UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

ALLAN PHYLLIPE GOMES CASSEMIRO DE ARAÚJO

ENTRE A DOR E O AMOR: A EXCITAÇÃO DO CORPO SENSÍVEL, AS MEMÓRIAS E OS AFETOS NOS PROCESSOS DE CRIAÇÃO CÊNICA

NATAL/RN 2019

ALLAN PHYLLIPE GOMES CASSEMIRO DE ARAÚJO

ENTRE A DOR E O AMOR:

A EXCITAÇÃO DO CORPO SENSÍVEL, AS MEMÓRIAS E OS AFETOS NOS PROCESSOS DE CRIAÇÃO CÊNICA

Dissertação apresentada como cumprimento das exigencias legais para obter o título de Mestre pelo Programa de pós graduação em Artes Cênicas/PPGArC pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação do Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek. Linha de Investigação II: Interfaces da Cena: Políticas, Performances, Cultura e Espaço

Natal/RN 2019

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

Araújo, Allan Phyllipe Gomes Cassemiro de. Entre a dor e o amor : a excitação do corpo sensível, as memórias e os afetos nos processos de criação cênica / Allan Phyllipe Gomes Cassemiro de Araújo. - 2019. 105 f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2019. Orientador: Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek.

1. Corpo sensível. 2. Afeto. 3. Memória. 4. Gênero. 5. Processo de criação. I. Haderchpek, Robson Carlos. II. Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 792

Elaborado por Allan Phyllipe Gomes Cassemiro de Araújo - CRB-X

MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

FOLHA DE APROVAÇÃO

A Defesa da Dissertação de Mestrado em Artes Cênicas da UFRN, intitulada “ENTRE A DOR E O AMOR: A EXCITAÇÃO DO CORPO SENSÍVEL, AS MEMÓRIAS E OS AFETOS NOS PROCESSOS DE CRIAÇÃO CÊNICA", apresentada por Allan Phyllipe Gomes Cassemiro de Araújo, contou com a participação do seguinte banca:

______Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek (Orientador – PPGArC/UFRN)

______

Profª. Drª. Lara Rodrigues Machado (Membro Interna – PPGArC/UFRN)

______

Profª. Drª. Lígia Losada Tourinho (Membro Externa – PPGDan/UFRJ)

Natal, fevereiro de 2019.

AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeço a Deus por ter me dado forças e por guiar meu caminho cheio de luz. Os caminhos de alegria e de dor me fortaleceram e fizeram-me ser quem eu sou e sou grato por isso.

À minha mãe, Maria do Rosário da Fonseca Gomes, que mesmo discordando inicialmente do meu curso de Licenciatura em Teatro, me auxiliou quando precisei, dando apoio moral. E mesmo brigando, batendo e me criticando, no fundo eu sabia que ela queria o meu bem, queria que eu não tivesse a mesma vida difícil que ela teve, e que não passasse fome como ela passou. É meu orgulho de vida! Mulher forte e determinada que sempre me ensinou a trilhar os mundos desconhecidos do aprendizado.

Ao meu amigo, companheiro de grupo, professor e orientador Robson Carlos Haderchpek que desde 2010 fortalece meu auto-conhecimento enquanto professor e pessoa. Isso resultou no fruto sou hoje! Por 10 anos ele sempre me estendeu a mão e pediu a todos os deuses do mundo paciência para lidar comigo. Minha alma gêmea! Minha outra metade!

Às queridas Lara Rodrigues Machado e Lígia Losada Tourinho que aceitaram contribuir para o meu grande caminho corporal. Um corpo que pensa, age, ama, sofre e que penetra politicamente em outros corpos.

Aos meus queridos amigos Jampson Allan, Jorge Freitas, Hudson Fernandes, Diogo Aquino, Flávio Augusto, Marcos Saulo, Matheus Emanuel, Guilherme Medeiros, Josueliton Saldanha, Diego Iohan que me ajudaram nos momentos difíceis, me dando apoio, cedendo além das suas casas seus ombros para eu chorar quando precisasse, caronas para a academia, alegrias e mais alegrias: eles conseguiam me deixar para cima e ver um brilho glitter quando eu só via escuridão.

E aos amigos de Natal: Sebastião Silva, Nadja Rossana, Jakeline Gomes dos Santos (prima e irmã), Luã Fernandes, Hilca Honorato, Thazio Menezes, Thiago Couto, Decio Filho, Kenisson Dantas, João Paulo e Higor Rafael que fizeram parte do meu ser. Cada um contribuiu com um pouquinho com as minhas várias masculinidades e aceitou meu jeito

dramático e menino de ser: estão em meu coração (e espero que eu não tenha esquecido de ninguém!).

Aos tão incríveis: Marcos Saulo, que foi como um grande irmão para mim, Girlene Messias, que por um bom tempo fez o papel de mãe quando eu precisei em Mossoró e ao Grande menino do sorriso doce e olhos meigos Antônio Gustavo Medeiros da Silva que além de ser amigo, irmão e pai, vem me ensinando, educando, alimentando-me de amor e leveza; ele fez com que eu visse que o futuro é tão pequeno para eu desperdiçar pensando em coisas pequenas: amo vocês!

Por fim, quero agradecer à minha história de vida: Minhas memórias... Minhas várias identidades... Aos deuses do universo... Às pessoas que tiveram suas vidas desperdiçadas pelo Holocausto e às pessoas que tiveram a oportunidade de sentir o cheiro das belas flores de cerejeiras. Ao Universo!

RESUMO

O presente trabalho apresenta uma reflexão acerca da excitação do corpo sensível que foi desenvolvida dentro do Grupo Arkhétypos e estudada no decorrer do meu Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura em Teatro (2015) na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O corpo sensível, que busco conceituar, é aquele em que a abertura para a troca com se torna plena, despertando afetos e reacendendo memórias. Tal estudo se pauta no conceito proposto por Francisco Duarte Junior (2001) do sensível, que remete aos sentimentos e emoções adquiridos no decorrer de nossas histórias e encontros. A pesquisa aborda também o conceito de Memória defendido por Bergson e de afetos e sua interpessoalidade – afetar e ser afetado – trabalhado por Spinosa. O estudo sobre esta excitação deste corpo sensível é realizado a partir do meu trabalho de intérprete-criador dentro do processo de criação do espetáculo Gosto de Flor, um trabalho cênico que situa-se entre a Dança e o Teatro e que aborda a temática do amor dentro da perspectiva do universo masculino/homoafetivo. O espetáculo contou com a direção de Lara Machado e foi desenvolvido no ano de 2017 pelo Grupo Arkhétypos. Analisando o processo de criação pude constatar que este despertou memórias em meu corpo e produziu afecções que me fizeram resignficar a dor e reconhecê-la como potência para a criação cênica. No decorrer do trabalho eu me doo, me entrego e exponho minhas memórias a partir de uma discussão de gênero decorrente do processo criativo, e finalizo o trabalho concluindo que o corpo sensível também tem uma dimensão política.

Palavras chave: Corpo Sensível; Afeto; Memória; Gênero; Processo de Criação.

ABSTRACT

The present work presents a reflection about the excitation of the sensitive body that was developed within the Arkhétypos Group and studied during my Work of Completion of Degree in Theater (2015) at the Federal University of Rio Grande do Norte. The sensible body, which I seek to conceptualize, is the one in which openness to exchange with the other becomes full, arousing affections and rekindling memories. This study is based on the concept proposed by Francisco Duarte Junior (2001) of the sensible, which refers to the feelings and emotions acquired in the course of our stories and encounters. The research also addresses the concept of Memory advocated by Bergson and affections and their interpersonality - affect and be affected - worked by Spinosa. The study of this excitement of this sensitive body is carried out through my work as an interpreter-creator within the process of creating the show Gosto de Flor, a scenic work that sits between Dance and Theater and that approaches the theme of love within the perspective of the masculine / homoaffective universe. The show was directed by Lara Machado and was developed in the year 2017 by the Arkhétypos Group. Analyzing the process of creation I could see that it awakened memories in my body and produced affections that made me resignify the pain and recognize it as a power for the scenic creation. In the course of the work I give myself, surrender and expose my memories from a discussion of gender resulting from the creative process, and I finalize the work concluding that the sensitive body also has a political dimension.

Keywords: Sensible Body; Affection; Memory; Gender; Creation Process.

ÍNDICE DE IMAGENS

Figura I (Mandala) ...... 26 Figura II (Penetração de dois corpos – Foto: Paulo Fuga) ...... 35 Figura III (Espetáculo Revoada – Vale da Busca. Foto: Diego Marcel. Tirada em 28/10/2014) ...... 38 Figura IV (Cena do espetáculo A Descida de Jó ao Submundo 2015 – Foto: Camila Duarte) ...... 45 Figura V (Uma dor em um corpo – A Descida de Jó ao Submundo – Foto: Camila Duarte) ...... 46 Figura VI (Embarque de volta/despedida da temporada do espetáculo Revoada em Viena – Áustria/2015) ...... 47 Figura VII (Hyago Pinheiro no Erotic Candy. Foto : Elizabeth Araújo – 2014) ...... 53 Figura VIII (Hyago Pinheiro II no Erotic Candy – Foto: Elizabeth Araújo) ...... 54 Figura IX (O Flamingo – Espetáculo Revoada. Foto: Diego Marcel) ...... 54 Figura X (O Flamingo II – Espetáculo Revoada. Foto: Diego Marcel) ...... 55 Figura XI (divisão dos prisioneiros de acordo com uma cor ) ...... 58 Figura XII (Saudade, dor e prazer em meu ser – foto: Paulo Fulga) ...... 67 Figura XIII (laboratório do dia 03/04 no departamento de artes da UFRN1. Foto: Nadja Rossana – 2017) ...... 80 Figura XIV (laboratório do dia 03/04 no departamento de artes da UFRN. Na foto Allan Phyllipe, Robson Haderchpeke Thazio Menezes. Foto: Nadja Rossana – 2017) ...... 81 Figura XV (Final do laboratório do dia 03/04. Foto: Nadja Rossana – 2017) ...... 82 Figura XVI (Tentativa de estimular Robson no laboratório1. Foto: Nadja Rossana – 2017) ...... 85 Figura XVII (Tentativa de estimular Robson no laboratório2. Foto: Nadja Rossana – 2017) ...... 85 Figura XVIII (Abraço após as batidas. Foto: Nadja Rossana – 2017) ...... 85 Figura XIX (Continuação do encontro após o abraço. Foto: Nadja Rossana – 2017) ...... 86 Figura XX (A dor da saudade. Foto: Nadja Rossana – 2017) ...... 86 Figura XXI (Jogo da rosa 1. Foto: Nadja Rossana – 2017) ...... 89 Figura XXII (Jogo da rosa 2: corpos de animais. Foto: Nadja Rossana – 2017) ...... 90 Figura XXIII (Emaranhado de corpos. Foto: Nadja Rossana – 2017) ...... 90 Figura XXIV (Corpo em devoção à flor. Foto: Nadja Rossana – 2017) ...... 91 Figura XXV (Éramos flor: quatro pétalas. Foto: Nadja Rossana – 2017) ...... 91 Figura XXVI (Flores mortas: foto tirada durante o aquecimento antes da nossa estreia. Foto: Paulo Fuga - 2017) ...... 92 Figura XXVII (Flor corrente: encontro entre eu e Robson. Foto: Taline Freitas – 2017) ...... 93 Figura XXVIII (Flor em ar: na cena os quatro atores brincando e dançando com a rosa. Temporda no . Foto: Jorge Coelho – 2018) ...... 94 Figura XXIX (Ensaio fotográfico do espetáculo Gosto de Flor. Foto: Paulo Fuga – 2017) ...... 95 Figura XXX (Cena final do espetáculo. Foto: Erick Nobre – 2017) ...... 96

SUMÁRIO

INTRODRUÇÃO 9

1. O CORPO SENSÍVEL, AS AFECÇÕES E A DOR 22

1.1 O QUE TE AFETA? 29

1.2 DANÇANDO COM OS AFETOS 35

1.3 A DOR COMO POTÊNCIA PARA CRIAÇÃO 43

2. GOSTO DE ROSA: O ASPECTO POLÍTICO DO CORPO SENSÍVEL 48

2.1 FATO UM: O GAYRERES 48

2.2 FATO DOIS: “MENINO VESTE AZUL E MENINA VESTE ROSA” 52

2.3 FATO TRÊS: GOSTO DE ROSA! ops... GOSTO DE FLOR. 62

3. ENCONTRO DO “EU” E A FORMAÇÃO DO ESPETÁCULO “GOSTO DE FLOR” 69

3.1 SER ALLAN 69

3.2 SER ATOR 71

3.3 PROCESSO GOSTO DE FLOR 75

CONSIDERAÇÕES FINAIS 98

REFERÊNCIAS 101

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INTRODRUÇÃO

A minha porta para o teatro foi aberta quando entrei para o Curso de Licenciatura em Teatro na Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN em 2010. Disciplinas como atuação I, II, III fizeram com que a minha visão fosse ampliada para um mundo teatral com duas fortes vertentes, identificando-me assim, com um dos tipos.

Segundo Adriana Dantas Mariz (2008), são definidos dois tipos de tendências que se encontram em vigor fortemente no Ocidente: a primeira caracterizada pela ligação com o mercado e seus meios de produção em massa, um teatro “rico” e espetacularizado e o segundo que tenta uma retomada das origens teatrais; o ator é assim como o encenador, autor do seu próprio teatro. Acredito que existam essas duas formas de se fazer teatro, mas sei de outras incontáveis formas de ver e conceber o teatro.

Identifiquei-me com uma das disciplinas de atuação em que este ator é também autor do seu próprio trabalho – um teatro primitivo e ritualístico1. Um estudo mais aprofundado sobre este teatro é realizado no grupo de pesquisa Arkhétypos2 e com isso, surgiu a vontade de estudar em meu trabalho de conclusão de curso em teatro, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN, o processo para se chegar a um corpo emotivo e sensível, cujo título foi “A Excitação do Corpo Sensível: o voo da liberdade e cura”, orientada pelo Professor Dr. Robson Carlos Haderchpek3 no ano de 2015. Este processo de Excitação seria uma ativação de um corpo para torná-lo mais aberto e sensível ao jogo da cena.

Assim ocorria com meu corpo dentro dos processos que participei no Arkhétypos Grupo de Teatro. Trabalhávamos para chegar a um espetáculo levando em consideração os

1Primitivo e ritualista, este contexto, está inserido no que Grotowski (2011) chama de um teatro que volta às suas origens, um teatro onde o principal componente na cena é o próprio ator e as suas ações. 2 Grupo de pesquisa e extensão que teve início em 2010, quando o professor doutor Robson Haderchpek, juntamente com alguns de seus alunos do curso de teatro na UFRN passou a pesquisar a comunidade da Vila de Ponta Negra – Natal/RN. 3Ator, professor e pesquisador formado e pós-graduado pela universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bacharel em Artes Cênicas começou a estudar teatro em 1994 no Núcleo de Artes Cênicas do SESI de Rio Claro/SP. Fez o Pós-doutorado na Universität Für Musik und Darstellende Kunst Wien, Áustria (2015). (disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4762078U3).

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laboratórios propostos por Robson Carlos Haderchpek, onde o jogo entre os atores era a fonte para a criação das cenas dos espetáculos. Neste jogo com o outro ator, meu corpo se tornava completamente aberto para jogar e às vezes trazia no próprio jogo minhas memórias pessoais: eu conseguia excita-lo para que ele ficasse sensível.

O corpo sensível em que acredito é aquele no qual nos sentimos tão estimulados que a abertura para a troca com o outro se torna plena. Falo de um sentir corporal, que faz reacender nossas memórias recentes e as mais primordiais. O mesmo sensível que João Francisco Duarte Junior (2001) revela que vem do “particípio passado do verbo sentir” (sentido) que indica o total de nossos sentimentos e emoções adquiridas no decorrer de nossas histórias e encontros. Vejamos os dedobramentos do termo:

O primeiro se refere ao uso do termo para denotar consciência, como em ‘perdi os sentidos’. O segundo indica uma lógica, uma razão de ser: ‘qual o sentido disso’. O terceiro, diz respeito a uma orientação, uma direção: ‘em que sentido devo seguir’. E, por fim, o quarto e o quinto remetem à nossa percepção do mundo, numa referência aos ‘órgãos dos sentidos’ e também àquela faculdade que, supõe- se, possuímos e os transcenda: nosso ‘sexto sentido’, que aponta uma intuitiva capacidade de conhecer. Mas é preciso ainda tomar o temo enquanto particípio passado do verbo sentir, indicativo de tudo o que foi apreendido pelo nosso corpo de modo direto, sensível, sem passar pelos meandros do pensamento e da reflexão. (DUARTE JUNIOR, 2001, p.11)

Escolhi assim dar continuidade às investigações deste trabalho de conclusão de curso, pois o conceito de sensível não tinha ainda o aprofundamento necessário para ampliar o sentido do tema, assim, desenvolvi meu projeto para o mestrado em artes cênicas cujo recorte é “Entre a Dor e o Amor: A excitação do corpo sensível, as memórias e os afetos nos processos de criação cênica”.

A escolha de fazer tais pesquisas, tanto o meu trabalho final do curso de licenciatura em teatro como este diário narrativo que estás lendo, veio primeiramente a partir das minhas memórias vividas durante toda minha vida. Memórias essas que iam surgindo dia após dia dentro de uma sala simples, mas acolhedora, no então chamado Departamento de Artes da UFRN/DEART.

Cada dia em que eu pisava na sala de trabalho, me envolvida sensivelmente com os atores/colegas que estavam usufruindo do mesmo espaço que eu.

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Cada beijo... Cada olhar... Cada dor... Cada toque... Cada laboratório... Cada lágrima... Cada abraço...

Enfim, cada ação fez reverberar em mim memórias4 do meu passado e do meu presente. Segundo Bergson existem dois tipos de memória diferentes – a memória do passado e a do presente contínuo – que se conectam uma na outra, inseparáveis!

Há, dizíamos, duas memórias profundamente distintas: uma, fixada no organismo, não é outra coisa senão o conjunto dos mecanismos inteligentes montados que garantem uma réprica adequada às diversas interpelações possíveis. Ela faz com que nos adaptemos à situação presente e que as ações sofridas por nós se prolonguem por si mesmas em reações, ora realizadas, ora simplesmente nascentes, mas sempre mais ou menos apropriadas. Hábito mais que memória, ela atua em nossa experiência passada, mas não evoca sua imagem. A outra é a memória verdadeira. Coextensiva à consciência, retém e alinha uns após outros todos os nossos estados à medida que se produzem, reservando para cada fato seu lugar e, por conseguinte, marcando-lhe sua data, movendo-se realmente no passado definitivo e não, como a primeira, num presente que recomeça incessantemente... No entanto, se nunca percebemos outra coisa senão nosso passado imediato, se nossa consciência do presente já é memória, os dois termos que tínhamos separado num primeiro momento irão soldar-se intimamente. (BERGSON, 2006, p.91-92) Por fim, “em outras palavras, é do presente que parte o apelo a que a lembrança responde e é dos elementos sensório-motores da ação presente que a lembrança empresta o calor que dá vida” (BERGSON, 2006, p. 93).

4 Trato memória como tudo que está encarnado em meu ser: tanto corporalmente quanto em meus abismos mais escuros (lembranças, pensamentos, espírito).

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Durante um ano, com encontros semanais, diante dos laboratórios para se chegar ao espetáculo Revoada, me senti contemplado por um bando de pássaros que acolheu um flamingo5. Esse grupo de pássaros me alimentou, ensinou a voar e me matou, pedaço por pedaço, para que um novo eu – que trazia em seu ser tudo o que fora deixado para trás por um esquecimento dele próprio – pudesse .

Este espetáculo ritual foi proposto para trinta espectadores, que juntos participam de um grande processo de renovação, de reencontro consigo mesmo e com o desafio do novo. O espetáculo, inspirado na obra Conferência dos Pássaros - conto de Farid Ud-Din Attar6, é um mergulho nos espaços mais profundos do universo em busca da liberdade. Ao som de tambores, de cordas e de vozes atenuantes, o público é chamado a participar desta grande viagem pelos sete vales da transmutação, alçando voo junto com os homens- pássaros que estão sempre sedentos por respostas.

Quatro horas por dia... 240 minutos... Uma vez por semana... Durante um ano! Por que em tão pouco tempo juntos com esses pássaros companheiros, eles fizeram (re)aflorar em mim essas memórias? Existem coisas para as quais o mundo não lhe dá uma resposta, temos que sentir! E é este sentir que ponho à mesa.

5 No espetáculo “Revoada” eu fazia um flamingo de cor rosa. 6 Disponível em: https://arkhetyposgrupodet.wixsite.com/arkhetypos/revoada. Consultado em 01 de agosto de 2018.

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Sentir o dançar no “anarriê” e o “anavantur” das quadrilhas matutas, ao cruzar os braços com meu par e seguir o passeio. Andar de galope e perceber a mentira do marcador ao dizer que tinha uma cobra perto dos meus pés e que a chuva caia sobre minha cabeça.

Ao passar pelas quadrilhas estilizadas7 também senti: senti a dor do sapato apertado, dos desmaios dentro da quadra, do cansaço ao ficar até o dia amanhecer em pé para emocionar milhares de pessoas que estavam dentro de uma quadra para te ver. Tem também o choro bebêrrento pelo simples fato de deixar o chapéu cair e você se ver com o peso de ter feito sua quadrilha não ganhar um campeonato de São João. Ainda senti amor ao beijar na boca, ao sorrir e tomar banho de chuva, no fedor da fumaça e do suor ao trocar de roupa dentro de um ônibus fechado... Ao pular fogueira e comer milho. Eu senti!

Senti também ao conhecer pessoalmente Clébio Oliveira8, de ter ensaiado um espetáculo dele, de ter bolhas nos pés e de chorar ao dizer: eu não consigo! Meu corpo sentiu ao assistir ao espetáculo Rio Cor de Rosa9 mais de quatro vezes e me emocionar ao ver que o rio leva e traz memórias, sonhos, emoções, afetos e romances.

7 Danço quadrilha estilizada na cidade de Natal desde o ano de 2006, passando por quadrilhas como a antiga Xique-xique no remelexo (2006), Ocêta boa (2007), Encanta Natal (2009 a 2011) e Junina São João (2014 à 2017). Além disso, desde criança danço em quadrilhas matutas nas escolas e já montei e fui marcador em uma quadrilha do bairro Soledade II chamada de Raio de Sol. 8 Coreógrafo, bailarino e professor de dança contemporânea, licenciado pela Faculdade de Dança da Universidade da Cidade, no Rio de Janeiro. Em agosto de 2012 Clébio foi premiado com o Hoffnungträger – coreógrafo mais promissor do ano, prêmio concedido pela revista Tanz-Magazine – Alemanha – no anuário 2012. Atualmente divide seu tempo entre Alemanha e Brasil atuando como coreógrafo e artista independente. Clébio coleciona mais de 19 prêmios ganhos como melhor coreógrafo em diferentes festivais. 9 O espetáculo Rio Cor de Rosa foi realizado na Cia de Dança do teatro Alberto Maranhão/CDTAM, após serem contemplados com o prêmio Funarte Petrobrás de Dança Klauss Vianna em 2012. Rio cor de Rosa propõe uma investigação para refletir sobre a questão do sonho que emerge à partir do encontro entre as correntes psicológicas e neurológicas. Pensar o sonho como um exercício para enfrentar a realidade. Um jogo de alucinações e confabulações gerando imagens inacabadas.

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O rosa representa os sentimentos ligados ao coração10. Ele é infantil, é suave: sentimental. E foi diante dele, que muitas imagens do espetáculo fizeram reverberar em mim, como um rio que tudo traz e leva muitos dos meus problemas e dores da minha infância. Falo de coreografias que me remetiam a imagens quase estáticas de um passado triste: a rejeição de uma criança imperfeita. Assim como o Rio Cor de Rosa, outros trabalhos do Clébio que eu pude assistir reverberaram em mim memórias, tais como: Rua de Leite11, Tia Robenize12 e Proibido Elefantes13.

A casa onde eu moro também é um grande motivo de sentir: gritos... Tapas... Brigas! Vejo minha casa como um inferno imperfeito, cheios de sombras e erros, onde o errar é anormal.

Uma colher fora do lugar... Trair sua perfeição ou mexer no seu14 particular... É querer destruir o amor que eu tenho para dar.

A casa deveria simbolizar o construir: como um tijolo ajuda o outro até chegar ao teto.

10 Disponível em: https://www.significados.com.br/cor-de-rosa/. 06/10/2017. 11 Rua de leite trata sobre a questão da cegueira e de como ver com outros órgãos como os ouvidos, com as mãos, com o paladar, ver com o cérebro, com o estômago e com a alma. Teve sua estreia mundial em Berlin no ano de 2011. 12 Tia Robenize reflete num diálogo poético acerca da loucura sob a ótica infantil. Teve sua estreia em 2003 pela Cia Carlota Portella/RJ e sua reestreia em 2014 pela CDTAM. 13 Teve sua estria em 2012 pela Cia de dança contemporânea Gira Dança. O espetáculo do olhar como via de acesso, porta de entrada e saída de significados. Proibir elefantes, neste espetáculo, é proibir o olhar que ressalta as limitações, os impedimentos; que duvida da capacidade do sujeito frente à adversidade. 14 Aqui falo sobre a mania de perfeição e ordem, mas que gera o caos dentro de casa.

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Mas aqui, nem a mesa simboliza comunhão.

Na minha casa, a minha mãe... A grande lealdade da soberana em todo dia quebrando o meu espaço, querendo colocar a comida em meu prato sem eu querer comer. A poeira que todo dia entrava de porta em porta fazia da casa um lugar não aconchegante e eu sentia. Por fim, o vermelho meio terra me fazia e me faz sentir. Eu VEJO e sinto minha vida pobre nessa cor: nos tijolos no quintal, na poeira que entra em casa e nas telhas meio avermelhadas que não simbolizam um teto: EU SINTO! Em síntese, o desejo em me aprofundar no presente conceito veio a partir das minhas vivências sensíveis – novas e antigas – e de um estudo dentro do Arkhétypos Grupo de Teatro. Veio também a partir do meu olhar sensível sobre os espetáculos de Clébio Oliveira e das minhas vivências emotivas no mundo, tal como as festas juninas, que desde criança mexem e fazem meu corpo ficar em êxtase.

Estes presentes tão significativos para mim fizeram surgir a vontade de escrever sobre a excitação do meu corpo sensível e hoje partilho com vocês esses tais motivos.

Minha primeira pesquisa sobre o corpo sensível teve como foco o meu corpo: algo pessoal e introspectivo, onde tomei como base os espetáculos dos quais eu participei no Arkhétypos e que mexiam comigo.

Nesta investigação de mestrado a dificuldade de estudar este corpo ganha uma complexidade maior, algo mais interpessoal, pois elencarei autores que possam me ajudar a

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deduzir este corpo sensível, ou seja, este estudo vai além de mim. E vale salientar que busco estudar o corpo sensível de maneira sensível: pois entender o meu corpo e tentar conceituá-lo na relação com os demais leva um tempo, um cuidado e uma atenção maior.

Após essas experiências entre a dança e o teatro, muitas questões ficaram latentes em mim, no meu corpo... Por conta disso me propus a refletir sobre este assunto. E assim, este trabalho se propõe a responder questões tais como: “as nossas mitologias pessoais15 estão ligadas ao que chamo de corpo sensível?” se sim “qual o processo de rememoração dessas mitologias no corpo?”, “Como se constroe meu corpo político?” e por fim, qual o “embasamento do conceito de excitação do sensível” proposto por mim na tentativa de aprofundar o que vivenciei em meus trabalhos anteriores?

A partir das questões levantadas, o objetivo central do meu trabalho é problematizar a presença do corpo sensível e seus procedimentos de excitação. Farei isto a partir da observação do meu corpo em processo na obra cênica Gosto de Flor16, analisando os processos transformativos vivenciados por mim na criação do espetáculo. Para chegar a esta resposta terei que investigar as afecções do ator-bailarino nos processos de criação auto-poéticos17, compreender como se dá a utilização das minhas memórias nos processos cênicos assim como, investigar também como nasce um corpo político e como ele se integra no Gosto de Flor.

Para refletir sobre a excitação do corpo sensível utilizarei os seguintes autores: João Francisco Duarte Jr (2001) e sua teoria sobre o sensível; Norbert Elias e Eric Dunning (1967) e a questão da excitação em nossa sociedade, Spinosa e a sua filosofia dos afetos e Bergson e a questão da memória corporal.

15“Sua mitologia pessoal origina-se dos fundamentos do seu ser, sendo também o reflexo da mitologia produzida pela cultura na qual você vive. Todos criamos mitos baseados em fontes que se encontram dentro e fora de nós e nós vivemos segundo esses mitos.” (FEINSTEIN; KRIPPNER, 1992, p. 16) 16 Último trabalho do Arkhétypos realizado no ano de 2017 sob direção de Lara Rodrigues. 17Maturana e Varela (1997) tratam sobre os processos auto-poéticos como os processos onde você mesmo é o fecundante e o fecundado de si mesmo. Ou seja, fazendo a ponte com as artes, são os processos onde você é o fabricante e o fabricado de uma determinada arte.

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Alguns estudos relevantes, nos últimos cinco anos, estão sendo feitos sobre esta arte do corpo como propulsor do sensível em cenas e espetáculos teatrais no ocidente que podem ajudar a compreender o que é este corpo sensível e como ele pode ser ativado.

No entanto, em sua maioria, quando pesquisamos sobre a questão de afetos e sensível, estes conceitos são analisados por outros vieses como o da psicologia, educação escolar, da ética profissional e antropológica, como é o caso do artigo Para uma ética renovada do cuidar: à escuta do corpo sensível dos autores Serge Lapointe e Jeanne-Marie Rugira de 2012.

Rocio Del Carmen Tisnado Vargas, ex-atriz do Grupo Arkhétypos de Teatro e mestra em artes cênicas pela UFRN, traz em seu estudo sobre O sul corpóreo e em seu artigo O sul corpóreo: trajeto de um corpo sociocultural ao corpo poético (2016) a metáfora do Sul, conceito do sociólogo Boaventura Santos, criado a partir das ditas epistemologias do sul. A citada atriz fala das memórias de um corpo latino-americano no fazer teatral e faz um estudo que converge, em partes, com o presente trabalho, ao falar sobre qual o papel do corpo sensível dentro das epistemologias do sul, mas sem mergulhar profundamente no que chamo de corpo sensível.

Outro autor que dialoga com este estudo sobre a excitação do corpo sensível é o Renato Ferracini. Desde o início das minhas pesquisas, Ferracini tem suma importância em meus trabalhos: desde as técnicas para excitar o corpo até o aparecimento do que chamo de sensível. Em 2013 ele lançou um livro chamado Ensaios de atuação que trata sobre as questões dos afetos e sensibilidade, tomando como referência a sua participação com o grupo de teatro Lume. No livro há três capítulos intitulados de “atuação como composição de afetos”, “experimentar o território micro” e “ação física: afeto e ética” que me fizeram perceber que existem outros pesquisadores, em locais e lugares diferentes, que estudam temáticas muito relevantes e parecidas com o que busco.

Em Natal/Rio Grande do Norte, vemos a crescente utilização da memória, tanto na dança como no teatro, para a concretização de um espaço mais sensível dentro da cena, como por exemplo, os espetáculos Rio cor de rosa e o Proibido elefantes já citados anteriormente.

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Na cena teatral – levando em consideração o meu ponto de vista – vemos o grupo Arkhétypos, com espetáculos cada vez mais sensíveis, a partir de cenas realizadas em conjunto pelos próprios atores nos laboratórios. Na medida em que o tempo foi passando outros estudos dentro do Arkhétypos18 foram aflorando. Uma destas temáticas de pesquisa é o meu estudo sobre a Excitação do corpo sensível. Outros atores têm a sua linha de pesquisa particular, mas em algum ponto todos convergem para um único pensamento: o corpo, a memória e o sensível.

Alguns artistas estudam sobre esses conceitos por mim pesquisados, como é o caso do meu orientador Robson Carlos Haderchpek. Ator, diretor, professor e pesquisador da UFRN, ele desenvolveu um estudo específico sobre mitologias pessoais e ação física. Desde 2011 Haderchpek é diretor e pesquisador do Grupo Arkhétypos e foi a partir dele que muitos dos meus questionamentos frente a este trabalho nasceram.

Em seu estudo mais recente A arte do encontro e seus desdobramentos (2015-2018), Haderchpek busca investigar a “arte do encontro” e suas aplicações nas práticas metodológicas desenvolvidas dentro do grupo, como por exemplo, as relações entre as mitologias pessoais e as criações cênicas.

Ao querer estudar o corpo sensível e seus processos excitativos tenho como principal preocupação este corpo que estará sendo estudado. Não só ele, mas toda a teia social que está à sua volta. A observação e o diálogo com este corpo serão os alicerces principais para tentar obter a resposta em minha pesquisa de como é e quais os meios excitativos para se chegar ao corpo sensível.

Assim, o referido estudo ancora-se na pesquisa qualitativa descritiva tendo como abordagem metodológica a análise autobiográfica dos processos teatrais dos quais fiz parte. Tal abordagem dialoga com o que Telles (2012) considera como pesquisa “EM artes” e a “experiência” como metodologia.

18A pesquisa atual do Grupo Arkhétypos intitula-se: “As Epistemologias do Sul e os Saberes Interculturais: Teatro, Ritual e Performance” (2018) e tem como foco uma investigação acerca das epistemologias do sul na sua relação com a cena e com os saberes interculturais oriundos da prática metodológica desenvolvida pelo Arkhétypos Grupo de Teatro da UFRN.

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Segundo Telles “A experiência como atitude de pesquisa poderá proporcionar ao pesquisador e aos pesquisados a possibilidade de pertencer-se uns aos outros e ao mesmo tempo poder-se-ouvir-se-uns-aos-outros” (TELLES, 2012, p. 52).

Ou seja, em uma analogia, serei livro e leitor da minha própria pesquisa, pois “A explicação da experiência sempre se ancora em práticas experienciais, na observação de um dado fenômeno e na nossa leitura deste ato, pois a experiência ocorre no fazer” (TELLES, 2012, p. 52).

Como técnica de pesquisa para entender tal abordagem metodológica utilizo-me de três conceitos chaves impregnados em meu corpo, a saber: sentir o outro; traçar o intocável e o diálogo entre corpos.

No primeiro passo intitulado “sentir o outro”, utilizei de uma pesquisa exploratória a fim de ter um contato mais próximo – me familiarizar com o fenômeno que foi estudado – com o trabalho Gosto de Flor, observando os ensaios a partir dos vídeos dos laboratórios e das apresentações, estudando assim, como se deram os processos para a construção do espetáculo.

A escrita das problematizações acima foi o segundo passo – chamado aqui de “traçar o intocável” – para a obtenção de respostas (positivas ou negativas) do trabalho. Com isso, foi anotado, filmado e fotografado grande parte do que foi visto no meu contato interpessoal com os intérpretes e com as formas de criação do espetáculo. Cada envolvido ajudará a refletir sobre o corpo sensível falando sobre suas memórias a partir do espetáculo.

O terceiro passo “diálogo entre corpos” desencadeou reflexões voltadas para o sentir e principalmente para a excitação do corpo, fazendo assim, um diálogo entre os autores que estão sendo estudados com o meu corpo que já tanto sentiu.

Neste sentido, precisamos ter uma consciência do nosso corpo e de nossa alma: nossas memórias estão impregnadas em nossa carne. Aqui encontramos o primeiro valor deste trabalho que seria um autoconhecimento do corpo e de nossas emoções por vezes esquecidas: reencontrar o outro e a si mesmo.

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Entender nossas memórias é entender nossas histórias, nossas mitologias pessoais; compreender a nós mesmos e por fluxo entender os outros é um dos preceitos para levar adiante este projeto.

Vivo numa eterna briga com meus seres, minhas histórias primitivas e quero descobrir porque estas memórias ativam esta sensibilidade no meu corpo. De acordo com Feinstein e Krippner (1992):

Sua mitologia pessoal origina-se dos fundamentos do seu ser, sendo também o reflexo da mitologia produzida pela cultura na qual você vive. Todos criamos mitos baseados em fontes que se encontram dentro e fora de nós e nós vivemos segundo esses mitos. (FEINSTEIN; KRIPPNER, 1992, p. 16)

Vivemos em um mundo regrado, num tempo árduo aonde as excitações espontâneas, as emoções e principalmente nossas histórias de vida vão perdendo espaço e dando lugar às novas tecnologias e aplicativos. Segundo Elias e Dunning (1967, p. 113) tal excitação é “[...] menos refletida, menos dependente da previsão, do conhecimento e da capacidade para libertar cada um, por pouco tempo, das cargas opressivas de sofrimento e perigo que nos rodeiam”.

Nossas histórias pessoais não encontram um grande espaço no nosso mundo para viver, para fluírem. São poucas ou pequenas as brechas dadas para que nossas histórias e emoções venham à tona e se completem com o nosso corpo, em nossa arte, daí a importância de um estudo que leve em consideração as emoções e sensações pessoais dos intérpretes nos processos de criação.

Assim, esta dissertação será dividida em três capítulos: no primeiro capítulo intitulado “O corpo sensível, as afecções e a dor” discorrerei sobre o que chamo de “excitação do corpo sensível” tendo como referência Francisco Duarte Junior e suas percepções sobre o “sensível”, Bergson e as questões sobre “memória” e “corpo”, e Spinosa e suas teorias sobre “afecção”. No capítulo segundo farço um recorte sobre alguns fatos pessoais, fatos estes resignificados dentro do processo de criação do Gosto de Flor, e que me fizeram descobrir as dimensões políticas deste corpo sensível. E, por fim, no

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terceiro capítulo falo sobre minha experiência sensível dentro do espetáculo Gosto de Flor, criado no ano de 2017 na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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1. O CORPO SENSÍVEL, AS AFECÇÕES E A DOR

Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos nós cegos, puxo um fio que me aparece solto. Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos. É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo. É um rio. Corre-me nas mãos, agora molhadas. Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de repente não sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem. Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o próprio corpo do rio. Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos. Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas águas como os apelos imprecisos da memória. Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga. Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e firme pulsar do coração. Agora o céu está mais perto e mudou de cor. É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo acorda o canto das aves. E quando num largo espaço o barco se detém, o meu corpo despido brilha debaixo do sol, entre o esplendor maior que acende a superfície das águas. Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro. Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco. Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos e rumorosas as suas folhas. Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem, sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam. Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva. Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos. Depois saberei tudo.19

(protopoema – José Saramago)

19 in Provavelmente Alegria, Caminho, 1987, 3.ª edição; 1.ª edição, Livros Horizonte, 1970.

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Tentar entender e conceituar o que chamo de “corpo sensível” é por vezes complicado, pois não é um conceito fechado e sim poético. Outro motivo que dificulta o nosso entendimento sobre tal conceito já é visto quando procuramos o conceito de corpo no dicionário Aurélio que nos diz que a palavra corpo significa: “a parte material do homem ou dos animais. 2. Restr. Cadáver humano... 4. Restr. Qualquer objeto ou substância material” (XIMENES, 2000, p. 119. grifo nosso), ou seja, algo inerente e típico de um corpo táctil e material ou uma carcaça que ocupa um lugar no espaço.

Levando em consideração tal significado foi que surgiu o princípio da Impenetrabilidade, que defende que “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo”. Será mesmo que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço? Tendo como fundamento um corpo táctil, algumas pessoas poderiam dizer que não... Levando em consideração meu corpo sensível eu poderia dizer que sim, pois meu corpo não é somente o que é tocado e físico.

Marques doutora em artes cênicas pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, nos mostra em suas pesquisas sobre consciência corporal, que alguns autores compreendem este corpo, que por muitos é visto como algo dualístico, como um corpo íntegro. Segundo Bertherat apud Marques (2009, p. 01):

Nosso corpo somos nós. É a nossa única realidade perceptível. Não se opõe à nossa inteligência, sentimento, alma. Ele inclui e dá-lhe abrigo. Por isso, tomar consciência do próprio corpo é ter acesso ao ser inteiro... Pois, corpo, espírito, psíquico e físico e até a força e fraqueza, representam não a dualidade do ser mas sua unidade. E Azevedo (2009) complementa:

É evidente que o simples fato de imaginar alguma coisa traz consigo algum tipo de modificação orgânica, por menor e mais imperceptível que sejam, lembranças modificam nossa sensação corporal, alteram nosso eu físico, relaxam nossos músculos ou os tornam contraídos; qualquer imagem enfim, que surja na mente de subido, ou que seja habilmente buscada, surte, de imediato, seus efeitos: se nossa consciência corporal acha-se suficientemente aguçada para detectar esses sinais sensíveis que residem conosco as vinte e quatro horas do dia. (AZEVEDO, 2009, p. 177). Ou seja, nesse sentido, elevo meu corpo a algo maior, algo que não é somente físico. Os sentimentos, nossas memórias, nossos medos, a nossa alma, enfim... Tudo isso faz parte

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do que quero mencionar como corpo. Aqui, corpo e mente (memórias) estão interligados: São UNO e não duplo.

Nossa vida torna-se tão supérflua e corriqueira com o passar do tempo que não conseguimos observar a nós mesmos. Ser corpo é ser você mesmo, é olhar para fora... Mas também é olhar para dentro: compreender a nós mesmos e ter consciência da nossa alma e de nossas memórias. Segundo Ivan Izquierdo, professor titular do departamento de bioquímica do Instituto de Biociências da UFRS:

A memória dos homens e dos animais é o armazenamento e evocação de informação adquirida através de experiências; [...] Não inventamos memória. As memórias são fruto do que alguma vez percebemos ou sentimos. Os sonhos, que são em boa parte recombinações estranhas de memórias, provêm do que alguma vez sentimos ou percebemos [...]. (IZQUIERDO, 1988, 89).

Foi no Arkhétypos Grupo de Teatro e nos treinamentos laboratoriais com Robson Haderchpek20 através de seus estudos sobre Barba e Grotowski, que começamos a experienciar o que chamamos de teatro pobre e o que seria essencial para nossos espetáculos: a relação do corpo do ator com o corpo do espectador.

Eliminando tudo que se mostrava supérfluo, percebemos que o teatro pode existir sem maquiagem, sem figurinos especiais e sem cenografia, sem uma área separada para representação (palco), sem iluminação, sem efeitos de som etc. Mas ele não pode existir sem a relação da percepção direta, da comunhão ao vivo entre espectador e ator. (GROTOWSKI, 2013, p.15)

Com isso comecei a estudar e compreender o meu corpo sensível dentro dos laboratórios do grupo, resgatando minhas memórias – meus EU’s – que até então se encontravam adormecidos: processo de inibição e evocação.

Algumas memórias consistem na inibição de respostas naturais ou inatas; outras, num aumento dessas respostas ou na geração de respostas novas; outras que não envolvem nenhuma resposta direta ou aparente. [...] Determinadas pessoas possuem uma excelente memória para números e não para faces; ou vice-versa.

20 É professor do Curso de Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte desde 2010, atua também no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e coordena Projetos de Extensão e Pesquisa na UFRN. Trabalha ativamente na área de Teatro estabelecendo um diálogo constante entre as práticas artísticas da academia e o cenário teatral contemporâneo. (Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4762078U3).

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Tudo isto indica que diferentes memórias utilizam diferentes vias e processos tanto para sua aquisição como para sua evocação. (IZQUIERDO, 1988, p.92)

O Grupo Arkhétypos teve seu início no ano de 2010 quando o professor Dr. Robson Haderchpek juntamente com alguns dos alunos do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN passaram a pesquisar as memórias da comunidade da Vila de Ponta Negra em Natal/RN e das pessoas que ali viviam. Uma das funções da memória, após serem adquiridas e consolidadas, é serem convocadas! A partir do momento que convocamos tais memórias elas se presentificam e viram outras memórias.

Assim fazemos no Arkhétypos, através dos laboratórios nós despertamos no corpo nossas memórias e jogamos com os outros participantes, resignificando as memórias no tempo presente, como aconteceu com os atores que foram pesquisar a Vila de Ponta Negra. Eles se deixaram contaminar com as histórias e memórias da população transformando-as em memórias vivas para cada ator: nos jogos entre os atores, algumas memórias têm mais importância que outras, assim algumas são mais consolidadas sendo outras esquecidas ou adormecidas.

Podemos perceber muitos estímulos ao mesmo tempo, em diversas combinações; e podemos até formar várias memórias novas simultaneamente (Id. ibid.); algumas, porém, serão melhor consolidadas que outras. Por ex., vemos várias pessoas que avançam em nossa direção; distinguimos seus rostos, expressões, roupas, gestos. Uma delas carrega uma arma. Gravaremos sua imagem vividamente; as das outras, não. (IZQUIERDO, 1988, p.97).

O intuito era fazer um espetáculo voltado para a temática do elemento Água. Após este espetáculo os outros elementos foram experimentados. Além da água foram criados outros três espetáculos levando em consideração os elementos, são eles: Aboiá (terra), Fogo de Monturo (Fogo) e Revoada (Ar) e neste último eu tive o prazer de ter minha primeira experiência dentro do grupo, e minha primeira experiência comigo mesmo: olhando um pouco mais para dentro de mim entendi o que eu chamaria futuramente de corpo sensível e, por conseguinte nossas mitologias pessoais.

Olhar para nós mesmos é abrir uma infinidade de caminhos enigmáticos e escondidos que não tínhamos acesso até nos perceber. Caminhos que não são como um

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poço escuro e profundo, mas como uma mandala circular e colorida: onde não sabemos onde começa e nem onde termina, vejam:

Figura I (Mandala21)

Olhar para nós é entender quem fomos, quem somos e quem seremos ou ao mesmo tempo, não entender nada e sim, ter pistas para se descobrir. Querer entender nosso corpo, como Bertherat menciona “nosso corpo somos nós”, é querer compreender nossos mitos: corpo é mito!

Campbell (1990, p. 05) nos mostra que os mitos “[...] são portais de conexão do homem com consigo mesmo, com a sua origem, com o conhecimento e com a vida: Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação através dos tempos”.

21 Disponível em: . Acesso em: 18/10/2018.

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E são nesses mitos corporificados que o Grupo Arkhétypos desenvolve os processos de criação: a partir dos laboratórios iniciais abrimos uma compreensão ou uma chave para a obtenção de quem somos nós e do nosso corpo – Quem eu sou? – E com isso ativamos muitas vezes “eu’s” interiores que estavam resguardados em nosso ser. Muitos desses “eu’s” são mitos que percorrem e perpassam os tempos e que estão inseridos dentro da nossa própria vida... Da nossa mitologia pessoal. De acordo com Feinstein & Krippner,

Sua mitologia pessoal origina-se dos fundamentos do seu ser, sendo também o reflexo da mitologia produzida pela cultura na qual você vive. Todos criamos mitos baseados em fontes que se encontram dentro e fora de nós e nós vivemos segundo esses mitos. (FEINSTEIN & KRIPPNER, 1992, p. 16)

Falando em mitologia pessoal, posso dar um exemplo do que aconteceu comigo no espetáculo A descida de Jó ao Submundo22, resultado cênico da disciplina da Atuação III. Tal disciplina foi levando em consideração o treinamento energético23 – que busca ‘quebrar’ os vícios do corpo do ator – e a poética dos quatro elementos, desenvolvida pelo Prof. Robson Haderchpek. Na ocasião, tínhamos que escolher quatro imagens – cada foto referente a um elemento – e depois escolher a imagem que mais tocasse a gente... O nosso corpo!

Quando o professor pediu que escolhêssemos apenas uma, escolhi a imagem da terra24, pois ela era um mistério para mim e deixava o meu corpo sensível e aberto para a troca com os outros atores da disciplina. Como dito anteriormente, às vezes descobrir um pouco sobre nossa mitologia pessoal é abrir vias para uma descoberta.

O querer descobrir mais sobre esta imagem fez com que o meu corpo a pedisse para si: diferentemente das outras imagens que tinham começo, meio e fim, uma história bem delimitada; esta se tornou ambígua diante das outras. Porém o meu corpo a quis. Levei este arquétipo adiante com a finalidade de descobrir por que ele me tocava tanto, por que meu corpo ficava tão sensível. Se o “velho” fazia parte da minha mitologia pessoal ainda não sabia, não tinha compreendido, mas queria compreender. (ARAÚJO, 2015, p. 40)

22 Tal espetáculo foi resultado da disciplina de Atuação III, componente curricular presente no Curso de Licenciatura em Teatro na UFRN no ano de 2015. 23 Falarei mais especificamente sobre o treinamento energético no próximo tópico (FERRACINI, 2003). 24 Ao ver a imagem da terra, com o decorrer dos laboratórios foi aparecendo um corpo de um velho.

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Este tipo de processo começou a se mostrar revelador para mim e me ajudou a compreender o que eu estava chamando de corpo sensível:

[...] Os laboratórios iam passando e meu desejo de saber quem realmente é este personagem e perguntas do tipo: “o que ele quer?”, “o que ele procura?”, “de onde ele vem?”, “para onde ele vai?” não eram respondidas. Um dos laboratórios foi de grande importância para a descoberta de quem realmente era este velho: cheguei ao ápice de um corpo emotivo e dilatado. Minhas memórias reprimidas vieram ao corpo após um tilintar de sinos presentes no tornozelo de uma das atrizes. Nunca gostei de sinos e isto fez surgir diante de mim o meu verdadeiro arquétipo: após um jogo bastante excitativo com uma das atrizes na qual a troca de energia foi intensa, Robson chegou até a minha pessoa – que estava caída no chão – e disse baixinho: “observa... só observa!”. Você olha! Observa! E não vê nada. Ao olhar para a bíblia, li trechos que iluminaram minha cabeça. Ergui meu cérebro e então consegui olhar e descobrir do nada, todas as minhas respostas! Pode parecer inacreditável, mas não é! “Você está trabalhando com o mito de Jó!” E eu dizia “quem é Jó?” Nunca li sobre tal, mesmo passando minha vida inteira dentro de uma igreja. (ARAÚJO, 2015, p. 41)

Aquele momento para mim foi como um instante mágico, de revelação. Quando trabalhamos com este tipo de processo nós não pensamos no personagem previamente, ele surge do nosso inconsciente e vai se delineando através das nossas ações:

Fui batizado, fiz primeira eucaristia, crisma, segui a infância missionária, pastoral da juventude, mas quem é Jó? Ao começar a ler sobre tal pessoa eu descubro que Allan é ser o Jó e Jó é ser Allan: minha mitologia pessoal é muito parecida com a de Jó. Como pode alguém se identificar tanto com uma história tão antiga? Os mitos renascem como uma fênix nos seres humanos, não são puramente lendas. [...] Dia após dia, ano após anos. A cada minuto que se passa um mito renasce e você vê sua vida como se estivesse diante de um espelho: minha mitologia pessoal. Encontrei-te: o arquétipo do sofrimento. (ARAÚJO, 2015, p. 41-42)

Tais fragmentos foram extraídos do meu trabalho de conclusão de curso e fazem parte das minhas memórias vividas na UFRN na disciplina de Atuação III. Estas memórias vão ao encontro de uma experiência que meu corpo teve ao assistir o filme japonês Kimi No Na Wa do ano de 2016 dirigido por Makoto Shinkai, no filme o diretor nos mostra que vivemos em um mundo traçado por fios, que vivemos interligados uns aos outros como um ecossistema. Tiro a conclusão que tais mitos estão interligados em nossos seres. São

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histórias, sentimentos e lembranças que são passados de pessoas para pessoas e meu fio estava ligado à história de Jó.

Uma das frases do filme diz “Há uma coisa que é certa, se virmos um ao outro, saberemos”. Após ler a história de Jó eu me vi e soube que estávamos ligados. Meu corpo se excitou. Jó não era uma história antiga e sim algo que se fez presente em minha memória.

Nossas vidas estão traçadas e em alguma hora irão se tocar: os fios se entrelaçam e se unem, sempre ligando duas partes (ou mais) em uma só. É algo que transcende o tempo, é algo memorial. Mas para entendermos melhor o que meu corpo viveu, temos que entender melhor o que é este corpo sensível e como este corpo está ligado com nossas memórias.

1.1 O QUE TE AFETA?

Para entendermos o que é a excitação do corpo sensível temos que começar primeiramente compreendendo que vivemos em uma sociedade que desestimula qualquer deleite, efervescência, alteração ou frenesi. Vivemos sob olhos que nos julgam e nos controlam o tempo todo, pois temos que produzir para nos enquadrar dentro de um sistema de normas e leis. Mas, o corpo sensível nos pede para ir além!

Temos que trabalhar mais para podermos acompanhar o ritmo do nosso dia a dia e por vezes, nem saboreamos as nossas refeições por uma pressa exacerbada. Os celulares fazem com que tenhamos vivências falsas e robotizadas. Tudo isso faz com que estreitemos os nossos laços afetivos, sem termos tempo para nos excitar e olhar para nós mesmos. É neste sentido que Duarte Junior adverte:

O que se pretende é tornar evidente o quanto o mundo hoje desestimula qualquer refinamento dos sentidos humanos e até promove a sua deseducação, regredindo-os a níveis toscos e grosseiros. Nossas casas não expressam mais afeto e aconchego, temerosa e apressadamente nossos passos cruzam os perigosos espaços de cidades poluídas, nossas conversas são estritamente profissionais e, na maioria das vezes, mediadas por equipamentos eletrônicos, nossa alimentação, feita às pressas e de modo automático, [...] (DUARTE JUNIOR, 2001, p. 18)

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O mundo já não é tão sensível e nem existe uma excitação para tal. Não conseguimos ativar o que há de sensível na gente e se conseguirmos, é após uma Auto Manumissão25.

Excitar é ativar aquilo que nos deixa sensíveis. O mundo em que vivemos é regrado e nós não prestamos atenção no que nos afeta. As festas, tanto carnavalescas como as religiosas, até mesmo o próprio teatro vêm perdendo suas emoções pelo controle das excitações. Neste sentido, Elias e Dunning (1967) afirmam que:

Na nossa sociedade, a grande excitação inerente ao encontro dos sexos foi limitada de uma maneira muito específica. Nesta esfera, também, a paixão brutal e a excitação constituem um grande perigo. Neste caso, podemos esquecê-las também porque entre as formas de controle desenvolvidas nestas sociedades mais complexas, onde a perda de controle tende a ser classificada quer como aberrante quer como criminosa, um nível bastante elevado de restrição tornou-se uma segunda natureza. (ELIAS & DUNNING, 1967, p. 114)

Estamos tão restritos e tão limitados que não temos mais espaço para deixar nosso corpo viver experiências efervescentes. Se excitar tornou-se algo perigoso e nossas paixões deixaram de fluir. Deste modo, o primeiro passo para que o meu corpo possa chegar a um estado sensível é esvaziá-lo das amarras que a sociedade lhe impõe no seu dia a dia. É preciso deixar as leis vigentes e tudo o que é corriqueiro e restritivo para fora.

No Grupo Arkhétypos trabalhei com princípios de esvaziamentos dentro dos laboratórios para a construção do espetáculo Revoada (2014). Estes princípios foram guiados pelos treinamentos energéticos, que além de esvaziar, tinham como base o aquecimento da musculatura, e a ativação da energia do ator.

Ferracini (2003) do Lume – Núcleo interdisciplinar de pesquisas teatrais da UNICAMP nos mostra que:

O trabalho de treinamento energético busca ‘quebrar’ tudo o que é conhecido e viciado no ator, para que ele possa descobrir suas energias potenciais escondidas e guardadas. [...] o ator, então, vislumbra, logo num primeiro momento, seu potencial criativo, ainda inarticulado e caótico, mas extremamente pulsante e orgânico. [...] o

25 Liberdade por uma grande vontade do dono, geralmente era dada aos escravos pelo seu senhor.

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energético não é somente um treinamento inicial. Como seu objetivo é quebrar os vícios e clichês pessoais, sempre que o trabalho do ator estiver cristalizado, pode- se, e deve-se retornar a ele. Como uma forma de ‘revitalização’ orgânica e energética. (FERRACINI, 2003, 138-142)

No Grupo Arkhétypos nós fazíamos este trabalho em coletivo tomando como base a troca de energia e a doação. Mas como acontece exatamente este processo? No chão, sentimos nossa respiração e começamos devagar a espreguiçar, empurrando fortemente o chão. Duas forças são contrárias, tentamos empurrar o chão para subir, mas ao mesmo tempo o chão puxa-nos para baixo. Com isso, vamos variando de níveis até chegar ao nível alto, onde ocorre a troca de energia – primeiramente consigo mesmo e posteriormente com o outro – através de movimentos desordenados que causam uma espécie de exaustão. Neste treinamento tentamos deixar de lado as amarras advindas do meio social: é um processo de desnudamento.

Segundo Ferracini (2003) existe uma regra que não pode ser quebrada que é a de nunca parar, pois ao parar toda a energia trocada e adquirida naquele momento seria dissipada. Só em momentos de ápice que o condutor do trabalho pede para parar, e então os participantes seguraram internamente esta energia como se estivessem numa “panela de pressão”.

Este exercício ajuda a desbloquear e limpar do nosso corpo todas as amarras sociais e as travas que nós mesmos nos colocamos. Foi a partir dos trabalhos coletivos que desenvolvi dentro do Grupo Arkhétypos que me deparei com meu corpo mais verdadeiro, e com um teatro que chamo de vivo! É tal como menciona Grotowski (2013, p. 29): “[...] nossos esforços diários são no sentido de ocultar do mundo e também de nós mesmos a nossa mais íntima verdade. Tentamos fugir de verdade sobre nós mesmos, ao passo que aqui somos convidados a um olhar mais profundo.”. E completa:

O ator é um homem que trabalha em público com o seu corpo, oferecendo-o publicamente. Se este corpo se restringe a demonstrar o que é – algo que qualquer pessoa comum pode fazer – então ele não é um instrumento obediente capaz de executar um ato espiritual. (GROTOWSKI, 2013, p. 29)

Com este trabalho energético, senti meu corpo pulsante, vivo! Ele estava sublime! Mas o que seria estar sublime? Segundo Ximenes (2000, p. 557) sublimar quer dizer: “1.

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Tornar (-se) sublime. 2. Erguer(-se) à maior altura. 3. Engrandecer(-se). 4. Volatilizar(-se).” Em outras palavras, ou tentando simplificar, sentia-me supramundano e transcendente, pronto para revelar minha verdade mais íntima:

Aqui tudo se concentra na ‘maturação’ do ator que é expressa por uma tensão em direção ao extremo, por um completo desnudar-se, por um revelar a própria intimidade: tudo isto sem a mínima marca de egoísmo ou de autocomplacência. O ator faz total doação de si mesmo. Essa é uma técnica de ‘transe’ e da integração de todos os poderes psíquicos e físicos do ator que emergem dos estratos mais íntimos do seu ser e do seu instinto, irrompendo em uma espécie de ‘transiluminação’. (GROTOWSKI, 2007, p.106)

Quando falo de corpo sensível falo de algo que me ajuda a transcender, ou como menciona Mariz:

Por intermédio da técnica, o corpo do ator adquire uma dimensão dilatada, como se a energia ultrapassasse a fronteira física da pele, formando uma espécie de bolha que o circunda em toda a sua extensão. É como se o corpo se tornasse maior do que o seu contorno visível; possuísse uma espécie de camada energética que o envolve, conferindo-lhe aquela dimensão aurática que percebemos nos grandes atores. É a essa espécie de aura que, no teatro, chama-se presença cênica. (MARIZ, 2008, p. 213)

Quando saia dos laboratórios de criação do Grupo Arkhétypos eu não conseguia pensar em nada a não ser que ele estava aberto para outros Eu’s que estavam resguardados ou perdidos em mim mesmo. Com isso, cheguei a um segundo ponto que tem me ajudado a pensar nesse corpo sensível.

Após o momento de esvaziamento, meu corpo era um casulo hospedeiro26 para trazer de volta – após um processo de excitação espontânea – aquilo que me toca e me afeta.

Essa excitação é “[...] menos refletida, menos dependente de previsão, do conhecimento e da capacidade para liberar cada um, por pouco tempo, das cargas opressivas de sofrimento e perigo que nos rodeiam” (ELIAS &DUNNING, 1967, p. 113). Este tipo de excitação é diferente daquelas excitações planejadas como expelir esperma após um gozar sozinho ou comer algo que você sabe que lhe dará prazer.

26 1. Que(m) hospeda.

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Com este corpo ativo e excitado, ele poderia ser penetrado e se auto penetrar. Essa auto penetração vem dos nossos eu’s: nossas memórias resguardadas trazidas a tona através dos mitos que perpassam o nosso ser. Exemplificando: não é o A penetrando o A e sim, um A dos inúmeros A’s que nós temos dentro de nós penetrando o A. Trazendo para o campo da memória, é o Allan que sofreu agressão aos 8 anos de idade que se penetra em um Allan com 22 anos sentando em um banco e lembrando de tais agressões. Para podermos entender melhor essas penetrações, vamos analisar a filosofia por trás dos conceitos de Conatus e Afcções de Spinosa.

Segundo Spinosa, Deus – ser infinito – é a causa de si mesmo e que por isso, ele é causa de todo o resto existencial e nós, seres humanos, somos uma parte finita do infinito de Deus, mas podemos ser causa de nós mesmos a partir da nossa vivência em extensão com as várias potencias finitas de Deus. Lidiane Lobo, estudiosa das artes, em sua dissertação intitulada “‘Um por todos, todos por um?’ Uma refrexão sobre a postura ética na prática teatral colaborativa” nos mostra que

A partir dessa estrutura complexa o corpo é apto a afetar e ser afetado de várias maneiras por corpos exteriores, e é capaz de reter essas afecções, ou seja, as modificações nele causadas por estas interações. [...] Podemos afirmar que um indivíduo composto poderá ter inúmeras variações, afetar e ser afetado de múltiplas maneiras por corpos exteriores e conservar sua individualidade por meio de trocas com o mundo que o cerca. (LOBO, 2010, P. 48-49)

E mais...

Relacionar-se de maneira ativa, ou seja, vivenciar bons encontros, está diretamente relacionado com nossa capacidade de afetar e ser afetado. Neste encontro, quanto mais nós soubermos sobre a causa daquilo que nos afeta na relação com o outro, mais nos sentiremos potentes. E, quanto mais potentes mais poderemos ser, agir e pensar por conta própria, pois seremos a causa de nossos próprios afetos e ações. (LOBO, 2010, p. 63) Ou seja, acredito que nós somos existenciais. Eu existo por que todo o resto do nosso mundo existe. Cada cadeira, mesa, corpo, água, luz, toque, relação e afecção fazem com que eu exista e aumente minha potência de ser quem eu sou: sendo afetado ou afetando os outros. Esta potência de ser é chamada de Conatus.

A filosofia espinosana nos afirma que os modos finitos possuem resistência a danos, fraturas ou fusões. Quando feridos, se restauram e se protegem quando se sentem ameaçados; eles possuem um esforço para persistirem seu próprio ser. Esse

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esforço é chamado de conatus, e é o princípio causal pelo qual explicamos a persistência de toda coisa em perseverar em seu ser. Será a partir dessa teoria do conatus que Espinosa baseará a sua teoria da afetividade, assim como seu olhar para a ética e a política. (LOBO, 2010, p. 54) Tudo o que nos toca ou temos apetência podemos chamar de Afecções: dor, gosto, sabor, alegrias, risos entre outros. E a mudança de estado a partir das afecções é chamada de afeto:

Nosso apetite corporal e nosso desejo psíquico são as afecções do corpo, que são afetos da alma. As afecções do corpo são, na alma, idéias afetivas ou sentimentos e, por isso, a relação entre o corpo e a alma e entre eles e o mundo nada mais é do que uma relação afetiva. [...] Em outras palavras, Espinosa atribui os afetos tanto ao corpo quanto à alma, e afirma que: quando as afecções modificam a potência de agir do corpo e as idéias dessas afecções modificam a potência de agir da alma, é que são consideradas afetos. (LOBO, 2010, p. 55- 56)

Ou seja, Afecções e afetos estão ligados ao nosso Conatus. Quanto mais desejamos persistir em nosso Ser, mais procuramos aquilo que desejamos, que nos toca e nos excita.

As afecções nem sempre serão boas! Podemos ser afetados pela tristeza e ainda assim ela será um afeto, ou seja, “Quando o nosso desejo se cumpre, aumenta nossa capacidade de existir e o sentimento gerado, a partir disso, chama-se alegria.” (2010, p.57), mas quando o desejo é diminuído pelo exterior, Spinosa chama-o de tristeza. Tanto a alegria como a tristeza são afetos primitivos e geram todos os outros sentimentos derivados: como por exemplo, nossas invejas e nosso ódio. Quando eu excito o meu corpo e ele se torna sensível e então eu posso encontrar as afecções que se traduzem em alegria e tristeza no meu processo de criação.

Isto que Spinosa chama de afetos primitivos coaduna com o que Bergson (1927, p. 66) fala sobre sentimentos: “Contudo, contar-se-ão sentimentos, sensações, ideias, todas as coisas que se penetram entre si e que, cada uma por seu lado, ocupam a alma inteira?”

Sentimentos são penetrantes! E se sentimentos são parte do nosso ser – nosso corpo – a frase “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo”, mostrado no início do capítulo, está, por vezes, errada. Meu ser é constituído de sentimentos auto penetrantes em uma mistura de sensações que nos excitam de maneiras diferentes. Deste modo tristeza e alegria podem coexistir no mesmo corpo, e os sentimentos podem se auto penetrar, assim como meu ser também pode penetrar tantas outras coisas: Minha língua

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pode penetrar outras bocas, meu pênis pode penetrar vários orifícios e, ao ocupar um mesmo espaço, há uma penetração de afetos. Meu ser pode penetrar outros seres! Quando excito o meu corpo deixo-o sensível para que ele possa penetrar no mais íntimo das minhas memórias e deixo-os receptivo para receber as memórias do outro em mim.

Figura II (Penetração de dois corpos – Foto: Paulo Fuga)

1.2 DANÇANDO COM OS AFETOS

Geralmente me questiono às vezes “Por que dói tanto amar?”. Amor e todas suas nuances são sentimentos tão complexos que é quase irrelevante tentar entendê-los, pois nunca conseguiríamos decifrá-lo. Dentro deste amor existem sentimentos primitivos como a alegria e a tristeza e que sempre irão conviver . Quando amamos sentimos raiva, dor, saudade, contentamentos, felicidades entre outros. Mas, este lado triste do amor, que para muitos é um lado negativo, não é sempre um sentimento ruim, assim como a dor nem sempre é ruim, podemos encontrar potências nesses sentimentos também.

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Dor e ódio nem sempre serão tidos como sentimentos ruins, pois se a dor aumenta sua capacidade de ser afetado ela aumenta a força do seu Conatus, logo ela é algo bom, pois aumenta sua capacidade de Ser (alegria). Caso a dor diminua sua capacidade de ser afetado ela diminui o seu Conatus, logo ela dentro da teoria de Spinosa seria algo ruim (tristeza).

Longe da discussão de bom ou ruim, entramos numa discussão sobre afetos e potências, e neste sentido a dor e a tristeza podem ser tão potentes para o processo de criação do ator quanto a alegria, tudo depende da sua capacidade de afetar e ser afetado, ou seja, tudo depende da excitação do seu corpo sensível.

Por exemplo, o que me afeta? A dor é uma das várias afecções que faz parte da minha vida desde pequeno e esta dor está presente na minha memória até hoje. No Grupo Arkhétypos e em outras vivências com o professor Robson Haderchpek, através dos laboratórios de criação teatral, fui vendo que esta dor era algo significante para mim, ele gerava potência em mim. Bergson (1999) em seu livro Matéria e Memória ao falar sobre a dor nos mostra que:

Existe na dor algo de positivo e de ativo, que se explica mal dizendo, como certos filósofos, que ela consiste numa representação confusa. Mas esta ainda não é a dificuldade principal. Que o aumento gradual do excitante acaba por transformar a percepção em dor, isso é incontestável; ainda assim é verdade que a transformação se dá a partir de um momento preciso: por que esse momento e não outro? E qual a razão especial que faz com que um fenômeno, de que eu era de início apenas o espectador indiferente, adquira de repente um interesse vital para mim? Não percebo portanto, nessa hipótese, nem por que em determinado momento uma diminuição de intensidade no fenômeno lhe confere um direito à extensão e a uma aparente independência, nem como um crescimento de intensidade cria, num momento e não em outro, esta propriedade nova, fonte de ação positiva, que denominamos dor. (BERGSON, 1999, p.55-56)

Meu primeiro contato com a dor veio na disciplina de Elementos de Treinamento Pré-Expressivo com a orientação do professor Robson Haderchpek no ano de 2013. Nos laboratórios foi criada uma relação com a atriz Alice Heusi.

Corpos em luta... O corpo daquela morena se colocava atrás do meu. Seu olhar era uma brasa pequena e meu corpo se enchia de medos... O ataque viria logo depois! Eu não via mais uma linda morena, mas uma atacante de futebol americano

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Que se preparava para me derrubar: Eu estava com a bola, e ela queria tirar aquilo de mim! Corria atrás de mim fazendo grunhidos que virariam depois gritos E começava a pisar em meus pés por trás. Eu falava: Me deixa! Me deixa! Mas aquilo de alguma forma ativou meu corpo. Aquela dor era algo que me deixava pleno. Meu ser era mais completo naquele momento.27

Este foi meu primeiro momento com a dor. Não tinha nem consciência que este sentimento era algo tão importante para mim. Foi uma cena simples, mas grandiosa para mim. Era um sentimento “puro”, ou seja, um momento que o nosso “estado de consciência adquire quando nosso eu deixa-se viver” sem separação entre o estado presente e os anteriores. (BERGSON, 1927, p. 72). Era simplesmente meu ser vivendo minhas memórias, meu Conanus se potencializando. Após a disciplina de Elementos de Treinamento Pré-Expressivos, tanto eu como Alice, fomos chamados para entrar no Arkhétypos Grupo de Teatro, onde demos continuidade às nossas relações. Entramos no Arkhétypos com o intuito de integrar o elenco do terceiro processo de criação do grupo. Com a temática do elemento Ar, entramos em laboratório e utilizamos como base para a montagem o texto persa “A conferência dos pássaros” de Farid Ud-Din Attar do século XIII. O texto fala sobre um grupo de pássaros que parte em busca de um rei chamado Simorgh para obter as respostas sobre as suas vidas. Para tanto, os pássaros teriam que atravessar sete vales sagrados: busca; amor; compreensão; desapego; unidade; deslumbramento e da morte. Ao chegarem ao final da sua busca, os trinta pássaros que conseguiram passar pelos vales descobrem que o grande rei na verdade se encontrava dentro de cada um e que, somente eles, poderiam dar as respostas para as dúvidas sobre a vida.

27 Trecho extraído do meu diário de bordo da disciplina Elementos do Treinamento Pré-Expressivo.

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Os sete vales foram usados como fontes de inspiração dentro dos laboratórios. Cada dia laboratorial tinha materiais, cheiros e relações diferentes que se identificavam com o vale proposto. Ao final, foi criado o espetáculo Revoada. A minha cena com Alice foi intensificada nos laboratórios deste espetáculo: Alice virava uma fênix e eu, um jovem flamingo! Na história eu era um pequeno flamingo que não queria voar por ter medo, mas que sua mãe – pássaro Mãe interpretado pela atriz Cecília – queria que ele voasse. Eu tinha medo de voar!

Figura III (Espetáculo Revoada – Vale da Busca. Foto: Diego Marcel. Tirada em 28/10/2014)

Foi então que aquela cena na disciplina de Atuação III retornou e foi intensificada. No espetáculo a cena traduziu numa luta entre uma ave que queimava e outra que buscava soluções para suas dores, as dores de um pássaro que não queria voar. Tal relação virou uma das cenas do vale da compreensão. Ela me jogava no chão, me batia, me queimava. Aquele foi meu segundo momento com a dor dentro de um processo de criação. Foi assim, que comecei a ver que realmente aquela dor, um afecto, fazia meu corpo ficar mais sensível para que minhas memórias impregnassem e eu potencializasse minhas relações dentro dos laboratórios: ela aumentava

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minha capacidade de SER e diminuía, ou seja, limpava do meu corpo toda multiplicidade de sistemas, métodos e leis impostas, tanto por nós, como pela sociedade. Neste processo a dor alimentava o meu conatus e me levava à excitação. Mas algumas observações preliminares são indispensáveis sobre a significação real da dor. Quando um corpo estranho toca um dos prolongamentos da ameba, esse prolongamento se retrai; cada parte da massa protoplasmica é portanto igualmente capaz de receber a excitação e de reagir contra ela; (BERGSON, 1999, p. 56)

Após a dor me excitar, minha forma de reação era transformando essa dor em arte. Depois de anos lutando contra um sistema que nos impõe uma forma de agir e pensar eu encontrei na dor, uma afecção que para muitos é negativa, a resposta para o meu fazer artístico. Somente consigo sentir este corpo sensível, quando ele está aberto a ser sentido e a fazer-se sentir. Sistemas e métodos bloqueiam-no de certa maneira que não consigo ser livre para deixar meu corpo sentir excitações espontâneas e menos reflexivas, como por exemplo, alguma alegria resultante de uma troca de sorrisos. Excitações essas que Segundo Elias e Dunning (1967) não são excitações previamente pensadas. Voltando ao processo de criação do Revoada, ao final de tanta dor, me dei conta que meu pássaro não queria voar e sim, DANÇAR: Um pássaro que não quer voar e sim dançar vai contra aquilo que se espera de todo pássaro... A cena supracitada entrou para a dramaturgia do vale da compreensão. E foi aí que eu me dei conta de algo, que dançar é bem mais livre que voar: até para voar precisamos ter um passo a passo/regras, mas para dançar, não temos regras... Nosso corpo rodopia, pula, rola pelo chão e ao mesmo tempo em que pisa, ele voa! Apesar da minha relação com Alice – Fênix e Flamingo – ter sido gerada na disciplina de Atuação III, a dor não tinha o mesmo peso. Ela não era igual! As sensações eram outras! O mundo que não para e com isso, somos afetados e afetamos constantemente aqueles que estão ao nosso redor. Como dito anteriormente, vivemos em extensão com as várias potências finitas de Deus. Não existe somente uma dor. Tentamos nomear o que é inomeado28: um afeto. Minha dor no espetáculo Revoada não era igual à minha dor na disciplina de Atuação III,

28 “Os orientais acham graça da tendência dos ocidentais em classificar coisas, e pôr um nome em tudo; será por isso, talvez, que em muitos lugares do Oriente não põem nome nem nas ruas.” (IZQUIERDO, 1988, p.93).

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pois meu corpo memorial já estava cultuando outras dores existentes com o passar do tempo, gerando assim, outra sensação em mim ao chegar ao Revoada, outra intensidade! Ou seja, tal ação “consistiria em definir a intensidade de uma sensação ou de qualquer estado do eu pelo número e pela grandeza das causas objetivas e, por consequência mensuráveis, que lhe deram origem” (BERGSON, 1927, p. 13). E Bergson explica: “Talvez a dificuldade do problema derive do facto de darmos o mesmo nome e representarmos da mesma maneira intensidades de natureza muito diferentes, a intensidade de um sentimento, por exemplo, e a de uma sensação ou de um esforço” (1927, p. 15) Por fim, chegamos num ponto de afluência entre Bergson e Spinosa: segundo Bergson o estado de um ser humano varia de acordo com a causa externa podendo ser essa causa Representativa (sabor, odor e temperatura) ou Afectivas (prazer ou dor) (BERGSON, 1927, p. 30). Para Spinosa, tal sensação afectiva é tudo aquilo que nos afeta e que, em mim, traz de volta nossos sentimentos mais antigos, podendo ser eles resultantes de uma ação externa ou interna. Ou seja, as sensações como a dor podem gerar afecções boas, e tudo aquilo que eu sinto ou senti (memória) pode trazer à tona sentimentos reprimidos. (BERGSON, 1927, p. 30). Nos laboratórios há uma variação de formas externas e internas que excitam meu corpo sensível: o jogo entre os atores é uma forma externa que consegue ativar certas sensações afectivas, como por exemplo, a dor. O jogo pode ativar também aquilo que eu sinto e já senti em meu corpo, forma interna, e tanto esta forma externa como interna geram em mim sentimentos fortes, afecções.

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Dor e prazer

afecções (dor e Sabo prazer) r e Ator A Ator B Representativas (sabor, odor) memóri odor a processo laboratorial: Forma Interna forma externa relações

Tabela 1 Forma externa e interna do meu corpo

É uma energia forte, meus músculos e poros se dilatam... Sinto-me tão aberto que fica fácil trocar com o outro: é o que Bergson chama de esforço muscular: “A consciência parece que se expande para fora, como se a intensidade se desenvolvesse em extensão: assim é o esforço muscular.” (BERGSON, 1927, p. 23). Assim, acredito que – tomando como base minhas experiências de atuação (dança e teatro) e pesquisando aquilo que me excita, posso dizer que existem três níveis de percepção sobre o corpo sensível: a primeira ocorre quando o corpo se sente sensível para a troca consigo mesmo e com as suas memórias, ou seja, o corpo em estado latente de sensibilidade; a segunda percepção do corpo sensível, é o corpo do ator em diálogo com o corpo de outro ator, gerando assim as relações; e a terceira percepção é o corpo sensível num ritual com o público, onde ele entra em processo de hibridização com o corpo dos outros atores, transformando-se em um corpo uníssono em uma troca constante de redes de sentimentos e sensações: ele sente! Da mesma maneira? Não. Como dito anteriormente, vivemos em um mundo conjunto... Um ecossistema: uma mudança aqui altera ali. São fios intercalados, sobrepostos, lado a lado ou que se penetram. E tudo isso nos toca de alguma maneira. Como menciona Duarte Junior (2001, p. 130) “[...] todo humano sentido (significado) está intimamente vinculado ao que já foi sentido (captado sensivelmente)”, ou seja, todo corpo que é vivo e se ele vive em um mundo

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conjunto está adepto a sentir, pois estamos ligados uns aos outros. Segundo o filme Kimi No Na Wa “Os fios se entrelaçam, se unem, sempre ligando duas partes de uma só”. Muitas vezes estamos bloqueados diante de tantas amarras sociais. E meu corpo encontrou nos laboratórios uma forma de deixá-lo vivo, de sentir em conjunto, e trazer junto consigo o que já foi sentido, como por exemplo, minhas memórias e meus sentimentos: neste instante estou de frente a um corpo sensível, um corpo aberto e que mostra para todos e para si mesmo que corpo realmente ele é. O que eu sinto nos laboratórios me afeta de tal forma que me desperta sentimentos e memórias. No mesmo instante, o ator que troca comigo também sente o seu corpo, suas memórias e as coloca em contato com o meu corpo e as minhas memórias, criando assim um sentimento ou sensação para quem está nos assistindo: são sensações experimentadas: “Poder-se-ia perguntar se o prazer ou a dor, em vez de exprimir apenas o que acaba de ocorrer ou o que se passa no organismo, como habitualmente se julga, não indicaria também o que aí se vai produzir, o que tende a passar-se” (BERGSON, 1927, p. 31). O que me afeta, como a dor, afetará outras pessoas também de uma maneira diferente ou parecida, mas não igual. Uma cena que para mim pode ser dor, para outros pode ser de contentamento. Ou uma cena de amor para mim pode ser raiva para outros, sendo algo que afeta ou não ao outro. Ou por fim, uma dor para mim pode chegar à outra pessoa como uma dor também, porém com um esforço e uma intensidade muscular diferente, pois cada dor é única e cada afecção tem um efeito sobre o ser, potencializando ou não o seu conatus. Nem sempre haverá afecção, mas sempre haverá troca, verdadeiras ou não. Isso dependerá da entrega de cada um e do desejo de revelar a si mesmo: seu ser! Não precisamos de roupas chiques e nem de grandes cenários, mas de corpo. O espetáculo Revoada29 tinha uma proposta sinestésica muito acentuada e envolvia o público em uma atmosfera de devaneio. Contudo, às vezes, algumas pessoas vinham conversar comigo e diziam que não sentiam nada. Outras vezes alguns amigos espectadores falavam que não viam a mesma presença e não conseguiam sentir o corpo de alguns pássaros, mas que conseguiam sentir em outros, chegando a afirmar que muito do que

29 Link do espetáculo Revoada do Arkhétypos Grupo de Teatro. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=jA0LdtuAtVY&pbjreload=10> . Acesso em: 07/04/2019.

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viram, fazia parte da sua história de vida. Aqui temos uma questão importante a se pensar, pois às vezes, estamos sendo verdadeiros com nossas ações e nossas afecções, mas tal verdade não consegue realmente afetar a outra pessoa, pois ou ela não está aberta ou aquela afecção não tem efeito sobre o seu corpo, e neste caso simplesmente a troca não acontece.

1.3 A DOR COMO POTÊNCIA PARA CRIAÇÃO “A dor é inevitável, o sofrimento é opcional”30. Buda

O meu terceiro encontro com a dor veio na disciplina de Atuação III do Curso de Licenciatura em Teatro (2015), que tinha como proposta trabalhar a partir de um teatro- laboratorial, e que me permitiu descobrir o surgimento de um novo ser. Este ser foi gerado durante seis meses de treinamento e teve como referência as quatro imagens que menciono no início deste capítulo. O trabalho desenvolvido na disciplina tinha uma forte relação com a poética dos elementos31 e com os processos do Arkhétypos. Alguns laboratórios foram mais excitantes e consegui criar laços e histórias, outros, foram despretensiosos e não conseguia criar nada. Tudo varia, pois o tempo para a criação de uma história em vida é despretensioso e desordenado; alternando entre rápido e lento. Após entrar nos laboratórios referentes a cada elemento (terra, água, fofo e ar), uma das imagens deveria ser escolhida como a imagem guia para se trabalhar durante todos os outros laboratórios. Escolhi para trabalhar o elemento que mais foi intenso no meu corpo que foi a terra. Deste laboratório saiu a figura arquetípica de um velho resmungão, chato, sofrido e eu queria pesquisar mais sobre este velho. Saber se este velho tinha algo a ver com minha própria mitologia pessoal ou não.

30 Disponível em: . Acesso em: 25/01/2019. 31 A poética dos elementos é uma metodologia de criação desenvolvida pelo Prof. Robson Haderchpek junto ao Grupo Arkhétypos, tal metodologia é utilizada nas aulas ministradas pelo citado professor e nos processos de criação do Grupo. Uma das referências utilizadas pelo professor para conceituar a poética dos elementos é o trabalho do filósofo francês Gaston Bachelard (2013) que escreve sobre a imaginação material associando-a aos quatro elementos da natureza: terra, água, fogo e ar. Outra referência é o trabalho dos pesquisadores argentinos Patricia Bélières e Alejandro Cancela: El cantante popular y la interpretación: Una proposta metodológica integradora de saberes (2013).

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Com o decorrer dos laboratórios descobri que aquele velho não era realmente um velho, e sim um homem com um corpo velho por causa dos sofrimentos da vida. Estava trabalhando com o mito Jó32. A todo instante os mitos renascem e você se torna parte dele. Após rever minhas histórias de vida e dentro dos laboratórios me encontrei: estava acessando um arquétipo que tinha como mote de afecção a dor e o sofrimento. Em meu trabalho de conclusão de curso falo um pouco sobre essa dor e sua ligação com Jó. Sempre sofri muito em minha vida, e continuo sofrendo! Dia após dia sem interrupções e folgas. E diante das excitações coletivas dos laboratórios, foi ativado em mim este sofrer reprimido que estava em mim desde minha origem. Não é fácil expor parte da minha história em meio a estes turbulentos ensinamentos, mas não tem como não falar de mim: já que Jó é Allan e Allan é Jó. Sempre fui uma pessoa sem muitos amigos, sem ter carinho demonstrativo profundo por parte da minha família. Os meus sonhos nunca foram aceitos [...] Vivia falando para mim mesmo, assim como Jó falou ‘por que não me sepultaram como uma criança abortada, como um bebê que nunca viu a luz do dia’, por que eu estou aqui neste mundo para sofrer? Observação: esta frase é de jó e de Allan. Por quê? Por quê? Por que tantos porquês? [...] Pesquisando tive resposta: quando sofremos, é natural perguntar ‘por quê?’. (ARAÚJO, 2015, p. 41, 42)

O livro de Jó trata de um dos assuntos mais difíceis da experiência humana: como lidar com o sofrimento. Ao entrar nos laboratórios e ativar minhas memórias referentes às minhas dores tive uma surpresa de uma dor mais intensa. Aquela dor não era a mesma dor que ativei na disciplina de Elementos Pré-Expressivos, a dor no espetáculo Revoada e sim uma junção de todas as dores que já tinha passado.

32 “Jó foi um homem integro e muito rico que viveu na antiguidade. Ele passou por um tempo de grande sofrimento e foi acusado de muitos pecados, mas ele não abandonou a Deus. No fim, o próprio Deus defendeu a causa de Jó e o restaurou.” Disponível em:< https://www.respostas.com.br/quem-foi-jo/>. Acesso em: 26/11/2018.

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Figura IV (Cena do espetáculo A Descida de Jó ao Submundo 2015 – Foto: Camila Duarte)

É um efeito bola de neve, quanto mais tempo mais memória eu tenho. Quanto mais memória referente às dores, mais forte ela será, com isso mais excitado meu corpo estará para a troca com o outro. (BERGSON, 2006, p. 02). Bergson, em seu livro Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência (1927), menciona e cita dois autores importantes para este estudo: Richet e Darwin. Um complementando o outro sobre as questões sobre a dor. Ao falar sobre a dor, Bergson faz uma junção da dor com o que Richet fala sobre o desgosto, afirmando que quanto maior for a excitação maior será a dor: Se a excitação é fraca, pode não haver nem náusea nem vômitos... Se a excitação for mais forte, em vez de se limitar ao pneumogástrico espalha-se e atinge quase todo o sistema da vida orgânica. O rosto torna-se pálido, os músculos lisos da pele contraem-se, a pele cobre-se de um suor frio, o coração suspende as pulsações: numa palavra, há uma perturbação orgânica geral consecutiva à excitação da medula alongada, e esta perturbação é a expressão suprema do desgosto. (RICHET apud BERGSON, 1927, p. 32-33)

Bergson também cita Darwin ao falar sobre seu estudo sobre a dor intensa dos animais. Como podemos perceber a dor que modifica as expressões do corpo:

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Leva o animal a executar esforços cada vez mais violentos e variados para escapar à causa que a produz... No sofrimento intenso, a boca contrai-se fortemente, os lábios crispam-se, os dentes apertam-se. Ora os olhos se abrem enormes, ora os sobrolhos se contraem fortemente; o corpo fica banhado em suor; a circulação e a respiração modificam-se33. (DARWIN apud BERGSON, 1927, p. 33)

Darwin fala que para o animal escapar de uma dor ele produz uma dor ainda maior. Se tivermos duas coisas que nos dão prazer, vamos escolher a que nos dá mais prazer, assim acontece com a dor também. Então, além de ter um efeito acumulativo de dor memorial no meu corpo, ainda tinha que fazer um esforço maior para não deixar que aquela dor (como por exemplo, minhas brigas com minha mãe) fosse algo ruim para mim. Tinha que usar a dor como um afeto, algo que me tocasse e fizesse meu corpo trocar com os outros participantes. Isso de certo modo me trazia algo positivo, eu usada a dor como potência de criação e isso me gerava prazer, pois a dor era redimensionada em poesia corporal. Meu corpo na disciplina de Atuação III estava excitado, meu corpo estava sensível! A seguir temos uma imagem do meu corpo no trabalho de finalização da disciplina, intitulado A Descida de Jó ao Submundo:

Figura V (Uma dor em um corpo – A Descida de Jó ao Submundo – Foto: Camila Duarte)

33Expression cies émotions, p. 84.

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Por fim, acredito que estamos em um mundo regrado, presos em conceitos e normais sociais que não nos permitem sentir, sentir é quase impossível, mas podemos encontrar brechas e caminhos para lutar e conseguir descobrir/ser quem realmente somos. O corpo sensível que acredito é aquele que vem do “particípio passado do verbo sentir” que é “indicativo de tudo o que foi apreendido pelo nosso corpo de modo direto, sensível, sem passar pelos meandros do pensamento e da reflexão” (DUARTE JUNIOR, 2001, p. 11) e para despertá-lo, precisamos descobrir o que nos afeta, seja uma alegria, uma tristeza ou uma dor. Quando descobrimos nossas afecções e permitimos que elas nos afetem, ativamos em nossas memórias outros EU’s mitológicos, de tempos que nem sabíamos que existiam. Outra forma de sermos afetados é fazer da nossa história um diálogo com outras pessoas: eu sinto e eu faço sentir. Sou um corpo que luta para que as pessoas refloresçam e para que se permitam ser, sem medo da dor e da delícia de ser quem se é!

Figura VI (Embarque de volta/despedida da temporada do espetáculo Revoada em Viena – Áustria/2015)

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2. GOSTO DE ROSA: O ASPECTO POLÍTICO DO CORPO SENSÍVEL

Neste terceiro capítulo descreverei algumas cenas que meu corpo sensível presenciou ou viveu durante a vida e que me fizeram entender que o sensível também contempla um aspecto político. Divido-o em três tópicos ou FATOS que foram fundamentais para o meu corpo ter a coragem de ser um corpo político... De ser quem realmente ele é hoje. São eles: O gayreres, “Menino veste azul e menina veste rosa” e Gosto de rosa! Ops... Gosto de flor.

2.1 FATO UM: O GAYRERES

Neste fato vamos falar sobre quereres34 de um corpo que queria tudo e não podia ter nada... Ou quase nada. Este corpo sempre foi restritivo, desde criança foi educado a ser assim. Pensamos que as restrições começam quando estamos na puberdade querendo sair para as festas e recebemos o nosso primeiro “NÃO!” raivoso. Mas, ela começa bem antes.

Quando alguém restringe alguém ela está retraindo você ou diminuindo sua forma de ser. Às vezes fazemos sem perceber ou percebendo, por bem ou por mal, fazemos isso com os outros. O ato de restringir acontece quando primeiramente necessitamos querer algo.

Lembro a primeira vez que meu corpo quis algo e ele recebeu um não: queria ir ao shopping com uma camisa regata e fui obrigado a usar uma camisa de botão xadrez ensacada por dentro da calça, para completar um cinto, tênis e o cabelo penteado para o lado. Lembro-me que voluntariamente chorei varias vezes para não ir com aquela roupa e involuntariamente chorei com o cinturão nas mãos de minha mãe.

A questão do cabelo sempre foi outra questão, queria ter cabelo grande, mas sempre foi cortado e penteado para o lado. Hoje em dia minha mãe acha cabelo grande, nos homens, bonito! Claro... Já foi “aceito” ter cabelo grande nos meninos pela sociedade.

34O Gayreres é uma analogia à música de Caetano Veloso lançada no disco “Totalmente Demais” de 1986 chamada “O Quereres”. Disponível em: https://everaldofarias.blogspot.com/2010/07/o-quereres.html. Acesso: 21/01/2019.

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Crescendo um pouco mais, fui descobrindo que meu corpo se excitava quando ia para a praia e via aqueles corpos de sungas com aqueles pênis entre as pernas. Uma vez, meu primo, que veio morar em Natal para completar seus estudos, chamou outro amigo para assistir um filme, ainda em fita de VHS; no filme um rapaz enfiava seu “pau” ininterruptamente em uma vagina. Eles estavam sentados no chão e eu ainda pequeno35 sentado no sofá. Foi quando observei que os “pintos” deles estavam virando grandes “paus”. Não parava de olhar para aqueles pênis ao invés de olhar para a televisão. Então meu primo perguntou “Está gostando?” e eu não respondi nada. Ainda lembro como hoje que ali foi o início do descobrimento do meu prazer e das minhas dores também.

Tive minhas primeiras relações com outro menino ainda naquele ano em uma casa abandonada vizinha a minha. Pulávamos o muro e íamos, eu e meus amigos para lá jogar bola (fato que vamos falar futuramente). Um dia em que todos foram embora, ficamos eu e mais um amigo, lá começamos a pegar um no órgão sexual do outro, até que meu primo pulou o muro e nos viu. A partir dali meu primo (mais velho que eu... Uns 19 anos) começou a me molestar.

Tinha que chupar o “pau” dele e acariciá-lo para poder sair de casa e brincar com meus amigos. Para sair com minha própria bicicleta tinha que fazer algo com ele. As vezes ele fazia algo de errado em casa e eu não podia falar para minha mãe se não ele contava que eu “dava e chupava o pau dos meus amigos” mesmo sem eu nunca ter chupado o dos meus amigos e sim... o dele!

Mas, por saber o que eu sentia e o que eu queria quando via meus amigos sem camisa, quando pegava no “pau” do meu amigo e quando via os homens de sunga na praia eu me sentia culpado, com medo do que viria a ser isso se minha mãe soubesse e me mantinha em total submissão a ele. Tinha dias que ele me chamava para algo e eu relutava, não ia onde ele me chamava ou quando chegava perto de mim eu o mordia.

Até que um dia ele falou para minha irmã que eu era gay, eu contei a ela toda a verdade e ela não acreditou, pelo contrário: me bateu! Sempre fui submisso à minha mãe,

35 Não lembro a idade que tinha aqui

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minha irmã e naquela ocasião ao meu primo e cresci com essa questão de ser submisso aos outros. De ser mais pelos outros do que para mim mesmo!

Meu corpo, naquela época, queria QUERER... Querer um outro homem e sentir aquilo que senti ao ver meu primo se masturbando. Mas, isso me foi negado! Fui desconsentido de QUERER e consentido a ser OBRIGADO a fazer certas coisas em minha infância.

A meu entender quando seu corpo quer, ele pode ser restringindo ou não. Caso ele não seja restringindo ele exerce o seu livre arbítrio, mas quando ele é RESTRINGIDO ele passa a ser RETRAÍDO, e então você pode RESISTIR ou não! Quando você resiste é porque você quer algo que é o oposto daquilo que iria acontecer se fosse retraído.

QUERER RESTRINGIR RESISTIR

Tabela 2 (Como nasce o meu resitir)

Aprendi o que era resistir quando minha mãe queria que eu fosse para o campo jogar futebol com os meus amigos e eu não queria, ou quando eu chorava pedindo dinheiro para ir no vídeo game jogar os jogos de luta e não os jogos de futebol nas casas dos meus amigos. Aprendi a resistir quando passei a jogar minha imaginação e delicadeza nos desenhos e na arte e não nas brincadeiras de luta. A exigir um violão ao invés de uma

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guitarra que meu pai queria que eu tocasse, ou quando pedi um curso de natação no lugar de um curso para entrar no time de futebol. Digo isso não porque futebol e guitarra são coisas de “menino” e sim por eu resistir às vontades do meu pai e da minha mãe e ter o que eu queria. Foi nessa retração que consegui aprender a resistir.

[...] E onde voas bem alta, eu sou o chão E onde pisas o chão, minha alma salta E ganha liberdade na amplidão [...] (Caetano Veloso – O quereres)

Neste aprender fui tentar ser ator e professor ao invés de ouvir as exigências e brigas diárias da minha mãe de querer que eu fosse médico ou que deixasse o curso de licenciatura em teatro para entrar nos cursinhos e passar em um concurso público qualquer. Sempre fui tido como o “diferente” da família por eu não tratar meu pai (que nunca foi presente) como pai, por gostar de artes, por ser gay e querer ser professor.

[...] Onde queres família, sou maluco E onde queres romântico, burguês Onde queres Leblon, sou Pernambuco [...] (Caetano Veloso – O quereres)

Não foi um problema exclusivo da minha mãe, apesar de resistir sofri muito por eu querer ser quem eu era, desde criança. Houve casos em que alguns rapazes com quem saí terminaram comigo dizendo: “Não damos certo juntos, pois você mora na zona norte e ficamos longe um do outro” ou “Infelizmente não damos mais certo, pois você é professor e não vai conseguir subir na vida como eu!”.

Passei por várias provações durante minha vida, algumas referentes às cores que gosto ou por gostar de duas pessoas ao mesmo tempo e ser tachado de promíscuo. Falarei mais sobre o fato no decorrer do capítulo, mas tais decepções foram remontadas como um quebra-cabeça e recriadas em forma de luta: eu queria ser gay, agora sou! Meu corpo sensível é também político!

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[...] E onde queres ternura, eu sou tesão Onde queres o livre, decassílabo E onde buscas o anjo, sou mulher Onde queres prazer, sou o que dói. [...] (Caetano Veloso – O quereres)

2.2 FATO DOIS: “MENINO VESTE AZUL E MENINA VESTE ROSA36”

O segundo fato que venho aqui mencionar é referente à questão da cor rosa em minha vida. Após prestar atenção em minha trajetória como ator fui reparando que esta cor sempre se fazia presente nas minhas cenas: seja como uma simbologia, numa roupa, em alguma coreografia que eu gostava ou até mesmo em sonhos.

A partir de então, sentei em minha cama e fui tentar procurar em meu ser por que essa cor se manifestava tão fortemente sendo que ela nunca foi tão presente em minha vida. Minha cor favorita nunca foi o rosa e sim a cor verde, deixando o rosa em segundo lugar.

Recordo-me da disciplina de Encenação III que estudava os conceitos do Teatro Pós-dramático, ministrada pelo professor Rodrigo César em 2014, quando apareceu dentro do Curso de Licenciatura em Teatro minha questão com a cor rosa.

Foi a partir de um sonho que tive e de tudo o que senti, a partir do mundo imaginado, que o rosa se manifestou na cena. No sonho existia um banco de praça com uma menina sentada segurando vários balões coloridos que flutuavam pelo ar. Depois de um tempo, um rapaz com uma roupa rosa chegava até ela e sentava ao seu lado e oferecia um doce. Depois do oferecimento dos doces os balões começavam a murchar.

Tínhamos, nós alunos da disciplina em questão, que dirigir uma encenação pós- dramática levando em consideração a temática do ERÓTICO. A suavidade e o erotismo, considerando as brincadeiras infantis e o doce que a cor rosa trazia para mim, foram postos em cena e assim surgiu a encenação Erotic Candy.

36 Frase pronunciada pela atual Ministra de Direitos Humanos do Governo Bolsonaro, Damares Alves (janeiro de 2019) fazendo uma rasa associação entre cor e gênero.

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Muito dos objetos em cena, assim como a maquiagem, figurino e até mesmo a própria cena remetiam à cor rosa. A cena era realizada com um regador, e trazia os atores regando a eles mesmos com suco de morango, esse cheiro do suco para mim também remetia à cor rosa.

Figura VII (Hyago Pinheiro no Erotic Candy. Foto : Elizabeth Araújo – 2014)

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Figura VIII (Hyago Pinheiro II no Erotic Candy – Foto: Elizabeth Araújo)

Minha outra experiência com a cor foi com o Arkhétypos Grupo de Teatro quando criei um personagem que era um Flamingo – que inconscientemente tem a cor rosa – no espetáculo Revoada. A questão do rosa em meu corpo no Revoada não veio simplesmente por que o pássaro flamingo tem, muitas vezes, uma tonalidade puxada para o rosa, mas sim, pois ele era um bebê flamingo que queria descobrir a si mesmo.

Figura IX (O Flamingo – Espetáculo Revoada. Foto: Diego Marcel)

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Figura X (O Flamingo II – Espetáculo Revoada. Foto: Diego Marcel)

Muitos são os fatos e significados atribuídos à cor rosa, que variam de acordo com a sociedade e a sua representatividade. Mas uma coisa é certa: o rosa é uma cor que remete muito à infância, ao que é puro, às questões dos afetos, emoções e amor37.

Tanto no Erotic Candy como no Revoada existe essa questão do infantil e do querer se descobrir enquanto ser. No espetáculo Revoada isso surgiu com mais força levando em consideração o meu contato em laboratório – e posteriormente no espetáculo – com a atriz Cecília Moreno (mencionado no primeiro capítulo) em que ela fazia minha mãe: me alimentava, me banhava e me ensinava a seguir em frente me estimulando a ser o que meu ser queria.

Meu terceiro momento importante com a questão do rosa veio com a criação do espetáculo Gosto de flor, que a partir de um encontro entre cinco corpos – dentre estes corpos uma rosa vermelha – brincam, jogam, sentem saudades e falam de amor. Neste caso a rosa era vermelha! Mas, foi a partir deste jogo com a rosa que me dei conta que esta cor está presente em minha vida. E então comecei a procurar a entender os significados e as memórias que esta cor tinha, passando de geração a geração, até chegar aos dias de hoje.

37Disponível em: https://simbolismo.net/cor-rosa/ . Acesso em: 25/01/2019.

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Passei a refletir não só sobre os significados que ela carrega, mas investigar o motivo dela estar lado a lado em minha vida no Curso de Licenciatura em Teatro.

Lembro-me bem, em um dos laboratórios que ministrei para os atores do Arkhétypos, e neste dia Robson, o diretor, me falou que minha metodologia de trabalho era pautada no amor. Que aquilo era forte em mim! E no estudo da cromoterapia o amor verdadeiro, diferente do carnal, é emanado pela cor rosa. Não estou afirmando que a cor realmente esteja sempre presente comigo, mas o seu significado sim: o amor puro e infantil.

Meus amigos dizem que tenho olhos e sorrisos de criança, que sou um “meninão leso”, que gosta de brincar sempre. Isso é tão forte para mim, pois por um bom tempo em minha vida reneguei ser o grande menino que sou querendo ser uma pessoa mais adulta e séria, por causa da minha mãe que sempre dizia “deixa de palhaçada!” “Vai criar responsabilidades!” “Vai crescer!”. Hoje aceito quem sou e vejo o quanto é bom ser o meninão doido diante de uma sociedade “normativa”: Hoje eu vivo... Meu passo infantil é o agora. Talvez por ter tido minha infância roubada por fatos mencionados anteriormente, a dor que eu sentia e que geralmente coloco em meus trabalhos faz nascer em mim essa imensidão sinuosa do rosa. A dor da infância se transformou e se transforma, a partir dos laboratórios, em uma infância potente cheias de significados, e novamente falamos da potência dos afetos.

Outra questão que me dei conta foi que, em meus 28 anos de vida, eu só usei uma camisa cor de rosa. Isto também vem do pensamento machista patriarcal e por isso, minha mãe nunca comprou uma roupa rosa para mim. A única vez que comprei uma camisa rosa masculina – que já é difícil de achar nas lojas – foi com o meu próprio dinheiro sem o consentimento da minha mãe.

Vejo então, como dito anteriormente, que a questão desta cor é histórica e varia de cultura para cultura. No Brasil – diferente do Japão onde a cor é muito usada por todos – existe uma dificuldade dos pais vestirem seus filhos com rosa. Isso me faz pensar sobre o quanto ainda é difícil a aceitação de construir existencialmente um ser sem a dicotomia de azul e rosa, pois o rosa ainda é muito ligado à feminilidade e o azul à masculinidade.

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Tal questão ganhou repercussão no Brasil neste ano de 2019 diante da posse da nova ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, a pastora Damares Alves, ao afirmar que “menino veste azul e menina veste rosa” explicitando o seu olhar preconceituoso de que meninos para serem meninos têm que usar roupa azul e meninas para serem meninas tinham que vestir roupa rosa38. Uma grande questão de gênero surgiu diante do que foi dito pela ministra ao querer fortalecer uma dualidade entre corpos diferentes: uma divisão do ser humano pela cor que você veste.

Eu sou o que eu visto? Sim! Eu sou o que eu visto, sinto, toco, vejo, gosto... Eu sou o que eu quero e o que me afeta! Eu sou o que eu visto, seja azul, rosa, amarelo ou verde. Vestir somente uma cor não vai designar quem realmente eu sou e a homofobia vem crescendo vertiginosamente no Brasil.

O Brasil, que mostra-se um país moderno em alguns sentidos, vem revelando uma onda conservadora nos últimos anos. Onda esta que ajudou a eleger um presidente com um discurso completamente desatualizado/retrógrado e preconceituoso, utilizando muitas vezes, um discurso de “proteção à família”, sob o pretexto de que o Estado deve interferir para resguardar todos os modelos tradicionais de família. Ele repudia a tudo que possa remeter à diversidade de orientação sexual da sociedade brasileira, zombando inclusive do Deputado Federal Jean Willys, assumidamente homossexual, que desistiu de assimir o seu terceiro mandato por ameças de morte.

Muito se discute ultimamente sobre a “ideologia de gênero”, principalmente quando um governo, pautado no combate à “ideologia de gênero” nas escolas chega ao poder. A total falta de conhecimento do assunto não permite que se compreenda que o que se estava propondo era tão somente a possibilidade das escolas ajudarem crianças a não crescer sob o manto do machismo e da homofobia.

Não é de hoje que as cores são usadas como uma forma de classificação e de fomentação de um preconceito sobre o corpo humano. No Holocausto39, por exemplo, em

38 Disponível em . Clarissa Pains: 03/01/2019. Acesso em: 20/01/2019. 39 O holocausto foi a perseguição sistemática, burocrática, patrocinada pelo Estado e assassinato seis milhões de judeus pelo regime nazista e seus colaboradores. [...] durante a era do holocausto, autoridades

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busca do ideal da raça superior ariana, os alemães nazistas matavam, humilhavam e torturavam em campos de concentração todos que eram vistos como inferiores aos perfeitos brancos, heterossexuais e de sangue puro alemão, dividindo aqueles que não se encaixavam neste padrão de acordo com um triangulo invertido de cores diferentes (ver foto abaixo) e os tornando prisioneiros. Segundo Castro (2014 p. 223) “os experimentos causaram dor, humilhação e mortes terríveis aos confinados em campos de concentração, fossem judeus, ciganos, homossexuais ou qualquer tipo de inimigo do regime.”.

Figura XI (divisão dos prisioneiros de acordo com uma cor )

alemãs também tinham como alvo outros grupos por causa de sua inferioridade racial e biológica percebida: Roma (ciganos), pessoas com deficiência, e alguns dos povos eslavos (poloneses, russos e outros). Outros grupos foram perseguidos por motivos políticos, ideológicos e comportamentais, entre eles, comunistas, socialistas, testemunhas de Jeová e homossexuais. (Tradução minha). United States Holocaust Memorial Museum. “Introduction to the Holocaust” Holocaust Encyclopedia. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/introduction-to-the-holocaust. Acesso em: 25/01/2019.

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Nos homossexuais era colocado o símbolo de um triangulo rosa. Seria muita coincidência ligar a cor que foi colocada para os gays nos campos de concentração ao fato de que anos antes, na década de 1920, surgiu uma convenção na moda de remeter as mulheres à cor rosa e os homens à cor azul: não sabiam eles, que o rosa era uma cor originalmente voltada para o homem40 e que até mesmo Jesus cristo usou.

Tal perseguição aos homossexuais na Alemanha se deu a partir de uma lei já existente em seu código penal que punia atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo (ELÍDIO, 2010, p. 02).

A questão da cor rosa e os homossexuais no Holocausto precisariam de um estudo mais preciso e específico, mas um fato é certo: os nazistas viam os homossexuais como pessoas frágeis, sensíveis e fracas... Efeminados, fazendo uma comparação preconceituosa entre os homossexuais e a sensibilidade e fragilidade da feminilidade, como diríamos:

“sexo frágil”. Ser gay era ser mulher e mulheres na época usavam e eram ligadas a cor rosa:

Os nazistas viam os homossexuais masculinos como fracos e afeminados, incapazes de lutar pela nação alemã. Eles percebiam os homossexuais como improváveis geradores de filhos, incapazes de aumentar a taxa de natalidade alemã. Os nazistas acreditavam que a raça inferior se reproduzia em maiores números do que os “arianos”, e qualquer fator que diminuísse seu potencial reprodutivo era considerado um perigo racial. (United States Holocaust Memorial Museum. “persecution of homosexuals in the third reich” Holocaust Encyclopedia. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/persecution- of-homosexuals-in-the-third-reich. Acesso em: 25/01/2019).

A citação acima ao mencionar os homossexuais como “improváveis geradores de filhos” deixa claro que o sexo assim como o gênero é visto no corpo humano como algo ligado à reprodução sexual entre o homem (pênis) e a mulher (vagina) e que tais órgãos servem para reprodução. Para Preciado41, 2014:

O sistema sexo/gênero é um sistema de escritura. O corpo é um texto socialmente construído, um arquivo orgânico da história da humanidade como história da produção-reprodução sexual, na qual certos códigos se naturalizam, outros ficam elípticos e outros são sistematicamente eliminados ou riscados. A (hetero)sexualidade, longe de surgir espontaneamente de cada corpo recém- nascido, deve se reinscrever ou se reinstruir através de operações constantes de

40Disponível em: https://simbolismo.net/cor-rosa/. Acesso em: 25/01/2019. 41 Autora do livro Manifesto Contrassexual (2014).

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repetição e de recitação dos códigos (masculino e feminino) socialmente investidos como naturais. (PRECIADO, 2014, p. 26).

E mais,

É esse mecanismo de produção sexo-prostético que confere aos gêneros feminino e masculino seu caráter sexual-real-natural. Mas, como para toda máquina, a falha é constitutiva da máquina heterossexual. Dada que aquilo que se invoca como "real masculino" e "real feminino" não existe, toda aproximação imperfeita deve se renaturalizar em beneficio do sistema, e todo acidente sistemático (homossexualidade, bissexualidade, transexualidade...) deve operar como a exceção perversa que confirma a regra da natureza. A identidade homossexual, por exemplo, é um acidente sistemático produzido pela maquinaria heterossexual, e estigmatizada como antinatural, anormal e abjeta em benefício da estabilidade das praticas de produção da natureza. (PRECIADO, 2014, p. 29-30).

Tal estimativa vem de um mundo com preceitos heterossexuais onde tudo que foge deste padrão é um acidente indesejado, assim como o homem vestindo a cor rosa e a mulher vestindo azul.

O fato de quererem comparar a comunidade gay discriminadamente às mulheres e à cor rosa, pelo fato de homens amarem outros homens, trouxe um grande retrocesso não somente à sociedade alemã, mas mudou completamente o livre arbítrio das pessoas.

Os nazistas têm a sua responsabilidade nessa história, mas, antes e após o fim do nazismo os homossexuais sempre foram vistos como errados... Como acidentes domésticos: existiam e ainda existem em alguns países leis anti-homossexuais. A comunidade LBGT vem há séculos sendo discriminada, forçada a viver com vergonha ou enclausurada sem poder contar e mostrar para o mundo suas memórias.

Os homossexuais, após a guerra, ainda eram malvistos e estigmatizados pela sociedade. Muitos diziam, inclusive, que os nazistas haviam agido corretamente frente a esse grupo. Houve, portanto, logo após o final da guerra, a impossibilidade dessas pessoas prestarem seu depoimento, escreverem suas memórias, e contarem, enfim, o que haviam passado, inclusive pelo fato de ainda existirem leis anti- homossexuais em vigor. O Parágrafo 175, do código penal alemão, que condenava atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo e existia desde 1871, continuou em vigor no lado oriental até 1967, e, no lado ocidental, até 1969. Foi através desse artigo de lei que os nazistas perseguiram e assassinaram os homossexuais na Alemanha e nos territórios anexados, como a região francesa da Alsácia [...]. (ELÍDIO, 2010, p.01- 02).

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Os gays foram maltratados, castrados, humilhados, feitos de experimento biológico, tidos como escravos sexuais de Kapos42, mutilados e levados à morte.

Alguns detentos homossexuais conseguiam trabalhar como agentes penitenciários e pessoal de escritório; para outros prisioneiros, a sexualidade tornou-se um meio de sobrevivência: em troca de favores sexuais alguns Kapos protegiam um determinado prisioneiro, geralmente jovem, dando-lhe comida extra e evitava que fosse abusado pelos demais. [...] a tutela de um Kapo também não era garantia de proteção suficiente contra a brutalidade dos guardas. Em vários casos, quando o Kapo se cansava de um protegido, matava-o e encontrava outro no próximo trem que chegasse com prisioneiros. (United States Holocaust Memorial Museum. “persecution of homosexuals in thethird reich” Holocaust Encyclopedia. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/persecution- of-homosexuals-in-the-third-reich. Acesso em: 25/01/2019). Com isso, muitos homossexuais tiveram traumas em seus corpos, sendo assim, afetados negativamente. É impossível ser um corpo sensível sem considerar o seu aspecto político. As leis e dores impostas pelo nazismo e a submissão de leis posteriores a ele, doutrinou esses corpos impedindo-os de serem quem realmente eram. Como se permitir? Como deixar seus corpos serem afetados por coisas positivas? E voltando a discussão para o nosso Brasil... Será que estamos seguindo o exemplo da Alemanha nazista, com um Brasil taxativo? Um Brasil de dualismo de gênero atribuído por duas cores? Aumento do preconceito e diminuição da diversidade? Ou será uma crescente onda de uma descriminação escancarada?

Não sei ao certo a que ponto iremos chegar, mas sigo em vida tentando lembrar que o rosa significa um amor puro e infantil... O mundo dos sonhos e do otimismo, sem perder a consciência política! Não é por menos que na França, quando a vida parece perfeita e ideal como num sonho é comum usar a expressão “C’est l avie em rose”. Que significa É A VIDA EM ROSA!

[...] E sempre que eu pensar no meu bem Vou colorir o dia Faço o céu de rosa E ninguém vai duvidar da vida. (Silva – A cor é rosa)

42 Kapo era um termo usado para certos presos que colaboravam com os nazistas nos guetos e nos campos de concentração em várias posições administrativas mais baixas. A palavra oficial nazista foi Funktionshäftling, ou "prisioneiro funcionário". Disponível em: 23/01/2019.

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2.3 FATO TRÊS: GOSTO DE ROSA! ops... GOSTO DE FLOR.

O espetáculo Gosto de Flor foi de suma importância para meu crescimento enquanto ser... Enquanto corpo que não se envergonha de querer o que ele quer e de ser o que realmente ele é.

Lara Machado, diretora do espetáculo, assim como Robson Haderchpek, sempre foram importantes para o meu próprio descobrimento. Descobrir a si mesmo é de fato difícil, vendo que na maioria das vezes estamos mais abertos e vendo os outros do que a nós mesmos. Nossos olhos sempre estão apontados para o outro, para as coisas... E como somos bastante materialistas temos a necessidade de ver e de tocar o físico. Quase nunca paramos para ver e tocar o que há na gente.

Quando me coloco a ver de fora o espetáculo e a revisar o que senti quando estava jogando com meus outros amigos dentro do palco me dou de conta de muitos Eu’s que foram renegados por mim mesmo por medo do que os amigos, familiares, companheiros enfim..., a sociedade iria pensar.

Quando comecei a acessar a internet pelo computador da minha irmã obtive meu primeiro relacionamento com vídeos onde homens, me desculpem a expressão, “fodiam com outros homens”. Eram lindos, com corpos perfeitos que pareciam uns deuses e eu me debruçava sobre minha imaginação posteriormente dentro do banheiro até a minha auto ejaculação, contudo ao deitar na cama, me sentia culpado por estar assistindo aqueles vídeos “pornográficos” e ter sentido prazer com aquilo.

A sociedade nos nega tantas coisas. Eu não me sentia culpado simplesmente por sentir vontade de “foder com outro homem”, mas também por pensar em homens mais velhos, gozar e sentir prazer sozinho e antes do casamento, e principalmente por ter sofrido abuso enquanto criança e gostar de homens agora. Eu chorava!

Como dito anteriormente, o fato de eu fazer sexo sozinho era um desrespeito para mim mesmo, pois na nossa sociedade o pênis (ou o gênero masculino) foi feito essencialmente para sentir excitação com uma vagina (ou gênero feminino) e não com uma

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mão ou com o ânus de uma pessoa do mesmo sexo. As sociedades nos diminuem simplesmente por achar que para fazermos sexo e sentir prazer teremos que colocar os “polos” diferentes para “brigarem” entre si.

O sexo, como órgão e pratica, não é nem um lugar biológico preciso nem uma pulsão natural. O sexo é uma tecnologia de dominação heterossocial que reduz o corpo a zonas erógenas em função de uma distribuição assimétrica de poder entre os gêneros (feminino/masculino), fazendo coincidir certos afetos com determinados órgãos, certas sensações com determinadas reações anatômicas. A natureza humana é um efeito da tecnologia social que reproduz nos corpos, nos espaças e nos discursos a equação natureza = heterassexualidade. O sistema heterossexual é um dispositivo social de produção de feminilidade e masculinidade que opera por divisão e fragmentação do corpo: recorta órgãos e gera zonas de alta intensidade sensitiva e motriz (visual, tátil, olfativa ... ) que depois identifica como centros naturais e anatômicos da diferença sexual. (PRECIADO, 2014, p. 25)

É a partir da minha identidade social e cultural que eu consigo identificar meu corpo pelo que sou: cada um tem um corpo que tem suas histórias, vivências, sentimentos e sua própria cultura. Diminuir nossos seres em sociedade apenas em dois gêneros, sendo eles masculinos e femininos, é retrair um avanço político de libertação.

No início do Gosto de Flor nos reunirmos e pensamos em falar sobre a temática do “amor entre homens”, pois achávamos que haviam poucos trabalhos falando sobre este amor entre homens. Mas foi com o decorrer do tempo que fomos ampliando nossa mente e descobrindo o que realmente queríamos falar. Será que era somente sobre o amor entre homens gays? E onde ficava a relação de amor entre queer, lésbicas, trans, andrógenos, gays, bichas incubadas, heterossexuais, divas, simpatizantes, bissexuais entre outros?

Vimos que nossa fala, não atingia somente os homens gays e sim, toda uma diversidade de corpos diferentes que se viam diante daquilo, inclusive corpos heterossexuais. Corpos que se colocavam diante daquelas situações e sentiam afetos diferentes. Como visto no capítulo 2, eram corpos falando de outros corpos. Segundo (PRECIADO, 2014, p. 29): “O gênero é, antes de tudo, prostético, ou seja, não se dá senão na materialidade dos corpos. É puramente construído e ao mesmo tempo inteiramente orgânico. Foge das falsas dicotomias metafísicas entre o corpo e a alma, a forma e a matéria”. E complementando...

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“El género es la organización social de la diferencia sexual. Pero esto no significa que el género refleje o instaure las diferencias físicas, naturales y establecidas, entre mujeres y hombres; más bien es el conocimiento el que estabelece los significados de las diferencias corporales”. (SCOOTT apud MÚGICA 2017, p. 25).

Deste modo podemos dizer que o gênero é o significado das diferenças corporais, o que seu corpo passou e levou com ele e o que ele se tornou. Não se nasce homem, torna-se um e com uma diferente masculinidade.

De esta forma podemos reconocer en lapropuesta de Butler, como en la de Scott y Lamas, que el género es un constructo que no se estabelece biológicamente; es decir, que no está relacionado de forma intrínseca con el sexo masculino, femenino o hermafrodita con el que se nace, sino que está íntimamente ligado y de manera activa a las identificaciones sociales del cuerpo de cada sujeto, al devenir de los processos culturales a los que se enfrenta a lo largo de su vida y a sus representaciones de la identidad, independentemente del sexo con el que se nace. Estas ideas vienen gestándose décadas atrás, con el planteamiento feminista de Simone de Beauvoir, quien afirma: No se nace mujer: llega una a serlo. (MÚGICA, 2017, p. 26).

Com os laboratórios do espetáculo “Gosto de Flor” pude me ver como indivíduo político que se auto conhece, ajuda o outro a se conhecer e mostra caminhos para um auto conhecimento. Foi a partir da direção de Lara Machado que pude colocar para fora minha forma de ver o mundo, minhas vontades, dores e assim conhecer quem realmente sou, quebrando e deixando os preconceitos e paradigmas sobre minha pessoa de lado. Eu poderia ser eu, mostrando quem eu sou e como é minha masculinidade sensível, que se impõe dentro de uma sociedade retrograda. O “Gosto de Flor” veio para mim, como uma das diversas formas de conscientizar quem me assiste sobre as diversas e “diferentes” formas de ser e de amar.

La masculinidade en el cuerpo del bailarín varón ha desafiado los estereótipos impuestos social y politicamente en diferentes épocas, desde Nijinsky en el siglo XX, así como la relación de los públicos con la danza como expresión de la cultura, cultura no entendida únicamente como conocimiento, sino como expresión de la vida, de una cosmovisión del mundo, de las creencias, de las políticas y de las prácticas propias de un grupo determinado de personas. Entonces podemos decir que las concepciones de los masculino y lo feminino em la danza no han tenido una construcción lineal, acumulativa o en una sucesión de hechos cronológicos; tampoco se han desarrollado siempre en concordância exacta con los paradigmas socioculturales de cada época, sino que es desde la construcción del cuerpo escénico masculino que se habilitan una serie de representaciones de la

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masculinidade em resistencia a los sistemas de dominación.” (MÚGICA, 2017, p. 35)

E Alonso Alarcón Múgica, bailarino e coreógrafo mexicano completa:

El estudio de las masculinidades relacionado a las poéticas coreográficas revela también el papel que desde la danza se asigna culturalmente a ese individuo “varón”, qué tipo de relación debe estabelecer en la sociedad, en la política, en la cultura, con otros hombres, con las mujeres, como debe ser como padre, líder, como debe mostrarse en un contexto determinado y por tanto los roles que debe cumplir [...] (MÚGICA, 2017, p. 38)

Várias foram as questões que vieram no meu corpo e que fizeram eu me permitir/amar quem realmente eu me tornei: aceitação. Foram duas as principais questões vindas ao meu corpo: o poliamor e a relação SM mais conhecida como sadomasoquista.

A primeira questão foi mais fácil no quesito auto aceitação. Em um dos meus antigos namoros eu tentei falar um pouco com meu companheiro se ele conseguiria amar duas pessoas ao mesmo tempo. Pois sempre pensei “Se amamos consequentemente nosso pai e nossa mãe, por qual motivo não poderíamos amar duas pessoas ao mesmo tempo dentro de uma relação?” essa pergunta foi um motivo para futuras desconfianças entre nossa relação. Por causa de uma pergunta a confiança que ele tinha em mim acabou. Por que amar duas pessoas ainda é visto como um tabu? Talvez pelo fato de a própria sociedade (politica-igreja-escola) normatizar a relação heterossexual entre 1 homem e 1 mulher.

Um homem que é visto com duas ou mais mulheres é visto como um “garanhão”, mas uma mulher ou um homossexual que é visto com mais de um companheiro é tipo como alguém promíscuo e sem moral.

Abrir a relação para o amor nunca será motivo para ser chamado de promíscuo e sim para se orgulhar, ao saber que seu coração tem um amplo espaço para dar amor e carinho. Caso não haja amor também! Ter relações com duas ou mais pessoas é uma forma de satisfação sexual que foge do que é imposto pela nossa sociedade (“pau” e vagina para

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reprodução) assim como fazer sexo com dildo. Isto vai ao encontro com o que Preciado (2014) fala sobre um dos inúmeros princípios sobre o Manifesto Contrassexual43.

A sociedade contrassexual demanda a abolição da família nuclear como célula de produção, de reprodução e de consumo. A prática da sexualidade em casais (isto é, em discretos agrupamentos superiores a um e inferiores a três de indivíduos de sexo diferente) esta condicionada pelas finalidades reprodutivas e econômicas do sistema heterocentrado. A subversão da normalização sexual, qualitativa (hétero) e quantitativa (dois) das relações corporais começara a funcionar, sistematicamente, graças às praticas de inversão contrassexuais, às praticas individuais e às praticas de grupo que serão ensinadas e promovidas mediante a distribuição gratuita de imagens e textos contrassexuais (cultura contrapornográfica). (PRECIADO, 2014, p. 41)

Nos laboratórios minhas vontades de ter uma relação poliafetiva tais como minhas relações a três vieram como forma de cena. Minha última relação com dois homens ainda estava presente quando comecei o processo: meu corpo sentia saudades! Queria eles! A cada laboratório minha memória estava dançando a falta que eu sentia e me afetando de uma maneira que eu não tinha sentido antes.

Foi a partir desta percepção que senti dos companheiros de laboratório em mim que consegui me abrir com outros homens e ter relações futuras a três. A relação aparece em muitas das cenas do espetáculo, talvez alguém possa se identificar com tais questões e conseguir se abrir e deixar suas vontades darem um salto para fora sem ligar para o que as pessoas em volta poderão dizer.

Outra questão foi a sadomasoquista. Essa questão foi mais difícil de aceitar, pois nem eu queria isso para mim. Há uns quatro anos comecei a ter vontades diferentes como, por exemplo, fazer sexo com dotados, pessoas que me cuspissem, que agarrassem meu pescoço e fossem apertando lentamente e que me batessem. Mas, essas vontade precisavam me gerar dor e não sofrimentos. Essas dores teriam que ser proveitosas para meu prazer diferenciando-se de outras dores ocorridas na vida. E principalmente: que tudo isso ocorresse pela minha própria vontade. Uma miscelânea entre ser patrão e escravo.

43A contrassexualidade tem como tarefa identificar os espaças errôneos, as falhas da estrutura do texto (corpos intersexuais, hermafroditas, loucas, caminhoneiras, bichas, sapas, bibas, fanchas, butchs, histéricas, saídas ou frigidas, hermafrodykes ... ) e reforçar o poder dos desvios e derivações com relação ao sistema heterocentrado. (PRECIADO, 2014, p.27)

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Foi difícil aceitar que tais dores gerassem prazer. Mas, quando olhei para o meu passado e lembrei o que realmente me excitava nos laboratórios, na qual era a dor, comecei a me abrir para essas questões “obscuras” não faladas na sociedade: foi ai que me dei conta, observando meu corpo, que eu sentia mais prazer ao chuparem meus pés, morderem meus peitos e meu sovaco do que se chupassem meu pênis. Como menciona Preciato (2014, p. 32): “As praticas S&M, assim como a criação de pactos contratuais que regulam os papéis de submissão e dominação, tornaram evidentes as estruturas eróticas de poder subjacentes ao contrato que a heterossexualidade impôs como natural.”.

Figura XII (Saudade, dor e prazer em meu ser – foto: Paulo Fulga)

Falar sobre o que não é dito ajuda a quebrar as correntes compulsórias que a cada dia vão crescendo em nosso corpo e nos deixando sem fôlego para nos excitar e fazer os outros sentirem o que queríamos ter sentido. É importante não somente trabalhar seu corpo como fonte de expelir dilemas, mas, numa relação interpessoal, fazer com que outros corpos que tenham medo do que realmente eles são sintam-se livres para se excitar e conseguir trazer em memória o que ele realmente quer.

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Deste modo, meu corpo sensível tornou-se um palco de representação: que botava para fora minha cultura, minhas masculinidades, meus desejos, medos, anseios, minha sensibilidade... Minhas memórias! É um corpo que aprende, ensina e que protesta pelas prisões e vocifera a liberdade de SER.

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3. ENCONTRO DO “EU” E A FORMAÇÃO DO ESPETÁCULO “GOSTO DE FLOR”

Para entender o processo do espetáculo “Gosto de Flor” é preciso fazer uma imersão primeiramente em meu crescimento enquanto ser e enquanto ator, levando em consideração a pessoa da professora Lara Rodrigues Machado, diretora do espetáculo, e que fez parte de muitos dos processos percorridos por meu corpo.

Por este motivo dividirei este capitulo em três partes: processo de descoberta do Allan enquanto ser, processo de descoberta do Allan enquanto ator e o processo do espetáculo “Gosto de flor”.

Levando em consideração esses tópicos, terei como metodologia uma análise tendo como base principal o livro Danças no Jogo da Construção Poética da Profª Drª Lara Rodrigues Machado44, fazendo uma ponte entre suas vivências enquanto pesquisadora e minhas vivências com ela dentro do Departamento de Artes da UFRN.

3.1 SER ALLAN

Entrei no curso de teatro no ano de 2010 com a finalidade de dar continuidade à minha veia artística. Já tinha curso de desenho básico e participei durante anos das quadrilhas/danças Juninas e principalmente de grupos de dança presentes no Estado do Rio Grande do Norte como o grupo parafolclórico Uyrandê e a Cia de Dança do Teatro Alberto Maranhão, mais conhecido como CDTAM.

Ao entrar no curso deparei-me com um mundo totalmente diferente do que eu imaginava. Pensei que seria lúdico e fácil estar presente no curso: quando falo presente é no

44 “Graduada em Dança (1994), com Mestrado (2001) e Doutorado (2008) em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Campinas/SP, Lara Rodrigues Machado iniciou sua carreira acadêmica no Departamento de Artes Corporais da Unicamp (2000 a 2009), também atuando como docente do departamento de Artes da Universidade federal do Rio Grande do Norte (UFRN – 2009 a 2012). Atualmente, integra o quadro docente da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde lidera o Grupo Interinstitucional de Pesquisa Corpo e Ancestralidade (CNPq)”.

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sentido de corpo e alma estarem prontos e atentos ao que o curso me oferecia e não no sentido da assiduidade.

Foi então que obtive meu primeiro contato com Lara Rodrigues Machado e sua mistura de jogo e dança na disciplina de Jogo e Cena I ministrada pelo professor Robson Haderchpek no ano de 2010.

Lara propôs o jogo do maculelê que simbolizava a dança do cortar cana. Uma dança folclórica de matriz africana que acima de tudo é um jogo entre corpos verdadeiros. Nessa dança/brincadeira você precisa estar em comunhão com o outro, atento ao corpo do outro brincante para não machucá-lo.

O corpo precisa dançar, sentir o chão, conhecer onde está, a história por trás do jogo e o que ele simboliza: existe uma preparação e esta preparação é um ritual. Um ritual que meu corpo não reconheceu pelo fato de não estar estritamente ligado ao curso e nem ao meu ser.

As dificuldades percorridas por mim nas trilhas da vida foram decisivas para o entendimento do meu corpo dentro do curso. Tudo que passamos em nossas vidas se tornam memórias, impregnam em nosso corpo. Se estivermos abertos às dificuldades e às energias negativas elas irão se alocar em nosso ser e isso reverberará no que fazemos. Não me senti aberto ao jogo, meu corpo não jogava nem dançava: era um corpo duro, rígido, que por muito tempo perdurou dentro do curso. As dificuldades e as prisões encontradas em minha trajetória e principalmente dentro de minha casa fizeram com que eu não soubesse o que estava fazendo dentro daquele curso.

Meu corpo reagia como uma grade Uma prisão fechada... Reclusa! Que não tinha motivos para jogar Nem dança... Repulsa! Um corpo com aversão ao que o coração pedia Mas quem diria que um dia iria aprender a jogar.

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3.2 SER ATOR

Passei um ano um pouco distante do curso com o intuito de tentar descobrir a mim mesmo e o motivo de eu estar dentro do curso de teatro, pois sentia que meu corpo repulsava estar naquele lugar. Não conseguia jogar nas disciplinas e nem me colocar verdadeiramente dentro das disciplinas.

Meu corpo sempre falou mais do que a minha própria boca, decidi então voltar à dança e expressar meus sentimentos de acordo com um movimento pré-estabelecido. Resolvi dançar cada palavra que meu corpo pedia. Foi então que em 2009 entrei para a Cia de Dança do Teatro Alberto Maranhão chamado pela diretora artística Wanie Rose, mas ao mesmo tempo em que meu corpo conseguia se expressar, ainda assim, ele se movimentava de forma dura e sem verdades: era o movimento pelo movimento.

Minha vida dentro das artes sempre foi de descobertas, viagens e mudanças de territórios: adaptação, inadaptação e readaptação. Foi múltiplo, colonizado e colonizador por diversas artes, e pelo fato de ser colonizador (procurar sempre algo novo para ele) e colonizado (sempre deixar novas formas de arte entrarem em seu território) ele virou um corpo mestiço: entrou no curso de teatro e absteve-se do curso, não por completo, por um determinado tempo para tentar encontrar na dança contemporânea uma outra maneira de expelir seus sentimentos e suas dores. Mas, ao mesmo tempo que conseguia dançar, ainda era um corpo duro que não conseguia jogar com o outro. Um corpo que gostava do teatro, mas que doía ao estar em cena... um corpo que dançava, mas que estava duro. Um corpo que era tudo e ao mesmo tempo nada, por não saber em qual grupo ele estava.

Foi então que tive a oportunidade de voltar a pagar uma disciplina45 com a professora Lara Rodrigues no Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Eram novas pessoas – levando em consideração que a minha turma já estava avançada e eu tinha regredido um pouco por causa da dança – novos olhares, novos abraços

45O componente curricular ministrado pela professora Lara Rodrigues foi “Pedagogia do Corpo” no ano de 2011 no DEART-UFRN.

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e uma nova forma de ver o teatro. Lara, sempre gentil, nos mostrou um novo teatro... Um teatro que não começa pelo jogo, ele é o próprio jogo.

Adentrei em uma terra desconhecida e dei de cara com minha resposta: uma proposta metodológica diferente do que eu já tinha participado. Não era uma disciplina voltada para uma vertente naturalista, épica ou ligada aos jogos de Violla Spolin e sim uma disciplina voltada para o EU. Não era dança e nem teatro, era corpo! Era jogo!

Lara em seu livro intitulado Danças no jogo da construção poética nos mostra um pouco da sua metodologia dentro do teatro e nos mostra que existe uma dança e um teatro vivo e poético dentro de cada um.

[...] com todas as vivências e trocas que tive o privilégio de experienciar, descobri que é possível propor uma dança viva, cuja intenção é estimular a liberdade corporal ao produzir arte. Nessa direção é que a proposta metodológica de trabalho artístico, denominada Jogo da Construção Poética, será aqui apresentada. Tendo como finalidade a inclusão, essa proposta busca estimular os corpos a se reencontrarem nas pesquisas sobre a vida e a criar laços de humanidade, mediante o encontro com o outro e consigo para, finalmente, criar poesia. (MACHADO, 2017, p. 27, 28)

A proposta desenvolvida por Lara Rodrigues teve sua primeira repercussão na UFRN no ano de 2009 tendo vários projetos46 artísticos como frutos desta metodologia, desde trabalhos de iniciação científica até dissertações de mestrado (MACHADO, 2017). Foi neste embalo que eu me pus a jogar com ela e com os atores que faziam parte daquela disciplina.

Meu corpo sentiu uma perturbação ao estar ali. Não poderia afirmar e nem adjetivar que era uma perturbação “boa” ou “ruim”, mas sim afirmar que era um choque de sensações de dúvidas ao entrar em um campo até então desconhecido, assim como um bebê que acabara de nascer, pois até então só havia tido um pouco contato com ela na disciplina de Jogo e Cena I.

46Segundo Lara (2017): “alguns trabalhos de dança se derivaram destes projetos, entre eles, os espetáculos ‘Ouidah’, além de ‘Benza Quebranto’ e ‘Marruá’ que atualmente seguem com pesquisa artística e apresentações públicas.” A partir de 2013, a proposta metodológica passou a ser desenvolvida na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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Era sempre muito difícil jogar aquele jogo, pois até então eu não tinha sido verdadeiro comigo e com os outros e o jogo exigia isso, talvez por medo de mostrar um Allan fraco e por estar trabalhando com uma turma que já tinha um grande contato entre si.

Lembro-me bem que a primeira vez que deixei o medo sair de dentro de mim foi com ela, nesta mesma disciplina. Lara pediu para os participantes fazerem um círculo em volta da sala e que cada participante, um a um, voasse em volta do círculo assim como uma ave voa em volta dos seus ninhos. Quando chegou a minha vez, senti meu corpo pesado e os meus pés fincaram no chão. Não conseguia sair de tal lugar e voar em torno dos companheiros de sala, talvez por medo do que iriam pensar do meu voo, de fazer errado ou de ser julgado incapaz se não conseguisse fazer um voo tão belo quanto os deles. Literalmente estava me sentindo o patinho feio em torno dos cisnes brancos. Lara chegou até mim e disse “Você consegue!” e segurando uma das minhas mãos, voamos em dupla em torno do círculo. Senti o ar batendo em meu rosto e me senti livre pela primeira vez. Pensando a posteriori, me deparei com uma possível resposta para o meu “não voo” e que talvez...

O medo de voar fosse o medo de ser livre pela primeira vez!

Outro momento simples e ao mesmo tempo mágico realizado na disciplina se deu a partir de um desenho. Estávamos trabalhando durante toda a disciplina com a matriz de um guerreiro, inicialmente após o primeiro dia de laboratório, Lara nos pediu para desenhar como a gente via o nosso guerreiro e entregar para ela.

O meu desenho foi de um guerreiro fraco, com vários sintomas e feridas em seu corpo. Feridas que o tempo e minha vida fez com que eu tivesse e que nem o tempo, até então, tinha conseguido curar. Após dias de aula, com a metodologia proposta pela professora Lara, fui me dando conta que meu corpo estava dando início a uma nova jornada, uma nova estrada para trilhar.

Novas amizades foram formadas, uma autoconfiança foi surgindo e uma nova forma de expelir as dores que o mundo jogava para mim foi nascendo: meu corpo aprendeu a se escutar e a se abrir mais aos outros. Conseguiu na disciplina, pela primeira vez, ser verdadeiro com ele mesmo e com o outro e assim, dançar e jogar! Ao final da disciplina,

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Lara entregou de volta o guerreiro de cada um e pediu que, caso o nosso corpo tivesse de uma nova maneira, que a gente redesenhasse aquele desenho ou mudasse o que a gente achasse que deveria mudar.

Fechando meus olhos e observando como o meu corpo estava, os abri novamente e retirei todas feridas desenhadas no meu guerreiro. Toda a disciplina foi um autoconhecimento de si e de um conhecimento interpessoal, onde comecei a dar meus primeiros passos numa nova forma de se fazer teatro, dança e de se abrir para jogar com o outro:

O trabalho artístico em dança desenvolvido com os Arteiros conferiu grande centralidade à identidade de cada intérprete, proporcionando descobertas individuais significativas, como a autoconfiança, a consciência dos potenciais de seu próprio corpo e a possibilidade de superação de limites na atuação em grupo. O conteúdo normalmente transformado em produto artístico propõe a apresentação pública de um espetáculo de dança que finda por sintetizar a poética do cotidiano, dos desejos e dos anseios de cada participante, proporcionando a verdadeira possibilidade de comunicação e de aceitação no mundo em que vivem. (MACHADO, 2017, p. 56)

Lara, ao falar um pouco sobre suas vivências com o grupo da Associação Arteiros47 na Dança, nos mostra que a construção de um espetáculo, cena ou produto artístico é uma mera consequência48, pode acontecer ou não, e que a descoberta de si é um dos pontos primordiais da metodologia do Jogo da construção poética, além da própria abertura para se trabalhar em grupo.

Assim como o meu corpo usufruiu de um autoconhecimento, muitos dos seus outros aprendizes devem ter tido as suas descobertas pessoais. Cada corpo reagirá de uma forma diferente. Cada descoberta terá uma mudança diferente, mas nossos anseios, ao meu ver, em sua maioria serão suprimidas.

Entrei para o curso de licenciatura em teatro para tentar uma nova forma de se fazer arte (adaptação), não obtive sucesso e fiquei um pouco distante do curso adentrando em um

47 Lara fazia parte de um grupo chamado Ilê Axé dentro do externato São João. Com a maioridade dos componentes, havia a necessidade de se achar um espaço para o convívio e o fazer artístico dos componentes. Foi então que em 2002, com um espaço cedido por colaboradores, nasceu a Associação Arteiros da Dança. (MACHADO, 2017) 48 Nesta disciplina não houve a formação de um espetáculo final realizado pelos participantes. Diferentemente do que aconteceu no Gosto de Flor, onde obtivemos um espetáculo.

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grupo de dança contemporânea. Não atingi o que eu queria no grupo de dança, sentindo meu corpo rígido como eu me senti no início do curso de teatro (inadaptação), até que conheci a metodologia da professora Lara Rodrigues Machado e seu Jogo da Construção Poética, redescobrindo um corpo que desde criança eu não tinha. Conheci um teatro... uma dança diferente! Um jogo entre corpos, que por serem verdadeiros, conseguem jogar uns com os outros (readaptação). Este autoconhecimento que Lara me proporcionou foi a abertura inicial para eu conseguir realizar um trabalho intenso na formação do espetáculo “Gosto de Flor” sob sua direção no ano de 2017 na UFRN.

3.3 PROCESSO GOSTO DE FLOR

Após os espetáculos envolvendo os elementais – a água (Santa Cruz do Não Sei), a terra (Aboiá), o ar (Revoada), o fogo (Fogo de Monturo) e o éter (Éter) – o grupo Arkhétypos de Teatro se preparava para uma nova fase, e com ela chegava a Mestra Lara Machado para estar junto ao grupo neste novo processo.

Robson queria falar sobre o amor na perspectiva do universo masculino, pois sempre há o tabu de que homem não é um ser sensível e consequentemente para eles é complexo falar sobre o amor.

Para tal feito, Robson chamou pessoas próximas, íntimas e em quem ele sentia certa confiança para o novo processo. Falar de amor não é algo fácil de fazer, muitas vezes não nos abrimos para falar sobre questões amorosas e sobre os vários tabus que existem com pessoas próximas da gente. Existe uma variedade de tipos de amor49 – amor Eros, amor Philia, amor Ágape, amor Storge, amor Narcisista, amor Platônico e o amor Mania – e para cada tipo de amor uma maneira de se pensar e agir (MARQUES, 2016).

Para que nossos corpos correspondessem aos laboratórios futuros a algo tão diversificado e complexo, seria obrigatória uma aproximação maior entre os participantes,

49 Artigo Os sete tipos de amor por José Roberto Marques/Blog/ Acesso em: 05 de junho de 2016. Disponível em:

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um carinho50, pois só assim sentiríamos os nossos corpos abertos para dialogar sobre o amor.

Precisávamos nos deixar afetar e sermos afetados para o processo: seja a partir das nossas próprias memórias (forma ativa e livre) ou pelo outro (passiva e passional51). E para tal, como dito anteriormente, eu assim como outros do grupo, precisávamos nos sentir próximos e abertos ao outro para jogar. Só conseguimos afetar e sermos afetados ampliando nossa ação no encontro com o outro do grupo, assim como afirma Lidiane Lobo:

Somos criaturas desejadoras, corporificadas, esforçadas e, somos feridos e tocados por coisas fora de nós, em um sistema de causa e efeito... Espinosa afirma que é por meio dos encontros que poderemos ampliar a nossa potência de ação, a qual está diretamente relacionada com a nossa capacidade de afetar e ser afetado pelo outro. (LOBO, 2010, p. 60).

Com isto, entraram para o novo processo além de mim, Thazio Menezes, Luã Fernandes e o próprio Robson Haderchpek, pois eu estava disposto a jogar com eles e torná-los afecções52 para meu corpo brincante.

Meu corpo foi fluido como água no mar ao entrar nos laboratórios propostos por Lara e sua maneira de levar o jogo: finalmente estávamos voltando a jogar juntos e com um corpo, não em luta contra si mesmo, mas em expansão para novos e sensíveis diálogos entre corpos.

Já havia trabalhado com o Thazio Menezes na Cia de Dança do Teatro Alberto Maranhão, Robson já tinha sido meu diretor no espetáculo Revoada e o Luã sempre foi um colega próximo do Curso de Teatro, então foi fácil encontrar uma abertura para jogar com eles, o difícil sempre foi confiar neles para falar sobre o meu modo de ver o amor.

50 Para Lara: “todo corpo merece carinho em sua aproximação. Quando tocamos o outro devemos pedir licença, não com as palavras, mas com nossas ações, e assim seremos convidados a nos aproximar, propondo uma possibilidade de jogo corporal sem invasões ou ferimentos.” (MACHADO, 2017, p. 177). 51Segundo Lidiane Gomes Lobo (2010) “Podemos afirmar que quando nossos afetos são causados em nós por causas externas, atuamos de forma passiva e passional, ou seja, somos movidos pelas paixões; quando nossos afetos são causados em nós por nossa própria potência interna, atuamos de forma ativa e livre, isto é, somos movidos pelas ações.” (LOBO, 2010, p.58). 52 Segundo LOBO (2010) ao falar sobre Spinosa, a mesma nos mostra que afecções são o conjunto de coisas que nos tocam: seja um cheiro, uma dor ou uma pessoa.

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Mas no decorrer do processo tive que ir confiando mais em mim mesmo e na forma como eu via as questões do amor para só assim conseguir trocar em plenitude. Acredito que temos que nos conhecer primeiramente para conhecer o outro e assim fazer um jogo com grandes trocas.

Tal como nos meus relacionamentos, o “jogo” com o outro sempre acontece, mas nunca me vejo seguro para me abrir sobre o amor e sobre mim mesmo. Podemos ter um relacionamento duradouro, forte, mas às vezes tudo que temos é fragilizado por uma mera insegurança do que achamos ser o amor.

Foram quatro meses53 de laboratórios intensivos e para “comandar” quatro homens de temperamentos fortes, encontrava-se Lara, que com seu carinho e verdade sempre conseguiu deixar os ensaios leves e produtivos. Com o passar do tempo entraram mais duas mulheres para nos ajudar: Nadja Rossana (ajudante de direção) e Hilca Honorato (iluminadora cênica).

Os primeiros laboratórios foram para conhecer e reconhecer o nosso corpo e o corpo do outro jogador, este jogo só seria possível “com a troca de fora para dentro e de dentro para fora” (MACHADO, 2017, p. 64).

O corpo era um novo território a ser desbravado, precisávamos nos conhecer a fundo, nos abrir, conhecer o que realmente nosso corpo entendia sobre o amor: uma palavra tão simples para mim, falada diversas vezes por milhões de pessoas em nossa sociedade, mas que quase ninguém a pratica ou realmente a conhece... Uma palavra banalizada. Com isso, começamos os laboratórios brincando de apalpar, tocar e acariciar...

Acariciar com as mãos Com os dedos, Com os olhos... Olhar a tudo, Olhar profundo Olhar verdadeiro

53Os laboratórios foram de fevereiro até maio de 2017, com estreia marcada para o dia 30 de junho (mês de ensaio) no Teatro Jesiel Figueiredo/ DEART – UFRN.

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Verdadeiramente sentir... Tocar... E perceber que somos todos profundos Únicos... Diferentes... Porém iguais.

Às vezes ficávamos em um círculo, onde um dos jogadores entrava e tínhamos que apalpar o corpo do outro com as mãos fechadas e em forma de concha para amolecê-lo. Outras vezes éramos divididos em duas duplas para fazer o mesmo procedimento. O Jogo proposto tinha como objetivo apalpar e tocar o corpo do outro. Não qualquer toque, éramos como territórios desconhecidos, tínhamos que ir desbravando com cuidado, com carinho: Não tocar por tocar, mas sim tocar para sentir. Além do sentir o outro, tínhamos que sentir o chão. Pois era uma maneira de nos fixar, sentir nossa ancestralidade e atingir nosso equilíbrio interno. Para tal, abríamos bem os pés e os dedos no chão com o intuito de deixar crescer raízes seguras no chão. Já havia feito tal dinâmica com a professora Lara no curso de licenciatura em teatro e foi fundamental reutilizar este jogo para reaprender a ter meu equilíbrio corporal, só assim conseguiria dar segurança a mim mesmo para falar sobre o amor com os outros jogadores. Aprender a fixar os pés no chão foi o início de um jogo onde andávamos pela sala com estes pés abertos sentindo o chão e que tínhamos que deixar nosso corpo se doar/cair no chão a partir da “quebra do joelho”54. No transcorrer do tempo, ao ver um companheiro caindo fomos criando uma afeição e tentávamos segurar e não deixar o outro cair no chão. Tais variações do jogo eram incrementadas por Lara que, ao observar o jogo de fora, ia conduzindo e estimulando os laboratórios, às vezes com perguntas para encontrarmos respostas e outras vezes com metas a serem seguidas e neste seguimento, descobrimos o novo. O primeiro pedido de Lara foi que a gente levasse para o laboratório imagens que para a gente sintetizasse o que era o amor e músicas que nos estimulassem a estar naquele

54 A quebra dos joelhos é uma expressão utilizada para um jogo de consciência corporal onde deixamos nosso corpo mais livre, fluído e aberto para poder dançar e se libertar de um corpo condicionado e duro, isso se dá quebrando/dobrando os joelhos fisicamente num impulso do corpo.

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laboratório e jogar. Sempre começávamos vendo as imagens para posteriormente entrar nos laboratório e com isso criarmos a partir dos nossos corpos. Outro estimulo foi a partir da improvisação com movimentos da capoeira para melhor jogar com o outro.

nessa proposta, a prática corporal se dá a partir do improviso, das criações e descobertas de movimentos que surgem em processos de diálogos corporais na relação entre os intérpretes, de modo que o jogo entre os corpos é o próprio jogo da construção poética. Para esse relacionamento, adotam-se elementos da capoeira e da dança que cada corpo traz consigo. O jogo pode também ser tomado como a relação entre o corpo do intérprete e outro estímulo qualquer, realizando- se entre duas pessoas, entre uma pessoa e determinado elemento cênico ou entre um corpo e uma imagem. (MACHADO, 2017, p. 66)

Os laboratórios não tinham uma ordem fixa do que deveríamos fazer no dia, nem muito menos um jogo fixo. Com exceção do aquecimento: sempre esperávamos Lara para o aquecimento corporal, porém com o decorrer do tempo, cada um foi encontrando seu modo de aquecer, visto que eram quatro corpos diferentes e que cada um deveria desenvolver o seu modo de estimular/excitar para estar aberto e presente para o outro. E com o decorrer dos tempos cenas foram se formando a partir dos jogos. O laboratório do dia 03/04 foi de extrema importância para o espetáculo futuro. Com a ausência de Luã55, tivemos um laboratório fechado para eu, Thazio e Robson levando em consideração o jogo do cair a partir da “quebra dos joelhos” e segurar. Quando um caia os outros dois seguravam e assim sucessivamente íamos levando o jogo adiante. Com o passar do jogo, os corpos pareciam dançar dentro do laboratório. Não uma dança programada, mas uma dança que ia fluindo de acordo com cada interação diferente dos jogadores presentes. Segundo Lara

a proposta metodológica do jogo da construção poética busca a superação das formas de movimento cristalizadas e que, muitas vezes, foram impostas por modelos de ensinos ortodoxos, nem sempre respeitosos à história de vida de cada um. Propõe-se, então, a estimular os corpos para o desconhecido, abdicando temporariamente aquilo que sabem, a fim de criar um espaço disponível dentro desse mesmo corpo, fomentando novas vivências e descobertas. Entre outros objetivos, caminha-se para um despertar desses corpos em direção à curiosidade, imprescindível para o descortinar de horizontes do intérprete na dança. (MACHADO, 2017, p. 69)

55Lara sempre queria um número impar de pessoas no novo processo, ao acreditar que o jogo fluiria mais. Pois sempre um iria estar à margem, e isso iria causar o jogo. Não foi possível termos um número impar de pessoas no novo processo do Arkhétypos, porém de vez em quando um dos quatro faltava.

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Lara sempre nos estimulava primeiro e naquele dia não foi diferente! (ver foto XIII)

“Dá uma caminhada pelo espaço primeiro... Procura pulsar internamente de acordo com o que a música vai propondo. Vai olhando o entorno... Vai olhando os outros corpos...”

Figura XIII (laboratório do dia 03/04 no departamento de artes da UFRN1. Foto: Nadja Rossana – 2017)

Os corpos iam se tornando mais maleáveis e sensíveis a cada queda e restava aos outros dois segurar o corpo que caia. Íamos brincando de segurar, apoiar, dar assistência ao outro, grudar e desgrudar ou até mesmo abraçar e repelir. (ver foto XIV) Meu corpo pedia sempre o corpo de Thazio, e apesar de conhecer Robson há mais tempo, meu corpo repelia o dele. Não queria que Robson me segurasse, e sim Thazio. Ao final dos jogos, Lara pediu para que fizéssemos o caminho inverso, ao invés de começar com as fotos, iríamos terminar com elas: pegaríamos três fotos onde víamos cenas que ocorreram no nosso jogo do dia. A foto principal que peguei foi de dois senhores, dando um beijo simples no rosto do outro (ver foto XV). Neste dia meu jogo com Thazio foi mais forte, e apesar da

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intensidade, nossos corpos foram delicados um com o outro, senti o corpo de Thazio aberto para mim pela primeira vez e vi na foto a mesma energia que senti ao jogar com ele.

Figura XIV (laboratório do dia 03/04 no departamento de artes da UFRN. Na foto Allan Phyllipe, Robson Haderchpeke Thazio Menezes. Foto: Nadja Rossana – 2017)

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Figura XV (Final do laboratório do dia 03/04. Foto: Nadja Rossana – 2017)

Nossos corpos foram, a partir dos jogos, descobrindo caminhos e cenas futuras, como por exemplo, esta cena onde eu, Robson e Thazio ficamos segurando um ao outro. Esse momento virou uma cena do espetáculo onde eu me vejo com ciúmes de Robson ter encontrado Thazio. Lara sempre observava quais eram os jogos que nos laboratórios eram mais fortes e quais reapareciam durante os outros dias: Se um jogo/interação reaparecia era pelo motivo de uma memória estar viva e presente em nós. Quando uma movimentação reaparecia em um laboratório, sabíamos que ela era potente e aquilo nos afetava. A cada Laboratório saíamos com diversas dúvidas e algumas certezas: por que meu corpo queria o de Thazio? Por que ele distanciava o de Robson? Através daquelas movimentações que reapareciam, vinham também as respostas para algumas dúvidas vigentes. Assim como o trabalho de Lara com os Arteiros, as respostas das inquietações iam vindo com o passar dos laboratórios e sendo assimiladas pouco a pouco. (MACHADO, 2017, p. 102). Cada movimentação/dança é única de cada intérprete, pois cada dança ativa de forma sensível nossas memórias pessoais. Outras vezes acontece o contrário, nossas memórias corporais ativavam nossas danças. Com isso, Thazio não conseguiria realizar minhas movimentações com tanta verdade como eu e assim vice versa: unicidade!

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o momento da composição coreográfica representa um jogo no qual a repetição espontânea dos movimentos dita quais serão aqueles mais significativos para cada corpo e para cada relação a ser criada. A movimentação que surge e é lapidada pelos intérpretes pertence a eles como símbolo de cada história corporal e jamais deve ser imitada por outro corpo. Somente o corpo do intérprete envolvido e comprometido com o trabalho nesse processo de investigação pode genuinamente sentir a justeza de um movimento, a exatidão de um gesto, a proeminência de um espaço. (MACHADO, 2017, p. 76)

O ensaio do dia 11/03 também foi muito produtivo para o meu corpo. Na ocasião Robson foi quem faltou, e novamente o encontro foi em número impar. Neste dia começamos observando as imagens e um dos estímulos de Lara foi...

“abraça as imagens Deixa que elas saiam e voltem do seu corpo Começa a sentir mesmo a energia do outro, O cheiro, a pele, a cor.”

Neste dia senti ainda mais meu encontro com Thazio pulsante e forte. Luã apareceu como um intruso que queria afastar e acabar com minha relação a dois. O ciúme tomou conta de mim ao ver Luã tentando se relacionar com Thazio e, além disso, Luã com seu jeito de bicho foi aos poucos ativando uma dor escondida dentro de mim: meu corpo tremia e sofria. Reativava em mim uma dor que fazia meu corpo se excitar, ficava sensível e aberto a memórias passadas.

os corpos de cada intérprete acumularam experiências, transformando-as em diferentes imagens no momento de cada processo de criação. Formaram-se corpos pulsantes, carregados de uma memória corporal que se disponibilizaram ao novo, às descobertas e às pesquisas, e que, ainda assim, trazem consigo uma história própria, carregada de sentidos e tradições. (MACHADO, 2017, p. 83)

Ao final do laboratório, Luã me pareceu com o pai que eu nunca tive e com isso comecei e perguntar e gritar “Cadê você pai?”. Meu pai sempre foi distante de mim, passei minha infância sem um ser masculino que me desse apoio em minhas decisões. Luã ativou a dor da falta de amor de um pai, um ser tão essencial na existência de um filho. No jogo da

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construção poética, os nossos corpos carregam nossas histórias de vida e daí sabe onde se encontram as nossas raízes. (MACHADO, 2017, p. 83). O laboratório56 do dia 16/03 foi um dos mais intensos para mim. Olhamos para nossas fotos e fomos para o centro da sala com os olhos fechados. Nosso aquecimento foi a partir das palmas da mão. Começamos alisando lentamente cada parte do nosso corpo e este alisar foi aumentando a cada minuto que passava. Sentia como se meu corpo quisesse se rasgar e a partir de um alisar, minhas mãos foram ganhando garras e vontade de abrir meu corpo ao meio. Subiam-me à cabeça as perguntas: “realmente existe amor?”, “Por que eu não queria Robson perto de mim?”. Robson estava em posição quase que fetal e numa posição meio passiva diante de nós. Algo o estava machucando ou tirando sua concentração, mas eu precisava dele ali. Comecei a tentar estimular ele dentro dos laboratórios, pois eu precisava das minhas respostas e com isso comecei a provocá-lo: segurava sua cabeça, o empurrava, o abraçava sem ele querer. A partir dos meus movimentos estava tentando afetá-lo.

a projeção de movimentos é responsável por criar laços entre as pessoas. O movimento ‘afeta’ o corpo do outro. ‘Afeta’ o corpo daquele que dança e sente-se contemplado, alimentando a si mesmo num jogo de perguntas e respostas. (MACHADO, 2017, p. 171)

Eu queria mais dele e Lara nos estimulavam com perguntas: “o que acontece depois? O que acontece depois disso?”. A partir disso ele começou a bater sucessivas vezes em mim e eu gostava daquela dor. Era a dor da dúvida e da saudade: alguém um dia vai me amar? Minha família me ama? E então a resposta veio logo em seguida com um grande abraço de amor. Mas o amor nunca será para mim algo fácil.

56 Neste dia foi o Thazio quem faltou.

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Figura XVI (Tentativa de estimular Robson no laboratório1. Foto: Nadja Rossana – 2017)

Figura XVII (Tentativa de estimular Robson no laboratório2. Foto: Nadja Rossana – 2017)

Figura XVIII (Abraço após as batidas. Foto: Nadja Rossana – 2017)

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Figura XIX (Continuação do encontro após o abraço. Foto: Nadja Rossana – 2017)

Figura XX (A dor da saudade. Foto: Nadja Rossana – 2017)

O laboratório do dia 18/03 foi o inverso do último laboratório, eu e Robson dançamos a vida. Cada toque e abraço fez nascer uma dança sensual de conquista entre a gente. Foi algo complexo e difícil para mim, nunca fui de conquistar/paquerar alguém. E minhas memórias sobre conquistas falhas vieram à tona.

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Senti-me um pouco incomodado por estar tentando conquistar alguém tão próximo de mim. Porém, ao final do laboratório começou um jogo de abraços simultâneos. Nossos corpos se aproximavam, davam um abraço e repeliam. Nossos corpos foram mudando para algo mais agressivo e eu comecei a ficar mais à vontade. Estas duas descobertas foram essenciais para duas cenas do espetáculo. Mais uma vez vejo que a dor é uma fonte de ativação para o meu jogo com o outro. Uma das cenas do espetáculo eu paquerava com Thazio e toda vez eu me sentia desconfortável em fazê-la. Pedi em um dos laboratórios para Robson seguir adiante com tal cena. Então Robson entrou no meu lugar para conquistar Thazio, porém cada um teve sua maneira de fazer, pois eram corpos, maneiras e histórias diferentes de vida. A outra cena dos abraços que se repelem e se aproximam foi colocada logo após a cena da briga entre eu e Robson. O Gosto de Flor foi montado, como dito anteriormente, a partir de jogos e fotografias que ativavam, pelo menos para mim, as minhas memórias. Foram elas de amores passados, reprimidos, desejos de ter um amor paternal e até mesmo das minhas dúvidas se realmente existia o amor. O jogo que ficou mais em evidência dentro do espetáculo – e que deu o nome ao espetáculo – foi o jogo proposto por Lara no dia 23/03 onde Robson trouxe uma flor de tecido para o ensaio e Lara propôs uma dança com ela. Foi colocada ao centro da sala a rosa, e ao entorno dela os quatro participantes. Lara nos perguntou “Como você chegaria nesta rosa? Como você a pegaria?” e então de pouco em pouco fomos nos aproximando da flor com o intuito de segurá-la e dançar com ela. Fui o primeiro a pegar na flor e, com delicadeza, comecei a dançar no centro com ela57. Como um vulto a nos rodear, Lara pegou a rosa das minhas mãos sem eu perceber e a passou para outro participante e assim sucessivamente. Após ter passado por todas as mãos, começamos um jogo de tentar roubar a flor um do outro.

57Segundo Lara Machado: “tomando o espaço cênico como uma grande roda imaginária, estar no centro do espaço representava estar com a vez, ou com a palavra, ou ser o foco de atenção naquele instante; isso, não por estar no centro da cena, propriamente, mas por assumir a comunicação da relação que se estabelecia...” (2017, p. 122)

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Cada corpo dançava pelo espaço com a flor de uma maneira diferente, alguns mais leves e outros se pareciam com animais não existindo assim, um modelo predeterminado de movimento58. Meu corpo respondia com diversos sentimentos: às vezes com ciúmes da flor, não querendo dar ela para ninguém; outras vezes com possessão, tentando esconder ela dentro da minha roupa para ninguém pegar; outras de tentar seduzir o outro com a flor: em um momento do jogo comecei a despir Robson, tirando assim o seu short e ele o meu. A flor foi um objeto precioso para o trabalho e se mostrou fundamental para a ativação dos nossos corpos presentes dentro do processo. O corpo era fluido (foto XXI), leve... Nossos corpos eram transformados, às vezes, em verdadeiros bichos (foto XXII) tentando pegar aquele objeto vermelho. Outras vezes nos tornávamos um verdadeiro emaranhado de corpos (foto XXIII), onde sentia nossas energias iguais e pulsantes, parecendo somente um único corpo: um corpo em devoção a flor (foto XXIV). Talvez a mesma flor tivesse ativado nos outros meninos sentimentos parecidos com os meus. Ao fim do jogo, éramos uma flor. Quatro pétalas que juntas se transformaram em uma única flor... Um único corpo! (foto XXV). Começamos a passar a rosa pela boca um do outro. A baba que caia e ficava na flor parecia um néctar conjunto: Era baba, gozo, carne... Era suor! Era algo tão intimo e individual que eu mesmo não consegui pensar em mais nada. Era aquele local e com aqueles corpos. Sem preconceitos! Fernando Villar, professor da Universidade de Brasilia/UNB, ao assistir o Espetáculo Gosto de Flor no I Festival Nacional de Teatro Universitário da UFRN nos deixa um grato comentário sobre o que assistiu:

A imersão que podíamos ver desde o início concretiza-se em concentração, mantém-se foco pleno, há um visível intenso trabalho interior. Há razões em cada passo, em cada gesto, em cada imobilidade. Há lembranças, há memórias, há prazer, há dor. Há o “e aí sim estarei criando instante por instante, não instante por instante”, como queria Clarice perto de um coração selvagem. Nesta muralha/arena/alcova, os corpos malhados, ágeis, fluídos, animais e humanos se revezam em pas de deux, de trois, de quatre – troca-trocas, ménages, foursomes. Não há glamour, há ardor, há clamor. Não há glitter, há suor.[...] (VILLAR, 2017)

58 Para Lara Machado: “não existia o corpo nem o dançarino e nem o movimento mais importante. Não se trabalhava em nenhum momento com modelos de movimento ou com escalas de importância e beleza.” (2017, p. 123)

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Não era um corpo masculino nem feminino, muito menos existiam heterossexuais ou homossexuais! Orientações sexuais foram deixadas de lado. Era um corpo... Com gosto de flor. Ao falar sobre o espetáculo Vilar deu-nos mais um pouco da sua observação sobre o espetáculo. Colocando certas palavras que apresentam “dois gêneros” ele troca o “a” e o “o” por um “x” deixando claro que o Gosto de Flor não é genérico... É INDISCIPLINADO!

Gosto de Flor é interdisciplinar, indisciplinado, é artístico com A anarquista e do afeto, é da cena, é arte da ação de corpos que afetam e são afetados, como postulava Spinoza. Flor germinada por atletas afetivxs ansiadxs por Artaud e tantxs de nós, diretorxs, atuantes, dançantes. Que mais do que homoerotismo ou libido masculina enfrenta as nuances e camadas dos tsunamis das paixões humanas: correspondidas ou não, dilaceradas, perdidas, renovadas e/ou almejadas. (VILLAR, 2017. Grifo meu)

Figura XXI (Jogo da rosa 1. Foto: Nadja Rossana – 2017)

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Figura XXII (Jogo da rosa 2: corpos de animais. Foto: Nadja Rossana – 2017)

Figura XXIII (Emaranhado de corpos. Foto: Nadja Rossana – 2017)

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Figura XXIV (Corpo em devoção à flor. Foto: Nadja Rossana – 2017)

Figura XXV (Éramos flor: quatro pétalas. Foto: Nadja Rossana – 2017)

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Não eram quatro corpos dançando e em jogo. Eram cinco! A flor foi de fundamental importância para o espetáculo, ela rodava por todas as cenas. Jogamos e brincamos com ela e ela jogou ao mesmo tempo com a gente. Segundo Lara Machado:

os elementos cênicos representavam uma extensão dos corpos. Formavam-se corpos imaginários. Tornavam-se cada vez mais intensos os movimentos dos corpos quando todos esses aspectos compunham a dança, ou seja, o imaginário, a lembrança, o elemento cênico elaborado, o espaço transformado, entre outros. Esse estado de integridade era o que proporcionava a comunicação com o outro e, consequentemente, com o entorno. (MACHADO, 2017, p. 126)

Os quatro elementos estavam inseridos na flor. Em cada cena do espetáculo a rosa se comportava de uma maneira e estado diferente.

 Flor em terra: em uma das cenas do início do espetáculo, Robson está dentro de um círculo feito de pequenos pedaços de pétalas rasgadas no chão. Tais pétalas tinham tanto peso como uma terra mórbida. Um cemitério com restos de amores mortos e de dor.

Figura XXVI (Flores mortas: foto tirada durante o aquecimento antes da nossa estreia. Foto: Paulo Fuga - 2017)

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 Flor em água: logo após Robson sair do círculo das flores mortas ele vai ao meu encontro, pega a única rosa inteira e começa a passar pelo meu corpo como uma água corrente, como se quisesse me limpar de alguma impureza – Como uma benzedeira benze o próximo – aquele toque suave da flor em meu corpo trazia um sofrimento ligado à saudade que tenho de dois amores que encontrei no Rio de Janeiro no ano de 2017. E cada vez que passava em meu corpo, doía mais.

Figura XXVII (Flor corrente: encontro entre eu e Robson. Foto: Taline Freitas – 2017)

 A flor em ar: um dos jogos que surgiram como dito anteriormente foi o jogo do roubo da flor. Tal jogo ficou dentro do espetáculo e nossos corpos brincavam dentro da cena: uma hora com sedução, outras vezes como se fôssemos meras crianças e brincar. Era um amor familiar, dos tempos de criança e às vezes de sedução como de um adulto. Jogávamos, pulávamos, sorríamos e dançávamos como uma folha no ar.

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Figura XXVIII (Flor em ar: na cena os quatro atores brincando e dançando com a rosa. Temporda no Rio de Janeiro. Foto: Jorge Coelho – 2018)

 A flor em fogo: A cena final do espetáculo foi criada a partir do primeiro laboratório com a flor. Estávamos os cinco corpos em jogo: os quatro humanos e a flor. Existia uma certa sensualidade e fogo naquela cena. Passávamos a flor de boca em boca como se estivéssemos em um acasalamento. A todos nós beijávamos e a rosa a todos beijava. Era onde eu me sentia mais próximo dos meninos. Sentia o cheiro da carne e das salivas misturadas.

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Figura XXIX (Ensaio fotográfico do espetáculo Gosto de Flor. Foto: Paulo Fuga – 2017)

Por fim, rasgávamos as rosas e elas voltavam ao chão... à terra! Como se essa história fosse cíclica e sem fim. Acredito que o amor seja assim: alguns são permanentes e inesquecíveis como o amor de uma mãe, outros são tão frágeis que podem ser quebrados. Às vezes ficamos tristes, perguntamos se realmente existe o amor, mas logo encontramos em outro ser, um novo caminho para tentar.

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Figura XXX (Cena final do espetáculo. Foto: Erick Nobre – 2017)

O espetáculo Gosto de Flor é subjetivo e amplo. Uma cena que significa algo para mim pode significar algo totalmente diferente para outros que o assistem. Começamos querendo fazer um espetáculo fechado na proposta “amor entre homens” e chegamos à conclusão, a partir de vários bate-papos com as pessoas que nos assistem, que o espetáculo não fala sobre corpos masculinos falando de amor e sim somente sobre o Amor. Pois até mesmos casais heterossexuais se identificaram com as cenas do espetáculo. O amor é feito de saudades, de raivas, dor, paixão e de consolo, pois o amor é acima de tudo, identificar no outro, um ombro amigo... Encontrar uma família! Fernando Villar (2017) em cada palavra me contempla por inteiro...

[...] muito além de uma contemplação voyeurística do erotismo e testosterona materializados, a plateia se vê testemunha de personagens atormentados em coreografias de dores mal resolvidas, de obstáculos, de despedidas, de rupturas e ausências, ou mesmo de traumas talvez. Há medos e ressentimentos, mas há tesões e sentimentos, desejos e devires em choques contínuos que os unem e os separam em novas conjugações, que se renovam em diferentes pares, trios ou quartetos. O ritmo como jogo de tensões irradia para o respeitável público ondas emocionais, se faz um vagalhão sentimental, sem sentimentalismos no jogo dos guerreiros que não parecem ter “a sorte de um amor tranquilo”, cantado e querido por Cazuza, entre outros bilhões de pessoas (VILLAR, 2017).

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Meu corpo foi um livro aberto dentro do processo do Gosto de Flor. Nele aprendi a aceitar minhas memórias dolorosas como parte excitativa para a ativação do meu corpo sensível. Ela foi uma das afecções para meu corpo! Precisei ser corajoso e verdadeiro para conseguir deixar meu corpo sensível aberto para a troca com o outro. Deixar os paradigmas impostos pela sociedade e aceitar o amor coletivo: um amor que não se restringe a um tipo de amor e que para muitos da sociedade é um amor banalizado. Meu corpo sensível precisou de um grande tempo para poder se abrir e deixar falar e ser falado sobre o amor. Um corpo que precisou enxergar que a dor da saudade é amor. Que amor combina com dor!

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um grande caminho foi trilhado para a construção desse trabalho. Lê-lo é percorrer cada instante significativo dentro do meu ser. É também voar em ciclos intermináveis de danças que a partir de memórias me excitam e fazem reverberar em mim um corpo tão sensível que ele troca, joga e se joga para o outro, transformando essas memórias em outras infinitas memórias. Doa, recebe, dissipa e retrai energia consigo mesmo, com os outros intérpretes e com a plateia.

É um corpo que carrega uma identidade própria, cheio de cultura, vivências, histórias, estórias e sentimentos. Ele não tem muro e por isso recebe tudo que o mundo lhe dá, sendo ele uma parte finita do infinito iluminado que o criou. Ao entrar em contato com outros corpos finitos ele se torna parte daquilo... Em uma miscelânea de prazeres ele suga e, como se passasse em um funil, ele memoriza e aprende: nunca fazendo da memória algo passado, mas uma memória presente. Como um menino que aprende como andar de bicicleta e nunca esquece.

Muito do que eu já vivi eu vivo no presente! As tantas dores que senti no passado estão empregnadas no meu corpo, ele percebe e expele essa dor para fora. Não com a mesma energia que antes, mas como algo potente, e a cada vez que receber outra dor, não será a mesma dor que antes. O tempo anda em sintonia com sua memória... Como uma bola de neve que desce uma montanha e vai a cada rolamento crescendo: assim é minha dor.

Tal estudo teve como finalidade adentrar um pouco em meu universo enquanto pesquisador para descobrir um corpo sensível que já existia, mas não era visto. Um corpo que após se excitar descobre que o essencial é ser quem realmente ele é. Que a partir das suas dores conseguiu crescer... Virou arte’S! Uma dor que não gera sofrimento e sim fomenta criançõe’S.

Uma dor que queima como fogo, dança como o ar, morre feito terra e lava feito água. Ele é afecção para mim: me ativa, joga de cabeça para baixo e faz-me sair do mundo reprimido e de comodidade. Ele me dá forças para eu ser quem realmente eu sou.

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É com o amor que surge a dor ou com a dor que surge o amor? Acho que ambos fazem sentido para mim, pois foi a partir de um amor que eu descobri a dor, e foi essa dor que excitou meu corpo, tornando-o sensível, que pariu o gosto de amor... Ou seria, o Gosto de Flor?

Foi em 2017 que meu corpo, junto com Robson, Thazio e Luã entrou para um processo, com direção de Lara Rodrigues Machado. Neste processo realizamos um jogo de trocas humanas que culminou na criação de um espetáculo que, futuramente se chamaria Gosto de Flor.

Revelações foram feitas! Descobri a partir dos laboratórios propostos por Lara novos percursos e novas pespectivas de me olhar e ver o outro. Não foi um percursso fácil... Mas, qual percursso construtivo é? A grande questão é como você pega as pedras em seu caminho e as transforma em um grande castelo: sem demagogia!

Fazer este trabalho foi tão cheio de descobertas como aquele flamingo que descobre que não queria voar e sim dançar. Invertendo a lógica do que era imposto pela sua natureza enquanto pássaro que era voar ele descobre o poder de ser livre: de dançar!

Poderia dizer também que este trabalho surgiu de tantas provações como os caminhos traçados por Jó. Cheios de dúvida, de feridas e de dores, mas ele consegue se afirmar e não perder a fé no que ele acredita.

E foi na fé que meu corpo, mesmo relutando para se abrir por não saber o que realmente era amor na época, encontrou nas mãos amigas de Hilca Honorato, Lara Rodrigues, Luã Fernandes, Nadja Rossana, Robson Haderchpek e Thazio Menezes forças para seguir em frente... Para falar sobre amor!

Mas, descobri que falar de amor é falar de dores, de saudades, de perceverança, ciúmes, brincadeiras e família. Há algo no amor tão mágico que é quase uma barbárie a gente querer classificá-lo: assim como a dor e a todos os outros afetos!

Ter um corpo sensível é você sentir-se se esvaziando para as leis e se deixando excitar, através das suas afecções, o seu verdadeiro ser cheio de histórias e memórias de

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vida. Descobro a partir disso que o rosa tem grande significado em meu corpo, que ele trouxe à tona toda aquela infância de amor puro para os meus laboratórios. Meu corpo era rosa infantil, ao mesmo tempo masculino e feminino... Sensível e grotesco! Encarcerado por não poder ser o que ele era... Reprimido por não poder usar rosa e exercer, além do masculino bruto, o masculino sensível e delicado: um ser cheio de masculinidade’S.

Hoje me exponho e tenho orgulho de ser vários! De ter um corpo político que luta e mostra através da arte que se pode ser livre: se masturbar, fuder, suar, gozar, se auto penetrar e penetrar quantos você sentir prazer. Saciá-lo! Sem vergonha eu fiz dele SEM VERGONHA! Sem medo das taxações impostas pela sociedade de ser promiscuo ou pervertido. Taxações que são impostas por um mundo heteronormativo que diz que os pólos diferentes são os que se atraem. E por que não os polos iguais?

Fiz do meu corpo no Gosto de Flor um corpo “queimado pela guerra”59. Uma guerra que encontrou no rosa o preconceito e a dor. A dor de vários que até hoje se resguardam “no armário” com medo de serem mortos ou espancados.

Por fim, descobri ao longo do meu processo de pesquisa – que começou desde minha monografia de finalização do curso de Licenciatura em Teatro no ano de 2015 – que meu corpo sensível é memória, jogo, afeto. Compreender o corpo sensível é você se dar a oportunidade de sentir e fazer o outro sentir, e descobrir que ele carrega um aspecto político forte que você precisa deixar sair, permitindo ao sujeito ser quem realmente ele é.

59 Frase dita pelos atores nos laboratórios do processo de criação do espetáculo “Gosto de Flor” (2017).

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