney foi do das urnas e que não era das fileiras do partido que es- escolhido para ser candidato a vice-presidente na chapa perava desta vez governar – o PMDB.8 Estes fatores da oposição. dificultaram sua administração, que ficou vulnerável a A estratégia adotada pela oposição moderada certa- todos os tipos de pressão – desde as forças políticas hete- mente logrou êxito, pois o governo militar foi impossi- rogêneas que compunham seu governo (cada uma tentan- bilitado de impor seu candidato, mas teve duas conse- do aumentar sua influência) até os partidos de oposição e

7 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 os setores organizados da sociedade civil demandando sileira. No que se refere aos procedimentos que nortearam pronta democratização em todos os sentidos do termo. sua elaboração, vários pontos devem ser assinalados: A despeito destes problemas, a democratização brasi- - os trabalhos foram organizados sob uma estrutura bas- leira seguiu seu curso neste novo contexto político. No tante descentralizada, de modo que todos os constituintes que tange à questão social e econômica, o caminho per- tivessem garantida sua participação nas diversas fases do corrido foi de pedras e espinhos no período que se seguiu: processo; entre 1986 e 1994 o país mudou quatro vezes de moeda e - ao invés de um trabalho a portas fechadas, houve ampla teve seis experimentos em estabilização econômica, ape- abertura para a sociedade, uma vez que foi um processo nas o último – o – tendo sido bem-sucedido. A não só intensamente coberto, a cada passo, pela impren- sucessão de fracassos não apenas agravou a crise econô- sa, mas que também contou com a participação dos gru- mica e social, mas também comprometeu a capacidade do pos sociais organizados, seja diretamente, através de de- Estado de governar, tornando o problema da governabili- mandas e sugestões na fase de trabalho das subcomissões, dade uma realidade permanente. seja indiretamente, por meio de pressão para que suas pro- No que tange à esfera política, a fase inaugurada em postas fossem aprovadas pelo plenário; 1985 foi de intensificação da democratização. Os sinais - dado que as forças políticas encontravam-se fragmen- mais importantes foram a instituição de condições livres tadas e os partidos escassamente organizados, a Constituin- de participação e contestação (com a revogação de todas te se tornou bastante permeável às pressões dos interes- as medidas que limitavam o direito de voto e de organiza- ses de grupo, sendo que a decisão da maioria era precedida ção política) e, acima de tudo, a refundação da estrutura de longas negociações a cerca de praticamente cada item constitucional brasileira com a promulgação de uma nova específico.9 Constituição em 1988. A elaboração da Constituição de 1988, vale lembrar, No que se refere ao produto, a despeito de várias im- foi ilustrativa da complexidade que cercou o processo de perfeições, a Constituição representou um avanço signifi- democratização brasileiro. Do início ao fim, o processo cativo. Todos os mecanismos de uma democracia repre- envolveu um embate entre os mais variados grupos, cada sentativa foram garantidos, mesmo aqueles associados à um tentando aumentar ou restringir os limites do arranjo democracia direta, como o plebiscito, o referendo e o di- social, econômico e político a ser estabelecido. Na verda- reito da população de proposição de projeto de lei. Além de, este clima de batalha verbal e de manobras nos basti- disso, desconcentrou-se o poder em conseqüência do for- dores era, em grande medida, um efeito colateral do cur- talecimento do poder do Legislativo, do Judiciário e dos so da transição. Uma refundação que se apoiava num níveis subnacionais de governo, bem como da total liber- acordo negociado seria pressionada em duas direções: de dade de organização partidária. Do âmbito social, a Carta um lado, pelas forças políticas do ancién regime tentando de 1988 significou importantes avanços nos direitos tra- assegurar seu espaço neste novo cenário; e de outro, pe- balhistas, bem como nos padrões de proteção social sob los setores de esquerda que, embora minoritários, adqui- um modelo mais igualitário e universalista (Castro, 1993). riram importante papel no processo constituinte. A pecha A Constituição também foi inovadora em relação às mi- de ser uma transição negociada acabou fazendo com que norias, com a introdução de penalidades rigorosas para seus condutores – líderes políticos moderados mas demo- discriminações contra mulheres e negros. No entanto, dado cratas – se tornassem mais vulneráveis às críticas quanto o contexto social e político no qual se processou a recons- às limitações do novo regime e, por conseguinte, mais sen- titucionalização do país, o novo estava fadado a conviver síveis às pressões das forças políticas que clamavam pelo com o velho. Este foi o caso do secular problema agrário, aprofundamento da democratização. Em função deste fa- que permaneceu quase intocado, e dos militares, que man- tor, é provável que a estrutura constitucional tenha se tor- tiveram sua prerrogativa de poder intervir, caso solicita- nado muito mais democrática do que se esperaria das cir- do por um dos três poderes, na eventualidade de uma gra- cunstâncias de um processo de transição tão gradual e ve crise política. O legado da era Vargas foi também controlado como foi o brasileiro, pois, a despeito de a reafirmado pela Constituição, na inclinação nacionalista e Assembléia Constituinte ter sido amplamente criticada na estatista de algumas de suas cláusulas econômicas e na pre- época por sua natureza congressual, foi certamente a ex- servação de muitos dos traços característicos da estrutura periência mais democrática na história constitucional bra- corporativa de representação de interesses.10

8 A DEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA: UM BALANÇO DO PROCESSO POLÍTICO...

A eleição de 1989 – quando 72 milhões de eleitores - realização, em 1998, sob o impacto da crise russa, da foram às urnas para eleger o presidente da República – terceira eleição presidencial, cujo desfecho foi a recon- finalmente encerrou a terceira e última fase da transição dução de Fernando Henrique Cardoso para um segundo brasileira. A posse de Collor marcava, simbolicamente, o mandato presidencial. final de um longo e complicado processo de transição de- Todos estes fatos foram desafios enfrentados por um mocrática. Porém, os desdobramentos políticos que se regime ainda em processo de consolidação. Ao longo des- seguiram demonstraram que a democracia emergente teve ses anos, eleições dos mais diferentes tipos e para os mais ainda que passar por vários testes antes de chegar na pre- variados cargos continuaram a ocorrer com regularidade sente situação. Entre os fatos marcantes que tornaram o e com razoável grau de incerteza quanto aos resultados, período uma sucessão de crises econômicas e políticas, indicando a vitalidade da democracia no que ela contém alguns merecem destaque: de controle popular sobre o exercício da representação - as drásticas medidas econômicas do Plano Collor decreta- política. Por outro lado, montanhas de escândalos de cor- das no dia seguinte à sua posse – políticas que, apesar de sua rupção têm recheado as páginas dos jornais; denúncias de radicalidade em interferir arbitrariamente na poupança po- violência e atentado aos direitos da cidadania têm sido pular e investimentos financeiros e em promover ampla li- noticiadas diariamente; erupções de protestos e mobiliza- beralização comercial, logo se mostraram ineficazes para ções de diferentes naturezas têm ocorrido em vários pon- conter a crise, levando à rápida erosão do apoio popular do tos do país. Eventos como estes tornaram-se parte do dia- primeiro presidente eleito pelo voto direto; a-dia da vida democrática brasileira, que, a despeito desses - impeachment do presidente Collor em 1992, resultante problemas, obteve conquistas significativas. de sérias denúncias de corrupção, seguidas por uma ex- pressiva mobilização popular e da ação decisiva do Con- DEMOCRACIA ENTRE CONQUISTAS gresso Nacional em solucionar a crise política; E LIMITAÇÕES - ascensão à presidência do vice, Itamar Franco, cuja li- O retrospecto do processo de democratização brasilei- derança vacilante contribuiu ainda mais para agravar a ro aqui realizado tratou de percorrer o curso da transição incerteza política e econômica no país; em cada um de seus momentos fundamentais, avaliando - realização de um plebiscito, em 1993, para definir se o esta experiência de forma a melhor entender os avanços e país continuava presidencialista ou adotava o parlamen- as limitações do presente sistema político. Como de resto tarismo como sistema de governo; tem ocorrido em outros momentos de nossa história, a - tentativa de revisão constitucional em 1994, que se ar- democratização que se iniciou com a restauração do go- rastou por meses e praticamente nada alterou, embora a verno civil não foi o produto de uma ruptura com a antiga necessidade de algumas mudanças constitucionais fosse ordem. Isto implica que a reconstrução do sistema políti- demanda de muitos setores políticos; co deu-se através de acomodações e do entrelaçamento - a famosa CPI do Orçamento, que pôs a público a de práticas e estruturas novas e antigas, combinação esta deslavada prática de corrupção de alguns membros da que estruturou as opções e estratégias seguidas pelos prin- Comissão de Orçamento do Congresso; cipais atores do processo político. Salientar este ponto não significa desconsiderar os avanços democráticos conquis- - implementação, em 1993-94, do Plano Real – um arro- tados, os quais são, em grande medida, o produto da dinâ- jado plano de estabilização econômica que finalmente mica política introduzida pelo próprio processo de demo- conseguiu driblar a inflação; cratização. - eleição presidencial de 1994, que acabou se transforman- Observando o sistema político no Brasil de hoje, não do num plebiscito sobre a política econômica do gover- há como negar que se trata de um regime com claros con- no, elegendo assim Fernando Henrique Cardoso – arqui- tornos de uma democracia. Ao serem tomadas como refe- teto do Plano Real; rência as duas dimensões da poliarquia caracterizadas por - sucessão de crises econômicas no mundo afora – México Dahl (1971), o país ampliou significativamente as condi- em 1995, Ásia em 1997, Rússia em 1998 – cujo impacto no ções de contestação pública e participação política. Po- Brasil quase enterrou os esforços de estabilização do Pla- rém, tampouco há como negar que existam problemas no no Real e a popularidade de Fernando Henrique Cardoso; que se refere tanto à “qualidade” da contestação pública e

9 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 da participação do cidadão quanto ao funcionamento efe- Câmara dos Deputados. Para estes autores, a existência tivo do processo decisório democrático. de um sistema partidário fragmentado não teria conseqüên- Vale lembrar, em primeiro lugar, a questão social, isto cias, uma vez que a fragmentação partidária é mais nomi- é, o problema da pobreza e da desigualdade. Não resta a nal do que real, dada a ocorrência de uma reaglutinação menor dúvida de que extremas desigualdades sociais são nas posições dos partidos. As evidências desse trabalho – um fator que constrange a consolidação da democracia, baseado em análise acurada das votações de projetos tra- especialmente no que se refere è efetiva participação po- mitados na Câmara dos Deputados – demonstram que os lítica de todos os cidadãos. Os elevados índices de pobre- partidos de direita (grandes e pequenos) votam similar- za e de concentração de renda no Brasil são um legado do mente e os de esquerda fazem o mesmo, sendo que o grau passado que os governos pós-regime militar não tornaram de coesão é também alto. De fato, pelo que se observou menos agudo,11 a despeito de avanços na área da educa- sobre os partidos na Constituinte e sobre o posicionamento ção. Em segundo lugar, há problemas referentes à repre- dos deputados estaduais da legislatura 1987-91, não há sentação política e ao processo de decisão democrático. diferenças contrastantes entre os vários partidos de direi- A estrutura institucional brasileira possui vários aspectos ta ou entre os vários de esquerda, havendo sim uma que dificultam o funcionamento do sistema democrático- gradação de mais ou menos direita e mais ou menos es- representativo.12 Entre eles, vale destacar a tão debatida querda (Kinzo, 1990 e 1993). No entanto, há que se fazer questão partidária, que se resume na existência de um sis- duas ressalvas. Em primeiro lugar, se é verdade que os tema partidário que é, por um lado, altamente fragmenta- partidos de direita assumem posições similares, ou não se do e, por outro, pouco nítido no que tange às opções ofe- diferenciam em questões essenciais, e se o mesmo ocorre recidas ao eleitor no processo eleitoral.13 Trata-se de um com os de centro e os de esquerda, qual a relevância de contexto político que dificulta enormemente a capacida- existirem tantos partidos que ocupam semelhantes posi- de do eleitor de fixar as legendas, distinguir quem é quem ções no espectro político-ideológico, mesmo porque tam- na competição e criar identidades partidárias.14 Quanto à bém nas eleições eles se apresentam em aliança? A se- questão da representação política, este é um contexto que gunda ressalva tem a ver com as conseqüências da possibilita a eleição de representantes pouco comprome- fragmentação sobre o processo decisório propriamente tidos com seu partido e com os eleitores que os elegeram, dito: a despeito de muitos dos partidos serem parecidos e, mesmo porque muitos se elegeram com os votos exceden- quando examinamos os resultados das votações, poder- tes dos candidatos mais votados, os quais podem ser de mos ver menos partidos do que os nominais, o fato é que, um outro partido pertencente à coligação eleitoral. na hora de negociar, eles o fazem como atores distintos, Efeito também da alta fragmentação é a impossibilida- de modo que a situação continua sendo a de um jogo de de de que um presidente saia das urnas com um apoio poder fragmentado. partidário-parlamentar majoritário, o que o obriga a fazer Em suma, o que predomina é uma situação em que o um governo de coalizão de vários partidos. Isto significa processo de decisão é dificultado pela existência de um que, a fim de manter uma base parlamentar de apoio a suas sistema de múltiplos vetos, fazendo com que qualquer políticas, o chefe do governo terá de compor seu ministé- negociação envolva muitos atores e seja portanto árdua e rio com diferentes forças partidárias, por vezes heterogê- demorada, situação muito mais propícia à manutenção do neas, fator que certamente dificulta uma ação governamen- status quo do que à mudança de políticas.15 Em tal con- tal coordenada, especialmente em relação a políticas texto, qualquer que seja o perfil do presidente e de seu públicas cuja implementação depende da ação de vários partido, a probabilidade de reforma efetiva em políticas ministérios. Além disso, na medida em que o Executivo tem públicas é limitada. Na presente experiência de governo de contar com o apoio de vários partidos para ver seus pro- democrático pós-85, o chamado presidencialismo de coa- jetos aprovados no Congresso, o processo de negociação é lizão (Abranches, 1988) tem funcionado às custas do re- complexo e demorado, ou seja, envolve uma dinâmica difí- curso, por parte do Executivo, seja de mecanismos de cil entre o presidente e os partidos da coalizão, muitas vezes decisão concentradores de poder, como é o caso das Me- baseada na ameaça e na retaliação mútua. didas Provisórias,16 seja de recursos clientelísticos para A tese de que a fragmentação partidária tem impacto negociar apoio parlamentar em bases às vezes até indivi- negativo no processo decisório é contestada por Figueiredo duais. A permanência desta situação, que reproduz à e Limongi (1994) com base em análise das votações na enésima potência o sistema de contrapesos do modelo

10 A DEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA: UM BALANÇO DO PROCESSO POLÍTICO... madsoniano, pode ser entendida como fruto da acomoda- seja, atores institucionais e partidários com capacidade de vetar uma proposição, mas também da coesão de cada ator coletivo. No caso bra- ção possível no contexto de um padrão de desenvolvimento sileiro, pode-se dizer que, dado que os partidos da presente coalizão político como o descrito anteriormente. Isto não retira seu governamental nem sempre se apresentam com alta coesão, no sentido de compartilhar posições ou princípios definidos e claros, são possi- caráter problemático, especialmente num país em que a velmente mais propensos à negociação embora a dificultem o mais que agenda política é carregada de problemas estruturais a puderem. serem equacionados. 16. O poder do Executivo não se limita às Medidas Provisórias, uma vez que também detém a prerrogativa exclusiva de iniciativa legislati- va em várias matérias, entre elas as referentes ao orçamento federal. Além disso, o Executivo pode interferir na agenda legislativa, solici- NOTAS tando ao colégio de líderes urgência na tramitação de uma matéria de seu interesse. Ver Figueiredo e Limongi (1994).

E-mail da autora: [email protected] 1. Para uma revisão geral da experiência militar-autoritária no Brasil ver Cardoso (1972), Stepan (1973, 1975 e 1988) e Skidmore (1988). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 2. É vasta a literatura sobre a economia brasileira durante o regime militar. Os comentários aqui são baseados nos trabalhos de Serra (1982), ABRANCHES, S. “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucio- Fishlow (1973), Suzigan (1974) e Longo (1993). nal brasileiro”. Dados, v.31, n.1, 1988, p.5-34. 3. Sobre a transição brasileira, veja Martins (1986), Stepan (1989), BARROS, R.P. et alii. “Desigualdade e pobreza no Brasil: história de Lamounier (1988 e 1989), Velasco e Cruz e Martins (1983) e Diniz uma estabilidade inaceitável”. Revista Brasileira de Ciências (1985). Sociais, v.15, n.42, 2000, p.123-42. 4. Um balanço das diferentes abordagens explicativas da abertura po- CARDOSO, F.H. O modelo político brasileiro. São Paulo, Difel, 1972. lítica encontra-se em Figueiredo e Cheibub (1982) e Diniz (1985). Sobre ______. “O papel dos empresários no processo de transição: o caso o início da transição, ver também a excelente análise de Lamounier brasileiro”. Dados, v.26, n.1, 1983, p.9-27 (1979). CASTRO, M.H.G. “Democratic transition and social policy in : 5. Como Rouquié (1982:3) observou “um sistema permanente de domí- some dilemmas in the agenda of reforms”. In: KINZO, M.D.G. nio militar é quase uma contradição em termos. A instituição militar (ed.). Brazil: the challenges of the 1990’s. Londres, British não pode governar de forma direta e duradoura sem deixar de sê-la”. Academic Press, 1993. 6. Desaceleração do PIB, que caiu de 14% em 1973 para 9,8% em 1974 COUTO, C.G. Os mecanismos da governabilidade – Sistema de go- e 5,6% no ano seguinte, aumento significativo do déficit em conta verno e democracia no Brasil. Tese de Doutorado. São Paulo, corrente (de US$ 1,7 bilhão em 1973 para US$ 7,1 bilhões em 1974) e Universidade de São Paulo, 2000. crescimento da dívida externa (de US$ 6,2 bilhões em 1973 para DAHL, R. Poliarchy: participation and opposition. New Haven, US$ 11,9 bilhões em 1974, alcançando US$ 56,3 bilhões em 1981) University Yale Ed., 1971. Serra (1982). DINIZ, E. “A transição política no Brasil: uma reavaliação da dinâmi- 7. É bem provável que o processo político teria caminhado em outra ca da abertura”. Dados, n.3, 1985, p.329-46. direção caso tivesse sido seguido o segundo curso de ação, defendido pelos setores mais radicais da oposição. De qualquer forma, a demo- FIGUEIREDO, A. e LIMONGI, F. “O Congresso e as Medidas Provisóri- cratização tanto poderia ter sido de outra natureza como poderia ter as: abdicação ou delegação?” Novos Estudos Cebrap. São Paulo, n.47, sofrido uma reversão autoritária. 1997, p.127-154. 8. Recorde-se que José Sarney filiou-se ao PMDB apenas para que ______. “O processo legislativo e a produção legal no Congresso pudesse concorrer à vice-presidência, dado que havia se desligado do Pós-Constituinte”. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, n.38, 1994. PDS e o PFL ainda não havia sido fundado. FIGUEIREDO, M. e CHEIBUB, J.A.B. “A abertura política de 1973 a 9. Sobre a Constituição de 1988, ver Souza e Lamounier (1990). 1981: quem disse o quê, quando – Inventário de um debate”. BIB, n.14, 1982, p.29-61. 10. Como assinala Sallum Jr. (1999:27), “apesar de decadente, o mo- delo nacional-desenvolvimentista (certamente sob vestes mais demo- FISHLOW, A. “Some reflections on post 1964 brazilian economic cráticas) foi juridicamente consolidado pela Constituição de 1988”. policy”. In: STEPAN, A. (ed.). Op. cit., 1973. 11. Sobre esta questão ver Barros et alii (2000). KINZO, M.D.G. Oposição e autoritarismo – Gênese e trajetória do MDB, 1966-79. São Paulo, Idesp/Vértice, 1988. 12. Sobre esta questão ver, especialmente, Lamounier (1992); Kinzo (1997) e Couto (2000). ______. “O quadro partidário e a Constituinte”. In: LAMOUNIER, B. (org.). De Geisel a Collor: o Balanço da Transição. São Pau- 13. Antes de um simples produto do sistema de representação propor- lo, Editora Sumaré, 1990. cional, esta situação tem a ver com uma legislação partidária e eleito- ral que possibilita alianças partidárias até mesmo nas eleições propor- ______. Radiografia do Quadro Partidário Brasileiro. São Pau- cionais, garantindo acesso ao horário eleitoral gratuito mesmo a parti- lo, Fundação Konrad Adenauer-Stiftung, 1993. dos sem nenhuma expressão política, e com a desvinculação partidá- ______. “Governabilidade, estrutura institucional e processo de- ria do mandato eleitoral, isto é, a ausência de qualquer impedimento cisório no Brasil”. Parcerias Estratégicas, v.1, n.3, jun. 1997, para troca de agremiação partidária de um detentor de mandato eletivo. p.19-37. 14. Como vários estudos têm indicado, a volatilidade eleitoral no Bra- ______. “Democratization through transition: the case of Brazil”. sil, embora decrescente, é ainda bastante acima da média encontrada In: NEWMAN, E. e GARRETON, M.A. (eds.). Democracy in Latin nas democracias consolidadas. Sobre a volatilidade eleitoral no Bra- America. Tokyo, United Nations University Press (no prelo). sil, ver Nicolau (1998) e Peres (2000). KINZO, M.D.G. e SILVA, S. R. “Politics in Brazil: the Cardoso’s 15. De acordo com Tsebelis (1995), a probabilidade de mudança do government and the 1988 re-election”. Government and Opposition, status quo é uma função não apenas do número de veto players, ou v.34, n.2, 1999, p.243-62.

11 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001

LAMOUNIER, B. “O discurso e o processo – Da distensão às opções ROUQUIÉ, A. “Demilitarization and the institutionalization of military- do regime brasileiro”. In: RATTNER, H. (org.). Brasil 1980. Ca- dominated polities in Latin America”. Working Papers of Latin minhos alternativos do desenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, America Program. Washington, Wilson Center, n.110, 1982. 1979. SALLUM Jr., B. “O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvi- ______. “O ‘Brasil autoritário’ revisitado: o impacto das eleições mentismo”. Tempo Social – Revista de Sociologia da USP. São sobre a abertura”. In: STEPAN, A. (ed.). Op. cit., 1988. Paulo, v.11, n.2, p.23-47, out. 1999. ______. “Brazil: inequality against democracy”. In: DIAMOND, L. SARTORI, G. Partidos e sistemas partidários. /Brasília, et alii (eds.). Democracy in developing countries – Latin America. Zahar/UNB, 1982. Boulder, Ed. Lynne Reinner, 1989. SERRA, J. “Ciclos e mudanças estruturais na economia brasileira do ______. “Estrutura institucional e governabilidade na década de 90”. pós-guerra”. In: BELLUZZO, L. e COUTINHO, R. Desenvolvimento In: VELLOSO, J.P.R. (org.). O Brasil e as reformas políticas. Rio capitalista no Brasil – Ensaios sobre a crise. São Paulo, Brasiliense, de Janeiro, José Olympio, 1992. 1982. LAMOUNIER, B. e MOURA, A. “Economic policy and political opening SKIDMORE, T. The politics of military rule in Brazil: 1964-1985. in Brazil”. In: HARTLYN, J. e MORLEY, S. (eds.). Latin American Oxford/Nova York, Oxford University Press, 1988. political economy: financial crisis and political change. Boulder, SOUZA, A. e LAMOUNIER, B. “A feitura da nova constituição: um Ed. Westview, 1986. reexame da cultura política brasileira”. In: LAMOUNIER, B. (ed.). LINZ, J. “The future of an authoritarian situation or the institutionalization De Geisel a Collor: o balanço da transição. São Paulo, Ed. Sumaré, of an authoritarian regime: the case of Brazil”. In: STEPAN, A. (ed.). 1990. Op.cit., 1973. STEPAN, A. (ed.). Authoritarian Brazil – Origins, policies and future. LONGO, C.A. “The state and the liberalization of the economy”. In: New Haven, Yale University Press, 1973. KINZO, M.D.G. (ed.). Brazil: the challenges of the 1990’s. London, ______. Os militares na política. Rio de Janeiro, Ed. Artenova, 1975. British Academic Press, 1993. ______. (ed.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Ter- MARTINS, L. “The liberalization of the authoritarian rule in Brazil”. ra, 1988. In: O’DONNELL, G.; SCHMITTER, P. e WHITEHEAD, L. (eds.). SUZIGAN, W. et alii. Crescimento industrial no Brasil. Rio de Janeiro, Transitions from authoritarian rule – Latin America. Baltimore/ Ipea, 1974. Londres, Editora da Universidade John Hopkins, 1986. TSEBELIS, G. “Decision-Making in political system: veto players in NICOLAU, J. “A volatilidade eleitoral nas eleições para a Câmara dos presidentialism, parlamentarism, multicameralism and multipartysim”. Deputados brasileira (1992-1994)”. XXII Encontro Anual da British Journal of Political Science, v.25, 1995, p.289-325. ANPOCS. Caxambu, out. 1998, mimeo. VELASCO E CRUZ, S. e MARTINS, C.E. “De Castelo a Figueiredo: PERES, P.S. “Sistema partidário, instabilidade eleitoral e consolidação uma incursão na pré-história da ‘Abertura’”. In: SORJ, B. e democrática no Brasil”. II Encontro Anual da Associação Brasilei- ALMEIDA, M.H.T. (eds.). Sociedade e política no Brasil pós-64. ra de Ciência Política (ABCP), 2000, mimeo. São Paulo, Brasiliense, 1983.

12 GLOBALIZAÇÃO, REFORMA DO ESTADO E TEORIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA GLOBALIZAÇÃO, REFORMA DO ESTADO E TEORIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA

ELI DINIZ Professora do Instituto de Economia da UFRJ

Resumo: O presente artigo retoma o debate sobre a reforma do Estado com o objetivo de inserir a discussão sobre este importante item da pauta das reformas dos anos 90 no âmbito da teoria democrática contemporâ- nea. Para tanto, enfatiza aspectos freqüentemente negligenciados pelas análises correntes, tais como o impac- to das diferentes seqüências históricas, as características do regime político, a inter-relação entre governabili- dade democrática, accountability e responsabilidade pública dos governantes, quer diante da instância parla- mentar, quer diante da sociedade. Palavras-chave: globalização; democracia; reforma do Estado.

o decorrer dos anos 90, o tema da reforma do Es- ções externas associadas aos desdobramentos do proces- tado adquiriu centralidade na agenda pública bra- so de globalização e as dificuldades para formular e im- N sileira. A partir da presidência de Fernando Collor, plementar uma nova estratégia de desenvolvimento para desencadearam-se as primeiras medidas para reduzir o Es- o país. Como conciliar inserção externa e crescimento tado e realizar a ruptura com o passado intervencionista, econômico? Como garantir o grau necessário de autono- típico do modelo da industrialização substitutiva de im- mia decisória nacional para definir e executar formas al- portações e do desenvolvimentismo dos governos milita- ternativas de integração ao sistema internacional? Como res de 1964 a 1985. Esse esforço reformista foi aprofun- reencontrar o caminho do desenvolvimento? dado no primeiro governo do presidente Fernando Henrique As reformas realizadas nos anos 90, notadamente a Cardoso, que se propôs a tarefa de sepultar a Era Vargas e privatização, a liberalização comercial e a abertura da superar os entraves representados pela sobrevivência da economia, tiveram eficácia no desmonte dos alicerces da antiga ordem. Através da prioridade atribuída às reformas antiga ordem, de tal forma que qualquer perspectiva de constitucionais, iniciou-se um processo de desconstrução retorno ao passado torna-se anacrônica. Entretanto, den- legal e institucional, que abriu o caminho para a reestrutu- tro do atual modelo, cabem, certamente, diferentes estra- ração da ordem econômica e, sobretudo, para a refunda- tégias de desenvolvimento, algumas frontalmente contrá- ção do Estado e da sociedade de acordo com os novos pa- rias às políticas implementadas nos últimos dez anos. Eis râmetros consagrados internacionalmente. A instauração porque as possibilidades de inovação passam pela políti- de um novo modelo econômico centrado no mercado foi ca. Torna-se imperativo implantar novas formas de ges- acompanhado de um projeto ambicioso de dar início a uma tão pública, que permitam a consecução das metas coleti- nova era. Entretanto, limitada por uma visão restritiva de vas e viabilizem formas alternativas de administrar a teor administrativo, a reforma do Estado do governo Car- inserção na ordem globalizada. doso foi capturada pela meta do ajuste fiscal, revelando- se incapaz de realizar a ruptura anunciada. GLOBALIZAÇÃO: A CENTRALIDADE DA Desta maneira e após uma década de experimentos ine- DIMENSÃO POLÍTICA ficazes, eis que a reforma do Estado readquire relevância no limiar do novo milênio, configurando-se como um dos O fenômeno da globalização, que vem caracterizando principais desafios do momento presente, dadas as restri- a economia internacional desde meados da década de 70,

13 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 ou, como prefere François Chesnais (1996), a “mundiali- lítica como contrapartida da supervalorização dos meca- zação do capital”, tem sido interpretado de diferentes nismos econômicos e esvazia-se a responsabilidade dos maneiras. O termo adquiriu um sem-número de sentidos, governantes pelos erros e acertos das políticas executadas. que mais confundem do que esclarecem seu real signifi- Em contraste, e tendo em vista a complexidade da nova cado. Entre os equívocos mais correntes, situa-se a visão ordem mundial, cabe salientar que a globalização não está da globalização como um processo exclusivamente eco- comandada por forças inexoráveis e nem marcada exclu- nômico. Trata-se de uma simplificação, pois o processo sivamente por relações e processos de natureza econômi- de globalização não se resume a uma dinâmica puramen- ca. Está, sobretudo, sujeita a uma lógica política (Diniz, te econômica, senão que se trata de um fenômeno multi- 2000a, cap.1), que por sua vez, tem a ver com relações dimensional, que obedece a decisões de natureza política. assimétricas de poder, que se estabelecem entre as potên- Em outros termos, a economia não se move mecanicamen- cias em escala mundial, traduzindo-se pela formação de te, independente da complexa relação de forças políticas blocos e instâncias supranacionais de poder. Configuram- que se estruturam em âmbito internacional, através da qual se, assim, as redes transnacionais de conexões, através das se tecem os vínculos entre economia mundial e economi- quais articulam-se alianças estratégicas, envolvendo ato- as nacionais. Portanto, um dos efeitos da visão econo- res externos e internos, destacando-se, entre estes, as gran- micista é obscurecer o papel da política. A globalização e des corporações multinacionais, a alta tecnocracia de teor a pressão das agências internacionais exercem, sim, forte cosmopolita, as organizações financeiras internacionais, influência na determinação das agendas dos diferentes burocratas de alto nível, entre outras elites estratégicas. países, mas não o fazem de modo mecânico e determinis- Tais relações estão por trás das escolhas feitas pelos ato- ta. As opções das elites dirigentes nacionais – suas coali- res, escolhas estas que não são aleatórias, nem o reflexo zões de apoio político – tiveram e têm um papel impor- de critérios exclusivamente técnicos ou econômicos, se- tante na escolha das formas de inserção no sistema não que se orientam também por um cálculo político. internacional e na definição das políticas a serem imple- Cada vez mais, os Estados nacionais tornam-se parte mentadas. de um sistema de poder de teor supranacional, tornando A ênfase unilateral nos aspectos econômicos conduz a artificial a rígida contraposição fatores externos-fatores um segundo equívoco. Trata-se do pressuposto de um internos. Eis porque administrar com maior ou menor au- automatismo cego do mercado globalizado. O processo tonomia a inserção do país no sistema internacional não estaria submetido a uma lógica férrea, à qual todos os requer apenas capacitação técnica de elites iluminadas, mas países deveriam ajustar-se, de modo inescapável e segun- depende de opções políticas em prol da defesa da sobera- do um receituário único. A abordagem de teor economicista nia e do fortalecimento do poder de negociação dos go- implica, pois, uma visão determinista, já que a ordem vernos nacionais. Ademais, conquistar posições favorá- mundial é percebida como submetida a uma dinâmica in- veis no jogo de poder internacional implica uma alta controlável, de efeitos inexoráveis, o que, no limite, des- capacidade de gestão do Estado, ao contrário do que ad- cartaria a existência de alternativas viáveis. Efetivamen- vogam os defensores do Estado mínimo. Como ressalta te, se a globalização é apresentada como um processo Celso Furtado, em seu livro, Brasil, a construção inter- inevitável, independente da intervenção humana, adaptar- rompida (1992:24), “A atrofia dos mecanismos de coman- se de forma imperativa torna-se a única saída possível. do dos sistemas econômicos nacionais não é outra coisa É interessante ressaltar que tanto do lado da ótica libe- senão a prevalência de estruturas de decisões transnacio- ral ortodoxa, representada pelo Consenso de Washington nais, voltadas para a planetarização dos circuitos de deci- (Williamson, 1993), quanto numa visão crítica radical, tal sões”. Cabe acrescentar, por outro lado, que reverter uma como formulada, para citar apenas um exemplo, por posição subordinada ou rejeitar a predominância da lógi- Viviane Forrester, no livro O horror econômico (1996), ca das empresas transnacionais na estruturação das ativi- esse traço determinista está presente, já que, em ambos os dades econômicas de um país é um ato de natureza políti- casos, a globalização é apresentada como um fenômeno ca, requerendo uma ação deliberada capaz de definir e monolítico, submetido ao império das leis econômicas. Em executar uma nova estratégia nacional. conseqüência, os governos nacionais são tratados como Entre os equívocos induzidos pela visão economicista, objetos passivos de forças que não podem controlar, sen- deve-se mencionar ainda a ênfase unilateral nos custos do, portanto, reduzidos à impotência. Anula-se a ação po- econômicos da globalização, perdendo-se de vista seus

14 GLOBALIZAÇÃO, REFORMA DO ESTADO E TEORIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA custos políticos, tão ou mais relevantes. Tais custos, nos governamental, eliminando qualquer meta concorrente, países desenvolvidos, manifestam-se pela difusão das ideo- deslocando qualquer outro objetivo como fator supérfluo, logias antidemocráticas, do tipo fascista, com forte com- causador de distúrbios e fonte de distorções. Assim, até ponente xenófobo, em reação ao aumento do desempre- mesmo a discussão em torno de uma escala alternativa de go, da criminalidade, da incerteza e do sentimento de prioridades tende a ser apresentada como inoportuna, sen- impotência em face das crises internacionais. Nas novas do mesmo deslegitimada e estigmatizada, como expres- democracias, por outro lado, esse custo político se traduz, são de uma visão populista e contrária à modernidade. entre outras coisas, e de acordo com alguns autores, pela Alcançada a estabilização e realizadas as reformas, a via generalização de democracias minimalistas. Assim, por da modernização estaria assegurada com a retomada do exemplo, Bresser Pereira, José Maravall e Adam Przeworski desenvolvimento. (1993) referem-se ao predomínio de um estilo político Por outro lado, a percepção de que as dimensões polí- autocrático na administração das crises e das reformas eco- tica e institucional são também relevantes e não podem nômicas, a partir dos anos 80. Guillermo O’Donnell (1991) ser ignoradas levou a que se considerasse a reforma do faz referência à difusão, nos países latino-americanos, das Estado uma prioridade dos anos 90. A ruptura com a no- chamadas democracias delegativas, caracterizadas por alto ção fatalista da globalização, movida pelo automatismo grau de voluntarismo no exercício da Presidência da Re- do mercado, se fez acompanhar da descoberta da falácia pública, interpretando-se a vitória nas urnas como dele- do enfoque estritamente liberal da reforma do Estado, im- gação para decidir discricionariamente. James Malloy plicando fundamentalmente corte de gastos, redução do (1993) destaca o predomínio de regimes híbridos, combi- tamanho e das funções do Estado. Em conseqüência, ob- nando democracias eleitorais com um estilo autoritário- servou-se a revalorização da capacidade de ação estatal tecnocrático de gestão econômica. Aldo Vacs (1994) men- como um pré-requisito do êxito dos governos na adminis- ciona a tendência à constituição de democracias restritivas, tração de situações de crise e transição. A centralidade da com baixo grau de participação política e processos deci- reforma do Estado significaria, portanto, a afirmação de sórios fechados. Em todos esses autores, sobressai a preo- um novo enfoque de maior alcance e abrangência. A ên- cupação com a debilidade institucional que dificultaria o fase desloca-se para a busca de alternativas e o reconhe- aperfeiçoamento da democracia nestes países. cimento de que o crescimento e a conquista de um novo Finalmente, a globalização não tem apenas efeitos uní- patamar econômico não se produzem espontaneamente, vocos na direção da modernidade, trazendo também con- senão que são o resultado de políticas deliberadas, de es- seqüências altamente desorganizadoras e desestruturado- colhas feitas por elites dirigentes determinadas a rever- ras. Há um movimento oposto à integração, que opera no ter situações adversas e elevar o nível de bem-estar da sentido da fragmentação, da segmentação e da exclusão. sociedade. Assim, a inserção na economia mundial não pode ser vis- ta, necessariamente, como um jogo de soma positiva, no REFORMA DO ESTADO, REGIME POLÍTICO qual todos tenderiam a ganhar. Ao contrário, longe de se E DEMOCRACIA: A RELEVÂNCIA DA ter produzido uma ordem econômica mundial mais inte- PERSPECTIVA HISTÓRICA grada e inclusiva, o que se observou foi a configuração de um sistema internacional, marcado por grandes contras- Além das restrições externas decorrentes do aprofun- tes e polaridades, reproduzindo-se as desigualdades entre damento do processo de globalização, anteriormente re- as grandes potências e os países periféricos, reeditando- feridas, cabe também levar em conta as especificidades se, de forma ainda mais dramática, a exclusão social. Tais da evolução histórica de cada país, sobretudo quando se clivagens separam não só países, como também continen- considera o impacto das diferentes seqüências históricas tes e, dentro de cada país, instauram um profundo fosso na construção da democracia, em cada caso concreto. Tais entre as camadas integradas e os setores excluídos, dis- considerações remetem ao estudo clássico de Robert Dahl, tância que tende a se agravar, sob condições do livre jogo Polyarchy: participation and opposition, publicado pela das forças de mercado. primeira vez em 1972, em que o autor apresenta as oito A visão economicista leva ainda ao teor minimalista garantias institucionais da poliarquia, quais sejam: da agenda pública, pois a ênfase unilateral nos problemas - liberdade de formar e integrar-se a organizações; econômicos situaria estas questões no centro da agenda - liberdade de expressão;

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- direito de voto; bilidade da poliarquia estaria associada à seqüência que - elegibilidade para cargos políticos; se configurou historicamente na transição para a demo- - direito de líderes políticos competirem através da votação; cracia. Países que seguiram a seqüência I (liberalização antecedendo o alargamento da participação) seriam mais - fontes alternativas de informação; estáveis em relação àqueles que seguiram a II, na qual o - eleições livres e idôneas; aumento da participação precedeu a institucionalização da - existência de instituições que garantam que as políticas competição política. governamentais dependam de eleições e de outras mani- Partindo do modelo de Dahl, Santos (1993: cap.1) in- festações de preferência da população. troduz algumas qualificações de forma a desvendar a pe- Desta forma, a arquitetura institucional da democracia culiaridade da evolução latino-americana em face das compreende certos traços elementares, que são encontra- experiências européias e anglo-saxônicas. Em primeiro dos em todos os exemplos de democracia política. Entre- lugar, como ressalta o autor, à semelhança dos exemplos tanto, a amplitude e o grau em que tais condições institu- alemão, francês e italiano, “o processo latino-americano cionais estão presentes, em cada caso considerado, caracterizou-se pela incorporação das massas à dinâmica divergem de maneira expressiva. Ademais, as formas pe- da competição política antes que se obtivesse estabilida- las quais o elenco de direitos, garantias e valores básicos de na institucionalização das regras dessa mesma compe- constitutivos das poliarquias emergem e se institucionali- tição”. Em segundo lugar, e este seria um traço da demo- zam variam amplamente. Tais variações têm relevância para cracia latino-americana, a política social foi utilizada como o funcionamento das poliarquias, vale dizer, as singulari- instrumento de engenharia para universalizar a participa- dades da evolução histórica têm um impacto na qualidade ção, em um contexto de fraca institucionalização da com- da democracia, em termos de suas duas dimensões bási- petição política (Santos, 1993:29-30). No caso do Brasil, cas: os direitos de oposição e de participação política. A verificou-se uma outra especificidade, já que os atores consolidação institucional ao longo destas duas dimensões estratégicos da ordem industrial em formação – aí incluí- – liberalização ou competição política, por um lado, in- dos o empresariado e os trabalhadores urbanos – adquiri- clusão ou participação política, por outro – não se dá num ram suas identidades coletivas não através dos partidos mesmo ritmo e não obedece a uma única seqüência. políticos, mas sim pela via do Estado. Além disso, atra- Algumas trajetórias são mais favoráveis do que outras vés da montagem da estrutura corporativa para realizar a para assegurar com sucesso o trânsito para o regime po- articulação Estado-sociedade, tal como destacado em es- liárquico. Dahl (1972: cap.3) aponta dois caminhos prin- tudos anteriores (Diniz, 1978 e 1992), este processo de cipais: a seqüência I, na qual a liberalização precede o incorporação política seria subordinado à tutela estatal. alargamento da participação, percurso em que uma hege- Num outro veio analítico, O’Donnell (1993, 1998 e monia fechada (baixa competição e baixa participação) 1999) viria também a enfatizar as peculiaridades da for- aumenta as oportunidades de contestação pública, trans- mação histórica das novas democracias, aí incluindo o formando-se numa oligarquia competitiva para, num mo- Brasil, gerando uma fragilidade institucional que sobre- mento posterior, expandir os graus de participação políti- viveria às tentativas de mudança ao longo do tempo. En- ca e transformar-se numa poliarquia; e a seqüência II, na tre tais debilidades, sobressaem a incompletude do pro- qual a inclusividade precede a liberalização, percurso que cesso de constituição da cidadania, resultando importantes vai de uma hegemonia fechada a uma hegemonia inclusi- lacunas quanto aos direitos civis e sociais, o estreitamen- va e daí à poliarquia, via institucionalização da competi- to dos espaços públicos, além de sérias deficiências quanto ção política. A primeira via, a mais segura, foi seguida à efetividade da lei. Esta se estende de forma pronuncia- pela Inglaterra e pela Suécia, enquanto a segunda corres- damente irregular sobre o conjunto do território nacional ponde ao caminho seguido pela Alemanha. Já a França e sobre as diferentes camadas da população, resultando enquadrar-se-ia numa terceira modalidade, caracterizada um amplo contingente que se situa fora da cobertura le- como um atalho, percurso em que uma hegemonia fecha- gal. Nas novas democracias, regiões inteiras permanecem da é abruptamente transformada em poliarquia por uma à margem do sistema legal sancionado pelo Estado, não repentina concessão de sufrágio universal e direitos de apenas nas áreas rurais, mas também nas periferias dos contestação pública. Trata-se da via revolucionária, que centros urbanos. Além disso, no caso de certos setores encerra alto risco de instabilidade política. Assim, a esta- discriminados, em todas as regiões, mesmo nas mais de-

16 GLOBALIZAÇÃO, REFORMA DO ESTADO E TEORIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA senvolvidas, a legalidade estatal é também pouco efetiva. da burocracia governamental em face dos partidos e do Tal particularidade traduz-se na ampliação das chamadas poder Legislativo. “áreas marrons”, onde a capacidade de penetração do A prática de implementação de reformas do Estado sob Estado é muito baixa ou quase nula (O’Donnell, 1993:129- regimes autoritários teve conseqüências que não podem ser 130). ignoradas. Em primeiro lugar, os longos períodos de fe- Nessa mesma linha de considerações, vale acrescentar chamento do sistema político criaram condições propícias uma nova particularidade referida ao caso brasileiro, qual para a consolidação de uma modalidade de presidencialis- seja, a coincidência entre momentos marcantes de refor- mo dotado de amplas prerrogativas, consagrando o dese- mas institucionais, com destaque para a reforma do Esta- quilíbrio entre um Executivo sobredimensionado e um do, e a implantação de regimes autoritários (Diniz, 2000a, Legislativo crescentemente esvaziado em seus poderes. cap.2). Com efeito, historicamente, as duas experiências Exacerbaram-se certas características do sistema presiden- relevantes de reforma do aparelho de Estado no Brasil, cialista, como a outorga constitucional de poderes legisla- antes da instauração da chamada Nova República, em tivos ao chefe do Executivo, o amplo poder de nomeação 1985, foram efetivadas sob regimes fortemente autoritá- do presidente, a autonomia e a centralidade dos governos rios. Esse foi o caso da primeira dessas reformas, realiza- estaduais para tecerem alianças e redes de lealdade políti- da pelo presidente Getúlio Vargas (1930-1945), quando cas. Assim, o isolamento da instância presidencial, seu assumiu o poder após a vitória da Revolução de 1930, à fechamento ao escrutínio público, a falta de espaço insti- frente de uma ampla coalizão comprometida com um pro- tucional para a interferência das forças políticas, a intole- jeto modernizante, que culminou com a ditadura estadono- rância em face da dissidência e do conflito, a inoperância vista. A segunda experiência relevante foi levada a efeito dos mecanismos de controles mútuos, enfim, a falta de freios pelo primeiro governo do ciclo militar (1964-1985), sen- institucionais ao arbítrio do Executivo criariam, em dife- do introduzida pelo Decreto-Lei no 200, de 25/02/1967. rentes momentos, sérios obstáculos para a articulação en- Em contraste, entre 1945 e 1964, os governos democráti- tre os poderes e a comunicação com a sociedade. cos que se sucederam no poder não realizaram nenhum Em segundo lugar, sobretudo durante os 21 anos de experimento de vulto no tocante à reforma do Estado, pre- ditadura militar, da qual saímos há pouco mais de uma servando-se, em suas grandes linhas, o padrão anterior. década, observou-se o fortalecimento de três outros tra- Nos dois casos considerados, além do contexto auto- ços relativos às formas de ação estatal (Diniz, 1999). Um ritário, o ponto convergente do esforço reformador está deles foi a consolidação do estilo tecnocrático de gestão relacionado à dimensão especificamente administrativa da economia, fechado e excludente, que reforçou a con- da reforma do Estado, que envolveu questões relativas cepção acerca da validade da supremacia da abordagem ao grau de centralização da máquina burocrática, à hie- técnica na formulação das políticas públicas, abrindo ca- rarquia entre as várias unidades integrantes do aparelho minho para a ascensão dos economistas notáveis às ins- estatal, à articulação entre as diversas agências do poder tâncias decisórias estratégicas para a definição dos rumos Executivo, à definição dos órgãos normativos e fiscali- do capitalismo nacional e sua inserção externa. A valori- zadores ou ainda à classificação de cargos e carreiras. zação do saber técnico e da racionalidade da ordem eco- Não se verificou uma preocupação com o aperfeiçoamen- nômica, aspectos considerados intrinsecamente superio- to dos demais poderes e, sobretudo, com a questão fun- res à racionalidade da instância política, conduziriam a damental num regime constitucional, qual seja, a articu- uma visão asséptica da administração pública, percebida lação e o equilíbrio entre os três poderes, atribuindo-se como campo de competência exclusiva de uma elite aci- ao Executivo e às agências administrativas um amplo ma do questionamento da sociedade ou da classe política. espectro de prerrogativas no que concerne à formulação Paralelamente ao estreitamento do círculo de decisores e implementação de políticas públicas. Aliás, a trajetó- formado pela alta tecnocracia, porém, um amplo segmen- ria do Estado no Brasil revela a precedência das buro- to da burocracia permaneceria integrado ao sistema de cracias militar e civil, que, historicamente, foram estru- patronagem e clientelismo (o chamado spoil system), crian- turadas e definiram suas identidades coletivas antes da do-se, na verdade, a coexistência entre as duas lógicas, institucionalização, em âmbito nacional, do sistema de marcadas por relações tensas ou complementares, ao sa- representação política. Durante a maior parte do perío- bor das circunstâncias políticas. Portanto, o insulamento do Republicano, observou-se a tendência à centralidade burocrático, longe de garantir maior eficácia à máquina

17 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 estatal, conviveria de fato com um alto grau de politiza- REFORMA DO ESTADO E TEORIA ção da burocracia. DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA Um outro aspecto refere-se à primazia dos valores voluntaristas e personalistas, contribuindo para a forma- A partir de meados dos anos 90, a reforma do Estado ção de uma cultura política deslegitimadora da ação dos levada a efeito pelo governo Fernando Henrique Cardoso partidos e do Congresso na promoção do desenvolvimen- revelou-se incapaz de realizar a ruptura preconizada por to do país. Retomou-se a tendência, impulsionada pelo seus idealizadores, ficando muito aquém das metas esta- pensamento autoritário dos anos 30, a idealizar o Execu- belecidas e mostrando-se inócua para atacar, em sua com- tivo enquanto agente das transformações necessárias para plexidade, os problemas anteriormente apontados, respon- a modernização da sociedade. Assim, a idéia de reforma sáveis pela crônica ineficácia da ação estatal. Na origem e de mudança seria associada ao modelo de Executivo destas dificuldades podem ser situadas não apenas falhas forte, sendo o Legislativo, ao contrário, percebido como de implementação, mas também um erro básico de diag- força aliada ao atraso e à defesa de interesses particula- nóstico, aspecto tratado amplamente em outros trabalhos ristas e tradicionais. A prevalência de orientações e práti- (Diniz, 1997, 1998 e 2000a, especialmente cap.2), razão cas cesaristas contribuiria, por sua vez, para gerar resis- pela qual este artigo concentra-se apenas em alguns pon- tências e dificultar a implantação e o funcionamento efetivo tos considerados essenciais para o desenvolvimento do ar- dos mecanismos de cobrança e prestação de contas, no gumento aqui proposto. sentido tanto horizontal quanto vertical, dada a instabili- A hegemonia do pensamento neoliberal reforçou a pri- dade das instituições representativas. Assim, um impor- mazia do paradigma tecnocrático, segundo o qual, indepen- tante legado do processo de formação do Estado brasilei- dentemente do regime político em vigor, eficiência governa- ro seria o déficit de accountability que se configurou mental seria a resultante de um processo de concentração, historicamente. centralização e fechamento do processo decisório, sendo a Finalmente, cabe mencionar o debilitamento da dimen- eficácia de gestão reduzida à noção de insulamento burocrá- são legal do Estado pelo alto grau de instabilidade do marco tico. Desta forma, preservar a racionalidade burocrática im- jurídico, culminando com o reforço da chamada cultura do plicaria a meta de neutralizar a política e reforçar a autono- casuísmo. Como é sabido, o regime militar implantado em mia decisória de elites enclausuradas na cúpula burocrática. 1964 preservou a arena parlamentar-partidária, durante a Portanto, o que se observou não foi propriamente o enfra- maior parte do tempo. Simultaneamente, notabilizou-se pelo quecimento do Estado, expressão, aliás, muito pouco eluci- desrespeito sistemático à ordem legal constituída, tornando- dativa, mas sim o fortalecimento desproporcional do Execu- se recorrentes os atos arbitrários de mudança brusca das leis, tivo, pela concentração de poder decisório nesta instância, sempre que esse recurso parecia conveniente aos interesses cada vez mais controlada pela alta tecnocracia, enfraquecendo das forças que detinham o controle do poder. Assim, por os suportes institucionais da democracia. exemplo, no tocante à legislação eleitoral e partidária, o grau De acordo com essa tendência, impôs-se também um de arbítrio do Executivo foi levado às últimas conseqüên- dado diagnóstico acerca da crise de governabilidade que cias, através da edição de sucessivos pacotes eleitorais, alte- ciclicamente afetou diversos países latino-americanos, em rando as regras do jogo para reduzir as chances de vitória decorrência não só das oscilações do mercado internacio- das forças de oposição ao regime. Este foi o caso do chama- nal, mas também do fracasso dos experimentos de estabi- do Pacote de Abril, baixado pelo mesmo general Ernesto lização econômica levados a efeito, a partir de meados Geisel, que desencadeou o processo de abertura política e dos anos 80. A percepção da ineficácia dos governos no que teve por objetivo preservar o controle dos governadores tratamento de problemas críticos, como a inflação e o na esfera estadual e a maioria do Governo no Congresso. Cabe endividamento externo, gerou sentimentos de desconfiança considerar, por outro lado, que a estabilidade das regras do e a perda de credibilidade das autoridades e instituições jogo é um dos principais requisitos do processo de consoli- governamentais. dação da democracia, já que a internalização das regras e No caso do Brasil, desde o fracasso do Plano Cruzado, seu acatamento pelos atores implicados, bem como a gra- no governo Sarney, esta crise de governabilidade foi per- dual instauração de um sistema de garantias mútuas, são as- cebida como efeito direto da sobrecarga da agenda públi- pectos essenciais da arquitetura democrática implantada ao ca pelo excesso de pressões externas, advindas quer da longo do tempo. esfera social, quer do mundo da política. Sob essa ótica,

18 GLOBALIZAÇÃO, REFORMA DO ESTADO E TEORIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA ingovernabilidade era expressão de paralisia decisória, isto são de seus efeitos em escala mundial. Como demons- é, o governo viu-se incapaz de tomar decisões, em virtu- trou Amartya Sen, em seu livro, Sobre ética e econo- de da pressão de demandas da sociedade. Portanto, o ca- mia (1999), o processo de desenvolvimento fundamen- minho para a reconquista de condições favoráveis de go- ta-se cada vez mais na ampliação das liberdades sociais, vernabilidade implicava o reforço do poder discricionário políticas e econômicas. Num sentido pleno, desenvol- da alta tecnocracia, protegendo-a do jogo político e rea- vimento não pode, pois, ser medido apenas pelo cres- firmando a centralização e fechamento do processo deci- cimento do Produto Nacional Bruto, ou da renda per sório (Diniz, 1997). capita, requerendo a inclusão de outras variáveis, como Rompendo com esta visão, foi proposto, em trabalhos o acesso a níveis satisfatórios de escolaridade e aos anteriores, um diagnóstico alternativo sobre a crise de go- serviços de saúde pública, além da elevação da expec- vernabilidade típica do Brasil da Nova República (Diniz, tativa de vida da população. Esta noção inspirou a re- 2000a e b). Ao contrário de bloqueio da capacidade de formulação do Índice de Desenvolvimento Humano decisão, o que se verificou foi um agudo contraste entre (IDH), da Organização das Nações Unidas (ONU), se- uma hiperatividade decisória e uma fraca capacidade de gundo o qual o Brasil ocupa atualmente a 79a posição implementação das políticas. Se o Estado, por um lado, em termos internacionais, situando-se no bloco dos acumulou poderosos instrumentos de decisão, pelo uso países de médio desenvolvimento. indiscriminado das Medidas Provisórias, introduzidas pela Uma ruptura com o enfoque tecnocrático-reducionista Constituição de 1988, por outro, viu-se, limitado por pre- implica, portanto, pensar a reforma do Estado a partir do cários meios de gestão. Utilizando as categorias de Michael arcabouço teórico-conceitual fornecido pelas formulações Mann, pode-se caracterizar esta situação de ingovernabi- da teoria democrática contemporânea, segundo a qual as lidade como expressão de um desequilíbrio entre os po- eleições são instrumentos necessários, mas não suficien- deres despótico e infra-estrutural do Estado. O primeiro tes para garantir o controle dos governantes pelos gover- significa a capacidade de o Estado decidir com indepen- nados (Manin, Przeworski e Stokes, 1999). Em conseqüên- dência, mais precisamente, “o espectro das ações que a cia, a ênfase desloca-se para a necessidade de criar e elite estatal está capacitada a empreender sem a negocia- fortalecer novos arranjos institucionais que possibilitem ção de rotina, institucionalizada, com os grupos da socie- o funcionamento da democracia nos intervalos entre as dade civil” (Mann, 1986:113). O segundo refere-se à ca- eleições. pacidade de o Estado penetrar a sociedade civil e Desse ponto de vista, adquirem prioridade os mecanis- implementar logisticamente suas decisões por todo o do- mos e procedimentos garantidores da responsabilização dos mínio sob sua jurisdição. governantes em relação aos governados, notadamente os Um dos fatores responsáveis pelo fraco poder infra- aspectos ligados à dimensão de accountability, sobretudo estrutural foi a corrosão da capacidade de o Estado reali- em sua forma horizontal, à relação entre os poderes, redu- zar suas funções básicas e intransferíveis, como a garan- zindo os problemas de assimetria pelo uso exacerbado das tia da ordem e da segurança públicas, e ainda assegurar Medidas Provisórias, ao reforço do poder infra-estrutural condições mínimas de existência para amplas parcelas da do Estado e à expansão dos direitos de cidadania, além da população, localizadas nas faixas mais pobres. Sob o im- reestruturação dos mecanismos de articulação entre o Es- pacto das crises fiscal e política, e como resultado da pri- tado e a sociedade. Ainda que as lacunas apontadas tenham meira onda de reformas liberais inspiradas no corte de raízes históricas, tais traços foram exacerbados ao longo gastos e de pessoal, aprofundou-se de forma expressiva a da última década. O estilo tecnocrático de gestão e as am- incapacidade histórica de o Estado penetrar no conjunto plas prerrogativas do Executivo fortaleceram o poder de do território nacional e incluir, em seu raio de ação, os burocracias insuladas do escrutínio público, dificultando diferentes segmentos da sociedade, garantindo de forma – senão inviabilizando – os mecanismos rotineiros de con- universalista o acesso aos serviços públicos essenciais, nas trole externo. Desta forma, a baixa efetividade dos instru- áreas de saúde, educação e saneamento básico, bem como mentos de responsabilização pública dos governantes e o a eficácia de seus ordenamentos legais. excesso de discricionariedade da alta burocracia estatal Em contraste, o poder infra-estrutural adquire alta reforçam-se mutuamente, gerando um vazio quanto às centralidade, num contexto internacional marcado pelo modalidades usuais de supervisão entre os poderes e de aprofundamento do processo de globalização e exten- controle social por parte do público em geral.

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Em contraste com os requisitos de uma visão abran- chamadas ilhas de excelência no interior da burocracia gente e multidimensional da reforma do Estado capaz de governamental, no setor responsável pela execução do ultrapassar os estreitos limites de uma concepção mini- Programa de Metas do governo – os Grupos Executivos malista de democracia, a proposta do Mare não alcançou das indústrias automobilística e naval, entre outras. De o objetivo de eliminar os pontos de estrangulamento da acordo com dados do Mare – Ministério da Administra- administração pública brasileira, bem como os vícios do ção e Reforma do Estado, na segunda metade dos anos passado. A orientação básica do governo esteve voltada 90, haveria cerca de 17.200 cargos em comissão. para as questões relativas à crise fiscal e à preservação da A ruptura com esse padrão, vale ressaltar, implicaria a austeridade orçamentária. Em conseqüência, a reforma ênfase na melhoria da qualidade da burocracia, no refor- administrativa foi efetivamente contida pelas metas do ço do sistema de mérito, na implantação de um sistema de ajuste fiscal, conduzido de forma inflexível pelo Ministé- incentivos para a ascensão na carreira, na valorização do rio da Fazenda. Além disso, a questão da assimetria Exe- funcionalismo, na recuperação do prestígio do servidor cutivo-Legislativo foi não só desconsiderada, como refor- público, num padrão endógeno de recrutamento para os çada, dada a estratégia de implementação adotada pelo cargos de mais alto nível, o que esbarra nas restrições governo. Paralelamente à lenta tramitação da reforma no decorrentes da prioridade atribuída ao ajuste fiscal. Por Congresso, o Executivo lançaria mão sistematicamente do último, quanto ao aspecto conceitual, cabe observar que instituto das Medidas Provisórias para introduzir inúme- burocracia racional-legal e padrão gerencial são catego- ras modificações na estrutura administrativa, alcançando rias distintas, referidas a estatutos teóricos diversos: a um total de 18 MPs, que seriam ademais continuamente primeira expressando uma certa modalidade de relações reeditadas, de acordo com uma prática recorrente do go- de dominação; e o segundo representando um estilo espe- verno. cífico de gestão. A implantação de um padrão gerencial, Além da crise fiscal, o diagnóstico do governo acerca com base em mudanças de técnicas e procedimentos, não da crise do Estado apontaria o anacronismo do modelo elimina a possibilidade da persistência ou mesmo do re- burocrático weberiano, defendendo, através da introdu- forço do intercâmbio clientelista no relacionamento do ção de um novo modelo – o da administração gerencial – Executivo com a estrutura parlamentar-partidária. uma ruptura com aquele tipo de organização burocrática. Neste sentido, mais uma vez, verificou-se a sobrevi- Em contraste, no Brasil nunca houve uma burocracia pro- vência de um sistema híbrido, desafiando a meta de uma priamente weberiana. A reforma implantada por Getúlio transformação drástica do legado histórico. Em síntese, a Vargas, nos anos 30, não teve êxito no sentido de garantir alta discricionariedade da autoridade presidencial e o a vigência da burocracia racional – legal. Desde o início, amplo poder de decreto de que dispõe constituem a outra teve-se um sistema híbrido, marcado pela coexistência dos face do controle e cooptação dos partidos e dos congres- princípios universalistas e meritocráticos, com as práti- sistas pelo chefe do poder Executivo, por intermédio do cas clientelistas, tradicionalmente presentes no padrão de recurso generalizado às práticas clientelistas para obter expansão da burocracia brasileira. apoio aos seus projetos. O loteamento dos principais car- Os cargos de nomeação política sempre foram bastan- gos da administração pública, por sua vez, contribui para te numerosos, quando considerados os padrões internacio- a deterioração da capacidade de implementação das polí- nais. Assim, segundo Schneider, em comparação com a ticas governamentais. A criação das chamadas ilhas de maioria dos chefes de Estado contemporâneos, o presi- excelência pelo fortalecimento do insulamento burocráti- dente do Brasil detinha, nos anos 80, um amplo poder de co, buscando ampliar os graus de autonomia do Executi- nomeação, ultrapassando o montante de 50.000 funcio- vo, reproduz os elementos centrais desse sistema, num nários, em contraste com o Japão, por exemplo, onde os círculo vicioso de efeitos perversos. Este representa um poderes de nomeação direta na burocracia limitar-se-iam ponto de continuidade que vem desafiando as experiên- praticamente aos ministros (Schneider, 1994:28). Em pes- cias de reforma do Estado até o momento empreendidas. quisa relativa ao período nacional-desenvolvimentista, Barbara Geddes (1990), analisando o governo Kubistchek, CONSIDERAÇÕES FINAIS refere-se a 7.000 nomeações clientelistas feitas pelo pre- sidente Juscelino, apesar de publicamente manifestar-se Repensar a reforma do Estado requer uma ruptura com a favor do sistema meritocrático e de ter implantado as o paradigma ainda dominante nos estudos desta área. Para

20 GLOBALIZAÇÃO, REFORMA DO ESTADO E TEORIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA tanto, impõe-se considerar os aportes da teoria democrá- interlocução e de administração dos conflitos de interes- tica contemporânea. Não basta mais e mais concentração ses, fortalecendo os mecanismos que garantam a respon- do poder técnico. É preciso levar em conta a dimensão sabilização pública dos governantes. Governança refere- política da reforma do Estado e não apenas seus aspectos se, enfim, à capacidade de inserção do Estado na sociedade, técnicos, administrativos, fiscais e financeiros. A ênfase rompendo com a tradição de governo fechado e enclausu- na política, por sua vez, implica obter aquiescência às di- rado na alta burocracia governamental. retrizes estatais, produzir o acatamento aos ordenamen- Neste contexto, várias experiências inovadoras de tos e prescrições tanto administrativas como legais. Re- governança urbana no Brasil, ao longo das duas últimas quer, enfim, o fortalecimento das conexões do Estado com décadas, revelaram um alto grau de eficiência na despri- a sociedade e com as instituições representativas, expan- vatização do poder público, na democratização do pro- dindo também os mecanismos de accountability, vale di- cesso decisório ou ainda na reversão de práticas cliente- zer, os procedimentos de cobrança e de prestação de con- listas. No mundo inteiro, as cidades adquirem alta tas, os meios de controle externo, a transparência e a centralidade na vida política, econômica, social e cultural publicização dos atos do governo. de seus respectivos países. Os governos locais, em face Nesse sentido, podem ser ressaltadas as perspectivas das condições de escassez de recursos, do aumento do que preconizam novos estilos de gestão pública, revertendo desemprego e da queda da arrecadação, em conseqüência o isolamento e o confinamento burocrático. Esta nova das políticas liberais, formularam novas estratégias e to- perspectiva implica estreitar os vínculos com a política, maram a iniciativa de atrair investimentos, gerar empre- reforçar os instrumentos de responsabilização da admi- gos e renovar a base produtiva das cidades. Em 1986, nistração pública por controle parlamentar, dar mais for- ocorreu, em Rotterdam, a Conferência das Cidades Euro- ça à sociedade civil, sem enfraquecer o poder de coorde- péias, que definiu as cidades como motores do desenvol- nação do Estado, e diversificar os espaços de negociação vimento econômico. Em 1989, em Barcelona, uma nova e as táticas de alianças envolvendo diferentes atores, as- conferência reuniu as 50 maiores cidades da Europa num sociando o aumento da participação com o reforço das esforço de definir novos parâmetros de ação. instituições representativas. As duas formas de responsa- No Brasil, onde as carências acumularam-se ao longo bilização pública, por controle parlamentar e pela partici- do tempo e agravaram-se nas duas últimas décadas, a ação pação social, longe de serem incompatíveis, reforçam-se inovadora de várias prefeituras tem contribuído para a mutuamente, como ressalta a teoria democrática contem- melhoria de inúmeros indicadores. Entre as áreas priori- porânea (Anastásia, 2000). zadas, destacam-se os serviços de saúde, saneamento bá- À luz desta concepção ampla de reforma do Estado, sico e infra-estrutura urbana, como revelam as experiên- governabilidade e governança devem ser usados como cias de Diadema, Betim e Santos, entre outras. Como é conceitos complementares. Trata-se de aspectos distintos, sabido, a simples melhoria dos serviços básicos (água, porém interligados da ação estatal. Governabilidade refe- esgoto e eletrificação) reduz significativamente a preca- re-se às condições sistêmicas mais gerais sob as quais se riedade das condições de vida das populações mais po- dá o exercício do poder numa dada sociedade. Nesse sen- bres, ainda que não haja melhoria da renda. Cabe ainda tido, as variações dos graus de governabilidade sofrem o destacar os programas de renda mínima e bolsa-escola, impacto das características gerais do sistema político, em Vitória, Belo Horizonte e Brasília, as políticas de de- como a forma de governo (se parlamentarista ou presi- senvolvimento econômico, como o Plano Estratégico da dencialista), as relações entre os poderes (maior ou me- Cidade de Vitória, e certamente as experiências de Orça- nor assimetria entre Executivo e Legislativo), os sistemas mento Participativo, de e Belo Horizonte. partidários (pluripartidarismo ou bipartidarismo), o siste- Qual o alcance e a viabilidade das experiências de ma de intermediação de interesses (corporativista ou plu- governança urbana? Não há dúvida de que a participação ralista), entre outras características. Não há, porém, fór- espontânea da sociedade não garante por si só o sucesso mulas mágicas para assegurar níveis ótimos de deste estilo de gestão. Para evitar distorções, algumas governabilidade. Governança, por outro lado, na acepção condições devem ser cumpridas. Do ponto de vista da aqui utilizada, diz respeito à capacidade de ação estatal sociedade, é preciso considerar seu grau de organização, na implementação das políticas e na consecução das me- a disposição para participar (capital social), a densidade tas coletivas. Implica expandir e aperfeiçoar os meios de e a qualidade da representação, isto é, o grau de organiza-

21 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001

ção dos interesses representados e a legitimidade e a abran- ______. Globalização, reformas econômicas e elites empresari- ais. Rio de Janeiro, FGV, 2000a. gência da representação e, finalmente, o grau de horizon- ______. “A Reforma do Estado: uma nova perspectiva analítica”. talização das relações. Do ponto de vista do governo lo- In: COELHO, M.F.; BANDEIRA, L. e MENEZES, M.L. (orgs). cal, o grau de descentralização administrativa, a autonomia Política, ciência e cultura em Max Weber. Brasília, UnB, 2000b. das diversas esferas de poder, a articulação entre elas e a FORRESTER, V. L´Horreur Economique. Paris, Librairie Arthème, Fayard, 1996. capacidade de comando e de coordenação do Estado são FURTADO, C. A construção interrompida. Rio de Janeiro, Paz e Ter- alguns dos fatores que favorecem a eficácia deste padrão ra, 1992. de gestão pública (Valladares e Coelho, 1995; Spink e GEDDES, B. “Building State autonomy in Brazil, 1930-1964”. Clemente, 1997; Melo, 1999). Comparative Politics, v.22, n.2, 1990. HAGGARD, S. e KAUFMAN, R. “Economic adjustment and the prospects for democracy”. In: HAGGARD, S. e KAUFMAN, R. (eds.). The politics of economic adjustment. Princeton, N. J., NOTAS Princeton University Press, 1992. MALLOY, J. “Política econômica e o problema da governabilidade E-mail da autora: [email protected] democrática nos Andes Centrais”. In: SOLA, L. (org.). Estado, mercado e democracia. São Paulo, Paz e Terra, 1993. Este artigo baseia-se na aula inaugural proferida em 5 de abril de 2001, por ocasião da abertura das atividades do Programa de Pós-Graduação MANN, M. “The autonomous power of the State: its origens, de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. mechanisms and results”. In: HALL, J. (ed.). States in history. Agradeço aos coordenadores e professores do Programa o honroso con- Oxford, Basil Blackwell, 1986. vite. MANIN, B.; PRZEWORSKI, A. e STOKES, S. Democracy, accountability and representation. Cambridge, Cambridge University Press, 1999. MELO, M.A. (org.). Reforma do Estado e mudança institucional no REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Brasil. Recife, Ed. Massangana, 1999. O´DONNELL, G. “Democracias delegativas?”. Novos Estudos Cebrap. ANASTÁSIA, F. “Responsabilização por controle parlamentar”. Gt São Paulo, Cebrap, n.31, 1991. Instituições políticas da Anpocs. Petrópolis, out. 2000. ______. “Sobre o Estado, a democratização e alguns problemas BRESSER PEREIRA, L.C.; MARAVALL, J.M. e PRZEWORSKI, A. conceituais”. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, Cebrap, n.36, Economic reforms in new democracies. Cambridge, Cambridge 1993. University Press, 1993. ______. “Accountability horizontal e novas poliarquias”. Lua CHESNAIS, F. (org.). La mondialisation financière. Paris, Syros, 1996. Nova, n.44, 1998. ______. “Teoria democrática e política comparada”. Dados, v.42, DAHL, R. Polyarchy: participation and opposition. Yale Universty n.4, 1999. Press, 1972. SANTOS, W.G. Razões da desordem. Rio de Janeiro, Rocco, 1993. DINIZ, E. Empresário, Estado e Capitalismo no Brasil: 1930-1945. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. SCHNEIDER, B. Burocracia pública e política industrial no Brasil. São Paulo, Sumaré, 1994. ______. “Neoliberalismo e corporativismo: as duas faces do capi- SEN, A. Sobre ética e economia. São Paulo, Companhia das Letras, talismo industrial no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências So- 1999. ciais, n.20, ano 7, out. 1992. SPINK, P. e CLEMENTE, R. 20 experiências de gestão pública e ci- ______. “Em Busca de um Novo Paradigma: a reforma do Estado dadania. Rio de Janeiro, FGV, 1997. no Brasil dos anos 90”, São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.10, n.4, out/dez. 1996. VACS, A. “Convergence and dissension: democracy, markets and structural reform in world perspective”. In: SMITH, W.; ACÑA, ______. Crise, Reforma do Estado e governabilidade. Rio de Ja- C. e GAMARRA, E. (eds), Latin American political economy in neiro, Fundação Getúlio Vargas, 1997. the age of neoliberal reform. New Brunswick and London, ______. “Globalização, ajuste e reforma do Estado: um balanço Transaction, 1994. da literatura recente”. ANPOCS, BIB, n.45, 1998. VALLADARES, L. e COELHO, M. Governabilidade e pobreza no ______. “Engenharia institucional e políticas públicas: dos con- Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1995. selhos técnicos às câmaras setoriais”. In: PANDOLFI, D. (org.). WILLIAMSON, J. “Democracy and The Washington Consensus”. Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro, Editora FGV, 1999. World Development, n.8, 21/08/1993.

22 FEDERALISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL: A VISÃO DA CIÊNCIA... FEDERALISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL a visão da ciência política norte-americana

MARTA ARRETCHE Professora de Ciência Política da Unesp – Campus Araraquara. Autora, dentre outros, de Estado federativo e Políticas sociais.

Resumo: O artigo examina as interpretações da ciência política norte-americana sobre a natureza do federalis- mo brasileiro, tomando como base as orientações teórico-metodológicas da análise comparada sobre federa- lismo. Palavras-chave: política brasileira; federalismo; democracia.

uando o poder espanhol entrou em colapso no unir todas as províncias deste grande Império ao seu cen- resto da América Latina, o mesmo aconteceu tro natural e comum” (Faoro, 1975:12). Se é verdade que “Q com o poder de Portugal, e o mesmo tipo de em 1834 as elites provinciais obtiveram alguma expres- governo de caudilhos desenvolveu-se como a são política pela supressão do Conselho de Estado e do unidade central de poder. Esta estrutura recebeu reconheci- Poder Moderador, também é verdade que já no episódio mento formal no Ato Adicional de 1834, o qual reconstituiu da maioridade de d. Pedro II a centralização monárquica o Brasil imperial sob a forma federativa. Este federalismo se refez: o Poder Moderador e o Conselho de Estado fo- foi elaborado em 1889 quando a república substituiu o im- ram restabelecidos; o Senado era vitalício e nomeado pelo pério. Tanto em seu início quanto em sua reconstituição, a Imperador; os presidentes de província eram indicados ameaça era Portugal e a realeza brasileira, a qual era um pelo poder central assim como o juiz de paz, o chefe de desmembramento da realeza portuguesa. Portanto, o federa- polícia e os delegados e subdelegados locais. lismo foi o instrumento de união dos caudilhos em face da Em suma, nada mais distante do federalismo, como ameaça externa e, portanto, ambas as condições da barga- definido por Riker, que a estrutura do Estado brasileiro nha estavam presentes.” (Riker, 1975:119). no Império. Com efeito, segundo ele, a distinção básica É isso mesmo! No Handbook of Political Science, pu- entre Estado unitário, confederação e federação é que esta blicado em 1975, William Riker, um dos mais influentes última supõe uma forma específica de Estado na qual o cientistas políticos norte-americanos e autor do capítulo governo está verticalmente dividido entre governos regio- sobre federalismo daquele manual, escreveu que o fede- nais e governo central, de modo que cada um tem autori- ralismo brasileiro teve origem com o Ato Adicional de dade exclusiva em sua área de atuação. Ambos governam 1834! o mesmo território e a mesma população, mas cada um Apenas para refrescar a memória histórica, lembro que, tem autoridade para tomar decisões independentemente já no início dos trabalhos da Constituinte de 1823, os li- do outro. Essa autoridade, por sua vez, é derivada do voto berais exaltados – defensores da unidade do Império com popular direto e de recursos próprios para o exercício do base no princípio da adesão das províncias – foram exila- poder (Riker, 1964; 1975). dos da vida política nacional, acusados por José Bonifácio, Como explicar, então, tamanha inadequação entre o um liberal moderado, de querer promover a desunião das conceito de federalismo de Riker e sua interpretação so- províncias e de que querer romper o “sagrado elo que deve bre o caso brasileiro? Na origem, há um problema meto-

23 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 dológico da pesquisa comparada sobre federalismo dos Mas, se o governo central concentra tantos poderes – e anos 60 e 70, que diz respeito à referência empírica para esta é, para Riker, a principal condição para que as fede- a construção do conceito de federação. Para os autores rações não se desintegrem –, o que mantém as federações, mais influentes (Riker, 1964; Wheare, 1964; Duchacek, isto é, que mecanismos institucionais impedem que o go- 1970), a versão moderna de Estado federativo foi uma verno central subordine os governos locais, transforman- invenção norte-americana e, portanto, qualquer interpre- do-se num Estado unitário? Seja nos EUA, seja nas de- tação da natureza dos Estados federativos deveria ser cons- mais federações, o grau de centralização da federação seria truída por referência às instituições políticas inventadas diretamente dependente do grau de centralização do sis- na Convenção da Filadélfia.1 tema partidário. Quanto maior a probabilidade de que um Em Riker, o método USA-centrado não se aplica apenas mesmo partido controle simultaneamente o governo cen- ao conceito de federação, mas também à interpretação da tral e os Estados-membros e, ainda, quanto maior a disci- origem das federações. Seu argumento central é que a ori- plina partidária dos partidos nacionais, mais fortes seriam gem de todas as federações estáveis criadas nos séculos XIX as tendências à centralização. Alternativamente, o multi- e XX foi a mesma da criação da federação norte-americana: partidarismo, partidos disciplinados de base regional, a um processo de barganha, cuja condição necessária – e sufi- possibilidade efetiva de alternância no poder funcionariam ciente, no caso dos Estados Unidos – foi a ameaça ou opor- como uma espécie de contrapeso às inevitáveis tendên- tunidade de expansão ou defesa militar ou diplomática. Go- cias centralizadoras derivadas do desenho institucional das vernos centrais com intenções expansionistas ou temerosos modernas federações.3 Portanto, para Riker, é a descen- da ameaça externa, mas incapazes de dominar os governos tralização do sistema partidário, e não o Senado, como locais pela força,2 cedem parte de sua autoridade aos gover- instituição representativa dos Estados-membros, que ga- nos locais, porque estes detêm a lealdade dos cidadãos; por rantiria a independência dos níveis de governo.4 sua vez, governos locais – com história e identidade próprias Estes pressupostos teóricos tornam menos surpreenden- –, por razões expansionistas ou por necessidade de defesa, te o equívoco de Riker na interpretação do caso brasilei- fazem concessões a uma autoridade central, para aumentar ro. Na verdade, embora a independência entre os níveis sua capacidade militar ou diplomática. de governo seja uma característica central das federações, Em sua “Interpretação Militar da Constituição dos Es- sua ênfase está concentrada na dimensão centralizadora, tados Unidos” (Riker, 1964:17), o autor sustenta que a nos mecanismos institucionais que garantem a indepen- principal motivação dos Federalist Papers era a guerra e dência e a autoridade dos governos centrais – caracterís- não assuntos internos ou a expansão econômica, e nem tica esta que, com certeza, o II Império preenchia. mesmo a defesa da liberdade. A barganha racional entre É certo que uma pesquisa empírica melhor fundamen- políticos eqüipotentes, dotados de autonomia e com a in- tada lhe permitiria observar que as condições da barga- tenção de obter vantagens por meio de uma associação nha já na Constituinte de 1823 eram, no mínimo, muito que supõe concessões mútuas seria, a exemplo dos Esta- desiguais e que, no II Império, a “máquina compressora dos Unidos, a história de todas as federações contempo- do Império” (Faoro, 1975:355) garantia a vitória eleito- râneas bem-sucedidas (Riker, 1975:116). ral do partido que estivesse no Gabinete indicado pelo Im- A grande inovação da Constituição de 1787 foi a in- perador. Uma pesquisa histórica de maior profundidade venção do federalismo centralizado, uma fórmula lhe permitiria concluir que no II Império o Brasil não associativa que criou um governo central dotado de auto- preenchia as condições essenciais de sua definição de fe- nomia e independência em relação aos Estados-membros. deração (a existência de um sistema partidário descentra- São, portanto, instituições importantes aquelas que garan- lizado), nem as condições de emergência de uma federa- tem a independência do governo central, em oposição à ção (a barganha racional entre políticos eqüipotentes de sua dependência dos estados-membros na fórmula prévia diferentes níveis de governo). da Confederação. A partir de 1787, a Presidência e o Le- Por outro lado, foi no processo de independência de gislativo centrais passaram a ser escolhidos diretamente Portugal que os “caudilhos” – as lideranças políticas lo- pela população; o governo central passou a ter uma longa cais que contavam com a lealdade dos cidadãos – cede- lista de atividades exclusivas, assim como sua autoridade ram parte de sua autonomia prévia para a criação de um prevaleceria nos casos de conflito entre os níveis de go- governo central, em face da ameaça representada por Por- verno (Riker, 1975:109). tugal. Em 1889, quando da criação da república federati-

24 FEDERALISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL: A VISÃO DA CIÊNCIA... va, a ameaça portuguesa não estava mais presente. Loca- Portanto, segundo a definição de Wheare, o Brasil não seria lizar, porém, a emergência do federalismo em 1889 inva- uma federação até hoje. lidaria a tese da origem militar das federações ou, dito de Combinadas, as interpretações de Riker e Wheare so- outro modo, o poder explicativo e de generalização de sua bre o Brasil nos levariam à seguinte conclusão: o Brasil interpretação centrada na trajetória norte-americana. já era uma federação em 1834, quando não se declarava O mesmo método de análise empregado por Riker con- como tal, e não é uma federação até hoje, quando declara duziu Wheare (1964:21) à conclusão oposta: O Brasil (de que é! Na base desse aparente paradoxo, um problema 1891) não poderia ser considerado um exemplo de federação. teórico-metodológico: a referência empírica para a cons- Para Wheare, a grande invenção de 1787 foi a criação trução do conceito de federação e das condições de emer- de um governo central, cujas atribuições e instrumentos gência e evolução dos Estados federativos. de decisão e governo não são redutíveis à vontade dos Estados-membros, sem que, por outro lado, os estados- A REAÇÃO A RIKER membros tenham perdido a sua independência. Isto é, o governo central não pode estar subordinado aos governos Dois autores norte-americanos, pouco conhecidos no regionais, nem estes subordinados ao governo central. Um Brasil, apontaram os limites da metodologia “USA-cen- Estado somente pode ser considerado federativo se as re- trada” da pesquisa comparada dos anos 60: Ivo Duchacek lações entre os níveis de governo forem simultaneamente (1970) e Preston King (1982). Ambos consideram ser de coordenação e mútua independência, princípios esses impossível afirmar que a ameaça externa ou o desejo de que devem estar presentes não apenas constitucionalmen- expansão militar estejam na origem de todas as federa- te, mas também no funcionamento efetivo das instituições ções. Tanto vantagens de ordem econômica, a serem ob- políticas. tidas pela associação de Estados, assim como o interesse Assim, para Wheare, nem a União Soviética, nem a em preservar a unidade nacional de um Estado (previa- República de Weimar, nem os países latino-americanos mente) unitário, estiveram na origem das modernas fede- poderiam ser considerados federações, pois, embora se rações do século XX. auto-definissem constitucionalmente como federativos, o A barganha federativa que deu origem ao modelo fe- funcionamento efetivo de suas instituições políticas per- derativo de 1787 teve uma pré-condição histórica: treze mitia que as instituições centrais subordinassem os gover- Estados, cuja identidade e interesse comum se desenvol- nos regionais. No Brasil, a existência de corpos legislati- veram previamente à União e cujo propósito na Conven- vos separados nos níveis central e regional, a clara divisão ção da Filadélfia era preservar essa autonomia. No caso de atribuições entre as esferas de governo e o bicame- do Brasil, por exemplo, apenas algumas unidades adqui- ralismo não seriam instituições políticas suficientes para riram razoável senso de identidade previamente à forma- garantir a efetiva independência entre os níveis de gover- ção da federação e mesmo elas tiveram que disputar seu no. O poder do Congresso para emendar a Constituição, espaço no plano federal, porque na formação da federa- sem ratificação dos Estados, implicaria na prática a su- ção brasileira “a União antecedeu suas partes” (Duchacek, bordinação dos governos regionais às instituições centrais, 1970:241). A derrota militar dos católicos pelos protes- o que seria uma característica dos Estados unitários5 tantes na União Suíça, em 1848, e a sobrevivência da pró- (Wheare, 1964:21). pria União Americana em 1864 pela derrota militar dos Para Wheare, a garantia constitucional de que os Esta- Estados do sul não confirmam a tese da emergência das dos possam exercer seu poder de veto na aprovação da federações como resultado de um acordo livre e racional legislação federal é uma instituição decisiva na caracteri- entre políticos eqüipotentes (King, 1982:35ss). zação de uma federação. O raciocínio é claro: esta é uma Mesmo o federalismo centralizado não teria sido um característica da federação norte-americana, que garante modelo que se generalizou. Assim como a Constituição a independência dos Estados assim como sua representa- de 1787 foi desenhada para criar um governo central do- ção política nas instituições centrais. Dado que a referên- tado de mais poderes do que aqueles garantidos pelos cia empírica dos Estados Unidos é fundamental para dis- Artigos da Confederação, a nova Constituição Federal na tinguir formas federativas de não-federativas, Estados que Alemanha de 1949 foi desenhada para criar um governo não apresentarem as características essenciais do caso central dotado de menos poderes do que aqueles de que norte-americano não podem ser considerados federativos. Hitler fez uso durante o III Reich (King, 1982:39).

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Nem mesmo a descentralização do sistema partidário estavam ameaçados de disrupção. Nestes, as unidades poderia ser considerada uma condição necessária à ma- subnacionais não eram Estados cuja soberania prévia lhes nutenção das federações. Na vida real das federações, sua conferia um poder de barganha, que pudesse ser compa- estabilidade estaria associada a uma diversidade de com- rado à trajetória dos Estados norte-americanos, o que im- binações que envolveriam o número de partidos efetiva- plicou que os governos regionais tivessem menos sobera- mente existentes, sua estrutura interna, sua ideologia, as- nia e menos poder de barganha em relação ao governo sim como o compromisso das lideranças partidárias com central. Em um terceiro tipo de trajetória histórica (putting- o pluralismo. Poderia, por exemplo, a República Velha together), ocorreu um pesado esforço coercitivo por par- ser chamada de federação, quando na prática havia oli- te de um poder não-democrático centralizado, cujo obje- garquias estaduais que não permitiam a competição parti- tivo era “juntar” um Estado baseado em diferentes etnias dária nas províncias, embora se revezassem no controle e nacionalidades, das quais apenas algumas estavam or- do governo central (Duchacek, 1970:333)? ganizadas previamente em Estados independentes (caso Contudo, o grande limite dos autores que questiona- da Rússia). ram a capacidade de generalização da teoria de Riker foi Assim, a origem das diferentes federações poderia ser sua incapacidade de construir uma teoria alternativa. compreendida em termos de um continuum. Em um ex- Embora o reconhecimento da variedade de trajetórias te- tremo, um modelo baseado em uma barganha fortemente nha sido uma contribuição importante, a nova agenda da voluntária, pelo qual unidades relativamente autônomas análise comparada já não deveria discutir as característi- come together para aumentar sua soberania, retendo suas cas essenciais do Estados federativos em relação a outras identidades individuais (caso dos Estados Unidos, da Suíça formas de Estado, pois essa contribuição já havia sido dada e da Austrália). Em outro extremo, nos quais Estados uni- anteriormente. A superação da distância entre o reconhe- tários previamente existentes hold together, as condições cimento da diversidade de trajetórias e a construção de de barganha dos governos locais teriam sido fundamen- uma teoria alternativa baseada no conceito de distintos mo- talmente distintas daquelas presentes no modelo coming- delos de federalismo implicaria a seleção de variáveis que together (caso da Índia, Bélgica e Espanha). permitissem identificar tipos específicos de Estados fe- Stepan (1999) está essencialmente preocupado com a derativos. Essas variáveis deveriam permitir agrupar Es- relação entre a origem das federações no século XX e suas tados cujas características fossem simultaneamente dis- estruturas institucionais contemporâneas, mais particular- tintas externamente e semelhantes internamente. Um mente com as garantias institucionais de representação da segundo passo para superar a distância entre a descrição vontade dos componentes da federação. Assim, embora dos casos e a construção de uma teoria alternativa deveria analise o caso brasileiro do ponto de vista da segunda associar diferentes modelos de Estados federativos a traje- variável, o autor não examina as origens do federalismo tórias particulares de emergência e desenvolvimento. no Brasil. Penso que uma importante contribuição nessa direção Embora, por exclusão, pareça atraente classificar o Bra- foi apresentada recentemente por Stepan (1999). Para o sil no modelo holding-together, uma rápida reconstituição autor, nenhum Estado-nação criado posteriormente à Re- do golpe republicano de 1889 sugere cautela na adequação volução Francesa com as mesmas características institu- desse conceito ao caso brasileiro. Não havia grupos étnicos cionais do federalismo norte-americano tornou-se uma com identidade própria reivindicando autonomia, nem ameaça federação democrática estável. A origem da federação nor- real de disrupção do Estado unitário no final do século XIX. te-americana pela qual Estados previamente independen- Os “cabanos” (1835), os “balaios” (1838-1840), os “sabinos” tes “juntaram-se” para somar forças (modelo coming- (1837) e os “farroupilhas” (1835-1845) já haviam sido vio- together) não se repetiu em outras federações. Portanto, lentamente controlados pelo Exército Imperial muito antes ao contrário do afirmado por Riker, o caso norte-ameri- da Proclamação da República. cano seria a exceção e não a regra. Na verdade, salvo melhor juízo, a literatura indica que Muitas das federações democráticas contemporâneas a principal razão do golpe republicano teria sido o pró- tiveram sua origem derivada da necessidade de hold prio desgaste da monarquia, processo no qual a Coroa together, isto é, países com múltiplas etnias em sua com- perdeu o apoio das forças mais dinâmicas (a cafeicultura posição populacional e que decidiram tornar-se federa- do sul e as classes médias emergentes) e dos setores mais ções porque os Estados unitários previamente existentes conservadores (ligados ao escravismo, descontentes com

26 FEDERALISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL: A VISÃO DA CIÊNCIA... a abolição) (Schwartzman, 1982). Além disso, a grita ge- lamentares, federalismo é uma designação genérica que neralizada contra a centralização monárquica seria mascara uma variedade de arranjos institucionais que criam explicada pela crise fiscal do final do Império e a correlata riscos e oportunidades distintas para as capacidades de incapacidade de atendimento das diferentes demandas governo. Governos provinciais e federais podem ter au- regionais6 (Costa, 1994). toridade para intervir em uma área de política sem per- Finalmente, o Estado e as instituições políticas brasi- missão do outro nível de governo. Isto tende a prover for- leiras passaram por diversas transformações desde a ori- tes incentivos para a inovação em políticas públicas na gem até a versão contemporânea. Conjunturas críticas medida em que cada nível de governo tenta controlar a como o Estado Novo, o regime militar e a Constituição de jurisdição de uma política antes que o outro o faça. Entre- 1988 legaram alterações importantes na natureza das re- tanto, este tipo de federalismo também corre o risco de lações federativas.7 Isso implica dizer que, para a inter- que os diferentes níveis de governo tenderão a impor con- pretação dos Estados federativos contemporâneos, cuja flitos entre programas, elevação dos custos da implemen- origem seja anterior ao final do século XX, é também tação e tornarão o problema da coordenação de objetivos necessária uma teoria das condições de desenvolvimento ainda mais difícil. Alternativamente, o federalismo pode dos distintos modelos. ser estruturado de modo a requerer a aprovação dos go- vernos subnacionais afetados e do governo federal para FEDERALISMO E PROCESSO DECISÓRIO qualquer desvio do status quo. Estes arranjos (...) acres- centam pontos de veto e inibem a implementação.” Penso que, a partir de meados dos anos 80, produziu- (Weaver e Rockman, 1993:459). se um deslocamento na agenda de pesquisas norte-ameri- As interpretações correntes sobre o Brasil derivam dessa cana sobre o federalismo: de um debate centrado nas es- agenda de pesquisa. As instituições políticas brasileiras – pecificidades dos Estados federativos vis-à-vis os Estados cuja natureza essencial não variou nos distintos regimes unitários e confederações, para um debate centrado no democráticos – são uma espécie de “máquina de triturar impacto do federalismo sobre a autoridade dos governos presidentes”, pois a combinação de presidencialismo, sis- centrais, particularmente sua capacidade de mudar o status tema multipartidário, indisciplina partidária e federalis- quo, produzir inovações e implementar reformas de polí- mo gera um excesso de pontos de veto no processo deci- ticas. sório, elevando exponencialmente os custos de aprovação Teoricamente, há um grau de consenso razoável em de reformas no Congresso. Os impasses entre o Executi- torno da seguinte proposição: Estados federativos tendem vo e o Legislativo, derivados dessa engenharia institucio- a restringir as possibilidades de mudança do status quo, nal, seriam a principal ameaça à estabilidade democrática porque a autonomia dos governos locais opera no sentido no Brasil. de dispersar o exercício da autoridade política, aumen- A “(...) implementação de reformas no Brasil é mais tando o poder de veto das minorias (Lijphart, 1984); ou, difícil do que em muitos sistemas presidencialistas. Este ainda, porque a presença de um maior número de veto sistema institucional frustrou diversos presidentes demo- players institucionalizados nas arenas decisórias aumen- cráticos. Um presidente (Vargas) cometeu suicídio; outro ta o potencial de estabilidade das políticas existentes (Quadros) renunciou após apenas sete meses posteriormen- (Tsebelis, 1997). Sistemas federativos restringem o po- te a uma esmagadora vitória eleitoral; um outro (Goulart) tencial de mudanças de políticas porque as garantias ins- adotou ações erráticas que contribuíram para o rompimento titucionais dos Estados-membros no processo decisório da democracia em 1964. Entre 1985 e 1994, sucessivos tendem a produzir decisões políticas com base no “míni- presidentes falharam para empreender um bem sucedido mo denominador comum”. (Pierson e Leibfried, 1995). plano de estabilização, (...) a combinação de presidencia- Na agenda de pesquisas, a análise do impacto das ins- lismo, sistema multipartidário fragmentado, partidos tituições federativas no processo decisório tende a ser uma indisciplinados e robusto federalismo é freqüentemente extensão da análise das relações entre Executivo e difícil.” (Mainwaring, 1997:56) Legislativo: “A maior parte das lições que extraímos da “Os últimos 15 anos de política democrática no Brasil, análise de sistemas presidenciais e parlamentares podem combinados com a experiência pluralista de 1946-64, in- ser igualmente aplicada a fatores de terceiro nível (third- dicam que as instituições políticas nacionais criam uma tier), tais como o federalismo. Tal como os sistemas par- permanente crise de governabilidade, devastando em tem-

27 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 pos normais e debilitando até mesmo presidentes como cos – nos quais o comportamento parlamentar é fracamen- Cardoso, que parece controlar todas as cartas.” (Ames, te controlado pela lideranças partidárias nacionais – é re- 2001:18) sultado do fato de que os políticos locais controlam os re- “As instituições [políticas brasileiras] produzem um cursos necessários ao sucesso eleitoral dos legisladores excesso de pontos de veto. Este excesso não é apenas uma federais, dada a extensão e persistência do clientelismo e questão do número de partidos necessários para produzir da troca de favores na política nacional (Hagopian, 1996; maiorias legislativas. Em termos mais amplos, o destrutivo Ames, 2001). Juntamente com as regras partidárias eleito- federalismo brasileiro, que constrange a vontade da maio- rais (basicamente, a lista aberta e a representação propor- ria, combinado com presidencialismo e com as regras elei- cional), o poder dos governadores e prefeitos seriam as torais da nação, criam este excesso.” (Ames, 2001:267). variáveis decisivas para explicar o grau de descentraliza- Além de gerar impasses no processo decisório, a des- ção do sistema partidário e, por conseqüência, indisciplina centralização do sistema partidário e o federalismo influen- no comportamento parlamentar dos congressistas. ciariam também o conteúdo das decisões políticas, pois Comparado com outras federações contemporâneas, o os presidentes ficariam imobilizados nas áreas de política federalismo brasileiro estaria, juntamente com os EUA, em que o Congresso e os governadores são veto players no extremo da escala de demos-constraining. O sistema decisivos, como desindexação de salários e pensões, re- de composição do Senado brasileiro, semelhante ao do dução do emprego público, privatizações, política fiscal, americano, com número equivalente de cadeiras para Es- gestão dos bancos estaduais, pagamento das dívidas esta- tados excepcionalmente diferentes em termos populacio- duais, etc. (Mainwaring, 1997:99-102). Ainda: o fato de nais, garante um excessivo grau de super-representação que o Brasil tenha o sistema fiscal mais descentralizado aos Estados menores. Os poderes legislativos do Senado entre os sistemas presidencialistas e federativos da Amé- brasileiro também seriam excessivos: além do poder para rica Latina é explicado pelo grau de descentralização de aprovar todas as leis e emendar a Constituição, a Câmara seu sistema partidário, o qual, por sua vez, está direta- Alta dispõe de doze áreas de exclusividade legislativa. Em mente relacionado ao poder dos políticos locais (gover- terceiro lugar, o poder residual dos Estados nos casos de nadores e prefeitos) sobre a sobrevivência eleitoral dos omissão constitucional e o poder dos governadores, com- congressistas (Willis, Garman e Haggard, 1999). binados ao excessivo detalhamento da Constituição de Em termos muito sucintos, o argumento é o seguinte: 1988 e à exigência de supermaiorias para as emendas cons- sistemas presidencialistas, por serem baseados na divisão titucionais, impõem um extremo poder de restrição à de poderes, tendem a produzir dispersão da capacidade realização das preferências da maioria. Finalmente, o con- decisória e coalizões parlamentares instáveis. No entan- trole dos governos locais sobre as candidaturas, assim to, o sucesso legislativo da presidência pode variar de como as regras eleitorais que incentivam o comportamento acordo com a fragmentação e disciplina partidárias. O individualista dos parlamentares, tornam os partidos bra- número efetivo de partidos, a proximidade ideológica dos sileiros excessivamente voláteis, isto é, pouco disciplina- partidos de sustentação política da Presidência e o grau dos. Assim, a possibilidade de transformar as preferên- de disciplina dos partidos poderiam produzir resultados cias da maioria – expressa na escolha do Presidente – em diferentes. Um reduzido número de partidos efetivos – políticas encontraria obstáculos institucionais de grande como nos EUA, Costa Rica e Venezuela – implica siste- monta, pois o desenho institucional da federação alavan- mas presidencialistas que funcionam melhor (Mainwaring caria os recursos de poder das minorias nas instâncias e Shugart, 1997:398), assim como partidos políticos dis- decisórias federais, especialmente no Senado. ciplinados e centralizados tornam mais estáveis e confiá- Não se tratará aqui de discutir a interpretação da natu- veis as relações entre o governo, os partidos e a(s) reza das relações entre Executivo e Legislativo no Bra- câmara(s) legislativa(s) – como no caso do México sil;8 muito simplesmente, se restringirá ao conceito de fe- (Mainwaring, 1997). deralismo dessa literatura e suas conseqüências para as Entretanto, em sistemas federativos “robustos” – para interpretações sobre o Brasil.9 usar a expressão empregada por Mainwaring (1997) para A nova geração de estudos sobre o federalismo contra- descrever o caso brasileiro –, governadores e/ou prefeitos ria algumas das principais proposições da geração ante- controlam recursos que são vitais para a carreira política rior. Para Riker (1964; 1975), a sobrevivência das fede- dos parlamentares. A descentralização dos partidos políti- rações dependia da descentralização dos partidos políticos.

28 FEDERALISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL: A VISÃO DA CIÊNCIA...

A descentralização dos partidos americanos preservaram Não há dúvida de que na raiz das divergências estão a federação, porque criaram contrapesos à vontade do questões de ordem normativa, relacionadas a preferências governo central. No caso dos EUA, o localismo dos parti- no tocante aos princípios de representação e governabili- dos, derivado do fato de que as organizações locais con- dade. Penso, entretanto, que há pelo menos duas distin- trolam as indicações para o Congresso e a Presidência, ções importantes na atual agenda de pesquisas e que têm implicam “não que os estados controlem as decisões na- influência nas interpretações sobre o Brasil. cionais, mas que a nação não pode controlar as decisões Em primeiro lugar, operou-se uma restrição no escopo estaduais” (1964:91). Dada a força e independência do analítico do objeto de pesquisa: nas interpretações atuais, governo central, a descentralização do sistema partidário a análise sobre o federalismo passou a ser uma dimensão e a independência dos Estados funcionariam como um con- da análise das relações ente o Executivo e o Legislativo trapeso às tendências centralizadoras do governo federal, no plano federal. preservando o federalismo (Riker, 1964:104). Nessa agenda de pesquisas, o federalismo é entendido Nas interpretações mais recentes, um modelo de fede- basicamente como a expressão do poder parlamentar de ralismo no qual os Estados sejam independentes e tenham governadores e prefeitos na arena legislativa federal. O poder de controle sobre seus representantes nas arenas indicador de medida da “força” ou “fraqueza” do federa- decisórias federais é um problema; no limite, uma amea- lismo é a capacidade relativa de os executivos dos distin- ça à democracia. tos níveis de governo influenciarem o comportamento Mais que isso, o México, o país latino-americano cuja parlamentar dos legisladores federais. centralização do processo decisório garantiria autoridade O conceito clássico de Estado federativo, como foi e governabilidade ao Presidente na literatura contempo- construído pela geração de estudos dos anos 60 e 70, o rânea, não era sequer considerado democrático nos estu- define como uma forma particular de governo dividido dos dos anos 60 e 70 (Wheare, 1964; Riker, 1975:156). verticalmente (entre distintos níveis de governo), de modo Na raiz das restrições ao México, estava a centralização que diferentes governos têm autoridade sobre a mesma po- do sistema partidário mexicano. pulação e território. Analiticamente, na literatura contem- Na verdade, Riker (1975:143) rejeitava o argumento de porânea, é como se a totalidade da atividade de produção que os Estados federativos pudessem produzir algum impacto de políticas públicas do executivo federal estivesse con- particular sobre a produção de políticas públicas. Qualquer centrada em formular uma legislação e aprová-la nas are- comparação entre as respectivas políticas públicas permiti- nas decisórias federais, sejam elas o Congresso ou apenas ria concluir que, no campo administrativo, os Estados fede- o Senado. rativos e unitários do século XX apresentariam mais seme- Os manuais de políticas públicas nos ensinaram que o lhança entre si do que os Estados federativos do século XX ciclo de uma política é mais do que sua formulação. Mais comparados consigo mesmos no século XIX. Além disso, que isso, a literatura sobre implementação de políticas tem no século XX, não haveria nenhuma característica decisiva destacado que as burocracias governamentais de fato “fa- do processo decisório dos Estados federativos que não pu- zem” as políticas públicas por meio da implementação. desse ser encontrada nos países de Estado unitário, porque a Isso significa que, para além da atividade de formulação, característica central desse século foi a progressiva centrali- os distintos níveis de governo têm espaço para tomar uma zação do processo decisório. série de iniciativas independentemente de autorização Assim, a única diferença importante entre Estados uni- legislativa. tários e federativos diria respeito ao estilo de governo que Além disso, os manuais de políticas públicas também o governo central está obrigado a cumprir. Em Estados nos ensinaram que a formulação de uma política é muito federativos é freqüentemente necessário ao governo cen- mais do que a obtenção de aprovação legislativa. Posterior- tral atuar de modo a demonstrar que o governo federal mente à aprovação legislativa, as burocracias governamen- tem autoridade legal para fazer o que quer fazer. Mas, sem tais têm autoridade para traduzir leis em políticas efetivas, dúvida, caso o governo federal queira fazer algo, terá re- simplesmente pela definição das regras de implementa- cursos para tal. Os “arranjos constitucionais e adminis- ção das políticas. trativos do federalismo afetam profundamente o estilo da Isso significa que há um conjunto mais amplo de insti- decisão política, mas não afetam profundamente seus re- tuições políticas nas quais se opera a barganha federati- sultados” (Riker, 1975:145). va, o conflito de interesses entre executivo federal e exe-

29 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 cutivos subnacionais. Adicionalmente, envolveriam, pelo Quanto às análises contemporâneas, pertinentes às re- menos, as relações com o Judiciário e as relações diretas lações entre federalismo, democracia e processo decisó- entre os executivos dos distintos níveis de governo. Re- rio, o principal objetivo deste artigo foi destacar a neces- duzir a análise do funcionamento das instituições federa- sidade de uma ampliação da agenda de pesquisas sobre a tivas à arena legislativa federal implica necessariamente natureza das relações intergovernamentais no Brasil. Penso uma visão parcial e limitada dos recursos de poder de que que as interpretações atuais tendem a reduzir o escopo da dispõem os distintos níveis de governo para fazer repre- análise, concentrando-se excessivamente nos casos em que sentar seus interesses. o governo federal teve um desempenho relativamente des- Em segundo lugar, as interpretações contemporâneas favorável vis-à-vis os governos estaduais, assim como em têm enfatizado e selecionado para análise as políticas e uma das arenas nas quais se processam as relações decisões de política nas quais o governo federal teve um intergovernamentais: a arena legislativa federal. Uma desempenho desfavorável. Para demonstrar a progressi- ampliação dessa agenda de pesquisas deveria caminhar va centralização das funções administrativas nos Estados basicamente em duas direções: no exame de processos Unidos, Riker (1964:191ss) selecionou 19 áreas de com- decisórios nos quais o governo federal foi bem-sucedido petências concorrentes entre os níveis de governo, o que em implementar sua agenda de reformas, assim como na lhe permitiu ter uma visão abrangente da evolução das análise do processo decisório de políticas que envolvam relações intergovernamentais. relações diretas entre o Poder Executivo dos distintos ní- A preferência pelos casos nos quais o governo federal veis de governo e/ou nas quais o Poder Judiciário funcio- encontrou resistência pode estar produzindo um bias pela ne como árbitro dos conflitos intergovernamentais. variável dependente nas interpretações sobre o federalis- mo brasileiro, uma vez que o processo decisório das polí- ticas nas quais o governo federal foi bem-sucedido na NOTAS implementação de sua agenda de reformas de natureza E-mail da autora: [email protected] federativa não é objeto da análise. Nessa situação, mais Este artigo foi escrito com base em pesquisa realizada durante meu uma vez, o que é apenas uma dimensão das relações fede- programa de pós-doutoramento junto ao Department of Political rativas é tomado como a natureza do federalismo brasi- Science do Massachussets Institute of Technology, MIT, financiado com bolsa concedida pela Fapesp. Agradeço a Celina Souza pelos va- leiro. liosos comentários à primeira versão (do texto). 1. Modernos, neste caso, seriam os Estados federativos baseados no COMENTÁRIO FINAL princípio da “república ‘composta’” proposta por Madison, em oposi- ção ao modelo confederativo anterior (como nos Estados Unidos de 1777 e nos modelos federativos originais da Suíça e Holanda), basea- Esta revisão crítica pretendeu demonstrar que, embora dos na concepção federativa de Montesquieu. a federação brasileira tenha sido objeto de pesquisa nas 2. A decisão da barganha derivaria dos elevados custos de obtenção da adesão pela força (Riker, 1964). análises da ciência política comparada norte-americana, 3. “A essência do federalismo nesta definição são suas características ainda há muito a ser feito neste campo de investigação. políticas: (1) a barganha política que o cria e (2) a distribuição de po- Estudos comparados são particularmente árduos, dadas der em partidos políticos que dão forma à estrutura federativa em sua maturidade. Todo o resto sobre o federalismo é acidental: a demarca- as dificuldades de toda ordem, particularmente a obtenção ção de áreas de competência entre governo central e governos consti- de dados confiáveis e comparáveis entre si. Este artigo, con- tuintes, a operação das relações intergovernamentais, a divisão de re- tudo, pretendeu destacar avanços e dificuldades passadas e cursos fiscais etc.” (Riker, 1975:141). 4. Riker (1975) considera que, na Convenção da Filadélfia, o Senado presentes no campo teórico-metodológico. É certo que, no foi concebido como a instituição destinada a representar os interesses passado recente, indicações bastante sugestivas de análise dos Estados-membros no governo central. Na prática, contudo, a Câ- mara Alta nunca representou de fato esse papel, pois os Estados-mem- têm sido feitas, especialmente no sentido de superar a pers- bros foram rapidamente desprovidos de mecanismos institucionais para pectiva USA-centrada que orientava a teoria comparada so- controlar o comportamento parlamentar de seus representantes, uma bre federalismo nos anos 60 e 70. vez que não tinham poder para revogar seus mandatos. 5. Nos Estados Unidos, emendas à Constituição, mesmo que não afe- Penso, entretanto, que a análise comparada das fede- tem a distribuição federal de poderes, exigem a ratificação de 3/4 dos rações ainda necessita de uma teoria capaz de sugerir ca- Estados-membros e há mesmo tipos de emendas que não podem ser minhos interpretativos sobre a origem dos diferentes mo- aprovadas sem a ratificação de 49 dos 50 Estados (Duchacek, 1970:231). delos das federações contemporâneas, mas também dos Para um exemplo, ver Mansbridge (1986), que analisa as razões pelas condicionantes históricos de suas diferentes trajetórias. quais o Equal Rights Movement – ERA – fracassou em aprovar a Emen-

30 FEDERALISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL: A VISÃO DA CIÊNCIA... da Constitucional que garantiria direitos iguais a homens e mulheres. ______. Patterns of Democracy: Government Forms and Embora tenha sido aprovado no Senado dos Estados Unidos com uma Performance in Thirty-Six Countries. New Haven, Yale University votação de 84 contra 9, e embora diversas pesquisas de opinião te- Press, 1999. nham revelado forte apoio da opinião pública à Emenda Constitucio- MAINWARING, S. “Multipartism, Robust Federalism, and nal, esta não foi aprovada porque as casas legislativas estaduais apro- Presidentialism in Brazil”. In: MAINWARING, S. e SHUGGART, varam a Emenda em apenas 35 Estados, quando seria necessário que M. Op. cit., 1997. 38 Estados o tivessem feito. MAINWARING, S. e SAMUELS, D. “Federalism, Constraints on the 6. Esta tem um fundamento real: quando examinada a relação entre as Central Government, and Economic Reform in Democratic Brazil”. receitas geradas em cada província e as despesas ali efetuadas pelo In: GIBSON, E. Representing Regions: Federalism and Territo- governo central, constata-se que todas as províncias – com exceção do rial Politics in Latin America (forthcoming). Rio Grande do Sul e Mato Grosso, por razões militares – transferiam recursos para a Coroa (Costa, 1994:27). MAINWARING, S. e SHUGGART, M. Presidentialism and Democracy in Latin America. Cambridge, Cambridge University Press, 1997. 7. Para interpretações sobre a evolução do federalismo brasileiro, ver Souza (1994) e Souza (forthcoming). MANSBRIDGE, J.J. Why we lost the Era? Chicago/London, University of Chicago Press, 1986. 8. Para uma interpretação alternativa sobre a natureza das relações entre Executivo e Legislativo no Brasil nos governos democráticos recen- PALERMO, V. “Como se governa o Brasil? O debate sobre institui- tes, ver Figueiredo e Limongi, 1999. Para uma reconstituição deste ções políticas e gestão de governo”. Dados, v.43, n.3, 2000, p.521- debate, ver Palermo, 2000. 57. 9. Para diferentes interpretações sobre a natureza do federalismo bra- PIERSON, P. e LEIBFRIED, S. European Social Policy. Between sileiro, com base no conceito da força relativa do executivo federal e Fragmentation and Integration. Washington, Brookings dos executivos estaduais, ver Abrucio (1998) e Souza (forthcoming). Institution, 1995. RIKER, W. Federalism, Origin, Operation, Significance. Little, Brown and Company, 1964. ______. “Federalism”. In: GREENSTEIN, F. and POLSBY, N. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (ed.). Handbook of Political Science. Massachusetts, Addison- Wesley Publishing Company, v.5, 1975. ABRUCIO, F.L. Os barões da Federação. São Paulo, USP/Hucitec, 1998. SAMUELS, D. “Concurrent Elections, Discordant Results. Presidentialism, Federalism, and Governance in Brazil”. 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31 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 O AVESSO DO AVESSO conjuntura e estrutura na recente agenda política brasileira

CLÁUDIO GONÇALVES COUTO Professor do Departamento de Política da PUC-SP. Autor do livro O desafio de ser governo: o PT na Prefeitura de São Paulo

Resumo: Fernando Henrique Cardoso implementou sua agenda governamental utilizando, simultânea e articu- ladamente, diversos mecanismos decisórios. Destacam-se as medidas provisórias e as emendas constitucio- nais. Converteram-se umas – concebidas para emergências conjunturais – em instrumentos legislativos corri- queiros, por isso mesmo estruturais; e outras – feitas para modificar a estrutura institucional perene de nosso sistema político – em instrumentos de implementação das políticas particulares de um governo particular, por isso mesmo conjunturais. Palavras-chave: teoria constitucional; processo decisório; sistema de governo.

governo Fernando Henrique Cardoso foi muitas ESCOPO DO PODER E CONTROLES vezes acusado de governar por medidas provi- O sórias. Notabilizou-se, por outro lado, pela rea- A delegação de poder (e a conseqüente definição de seu lização de profundas reformas no modelo econômico e no escopo) passa, na tradição contratualista liberal, pelo es- Estado brasileiro, quase todas implementadas por meio de tabelecimento de dois pactos: um entre os indivíduos fun- emendas constitucionais. dadores do Estado, pelo qual este é criado e são definidos Um e outro desses instrumentos decisórios de que lan- seus atributos – o pacto constitucional propriamente dito. çou mão o governo contrastam pelos distintíssimos graus Outro entre governantes e governados (posterior, portan- de exigência para sua aprovação. Enquanto as MPs reque- to, ao pacto originário), pelo qual os últimos definem as rem quase unicamente a ação do presidente, as emendas atribuições específicas daqueles a que delegam poder e até constitucionais demandam a costura de amplo consenso que ponto esses podem (e devem) ir no exercício da dele- nas duas Casas do Congresso e entre elas. O que marcou gação, cuja definição está subordinada às condições fixa- afinal este governo? O decretismo desenfreado ou as ne- das pelo primeiro pacto. O primeiro é o pacto constituinte gociações extenuantes visando à construção de amplíssi- da pólis, ao passo que o segundo é o pacto que ocorre já mas coalizões? De certa forma, talvez ambas as coisas, no âmbito da pólis constituída; noutras palavras, o primeiro imbricadamente. pacto institui um Estado (e, conseqüentemente, uma cole- Qual o significado da utilização articulada desses me- tividade, a nação), enquanto o segundo institui um gover- canismos no processo de implementação de políticas go- no – confere mandatos a um indivíduo ou a um corpo de vernamentais? No que essa utilização afeta o funciona- indivíduos que serão responsáveis pela produção de polí- mento da democracia brasileira? Que condições políticas ticas e pela administração do Estado. se fazem necessárias para viabilizar, simultaneamente, uma Os governados transferem poder a agentes cujas deci- agenda de reformas constitucionais e outra implementada sões deverão acatar; o poder de mando dos governantes por meio de medidas provisórias? São estes alguns dos provém, portanto, de uma delegação dos governados. temas discutidos aqui. Como controlar os mandatários, para que ajam dentro dos Após algumas considerações de ordem teórica, passa- limites desejados? Solução óbvia das democracias é a cria- rei à análise do uso desses dispositivos pelo governo ção de mecanismos verticais de controle dos governados Fernando Henrique Cardoso. sobre os governantes, reduzindo a assimetria de poder

32 O AVESSO DO AVESSO: CONJUNTURA E ESTRUTURA NA RECENTE AGENDA... existente entre ambos (Held, 1991:146), evitando o abu- sido explicitamente atribuído poderia ser invocado como so por parte dos últimos – nos termos de Sartori (1994:289- prerrogativa. Dessa forma, as garantias individuais seriam 90), reduzindo o risco decorrente da própria separação asseguradas pelo fato de que o governo teria um poder entre governantes e governados. limitado no nascedouro; não teria como usurpar as liber- Sartori aponta que todo processo decisório envolve (a) dades individuais, uma vez que o alcance de seu poder custos internos, de tomada das decisões para aqueles que estaria limitado desde a estipulação. Para os Antife- decidem e (b) riscos externos, para os destinatários das deralistas, os governos tendem a utilizar todo o poder decisões. Diferentemente dos custos, mais facilmente de- possível, sendo necessário definir assim quais são os di- termináveis ao menos ex post, riscos são indeterminações reitos e garantias individuais, fixando claramente os limi- ex ante, “um tipo particular de incerteza, qual seja, uma tes além dos quais o governo não poderia avançar: tudo potencialidade percebida em sua periculosidade. É de que não fosse vedado ao governante lhe seria permitido. perder (não de ganhar) que se fala quando se trata de ris- Noutras palavras, no primeiro caso os limites são defini- co”. O desafio da democracia (ou de qualquer sistema de dos positivamente – pelo alcance da delegação; no segun- decisões coletivizadas) é “aumentar a probabilidade de do, eles são definidos negativamente – pela estipulação ‘resultados satisfatórios’ e minimizar a probabilidade de de restrições ao poder governamental. ‘resultados danosos’”. São dois os riscos da ação estatal: Ambas as concepções foram previstas pela Constitui- “principalmente riscos de opressão, mas também (...) ris- ção dos Estados Unidos: a dos Federalistas no texto base, cos decorrentes da incompetência, estupidez ou interes- aprovado na Convenção de Filadélfia e a dos Antife- ses sinistros” (Sartori, 1994: 289-90).1 deralistas nas dez primeiras emendas, a Bill of Rights. O mais notório mecanismo de redução do risco é a elei- Dificilmente um ordenamento constitucional democráti- ção. Sujeitos a eleições periódicas, os governantes se ve- co contemplará, exclusivamente, uma só concepção de riam obrigados a agir minimamente de acordo com a von- estruturação do arcabouço estatal. Conflitos que natural- tade dos governados – seja ela uma vontade a priori, mente permeiam o jogo político da conformação institu- anterior à eleição, ou a posteriori, forjada no processo go- cional dos Estados nacionais são resolvidos por negocia- vernamental2 – e visando às eleições subseqüentes, bus- ção e acomodação dos interesses e dos entendimentos cando convencer os governados/eleitores da justeza de concretamente existentes em cada caso histórico, de acordo decisões não previstas à época da eleição; por ela, gover- com as regras de elaboração constitucional vigentes. As- nados definem eficazmente seus governantes e, menos efi- sim, a introdução de princípios contrapostos pode ser re- cazmente, suas políticas.3 sultado de compromissos que privilegiam a factibilidade É importante também o acordo constitucional estabe- política, não a consistência teórica. lecido, definindo não só a relação entre governados e de- Além da relação vertical entre governantes e governa- terminados governantes (pela eleição), mas igualmente dos e dos limites existentes entre ambos, na conformação estruturando a relação entre os cidadãos, destes com seus de um governo limitado porém eficaz, devem-se estipular governantes (sejam quais forem eles e as preferências do as relações horizontais entre diferentes atores governa- eleitorado em qualquer conjuntura)4 e dos vários gover- mentais. Define-se algo central no ordenamento constitu- nantes entre si. É a própria constituição – forma geral de cional: a forma pela qual o governo decide. Decorre daí a organização da vida política numa sociedade – que defi- teoria da separação dos poderes: governo limitado não é nirá como os governados controlam eleitoralmente os somente o que recebe uma delegação popular limitada, governantes e como se controlam uns governantes pelos ostensivamente restringida, devendo prestar contas perio- outros. Em suma, o acordo constitucional estabelece as dicamente ao povo; é também um governo cujas diferen- condições do exercício do poder, define as obrigações tes partes têm poderes restritos para o desempenho de fun- governamentais e os recursos para os governantes se ções específicas, por si sós insuficientes à ação gover- desincumbirem delas. Ao mesmo tempo, estipula o que namental em sua plenitude. Esta apenas se efetiva pela lhes é vedado: por omissão, não incorporando ao seu rol conjugação das diferentes funções. Pela divisão pura e de atribuições certos assuntos, ou por proibição, interdi- simples de tarefas entre os atores governamentais anula- tando ao governo certas questões. se o poder de um ator num dado âmbito, delegando-se as Para os Federalistas, ao definir o que caberia ao go- atribuições desse âmbito a outro, se necessário mediante verno fazer, quais seus poderes, nada que não lhe tivesse interdições explícitas. A isso agrega-se um sistema de

33 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 controles recíprocos (checks and balances) entre atores organização política propriamente dita, à politéia – ou, governamentais, partilhando uns de poderes dos outros, para utilizar o termo inglês, de uso mais corrente, à polity. requerendo acordos visando concretizar não apenas o pro- É a estrutura constitucional do Estado, a polity, que defi- cesso governamental em sua plenitude, mas até mesmo as ne as condições do jogo político propriamente dito (a próprias tarefas específicas de cada ramo de governo. É politics). A constituição compreende o conjunto das re- precisa a síntese de Pessanha (1998:246-7) a respeito: “... gras do jogo, mas não define em princípio os resultados no caso da separação de poderes, trata-se de uma divisão do jogo, as decisões políticas tomadas (as policies). Estas em três ramos distintos, cada qual limitado à sua esfera decorrem do desfecho de conflitos, negociações e acor- específica e sem interferências sobre a função dos demais. dos, travados entre os participantes dos diversos âmbitos Cada ramo deve ser composto por membros diferentes, decisórios da polity. não sendo permitida a participação em mais de um ramo Para Buchanan e Tullock (1999), são constitucionais ao mesmo tempo. No caso dos freios e contrapesos, cada as regras de tomada de decisões. Segundo os autores, elas ramo tem o poder de exercer um grau de controle direto definem a forma pela qual se tomarão as decisões váli- sobre os outros poderes, pela permissão para exercer uma das para uma coletividade. A escolha constitucional é a pequena e limitada parte de suas funções”. escolha dessas regras e decorre de um cálculo visando à A questão do controle recíproco entre os Poderes se combinação de dois objetivos. O primeiro é a redução dos articula a outra: a hierarquia decisória. Certas decisões, custos esperados das decisões coletivas, para o que re- dado seu peso no processo governamental, exigem maior quer-se o aumento do número dos que devem acatar as acordo entre os atores políticos. Exemplo disso é a exi- decisões. Quanto maior esse número, maior o acordo ne- gência de um trâmite que se dê não apenas no interior de cessário e, por conseguinte, menores os custos esperados uma ou outra das instâncias estatais, mas que passe por de futuras decisões cujo conteúdo se ignora de antemão. várias delas; ou ainda, a exigência de quóruns qualifica- Na medida em que o tamanho do grupo necessário à deci- dos para a aprovação de determinadas matérias no Parla- são aumenta, cresce a probabilidade de que se torne cru- mento, requerendo o acordo de grupos que doutra forma cial a concordância de cada indivíduo que possa ser atin- não teriam importância para o processo decisório. Quan- gido por ela. Essa lógica alcança seu limite sob a regra da to maior a importância potencial de uma decisão e os efei- unanimidade, já que nesse caso cada indivíduo pode ve- tos possíveis dela sobre os atores envolvidos, mais com- tar toda e qualquer decisão que lhe desagrade, reduzindo plexo seu trâmite, requerendo mais negociação e mais a zero o custo externo que a mesma possivelmente lhe discussão – inclusive num maior número de instâncias – acarretaria. O segundo objetivo é a redução dos custos do antes que se conclua a deliberação, gerando enfim uma processo decisório. Quanto maior o número necessário à decisão de governo. aprovação de qualquer decisão, maiores os custos do pro- cesso, pois aumenta o poder de barganha de qualquer in- PROCESSO DE GOVERNO divíduo relativamente aos demais. Quanto menor esse E HIERARQUIA DECISÓRIA número, menor o poder de barganha dos indivíduos con- siderados isoladamente: não havendo a concordância de Nem todas as decisões estatais têm o mesmo estatuto, um, pode-se obter a anuência de outro em seu lugar, tor- seja por sua importância à própria operação do Estado, nando-se mais fácil (e menos custoso) decidir. À redução seja pela maior complexidade do processo formal de to- do custo da tomada de decisão, todavia, corresponde um mada de decisões. O primeiro aspecto refere-se ao alcan- incremento do custo esperado da decisão propriamente ce das decisões tomadas. Algumas delas acabam por con- dita. Como diria Sartori (1994), há um aumento dos ris- dicionar as demais, tanto ao definir as regras segundo as cos das virtuais decisões a serem tomadas. quais outras decisões deverão ser tomadas (Buchanan e Polity, politics e policies correspondem, portanto, a Tullock, 1999), como ao estipular limites para o conteú- diferentes níveis da vida estatal. O primeiro, à sua estru- do das próximas decisões. Na medida em que definem qual tura; o segundo, ao seu funcionamento; o terceiro, aos seus a estrutura do aparato estatal, isto é, como este se consti- produtos. A estrutura diz respeito às regras de relaciona- tui, são o que poderíamos chamar de decisões constitucio- mento entre os atores e às organizações em que eles atuam nais. Conformando as regras básicas de operação do apa- – ou às instituições propriamente ditas. O funcionamento rato estatal, as decisões constitucionais dão forma à tem a ver com a atividade política, que se desenrolaria de

34 O AVESSO DO AVESSO: CONJUNTURA E ESTRUTURA NA RECENTE AGENDA... uma forma ou de outra, fossem quais fossem as institui- parametrizar processos elas passam a definir resultados. ções vigentes, muito embora as condições desse desenro- Segundo, a inércia: regras constitucionais devem ser de lar variassem consideravelmente, dependendo do tipo de difícil alteração; caso contrário, perdem seu caráter cons- arranjo constitucional em vigor. Os produtos são aquilo titucional, tornando-se objeto de apreciação corriqueira. que o Estado gera, seja para se autogerir e manter-se, seja A obtenção da primeira condição é auto-evidente e se efe- para responder às demandas sociais existentes – filtradas tiva na própria confecção da regra: não se pode descer a e interpretadas de acordo com as condições em que se detalhes, sob o risco de deixar-se de formular parâmetros desenrola a politics. A princípio, temos aí uma gradação gerais de funcionamento do Estado para criar-se instru- em termos do que condiciona o quê: as regras institucio- mentos de administração de particularidades. Já a obten- nais condicionam o jogo político, que condiciona o con- ção da segunda condição apresenta requisitos externos às teúdo das políticas. próprias regras constitucionais (talvez possamos até mes- A influência das policies sobre a politics é provável mo falar em regras metaconstitucionais neste caso): são num sistema político marcado por elevados graus de com- necessárias exigências severas para que elas sejam modi- petitividade e permeabilidade das elites políticas às de- ficadas, já que regras difíceis de mudar tendem a ser está- mandas sociais, como o sistema poliárquico. A competi- veis, isto é, inertes. ção é aberta, quaisquer decisões compatíveis com os Deve haver, portanto, correspondência entre o estatu- princípios constitucionais são válidas, todos os atores to da norma e a complexidade do trâmite necessário à sua políticos podem legitimamente encaminhar as mais varia- transformação; isso é algo que diz respeito não só às nor- das demandas e o que será ou não levado a cabo define-se mas constitucionais, mas também a todo o corpo normati- na própria competição (Dahl, 1997). Improvável é a mo- vo do Estado. Quanto mais importante uma medida, maior dificação da polity pela policy. Mudanças nas regras cons- a complexidade do processo de sua confecção e maior a titucionais são, em princípio, decorrência da percepção necessidade de um consenso amplo entre os atores políti- por parte dos atores políticos da existência de condições cos participantes das instâncias decisórias para que essa institucionais inadequadas para o desenrolar da politics, medida seja expedida. Por isso, Buchanan e Tullock (1999) e não fruto do descontentamento com o conteúdo das po- apontam que as decisões sobre regras constitucionais são licies. Se estas se mostram insatisfatórias para os jogado- aquelas às quais, mais do que a quaisquer outras, pode-se res em decorrência de debilidades do arcabouço constitu- aplicar a regra da unanimidade. cional, isto se dá antes por ele não permitir um processo Idealmente, a maior facilidade para a tomada de deci- decisório adequado do que por influências diretas da polity sões nos diversos níveis infraconstitucionais se deve ao sobre as policies. Numa poliarquia, portanto, o arcabou- fato de que aquilo que se decide e implementa aí corres- ço constitucional tende a ser muito mais estável do que o ponde não à polity, mas às policies. Enquanto a polity diz jogo político e do que a produção de políticas, uma vez respeito à estrutura da operação do aparato estatal, a policy que apenas define a forma como a politics ocorrerá; esta, diz respeito à sua operação de conjuntura. Podemos ain- por seu turno, é que definirá como se produzirão policies. da dizer que decisões relativas à polity são decisões de Num sistema competitivo é mesmo desejável para os ato- caráter soberano, ao passo de que decisões relativas a res a estabilidade do arcabouço constitucional, pois re- policies são decisões de caráter governamental. gras estáveis reduzem o grau de incerteza em relação ao À luz desse pressuposto, quanto mais conjuntural uma desenrolar do jogo, reduzindo assim a incerteza que cer- decisão (mesmo em suas implicações), mais simples de- ca a produção de políticas. A estabilidade das regras é vem ser as condições para que seja tomada, de modo que condição de segurança no jogo competitivo, pois permi- ao imediatismo dos problemas que a suscitam correspon- te saber que a própria competição será respeitada, não se da a celeridade do processo. É bom que fique claro o sig- transformando perdedores em ganhadores ou vice-versa, nificado dado a conjuntura nesta discussão: é definida por não privando subitamente de sentido estratégias estabele- contraposição à noção de estrutura. Não se trata apenas cidas, etc.5 do curto prazo, mas também do curto alcance: decisões Para que a estabilidade das regras constitucionais se conjunturais são circunstanciais; sua implementação não torne algo provável, porém, duas condições devem estar permite alterar a estrutura do Estado e, quanto menos se presentes. Primeiro, a generalidade: regras constitucio- aproximam dessa possibilidade, mais conjunturais são. nais devem ser genéricas; caso contrário, mais do que Noutros termos, são mais decisões de governo e menos

35 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 decisões soberanas; trata-se mais de decisões de caráter verso, incrementando-se o majoritarismo do sistema, re- ordinário e menos de caráter constitucional. O Quadro 1 forçando o potencial de decisão. Para Tsebelis (1997), a resume essas distinções. excessiva “estabilidade das políticas” pode provocar a crise do regime, se o conduzir a uma paralisia decisória: a esta- QUADRO 1 bilidade perigosa aqui é a das policies, não a da polity. Natureza das Dimensões Ideais do Processo Político-Democrático Com efeito, a estabilidade da polity é mesmo uma condi- ção favorável à preservação do regime, como já foi apon- Característica Característica Dimensão Natureza Denominação tado. Formal Substantiva Como policies são decisões de caráter governamental Regras Gerais Pacto entre os propriamente dito, a noção de governabilidade – tantas Normatividade do Jogo Político Polity diversos atores Generalidade Constitucional vezes repudiada como autoritária – faz sentido se enten- (Estrutura) políticos dida como capacidade para a produção de policies e não Relacionamento para a mudança da polity. Assim, o campo por excelência Embates e Conflito e/ou Jogo Político Politics dinâmico entre os da eficácia é o da produção de policies e o campo do con- Coalizões Políticas Cooperação atores políticos trole (dos limites) é o da estruturação da polity. É claro Resultados do Vitória/Derrota de que para dizer o que é efetivamente policy ou polity, numa Normatividade Jogo Político Policy diferentes atores Especificidade Governamental dada realidade nacional, é preciso ter em vista a socieda- (Conjuntura) políticos de de que se trata. Uma questão irrelevante do ponto de vista constitucional num caso, pode assumir imensa im- portância noutro. Daí a pertinência da observação de Lijphart (1989), de que sistemas consociativos adequam- Decisões no âmbito de um pacto constitucional jamais se a países socialmente heterogêneos, quando o consociati- devem ser impostas, mas sempre acordadas entre todos vismo encontra correspondência nessa heterogeneidade.7 os atores – idealmente de forma unânime. No mundo real Igualmente, mecanismos que exijam maior consociati- a unanimidade é quase sempre impossível, de modo que vismo – maior negociação – fazem sentido para decisões as constituições procuram obedecer a regras menos exi- mais próximas do plano constitucional. Maior eficácia gentes para sua formulação e modificação – freqüentemen- decisória – maior majoritarismo –, por sua vez, é tanto te maiorias qualificadas. É no campo das policies que se mais normal quanto mais as decisões estejam no âmbito dá o perde-ganha típico da política democrática, obvia- da administração conjuntural dos negócios do governo.8 mente circunscrito em seu alcance pelo que foi definido no pacto constitucional. Por conseguinte, nesse âmbito é FIGURA 1 natural ocorrerem imposições ao invés de pactos; o papel Representação Sintética da Relação entre Controle Democrático impositivo cabe aos grupos ocasionalmente majoritários, e Hierarquia Decisória dotados do poder de decidir à revelia da vontade das mi- norias. A normatividade constitucional é aqui a garantia Maior NORMAS CONSTITUCIONAIS “(POLITY)” Maior de que esse procedimento não se converta em “tirania da Estrutura Controle (limites) Pacto Soberania maioria”, seja formalmente pela estipulação de regras decisórias, que garantam a grupos minoritários maior peso em certas decisões sobre policies, seja substantivamente pela introdução no texto constitucional de limites para Normas Paraconstitucionais certas policies, que ficariam assim (como no primeiro caso) (legislação complementar) resguardadas pelas regras decisórias mais exigentes do processo de emendar disposição constitucional.6 Quanto mais se aumentam essas garantias, mais se aguça o consociativismo do sistema, reforçando a necessidade Grau de Generalidade das Normas NORMAS GOVERNAMENTAIS “(POLICIES)” de negociação e elevando a possibilidade do veto a certas Conjuntura Eficácia iniciativas. Quanto mais se restringem essas garantias, for- Imposição Governo Grau de Consociativismo das Regras Decisórias mal ou substantivamente, mais se caminha no sentido in- Menor Menor

36 O AVESSO DO AVESSO: CONJUNTURA E ESTRUTURA NA RECENTE AGENDA...

Trata-se do tema no plano ideal. O que acaba por ser Diante desse obstáculo decisório, Collor iniciou suas efetivamente transformado em norma constitucional ou em reformas liberalizantes cinco anos antes numa área cujas norma ordinária depende da vontade dos constituintes, e medidas permitiam decisões por decreto do Executivo: a dos conflitos que travam entre si. Trata-se de uma esco- abertura comercial. As privatizações, impulsionadas em lha política, feita nalgum momento histórico, afetando a seu governo pela aprovação de uma lei ordinária (Progra- estruturação do Estado, o desenrolar do jogo político e a ma Nacional de Desestatização, Lei no 8.031/1990), re- tomada de decisões de governo e/ou administrativas. Te- queriam mudanças constitucionais para se aprofundar, mas tipicamente constitucionais podem ser remetidos ao devido a monopólios estatais definidos constitucionalmen- arbítrio dos burocratas ou à vontade oscilante de maio- te. Isso se evidencia no conteúdo das emendas constitu- rias parlamentares ocasionais; inversamente, temas tipi- cionais apresentadas no Quadro 2, aprovadas no primeiro camente conjunturais – cuja mudança espera-se que cor- governo FHC. Note-se que todas dizem respeito à desre- respondam à alternância dos partidos e lideranças no gulamentação de setores do serviço público, à desestati- governo – podem transformar-se em letra constitucional, zação de monopólios, à abertura do mercado nacional a ganhando perenidade muito maior do que sugeriria seu investidores estrangeiros, enfim, temas relacionados a uma alcance real, limitando a latitude decisória de futuros go- certa política econômica – policy, não polity. vernantes. No primeiro caso, a conseqüência provável é a Particular atenção merece a Emenda no 8, referente às grande instabilidade das regras do jogo político; no se- telecomunicações. Isso porque foi nesse setor que se ve- gundo, a maior dificuldade governativa dos eleitos. rificou o maior volume de recursos oriundos de privatiza- ções realizadas pelo governo federal. A tabela a seguir FHC: GOVERNO CONSTITUINTE, indica os montantes. GOVERNO POR DECRETO

O primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso notabilizou-se pela realização de reformas estruturais do QUADRO 2 Estado e do capitalismo brasileiro. FHC aprofundou o que Emendas Constitucionais Aprovadas Referentes às Privatizações iniciara , deflagrador da aber- Brasil – 1995-96 tura comercial e das privatizações, intensificadas por Itamar Franco, também responsável pelo Plano Real, bem- Emenda no Tema Aprovada/Promulgada em sucedida política de estabilização monetária. Cardoso implantou políticas que já se verificavam noutros países 5 Permite concessão dos serviços estaduais 15 de agosto de 1995 (Whitehead, 1993; Haggard e Kaufman, 1993), inclusive de distribuição de gás canalizado. da América Latina, onde as reformas vinham sendo im- 6 Elimina distinção entre empresas nacionais 15 de agosto de 1995 plementadas há tempos e o Brasil não era senão um retar- e estrangeiras; permite exploração do datário (Almeida, 1996; Sallum e Kugelmas, 1993). subsolo por quaisquer empresas sediadas A agenda reformista de FHC contava, no entanto, com no país; proíbe regulamentação por MP de emendas constitucionais aprovadas uma peculiaridade, comparada à de seus colegas latino- após 1995, que tenham modificado americanos: implementar muitos de seus pontos impor- a redação de artigos. tantes requeria reformar a Constituição (Couto, 1996; 1997; 1998a e b). A Carta aprovada em 1988 constitucio- 7 Permite a navegação de cabotagem 15 de agosto de 1995 nalizou questões da ordem econômica, da administração por embarcações estrangeiras. pública e do funcionamento previdenciário contrariamente 8 Permite a concessão a empresas privadas 15 de agosto de 1995 aos planos do novo presidente e à tendência mundial he- dos serviços de telecomunicações. gemônica nessas áreas de políticas. Abrir a economia a capitais forâneos, privatizar setores econômicos impor- 9 Fim do monopólio estatal do petróleo. 9 de novembro de 1995 tantes, reduzir gastos com funcionalismo público, sobre- 13 Resseguros deixam de ser monopólio 21 de agosto de 1996 tudo com inativos, e mudar o regime previdenciário geral estatal, cabe ao Estado a regulação requeriam, mais do que uma agenda governamental, uma do setor. agenda constitucional.

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TABELA 1 a) os serviços de radiodifusão sonora e de sons e ima- Privatizações – Resultados Acumulados gens; (...)” Brasil – 1991-2000 US$ milhões Não apenas deixou de ser imperativo constitucional a Programa Receita de Dívidas Resultado Venda Transferidas Geral exploração exclusivamente estatal dos serviços de tele- comunicações (particularmente de telefonia). Passou tam- Total 78.497 18.076 96.573 bém ao nível infraconstitucional (“nos termos da lei”) a Privatizações Federais 50.763 11.326 62.089 Telecomunicações 26.978 2.125 29.103 forma de organização dos serviços. Com isso, além de PND 23.785 9.201 32.986 abrir-se caminho constitucional à exploração privada des- Privatizações Estaduais 27.734 6.750 34.484 ses serviços, desconstitucionalizou-se parcialmente um

Fonte: BNDES, out. 2000. item de policy, pois, muito embora a Carta continue a tra- tar de telecomunicações, passou a fazê-lo de forma mais genérica, de modo que futuros governos e maiorias con- As privatizações e concessões no setor de telecomuni- gressuais possam alterar mais facilmente as políticas no cações, necessárias à obtenção dessas receitas, apenas se setor, não mais protegidas pelo quórum qualificado de três tornaram possíveis após a aprovação da Emenda Consti- quintos. tucional no 8 e da Lei no 9.472 (Lei Geral de Telecomuni- O teor de política econômica das reformas constitucio- cações), em julho de 1997, cuja aprovação, por sua vez, nais de FHC fica nítido se considerarmos o número de não teria sido possível sem a mudança constitucional. Por emendas sobre o assunto, aprovadas no período, em com- isso, as privatizações no setor ocorreram apenas a partir paração àquelas especificamente relacionadas a questões de 1998. Importante nisso é que a aprovação de uma le- institucionais – regras do jogo político competitivo – apro- gislação infraconstitucional para regulamentar o proces- vadas em qualquer tempo (Gráfico 1). so de privatizações das telecomunicações dependia da modificação prévia de dispositivos constitucionais. Isso GRÁFICO 1 porque a policy nessa área foi elevada à condição de letra Emendas Constitucionais, segundo seu Teor constitucional. Vejamos o que dizia o texto constitucio- Brasil – 1992-2000 nal original, modificado pela emenda no 8: “Art. 21. Compete à União: (...) XI – explorar, diretamente ou mediante concessão a empresas sob controle acionário estatal, os serviços Nos Absolutos telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados e de- mais serviços públicos de telecomunicações, assegurada a prestação de serviços de informações por entidades de direito privado através da rede pública de telecomuni- cações explorada pela União; XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: a) os serviços de radiodifusão sonora, de sons e ima- gens e demais serviços de telecomunicações; (...)” O texto passou a ter a seguinte redação: Fonte: Figueiredo e Limogi (1999). “Art. 21. Compete à União: (...) XI – explorar, diretamente ou mediante autoriza- Durante o primeiro mandato de FHC, apenas duas emen- ção, concessão ou permissão, os serviços de telecomuni- das cujo conteúdo diz respeito à organização da polity cações, nos termos da lei, que disporá sobre a organiza- foram aprovadas: as de números 15 e 16, referentes res- ção dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros pectivamente à criação de novos municípios e ao instituto aspectos institucionais; da reeleição para cargos executivos.9 Quase todas as de- XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, mais diziam respeito a questões de ordem econômica (13 concessão ou permissão: emendas) e uma tratava de política social, a Emenda no

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14, de 1996, que criou o Fundo de Desenvolvimento da maiores se comparadas a leis – três quintos dos votos de Educação Fundamental. De qualquer forma, todas diziam deputados e senadores, em duas votações em ambas as respeito antes a policies que a polity. O Quadro 3 traz a Casas, sendo que qualquer modificação introduzida numa relação de todas as emendas constitucionais aprovadas, delas pelo que foi votado pela outra deve ser ratificada dividindo-as em blocos segundo seu teor. pela Casa que aprovou inicialmente o texto. A importân- cia que tiveram as deliberações constitucionais no Con- QUADRO 3 gresso brasileiro durante o primeiro mandato de FHC fi- Blocos de Emendas Constitucionais e Respectivo Teor cam evidentes se compararmos duas grandezas. A primeira Brasil – 1992-2000 refere-se ao número de emendas aprovadas nesse período comparativamente ao período anterior (governos Collor Emendas Teor e Itamar Franco). Após a promulgação da nova Carta (ou- 5, 6, 7, 8, 9 e 13 desregulamentação e desestatização tubro de 1988), as primeiras emendas foram aprovadas da economia/efeitos fiscais indiretos em 1992, mas os projetos aprovados não foram de inicia- 1, 3, 11, 18, 19 e 20 e 25 reforma do Estado/ tiva do Executivo – uma dizia respeito à remuneração de efeitos fiscais estruturais parlamentares no plano subnacional e a outra regulamen-

1-R, 10, 12, 17, 21 e 27 propósitos fiscais imediatos tava o plebiscito sobre sistema de governo, previsto na Carta para ocorrer em 1993. Nesse ano, duas novas emen- 2, 4, 2-R, 3-R, 4-R, 5-R, 6-R, 15, 16, caráter eminentemente político das foram aprovadas, uma que contemplava um pacote de 22, 23, 24 modificações constitucionais e outra que definia prazos 14, 26 e 28 sociais/efeitos fiscais indiretos para a legislação eleitoral. Apenas o conteúdo da primei- ra delas contemplava preocupações do governo – previ- dência do funcionalismo, sistema tributário, IPMF. Em seu primeiro ano de governo, o presidente centrou As seis emendas aprovadas em 1994 são um caso à fogo na mudança dos parâmetros da ordem econômica, parte: todas elas tratam de emendas constitucionais de pavimentando o caminho para as privatizações e a libera- revisão. A própria Carta previa a realização de uma revi- lização econômica. Aprovou cinco das seis emendas in- são cinco anos após sua promulgação, em sessão unicame- dicadas no Quadro 2, restando apenas uma, a de no 13, ral do Congresso e aprovação das mudanças por maioria aprovada no ano seguinte. O presidente contava então com absoluta, não podendo o Executivo apresentar propostas, certo fôlego na área fiscal, graças à aprovação, no ano embora a emenda que criou o FSE fosse obviamente de anterior, da Emenda Constitucional de Revisão no 1, que seu interesse. As condições distintas de tramitação e o fato criou o Fundo Social de Emergência (FSE). Este, ao des- de tratar-se de uma revisão já prevista dão caráter muito vincular receitas de despesas e transferências definidas peculiar a essas emendas, que não podem ser classifica- constitucionalmente, deu ao Executivo maior margem de das como as demais. Por isso, as seis emendas de 1994 manobra na execução orçamentária. O FSE foi prorroga- devem ser vistas como uma excepcionalidade.11 do em 1996 por meio da emenda no 10, rebatizado como A segunda grandeza a considerar é o número de vota- Fundo de Estabilização Fiscal (FEF). Além disso, o Exe- ções nominais de caráter constitucional e não-constitucio- cutivo obteve nesse ano a aprovação de mais uma emenda nal realizadas na Câmara de Deputados nos dois períodos. constitucional com propósitos fiscais imediatos, a de no 12, Segundo levantamento de Figueiredo e Limongi (1999), que criou a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movi- foram 166 votações constitucionais nesses quatro anos mentação Financeira), nova denominação do IPMF (Im- contra apenas 11 durante os cinco anos precedentes, e 188 posto Provisório sobre Movimentação Financeira), tam- votações não-constitucionais contra 101 no período ante- bém criado por meio de emenda constitucional, a de no 3, rior. Ou seja, houve mais votações nominais apenas de tipo de 1993.10 constitucional durante o primeiro governo FHC do que A média de emendas constitucionais durante os dois votações nominais de qualquer tipo no período anterior. governos FHC, até 2000, é de quatro por ano; somente no Embora mesmo o desempenho medido pela quantidade de primeiro mandato foram aprovadas 16. É um desempe- votações não-constitucionais seja bastante superior no pe- nho notável, sobretudo considerando-se que as exigências ríodo FHC – 86% das votações a mais e média de 41,5 para a aprovação de emendas constitucionais são muito votações nominais por ano, contra apenas 20,2 no período

39 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 anterior –, é a apreciação de temas constitucionais que se de capacidade legislativa mediante a reedição de medi- destaca de forma notável – votam-se 15 vezes mais itens das provisórias. Passando ao presidente a atribuição de de teor constitucional nesse período do que no preceden- decidir de forma autônoma sobre parte da produção le- te. O Gráfico 2 deixa essa diferença evidente. gal, o Congresso viu-se mais à vontade para encaminhar os trabalhos referentes às deliberações de caráter consti- GRÁFICO 2 tucional. Assim, duas agendas operaram de forma articu- Votações Nominais Constitucionais e Não-Constitucionais lada: uma, constituinte e ultraconsociativa – a das refor- Brasil – 1990-1999 mas constitucionais. Outra, delegativa e majoritária – a das medidas provisórias reeditadas. Observe-se que a de- legação propriamente dita aplica-se ao caso da reedição Nos Absolutos de MPs, não às edições originárias. Editar MPs é prerro- gativa constitucional do Executivo, podendo ocorrer com ou sem anuência do Congresso, ou seja, independentemen- te de haver delegação, ou de o Executivo contar com maio- ria parlamentar. Reeditar MPs depende da anuência par- lamentar, tácita ou explícita, pois apenas se reeditam MPs que não tenham sido apreciadas pelo Legislativo. Assim, caso não queira delegar poderes legislativos ao Executi- vo consentindo reedições, basta ao Parlamento apreciar as MPs editadas originariamente. Fonte: Figueiredo e Limongi (1999). A delegação mostrou-se útil aos dois poderes não só por conferir maior eficácia decisória à implementação da Essa verdadeira agenda constituinte não deve, entre- agenda de governo levada a cabo por meio das MPs edi- tanto, ser vista isoladamente. Ela opera, na verdade, de tadas e reeditadas, mas também por transbordar esse ga- forma articulada ao restante da produção normativa. Em nho de eficácia à agenda constitucional, que ganhou mais primeiro lugar, como já indiquei para as telecomunicações, espaço na pauta de negociações entre os dois poderes. Se pelo fato de que parte da produção normativa infraconsti- toda a legislação implementada e mantida por MPs tives- tucional dependia de mudanças de caráter constitucional. se de ser também apreciada pelo Congresso, tornar-se-ia Além da privatização da telefonia, também as políticas mais extensa essa pauta e, conseqüentemente, mais custo- fiscais no plano infraconstitucional beneficiaram-se de sa e de encaminhamento mais vagaroso. Com a delega- decisões constituintes. A aprovação das medidas de efei- ção, a manifestação do Congresso sobre as MPs somente to fiscal imediato (FSE/FEF/DRU e IPMF/CPMF) pro- se processaria caso alguma medida indesejada pelos par- porcionaram ao Executivo maior liberdade no manejo lamentares fosse expedida. Nesse caso, um mecanismo de orçamentário, pois ao desvincular receitas proporciona- “alarme de incêndio” poderia mostrar-se suficiente para ram folga orçamentária, permitindo limitar por decreto garantir que a delegação não redundasse numa perda de gastos públicos, facilitando a persecução das metas fis- agenciamento (Amorim e Tafner, 1999; Kiewiet e cais fixadas. Assim, a utilização na execução orçamentá- McCubbins, 1991). ria de um mecanismo normativo exclusivo do Executivo Havendo delegação, não há usurpação das prerrogati- (o decreto) ganhou maior efetividade com a aprovação de vas parlamentares pelo Executivo. Trata-se de uma esco- medidas fiscais constitucionais – para as quais requer-se lha feita por aqueles que detêm o controle do Congresso negociar mais, contar com mais apoio parlamentar e su- – as maiorias e as mesas diretoras, situacionistas durante perar obstáculos institucionais maiores, pois há um maior todo o governo de FHC. A mesma coalizão parlamentar número de veto players a dificultar o processamento das que permitiu ao governo mudar a Constituição optou por decisões. delegar-lhe poder legislativo mediante a reedição de MPs. O segundo ponto importante para esta discussão é apon- Se, todavia, é razoável expedir novamente uma MP, 30 tar que o encaminhamento da agenda constituinte no Con- dias após sua primeira edição, caso as razões “urgentes” gresso beneficiou-se da desobstrução da pauta de negocia- que a motivaram permaneçam (como entendeu o STF no ções entre os dois poderes pela delegação ao Executivo julgamento dessa questão), que dizer das MPs sucessiva-

40 O AVESSO DO AVESSO: CONJUNTURA E ESTRUTURA NA RECENTE AGENDA... mente reeditadas, algumas delas por vários anos? Perde vez introduzindo modificações noutro artigo da lei. Note- sentido a noção de provisoriedade, pois uma medida pro- se bem: a LDO, feita para “orientar a elaboração da lei visória mantida por longo tempo equivale a uma lei vi- orçamentária anual” (art. 165), passou a sofrer modifica- gente por esse mesmo período. Uma lei sui generis, apri- ções mediante medidas provisórias depois da votação e morável mediante pequenas alterações sempre que sanção do próprio orçamento! A partir de setembro da- aprouver ao Executivo. quele ano, outro artigo da lei foi modificado por MP e, a A prática acarreta prejuízos à democracia, por três ra- partir de outubro, as novas reedições (então MP no 1.525) zões. Primeiro, por retirar da principal arena de debates passaram a incluir modificações da LDO para 1997 – vo- sobre questões nacionais – o Congresso – a discussão so- tada pelo Congresso e sancionada pelo presidente apenas bre decisões importantes para o país. Quando o Executi- três meses antes –, além de alterações de outros artigos vo decide sozinho, qualquer questionamento às decisões da LDO para 1996. Essa MP continuou a ser reeditada, é possível apenas após elas começarem a surtir efeitos, tendo ultrapassado 60 reedições até ser transformada na desvalorizando os debates que depois venham a ocorrer. Lei no 10.210 de março de 2001. Em segundo lugar, porque a persistência dessa prática ao Ora, se não pode o Congresso, por decisão explícita de longo de alguns anos pode perpetuá-la, conformando um sua maioria, mediante a lei delegada, transferir poderes sistema político com um debate parlamentar débil sobre legislativos ao presidente em matéria orçamentária, po- temas não só relevantes como também urgentes. A tercei- deria fazê-lo de forma tácita, não apreciando medidas pro- ra razão é a questionável constitucionalidade de parte das visórias que serão fatalmente reeditadas pelo Executivo? reedições, uma vez entendidas como decorrentes de uma Ainda que as decisões do STF não se reportem à idéia de delegação legislativa. delegação legislativa efetivada por meio da reedição de Na Constituição brasileira, apenas a lei delegada é ins- MPs, não é isso o que ocorre? Creio haver uma incongruên- trumento de delegação legislativa. Trata-se de recurso cia político-constitucional na reedição de MPs acerca de institucional parcamente usado: desde janeiro de 1946, política orçamentária, mesmo que talvez não se verifique foram expedidas apenas 13 leis delegadas, 11 delas sob a do ponto de vista jurídico-constitucional (formal), já que Constituição de 1946, antes do regime militar (até 1962). o próprio STF não reconhece na reedição de medidas pro- Após 1988, promulgaram-se apenas duas, durante o go- visórias uma forma de delegação. Se a intenção dos cons- verno Collor. Ironicamente, ambas foram modificadas ou tituintes era não permitir delegação em certos casos, e ela regulamentadas por medidas provisórias. Há, porém, uma de fato ocorre aqui, há claro desrespeito ao espírito da série de limitações ao seu uso, pois não podem ser objeto Carta. Segundo Ferreira Filho (1995:264, grifos meus): de delegação “os atos de competência exclusiva do Con- “Tal poder é condicionado pela ocorrência de relevância gresso Nacional, os de competência privativa da Câmara e urgência. Não tem ele limitação explícita quanto à ma- dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reserva- téria. Entretanto, pela lógica, de seu campo hão de ser da à lei complementar, nem a legislação sobre a organiza- excluídas as matérias de competência exclusiva do Con- ção do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carrei- gresso Nacional, ou de suas casas, ou outras submetidas a ra e a garantia de seus membros; nacionalidade, cidadania, leis complementares, ou aquelas em que é proibida a de- direitos individuais, políticos e eleitorais; planos pluria- legação. Em todos esses casos, nitidamente, a Constitui- nuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos” (art. 68). ção reserva às Câmaras a deliberação. Igualmente esca- Como não há para as MPs limitações quanto ao tema pam ao alcance das medidas provisórias as matérias de tratado, tem sido praxe sua edição e reedição para legis- iniciativa reservada dos tribunais”. lar sobre matéria orçamentária. Seu uso para modificar a Os prejuízos à democracia brasileira serão mais gra- Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) é prática corrente ves caso a reedição continuada de MPs se converta num desde o governo Itamar Franco. A MP no 1.287, de janei- padrão. A Tabela 2 e o Gráfico 3 parecem indicar isso. A ro de 1996, que modificava a LDO válida para aquele ano, reedição de MPs aumenta contínua e avassaladoramente. foi reeditada por três vezes, sem modificações importan- Pode-se observar que praticamente não há mais medidas tes até maio, quando finalmente o novo Orçamento foi provisórias rejeitadas pelo Congresso desde o governo sancionado. Dois dias depois da sanção, a mesma MP, que Itamar Franco e também se reduziu muito o volume de acabou sendo parâmetro para a confecção do Orçamento MPs convertidas em lei – ou seja, o Parlamento desobri- (já que modificava a LDO), foi novamente reeditada, dessa gou-se da sua tarefa de apreciar esses atos do Executivo.

41 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001

TABELA 2 GRÁFICO 3 Medidas Provisórias – Edição e Reedição, segundo Governo Medidas Provisórias – Situação em Vários Governos Brasil – 1988-2001 Brasil – 1998-2000

a a Governo Sarney Collor Itamar FHC (I) FHC (II) Total

aaa Originárias 125 87 141 160 79 592 aaa Reeditadas 22 73 364 (1) 2.449 (2) 2.419 5.327

Convertidas 109 66 118 82 85 463 a a aaaaa a a aaaaa aaaaa Revogadas 2 5 5 11 5 28 aaaaa Sem Eficácia 5 5 15 3 1 29 Rejeitadas 9 11 – 1 1 22 Em Tramitação – – – 38 11 49 Editadas 147 160 505 2.609 2.498 5.919

Fonte: Presidência da República. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Atualizado em 18/06/2001. (1) Inclui 699 reedições de medidas originárias de governos anteriores. (2) Inclui 137 reedições de medidas originárias de governos anteriores.

O número de reedições cresce imensamente durante os governos FHC. Embora já tivesse superado o número de edições originárias durante o governo Itamar, passa então a superá-lo por larguíssima margem. Junto ao crescimento do número de reedições, vem a redução das medidas apre- Fonte: Presidência da República. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Atualizado em 18/06/2001. ciadas pelo Congresso, proporcionalmente às originárias. No período Sarney, as medidas apreciadas (convertidas ou CONCLUSÃO rejeitadas) correspondiam a 94,4% das editadas original- mente; no período Collor, há queda nessa proporção, mas Como vimos, o encaminhamento de uma agenda cons- o número das apreciadas se mantém elevado (88,5%). Essa tituinte é característica importante do período Fernando variação pode ser explicada parcialmente pelo aumento na Henrique Cardoso. Devido às peculiaridades do projeto proporção das MPs revogadas ou que perderam eficácia governamental desse presidente, essa agenda tornou-se nesse período (11,5% contra 5,6% no período Sarney – impositiva, já que a Carta de 1988 constitucionalizou di- um percentual de aumento exatamente igual ao da dimi- versas matérias que podem ser caracterizadas antes como nuição das apreciações). No período Itamar Franco, as policies que como polity. A distinção pode ser feita clara- apreciações reduzem-se um pouco mais em relação às edi- mente se considerarmos dois critérios: primeiro, polity diz ções originais – caem para 83,7% – e as revogadas e sem respeito a regras fundamentais do jogo político, à estrutu- eficácia também têm pequena redução – caem para 9,9%. ração do Estado, e não ao conteúdo de decisões que o O que realmente aumentou nesse período foram as reedi- governo gera corriqueiramente; segundo, são policies to- ções: saltam de uma relação de 0,176 reedição por edição das as decisões cuja transformação é passível de mudan- no governo Sarney e de 0,839 no período Collor para 2,58 ça, dependendo do grupo político que vier a tornar-se reedições por edição no período Itamar. majoritário como fruto das disputas democráticas. Nou- Os índices explodem nos governos de Fernando tras palavras, é policy o que puder ser classificado como Henrique. Em seu primeiro mandato, as apreciações caem plano de governo e cuja implementação não colocar em para apenas 51,9%, as revogadas e sem eficácia caem para risco a preservação da polity. 8,75% e a relação entre reedições e edições originárias O presidente FHC foi bem-sucedido no encaminhamen- salta para 15,3 por 1, (10,9 por 1, considerando apenas to dessa agenda. Aprovou todas as iniciativas relaciona- reedições de medidas editadas durante o próprio governo das à reforma da ordem econômica, abrindo caminho à FHC). No segundo mandato, até o momento em que es- privatização; obteve do Congresso cinco emendas consti- crevo, a última relação saltou para 30,6 por 1 (27,03 por tucionais que lhe permitiram alívio fiscal (fora a emenda 1, considerando apenas as MPs editadas pelo próprio do FSE, herdada da revisão constitucional de 1994); ob- FHC). O gráfico a seguir ilustra de forma mais visível os teve vitórias na reforma do Estado, aprovando cinco emen- dados da tabela. das, duas delas particularmente importantes – reformas

42 O AVESSO DO AVESSO: CONJUNTURA E ESTRUTURA NA RECENTE AGENDA... administrativa e da previdência – apesar das queixas de tendo em vista a preservação da polity poliárquica é uma que ficaram aquém do pretendido; isso sem falar na im- condição da continuidade do próprio jogo em que o de- portantíssima emenda da reeleição, que garantiu a mos influi nas decisões de governo, viabilizando uma exi- Fernando Henrique um segundo mandato e, assim, mais gência democrática: a de que minorias possam tornar-se fôlego e tempo para dar continuidade à sua agenda refor- maiorias, ciclicamente. Mas se decisões de governo, poli- mista e de estabilização. cies, são elas próprias congeladas por eventuais maiorias As emendas referentes à ordem econômica tornaram o (mesmo que dilatadas), estaríamos novamente restringin- texto constitucional mais genérico, remetendo à legisla- do liberdade, tornando estrutural o que, por natureza, de- ção – à normatividade infraconstitucional, portanto – muito veria ser conjuntural numa democracia. É decisão demo- do que podemos classificar como policies. Basicamente, crática atar futuros governos a uma agenda constituinte? retiraram do texto itens que tornavam obrigatória uma A mesma maioria que permitiu ao governo Fernando política econômica nacionalista e estatista. Futuros gover- Henrique mudar o texto constitucional delegou-lhe pode- nos poderão atuar mais facilmente nessas áreas, desde que res legislativos mediante a anuência à reedição de MPs. obtenham maiorias parlamentares que não mais precisa- Por isso mesmo, o padrão delegativo aqui descrito, mais rão ser de três quintos. As emendas geradoras de ganhos que um momento da politics, é política de governo, policy, fiscais de curto prazo são todas provisórias, alterando por e a responsabilidade por ela cabe aos governantes de plan- pouco tempo (ainda que o tenham feito reiteradamente nos tão – sejam membros do Legislativo ou do Executivo. A últimos anos) a distribuição de recursos públicos. Por opção por essa política gera grande incerteza jurídica, pois quebrarem vinculações constitucionais de receitas a trans- boa parte das leis em vigor são, na verdade, medidas pro- ferências para governos subnacionais e gastos na área visórias, revogáveis e modificáveis a qualquer tempo, re- social, exigiam a modificação da Carta. querendo renovação mensal. Torna-se difícil prever com As emendas da reforma do Estado modificaram poli- razoável acerto o modo como o país será governado no cies contidas na Carta, mas de uma forma distinta das que curto e médio prazos, prejudicando não só a democracia, trataram da ordem econômica. Mais que remeter regula- mas também o desenvolvimento econômico, por gerar algo mentações ao plano infraconstitucional, mantiveram-se que o mercado repudia: incerteza quanto às regras do jogo. detalhistas. A emenda da reforma administrativa, por Algo que deveria ser estrutural – o arcabouço legal – os- exemplo, chega a especificar o cálculo da indenização de cila ao sabor das conjunturas.12 funcionários demitidos. Dessa forma, para atuar nessas áreas, e implementar policies que contrariem o texto cons- titucional reformado, futuros governos terão de reunir NOTAS novamente quórum qualificado no Congresso. O fato de E-mail do autor: [email protected] transformações referentes à previdência e à administra- 1. Em sua discussão, Sartori lança mão de uma versão modificada do ção pública terem sido menores que as pretendidas pelo debate acerca dos custos da tomada de decisão e dos custos externos Executivo significa, na verdade, que se manteve muito do da decisão feita por Buchanan e Tullock (1999 [1962]). que os constituintes de 1987-1988 haviam criado. Assim, 2. Para discussão sobre este ponto, ver a introdução e os capítulos da primeira parte do livro organizado por Przeworski, Stokes e Manin mais do que o governo FHC e sua base parlamentar, são (1999). aqueles constituintes que estão ainda a limitar o raio de 3. Como aponta Schumpeter (1984:355), os eleitores escolhem aque- ação de futuros governos e, portanto, de futuras maiorias les que irão governá-los, não as políticas que irão implementar: “De- mocracia significa apenas que o povo tem a oportunidade de aceitar saídas das urnas. ou recusar as pessoas designadas para governá-lo”. Embora seja pos- Limitar os governos é uma das funções de textos cons- sível ao eleitor estipular inequivocamente quem agirá em seu nome, é possível que o escolhido não aja da maneira prevista, podendo ser “traí- titucionais. Criam-se restrições e comprometimentos para da” a delegação eleitoral (perda de agenciamento). evitar que maiorias eventuais ou governantes audazes res- 4. Afinal, é possível que as preferências eleitorais majoritárias num trinjam liberdades cidadãs, espezinhem direitos, oprimam dado momento contrariem princípios constitucionais. Estes, então, funcionam como salvaguardas de caráter permanente, não importando minorias. Mas cabe questionar, diante do caso brasileiro, quais vontades prevaleçam ocasionalmente. se essas restrições prévias devem valer indistintamente para 5. Isto talvez ajude a compreender a importância que podem ter re- policies e polity. Restringir estruturalmente vontades ma- gras de transição em processos de modificação constitucional ou de normas paraconstitucionais. O caráter paulatino de certas mudanças joritárias ocasionais, conjunturais, é limitar a capacidade da polity pode ser coerente com a própria idéia de polity. Assim, não de efetivação da vontade do demos. Que a limitação se dê apenas não se modifica a polity fácil e freqüentemente, mas também,

43 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 quando esta é modificada, os atores políticos devem ter tempo para se AMORIM NETO, O. e TAFNER, P. “O Congresso e as medidas pro- preparar para a modificação. visórias: delegação, coordenação e conflito”. Rio de Janeiro, Iuperj, 6. Certas garantias fundamentais, como o direito de propriedade, po- 1999, mimeo. dem ser incluídas neste caso. Apesar de esse direito poder ser enqua- BUCHANAN, J.M. e TULLOCK, G. The calculus of consent: logical drado na condição de uma política substantiva, mais do que uma regra foundations of constitutional democracy. Indianapolis, Liberty do jogo, sua importância numa sociedade capitalista é de tal monta Fund, 1999 [1962]. que se torna imperativo protegê-lo – impondo limites a decisões go- COUTO, C.G. O desafio de ser governo: o PT na Prefeitura de São vernamentais que venham a afetá-lo –, caso não se queira pôr em risco a própria continuidade do jogo democrático. O que se nota aqui é a Paulo (1989-1992). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995. importância do alcance das decisões numa democracia, fator notado ______. “Governabilidade e reforma do Estado”. O Estado de por Schumpeter (1984:363-4) como condição para a própria sobrevi- S.Paulo, 28/11/1996, p.A-2. vência do regime democrático. ______. “A agenda constituinte e a difícil governabilidade”. Lua 7. A exigência de quóruns parlamentares qualificados para a aprova- Nova. São Paulo, Cedec, n.39, 1997. ção de normas que digam respeito a questões lingüísticas por exem- ______. “A longa constituinte: reforma do Estado e fluidez insti- plo, pode ser despropositada num país uniforme sob esse aspecto, mas tucional no Brasil”. Dados. Rio de Janeiro, Iuperj, v.41, n.1, 1998a. fará sentido num país multilingüístico e no qual essa dimensão da vida social seja politicamente relevante. ______. “Os mecanismos do ajuste: instituições e agendas na po- lítica econômica”, texto apresentado ao Grupo Temático Estado e 8. A distinção entre lei e norma constitucional insere-se neste quadro. Políticas Públicas, dentro do I Encontro da Associação Brasileira A segunda é superior à primeira, tanto que o ramo do poder responsá- de Ciência Política (ABCP). Rio de Janeiro, 18/12/1998b. vel pela formulação legislativa não se deveria incumbir também da normatização constitucional, já que esta parametriza o próprio legis- DAHL, R.A. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo, Edusp, lar. São, contudo, normalmente previstas condições para a modifica- 1997. ção dessa normatividade pelo legislador, contudo em caráter excepcio- FERREIRA FILHO, M.G. Do processo legislativo. 3a ed. atualizada. nal, sendo os trâmites muito mais exigentes que os do processo São Paulo, Saraiva, 1995. legislativo ordinário. Ackerman (1988:163), com base nos Federalistas, estabelece uma distinção entre política normal e política constitucio- FIGUEIREDO, A. e LIMONGI, F. “O Congresso e as medidas provi- nal. Nesta segunda se daria de forma efetiva a relação de representa- sórias: abdicação ou delegação?”. Novos Estudos. São Paulo, ção entre o cidadão e aquele que toma as decisões. Diz ele: “Embora a Cebrap, n.47, mar. 1997. política constitucional seja o gênero mais elevado de política, ela ape- ______. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. nas deve dominar a vida da nação durante raros períodos de elevada Rio de Janeiro, Ed. FGV; São Paulo, Fapesp, 1999. consciência política. Durante os longos períodos que entremeiam es- HAGGARD, S. e KAUFMAN, R. “O Estado no início e na consolida- tes momentos constitucionais, uma segunda forma de atividade – que chamarei de política normal – prevalece. Aqui, as facções tentam ma- ção da reforma orientada para o mercado”. In: SOLA, L. (org.). nipular as formas constitucionais da vida política para perseguir ape- Estado, mercado e democracia: política e economia compara- nas os seus próprios e estreitos interesses. A política normal precisa das. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993. ser tolerada em nome da liberdade individual; ela é, contudo, demo- HELD, D. “Democracia, o Estado-Nação e o sistema global”. Lua Nova. craticamente inferior à intermitente e irregular política da virtude pú- São Paulo, Cedec, n.23, mar. 1991. blica, associada aos momentos de criação constitucional”. KIEWIET, D.R. e McCUBBINS, M. The logic of delegation: 9. É importante chamar a atenção para o fato de que mesmo a emenda congressional parties and the appropriations process. Chicago referente à criação de municípios tinha implicações econômicas, no and London: Chicago University Press, 1991. caso, fiscais, já que a multiplicação de municipalidades tinha como LIJPHART, A. As democracias contemporâneas. Lisboa, Gradiva, conseqüência uma distribuição menos eficiente dos recursos do Fun- 1989. do de Participação dos Municípios. 10. Esta é uma emenda constitucional de difícil classificação, pois se MELO, M.A. “O jogo das regras: a política da reforma constitucional, tratava de um pacote de mudanças constitucionais de diversos tipos. 1993-1996”. Trabalho apresentado ao XX Encontro Anual da Como preponderavam questões relacionadas a mudanças do desenho Anpocs. Caxambu, out. 1996. do Estado em termos de sua organização administrativa, optei por PESSANHA, C. “A delegação legislativa no Brasil: o decreto-lei e a classificá-la no Quadro 3 e no Gráfico 1, dentro do bloco de emendas medida provisória, 1965-1998”. A ousadia crítica: ensaios para relacionadas à reforma do Estado. Gabriel Cohn. Londrina, Ed. UEL, 1998. 11. Para uma excelente discussão acerca do processo de revisão cons- PRZEWORSKI, A.; STOKES, S.C. e MANIN, B. (orgs.). Democracy, titucional, ver o trabalho de Melo (1996). accountability, and representation. Cambridge, Cambridge 12. No momento em que concluo a redação deste artigo, a Câmara de University Press, 1999. Deputados acaba de aprovar um projeto de emenda constitucional que SALLUM Jr., B. e KUGELMAS, E. “O Leviatã acorrentado: a crise limita a possibilidade de reedição de MPs, além de restringir também brasileira dos anos 80”. In: SOLA, L. (org.). Estado, mercado e o leque de temas passíveis de normatização por esse instrumento. O democracia: política e economia comparadas. Rio de Janeiro, Paz projeto ainda deverá seguir para o Senado. e Terra, 1993. SARTORI, G. A teoria da democracia revisitada, 2 vols. São Paulo, Ática, 1994. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SCHUMPETER, J.A. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro, Zahar, 1984. ACKERMAN, B. “Neo-federalism?”. In: ELSTER, J. e SLAGSTAD, TSEBELIS, G. “Processo decisório em sistemas políticos: veto players R. (eds.). Constitutionalism and democracy. Cambridge, no presidencialismo, parlamentarismo, multicameralismo e pluripar- Cambridge University Press, 1988. tidarismo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.12, n.34, 1997. ALMEIDA, M.H.T. “Pragmatismo por necessidade: os rumos da reforma WHITEHEAD, L. “On ‘reform of State’, and ‘regulation of the econômica no Brasil”. Dados. Rio de Janeiro, Iuperj, v.39, n.2, 1996. market’”. World Development, special issue, v.21, n.8, 1993.

44 EXECUTIVO E LEGISLATIVO NO BRASIL PÓS-CONSTITUINTE EXECUTIVO E LEGISLATIVO NO BRASIL PÓS-CONSTITUINTE

FILOMENO MORAES Professor de Mestrado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza e de Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará

Resumo: O artigo descreve o estatuto dos poderes Executivo e Legislativo na Constituição do Brasil de 1988 e, considerando o processo político no País, analisa a dinâmica dos dois poderes. Palavras-chave: separação de poderes; Executivo-Legislativo; democracia.

O presidencialismo, o princípio da proporcionalidade gurada em 1988 coroa uma tradição de quase dois séculos e a Federação são instituições típicas da vida política brasileira com a separação de poderes do Estado como princípio cons- contemporânea. Ademais, são traços constitutivos do ideário e da prática democrática saudável pelo mundo afora; titucional. Acrescente-se, porém, que no último processo no Brasil e no resto do mundo, são igualmente passíveis constituinte atribuiu-se ao princípio a condição de “cláusu- de aperfeiçoamento; de permanente aperfeiçoamento. la pétrea”, isto é, não passível de ser abolido através de Olavo Brasil de Lima Jr. emenda à Constituição, como forma de configurar seu ca- ráter de imprescindibilidade para a efetivação do Estado Democrático de Direito (Moraes Filho, 2000). De fato, desde a Constituição de 1824, que normatizou presente trabalho trata da separação de poderes na a separação de poderes sob a influência da teoria de Constant dinâmica política brasileira, sob a Constituição (1989), adotando um modelo quatripartido – Poderes Mo- O Federal de 1988. Atendo-se fundamentalmente à derador, Legislativo (respectivamente Real e Representa- configuração do Executivo e do Legislativo e ao processo tivo, na terminologia de Constant), Executivo e Judiciário –, o político que se desenrola no País, estrutura-se através dos princípio da separação de poderes tem sido uma das seguintes itens: separação de poderes – princípio constitu- pilastras do Constitucionalismo nacional. Mas se as Cons- cional e práxis política; presidencialismo ou parlamenta- tituições brasileiras, inclusive as de 1967 e 1969 (para não rismo?; o presidencialismo e o conflito Executivo versus lembrar a Carta de 1937) entronizaram o princípio, renden- Legislativo; presidencialismo de coalizão; processo deci- do assim, no geral, seu tributo ao sistematizador da lei mais sório e relações Executivo x Legislativo; medidas provisó- abrangente do poder – quem o detém tende a dele abusar rias e Poderes Executivo e Legislativo; considerações fi- (Montesquieu, 1979) –, a desordem constitucional pós-64 nais. o desfigurou, proclamando-o muito mais como uma espé- cie de homenagem do vício à virtude do que como pedra SEPARAÇÃO DE PODERES: PRINCÍPIO angular do edifício constitucional, tal a concentração de CONSTITUCIONAL E PRÁXIS POLÍTICA poderes armazenados no Executivo e o amesquinhamento do Legislativo e do Judiciário. O reafirmar da separação de poderes como princípio es- Assim, a reafirmação do princípio da separação de po- truturante da ordem político-constitucional brasileira inau- deres pela Constituição de 1988 possui também o sentido

45 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 de operação restauradora, para afastar a desfiguração le- minuir os riscos da ingovernabilidade e da instabilidade vada a efeito pelo processo autoritário mais recente. Cum- institucional. Na sua avaliação, o parlamentarismo faria pre lembrar, porém, que a idéia de que nem a constituição definhar os elementos de ineficiência e incerteza do siste- nem a lei são capazes de, por si sós, modificar a natureza ma político, extirpando características imperiais vislum- das coisas ou das instituições não é incompatível com a bradas no presidencialismo. filosofia subjacente ao Do Espírito das Leis. O mesmo já No debate, tanto durante o Congresso Constituinte havia sido intuído pelo teórico pioneiro do Estado mo- (1987-1988), quanto durante a campanha que antecedeu o derno, quando, n’O Príncipe, observou que “(...) há ta- plebiscito, previsto no Ato das Disposições Constitucio- manha distinção entre como se vive e como se deveria nais Transitórias, realizado em 21 de abril de 1993, vis- viver, que aquele que trocar o que se faz por aquilo que se lumbrou-se, em linhas gerais, a seguinte taxinomia dos par- deveria fazer aprende antes sua ruína do que sua preser- lamentaristas brasileiros: os parlamentaristas puros vação” (Maquiavel, 1996:73). preferiam um sistema no qual o Chefe de Estado fosse eleito Por conseguinte, a compreensão do princípio da sepa- indiretamente, talvez segundo o modelo da Alemanha Oci- ração de poderes não pode limitar-se à sua configuração dental; os parlamentaristas mitigados aceitavam a figura normativo-constitucional, fazendo-se necessária a integra- de um ministro-coordenador ou um gabinete com forte in- ção dessa configuração com o processo político efetivo. fluência presidencial (o modelo finlandês), mas não um primeiro-ministro que dependesse verdadeiramente da con- PRESIDENCIALISMO OU PARLAMENTARISMO? fiança parlamentar; finalmente, havia os adeptos do parla- mentarismo dual, a saber, aqueles que aceitavam um siste- O conflito entre o Executivo e o Legislativo tem sido ma semelhante ao francês, contanto que o mecanismo de historicamente crítico para a estabilidade democrática no escolha do primeiro-ministro e sua atuação fossem mais Brasil, constituindo traço do processo político em boa claramente parlamentaristas do que o previsto na Consti- medida considerado tanto pelos que preferem o presiden- tuição da França (Lamounier, 1991; Moraes Filho, 1993). cialismo quanto pelos que são favoráveis ao parlamenta- É razoável afirmar que no Brasil, de modo geral, acen- rismo. tuou-se a tendência à aceitação do modelo de influência Didaticamente, pode-se dizer que, a rigor, duas caracte- predominantemente francesa, ou seja, um sistema de gover- rísticas se destacam nos sistemas presidencialistas: o presi- no intermediário entre o presidencialismo e o parlamen- dente reclama total legitimidade democrática; o presidente tarismo, o qual tem recebido uma série de denominações: é eleito para um período de tempo, que, sob circunstâncias sistema semipresidencialista, sistema semiparlamentaris- normais, não pode ser modificado, encurtado ou (em virtu- ta, sistema de Executivo bipolar ou de Executivo dividi- de de dispositivos constitucionais vigentes nos países que do, república presidencialista-parlamentarista, república proíbem a reeleição) prolongado. Por sua vez, pode-se afir- quase-presidencialista ou república quase-parlamentaris- mar que, no parlamentarismo, o governo deriva sua autori- ta. Variações de um sistema que tem funcionado de ma- dade da confiança do Parlamento, seja das maiorias parla- neiras diversas, se caracterizam fundamentalmente por ter mentares seja da tolerância parlamentar em relação aos um presidente, indireta ou diretamente eleito, e também governos minoritários. A diferença básica em relação ao um primeiro-ministro, que depende da confiança do Par- presidencialismo dá-se pelo fato de que, no último sistema, lamento. Nele o presidente tem, potencial ou realmente, o povo elege de modo direto e por período determinado o poder para interferir nas políticas públicas e no processo chefe do Executivo, a quem são outorgados, pela Consti- decisório. tuição, poderes para decidir a composição do ministério e Por oportuno, em relação ao “modelo francês”, lembre- para exercer o controle da administração. O Chefe do Exe- mos a condenação radical proferida por Bonavides (1992) cutivo é o chefe simbólico do Estado; dentro do período e a advertência de Linz (1991-1995), a saber: “O sistema para que foi eleito, só pode ser afastado pelo remédio de Executivo bipolar pode funcionar realmente bem, e já o excepcionalíssimo do impeachment. fez (ainda como diz Suleiman, com consideráveis tensões e A consciência da problemática do sistema de governo disfunções), quando a maioria eleitoral que apóia o presi- tem dirigido o esforço para a busca de alternativas para esse dente também elege a maioria para o Parlamento, e quando traço do dilema institucional. Assim, setores das elites o presidente tem uma considerável autoridade dentro do seu políticas pretendem, com a adoção do parlamentarismo, di- partido e este partido é forte no legislativo”, mas “a incom-

46 EXECUTIVO E LEGISLATIVO NO BRASIL PÓS-CONSTITUINTE patibilidade entre um presidente com poderes considerá- mordialmente à representação de interesses regionais, veis e a maioria parlamentar pode levar a um sério impas- corporativos ou clientelísticos. se, gerando uma crise no sistema político”. Embora parte da literatura mais recente argumente na direção contrária (v. g., Abrucio, 1998) ao que foi acentu- O PRESIDENCIALISMO E O CONFLITO ado por Lamounier e Nohlen, para alguns, no Brasil de hoje, EXECUTIVO VERSUS LEGISLATIVO o fantasma do presidencialismo imperial está cada vez mais presente. Uma observadora da cena política nacional aduz: No presidencialismo, dois procedimentos distintos res- “Nunca vi na história brasileira, em períodos que não são pondem pela composição do Executivo e do Legislativo. considerados ditaduras, uma tal concentração de poderes. Enquanto o Executivo é constituído, pela própria natureza O presidente concentra poderes do Legislativo, do Execu- das coisas, com base no voto de toda a nação, o Legislativo tivo e do Judiciário. Quando pressiona o Judiciário, quan- é formado por representantes de parcialidades. Na litera- do impede ações diretas de inconstitucionalidade. Ele exer- tura brasileira, há inclusive uma interpretação prestigiosa cita o poder por meio de milhares de medidas provisórias. que vislumbrou, como causa do conflito político que le- Isso caracteriza o presidencialismo imperial. (...)” vou a República Populista à crise, a origem distinta das (Benevides, 1998:12). bases de legitimidade do Poder Executivo e do Poder Evidentemente, mesmo que se torne relativa a tese do Legislativo, a saber: o voto urbano e o voto de caracterís- presidencialismo imperial, não se pode deixar de observar ticas predominantemente rurais (Furtado, 1967). os reforços que a introdução do mecanismo da reeleição A rigor, nos Estados contemporâneos, e essa não é ca- ocasiona no que concerne às características do presidencia- racterística isolada do Brasil, pode-se dizer que o Executi- lismo brasileiro. Não se pode desprezar que a reeleição, vo conseguiu mais representatividade do que o Legislativo. com os incentivos que acarreta para a personalização do Aqui mais ainda, por conta do presidencialismo, pois, quan- poder, pode tornar mais problemática a consolidação da do é o eleitorado que escolhe diretamente o governante, democracia política no País, sobretudo por conta dos me- neste fundem-se as expectativas e as esperanças popula- canismos de enfraquecimento partidário que acarreta res, num grau que jamais a eleição de um deputado poderá (Mainwaring, 1995; Moraes Filho, 1998 e 1999). igualar (Ferreira Filho, 1995). Ora, se o Legislativo tem poderes para vetar medidas Mas, conforme diagnosticam Lamounier e Nohlen propostas pelo Executivo, e o Executivo nada pode contra (1993:50-51), à hipertrofia do Executivo corresponde, em o Legislativo, tende-se a desenhar situação geradora de contrapartida, uma fragilidade. Veja-se: “(...) chegamos, confrontos, com probabilidades de impasses e, por conse- nesse período de sessenta anos, desde a Revolução de 1930, qüência, ingovernabilidade. A crise da República Populis- ao que chamaria de equilíbrio de duas fragilidades. De ta, com o desenlace manu militari em 1964, foi em boa um lado, o Poder Executivo, cujo titular sofre erosão ver- medida uma crise de paralisia decisória (Santos, 1982), tiginosa em seu capital político e freqüentemente não dis- oriunda da incapacidade do Executivo – frente a um põe de meios legítimos para refazê-lo, uma vez erodida a Legislativo hostil – de tomar decisões políticas adequadas base eleitoral originária; do outro lado, o Congresso, cuja em relação à crescente crise do Estado. No momento, to- composição reflete o alto grau de fragmentação e o caráter davia, como se discutirá a seguir, o processo político na- consociativo do sistema político na sua vertente eleitoral, cional não toma a direção da paralisação decisória nem da partidária e federativa. Ou seja, um sistema político que ingovernabilidade. tenderá, com altíssima probabilidade, a produzir governos, em acentuada minoria, contrapontos a essa fragmentação PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO do Poder Legislativo”. As duas fragilidades seriam agravadas em decorrência O Congresso Constituinte rejeitou o parlamentarismo, da seguinte situação: em primeiro lugar, porque os formu- mantendo a tradição republicana presidencialista, interrom- ladores de políticas do Executivo – portadores do viés tec- pida apenas no período 1961-1963. Por sua vez, o plebis- nocrático – não conhecem, normalmente, as instituições e cito, que trouxe ao debate público brasileiro um extenso e os processos que caracterizam a política; em segundo, por- variado leque de temas político-institucionais (Sadek, que os membros do Legislativo não se sentem responsá- 1995), também resultou na manutenção do presidencialis- veis pela formulação da política nacional e dedicam-se pri- mo, reforçado, através da Emenda Constitucional no 16, de

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1997, com a inserção no sistema político da possibilidade gislador mediano, é possível àquele calibrar o envio da pro- de reeleição do presidente da República. posta de forma a maximizar a própria utilidade, bastando Na verdade, sob a nova ordem constitucional, desenvol- para isso que o projeto se encontre no interior da curva de veu-se um padrão de governança que a literatura denomi- preferência da maioria congressual (Santos, 1997). na “presidencialismo de coalizão” (Abranches, 1988 e 2001; Por sua vez, o Presidente da República tem a prerroga- Figueiredo e Limongi, 1999; Santos, 2001), cujo principal tiva de solicitar urgência nos projetos de lei de sua inicia- eixo de impacto está na relação entre os Poderes Executi- tiva, o que permite abreviar os prazos de tramitação de sua vo e Legislativo. E, como afirma Abranches (2001): “Por agenda e retira dos órgãos diretivos e comissões legislativas ser presidencialismo, esse regime de governança reserva à a possibilidade de engavetamento de proposições que con- presidência um papel crítico e central, no equilíbrio, ges- trariem os interesses do primeiro. tão e estabilização da coalizão. O presidente precisa culti- Em que pesem essas prerrogativas do Poder Executi- var o apoio popular – o que requer a eficácia de suas polí- vo, é evidente que, em contrapartida, mesmo executivos ticas, sobretudo as econômicas – para usar a popularidade dotados de fortes poderes legislativos não podem gover- como pressão sobre sua coalizão; ter uma agenda perma- nar contra a vontade da maioria parlamentar, pois propo- nentemente cheia, para mobilizar atenção da maioria par- sições legislativas só são aprovadas se obtiverem apoio lamentar e evitar sua dispersão; ter uma atitude proativa das maiorias. na coordenação política dessa maioria, para dar-lhe dire- ção e comando”. PROCESSO DECISÓRIO E RELAÇÕES A Constituição Federal dotou o Presidente da Repúbli- EXECUTIVO X LEGISLATIVO ca de possibilidades muito grandes de influência na legis- lação, de muitos mecanismos de intervenção no processo A análise sistemática da dinâmica institucional brasi- legislativo. Na verdade, os poderes de agenda do Presidente leira, sob a Constituição de 1988, e tendo por foco o pro- da República vão desde a capacidade para editar medidas cesso decisório no Congresso Nacional, encontrou na for- provisórias com força de lei, o que permite ao presidente mulação das políticas públicas fonte alternativa de implementar sua agenda, sobretudo de natureza econômi- explicação a respeito da interação Executivo-Legislativo. ca e administrativa, superando possíveis obstáculos E, contra as manifestações resenhadas anteriormente, em congressuais. Por outro lado, a constante utilização das relação à hipertrofia cum fragilidade do presidencialismo medidas e a necessidade de reeditá-las periodicamente para brasileiro, encontram-se evidências teóricas, empíricas e manter sua continuidade normativa acabam por congestio- analíticas que, detalhando a operação dos mecanismos ins- nar a pauta dos trabalhos legislativos, contraindo o tempo titucionais, denotam razoável grau de apoio obtido pelo destinado ao exame de outras matérias, possivelmente de Presidente da República, sob a ordem constitucional inau- origem no próprio Legislativo (Santos, 2000). gurada em 1988, de modo a afastar o fantasma da paralisia Ademais, o presidente da República tem a seu dispor decisória e da ingovernabilidade. ampla iniciativa das leis complementares e ordinárias. E Na verdade, o estado da arte da Ciência Política brasi- possui a iniciativa privativa da legislação, entre outras ma- leira permite hoje maior conhecimento do sistema político. térias, sobre o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias Antes, a ausência de pesquisas sistemáticas, mormente so- e os orçamentos anuais, além da iniciativa das leis que fi- bre os Poderes Executivo e Legislativo, e o seu relaciona- xem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas, dispo- mento, ocasionou a proliferação de juízos negativos e pre- nham sobre a criação de cargos, funções ou empregos ou dições catastróficas sobre o comportamento parlamentar e aumento de sua remuneração, dos servidores públicos da partidário e o papel do Congresso no sistema decisório na- União, criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e cional, juízos e predições diretamente deduzidos da órgãos da administração pública. Também não se admite aos normatividade referente ao sistema de governo, eleitoral e parlamentares o aumento de despesas nos projetos de inicia- partidário vigente (Figueiredo e Limongi, 1999). ção exclusiva do Presidente da República. Mas as novas pesquisas – principalmente as que, reti- Esse amplo monopólio permite ao agente que inicia rando do sistema de governo e da legislação eleitoral e par- manipular estrategicamente a distribuição de preferências tidária o foco de análise sobre as relações Executivo- do agente que aprecia, pois, se o agenda setter conhece as Legislativo, o redirecionam para a estrutura do próprio preferências do Legislativo, simbolizado pela figura do le- processo decisório e do seu impacto no comportamento

48 EXECUTIVO E LEGISLATIVO NO BRASIL PÓS-CONSTITUINTE parlamentar e no desempenho governamental – chegam a força regimental. E esse estado de coisas acarreta proble- resultados que questionam muito do que se afirma sobre mas que a ordem democrática tem de superar. o sistema político nacional. Sobretudo põem por terra Há, todavia, elementos empíricos suficientes para ne- juízos que, sem a devida base empírica, orientam parte gar o diagnóstico, dominante na literatura, segundo o qual das elites políticas a sustentar um conjunto de propostas o Brasil atravessa, ou vive na iminência de atravessar, uma de reforma institucional capaz de promover verdadeira crise de governabilidade decorrente do conflito entre um subversão pelo alto (Santos, 1994; Tavares, 1998). Executivo institucionalmente frágil e um Legislativo for- A observação das regras de organização interna do talecido pela Constituição de 1988, mas incapaz de agir Congresso Nacional e a extensão dos poderes legislati- em virtude da ausência da necessária estrutura partidária. vos do Presidente da República permitem, por conse- O estudo sistemático do comportamento dos partidos polí- guinte, que se tirem conclusões mais pertinentes sobre ticos no Congresso robustece o argumento de que os mes- o funcionamento do sistema político brasileiro e que se mos desempenham importante papel no Legislativo. dê uma explicação abrangente para o sucesso do Exe- A disciplina partidária verificada nas votações nominais cutivo na aprovação de sua agenda legislativa, o com- (Figueiredo e Limongi, 1999) do Congresso Nacional refu- portamento disciplinado dos parlamentares e o apoio ta a tese segundo a qual a forma de governo e as leis eleito- partidário obtido pelos diferentes governos brasileiros rais e partidárias são os únicos determinantes do comporta- sob a vigência da Constituição de 1988. mento parlamentar. Observe-se que o Executivo – de onde A análise da recente experiência presidencialista no se origina a maioria das leis promulgadas no País – rara- Brasil revela que o Congresso não é uma instância de veto mente tem suas proposições legislativas rejeitadas pelo à agenda do Executivo. Aliás, conforme já chamaram a Congresso, evidenciando que não existem dificuldades nem atenção Shugart e Carey (1992), não é verdade que, sob restrições intransponíveis à capacidade do Executivo para presidencialismos (considere-se a relevância das variações ter suas proposições transformadas em lei. institucionais do sistema presidencial de governo) todo e O Executivo brasileiro organiza o apoio à sua agenda qualquer parlamentar utiliza apenas a estratégia de agir legislativa em bases partidárias, em moldes muito simila- irresponsavelmente e não cooperar com o Executivo. Este res àqueles encontrados em regimes parlamentaristas. O – dependendo do arranjo político-constitucional – pode Presidente da República distribui as pastas ministeriais com dispor de recursos que induzam os parlamentares a coope- o objetivo de obter o apoio da maioria dos legisladores; rar com o governo e a sustentá-lo. O controle exercido pelo partidos que recebem pastas são membros do governo e Executivo sobre a iniciativa legislativa cria incentivos para devem comportar-se como tal no Congresso, votando a favor que os parlamentares se juntem ao governo apoiando sua das iniciativas patrocinadas pelo Executivo. agenda. A literatura tende a descartar a possibilidade de que No Brasil pós-88, observa-se que a disciplina partidá- coalizões partidárias em apoio ao Executivo se formem e ria germina no seio do próprio Congresso. Mesmo admi- funcionem a contento sob o presidencialismo. No Brasil tindo que a legislação eleitoral leve os parlamentares a pós-Constituinte, os presidentes organizam ministérios em cultivar uma atitude individualista, deve-se ressaltar que bases partidárias, e as coalizões assim construídas tendem as políticas de cunho distributivista garantidoras desse tipo a funcionar no Congresso (Meneguello, 1998; Figueiredo de conexão eleitoral dependem do acesso à arena decisó- e Limongi, 1999). ria. Assim, o controle centralizado sobre a agenda legisla- tiva impede que as estratégias do “voto pessoal” sejam MEDIDAS PROVISÓRIAS E PODERES dominantes. O controle da agenda exercido pelos líderes EXECUTIVO E LEGISLATIVO partidários e pelo Executivo reduz a chance de sucesso das iniciativas individuais dos deputados, dado que os líderes Certamente, o mais poderoso instrumento de que dis- são capazes de reduzir suas oportunidades. põe o Poder Executivo para afirmar sua agenda política está Decerto, as normas que regulam a distribuição dos re- estabelecido pelo art. 62 da Constituição Federal de 1988, cursos parlamentares dão origem a um padrão altamente que lhe garante a faculdade de editar, em casos de relevân- centralizado de organização do Congresso, que se harmo- cia e urgência, medidas provisórias com força de lei, por niza com o papel preponderante do Executivo, tendo os par- trinta dias, a partir do ato de sua edição. Os constituintes tidos políticos a estruturar esse padrão centralizado, por de 87/88 puseram à disposição do Presidente da República

49 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 um mecanismo que lhe assegura poderes muito alentados cesso de transição, o qual tem os seus primórdios por vol- e, até hoje, senadores e deputados federais não propicia- ta de 1974, quando o autoritarismo burocrático – inaugu- ram a regulamentação necessária para evitar o abuso na sua rado dez anos antes – começava a sua inflexão. Aquilo utilização, nem o Supremo Tribunal Federal balizou o uso que tem sido denominado a primeira transição, ou seja, o do mecanismo. lapso entre as primeiras medidas liberalizantes e a passa- Na verdade, lembre-se de que só no governo Sarney, gem de governos autoritários para governos democrati- através de medidas provisórias, todas posteriormente ad- zantes, no Brasil obedeceu a um calendário extremamen- mitidas e transformadas em lei pelo Congresso Nacional, te lento e gradual, findando-se somente em 1985, com a o presidente da República determinou condições de regis- vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. tro provisório para estrangeiro no país, estabeleceu o efe- A segunda transição, aquela que assiste à consecução tivo da polícia no Estado de Roraima, estipulou regras para de um regime democrático, tem sido, por seu turno, pro- a loteria federal, inscreveu os nomes Tiradentes e Deodoro blemática, a ponto de ser crucial a interrogação sobre o grau da Fonseca no Livro dos Heróis da Pátria (Arantes, 1997). de consolidação da democracia política entre nós. Impor- A observação das medidas provisórias editadas aponta que tantes analistas denominam a situação político-institucio- o instrumento tem sido utilizado também em incursões nal brasileira como “democracia vazia”, “democracia po- desestabilizadoras da garantia constitucional do devido bre” ou “democracia delegativa”, para expressar a processo legal, com as modificações abruptas da legisla- fragilidade da mesma, sobretudo sua incapacidade para li- ção processual civil. dar com a crise econômica e com a crise social. Extrapolando os requisitos constitucionais da “urgên- A análise política sistemática também tem destaca- cia” e da “relevância”, o uso indiscriminado do recurso do que, nas democracias novas, como a brasileira, es- às medidas provisórias constitui, de fato, delegação in- tão presentes, combinados, pelo menos dois componen- discriminada de competências, a desatar a dissolução da tes perversos, a saber: uma grande distância entre as ordenação democrática das funções constitucionalmente normas formais e o funcionamento da maioria das ins- estabelecida em 1988. E pode, se não controlado institu- tituições políticas; o particularismo como uma institui- cionalmente, acarretar a ruptura do núcleo essencial dos ção política dominante. O segundo componente – o par- limites de competência constitucionalmente fixado, para ticularismo – refere-se aos vários tipos de relações não pedir de empréstimo a expressão de Canotilho (1992). universalistas, desde as relações particularistas hierár- A visão dominante sobre os efeitos da utilização das quicas, como a patronagem e o nepotismo, os favores e medidas provisórias tende a pressupor que a separação de jeitinhos, até as ações que, do ponto de vista das nor- poderes no sistema presidencialista implica a existência de mas jurídicas vigentes, seriam consideradas corruptas. interesses divergentes no Executivo e no Legislativo. Por O particularismo é antagônico a um dos principais as- essa razão, essas medidas são geralmente vistas como ins- pectos do complexo institucional de qualquer democra- trumentos eficazes com que o Executivo conta para supe- cia política mais enraizada, qual seja a distinção com- rar resistências e impor sua vontade ao Congresso. Assim, portamental e legal entre a esfera pública e a esfera governos minoritários recorreriam mais freqüentemente à privada (O’Donnell, 1996). edição de medidas provisórias. Mas, como ressaltam Por isso, sem desprezar o patente progresso relativo à Figueiredo e Limongi (1999:14), “as medidas provisórias convivência democrática no Brasil nos anos recentes, é podem ser instrumentos ainda mais poderosos nas mãos inquestionável o caráter atrofiado, truncado, de muitas das de um Executivo que conte com maioria no Congresso, instituições políticas. Por conta disso, em grande medida, especialmente em governos de coalizão. Nesses casos, po- a organização política brasileira tem problemas no que diz dem funcionar como um eficaz mecanismo de preservação respeito ao processamento da diversidade do País e à ex- de acordos e de proteção da coalizão governamental nas pressão da pluralidade de interesses e valores socialmente decisões contra medidas impopulares”. subjacentes. Esse caráter delegativo (e pouco representa- tivo, por conseqüência) tem raízes mais antigas, oriundas CONSIDERAÇÕES FINAIS de uma formação histórica de forte ênfase no Poder Exe- cutivo, da vocação eminentemente anti-representativa Considerado apenas o processo político brasileiro mais enquistada na cultura política brasileira e da recorrência recente, é notório que se tem vivido um longuíssimo pro- ao autoritarismo, o qual, desgraçadamente, tem imprimido

50 EXECUTIVO E LEGISLATIVO NO BRASIL PÓS-CONSTITUINTE no desenvolvimento político nacional uma lógica de ci- BONAVIDES, P. “Considerações sobre o Parlamentarismo”. O Povo. Fortaleza, 18/10/1992, p.25A. clos de contração e ciclos de abertura política. BRASIL. Constituição Federal. 5a ed. São Paulo, Ed. RT, 2000. Temeu-se que, na Nova República, a instabilidade das CANOTILHO, J.J.G. Direito Constitucional. 2a ed. Coimbra, Ed. coalizões governamentais pudesse atingir diretamente a Almedina, 1992. Presidência da República e que, no Congresso, a polariza- CONSTANT, B. Princípios políticos constitucionais: princípios po- líticos aplicáveis a todos os governos representativos e particu- ção tendesse a transformar coalizões secundárias e facções larmente à Constituição atual da França (1814). Rio de Janeiro, partidárias em coalizões de veto, elevando perigosamente Liber Juris, 1989. a probabilidade de paralisia decisória e a conseqüente rup- FERREIRA FILHO, M.G. Do processo legislativo. 3a ed. São Paulo, tura da ordem política. Antecipou-se, no limite, um cenário Ed. Saraiva, 1995. FIGUEIREDO, A. e LIMONGI, F. Executivo e Legislativo na Nova possível em que o presidente se tornasse cativo da vontade Ordem Constitucional. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 1999. do seu partido, delegando a própria autoridade – situação FURTADO, C. “O Brasil ou os entraves ao desenvolvimento”. Paz e de equilíbrio precaríssimo e de alto risco para a própria es- Terra. Rio de Janeiro, n.4, 1967, p.165-81. tabilidade da ordem democrática, ou cenário alternativo em LAMOUNIER, B. (org.). A opção parlamentarista. São Paulo, Idesp/ Ed. Sumaré, 1991. que o presidente resolvesse enfrentar o partido, confrontar LAMOUNIER, B. e NOHLEN, D. (orgs.). Presidencialismo ou Par- o Parlamento e afirmar a sua autoridade numa atitude lamentarismo – Perspectivas sobre a reorganização institucio- bonapartista ou cesariana altamente prejudicial à normali- nal brasileira. São Paulo, Idesp/Ed. Loyola, 1993. dade democrática (Abranches, 1988). LIMA Jr., O.B. de. Instituições políticas democráticas: o segredo da legitimidade. Isso, todavia, não aconteceu. Pelo contrário, observa-se LIMONGI, F. et alii. Forma de governo, leis eleitorais e poder agen- que os riscos de crises institucionais cíclicas diminuem, e da. Caxambu – MG, paper apresentado no XXIII Encontro Anual as praxes políticas parecem estar dando soluções sem ne- da Anpocs, mimeo, 1999. cessidade de maiores inovações formais. Sobretudo, e esta LINZ, J. “Presidencialismo ou parlamentarismo: faz alguma diferen- ça?”. In: LAMOUNIER, B. (org.). A opção parlamentarista. São é a maior conclusão que se tira deste estudo, o processo Paulo, Idesp/Ed. Sumaré, 1991, p.61-120. político brasileiro, embora enfrente problemas e dilemas, MAINWARING, S. “Brazil: Weak Parties, Feckless Democracy”. In: tem caminhado para evitar o conflito disruptivo entre o MAINWARING, S. e SCULLY, T.R. (eds.). Building Democratic Executivo e o Legislativo, que foi um dos traços marcan- Institutions: Party Systems in Latin America. Stanford – CA, Stanford University Press, 1995, p.354-98. tes e perversos de sua evolução político-constitucional MAQUIAVEL, N. O Príncipe. 2a ed. São Paulo, Martins Fontes, 1996. anterior a 1988. MENEGUELLO, R. Partidos e governos do Brasil contemporâneo (1985-1997). São Paulo, Paz e Terra, 1998. MONTESQUIEU, C.L. de S. Do espírito das leis. 2 a ed. São Paulo, NOTAS Abril Cultural, 1979. MORAES FILHO, J.F. de. “A discussão sobre o parlamentarismo e E-mail do autor: [email protected] seus parâmetros”. Nomos. Fortaleza, Mestrado em Direito – UFC, v.11/12, n.1/2, 1993, p.195-204. Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no XXIV Symposium on Portuguese Traditions, promovido pela Universidade da Califórnia, ______. A construção democrática. Fortaleza, UFC/Casa José de Los Angeles – UCLA nos dias 21 e 22/04/2001. Alencar, 1998. ______. “Cinzas da reeleição”. 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52 O SENADO NO BRASIL RECENTE: POLÍTICA E AJUSTE FISCAL O SENADO NO BRASIL RECENTE política e ajuste fiscal

MARIA RITA LOUREIRO Professora da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e da Faculdade de Economia da USP. Autora, entre outros, do livro Os economistas no governo: gestão econômica e democracia

Resumo: Examina-se aqui a lógica da ação do Senado no controle do endividamento público, procurando responder à seguinte pergunta: Será que os ditames da política se impõem sobre as necessidades de controle do déficit e da dívida pública? O marco de referência é a Constituição de 1988 e, mais particularmente, o período de implementação do Plano Real, quando o ajuste fiscal torna-se um dos pontos centrais da agenda governamental. Palavras-chave: endividamento público; restrições legais; ação política.

momento atual torna a análise do tema ao mesmo e 1997); Amorim (1994 e 2000); Abranches, (1988); tempo difícil e instigante. Difícil, em primeiro lu- Pessanha, (1997) e Nicolau, (2000). O gar, em função da crise institucional vivida pelo O presente artigo pretende ajudar a preencher a lacu- Senado, envolvendo casos de corrupção e de comportamen- na, olhando o Senado sob um prisma muito específico: o to incompatíveis com o decoro parlamentar; em segundo, de sua atuação no processo de controle do endividamento porque o ajuste fiscal ficou bastante vulnerável com a crise público. O marco de referência é a Constituição de 1988 energética. Esta revelou, na gravidade de suas prováveis e, mais particularmente, o período da implementação do conseqüências, a forma extremada e míope da prioridade dada Plano Real, quando a questão fiscal torna-se central na ao ajuste nos últimos anos no País. Não é preciso apontar os agenda do governo. enormes danos políticos à imagem do governo, produzidos Cabe esclarecer que a escolha do tema não significa acei- pelo racionamento e eventual corte de energia: a propósito, tar que se deva realizar o ajuste fiscal a qualquer preço. Ao vários especialistas dizem que os efeitos do não-investimen- contrário, mesmo considerando as conseqüências perversas to no setor energético, a forma como foi conduzido o pro- do déficit,1 é preciso lembrar, por outro lado, que os gover- cesso de privatização na área e a falta de planejamento es- nos contemporâneos têm déficits e, por isso se endividam, tratégico acabarão, provavelmente, solapando a própria porque precisam continuar governando. Em outras palavras, agenda governamental. Até surgirem esses problemas, a agen- os governos tomam empréstimos porque precisam oferecer da parecia cumprida, ao menos nos seus pontos centrais de infra-estrutura e serviços públicos crescentemente reclama- estabilização monetária, de equilíbrio das contas públicas e dos pela população e que, em termos de justiça social, não de retomada do desenvolvimento. podem mais ser adiados. Se não responderem a essas deman- Por outro lado, a própria crise do Senado estimula es- das, terão sua legitimidade questionada. tudos sobre essa casa legislativa, que praticamente Além disso, os efeitos do déficit sobre a economia são inexistem na Ciência Política brasileira. Essa lacuna con- objeto de muita controvérsia entre especialistas; e a posi- trasta muito com o número, relativamente grande, de tra- ção dos políticos ante o problema também varia muito em balhos produzidos desde a redemocratização, sobre o função da ideologia partidária e da cultura política predo- Congresso, a Câmara dos Deputados e as relações entre minante em cada país. Os responsáveis pelo desenho das Executivo e Legislativo. Dentre eles, destacam-se os de instituições econômicas na comunidade européia, por Figueiredo e Limongi (1995 e 1999); Mainwaring (1993 exemplo, não tentaram equilibrar a qualquer custo seus

53 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 orçamentos, mesmo sabendo que o déficit crescente é um demandas eleitorais e da defesa dos interesses estaduais problema a considerar (Benavie, 1998). Diferentemente se impõem sobre as necessidades de controle do déficit e dos políticos conservadores americanos, que reiteradamen- da dívida pública?2 te pretendem zerar o déficit público, os europeus consi- O enfoque específico sobre o Senado no controle do deram o investimento (necessário ao desenvolvimento e à endividamento público justifica-se na medida em que, por expansão do nível de emprego) razão amplamente legíti- regra constitucional, ele tem poder privativo para legislar ma para o governo se endividar. Aliás, segundo cálculos sobre a matéria. O artigo 52 da Constituição de 1988 lhe para os Estados Unidos, cada ponto percentual de desem- dá a prerrogativa exclusiva de autorizar operações de na- prego agrega um adicional de cerca de 50 bilhões ao seu tureza financeira para a União, os Estados, os Municípios déficit público (Ross, 1999). Do ponto de vista normati- e as empresas estatais; de estabelecer as condições de fi- vo, portanto, o que se espera dos governos hoje é a capa- nanciamento interno e externo e de fixar os limites de en- cidade de manter déficits moderados, evitando tanto os dividamento de todos esses entes federativos. Ou seja, não custos elevados do serviço da dívida, quanto os controles só a União, mas todos os governos subnacionais preci- extremados do orçamento, que geram recessão e desem- sam, para emitir títulos públicos e contratar outras dívi- prego e, com eles, mais déficit (Evans, 1997:12). das, do consentimento do respectivo poder legislativo e Do ponto de vista teórico, o exame do papel do Sena- também de autorização do Senado Federal.3 Assim, dife- do no estabelecimento de normas de controle do endivi- rentemente de outros países federativos, os Estados Uni- damento público remete à discussão dos efeitos das insti- dos por exemplo – onde as restrições legais são produzi- tuições sobre os resultados da ação governamental e sobre das de forma descentralizada pelas constituições estaduais a estratégia dos atores políticos; e remete ainda às condi- e o mercado acaba exercendo o papel mais efetivo ções políticas que permitem, ou não, o efetivo cumprimento (Briffault, 1996; Peterson, 1995; Cligermayer e Dan Wood, das regras institucionais, no contexto de conflitos federa- 1995) –, no Brasil o controle do endividamento público tivos e de constrangimentos macroeconômicos. em qualquer nível de governo é realizado de forma cen- Sabe-se bem que o ajuste fiscal é política de difícil im- tralizada pelo Senado Federal.4 plementação em qualquer país democrático, na medida em Por essa razão, a mais importante atividade legislativa que implica custos elevados e imediatos e seus benefícios exclusiva do Senado refere-se ao endividamento público. são de longo prazo e mesmo incertos (Schick, 1993; Weaver Cerca de 80% de suas resoluções, no período de 1989 a 1999, e Rockman, 1993). Em sistemas federativos, as relações ine- envolviam autorização para endividamento ou para rene- rentemente complexas e tensas entre poderes autônomos e, gociação de dívidas dos diferentes entes da federação. ao mesmo tempo, interdependentes, tornam ainda mais difí- O processo de autorização funciona da seguinte for- ceis o aumento de impostos, os cortes orçamentários e as ma: os governos interessados em emitir títulos ou estabe- medidas restritivas ao endividamento público. lecer contratos de créditos encaminham seus pleitos ao No Brasil, o federalismo tem se pautado por relações Banco Central que analisa cada caso e em seguida envia competitivas bastante perversas entre os governos, não ao Senado parecer conclusivo, recomendando ou não a favorecendo a consolidação de instituições com capaci- autorização. Uma vez no Senado, o parecer é recebido e dade de coordenar as relações intergovernamentais e ge- discutido pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), rar maior cooperação entre eles (Abrucio e Costa, 1998). composta por 27 senadores, que aprova ou rejeita o pedi- Além disso, até muito recentemente, predominavam, na do, enviando-o para a decisão final do plenário. Como área fiscal, práticas predatórias por parte dos estados e todos os pareceres emitidos pela Comissão são sempre municípios que se endividavam sem condições de paga- aprovados no plenário, a CAE acaba sendo o locus deci- mento, sabendo que a União iria, no final das contas, sório central do processo de controle do endividamento socorrê-los, transferindo para toda a sociedade o ônus público no Brasil. dessas ações (Werneck, 1998). É dentro desse quadro que a análise do Senado, como CRISE FISCAL E NOVAS REGRAS PARA O câmara de representação federativa, ganha relevância. ENDIVIDAMENTO PÚBLICO Assim, procurar-se-á responder aqui às seguintes questões: qual a lógica que orienta sua ação no controle do endivi- As causas da crise fiscal dos anos 80 no Brasil remon- damento público? Será que os ditames da política, das tam a fatores econômicos estruturais, ligados ao esgota-

54 O SENADO NO BRASIL RECENTE: POLÍTICA E AJUSTE FISCAL mento do modelo de financiamento externo, e ainda ao Antes, porém, de examinar o papel do Senado, é ne- padrão de relações federativas existentes no País (Sallum cessário retomar, ainda que brevemente, alguns traços que Jr. e Kugelmas, 1993; Affonso, 1995; Abrucio e Costa, têm marcado as relações federativas no Brasil. De um lado, 1998). É bem conhecido, contudo, que o agravamento das a Constituição de 1988 deu aos governadores e prefeitos contas públicas, especialmente nos governos subnacionais, autonomia para fixar alíquotas de impostos, definir estru- decorreu em grande parte da elevação da taxa de juros, turas administrativas, fixar salário, aplicar livremente os imposta pela implementação do Plano Real. Entre 1990 e recursos próprios e as transferências que recebem da 1995, por exemplo, os estados viram sua dívida crescer União. De outro lado, os estados e municípios caracteri- 150% e acumularam até o final de 1997 um débito de 97 zaram-se, até muito recentemente, por comportamento fis- bilhões de dólares. Antes das negociações com a União, cal irresponsável, endividando-se sem condições de pa- que desembocaram na federalização de suas dívidas, 22 gamento. Sabiam que, no final, transfeririam suas dívidas estados deviam mais do que um ano de arrecadação.5 Em para a União, através de negociações para “rolar” os dé- conjunto, a dívida pública no Brasil (incluindo União, bitos (Werneck, 1998). estados, municípios e empresas estatais) passou de 35% Nessa moldura político-institucional, que emergiu com do PIB, no início de 1998, para mais de 50% em abril deste a democratização do País e deu grande força política aos ano. Também os juros pagos pelo setor público passaram governos estaduais, os problemas de financiamento des- de 4% do PIB, no mesmo período, para mais de 10% no ses governos puderam ser contornados, por mais de uma primeiro trimestre do ano em curso.6 Dessa forma, o ajus- década, através de dois mecanismos: receitas extraordi- te fiscal tornou-se mais premente ainda com a estabiliza- nárias geradas pelo chamado “imposto inflacionário” ção da moeda. (oriundo tanto de reajustes da folha de pessoal em níveis Por outro lado, o equilíbrio das contas públicas impõe- inferiores à taxa de inflação, quanto do prolongamento dos se sobretudo pela necessidade de integração do País aos prazos de pagamento de credores); o uso dos bancos esta- mercados financeiros internacionais. Na era da economia duais como fonte (não legal) de “quase-emissão” de moe- globalizada, é preciso oferecer, a despeito dos enormes da. Ou seja, através de práticas reiteradas de empréstimos custos sociais e do comprometimento do próprio desen- não saldados junto a essas agências financeiras, cujos di- volvimento econômico, credibilidade e baixo risco para rigentes eram nomeados pelos próprios governadores, os atrair capitais externos. Como se sabe, o peso da dívida governos estaduais conseguiam criar uma fonte alternati- pública em relação ao PIB é o índice que os investidores va de recursos. estrangeiros mais levam em conta para avaliar a “confia- Em 1994, todavia, abre-se nova etapa nas relações in- bilidade” no país. tergovernamentais no Brasil (Abrucio e Costa, 1998). Com Segue-se, assim, que o ajuste fiscal e a geração de a estabilização monetária, o fortalecimento do governo superávits primários tornam-se o objetivo central da agen- federal e da autoridade do Banco Central (Sola; Garman da do governo.7 A propósito, com a crise energética, que e Marques, 1997), os governos estaduais perderam aque- exige mais investimentos no setor (a ser suprido sobretu- las duas fontes alternativas de receitas: não só o “imposto do por capitais externos, dada a escassez de poupança inflacionário” desapareceu, mas igualmente os bancos interna), e com as incertezas políticas, advindas da proxi- estaduais foram, em maioria, liquidados ou privatizados. midade das eleições, os investidores e especuladores es- Cabe observar que o uso irregular dos bancos estaduais trangeiros têm intensificado, ainda mais, as pressões para por parte dos governadores contou durante muito tempo a geração de maiores superávits primários e, portanto, com a complacência do Banco Central. Afinal, como já menores riscos para seus capitais.8 se indicou, o governo federal precisava, para aprovação É exatamente por isso que importa analisar a partici- de sua agenda política no Congresso, do apoio dos gover- pação do Senado nesse processo, ou seja, como ele de- nadores que controlavam a bancada parlamentar de seu sempenha seu papel constitucional de órgão de controle estado.9 do endividamento público no País, em vista dos constran- Nesse quadro de tensões federativas e de constrangi- gimentos econômicos e fiscais. Será que essa casa legis- mentos fiscais, observa-se, ao longo dos anos 90, a ten- lativa apóia o Executivo na realização de sua agenda ou, dência de o Congresso brasileiro (e o Senado Federal, em ao contrário, é um obstáculo, como costumam afirmar particular) legislar em favor da redução das possibilida- vários analistas? des de endividamento público. Assim, já em 1993, foi

55 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 promulgada a Emenda Constitucional no 3 que, por seis - os estados que desejarem contratação de operações de anos, só permitiria a emissão de títulos públicos por parte crédito, dependentes da aprovação do Senado, não pode- de estados e municípios para o refinanciamento de dívi- rão conceder qualquer tipo de isenção fiscal sobre o ICMS, das anteriores; e estabelecia, como única exceção, o fi- imposto que é sabidamente a maior fonte de arrecadação nanciamento para pagar precatórios judiciais, isto é, dívi- estadual; das de particulares contra o poder público decididas em - governadores e prefeitos ficam impedidos de se endivi- juízo. Como emitir títulos públicos para pagar precatórios dar por meio de operações ARO (Antecipação de Receita significava, na prática, criar uma dívida nova, essa foi a Orçamentária) no último ano de mandato; única brecha deixada pela legislação para o financiamen- - prorroga até o ano de 2010 a proibição de emissão de to dos estados e municípios. Ela foi usada, ao máximo, títulos públicos, salvo para o refinanciamento do princi- pelos governos subnacionais como fonte “adicional” de pal (devidamente atualizado) e proíbe os governos sub- financiamento público. E permitiu, inclusive, muita irre- nacionais que tiverem sua dívida mobiliária refinanciada gularidade, objeto de farta cobertura da imprensa, o que pela União de emitir, sob qualquer pretexto, novos títulos levou à instalação, em novembro de 1996, de Comissão públicos; Parlamentar de Inquérito (CPI). Se é verdade que os escândalos acerca da emissão irre- - dentre outras medidas visando a maior transparência nas gular de títulos precatórios mostraram a profunda crise operações de crédito, estabelece que os governos têm de financeira em que se encontravam muitos governos sub- fazer leilões eletrônicos na contratação de ARO e que o nacionais, estes puderam agir assim porque sabiam que a Banco Central deve dar ampla divulgação dos leilões para elevada inflação dificultava sua percepção e fiscalização. colocação dos títulos estaduais no mercado. Sabiam também, sobretudo, que contavam com a conivên- Na medida em que o Senado, através da resolução de cia e “flexibilidade” das autoridades encarregadas do con- 1998, já vinha chamando os governadores e prefeitos à trole do endividamento. O próprio relatório da CPI indi- responsabilidade fiscal e tentava pôr fim à guerra fiscal, é cou que os Tribunais de Contas dos Estados, o Banco interessante confrontá-la com a Lei de Responsabilidade Central e o Senado não estavam exigindo, como condição Fiscal (LRF), sancionada em maio de 2000. Esta lei esta- prévia para autorizar emissão de um novo título, a com- belece um conjunto mais amplo de regras que não só dis- provação do valor das parcelas efetivamente pagas de tí- ciplinam condições e limites de endividamento, como tam- tulos precatórios, nem tampouco controlavam o índice de bém induzem novos comportamentos nessa área, como o correção monetária aplicado aos mesmos.10 planejamento orçamentário, a transparência das contas Se, até o momento, a CPI não resultou na punição públicas e a responsabilidade fiscal. Ela faz isso ao vin- dos envolvidos na emissão irregular de títulos precató- cular gastos às receitas, ao estabelecer tetos de despesas rios, teve, contudo, um efeito importante: gerou a pro- com pessoal (discriminadas por esfera de poder) e ao proi- dução de regras cada vez mais restritivas para o con- bir o socorro da União aos governos subnacionais.11 São trole do endividamento público no País. Assim, em regras que consolidam princípios de gestão fiscal que ga- setembro de 1997, foi sancionada a Lei no 9.496/97 que nharam consenso nos meios governamentais e na mídia, estabeleceu critérios rígidos para que a União refinan- ao longo da última década. As resoluções do Senado, em ciasse a dívida pública mobiliária dos estados e do Dis- particular a 78/98, constituíram um ponto de inflexão im- trito Federal. Em julho de 1998, o Senado baixou a portante nesse processo. Além de submeter-se aos limites Resolução 78/98, ainda mais rigorosa, que se tornou um ao endividamento estabelecidos pelo Senado, algumas marco de referência na consolidação das condições ins- cláusulas da LRF já estavam contidas na resolução de 1998, titucionais para o controle do endividamento público como a que proíbe operações ARO no último ano de man- no País. Dentre as modificações mais importantes tra- dato do chefe do poder executivo e as medidas para maior zidas por essa resolução, cabe destacar: transparência das contas públicas, aí incluídas as opera- - o Banco Central não mais encaminhará ao Senado Fe- ções de crédito. deral pedido de autorização para a contratação de qual- Assim, observa-se que o Senado produziu ao longo dos quer operação de crédito (aí incluindo a emissão de títu- últimos anos um conjunto de normas cada vez mais restri- los da dívida pública) de governo que possua resultado tivas para o endividamento dos governos.12 A proibição primário negativo; de emissão de títulos públicos por mais de dez anos serve

56 O SENADO NO BRASIL RECENTE: POLÍTICA E AJUSTE FISCAL de exemplo de seu caráter drástico. Segundo alguns estu- TABELA 1 diosos, a expansão do mercado primário de títulos esta- Evolução do Número de Autorizações de Endividamento duais e municipais, como existe nos Estados Unidos, pelo Senado Federal (1) Brasil – 1989-98 poderia ser uma fonte alternativa importante para finan- ciamento do setor público no país, pois não elevaria a já Anos União Estados Municípios Estatais Total muito onerosa carga tributária (Ferreira, 1998; Toneto Jr. e Gremaud, 2000). 1989 18 34 14 12 78 1990 9 38 15 2 64 1991 9 34 13 4 60 A LÓGICA DA AÇÃO DO SENADO: 1992 12 30 25 1 68 POLÍTICA E AJUSTE FISCAL 1993 10 29 68 6 113 1994 19 43 16 2 80 Todavia, apesar das restrições crescentes, as novas re- 1995 6 31 9 2 48 gras não geraram os efeitos desejados, ao menos à pri- 1996 11 52 20 8 91 meira vista. Argüindo estar diante de situações excepcio- 1997 16 75 16 2 109 1998 17 57 9 10 93 nais, os senadores continuaram aprovando quase todos os Fonte: Senado Federal. pedidos de autorização de endividamento que lhes foram (1) Referem-se a autorizações para endividamento em bancos estrangeiros, em agências in- apresentados. Dados levantados no Senado, sistematiza- ternacionais e no mercado interno de títulos públicos. dos na Tabela 1, mostram que as autorizações para endi- vidamento oscilaram nos últimos anos, em decorrência de ciais inadiáveis, torna-se caminho praticamente irrecusável vários fatores, não necessariamente derivados das restri- para um político, mesmo fazendo parte do Senado, órgão ções legais. Ou seja, as resoluções mais restritivas não ti- que tem como função constitucional garantir o equilíbrio veram influência significativa nesse movimento. Por exem- financeiro dos entes federativos.13 plo, mesmo no contexto da já mencionada Lei no 9.496 de Mesmo atendendo às demandas políticas, não se pode 1997, o número total de autorizações naquele ano cres- negar o comprometimento do Senado com o ajuste fiscal. ceu quase 20%. No âmbito estadual, a proporção foi ain- Ele se revela de forma clara na delegação de poder para o da maior (mais de 40%), passando de 52 para 75 auto- Banco Central. Conhecendo a “fraqueza da vontade” a que rizações concedidas. Em 1998, o número total de auto- estão sujeitos os senadores para resistir a pressões vindas rizações para os estados e municípios declinou, mas con- dos governadores e de outros parlamentares, o Senado tinuou a crescer para a União e, de forma mais significa- como que amarra as próprias mãos (Elster, 1979). E trans- tiva ainda, para as empresas públicas. Em suma, as restri- fere para o Banco Central porção considerável de seu poder ções legais não foram cumpridas. decisório em matéria de endividamento.14 Através das Como explicar essa ação? O Senado não estaria, de fato, novas regras que dão ao Banco Central capacidade de comprometido com o ajuste fiscal? Ou trata-se de um com- emitir parecer conclusivo e de rejeitar, não encaminhan- portamento simplesmente incoerente e irracional dos se- do para a CAE, os pedidos que não preencham as condi- nadores? ções legais, os senadores acabaram criando um mecanis- Parece-me mais apropriado caracterizar o comporta- mo permanente para evitar pressões “irrecusáveis”, ao mento do Senado como ambivalente mais do que irracio- mesmo tempo que acolhem as necessidades de controle nal. Se, de um lado, o Senado não cumpre as regras que do endividamento.15 ele mesmo estabeleceu, de outro, há evidências de que ele Além disso, ao estabelecer limites claros para o endi- está comprometido com o ajuste fiscal. vidamento, o Senado põe fim a um processo altamente Na condição de representante de seu estado na arena politizado, resolvido caso a caso, e cujos custos tornavam- política nacional e percorrendo uma carreira que passa na se cada vez mais elevados, especialmente com o cresci- maioria das vezes por cargos executivos, o senador brasi- mento do consenso em torno da necessidade do equilíbrio leiro sofre pressões dos governadores, que muitas vezes fiscal. Em outras palavras, a despolitização dos pleitos de foram seus colegas no Senado, ao mesmo tempo em que crédito e sua transformação em matéria técnica, de alçada está bastante envolvido com compromissos de governo. da burocracia do Banco Central, mostra como a raciona- Assim, o endividamento, como uma das fontes importan- lidade política se acomoda com os ditames do ajuste fis- tes de geração de recursos para atender a demandas so- cal no interior do Senado.

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O exame mais detalhado das autorizações para endivi- pública, mas sobretudo na colaboração com a agenda go- damento, posteriores ao ano de 1997, mostra que um nú- vernamental em matéria fiscal, através de suas resoluções mero significativo delas ocorreu, na realidade, como par- restritivas ao endividamento público. A aprovação con- te do Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste junta – Senado e Câmara – da Lei de Responsabilidade Fiscal dos Estados e no bojo do processo de negociação Fiscal, em 2000, com rapidez e sem mudanças substanti- das dívidas entre União e estados. Dentro desse progra- vas no projeto original do Executivo, também reforça a ma, o Senado colaborou com o executivo federal, autori- argumentação que se vem fazendo acerca do apoio do zando a renegociação das dívidas antigas dos estados, con- Senado à agenda de governo. E ainda valida a afirmação dicionada à privatização dos bancos estaduais e das de que o Legislativo no Brasil, diferentemente do que se empresas estatais. Como já se indicou, a privatização dos costumava pregar, não tem sido de fato um “obstáculo à bancos estaduais tem sido vista como prioritária na agen- governabilidade” (Palermo, 2000). da de ajuste fiscal do governo federal, na medida em que Como já se indicou, a despeito da ausência de discipli- aqueles bancos foram usados durante muito tempo como na partidária e da necessidade de negociar continuamente alternativa de financiamento dos governos estaduais. Su- seus projetos, o governo atual, mais ainda do que os ante- primir essa fonte significava, portanto, preencher uma con- riores, tem tido sucesso na aprovação de sua agenda no dição para o ajuste das contas públicas. Legislativo, e obtido apoio dos partidos no Congresso Segundo números colhidos na Base de Dados da Le- (Figueiredo e Limongi, 1999; Couto e Abrucio, 1999). Essa gislação Brasileira, o Senado aprovou 18 autorizações, em capacidade se manifesta ainda mais acentuadamente no 1996, dentro do programa mencionado; em 1997, foram Senado, onde os principais partidos que compõem a base 24, representando mais de 30% do total de autorizações de sustentação do governo (PSDB, PFL, PMDB) detêm concedidas para os governos estaduais. Em 1998, houve quase 70% das cadeiras.16 16 autorizações, correspondendo a 28%. Portanto, se elas Em apoio ao governo, a bandeira do equilíbrio das con- forem descontadas do total, uma considerável redução tas públicas e da responsabilidade fiscal entre os entes aparecerá: ao invés das 75 (Tabela 1), o número de 1997 federativos tornou-se tema reiterado do discurso de parte cai para 51, e o de 1998, para 41. Em outras palavras, as significativa dos senadores. E isso não só entre os líderes restrições legais acabaram sendo cumpridas, sob condi- da bancada governista. Vale transcrever aqui alguns tre- ções políticas específicas: a barganha entre governos fe- chos de debates ocorridos no Senado desde 1995, que deral e estados que levou à federalização das dívidas e à culminaram na aprovação da Resolução 78, em julho de imposição de determinadas condições aos governos esta- 1998. Eles revelam bem a tensão entre a lógica política e duais. a necessidade de impor restrições aos governos sub- Outros indicadores servem ainda para reforço da argu- nacionais: “Nem eu nem nenhum dos senadores têm inte- mentação: as restrições e limites impostos pela Resolu- resse em inviabilizar a administração pública de nenhum ção 78 sobre as operações ARO fizeram com que o núme- estado. Agora, precisamos (...) pensar um pouco no país ro delas caísse drasticamente. Conforme dados do Banco sob o seguinte aspecto: quando vamos parar com essa his- Central, foram autorizadas no ano de 1996 e de 1997, res- tória de o prefeito passar a conta para o governador, o pectivamente de 1.330 e 1.682 operações ARO para esta- governador passar para o presidente e este para o povo? dos e municípios. Só no primeiro semestre de 1998, antes Quando vamos criar mecanismos de austeridade adminis- da Resolução 78, o número chegou a 1.227. A partir do trativa nos estados?” (Senador Wilson Kleinübing, Ata da segundo semestre de 1998, sob a vigência da nova regra, 28a Reunião da CAE/Senado Federal, 13/09/1995). tais operações despencaram para 46 e em todo o ano de “A bandeira do ajuste fiscal é bandeira sempre atual e 1999 elas não passaram de 128. todo político deve lutar por ela. Eu aqui no Senado, na Esses dados são significativos pois permitem analisar CAE, tenho sido inflexível na concessão de empréstimo o comportamento do Senado em perspectiva ampliada. para estados e municípios” (Senador Carlos Bezerra, do Mesmo sensível a pressões vindas dos governos estaduais PMDB de Mato Grosso). (politicamente inevitáveis), ele tem se mostrado compro- “Gostaria de deixar consignado nas notas taquigráficas metido com o ajuste fiscal. Isso se mostra não só na parti- desta reunião da CAE (...) que estamos votando um dos lha de nova “cultura da responsabilidade fiscal”, que visi- projetos mais importantes que já passaram por esta casa. velmente vira consenso nos meios políticos e na opinião Sem dúvida alguma, com o projeto de autoria do senador

58 O SENADO NO BRASIL RECENTE: POLÍTICA E AJUSTE FISCAL

Espiridião Amin, bem como de vários outros senadores Ao contrário, o Senado é tomado como um espaço po- cujos projetos foram apensados, sob a brilhante relatoria lítico no qual há possibilidades de ação coletiva fundada do senador Wilson Kleinübing, que discutiu e levou a cabo na combinação de racionalidade política e racionalidade um dos projetos mais sérios e competentes, hoje, no Se- técnica. Em outras palavras, ele não age sempre no senti- nado Federal, de moralização de financiamentos para es- do oposto ao da racionalidade que prega o equilíbrio das tados e municípios” (Senador Gilberto Miranda).17 contas públicas e a responsabilidade fiscal. Em vários “(...) Chegou a hora da verdade. Não vamos mais em- momentos, o Senado tem atuado nessa direção, podendo purrar problemas com a barriga e nem mandar a conta para exprimir o processamento institucional entre os constran- a viúva. Ontem nesta sala, quando um senador, meu cole- gimentos fiscais necessários à saúde orçamentária e ad- ga, fazia um discurso e dizia que a União tem que resol- ministrativa e as demandas políticas. Estas são não só ine- ver os problemas dos estados, eu perguntei: ‘Quem vai vitáveis, mas legítimas em uma ordem democrática. A resolver os problemas da União?’. Sou representante do propósito, é pertinente relembrar a sempre atual adver- Estado do Amazonas, mas sou senador da República. Não tência de Max Weber de que fora da política não há sal- posso adotar a posição irresponsável de dizer: mande para vação para a vocação inerentemente autoritária do Esta- a União e o resto que se dane” (Senador Jefferson Peres, do (e, acrescente-se, dos dirigentes que tendem a impor Ata da 14a Reunião da CAE/Senado Federal, 16 /06/1998). seus pontos de vista como verdade inquestionável). Em suma, mesmo que a lógica política (aí incluída a pressão clientelista) muitas vezes se sobreponha à auste- ridade, é importante levar em conta que a orientação NOTAS fiscalista, não só entre burocratas, mas igualmente entre E-mail da autora: [email protected] parlamentares, vem se afirmando no País e já produziu – Os dados que serviram de base para este texto fazem parte de pesquisa para o bem ou para o mal – efeitos políticos considerá- mais ampla sobre o controle do endividamento público nos Estados veis. As resoluções do Senado e agora a Lei de Responsa- Unidos e no Brasil, financiada pelo Núcleo de Estudos e Publicações (NPP) da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, ao qual, nesta opor- bilidade Fiscal são prova disso. tunidade reitero meus agradecimentos. 1. Em termos de inflação, de elevação da taxa de juros e ainda o peso CONSIDERAÇÕES FINAIS que o pagamento do serviço da dívida possa representar nos gastos públicos. 2. Cabe esclarecer que o âmbito deste trabalho, que examina a lógica O institucionalismo tem se tornado hegemônico nas de ação do Senado, não se atém às diferenças entre o Senado e a Câ- ciências sociais contemporâneas, dando ênfase ao papel mara dos Deputados em termos de suas atribuições e poder respectivo dentro do sistema político, como é comum nos estudos comparativos que as regras formais e informais desempenham na estra- sobre as câmaras altas (Oleszek, 1996; Lijphart, 1989). tégia dos atores políticos e nos resultados da ação gover- 3. No conceito de endividamento público estão incluídas as dívidas namental. Sem negar seus achados, este texto procurou mobiliárias, isto é, aquelas originárias da venda de títulos públicos no mercado e a dívida contratual, constituída de créditos obtidos no país mostrar que as regras legais, especialmente em matéria ou no exterior para financiamento de projetos específicos (Ver, a res- fiscal, não bastam para garantir sua efetividade e, daí, peito, o artigo 52 da Constituição Federal de 1998 e as atas das reu- cumprir seu papel nas políticas públicas. Elas pressupõem niões da CAE, indicadas nas referências bibliográficas). 4. Cabe lembrar que durante o regime militar o controle do endivida- certas condições políticas. No caso em estudo, as normas mento público estava circunscrito ao raio de influência do Executi- estabelecidas pelo Senado só começaram a ser implemen- vo, mais especialmente ao Ministério da Fazenda. A Lei Complemen- o tadas em um contexto político bem determinado: quando tar n 12 de 1971, promulgada no período em que Delfim Netto este- ve à frente daquele ministério, transferiu para o Banco Central e o se consolida o consenso em torno da responsabilidade fis- Conselho Monetário Nacional o poder de autorizar a emissão de tí- cal e sobretudo quando o governo federal ganha mais for- tulos públicos. ça nas relações federativas. 5. Os gastos com pessoal (ativos e inativos) têm sido outra fonte im- portante das dificuldades financeiras dos governos subnacionais. Mes- Foram igualmente deixadas de lado concepções que mo com a redução do número de servidores, a folha de pagamento cresce insistem em ver os políticos como atores incapazes de constantemente em decorrência de benefícios legais automáticos (Beltrão, Abrucio e Loureiro, 1998). satisfazer qualquer racionalidade, que não a de seus inte- 6. Relatórios do Banco Central e Informações Fipe, no 248, maio de resses eleitorais (vistos com desprezo). A análise derruba 2001. ainda o vezo de opor a ação política – considerada sem- 7. Entende-se por superávit primário o resultado positivo entre receita pre irracional, ineficiente e mesmo perversa – à ação téc- e despesa, excluindo-se o pagamento de juros. Os superávits primá- rios são vistos como necessários para a redução do peso da dívida pú- nica, esta sim vista como racional e eficiente. blica frente ao PIB. Como resultado de vários anos de contenção dos

59 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 gastos e de elevação da carga tributária bruta (que passou de cerca de REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 22% do PIB em 1994 para mais de 30% do PIB hoje), o setor público vem apresentando superávits primários nos últimos anos: no primeiro trimestre de 2001, por exemplo, a União e os governos subnacionais ABRANCHES, S. “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucio- geraram superávits primários respectivamente de 9,5 bilhões de reais nal brasileiro”. Dados, v.31, 1988, p.5-38. (3,8% do PIB) e 5,4 bilhões (1,8% do PIB) (Informações Fipe, no 248, ABRUCIO, F. e COSTA, V. “Reforma do Estado e o Contexto Federa- maio de 2001). tivo Brasileiro”. Pesquisa, n.12. Fundação Konrad Adenauer, 1998. 8. Como apontou recentemente um jornalista econômico, “quanto maior AFFONSO, R. “A questão tributária e o financiamento dos diferentes for o superávit primário, mais o governo poderá pagar de juros e evitar níveis de governo”. In: AFFONSO, R. e SILVA, P.L. (orgs.). A que cresça a dívida líquida total, que é o número-chave para traduzir o Federação em Perspectiva. Ensaios Selecionados. São Paulo, risco de uma moratória futura” (Pinto, 2001:A2). Fundap/Unesp, 1995. 9. Pode-se citar, como exemplo, a ajuda do governo federal, em 1994, AMORIM, O. “Formação de Gabinetes Presidenciais no Brasil: aos bancos estaduais para obter apoio no Congresso e facilitar a arti- Coalização versus Cooptação”. Nova Economia. Belo Horizonte, culação da candidatura de Fernando Henrique Cardoso à presidência v.4, n.1, nov. 1994. da República. Nessa época, a União comprou títulos dos bancos esta- ______.“Gabinetes presidenciais, ciclos eleitorais e disciplina le- duais, considerados “podres” pelo mercado no valor de 5 bilhões de gislativa no Brasil”. Dados, v.43, n.3, 2000, p.479-519. dólares, ou seja, mais do que o dobro do que foi injetado em todas as instituições financeiras nos seis anos anteriores (conforme dados pu- BELTRÃO, R.; ABRUCIO, F. e LOUREIRO, M.R. “Reforma da bu- blicados em O Estado de S. Paulo apud Abrucio e Costa, 1998:47). rocracia pública e federalismo no Brasil: a experiência do Progra- ma de Demissão Voluntária nos Governos Estaduais”. Revista de 10. Segundo o texto: “O Banco Central e o Senado estavam aceitando Administração Pública, v.32, n.6, nov.-dez. 1998. tudo o que lhes era apresentado, não questionando o valor ou a exis- tência dos precatórios listados, nem levantando a possibilidade de que BENAVIE, A. Déficit Hysteria. A Common Sense Look at America’s tais débitos já poderiam ter sido pagos.(...) Quanto mais se percebia Rush to Balance the Budget. Praeger. West Port. Connecticut. que o Banco Central e o Senado não estavam sendo suficientemente London, 1998. vigilantes, mais se exagerava na correção monetária dos precatórios BRIFFAULT, R. Balancing Acts. The Reality Behind State Balanced devidos” (Senado Federal, 1997:44, grifo meu). Budget Requirements. Nova York, The Twentieth Century Fund 11. Isso é crucial para impor responsabilidade fiscal em uma federa- Press, 1996. ção. Nos Estados Unidos, por exemplo, o fato de credores e estados CLIGERMAYER, J. e DAN WOOD, B. “Disentangling Patterns of State saberem que a União não socorrerá os governos devedores desestimula Debt Financing”. American Political Science Review, n.89, 108, práticas predatórias e o chamado moral hazard (Loureiro, 1999). 1995. 12. É importante ressaltar que as resoluções de nos 2.443 e 2.444 de COUTO, A. e ABRUCIO, F. “Arenas políticas e agenda econômica: 1997 do Conselho Monetário Nacional (CMN) também exerceram papel os caminhos institucionais do Real”. Reunião Anual da Anpocs. fundamental neste processo, atuando do lado da limitação da oferta de Caxambu, out. 1999. crédito ao setor público pelo sistema financeiro nacional. DIÁRIO DO SENADO FEDERAL. Atas da Comissão de Assuntos 13. Eis o que diz a respeito um dos senadores entrevistados: “Quan- Econômicos. Brasília, 1995 a 1998. do a solicitação do Estado ou município está no limite do previsto ______. Relatório Final. CPI dos Títulos Públicos. Brasília, ago. nas resoluções, na 65 e agora na 78, ainda assim há pressão dos go- 1997. vernadores, dos secretários e parlamentares. Há exemplos semanais (dessa pressão). (...) O senador Suruagy havia estado no Senado por ELSTER, J. Ulysses and the Sirens. Cambridge University Press, 1979. 8 anos, quando foi eleito governador. (Como tinha muita) interação EVANS, G. Red Ink. The Budget, Déficit, and Debt of Us. San Diego, com os senadores, foi conversando com eles para que dessem aten- London, Government. Academic Press, 1997. ção às suas solicitações. E depois não se imaginava que ele iria fazer FERREIRA, I. A economia política do endividamento público em uma o que fez”. federação. Um estudo comparativo entre o Brasil e os Estados 14. O artigo VII da Resolução 78/98 assim estabelece: “O Banco Cen- Unidos. São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, 1998. tral do Brasil não encaminhará ao Senado Federal pedido de autoriza- FIGUEIREDO, A. e LIMONGI, F. “Partidos políticos na Câmara dos ção para a contratação de qualquer operação de crédito de tomador Deputados: 1989-1994”. Dados, v.38, n.34, 1995, p.497-524. que apresente resultado primário negativo no período de apuração da Receita Líquida Real ou que esteja inadimplente junto a instituições ______. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. integrantes do Sistema Financeiro Nacional” (grifo meu). Rio de Janeiro e São Paulo, Fundação Getúlio Vargas/Fapesp, 1999. 15. São expressivas estas palavras: “Se as matérias sobre endividamento LIJPHART, A. As democracias contemporâneas. Lisboa, Gradiva, não são remetidas para o Senado, se são triadas dentro do Bacen, ha- 1989. verá menos pressões políticas junto aos senadores. É uma atitude de LOUREIRO, M.R. “O controle do endividamento público nos Estados autodefesa, porque se chega ao Senado um pedido de autorização de Unidos e no Brasil”. Relatório de Pesquisa. São Paulo, NPP/FGV, endividamento, é muito difícil resistir politicamente às pressões” (Fun- 1999. cionário da CAE). ______. Os economistas no Governo: gestão econômica e demo- 16. Na 50a legislatura, correspondente ao primeiro mandato do gover- cracia. Rio de Janeiro, Editora da FGV, 1997. no Fernando Henrique Cardoso (1995-1999), as bancadas do PSDB, MAINWARING, S. “Democracia presidencialista multipartidária: o PFL e PMDB no Senado detinham respectivamente 14,8%, 25,9% e caso do Brasil”. Lua Nova. São Paulo, Cedec, n.28/29, 1993. 28,3% de senadores. ______. “Multipartism, Robust Federalism and Presidentialism”. 17. Ata da 14a Reunião da CAE/Senado Federal, realizada no dia 16 In: MAINWARING, S. e SHUGART, M. (eds.). Presidentialism de junho de 1998, na qual se aprovou a Resolução 78/98. É interes- and Democracy in Latin America. Cambridge University Press, sante lembrar aqui que o senador Gilberto Miranda foi justamente um 1997. dos que haviam exercido pressão junto a CAE para aprovar pedidos de NICOLAU, J. “Disciplina Partidária e Base Parlamentar na Câmara autorização para emissão de títulos precatórios para a Prefeitura de dos Deputados no Primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso São Paulo, durante a administração de Paulo Maluf, de quem o sena- (1995-1998)”. Dados, v.43, n.4, 2000, p.909-735. dor Gilberto Miranda era aliado político.

60 O SENADO NO BRASIL RECENTE: POLÍTICA E AJUSTE FISCAL

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61 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 DEMOCRACIA E ESCÂNDALOS POLÍTICOS

VERA CHAIA Professora do Departamento de Política e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política

MARCO ANTONIO TEIXEIRA Pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP

Resumo: Por meio de análise de alguns escândalos surgidos recentemente no cenário político brasileiro como os casos da violação do painel de votação do Senado Federal e das denúncias de corrupção no Banpará, Sudam e TDAs, busca-se compreender as determinantes dos escândalos repercutidos pela mídia, e analisar as conse- qüências desses fenômenos para a política brasileira. Palavras-chave: democracia; Estado brasileiro; Legislativo.

ma série de escândalos marca o atual cenário ESTUDOS DA CORRUPÇÃO político brasileiro, envolvendo senadores, secre- U tários de governos e políticos de modo geral. A Alguns estudos estão mais preocupados em destacar os política nacional está vivendo uma crise peculiar com es- custos da corrupção para a sociedade, para as instituições ses escândalos presentes em várias esferas da administra- e são prioritariamente casos e países que desenvolveram ção pública. Todos os envolvidos culpam a mídia por saídas políticas e souberam controlar o Poder Executivo, buscar casos escabrosos e denúncias contra personalida- minimizando o aparecimento de corrupção. O próprio des públicas. O próprio Senado aparece como um poder Banco Mundial, como agência financiadora internacional, comprometido com escândalos e sua credibilidade se en- avalia a necessidade de combater a corrupção, pois paí- contra em xeque. Quais os elementos desencadeadores dos ses com altos índices desses casos não são viáveis para se escândalos políticos? E que conseqüências esse fenôme- fazer investimentos. Portanto, os estudos de corrupção no traz para a vida política brasileira? possuem um objetivo principalmente instrumental e mo- Para abordar alguns casos de escândalos políticos que ral e não propriamente científico, porque as causas e os apareceram e ganharam destaque na mídia brasileira, será elementos desencadeadores de casos de corrupção não são adotado um enfoque que privilegia a teoria social dos es- avaliados e tampouco destacados. cândalos analisada pelo sociólogo inglês John B. Thompson, A Fundação Konrad-Adenauer lançou recentemente um em seu recente livro sobre “Political scandal – power and caderno especial com o objetivo de analisar “Os custos visibility in the media age” (Thompson, 2000), no qual da corrupção”. Wilhelm Hofmeister, na apresentação, estuda escândalos políticos que envolvem corrupção, que- caracteriza a corrupção como “o maior obstáculo para o bra de decoro parlamentar e escândalos sexuais. desenvolvimento. Ela aprofunda o fosso entre ricos e po- Antes de examinar os escândalos políticos se faz neces- bres, enquanto elites vorazes saqueiam o orçamento pú- sário esclarecer o significado conceitual desse fenômeno, pois blico. Causa distorções na concorrência, ao obrigar em- muitas vezes escândalo é confundido com corrupção, porém presas a desviar importâncias cada vez maiores para obter nem todo caso de corrupção se transforma em escândalo po- novos contratos. Solapa a democracia, a confiança no lítico. Nesse sentido, precisa-se diferenciar a análise do es- Estado, a legitimidade dos governos, a moral pública. A cândalo, dos estudos sobre a corrupção, uma vez que exis- experiência demonstra: a corrupção pode debilitar toda tem algumas especificidades que os diferenciam. uma sociedade” (Fundação Konrad-Adenauer, 2000:7).

62 DEMOCRACIA E ESCÂNDALOS POLÍTICOS

Já o artigo de Bruno Wilheim Speck (2000), presente ordenam as práticas designadas como corruptas e corrup- no caderno especial da Konrad-Adenauer, denominado toras” (Bezerra, 1995:17). Para tanto, Marcos examina três “Mensurando a corrupção: uma revisão de dados prove- “casos” – Valência, Capemi e Coroa-Brastel –, discutin- nientes de pesquisas empíricas”, busca analisar as pesqui- do a lógica e os princípios sociais que fundamentam as sas que tiveram o objetivo de compreender e mensurar a condutas envolvidas nestes “casos”. corrupção. Renato Janine Ribeiro (2000), no capítulo “da política O autor avalia o desenvolvimento dessas pesquisas e da corrupção”, do livro A sociedade contra o social – o as sistematiza a partir dos seguintes elementos: alto custo da vida pública no Brasil, destaca como nos - pesquisas que privilegiam os “escândalos de corrupção” vários sistemas de governo, o tema corrupção teve signi- divulgados pelos meios de comunicação – os limites des- ficados diferenciados. Na tirania e na monarquia não ha- te tipo de pesquisa esbarram na questão da liberdade de via a separação entre bem público e bem privado, portan- imprensa existente nos países e em possíveis mudanças to a corrupção estava associada a algum modo de traição nas editorias dos jornais, que poderão ou não privilegiar à pátria, como nos desvios de conduta (basicamente se- relatos sensacionalistas sobre casos de corrupção; xuais) ou na acusação de mulheres, consideradas corrup- - indicador de corrupção construído a partir das conde- tas ao tentarem assumir papéis fora daquilo que a socie- nações penais, com dados coletados na polícia, no Minis- dade lhes passava como expectativa de boa conduta. tério Público e na Justiça – o mero registro não significa A corrupção, da maneira como nós a conhecemos, é necessariamente a punição, e o significado de crime de um fenômeno da moderna República. Segundo o autor, o corrupção também pode variar, pois os códigos penais não regime democrático, inevitavelmente, conviverá com al- possuem o mesmo conteúdo de país para país; gum grau de corrupção por diversas razões: A primeira razão decorre do fato de a democracia pau- - indicador de corrupção obtido através de pesquisas de tar-se pelo sentimento de tolerância à diversidade, não opinião que auscultam “os cidadãos sobre o grau e a exten- havendo nenhum grau de afeto superior que padronize o são da corrupção na sociedade” – envolve necessariamente comportamento das pessoas, como ocorria em épocas pas- avaliações subjetivas, porém foram muito utilizadas. sadas quando se transformava em corrupção tudo aquilo O tema da corrupção, portanto, entra na agenda políti- que fugia dos padrões definidos pelo próprio grupo. ca e a partir dos anos 90 se associa umbilicalmente às O segundo fator que explica a corrupção decorre da su- necessidades das reformas políticas e institucionais. Os premacia da sobrevivência individual (busca do dinheiro) em relatórios do Banco Mundial, principalmente a partir do relação ao espaço coletivo (mundo do afeto). Nas estruturas ano de 1996, são enfáticos em relação ao tema da corrup- (Estado) em que deveriam ser realizadas as produções de bens ção e incentivam pesquisas que busquem detectar áreas e públicas, o interesse privado tem prevalecido. instituições “contaminadas” pela corrupção e que sejam Mas, o que vem se verificando é que, paralelamente ao alvo privilegiado de reformas estruturais e institucionais. pleno exercício da liberdade e do direito de fiscalizar e de Flávia Schilling (1999), em um artigo intitulado “O Esta- escolher governantes, a corrupção também está presente nas do do mal-estar: corrupção e violência”, argumenta que nos democracias modernas, colocando em risco esse regime po- dias atuais o que prevalece nos noticiários são crimes envol- lítico. Ribeiro (2000:175-76) auxilia a melhor compreender vendo corrupção, tema presente na agenda política interna- esta situação paradoxal quando coloca que: “Talvez o me- cional e no Brasil a partir dos anos 80 e 90. lhor indício da situação claudicaste em que vive a República A autora afirma que a corrupção deve ser considerada moderna, do ponto de vista da ética, apresente-se numa mu- crime e está associada à violência, com uma característi- dança quase despercebida, que afetou a palavra corrupção. ca central: o exercício de influência concebido como “uma Para os antigos, ela definia a degradação da coisa pública relação de forças entre as partes envolvidas a se equili- por meio da usura dos costumes. Hoje, ela se reduziu a coisa brar” (Shilling, 1999:48). Nesse sentido, a corrupção en- tão limitada como o mau trato do dinheiro público. Eviden- volve também a coerção das relações de poder. temente, há uma ligação entre um sentido e outro. Para que Um outro autor que estuda a corrupção na política bra- funcionários ou magistrados exijam – ou aceitem – suborno, sileira é Marcos Otávio Bezerra, em seu livro Corrupção é preciso estarem desgastados os costumes; e é isso o que – um estudo sobre poder público e relações pessoais no reduz a força do regime político que mais exige o respeito Brasil, com o objetivo de analisar as “relações sociais que ao bem público: a democracia”.

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Um outro enfoque da corrupção pode ser encontrado cende o tempo e o espaço da sua ocorrência. O escândalo em Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, (1995) no tex- pode se espalhar rapidamente e de maneira incontrolável, to A economia política da corrupção: o escândalo do sendo difícil reverter o processo, tanto que uma das con- orçamento. O autor trabalha com as dimensões etimológica seqüências imediatas do escândalo político é o prejuízo e normativa. No sentido etimológico, a palavra corrupção que traz à reputação dos indivíduos envolvidos, portanto denota decomposição, putrefação, depravação, desmora- esse é um risco que sempre está presente quando um es- lização, sedução e suborno. Já do ponto de vista normati- cândalo irrompe. Thompson considera que a reputação vo, o autor afirma que a corrupção envolve sempre um possui um ‘symbolic power’, pois é um recurso que os ato ilegal e que precisa de no mínimo dois agentes – um indivíduos podem acumular, cultivar e proteger. corrupto e um corruptor. Segundo Silva (1995:8), a cor- Os indivíduos envolvidos em escândalos podem se de- rupção no senso comum seria identificada: “como um fe- fender de várias maneiras das acusações: entrar com uma nômeno associado ao poder, aos políticos e às elites eco- ação na justiça e resolver os problemas numa corte legal; nômicas. Mas igualmente considera a corrupção algo rejeitar as acusações, negar as transgressões ou negar que freqüente entre servidores públicos (como policiais e fis- estejam envolvidos. Outra estratégia utilizada é a confissão cais, por exemplo) que usam o ‘pequeno poder’ que pos- pública, visando angariar simpatias dos outros com esse ato. suem para extorquir renda daqueles que teoricamente cor- Corrupção pode se transformar em um escândalo. Quais romperam a lei”. as condições adicionais para que atividades corruptas se constituam em escândalos? A corrupção precisa ser des- ESTUDO DE ESCÂNDALOS POLÍTICOS coberta para se tornar escandalosa, pois se as atividades de corrupção permanecerem escondidas dos outros esta- Freqüentemente escândalos e corrupção são confundi- rão protegidas de uma futura investigação pública. dos, porém são fenômenos distintos e a relação entre os Corrupção envolve infração, violação de regras, con- dois é variável. Sherman, citado por Marco Otávio Be- venções ou leis, que somente serão denunciadas se os zerra (1995:196), comenta que o escândalo envolve “es- outros (não-participantes) considerarem tais violações tágios de desenvolvimento: revelação, publicação, defe- suficientemente sérias e importantes para serem revela- sa, dramatização, execução (julgamento) e rotulação”. das e expressarem uma vigorosa desaprovação daqueles Em sua obra, John B. Thompson (2000:13) tem como atos. Portanto, a articulação pública do discurso denun- objetivo compreender o desenvolvimento dos escândalos ciatório é a condição final para que uma corrupção se trans- políticos em diferentes culturas e países. Para tanto, o autor forme em um escândalo. realiza uma análise sistemática do fenômeno do escânda- O escândalo não é um fenômeno novo, pois casos es- lo político, como produto da sociedade moderna, como candalosos, de vários tipos, existiram em muitos perío- também se preocupa em compreender as implicações que dos da nossa história, mas com o desenvolvimento das este fenômeno traz para a natureza e a qualidade da vida sociedades modernas a natureza, a escala e as conseqüên- pública. Para Thompson, “‘scandal’ referes to actions or cias dos escândalos sofrem alterações. Agora emergem os events envolving certain kinds of transgressions which “escândalos midiáticos”, que na avaliação de Thompson become known to others, and sufficienthy serious to elicit se caracterizam não só pelo fato de serem tratados pela a public response”. mídia, mas por envolverem outra dimensão espacial-tem- A emergência de um escândalo depende do conheci- poral e de extensão. Não são mais fenômenos localiza- mento de outros, envolvendo um grau de conhecimento dos, pois podem adquirir também uma dimensão nacional público sobre as ações e acontecimentos e a transforma- e até global, exatamente pela expansão e desenvolvimen- ção desse conhecimento em ‘making public’ e ‘making to das comunicações. visible’, através dos quais estas ações se tornam conheci- Associados a esse desenvolvimento, Thompson destaca das dos outros. Nesse sentido, é crucial o papel da comu- a profissionalização dos jornalistas e o surgimento do jorna- nicação midiática na divulgação e publicização de vários lismo investigativo. Agora, alguns jornalistas se consideram escândalos. “guardiões do interesse público” e atuam no sentido de reve- Uma das características da comunicação midiática é a lar os segredos dos poderes. Também não se pode deixar de possibilidade de divulgar e de circular informações refe- considerar que existe um interesse comercial na divulgação rentes a um determinado escândalo numa esfera que trans- dos escândalos, já que esse fenômeno ‘vende’.

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Todos os cidadãos, em princípio, são iguais perante a escândalo do político é que a arena de discussão é outra, lei, mas nem todos possuem visibilidade, porque não ocu- implica lideranças políticas que estão envolvidas com o pam posições públicas importantes numa determinada poder político num ‘campo político’ (definição utilizada sociedade. Existem indivíduos que são mais vulneráveis por Pierre Bourdieu). Os escândalos podem aparecer em que outros, porque seu comportamento público, e também diferentes regimes políticos, desde os autoritários até aque- privado, está mais sujeito à exposição e ao controle e, por- les em que predomina a democracia liberal. Porém, o re- tanto, mais sujeito a cobranças. gime que favorece a maior ocorrência dos escândalos Um outro aspecto a ser considerado é que o surgimen- políticos é a democracia liberal, porque possui algumas to do escândalo midiático está relacionado com transfor- características que o diferenciam dos outros: mações sociais do mundo moderno, redefinindo as rela- - a política é um campo de forças em competição, orga- ções entre a vida pública e a vida privada, uma vez que nizado e/ou mobilizado em torno de idéias, partidos e gru- agora novas formas de visibilidade e publicização se fa- pos de interesse; zem presentes, provocando novas relações entre escânda- - a reputação dos políticos é importante porque prevale- lo e mídia e entre ações e interações sociais. ce uma institucionalização do processo eleitoral e, para Autoridades públicas, a partir desse momento, adqui- se ascender ao poder e obter sucesso eleitoral, um dos rem um tipo de publicização que prescinde da presença elementos-chave é gozar de boa reputação; física. Os governantes fazem uso da comunicação não - a relativa autonomia da imprensa; somente como veículo para divulgação de decretos ofi- ciais, mas também como meio de produzir a sua própria - as condições do poder político que favorecem a desco- imagem. Portanto, a visibilidade presente nos dias atuais berta de transgressões por rivais e opositores, visto que é benéfica para que as lideranças políticas sejam conheci- prevalece o princípio da lei. das, mas também deve ser avaliada com desconfiança, pois Ocorrem, portanto, escândalos políticos que envolvem agora a mídia torna visíveis todas as atividades que esta- questões sexuais, questões financeiras/corrupção e escân- vam “escondidas” do público em geral e cria um campo dalos de poder, mostrando o mau uso ou abuso do poder. complexo entre imagens e informações, fazendo que a vi- sibilidade midiática se torne difícil de ser controlada e ESCÂNDALOS POLÍTICOS QUE ECLODIRAM possa se transformar numa armadilha para as lideranças. NO GOVERNO DE FHC O desenvolvimento temporal do escândalo midiático também depende de outras instituições como justiça, ins- Será dentro desta ótica, deste enfoque, que serão estuda- tituições políticas e até policiais. Tal escândalo possui um dos dois casos exemplares de escândalos políticos divulga- começo e um fim, e se desenrola como um enredo de no- dos na última gestão do governo de Fernando Henrique Car- vela, envolvendo os espectadores e leitores que acompa- doso: a violação do painel do Senado e o caso Sudam nham todas as etapas da “história”. O término do escân- (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), dalo pode implicar uma confissão, resignação, um inquérito Banpará (Banco do Estado do Pará) e TDAs (Títulos da Dí- oficial e um julgamento. Também existe a possibilidade vida Agrária), envolvendo o senador Jader Barbalho. desse escândalo desaparecer gradualmente da mídia, uma Para analisar os escândalos políticos optou-se por uti- vez que já que não desperta interesse público. lizar as revistas semanais ISTOÉ, da Editora Três, e a Veja, Além dos indivíduos envolvidos diretamente no escân- da Editora Abril. As duas revistas veicularam esses es- dalo midiático, Thompson também ressalta que muitos e cândalos em várias edições e disputaram arduamente as diferentes agentes e instituições podem estar envolvidos manchetes de maior impacto, divulgando documentos e na criação e no desenvolvimento dos escândalos. Cita informações inéditas sobre os dois políticos envolvidos como exemplo a polícia e outros agentes da lei que fre- nos casos: ACM e Jader Barbalho. Enquanto a Veja qüentemente possuem um papel crucial, pois realizam in- centrava suas denúncias na figura de Jader Barbalho, a vestigações das atividades que se tornaram “foco” do es- ISTOÉ, centrava-as em ACM. cândalo e contribuem com novos elementos, reforçando a Como compreender o atual momento político brasileiro necessidade de se investigarem esses escândalos. no qual eclodem denúncias de escândalos envolvendo cor- Thompson pergunta: o que torna um escândalo um es- rupção, quebra de decoro parlamentar, e outras tantas? Vá- cândalo político? Um dos elementos que distingue o mero rias explicações podem ser dadas e dentre elas selecionamos

65 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 as falas recentes de três atores políticos: o presidente Fernando Pode-se afirmar que a sociedade brasileira começou a Henrique Cardoso, o ex-governador do Ceará, Ciro Gomes, mudar, não tolerando mais casos de corrupção e desmandos e o historiador José Murilo de Carvalho. por parte das autoridades públicas no período pós-rede- Numa entrevista dada ao jornal O Estado de S.Paulo mocratização e, principalmente, na gestão do presidente (18/07/01:A4) o presidente Fernando Henrique Cardoso Fernando Collor de Mello (PRN), eleito diretamente pe- afirma que: “O novo que vivemos é que talvez pela pri- los cidadãos brasileiros e derrubado através de um pro- meira vez na nossa história a sociedade está passando a cesso de impeachment, pelas mãos do Congresso Nacio- limpo, e o governo está deixando passar a limpo. Em vez nal e pelo povo brasileiro. As razões do processo que de pensar que aumentou a taxa de corrupção, o que há é culminou no impeachment são várias, conforme literatu- um reconhecimento (...) A sociedade está cobrando mais ra especializada, mas deve-se dizer que uma razão moti- (...) O que está acontecendo é que o que chama a atenção vou a ação: indícios fortíssimos de corrupção em seu go- é aquilo que aqui se chama de ‘escândalos’(...) a mídia no verno. Seu impeachment foi movido tendo por base a Brasil tem a capacidade de antecipar processos e, assim, improbidade administrativa. participa da criação de situações”. Também é desse período a Constituição Brasileira de Uma matéria veiculada pelo jornal Folha de S.Paulo 1988. Dentre as várias mudanças, uma se destaca: as alte- (20/07/01:A7) relata que Ciro Gomes está sendo proces- rações nas atribuições do Ministério Público, pois a par- sado pela Advocacia Geral da União, por ordem de tir desse momento ele ganha importância vital. “Confor- Fernando Henrique Cardoso, por ter dito que o presiden- me o capítulo IV, seção I do capítulo III ‘Do Poder te “levou a corrupção ao centro do poder no Brasil”, e o Judiciário’ da Constituição da República Federativa do ex-governador, ao ser questionado de ter feito esta denún- Brasil, promulgada em 1988, que rege sobre as funções e cia, diz, numa carta enviada à Executiva Nacional do atribuições do Ministério Público, este poder é indepen- PSDB, que reafirmará em juízo “sua doída convicção de dente, separado dos poderes Executivo e Judiciário. Cabe que a corrupção exorbitou no Brasil nos últimos anos por ao Ministério, dentre outras funções, ‘promover o inqué- omissão deste governo”. rito civil e a ação civil pública, para a proteção do patri- José Murilo de Carvalho por ocasião do lançamento de mônio público e social’ (Constituição, p.92). Agindo nesse seu livro, Cidadania no Brasil – o longo caminho, foi entre- sentido, os procuradores ganharam destaque e transfor- vistado pelo jornal O Estado de S.Paulo (15/07/01:D4), fa- maram-se, aos olhos da população, em paladinos da jus- zendo a seguinte avaliação: “Quanto à corrupção, não creio tiça e benfeitores dos cidadãos” (Chaia e Teixeira, 2000: que haja mais dela hoje do que antes. Violência e corrupção 34-35). são endêmicas no País há 500 anos, são o nosso feijão-com- A mídia também adquire importância nesse momento arroz social. A novidade é que está havendo mais denúncias pois, além de contar com maior liberdade para se expres- e investigações dos grandes ladrões – políticos, juízes, em- sar, o jornalismo assume uma postura de jornalismo presários –, em parte graças à melhoria na atuação do Minis- investigativo, sempre atento, denunciando, criando efeti- tério Público. É humilhante para o brasileiro, mas é um pas- vamente fatos, e atuando em muitos casos como colabo- so à frente para o cidadão”. rador do Ministério Público e da Polícia. Quais as verdades expressas por esses três atores polí- ticos? É a sociedade que mudou? A mídia que cria fatos? O GOVERNO FHC E O LEGISLATIVO O governo FHC que foi omisso tendo em vista manter a sua base governista? Ou a ação contra a corrupção foi Quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a presi- produto da atuação mais contundente do Ministério Pú- dência da República em 1994, através de uma aliança elei- blico? Todas essas ponderações devem ser levadas em toral entre o PSDB e o PFL, articuladores políticos de seu conta para tentar explicar os escândalos políticos que ire- governo se aproximaram do PMDB oferecendo ministé- mos analisar no Senado Federal, em dois momentos de rios e importantes postos no governo federal, visando ga- um mesmo processo: a violação do painel de votação do rantir maioria parlamentar no Congresso Nacional e via- Senado envolvendo os senadores Antonio Carlos Maga- bilizar a implementação das reformas estruturais que lhães (PFL) e José Roberto Arruda (PSDB) e o caso do estavam sendo propostas pelo novo governo. Banpará, Sudam e TDAs, comprometendo o senador Jader Com o sucesso do Plano Real e a alta popularidade de Barbalho (PMDB). FHC, não foi difícil para os tucanos ampliarem a base

66 DEMOCRACIA E ESCÂNDALOS POLÍTICOS governista com a adesão do PPB. Além de o presidente nais, algumas disputas em torno do controle de bens pú- Fernando Henrique Cardoso ter conseguido uma ampla maio- blicos e do comando de órgãos estratégicos no Legislati- ria no Legislativo, o que lhe garantiu a aprovação de medi- vo foram inevitáveis e colocaram a base governista em das importantes para o seu governo, ele também aglutinou risco. Na briga por fatias de poder, a base de sustentação algumas grandes agremiações partidárias em torno de seu do governo FHC entrou em processo de erosão e líderes nome, conseguindo se reeleger para mais um mandato (1999- políticos de alto calibre começaram a se atacar, revelan- 2002) à frente da presidência da República. do ao país alguns fatos até então circunscritos aos corre- Ao formar uma base de sustentação parlamentar ideo- dores da arena política. logicamente heterogênea, e com fortes contendas regio- Desse modo, o Senado passou a viver sua maior crise nais, o governo federal também foi o fiador de uma com- política em 176 anos de existência. Entre junho de 2000 e posição política na qual o PSDB, PFL e PMDB passaram maio de 2001, um senador foi cassado por suspeitas de a se revezar no comando do Senado e da Câmara dos De- desvios de dinheiro público e outros dois renunciaram aos putados desde o primeiro mandato de FHC. Os presiden- seus mandatos por quebra de decoro parlamentar. Além tes da Câmara Federal no período 1995-2002 foram: Luís disso, o atual presidente da casa foi constrangido por co- Eduardo Magalhães do PFL (1995-1996); Michel Temer legas a se licenciar do cargo em meio a uma série de de- do PMDB (1997-1998 e 1999-2000); e, atualmente, a casa núncias que também o envolve em desvios de dinheiro é comandada por Aécio Neves do PSDB, até o final de público. 2002. Neste trabalho, o ponto de partida será a hipótese de No Senado a presidência foi ocupada por grandes ex- que as disputas por recursos do Plano Plurianual (PPA), poentes da política nacional: José Sarney do PMDB (1995- também conhecido como Projeto Avança Brasil, e os de- 1996); Antonio Carlos Magalhães do PFL (1997-1998 e sacordos dos partidos governistas em relação à sucessão 1999-2000); e Jader Barbalho do PMDB, que assumiu o das mesas diretoras nas duas casas legislativas, precipita- comando em fevereiro de 2001, ficando no cargo até ou- ram a eclosão da crise no Senado e trouxeram a público tubro de 2001. uma série de informações até então restritas aos bastido- A busca de harmonia nas relações entre os poderes res da política e que passaram a ter a dimensão de um es- Executivo e Legislativo no Brasil guarda certa semelhan- cândalo político. ça em todos os níveis de governo. A formação dos minis- A seguir, será discutido o enredo desse escândalo, dan- térios e secretariados e a distribuição do controle de cargos do destaque aos fatores que o provocaram, bem como aos estratégicos na máquina pública refletem-se automatica- componentes políticos advindos de todo o processo que mente na constituição das bases de sustentação governis- envolveu a renúncia de dois senadores e as suspeitas de ta no parlamento. corrupção que recaem sobre o atual presidente da casa. No âmbito federal, os estudos desenvolvidos por José Eisenberg (1998) e Otávio Amorin Neto (1998) demons- OS PERSONAGENS E O ENREDO DA tram que os governos que conseguiram maior estabilida- CRISE NO SENADO de nas relações com o parlamento foram aqueles que mon- taram seus ministérios a partir da formação de coalisões Antonio Carlos Magalhães (ACM), Jader Barbalho e com os partidos numericamente representativos no Poder José Roberto Arruda foram os principais personagens da Legislativo. A lógica adotada foi a de distribuir os cargos crise política que tomou conta do Senado Federal. Sena- ministeriais de acordo com o tamanho proporcional das dores experientes, com longas passagens pelo Executivo, bancadas de partidos aliados. e que possuem um traço comum: foram articuladores po- Verifica-se, com isso, que o presidente FHC tem con- líticos do governo FHC em momentos decisivos para os seguido, ao longo desses sete anos de governo, manter o interesses de sua gestão. comando do Congresso Nacional entre os seus partidá- Diferentemente do que se pensa, os problemas no Se- rios, o que também significa que o Executivo vem in- nado não tiveram origem na disputa pelo comando da fluenciando na elaboração da agenda de trabalhos do Le- mesa diretora da casa durante o ano 2000. Os conflitos gislativo. entre Jader e ACM se iniciaram em 1999, quando dis- Porém, como os recursos existentes nem sempre são putavam o controle da relatoria do Plano Plurianual suficientes para contentar os diferentes interesses regio- (PPA) para o quadriênio 2000-2003, um conjunto de

67 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 políticas sociais do governo que foi batizado de Pro- nadores naquela votação, mas ninguém questionava sua con- grama Avança Brasil.1 duta oficialmente. Por que isso? Estava caracterizada a sus- Com um volume de recursos em torno de R$1,1 trilhão, peita de quebra de decoro parlamentar envolvendo o sena- a disputa pela relatoria do PPA provocou uma verdadeira dor Antonio Carlos Magalhães, por que não investigá-lo? guerra entre os dois parlamentares com a anuência do As respostas para essas questões talvez estejam asso- governo federal. De acordo com a revista ISTOÉ, “irrita- ciadas à conjuntura política daquele momento, ainda ex- do com os pitos públicos que tem recebido de ACM, tremamente favorável ao senador baiano. Além de presi- Fernando Henrique simplesmente estimulou Jader a me- dente do Senado, ele era tido como um dos homens mais dir forças com ‘Toninho Malvadeza’”. fortes da política nacional por comandar o PFL, um dos No decorrer dessa disputa, ambos já haviam protago- principais pilares de sustentação parlamentar do governo nizado uma série de trocas de acusações no melhor estilo federal. ACM usava de chantagens contra colegas e os “lavagem de roupa suja em público”. Jader acusou ACM desqualificava, sempre transgredindo o Código de Ética de ser sócio do ex-banqueiro Ângelo Calmon de Sá, anti- e Decoro Parlamentar da casa e sem nunca sofrer qual- go proprietário do falido Banco Econômico, numa empresa quer tipo de sanção por seus atos. situada no paraíso fiscal das Ilhas Cayman. As ilações feitas A imprensa que poderia trazer a público essas ques- por ACM ao seu adversário também não eram novas; o tões estava mais interessada no emaranhado político en- senador baiano denunciou que Barbalho havia provocado volvendo a eleição das mesas do Senado e da Câmara um desfalque no Banpará, no período em que governou Federal, em que Jader e o próprio senador Antonio Carlos aquele Estado (ISTOÉ, 29/09/99, no 1.565). já se agrediam mutuamente pelo controle da sucessão. Derrotado por Barbalho, ACM iniciou um processo de A violação do painel do Senado ainda não havia isolamento político que fez aumentar ainda mais seu dis- ganhado o status de escândalo político porque o enredo tanciamento do Palácio do Planalto, apesar de continuar de sua história ainda não era de domínio público. Numa mantendo o controle de dois importantes ministérios: o casa legislativa onde sua principal autoridade mandava os das Minas e Energia, comandado por Rodolpho Tourinho, colegas “calarem a boca”, essas questões não tinham a e o da Previdência Social, que tinha à frente o atual sena- dimensão de uma transgressão. A posição de ACM era dor Waldeck Ornelas. O governo federal, por sua vez, dava tão confortável a ponto de ele usar estrategicamente a su- sinais de maior aproximação com o PMDB em detrimen- posta lista para constranger os senadores que de alguma to do PFL. forma o contrariassem. Paralelamente a essa conturbada disputa entre os dois grandes personagens da política brasileira, seguiam as A SUCESSÃO NO CONGRESSO NACIONAL investigações sobre o escândalo da construção da sede do TRT de São Paulo, que envolvia o senador Luiz Este- A crise no Senado Federal acabou ganhando dimensão vão do PMDB-DF com denúncias de participação num pública com a disputa pela sucessão da mesa diretora, esquema de superfaturamento da obra do TRT (Tribunal protagonizada por Antonio Carlos Magalhães e Jader Regional do Trabalho) paulista e de desvio de recursos. Barbalho. Após quatro anos à frente do comando da casa, Estevão, que havia sido sub-relator do PPA, estava sendo ACM rejeitava a idéia de passar a presidência para o par- investigado pelo próprio Senado. lamentar peemedebista, principalmente após ter sido der- Em junho de 2000, após um ano e dois meses de pro- rotado politicamente por Jader durante a escolha da cesso, Luiz Estevão passou para a história política do país relatoria do PPA. não só como o primeiro senador cassado, mas também pelo Nessa briga ACM não estava sozinho, o PFL também fato de que o episódio da violação do painel com os vo- havia sido preterido pelo governo federal na sucessão da tos dos senadores ocorreu na sessão em que se votou a Câmara dos Deputados. Um acordo entre o PSDB e o perda do seu mandato. O posicionamento de cada sena- PMDB acabou garantindo a presidência do Senado para dor, que deveria ter ficado em segredo, começava a ser os peemedebistas e a presidência da Câmara dos Deputa- veiculado nos bastidores do poder pela voz da principal dos para os tucanos. Por isso, ACM começou a mover todos autoridade da Casa: o senador Antonio Carlos Magalhães. os esforços na busca de um nome alternativo ao de Jader No Senado, todos sabiam que ACM havia conseguido, e também no sentido de desqualificar moralmente o sena- de forma ilegal, obter a lista com o posicionamento dos se- dor paraense a fim de tornar sua candidatura inviável.

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A briga entre os dois estava se transformando num es- que se formou em torno do político paraense. Restou ao petáculo para a imprensa. Durante uma sessão do Sena- PFL lançar candidatos para marcar posição, pois sua der- do, ambos acabaram levando suas divergências para a tri- rota era tida como inevitável. Para a Câmara dos Deputa- buna e protagonizando um dos piores momentos da casa. dos foi lançado o nome de Inocêncio de Oliveira do PFL ACM se referiu a Jader Barbalho como “Corrupto, ladrão, e para o senado, Arlindo Porto do PTB. bajulador, truculento, mentiroso e indigno”. O senador A derrota do PFL se concretizou. Na Câmara, a vitória peemedebista não deixou por menos e enfrentou o presi- foi de Aécio Neves do PSDB que se elegeu com 55% dos dente da casa chamando-o de “Corrupto, ladrão, truculento, 512 votos, ficando o pefelista Inocêncio de Oliveira com farsante e mentiroso”. Essa troca de farpas fez com que a 23%. No Senado, Jader Barbalho obteve 51% dos 81 vo- imprensa nacional passasse a dar ampla cobertura ao pro- tos apurados e venceu o candidato apoiado pelo PFL que cesso sucessório no Senado. ficou com 35%. Os principais telejornais noturnos levaram ao ar as ima- Quem imaginava que as brigas entre ACM e Jader iriam gens com a troca de insultos. As emissoras de rádio, como parar por aí, se enganou. Desgostoso com mais essa der- a CBN e a Rádio Eldorado, trouxeram em suas programa- rota, o senador Antonio Carlos Magalhães passou a ata- ções jornalísticas os discursos de ambos no momento em car o governo FHC e numa jogada política arriscada trou- que se agrediram verbalmente. Os grandes jornais de cir- xe de volta a público, mesmo que involuntariamente, o culação nacional deram destaque para o conflito, reprodu- caso da violação do painel do Senado. zindo nas matérias os trechos em que trocaram acusações. Foi desse modo que a crise do Senado começou a ga- Apesar de haver punição prevista para a troca de insul- nhar o status de escândalo político, conquistando espaço tos dessa natureza, nenhum dos dois senadores foi, efeti- na mídia e chamando a atenção da população justamente vamente, alvo de qualquer processo interno.2 Esse era ape- pelo fato de os senadores estarem protagonizando cenas nas o início de capítulos mais apimentados envolvendo a que não combinavam com a função pública para a qual sucessão, e a partir daí surgiu uma verdadeira guerra de foram eleitos. dossiês que culminou no lançamento de livros em que cada um procurava desqualificar moralmente o seu adversário. O PAINEL DO SENADO E AS Seguindo a trajetória de revelar as supostas mazelas RENÚNCIAS DE ACM E ARRUDA da vida pessoal dos principais personagens do Senado, a revista Veja (25/10/2000, no 1.672) partiu para o ataque Em 19 de fevereiro de 2001, o então senador Antonio contra o senador paraense. Em sua reportagem de capa, Carlos Magalhães conversou reservadamente com os pro- que trouxe a fotografia de um Jader Barbalho sisudo, acom- curadores da República Luiz Francisco de Souza, Guilher- panhado da manchete “O senador de 30 milhões de reais”, me Schelb e Eliana Torelly. Tinha como objetivo fazer destacou também que “nos últimos 34 anos, Jader Barbalho uma série de denúncias contra o governo FHC e Jader só não ocupou cargos públicos durante 11 meses. Mas, Barbalho, requentar velhos assuntos como o caso Eduar- apesar da labuta na política, conseguiu erguer uma fortu- do Jorge, os desvios de recursos no Ministério dos Trans- na surpreendente”. portes e as suspeitas de corrupção sobre o seu principal A revista demonstrou que o patrimônio do senador desafeto político. peemedebista saltou de R$ 61.200,00 (corrigidos em va- O procurador Luiz Francisco de Souza gravou “secre- lores atuais) em 1974, para cerca de R$ 30.000.000,00 no tamente” a conversa com ACM e logo em seguida reve- ano 2000. Obviamente, o peemedebista atribuiu ao sena- lou seu conteúdo para a revista semanal ISTOÉ. Na sua dor Antonio Carlos Magalhães a autoria do conteúdo que edição 1.639 (22/02/2001), a revista trouxe a público o estava sendo veiculado na citada reportagem. conteúdo da conversa, dando início ao calvário político Apesar do impacto negativo sobre a sua imagem na do senador baiano, outrora todo poderoso da República. opinião pública, Jader Barbalho continuou favorito na A publicização dos “segredos” revelados por Antonio corrida para a presidência do Senado. A repercussão da Carlos Magalhães fez com que o mundo se voltasse con- reportagem não trouxe qualquer estrago para a aliança de tra ele próprio. seu partido com o PSDB. Apesar de ter revelado muitas questões que já havia O tempo corria contra o senador baiano e não havia dito em outros locais públicos, como os corredores do mais possibilidades de inviabilizar a articulação política Senado, a diferença foi que desta vez havia uma fita gra-

69 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 vada. Nela, o próprio ACM afirmava ter conhecimento da sibilidade do painel ter sido violado. Paralelamente, An- existência de uma lista com os votos dos senadores na tonio Carlos Magalhães adotou como estratégia negar todo sessão que cassou o senador Luiz Estevão em junho de o noticiário veiculado pela imprensa e colocar em dúvida 2000 e revelava a suposta posição da senadora Heloísa a veracidade das fitas. Por outro lado, a própria revista Helena do PT contra a cassação de Estevão. ISTOÉ se encarregou de contratar um perito para avaliar O procurador que revelou a conversa para a imprensa a possibilidade de as gravações não serem verdadeiras. passou a ser tratado com reservas pelos seus próprios co- A situação do senador baiano se complicou ainda mais, legas que chegaram a ameaçá-lo de não mais trabalhar com em 3 de março de 2001. A revista ISTOÉ, em sua edição ele. A própria imprensa nacional começou a tratar Luiz no 1.640, publicou a transcrição de vários trechos da con- Francisco com descaso, colocando em dúvida a sua capa- versa de ACM com os procuradores da República e di- cidade para o exercício da profissão. Alguns políticos o vulgou o laudo elaborado pelo perito Ricardo Molina con- tripudiaram chegando a propor o seu afastamento do car- firmando a autenticidade das fitas. go. Sem entrar no mérito da atitude de Luiz Francisco, foi Todo o material coletado pela revista, mais o fato de inegável sua contribuição para o redirecionamento dos os peritos contratados pelo Senado também terem confir- rumos políticos do país ao revelar publicamente a condu- mado a possibilidade de violação do painel de votação, ta de um dos homens mais poderosos da era FHC. acabou se constituindo em provas contra a versão dada A ação do procurador Luiz Francisco trouxe à tona uma por Antonio Carlos Magalhães. A abertura de uma Co- questão muito cara para a vida contemporânea: os basti- missão de Ética tornou-se inevitável, pois a mentira foi dores da política possuem uma dinâmica própria e rara- considerada uma falta grave e isso reforçou ainda mais a mente os cidadãos são informados do que está sendo “tra- necessidade de verificar a possível quebra de decoro par- mado” pelos políticos, ou, em muitas ocasiões, não lamentar. conseguem acompanhar nem mesmo as atividades rotinei- Instalada em 13 de março, os primeiros depoentes na ras com dimensão mais pública.3 Comissão de Ética foram os jornalistas da ISTOÉ, Andrei O Ministério Público ganha visibilidade e mais auto- Meireles, Mino Pedrosa e Mário Simas Filho, que confir- nomia a partir de 1988, conforme apontado anteriormen- maram o teor das fitas. Na mesma sessão foram tomados te. Rogério Bastos Arantes, em sua pesquisa sobre o Mi- os depoimentos dos procuradores Guilherme Schelb e nistério Público e política no Brasil (Arantes, 2000:55), Eliana Torelly, que não responderam às perguntas elabo- afirma que “(...) a garantia de independência no exercício radas pelos senadores. de suas funções tem permitido que promotores e procura- A partir daí, uma série de contradições marcou os de- dores de justiça atuem com extrema desenvoltura e auto- poimentos de funcionários do senado e do Senador Anto- nomia – particularmente nos conflitos de dimensão social nio Carlos Magalhães. A ex-diretora de informática do e política – contra as pressões externas, e até mesmo in- Senado, Regina Borges, em seu primeiro depoimento ne- ternas, advindas dos estratos superiores da instituição”. gou que houvesse violado o painel e também rejeitou a Existe, portanto, um problema de desconexão entre a ati- hipótese de que algum senador tivesse lhe pedido que rea- vidade política e toda a sociedade. É exatamente nesse vazio lizasse tal serviço. que a imprensa e o Ministério Público vêm ocupando o es- Constrangida pelo fato de outros funcionários do se- paço por trazerem para a população aquilo que é restrito, nado não terem confirmado a sua versão, Regina Borges que é segredo e que é negociado nos bastidores da política. voltou atrás em relação ao depoimento anterior e revelou A revelação dos fatos pela revista ISTOÉ trouxe con- que havia copiado a lista de votação a pedido do senador seqüências imediatas: estava caracterizada a possibilida- José Roberto Arruda do PSDB, então líder do governo, e de de quebra de decoro parlamentar por parte do ex-pre- que ele havia feito a solicitação em nome do presidente sidente do Senado.4 Além disso, o presidente Fernando da casa, o senador Antonio Carlos. Sua declaração caiu Henrique Cardoso demitiu os dois ministros indicados por como uma bomba em Brasília e a partir daquele momento ACM e em seguida também afastou todas as pessoas de ACM não seria mais o único réu. sua confiança que ainda ocupavam cargos em algum ór- O caso passou a ganhar a conotação de um evento de gão do governo federal. grande interesse público para a imprensa. Duas emissoras Presidido por Jader Barbalho, o Senado contratou um de canal fechado transmitiram os depoimentos dos sena- grupo de peritos vinculados à Unicamp para avaliar a pos- dores e da ex-diretora de informática ao vivo: a Globonews

70 DEMOCRACIA E ESCÂNDALOS POLÍTICOS e a TV Senado. As principais redes de televisão também a compaixão da opinião pública e a partir disso evitar sua abriram espaços na sua programação para o escândalo: a cassação. O próprio presidente Fernando Henrique Car- TV Cultura e a Rede entraram ao vivo no doso chegou a qualificar o discurso de seu ex-líder no momento dos principais depoimentos e as redes Globo, Senado como “corajoso”, mas diante da repercussão ne- Record, RedeTV e SBT passaram flashes do Senado em gativa acabou não comentando mais tal caso. vários momentos de suas programações. As emissoras de Alguns dias depois, foi a vez de ACM mudar a sua rádio também reproduziam os depoimentos diretamente versão anterior e confessar ter recebido a lista do senador do local em que se reunia a Comissão de Ética. José Roberto Arruda, verificado voto por voto e depois O fato de a imprensa ter dado holofotes ao caso rom- disso afirmou que a destruiu. Para tentar amenizar sua peu com o hiato entre a população e os fatos que estavam culpa disse não ter solicitado a relação com os votos dos acontecendo no Senado. Foi essa cobertura mais explíci- senadores “nem direta nem indiretamente”. Apesar disso, ta que impediu a possibilidade de se “costurar” qualquer ACM não conseguiu explicar porque mentiu para os cole- acordo político para salvar os dois senadores. As investi- gas quando usou a tribuna do Senado para negar a exis- gações em curso ganharam visibilidade e todas as decla- tência da lista, e também não foi convincente ao justificar rações sobre o caso eram calculadas para que não hou- não ter tomado providências para investigar a violação do vesse prejuízo na opinião pública. painel por “razões de Estado”. ACM, em seu depoimen- Desse modo, todos os envolvidos com o escândalo to, afirmou temer que a descoberta da violação do painel estavam dialogando não apenas com os seus colegas no pudesse tornar nula a sessão que cassou Luiz Estevão. Senado, mas também com um vasto contingente popula- Esse desmentido foi intensamente veiculado pelos cional que passou a acompanhar as sessões da Comissão meios de comunicação, e muitos deles compararam os de Ética como se fosse um filme, de cuja história já se depoimentos dados pelos senadores em diferentes momen- sabia o começo e o desenrolar, restando apenas descobrir tos para mostrar os pontos de contradição existentes em qual seria o seu final. cada um. Para a população a sensação que ficava era a de No plenário do Senado, no dia de 17 de abril, Antonio sucessivas mentiras, a cassação dos senadores era inevi- Carlos Magalhães afirmou aos colegas que: “não recebi tável e não haveria articulação política que fosse suficiente lista nenhuma nem me foi entregue por ninguém lista al- para barrá-la. guma” (Veja, 02/05/2001, no 1.698). Na seção de Cartas da revista Veja, os leitores pude- Também indignado com o envolvimento de seu nome ram se manifestar: “Os senadores Antonio Carlos Maga- por Regina Borges, José Roberto Arruda subiu à tribuna lhães, José Roberto Arruda e Jader Barbalho pensam que do Senado em 18 de abril para afirmar que: “Nunca vi os eleitores brasileiros são cidadãos de quinta categoria, nenhuma lista. Nunca a pedi nem a recebi. Nunca fui in- eles fazem o que querem e o povo não entende nem acei- formado sobre ela. O senador Antonio Carlos Magalhães ta. Quero dizer para esses senhores que temos memória, nunca fez nenhuma consideração a esse respeito comigo”. sim, que não queremos mais a corrupção que assola o país. Ao perceberem que o depoimento da ex-diretora de in- Eles que não venham se mostrar como mocinhos in- formática havia ganhado confiança da opinião pública, justiçados. Perto deles o juiz Lalau é mocinho de reca- senadores resolveram mudar suas versões sobre os fatos, dos” (Otavio Oliveira, Belém, PA – 02/05/01, no 1.698). numa tentativa desesperada de conquistar a opinião pú- Assim, a Comissão de Ética, presidida pelo senador blica com o reconhecimento do erro que cometeram. Ramez Tebet, do PMDB de Mato Grasso do Sul, concluiu O primeiro a assumir publicamente que mentiu foi o se- pela cassação dos dois senadores. Com o relatório elabo- nador José Roberto Arruda. Emocionalmente abalado, o já rado por Saturnino Braga, do PSB, aprovado por 13 vo- ex-líder do governo e também ex-tucano subiu à tribuna do tos a dois em 23/05/01, não restou outra alternativa aos Senado para confessar ter encontrado a ex-diretora do setor envolvidos senão renunciar ao mandato, caso contrário de informática, de quem recebeu a lista de votação, e tê-la teriam seus direitos políticos suspensos por oito anos. entregue a Antonio Carlos Magalhães. Encerrou o seu dis- Assim, Arruda renunciou em 24 de maio e no dia 30 de curso afirmando que “é inútil resistir à verdade” (Folha de maio de 2001 foi a vez de Antonio Carlos Magalhães. S.Paulo, 24/04/2001, Caderno Brasil). A revista ISTOÉ, em sua edição no 1.652, comemorou Ao pedir desculpas aos colegas e à população pela afirmando que a “derrocada de ACM começou com a re- mentira, José Roberto Arruda estava tentando conquistar portagem de ISTOÉ que revelou as conversas do senador

71 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 com procuradores da República”. Isso nos remete à se- & Campos rechaçar as acusações de enriquecimento ilíci- guinte dúvida: por que a questão da violação do painel to. Mas a própria revista se encarregou de desmentir a não veio à tona logo após a cassação de Luiz Estevão, já versão do senador ao verificar as contradições existentes que ACM falava pelos quatro cantos do Senado que co- nas informações que foram analisadas pela auditoria com nhecia a tal lista? Talvez a revista tenha razão em arvorar as da declaração de patrimônio feita pelo próprio senador para si todo o mérito desse processo, pois foi ela quem no TRE (Tribunal Regional Eleitoral) paraense. Configu- conseguiu provas por meio “da voz do delator” e legiti- rava-se, assim, uma primeira contradição em relação ao mada pelo Ministério Público, uma instituição que vem discurso proferido por ele na tribuna do Senado na tenta- ganhando credibilidade pública justamente por estar agin- tiva de se defender das acusações da revista Veja. do contra as mazelas do mundo político. Com relação à acusação de desvios de recursos da Sudam, Jader negava-os e também qualquer tipo de liga- O CASO JADER BARBALHO ção com os superintendentes que haviam sido demitidos por corrupção. Recaía sobre o senador a suspeita da co- Todas as denúncias contra Jader Barbalho acabaram brança de um “pedágio” de 20% para que os projetos en- sumindo da agenda política da imprensa no período em viados à Sudam fossem aprovados. que os casos dos senadores Antonio Carlos Magalhães e As investigações acabaram levando a um grande José Roberto ganharam maior visibilidade. Porém, isso fraudador da Sudam, o empresário José Osmar Borges, não significou que as suspeitas de desvios de dinheiro que havia se beneficiado de seis projetos aprovados no público envolvendo o político paraense houvessem caído órgão e estava sendo acusado de desviar R$133 milhões no esquecimento. Novamente, a revista Veja agiu como da instituição. Um documento levantado pela revista Veja um veículo de jornalismo investigativo, retomando o as- (18/04/2001, no 1.696) na Junta Comercial do Pará colo- sunto. cou Jader Barbalho como sócio do possível fraudador. Convém relembrar que foi a mesma revista que trouxe, Mais uma vez, as versões do senador eram desmentidas em outubro de 2000, uma longa reportagem sobre a evo- pelo veículo de comunicação, corroborando ainda mais lução do patrimônio de Barbalho, além de relembrar di- um pedido de quebra de decoro parlamentar por mentir versos episódios que o envolveram com suspeitas de cor- em público. rupção. Como o político paraense estava disputando a Corre ainda contra o senador paraense outras duas de- presidência do Senado, essas questões acabaram sendo núncias: a venda fraudulenta de TDAs no período em que vistas como parte da estratégia de ACM em desgastá-lo. ele era ministro; e de ter participado de um esquema que Com isso, nem os tucanos, que mantiveram o apoio à can- provocou um rombo de R$ 10 milhões no Banpará. didatura Jader Barbalho, e muito menos a opinião públi- Quanto aos TDAs, eles se referiam à desapropriação ca, informada sobre as tramas que envolvem os bastido- de uma fazenda no Estado do Pará que só existia no pa- res da política, levaram a sério o que se falava sobre ele. pel. Apesar de negar sua participação na operação frau- Por isso, o próprio Jader, além de desmentir publica- dulenta, o senador teve sua versão contestada por outras mente a reportagem da Veja na tribuna do Senado, vincu- pessoas que participaram do “negócio”. lou-a a uma iniciativa de Antonio Carlos Magalhães. Essa Com relação ao caso Banpará, a mesma revista Veja estratégia deu certo enquanto ele disputava a presidência (02/05/2001, no 1.698) trouxe documentos mostrando a exis- do Senado e lhe trouxe mais alívio com a deflagração da tência de recursos que foram desviados para as contas cor- crise do painel eletrônico. rentes de Jader Barbalho e de seus familiares. Ao tentar se Porém, sua situação começou a se agravar no momen- defender, o senador alegou que o relatório do Banco Central to em que as fontes oficiais que investigavam os desvios não o incriminou. No mesmo dia, Gustavo Loyola, ex-presi- de recursos no Banpará e na Sudam concluíram pelo en- dente do Banco, afirmou que o nome de Jader só não consta- volvimento do senador. Mesmo assim ele insistia em des- va da folha de rosto do relatório, pois nas páginas seguintes mentir qualquer envolvimento do seu nome com os cita- o senador era citado pelo menos 17 vezes. dos casos. O caso Jader acabou tendo um desfecho semelhante aos Sobre a incompatibilidade de seu patrimônio com a sua de ACM e Arruda no que se refere ao seu encaminhamen- renda, denunciada pela Veja (02/05/2001, no 1.698), Jader to no Senado. O procurador-geral da República já solici- tentou por meio de uma auditoria da empresa Boucinhas tou a quebra do sigilo bancário do senador, retroativa aos

72 DEMOCRACIA E ESCÂNDALOS POLÍTICOS anos 80, para investigar a venda irregular de TDAs. Se o blico, os próprios senadores não o consideravam uma fal- pedido for aceito pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ta grave. o órgão também deverá solicitar a abertura de processo Também é importante lembrar, foi na tentativa de ACM judicial (Veja, 01/08/2001, no 1.711). revelar alguns “segredos” comprometedores da reputação Foi essa série de desmentidos das versões dadas por de personalidades públicas, por ter se sentido preterido Jader Barbalho que se transformou no principal motivo pelo governo federal na distribuição de recursos públicos para a convocação de uma Comissão de Ética para ava- e no controle do comando do Senado, que essas questões liar a existência, ou não, da quebra de Decoro Parlamen- ganharam toda a repercussão. Aqui ganha força a tese de tar por parte do político paraense. que os conflitos podem levar à revelação de “segredos Com isso, se iniciou um rápido processo de debilita- públicos” e torná-los visíveis aos olhos de todos. Não fosse ção política de Jader. Em menos de seis meses, Barbalho essa contenda malresolvida entre ACM, Jader e o gover- viu sua condição de presidente do Senado ser substituída no federal, talvez a população não soubesse de tudo o que pela de senador-licenciado, e logo em seguida, com o en- hoje tem sido revelado publicamente. cerramento dos trabalhos da Comissão de Ética que con- Destaca-se também, que em ambos os casos estudados, clui pela existência da quebra de Decoro Parlamentar, se a imprensa e o Ministério Público tiveram um papel fun- viu forçado a renunciar para preservar seus direitos polí- damental na mobilização da opinião pública. Coube aos ticos e tentar um retorno à vida pública disputando as elei- meios de comunicação e ao Ministério Público ocupar um ções de 2002 como candidato ao governo do Pará ou até espaço vazio entre a arena política e a sociedade. Com a mesmo concorrendo a uma vaga no Senado. repercussão dos fatos trazidos a público, tanto a imprensa como o Ministério Público acabaram se transformando, CONSIDERAÇÕES FINAIS aos olhos da população, em entidades fiscalizadoras dos interesses da sociedade. A crise política no Senado teve com um de seus focos Como os cidadãos pouco sabem sobre o que realmente de origem as disputas entre Jader Barbalho e Antonio ocorre nos centros decisórios do poder e cada vez mais Carlos Magalhães pelo controle dos recursos do progra- desconfiam das boas intenções da classe política, a im- ma Avança Brasil. Se, por um lado, o governo federal prensa e o Ministério Público acabaram se tornando refe- conseguiu formar uma sólida maioria parlamentar ao rências positivas justamente por andarem em tensão com aglutinar em torno de si forças políticas tão heterogêneas, o mundo político e revelarem não só as mazelas de sena- por meio do oferecimento do controle de cargos públi- dores, como também as tramas que muitas vezes percor- cos, por outro, o próprio Executivo se tornou refém dessa rem as entranhas do poder. estratégia ao ver seus aliados praticamente paralisarem as O aparecimento de “escândalos midiáticos” é resulta- atividades do Legislativo em função dos conflitos por in- do de um jornalismo investigativo e possui pontos positi- teresses específicos por eles protagonizados. Fica claro vos e negativos. Por um lado, a divulgação desses escân- que a estratégia de se construir uma maioria parlamentar dalos provoca um aumento da fiscalização das atividades governista por intermédio da troca de cargos na máquina políticas, forçando que sejam criados instrumentos para pública, ao mesmo tempo que pode trazer segurança na seu controle, e por outro, a cobertura desses escândalos tramitação dos projetos do Executivo, pode também sig- pode levar a uma generalização dos “maus exemplos” de nificar o início do seu calvário. Os órgãos controlados políticos, provocando descrença nas instituições, consi- pelos parlamentares, se não sofrerem controle social, po- deradas como inoperantes e custosas. derão estar sujeitos a uso indevido ou até mesmo de se- Essa descrença pode ser apreendida na última pes- rem alvos da ação de corruptos. quisa feita pelo Ibope, quando foram entrevistadas 5.300 No caso da violação do painel do Senado, ficou evi- pessoas em nove capitais e interior de São Paulo. Ao dente que sua visibilidade pela imprensa deu a ele o status serem perguntados se os políticos se preocupam com o de escândalo político. Enquanto o assunto esteve confi- bem-estar da população, o eleitorado de algumas capi- nado aos corredores do Senado, parecia ser mais uma tais demonstrou que acredita muito pouco no político das “compreensíveis” atitudes de um presidente da casa brasileiro: Brasília 2,98%; Porto Alegre, 3,21%; Reci- que já estava habituado a dirigi-la como se fosse um ór- fe, 4,53%; Rio de Janeiro, 5,42%; São Paulo, 5,48%; gão de sua propriedade. Até que o caso chegasse a pú- Curitiba, 6,06; Belo Horizonte, 6,39%; Fortaleza,

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6,79%; Salvador, 7,33%; São Paulo (interior), 8,87% NOTAS (Veja, 25/07/01, no 1.710). E-mail dos autores: [email protected] e [email protected] Portanto, existe uma complementaridade dos campos 1. O Plano Plurianual é o principal instrumento de planejamento de político e midiático. A alimentação dos escândalos políti- médio prazo das ações do governo brasileiro. Sua aprovação precisa cos também se deve à concorrência política. No caso es- passar pelo Congresso. pecífico deste estudo, pode-se afirmar que a guerra de 2. No inciso II do capítulo V do código de Ética e Decoro Parlamentar do Senado, está prevista a aplicação de censura escrita para quem pra- dossiês obedeceu a um objetivo político de isolar ACM ticar ofensas físicas ou morais a qualquer pessoa, no edifício do Sena- do poder. O caso Jader Barbalho é rescaldo desse proces- do, ou desacatar, por atos ou palavras, outro parlamentar, a Mesa ou Comissão, ou os respectivos presidentes. so e sua retirada de cena também é necessária. 3. O procurador Luiz Francisco de Souza está sendo processado pelo O caso Jader Barbalho vincula-se a um dos principais Ministério Público Federal por ter divulgado a gravação com ACM. problemas decorrentes da construção de uma maioria par- Segundo a denúncia, houve a quebra de sigilo da atividade investigativa (Folha de S.Paulo, 03/08/2001). lamentar por meio da troca de postos na máquina pública. 4. No inciso III do artigo 6o das medidas disciplinares do Código de Essa estratégia de formação da base governista fragiliza Ética e Decoro Parlamentar do Senado, é considerada falta grave pas- o controle do Legislativo sobre a administração pública, sível de punição: revelar conteúdo de debates ou deliberações que o Senado ou Comissão haja resolvido que devam ficar secretos. pois o parlamentar que deveria atuar como um fiscal do bom uso dos recursos públicos acaba se tornando parte integrante do Poder Executivo. Se o governo dessa forma consegue aprovar seus pro- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS jetos no Legislativo, ele deixa, no entanto, os bens públi- AMORIN NETO, O. “Os partidos e o Ministério da Produção: um erro cos sob o controle de políticos que na maioria das vezes de cálculo presidencial”. Boletim de Análise Conjuntura Políti- agem orientados por seus interesses pessoais e eleitorais. ca. Belo Horizonte, Departamento de Ciência Política da UFMG, n.2, dez. 1998. Com isso, as fronteiras entre os interesses público e pri- ARANTES, R.B. Ministério público e política no Brasil. Tese de vado não ficam bem-definidas. Doutorado. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências O ex-senador Antonio Carlos Magalhães, que como Humanas da USP, 2000. BANCO MUNDIAL. “O Estado num mundo em transformação”. Re- autoridade política com poder era ouvido constantemente latório sobre o Desenvolvimento Mundial. Washington, 1997. pela mídia e considerado fonte privilegiada, recolheu-se BEZERRA, M.O. Corrupção – um estudo sobre poder público e rela- estrategicamente na Bahia (“a Bahia está comigo”), desa- ções pessoais no Brasil. Rio de Janeiro, Relume-Dumará e Anpocs, pareceu dos noticiários e somente foi relembrado por oca- 1995. CATANHÊDE, E. O PFL. São Paulo, Publifolha, 2001. sião do episódio Jader Barbalho, aparecendo para reafir- CHAIA, V. “Escândalos políticos: parte do jogo?” In: CHAIA, V. e mar suas denúncias contra este político. CHAIA, M. (orgs.). Mídia e política. São Paulo, Educ/Neamp, Os escândalos políticos ganham destaque na democra- 2000, p.13-7. cia exatamente por ser um regime político em que os con- CHAIA, V. e TEIXEIRA, M.A. “Máfia dos fiscais e as estrelas da ci- dadania”. In: CHAIA, V. e CHAIA, M. (orgs.). Op.cit., 2000. flitos e atritos políticos se tornam mais presentes e visí- EISENBERG, J. “Quem manda? O presidente, os partidos e a forma- veis. A concorrência política e a busca de cargos também ção do gabinete presidencial”. Boletim de Análise Conjuntura acelera as contendas políticas. No caso dos escândalos es- Política. Belo Horizonte, Departamento de Ciência Política da UFMG, n.2, dez. 1998. tudados, os confrontos ficaram claros e a necessidade de FONSECA, F.C.P. e SANCHEZ, O.A. Guia: mecanismos de combate se derrotar o inimigo são explicitadas a todo o momento. à corrupção e de apoio à cidadania no Estado de São Paulo. São As denúncias que envolveram Jader Barbalho já eram Paulo, Cedec, 2000. públicas e a lista com os votos dos senadores por parte de FUNDAÇÃO KONRAD-ADENAUER. “Os custos da corrupção”. Cadernos Adenauer. São Paulo, n.10, 2000. ACM já era conhecida. Mesmo assim, os senadores con- RETTER, J.D. Anatomy of a scandal – an investigation into the tinuaram atuando politicamente como se não estivessem campaign to undermine the Clinton presidency. Los Angeles, envolvidos nesses escândalos políticos, porque acredita- General Publishing Group, 1998. RIBEIRO, R.J. A sociedade contra o social – o alto custo da vida vam na impunidade tão presente na vida pública brasilei- pública no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2000. ra e se resguardavam por trás da imunidade parlamentar. ROSE-ACKERMAN, S. Corruption and government – causes, A reputação desses três senadores está comprometida se- consequences and reform. USA, Cambridge University Press, riamente, pois as transgressões foram descobertas e divul- 1999. SCHILLING, F. “O estado do mal-estar: corrupção e violência”. São gadas publicamente pela mídia. Resta perguntar qual será o Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.13, n.3, jul.- futuro político desses personagens da nossa história. set. 1999, p.47-55.

74 DEMOCRACIA E ESCÂNDALOS POLÍTICOS

SILVA, M.F.G. da. A economia política da corrupção: o escândalo THOMPSON, J.B. Ideologia e cultura moderna – teoria social críti- do orçamento. São Paulo, Núcleo de Pesquisa e Publicação (NPP) ca na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, Edito- da FGV-SP, 1995. ra Vozes, 1995. SPECK, B.W. “Mensurando a corrupção: uma revisão de dados pro- venientes de pesquisas empíricas”. In: FUNDAÇÃO KONRAD- ______. A mídia e a modernidade – uma teoria social da mídia. ADENAUER. Op. cit., 2000, p.9-45. Petrópolis, Editora Vozes, 1998. TEIXEIRA, C.C. A honra da política. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, ______. Political scandal: power and visibility in the media age. 1998. EUA/GB, Blackwell Publishers, 2000.

75 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 PODER MILITAR entre o autoritarismo e a democracia

JORGE ZAVERUCHA Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPE, Pesquisador do CNPq

Resumo: A transição do autoritarismo para a democracia no Brasil deve procurar minimizar o poder militar. O que se observa, contudo, é que os militares vão ocupando novos espaços na segurança pública. O artigo procu- ra mostrar de que modo isso vem ocorrendo ao longo dos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso. Palavras-chave: democracia; militares; segurança pública.

Querem o quê? Acham que a democracia resistirá até onde? definição, o comandante-em-chefe das Forças Armadas.3 Até onde querem levar o povo a descrer das instituições? Refiro-me à militarização da política, mormente na segu- A luz amarela está se acendendo. Se a eleição ocorrer neste clima, quem vai segurar o país? rança pública, durante os dois mandatos de governo de Quem segura o mercado? FHC. Obviamente, o fenômeno não está circunscrito ao presidente, pois contempla, inclusive, políticos dos mais Presidente Fernando Henrique Cardoso. O Globo, 23/05/01 diferentes matizes ideológicos.4 Aqui, no entanto, nos concentraremos nas decisões tomadas por FHC e nos cons- a Europa Oriental comunista, o controle sobre trangimentos que isso acarreta ao processo de consolida- os militares era civil mas não democrático, uma ção da democracia brasileira. N vez que os militares estavam submetidos ao con- trole do Partido Comunista. O desafio das transições do OS FATOS autoritarismo para a democracia, portanto, foi despoliti- zar os militares (Barany, 1997). Na América Latina, com No último dia de março de 1997, o Jornal Nacional da exceção do México,1 não havia controle civil nem demo- TV Globo mostrou imagens que chocaram o Brasil. Ne- crático sobre os militares. Desse modo, as transições lati- las, aparece um grupo de soldados da PMSP fazendo uma no-americanas procuram desmilitarizar a política, tentan- operação de bloqueio na Favela Naval, em Diadema. Os do levar os militares a se concentrar em sua atividade PMs deram socos, pontapés, usaram o cassetete em pro- profissional extroversa, ou seja, defesa das fronteiras do fusão e danificaram veículos dos que tiveram o azar de Estado. Entenda-se por militarização o processo de ado- ser parados. Para completar, fizeram uma vítima: Mário ção e uso de modelos militares, conceitos, doutrinas, pro- José Josino. Ele já havia sido liberado da revista, mas um cedimentos e pessoal em atividades de natureza civil, den- PM, provavelmente para assustar ainda mais os passagei- tre elas a segurança pública (Cerqueira, 1998). ros do veículo liberado, resolveu atirar assim que o veí- Neste artigo, vamos analisar uma faceta do comporta- culo partia. O tiro foi certeiro e tudo foi filmado. mento do presidente Fernando Henrique Cardoso que, na Logo a seguir, um cinegrafista amador entregou à mes- maioria das vezes, não levou em consideração sua base ma emissora uma fita gravada, ironicamente, na Cidade parlamentar para tomar decisões.2 Suas iniciativas são de Deus, Rio de Janeiro. Nela, doze pessoas, inclusive primordialmente de inspiração do Executivo que é, por mulheres, foram postas num paredão com as mãos para o

76 PODER MILITAR: ENTRE O AUTORITARISMO E A DEMOCRACIA alto e as pernas afastadas, em típica posição de revista. Lamarca e exames dos ossos do mesmo, peritos compro- Como em Diadema, sem qualquer justificativa, os PMs varam que Lamarca foi baleado de cima para baixo (posi- espancaram suas vítimas por quase uma hora. Os policiais ção de quem está rendido), além de ter levado três tiros torturavam com uma naturalidade de espantar: riam, con- pelas costas. De posse desse currículo, Cerqueira foi con- versavam e se vangloriavam da violência. vidado e trocou as hostes malufistas pelo PSDB, partido FHC indicou o então secretário nacional de Direitos do presidente da República. Humanos, José Gregori, para presidir o Grupo de Traba- Ao escolher essa composição de nomes, o governo fe- lho sobre Reestruturação das Polícias, composto por no- deral deu mais poderes ao Exército do que às próprias mes importantes da sociedade civil. Dentre as justificati- polícias para decidirem sobre o futuro... das polícias. A vas para a criação do grupo de trabalho, a Portaria no 369, nomeação de Íris Rezende para o Ministério da Justiça e de 13 de maio de 1997, mencionou “que o atual modelo a eclosão das greves das polícias militares a partir de ju- institucional de segurança pública foi estruturado, em sua nho de 1997 ofuscaram o trabalho da comissão. Íris ter- maior parte, num período anterior à promulgação da Cons- minou propondo uma emenda constitucional que contem- tituição Federal de 1988, marco inicial do estado demo- plou muito pouco do sugerido pela referida comissão. crático de direito”.5 Conseqüentemente, faz-se necessá- FHC extinguiu a Secretaria de Planejamento de Ações rio adaptar o sistema de segurança pública à nova Carta, Nacionais de Segurança Pública e, em seu lugar, criou a que se diz democrática. Secretaria Nacional de Segurança Pública (SNSP), diri- A composição dos integrantes do grupo, contudo, difi- gida pelo general Gilberto Serra,8 com poderes amplia- cultou no nascedouro a disposição da portaria de rever o dos. O Decreto no 2.315, de 4 de setembro de 1997, man- atual modelo institucional de segurança pública. Dentre teve a tarefa da Secretaria de assistir o ministro da Justiça aqueles com experiência concreta no comando de ques- nos assuntos referentes à segurança, entorpecentes e trân- tões policiais, havia um representante da Polícia Civil, um sito e adicionou-lhe a tarefa de assessorar o ministro de da Polícia Federal, um advogado ex-secretário de Segu- Estado em temas relacionados a órgãos de segurança pú- rança Pública do Rio Grande do Sul e um coronel da re- blica da União, exceto o Departamento de Polícia Fede- serva da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Em compensa- ral, bem como órgãos de segurança pública do Distrito ção, havia um oficial da ativa do Exército da Inspetoria Federal. Afora isso, cabe à SNSP, dentre outros deveres, Geral da Polícia Militar (IGPM) e mais quatro oficiais, apoiar a modernização do aparelho policial do país; am- entre coronéis e generais, da reserva do Exército, que ocu- pliar o sistema nacional de informações de justiça e segu- pam ou ocuparam cargos governamentais na área de se- rança pública; efetivar o intercâmbio de experiências téc- gurança pública. Dos secretários de Segurança Pública em nicas e operacionais entre os serviços policiais federais e atividade no país, o único escolhido foi o general Nilton estaduais e estimular a capacitação dos profissionais da Cerqueira. área de segurança pública. O Departamento de Assuntos Essa foi mais uma promoção política concedida ao de Segurança Pública, dirigido pelo general da reserva general Cerqueira, dessa vez pelo governo federal. A PM Dyonélio Morosini, foi mantido. Os dois mais importan- do Rio de Janeiro sob Cerqueira matou com uma intensi- tes órgãos de assessoramento federal na área de seguran- dade jamais vista no período pós-regime autoritário. En- ça pública, portanto, encontravam-se nas mãos de milita- tre janeiro e maio de 1995, a média de mortes da PM era res federais. de 3,2 pessoas por mês. Após o general assumir a Secre- O ministro da Justiça Renan Calheiros tentou conter a taria de Segurança Pública, de junho de 1995 a fevereiro ingerência do general Alberto Cardoso, então Chefe da de 1996, o número de mortes passou para 20,55 por mês.6 Casa Militar da Presidência da República, na seara da Esses números chegaram a alarmar uma comissão espe- Polícia Federal no âmbito do combate ao tráfico de dro- cial de investigação da Organização dos Estados Ameri- gas. O general patrocinou a nomeação do delegado João canos. Essa comissão também verificou que o número de Batista Campelo para diretor da Polícia Federal. Campelo mortos é três vezes maior que o número de feridos em era ligado aos serviços de informação e às atividades de combate com a PM.7 Afora isso, Cerqueira sustentou uma repressão durante o regime militar (Freitas, 1999). Antes versão mentirosa sobre a morte de Lamarca. Ele teria de tomar posse, por três dias Campelo foi acusado de tor- morrido numa troca de tiros com o então major Nilton tura pelo ex-padre José Antônio Monteiro, pendurado num Cerqueira. Com a descoberta do laudo necrológico de pau-de-arara por ordem do delegado em 1970.

77 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001

Pressionado, FHC demitiu Campelo, mas não o general doso. A volta foi triunfal pois a SNSP ganhou status de Cardoso. Através de um bilhete redigido de próprio pu- Ministério do Interior. Ela foi reestruturada para coman- nho, o general Cardoso enviou um fax ao governador de dar o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) a partir Roraima, Neudo Campos, com o seguinte teor: “Prezado de junho de 2000, com um orçamento de mais de R$ 1 governador, cumprimento-o pela decisão de convidar no- bilhão. vamente o delegado Campelo para o cargo de secretário A Ação 121 do PNSP estipula que será estabelecido de Segurança. Respeitosamente, Alberto Cardoso”.9 Um “no Conselho de Governo um Comitê de Acompanhamento ministro de Estado elogiando um torturador. Torturar é e Integração de Programas Sociais, no âmbito da Câmara proibido em Brasília, mas em Roraima é digno de encômios. de Relações Exteriores e Defesa Nacional, a fim de inte- Calheiros caiu e o novo ministro da Justiça, José Carlos grar as políticas sociais do Governo Federal e desenvol- Dias, tratou de desmilitarizar a SNSP. Substituiu o gene- ver estratégias para incrementá-las, por intermédio de ral Serra pelo delegado da Polícia Civil Oswaldo Vieira, ações conjuntas”. O presidente do mencionado comitê é que chefiava o gabinete da Secretaria de Administração outro militar. Trata-se do Secretário de Acompanhamen- Penitenciária do governo Mário Covas. O general Serra to e Estudos Institucionais do Gabinete de Segurança Ins- não ficou ao relento e foi convidado pelo general Alberto titucional da Presidência da República (antiga Casa Mili- Cardoso para ser o subsecretário da Secretaria Nacional tar), o comandante-de-mar-e-guerrra José Alberto Cunha Antidrogas (Senad). O secretário era o próprio general Couto. Desde 1985, nunca um general acumulou tantos Cardoso. poderes como os de Alberto Cardoso. Dias não ficou apenas nessa decisão. Entrou em atrito A ascendência militar pode ser sentida em outro episó- com o general Cardoso por almejar diminuir a influência dio, o da Operação Mandacaru realizada no Estado de castrense no âmbito da Polícia Federal (PF). A disputa se Pernambuco, numa área conhecida como “Polígono da dava novamente em torno da tentativa da Senad de milita- Maconha”.11 Iniciada no final de novembro de 1999 e rizar a Polícia Federal, ganhando primazia no combate ao comandada pelo general Gilberto Serra, a operação cus- narcotráfico.10 A liça chegou a ponto de o ministro Dias tou a bagatela de R$ 7,5 milhões, pois helicópteros voa- denunciar que uma operação sigilosa da PF na fronteira ram de Taubaté (São Paulo) e aeronaves da Aeronáutica com a Bolívia teria vazado à imprensa, pondo em risco a chegaram de Santa Maria (Rio Grande do Sul). Um ano vida dos policiais. Dias suspeitou que isso fora obra do antes, o Ministério da Justiça rejeitara um projeto da Su- subordinado do general Cardoso, Walter Maierovitch. perintendência da Polícia Federal para combater o tráfico O ministro Dias também tentou reformular o Código no valor de R$ 695 mil (Francisco, 1999). Estranhamente, Penal Militar (CPM) e o Código de Processo Penal Mili- embora o sigilo seja uma variável fundamental nesse tipo tar (CPPM) editados, em 1969, pela Junta Militar que de operação, a presença de tropas federais foi anunciada governava o país. Pela primeira vez desde o tempo do com antecedência, permitindo que os narcotraficantes mais Império, esses códigos seriam discutidos publicamente e poderosos tivessem tempo para fugir. submetidos à votação no Congresso Nacional. O ministro Uma verdadeira operação de guerra. Apesar de toda a nomeou uma comissão revisora mas, ante pressões do parafernália, o tráfico continuou a imperar na região; tan- Superior Tribunal Militar, resolveu adiar os trabalhos para to que o general Serra voltou lá no dia 20 de março de depois de uma viagem oficial de três semanas que faria 2001 para acompanhar de perto as investigações sobre as ao exterior (Leali, 2000). Foi nesse intervalo que termi- ligações telefônicas feitas da Secretaria de Saúde da cida- nou saindo do governo. de de Salgueiro (PE). De lá partiram ligações para cidades Com a saída de Dias, o assunto foi devidamente enga- situadas na rota do tráfico internacional de cocaína.12 vetado pelo novo ministro da Justiça, José Gregori. Des- Chefiada pelo general Cardoso, a Casa Militar ganhou se modo, o Brasil continua com uma das mais amplas ju- tantas atribuições que foi preciso, pela primeira vez na risdições militares sobre civis em tempos de paz, similar história republicana, a indicação de um general-de-briga- à de Franco na Espanha e à de Marcos nas Filipinas da para ajudar o general-de-divisão Cardoso. Afinal, além (Zaverucha, 1999). Com Gregori, a Secretaria Nacional de fazer a segurança presidencial, o general Cardoso che- de Segurança Pública (SNSP) voltou às mãos de um mili- fia o Senad e a Subsecretaria de Inteligência, embrião da tar. Dessa vez da Aeronáutica: coronel da reserva Pedro futura Agência Brasileira de Inteligência (Abin), é o se- Alberto da Silva Alvarenga, indicado pelo general Car- cretário-executivo do Conselho de Defesa Nacional (CDN)

78 PODER MILITAR: ENTRE O AUTORITARISMO E A DEMOCRACIA e da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional, Geraldo Brindeiro, determinou o arquivamento do pedi- além de ter acompanhado, em nome do governo, a greve do para que se investigasse a possibilidade de que o grampo das polícias militares estaduais, em 1997, tarefa de com- telefônico no BNDES fosse do conhecimento ou tivesse petência do Ministério da Justiça. sido orientado pelo general Alberto Cardoso (Grillo, Com a criação do Ministério da Defesa, o general Car- 2000).15 doso perdeu seu status de ministro de Estado. Por pouco Em julho de 1999, ocorreu uma greve de caminhonei- tempo, o tempo suficiente de chegar à mídia detalhes so- ros em protesto contra os preços dos pedágios e os custos bre o “escândalo do grampo” envolvendo o presidente do dos fretes. O governo foi pego de surpresa pela magnitu- BNDES, o ministro das Comunicações e o presidente da de do movimento que ameaçava o abastecimento de gran- República, durante o período que antecedeu a privatiza- des cidades do Sudeste. FHC ameaçou convocar o Exér- ção da . cito para desobstruir as estradas, sem antes esgotar o uso Embora fosse de competência policial, ao que tudo in- de forças policiais, como pressupõe a Lei Complementar dica, o dossiê das fitas ficou nas mãos do general Alberto no 69. O governador Mário Covas, por sua vez, opôs-se Cardoso por mais de um mês.13 Tudo em absoluto sigilo, ao envio de tropas federais e usou a tropa de choque da até que a imprensa começou a publicar trechos das grava- PM paulista. ções e dos documentos. A oposição pressionou pela aber- Como o governo foi pego de surpresa pela greve de tura de Comissão Parlamentar de Inquérito com o intuito caminhoneiros, a Casa Militar ganhou mais uma atribui- de garantir a independência da investigação. Só então, 11 ção. O Decreto Presidencial no 3.131, de 9 de agosto de de novembro de 1998, é que o governo decidiu transferir 1999, estipulou: a investigação para a Polícia Federal e o Ministério Pú- I) que o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento para blico, em substituição ao comportamento policialesco do Segurança das Comunicações (Cepesc) passasse a inte- general Cardoso. grar a Subsecretaria de Inteligência da Casa Militar; Ante o desgaste do general Cardoso e o silêncio de FHC, II) que as atribuições relativas aos estudos estratégi- o Exército resolveu manifestar-se oficialmente. Ou seja, cos do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Presi- deixar claro que o general Cardoso era muito mais um re- dência da República fossem transferidas para a Casa Mi- presentante do Exército no governo do que o contrário. litar da Presidência da República. Com isso, a Casa Militar, Através do boletim oficial Informex, o Exército “reitera oficialmente passou a ter também como tarefa gerenciar sua plena confiança na conduta ilibada do general Cardo- as crises que envolvem assuntos de segurança pública. so e repele, com veemência, as insinuações dirigidas con- Logo em seguida, a Casa Militar seria extinta dando tra a pessoa desse honrado chefe militar”. Lembra, tam- lugar ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Pre- bém, que além de chefe militar o general Cardoso ocupa sidência da República.16 Os titulares das quatro pastas da um cargo de confiança do presidente. O que ele faz, por- Casa Militar permaneceram no cargo: o subchefe militar, tanto, é de conhecimento de seu superior (Nogueira, 1999). general Jorge Alves, o secretário nacional Antidrogas, Uma semana depois, FHC tratou de devolver ao Chefe Walter Maierovitch, o secretário de Acompanhamento e da Casa Militar o status de ministro de Estado.14 Foi uma Estudos Institucionais, comandante-de-mar-e-guerra José manobra política para evitar que o general Cardoso parti- Alberto da Cunha Couto, e o secretário de Inteligência, cipasse de uma acareação com o coronel João Guilherme coronel Ariel Rocha de Cunto. Três militares em quatro dos Santos, chefe da Abin no Rio de Janeiro, que contra- posições, mesmo sendo o ministério de investidura civil. disse a versão do general sobre o grampo. Como o Exér- Para isso, o general Cardoso passou a ser considerado agre- cito não toleraria que um delegado da Polícia Federal fi- gado. Ou seja, continuava na carreira militar mas requisi- zesse uma acareação, ainda mais entre um coronel e um tado pela Presidência pelo máximo de dois anos. Caso general, a solução foi reintroduzir o mencionado general queira continuar no cargo, o general Cardoso terá que ir no ministério presidencial. para a reserva. Por ser ministro de Estado, o general Cardoso tem foro A preponderância de militares e o nome de Gabinete privilegiado. Isso significa que a decisão sobre qualquer de Segurança Institucional são uma confissão acerca do investigação a seu respeito só pode ser tomada pela Pro- grau de insegurança das instituições brasileiras.17 De fato, curadoria Geral da República, não cabendo recurso. No o artigo 6o, dentre outros, diz caber ao GSI “prevenir a dia 10 de abril de 2000, o procurador-geral da República, ocorrência e articular o gerenciamento de crises, em caso

79 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 de grave e iminente ameaça à estabilidade institucional”. aeronaves militares, além do transporte da comitiva pre- O GSI ganhou ainda o poder de “coordenar as atividades sidencial. Já o Exército comandou a segurança da comiti- de inteligência federal”. va que acompanhava FHC. As forças policiais entraram A lei que aprovou a criação da Agência Brasileira de como apêndice do aparato castrense.21 Inteligência (Abin) determinou que ela ficaria diretamen- Fustigado por hostis manifestações populares, FHC res- te subordinada ao presidente da República. Logo a seguir, pondeu com o Decreto no 3.448, de 5 de maio de 2000. FHC, via Medida Provisória no 1.994-4, de 13 de janeiro Através dele, criou o Subsistema de Inteligência de Segu- de 2000, fez com que a Abin ficasse diretamente subordi- rança Pública, no âmbito do Sistema Brasileiro de Inteli- nada ao Gabinete de Segurança Institucional. Uma MP, gência, com a finalidade de coordenar e integrar as ativi- portanto, mudou uma lei para dar mais poderes ao gene- dades de inteligência e segurança pública em todo o País, ral Alberto Cardoso. bem como de suprir os governos federal, estadual e muni- Além disso, há uma ausência de definição sobre os li- cipal de informações que subsidiem a tomada de decisões mites de atuação e capacidade de operação da Abin.18 O nesse campo. general Cardoso disse que em nenhuma circunstância o Embora seja um subsistema de segurança pública, fa- serviço de inteligência poderia ter uma função policial fa- zem parte do mesmo, além dos Ministérios da Justiça e zendo investigações “ainda que tacitamente, informalmen- Integração Nacional, nada menos que o Ministério da De- te” (Antunes, 2000:179). No entanto, o general Cardoso fesa, o Gabinete de Segurança Institucional e, como ór- patrocina uma lei que permite aos agentes da Abin anda- gão central, a Abin. Poderão integrar o subsistema os ór- rem armados. gãos de inteligência de Segurança Pública dos Estados, E mais. Afora o “escândalo do grampo do BNDES”, Distrito Federal e Municípios. quando houve denúncias de que o ex-ministro da Defesa, Foi instituído o Conselho Especial do Subsistema de Elcio Álvares, teria envolvimento com o crime organiza- Inteligência de Segurança Pública vinculado ao Gabinete do, quem passou a investigar as denúncias foi a Abin e, de Segurança Institucional e, também, presidido pelo di- posteriormente, a Polícia Federal.19 Algum tempo depois retor-geral da Abin. No momento de sua criação, dos onze surgiriam denúncias de que a Abin investigara a vida de membros permanentes desse Conselho, pelo menos sete um ex-presidente da República, de um procurador do Mi- são militares. Embora seja uma arena de Segurança Pú- nistério Público, de jornalistas e até mesmo do filho de blica, o Ministério da Defesa é o que possui o maior nú- FHC. 20 Mais recentemente, o procurador-geral de Justiça mero de assentos no referido Conselho: cinco. Sendo pelo do Mato Grosso pediu à Abin o relatório que acusa um menos um de cada órgão de inteligência das Forças Ar- bicheiro de ter ligações com o crime organizado (Ribeiro madas. O Ministério da Justiça, por sua vez, tem apenas Jr. e Pinto, 2001). dois representantes. Além de o Brasil ser a única democracia a ter um ge- Todas as informações cedidas pelas Secretarias de Se- neral da ativa no comando da principal agência de inteli- gurança Pública Estadual, portanto, cairão no colo dos gência civil, temos um retrocesso de 30 anos. O SNI teve militares federais. Mormente, numa época de enfrentamen- o mérito de separar competências: quem informava não to de movimentos sociais. É a velha ótica do inimigo in- era quem decidia. Hoje, as duas competências estão em- terno em pleno vigor. FHC pode ter criado um novo “mons- baralhadas, pois ambas as instâncias estão a cargo do tro”. Toda a área federal de inteligência civil e militar, Gabinete de Segurança Institucional, ou seja, do general mais os serviços reservados das Polícias Militares (P-2) Alberto Cardoso. estão integrados em comando único. Esse arranjo institu- FHC apressou a criação do Gabinete de Segurança Ins- cional favorece que grupos autônomos venham a produ- titucional após a greve dos caminhoneiros. Usou idêntico zir informações, se já não o fazem, independentemente da comportamento após os incidentes em Porto Seguro, du- vontade do Presidente da República, Ministro, Governa- rante as comemorações dos 500 anos do Brasil. A coor- dor de Estado ou Prefeitos. denação geral da segurança coube ao comandante da 6a Em novembro de 2000, o Movimento dos Sem-Terra Região Militar na Bahia. A Marinha ficou responsável pelo (MST) voltou a protestar defronte da fazenda Córrego da apoio e pela inspeção de embarcações que participaram Ponte localizada no município de Buritis (Minas Gerais), das comemorações. À Aeronáutica coube o controle do e de propriedade dos filhos do Presidente da República. tráfego aéreo, a segurança dos aeroportos e a guarda das A última tentativa de invasão fora realizada em novem-

80 PODER MILITAR: ENTRE O AUTORITARISMO E A DEMOCRACIA bro de 1999, quando 400 militantes do MST chegaram a tanto, tal qual a da família Cardoso, deveria ser conside- montar acampamento na entrada da fazenda e saquearam rada símbolo de poder (Rossi, 2001). O que houve, pois, um caminhão carregado que deixava a propriedade. De- em Buritis foi o uso do Exército como guarda pretoriana pois disso, FHC passou a escritura da fazenda para seus do Presidente da República. filhos. No dia 23 de setembro de 1997, FHC sancionou a Lei Desconheço a existência de democracia que atribua às no 9.503, que instituiu o novo Código de Trânsito Brasi- Forças Armadas, mais especificamente ao Batalhão da leiro. Antes do advento do regime militar de 1964, o poli- Guarda da Presidência (1.500 homens) e ao Regimento ciamento de trânsito era feito pela Polícia Civil. Instaura- de Cavalaria da Guarda (1.300 homens), a função de fa- do o regime de exceção, essas atividades foram transferidas zer a segurança pessoal do presidente e vice-presidente para a Polícia Militar. O novo Código, em vez de procu- da República, e respectivos familiares. Para tomar conta rar restabelecer o status quo ante, manteve a decisão to- da fazenda da família Cardoso, o Exército torna disponí- mada pelo regime autoritário. Estabeleceu que as Polícias veis 2.000 homens, tanques blindados, carros de combate Militares dos estados e do Distrito Federal passassem a e helicópteros de transporte. Esse contingente está em aler- fazer parte do Sistema Nacional de Trânsito (Art. 7o, VI). ta permanente (Júnior, 1996). Ressalte-se que até o gene- Afora isso, determinou que um representante do então ral Pinochet entregou sua proteção, bem como a do Palá- Ministério do Exército fosse um dos membros do Conse- cio La Moneda, a uma força policial: os Carabineros. O lho Nacional de Trânsito (Contran), órgão máximo nor- general Hugo Banzer, eleito presidente da Bolívia em mativo, consultivo e coordenador do SNT. Tal como no 1997, por sua vez, afastou a polícia e colocou uma força Código Nacional de Trânsito de 1966, com a diferença de castrense para fazer a segurança presidencial. que o representante castrense teve sua posição fortaleci- Alegando ser a fazenda um símbolo nacional, o gene- da. Antes ele era um dos 21 membros do Contran; depois ral Alberto Cardoso, e não o ministro da Defesa, enviou passou a ser um dos sete (Art. 10). E mais. FHC nomeou 250 militares federais para proteger a fazenda dos paren- diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal, o general Ál- tes do Presidente. Como símbolos nacionais são bandei- varo Moraes. Um outro general, Zamir Méis, ligado ao ra, moeda e hino, e a fazenda nem pertencia mais ao pre- general Alberto Cardoso, tornou-se superintendente da sidente, a explicação foi de que o objetivo era preservar a Agência Nacional de Petróleo (Sandrini, 2001). Sua mis- autoridade de um dos poderes da República. Curiosamente, são: “combater” a adulteração de gasolina. antes desse imbróglio, Antonio Carlos Magalhães havia Várias outras situações poderiam ser citadas, mas gos- proposto que o Exército fosse usado nas atividades de taria de finalizar com um exemplo recente que retrata como segurança pública. FHC não aceitou a sugestão alegando o militarismo é um fenômeno amplo, regularizado e so- que o Exército era treinado para matar. Mas para defen- cialmente aceito. FHC foi convidado para a festa de 50 der a propriedade de sua família... Do mesmo modo, o anos do jornal carioca O Dia. Diante de sua baixa popu- Exército se nega a combater o narcotráfico, sob a alega- laridade, o Presidente, como condição para assegurar sua ção de que seu papel não é o de polícia; no entanto, aceita presença, exigiu que os festejos fossem feitos em uma de- ser usado como polícia contra o MST. pendência militar. O lugar escolhido foi o salão da Escola Caso esse raciocínio vingue, vamos supor que o próxi- Naval.22 Fato sem precedente desde a época em que Ernesto mo presidente da República tenha um irmão que seja dono Geisel era Presidente da República (Freitas, 2001). do Shopping Iguatemi (São Paulo), e o MST ameace in- Vimos na epígrafe que, segundo FHC, a luz amarela vadir esse centro de compras. Deverá então o Exército ser do fim da democracia está se acendendo.23 A fragilidade convocado, sem que o governador de São Paulo seja con- da democracia brasileira também foi motivo de conside- sultado ou que a PMSP seja acionada primeiro? rações do ministro da Saúde, José Serra. Ele declarou que Admita-se que seja correto o argumento do uso de tro- a situação de hoje no Brasil lembra o Chile pré-golpe pas federais nessas situações. No ano de 2001, contudo, a militar de 1973 (Paiva, 2001). Como vimos, os militares fazenda do ex-presidente do Congresso Nacional, Jader foram colocados em posições estratégicas no aparelho do Barbalho, foi invadida por integrantes do MST. Nem mi- Estado. Dotados de informações e capacidade de organi- litares federais nem estaduais foram em seu socorro. zação, os militares saberão o que fazer caso a luz amarela Barbalho era o terceiro na linha sucessória, depois do vice- ou de qualquer outra tonalidade venha a ser realmente presidente e do presidente da Câmara. Sua fazenda, por- acesa.

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NOTAS da Abin. Mas, diferentemente do que foi proposto para a agência bra- sileira, a legislação canadense cuidou de definir com precisão os man- datos e os princípios segundo os quais é possível conduzir suas ope- E-mail do autor: [email protected] rações e avaliar sua eficácia. As áreas de inteligência para a ativida- 1. Até a recente vitória de Vicente Fox, as Forças Armadas mexicanas de de inteligência canadense podem ser resumidas a sabotagem e es- vinham sendo controladas pelo partido hegemônico, o PRI. A Costa pionagem, atividades influenciadas do estrangeiro; violência e ter- Rica não possui Forças Armadas. rorismo político e subversão, sendo esta última cuidadosamente cir- 2. Muitas das retrógradas decisões políticas de FHC têm sido por ele cunscrita para estabelecer a diferença entre o dissenso legítimo e as justificadas como o preço a ser pago para a formação de maioria par- ações secretas e ilícitas que buscam minar o regime legalmente esta- lamentar no Congresso. Por exemplo, recém-empossado, o presidente belecido. sancionou a anistia a Humberto Lucena, cujos direitos políticos ha- 19. O ministro da Justiça, José Carlos Dias, nem soube da investiga- viam sido cassados pelo TSE. ção da Abin. Entrevista com o autor, 30 de outubro de 2000. 3. Como as Polícias Militares (PMs) são força auxiliar do Exército, 20. “O documento secreto da espionagem”. Veja, 22/11/00. prática inexistente no mundo democrático, as PMs também têm no 21. Segundo Oltramari (2000), o governo federal gastou R$ 1,7 mi- Presidente da República o seu comandante-mor. lhão com as ações da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Gastos 4. Para mais detalhes, ver Zaverucha (2000b). maiores do que todo o orçamento do Programa de Assistência a Víti- 5. Sobre a permanência de enclaves autoritários na Constituição de mas e Testemunhas Ameaçadas (R$ 1,1 milhão) do Ministério da Jus- 1988, ver Zaverucha (1998). tiça, previsto para o ano de 2000. A cifra equivale a 77% do total que o governo pretendeu gastar com o Programa de Saúde da Criança e 6. “Gratificação aumenta assassinatos no Rio”. Folha de S.Paulo, Aleitamento Materno (R$ 2,2 milhões) do Ministério da Saúde, até 08/04/97. dezembro de 2000. 7. “Média de mortos pela PM alarma comissão”. O Globo, 08/12/97. 22. Recentemente, FHC autorizara a compra do porta-aviões francês Foch. 8. Serra acabara de sair da direção da Secretaria de Segurança Pública Assim sendo, enquanto a França diminuiu para um, o Brasil passou a do governo de Cristóvam Buarque no Distrito Federal. Chegou a SNSP ter dois porta-aviões. pelas mãos do então ministro da Justiça Nelson Jobim. 23. Simultaneamente, o almirante Mario Cesar Flores, ex-ministro da 9. “Bilhete revela proximidade entre general e delegado”. O Estado de Marinha no governo Collor, publicou artigo alertando sobre o fato de a S.Paulo, 25/06/99; “Campelo ganha apoio da Abin”, Jornal do Bra- democracia brasileira estar sitiada (Flores, 2001). Flores e o coronel Jarbas sil, 24/06/99. Passarinho foram nomeados por FHC, em 17 de dezembro de 1998, novos 10. Ao criar a Senad, FHC comprometeu-se internacionalmente no membros do Conselho da República. combate às drogas. Tanto é que, em 24 de agosto de 1999, o general Cardoso e o diretor do Escritório Nacional para a Política de Controle de Drogas dos EUA, general Barry McCaffrey, assinaram acordo pelo qual a Senad passou a coordenar todo o trabalho no Brasil das agên- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS cias norte-americanas de combate às drogas (Lana, 1999). Ou seja, FHC criou um poder paralelo à Polícia Federal. ANTUNES, P.C.B. Agência Brasileira de Inteligência: gênese e an- 11. O “polígono” é formado pelas cidades de Floresta, Carnaubeira da tecedentes históricos. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, Penha, Belém do S. Francisco, Cabrobó, Orocó, Salgueiro, Santa Ma- Universidade Federal Fluminense (Instituto de Ciências Humanas ria da Boa Vista, Tacaratu, Petrolândia, Itacuruba, Caraibeiras e La- e Filosofia), 2000. goa Grande. BARANY, Z. “Democratic consolidation and the military: the East 12. “General vai ao Sertão para acompanhar investigações”. Jornal do European experience”. Comparative Politics, v.30, n.1, 1997, Commercio, 17/03/01. p.21-44. 13. O general declarou que as fitas foram encontradas debaixo de um CERQUEIRA, C.N. “Questões preliminares para a discussão de uma viaduto em Brasília. Muito tempo depois, diante de novas evidências, proposta de diretrizes constitucionais sobre a segurança públi- negou o que havia dito. ca”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, v.22, 1998, p.139-182. 14. “Chefe da Casa Militar recupera o status”. Correio Braziliense, 12/06/99. FLORES, M.C. “Democracia sitiada”. O Estado de S.Paulo, 22/05/2001. 15. Proposta elaborada por juristas a pedido do Ministério da Justiça FRANCISCO, L. “PF tinha plano 11 vezes mais barato”. Folha de impede esse tipo de engavetamento. No novo texto do Código de Pro- S.Paulo, 01/12/1999. cesso Penal, caso aprovado, o procurador-geral da República perde a FREITAS, J. “Um produto legítimo”. Folha de S.Paulo, 18/06/1999. autonomia para arquivar as denúncias. Para promover o arquivamen- to, o chefe do Ministério Público Federal terá de obter a aprovação do ______. “Passados 22 anos”. Folha de S.Paulo, 06/06/2001. Conselho Superior do Ministério Público da União, órgão colegiado GRILLO, C. “Brindeiro arquiva apuração sobre general”. Folha de composto pelos subprocuradores da República. S.Paulo, 11/04/2000. 16. Medida Provisória no 1.911-10 de 24 de setembro de 1999. JÚNIOR, P. “Guerra em casa”. Veja, 20/11/1996. 17. O caso mais recente foi o pedido do governador de Tocantins, em LANA, F. “Acordo regula ação dos EUA no Brasil”. Jornal do Brasil, maio de 2001, ao GSI do envio de tropas militares federais para debe- 13/08/1999. lar a greve da Polícia Militar. Mais uma vez FHC enviou o general LEALI, F. “Código Militar fica para março”. Jornal do Brasil, Cardoso, em vez do ministro da Justiça, para representar o governo 19/02/2000. federal durante a crise. Pela primeira vez na história republicana, o Exército atuou como agente político durante uma greve de PM. Quem NOGUEIRA, R. “Exército assume defesa do general Cardoso”. Folha negociou o fim da greve foi o comandante militar do Planalto em vez de S.Paulo, 05/06/1999. do governador Siqueira Campos. Ele abdicou de sua competência abrin- OLTRAMARI, A. “Segurança de FHC custou R$ 1,7 mi”. Folha de do o precedente. S.Paulo, 05/07/2000. 18. O general Cardoso destacou a adaptação do modelo canadense PAIVA, U. “Para Lula, governo FHC está ‘desmoralizado’”. O Estado (Canadian Security Intelligence Service – CSIS) para a construção de S.Paulo, 27/05/2001.

82 PODER MILITAR: ENTRE O AUTORITARISMO E A DEMOCRACIA

RIBEIRO Jr., A. e PINTO, A.C. “Procuradoria pede à Abin dossiê so- ______. “Military Justice in the State of Pernambuco after the bre bicheiro”. O Globo, 15/05/2001. Brazilian Military Regime: An Authoritarian Legacy”. Latin ROSSI, C. “Há fazendas e fazendas”. Folha de S.Paulo, 03/05/2001. American Research Review, v.34, n.2, 1999, p.43-73. SANDRINI, J. “Militar da ANP vai investigar adulteração”. Folha de ______. Frágil democracia: Collor, Itamar, FHC e os militares. S.Paulo, 12/04/2001. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000a. ZAVERUCHA, J. “The 1988 brazilian constitution and its authoritarian ______. “Fragile democracy and the militarization of public legacy: formalizing democracy while gutting its essence”. Journal safety in Brazil”. Latin American Perspectives, v.27, n.3, of Third World Studies, v.15, n.1, 1998, p.105-24. 2000b, p.8-31.

83 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 CONSTRUÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DE INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS papel do orçamento participativo

CELINA SOUZA Professora da Universidade Federal da Bahia, Pesquisadora visitante da USP

Resumo: Na maioria das democracias recentes, governos e segmentos da sociedade vêm buscando mecanis- mos para fortalecer as instituições democráticas. Com esse objetivo, várias experiências têm sido desenvolvi- das para aumentar a participação dos cidadãos no processo decisório de políticas públicas, em especial as de abrangência local. Uma dessas experiências é a do orçamento participativo. Este artigo analisa a literatura sobre o tema, particularmente a relativa às experiências de Porto Alegre e de Belo Horizonte. Palavras-chave: democracia; governo local; orçamento participativo.

s movimentos de redemocratização que ocorre- cado por alto grau de desigualdade social, econômica e re- ram na América Latina e no Leste Europeu nos gional (Arretche, 2000; Souza, 1997, por exemplo). Há tra- O anos 80 tomaram caminhos diferenciados, geran- balhos que chamam a atenção para os riscos de os gover- do resultados e experiências diversos. Apesar de esses nos locais promoverem políticas de exclusão social na países partilharem agendas comuns, existem experiências competição por investimentos (Melo, 1996). Outra abor- e problemas que os distinguem em termos de prática de- dagem mostra que, em certas circunstâncias, a centraliza- mocrática. Sua agenda comum no que se refere à demo- ção pode ser essencial para a implementação de programas cracia dá prioridade à construção ou reconstrução de ins- governamentais; os sociais principalmente (Tendler, 1997). tituições democráticas. Essa agenda busca principalmente No que se refere à participação da comunidade, muitos enfrentar a corrupção, aumentar a participação da socie- governos locais no Brasil estão envolvidos no desenvolvi- dade no processo decisório sobre políticas públicas que as mento desses mecanismos, que vão desde a criação de con- afetam diretamente e promover a transparência e a respon- selhos comunitários até o chamado orçamento participativo sabilidade dos governos e dos gestores públicos. Em mui- (OP). O OP tem sido visto, tanto na literatura nacional quanto tos países, essa agenda esteve associada à descentraliza- na estrangeira, como um exemplo de instrumento de pro- ção política e financeira para os governos subnacionais, o moção do “bom governo” ou da boa governança urbana. que significa que a tarefa de construção de instituições de- O entusiasmo e os relatos de sucesso sobre o OP tra- mocráticas não se restringe às instituições nacionais. zem alguns paradoxos. Por que certos governos locais ado- O Brasil é um exemplo em que a redemocratização e a taram a política de ceder poder decisório aos mais pobres, descentralização caminharam juntas. No que se refere à em um país rotulado como clientelista e/ou elitista e que descentralização, já existe vasta literatura avaliando seus registra déficits históricos de engajamento cívico? Por que resultados, sobretudo na esfera local. Alguns desses traba- os governos locais optaram por adotar políticas que bus- lhos fazem uma leitura otimista da descentralização, ven- cam a participação no processo decisório, quando os mes- do-a como capaz de “reinventar o governo” e aproximá-lo mos têm uma agenda congestionada de problemas locais da comunidade pela conciliação de demandas coletivas e não resolvidos em áreas como habitação, educação, saú- individuais, além de aumentar a governança (“bom gover- de, transporte, etc.? Por que, em um tempo em que o indi- no”) local. Outros mostram certo ceticismo quanto às pos- vidualismo é visto como sinônimo de liberdade, foram sibilidades virtuosas da descentralização em um país mar- adotadas políticas que estimulam a cooperação e o acesso

84 CONSTRUÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DE INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS... a bens coletivos para grupos historicamente excluídos do ANTECEDENTES DO processo decisório? Por que, em um tempo marcado pelo ORÇAMENTO PARTICIPATIVO desencantamento com os sistemas políticos e com os polí- ticos, a comunidade responde positivamente ao chamado Alguns fatores e políticas antecederam e facilitaram a dos dirigentes para participar? Por que, em um tempo onde adoção de políticas como o OP. O primeiro é a existência a opção da “saída” (exit) é mais valorizada que a da “voz” de algumas experiências semelhantes, anteriores à rede- (voice) – na feliz síntese de Hirschman (1970) – as expe- mocratização. O segundo é o aumento dos recursos muni- riências participativas têm crescido? Por último, em um cipais como resultado da redemocratização, combinado tempo em que a literatura dominante nas ciências sociais com a decisão de vários governos locais de promover ajus- argumenta que os indivíduos (políticos, burocratas e elei- tes nas respectivas finanças públicas. O terceiro fator é o tores) são movidos pelo auto-interesse, por que atores co- aumento da presença de partidos considerados de esquer- letivos e individuais encontram incentivos à cooperação? da nos governos locais, em especial nas grandes cidades. Este artigo analisa parte da literatura produzida sobre o OP, principalmente aquela sobre as experiências de Porto Experiências Participativas Alegre e de Belo Horizonte, debatendo as principais teses Durante o Regime Militar e argumentos encontrados nessa literatura sobre seu papel e objetivos. O artigo argumenta que, embora algumas te- Ainda durante o regime militar, um pequeno número ses e resultados sobre o OP de Porto Alegre e o de Belo de municípios governado pelo então MDB adotou políti- Horizonte requeiram pesquisas mais aprofundadas, a ex- cas participativas. Uma dessas experiências, analisada por periência tem permitido que os segmentos de menor ren- Castro (1988), ocorreu em Piracicaba (SP), no período da, que moram em áreas periféricas das cidades, possam 1977-1982.2 Castro sugere que a motivação do prefeito decidir sobre as prioridades de investimentos em suas co- em propor a participação direta da comunidade no pro- munidades. Apesar de os recursos destinados ao OP ainda cesso decisório destinava-se a: a) mostrar aos governos serem reduzidos, vis-à-vis outros itens do orçamento, a federal e estadual que os recursos destinados a Piracicaba experiência tem mostrado que em um país como o Brasil, e vinculados a determinados projetos não atendiam às onde o acesso ao processo decisório é altamente desigual, prioridades da comunidade; b) pressionar a Câmara de Ve- o OP é uma das poucas alternativas capazes de transfor- readores para aprovar leis controvertidas. A avaliação de mar os investimentos públicos de favores em direitos e Castro foi a de que o processo participativo em Piracicaba diminuir o desequilíbrio do poder decisório. Por outro lado, teve caráter mais consultivo que deliberativo, apesar da existem ainda lacunas na literatura que analisa o OP, em criação de inúmeros conselhos, inclusive para o orçamento. especial investigações mais aprofundadas sobre os tradeoffs Como em várias outras experiências similares, com a elei- de políticas que visam, no longo-prazo, a formas de ção do novo prefeito essa política desapareceu. autogoverno, bem como melhor conhecimento sobre as No mesmo período, em Lages (SC), outra experiência razões que explicam o sucesso do OP em algumas cidades ganhou visibilidade nacional. Como em Piracicaba, o pre- brasileiras. Isso porque mudanças nas relações de poder feito de Lages, Dirceu Carneiro, também pertencia ao requerem complexa engenharia política e a combinação de MDB, mas a principal marca dessa gestão não foi estimu- condições políticas, sociais e econômicas que ainda não lar a participação no processo orçamentário e sim na pro- estão, a meu ver, suficientemente claras.1 moção de pequenas iniciativas de intervenção urbana, O artigo primeiro descreve algumas experiências de implementadas cooperativamente entre o governo e a co- participação comunitária anteriores aos OPs de Porto Ale- munidade. Mudou-se também o foco do planejamento gre e de Belo Horizonte, assim como alguns fatores e po- urbano, que deixava de ser abrangente para concentrar-se líticas que facilitaram a introdução do OP. A seção se- nos problemas do cotidiano da população (Ferreira, 1991). guinte faz uma revisão da literatura que analisa as duas Apesar de o objetivo ter sido governar com a participa- experiências, apontando os pontos de consenso e de ção popular, não havia organização da comunidade e o discenso no que se refere a objetivos e resultados. A últi- governo local interveio para promover a mobilização e ma seção avalia o OP, tentando chegar a algumas conclu- estimular a criação de associações comunitárias. Por cau- sões sobre seus principais resultados, debatendo as teses sa da falta de organização da comunidade, a experiência e os argumentos encontrados na literatura analisada. de Lages, embora vista como paradigmática, não pode ser

85 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 considerada como tendo atingido seu objetivo. Isso por- logo após a abertura política e, posteriormente, com a Cons- que, ainda de acordo com Ferreira (1991), a participação tituição de 1988. Mas não só o aumento das receitas muni- teve de ser construída lentamente e seus instrumentos não cipais trazidas pela redemocratização tiveram impacto po- foram suficientes para influenciar decisivamente as prio- sitivo sobre essas políticas. Tão ou mais importante foi a ridades definidas pelo governo local. O programa mais decisão de alguns governos locais de proceder ao ajuste bem-sucedido acabou sendo o sistema de mutirão para a fiscal. Esse dado é em geral pouco mencionado na litera- construção de moradias para a população pobre. Os muti- tura, mas é de crucial importância porque a reforma tribu- rões foram popularizados e posteriormente adotados em tária promovida pela Constituição de 1988 foi uma refor- várias cidades brasileiras, independentemente de orienta- ma em fases, só tendo se completado em 1993, após, ções partidárias ou ideológicas. Na avaliação de Ferreira portanto, a institucionalização do OP em Porto Alegre. (1991), superestimou-se o poder da aliança com os po- Ademais, não apenas cidades como Porto Alegre ou bres e subestimou-se o poder de seus opositores. Ademais, outras governadas por partidos mais à esquerda, mas vá- a administração não foi capaz de mudar as relações de po- rios municípios brasileiros adotaram a política de ajuste der na cidade. Seu mérito esteve na criação de formas al- fiscal, aumentando também os recursos próprios. Jayme ternativas para lidar com os problemas de sobrevivência Jr. e Marquetti (1998) mostram que apesar do esforço de dos mais pobres, por meio de iniciativas rápidas e bara- Porto Alegre no sentido de aumentar sua arrecadação ter tas, sustentadas na organização popular. sido grande – entre 1989 e 1994 a cidade passou da 10a Mecanismos de participação popular em três cidades para a 5a posição no ranking da arrecadação per capita de Minas Gerais, administradas pelo MDB entre 1983 e entre as capitais –, ela não foi a única grande cidade a 1988, foram analisados por Costa (1997). O autor mos- experimentar esse crescimento. A maior mudança relati- trou ceticismo em relação a essas experiências, argu- va se deu em Belo Horizonte, que passou da 22a para a 4a mentando que elas tendiam a transformar líderes populares posição, no mesmo período. Os autores citados mostram e suas associações em intermediários de interesses políticos também que, no que se refere à receita própria, Belo Ho- que se distanciavam das necessidades do povo. O autor con- rizonte registrou maior incremento do que Porto Alegre – clui que a cultura política que emerge após regimes autori- 23,99% e 11,3%, respectivamente. A literatura que anali- tários e uma sociedade civil ativa são difíceis de conci- sa os OPs de Porto Alegre e de Belo Horizonte raramente liar e que a esfera administrativa não é a melhor situação destaca esse ponto ou, em geral, menciona apenas os in- para a construção de formas de vida democrática. crementos de Porto Alegre.4 Além dos casos acima descritos, outras avaliações desse Um aspecto no caso de Belo Horizonte merece desta- período foram feitas por instituições como o Instituto que: os aumentos registrados mostram o quanto os contri- Pólis.3 Um desses trabalhos analisa a experiência de For- buintes locais estavam sendo subtaxados. Revelam tam- taleza, primeiro governo local eleito pelo PT, em 1986. A bém que muitos prefeitos eleitos, diferentemente dos experiência foi considerada um fracasso em termos de nomeados, optaram pelo aumento de receitas próprias para participação popular em virtude do isolamento do gover- tentar cumprir seus compromissos com os eleitores, em no e de suas controvérsias com o partido. Um dos pontos lugar de apoiar-se exclusivamente no aumento das trans- positivos, no entanto, foi ter deixado marcada para a po- ferências federais e estaduais estabelecido pela Constitui- pulação a separação entre a prefeitura e o governo esta- ção de 1988. Essa política contradiz a hipótese da litera- dual (Pinto, 1992). Isso porque Fortaleza, assim como tura sobre federalismo fiscal, a qual pressupõe que os várias cidades brasileiras naquele momento, em especial governos subnacionais, ao ampliar sua participação nas no Nordeste, eram administradas como um segmento do transferências intergovernamentais, tendem a fazer pou- governo do estado por causa da enorme escassez de re- cos esforços no sentido de aumentar as receitas próprias. cursos e da influência do governador do estado na nomea- Por outro lado, deve ser registrado também que Porto ção dos prefeitos das capitais. Alegre e Belo Horizonte são cidades com melhores indi- cadores econômicos e sociais que a média das cidades bra- Aumento das Receitas Municipais sileiras. Isso dá a seus governantes mais oportunidades para aumentar as receitas próprias, garantindo-lhes mais O segundo fator que contribuiu para a expansão das po- recursos livres para implementar programas redistributi- líticas participativas foi o aumento das receitas municipais vos como o OP.

86 CONSTRUÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DE INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS...

Crescimento dos Governos Locais Horizonte.6 Além do mais, o conceito de participação não Governados pela Esquerda é claro nem consensual, mesmo dentro do partido mais associado ao conceito – o PT. Problemas ainda mais com- O terceiro fator que contribuiu para a difusão de pro- plexos surgem quando a participação resulta, como no caso gramas participativos está associado ao crescimento dos do OP, de um programa liderado e induzido pelo gover- partidos de esquerda nos governos locais, especialmente no, ou seja, é uma política que vem “de cima”. o PT. Em 1988, 32 prefeitos pertenciam ao PT; em 1992, Nylen (2000a:132) argumenta que, depois de muito 53; em 1996, 115 e em 2000, 187. Como uma das bandei- debate, parece emergir um consenso nos governos locais ras do PT é a participação, passou a haver incremento de de esquerda sobre os principais objetivos de uma admi- experiências como o OP. Essas experiências são constan- nistração “democrática e popular”: inverter prioridades temente analisadas e disseminadas por militantes partidá- e promover a participação do povo. O primeiro objetivo rios, acadêmicos, órgãos de pesquisa e ONGs. A conquista refere-se à formulação de uma política capaz de favore- de maior fatia nos governos locais tem dado ao PT a opor- cer os pobres pela taxação daqueles que tenham capaci- tunidade de debater e de pôr em prática seus compromis- dade de pagar. O segundo objetivo remete ao conceito sos eleitorais, onde o OP é um dos de maior visibilidade. de empowerment (“empoderamento”), ou seja, a uma Além do mais, o sucesso inicial e a divulgação de grande forma de consciência política que faz a crítica das desi- número de experiências participativas como o OP têm gualdades e injustiças existentes mas, ao mesmo tempo, funcionado como marca positiva para o partido. é capaz de ver na ação coletiva a forma de alcançar re- Essa seção mostrou que as origens de políticas partici- formas progressivas (Nylen, 2000a). À avaliação de pativas remonta a experiências anteriores aos OPs de Porto Nylen (2000a) pode-se acrescentar a da busca do Alegre e de Belo Horizonte e que essas experiências não autogoverno local para determinados segmentos sociais se restringem aos governos administrados pelo PT. Na e para algumas políticas públicas.7 verdade, o OP de Belo Horizonte surgiu muito depois do As experiências de OP em Porto Alegre e em Belo de Recife e Fortaleza. Seja porque estas cidades não eram Horizonte tiveram início com a vitória do PT na eleição administradas pelo PT quando essas experiências ocorre- para prefeito. Em Porto Alegre, ela se iniciou em 1989, ram ou porque seus resultados são de fato mais modestos um ano após a posse; em Belo Horizonte, em 1993, no que os de Porto Alegre e de Belo Horizonte, elas são me- mesmo ano da posse. Ambas as experiências ainda conti- nos conhecidas e estudadas.5 Os OPs de Porto Alegre e nuam sendo as principais marcas das gestões municipais de Belo Horizonte, analisados a seguir, certamente extraí- nessas cidades e já foram objeto de várias sínteses e aná- ram lições das experiências anteriormente mencionadas. lises. Dentre os que analisaram a experiência de Porto Ale- Existem, no entanto, importantes diferenças entre essas gre, estão Abers (1998, 2000), Dias (2000) Jacobi e experiências para além da questão temporal e da mudan- Teixeira (1996), Fedozzi (1997), Laranjeira (1996), ça de regime político. A primeira é que o OP, em Porto Matthaeus (1995), Navarro (1997), Santos (1998) e Alegre e em Belo Horizonte, vem sobrevivendo a dife- Wampler (2000). O OP de Belo Horizonte foi analisado, rentes mandatos de governo. A segunda é que essas cida- entre outros, por Azevedo (1997), Azevedo e Avritzer des concentraram os esforços da experiência participati- (1994), Boschi (1999a), Nylen (2000a; 2000b), Pereira va no processo orçamentário, isto é, na decisão sobre como (1996; 1999) e Somarriba e Dulci (1997). Essa extensa alocar recursos escassos, trazendo para o centro do deba- produção traz informações e análises sobre o funciona- te questões sensíveis como desigualdade, pobreza, dese- mento do OP, principalmente quanto a prioridades de in- quilíbrio de poder nas cidades brasileiras e rearranjos na vestimentos; recursos financeiros; forma de escolha dos intermediação de interesses locais. delegados e seu perfil socioeconômico; organização ad- ministrativa das prefeituras e as mudanças nela promovi- ORÇAMENTO PARTICIPATIVO EM das por força do OP; papel da burocracia; papel dos dele- PORTO ALEGRE E EM BELO HORIZONTE gados do OP ante o dos vereadores; relação da Câmara de Vereadores com as prefeituras; pesquisas de opinião so- A participação dos cidadãos nas políticas públicas não bre o OP; efeitos do OP sobre questões como transparên- é nenhuma panacéia nem muito menos uma tarefa fácil, cia e accountability dos governos locais e dos gestores como mostram as experiências de Porto Alegre e de Belo públicos; outras formas de participação envolvendo seto-

87 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 res da comunidade que não participam do OP. Ademais, do mapeamento de Abers (2000), a literatura aponta três ambas as prefeituras mantêm nos seus sites informações “problemas” da participação. O primeiro é o “problema detalhadas sobre o OP. de implementação”, isto é, mesmo quando os governos Essa abrangente e extensa produção dispensa que se- buscam implementar mecanismos participativos voltados jam aqui exibidos dados, procedimentos e o funcionamento para integrar grupos menos poderosos no processo deci- do OP. Pode-se, então, avançar diretamente para os obje- sório, os mais poderosos têm força para impedir essa tivos deste artigo: debater as principais teses e argumen- participação. O segundo é o “problema da desigualda- tos relacionados com o OP e seu papel na construção de de”: mesmo quando espaços são criados para que todos instituições democráticas, da cidadania e do auto-gover- participem, as desigualdades socioeconômicas tendem a no local. criar obstáculos à participação de certos grupos sociais. O terceiro é o “problema da cooptação”: mesmo que os COMO A LITERATURA INTERPRETA espaços de participação sejam genuinamente represen- O ORÇAMENTO PARTICIPATIVO? tativos, o desequilíbrio entre o governo e os participan- tes, no que se refere ao controle da informação e dos No final dos anos 80, muitos governos locais introduzi- recursos, faz com que a participação seja manipulada ram mecanismos de incentivo à participação das comuni- pelos membros do governo. dades no processo decisório das políticas públicas locais. Apesar dessas visões, a literatura que analisa o OP de Parece haver um consenso de que políticas participativas Porto Alegre e de Belo Horizonte avalia-os como bem- são um objetivo virtuoso para os países do chamado Ter- sucedidos, ao menos no que se refere a seus objetivos. No ceiro Mundo, especialmente os recém-democratizados. entanto, as razões desse sucesso variam tanto quanto o Esse consenso é tão forte que reúne os extremos do espec- rótulo que cada autor dá ao OP. Isso porque a participa- tro político: dos conservadores à esquerda; das organiza- ção significa coisas diferentes para pessoas ou grupos di- ções multilaterais de financiamento mais comprometidas ferentes. Para alguns autores, a participação é uma forma com a distribuição de renda até as que premiam as best de aumentar a eficiência dos governos; para outros, ela practices. Assim, participação transformou-se na palavra implica o aumento da justiça social, ou seja, o acesso de mágica de todo projeto de governo local e no “abre-te pessoas e grupos historicamente excluídos do processo de- sésamo” dos financiamentos internacionais. cisório. Outros advogam que a participação é mera retó- Como já foi mencionado, existe vasta literatura que rica de políticos e governantes. Conforme a síntese de analisa experiências participativas nas políticas públicas Abers (2000), para alguns, os benefícios da participação locais. Essa literatura transcende os cortes das disciplinas limitam-se a fatores instrumentais, isto é, aumento da efe- e áreas acadêmicas porque relaciona temas como descen- tividade da política pública, promoção de consenso sobre tralização, democracia, capital social, accountability, de- as ações governamentais e acesso a informações detalha- senvolvimento, governança (“bom governo”), “empo- das sobre as necessidades reais dos cidadãos comuns. Para deramento” de grupos sociais excluídos, educação cívica, os que elegeram o OP como política prioritária, no entan- justiça social, desenvolvimento sustentável e gestão ur- to, o principal objetivo da participação é a delegação de bana. No Brasil, essa literatura tem sido produzida por poder aos grupos sociais que foram ignorados pelas polí- centros acadêmicos, ONGs, organizações multilaterais e ticas anteriores de desenvolvimento local. O significado vários organismos nacionais que financiam pesquisas.8 da participação, portanto, é o primeiro grande divisor de Existe um consenso na literatura analisada de que, ape- águas tanto na literatura analisada como no próprio con- sar dos problemas, tensões e resultados não previstos que ceito de participação. decorrem do OP, a experiência tem-se constituído em for- ma de acesso do cidadão ao processo decisório local. Esse Participação Como Voz acesso, no entanto, é induzido e coordenado pelos go- ou Como “Empoderamento”? vernos. Quais as bases para a avaliação desse sucesso? A visão de sucesso contraria, em parte, a literatura teó- Para a maioria dos organismos multilaterais, partici- rica e empírica sobre participação, em geral cética quanto pação significa voz no processo decisório e não autono- ao papel do Estado na construção de instituições demo- mia para tomar decisões. Para esses organismos, “a voz cráticas e possibilidades da participação popular. Segun- dos cidadãos locais, particularmente a dos pobres, pode

88 CONSTRUÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DE INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS... ser aumentada por reformas na esfera nacional que per- vez de lutar por suas necessidades imediatas, inclusive mitam a esses segmentos maior liberdade para aderir a porque muitos desses programas são abolidos quando um organizações não-governamentais, sindicatos ou outras novo grupo político assume o governo?10 instituições, a fim de melhor entender e influenciar deci- - como conciliar a prática de políticas participativas volta- sões que os afetam” (World Bank, 1994:42 – tradução da das para o autogoverno com as instituições formais da demo- autora). Assim, para grande parte das organizações mul- cracia representativa, em especial com o legislativo local? tilaterais, a participação é uma forma de transformar os O grande número de conselhos comunitários hoje exis- desorganizados em membros de uma sociedade civil que tentes no Brasil não parece responder a essas questões. podem influenciar (mas não decidir) questões que os afe- Estimulados por programas nacionais ou por financia- tem diretamente. Essa visão dá ênfase a resultados de curto mentos internacionais que condicionam a liberação de re- prazo e propostas de enfrentamento de problemas especí- cursos à criação desses conselhos, todos os municípios ficos, em lugar de transformações de longo prazo e de na- brasileiros tiveram que instituir inúmeros conselhos co- tureza estrutural. Por outro lado, essa visão demonstra munitários para o desempenho de suas funções básicas. cautela em relação aos limites da participação popular no Muitos deles parecem apenas reproduzir o que as regras contexto da democracia representativa. exigem, eliminando, portanto, as premissas básicas da A visão instrumental e cautelosa da participação não é participação: credibilidade, confiança, transparência, a que orienta o OP de Porto Alegre e de Belo Horizonte. accountability, “empoderamento”, etc. Apesar de incipien- Como já foi dito, para o PT, a participação significa dar tes as pesquisas sobre esses conselhos, existem acusações poder aos pobres para que eles: a) tomem consciência das de controle dos prefeitos sobre seus membros, aliado a iniquidades e injustiças (crescimento da consciência po- suspeitas de corrupção no uso dos recursos, em especial lítica); e b) reformem os sistemas político e social pela nos municípios mais pobres e nos setores de educação e via da ação coletiva. saúde, os que demandam recursos mais vultosos. Como resultado dessas visões “rivais” sobre o papel Se a proposta mais modesta da participação encontra da participação, surge uma questão: é possível adotar o os obstáculos mencionados, o que dizer da possibilidade OP em todas as cidades brasileiras? Mesmo na visão me- de se ampliar o OP nos termos da proposta do PT, ou seja, nos ambiciosa dos organismos multilaterais, a resposta não a de “empoderamento” dos pobres, dando-lhes autorida- é fácil. Existem constrangimentos empíricos e teóricos que de para decidir e não apenas serem ouvidos? Alguns au- podem dificultar a adoção indiscriminada do OP. Esses tores analisados enfrentaram essa questão. Uns argumen- constrangimentos podem ser assim sintetizados: tam que o OP só é possível em Porto Alegre (Abers, 2000) - por que representantes eleitos iriam querer dividir o pela combinação de três fatores. Primeiro, o OP se trans- poder, mesmo que de forma apenas consultiva? formou em estratégia política para que o PT adquirisse - por que indivíduos racionais iriam querer participar, capacidade de governar, transformando-se na marca re- dado o desencantamento com a política e os políticos que gistrada do governo local. O OP também foi usado para as pesquisas de opinião vêm sistematicamente mostrando desmontar as velhas bases do populismo em Porto Ale- em todo o Brasil? gre, lideradas pelo PDT. Segundo, o governo local foi - como esses programas podem evitar a questão do “ca- capaz de mudar o custo-benefício da ação coletiva em rona” (free-riding)? relação aos pobres e menos organizados, ao diminuir os custos da adesão dos pobres ao OP por meio do papel dos - os municípios brasileiros no seu conjunto têm recursos organizadores da comunidade. Terceiro, o governo foi suficientes para cumprir o que for decidido pela popula- capaz de aumentar as expectativas em relação aos benefí- ção?9 cios por dar prioridade à dotação de infra-estrutura para - como evitar manipulação, corrupção e clientelismo em as comunidades pobres. Essa tese, todavia, não explica o cidades onde a população tem baixa escolaridade, não está caso de Belo Horizonte, embora algumas das razões para acostumada a ter papel ativo na fiscalização dos governos o sucesso do OP em Porto Alegre também possam ser e onde a maioria é tão pobre que todo seu esforço e tempo encontradas na capital mineira. tem que ser canalizado para a própria sobrevivência? A tese de que o OP produziu a delegação de poder aos - como governos que buscam a participação podem con- grupos pobres e desorganizados é contestada pelos dados vencer as pessoas a se dedicar a problemas coletivos em de Nylen (2000b) e pelo nível de renda dos participantes.

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Uma pesquisa conduzida por Nylen (2000b) mostrou que controle financeiro e recursos a investir), ele conclui que tanto antes do OP como no momento da pesquisa, os de- o OP pode ser generalizado nas administrações locais. legados do OP de Belo Horizonte já participavam ante- O grande divisor de águas aqui discutido coloca ainda riormente de associações de bairro (52,2% antes do OP e outra questão: será que a participação no sentido do 64,5% depois do OP) e de grupos religiosos (40% antes “empoderamento” só é possível em experiências simila- do OP e 40,1% depois do OP). O número daqueles que res às do OP? Alguns argumentam que políticas de finan- nunca haviam participado de movimentos organizados era ciamento direto aos pobres, sem a intermediação do go- de 19,7% antes do OP e 12,2% no momento da pesquisa. verno, são mais importantes para se alcançar uma “gestão Dados semelhantes foram encontrados por Nylen (2000b) urbana pelos cidadãos”, enquanto que o OP é uma “ges- em Betim, outra cidade mineira que adotava o OP. No que tão urbana com os cidadãos (Matthaeus, 1995). Essa al- se refere à renda, uma pesquisa de Abers (1998) em dois ternativa é negada por Abers (1998). Seja qual for a vi- distritos de Porto Alegre que participavam do OP mos- são, existe consenso na literatura analisada de que, no caso trou que 40% dos entrevistados tinha renda familiar men- de Porto Alegre, o “empoderamento” (ao menos daqueles sal de cerca de R$ 400,00 e que 18% ganhavam entre que participam diretamente do OP) foi possível graças às R$ 400,00 e R$ 700,00 por mês. Esses dados confirmam condições mapeadas por Abers (1998) e Santos (1998). os de uma pesquisa mais abrangente, cobrindo todos os Em Belo Horizonte, no entanto, Boschi (1999b) sinaliza distritos. Pesquisa de Somarriba e Dulci (1997:401) para que o sucesso do OP deve ser creditado às experiências Belo Horizonte, traçando o perfil dos participantes do OP, prévias de descentralização. não traz informação sobre renda, mas afirma, consideran- do o grau de instrução e a atividade profissional dos par- Orçamento Participativo como ticipantes, que os mesmos provêm de vários estratos so- Forma de Inverter Prioridades ciais, com significativa presença de setores médios. Nas palavras dos autores, “isso parece indicar que o OP não Sobre se o OP tem de fato refletido as prioridades dos se restringe aos grupos sociais mais pobres, sensibilizan- pobres, a maioria dos autores analisados acredita que sim do também outras camadas da população do município”. (Santos, 1998; Somarriba e Dulci, 1997; Pereira, 1996; A resposta de Matthaeus (1995) sobre as possibilida- Abers, 1998; Nylen, 2000a). Os delegados que participa- des de implantação do OP em outras cidades brasileiras é ram das pesquisas em Porto Alegre e em Belo Horizonte a de que ela só é viável se o partido que estiver no poder concordam. Não é tão claro, no entanto, se o OP tem re- for de esquerda. Santos (1998) parece concordar com a fletido as necessidades daqueles que não participam, em tese de Abers, mas por razões diversas. Para ele, o OP particular dos muito pobres. Essa é uma questão impor- funciona em Porto Alegre porque é uma cidade de ampla tante porque, apesar de o apoio ao OP em ambas as cida- tradição democrática e com uma sociedade civil altamen- des ser alto, a maioria dos cidadãos pobres não participa te organizada. Dados trabalhados por Setzler (2000) mos- do processo. Os resultados de pesquisa feita em 1991 em tram que, de fato, Porto Alegre registra os mais altos ín- 150 municípios do Brasil mostram que os eleitores mais dices de associativismo, consciência política e confiança pobres e com menor escolaridade dão prioridade a ques- comunitária dentre as capitais brasileiras. A experiência tões ligadas à sobrevivência (custo de vida, baixos salá- do OP em Belo Horizonte, no entanto, embora combinan- rios e oportunidades de emprego) e não à infra-estrutura do, de acordo com os analistas, estratégias diferentes da dos lugares onde vivem. Na medida em que a renda ultra- de Porto Alegre, na medida em que tenta conciliar a par- passa o salário mínimo, a preferência dos eleitores muda ticipação com formas de clientelismo, tem também sido para a provisão de bens e serviços públicos (Desposato, avaliada como bem-sucedida, apesar de Belo Horizonte 2000). Apesar de a pesquisa ter sido realizada há 10 anos, registrar níveis mais baixos de associativismo do que Porto pode-se inferir que suas conclusões continuam válidas. Caso Alegre.11 essa hipótese esteja correta, pode-se também concluir que Navarro (1997) também enfrenta a questão sobre se o o OP não atinge as demandas dos muito pobres, mas sim OP pode ser reproduzido em outras cidades e sob dife- as de uma parte da população que, embora não totalmente rentes condições. Embora o autor relacione várias pobre, acredita que o OP vem suprindo a negligência das precondições para o OP (vontade política para ceder po- administrações locais anteriores em relação às péssimas der às associações, postura política contra o clientelismo, condições de infra-estrutura das áreas de baixa renda.

90 CONSTRUÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DE INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS...

Outras questões também surgem como resultado do que po, porém, obscurece o papel de importante instituição foi discutido até aqui. Existem evidências que apóiam a do sistema representativo formal – o legislativo local. tese de que o OP: a) aumenta a capacidade dos grupos sociais excluídos de influenciar a alocação dos recursos O Que É, Afinal, o Orçamento Participativo? públicos; e b) amplia o acesso dos pobres aos serviços urbanos básicos. A literatura analisada permite afirmar que Outro grande divisor de argumentos e teses está na for- o OP expande a capacidade desses grupos de influenciar ma como a literatura interpreta o OP. As visões são tão decisões e que aumenta seu acesso a serviços urbanos diversas que tornam difícil uma síntese. Como tentativa básicos, principalmente de infra-estrutura. Como foi sin- de agregar todas as respostas – e mesmo visões diversas tetizado por Navarro (1997:5), “mesmo que muitas mu- dadas pelo mesmo autor – elas foram divididas em quatro danças não sejam visíveis – por exemplo, o sentido da blocos: gestão, educação, política e mudança social. ‘democratização do poder local’ ou as mudanças nas vá- No terreno da gestão, existe a visão de que o OP é: a) rias formas de relação entre o governo local e a popula- gestão urbana com os pobres (Matthaeus, 1995); b) me- ção –, é inegável, no entanto, que outras mudanças e re- canismo de gestão conjunta dos recursos públicos através sultados concretos podem ser encontrados em muitos de decisões compartilhadas sobre a alocação dos recur- lugares de Porto Alegre. Esses resultados se refletem na sos orçamentários (Santos, 1998); c) modelo de gestão operação dos serviços públicos, que melhorou substan- urbana mais do que uma política pública (Boschi, 1999a cialmente nos últimos nove anos, após o OP. Maior ra- e b); e d) processo de gestão fiscal social (Navarro, 1997). cionalidade administrativa e eficiência fazem parte des- No terreno da educação, a maior parte da literatura ses resultados, mas também mais justiça social na alocação considera o OP um processo educativo que envolve todos dos recursos públicos” (tradução da autora). os atores locais importantes – prefeito, burocratas, verea- dores, movimentos sociais e o PT – , assim como as insti- O reconhecimento de que, com o OP, grupos excluí- tuições nas quais esses atores operam. Essa visão é tribu- dos ganharam influência sobre as políticas públicas e tária do pensamento de Stuart Mill sobre o papel educativo melhor acesso aos serviços urbanos básicos pode ser tam- do governo local. bém inferido pelas respostas do eleitorado às coalizões No terreno político, as visões são bastante diversas. O que introduziram o OP: os eleitores reelegeram as coliga- OP é: a) uma política pública em que os que têm poder o ções partidárias que implantaram o OP quatro vezes em cedem para os grupos em desvantagem (Abers, 2000); b) Porto Alegre e três vezes em Belo Horizonte. Associar uma forma de radicalizar a democracia e o resultado de esses resultados eleitorais ao OP não é irrealista, dado que uma grande vontade política, capaz de permitir a constru- o OP é a política mais conhecida dessas coalizões. ção de uma cultura política, que aumente a conscientiza- Essa comprovação implica que o OP é também um ins- ção sobre a cidadania, e de melhorar as condições de vida trumento capaz de contribuir para aumentar a democra- da população (Villas Boas, 1994); c) uma das formas cor- cia? Abers (2000) acredita que sim para o caso de Porto rentes de globalização contra-hegemônica (Santos, 1998); Alegre e Somarriba e Dulci (1997) para o caso de Belo d) uma forma de combinar democracia representativa com Horizonte. Navarro (1997) qualifica o OP em Porto Ale- participação (Jacobi e Teixeira, 1996); e e) um instrumento gre como uma espécie de “democracia afirmativa”, gra- para superar os limites da democracia representativa atra- ças às conquistas em assegurar efeitos redistributivos em vés de mecanismos que ampliem a mobilização da socie- um país onde existe tradicionalmente assimetria de po- dade civil para além do corporativismo e da simples con- der. Visão menos otimista sobre esse potencial do OP é sulta (Laranjeira, 1996). Contrariando as visões correntes dada por Nylen (2000a), mas as razões apontadas baseiam- sobre o OP, Dias (2000) argumenta que a experiência tem se em indicadores nacionais por demais abrangentes. Dias sido uma forma de o Executivo municipal sobrepor-se ao (2000) debate os dilemas introduzidos pelo OP na ques- Legislativo. tão da democracia representativa. Hipótese mais realista Ainda no território do papel político do OP, aparece talvez seja a de que o OP tem efeito no aumento da demo- na literatura a visão de que o programa aumenta a trans- cracia local, dado que agrega representantes de segmen- parência, accountability e a credibilidade dos governos e tos de baixa renda que raramente têm a oportunidade de seus participantes. O OP também é constantemente men- chegar à arena decisória governamental; ao mesmo tem- cionado como forma de eliminar (ou diminuir) o cliente-

91 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 lismo, o autoritarismo e o patrimonialismo. Assim, em- No que se refere à burocracia, a maior parte da literatu- bora com opiniões altamente divergentes, a literatura chega ra atesta sua resistência inicial ao OP, mas afirma que exis- quase sempre à mesma conclusão: o OP está mudando a tem formas de superá-la. Santos (1998), por exemplo, ar- vida política de Porto Alegre e de Belo Horizonte. gumenta que os burocratas também estão sendo submetidos Por fim, no terreno da mudança social, os autores con- a um processo de aprendizagem quanto à comunicação e cluem que o OP permite: a) a distribuição mais justa de ao diálogo com os cidadãos, que são leigos em matéria recursos escassos em uma sociedade altamente desigual orçamentária. Santos admite, todavia, que o caminho da (Santos, 1998); b) um instrumento inovador para a recons- tecnoburocracia para a “tecnodemocracia” é acidentado. trução da vida pública (Somarriba e Dulci, 1997); c) nova Como lembra Navarro (1997), no entanto, o conhecimen- forma de relacionamento entre o poder público local, as to técnico é uma exigência essencial do OP. Quanto à re- organizações populares e o resto da sociedade, a fim de lação entre os participantes do OP e o executivo local, existe atender às demandas dos segmentos mais pobres da po- consenso de que o governo local desempenha papel deci- pulação (Pereira, 1996); d) o fortalecimento do associa- sivo no OP, mesmo quando os participantes o contestam. tivismo urbano e do relacionamento entre as associações Na expressão de Santos (1998), todavia, o “contrato comunitárias e os moradores dos distritos (Pereira, 1999); político”, entre o executivo e as comunidades ainda não e) uma forma justa de decidir sobre a alocação de recur- se estendeu ao legislativo. Embora Somarriba e Dulci sos (Jacobi e Teixeira, 1996). (1997) não vejam problemas nessa relação, eles parecem existir e a fórmula pragmática encontrada em Belo Hori- A Questão da Representação Política zonte para acomodar as demandas dos vereadores no sen- tido de continuar a apresentar emendas ao orçamento que A questão mais sensível relacionada com o OP talvez seja favoreçam seus eleitores mostra que a adesão do legisla- a ameaça de que a participação comunitária possa substituir tivo ao OP está longe de ser assegurada.12 Quanto a Porto o papel dos burocratas, do executivo local e dos vereado- Alegre, Dias (2000) identifica o papel dos vereadores como res. A questão é particularmente sensível entre os delega- oscilando entre o que denomina de “constrangimento” ante dos do OP e os vereadores. Como se sabe, a aprovação final a participação popular, “renúncia” a parcela de seu poder do orçamento é uma competência constitucional do Legis- decisório e “reação” contra o Executivo, com a prevalên- lativo. A fronteira entre essas duas formas de representação cia da renúncia. Segundo a mesma fonte, no entanto, os de interesses está longe de ser definida com clareza. vereadores de Porto Alegre focalizam suas críticas e es-

QUADRO 1 Síntese das Principais Vantagens e Problemas do OP, de Acordo com a Literatura Selecionada Porto Alegre e Belo Horizonte

Vantagens Problemas

• Torna a democracia representativa aberta à participação mais ativa de segmen- • A interação com o governo coloca em risco a independência dos movimentos tos da sociedade civil comunitários • Reduz clientelismo, populismo, patrimonialismo e autoritarismo, mudando a • Formas de clientelismo ainda sobrevivem cultura política e aumentando a transparência • A sociedade civil ainda está em formação • Estimula o associativismo • Limitações financeiras e de recursos para o OP, reduzindo a abrangência dos • Facilita o processo de aprendizado sobre melhor e mais ativa cidadania programas. As comunidades tendem a parar de participar quando suas deman- • Desloca prioridades dos segmentos privilegiados para beneficiar a maioria da das são atendidas população (os pobres); paralelamente, tenta abrir canais de participação a ou- • Persistem dificuldades para aumentar a participação: os jovens, as classes tras classes sociais médias e os pobres são sub-representados • Permite equilibrar bandeiras ideológicas voltadas para a delegação de poder • Lentidão na execução dos programas, frustrando os participantes aos cidadãos com respostas pragmáticas que atendam a suas demandas • Clivagens entre o PT e o executivo • Estabelece uma organização que pode sobreviver a mudanças de governo • Risco de reificação do movimento popular, tornando difícil a separação clara • Estimula os participantes a trocar visões individualistas por solidárias e a ver os entre seu papel e o do governo problemas da cidade de forma coletiva • Decisões fragmentadas e demandas de curto prazo podem prejudicar o plane- jamento urbano e projetos de longo prazo • Supremacia dos movimentos sociais e do executivo sobre o legislativo na ques- tão da alocação de recursos

92 CONSTRUÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DE INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS... tratégias de reação não diretamente contra o OP, mas con- esse escasso rigor analítico. Alguns críticos do OP o vêem tra o executivo municipal.13 como uma oportunidade de os partidos de esquerda de Essas constatações levantam dúvidas sobre o futuro do exercerem o mesmo “velho clientelismo” das adminis- OP caso as coalizões partidárias que o implementaram não trações conservadoras, embora sem a intermediação dos sejam reeleitas. Por outro lado, se o OP funciona da for- vereadores. Há críticos que afirmam que o OP é um tipo ma como a literatura o descreve e analisa, então pode-se de altruísmo ingênuo. Outros ainda argumentam, cinica- esperar que um de seus resultados seja fortalecer os mo- mente, que o OP faz com que os pobres decidam para vimentos sociais e a aceitação do programa pela socieda- que eles culpem a si mesmos, e não ao governo, quando de, convencendo coalizões diversas a mantê-lo nas cida- não conseguirem recursos suficientes para suas deman- des onde a experiência é considerada bem-sucedida. das. A dificuldade dessas visões, além de essencialmen- Embora arriscando excessiva simplificação das ques- te normativas, é que nenhuma delas fornece critérios pelos tões debatidas nesta seção, o Quadro 1 apresenta um su- quais a experiência possa ser avaliada. O mesmo acon- mário dos principais resultados do OP em Porto Alegre e tece com aqueles que advogam a existência do OP ape- em Belo Horizonte. nas porque apóiam os governos e/ou os partidos com ele comprometidos. DEBATENDO ARGUMENTOS E TESES O OP é uma experiência induzida e coordenada pelo governo e tem sido considerada um sucesso nas cidades A literatura produzida pela ciência política e pela ad- aqui analisadas. Essa aprovação é provavelmente a razão ministração pública ainda não apresenta respostas claras da reeleição das coalizões partidárias que o estão imple- e precisas sobre por que algumas experiências político- mentando. As constantes mudanças nas regras, procedimen- institucionais são adotadas e quais as razões para seu su- tos e no funcionamento do OP mostram que a experiência cesso ou fracasso. A falta de moldura analítica teorica- faz parte de um aprendizado para os envolvidos. Os casos mente coerente, capaz de guiar avaliações das práticas aqui revisitados também demonstram que os problemas do político-administrativas, induz a critérios e conclusões OP não fizeram seus defensores desistir da experiência. extremamente divergentes sobre os resultados das políti- Isso indica que talvez o OP esteja enfrentando uma das cas públicas, em especial as de formato participativo. Além práticas mais comuns das políticas públicas brasileiras: seu do mais, em países caracterizados por enormes desequilí- caráter errático e inconstante.14 Apesar de mudanças nas brios sociais, econômicos e regionais, deve-se ter cuida- facções político-partidárias em Porto Alegre e em Belo do ao desenhar conclusões gerais com base nos resulta- Horizonte ao longo da experiência do OP, o programa vem dos de um pequeno número de programas participativos. sendo mantido e fortalecido. A aceitação popular, que vem Avaliações e generalizações sobre as experiências brasi- se manifestando através do apoio dos movimentos sociais leiras com o OP, por exemplo, podem muito facilmente e do resultado das pesquisas de opinião, também deve es- resvalar na armadilha de se acreditar que o OP é possível tar contribuindo para a sobrevivência do OP. somente no “moderno” e “desenvolvido” Sul e Sudeste As seções anteriores mostraram que algumas teses/argu- do país, e impossível no Nordeste, rotulado, em geral, de mentos relacionadas com os objetivos e os resultados do OP “atrasado” e “clientelista”. Ademais, na análise dos prin- se confirmam, dado que ocorrem em ambos os casos estu- cipais resultados do OP, é importante relembrar a adver- dados. Outras teses/argumentos, todavia, merecem maior tência de Santos (1993): a busca de lógica única no terre- atenção e debate, e são objeto das subseções seguintes. no da ação coletiva é inútil, em razão da multiplicidade de fatores que se articulam para chegar a determinado re- “Empoderamento” dos Pobres sultado de política pública. O reconhecimento dessas li- mitações deve orientar o pesquisador na tarefa de debater Os números e as análises mostram que, com o OP, gru- e avaliar as teses e os argumentos sobre o OP. pos de baixa renda, mas não os muito pobres, passaram a Assim, a falta da moldura analítica mencionada abre ter influência sobre o processo decisório de alocação de espaço para que o OP seja avaliado de acordo com a ideo- uma porcentagem dos recursos públicos locais. Apesar da logia, os interesses ou as agendas específicas dos ava- porcentagem ser relativamente pequena – no caso de Por- liadores e/ou de suas instituições. Fora da literatura aqui to Alegre, por exemplo, a média foi de 13,1% entre 1990 analisada, muitas das visões sobre o OP não escondem e 1996 – o OP é uma política importante no sentido de

93 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 prover alguma infra-estrutura em comunidades carentes. ções locais anteriores e pela possibilidade que abre para A questão da limitação dos recursos financeiros é, no en- que o governo se faça presente em áreas até então fora de tanto, mais crucial do que aparenta à primeira vista. Isso sua intervenção. porque, apesar de alguns governos municipais estarem comprometidos com a reversão de prioridades e com trans- Redução do Clientelismo formar investimentos nas áreas mais pobres da cidade de favores em direitos, esses governos podem realizar ape- A literatura analisada defende que uma das razões do nas uma fração muito reduzida das necessidades das co- sucesso do OP está no cumprimento dos valores constitu- munidades de baixa renda. Nesse sentido, o mérito do OP tivos da participação: credibilidade, confiança, transpa- parece não estar necessariamente nos ganhos materiais para rência, accountability, “empoderamento” de cidadãos segmentos de baixa renda, mas sim na ampliação da par- comuns, solidariedade, etc. A maior parte da literatura ticipação e do poder de decisão para grupos anteriormen- acrescenta a essa lista a redução do clientelismo e do te excluídos do processo decisório. patrimonialismo. Discutir esses dois fenômenos e suas Além das limitações financeiras, outra questão impor- razões está fora dos objetivos deste trabalho. É importan- tante em relação à alocação de recursos permanece. O que te, no entanto, mencionar que no caso do clientelismo a as experiências aqui analisadas sugerem é que em socie- literatura também parece reconhecer que a prática conti- dades altamente desiguais como a brasileira, segmentos nua viva em algumas cidades que adotaram o OP. Separar de baixa renda estão despendendo considerável energia e uma parte dos recursos do orçamento para que os verea- tempo no debate sobre a alocação de recursos públicos. dores façam sua distribuição foi a fórmula encontrada em Como sugeri anteriormente, isto é, de fato, “empode- Belo Horizonte para reduzir a resistência dos vereadores ramento” ou autogoverno sobre determinadas políticas ao OP. Por outro lado, esforços para melhorar as regras públicas. Mas é preciso lembrar que as classes média e do OP na medida em que a experiência foi amadurecendo rica têm acesso, sem nenhum dispêndio de energia ou tem- podem indicar a possibilidade de, no longo prazo, poder- po, à infra-estrutura pela qual os segmentos de baixa ren- se isolar o OP do clientelismo. Conclui-se que, apesar de da lutam. Porto Alegre ter sido a primeira cidade em que o OP se A tese de “empoderamento” dos pobres pode ser tam- transformou em uma política pública contínua, outras ci- bém questionada pela renda dos participantes. Apesar de dades, como Belo Horizonte, o estão adaptando às suas o OP não estar atingindo os muito pobres, a experiência circunstâncias locais, o que pode ser interpretado como está alcançando outro importante objetivo: redirecionan- um sinal de amadurecimento e pragmatismo. Por outro do recursos para áreas que historicamente sempre estive- lado, argumenta-se também que a tese de que o OP é uma ram excluídas das ações governamentais. Evidências mos- forma de mudar “velhas práticas clientelistas” pode não tram que, até então, a única forma de essas áreas receberem se sustentar em todas as cidades que o implantaram. investimentos era pela vinculação das respectivas comu- nidades a vereadores e candidatos a prefeitos durante os “Empoderamento” dos Desorganizados períodos eleitorais. Esses investimentos passavam a ge- rar dependência e eram, em geral, associados a favores e A tese de que o OP abriu o poder para os desorganiza- não a direitos. Essas áreas, que compõem grande parte das dos também exige debate e análise mais aprofundados. cidades brasileiras, são deixadas ao próprio destino ou Como foi mencionado a partir dos dados de Nylen (2000b), controladas por gangues de todo tipo, como vem mostrando um número significativo de participantes do OP eram en- a mídia, principalmente na periferia do Rio de Janeiro e gajados em ações comunitárias antes do OP. Dessa for- de São Paulo. Ao estimular a auto-organização dessas ma, não se pode afirmar que o OP motivou os desorgani- comunidades, o OP abre a oportunidade para que os mo- zados a participar do processo decisório e da política pela radores de baixa renda vejam a si mesmos como cidadãos, primeira vez. A tese poderia ser refeita para interpretar o não mais condenados a sobreviver à margem do Estado OP como um mecanismo capaz de assegurar um ativismo ou sob a proteção de uma gangue. Assim, a tese do político não elitista, na expressão de Nylen. Mudar o foco “empoderamento” dos pobres poderia ser substituída por da tese não implica reduzir a importância das conquistas aquela que vê o OP como uma forma de compensar áreas políticas do OP, especialmente em um país onde a assi- de baixa renda pela negligência histórica de administra- metria de poder é imensa.

94 CONSTRUÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DE INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS...

Vontade Política ocupando, em geral, entre o primeiro e o terceiro lugares no total da despesa dos estados e municípios, se um muni- A tese de que o OP é o resultado de forte vontade polí- cípio não era o principal responsável pela sua provisão, tica característica de partidos de esquerda também requer haveria mais recursos disponíveis para investir em políti- debate. Explicações baseadas em visões voluntaristas são, cas como o OP. em geral, problemáticas. Primeiro, essas visões pressupõem Dados das contas públicas subnacionais entre 1986 e que é possível mudar a realidade pela ação de poucos gru- 1990, por exemplo, mostram que, no caso de Porto Ale- pos, em especial grupos não hegemônicos no cenário de- gre, a administração municipal despendia em educação cisório local ou nacional. Segundo, essas visões desconsi- valores inferiores à média das demais capitais da região. deram a rede de circunstâncias e tradições que existem em Somente após 1991 a despesa de Porto Alegre atingiu a qualquer tipo de ação política. Terceiro, elas não expli- mesma média das demais capitais da Região Sul. No mes- cam por que alguns governos do PT deram prioridade a mo período, a despesa de Belo Horizonte com o Ensino outras políticas para integrar grupos excluídos, como a Fundamental era semelhante à de Porto Alegre. bolsa-escola em Brasília. Não explicam também por que o No que se refere ao número de matrículas no Ensino OP não foi bem-sucedido em Brasília, São Paulo e Santos, Fundamental, os governos locais no Brasil eram respon- apesar das tentativas de seus governantes. A tese da von- sáveis, nos anos 80, por cerca de 30% delas. As diferen- tade política poderia então ser refeita para argüir que al- ças entre as regiões era considerável: as matrículas sob guns governos locais escolheram o OP como sua marca responsabilidade dos governos locais no Nordeste e no registrada porque o programa lhes dá a oportunidade de Norte eram mais altas do que a média nacional (45% e aumentar a coalizão de governo. A recompensa dessa op- 39%, respectivamente), enquanto no Sul e no Sudeste as ção tem sido as sucessivas vitórias eleitorais que os gover- taxas eram de 18% e 30%, respectivamente (Souza, 1997). nos locais que privilegiaram o OP têm conseguido. Esses números podem indicar que uma das razões para um bem-sucedido OP seria, paradoxalmente, um papel Aumento das Receitas Locais reduzido do governo local na provisão do Ensino Funda- mental, o que deixava mais recursos orçamentários livres Outra tese que merece discussão é a que associa o su- para investimento em infra-estrutura, principal item da cesso do OP à reforma fiscal implantada por administra- despesa do OP em Porto Alegre e em Belo Horizonte. ções petistas. Isso porque não foi apenas o PT que assu- No entanto, após 1998, com a instituição, por iniciati- miu o compromisso de aumentar os recursos próprios e va do governo federal, do Fundef, criou-se um sistema que de ajustar as finanças locais. Essas políticas foram adota- pune financeiramente os municípios que não aumentarem das por várias cidades brasileiras, independentemente de as matrículas no Ensino Fundamental. Dessa forma, e con- filiação partidária. siderando que os recursos alocados em educação aumen- Outro problema com essa tese relaciona-se com o pa- taram no final dos anos 90, talvez seja possível argumen- drão de investimento e gasto público nas cidades brasilei- tar que o OP possa ter atingido o limite máximo de recursos ras. Apesar de o Brasil ser uma república federativa, a com- disponíveis, não apenas por causa da política de controle petência para legislar sobre inúmeras matérias é fiscal, mas também pelo papel ampliado que os municí- exclusivamente federal. Os governos subnacionais têm pou- pios passaram a ter na educação fundamental. A mudança co espaço para adotar legislação e política próprias em vá- promove mais impacto nos municípios mais populosos, rias matérias, especialmente se comparado com outros especialmente naqueles que tradicionalmente investiam países federativos. Apesar dessa uniformidade, no entan- menos em educação fundamental em virtude da presença to, o padrão de investimento das cidades brasileiras varia mais ativa do estado, como era o caso de Porto Alegre e consideravelmente, especialmente no gasto social. Esse de Belo Horizonte. ponto é importante porque, apesar de a Constituição esta- belecer que os municípios são os principais provedores da Aumento da Representação Política educação fundamental, outros níveis de governo também podem provê-la. Por essa razão, muitos estados eram, até Uma última questão merece ser debatida: a relação en- a criação do Fundef, os principais provedores da educa- tre o OP e o Legislativo local. Essa questão está no centro ção fundamental. Como a despesa com educação é alta, do debate corrente sobre o funcionamento do sistema re-

95 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 presentativo em países democráticos, heterogêneos e que NOTAS perseguem políticas participativas. Com políticas como o E-mail da autora: [email protected] OP, os vereadores são instados a partilhar sua prerrogativa Este artigo é uma síntese de um trabalho que integra a pesquisa “Go- de decidir sobre o que muitos vêm como seu principal pa- vernança Urbana, Pobreza e Parceria”, coordenada pelo International pel, isto é, a alocação de recursos públicos, não só com o Development Department da School of Public Policy da Universidade de Birmingham (GB). Agradeço a Marta Arretche, Richard Batley, Nick executivo mas também com os movimentos sociais organi- Devas, Marcus Melo, David Satterthwaite e Mark Setzler pelos inú- zados em torno do OP. Além do mais, com o OP; os vere- meros comentários e sugestões. adores e a elite local que eles representam perdem o mono- 1. A literatura sobre desenvolvimento, comunitarismo e capital social vem buscando enfrentar essa questão. Para tentar desvendar a combina- pólio da representação dos interesses locais e seu papel de ção dessas condições em duas cidades brasileiras, a partir do conceito um dos principais atores na sensível e conflituosa decisão de governança, ver Boschi (1999a). sobre alocação de recursos públicos escassos. Ademais, e 2. A experiência de Piracicaba, embora não tenha sido única, era rara porque os prefeitos eleitos pelo MDB tendiam a deixar o partido e filiar- como foi analisado por Dias (2000), a instituição de uma se à Arena logo após a eleição, como forma de receber recursos federais política como o OP gera problemas teóricos e práticos que e estaduais em uma época em que os recursos públicos estavam forte- mente concentrados na esfera federal. Castro (1988) registra, por exem- afetam o funcionamento do sistema formal de representa- plo, que nas eleições locais de 1976, dos 101 prefeitos eleitos pelo MDB ção de interesses, base das democracias ocidentais. 78 se transferiram para a Arena logo após as eleições. A questão da representação não afeta apenas os verea- 3. Outros governos locais analisados pelo Instituto Pólis foram Santos (Ferreira et alii, 1994), Ronda Alta e São João do Triunfo (Ferreira e dores. A literatura analisada faz referências, embora es- Ricci, 1992). Programas setoriais de cultura, urbanização de favelas e porádicas, a problemas de accountability e transparência crianças em situação de risco também foram analisados pela mesma instituição. Mais recentemente, outras ONGs, como o Ibase, passaram entre os delegados do OP e aqueles que eles representam. a desempenhar papel importante na disseminação e no treinamento de Apesar de eventualmente mencionar essa questão, a lite- políticas participativas. ratura não lhe dedica maior reflexão. Permanece obscuro 4. Abers (1998), por exemplo, registra que, com a introdução dos no- vos índices, o IPTU em Porto Alegre teve um aumento de 142%. San- se os mecanismos de participação têm reproduzido os mes- tos (1998) menciona que em 1990 o IPTU de Porto Alegre representa- mos problemas encontrados nos sistemas formais de re- va 5,8% dos recursos municipais; em 1992, 13,8% e, mais recente- mente, varia entre 17% e 18%. Esses números, é claro, impressionam, presentação. mas outras capitais, como Belo Horizonte e Vitória, registraram incre- mentos ainda mais expressivos. CONSIDERAÇÕES FINAIS 5. A experiência do Recife foi recentemente analisada por Melo et alii (2000). 6. Sobre os dilemas da participação na esfera local, ver Jacobi (1990). Este artigo sintetizou e debateu as principais possibili- 7. A defesa do autogoverno local e da participação comunitária não é, dades e limites do orçamento participativo em duas cida- obviamente, uma bandeira apenas dos partidos ou movimentos de es- des brasileiras, buscando correlacionar a experiência do OP querda. Alguns teóricos da escolha pública, por exemplo, defendem a substituição da democracia representativa pela democracia direta no com a construção de instituições democráticas e da cidada- território local como forma de enfrentar problemas como o rent-seeking nia e com a perspectiva do autogoverno local. Sejam quais e a maximização do orçamento. Ver, por exemplo, Santerre (1986). forem os méritos e os problemas dessa experiência, é im- 8. Essa literatura encontra-se disseminada em centenas de teses, disserta- ções, artigos e trabalhos apresentados em seminários. A seleção feita nes- portante realçar que não existe um modelo de OP, mas sim te trabalho privilegiou teses de doutorado, artigos em periódicos especia- várias experiências que adquiriram contornos diversifica- lizados e trabalhos de ONGs que focalizam o tema da participação. dos. O maior risco do OP talvez esteja na busca de copiá- 9. Vários trabalhos mostram que a maioria das cidades brasileiras, es- pecialmente onde vivem os mais pobres, têm poucos recursos disponí- lo, tendo em vista sua alta aceitação e visibilidade em cida- veis e pouco espaço para aumentar a arrecadação de recursos próprios, des que fizeram dele sua marca registrada. A força do OP dada a falta de atividade econômica e o tamanho da população pobre. em Porto Alegre e em Belo Horizonte parece estar na sua 10. O exemplo mais conhecido ocorreu em Brasília, com o programa bolsa-escola instituído pelo então governador Cristovam Buarque, do capacidade de inserir pessoas e comunidades historicamente PT, e abolido pelo seu sucessor, Joaquim Roriz. marginalizadas no processo político-decisório formal. Ao 11. Os cálculos de Setzler (2000) mostram que 38,4% das pessoas em Porto Alegre e 27,7% em Belo Horizonte participam de algum tipo de fazer com que esses cidadãos passem a ter o direito de de- associação. Como indicador de confiança comunitária, 40,7% em Porto cidir – e não apenas de ser ouvidos – é possível que se es- Alegre e 37,3% em Belo Horizonte acreditam que as associações de- teja gerando um impacto de mais longo prazo na extrema- fendem seus interesses. A desconfiança dos moradores de ambas as cidades, no entanto, é maior do que a confiança: 45,7% em Porto Ale- mente assimétrica correlação de forças no Brasil. Mas gre e 53,3% em Belo Horizonte não acreditam que as associações ou pode-se estar também abalando o frágil equilíbrio entre o os políticos defendam seus interesses. executivo e o legislativo locais, com conseqüências para o 12. Práticas clientelistas ainda vigentes na Câmara de Vereadores de Belo Horizonte em relação ao orçamento foram relatadas por Azevedo sistema representativo formal. e Avritzer (1994), Pereira (1996) e Setzler (2000).

96 CONSTRUÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DE INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS...

13. Até onde tenho conhecimento, o trabalho de Dias (2000) é pionei- JACOBI, P. e TEIXEIRA, M.A.C. “Orçamento participativo: co-res- ro na análise sobre os efeitos da participação direta da população na ponsabilidade na gestão das cidades”. São Paulo em Perspectiva. distribuição orçamentária em relação à Câmara de Vereadores. Além São Paulo, Fundação Seade, v.10, n.13, 1996, p.119-128. do pioneirismo, o trabalho introduz importante discussão teórica e JAYME, Jr. F. e MARQUETTI, A. “Descentralização tributária e empírica sobre os dilemas entre representação e participação. performance econômica das capitais brasileiras: 1989-1994”. Tra- 14. Essa tem sido uma característica recorrente no Brasil, inclusive du- balho apresentado no Encontro Anual da LASA, Chicago, 1998. rante o regime militar, como mostrado por Batley (1991). No entanto, a LARANGEIRA, S. “Gestão pública e participação: a experiência do literatura recente sobre melhores práticas vem argumentando que progra- orçamento participativo em Porto Alegre”. São Paulo em Pers- mas reconhecidos como bem-sucedidos estão sendo mantidos pelos go- pectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.10, n.13, 1996, p.129-37. vernos seguintes, independentemente de diferenças ideológico-partidárias. MATTHAEUS, H. Urban management, participation and the poor in Porto Alegre/Brazil. Tese de Doutorado. Birmingham, Institute of International Development, School of Public Policy, 1995. MELO, M.A. “Crise federativa, guerra fiscal e ‘hobbesianismo munici- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS pal’: efeitos perversos da descentralização?”. São Paulo em Pers- pectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.10, n.13, 1996, p.11-20. 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97 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 CULTURA POLÍTICA PARTICIPATIVA E DESCONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA reflexões sobre o Brasil contemporâneo

MARCELLO BAQUERO Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo: Exame de alguns dos fatores histórico-estruturais, cuja influência tem se mostrado significativa na estruturação de padrões de atitudes e comportamentos de desconfiança e desencanto da sociedade brasileira em relação às suas instituições políticas e, principalmente, aos políticos. Os resultados do estudo indicam que a existência de fatores dessa natureza acabam por descaracterizar a democracia no país e permitem o surgi- mento de formas antidemocráticas de governar. Palavras-chave: cultura política; instituições políticas; democracia.

s dificuldades que o Brasil enfrenta presente- discutida está centrada na idéia de que, na verdade, hou- mente de solidificação de seus partidos políti- ve uma modificação nas atitudes e no comportamento dos A cos como mediadores entre Estado e socieda- brasileiros em relação à política, fruto de um conjunto de de; a não-consolidação de uma economia que estabele- fatores (o mercado, a globalização, a informática, entre ça parâmetros mínimos de redistribuição de riqueza; e outros), porém, na essência, os brasileiros continuam a a onda generalizada de corrupção institucional e o agra- desacreditar nas instituições que constituem o pilar da vamento da situação social no país, propiciam algumas democracia representativa. Observa-se uma adaptação das reflexões sobre o impacto desses fatores na estrutura- instituições democráticas a uma prática de uso de proce- ção da cultura política do país, bem como uma avalia- dimentos antidemocráticos que pervertem a representação ção do próprio processo de construção democrática. De política, gerando dúvidas e incertezas sobre o futuro da maneira geral, nos últimos anos, as pesquisas de opi- democracia. Isso se verifica não no sentido de favorecer nião pública têm revelado um declínio acentuado da retrocessos institucionais ou rupturas profundas, mas na confiança que os brasileiros depositam nas instituições institucionalização de atitudes de indiferença, apatia e políticas e particularmente na classe política. Nota-se distanciamento da arena política, e na crença de que não claramente, também, uma fragilização dos laços sociais há nada que se possa fazer para mudar o atual estado de e a institucionalização do individualismo, com o inte- coisas. Tais atitudes podem ser muito mais deletérias ao resse privado ou individual se sobrepondo ao interesse processo de construção democrática a longo prazo. Vê- coletivo. Poder-se-ia argumentar que essa situação não se, por exemplo, que apesar de vários mandatários latino- constitui uma novidade, pois sempre foi assim, e, ain- americanos terem sido depostos por mobilizações popu- da mais, a presença desses fatores na sociedade brasi- lares (Collor no Brasil, Fujimori no Peru, Bucaram e leira não poderia ofuscar os avanços obtidos no campo Mahuad, no Equador, e Peres, na Venezuela), essas mo- da democratização ao longo das duas últimas décadas. bilizações não conseguiram se transformar em eixos per- O argumento que este trabalho se propõe a desenvol- manentes de maior participação da sociedade civil. A não- ver tem o objetivo de avaliar se, de fato, os avanços no resolução dos problemas mais imediatos (nas áreas de campo formal da política têm sido suficientes para gerar emprego, saúde e educação), que levaram à deposição uma base na qual esteja se desenvolvendo uma cultura desses executivos, parece ter operado para gerar um sen- política democrática e participativa. A problemática a ser timento de impotência, acirrado pela forma de funciona-

98 CULTURA POLÍTICA PARTICIPATIVA E DESCONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA... mento das leis, dando a idéia de que a justiça se faz ape- estruturais da sociabilidade brasileira. O fator preponderan- nas para os mais abastados. te desta linha de análise é a influência do clientelismo, o Para respaldar esta análise, busca-se, num primeiro personalismo e a incapacidade do povo na suposta incapaci- momento, resgatar alguns fatores de caráter histórico-es- dade da sociedade em se mobilizar autonomamente para fis- trutural que possibilitem uma compreensão contextualizada calizar e modificar o processo político. A forma de evolução de como foram condicionadas as crenças e os valores em do Estado teria propiciado a socialização de valores de dis- relação à política. Não se trata de estabelecer um tanciamento e apatia tornando sua influência na política im- determinismo histórico, mas de tentar compreender a in- provável. Essa tendência não participativa era conseqüência fluência que essas matrizes tiveram na estruturação de uma de governos e de uma estrutura social que favoreciam muito mentalidade coletiva que privilegia o distanciamento, o mais a desmobilização e a inércia do que a participação ci- desencanto e a desconfiança generalizada. Num segundo dadã. Estabeleceu-se um consenso generalizado de que o país momento, avaliam-se, de maneira ampla, resultados de não tinha capacidade de reformar efetivamente as estruturas pesquisas de opinião, que mostram haver a institucionali- tradicionais do Estado, gerando um descompasso entre um zação de uma cultura política fragmentada e de descon- acelerado desenvolvimento econômico e uma estagnação do fiança. Finalmente, sugere-se, pela importância, o desen- desenvolvimento político, materializado na ausência de uma volvimento de associações informais, as quais deveriam cidadania organizada e eficaz na defesa de seus interesses, o funcionar concomitantemente com as organizações tradi- que somou uma deficiente mediação entre Estado-socieda- cionais formais, com vistas a uma cidadania mais crítica de e partidos. e participativa e com mais capital social. Tais elementos deram suporte ao surgimento da tecno- cracia, que serviria de eixo catalisador do “desenvolvi- RETROSPECTO HISTÓRICO mento” do País a partir dos anos 50, colocando a partici- pação popular como algo secundário. Fica claro, hoje, que o Estado brasileiro, ao contrário A tecnocracia surge, portanto, como o principal ator das nações européias, nunca foi capaz de expressar sua da industrialização no Brasil. Assim, enquanto o núcleo própria história e que tem sido, antes de mais nada, um das decisões estatais ficou a cargo dos técnicos insulados receptor aberto da história do Ocidente desenvolvido. Com nas agências estatais, deixou-se o espólio do sistema para efeito, a compreensão da especificidade histórica do país o uso da política de clientela e do corporativismo; práti- é condição indispensável para reconceituar o sentido da cas que seriam realizadas, aí sim, pela classe política si- política e a natureza das relações sociais aí existentes. tuada no parlamento. Como o parlamento passa a de- Freqüentemente se constata, na bibliografia sobre a evo- sempenhar um papel historicamente secundário na esfera lução do Estado no Brasil, e com certa razão, a influência das grandes decisões estatais no Brasil, decorrente dessa de um passado de instabilidade política e econômica, bem dinâmica, a hipertrofia do poder Executivo passa a ser uma como de um legado autoritário que tem obstaculizado a característica prevalecente no Brasil. construção de uma cultura política verdadeiramente de- Uma das conseqüências desse tipo de pensamento mocrática no País. culturalista, por exemplo, foi a sugestão de Oliveira Viana Uma perspectiva teórica que dominou o pensamento e de seus seguidores de que somente um sistema autoritá- político brasileiro por muito tempo dizia respeito ao im- rio e centralizador poderia construir o verdadeiro Estado pacto dos fatores étnico-culturais na formação da socie- nacional. dade brasileira. Essa abordagem, denominada culturalista, Nesse sentido, o Estado, dominado pela tecnocracia trabalhando no plano simbólico-ideológico, examinou de e por procedimentos clientelísticos, personalistas e que forma se institucionalizou o poder político no Brasil. corporativistas, propicia a institucionalização do cha- Dessa perspectiva procurava encontrar as raízes do cará- mado Estado Patrimonialista (Uricoechea, 1978). ter nacional da nação. Quanto ao patrimonialismo, encontra-se na obra de Entre os autores mais significativos associados a esta li- Raymundo Faoro (1989) um dos principais trabalhos acer- nha de pensamento encontram-se Joaquim Nabuco, Alberto ca desse tema. Para o autor, o atraso político brasileiro, Torres, Oliveira Viana, Azevedo Amaral, Gilberto Freire, do ponto de vista da incorporação da sociedade civil, tem Guerreiro Ramos e Francisco Campos. O ponto de conver- a ver com a forma de estruturação da burocracia no país. gência entre eles está na tentativa de resgatar as matrizes Fruto do avanço sistemático do poder político no contro-

99 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 le da economia e da diferenciação social, o patrimonia- no direito natural, com uma identidade vertical, caracte- lismo ou o mercantilismo estatal destruiu a institucionali- rística das sociedades não-ocidentais, nas quais predomi- zação dos direitos individuais. Os burocratas da corte nam as tradições e a continuidade cultural. passaram a ter status maior do que os da fidalguia, que Perspectiva diferente, na dimensão institucional, apre- perdem seu poder econômico durante o processo de ex- senta Raymundo Faoro na obra Os donos do poder (1989), pansão comercial. em que caracterizava o Estado no Brasil como uma ex- Esse conjunto de fatores da sociabilidade brasileira tensão do patrimonialismo ibérico, um poder imposto a propiciou, segundo Buarque de Holanda (1992), o esta- uma sociedade dominada pela política de manutenção do belecimento de quatro elementos que caracterizaram a poder vigente. organização social brasileira: ausência da tendência de Nesse sentido, pode-se dizer que a experiência políti- autogoverno, a qual significava a ausência de solidarie- ca brasileira tem se caracterizado pela predominância de dade comunitária e de maneiras espontâneas de auto-or- formas autoritárias de governo, gerando, como conseqüên- ganização política; virtudes inativas, ou seja, o ser social cia, uma restrição às possibilidades de uma participação não reflete ativamente para transformar a realidade, mas política mais efetiva. O impacto do autoritarismo, ao lon- procura uma razão externa a sua existência; e razão refle- go das últimas décadas, não permitiu que se desenvolves- xiva, a qual provoca um pensamento que impede rompi- se um cenário no qual a ingerência da sociedade civil no mentos, sustenta uma consciência conservadora e um do- Estado fosse significativa. Após 1974, com o processo de mínio dos interesses pelas paixões. abertura política, o país atravessaria fases com amplas De acordo com essa concepção, a sociabilidade brasi- manifestações de massa, dentre elas a marcha pelas dire- leira nasceu influenciada pela pirâmide familiar, tendo tas, em 1984; as manifestações pelo impeachment do pre- como fundamento a organização patriarcal, a fragmenta- sidente Collor; a CPI dos anões, e as várias CPIs que têm ção social, as lutas entre as famílias, as virtudes inativas e se instalado ao longo do tempo. Esses acontecimentos, en- a Ética da aventura. Originalmente o caudilhismo e, pos- tretanto, que em outras circunstâncias poderiam consti- teriormente, o coronelismo, que implicava a existência de tuir matrizes capazes de catalisar modalidades de partici- lideranças carismáticas, substituíam a racionalidade dos pação mais duradouras e objetivas, acabam sendo interesses individuais e estabeleciam a matriz sobre a qual relegados a um segundo plano em relação às crises eco- a organização social e as fundações da política e do Esta- nômica e social que vêm abalando o país, apesar da exis- do foram delineadas. tência de indicadores estatísticos que mostram uma ex- Com efeito, na medida em que as relações afetivas ou fa- pansão industrial e uma recuperação da economia. miliares precederam a constituição do espaço público, o po- Outrossim, historicamente, os instrumentos necessários der público incorporou uma dimensão personalista em que o para uma construção democrática caracterizada pela par- carisma-onipotente e a dependência do homem comum ge- ticipação política estavam ausentes ou funcionavam de raram uma atitude instrumental em relação à política. maneira precária ou com predisposições ideológicas de- Nos anos 80, a abordagem culturalista solidifica-se com terminadas. Um dos instrumentos de grande impacto, nesse a obra de Roberto DaMata (1993) em sua análise dos fe- sentido, são os meios de comunicação. Ao lado disso, o(s) nômenos sociais e da linguagem, examinando as causas sistema(s) partidário(s) frágil(eis) e com pouca credibili- da desigualdade e das formas de hierarquia existentes no dade não têm constituído um instrumento de canalização, Brasil. Já no exame das representações sociais e das con- de mobilização e de participação política. Nesse contex- cepções de cidadania, verifica-se o confronto da autori- to, os pleitos eleitorais têm se caracterizado, ao longo do dade social, baseada, de um lado, no personalismo e na tempo, por apelos subjetivos, emocionais, personalistas e identidade vertical, e, de outro, na lei positiva. Nesse con- clientelistas. texto, segundo DaMata, enquanto o conhecido medalhão Diante desse cenário, caberia indagar que tipo de cons- determina as iniciativas da ação coletiva, o personalismo, trução democrática está em andamento no Brasil? como modelo típico desse tipo de relações sociais, institucionaliza-se. DEMOCRACIA E CULTURA POLÍTICA A conclusão do autor é a de que a sociedade brasileira pode ser caracterizada como sendo híbrida, pois combina Um conceito que surgiu nos últimos anos, para avaliar uma identidade horizontal, tipicamente ocidental e baseada a saúde democrática do país, é a desconsolidação demo-

100 CULTURA POLÍTICA PARTICIPATIVA E DESCONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA... crática. Típico desse processo seria o uso privado das ins- constata-se, simultaneamente, um crescimento da exclu- tituições públicas, que a versão da democracia contem- são social e o aumento da pobreza, transformando a so- porânea tem possibilitado, em que os poderes e os inte- ciedade brasileira não numa sociedade de interesses, mas resses econômicos utilizam os poderes políticos e as numa nação de necessidades. Entretanto, diferentemente instituições democráticas para continuar a exercer, com dos interesses que podem ser objetivamente representa- legitimidade e eficácia, sua dominação e seu regime de dos, as necessidades passam pelo crivo imaginário dos enriquecimento. representantes eleitos e, portanto, de um modo geral, não Para grande parcela da comunidade acadêmica, parece são representadas politicamente. que a versão duracionista da democracia é mais impor- Nos últimos anos, assistimos a uma reconversão da tante do que os resultados sociais que ela gera. Pensa-se representação política que tem se orientado na defesa dos que uma democracia se consolida meramente pela sua ca- interesses privados. Dessa forma, ao mesmo tempo que pacidade de sobreviver a atentados contra sua institucio- se legitima democraticamente uma dominação mais efi- nalidade. O que constatamos no Brasil contemporâneo é caz sobre a sociedade e uma maior concentração de ri- que a democracia está se sustentando, mas suas institui- quezas, as instituições políticas democráticas são desle- ções, longe de se consolidarem, estão cada vez mais sub- gitimadas. metidas aos interesses privados dos setores econômicos. A conseqüência da grave crise de representação políti- Schmitter (1994), em uma avaliação das democracias la- ca que o país vive tem redundado numa situação parado- tino-americanas, porém aplicável ao caso brasileiro, su- xal em que, por um lado, busca-se o fortalecimento das gere que, apesar das instituições funcionarem anti- instituições via reformas políticas, enquanto, por outro, democraticamente com governos que não governam, buscam-se ou resgatam-se lideranças políticas cujo carisma parlamentos com mais representatividade privada do que é sempre proporcional à sua capacidade de se impor às política, eleições que elegem candidatos mas não os legi- instituições, o que acaba deslegitimando-as ainda mais. timam, instituições políticas que servem para o linchamen- O resultado é a vigência de um ciclo vicioso, pois quanto to político e vinganças privadas, dão lugar a uma desor- maior a deslegitimação institucional, maior também a exi- dem democrática capaz de desordenar qualquer ordem e gência de líderes carismáticos, os quais contribuem para ordenamento social, mas que, paradoxalmente, são natu- neutralizar e desacreditar essas mesmas instituições. ralizadas por toda a sociedade. Conseqüência dessa desor- A chamada durabilidade da democracia nesse contex- dem é a idéia de que uma alternativa aos déficits de repre- to se dá às custas da perversão da legitimidade e da eficá- sentação política seria a maior participação política e, cia democráticas. Se a deslegitimação é grande, a ineficá- ignora-se, no entanto, que a participação requer uma melho- cia é maior, tendo em vista que os problemas do país cada ria da própria representação, o que em realidade não ocorre. vez mais são resolvidos por meios não democráticos (me- Em conseqüência disso, tem-se tornado corriqueiro exa- didas provisórias; loteamento de cargos; negociações es- minar as conseqüências dos déficits de representação po- púrias). Atualmente, por exemplo, fala-se muito na exis- lítica, deixando-se de examinar suas causas reais; de tência de um clientelismo de coalisão no governo federal maneira geral, o Congresso e os partidos políticos apare- (Avritzer, 2001). cem como os principais responsáveis pelas falhas na re- O enriquecimento de uma pequena parcela da popula- presentação política. Sem eximir sua parte nesse proces- ção brasileira, enquanto a maioria enfrenta as incertezas so, seria pertinente resgatar a influência dos condicionantes de uma economia de mercado e o não-atendimento de suas histórico-sociais no processo de representação política e necessidades básicas, tem se tornado possível num con- de sua crise. Esse problema se agrava na atualidade em texto democrático, precisamente porque as instituições virtude do aprofundamento da heterogeneidade estrutu- democráticas, em vez de desempenharem seus papéis es- ral, que torna quase inviável a representação efetiva dos pecíficos, de funcionarem democraticamente, têm, ao con- diferentes interesses sociais. trário, servido de apoio a setores que, com maior eficácia O papel dos partidos políticos se vê hoje comprometi- e legitimidade, reproduzem sua dominação e seu enrique- do na sua função de agregação de interesses, pela insufi- cimento. ciência da consolidação democrática. Por um lado, o mo- O neoliberalismo consegue, portanto, algo inédito, qual delo político vigente tem permitido maior concentração seja, sem destruir as instituições democráticas, submetê- de renda, legitimada pelo dogma neoliberal; por outro, las aos seus interesses e utilizá-las como instrumentos de

101 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 dominação e enriquecimento ilícito. Nesse sentido, a de- tempo, pois “a menos que grandes rupturas históricas for- mocracia, na sua versão brasileira, tanto opera na gestão cem os grupos sociais a redefinir esses padrões, a cultura e administração de conflitos políticos, como permite a política continuará a reproduzir-se de acordo com as ma- maior concentração de renda já observada na história do trizes originais”. país. O paradoxo da democracia brasileira parece ser o de Nesse sentido, o que importa destacar é que a cultura que, quanto mais ela dura, mais é pervertida, graças ao política ocupa um lugar central no cotidiano dos indiví- processo de globalização que tem possibilitado aos órgãos duos, podendo servir tanto para regular a transmissão de internacionais repetirem reiteradamente que sem legitimi- valores políticos, quanto para legitimar o funcionamento dade democrática não há apoio para o desenvolvimento, das instituições políticas. A forma como se constrói e se colocando o país numa situação de dependência neoco- difunde essa cultura está diretamente relacionada a como lonialista (Casanova, 1995). se reproduzem os comportamentos, as normas e os valo- Talvez a institucionalização dos procedimentos, como res políticos de determinada comunidade. sendo suficientes na construção democrática do país, te- Desse ponto de vista, a análise da cultura política de nha levado a negligenciar o fato de a democracia brasilei- uma sociedade pressupõe a necessidade de caracterizar ra estar em processo de deterioração e degradação. A du- os diferentes contextos histórico-culturais que irão con- rabilidade do modelo democrático parece se sobrepor aos tribuir para a sua configuração. Assim sendo, a compreen- custos sociais de sua precariedade, visto serem eles são da sociedade brasileira deve ser vista como resultado internalizados e pagos com o aumento da pobreza e da de um processo interativo e cumulativo de experiências exclusão social, ao passo que os lucros são externalizados, vividas, cujas matrizes políticas podem ser identificadas beneficiando os defensores da globalização. Por efeito pela determinação de seu processo de formação histórica. dessas características, que operam contra as instituições Dessa perspectiva, interessa destacar neste trabalho o democráticas, a democracia funciona cada vez mais impacto do modelo político vigente no país nas relações antidemocraticamente e antiinstitucionalmente. Não é sociais e políticas. Até que ponto, por exemplo, o neoli- novidade, portanto, encontrar nas pesquisas de opinião beralismo não tem conseguido eliminar traços tradicionais pública o pouco apego e confiabilidade que os cidadãos da política brasileira. Em primeiro lugar, é importante brasileiros depositam nas suas instituições políticas. Em constatar que a bibliografia sobre democracia, de modo média, nos últimos 15 anos, os partidos são avaliados ne- geral, aponta para a necessidade de instituições mediado- gativamente por mais de 60% da população brasileira ras eficazes, democráticas e com legitimidade, como fa- (Baquero, 2000). O resultado é o distanciamento e a crise tor fundamental para o desenvolvimento democrático. permanente das instituições políticas, levando ao fortale- Numa retrospectiva histórica daqueles países considera- cimento do personalismo como instrumento de governa- dos avançados, verifica-se que conseguiram estabelecer bilidade. Na verdade, vivemos numa democracia perma- uma democracia duradoura, atravessando etapas históri- nentemente instável. cas que se iniciaram com relações primárias – a família Assim, repensar o processo histórico que deu origem à era o núcleo em torno do qual os cidadãos transitavam. A formação de valores, normas e atitudes que norteiam o com- identidade social era grupal ou familiar. portamento político na sociedade brasileira é, sem dúvida, Com o advento da urbanização e da modernização, que uma tarefa bastante complexa, porque se de um lado nos impactaram a noção de família, surgem as chamadas rela- deparamos com uma ampla bibliografia enfocando aspectos ções sociais secundárias em que as instituições políticas, socioculturais, políticos e econômicos, de outro encontramos especificamente os partidos políticos, catalisam identida- poucos estudos que nos permitam entender como se forjou a des coletivas. É a fase da consolidação da democracia re- consciência política desta sociedade e de que modo ela tem presentativa, na qual os partidos são os mediadores das se expressado em sua cultura política. demandas da sociedade civil. É a solidificação das relações Se cultura política é vista ao mesmo tempo como cau- secundárias que fortalecem o sistema democrático. No en- sa e conseqüência do funcionamento do sistema político tanto, observa-se no Brasil o surgimento e prevalência das (Lamounier e Souza, 1991:311), pode-se afirmar que a cul- relações sociais terciárias, em virtude da precariedade dos tura política de uma sociedade é resultado de um padrão partidos políticos. Por relações sociais terciárias entende- de orientações cognitivas, emocionais e valorativas que, se o estabelecimento de uma relação direta entre Estado e além de estáveis, tornam-se vivas e atuantes ao longo do indivíduo, em detrimento dos partidos políticos.

102 CULTURA POLÍTICA PARTICIPATIVA E DESCONSOLIDAÇÃO DEMOCRÁTICA...

Relações sociais dessa natureza têm-se fortalecido nos populações mais carentes. Destaca-se aqui, especificamen- últimos governos neoliberais, cuja estratégia, no campo te, o narcotráfico. Essas organizações estão propiciando político, orienta-se para fragilizar o sistema de represen- o aumento da criminalidade e da marginalização, levando tação política. Um dos exemplos disso seria o enfraqueci- os grupos tradicionalmente excluídos dos benefícios so- mento da estrutura sindical. A própria instalação de uma ciais a legitimar ações deletérias em nome de uma nova economia de mercado, ao catalisar o desemprego estrutu- cidadania. Pesquisas realizadas na área antropológica ral e o surgimento de uma economia informal, vulnerabiliza mostram adolescentes que matam por um par de tênis por- os setores mais frágeis da sociedade. Os partidos, por sua que consideram ser esse um ato de manifestação de cida- vez, historicamente frágeis, tornam-se mais deficientes dania. como instituições de identidades coletivas em economias Esses dados indicam que o país vive, no presente, uma de mercado. situação em que prevalece o princípio de exclusão social. Não é surpreendente, portanto, o surgimento do cha- Paradoxalmente, os governantes tendem a considerar essa mado neopopulismo, definido como surgimento de líde- situação como inevitável e a desigualdade social, um fato res personalistas que contam com o apoio da população natural. em virtude de suas características pessoais e defendem o Dessa maneira, constata-se uma crise dominante da receituário neoliberal, o qual age contra essa mesma po- legitimidade do Estado no país. As pessoas parecem não pulação para instalar a austeridade econômica e os ajus- mais acreditar na autoridade constituída. Roberto DaMata tes estruturais que agravam a situação social do povo. O (1993) ilustra bem esse ponto ao observar que as pessoas, Brasil, junto com outros países da América Latina, como quando se sentem ameaçadas, aumentam a altura das gra- Peru e Argentina, é o exemplo mais emblemático desse des das suas residências, em vez de pressionar o Estado neopopulismo contemporâneo. na busca de soluções para o problema da violência. Na Ao mesmo tempo, um componente que tem se tornado área da educação pública, que conta com recursos mate- evidente no Brasil é a aceitação, por parte significativa riais, quando insatisfeitos com a qualidade do ensino, não da sociedade, de um discurso que contrapõe a continuida- lutam por melhores escolas mas transferem seus filhos para de ao caos, para viabilizar a manutenção no poder e a re- escolas particulares. eleição de líderes que defendem esse modelo. A vulnera- Todos esses elementos sugerem que, longe de se estar bilidade objetiva da população, nesse contexto, possibilita construindo uma cultura política participativa e democrá- que as pessoas internalizem a crença de que, a menos que tica, materializa-se uma cultura política fragmentada e se dê continuidade aos governos para terminar as refor- individualista, com pouco capital social. Trata-se, portanto, mas, o caos se instalará comprometendo a estabilidade de- de considerar importante que hoje o desenvolvimento de mocrática. redes baseadas na confiança interpessoal poderia consti- Aqui surge um outro ponto da cultura política brasilei- tuir o mecanismo de resgate da sociedade civil, para um ra a ser considerado. Estabeleceu-se uma relação causal comportamento mais crítico e fiscalizador da coisa públi- entre estabilidade econômica e estabilidade social e de- ca. O que se observa, entretanto, é um sentimento gene- mocrática, desmentida pela realidade. A maior parte dos ralizado de desconfiança entre as pessoas e em relação ao países do mundo em desenvolvimento, onde se alcançou Estado e suas instituições. a estabilidade econômica, está longe de ser modelo de Como decorrência dessa cultura, constata-se o surgi- estabilidade social, se por estabilidade social se entende mento de um eleitor individualista e pragmático, cujo com- a crença dos cidadãos na democracia e nas instituições portamento político se guia por princípios de eficácia ad- em virtude de elas serem capazes de solucionar os pro- ministrativa e capacidade gerencial e não por princípios blemas sociais básicos (transporte, educação, emprego e ideológicos. saúde). O que as pesquisas de opinião pública, feitas nos últimos anos no país, mostram é que há um declínio signi- CONCLUSÃO ficativo de apoio dos cidadãos ao atual sistema político. Uma das conseqüências mais marcantes do neolibera- Examinou-se o processo de formação de crenças e atitu- lismo também tem sido o de possibilitar o surgimento de des da sociedade brasileira no momento atual, a partir de organizações paraestatais, organizações que funcionam à reflexões de caráter histórico, tendo como parâmetro os di- margem da lei e que contam com o apoio significativo das ferentes momentos em que foram estabelecidas as bases de

103 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 um comportamento mais orientado a relações sociais de ca- NOTA ráter paternalista, personalista e clientelista. Não surpreen- E-mail do autor: [email protected] de, por exemplo, a pouca participação dos brasileiros na política num sentido mais amplo, que vá além do simples ato de votar. Vivemos presentemente uma situação de elevados déficits de capital social, que permite a permanência de uma REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS cultura política desafeta à participação. AVRITZER, L. “O pano de fundo da crise é a concepção de aliança A maneira como a democracia funciona hoje possibilita a política de FHC”. Conjuntura Política. Minas Gerais, jun. 2001, institucionalização de formas antidemocráticas de governar. p.1-4. BAQUERO, M. A vulnerabilidade dos partidos políticos e a crise da O questionamento crescente de parte da sociedade civil às democracia na América Latina. Porto Alegre, Editora da UFRGS, ações governamentais está ocasionando uma situação de ero- 2000. são dos princípios democráticos, sem que isto signifique uma CASANOVA, P.G. O colonialismo global e a democracia. Rio de potencial ruptura institucional. O modelo neoliberal vigente Janeiro, Civilização Brasileira, 1995. DaMATA, R. “Reflexões sobre o público e o privado no Brasil: um parece ter conseguido estabelecer padrões de comportamento ponto de vista perverso”. Cadernos de Ciências Sociais. Minas em que os cidadãos e as autoridades públicas se tornam indi- Gerais, v.3, n.3, abr. 1993, p.51-62. ferentes à continuidade de um conjunto de procedimentos FAORO, R. Os donos do poder. Rio de Janeiro, Globo, 1989. que, claramente, compromete-se a construção democrática HOLANDA, S.B. de. Visão do paraíso. Rio de Janeiro, Brasiliense, efetiva no país. Um dos pontos a enfatizar é o acúmulo de 1992. LAMOUNIER, B. e SOUZA, A. de. “Democracia e reforma institu- experiências que ocorre no país e, como forma antide- cional no Brasil: uma cultura política em mudança”. Dados, v.34, mocrática de resolução de problemas, uma vez internalizados n.3, 1991, p.311-348. pelas pessoas, constitui a base de uma memória coletiva di- SCHMITTER, P. “Dangers and dilemmas of democracy”. Journal of fícil de ser alterada. Nessa dimensão, a ausência de capital Democracy, v.5, n.2, 1994. URICOECHEA, F. O minotauro imperial. São Paulo, Difel, 1978. social, fruto da falta de confiança interpessoal e da falta de VIANA, O. Problemas de organização e problemas de decisão: o povo confiança nas instituições, pode levar à manutenção de um e o governo. Rio de Janeiro, Record Cultural, 1974 (Edição pós- sistema democrático permanentemente instável. tuma).

104 A AÇÃO POLÍTICA DO MST A AÇÃO POLÍTICA DO MST

BRUNO KONDER COMPARATO Cientista Político, Doutorando na FFLCH-USP

Resumo: Estudo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) como ator político. A partir de uma ampla pesquisa em material jornalístico, verificou-se que o MST conquistou um espaço político impor- tante no quadro público atual, contrariando toda uma suposta tradição de passividade e anomia do povo bra- sileiro, ao conseguir se organizar, ter força política e desafiar os poderes constituídos. Palavras-chave: reforma agrária; MST; ator político.

m reação à ocupação da sua fazenda pelo Movi- ma diferente de reivindicação social, ou, se preferirmos, mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra de uma nova forma de atuação política. E (MST), em abril de 2001, o embaixador do Brasil A partir de uma ampla pesquisa em material jornalístico, na Itália, Paulo Tarso Flecha de Lima, comentou que o verifica-se que o MST conquistou um espaço político im- objetivo da invasão era político e sem justificativa portante no quadro público atual, e, contrariando toda uma fundiária e social. De maneira semelhante, o ministro do suposta tradição de passividade e anomia do povo brasilei- Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, acusou o MST ro, consegue se organizar, ter força política e desafiar os de agir politicamente e se recusou a receber o movimento poderes constituídos. Uma análise detalhada do relaciona- (O Estado de S.Paulo, 03/04/2001; Folha de S.Paulo, 05/ mento entre o MST e o governo, o Congresso, a imprensa, 04/2001). Essas reações são significativas porque mos- a Igreja e a opinião pública, revelou que o movimento cres- tram que o governo brasileiro considera o MST um grupo ceu e se expandiu durante a presidência de Fernando que atua de forma política. Mas elas ilustram também a Henrique Cardoso, e não pode mais ser ignorado. tática do governo de desqualificar constantemente esse mo- vimento e dificultar as negociações. O MST E A LUTA PELA TERRA Em um país de dimensões continentais como o Brasil, no qual a maioria dos partidos políticos é tradicionalmen- O MST surgiu da reunião de vários movimentos popu- te fraca e regionalizada, os outros atores políticos não po- lares de luta pela terra, os quais promoveram ocupações dem ser negligenciados. Principalmente quando estão pre- de terra nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, sentes em escala nacional, caso do MST. Deve-se prestar Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul, na primeira me- especial atenção aos grupos que estabelecem uma novi- tade da década de 80. Oficialmente, o MST foi fundado dade no cenário político nacional. Pode-se dizer que o em janeiro de 1984, na cidade de Cascavel, no Estado do MST constitui um ator político novo, mesmo que nenhu- Paraná, por ocasião do Primeiro Encontro Nacional do ma de suas ações ou características organizativas seja ori- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com 80 ginal. A novidade está na articulação, feita a partir de tá- representantes de 13 Estados. Atualmente, o movimento ticas e elementos já conhecidos, e na habilidade política está presente em 23 dos 26 Estados da federação, e é ca- que o movimento tem demonstrado, ao fazer aliados em paz de organizar manifestações em duas dezenas de capi- vários segmentos da sociedade civil. Trata-se de uma for- tais simultaneamente. Pelas últimas estimativas, os efeti-

105 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 vos do MST se elevam a 350 mil famílias assentadas e 70 que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrá- mil famílias em acampamentos, o que representa cerca de ria (Incra) não sabia quantas invasões tinham sido efeti- 1,5 milhão de pessoas. vadas nos anos anteriores (Folha de S.Paulo, 05/04/94). Naturalmente, o MST não é o primeiro movimento de Cinco anos mais tarde, as informações sobre o MST pas- luta pela terra. Na história do Brasil há vários relatos de saram a ser sistematicamente compiladas por um “gabi- revoltas camponesas. Todos os movimentos anteriores, nete de crises”, ligado ao Gabinete de Segurança Institu- contudo, permaneceram limitados à região em que sur- cional (GSI) da Presidência da República, e instalado no giram. A ação das Ligas Camponesas, nos anos 60 con- quarto andar do Palácio do Planalto. Num grande mapa centrou-se no Estado de Pernambuco e adjacências. O mes- são periodicamente registradas as áreas ocupadas, os acam- mo aconteceu com Canudos, no final do século XIX, e pamentos, as escolas de formação de militantes e até as com o Contestado, no começo do século XX, que ficaram dissidências do MST (Valor, 09/06/2000). Faz-se neces- restritos ao nordeste da Bahia e ao oeste catarinense. Além sário ressaltar que, entre essas duas datas, dois aconteci- disso, tanto em Canudos quanto no Contestado, os mentos importantes obrigaram o governo a dedicar maior revoltosos eram animados por aspectos messiânicos e atenção ao MST: o massacre de Eldorado dos Carajás, místicos, e ansiavam mais por um retorno ao passado do ocorrido em 17 de abril de 1996, e a Marcha a Brasília, que por uma transformação do presente (Candido, 1998; realizada de fevereiro a abril de 1997. Com efeito, apesar Cunha, 1979; Martins, 1995; Monteiro, 1974; Queiroz, de ter incluído a reforma agrária no plano de governo anun- 1965 e 1977). Outra característica importante destaca o ciado durante a campanha eleitoral (O Globo, 06/07/97), MST de todos os movimentos anteriores de luta pela ter- de ter afirmado que “a base da política fundiária do meu ra: trata-se do primeiro movimento que identifica como governo é a reforma agrária” (Folha de S.Paulo, 24/03/95), seu principal adversário o governo federal, e não os gran- e de ter anunciado a intenção de dialogar com o MST em des proprietários de terras. audiência, em 27 de julho de 1995, o Presidente da Repú- Faz-se necessário lembrar, também, que o MST não é blica não percebeu imediatamente a gravidade do massa- o único movimento de luta pela reforma agrária. Existem cre de Eldorado dos Carajás, em que 19 militantes do MST atualmente dezenas de outros movimentos, inspirados no foram mortos pela polícia militar do Pará. MST ou dissidências dele, como os próprios nomes suge- Exatamente uma semana antes, ao comentar para a rede rem, por exemplo, o MAST (Movimento dos Agriculto- de notícias americana CNN a ocupação simultânea de lo- res Sem Terra), ligado à Social Democracia Sindical, o cais de grande movimento em 18 capitais do País, por dez MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra), ligado mil agricultores coordenados pelo MST, no dia 10 de abril a segmentos da esquerda, e o MUST (Movimento Unido de 1996, Fernando Henrique Cardoso demonstrava a pouca dos Sem Terra), ligado à Força Sindical. Os dados reuni- importância que seu governo atribuía ao MST até então. dos por Bernardo Mançano Fernandes (1999) mostram que Em artigo publicado na revista Istoé (17/04/96), lê-se: “A o MST é responsável por apenas um terço das ocupações direção nacional do MST também quer audiência com o de terras realizadas no Brasil desde 1996, e representa presidente FHC. Toda a movimentação obteve repercus- aproximadamente dois terços das famílias acampadas são internacional, ao ser mostrada pela rede CNN. Ques- recenseadas desde aquele ano. Esses outros movimentos tionado por um correspondente da emissora no País, FHC de luta pela terra disputam, portanto, o mesmo espaço disse que seu governo está preocupado, mas não pelo ta- político que o MST. A leitura cotidiana do noticiário po- manho da marcha de quarta-feira. ‘O Brasil é um país ur- lítico revela, contudo, que o maior adversário do governo bano e temos mais de 75% da população nas cidades. Es- nesse campo é o MST. ses são problemas localizados’, reagiu.”. No dia seguinte ao massacre de Eldorado dos Carajás, o presidente pro- O MST E O GOVERNO curou minimizar o problema: “os sem-terra e a polícia mi- litar são representantes do Brasil arcaico”. Alertado por Para se ter uma idéia da força política conquistada pelo assessores, e atento à repercussão internacional, o presi- MST durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, dente foi obrigado a mudar o tom. Novamente na revista basta verificar a evolução da atenção que o governo fede- IstoÉ (24/04/96), lê-se: “No dia seguinte à chacina, o pre- ral tem dispensado ao movimento. Em 1994, ainda no go- sidente (...) classificou de ‘representantes do Brasil arcai- verno de Itamar Franco, a Folha de S.Paulo informava co’ os sem-terra e a polícia. (...) Na tarde de quinta-feira,

106 A AÇÃO POLÍTICA DO MST

18, de olho na repercussão internacional atingida pela dos sem-terra, de falar de ‘primitivismo’ e de ‘utopia regres- matança, o presidente resolveu ele próprio conceder uma siva’ mesmo quando as pesquisas de opinião informavam que entrevista coletiva no Palácio do Planalto. (...) Em 1996, 80% da população queria a reforma agrária, o governo sen- o governo ainda não assentou nenhuma família.”. No dia tou-se à mesa para conversar.” (Veja, 23/04/97). 18 de abril, um dia depois do massacre de Eldorado dos Seja como for, o despreparo do governo para lidar com Carajás, o ministro da Agricultura José Eduardo Andrade a questão agrária é claro. A seguinte frase, que segundo a Vieira, proprietário de grandes extensões de terras, foi revista Veja teria sido pronunciada pelo ministro Raul destituído. Logo em seguida, o Ministério da Agricultura Jungmann, por exemplo, não é exatamente o que se espe- foi desmembrado, com a recriação do Ministério da Re- raria de um ministro da Reforma Agrária: “O MST é um forma Agrária, que tinha sido extinguido ao final do go- movimento numericamente pequeno. Está trazendo 1.500 verno Sarney, com Raul Jungmann como titular da pasta. pessoas para Brasília. O Rotary e o Lions têm muito mais A postura do governo diante do MST mudou após o gente.” (Veja, 23/04/97). Essa reação somente pode ser massacre de Eldorado dos Carajás. Fernando Henrique compreendida quando se leva em conta que uma das es- Cardoso percebeu a necessidade de coordenar melhor as tratégias do governo ao lidar com o MST é desqualificá- ações para poder enfrentar o movimento. Essa mudança lo e buscar constantemente diminuir a importância e o al- foi percebida pelos meios de comunicação: “O governo cance de suas ações. resolveu adotar uma linha mais dura para enfrentar o MST. Outra linha de conduta adotada pelo governo, para en- O objetivo é impedir não apenas as invasões de sedes do frentar a pressão exercida pelo MST, é tentar descarac- Incra, como o MST vem fazendo nas grandes cidades, mas terizá-lo como movimento social, para enquadrá-lo como também a ocupação de fazendas, ação preferencial dos um movimento criminoso, que realiza um conjunto de sem-terra. A proposta aprovada na reunião foi coordenar ações fora da lei. A partir desse ponto de vista, torna-se a repressão ao MST no Gabinete Militar da Presidência, possível compreender como um ministro da Justiça, no em vez de deixar a tarefa para os governadores de Esta- caso, Iris Rezende, pôde afirmar, numa reunião com se- do, como aconteceu até a semana passada. Toda vez que cretários de segurança de vários Estados, que: “Polícia e se verificar que as polícias militares não estão dando con- fazendeiros têm de andar de mãos dadas para cumprir ta dos conflitos, tropas do Exército serão chamadas.” (Veja, mandados judiciais.” (Veja, 24/09/97). Nessa mesma oca- 26/06/96). De fato, o general Alberto Mendes Cardoso, sião, de acordo com a revista Veja, o ministro da Justiça chefe da Casa Militar do Palácio do Planalto, passou a disse estar arrependido de não ter apoiado a polícia do supervisionar diariamente as atividades do MST, como Pará no episódio de Eldorado dos Carajás. informa outro artigo da revista Veja (23/04/97). Foi no Como mostram esses exemplos, as principais estraté- exercício dessa nova função que ele visitou Eldorado dos gias do governo para combater o MST não enfrentam di- Carajás, assim como sete acampamentos em áreas de con- retamente o movimento, mas buscam atingir a sua ima- flito. A revista informa ainda que o general controlava 900 gem e popularidade junto à opinião pública. De modo homens, em 12 agências regionais de inteligência, e pro- análogo, as análises dos discursos oficiais, das falas do duzia um relatório que, durante os dois meses de duração Presidente da República e de seus representantes, fazem da marcha do MST a Brasília, em 1997, era enviado dia- perceber que o governo evita referir-se diretamente ao riamente ao presidente. Mesmo com toda essa organiza- MST. ção, o governo subestimou a capacidade do MST de rea- Ao iniciar o seu primeiro governo, Fernando Henrique lizar uma marcha de dois meses até Brasília. Esse mesmo Cardoso acreditava que esvaziaria o MST fazendo alguns artigo sustenta que o ministro da Reforma Agrária, Raul assentamentos. O raciocínio era o seguinte: a média his- Jungmann, convenceu Fernando Henrique Cardoso a acei- tórica de desapropriações de terra que deram origem a as- tar receber as lideranças do MST com o argumento de que sentamentos para a reforma agrária no Brasil sempre foi a Marcha a Brasília fracassaria e o encontro não seria rea- muito pequena. De acordo com os dados do governo, era lizado. “Até a chegada da marcha, o Planalto achava que de 12 mil famílias assentadas por ano. Os analistas do go- a questão da terra tinha sido artificialmente inflada pelo verno estimaram ser possível assentar 40 mil famílias em massacre de Eldorado dos Carajás e pela novela O Rei do 1995, 60 mil em 1996, 80 mil em 1997 e 100 mil em 1998, Gado. (...) Depois de um clamoroso erro de cálculo e de totalizando, assim, 280 mil famílias assentadas em quatro educação política, de desprezar o poder de mobilização anos. Caso esse plano fosse executado com sucesso, de

107 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 um lado, os movimentos de trabalhadores sem terra se e o MST. De maneira geral, o movimento está sempre dis- esvaziariam por falta de militantes, e, de outro, a perda de posto a dialogar com o Presidente da República. Nota-se, legitimidade que essa questão levantaria na opinião pú- contudo, que na maioria dos casos as audiências podem blica, à medida que as reivindicações fossem sendo aten- ser relacionadas com acontecimentos importantes, como didas. a primeira delas, que ocorreu em 27 de julho de 1995, por A análise dos pronunciamentos do Presidente da Re- ocasião do 3o Congresso Nacional do MST, ou com situa- pública que abordam a reforma agrária indica que, se num ções em que o movimento desafia o governo e o obriga a primeiro momento o governo se mostrava favorável à re- negociar. Os encontros realizados em 2 de maio de 1996 forma agrária, evitando, contudo, referir-se diretamente e 18 de abril de 1997, por exemplo, estão relacionados ao MST, Fernando Henrique Cardoso foi progressivamente com o massacre de Eldorado dos Carajás e a Marcha a se dirigindo de forma cada vez mais explícita ao MST, Brasília. Houve, em seguida, uma reunião em 8 de julho que passou a ser tratado como adversário. Até que, a par- de 1999 e outra em 3 de julho de 2000, diante da ameaça tir de maio de 2000, quando o movimento promoveu ma- de ocupação da fazenda da família de Fernando Henrique nifestações e ocupações de prédios públicos em quase Cardoso, em Minas Gerais. todos os Estados, o governo adota um tom mais duro para As reivindicações apresentadas pelo MST durante es- se referir ao MST, deixando claro que, no seu ponto de ses encontros são muitas. Todas elas poderiam, contudo, vista, o movimento tem exagerado. ser resumidas em apenas dois itens: o assentamento das Os encontros entre o Presidente da República e repre- famílias acampadas e a concessão de créditos para possi- sentantes do MST também são importantes, pois é a par- bilitar a produção das famílias assentadas. Os valores en- tir deles que tanto o governo quanto o movimento se re- volvidos nessa discussão são consideráveis, da ordem de conhecem mutuamente como interlocutores políticos. A um ou dois milhões de reais anuais. partir do momento em que estabelecem um diálogo, por Uma parte desses recursos é efetivamente aplicada mais truncado que seja, eles se reconhecem como adver- na reforma agrária. Mesmo que o MST discorde dos nú- sários, mesmo em campos opostos, e não como inimigos. meros apresentados pelo governo e diga que são artifi- Com efeito, para ambos seria um erro estratégico preten- cialmente inflacionados, não se pode negar que o nú- der eliminar o outro, pois o MST precisa do governo, da mero de famílias assentadas aumentou significa- mesma forma que o governo não pode ignorar o MST. Os tivamente a partir de 1995. O MST consegue, dessa for- dirigentes do movimento têm plena consciência de que ma, alguns resultados positivos, e a sua principal arma, precisam da mediação do governo para atingir os seus até agora, tem sido a pressão exercida por meio das ocu- objetivos. Apenas o governo pode desapropriar terras, pações. Apesar das ameaças do governo de que terras conceder indenizações, garantir crédito aos assentados, invadidas não serão desapropriadas, os estudos de estabelecer uma política agrária e executá-la. Em outras Fernandes (1999) mostram ser possível estabelecer uma palavras, o governo é o único ator que pode conciliar os correlação positiva entre o número de ocupações e os interesses em jogo e impedir que o conflito entre os pro- assentamentos realizados. prietários de terra e os sem-terra se radicalize. Por outro Uma análise dos enfrentamentos entre o MST e o go- lado, sem a presença do MST, o número de mortes no verno mostra que a luta pela reforma agrária dá origem a campo seria, provavelmente, muito maior. A morte de um duas formas de pressão sobre o governo. A primeira for- militante do MST é muito mais constrangedora para o ma é aquela exercida por sem-terra acampados e só se governo do que o assassinato de um trabalhador rural não desfaz quando o assentamento é conquistado. Surge en- pertencente ao movimento. Qualquer ação na qual esteja tão o segundo tipo de pressão, aquele exercido pelos as- envolvido o MST adquire mais visibilidade do que ou- sentados para ter acesso aos créditos de reforma agrária, tras, nem que seja pelo fato de ser automaticamente con- e viabilizar a produção até que o assentamento adquira siderada um ato de desafio ao governo. Por essa razão é autonomia suficiente para ser emancipado. que podemos afirmar que o governo não pode ignorar o A tarefa do governo, portanto, não é nada fácil: é pre- MST, e deve sempre levar em conta a resposta do movi- ciso romper o ciclo de pressão que se forma na ocupação, mento quando estabelece sua política agrária. ou no assentamento. O sucesso do MST e a razão princi- De 1995 até o final de 2000, foram realizados cinco pal do seu crescimento podem ser explicados justamente encontros importantes entre Fernando Henrique Cardoso pela sua habilidade em construir esses dois ciclos e mantê-

108 A AÇÃO POLÍTICA DO MST los sempre ligados à organização do movimento, de modo publicado no primeiro ano do governo de Fernando que eles se reforcem mutuamente. Henrique Cardoso, no jornal O Estado de S.Paulo (03/11/95): Agora é possível entender com maior clareza o motivo “(...) O Movimento dos Sem-Terra é hoje um ator de pri- das ações do governo que se destinam a romper esses dois meira grandeza na cena política quer pelo assentamento ciclos de pressão: cadastramento de famílias sem-terra in- legal dos invasores, quer pela permanência deles nas ter- teressadas em receber um lote em um assentamento de re- ras ocupadas, quer pelo convencimento das autoridades forma agrária; proibição de desapropriações em terras ocu- públicas de que não se deve impor o respeito à lei, mas padas durante os dois anos subseqüentes à desapropriação; aceitar as invasões e negociar. Pelas razões acima expos- emancipação precoce dos assentamentos ou não-conces- tas e outras mais, o fato é que a organização nacional do são de créditos aos mesmos, o que tem praticamente o movimento conseguiu êxitos políticos inegáveis na sua mesmo resultado; tentativa de cooptação de lideranças com política de invasão. As autoridades federais e estaduais, promessa de vantagens pessoais; repressão; criminalização especialmente as primeiras, não se deram conta do dano do movimento; descentralização da reforma agrária, para que a acomodação diante das violações da lei poderia cau- evitar que a luta seja caracterizada como um enfrentamento sar para todo o ordenamento jurídico do País, que assen- entre o governo federal e o MST; e, por fim, o incentivo à ta, gostemos ou não, sobre uma certa idéia de hierarquia e divisão e ao surgimento de movimentos rivais. Em todas ordem.(...)”. essas ações, o governo conta com um aliado fundamental, Numa tentativa de quantificar a presença do MST em os meios de comunicação, que passamos a analisar a se- editoriais, pode-se contar o número dos dedicados ao mo- guir. vimento, e acompanhar a evolução dos resultados duran- te todo o governo Fernando Henrique Cardoso. Considera- O MST E A IMPRENSA se que um editorial fala do MST quando cita explicitamente a sigla MST, ou se refere por extenso ao Movimento dos Não é preciso ser um observador muito atento para cons- Trabalhadores Rurais Sem Terra, ou ainda, quando faz alu- tatar que, quando o assunto é sem-terra, há consenso dos são a um líder do movimento, como José Rainha Júnior, meios de comunicação a favor do governo. Sem querer ou a um acontecimento diretamente relacionado ao MST, diminuir a importância da televisão e do rádio, acredita- como a Marcha a Brasília. Alguns editoriais tratam da mos ser possível limitar a nossa investigação à imprensa reforma agrária ou da situação de agricultores sem-ter- escrita, e, mais particularmente, aos jornais. O motivo para ra, mas não se referem diretamente ao MST. Nesse caso privilegiar os jornais, em relação às revistas, é que, a par- eles foram contabilizados como editoriais sobre a re- tir da análise dos editoriais, pode-se ter uma boa idéia do forma agrária. posicionamento de cada jornal diante das questões mais Como parâmetro de comparação, são considerados tam- relevantes para o país. Consideramos importante, sobre- bém os editoriais que aludem à Contag (Confederação tudo, o fato de a pauta diária do noticiário dos órgãos de Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e à CUT (Cen- rádio e televisão ser sempre influenciada pelas matérias tral Única dos Trabalhadores). A primeira foi escolhida veiculadas na imprensa. porque é a maior organização de empregados rurais do Ao comparar os editoriais que abordam temas relati- Brasil, reunindo 25 federações estaduais e 3.630 sindica- vos à reforma agrária e ao MST, nos quatro maiores jor- tos, incorporando 15 milhões de trabalhadores,1 enquan- nais do país (Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, to a segunda é geralmente considerada, junto com o PT Jornal do Brasil, O Globo), constata-se que, no que diz (Partido dos Trabalhadores), adversária constante do go- respeito à questão agrária, não faz sentido a distinção en- verno. Uma segunda razão para essa comparação é que, tre jornais mais ou menos governistas. A presença do MST para o governo, seria bastante confortável que o MST se nos editoriais dos jornais mais importantes do país já cons- transformasse num sindicato nos moldes da Contag ou da titui uma prova bastante conclusiva da sua relevância como CUT, com regras claras de atuação devidamente institu- ator político na cena nacional. Ao mesmo tempo que cionalizadas. Os resultados foram agrupados na Tabela 1 espelham os acontecimentos políticos de maior destaque, e podem ser melhor analisados no Gráfico 1.2 os editoriais fazem alertas ao governo e aos leitores, e A interpretação desses resultados mostra que o MST comunicam a opinião oficial de cada jornal. Como, por vai progressivamente tomando o lugar da CUT como tema exemplo, o editorial intitulado “O novo ator político”, mais freqüente. Se nos anos de 1995, com a greve dos pe-

109 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001

GRÁFICO 1 TABELA 1 Evolução do Número Total de Editoriais sobre o MST, a Reforma Agrária, a Evolução do Número Total de Editoriais sobre o MST, a Reforma Agrária, a Contag e a CUT nos Principais Jornais do País Contag e a CUT nos Principais Jornais do País Brasil – 1995-2000 Brasil – 1995-2000

Editoriais 1995 1996 1997 1998 1999 2000

MST 47 94 147 108 62 77 Reforma Agrária 24 58 38 30 17 6 Contag 4 6 5 1 4 3 CUT 98 93 46 35 19 17 Fonte: Folha de S.Paulo; O Estado de S.Paulo; Jornal do Brasil; O Globo.

peso político para a esquerda brasileira que o movimento dos operários do ABC paulista teve no fim do regime militar. Lula admitiu, na ocasião, que a organização do MST na disputa pela terra forçou a direção dos partidos de esquerda a assumir a bandeira da reforma agrária (O Estado de S.Paulo, 03/11/95). Uma análise mais detalhada mostra que, nos anos mais Fonte: Folha de S.Paulo; O Estado de S.Paulo; Jornal do Brasil; O Globo. recentes, a CUT aparece, cada vez mais, associada ao MST nos editoriais. Em O Estado de S.Paulo, por exemplo, no troleiros, e 1996, com a reforma da previdência social, a qual antes se lia “Estas manifestações têm em comum ser CUT teve presença assegurada nos editoriais desses jor- preparadas, conduzidas e feitas por pessoas ligadas ao PT, à nais, nos anos seguintes a sua presença foi se tornando CUT e ao PC do B, que se utilizam, como linha auxiliar, de cada vez mais rara. Uma explicação pode ser a estratégia movimentos sociais controlados ou infiltrados” (O Estado bem sucedida do governo de desmoralizar os movimen- de S.Paulo, 18/05/97), lê-se agora “A reação de nativismo tos sindicais ao reprimir duramente a greve dos petrolei- equivocado é compreensível quando vem de Lula e do baixo ros, de um lado, e de anular as pressões dos sindicatos no clero do PT, da CUT e do MST.” (O Estado de S.Paulo, Congresso, com a aprovação da reforma da previdência, 02/08/98). Uma evolução parecida acontece com a Contag. de outro. Faz-se necessário assinalar, ainda, que a aproximação Quanto ao MST, observa-se um pico no ano de 1997, da CUT e da Contag com o MST não acontece apenas no que corresponde à Marcha a Brasília. Nos anos subseqüen- plano dos editoriais, a partir da identificação de maiores tes há uma diminuição progressiva do número de edito- adversários do governo. Essa aproximação é real, e a CUT, riais sobre o movimento. Mantém-se, contudo, um pata- que surgiu no meio bem urbano da indústria metalúrgica mar significativo, principalmente quando comparado com de São Bernardo do Campo, em 1983, se interessa cada os números correspondentes à Contag. vez mais pelos problemas rurais.3 A filiação da Contag à Outro dado interessante é que o tema reforma agrária CUT, em abril de 1995, é um bom indício dessa nova ten- apresenta um pico no ano de 1996, quando aconteceu o dência. O fato mereceu um editorial em O Estado de massacre de Eldorado dos Carajás e foi aprovada a nova S.Paulo (01/05/95), no dia do trabalho, que confirma a lei sobre o ITR (Imposto Territorial Rural). Os proble- importância do acontecimento: “A adesão da Confedera- mas agrários eram comentados, mas não eram automati- ção Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) camente relacionados com o MST que, nos anos seguin- à Central Única dos Trabalhadores (CUT) é tida e havida tes, foi tomando conta do assunto. nos currais da CUT como o mais relevante fato do movi- Em suma, a identificação como adversário principal do mento sindical brasileiro em 30 anos. (...) Conquistar a governo, que antes era uma característica da CUT, passa Contag era um sonho alimentado pela CUT há anos.” a ser atribuída ao MST. Essa é, aliás, precisamente a aná- A CUT também promove ações de solidariedade ao lise feita por Luís Inácio Lula da Silva em novembro de MST e realiza manifestações conjuntas com o movimen- 1995, quando afirmou que o MST exerce hoje o mesmo to dos sem-terra. O fato mais significativo, no entanto, é a

110 A AÇÃO POLÍTICA DO MST realização de ocupações de terra incentivadas pela CUT. Faz-se necessário notar que, ao se considerar o núme- Durante o mês de junho de 2000, o Departamento dos Tra- ro de filiados a essas organizações, a Contag e a CUT são balhadores Rurais da CUT promoveu 13 invasões em fa- bem maiores do que o MST. Por outro lado, o número de zendas do Mato Grosso do Sul. ocupações de terras é comparável com o número de gre- A Contag, por sua vez, também resolveu adotar uma ves, como pode ser comprovado pelas Tabelas 2 e 3. linha de ação mais agressiva, e vem promovendo a ocu- Ao confrontar esses dados e a freqüência com que tais pação de propriedades rurais, a exemplo do MST. Trata- organizações aparecem nos editoriais de jornal, pode-se se de uma mudança significativa, para uma organização fazer duas afirmações. Em primeiro lugar, a visibilidade que, até este momento, preferia a negociação com base na de uma organização não depende do seu tamanho. Em se- sua grande representação sindical. gundo lugar, ocupações de terras têm chamado muito mais Nem é preciso falar que o governo acompanha com preo- a atenção do que greves. Esse resultado já era esperado, cupação o fato de Contag e CUT passarem a defender a re- pois as ocupações de terra e a defesa da reforma agrária forma agrária e a incluir ocupações de terra nas suas es- vão de encontro ao sistema de propriedade privada, en- tratégias de ação. O Jornal do Brasil (24/04/99) cita o quanto greves para a melhoria das condições de trabalho, ministro-chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso: o aumento dos salários ou a manutenção do emprego afe- “Desde que a Contag se filiou à CUT, ela entrou na estraté- tam apenas indiretamente o conjunto da população brasi- gia da violência, no sentido de praticar a invasão de terras. leira. Pode-se argumentar, também, que, por um lado, com Esta competição entre as duas organizações é maléfica por- a democratização, as greves deixaram de ser considera- que acirra os ânimos, fugindo de uma linha racional de dis- das subversivas e, por outro, com a crise de emprego, o cussão”. O que o general esconde, e o jornal não menciona, potencial de mobilização das greves diminuiu bastante. contudo, é que o próprio governo incentiva a rivalidade en- Dessa forma, acredita-se que o MST assumiu um lugar de tre as organizações que lutam pela reforma agrária, com o destaque no imaginário das classes proprietárias e empre- objetivo de diminuir a força do MST. sariais como o adversário que oferece perigo, ou seja, pode obrigar a uma mudança na organização da sociedade. O que acontece é que a luta pela reforma agrária assusta muito TABELA 2 mais do que a luta sindical. Uma ocupação de terra é mui- Comparação entre o Número de Ocupações de Terras e to mais visível do que uma greve ou a ocupação de uma o Número de Greves fábrica. E isso acontece porque o governo e as classes pro- Brasil – 1996-99 prietárias já aprenderam a lidar com a luta sindical e a contorná-la, mas ainda não sabem muito bem o que fazer Anos Número de Número para enfrentar a luta pela reforma agrária. Ocupações de Terras de Greves Outra consideração, contudo, precisa ser feita. O sen- 1996 389 - so de oportunidade do MST, ou seja, a habilidade que seus 1997 462 (1) 563 líderes têm em prever quais manifestações mobilizam mais 1998 446 580 a imprensa nacional, é um fator importante para a visibi- 1999 495 - lidade do movimento nos meios de comunicação. O MST Fonte: Incra; Dieese. sempre organiza manifestações de massa, sejam elas mar- (1) De março a dezembro. chas, acampamentos ou ocupações, pois, como afirmam

TABELA 3 seus líderes, essas são a melhor maneira de evitar a re- Características Organizacionais do MST, Contag e CUT pressão aos manifestantes. O mais importante, contudo, é Brasil – 2000 que cada passo sempre leva em conta o apelo jornalístico, pois os estrategistas do MST sabem muito bem que um Entidades Número de Filiados Sindicatos acampamento à beira de uma rodovia tem muito mais vi- sibilidade do que no interior das terras, do mesmo modo MST 420 mil famílias (1) 2.000 que montar um acampamento provisório em frente ao pa- Contag 15 milhões 3.630 CUT 21 milhões 3.088 lácio do governo, ou diante de órgãos do governo ou agên- Fonte: MST; Contag; CUT. cias bancárias, garante presença no noticiário da televi- (1) São 500 acampamentos + 1.500 assentamentos. são e nos jornais. A ocupação de prédios públicos ou a

111 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 concentração de militantes em frente à fazenda da fa- Não é uma tarefa fácil, contudo, determinar com pre- mília do Presidente da República, por sua vez, garante cisão quem são os deputados e senadores que apóiam o um lugar de destaque na imprensa, enquanto durar a mo- MST, de um lado, e quem são aqueles que se opõem a bilização. esse movimento, de outro lado. Uma estimativa razoável O que incomoda mais o governo é a dificuldade em consiste em identificar o apoio ao MST com os partidos combater a habilidade que o MST demonstra em aparecer de esquerda, e o seu repúdio com a direita. Se considerar- na mídia. Com efeito, seria muito mais confortável, para mos como partidos de direita o PFL, o PPB, o PTB, o bloco o governo, que o MST adotasse uma forma institucionali- PL-PSL, e o PSC, os adversários do MST no Congresso zada de oposição política. Já vimos, contudo, que, não so- representariam, seguramente, mais de um terço dos parla- mente os sindicatos não são uma alternativa atraente para mentares. Se considerarmos como partidos de esquerda o o MST, como também eles começam a adotar as estraté- PT, o PDT, o PSB, o PC do B, o PPS e o PV, os deputa- gias de ação próprias do movimento. Outra alternativa, dos favoráveis ao MST representariam aproximadamente bastante explorada pela oposição, é o caminho parlamen- um quinto dos parlamentares, ou seja, a metade da direi- tar e a organização em partidos políticos. Aliás, muitos se ta. Dentro da oposição, o partido que oferece o apoio mais perguntam se esse não é o futuro do MST. constante ao MST é o PT. Certamente, os deputados e Interessa, portanto, verificar qual é a relação entre o senadores petistas se apresentam várias vezes como in- MST e o Congresso. terlocutores entre o MST e o governo. Quanto aos parla- mentares de partidos de centro, que podem ser identifica- O MST E O CONGRESSO dos como sendo o PSDB e o bloco PMDB-PST-PTN, cuja bancada é um pouco maior do que a da direita, sua posi- Uma prova incontestável da força política do movimen- ção em relação ao MST é indefinida. to dos sem-terra é que ele não precisa, ou não quer, pas- Outra linha de ação consiste em investigar quem são sar pela intermediação de um deputado para fazer com que os parlamentares mais preocupados com as questões rela- suas reivindicações cheguem ao Executivo. De fato, os di- tivas à terra e à produção agrícola. Nesse grupo, há os que rigentes do MST são recebidos diretamente pelo Presi- defendem os interesses dos grandes proprietários de terra dente da República ou por seus ministros. Os parlamentares e os que estão mais próximos da agricultura familiar. O podem até facilitar o encontro, mas não são indispensá- primeiro grupo é freqüentemente rotulado como a “ban- veis, o que vai contra a teoria da representação, de acordo cada ruralista”. Sua origem remonta ao lobby exercido pela com a qual os representantes do povo são os responsáveis União Democrática Ruralista (UDR), durante a Assem- por fazer chegar as reivindicações da população ao co- bléia Nacional Constituinte (1987/88), para impedir que nhecimento do governo. a nova constituição facilitasse a realização de uma refor- A situação mais comum é aquela em que alguns parla- ma agrária.4 Como mostrou o episódio da votação do rito mentares, geralmente de oposição, oferecem-se para so- sumário e do novo ITR, nas legislaturas mais recentes a lucionar uma situação de impasse, entre o governo e o bancada ruralista tem sido bastante enfraquecida. Ao res- MST. Dessa forma, quando nenhum dos dois lados está ponder a um jornalista do Jornal do Brasil, que indagava disposto a fazer concessões, é freqüente ver parlamenta- por que a bancada ruralista, com seus 150 parlamentares, res interessados num acordo se desdobrarem para marcar se movimenta para combater a reforma agrária e negociar um encontro entre as duas partes. A atuação do Congres- as dívidas dos agricultores, mas não aponta nem formula so nessa questão, no entanto, poderia ser muito maior. Com soluções para os problemas da agricultura, um grande fa- efeito, no que diz respeito às questões agrárias, o Con- zendeiro e membro da Sociedade Rural Brasileira expli- gresso deixa as iniciativas para o Executivo. As leis que cou que “o problema é que a bancada só é acionada para foram apreciadas desde 1995, como a que estabelece o questões agudas, como dívida ou reforma agrária. Não para rito sumário para fins de reforma agrária, ou a que intro- resolver problemas, mas para contorná-los.” (Jornal do duziu mudanças no cálculo do Imposto Territorial Rural, Brasil, 22/04/96). foram propostas pelo presidente. A relativa facilidade com Deve-se observar, contudo, que não é fácil estimar o que essas leis foram aprovadas pelo Congresso fez o pre- tamanho da bancada contrária à reforma agrária. Um es- sidente afirmar que, “hoje, os latifundiários não passam tudo recente identifica como membros da bancada ruralista, de tigres de papel.” na atual legislatura, 83 deputados dos partidos PFL,

112 A AÇÃO POLÍTICA DO MST

PMDB, PSDB, PPB, PTB, PDT, PL, PSD, PMN, ou seja, comprar aquelas terras e fazer os assentamentos. Por que 16,5% dos 513 deputados federais (Oliveira, 2000). Para o governo não propõe acordos? Porque há interesse no a legislatura passada, outro estudo do mesmo autor citava confronto. A incompetência e a demora do governo desa- 121 deputados como ruralistas (Oliveira, 1995). O pró- ponta fazendeiros e os sem-terra. As soluções são prome- prio autor, contudo, ressalta a dificuldade em identificar tidas, mas não ocorrem. O resultado é o radicalismo. Os um deputado como ruralista. No caso desses estudos, o fazendeiros vão buscar seus direitos na Justiça. Mas não critério utilizado foi a declaração do deputado sobre suas temos interesse em agravar este problema. O MST é que fontes de renda. O deputado foi considerado como com- tem interesse no problema. Nós temos interesse na solu- ponente potencial da bancada ruralista se entre as fontes ção dos conflitos fundiários, que nos trazem muita dor- de renda declaradas houvesse alguma forma de renda agrí- de-cabeça e desvalorizam as terras.” (Jornal do Brasil, cola. Analisar os resultados das votações de interesse da 22/04/96). bancada ruralista pode parecer uma boa idéia. O resulta- Por fim, da mesma forma que se pode falar numa ban- do, no entanto, seria falseado pois os interesses dos cada ruralista, é possível considerar a existência de uma ruralistas são próximos aos dos representantes dos peque- bancada da reforma agrária, no Congresso. A edição de O nos agricultores. Globo (23/04/2000) informa que Adão Pretto (PT-RS), Faz-se necessário ressaltar, ainda, que o fato de um de- eleito graças aos votos de militantes do MST e de peque- putado pertencer à bancada ruralista não significa que ele nos agricultores, foi o deputado federal que realizou a cam- seja contra a reforma agrária. Com efeito, Edélcio Vigna panha mais barata, tendo recebido apenas R$ 500 em doa- de Oliveira relata que, no início da legislatura de 1995, o ções. Deve-se lembrar, ainda, a existência do núcleo Instituto de Estudos Sócio Econômicos (INESC) aplicou agrário do PT, constituído por 16 deputados eleitos com um questionário a todos os parlamentares sobre os temas uma base rural e favoráveis ao MST. mais polêmicos da agenda política nacional. Entre as per- A despeito do potencial eleitoral demonstrado por al- guntas elaboradas foi incluída uma questão sobre os con- guns dos seus integrantes, o MST não acredita que a con- flitos de terra e a reforma agrária: “O que é necessário quista de cadeiras no Congresso seja o melhor caminho para inibir os conflitos agrários?”. O questionário foi res- para a luta pela reforma agrária. “O eixo da luta pela re- pondido por 165 parlamentares. Mesmo sabendo que o forma agrária se deslocou do Parlamento para outros se- número de entrevistados representa apenas um terço do tores. (...) O tempo de lutar pela reforma agrária no Parla- total de congressistas, vale a pena observar os resultados: mento foi o da Constituinte,” (Jornal do Brasil, 22/10/ quase a metade dos que responderam apontou a reforma 90) dizia João Pedro Stédile, em 1990. “Nunca despreza- agrária como a melhor solução. mos o caminho eleitoral. Vários de nossos militantes são Como diz Oliveira (1995), “mais importante que a aná- deputados, prefeitos. Agora, as mudanças nesse país não lise do quadro, é o resultado que aponta a reforma agrária vão se dar pelo Parlamento. O Parlamento é apenas res- como solução para o caso dos conflitos fundiários no país. sonância da correlação de forças na sociedade e a corre- Esse resultado indica que na Câmara dos Deputados, ape- lação de forças na sociedade só vai mudar se os pobres sar da demonstração de força da bancada ruralista, há uma forem para as ruas, se organizarem e lutarem contra o tendência que considera viável a implementação da refor- governo. Mas não devemos imaginar que o MST vá virar ma agrária como política pública. Essa colocação é ne- partido. O dia que virar, acabou com o movimento. Essa cessária para que não se entenda o forte lobby dos ruralistas ilusão nunca tivemos nem queremos,” (Jornal do Brasil, como um fato consumado contra as aspirações daqueles 21/05/2000) continua ele a dizer, hoje em dia. Na opinião que propugnam pela democratização da terra.” Natural- dele, a organização e o fortalecimento do movimento são mente, os conflitos de terras podem ser mais prejudiciais prioritários: “O senhor será candidato a deputado nas pró- para os fazendeiros do que a reforma agrária. Nas pala- ximas eleições? Stédile: De jeito nenhum. A minha fun- vras de um grande fazendeiro do Paraná: “O problema ção é continuar a ajudar a construir o movimento dos sem- chegou a este ponto, porque, em vez de negociar, quem terra e lutar pela reforma agrária. Mas não desmereço o cuida da reforma agrária no governo fez uma aposta no trabalho parlamentar e institucional. Ele é necessário, mas confronto. Veja o que aconteceu no Pontal do Parana- o fundamental é a organização de massas. Em toda a his- panema. Com a crise de hoje, com os preços das fazendas tória da humanidade só o povo organizado em mobiliza- despencando por causa das invasões, seria muito fácil ção de massas fez mudanças profundas.” (Veja, 06/08/97).

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Podemos afirmar, portanto, que o MST não despreza tatística Religiosa e Investigações Sociais – Ceris, quase nem desmerece o trabalho parlamentar, embora ele não a metade do clero brasileiro veio da Região Sul do país. seja visto como prioritário. Os congressistas podem ser Dois terços pertencem a famílias de classe baixa ou mé- importantes intermediários quando é preciso resolver um dia-baixa. Enquanto 78% da população brasileira vive nos impasse entre o movimento e o governo. Ademais, todo centros urbanos, 64% do clero tem origem na zona rural. apoio é considerado bem-vindo, principalmente se faz Três em cada quatro padres nasceram em cidades com parte de uma instituição reconhecida como interlocutor menos de 20 mil habitantes”. confiável na cena política. Esse parece ser, igualmente, o Outros dois aspectos marcaram decisivamente a in- caso da Igreja, que passamos a analisar em seguida. fluência da Igreja sobre o MST. O primeiro deles é o ca- ráter ecumênico da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que O MST E A IGREJA evitou que a luta pela terra se fracionasse em várias orga- nizações.5 O segundo, também a característica mais im- A importância da Igreja como ator político, no Brasil, portante da CPT, é a capilaridade dessa entidade nas ca- foi evidenciada durante o processo de redemocratização. madas populares, principalmente no campo e sobretudo Com efeito, no final dos anos 70 e começo dos 80, todos nas áreas de fronteira, onde ocorre a maioria dos confli- os que lutavam contra o regime militar encontravam apoio tos de terras. Daí sua posição privilegiada quando se trata em setores importantes da Igreja (Cava, 1988; Martins, de quantificar com precisão o número de assassinatos no 1994). O fato de a Igreja, tradicionalmente alinhada com campo, os conflitos agrários ou as ocupações de terras as posições mais conservadoras das elites ao longo de toda (Martins, 1985). a história do Brasil, ter-se empenhado na defesa da causa O apoio da Igreja à reforma agrária não se limita, con- dos camponeses, a partir da década de 60, pode parecer tudo, à sistematização e denúncia de dados sobre confli- paradoxal. É preciso considerar, contudo, que naquele tos no campo. O apoio logístico também é muito impor- momento a Igreja se opunha ao comunismo. Tornava-se tante, como por exemplo o que foi oferecido ao MST preferível, portanto, aproximar-se dos camponeses a vê- durante a Marcha a Brasília, em 1997, quando a Igreja los transformados em revolucionários. Esse ponto é im- Católica permitiu a hospedagem em igrejas e casas paro- portante, pois a partir daquele momento, e mesmo que a quiais durante todo o trajeto, além de auxiliar na arreca- parte mais progressista da Igreja fosse depois duramente dação de alimentos para os manifestantes. Outro apoio combatida pelo governo militar, estavam lançadas as ba- material importante, conseguido por meio das conexões ses para que a Igreja viesse a ser considerada, hoje, um que a Igreja tem no exterior, é a ajuda financeira ofereci- interlocutor confiável entre o governo e os trabalhadores da por organizações cristãs internacionais. Estima-se que rurais. Para o governo, sobretudo, trata-se de um cerca de 15% dos recursos do MST sejam provenientes interlocutor muito mais confiável do que os partidos de dessa rede de solidariedade internacional (O Estado de esquerda. S.Paulo, 01/06/98). A Igreja apresenta uma vantagem decisiva, em relação Feitas essas considerações, pode-se dizer que é possí- aos partidos e aos sindicatos, quando se trata de organi- vel distinguir dois grupos distintos entre os eclesiásticos zar os trabalhadores do campo, pois, de acordo com José brasileiros: os progressistas e os conservadores. Os pri- de Souza Martins (1986), a Igreja “tem um êxito muito meiros, em grande parte adeptos da Teologia da Liberta- grande na mobilização de populações camponesas, na cria- ção, costumam posicionar-se a favor da reforma agrária e ção de comunidades de base, etc. Acho que ela fala uma das lutas operárias, enquanto os segundos condenam es- língua que é entendida pelas populações trabalhadoras, e tas atitudes e permanecem fiéis às determinações do é isso que a torna um elo essencial nas lutas populares no Vaticano (Moura, 1981; Gusmão, 1981). campo”. De acordo com uma reportagem publicada na Naturalmente, o governo brasileiro tem considerado revista Veja (28/10/98), é justamente essa proximidade com preocupação o envolvimento dos bispos progressis- entre os padres e os trabalhadores rurais que explica a tas com as causas populares e, em especial, com a luta importância da Igreja na formação do MST: “O berço do pela reforma agrária. A reação mais freqüente tem sido a movimento sem terra e o de boa parte dos padres é o mes- tentativa de obter do papa João Paulo II, conhecido por mo: as cidades mais pobres do interior dos Estados do Sul. sua posição conservadora quando o assunto são os movi- Segundo uma pesquisa feita neste ano pelo Centro de Es- mentos sociais, alguma manifestação a favor da ordem e

114 A AÇÃO POLÍTICA DO MST contra o envolvimento político de padres e militantes ca- para o governo brasileiro, é que a luta pela terra resulte tólicos. na união das duas tendências da Igreja, forçando o gover- Em 1985, José Sarney esteve com o papa João Paulo no a se envolver de maneira mais séria com a questão agrá- II, no Vaticano. O ex-governador paulista Abreu Sodré, ria. Como parte desses esforços, deve-se considerar a vi- alarmado com o surgimento do MST, alertara o então Pre- sita oficial de Fernando Henrique Cardoso ao Vaticano, sidente da República para o perigo potencial de um le- em 14 de fevereiro de 1997, além das cinco viagens a Roma vante no campo. Sarney pediu então ao Itamaraty que or- empreendidas pelo ministro da Reforma Agrária, Raul ganizasse uma viagem a Roma cujo objetivo principal era Jungmann, para prestar contas pessoalmente ao papa so- pedir ao papa que desautorizasse os setores da Igreja com- bre o andamento da reforma agrária no país. Essas via- prometidos com a reforma agrária. A missão, no entanto, gens revelam, também, uma questão fundamental: a im- resultou num retumbante fracasso. De acordo com o de- portância que o governo atribui à opinião pública, poimento de Rubens Ricupero,6 que na qualidade de as- principalmente internacional, quando o assunto é o MST. sessor especial da Presidência acompanhou Sarney nessa viagem, não somente o papa se recusou a se manifestar O MST E A OPINIÃO PÚBLICA publicamente contra os padres que militavam junto com trabalhadores rurais, mas também, durante a missa em ho- No caso específico do MST, a opinião pública tem se menagem ao povo brasileiro, os textos escolhidos trata- revelado um elemento importante para as decisões do go- ram da função social da terra, além de outros que tinham verno e também para tomadas de posição de representan- sido escritos por D. Hélder Câmara para a Campanha da tes no Legislativo. Podemos distinguir duas realidades se- Fraternidade. Na saída da celebração, um jornalista que paradas: de um lado, temos a opinião pública nacional, acompanhava a delegação brasileira, numa atitude inteira- do outro, a opinião pública internacional. No segundo caso, mente não-protocolar, interpelou o sumo pontífice indagan- talvez seja mais correto falar em imagem do governo bra- do se ele tinha uma última mensagem para os brasileiros. sileiro no exterior. “Sim”, respondeu o papa, voltando-se para o jornalista e fa- No que diz respeito à opinião pública nacional, é pre- lando em português, “desejo que se dê mais atenção aos po- ciso considerar que, numa sociedade majoritariamente ur- bres do Brasil e que se faça a reforma agrária”. bana como a sociedade brasileira contemporânea, as lu- A posição do papa no que diz respeito à questão agrá- tas do campo só conseguem se projetar nacionalmente se ria no Brasil é a de que é preciso fazer a reforma agrária, tiverem o respaldo e o reconhecimento da população das mas sem desrespeitar o direito de propriedade. O Vaticano cidades. Com efeito, os moradores de áreas rurais repre- entende como justas as reivindicações do MST, apesar de sentam apenas um quinto da população brasileira. Dessa não apoiar os seus métodos de ocupar propriedades parti- maneira, os 80% restantes que moram em áreas urbanas culares e agências bancárias para forçar o governo a libe- são decisivos para o futuro de qualquer movimento agrá- rar créditos. A Igreja prefere uma reforma preventiva, com rio. Da mesma forma que o MST tem consciência que ape- o objetivo de evitar que a luta pela terra se transforme em nas com os votos de áreas rurais não é possível mudar a movimento revolucionário, a uma reforma confiscatória correlação de forças na Câmara dos Deputados ou no Se- e radical, mais afinada com os princípios socialistas. Daí nado, seus dirigentes sabem perfeitamente que o apoio da os apelos do papa para que a reforma agrária seja feita de população urbana é fundamental para sua luta. Daí a im- acordo com a lei. portância de atos e manifestações nas cidades. Realizam- Esse ponto de vista não impediu, contudo, que, uma se marchas pelas estradas e grandes avenidas das capi- semana após o massacre de Eldorado dos Carajás, o papa tais, organizam-se manifestações e acampamentos em enviasse à CNBB uma carta na qual condena o massacre frente às sedes do poder público (Incra, Palácio do Go- de sem-terra no Pará e pede uma reforma agrária “corajo- verno) ou diante de agências bancárias que estejam su- sa e de longo alcance” (Folha de S.Paulo, 25/04/96). A postamente retendo os créditos destinados à reforma agrá- resposta do governo foi insistir na tradicional posição de ria. Os locais são estrategicamente escolhidos de forma a tentar conseguir um posicionamento mais firme, por par- garantir a maior visibilidade possível, porém sem atrapa- te do Vaticano, contra os movimentos sociais e os bispos lhar o cotidiano da cidade. Do ponto de vista dos dirigen- progressistas, de modo a reforçar a identidade entre o clero tes do MST, trata-se de conscientizar, e não de atrapa- conservador e o papa. O que se deve evitar a todo custo, lhar. De fato, raramente vêem-se militantes do MST

115 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 bloqueando uma avenida ou impedindo funcionários pú- que, por razões de classe social e de opção ideológica, blicos de entrar no seu local de trabalho. Quando se diz são contrárias a essa reforma. Esses partidários da refor- que o MST invadiu prédios públicos, na maioria das ve- ma não condicionam seu voto à adoção da reforma agrá- zes os manifestantes estão ocupando a entrada ou o sa- ria como plataforma política daqueles que elegem”. guão principal do prédio para forçar uma audiência com É necessário ressaltar que várias cartas de leitores e as autoridades responsáveis. artigos assinados, publicados em jornais e revistas, suge- O objetivo principal das manifestações nas cidades é rem que uma grande parte da população tem uma idéia fazer conhecer as suas reivindicações e conseguir o apoio romântica do que seja uma reforma agrária. De acordo com das populações urbanas à causa da reforma agrária. O apoio essa visão, o homem do campo ainda é considerado um do MST às lutas urbanas, como manifestações pelo au- personagem simples, modesto, apático e preguiçoso, que mento do salário mínimo, passeatas de professores ou ser- precisa ser protegido, à imagem do personagem Jeca Tatu, vidores da saúde pela melhoria das condições de traba- de Monteiro Lobato (Lobato, 1998). Assim, não são pou- lho, greves organizadas pelas centrais sindicais, ou até cas as manifestações que consideram os sem-terra o res- mesmo passeatas de policiais por melhores salários, é quício de um Brasil arcaico, ou que identificam na atua- considerado uma forma de solidariedade entre trabalha- ção política do MST um desvirtuamento do movimento. dores. Daí as manifestações públicas de incentivo aos A questão fundamental que se coloca para o MST é, por- movimentos populares urbanos da parte de alguns diri- tanto, saber como o movimento vai fazer para enfrentar o gentes do MST, e que são interpretadas pela imprensa desafio de transformar a simpatia que angaria da popula- como a prova de que o movimento não está interessado ção em apoio permanente. O futuro do movimento depen- apenas na reforma agrária, mas também na revolução e na de da sua capacidade de conseguir convencer a opinião agitação política. pública nacional de que a sua atuação política é, não so- Pesquisas de opinião pública realizadas ao longo dos mente legítima, mas também a própria essência do movi- últimos anos mostram que o MST conta com o apoio da mento. De nada adianta, dessa perspectiva, apoiar huma- maioria da população brasileira. O apoio à reforma agrá- namente e caridosamente a reforma agrária se a atuação ria varia entre 80% e 94%, enquanto aproximadamente política dos sem-terra for condenada. Uma parcela impor- dois terços da população considera o MST um movimen- tante da população brasileira ainda parece concordar com to legítimo. Durante a marcha do MST a Brasília, em 1997, a opinião da burguesia francesa do começo do século XIX a popularidade do movimento esteve no seu auge, che- a respeito do homem do campo, como foi retratada por gando a 77% de apoio. Balzac (1961): “se, politicamente, as suas agressões de- Uma ressalva faz-se necessária, contudo, pois apesar vem ser impiedosamente reprimidas, humanamente e re- de grande parte da população brasileira ser favorável à ligiosamente, ele é sagrado”. reforma agrária, ela não está disposta a tomar iniciativas Resta ainda tratar da repercussão internacional do MST. que a viabilizem, seja porque não a considera uma priori- O movimento foi objeto de diversas reportagens em gran- dade absoluta, seja porque não tem uma idéia clara do que des jornais estrangeiros, periódicos e emissoras de televi- é uma reforma agrária. No primeiro caso, de acordo com são, sobretudo depois do massacre de Eldorado dos Carajás, o qual a reforma agrária não é considerada prioridade, é noticiado em 61 idiomas (IstoÉ, 24/04/97). Uma conseqüên- importante lembrar que a questão da escravidão só foi cia imediata à condenação internacional de Eldorado dos resolvida no Brasil quando passou a bloquear o desenvol- Carajás foi o cancelamento de uma viagem do presidente a vimento de uma indústria nacional. No segundo caso, é Washington, por temer protestos e manifestações por parte preciso considerar que há vários projetos de reforma agrá- de defensores dos direitos humanos (O Globo, 27/04/96). ria, e que todos os que se dizem favoráveis a ela não con- A marcha dos sem-terra a Brasília teve como resultado au- cordam necessariamente com a reforma agrária pretendi- mentar ainda mais o interesse no assunto, como testemu- da pelo MST. Esse é, precisamente, o entendimento de nha o ministro da Saúde, José Serra: “A marcha a Brasília Martins (1997): “Não basta a opinião pública dizer-se comandada pelo MST elevou ao máximo a simpatia inter- favorável à reforma agrária. Você faz pesquisa de opinião nacional pelos pobres brasileiros. Acrescentou, nos países e descobre que 70% das pessoas são favoráveis à reforma desenvolvidos, um quarto ponto na agenda de suas preocu- agrária. Só que elas não sabem o que é reforma agrária. pações com o Brasil, até há pouco centralizada em três Tanto que, na hora de votar, votam em partidos e pessoas questões: índios, direitos humanos e meio ambiente” (Fo-

116 A AÇÃO POLÍTICA DO MST lha de S.Paulo, 21/04/97). O MST tem consciência da im- informações sobre a Contag podem ser obtidas na página que a Contag mantém na internet, no endereço: http://www.contag.org.br portância desse apoio externo e da sua influência no trata- 2. Os resultados foram agrupados para resumir a exposição. A evolu- mento dispensado ao movimento pelo governo. Por isso, ção da quantidade de editoriais sobre os temas considerados é muito dedica um cuidado particular aos contatos com organiza- semelhante para os quatro jornais. Em média, aproximadamente uma vez por semana é publicado um editorial sobre um desses temas em ções não-governamentais internacionais e envia vários de cada um dos jornais. Para ter acesso aos dados completos, para cada seus militantes ao exterior. jornal, consultar Comparato, 2001. Como se pode verificar, o MST não ocupa apenas ter- 3. Em “O ‘novo sindicalismo’ na transição brasileira”, Keck (1988) mostra que a CUT teve um papel importante no processo de transição ras e prédios públicos, mas ocupa também reuniões de para a democracia, no Brasil. Os sindicatos rurais e a Contag não ocu- ministros, discursos do presidente, relatórios dos servi- pam um lugar de destaque nas análises sobre aquele momento políti- co, que privilegiam os movimentos urbanos e a fundação do PT. É in- ços de inteligência, editoriais de jornais, manchetes nos teressante notar, contudo, que foi justamente nessa época que surgiu o noticiários, pronunciamentos de parlamentares, conversas MST. entre o presidente e o papa, pesquisas de opinião pública 4. Desmobilizada após a aprovação da Constituição de 1988 e a derro- ta de Ronaldo Caiado nas eleições presidenciais de 1989, a UDR res- e até protestos nas visitas do presidente ao exterior. Foi surgiu em 1996 para enfrentar os avanços do MST na região do Pontal possível provar que o MST cresceu e se expandiu durante do Paranapanema, em São Paulo. Na mesma época também reapare- a presidência de Fernando Henrique Cardoso, mas o go- ceu o obscuro Movimento Direita Volver (MDV), integrado por anti- gos militantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e que verno só percebeu a força do movimento em 1997, a par- mantém ligações com a Tradição Família e Propriedade (TFP), Jornal tir da Marcha a Brasília. De fato, naquele ano o MST es- do Brasil (22/09/96). teve no auge, e podemos dizer que foi a partir daí que o 5. Segundo as informações fornecidas pela página que essa entidade mantém na internet, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi criada em movimento se tornou definitivamente um ator político: nos 1975 com o objetivo de assessorar sindicatos, associações de peque- seus discursos o presidente passou a se referir explicita- nos produtores, movimentos sociais e outras iniciativas populares, pres- tando-lhes assessoria pastoral, teológica, metodológica, jurídica, polí- mente ao movimento, os editoriais de jornais passaram a tica e sociológica. A CPT colabora diretamente com a Igreja Católica tratar periodicamente do MST e a reforma agrária conta- e a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, atuando em conjunto com muitas dioceses, paróquias e comunidades eclesiais. va com o apoio de 94% da população. 6. Depoimento dado ao autor em novembro de 2000. Quatro anos depois, no entanto, o MST enfrenta gran- des dificuldades, desde que o governo resolveu cortar os créditos aos assentados. Mesmo que um cenário pessimista REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS venha a se confirmar e o movimento venha a ser comple- tamente desmantelado, contudo, a experiência das suas BALZAC, H. La comédie humaine VIII – études de moeurs: scènes de lutas e das conquistas provocará conseqüências. Não po- la vie de Campagne – les paysans. Paris, Gallimard, 1961. demos esquecer que são 400 mil famílias, aproximada- CANDIDO, A. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo, Duas Cidades, mente um milhão e meio de pessoas. Nas palavras de um 1998. CAVA, R.D. “A Igreja e a abertura, 1974-1985”. In: STEPAN, A. (org.). jovem militante, “a maior revolução é dentro da nossa Democratizando o Brasil. São Paulo, Paz e Terra, 1988, p.231-73. cabeça”. COMPARATO, B.K. A ação política do MST. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, 2001. NOTAS CUNHA, E. Os sertões. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1979. FERNANDES, B.M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis, Vo- E-mail do autor: [email protected] zes, 1999. Este artigo é uma versão resumida da dissertação de mestrado do au- GUSMÃO, S.B. “Novos espaços na velha estrutura”. In: SALEM, H. tor (Comparato, 2001), sob orientação da Professora Doutora Maria (org.). A Igreja dos oprimidos. São Paulo, Brasil Debates, 1981. Teresa Sadek. KECK, M.E. “O novo sindicalismo na transição brasileira”. In: STEPAN, A. (org.). Op. cit., 1988. 1. A Contag foi criada em 22 de dezembro de 1963, no Rio de Janeiro, reunindo 14 federações e 475 sindicatos de trabalhadores rurais. O LOBATO, M. Urupês. São Paulo, Brasiliense, 1998. reconhecimento oficial da Contag ocorreu no dia 31 de janeiro de 1964, MARTINS, H.H.T. Igreja e movimento operário no ABC. São Paulo, por meio do Decreto Presidencial no 53.517. O golpe militar de 1964 Hucitec, 1994. resultou na intervenção da entidade e na prisão e exílio de vários diri- MARTINS, J.S. “Na revolta das formigas”. In: CASALDÁLIGA, D.P. gentes. O MSTR retomou a entidade em 1968, derrotando o interventor. (org.). Conquistar a terra, reconstruir a vida, CPT – dez anos de A Contag realizou sete congressos nacionais de trabalhadores e traba- caminhada. Petrópolis, Vozes, 1985. lhadoras rurais, sendo o último em 1998, no qual foi eleita a atual di- retoria da entidade. A Contag representa os interesses dos trabalhado- ______. A reforma agrária e os limites da democracia na “Nova res e trabalhadoras rurais assalariados, permanentes ou temporários; República”. São Paulo, Hucitec, 1986. dos agricultores familiares, proprietários ou não, dos sem-terra e, ain- ______. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis, Vozes, da, daqueles que trabalham em atividades extrativistas. Essas e outras 1995.

117 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001

______. “A questão agrária brasileira e o papel do MST”. In: OLIVEIRA, E.V. A bancada ruralista na Câmara dos Deputados – aná- STÉDILE, J.P. (org.). A Reforma agrária e a luta do MST. lise preliminar: conceito, força e fraqueza. Brasília, Inesc, 1995. Petrópolis, Vozes, 1997. ______. A bancada ruralista – legislatura 1999/2002. Brasília, MONTEIRO, D.T. Os errantes do novo século. São Paulo, Duas Ci- Inesc, 2000. dades, 1974. QUEIROZ, M.I.P. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo, MOURA, A.C. “A CNBB e o compromisso com o povo”. In: SALEM, Dominus, 1965. H. (org.).Op. cit., 1981. ______. Os cangaceiros. São Paulo, Duas Cidades, 1977.

118 POLÍTICAS DE COMBATE À FOME NO BRASIL POLÍTICAS DE COMBATE À FOME NO BRASIL

WALTER BELIK Professor do Instituto de Economia da Unicamp, Consultor da Fundação Seade

JOSÉ GRAZIANO DA SILVA Professor do Instituto de Economia da Unicamp, Bolsista do CNPq, Consultor da Fundação Seade

MAYA TAKAGI Engenheira Agrônoma, Analista da Fundação Seade

Resumo: Até os anos 30, os problemas de abastecimento estavam associados à questão da oferta de alimentos para a população. Desse período até o final dos anos 80, a fome passou a ser encarada como um problema de intermediação e as políticas se voltaram para a regulação de preços e controle da oferta. A partir dos anos 90, os problemas de abastecimento passaram a ser combatidos, supostamente, através da desregulamentação do mercado na esperança de que o crescimento econômico pudesse proporcionar renda, emancipando as famílias pobres e alcançando a cidadania. Palavras-chave: pobreza e fome; política de abastecimento; política agrícola.

dificuldade de medir, de forma direta, a quanti- também quantificou a pobreza nos municípios brasileiros dade de pessoas que passam fome é um proble- com mais de 100 mil habitantes. O Instituto Cidadania, A ma generalizado em todos os países, pois exige por sua vez, estimou em 9,3 milhões de famílias e 44 mi- pesquisas extensas e dispendiosas (FAO, 1996). A pes- lhões de pessoas muito pobres, com renda familiar per quisa que mais se aproximou desse objetivo, no Brasil, capita abaixo de um dólar diário, em 1999. foi o Endef (Estudo Nacional da Despesa Familiar), de Os estudos são unânimes no diagnóstico de que o pro- 1974-75, que mensurou o consumo de alimentos e a ren- blema da fome no País, atualmente, é a falta de renda para da das famílias. Ante a ausência de pesquisas diretas, inú- alimentar-se adequadamente, e de que essa falta de renda, meros pesquisadores – entre os quais destacam-se técni- traduzida por pobreza, é o reflexo da desigualdade de renda cos do Ipea, da Cepal, do IBGE e de várias universidades existente no País (Henriques, 2000), agravada pelos altos – desenvolveram metodologias diversas para seu dimen- níveis de desemprego, e das taxas de crescimento econô- sionamento. Em geral são metodologias baseadas na men- mico insuficientes para incorporar as pessoas que a cada suração indireta da “fome” a partir da insuficiência de ren- ano querem ingressar no mercado de trabalho, além da falta da monetária para alimentar-se adequadamente, que iremos de políticas públicas no campo da segurança alimentar. chamar aqui de “vulnerabilidade à fome”. Takagi, Graziano O diagnóstico e as políticas receitadas para o combate da Silva e Del Grossi (2001) levantaram os estudos mais à fome no Brasil passaram por três fases. Até os anos 30, recentes para a mensuração da indigência e da pobreza no os problemas de abastecimento estavam associados à ques- Brasil.1 Eles verificaram disparidade muito grande nos tão da oferta de alimentos para a população que crescen- resultados, variando de 8,7% de indigentes (Rocha, 2000) temente se dirigia às metrópoles. Desse período até o fi- a 29,0% (Camargo e Ferreira, 2001), a partir dos dados nal dos anos 80, a fome passou a ser encarada como um da PNAD de 1999. Recente trabalho da FGV-RJ, lançado problema de intermediação e as políticas se voltaram para em julho de 2001, denominado Mapa do Fim da Fome (ver a regulação de preços e controle da oferta. Finalmente, www.fgv.br), utilizando metodologia similar à adotada em com o início dos anos 90, os problemas de abastecimento Ferreira, Lanjouw e Néri (2000), chegou ao valor de 49,8 passaram a ser combatidos, supostamente, através da des- milhões de indigentes ou 29,3% da população, em 1999, regulamentação do mercado na esperança de que o cres- considerando uma linha de indigência de R$ 80,00, refe- cimento econômico pudesse proporcionar renda, emanci- rente à Região Metropolitana de São Paulo. O trabalho pando as famílias pobres e alcançando a cidadania.

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Embora tenha havido mudança no diagnóstico e nas Paulo. Na realidade, a escassez estava sendo gerada pe- políticas prescritas, o problema da vulnerabilidade à fome los crescentes embarques de alimentos brasileiros para o permanece no início deste século tão ou mais grave quan- abastecimento das nações européias em guerra (Fritsch, to antes. As últimas estatísticas têm mostrado não a dimi- 1990:45). O mercado não queria café, cujos preços esta- nuição contínua dos níveis da pobreza e da indigência, mas vam em baixa, e sim alimentos. Isso levava a um enorme a manutenção dos níveis a partir de 1995 e até mesmo seu esforço das fazendas em situação financeira debilitada para ligeiro aumento em 1999 (Rocha, 2000; Hoffmann, 2001 desviar o produto agrícola que atendia a uma população e Takagi, Graziano da Silva e Del Grossi, 2001), espe- urbana já na casa de milhões. cialmente nas áreas metropolitanas,2 como reflexo do cres- A crise dos anos 30 inaugura um período de interven- cente desemprego, da precariedade dos mercados de tra- ções públicas federais no abastecimento. O governo Vargas balho e dos baixos salários vigentes. implantou um largo aparato de intervenção no qual cada autarquia (açúcar e álcool, mate, sal, café, trigo, etc.) de- INTERVENÇÕES NA ÁREA DO veria zelar pelo equilíbrio dos mercados interno e exter- ABASTECIMENTO no e pelos preços remuneradores aos produtores. É justa- mente nesse período que se agrava o problema da oferta, Apesar de o Brasil colonial estabelecer-se como área tendo em vista a desestruturação da agricultura cafeeira. de exploração e produção agrícolas, a preocupação com Esta, por um lado, contribuía para a oferta de gêneros de as culturas alimentares surge já no século XVI em função primeira necessidade e, por outro, segurava um grande da monocultura, que não deixava espaço para a produção contingente populacional no campo. de “mantimentos”. Ao longo do período de escravidão, A Comissão de Abastecimento, criada no período da desenvolveu-se o dilema entre utilizar essa mão-de-obra ditadura, compatível com o esforço de guerra (Decreto- para produzir e comercializar alimentos em condições não Lei no 1.507 de 16 de setembro de 1939), tinha como ob- remuneradoras e a alternativa de produzir para a exporta- jetivo regular tanto a produção como o comércio de ali- ção. Por esse motivo, a produção de alimentos esteve li- mentos, drogas, material de construção e combustíveis, a gada muito mais ao auto-abastecimento das propriedades fim de segurar a alta de preços. A Comissão funcionava que às demandas colocadas pelo mercado. Essa situação como um ministério extraordinário com superpoderes, abria espaço para alguns colonos na região de Minas Ge- podendo comprar ou requisitar e vender esses produtos rais ou foreiros e escravos que trabalhavam nas fazendas para a população. Ela poderia também exigir a colabora- de cana-de-açúcar paulistas. ção de órgãos ou funcionários estaduais e municipais. Segundo Burnier (2000:45), outros dois flagelos da Em termos práticos, a Comissão deixou algumas inicia- administração colonial eram o dízimo e o recrutamento. tivas importantes como os restaurantes populares – vin- “O recrutamento era feito de forma aleatória e desorde- culados ao Ministério do Trabalho e ao órgão de Previ- nada, tendo chegado na Bahia a provocar a carestia de dência Social – e também alguns instrumentos de incentivo alimentos: para fugir dele, muitos lavradores optavam por e apoio à produção agrícola. Os preços da alimentação, abandonar suas plantações”. Com a introdução do café e todavia, continuam a elevar-se durante o período da guer- a cessação do tráfico negreiro, o problema da oferta de ra e mesmo nos anos seguintes. A causa principal para esse alimentos se agravou. Faltavam braços para cultivar a terra movimento estava na desvalorização da moeda nacional e havia mais bocas para alimentar nas cidades. A situação que tornava mais caras as importações e escassos os pro- era ainda pior em períodos de alta no preço do café, quando dutos de origem nacional. a mão-de-obra disponível era totalmente aproveitada para Nas décadas seguintes, a questão da fome e da carestia o desenvolvimento dessa cultura de exportação. começa a receber uma atenção especial dos governantes A escassez de alimentos e o atraso nas estruturas de por causa dos aspectos concernentes às questões de pro- comercialização levaram à elevação no preço dos alimen- dução, consumo e distribuição ou em virtude de questões tos e à ação de especuladores. O ano de 1917 representa subjetivas ligadas a um país que queria libertar-se do atraso um marco nos problemas de alimentação, com o proble- e do subdesenvolvimento e entrar na modernidade. Como ma da carestia apresentando-se como o estopim para a pano-de-fundo desses temas estavam os compromissos deflagração de manifestações e da primeira greve geral assumidos internacionalmente pelo Brasil em 1943, na operária de nossa história, que teve lugar na cidade de São Conferência de Hot Springs (EUA), que lançou as bases

120 POLÍTICAS DE COMBATE À FOME NO BRASIL para a criação da FAO – Food and Agriculture Organization, sões em mercados municipais. Desta feita, o Estado pre- das Nações Unidas, e na própria criação da FAO em 1945. tende administrar, direcionar e punir os varejistas. Acre- Nesse período, o brasileiro Josué de Castro tornava-se ditava-se que reunindo em um só local oferta e demanda conhecido mundialmente com a publicação do seu livro de produtos agrícolas seria possível nivelar preços, com- Geografia da fome, em 1946. parar padrões e reduzir margens. Nos anos 50, com a modernização da agricultura e a abertura de novas vias de acesso e novas áreas de produ- MUDANÇAS NA CONJUNTURA NOS ção, o discurso político e a ação governamental voltam- ANOS 70 E 80: PRIORIDADE PARA A se para a área da distribuição. Embora a Reforma Agrária PRODUÇÃO AGROPECUÁRIA passasse a ser apresentada como importante política de apoio à oferta de alimentos, e viesse no sentido mais ge- O esforço de modernização da agricultura brasileira ral das reformas necessárias para o desenvolvimento do afastou a preocupação com a disponibilidade de alimen- país, a ênfase da política do período vai se dar na área do tos. Desde a década de 50, a produção agrícola passou a abastecimento. Pela primeira vez, são tomadas medidas crescer em ritmo superior ao aumento da população. No de intervenção direta no abastecimento em tempos de paz. final dos anos 60, a agricultura e a pecuária cresceram ace- Nesse sentido, vale mencionar a criação da Cofap – leradamente (5,1% e 2,3% ao ano, respectivamente, para Comissão Federal de Abastecimento e Preços em 1951, o período 1967-1970) e, no período seguinte, 1971-1976/ que mais tarde abriu espaço para uma área de fiscalização 1977, atingem seus maiores níveis de crescimento na his- (Sunab), armazenamento (Cibrazém), distribuição (Cobal) tória: 5,5% e 6,3% para agricultura e pecuária. e administração de estoques reguladores (CFP). Todos O principal fator impulsionador da agricultura no pe- esses órgãos foram lançados dez anos depois, através das ríodo foi a política de crédito rural subsidiado. O resulta- leis delegadas, numa tentativa do governo Goulart de re- do foi rápida expansão da fronteira agrícola, o que de- cuperar o atraso existente entre as estruturas de produção mandou, evidentemente, uma rede de estradas e corredores e comercialização e deter a especulação. Nesse período que permitisse escoar a produção agrícola para o merca- também é criado o Entreposto Terminal de São Paulo, que do. Assim, embora a produção agrícola fosse suficiente foi o embrião do Ceagesp e das Centrais de Abastecimen- para atender às necessidades nutricionais – mesmo consi- to que se seguiram. derando a crescente exportação de produtos agrícolas – e O surgimento do entreposto em São Paulo e a criação parte importante da distribuição estivesse sob controle do da Cobal marcam uma mudança radical no rumo das polí- poder público, os preços dos alimentos continuavam ele- ticas de abastecimento. Até então, o poder público tinha vados e a questão da fome já se destacava na realidade como objetivo apenas fiscalizar e controlar os canais de brasileira associada à questão da carestia dos alimentos e comercialização. A partir da década de 60, o poder públi- à inflação. Entre 1971 e 1980, o IPA – Índice de Preços co chama para si a tarefa de distribuir e fazer chegar até o no Atacado de produtos agrícolas (IPA-DI) apresentou taxa consumidor os alimentos necessários. Em outras palavras: média anual de 30,4% contra um IPA-DI para todos os deixam-se de lado os aspectos normativos e a atuação passa produtos da ordem de 27,6%. Na década seguinte, no pe- a ser direta na gestão do sistema de abastecimento. A preo- ríodo 1981-1990, esse índice subiu para 208,5% (média cupação principal não era combater diretamente o proble- anual) contra 203,9% do IPA-DI (média anual) para to- ma da fome, mas sim dar uma resposta à sociedade que dos os produtos.3 exigia preços mais baixos. Muitos fatores poderiam ser arrolados para explicar A partir da proposta inicial do Gemab – Grupo Execu- essas diferenças de indicadores, como a influência do câm- tivo de Modernização do Abastecimento, em 1968, e da bio valorizado nos custos dos insumos agrícolas, meno- Cobal, institui-se extensa rede de centrais de abastecimento res ganhos de produtividade no campo, desvios de produ- (47 entrepostos) e mais de uma centena de instalações ção para o mercado externo, etc. No entanto, dois aspectos varejistas (Rede Somar). Adicionem-se a isso outras cen- podem ser considerados fundamentais para compreender tenas de varejões e sacolões administrados pelos Estados a reversão de políticas que se processa nos anos 90. e municípios que irão surgir ao longo dos anos 70 e 80. Primeiro, a ineficiência das estruturas de comerciali- Essa postura é bastante distinta da anterior, que mantinha zação. Apesar de todo o aparato montado ao longo dos 30 sob a administração pública apenas o esquema de conces- anos anteriores, o poder público foi ineficiente em con-

121 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 trolar preços e margens e em modernizar a comercializa- surgimento de políticas de assistência direta à população ção. No sistema de atacado, as Ceasas jamais funciona- carente. ram como espaços de aproximação de produtores e con- Em comparação com o enorme apoio recebido pela sumidores. Ao contrário: tão logo elas se estabeleceram, produção agrícola, foram poucas as ações do Estado em o sistema passou a ser controlado por atacadistas priva- direção a uma política de abastecimento e combate à fome. dos que se consolidaram como um novo elo na cadeia de Nos anos 70, consolidou-se o sistema de Centrais de Abas- distribuição. Durante todo esse período, pouca coisa se tecimento concebido nos anos 80 e a distribuição varejis- alterou também no sistema de escoamento da produção, ta ficou sob responsabilidade dos Estados e municípios, embalagens e mecanismos de formação de preços. Na prá- que incrementaram e ampliaram a rede de varejões e tica, os agentes e os mercados tradicionais passaram a atuar sacolões. A única iniciativa federal efetiva, visando aten- nos novos espaços patrocinados pelo poder público sem der consumidores de baixa renda, foi a criação da Rede mudanças e maiores efeitos na oferta. Somar que, conforme já comentado, chegou a adminis- Segundo, a importância cada vez maior do peso dos trar mais de uma centena de estabelecimentos. produtos industrializados na cesta de consumo da popu- Merece ser lembrado apenas, nesse período, o Pro- lação. Essa particularidade chamou a atenção de Baer grama Nacional do Leite para Crianças Carentes (1995:370), em sua análise da estrutura de consumo pes- (PNLCC), criado em 1986 no governo Sarney, para aten- soal do Brasil, calculada a partir das Contas Nacionais. der família com renda mensal total até 2 Salários Míni- Observa-se que a proporção do consumo de produtos agrí- mos e crianças de até 7 anos de idade. Como destaca colas in natura nos gastos totais com consumo reduziu-se Cohn (1995), o programa foi muito malsucedido em sua de 17,4% para 5,4% e depois para 3,3% entre 1959, 1970 abrangência e gestão. Entretanto, foi a primeira expe- e 1975. Por sua vez, o consumo de alimentos industriali- riência em grande escala de distribuição de cupons de zados cresceu de 15,1% para 25,3% e depois se reduziu alimentos no Brasil. para 21,12% no período analisado. O PNLCC estava vinculado diretamente à Presidência De fato, com a urbanização e a mudança dos hábitos da República, e controlava a oferta (produção e importa- alimentares da população, cresceu o consumo de produ- ção de leite) e o sistema de distribuição. Os cupons, co- tos industrializados ou semipreparados. Assim, uma par- nhecidos como “tíquetes do Sarney” eram distribuídos às te cada vez mais importante da produção agrícola acaba- famílias carentes previamente cadastradas em entidades va por seguir outros circuitos, passando de um bem final de base, na proporção de um litro de leite por criança. Não de consumo a um insumo para a indústria de alimentos e, havia contrapartida por parte dessas famílias, nem con- daí, para os supermercados e mercearias.4 troles que pudessem conferir se os cupons estavam mes- Acrescente-se a isso também as mudanças ocorridas na mo sendo trocados por leite. estrutura familiar e no mercado de trabalho, que levaram Embora não haja informações sobre o custo desse pro- a um crescente consumo de alimentos fora dos domicí- grama e sobre os resultados das metas estabelecidas – aten- lios. Dados observados por Maluf (2000:9) chamam a aten- der mais de 10 milhões de crianças (Secretaria de Agri- ção para o fato de, mesmo nas classes de renda mais bai- cultura e Abastecimento, 1986:17) – observou-se aumento xa (até 2 SM), o gasto com alimentação fora de casa saltar significativo na produção de leite no país (20,1% entre de quase nada no total gasto com alimentação para mais 1986 e 1990) e crescimento no consumo per capita de 94 de 12% em 1999. Esses fatores têm enorme influência não litros/ano para 109 litros/ano nesse período. Vale lembrar, só nos circuitos de distribuição dos alimentos industriali- também, que essa foi a primeira experiência na implemen- zados mas também dos in natura. Estamos considerando, tação de políticas, cujas metas foram traçadas de baixo portanto, que uma importante parcela da produção não para cima. Foi também a primeira experiência de compra recebe qualquer influência ou regulação do poder públi- pública de gêneros alimentícios feita diretamente na rede co e circula de forma independente, passando a criar as comercial constituída. Não se estabeleceram novos canais próprias rotinas de compras. de comercialização nem se distribuiu alimento em espé- Esses elementos nos permitem mostrar que a ação do cie, e sim o meio de compra para a aquisição de alimen- Estado na regulação da distribuição e no combate aos pro- tos. blemas da fome mudou nos seus fundamentos. Nos anos As mudanças nas diretrizes da política macroeconômi- 90, assistimos ao desmonte das estruturas antigas e o res- ca nos anos 90 levaram à redução gradativa dos gastos

122 POLÍTICAS DE COMBATE À FOME NO BRASIL com agricultura e alimentação. Tomando-se apenas as Sua retomada, no início dos anos 2000, está relaciona- despesas orçamentárias do governo federal, verifica-se que da com vários fatores: primeiro, o agravamento da situa- os recursos alocados na “função agricultura”, reduzem-se ção de pobreza e da vulnerabilidade das famílias no País, de 5,75% no início dos anos 80, para apenas 2,11% na especialmente nas grandes cidades, aprofundada pela cri- média do período 1995-1999 (Gasques, 2001). Embora se econômica e pelo aumento do desemprego no final da tenha havido crescimento dos gastos ao longo desse pe- década de 90. Segundo, as iniciativas dos organismos in- ríodo, esse foi muito inferior ao crescimento dos gastos ternacionais, como a FAO, a ONU e o Banco Mundial, do governo. Enquanto a taxa anual de crescimento dos sobre o tema da fome e da pobreza.5 Essas preocupações gastos com a agricultura cresceu 4,22%, as despesas ge- e ações refletem o fato de que a manutenção da pobreza e rais tiveram um crescimento médio de 12,21% ao ano. Vale de níveis agudos de fome (e até mesmo seu aumento em ressaltar ainda que “mais de 50% do gasto público estão alguns países) é o calcanhar-de-aquiles para o “sucesso” pulverizados em ações sobre as quais o governo não tem do “modelo de desenvolvimento equilibrado” dessas eco- o menor acompanhamento ou controle” (Gasques, 2001:11 nomias. e 29). A Cúpula Mundial da Alimentação em Roma, 1996, Com o esvaziamento das despesas de governo com a que reuniu 186 países, definiu como meta reduzir pela agricultura (leia-se: crédito agrícola, preços mínimos e metade o número de desnutridos até o ano 2015, o que fez estoques reguladores), restou ao Estado promover políti- com que a FAO adotasse uma metodologia para acompa- cas compensatórias. Nesse particular, inserem-se políti- nhamento da quantificação da fome no mundo. Similar- cas pontuais e regionais visando atender às demandas de mente, o Banco Mundial acompanha os dados de pobreza grupos organizados. Não seria exagero afirmar que, com no mundo desde 1993, sendo que seu último relatório so- a importante exceção dos recursos destinados à Previdên- bre desenvolvimento mundial (2000/2001) denomina-se cia Rural (estabelecidos pela Constituição de 1998), hou- “Luta contra a Pobreza”. O Programa das Nações Unidas ve uma redução generalizada dos gastos em programas e para o Desenvolvimento – PNUD, na mesma linha, ado- ações na área social. Na agricultura, assim como em ou- tou o compromisso de reduzir pela metade a extrema po- tros setores, houve um redirecionamento das fontes pú- breza no mundo, e também publica anualmente avaliações blicas para as de origem privada. sobre o estado de desenvolvimento humano mundial, A mudança de enfoque não abalou tanto o crescimento acompanhando indicadores sociais. da agricultura empresarial, especialmente dos segmentos Ao contrário de outros países (desenvolvidos ou não) voltados à exportação, que continuaram a apresentar re- que têm adotado políticas claras para aumentar o acesso sultados crescentes em termos de quantidades produzidas. da população à alimentação, o Brasil ainda se ressente da Parcela cada vez maior de pequenos agricultores, toda- falta de um projeto integrado e com recursos para atender via, passou a conviver com a situação de insolvência, dei- a esse objetivo. A seguir, apresenta-se um rápido resumo xando de lado a atividade agrícola. Dias et alii (2000) sobre as marchas e contramarchas das políticas de com- estimam, com dados do IBGE de 1996, que aproximada- bate à fome no Brasil nos anos 90. mente 20,4% dos produtores agrícolas tinham rendas ne- No início da década de 90, o governo Collor de Melo gativas e 59,5% abaixo da renda mediana, o que quer di- reestruturou os órgãos e instrumentos de políticas ligados zer que se tratava de agricultores eminentemente pobres. à saúde e nutrição, extinguindo políticas como os progra- mas de suplementação alimentar dirigidos a crianças meno- A RETOMADA DA QUESTÃO DA res de 7 anos, e enfraquecendo outras, como o Programa FOME NOS ANOS 90 Nacional de Alimentação Escolar, o Programa de Alimen- tação do Trabalhador e o Inan (Instituto Nacional de Ali- Embora nunca tenha saído da pauta de problemas na- mentação e Nutrição) (Valente, 2001). Segundo Valente, cionais, nem de reivindicações dos movimentos sociais, a única novidade positiva no período foi a iniciativa de houve um arrefecimento da discussão sobre o problema utilização de estoques públicos de alimentos para Progra- da fome e da miséria no País desde a mobilização promo- mas de Alimentação, uma reivindicação antiga de técni- vida pela Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e cos para reduzir as perdas dos estoques, originando o pro- pela Vida e da extinção do Consea (Conselho Nacional grama de distribuição de cestas básicas para a população de Segurança Alimentar), em 1993. atingida pela seca do Nordeste, em 1990.

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O período seguinte (1992/1994) é marcado pela realiza- munidade Solidária. O PCA é voltado para as localida- ção de ampla mobilização da sociedade civil em torno do des, sendo os municípios escolhidos por terem menor tema da fome e da miséria, impulsionada pela mobilização IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). A propos- pela ética na política, resultando na tentativa de implanta- ta do programa é a realização de agendas de desenvol- ção, pela primeira vez, de uma política de combate à fome vimento a partir de diagnósticos participativos para no País. As iniciativas de partidos políticos da oposição, como identificação dos problemas locais. A partir dessas agen- o Partido dos Trabalhadores, ao elaborar uma Política Na- das, o governo federal dá prioridade a essas localida- cional de Segurança Alimentar e apresentá-la ao governo des em programas como Redução da Mortalidade In- federal, e a mobilização da sociedade em torno da campa- fantil, Agentes Comunitários de Saúde, Saúde da nha da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Família e programas de microcrédito (Terra, 2000). Se- Vida, coordenada pelo sociólogo Betinho, tiveram forte im- gundo Valente (2001), no início de 2001, apenas 157 pacto. Como resultado dessa mobilização, foi criado, em maio municípios haviam sido contemplados na primeira fase de 1993, na gestão Itamar Franco, o Consea, vinculado dire- do programa, contra a previsão inicial de atingir 1.000 tamente à Presidência da República e com a participação de até o final de 2000. A mesma proposta do PCA foi, organizações não-governamentais. Segundo Valente (2001), posteriormente, incorporada em novo programa do go- o Consea era integrado por 8 ministros e 21 representantes verno federal, o Projeto Alvorada, que é uma junção da sociedade civil, em grande parte indicados pelo Movi- de diversos outros programas em andamento e implan- mento pela Ética na Política, para coordenar a elaboração e tados em cada ministério. implantação do Plano Nacional de Combate à Fome e à Mi- Com relação às políticas na área de saúde, desde a ex- séria dentro dos princípios da solidariedade, parceria e des- tinção do Inan, o principal programa federal para comba- centralização. te às carências nutricionais à população de risco tem sido O Consea chegou a funcionar por apenas dois anos. Ape- o fornecimento de leite e óleo de soja. Isso vem sendo sar de representar uma novidade institucional, ao envolver feito através do programa de Incentivo ao Combate às vários ministérios e também segmentos organizados da so- Carências Nutricionais – ICCN, vinculado à Política Na- ciedade civil, ficou sujeito às restrições da área econômica, cional de Alimentação e Nutrição – PNAN, do Ministério cuja prioridade de estabilização monetária deixava à mar- da Saúde, juntamente com o fornecimento da multimistura gem as políticas sociais. Alguns dos poucos resultados que para crianças desnutridas, através da Pastoral da Criança. podem ser atribuídos à atuação do Consea foram a descen- O governo federal planeja substituir progressivamente o tralização do Programa Nacional de Alimentação Escolar (a ICCN por um programa de renda mínima, o Bolsa-Saúde, merenda escolar) em direção aos municípios e às próprias a partir de 2001. A proposta é de uma complementação escolas (autonomização da gestão); a continuidade do Prodea, monetária de R$ 20,00 por nutriz, gestante ou criança até com a utilização de estoques públicos de alimentos; e a prio- seis anos, com no máximo três beneficiários por família, ridade ao programa de distribuição de leite (Programa “Aten- com um valor total previsto de cerca de R$ 570 milhões. dimento ao Desnutrido e à Gestante em Risco Nutricional – No final de 2000, o governo federal cortou, do Orça- Leite é Saúde”), como estratégia de combate à desnutrição mento de 2001, a verba para o Prodea, acabando com a materna e infantil. distribuição de cestas básicas. A justificativa oficial foi o O governo Fernando Henrique Cardoso extinguiu o caráter assistencial do programa, que não contribui, se- Consea e, no lugar dele, criou o Conselho Comunidade Soli- gundo o governo, para o combate à pobreza no país. Além dária, um órgão mais de consulta que executivo. A partir daí, disso, argumentou-se que a distribuição de cestas vindas observa-se uma nova fragmentação das políticas públicas de de fora não ajuda a economia local do município, porque combate à fome, que resultou, por exemplo, na extinção do diminui as compras nos pequenos comércios. A proposta Inan, em 1997, e na manutenção do programa de distribui- do governo federal, desativando o Prodea, era transferir ção de cestas básicas de forma instável e sujeito ao calendá- gradativamente as famílias atualmente beneficiadas para rio eleitoral. Em 1998, ano eleitoral, o governo distribuiu o outros programas sociais vinculados ou não ao Projeto recorde de 30 milhões de cestas básicas (conforme editorial Alvorada, com especial ênfase no Bolsa-Alimentação, re- do jornal Folha de S.Paulo em 28/11/00). cém-criado, e no Bolsa-Escola, a partir de 2001. Em 1999, foi criado o Programa Comunidade Ativa O Bolsa-Escola federal, criado em fevereiro de 2001 e (PCA), coordenado pela Secretaria Executiva do Co- implantado pelo Ministério de Educação, visa fornecer a

124 POLÍTICAS DE COMBATE À FOME NO BRASIL quantia de R$ 15,00 por mês para cada criança matricula- cia de demanda efetiva, que inibe a maior produção de da na escola, com no máximo R$ 45,00 por família, atra- alimentos por parte da agricultura comercial e da vés de recursos previstos de R$ 1,7 bilhão, provenientes agroindústria do País. As razões que determinam essa in- do Fundo de Combate à Pobreza.6 A meta do governo é suficiência da demanda efetiva – concentração excessiva atingir 10,7 milhões de crianças e 5,9 milhões de famílias da renda, baixos salários, elevados níveis de desemprego em 2001. O valor da bolsa é menor que o valor de merca- e baixos índices de crescimento, especialmente daqueles do da cesta básica distribuída pelo Prodea – esta, segun- setores que poderiam expandir o emprego – não são do cálculos de Lavinas et alii (2000), variava de R$ 18,90 conjunturais. Ao contrário, são estruturais, ou seja, em Curitiba a R$ 21,66 em Belo Horizonte – e bem me- endógenas ao atual padrão de crescimento e, portanto, nor do que o das políticas que deram origem ao Programa resultados inseparáveis do modelo econômico vigente. Bolsa-Escola, como na Prefeitura de Campinas (gestão Forma-se, assim, verdadeiro ciclo vicioso e acumulativo, Magalhães Teixeira, 1997/2000, cujo valor, hoje, varia causador em última instância do aumento da fome no País, de R$ 125,00 a R$ 370,00 por família), no Distrito Fede- qual seja, desemprego, queda do poder aquisitivo, redu- ral (gestão de Cristovam Buarque, 1995/1998 de R$ 130,00 ção da oferta de alimentos, mais desemprego, maior que- por família – o salário mínimo da época), e nas Prefeitu- da do poder aquisitivo, maior redução na oferta de ali- ras de Porto Alegre, de R$ 150,00 por família, e de Reci- mentos. fe, no valor de R$ 75,00 por aluno matriculado (Azevedo Para romper esse ciclo perverso, é preciso a interven- et alii, 2001). ção do Estado com um autêntico programa keynesiano, Em resumo, é possível identificar duas tendências atuais de modo a incorporar ao mercado de consumo de alimen- nas políticas de combate à fome do governo federal: primei- tos aqueles que estão excluídos do mercado de trabalho ra, um esvaziamento das políticas universais e sua substitui- e/ou que têm renda insuficiente para garantir uma alimen- ção por políticas compensatórias localizadas, de caráter fo- tação digna a suas famílias. calizado e geridas pelos próprios municípios, voltadas para Trata-se, em suma, de criar mecanismos – alguns a área social em geral (Lobato, 2001). Dá-se prioridade aos emergenciais, outros permanentes – no sentido de: bara- municípios mais pobres e procura-se implantar, gradualmente, tear o acesso à alimentação para a população de mais bai- agendas locais, apostando na mobilização, formação e trei- xa renda, em situação de vulnerabilidade à fome; incenti- namento de agentes locais de desenvolvimento. O alcance var o crescimento da oferta de alimentos baratos, mesmo dessa política tem se revelado bastante limitado, como se pode que seja através do autoconsumo e/ou da produção de sub- verificar pelos baixos resultados alcançados até o momento sistência; e, finalmente, incluir as famílias através do au- na redução dos desequilíbrios sociais. Isso porque a fome no mento da renda, da universalização dos direitos sociais e Brasil tem, cada vez mais, determinantes globais – como a do fornecimento de direitos de compra de alimentos, dado crise econômica, que resulta em desemprego e baixos salá- que o acesso à alimentação básica é direito inalienável de rios, além da extrema desigualdade social no País – e menos qualquer ser humano, para não falar do direito de cida- determinantes locais.7 dão, que deveria ser garantido a todos os brasileiros. A segunda tendência é a substituição de programas Para o equacionamento definitivo do problema da fo- baseados na distribuição de bens em espécie (como ces- me, é necessário, conforme foi dito, um novo modelo eco- tas básicas e leite) por um valor mensal em dinheiro, varian- nômico que privilegie o crescimento do mercado interno do entre R$ 15,00 e R$ 20,00 por mês. O agravante é que e que diminua a extrema desigualdade de renda existente essas novas políticas direcionadas para a população mais no País. Enquanto isso é buscado, pode-se implementar vulnerável à fome não prevêem formas de emancipação uma série de políticas que promovam melhorias na renda do dependente do benefício nem de acompanhamento, para das famílias, barateamento da alimentação, aumento da verificar se as famílias realmente solucionam a carência oferta de alimentos básicos e, simultaneamente, forneçam alimentar.8 de forma emergencial alimentos à população vulnerável à fome. PROPOSTAS PARA O COMBATE À FOME A Figura 2 apresenta, esquematicamente, os principais eixos de atuação e as principais políticas para combater a Na nossa opinião, o problema da fome no Brasil neste fome no País. As propostas apresentadas tratam, basica- início do século XXI está relacionado com uma insuficiên- mente, de uma compilação de iniciativas já implementa-

125 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001

FIGURA 1 Círculo Vicioso da Fome Brasil

FALTA DE POLÍTICAS DE GERAÇÃO DE EMPREGO E RENDA

Desemprego Crescente Salários Baixos

Concentração de Renda

CONSUMO DE FOME DIMINUI OFERTA ALIMENTOS CAI DE ALIMENTOS

CRISE AGRÍCOLA

Queda dos Juros Altos Preços Agrícolas

Falta de Políticas Agrícolas

Fonte: Instituto Cidadania. das ou em implementação no Brasil ou em outros países Barateamento da Alimentação – As iniciativas dos res- que, se implementadas de forma conjunta, podem reduzir taurantes populares, que fornecem refeições prontas a pre- efetivamente a fome. O fundamental, a nosso ver, não é ço baixo (R$ 1,00 a R$ 2,00) à população trabalhadora propor “novas” políticas, mas integrá-las, articulando os que mora nas periferias das grandes cidades, têm tido su- diversos níveis de governo (federal, estadual e municipal) cesso no barateamento da alimentação que é realizada fora com os segmentos da sociedade civil para garantir sua de casa. Outra iniciativa importante é a dos canais alter- implementação. nativos de comercialização, como varejões, feiras livres, Esquema de uma Política Integrada de Combate à Fome: sacolões, feira do produtor, compras comunitárias que Melhoria da Renda – As iniciativas de fornecimento de ren- fornecem alimentos de qualidade e de baixo custo, pela da para as famílias carentes (através de programas de renda redução da intermediação. A formação de centrais de com- mínima, bolsa-escola e previdência social universal) são pras nas periferias em parcerias com o poder público, agre- importantes para a melhoria da renda familiar, mas sozinhas gando pequenos supermercados para racionalizar a lo- não conseguem solucionar o problema alimentar de segmentos gística e diminuir seus custos, visando à redução dos preços importantes da população carente. Associam-se, também, a finais, é alternativa a ser incentivada. Parcerias com as este grupo, programas de geração de emprego e renda, a re- redes de varejo de vizinhança são possíveis em progra- forma agrária, com o papel fundamental de fornecer “casa, mas como os cupons-alimentação, como será apresenta- comida e trabalho” às famílias rurais mais pobres, e políti- do nas ações emergenciais. Por fim, é preciso ampliar o cas de estímulo à produção de alimentos para o autoconsumo, Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT, de modo como fornecimento de mudas, sementes, insumos, matrizes a atender também os empregados das micro e pequenas de pequenos animais, etc. empresas.

126 POLÍTICAS DE COMBATE À FOME NO BRASIL

FIGURA 2 Esquema de uma Política Integrada de Combate à Fome Brasil

Novo Modelo Econômico

Melhoria na Renda • bolsa-escola e renda mínima

• expansão previdenciária ○○○○○ • reforma agrária

• microcrédito ○○○○○○○○ ○○○○○○○○○○○○○○

Barateamento da Alimentação • restaurante popular Melhor Distribuição de Renda Aumento de Ofertas de • convênio supermercado/sacolão Alimentos Básicos • canais alternativos de • apoio à agricultura familiar comercialização • incentivo à produção para • equipamentos públicos FOME autoconsumo • PAT • política agrícola • legislação anti-concentração

• cooperativas de consumo

○○○○ ○○○○

○○○○○○○○○○○ Ações Específicas • cupom de alimentos • cesta básica emergencial • merenda escolar Crescimento do Emprego e Salários

• programas especiais ○○○○○○○○○○ • banco de alimentos • estoques de segurança • combate à desnutrição materno-infantil • educação alimentar

Crescimento do Mercado Interno

Fonte: Instituto Cidadania.

Ações Específicas – Paralelamente às ações já aponta- tarem, o programa visa incentivar o comércio local (atra- das, é necessário atender, de forma emergencial, as famí- vés de parcerias com os estabelecimentos cadastrados) e lias que já sofrem o efeito da fome e/ou que sejam o consumo de produtos naturais (através de centrais de vulneráveis a ela, por não ter renda para se alimentar ade- compras em parceria com associações de produtores agrí- quadamente. Esses programas específicos devem atender colas), permitindo, ao mesmo tempo, que cada família todas as famílias com renda insuficiente para alcançar a construa o próprio cardápio. O programa de cestas bási- segurança alimentar. A exemplo do programa americano cas deve ser mantido, mas assumindo caráter exclusiva- Food Stamp, que fornece às famílias pobres selos (ou va- mente emergencial, para aqueles segmentos da população les) para compra de alimentos no comércio local, propõe- atingidos por calamidades naturais (secas e enchentes) e se que sejam fornecidos cupons de alimentação para as para os novos assentados de reforma agrária, até que se famílias completarem sua renda até o valor correspondente desenvolva o comércio local e as famílias possam ser aten- ao da Linha de Pobreza de cada região do País. Esses cu- didas pelo programa do cupom-alimentação. O forneci- pons poderão ser trocados por alimentos em estabeleci- mento das cestas básicas emergenciais poderá ser garan- mentos cadastrados, e podem ser geridos conjuntamente tido pela instituição de estoques públicos de segurança pelo governo federal e por governos estaduais e munici- alimentar, conforme defendido por organismos internacio- pais. Além de fornecer meios para as famílias se alimen- nais como a FAO, desvinculados dos estoques agrícolas

127 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 destinados a evitar oscilações de preços. Além desses, dos preços altos e da falta de alimentos. A partir dos anos devem-se manter programas nas áreas de saúde, com o 30, predominou a visão de atuar nas estruturas de distri- acompanhamento da situação nutricional de crianças e buição. Ampla estrutura de estocagem e distribuição de adultos e o fortalecimento da ação do Sisvan (Sistemas alimentos foi criada nacionalmente, sobretudo a partir da de Vigilância Nutricional) nos municípios, de forma a década de 60. Em seguida, nos anos 70, ampliou-se a in- monitorar a situação de carência alimentar das famílias tervenção pública e o Estado passou a atuar no incentivo de baixa renda. à produção agropecuária, gestão direta das estruturas de Combate ao Desperdício – Especialmente nas grandes comercialização e na regulação do mercado. Finalmente, cidades, verifica-se a existência de uma rede de produção no final dos anos 80, observou-se o desmonte das políti- e desperdício de alimentos prontos ou não que, mesmo cas agrícolas – em particular a do crédito rural subsidiado em boas condições, são jogados fora. A criação dos Ban- – que deram sustentação à agricultura intensiva, embora a cos de Alimentos é uma forma de aproveitamento dessas produtividade e a produção continuassem a elevar-se nas sobras, atuando no recolhimento e distribuição a associa- décadas seguintes, e das políticas de abastecimento. ções beneficentes ou diretamente a famílias carentes. Ini- Os anos 90 foram marcados por dois períodos muito dis- ciativas como essa funcionam em São Paulo (Programa tintos: na primeira metade da década, houve grande mobili- Mesa São Paulo, do Sesc, e na Prefeitura de Santo André, zação da sociedade em torno do tema do combate à fome e à por exemplo) e em várias outras capitais. miséria, resultando na formação, pela primeira vez, de uma Aumento da Oferta de Alimentos Básicos – A implan- institucionalidade integrada, de caráter nacional, para o com- tação conjunta dos programas de melhoria na renda, ba- bate à fome. Essa estrutura dinamizadora, o Consea, teve, no rateamento da alimentação e das ações emergenciais irá, entanto, vida curta. A segunda metade da década foi marca- certamente, aumentar muito a demanda por alimentos no da pelo desmonte das estruturas anteriores e sua substituição País. Nesse caso, serão necessários programas de estímu- por políticas focalizadas, de articulação com as comunida- lo aos agricultores familiares, através do redirecionamento des, e pelo fornecimento de programas de renda mínima do de créditos agrícolas, do incentivo à agricultura urbana tipo bolsa-escola, bolsa-saúde, etc. com programas de zoneamento que permitam aproveitar Considerando-se as oscilações recentes da economia bra- terrenos para implantação de hortas. Através da criação sileira e o fato de que essas propostas ainda estão em fase de de canais de venda dos produtos, compras institucionais implantação, pouco há para se avaliar. No entanto, o texto (merenda, hospitais, presídios e programas do cupom-ali- também mostrou uma série de iniciativas, algumas já em an- mentação) e parceiras com supermercados (estímulo a damento, outras novas que, se implantadas de forma integra- compras de produtores locais), pode-se incentivar o aces- da, serão capazes de reduzir enormemente o problema da so dos agricultores familiares aos mercados locais. fome no País, envolvendo toda a sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS NOTAS

E-mail dos autores: [email protected], [email protected] Mostramos, neste texto, que o problema da fome per- e [email protected] manece grave no País e está hoje fortemente relacionado Esse texto faz parte do Projeto que está sendo elaborado com a falta de renda para uma alimentação adequada, em pelo Instituto Cidadania (www.icidadania.org.br). 1. Os indigentes são calculados através da quantificação de pessoas função dos baixos salários e do desemprego crescente nas ou famílias com renda abaixo do necessário para adquirir uma cesta regiões metropolitanas, sem deixar de lado a falta de ca- de alimentos com quantidades energéticas mínimas ou recomendadas. nais de abastecimento locais (como nas regiões da seca A linha de pobreza é superior à de indigência pois inclui, além do va- lor dos alimentos, outras despesas não alimentares, como vestuário, do Nordeste). moradia, transportes, etc. Analisando em retrospecto as políticas alimentares no 2. Del Grossi, Graziano da Silva e Takagi (2001) calcularam o cresci- Brasil, foi possível observar como elas mudaram de cará- mento das pessoas pobres entre 1995 e 1999, chegando à taxa de 1,2% ao ano, bastante próxima da taxa vegetativa de crescimento da popu- ter ao longo das décadas. De forma bastante simplificada, lação brasileira. No entanto, nas regiões metropolitanas, a taxa de cres- as políticas alimentares foram analisadas a partir dos se- cimento foi de 5,0% a.a., enquanto nas áreas urbanas não metropolita- nas e nas áreas rurais foram de, respectivamente, 0,9% e -0,4% a.a. guintes períodos: no início do século passado, predomi- 3. É importante mencionar que, na década de 90, com a liberalização naram políticas de intervenção para resolver o problema dos mercados, os preços alimentares no atacado continuaram a suplantar

128 POLÍTICAS DE COMBATE À FOME NO BRASIL o IPA-DI total. O IPA-DI de gêneros alimentícios subiu 230,2% ao FAO – Food and Agriculture Organization. The sixth food survey, 1996. ano, contra 205,7% do IPA-DI geral. Durante todo o período, no en- ______. The state of food insecurity in the world (SOFI), 2000. tanto, verifica-se que os preços recebidos pelos produtores agrícolas são decrescentes. FERREIRA, F.H.G.; LANJOUW, P. e NÉRI, M. “A new poverty profile for Brazil, using PPV, PNAD and Census Data”. Texto para dis- 4. No Brasil, assim como em outros países, o crescimento da comer- cussão, n.418. Rio de Janeiro, PUC-Rio/Departamento de Econo- cialização de alimentos em supermercados está diretamente ligado ao mia, 2000. seu processamento. A venda em supermercados exige embalagens ho- mogêneas e pesos e dimensões previamente estabelecidos. Só recente- FRITSCH, W. “Apogeu e crise da primeira república: 1900-1930”. In: mente é que a tecnologia proporcionada pela informática permitiu que ABREU, M.P. (org.). A ordem do progresso: cem anos de políti- as grandes instalações de varejo pudessem comercializar vantajosa- ca econômica republicana (1889-1989). Rio de Janeiro, Campus, mente produtos a granel. 1990. 5. Percebe-se a partir do fim da década passada uma ação mais coor- GASQUES, J.G. “Gastos públicos na agricultura”. Texto para discus- denada em torno de programas de “Combate à Pobreza” (Banco Mun- são. Brasília, Ipea, n.782, 2001. dial, 2000 e PNUD, 2000) ou “Segurança Alimentar” (FAO, 2000). GUERRA, A. e CAZZUNI, D.H. “O comportamento do programa de 6. Conforme dados presentes em www.mec.gov.br (julho 2000). alimentação do trabalhador no Brasil durante os anos 90”, 2001, mimeo. 7. A respeito dos resultados e do diagnóstico das causas da fome, ver a versão preliminar para discussão do Projeto Fome Zero HENRIQUES, R. Desigualdade e pobreza no Brasil. Rio de Janeiro, (www.icidadania.org.br). Ipea, 2000. 8. Nos EUA, as avaliações dos programas de combate à fome mostram HOFFMANN, R. “A distribuição de renda no Brasil no período 1993- que o mais eficiente é o food stamps, que garante o acesso à compra 99”, 2001, mimeo. de alimentos através de selos (cupons): para cada dólar recebido, as LAVINAS, L. et alii. Combinando o compensatório e o redistributivo: famílias aumentam seus gastos com alimentos de 17% a 47%, com o desafio das políticas sociais no Brasil. Rio de Janeiro, Ipea uma média de 30%. Outros programas que, ao invés de cupons, distri- (Texto para discussão, 748). buem dinheiro (tipo renda mínima ou bolsa-escola, por exemplo) têm LOBATO, A.L. “Critérios de combate à pobreza e à desigualdade”. impacto bem menor: de cada dólar recebido em dinheiro, as famílias Gazeta Mercantil, 06/02/01. pobres aumentam o consumo de alimentos entre 5% e 11% no máxi- mo, “desviando” a maior parte dos recursos para o pagamento de ou- MALUF, R. “Consumo de alimentos no Brasil: traços gerais e ações tras despesas. Ver, a respeito, Rossi (1998). públicas de segurança alimentar”. Série Papers n.6. São Paulo, Pólis, 2000. PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. We the people – the role of the United Nations in the 21st century, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 2000 (www.undp.org.br). ROCHA, S. “Pobreza no Brasil. O que há de novo no limiar do século AZEVEDO, E. et alii. “Eficácia de bolsa-escola depende de manter XXI?”, set. 2000, mimeo. renda”. Gazeta Mercantil, 17/04/01. ROSSI, P. Feeding the poor: assessing federal food aid. Washington, BAER, W.A. Economia brasileira. São Paulo, Nobel, 1995. The AEI Press, 1998. BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o desenvolvimento mundial 2000/ SECRETARIA DE AGRICULTURA E ABASTECIMENTO. Conjun- 2001 – Luta contra a Pobreza, 2000. tura Alimentos. São Paulo, Coordenadoria de Abastecimento, mar. BURNIER, D. Agricultura brasileira: a produção de alimentos. Tese 1986. de doutorado. São Paulo, FFLCH/USP, 2000. TAKAGI, M.; GRAZIANO DA SILVA, J. e DEL GROSSI, M. “Po- CAMARGO, J.M. e FERREIRA, F.H.G. “O benefício social único: uma breza e fome: em busca de uma metodologia para quantificação proposta de reforma da política social no Brasil”, jan. 2001, mimeo. do problema no Brasil”. Texto para discussão, n.101. Campinas, COHN, A. “Políticas sociais e pobreza no Brasil.” Planejamento e IE/Unicamp, 2001. Políticas Públicas. Ipea, n.12, jan./dez. 1995, p.1-17. TERRA, O. “Comunidade ativa”. Cadernos da Oficina Social, n.5. DEL GROSSI, M.; GRAZIANO DA SILVA, J. e TAKAGI, M. “Evo- Rio de Janeiro, 2000. lução da pobreza no Brasil, 1995-99”. Texto a ser apresentado no VALENTE, F. “O combate à fome e à desnutrição e a promoção da Congresso Anual da Anpec, dez. 2001, mimeo. alimentação adequada no contexto do Direito Humano à Alimen- DIAS, G. et alii. “Reestruturação do sistema financeiro – agricultura tação – um eixo estratégico do desenvolvimento humano susten- projeto, 2000”. Comif, 2000, mimeo. tável”, 2001, mimeo.

129 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 ESTATUTO DA CIDADE aspectos políticos e técnicos do plano diretor

SONIA NAHAS DE CARVALHO Socióloga, Analista da Fundação Seade

Resumo: São discutidos o sentido e a articulação entre os aspectos políticos e técnicos de políticas públicas, tendo por pressuposto que o alcance social de qualquer intervenção pública é definido por seus próprios obje- tivos. O contexto para essa discussão é a política de desenvolvimento urbano e o plano diretor, visto como seu instrumento, nos termos propostos pela Constituição Federal de 1988 e recentemente regulamentados pela Lei Federal no 10.257/01. Palavras-chave: Estatuto da Cidade; política de desenvolvimento urbano; planejamento urbano; plano diretor.

objetivo deste texto foi identificar aspectos, de tuição de canais de participação social – uma das ques- natureza política e técnica, que consideram-se tões centrais que tem preocupado analistas e técnicos – O básicos para a discussão sobre planos diretores não é passível de fórmulas a priori estabelecidas. O papel dentro do contexto atual em que foi proposta a sua exi- do técnico em planejamento é garantir que os canais ins- gência. Para tal identificação, o parâmetro definido é que tituídos permaneçam abertos e contribuir para a institui- o alcance social de uma proposta de intervenção pública ção de novos. Jamais o planejador poderá substituir seja – no caso, o plano diretor – dependerá dos objetivos e a vontade política, seja a pressão social. diretrizes que venham a ser estabelecidos para ela. A sua operacionalização – isto é, a definição de fases, pro- INSTRUMENTOS LEGAIS NORTEADORES cedimentos e instrumentos – deverá se ajustar às neces- sidades impostas pelas diretrizes e objetivos a serem se- O ressurgimento do plano diretor e, em associação, do guidos. planejamento urbano, nas agendas de debate público e go- Portanto, mais do que os setores tradicionalmente tra- vernamental, é o resultado da imposição de sua obrigato- tados como tal (educação, saúde, habitação, assistência riedade aos municípios com mais de 20 mil habitantes pela social, etc.), social refere-se a intervenções que busquem Constituição Federal de 1988.1 reduzir desigualdades, segregações e exclusões sociais, A Constituição Federal, ao incorporar pela primeira vez contribuindo, em última instância, para a expansão da ci- um capítulo específico sobre política urbana (capítulo II, dadania. É este o sentido que se buscou neste trabalho. E título VII), estabeleceu como competência do poder públi- nessa interpretação, o planejamento urbano, e o plano di- co municipal a responsabilidade pela execução da política retor visto como seu instrumento central, adquire o status de desenvolvimento urbano, podendo contar, para tanto, de política pública. com a cooperação das associações representativas no de- Não se tem, porém, a pretensão de esgotar os possíveis senvolvimento de ações de promoção do planejamento ângulos relativos ao tema. Nem se pretende, por suposto, a municipal (artigo 29, inciso X) e, ao mesmo tempo, articu- proposição de normas ou manuais de procedimentos, pois, lando-se às ações promovidas pelo governo federal. dessa forma, haveria o risco da adoção de uma postura tec- À instância federal de governo cabe estabelecer as dire- nocrática. Não é esse o objetivo. O envolvimento de seg- trizes e fixar as normas necessárias para a utilização dos mentos organizados da sociedade no processo ou a insti- dispositivos constitucionais que permitirão ao poder pú-

130 ESTATUTO DA CIDADE: ASPECTOS POLÍTICOS E TÉCNICOS DO PLANO DIRETOR blico municipal intervir no espaço urbano, conforme o in- Assim, o plano diretor é também obrigatório aos muni- ciso XX, do artigo 21. Após tramitação, ocorrida ao longo cípios integrantes de regiões metropolitanas e aglome- dos anos 90, o Congresso Nacional aprovou e a Presidên- rações urbanas, às áreas de especial interesse turístico e cia da República sancionou a Lei federal no 10.257, de 10 às áreas de influência de empreendimentos ou ativida- de julho de 2001, que, sob o título de Estatuto da Cidade, des com significativo impacto ambiental de âmbito re- regulamentou os principais institutos jurídicos e políticos gional ou nacional, além das situações em que o poder de intervenção urbana. público municipal pretende utilizar os instrumentos pre- Ao longo dos anos 90, várias foram as prefeituras que vistos no parágrafo 4o do artigo 182 da Constituição, iniciaram o processo da política de desenvolvimento urba- qual seja, exigir, mediante lei específica incluída no no e de elaboração do plano diretor, valendo-se dos pre- plano diretor, do proprietário do solo urbano não- ceitos constitucionais de 1988 e com o resgate do planeja- edificado, subutilizado ou não-utilizado, que promova mento urbano em novas bases. Dentre as experiências, seu adequado aproveitamento. aponta-se a do município de Santos, onde o poder público Sem romper a inviolabilidade do direito de proprie- municipal propôs e buscou implementar instrumentos re- dade privada, reconhecido em sentido individual, o Es- guladores da produção do espaço urbano na perspectiva da tatuto da Cidade, tal como contido na Constituição de ampliação do direito à cidade, dentro de um processo de- 1988, estabelece que “a propriedade urbana cumpre sua mocrático de discussão e participação sociais (Carvalho, função social quando atende às exigências fundamentais 1999).2 de ordenação da cidade expressas no plano diretor, as- O Estatuto da Cidade reafirma os princípios básicos segurando o atendimento das necessidades quanto à qua- estabelecidos pela Constituição da União, preservando o lidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das caráter municipalista, a centralidade do plano diretor como atividades econômicas” (artigo 39). O direito de uma dada instrumento básico da política urbana e a ênfase na gestão propriedade urbana passa, assim, a ser reconhecido a democrática. Nessa perspectiva, o Estatuto da Cidade, ao partir de regras legais municipais definidoras de suas po- regulamentar preceitos constitucionais estabelecidos no tencialidades de uso, e o seu conteúdo econômico é atri- contexto das discussões acerca do papel do Estado nos anos buído pelo Estado mediante a consideração dos interes- 80, retoma a centralidade da função do poder público na ses sociais envolvidos durante o processo do plano regulação das relações sociais em matéria urbana. Os ins- diretor. Em conseqüência, a abrangência atribuída ao titutos jurídicos e urbanísticos regulamentados são as con- plano diretor é que determinará a concepção de proprie- dições institucionais necessárias – sem que sejam obriga- dade social que será adotada. Em vez de um direito com toriamente suficientes – oferecidas ao poder público conteúdo predeterminado, o direito de propriedade po- municipal para a produção de bens públicos e o cumpri- derá transformar-se no direito à propriedade. Com essa mento de funções sociais. perspectiva, da propriedade é revista o sentido indivi- O Estatuto da Cidade mantém a divisão de competên- dual, e passar a ser definido por uma função socialmen- cias entre os três níveis de governo, concentrando na esfe- te orientada (Fernandes, 1995). ra municipal as atribuições de legislar em matéria urbana. Somente através do plano diretor é que se define, as- A permanência desse quadro significa, em outras palavras, sim, a função social da propriedade e da cidade, e em seu circunscrever o tratamento e a proposição de soluções às âmbito ou em instrumento legal específico baseado no plano questões urbanas nos limites do território municipal, pois diretor é que podem ser instituídos os instrumentos regu- compete ao poderes executivo e legislativo municipais ladores de parcelamento, edificação ou utilização compul- equacioná-las. O reverso dessa orientação expressa-se na sórios, IPTU progressivo no tempo, incluindo-se a desa- ausência de instâncias decisórias legalmente instituídas para propriação com pagamento em títulos da dívida pública, o tratamento de muitos dos problemas urbanos que extrapolam direito de preempção, outorga generosa do direito de cons- os limites de municípios, configurando as áreas metropolita- truir, acima do coeficiente de aproveitamento adotado me- nas e as aglomerações urbanas. diante contrapartida,3 operações urbanas consorciadas e Sem perder o caráter municipalista, o Estatuto da Ci- transferência do direito de construir.4 Portanto, com o Es- dade amplia a obrigatoriedade do plano diretor, estabe- tatuto da Cidade, apesar de a inviolabilidade da proprieda- lecida genericamente na Constituição de 1988, aos mu- de privada não ser ferida, oferecem-se instrumentos que, nicípios com população superior a 20 mil habitantes. caso instituídos, possibilitam atribuir-lhe função social.

131 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001

A centralidade no plano diretor como instrumento bá- Em termos práticos, a tendência seria pela implemen- sico da política de desenvolvimento e expansão urbana e tação simultânea da política e do plano diretor, configu- de gestão da cidade permanece reforçada com o Estatuto rando o que se deve entender por processo de planeja- da Cidade, que a ele articula uma série de outros instru- mento urbano, no qual o plano diretor afigura-se como mentos, ampliando suas possibilidades de êxito. De um um momento específico que procurará conter, instrumen- lado, situam-se as peças orçamentárias, especialmente talizando-as, as diretrizes da política de desenvolvimento aquelas introduzidas pela Constituição, quais sejam, o e expansão urbana. plano plurianual de investimentos, a lei de diretrizes or- O procedimento geral que se propõe seja adotado, por- çamentárias e o orçamento anual, para que o perfeito ajuste tanto, consiste na reunião articulada e integrada da políti- possa permitir a viabilidade financeira do plano diretor. ca, do planejamento e do plano diretor, uma vez que é pela Assim, o parágrafo 1o, artigo 40, estabelece que o plano ação pública planejada que se buscará estabelecer as di- plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual retrizes e os objetivos da política, a qual se materializará, devem incorporar as diretrizes e prioridades contidas no no momento presente, na forma do plano diretor. plano diretor. De outro, busca-se articular diferentes instrumentos de DIMENSÕES DO PLANEJAMENTO URBANO planejamento para viabilizar uma política urbana, vista segundo uma perspectiva compreensiva e abrangente. Desse A proposta metodológico-conceitual que orienta o pro- modo, a política urbana deverá se valer de instrumentos cesso de planejamento urbano é aquela que coloca a simul- que se estabelecem no âmbito dos planos nacionais, regio- taneidade das dimensões política e técnica como elemen- nais e estaduais e do planejamento metropolitano, aglome- tos constitutivos deste processo. Tal qual as faces de uma rações urbanas e microrregiões. E, no âmbito municipal, mesma moeda, a dimensão política é a que pretende expli- além do plano diretor e das peças orçamentárias, os instru- citar o objeto da intervenção pública, enquanto a dimen- mentos que podem ser utilizados para a política urbana in- são técnica procurará responder pela operacionalização de cluem aqueles de natureza ambiental, de parcelamento, uso uma proposta que foi politicamente definida. De maneira e ocupação do solo, setoriais e de desenvolvimento social esquemática, essas dimensões expressam o que e o como e econômico. será proposta e executada a política de planejamento. Por fim, o Estatuto da Cidade mantém, reforçando-a, a O debate atual tem procurado discutir novas propostas natureza democrática da política, ao estabelecer que os metodológicas, ao mesmo tempo que tem buscado formu- poderes legislativo e executivo deverão garantir, no pro- lar uma resposta alternativa ao modelo de planejamento cesso de elaboração do plano diretor e na fiscalização de urbano que vigorou nos anos 60 e 70, do século XX, no sua implementação, os seguintes institutos: promoção de Brasil. Nesse período, o planejamento incorporou caracte- audiências públicas e debates com a participação da popu- rísticas tecnocráticas, colocando como relação dicotômica lação e de associações representativas dos vários segmen- a relação política e técnica. Dessa forma, a tendência que tos da comunidade; publicidade dos documentos e infor- predominou era a de fazer valer o elemento técnico como mações produzidos; e o acesso de qualquer interessado aos determinante e não como subsidiário das decisões. documentos e informações produzidos. Na medida em que se foi avançando no processo de Portanto, o Estatuto da Cidade, instrumento de regula- construção democrática, analistas e técnicos têm procura- mentação dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal, do rever esse modelo de política, em proposta que dê con- contém as referências e institutos jurídicos e políticos bá- ta das variáveis políticas em jogo. Assim, à proposta que sicos para a intervenção urbana. Mas, ao seu lado, a lei qualificava o planejamento como atividade “neutra”, uma federal aprovada contém um conjunto de enunciados – or- vez que é uma técnica e, portanto, situada à margem do denação, desenvolvimento, expansão, função social da ci- jogo de interesses, se superpõem novas proposições, as dade, bem-estar dos cidadãos, função social da proprieda- quais emergem na agenda do debate público e, mesmo, nas de, adequado aproveitamento, direito de propriedade... – agendas de alguns governos locais. Essas propostas pro- que são, em realidade, proposições genéricas e abstratas, curam situar a dimensão política no âmago do processo, as quais somente poderão expressar realidades históricas, em discussões que buscam compreender o plano diretor definidas temporal e espacialmente, quando do exercício como decisões resultantes de negociações políticas e alter- do processo de planejamento. nativas técnicas e como produto do compromisso de for-

132 ESTATUTO DA CIDADE: ASPECTOS POLÍTICOS E TÉCNICOS DO PLANO DIRETOR

ças políticas atuantes em determinado momento do pro- forma simplificada, esses interesses reúnem, de um lado, cesso da política. os cidadãos ou grupos que, por deterem parcelas da ri- queza social, têm algo a ser preservado ou acrescentado. Dimensão Política De outro lado, os setores sociais que desde sua origem são desiguais, dada a forma como estão inseridos nos pro- Observado sob o ângulo da dimensão política, o plane- cessos de produção e apropriação da riqueza social, os jamento urbano é o objeto de uma proposta social que visa quais se identificam às camadas populares da sociedade, transformar a sociedade, garantir o bem-estar dos cidadãos cujas estratégias de sobrevivência constituem as evidên- ou, naquilo que interessa, garantir o acesso ao uso da cida- cias urbanas das situações de conflito. Trata-se de parce- de, qual seja o direito à cidade. las da população que, uma vez expulsas ou segregadas, Tratar politicamente o planejamento urbano é atribuir- habitam em favelas ou cortiços em periferias urbanas com lhe a responsabilidade pela administração de situações limitações de acesso a serviços e equipamentos coletivos de conflito social, dado que a dinâmica social é a disputa e, muitas vezes, em situações irregulares de posse e pro- entre os vários segmentos sociais em torno de interesses e priedade da terra (Ribeiro e Cardoso, 1989). necessidades. Assim, o planejamento, ao administrar si- O planejamento urbano deverá, portanto, dar conta da ad- tuações de conflito, procederá a escolhas para que deter- ministração de situações de conflito como as apontadas e ou- minados interesses e necessidades – e não outros – sejam tras com as quais se defronte. Como administrá-las? atendidos e satisfeitos. Na essência do plano diretor, essa administração con- O cotidiano urbano, quando observado, revela compor- siste em propostas de ordenação do território. Ao orde- tamentos e fenômenos que constituem evidências das si- nar o território, administrando situações de conflito, pode- tuações de conflito. Algumas dessas situações são mais se regular conflitos; acomodar conflitos, distribuindo perceptíveis, enquanto outras exigem instrumental mais benefícios que atendam a demandas específicas ou pon- refinado para sua identificação. Dentre outras situações de tuais, inclusive as de natureza clientelista; e agudizar con- conflito, pode-se apontar que: flitos, através de ações de redistribuição de recursos, com - o direito à terra urbana tem sido função de várias moda- a clara determinação de diminuir distâncias sociais. lidades de renda, as quais são apropriadas diferen- Dentre outros instrumentos, a implementação do plano ciadamente pelos agentes sociais; diretor deverá conter os instrumentos legais de: - o processo capitalista de produção imobiliária, aliado à - apropriação do solo, referente à ocupações de terra, oferta de serviços e equipamentos públicos, ocasiona va- usucapião, desapropriação de áreas que garantam a apropria- lorizações diferenciadas de áreas urbanas, contribuindo ção do solo para moradia de classes de renda mais baixa; para o agravamento dos processos de segregação e exclu- - parcelamento do solo, referente à integração na malha são urbanas; urbana, previsão de diretrizes viárias, reserva de áreas para - os procedimentos adotados na contratação de obras pú- uso público e garantia de preservação e do meio ambiente blicas atendem, em geral, aos interesses de empreiteiras, e da identidade cultural e histórica da cidade; não às necessidades da população; - zoneamento, referente às normas e padrões de ocupa- - os procedimentos adotados na concessão de serviços ção e utilização do solo urbano, em conformidade com públicos têm, em geral, anteposto interesses de renta- atividades desenvolvidas, e previstas, controlando usos bilização do capital das concessionárias aos interesses da nocivos ou efeitos prejudiciais ao bem-estar da popula- população usuária desses serviços; ção (Lamparelli e Zan, 1989). - a apropriação do espaço urbano é diferenciada: para os segmentos consumidores da cidade, representa o quadro Dimensão Técnica material da vida individual e coletiva; e para os segmentos produtores, o espaço urbano representa um bem sobre o Considerada a dimensão política do plano diretor, é qual se auferem lucros e rendas (Ribeiro e Cardoso, 1989). possível ensaiar alguns passos que possam vir no auxílio Portanto, e de maneira geral, o espaço urbano tem com- daqueles que se dispõem ao envolvimento técnico na ela- preendido conflitos entre interesses diferenciados que bus- boração de planos diretores. Para tanto, algumas condições cam se apropriar dos benefícios produzidos na cidade. De gerais se impõem.

133 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001

Em primeiro lugar, é fundamental identificar uma unida- como os antigos planos diretores de desenvolvimento inte- de de coordenação, cujo formato administrativo será ade- grados estabeleciam, podem ser mais detalhadas, compreen- quado às condições de cada prefeitura (comissão, departa- dendo estudo preliminar, diagnóstico, plano de diretrizes, mento, secretaria ou equipe de coordenação, dentre outras instrumentação do plano, plano de ação do prefeito, etc. De figuras possíveis) e de uma unidade de consulta e/ou deli- qualquer forma, e independentemente do detalhamento e das beração, ajustada às condições de cada sociedade local (con- denominações dadas às fases, para se operacionalizar a ela- selhos centralizados ou descentralizados para a participa- boração do plano diretor é relevante determinar a seqüência ção e representação das forças sociais organizadas). Essa de passos a serem seguidos, propondo-se: condição envolve também a criação de um sistema de pla- - definição, social e politicamente referenciada, do obje- nejamento, cuja abrangência pressupõe a integração dos to, estabelecendo-se os problemas municipais a serem en- vários instrumentos de gestão municipal, incluindo-se aqueles frentados e as hipóteses orientadoras do processo de de- de natureza executiva. Além disso, a elaboração de planos senvolvimento municipal; diretores é uma atividade que exige o concurso de profis- - diagnóstico dos problemas, quanto aos aspectos quan- sionais de diferentes áreas do conhecimento atuando em titativos, qualitativos e de localização social e espacial, e processo de trabalho interdisciplinar. Por fim, são de extre- quanto aos fatores causadores e tendências futuras. Cabe ma relevância a disponibilidade de informações e a predis- também diagnosticar a atuação do poder público, em sua posição para realizar pesquisas, uma vez que consistem em capacidade de solucionar problemas; recursos estratégicos para o conhecimento de problemas. - estabelecimento de prioridades de intervenção e esco- Guardadas essas condições, a elaboração do plano dire- lha de alternativas; tor, como etapa do processo de planejamento urbano, pres- supõe definições, escolha de instrumentos e estabelecimen- - dimensionamento e alocação dos recursos para imple- to de fases. É preciso, portanto, atentar para o significado mentação das alternativas escolhidas. do plano diretor como instrumento de intervenção pública. Tomando-se os dois primeiros passos – definição do Num esforço para sua decodificação, pode-se entender por objeto e diagnóstico de problemas – como referência, pode- plano a definição de objetivos a serem alcançados e de pra- se, a título de ensaio ao desenvolvimento da elaboração do zos a serem cumpridos, a indicação de atividades, progra- plano diretor, desenvolver um exercício rápido. Assim, em mas ou projetos correspondentes ou necessários à realiza- um processo coletivo de discussão coordenado pela unida- ção dos objetivos definidos, bem como a identificação dos de pública responsável pelo processo de planejamento, com recursos financeiros, técnicos, administrativos e políticos a participação, institucionalizada ou não, de segmentos necessários; e por diretor, as diretrizes estabelecidas em con- sociais organizados, e apoiado no conhecimento empírico formidade com a proposta social que se pretende alcançar, da realidade local, elegem-se o(s) problema(s) local(is) para que constituem uma referência para as ações do poder pú- estudo e posterior intervenção. Os instrumentos prioritá- blico municipal e dos agentes privados. rios nesta fase seriam aqueles de natureza político-institu- Os instrumentos poderão ser de três naturezas: técnico- cional dos atores, que coletivamente dariam conta da iden- científica, político-institucional e econômico-financeira. Os tificação dos problemas, e os de natureza técnico-científica, instrumentos de natureza técnico-científica consistem nos re- responsáveis pela sistematização mínima das informações ferenciais metodológicos de coleta, tratamento e interpreta- obtidas pelo conhecimento empírico do município. Para o ção de dados. Os instrumentos de natureza político-institu- desdobramento de tal fase e continuidade do processo, esse cional consistem nos referenciais institucionais que suportam momento deveria conter minimamente o estabelecimento as relações entre as forças políticas constituídas, seja na das fases subseqüentes com a atribuição das responsabili- máquina pública, seja na sociedade, seja na articulação en- dades por sua execução. tre essas instâncias. Os instrumentos de natureza econômi- Por hipótese, o problema central identificado assim se co-financeira compreendem os recursos orçamentários e ex- expressaria: o município caracteriza-se por crescimento tra-orçamentários disponíveis, bem como novos recursos que urbano desordenado, com ocupação periférica irregular e possam vir a ser gerados e drenados para o processo. predomínio de moradias precárias. O passo seguinte seria O estabelecimento de fases a serem cumpridas poderá ter comprovar a veracidade e a extensão dessa afirmação, e o denominações diversas. Podem-se genericamente considerar procedimento a ser adotado, portanto, seria diagnosticar, três grandes fases – diagnóstico, proposição e execução. Ou quantificando e qualificando o problema, por meio de aná-

134 ESTATUTO DA CIDADE: ASPECTOS POLÍTICOS E TÉCNICOS DO PLANO DIRETOR lises apoiadas predominantemente em instrumentos de na- Se, para a definição dos problemas a serem equacionados tureza técnico-científica. pelo plano diretor, é preciso o concurso das forças sociais, A decomposição do enunciado do problema oferece as para diagnosticá-lo é fundamental recorrer a instrumentos de indicações das análises necessárias. Por tratar-se da política natureza técnico-científica, valendo-se de referenciais teóri- urbana e da elaboração do plano diretor, como seu instru- cos e metodológicos para o levantamento e interpretação de mento, a referência analítica prioritária é a análise da orga- dados caracterizadores dos fenômenos. Porém, para o esta- nização territorial do município, que visa explicar o cresci- belecimento de prioridades de intervenção, escolha de alter- mento urbano desordenado, aspecto central do problema nativas, bem como dimensionamento e alocação de recursos identificado. De forma específica, compreende as análises – passos seguintes no processo de elaboração do plano dire- relativas ao processo de estruturação do território urbano, tor –, instrumentos de natureza político-institucional e eco- ao uso e ocupação do solo e às redes públicas implantadas, nômico-financeira tornam-se estratégicos. Cumprir esses entendidas como expressão física da ação dos agentes públi- passos é percorrer um longo caminho e o resultado da políti- cos e privados na produção do espaço. Esse é, em suma, o ca, corporificado em uma proposta de plano diretor, será o eixo básico do problema a ser diagnosticado e, a partir dele, resultado de um processo político dependente de estratégias, devem-se organizar as demais dimensões de análise. apoios e resistências dos atores sociais, cujos interesses fo- Assim, ao se considerar o acelerado crescimento urbano ram direta ou indiretamente afetados. e a ocupação periférica, tem-se a pista inicial para a análise demográfica, que deve reunir indicadores que descrevem e explicam o crescimento populacional, seus componentes e NOTAS sua composição, bem como a distribuição espacial da popu- lação no território municipal. A caracterização periférica por 1. A Constituição do Estado de São Paulo e as Leis Orgânicas Munici- pais retomaram o tema em termos semelhantes aos colocados pela Cons- subabitação fornece os elementos para o desenvolvimento tituição da União. da análise das condições sociais. Além das condições de mo- 2. A recente publicação Estatuto da cidade: guia para implementação radia, tal análise compreende as condições de saúde, educa- pelos municípios e cidadãos (Instituto Polis et alii, 2001), além de conter cionais, culturais e de lazer, bem como a disponibilidade e o um exame detalhado da lei federal aprovada, recupera experiências de im- plementação de institutos jurídicos e políticos por governos municipais. acesso aos serviços e equipamentos sociais. A ocupação ir- 3. A outorga generosa do direito de construir corresponde, efetivamente, regular e a moradia precária são os elementos que possibili- ao instituto do solo criado. tam desenvolver a análise econômica do município. Se, de 4. Além desses instrumentos, estabelecidos no âmbito do plano diretor, o um lado, esses fenômenos relacionam-se ao perfil de distri- Estatuto da Cidade regulamentou os seguintes: usucapião de imóvel ur- bano de uso residencial individual e coletivo; direito de utilização do solo, buição de renda das famílias residentes, de outro, é preciso subsolo e espaço aéreo; e estudo de impacto de vizinhança que, tendo por reconhecer que o espaço econômico não corresponde ao es- referência os estudos de impacto ambiental, visa contemplar os efeitos paço do território municipal, e a análise requerida é a da eco- positivos e negativos de empreendimentos ou atividades na qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades. nomia local na escala da região, considerando-se inclusive as decisões econômicas nacionais e, mesmo, as de ordem in- ternacional, dado o modelo atual de desenvolvimento. Além REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS da identificação das atividades econômicas e dos ramos pre- dominantes de produção, é preciso investigar as potencialida- CARVALHO, S.N. Planejamento urbano e democracia: a experiência des existentes e as tendências de crescimento local e regional. de Santos. Tese de Doutorado. Campinas, Departamento de Ciência Por fim, menos usual, uma vez que, em geral, não é Política, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, 1999. vista como passível de tratamento técnico, inclui-se a aná- FERNANDES, E. Law and urban change in Brazil. England, Avebury, 1995. lise político-institucional dentre as análises de diagnósti- INSTITUTO PÓLIS, CÂMARA DOS DEPUTADOS/ COMISSÃO DE co do problema. Tendo por objeto central a resposta pú- DESENVOLVIMENTO URBANO E INTERIOR, SECRETARIA blica referida aos aspectos diagnosticados pelas análises DE DESENVOLVIMENTO URBANO/ PRESIDÊNCIA DA RE- PÚBLICA. Estatuto da Cidade: guia para implementação pelos anteriores, a análise político-institucional representa, em municípios e cidadãos. Brasília, 2001. certa medida, a síntese das demais. Trata-se, em suma, de RIBEIRO, L.C. e CARDOSO, A.C. “Plano diretor e gestão democráti- identificar o significado dos mecanismos implementados ca da cidade”. In: Seminário Plano Diretor Municipal, 23 a 25 de de controle de uso do solo, de indução do desenvolvimento ago. São Paulo, FAU-USP, 1989. LAMPARELLI, C. e ZAN, P. “Novo conceito de plano diretor a partir e expansão das atividades produtivas e de atendimento das da própria Constituição da República”. In: Seminário Plano Dire- necessidades sociais básicas da população. tor Municipal, 23 a 25 de ago. São Paulo, FAU-USP, 1989.

135 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 A CRISE DO PARADIGMA NEOLIBERAL E O ENIGMA DE 2002

JUAREZ GUIMARÃES Professor no Departamento de Ciência Política da UFMG. Autor de Democracia e marxismo: crítica à razão liberal

Resumo: O ensaio procura pensar a conjuntura brasileira – a partir da crise da coalizão política que se formou em 1994 – tendo em vista as próximas eleições presidenciais. O argumento central focaliza a crise do projeto de refundação neoliberal do Estado brasileiro que predominou durante os anos 90. A dinâmica da conjuntura atual é pensada como expressão dessa crise em seus complexos desdobramentos. Palavras-chave: conjuntura; neoliberalismo; crise.

elemento decisivo que organiza a conjuntura bra- O centro do programa neoliberal no Brasil foi muito mais sileira atual é a crise do paradigma neoliberal de do que uma reforma do Estado brasileiro, em suas dimen- O refundação do Estado brasileiro. É verdade que sões de gestão administrativa e racionalização. Ao incidir se trata de um fenômeno internacional, cujas origens re- sobre o vazio político de um país recém-constitucionalizado montam às derrotas históricas de Reagan e Thatcher, que – em um contexto em que faltava implantar as diretrizes passa pela sucessão de crises financeiras internacionais e da Constituição de 1988 e regulamentar parte importante alcança a dimensão de verdadeiras tragédias coletivas nos de seu texto – e tornar exponencial o uso das medidas pro- países, antes chamados de “emergentes”, que aplicaram o visórias, promovendo seguidas reformas constitucionais, receituário neoliberal. o governo FHC impulsionou verdadeira refundação neoli- Essas últimas crises dramáticas foram muito visíveis beral do Estado brasileiro (Couto, 1998). Isso significou a na América Latina nos anos 90. O Brasil, porém, viveu o revisão decisiva de vários de seus contratos básicos e fun- impacto neoliberal de modo retardatário, incerto com o damentais em uma direção liberal, com intensidade inédi- governo Collor e de forma avassaladora com os governos ta na história republicana do século XX. FHC. Em primeiro lugar, alterou-se o padrão das relações O tempo próprio do neoliberalismo no Brasil fez com entre o Estado brasileiro e o mercado capitalista mundial, que o país vivesse, quase desde o início da implantação com a promoção de avanço substancial dos direitos do do programa, as turbulências causadas pela exposição à grande capital financeiro em detrimento da soberania na- especulação financeira internacional, com repercussões cional. Com repactuação em bases desfavoráveis e dura- drásticas sobre as possibilidades de um período de cres- douras da dívida externa, profunda abertura comercial, cimento acelerado, mesmo que em forma de surto não desnacionalização de setores produtivos e financeiros- sustentado em uma dinâmica de bases sólidas. chave, desregulamentação do controle de fluxos de capi- O caráter retardatário da aplicação do programa neoli- tais e atrelamento dos gastos públicos a metas negociadas beral no Brasil tem raiz política: a crise do regime militar com o FMI, o país recém-democratizado perdeu para os e a ofensiva democrática e popular nos anos 80 fecharam mercados financeiros parte substantiva das deliberações o espaço para o domínio neoliberal. Assim, apenas em sobre seu destino econômico. 1994 é que se criaram as condições políticas para um pro- Em segundo lugar, alterou-se o padrão dos direitos e grama de refundação liberal do Estado brasileiro. deveres entre os cidadãos brasileiros. Se a Constituição

136 A CRISE DO PARADIGMA NEOLIBERAL E O ENIGMA DE 2002 de 1988 indicou um caminho de universalização de direi- dominantes que já haviam massificado, através da mídia, tos sociais, o plano neoliberal de refundação do Estado a opinião de que o problema do Brasil tinha origem no brasileiro incorporou um ataque generalizado à lógica dos excesso de Estado. direitos dos trabalhadores. Rompeu-se a dinâmica de in- Em torno dessa vitória político-cultural, formou-se vasta clusão crescente no mercado formal de trabalho que vi- coalizão, cobrindo o espectro do centro à direita, isolan- nha, em ritmos diferenciados, desde a Era Vargas. De po- do as forças de esquerda, quebrando seu protagonismo, tencial universalizante, as políticas sociais passaram a ter abrindo linhas de pressão sobre os movimentos popula- como meta o padrão focal, isto é, o objetivo de reduzir ao res, impondo, enfim, o controle coordenado sobre as con- mínimo o projetado Estado do Bem-Estar Social no Bra- dições necessárias para a refundação neoliberal do Esta- sil, deslocando o restante para o mercado e para políticas do brasileiro. assistenciais dirigidas focalmente a grupos de extrema pe- A conjuntura atual é marcada pela crise desse projeto. núria (Vianna, 1998). Os impostos indiretos e a carga fis- É o caráter estratégico dessa crise que abre novo período cal aumentaram muito para os assalariados, mas os ga- da conjuntura. Ele é marcado pela luta, em primeiro lu- nhos do capital foram consistentemente protegidos da gar, entre as iniciativas que visam renovar suas condições tributação. Uma nova onda de subsídios bilionários favo- de continuidade e as que fazem oposição a esse projeto; receu grandes capitalistas, inclusive multinacionais ou se- e, ao mesmo tempo, pelas especulações sobre a alternati- tores que recentemente haviam se tornado donos de em- va que poderá sucedê-lo. presas estatais. O caráter econômico da crise é evidente pelo fracasso Em terceiro lugar, houve um deslocamento patrimonial do projeto em propiciar um novo período de crescimento do Estado – estimado em torno de 30% do PIB – para gru- sustentado do capitalismo brasileiro. Esse fracasso está pos privados. Setores estratégicos da economia brasilei- exposto no crescimento médio da economia brasileira: ra, fundamentais para qualquer plano de soberania eco- 1,8% nos anos 90, cerca de um terço da taxa verificada nômica nacional, foram vendidos em condições pouco entre 1945 e 1980. Mais grave ainda, o plano neoliberal transparentes. ampliou desequilíbrios de forma brutal – o endividamen- Em quarto lugar, alteraram-se as relações do pacto fe- to público, o déficit externo, a desestruturação do setor derativo e implementou-se uma relação que subordinou produtivo estatal –, que impedem a retomada sustentada nitidamente o Congresso Nacional a uma dinâmica em que do crescimento. A recém-deflagrada, mas há muito anun- o Executivo detinha a iniciativa legislativa fundamental. ciada, crise energética é a expressão clara da perda de um Uma refundação neoliberal do Estado brasileiro dessa mínimo equilíbrio sistêmico da economia nacional. magnitude, pela sua abrangência e profundidade, neces- O caráter social da crise, em parte decorrente do fra- sitaria ser apoiada em forte coalizão política. A síntese casso econômico estratégico, é impulsionado pela grave dessa coalizão política foi elaborada e ganhou realidade deterioração do mercado de trabalho no país. O desem- plena com a vitória de FHC em 1994. prego aberto saltou de 4,5 milhões para mais de 7,64 mi- Ela apoiou-se, em primeiro lugar, no forte deslocamento lhões em 1999, segundo o IBGE. A informalidade, segundo da cultura política: da agenda democrática dos anos 80 a mesma fonte, elevou-se de 51% em 1989 para 59% em passou-se à agenda neoliberal dos anos 90. A crítica his- 1999. O gasto nas áreas sociais recuou de 18,5% do PIB tórica da chamada tradição populista, capitaneada pelo em 1995 para 14,5% em 2000. Nesse contexto, o Brasil setor que se tornou hegemônico na USP e no Cebrap, fun- assistiu à explosão da violência urbana na década de 90. diu-se nesse contexto com as tradições liberal conserva- No plano político, a crise do governo FHC é global. dora e privatista dos partidos e grande empresariado bra- Incide sobre sua popularidade, que sofreu forte depressão sileiro. Leu-se a crise brasileira como a crise final do no início de 1999 e cuja recuperação foi interrompida pe- Estado desenvolvimentista: o remédio estava nos merca- las crises sucessivas no primeiro semestre de 2001. Reve- dos. Essa grande vitória político-cultural só pôde ser ob- lou-se de forma incisiva nas eleições municipais de 2000, tida no contexto da crise das tradições socialistas, social- com o avanço das forças de oposição, em particular do PT. democratas e desenvolvimentistas aprofundadas nos anos Ganha agora novos contornos com a perda do controle sobre 80 no plano internacional. sua sucessão, tornando um segundo turno em 2002 muito O Plano Real, ao controlar a inflação, desenvolveu a provável e de resultados imprevisíveis. A disputa sucessória base de popularidade para a grande coalizão das classes antecipada, por sua vez, levou a uma dinâmica de choques

137 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 da antigamente coesa base governista, erodindo o contro- arranjos que condicionam centralmente as taxas de lucro le do governo sobre o Congresso Nacional. e os ganhos esperados pelos agentes mercantis no Brasil. Por fim, a crise do projeto de refundação neoliberal do O grau dessa imprevisibilidade expõe, na linguagem dos Estado brasileiro exibe sua face ética. A ideologia mercados, o grau de risco Brasil, repercutindo fortemen- privatista, a desregulamentação dos controles financeiros, te nos fundamentos macroeconômicos já em estado de o caráter fisiológico da base governista e o insulamento desequilíbrio da economia. Essa é uma das razões da ner- burocrático das grandes agências econômicas do Estado, vosa elevação do dólar em relação ao real, diante das evi- em contexto de massivos deslocamentos patrimoniais, dências de instabilidade da coalizão governamental e de geraram condições propícias à corrupção. seus planos. É função dessa imprevisibilidade tornar prio- É nesse contexto que se delineia a construção de can- ritário na agenda do governo o que vem sendo chamado didaturas para as eleições de 2002. Elas tendem a con- de blindagem institucional, isto é, a votação que prevê uma centrar e absorver toda a dinâmica política da atual con- autonomia relativa do Banco Central e de suas políticas juntura. Este ensaio pretende, a partir desses parâmetros em relação ao futuro presidente eleito. gerais, investigar as tendências mais visíveis da dinâmica Um terceiro parâmetro incorpora a análise estrutural política do país no próximo período. da evolução brasileira na última década: ao optar por uma lógica mercantil inteiramente subordinada às flutuações ECONOMIA E POLÍTICA internacionais, ao invés e em desfavor de uma lógica sis- têmica nacional, a coalizão governante modificou estru- O primeiro grande desafio é pensar qual o impacto da turalmente as relações entre as variáveis sob seu contro- evolução da conjuntura econômica brasileira na cena políti- le e a força do imprevisível na evolução da conjuntura ca. Menos do que acrescentar mais uma aposta na banca de brasileira. previsões, trata-se de sugerir parâmetros de interpretação. O êxito do projeto estratégico de FHC fundou-se des- O primeiro parâmetro poderia ser assim enunciado: a de o início na expectativa de que as conjunturas interna- influência da economia sobre os rumos da política é me- cionais seriam favoráveis. Desde 1997, pelo menos, não diada pelo modo como os atores lêem a realidade econô- o são e os circuitos financeiros internacionais acomodam- mica e dela se apropriam, a partir de suas visões de mun- se nervosamente de crise em crise (Sallum Jr., 2000). Das do, valores e interesses. variáveis levadas em conta pelos analistas econômicos para Ora, se a concepção liberal de mundo predominou no fazer previsões (taxa de crescimento da economia norte- Brasil nos anos 90, foi exatamente em sua versão mais americana e taxa dos juros fixados pelo FED; evolução nitidamente economicista e neoliberal que ela se fez pre- dos preços do petróleo; risco Argentina e de outros mer- sente. A impregnação da cultura política do país e do sen- cados emergentes em crise; evolução dos fluxos dos in- so comum por esse economicismo explica o aparente pa- vestimentos externos), quais são hoje de fato controladas radoxo de FHC ter-se beneficiado politicamente na pelo governo FHC? primeira eleição da explosão de consumo inicialmente Um último parâmetro, enfim, advém igualmente da produzida pelo Plano Real e, na reeleição, da problemáti- análise estrutural do projeto FHC: este não gerou um pa- ca iminência de uma crise cambial. tamar de crescimento econômico contínuo e sustentado, Um segundo parâmetro interpretativo: na complexa que alterasse qualitativamente o contexto de impasse dos interação entre economia e política, são os vetores desta anos 80, criando incorporação social e espaço histórico última que indicam os caminhos de evolução da conjun- numa dinâmica hegemônica do projeto hoje dominante. tura. Isso quer dizer que a luta política é centralmente con- Devemos a Francisco de Oliveira (1998) a reflexão in- dicionada (mas não determinada) pela evolução da eco- teligente sobre o que havia de domínio ideológico orques- nomia, e decide-se pelas opções e práticas dos atores trado no predomínio do neoliberalismo no Brasil dos anos coletivos presentes na cena. A política não é um reflexo 90 e a ausência de uma dinâmica hegemônica socialmen- da economia nem há mera configuração mútua e indeter- te consistente. O domínio institucional do governo – hi- minada de instâncias autônomas da realidade social. perconcentração de poderes no Executivo, controle rela- Isso é decisivo para a avaliação da conjuntura brasilei- tivamente estável de maioria parlamentar, cumplicidade ra atual. A imprevisibilidade das eleições de 2002 signi- governativa na alta cúpula do Judiciário – não se compôs fica imprevisibilidade do aparato de regras, prioridades e com legitimidade social ao longo do tempo.

138 A CRISE DO PARADIGMA NEOLIBERAL E O ENIGMA DE 2002

O crescimento da economia em 2000 operou apenas dar a iluminar as raízes sociais profundas da atual crise alteração na margem do desemprego acumulado e convi- política brasileira. No Brasil de FHC, a dinâmica finan- veu com perda do rendimento médio dos assalariados. É ceira descrita por O’Donnell, a racionalidade de gerar ca- evidente que a continuidade do crescimento, mesmo con- pacidade estatal de pagar dívidas para pagar juros cada tido e instável, cria potencialmente melhor posicionamento vez mais altos também orienta a política macroeconômi- das forças continuístas na disputa sucessória. Mas o que ca do país. Durante todos esses anos, o Brasil esteve na se anuncia para 2001, após as evidências da crise energé- linha de frente dos governos que sustentaram os juros mais tica, é um crescimento bem aquém dos 4,5% antes espe- altos do mundo. rados, na hipótese mais otimista trabalhada pelo governo. De 1995 a 1999, o Tesouro Nacional pagou, segundo Para 2002, o quadro é ainda mais incerto. Ribamar Oliveira (Valor, 16/04/2001), 109 bilhões de reais em juros de suas dívidas externa e interna. Acumulou, so- BRASIL E ARGENTINA mente nesse período, juros devidos no montante de 222,9 bilhões de reais. A contrapartida é a necessidade crescen- As semelhanças e diferenças com a vizinha crise argen- te de vender ativos e gerar superávits primários (receitas tina ajudam a compreender a evolução da crise brasileira. menos despesas correntes, excetuando juros). O mesmo Em “Argentina em transe” o cientista político Guilhermo articulista analisa as metas fiscais previstas no projeto da O’Donnell (2001) traça de longe o mais acurado diagnós- Lei de Diretrizes Orçamentárias, encaminhado pelo go- tico do impasse dramático e estrutural do país vizinho. O verno ao Congresso no início de abril: um superávit pri- domínio do capital financeiro, segundo O’Donnell, amea- mário de 3% do PIB de 2002 a 2004. Em linguagem mais ça corroer as bases mínimas do funcionamento da demo- clara, seriam seis anos acumulados de excessivo arrocho cracia argentina. Anti-social e antinacional, o capital fi- nos gastos do Estado, em particular nas políticas sociais. nanceiro internacional impôs uma política macroeconômica A medida é justificada oficialmente como modo de dar cujo “interesse racional é equilibrar, por um lado, a capa- aos credores internacionais confiança no pagamento de cidade de o país continuar pagando e, por outro, maximi- sua dívida, custe o que custar. zar os juros que cobra”. Criou-se, assim, “um grau de de- pendência como não sonharam os textos mais pessimistas A CENA POLÍTICA sobre dependência escritos há algumas décadas”. A pró- pria política perde substância e as alianças não mais pro- O grande efeito das eleições municipais de 2000 foi jetam estratégias políticas, mas “contratos de compra e descongelar o passado e reabrir as promessas do futuro. É venda de pouca duração e baixa densidade”. só a partir da referência ao ciclo político aberto em 1994 Um raciocínio impressionista poderia levar a examinar e às incertezas da sucessão presidencial de 2002 que os o contexto brasileiro a partir da dinâmica límpida vivida erráticos e nervosos movimentos da conjuntura atual po- pela Argentina. Mas há, apesar das linhas fortes de seme- dem ser coerentemente interpretados. lhança, diferenças estruturais decisivas: o grau de desestru- O principal fundamento da atual coalizão governante, turação produtiva, de crise fiscal e desorganização do setor mais ampla e programaticamente definida que aquela for- público e de exposição à especulação financeira é sig- mada em torno de Tancredo Neves, era a certeza da própria nificativamente maior lá do que aqui. Em contraste, no Bra- continuidade. Inaugurou-se com o selo propagandístico, sil, a crise social é hiperdimensionada em relação à Ar- tornado quase senso comum, que iniciava uma era de vinte gentina em função do maior grau de concentração da renda. anos no poder. A reeleição tornou-se o epicentro das priori- Mais importante ainda do que tudo isso, no entanto, é dades e ritmos das políticas do governo federal no primeiro a desmoralização política que na Argentina se expressou mandato de FHC. As eleições presidenciais de 1998 reali- na viragem neoliberal do que restava da tradição peronista zaram-se, em meio à iminência de uma grave crise cambial, e a ausência de uma força de esquerda, com raiz social e em um quadro de evidente chantagem frente ao eleitorado: densidade eleitoral. No Brasil, as forças políticas e inte- ou continuidade ou o caos. O próprio presidente do Supe- lectuais que podem alimentar um novo republicanismo, rior Tribunal Eleitoral afirmou à época que a definição das democrático e social, são muito mais expressivas. eleições no primeiro turno seria propícia e necessária ao país. Feitas essas ressalvas decisivas, que nos protegem do Agora, não. Um segundo turno é muito provável e é vício da analogia, a contribuição de O’Donnell pode aju- grande a margem de imprevisibilidade dos resultados. A

139 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001 pesada âncora política, que mantinha incólume a nau go- 1998. O voto no PT em 2000 cresceu 51, 2% em relação vernamental, veio à tona. O controle de maioria no Con- às eleições municipais de 1996 mas, mesmo assim, foi gresso mostra suas brechas. O consenso programático nas apenas um pouco mais da metade dos 21.475.346 votos bases do poder, antes pretensiosamente auto-referido, de Lula em 1998. Itamar, hoje refiliado ao PMDB, se tor- ameaça tornar-se público dissenso. Lideranças políticas e nada viável sua candidatura à presidência, deslocará uma intelectuais ligadas ao PSDB têm vindo reiteradamente a massa de votos certamente não desprezível. público colocar em questão temas que eram quase um Há, assim, uma espécie de pirâmide invertida no que dogma programático – as privatizações do setor hidroelé- se refere à relação entre as candidaturas mais visíveis e trico, a ausência de uma política industrial ativa, a estra- respectivas bases partidárias. Os três nomes da oposição tégia de abertura comercial e de integração à Alca, etc. que aparecem mais votados nas pesquisas estimuladas – Mas 2002 não está para 2000 assim como 1989 esteve Lula, Ciro, Itamar – projetam massas de votos para além para 1988. Neste ano, também as esquerdas protagoniza- das respectivas bases partidárias. Os candidatos potenciais ram espetaculares sucessos eleitorais municipais, indican- da base do governo, refletindo a concentração egótica na do potencial inédito de crescimento nas eleições presiden- imagem de FHC, estão ainda bem aquém do seu potencial ciais de 1989. de voto. Essa ausência de correspondência, em um eleito- Agora, é o dobro o tempo para processar os resultados rado de 108 milhões de indivíduos, dos quais apenas cer- eleitorais municipais. O governo FHC goza de uma capa- ca de 40% revelam alguma preferência partidária, é, por cidade de iniciativas bastante superior à do governo assim dizer, uma fotografia da instabilidade que caracte- Sarney, que viveu seu último período absolutamente re- riza o momento. O fato de os principais nomes que ocu- fém de forças centrífugas. Tem, portanto, mais capacida- pam o cenário das eleições de 2002 – FHC e seu suces- de para ser ator na própria sucessão. Inserida no tempo da sor, Itamar (ex-presidente no Plano Real), Ciro Gomes sucessão presidencial, a conjuntura política de 2001 move- (ex-ministro da Fazenda no Plano Real) e Lula (ou um se nervosamente entre passado e futuro. candidato por ele apoiado) – terem sido também persona- O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos gens centrais em 1994 evidencia que a disputa do futuro (2000), em entrevista ao Jornal do Brasil, lembrou que, implicará certamente um acerto de contas com o passado com todo o avanço da esquerda, os partidos da base go- recente. vernista conquistaram ainda 60% dos votos. David A incerteza do futuro coloca para a direção da coali- Fleischer (2001), da UNB, comentou em artigo que na cú- zão governista, em particular para o PSDB, um problema pula do PSDB os resultados foram assim decompostos: de identidade, de estratégia e de cálculo. Identidade: as “1) nas 5.200 cidades com menos de 62 mil habitantes, o eleições de 1998 mostraram que nem sempre são conver- PMDB recebeu mais de 50% dos votos; 2) na faixa inter- gentes e podem ocorrer tensões importantes entre os inte- mediária de 193 cidades entre 60 mil e 300 mil habitan- resses do PSDB e do governo FHC. Este, para garantir a tes, o PSDB levou a melhor com 27% dos votos; 3) nas vitória no primeiro turno, vista como necessária para en- 166 cidades com mais de 300 mil habitantes, o PT ficou frentar a crise cambial, optou por diminuir as chances de em primeiro lugar, também com 27% dos votos”. vitória nas eleições para os governos de São Paulo, Mi- Em eleições casadas, as ramificações municipais con- nas e Rio, aliando-se também com candidaturas regional- tam muito. Conta mais, porém, o dinamismo instalado em mente adversárias do PSDB. A construção interrompida eleições presidenciais: as incertezas de 2002 quebram de alternativa para a sucessão presidencial por Covas, a qualquer projeção linear de futuro. E as pesquisas de hoje candidatura Aécio Neves à presidência da Câmara, a dis- têm certamente um valor bastante provisório. sidência pública de Mendonça de Barros às políticas do A soma dos votos dos partidos pró-FHC em 2000 governo (agora, em formato editorial na revista Repúbli- (PSDB, PFL, PMDB, PPB e PTB) foi de 52.364.673, bem ca), a tendência a nova ênfase de alianças no interior da mais alta que os 35.936.918 votos recebidos por FHC coalizão governamental em favor do PMDB e em detri- reeleito em 1998. Uma parte minoritária, mas não inex- mento do PFL revelam a busca de nova identidade públi- pressiva, do PMDB fez campanha oposicionista a FHC ca para o partido. Ora, a maior autonomia do PSDB rela- nas eleições de 2000. Os votos do PPS em 2000 foram ção ao centro do poder implica necessariamente disputas seis vezes mais numerosos que em 1996, mas menos da de focos de poder regional já que a tradição do PSDB é metade dos 7.426.235 votos obtidos por Ciro Gomes em fortemente federativa.

140 A CRISE DO PARADIGMA NEOLIBERAL E O ENIGMA DE 2002

Estratégia: entre um continuísmo retemperado e uma Segundo os autores, a Constituição de 1988 propiciou continuidade que recomeça, absorvendo e neutralizando um novo tipo de relação Executivo/Parlamento em rela- bandeiras da oposição, a distância, aparentemente sutil, ção ao período 1946-1964. As atenções dos analistas, em pode ser decisiva e implica estratégias diversas de nomes, geral, têm-se concentrado no instituto das medidas provi- marketing e alianças. sórias, que revela certa continuidade dos decretos-lei da Cálculo: as eleições de 1998 para FHC já dependeram época do regime militar, embora tornado relativo por cer- centralmente da estratégia de coalizões (Roma, 1999). As tos procedimentos antes inexistentes. Prevalece no meio de 2002 dependerão mais ainda, no contexto de populari- jurídico a convicção de que o governo tem abusado in- dade em baixa. Qual seria a parceria principal: PFL ou constitucionalmente do poder desse instituto. PMDB? Ou, ainda, quais setores privilegiar nesses parti- A tese dos autores, no entanto, vai muito além do exa- dos fisiologicamente fragmentados? Entre as dúvidas de me das medidas provisórias. O que se teria firmado na identidade, estratégia e cálculo, há ainda o personagem a década de 90 seria um presidencialismo de coalizão, com ser ungido pela coalizão governativa, a fogueira das vai- eixo nos partidos, impondo um padrão de fato aproxima- dades e dos círculos de poder. do de certas dinâmicas típicas de sistemas de governo par- lamentaristas. O presidencialismo de coalizão implicaria A CRISE PARLAMENTAR uma dinâmica bastante diversa do padrão presidencialis- ta norte-americano, que prevê grande importância para o Desde o primeiro semestre de 1999, havia uma assi- trabalho das comissões parlamentares e para a atuação in- metria entre a perda de popularidade de FHC e seu con- dividual de senadores e deputados. trole incontestável de maioria no Congresso. No Brasil dos anos 90 – em particular no período mais Os primeiros meses de 2001 registraram intenso abalo estável do governo FHC –, o presidente compõe seus mi- sísmico no território até então inexpugnável da coalizão go- nistérios fazendo negociações com partidos. Obtém, atra- vernista. As disputas pelas presidências na Câmara Federal vés dessas participações, a lealdade de suas cúpulas. O e no Senado, projetando diferentes alianças para 2002, a dis- funcionamento da Câmara e do Senado apoia-se em dinâ- sidência ACM, o escândalo agora tornado explosivo da vio- mica centrada nos líderes partidários de bancada. Nesse lação da votação (ou votações) no Senado, envolvendo o lí- tipo de funcionamento, o espaço para a atuação pessoal der do governo filiado ao PSDB, as denúncias de corrupção do parlamentar e o custo da dissidência em relação ao go- praticadas pelo presidente recém-eleito do Senado, o apoio verno são mais altos. Diminui também o espaço para a a uma CPI mista investigando o próprio núcleo do governo atuação das oposições. Por essa dinâmica, o governo, que são indícios mais que suficientes da crise. O Congresso Na- em geral detém a iniciativa legislativa, consegue altíssi- cional, de trincheira da governabilidade, passou a epicentro mos índices de aprovação para seus projetos de lei. de uma instabilidade cujos limites são imprevisíveis. Os dados, pesquisados pelos autores, são realmente São três as razões dessa mudança fundamental. Em pri- muito expressivos. Entre 1989 e 1998, o Executivo trans- meiro lugar, a aproximação do fim de um governo que formou em lei 1.606 dos 2.074 dos projetos enviados. não tem mais a capacidade segura de eleger seu sucessor. Apenas 24 foram rejeitados e 10 vetados totalmente. O Além disso, a crise de popularidade de FHC torna mais restante ou foi retirado ou está em tramitação. De iniciati- sensível a base governista ou, pelo menos, alguns setores va dos parlamentares, foram apresentados 16.217 proje- dela à pressão da opinião pública em véspera de renova- tos de lei; apenas 262 foram aprovados. A agenda do Exe- ção de mandatos. O custo de apoiar o governo incondi- cutivo é predominantemente econômica e administrativa, cionalmente ficou mais alto. enquanto a do Legislativo é social. Em terceiro lugar, com a sinalização dada pela direção Os votos de bancada, quando há votação nominal, se- do PSDB de uma aliança preferencial em 2002 com o guem em geral os votos das lideranças. A disciplina mé- PMDB, em detrimento do PFL, foi posta em questão a dia plenário foi de 89,9%. Em mais de nove entre dez vo- própria estabilidade da coalizão parlamentar do governo. tações, a coalizão presidencial contou com o apoio de todos O livro Executivo e Legislativo na nova ordem consti- os líderes partidários que receberam pastas ministeriais. tucional, de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi Em média, 86,7% dos deputados filiados aos partidos que (1999), ajuda-nos a compreender a ordem parlamentar vi- dão sustentação ao governo votam em apoio à agenda do gente nos anos 90, agora em crise. presidente.

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Ora, a aliança PSDB-PFL estruturava o cerne da base tempos da transição. Já no início da década de 90, José parlamentar governista. O PFL era o mais disciplinado dos Álvaro Moisés evidenciava, através de pesquisas, o apa- partidos de direita. O PMDB, menos disciplinado, embo- rente paradoxo de que a crescente adesão dos brasileiros ra siga a tendência geral. O conflito com ACM pôs, as- aos valores da democracia ia de par com a persistente in- sim, em turbulência o núcleo duro da base governamental satisfação com o funcionamento do sistema político e com em todos esses anos. a desconfiança em relação aos “políticos” (Moisés, 1993). A pesquisa de opinião pública “Cultura política e cidada- SIGNIFICADO DA CRISE ÉTICA nia”, feita pela NOP – Fundação Perseu Abramo, em de- zembro de 1997, apontava que 43% dos brasileiros esco- Após a experiência traumática do governo Collor, na lhiam seu candidato a partir do “seu caráter moral”; apenas qual crime e improbidade administrativa eram como que 14% votavam a partir “das proposições de governo do can- irmãos siameses, a intelectualidade e a opinião pública didato”. Não se trata, de forma alguma, de uma despoliti- brasileira viam no governo FHC uma possível saída para zação do eleitor: de que valem programas se não está es- a situação crônica da corrupção. Várias setas pareciam tabelecida a veracidade da mensagem? indicar essa direção: o passado tido como honrado e ho- O fenômeno da ética na política não recebeu ainda tra- nesto de um intelectual respeitável, a imagem do PSDB tamento adequado por parte da alta cultura política brasi- nascido na crítica às práticas fisiológicas do PMDB, a leira, em particular por parte daquelas forças mais interes- crítica do estatismo que, na leitura liberal da tradição po- sadas na transformação e aprofundamento da democracia. lítica brasileira, figura como a origem dos males da cor- A opinião pública ainda não encontrou uma resposta éti- rupção no Brasil. Havia, é certo, uma sombra: a aliança co-política suficientemente expressiva para suas intuições com o PFL. Mas, este não foi ungido, no entusiasmo inte- de que a democracia não prospera onde a ética degenera. lectual da hora da vitória, à condição de moderno? Há na cultura política, grosso modo, três modos de se A história recente dos dois mandatos de FHC desmen- estabelecer a relação entre a democracia e a ética. A pri- tiu a previsão. Há, no mínimo, quatro razões que expli- meira, com origem na obra de Max Weber, é de que a cam a explosão da corrupção no Brasil contemporâneo. modernidade é marcada pela cisão da ética, pela plurali- A primeira delas é exatamente o enfraquecimento das dade de valores, não sendo mais possível fundamentar fronteiras entre o público e o privado, ou melhor, a mais democraticamente uma ética de cunho universal. A demo- completa subordinação do primeiro ao segundo, como cracia, então, é definida pelos procedimentos ou por uma resultado do núcleo da opção programática da coalizão técnica jurídico-política de formar governos legitimados. liderada por FHC. Isso quer dizer que seu sentido nuclear- A relação entre a ética e a política não seria da ordem do mente anti-republicano, a exaltação do privado e o avilta- público, mas tratada no plano da subjetividade do políti- mento do que é público, convenientemente confundido com co, que deve equilibrar a ética das convicções (agir se- o que é estatal, ampliou o espaço para a corrupção. gundo seus valores) e a ética das responsabilidades (agir Em segundo lugar, o plano de governo de FHC pressupu- segundo as conseqüências previstas de seus atos). Essa nha a solda de uma base parlamentar amplíssima, necessária tese tem hoje incidência muito forte na alta cultura, em à aprovação das reformas da Constituição. Ora, esta base e um liberalismo conservador e elitista. Através dela, o diag- loteamento de ministérios combinam-se na tradição presi- nóstico do problema político brasileiro passaria pela pouca dencialista brasileira. O fisiologismo, assim, foi desde o iní- sedimentação dos procedimentos legais da democracia, cio incorporado ao núcleo da estratégia de governo. cabendo então apenas processualmente afinar seu uso, Em terceiro lugar, a autarquização dos centros decisó- eficácia e respeito a eles. rios e o chamado insulamento burocrático compõem cen- Um segundo modo de conceber o problema da ética na tralmente a dinâmica típica de governos de agendas neo- política seria o de um liberalismo ético que busca a ver- liberais (Diniz, 1997). São estritamente necessários para dade na representação política. Coube a Olavo Brasil de o enlace das grandes agências estatais – BNDES, Banco Lima Junior (1993), em seu brilhante livro Democracia e Central, Banco do Brasil, Fundos de Pensão, etc. – com instituições políticas no Brasil dos anos 80, demonstrar grandes grupos econômicos. como as preferências eleitorais dos brasileiros, manifes- A consciência do brasileiro já captou a importância tadas nas primeiras eleições realizadas após a transição decisiva da ética na política para seus interesses desde os do regime militar, eram distorcidas pela representação

142 A CRISE DO PARADIGMA NEOLIBERAL E O ENIGMA DE 2002 partidário-parlamentar com a criação de novas siglas e vas do governo decaiu na mesma medida em que cresce- mudanças em massa de partido por parte de políticos elei- ram a força e a audiência das oposições. tos. Segundo ele, “a desvinculação entre os sistemas par- Agora, o que desperta atenção é o que poderíamos cha- tidário-parlamentar e eleitoral é síndrome, e simultanea- mar de efeito antecipação: a disseminação da expectativa mente parte, do distanciamento mais geral entre sociedade de que o governo FHC chegue às eleições de 2002 em meio e política no país”. Carlos Ranulfo, professor de Ciência à crise e altíssimos índices de impopularidade faz com que Política da UFMG, evidenciou que o fenômeno da mu- os atores migrem para alternativas de oposição, gerando dança de partido por parte de parlamentares no Congres- um efeito circular de alimentação da crise do governo. Esse so Nacional ganhou proporções avassaladoras nos anos já é o caso do PTB, de parte do PFL e talvez do PMDB. A 90 (Melo, 2000). A partir desse diagnóstico, o problema situação deste último é decisiva: se em sua próxima con- básico da relação entre ética e política – o da fraude na venção nacional vencerem as forças que querem afastá-lo representação – só pode ser resolvido por uma reforma do governo e de seus planos de sucessão, então será mui- política da legislação eleitoral e partidária, que estabele- to difícil para um PSDB em crise definir o campo da pró- ça novos critérios de fidelidade partidária, que aproxime pria sucessão. a representação de um critério conforme à proporcionali- Os efeitos políticos da maior crise energética da histó- dade estrita entre número de eleitores e quota de eleitos, ria do país apenas começaram a ser sentidos. Segundo que introduza o financiamento público dos partidos e re- vários especialistas, na melhor das hipóteses, o raciona- gule o financiamento privado das campanhas, entre ou- mento durará até o final de 2002, não sendo, aliás, des- tras medidas. cartados os apagões, mesmo com o aumento punitivo das Há, porém, uma terceira ótica para se analisar a crise tarifas. A situação do Nordeste é particularmente aflitiva. ética do sistema político brasileiro: a ótica republicana, que Para o BNDES, mesmo com o investimento de 45 bilhões diagnostica o problema no prevalecimento dos interesses de reais, a escassez de energia deve durar até 2003. A privados sobre os públicos, pensados a partir de uma lógi- própria capacidade do governo de gerir uma crise tão com- ca democrática da soberania popular. Por essa visão, exis- plexa é posta seriamente em questão pela maioria da po- tem de fato problemas-chave de procedimento democráti- pulação ouvida. co e de funcionamento do sistema de representação. Mais São três os efeitos imediatos da crise energética. Em do que isso, porém, a raiz da crise ética do sistema políti- primeiro lugar, promove forte aumento da impopularida- co brasileiro seria a distância substantiva entre sua preten- de de FHC. Em segundo lugar, enraiza-se solidamente na são de ser universal e sua reiteração como sistema cuja opinião do brasileiro o posicionamento contra o paradig- lógica funciona para manter privilégios. A democracia bra- ma neoliberal, em particular as privatizações. Antes da sileira não foi capaz ainda, como demonstrou o recente crise energética, pesquisas já apontavam para o desgaste censo do IBGE, de alterar os padrões de concentração de do paradigma neoliberal. A crise deve consolidar esse renda erigidos no período do regime militar. sentimento. Em terceiro lugar, torna-se dramática a já dificílima A DINÂMICA DA CRISE situação macroeconômica do Brasil. A crise energética corta as expectativas de crescimento para o país (estima- Imediatamente após reeleição e diante da grave crise do agora por várias instituições em pouco mais de 2% cambial que levou o governo aos braços do FMI, Fernando contra 4,4% no início do ano) e torna muito mais vulnerá- Henrique Cardoso proclamou que seu segundo governo vel o balanço de pagamentos (maior déficit comercial, não seria refém da administração da crise. O programa de menos investimentos externos). Até o fim do mês de maio, refundação liberal do Estado brasileiro continuaria, con- o dólar acumulou uma alta de 20% no ano de 2001, com solidando o domínio da coalizão formada em 1994 e am- efeitos acumulados sobre a dívida pública. pliada em 1998. No primeiro semestre de 2001, porém, houve uma pre- ENTRE O PASSADO E O FUTURO cipitação de acontecimentos que se somaram na direção de retirar poder político do governo. A penosa gestão dos Sob o título “Eleitor pobre quer nacionalista no poder. fundamentos da própria governabilidade passou a consu- Sondagens colocam em desvantagem os candidatos que mir mais e mais suas energias. A capacidade de iniciati- representam a continuidade”, o jornal Valor Econômico

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(02/04/2001) traz informações interessantíssimas capta- realidade não registrar o peso crescente das forças da das por agências de opinião. mudança que podem, em uma conjuntura crítica, repor os A pesquisa aponta que 10% dos ouvidos eram total- padrões republicanos. Tudo indica que nas eleições de mente favoráveis à privatização mas 37% eram totalmen- 2002, realizadas sob a crise do paradigma neoliberal, as te contrários. Maior a renda, maior a simpatia pela priva- forças democráticas terão a oportunidade rara de equa- tização. Um número considerável opinou que empresas cionar um melhor futuro novo para o País. estatais não deveriam ter o direito de comprar estatais brasileiras. A resposta a perguntas sobre as funções que o REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Estado deveria exercer, afirma o artigo assinado por Ma- ria Inês Nassif, ainda aponta para um sentimento profun- COUTO, C.G. “A longa Constituinte: reforma do Estado e fluidez ins- damente estatista. titucional no Brasil”. Dados. Rio de Janeiro, Iuperj, n.41, 1998, p.51-86. A opinião pública, sabemos, forma-se elaborando as DINIZ, E. Crise, reforma do Estado e governabilidade. Brasil, 1985- informações recebidas e as experiências vividas empiri- 95. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1997. camente a partir de modelos argumentativos lógicos e de FIGUEIREDO, A. e LIMONGI, F. Executivo e legislativo na nova valores. O que a pesquisa revela é a alteração que está em ordem constitucional. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1999. curso na opinião do brasileiro. Um modelo interpretativo FLEISCHER, D. "Lições das urnas: as eleições municipais de 2000 e está em crise e outro ainda não foi construído. as conseqüências para 2002". Boletim de Análise de Conjuntura. Uma mudança de cultura política como essa nunca é Minas Gerais, DCP-UFMG, jun. 2001. GUIMARÃES, J. Democracia e marxismo: crítica à razão liberal. São univocamente determinada. Não é simples reflexo da vida Paulo, Xamã, 1999. material, embora esteja fortemente relacionada a ela. “O LIMA JÚNIOR, O.B de. Democracia e instituições políticas no Bra- discurso neoliberal foi eficiente enquanto teve forte ele- sil dos anos 80. São Paulo, Loyola, 1993. mento economicista”, analisa o cientista político Antônio MELO, C.R.F. de. “Por que mudam de partido os deputados brasilei- ros?”. Teoria & Sociedade. Revista dos Departamentos de Ciên- Prado, no artigo citado. A outra parte, essencial, é que a cia Política e de Sociologia e Antropologia. Belo Horizonte, out. mudança em curso do senso comum revela uma vitória 2000, n.6, p.122-77. decisiva das batalhas político-culturais dos que resistiram MOISÉS, J.Á. “Democratização e cultura de massas no Brasil.” Lua Nova. São Paulo, Cedec, n.26, 1993. ao paradigma neoliberal de refundação do Estado brasi- O’DONNELL, G. “Argentina em transe”. Folha de S.Paulo, 15/04/2001, leiro, seja no plano da alta cultura, nacional e internacio- Cad. Mais. nal, na mídia, seja no plano da luta político-partidária ou OLIVEIRA, F. Os direitos do antivalor. A economia política da hege- da mobilização popular. Socialistas, liberais éticos, monia imperfeita. Petrópolis, Vozes, 1998. comunitaristas cristãos e desenvolvimentistas, as lideran- ROMA, C.R. “Política de alianças e desempenho eleitoral: um estudo sobre as estratégias de competição do PSDB, 1988-1998.” XXI ças que organizam a consciência democrática do povo Congresso Nacional da Anpocs, GT 08 Mídia, opinião pública e brasileiro, tão duramente construída nas últimas décadas, eleições, 1999. participaram da grande frente de resistência a um pensa- SALLUM JR., B. “O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvol- vimentismo.” Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. São mento que se queria único. Paulo, fev. 2000, v.11, n.2, p.23-47. Afirma-se com freqüência e com razão que a tradição SANTOS, W.G. dos. “A base governista ganhou.” Entrevista ao Jor- política brasileira resiste a mudanças profundas, atualiza nal do Brasil, 15/10/2000. VIANNA, M.L.W. A americanização (perversa) da seguridade social permanentemente o passado e impregna o futuro do mo- no Brasil, estratégias de bem-estar e políticas públicas. Rio de vimento circular da mesmice. Mas seria fechar os olhos à Janeiro, Revan, UCAM, 1998.

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