Revista África e Africanidades - Ano 2 - n. 8, fev. 2010 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com

Axé-Axé: o megafenômeno baiano Ianá Souza Pereira

Graduada em Letras pela Universidade Federal da e Mestranda em Estudos Comparados da USP.

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“Música é como chita na loja. Tudo é bom e bonito, não posso condenar. A mesma fazenda de tecido que um odeia, o outro acha linda. Não me meto, cada macaco no seu galho”...

(Riachão, compositor baiano)

extremamente redutor para todo o Bahia da década de 80 foi contexto de produção musical da Bahia. palco de um dos fenômenos Não se fala em música mineira, carioca musicais mais controversos do ou paulista, mas, numa tentativa de Brasil, efetivamente calcado na regionalização da música produzida na estética afro e carnavalesca da Bahia, é empregado em grande escala à Bahia. Tal fenômeno emerge do nomenclatura “música baiana” para enaltecimento da negritude e do jeito afro- designar uma especificidade da MPB, o baiano de ser (Milton Moura 2001), é a que faria estremecer os mais etnia a favor da construção da identidade conservadores seria a idéia de classificá- de um povo, dentro do contexto musical la enquanto brasileira. Apesar de rotulada baiano esta identidade está muitas vezes de “música de péssima qualidade”, a Axé fundida num essencialismo étnico veiculado Music monopolizou o mercado brasileiro pelas músicas que soam como hino de no final da década de 80 e durante toda a celebração da baianidade, porém, segundo década de 90 (ainda se mantém no Stuart Hall, algum essencialismo ás vezes é mercado), na sua produção e consumo, necessário. sendo imprescindível ressaltarmos que a O termo “Axé Music” foi cunhado em Bahia produz e consome as suas próprias 1987 por um jornalista do sul do país, músicas, além de exportá-las para todo o Hagamenon Brito, como forma pejorativa de país e para o exterior. Muitos foram os classificar a música que emergia em que apostaram que seria apenas mais um Salvador e se espalhava pelo mundo. Este modismo oriundo da Bahia, modismo ou rótulo também é negado por muitos artistas não, o megafenômeno baiano já se tornou baianos como Margareth Menezes e adulto completando 25 anos. O inegável é Carlinhos Brown, que o consideram que a “música baiana”, bem ou mal

Revista África e Africanidades - Ano 2 - n. 8, fev. 2010 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com Revista África e Africanidades - Ano 2 - n. 8, fev. 2010 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com recebida, trouxe visibilidade para a Bahia instrumental) para cantar. Estaria aí o no cenário nacional e internacional, marco zero da Axé Music? Alguns alcançando pico extraordinário de audiência acreditam que sim, mas uma grande e de vendagem de discos. maioria aponta a música “Fricote” como a música que inaugurou a Axé Music, A Axé-music não é considerada um composição de Luiz Caldas e Paulinho gênero ou um movimento musical, mas Camafeu, gravada por Caldas, que trazia uma etiqueta mercadológica usada para versos como “Nega do cabelo duro / que classificar uma vertente da música baiana não gosta de pentear //... Pega ela aí / que faz uso de uma fusão de ritmos como Pega ela aí... Criticada pelo Movimento caribenhos, africanos e “elétricos” numa Negro que atribuiu à música apologia ao roupagem pop-rock, para se constituir como racismo e incitação a violência sexual o invólucro do produto Bahia. É a contra mulheres negras. mestiçagem musical baiana que marca o diferencial desse estilo musical (Guerreiro, Moraes Moreira fazia parte do grupo 2000), assim como todo o contexto que , fortemente influenciados compõe esse megafenômeno, englobando pela Bossa Nova e pelo Tropicalismo, o vestuário, a gestualidade e as danças dos faziam a fusão de vários gêneros guetos negro-mestiços da cidade musicais como e rock, além de soteropolitana. tocarem o ijexá dos afoxés e o , aumentando a diversidade rítmica. É em meados dos anos oitenta que a Moraes Moreira compôs canções como música percussiva produzida pelos blocos Chame Gente, dentre outras, que afros, o samba-reggae e o ritmo ijexá dos colocaram o carnaval baiano no terreiros de candomblé são incorporados ao imaginário nacional. repertório das bandas de trio, através de letras que celebram o universo negro. Apesar de o termo Axé Music Saindo dos guetos soteropolitanos para aparecer somente no final da década de ocupar um lugar central no cenário musical 80, nada nos impede de pensarmos que a baiano, e, posteriormente, se constituir Axé Music tem as suas raízes fincadas no como um pólo criativo da música do Brasil. trio elétrico de Dodô e Osmar, junto com a Sintetizando, desta forma, o performance de Moraes Moreira cantando megafenômeno Axé seria uma mestiçagem em cima do trio, sofrendo influências e estética de frevo, fricote, galope, merengue transformações no decorrer dos seus e salsa com o samba-reggae, sem anos de existência. Já que é incontestável esquecer da pitada de ritmos oriundos da a correlação entre a “música baiana” e o religião do candomblé. O termo Axé é uma Carnaval, o qual se apresenta como uma saudação religiosa usada no candomblé e vitrine para os artistas e as novas músicas na umbanda, que significa energia positiva; a serem veiculadas. É durante o Carnaval espaço sagrado de tambores e ritmos. baiano que os novos hits e danças permanentemente inventadas são Certamente, a Axé Music não nasceu lançados local e nacionalmente. da noite para o dia, como qualquer outro estilo musical, o seu embrião está vinculado O ano de 1987 também pode ser tomado a Dodô e Osmar e seu “frevo eletrizado”, o como um marco para o meio musical chamado frevo baiano. Mais tarde, Moraes baiano, quando Luiz Caldas e Paulinho Moreira sobe num trio (que era apenas Camafeu fundem o frevo elétrico com o

Revista África e Africanidades - Ano 2 - n. 8, fev. 2010 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com Revista África e Africanidades - Ano 2 - n. 8, fev. 2010 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com ritmo ijexá na música “Fricote” (acima (1998), a grande efervescência da citada), o panorama da música baiana se produção musical baiana, apoiada transforma em Salvador através de uma fundamentalmente nos elementos da base rítmica da instrumentação eletrônica, conjugação musical afro-elétrico- a harmonia do teclado, baixo e guitarra, a carnavalesca e na sua rica dimensão batida percussiva e o ijexá, nasce a Axé multicultural, passa a existir uma Music tal qual conhecemos hoje. É complexa e extensa rede de produtores importante ressaltar que é também na de bens e serviços simbólico-culturais, década de 80 que surge em Salvador o que, inserida tanto no setor formal como estúdio WR do empresário Wesley Rangel. informal da economia, alimenta um Apesar de a maioria das músicas mercado praticamente permanente que produzidas nas décadas de 80 e 90 terem extrapola os limites da cidade e do seu sido comercializadas por gravadoras como ciclo de festas de verão “(p. 45). Polygram, Sony e Warner, o processo de criação dessas músicas se deu em Esse dinamismo do mercado Salvador, com músicos e compositores musical baiano chega a desafiar a saídos do próprio estúdio WR, que se hegemonia do eixo Rio-São Paulo, se formaram no próprio fazer, aprendendo a transformando no que vem se operar e dominar novas tecnologias de denominando “indústria do axé”. A cidade produção, com equipamentos de grande da Bahia, desde o final dos anos tecnologia. Diferente dos anos trinta e sessenta, se mantém no imaginário quarenta em que artistas como Dorival nacional como pólo de produção artística, Caymmi tiveram que migrar para o eixo Rio com o Cinema Novo, a Bossa Nova e a - São Paulo em busca de qualidade de Tropicália. Nos anos 80, sua visibilidade produção e divulgação dos seus trabalhos, se expande, apesar de muitos renegarem agora as “estrelas” da “música baiana” o megafenômeno Axé no Estado, através despontavam no cenário musical baiano e de músicas ruidosas atreladas a seriam projetados para o mundo, refletindo coreografia sensual que invade os olhos e a nova ordem do mercado fonográfico: as os ouvidos dos brasileiros, Sarajane e grandes gravadoras passaram a ser apenas Luiz Caldas ganham as paradas de grandes distribuidoras da produção local. sucesso e se tornam presenças constante na Discoteca do Chacrinha, daí em diante Com a Axé music a Bahia, através da o caminho se abre para a “exótica” sua produção e consumo, é o sexto lugar musica baiana através da World Music. no ranking de direitos autorais no Brasil, Depois que Daniela Mercury chega ao sustenta seu lucro e seu sucesso por meio Sudeste em meados dos anos noventa, de um trabalho eficiente que vai desde a com o show que a lança no cenário produção até a sua divulgação. nacional, O Canto da Cidade, essa indústria se consolida com o impulso da É inegável que a produção musical de mídia. O foco televisivo se volta para a Salvador é um dos pólos mais expressivos Bahia que canta e dança esse ritmo da cultura local, sendo também um dos contagiante, fortalecendo comercialmente principais difusores da imagem da Bahia, a indústria da Axé Music. A explosão veiculada nacional e internacionalmente, comercial dessa “música ruidosa” passou ocupando um lugar de destaque na mídia longe da unanimidade nacional e local. em geral, movimentando um importante Dorival Caymmi reprovou as suas mercado artístico. Para Paulo Miguez qualidades artísticas, Caetano Veloso as

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Esse fluxo de influências mas também ao internacional. Toda essa levanta debates polêmicos no universo movimentação que envolve produção das bandas/blocos afro, que chegam a musical (shows, discos, fms), etnicidades e questionar a “autenticidade” e/ou “não imagem vinculada à Bahia, consolidou o autenticidade” dessa parte corrompida do mercado destinado a Axé music. Para Goli afro-baiano. Segundo Stuart Hall, Guerreiro, ...existe sempre um preço de a ascensão da World Music cooptação a ser pago quando um enquanto tendência de consumo no lado cortante da diferença e da mercado fonográfico internacional transgressão perde o fio na implica uma mudança de posição espetacularização. Eu sei que o da música produzida na periferia do que substitui a invisibilidade é “Atlântico Negro”, que passa a uma espécie de visibilidade alimentar os mercados musicais cuidadosamente regulada e mais importantes do mundo como o segregada. (Hall, 2003) dos EUA, França e Inglaterra. Esse fluxo global,que coloca a música Um discurso que já está no mínimo negra em posição de destaque, superado em um mundo globalizado é repercute fortemente em Salvador, aquele que prega a “pureza” de um que a partir dos anos 90 deixa de gênero musical, assim, não cabe no ser um centro produtor de matéria contexto musical mestiço da Bahia a prima para ser um centro exportador falácia da existência de blocos afro de musicalidade afro. (Guerreiro, 2004) ligados às “verdadeiras” matrizes africanas, considerados autênticos, em No formato da Axé Music, as canções detrimentos de outros chamados de dos grupos negros compõem os álbuns das inautêntico. A fusão de influências bandas de trio e de cantoras solo como diversas permeia a todos afro ou não. Daniela Mercury e Ivete Sangalo, que chegam a vender milhões de discos, A cidade de Salvador, ao longo do enquanto os blocos afro ficam à margem tempo, vem atrelando à “cultura baiana” desse sucesso, sem falar que a projeção de como a sua principal mercadoria, política cantores negros para a carreira solo não adotada pelos governantes desde os têm obtido sucesso no decorrer desses 25 tempos da ditadura, que se especializou a anos de Axé. O que leva alguns grupos afro produzir narrativas que organizam a passarem por um processo de assimilação identidade da cidade da Bahia calcada da estética branca das bandas de trio, em valores étnicos da sua comunidade capturando um ritmo que mescla a batida negro-mestiça, a sua música é, pois, um percussiva do afro e os instrumentos dos principais elementos propagadores Revista África e Africanidades - Ano 2 - n. 8, fev. 2010 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com Revista África e Africanidades - Ano 2 - n. 8, fev. 2010 - ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com desse “produto Bahia”. É latente a usada e abusadas pela várias vertentes ostentação estetizada da afrodescendência, da Axé music. Neste sentido, ocorre uma especialmente no tangente a sensualidade polêmica acirrada entre uma vertente que e a festa. Poderíamos chamar a isso de considera a Axé Music como um meio de “espetacularização da identidade divulgar e enaltecer o povo e a cultura afrodescendente”. No repertório desse baiana, e uma outra vertente estilo musical percebe-se uma imbricação conservadora, que associa essa “música de elementos étnico, religioso, sensual e baiana” como banalização e vulgarização histórico na formação de uma fórmula dos mesmo. Polêmicas a parte, a Axé Music abriu Enfim, não seria novidade afirmar espaço e mercado para os artistas que as representações da Bahia e dos baianos, independente da qualificação baianos passam geralmente por códigos valorativa de “boa” ou “má” qualidade, pois musicais. O Candomblé de “seita” é sabido que há popular muito bom e religiosa estigmatizada passa a ser vista erudito muito ruim, assim como o contrário. como a segunda religião oficial do Estado, Em particular nas últimas décadas, apontando para a importância da músicos baianos, a música produzida na linguagem musical nos processos Bahia e, generalizadamente, o repertório religiosos e a presença intensa da de imagens associadas à música e à dimensão religiosa nas práticas musicais. cultura afro-baiana têm tido um papel Pode-se dizer que, ainda que alguém veja central na produção musical brasileira, na o megafenômeno da Axé Music como auto-imagem nacional promovida por produção menor do cenário da cultura diferentes agentes e até na imagem baiana, a questão em pauta é o seu relevo pública do Brasil no exterior. na difusão da negritude baiana, apesar de ser lida por muitos como negativa, na Esta identidade se relaciona tanto pauta, sempre recorrente das canções com um aumento de curiosidade para com está o drama da afrodescendência numa a diversidade cultural da Bahia para com retomada notável da auto-estima da novos ritmos e danças quanto com o população negro-mestiça de Salvador. desejo de cidadania e consumo de uma nova geração de jovens negro-mestiços (Sansone 1992 e 1993).

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PEREIRA, Ianá Souza. Axé-axé: o megafenômeno baiano. Revista África e Africanidades, , ano 2, n. 8, fev. 2010. Disponível em: . Acesso em: 30 jan. 2010.

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REFERÊNCIAS

HALL, Stuart. “Que “negro” é esse na cultura negra?”. In: SOVIK, Liv (Org.). Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Humanitas, 2003.

GUERREIRO, Goli. A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador. São Paulo: Ed. 34, 2000.

MOURA, Milton Araújo. Carnaval e baianidade: arestas e curvas na coreografia de identidades do carnaval de Salvador. Originalmente apresentada como tese de doutorado, Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, 2001.

OLIVEIRA, Paulo César Miguez de. Carnaval baiano: as tramas da alegria e a teia de negócios. Dissertação de mestrado. Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 1996.

CARNAXÉ. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2006.

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