UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA NÍVEL MESTRADO

Thiago Santini Breda

Jogadores Trabalhadores: o processo de profissionalização do futebol (Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul (1931 – 1938)

Florianópolis 2020 Thiago Santini Breda

Jogadores Trabalhadores: o processo de profissionalização do futebol (Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul (1931 – 1938)

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em História Orientador: Prof. Dr. Márcio Roberto Voigt

Florianópolis 2020

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Breda, Thiago Santini Breda

JOGADORES TRABALHADORES: O PROCESSO DE PROFISSIONALIZAÇÃO DO FUTEBOL (ARGENTINA, URUGUAI E RIO GRANDE DO SUL 1931 – 1938) / Thiago Santini Breda Breda ; orientador, Márcio Roberto Voigt , 2020. 115 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2020.

Inclui referências.

1. História. 2. Profissionalização do futebol. 3. História. 4. América Latina. I. , Márcio Roberto Voigt. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós Graduação em História. III. Título.

3 Thiago Santini Breda

Jogadores Trabalhadores: o processo de profissionalização do futebol (Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul 1931 -1938)

O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof. Márcio Roberto Voigt, Dr. Universidade Federal de Santa Catarina PPGH/UFSC

Prof. Adriano Luiz Duarte, Dr. Universidade Federal de Santa Catarina UFSC

Prof. Reinaldo Lindolfo Lohn, Dr. Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de mestre em mestre em História.

______Prof. Lucas de Melo Reis Bueno, Dr. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História

______Prof. Márcio Roberto Voigt, Dr. Orientador

Florianópolis, 2020

4 AGRADECIMENTOS

A conclusão dessa dissertação somente foi possível graças ao apoio de diversas pessoas que participaram de diferentes maneiras da minha trajetória durante esses três anos desde o início do mestrado. Difícil resumir, de maneira justa e satisfatória, todos os agradecimentos em poucas linhas, tamanho foi o apoio, conselhos e conversas fundamentais para o sucesso dessa empreitada. Primeiramente gostaria de agradecer as instituições. A UFSC, universidade pública e de qualidade, financiada pelos milhões de trabalhadores e trabalhadoras brasileiros, que ofereceu toda a infraestrutura necessária para a realização do mestrado. Estendo o agradecimento ao PPGH, seus professores, professoras e servidores. Agradeço especialmente a figura do meu orientador Márcio Voigt que sempre se fez presente, acompanhando e orientando a dissertação com muita atenção, paciência e profissionalismo. Agradeço também ao professor o modo humano como me tratou durante todos os anos de dissertação, sensível às diversas dificuldades que atravessei no período de escrita. Agradeço igualmente a professora Beatriz Gallotti Mamigonian, coordenadora do PPGH que foi extremamente paciente e compreensível com as minhas dificuldades. Agradeço ao professor Adriano Luiz Duarte, orientador do TCC da graduação, que sempre foi um grande incentivador da minha temática de pesquisa. Aos professores da linha de pesquisa Sociedade, Política e Cultura no Mundo Contemporâneo, pelas aulas ministradas, pelos debates em sala, pelas indicações bibliográficas. Agradeço imensamente a minha família, meu porto seguro e meus maiores apoiadores. A minha esposa Jéssica, agradeço pelo carinho, paciência, apoio e companheirismo durante todo esse conturbado período. Certamente sairemos maiores de tudo isso, te amo. Agradeço aos meus pais, Maria Clara Santini, minha mãe, mulher que sempre me incentivou e apoiou em todas as decisões, me amando incondicionalmente. Além de uma mãe maravilhosa, você é uma amiga maravilhosa Te amo mãe. Ao meu pai, Antonio Carlos Breda, homem trabalhador e de grande caráter, que é meu espelho. Além de todo amor que ele sempre demonstrou por mim, devo ao meu pai o amor pelo futebol, em especial pela nossa SER Caxias. Te amo pai. Ao meu primo Felipe, outro apaixonado pelo futebol na família, e o meu irmão do coração. Minha tia Débora, que nutriu a paixão pela História.

5 Aos meus sogros, Sirlei e Márcio bem como minhas cunhadas Giovana e Gabriela e meu cunhado Guilherme. Agradeço por todo o apoio. Aos meus amigos do peito que sempre me apoiaram e me ajudaram. Oliveira, Carrinho, Lua, Buca, Duwe e Bruno entre outros. Obrigado demais pessoal! Aos meus colegas do mestrado pelo convívio e debates, o meu agradecimento. Aos diversos colegas professores que sofrem constantemente com ataques contra a educação pública. Por fim agradeço a pessoa mais importante do mundo, a minha pequena Helena, minha filha amada que chegou ao mundo um dia depois de iniciar o mestrado. Você é a luz da minha vida! Essa dissertação, assim como tudo que eu fizer na vida é para ti. Te amo demais.

6 RESUMO

Essa dissertação tem o objetivo de analisar o processo de profissionalização do futebol no sul da América do Sul, mais precisamente na Argentina, Uruguai e no estado brasileiro do Rio Grande do Sul. A região estudada possui características culturais, políticas e econômicas semelhantes além de um forte intercâmbio. Usando como fonte os jornais de maior circulação desses locais, buscamos estabelecer comparações, diferenças e semelhanças entre os diferentes processos que culminaram com a abolição do regime amador. O período analisado vai de 1925 a 1938, anos que registraram a definitiva popularização do futebol e um amplo debate para combater o amadorismo marrom e a implementação do profissionalismo.

Palavras-chaves: Profissionalização do futebol, história, América Latina,

7 ABSTRACT

This dissertation aims to analyze the professionalization process of soccer in southern South America, more precisely in Argentina, Uruguay and in the Brazilian state of Rio Grande do Sul. The studied region has similar cultural, political and economic characteristics in addition to a strong exchange. Using the most widely circulated newspapers in these places as a source, we seek to establish comparisons, differences and similarities between the different processes that culminated in the abolition of the amateur regime. The period analyzed goes from 1925 to 1938, years that registered the definitive popularization of football and a wide debate to combat brown amateurism and the implementation of professionalism.

Keywords: Professionalization of football, history, Latin America

8 SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 10 CAPÍTULO I: O FUTEBOL CHEGA AO SUL DA AMÉRICA DO SUL ...... 22 1.1 ARGENTINA: A CHEGADA DO FUTEBOL NA PERIFERIA DO CAPITALISMO ...... 22 1.1.1 A imigração inglesa e a chegada do futebol na Argentina ...... 24 1.1.2 O espetáculo: a popularização do futebol na Argentina ...... 26 1.2 URUGUAI: FUTEBOL E POLÍTICA NO INÍCIO DO SÉCULO XX ...... 31 1.2.1 Política Uruguaia: breves apontamentos ...... 32 1.2.2 O futebol no Uruguai ...... 35 1.3 O RIO GRANDE DO SUL: ENTRE O BRASIL TROPICAL E OS PAMPAS PLATINOS ...... 38 1.3.1 “Milonga de Tres Banderas”: o Rio Grande do Sul e suas relações com o Prata ...... 39 1.3.2 O Advento e Difusão do Futebol no Rio Grande do Su ...... 41 1.3.3 Pelotas: a primeira capital do futebol gaúcho ...... 43 1.3.4 Porto Alegre e a conquista do futebol ...... 45 CAPÍTULO 2: FUTEBOL E IMPRENSA...... 49 2.1 SURGIMENTO DA IMPRENSA ESPECIALIZADA ...... 50 2.1.1 “Tu bandera azul y oro, en Europa tremoló!”: o giro europeu do Boca Juniors ...... 58 2.2: URUGUAI: GLORIOSA CELESTE OLÍMPICA: O PAPEL DO ESTADO E DA IMPRENSA NA POPULARIZAÇÃO DO FUTEBOL ...... 62 2.3: BRASIL ...... 67 2.3.1 O futebol, sua popularização e a imprensa gaúcha ...... 68 CAPÍTULO 3: CHEGA O PROFISSIONALISMO AOS PAMPAS ...... 75 3.1 SER JOGADOR DE FUTEBOL: STATUS/PRIVILÉGIO X SONHO/OPORTUNIDADE ...... 76 3.2 A FUGA DE JOGADORES PARA A EUROPA ...... 78 3.3 ARGENTINA 1931: A GREVE QUE GEROU O PRIMEIRO CAMPEONATO PROFISSIONAL DA AMÉRICA ...... 82 3.4 URUGUAI 1932: OS CAMPEÕES DO MUNDO TORNAM-SE PROFISSIONAIS...... 96 3.5 RIO GRANDE DO SUL 1937: O CONFLITO ENTRE CEBEDENSE E ESPECIALIZADAS ...... 98 3.6 PROFISSIONALIZAR OU NÃO PROFISSIONALIZAR? EIS A QUESTÃO: “CORREIO DO POVO” E “A FEDERAÇÃO” NO FINAL DO AMADORISMO DO FUTEBOL GAÚCHO ...... 102 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 111

9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 112

10 INTRODUÇÃO

O processo de profissionalização do futebol e sua consolidação na região platina (Argentina, Uruguai e o estado brasileiro do Rio Grande do Sul) são os objetos deste trabalho. O esporte de origem britânica que era, no início do século XX, apenas mais uma novidade fruto da modernidade, transformou-se rapidamente na prática esportiva mais popular da América do Sul, principalmente na região supracitada. Já na década de 1920 o futebol era um evento que atraía grandes multidões para estádios que cresciam em números impressionantes (tanto em quantidade como em tamanho), era tema principal de jornais e revistas, bem como assunto preferido nas mesas de bar entre um gole e outro. Esse cenário segue um amplo processo de consolidação que dura até os dias atuais. O objetivo principal do presente trabalho é o de entender através do amplo debate que a recém-criada imprensa esportiva travava, como o processo de profissionalização do futebol, iniciado na década de 1920 e concretizado na década de 1930, contribuiu para a popularização do futebol (ou foi um produto dela) na região estudada. O foco central dessa análise será o protagonismo dos jogadores nesse contexto. Esses atletas não foram sujeitos passivos nessa transformação, pelo contrário suas reinvindicações e estratégias foram parte ativa desse processo. Popularizado e cada vez mais comercializado, o futebol passou a ser uma chance de ascensão social para milhares de jovens advindos das camadas mais pobres da população. O sonho de dar uma vida melhor à sua família povoa até os dias atuais o pensamento da ampla maioria dos garotos que tentam a sorte com as chuteiras. A popularização do futebol é o nascedouro dessa esperança e a sua profissionalização foi a concretização de sua (ainda que muito difícil) realização. Nesse sentido, dois conceitos são referenciais fundamentais para a elaboração deste trabalho: classe e experiência. O historiador britânico Edward Palmer Thompson certamente foi um dos mais importantes intelectuais do século XX, questionando paradigmas anteriormente cimentados da tradição marxista, influenciando de maneira significativa não somente a História, mas todas as áreas das Ciências Humanas. Sua mais famosa obra, A Formação da Classe Operária Inglesa1, escrita no ano de 1963, sete anos após sua saída do Partido Comunista inglês, aborda de maneira singular os conceitos

1 THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. São Paulo. Paz & Terra, 2011

11 anteriormente citados. Como adverte, em uma nota de rodapé, a tradutora da obra para o português, Denise Bottmann, o título original do livro (The Making of the English Working Class) carrega um sentido mais amplo ao verbo “to make” no seu gerúndio “making”2. A palavra “formação”, presente no título em português remete a algo que foi constituído externamente, algo estático, quando na realidade a intenção do autor estaria mais adequada com a tradução “fazer-se”, pois para Thompson, a classe trabalhadora é um sujeito ativo e em movimento nesse processo. Thompson ressalta com isso que a classe para ele é um fenômeno histórico (que a ocorrência pode ser demonstradada) se opondo radicalmente a noções da tradição do que ficou conhecido como “marxismo ortodoxo” que pontuava classe meramente como uma categoria ou um efeito mecânico do processo de industrialização no capitalismo. A classe acontece quando alguns homens como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas) sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus3.

Seguindo essa conceptualização, como citado anteriormente, o advento do profissionalismo no futebol foi a possibilidade de formalização de uma nova classe de trabalhadores, os jogadores de futebol. Esses trabalhadores partilham de experiências e interesses comuns, que moldaram suas ações e reinvindicações, sendo sujeitos ativos na luta por direitos e reconhecimento. Tratá-los como parte morta desse processo, que mudou o rumo de suas vidas, não é o objetivo dessa dissertação. Parto do pressuposto, de que a conquista da profissionalização é advinda da luta desses trabalhadores e da articulação de seus interesses através da sua consciência de classe. Acredito que o sentido que Thompson atribuiu ao conceito de classe é o mais adequado para tentar entender a participação dos jogadores nessa temática. A experiência é para Thompson o lugar de formação da classe e da consciência de classe. A luta dos jogadores pelo fim do amadorismo e o reconhecimento profissional é também a luta contra a sua exploração. Essa exploração trás para esses homens uma nova consciência, novos interesses forjados nas suas experiências. Pela experiência os homens se tornam sujeitos, experimentam situações e relações produtivas como necessidades e interesses, como

2 BOTTMAN, Denise. Prefácio In: THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. São Paulo. Paz & Terra, 2011. p. 4. 3 THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. São Paulo. Paz & Terra, 2011. p 10.

12 antagonismos. Eles tratam essa experiência em sua consciência e cultura e não apenas a introjetam. Ela não tem um caráter só acumulativo. Ela é fundamentalmente qualitativa.4.

A experiência vivida pelo coletivo pode ser, portanto algo emancipador quando os trabalhadores, no caso os jogadores, constroem objetivos comuns e lutam por ele. Com esses apontamentos, esses dois conceitos de Thompson são de fundamental importância para a realização desse trabalho.

A historiografia do futebol

- Por que escreveu um livro sobre futebol? - Porque o futebol é o espelho do mundo e em meus livros eu me ocupo da realidade. A realidade é uma senhora muito louca, que fala de dia e de noite também; em suas horas de vigília e enquanto dorme ou se faz de adormecida; nas horas do sonho e do pesadelo. Eu sou um ouvinte das suas vozes: quero escutar o que ela conta para contar para os outros. Por isso me interessa a realidade que foi, a que é e a que será. E o futebol é uma parte fundamental da realidade, sempre achei muito indignante que a história oficial ignorasse essa parte da memória coletiva que é o futebol em países como os nossos. Os livros de história do século XX nunca mencionam o futebol, jamais, não existe; e foi fundamental para as pessoas de carne e osso. Como que não existe?5

Eduardo Galeano é um dos escritores latino-americanos, mais influentes do século XX. Sempre tive grande admiração pelas suas obras, escritas com paixão e sempre preocupadas em defender um mundo menos desigual e mais humano. Galeano era um escritor multifacetado, jornalista de redação, poeta, cronista, historiador entre outras habilidades. Ao final da minha graduação em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), fui apresentado ao livro Futebol ao Sol e a Sombra6, no qual Galeano expõe mais uma das suas grandes paixões: o futebol. Eu também compartilho dessa paixão e, assim como o escritor uruguaio, nunca aceitei frases prontas que simplificam ou rebaixam esse fenômeno popular que é o futebol. “O ópio do povo”, “apenas um bando de homens correndo atrás de uma bola”, “enquanto você grita gol, eles te roubam”, “futebol e política não se misturam” etc.

4 VENDRAMINI, Célia Regina. Experiência e coletividade em E.P.Thompson. p 132. In: MÜLLER, Ricardo Gaspar(org); DUARTE, Adriano Luiz (org). E.P.Thompson: política e paixão. Chapecó, Argos. 2012. 5 GALEANO, Eduardo. O futebol é o espelho do mundo (Entrevista concedida a El Gráfico em 1995) In: GALEANO, Eduardo. Fechado por motivo de futebol. Porto Alegre, L&PM. 2018. p. 119. 6 GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Porto Alegre, L&PM. 2010.

13 O futebol sempre foi visto com desconfiança pela intelectualidade. Considerado um objeto de estudo não digno, poderia ser visto como uma forma de cegar as massas, ou como uma prática extremamente popular. Era facilmente odiado tanto pela direita quanto pela esquerda. O esporte criado na Inglaterra e recriado em terras latino-americanas sempre foi um dos assuntos principais das mesas de bar, entre um gole e outro de cerveja, no ambiente de trabalho ou junto à família, mas era simplesmente marginalizado pela academia, com algumas raras exceções. Felizmente esse cenário começou a mudar, principalmente durante a década de 1980, e hoje o futebol é um objeto de estudo em expansão nas ciências humanas. Aqui pretendo fazer uma breve análise dessa transformação através de um levantamento bibliográfico que foi decisivo para a execução desse trabalho. Esse trabalho tem o objetivo de analisar o processo de profissionalização do futebol em três locais distintos (Uruguai, Argentina e Brasil/RS). Nesse sentido, foi preciso pesquisar produções acerca do futebol nesses distintos cenários, selecionando textos que trabalhassem com os contextos locais, por um lado e textos que abordassem temas mais globais ou regionais por outro. Uma das principais características da produção bibliográfica do futebol é a interdisciplinaridade. Utilizei nesse trabalho textos de jornalistas, historiadores, geógrafos, sociólogos, antropólogos e profissionais da educação física. Em um contexto mais global, destaca-se a obra do sociólogo escocês Richard Giulianotti com seu livro Sociologia do Futebol7, no qual o autor faz um amplo trabalho com o que ele pontua como “dimensões sociais e históricas do futebol”. O livro trata do futebol através de vários olhares (gênero, raça, política, economia etc.). O seu recorte temporal é amplo, desde a criação do futebol até os dias atuais, e por isso é uma excelente obra introdutória para quem deseja iniciar estudos nessa área. No contexto brasileiro, as obras de Hilário Franco Júnior e Leonardo Pereira têm um amplo destaque. Hilário Franco Júnior é certamente um dos mais importantes intelectuais que estudam o futebol no Brasil. Juntamente com seu colega Flávio Campos, criou, em 2010, na Universidade de São Paulo (USP), o Ludens (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas do Futebol e Modalidades lúdicas), principal centro de estudos do futebol no país. No ano de 2007 publicou a sua obra A Dança dos Deuses: futebol, sociedade e

7 GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do Futebol: dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.

14 cultura8. Importante referencial teórico para os historiadores do futebol, onde o esporte é tratado como um fenômeno social total. O livro divide-se em duas grandes partes. A primeira intitulada “Micro história do Mundo Contemporâneo” utiliza do futebol como personagem central de uma história do século XX. Fazendo paralelos entre os contextos mundiais e nacionais, o autor vai mostrando uma história do futebol relacionando-o com os acontecimentos marcantes, organizados de maneira cronológica, do século XX. É, portanto mais um exemplo de uma obra com um amplo espaço temporal e geográfico. Na segunda parte do livro, intitulada “Metáfora do Mundo Contemporâneo” Hilário muda de objetivo. Se antes lhe interessavam os fatos e a cronologia, agora lhe interessa a simbologia do futebol e suas metáforas. Com uma grande erudição, o autor analisa o futebol através de seus aspectos linguísticos, religiosos, sociológicos e antropológicos. Leonardo Pereira é outro importante referencial brasileiro da historiografia do futebol. Com uma perspectiva diferente em relação a Franco Júnior, Pereira escreve em 2000 a mais importante obra de História Social tendo o futebol como objeto de estudo. Com o título de Footballmania9, o autor constrói através de um amplo e diversificado acervo documental (processos crimes, jornais, relatórios de clubes, empresas e entidades) uma História Social do futebol na cidade do . Com um recorte temporal bem delimitado (1900 – 1938), o autor trabalha com os anos de chegada, consolidação, popularização e profissionalização do futebol na cidade. Analisa a passagem do esporte praticado exclusivamente por uma elite até a sua consolidação como paixão dos setores populares e suburbanos. O futebol operário, o profissionalismo marrom, bem como debates de raça e classe são trabalhados nessa magistral obra. A ampla cobertura futebolística do jornalismo esportivo nos dias atuais é algo facilmente perceptível. Entretanto, o destaque do futebol nas páginas dos jornais foi algo construído e possibilitado graças à sua popularização. Como as fontes majoritárias deste trabalho são periódicos e revistas, uma bibliografia acerca do desenvolvimento do jornalismo esportivo é extremamente relevante. Nesse sentido destacam-se as obras Jornalismo Esportivo10, do jornalista Paulo Vinicius Coelho, e Os donos do espetáculo11, de autoria do também jornalista André Ribeiro. Com enfoque amplo, os autores elucidam

8 FRANCO JR. Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo. Companhia das Letras, 2007. 9 PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902 – 1938). Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2000. 10 COELHO, Paulo Vinícius. Jornalismo Esportivo. Sao Paulo, Contexto. 2003. 11 RIBEIRO, André. Os donos do espetáculo: histórias da imprensa esportiva do Brasil. Sao Paulo, Editora Terceiro Nome, 2007.

15 como o jornalismo esportivo especializado em futebol surgiu no Brasil, tendo seu nascedouro nas décadas de 1920 e 1930. Esta dissertação tem como objetivo analisar o estado do Rio Grande do Sul e sua relação com a região do Prata no processo de profissionalização do futebol. Para entender seu contexto, duas importantes obras tiveram destaque. O texto intitulado A bola nas redes e o enredo do lugar12, do geografo Gilmar Mascarenhas, é certamente a mais importante produção a respeito do futebol na região sul da América do Sul. A obra buscou analisar a difusão do futebol na região do Prata sob a perspectiva de redes territoriais. O autor investiga a chegada do futebol no Rio Grande do Sul, constatando a ampla influencia econômica, política e social de países como Uruguai e Argentina na sua difusão. Nesse sentido, o trabalho é inovador, pois revela que o futebol se organizou e constituiu de maneira distinta no Rio Grande do Sul se comparado aos paradigmas já consolidados dos grandes centros urbanos brasileiros que eram São Paulo e Rio de Janeiro. Dessa forma, Mascarenhas identifica o Rio Grande do Sul como um centro irradiador do futebol diferente do sudeste brasileiro, o que desmitifica as versões oficiais de Charles Miller e Oscar Cox13 como os “pais do futebol brasileiro”. Outro texto de fundamental importância para entender o contexto gaúcho foi a dissertação de mestrado de Miguel Enrique de Almeida Stédile, defendida no ano de 2011 no Programa de Pós-graduação em História da UFRGS. Intitulada Da Fábrica à Várzea14, o texto trabalha com os clubes de futebol operário na cidade de Porto Alegre durante as primeiras décadas do século XX. Apesar do enfoque nos clubes operários, o autor analisa de maneira muito inteligente o contexto de chegada do futebol na capital do estado do Rio Grande do Sul. No contexto historiográfico argentino o autor Julio Frydenberg tem grande destaque. Professor de História da Universidad Nacional San Martin (UNSAM),

12 MASCARENHAS, Gilmar. A bola nas redes e o enredo do lugar: uma geografia do futebol e de seu advento no Rio Grande do Sul. Sao Paulo: USP (tese de doutorado), 2002. 13 Charles Miller e Oscar Cox são considerados por uma historiografia mais tradicional do futebol brasileiro como os “fundadores” do esporte no Brasil. Tal interpretação personalista da história do futebol brasileiro é criticada pelas produções mais recentes. Charles Miller (1874 – 1953), paulista filho de pai escocês, concluiu seus estudos na Inglaterra no final do século XIX. Retornando ao Brasil, na cidade de São Paulo no ano de 1894, trouxe para o Brasil o livro de regras do futebol e materiais como bola, bomba e uniformes. Oscar Cox (1880 – 1931) é considerado o difusor do futebol no outro grande centro brasileiro, o Rio de Janeiro. Filho de inglês, Cox estudou na Suíça e ao retornar ao Brasil no ano de 1897 trouxe materiais para a prática do futebol. Em 1901 retorna em definitivo de Londres e foi um dos fundadores, no ano seguinte, do Fluminense Football Club. 14 STÉDILE, Miguel. Da Fábrica à Várzea: clubes de futebol operário em Porto Alegre. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado UFRGS, 2011.

16 Frydenberg dedicou a sua carreira acadêmica a temática do futebol. Sua obra é vasta, com um amplo corpo documental e muito utilizada nessa dissertação, destacando-se a sua tese de doutorado intitulada História Social del Futbol15 que procura analisar a chegada e popularização do futebol na Argentina até a sua definitiva profissionalização no ano de 1931. O autor analisa como, em três décadas, o futebol deixou de ser um modismo estrangeiro restrito à elite britânica, para se tornar um dos mais fortes símbolos de identidade nacional da Argentina. A respeito do jornalismo esportivo na Argentina, destaca-se o texto da professora de Letras da Universidad de Buenos Aires (UBA), Sylvia Saittá, intitulada Fútbol y prensa en los anos viente16, que investiga o protagonismo do diário Crítica e posteriormente da revista El Gráfico no jornalismo especializado em futebol. Ambos periódicos são fontes dessa dissertação e pioneiros na cobertura dos eventos futebolísticos. É nesse contexto que surge a reportagem diretamente do gramado, a opinião diária e semanal de jornalistas especializados em futebol, a cobertura de campeonatos bem como apelidos17 e mascotes para os clubes de futebol. Para tratar da temática uruguaia, destaca-se a obra do jornalista e escritor Franklin Morales. Estudioso do futebol no país oriental, Morales tem uma variedade de temáticas, desde bibliografias de jogadores famosos como Obdúlio Varela até contos e crônicas. Seu texto mais famoso, intitulado Fútbol: mito y realidad18, faz uma análise da situação do futebol uruguaio no período amador, contextualizando o cenário que permitiu a chegada da profissionalização. A obra cita uma série de dados e fontes imprescindíveis para a compreensão do futebol no Uruguai durante as décadas de 1920 e 1930. O historiador Rodolfo Porrini analisa o futebol operário em Montevidéu durante as primeiras décadas do século XX e como os Partidos, Sindicatos e Movimentos Sociais de esquerda, tratavam o esporte com seu texto Izquierda uruguaya y cultura obrera. Propuesta al ‘aire libre’: el caso del fútbol (Montevideo, 1920 – 1950)19. A principal contribuição do texto é questionar o mito do “ópio do povo”, muito presente nas Ciências

15 FRYDENBERG, Julio. História Social del Fútbol: del amateurismo a la profesionalización. Buenos Aires. SigloVeintiuno Editores, 2013. 16 SAITTA, Sylvia. Fútbol y prensa en los anos veinte: Natalio Botana, presidente de la Asociación Argentina de Football (febrero - agosto de 1926). Buenos Aires. Efdeporte Revista Digital, ano 8, n. 50. 2002. 17 O Gimnasia y Esgrima de La Plata passou a ser chamado como “El Expreso”, seu rival, Estudiantes de La Plata ficou conhecido como “Los Profesores”. O River se tornou “La Maquina” e o Independiente de Avellaneda como “Los Diablos”, entre outros apelidos. 18 MORALES, Franklin. Futbol: mito y realidad. Montevidéu. Nuestra Tierra 22, 1969. 19 PORRINI, Rodolfo. Izquierda uruguaya y cultura obrera. Propuesta al ‘aire libre’: el caso del fútbol (Montevideo, 1920 – 1950). Maringá. Diálogos v. 16, n.1, 2012.

17 Humanas, principalmente durante a década de 1970, que acreditava que o futebol era simplesmente um meio da elite “cegar” a classe trabalhadora, enquanto esta era explorada.

Recorte temporal

O espaço temporal desse trabalho está concentrado entre 1925 e 1939. Justifica-se esse período pelo fato de que é durante a década de 1930 que ocorre a profissionalização do futebol na região trabalhada, sendo que tal processo teve início em meados da década de 1920. Em 1931 a Argentina torna-se o primeiro país a profissionalizar o futebol na América do Sul, fruto de uma greve de jogadores que abalou o cenário futebolístico local e acabou com o regime amador, influenciando de maneira decisiva seus vizinhos Brasil e Uruguai. Entretanto, para se compreender o debate da profissionalização do futebol na região, é fundamental retomar as discussões a respeito do futebol e a defesa (ou não) de sua profissionalização na imprensa durante a década de 1920. Esse período é marcado pela ampla popularização do futebol, com a construção de estádios, consolidação dos clubes e campeonatos e criação de uma imprensa especializada, com maior destaque nos periódicos e revistas. A década de 1930 é marcada também pela efervescência política, com golpes de estado ocorrendo em todo o continente e com a luta dos trabalhadores por melhores condições de vida e trabalho. É época de conquistas laborais, de repressão do Estado, de luta por direitos. O futebol certamente não é um elemento alheio a essas transformações.

Fontes

O historiador que trabalha com o futebol como objeto de pesquisa tem na imprensa a sua mais abundante e preservada fonte para análise. Os clubes de futebol, bem como as federações e associações que regem o esporte, são entidades privadas, nas quais o acesso aos arquivos é dificultado (ou pela não existência de um arquivo, ou pelo péssimo estado de conservação, ou pela não autorização dessas instituições). É evidente que desejaríamos ter um repertório maior de fontes, mas todos os impedimentos citados limitaram esse trabalho a utilizar fontes impressas. Esse tipo de fonte foi durante muito tempo desprezado por boa parte dos

18 historiadores, pois eram consideradas “pouco confiáveis” como pontua a historiadora Tania de Lucca: Não se pode desprezar o peso de certa tradição, dominante durante o século XIX e as décadas iniciais do XX, associada ao ideal de busca da verdade dos fatos, que se julgava atingível por intermédio dos documentos, cuja natureza estava longe de ser irrelevante. Para trazer à luz o acontecido, o historiador, livre de qualquer envolvimento com seu objeto de estudo e senhor de métodos de crítica textual precisa, deveria valer-se de fontes marcadas pela objetividade, neutralidade, fidedignidade, credibilidade, além de suficientemente distanciadas de seu próprio tempo. Estabeleceu-se uma hierarquia qualitativa dos documentos para a qual o especialista deveria estar atento. Nesse contexto, os jornais pareciam pouco adequados para a recuperação do passado, uma vez que essas "enciclopédias do cotidiano" continham registros fragmentários do presente, realizados sob o influxo de interesses, compromissos e paixões. Em vez permitirem captar o ocorrido, dele forneciam imagens parciais, distorcidas e subjetivas.20

Indubitavelmente, as fontes impressas devem ser problematizadas, assim como qualquer fonte. Os jornais, revistas e jornalistas que escrevem têm uma intencionalidade, e neste trabalho não se toma como verossímil a imparcialidade da imprensa. Tendo isso estabelecido, a imprensa de circulação em massa é uma rica fonte, pois era a leitura desse material produzido que mais repercutia entre a população na década de 1930, que, devido ao crescente interesse pelo futebol, consumia as revistas especializadas e os cadernos esportivos dos jornais de grande circulação. Outro motivo para analisar essas fontes é a sua disponibilidade. A Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional dispõe de um amplo acervo digitalizado, que facilita bastante o trabalho do historiador. Nessa plataforma digital encontra-se o jornal de maior circulação no Rio Grande do Sul durante as décadas pesquisadas nessa dissertação. O periódico A Federação, vinculado ao Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), fazia ampla cobertura esportiva durante as décadas de 1920 e 1930. O outro periódico gaúcho analisado é o Correio do Povo. Tal publicação não se encontra digitalizada, porém é de fácil acesso no Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho. O acervo do arquivo encontra-se em bom estado de conservação e aberto para pesquisa. A Biblioteca Nacional Mariano Moreno em Buenos Aires, possui uma das maiores hemerotecas da América Latina, com um vasto acervo documental. Nesse local

20 LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. p. 112. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.) Fontes Históricas. Sao Paulo: Contexto, 2008.

19 estão disponíveis as fontes argentinas e uruguaias desse trabalho. O periódico argentino de maior circulação no país, o jornal Crítica e a revista El Gráfico, primeira revista esportiva da América Latina. Além disso, os jornais uruguaios El Dia e El País encontram-se completos, evitando assim um deslocamento para Montevidéu.

Organização dos capítulos

Este trabalho está organizado em três capítulos. No primeiro, busco fazer uma contextualização com o objetivo de melhor esclarecer para o leitor o cenário político, social e econômico nas regiões analisadas. Tal esforço é importante para termos uma melhor compreensão de como o futebol, um esporte elitista, considerado por muitos - como, por exemplo, Lima Barreto – um modismo estrangeiro passageiro, torna-se, disparadamente, o esporte mais democrático e popular, capaz de arrastar multidões para os gramados. Esse processo certamente não foi natural e só foi possível graças a uma série de conjunturas que busco tratar no capítulo inicial. Analisando separadamente cada contexto local – Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul – destacando as suas especificidades e semelhanças, procuro demonstrar como a região do Prata foi, em larga escala, influenciada pela força e domínio do capital britânico durante o final do século XIX e início do XX, o que possibilitou a inserção e difusão rápida, como em nenhum outro lugar do planeta, do futebol. Procuro identificar a origem elitista e aristocrática do futebol em seus anos iniciais e a sua popularização e massificação, principalmente a partir da década de 1920, com a expansão dos campeonatos, construção de estádios e o crescente jornalismo esportivo. É nesse período que o futebol “vira notícia”, deixa de ser assunto de rodinhas de burgueses ingleses para invadir os bairros periféricos e ganhar a paixão e devoção das massas de trabalhadores. O segundo capítulo entrará definitivamente na análise de fontes. Evidenciando os principais embates que ocorriam no meio futebolístico, analisa-se a questão do “amadorismo marrom”, nome pelo qual ficou conhecida a prática de remunerar atletas durante o período do amadorismo. Tal prática é um fruto da popularização do futebol e de sua comercialização. O aumento do interesse do público, o surgimento de massas de torcedores, da imprensa, de patrocinadores e de premiações foi decisivo para o crescimento da competitividade. Com isso formas de burlar o amadorismo para determinado clube ter a sua disposição os melhores jogadores e ganhar títulos foram

20 tornando-se comuns. O amadorismo marrom foi motivo de amplos debates na imprensa e opinião pública da época. Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul compartilhavam dessa questão. Tal questão foi tema central para a discussão da adoção do profissionalismo durante toda a década de 1920. O capítulo busca nas diferentes fontes consultadas trazer a tona essa discussão primordial para entender o capítulo seguinte que buscará compreender o processo de profissionalização. O capítulo três tem como objetivo analisar o processo de profissionalização na região trabalhada. A Argentina foi o primeiro país da América do Sul a adotar o profissionalismo, decorrente da primeira “greve de jogadores” que se tem notícia no futebol, no ano de 1931. O futebol estava cada vez mais internacionalizado, muitos times argentinos fizeram durante toda década de 1920, giros por países europeus para disputar partidas amistosas. O mais famoso giro, foi a do Boca Juniors em 1925, que popularizou o clube, tornando-o o principal do país. Influenciada pela profissionalização do futebol em países europeus, como a Espanha (1928) e a Itália (1926), as equipes sul-americanas começaram a sofrer com o “messianismo futebolístico”, termo que ficou conhecido a grande fuga de atletas para os países europeus. Muitos craques da época migraram para a Europa para profissionalizarem-se definitivamente. Tal movimento foi amplamente debatido na imprensa e frustrou milhares de torcedores que viam seus times perderem seus melhores jogadores. Isso impactou decisivamente na discussão do amadorismo, trabalhada no capítulo anterior. A profissionalização do futebol na Argentina em 1931 impactou diretamente o futebol uruguaio. No ano seguinte, 1932, o futebol se profissionalizava em terras orientais, seguindo o modelo do país vizinho. Com isso o futebol do Rio Grande do Sul foi extremamente afetado, aumentando a fuga de seus atletas não somente para Europa, como também para os países do Prata. Tal contexto contribuiu para a profissionalização do futebol no ano de 1938. É esse o plano de fundo do texto. Buscarei evidenciar a participação ativa dos jogadores como uma classe, organizada para a conquista da profissionalização do seu trabalho, algo decisivo para o rumo não só do esporte mais popular do continente como para as suas vidas e de suas famílias

21 CAPÍTULO I: O FUTEBOL CHEGA AO SUL DA AMÉRICA DO SUL

A importância cultural, econômica e social do futebol em países como Argentina, Uruguai e Brasil nos dias atuais é inegável. Qualquer pessoa, por mais desinteressada que seja em relação ao velho esporte bretão consegue facilmente constatar sua influência na nossa sociedade. Ocupando boa parte dos espaços de todas as formas de mídia (rádio, jornais, televisão, internet), sendo assunto frequente em discussões apaixonadas em mesas de bares, ou vivendo o clima de tensão que cerca as principais cidades sul-americanas em dia de clássicos, o futebol faz parte da vida e é um elemento importante da identidade de milhões de pessoas. Essa situação é consolidada no século XXI, porém data do início do século passado sua popularização e massificação. Esse momento entre as décadas de 1910 e 1930 é o pano de fundo deste trabalho por isso uma contextualização é necessária, pois, obviamente, o futebol não estava alheio às intensas transformações sociais ocorridas nesse período.

1.1 ARGENTINA: A CHEGADA DO FUTEBOL NA PERIFERIA DO CAPITALISMO

Durante a segunda metade do século XIX e início do século XX, a Argentina ocupava um lugar claro no sistema capitalista cada vez mais mundializado. Com o massacre de milhares de indígenas (principalmente mapuches e tehuelches) e a anexação de amplas áreas territoriais na Patagônia, na chamada Conquista del Desierto, entre os anos de 1878 e 1885, durante o governo de Julio Roca (1880 -1886), a Argentina desenhou seus limites atuais tornando-se o oitavo maior país do mundo em extensão territorial. Esse fato possibilitou às elites pecuaristas, que comandavam a nação, fixar-se definitivamente como os maiores exportadores de carne e lã para o mercado europeu e estadunidense.21 Nesse cenário os investimentos de capital estrangeiro, principalmente britânico, para o escoamento da produção, aumentaram substancialmente.22 Entre os anos de 1880

21 DONGHI, Tulio Halperin. História Contemporánea de América Latina. Madri, Alianza Editorial: 2005. p. 386. 22 No ano de 1865, a Grã-Bretanha investiu, entre investimentos diretos em infraestrutura e empréstimos governamentais, um total de 2,7 milhões de libras esterlinas. A evolução nas décadas seguintes é evidente como aponta o estudo de Lenz: 1875: 22,6 milhões; 1885: 46 milhões; 1895: 109, 9 milhões;

22 e 1914, o auge do domínio inglês, período crucial para a difusão do futebol no país, a Grã-Bretanha estabeleceu grandes conexões econômicas com a Argentina, maiores mesmo dos que com tradicionais domínios, como China e Egito, e enquanto fonte de alimentos e matéria-prima, equiparando-se à Índia em investimentos, superando domínios formais do império, como o Canadá e a Austrália.23 A construção de ferrovias que cortavam o longo território pampeano tornou a Argentina o país com uma das maiores malhas ferroviárias do mundo24. O porto da capital, Buenos Aires era o mais movimentado da América Latina, com amplas exportações destinadas principalmente à Inglaterra e suas zonas de influência. A capital portenha, no ano de 1904, registrava um vertiginoso aumento populacional, chegando à marca de 950 mil habitantes25. Deste período data um fenômeno demográfico presente até hoje na Argentina que é a concentração populacional no chamado conurbano bonaerense, ou Grande Buenos Aires. Acerca disso, o filósofo argentino José Pablo Feimann afirma: “O que se fez na Argentina do século XIX não foi um país, mas sim uma cidade”.26 A consolidação do poder econômico e político exercido pela cidade de Buenos Aires, baseado em uma economia de exportação de matéria-prima e importação de manufaturas, foi conquistada com um enorme derramamento de sangue. Como citado anteriormente, na Conquista del Desierto houve o genocídio dos povos originários. Além disso, durante meados do século XIX transcorreu na Argentina uma sangrenta Guerra Civil (1861, fim do conflito na Batalla de Pavón) entre os chamados federales (que tinham como sua maior expressão Juan Manuel de Rosas) e os unitários (Bartolomé Mitre e Domingo Sarmiento). Não é objetivo desta dissertação trabalhar esse complexo contexto político argentino, porém esse conflito foi fundamental para o extermínio de milhares de negros e gauchos envolvidos nas batalhas, bem como para a consolidação do

1905: 253,6 milhões, chegando a marca expressiva de 479,8 milhões no ano de 1913. LENZ, Maria Holoisa. Crise e negociações externas na Argentina no final do século XIX: o início da insustentabilidade do modelo aberto. Campinas. Revista Economia e Sociedade, v. 15, n. 2, 2006. p. 380. 23 MASCARENHAS, Gilmar. A bola nas redes e o enredo do lugar. Uma geografia do futebol e de seu advento no Rio Grande do Sul. São Paulo: USP (tese de doutorado), 2002. p.42 24 A malha ferroviária argentina quintuplicou durante toda a década de 1880. HOBSBAWM, Eric. A era dos Impérios (1875 -1914). Sao Paulo. Paz e Terra, 2012. p. 100. 25 LIERNUR, Jorge Francisco. La construcción del país urbano. In: LOBATO, Mirta Zaida. Nueva História Argentina: el progreso, la modernización y sus límites (1880 1916). Buenos Aires: Editorial Sudamericana. p. 412. 26 “lo que se hizo en Argentina del siglo XIX no fue un país, sino una ciudad”. FEINMANN, Jose Pablo. Filosofía aquí y ahora - La década infame. 2014. (27min08s). Disponível em: . Acesso em: 26 out. 2018.

23 projeto liberal na Argentina, em especial na cidade de Buenos Aires representado com a vitória dos unitários. Esse contexto foi determinante para algo fundamental para entendermos a chegada e consolidação do futebol no país vizinho, bem como para algo mais amplo, como a formação de uma identidade nacional argentina: a imigração.

1.1.1 A imigração inglesa e a chegada do futebol na Argentina

A Argentina se urbanizava de maneira muito veloz no entrar do século XX. Os principais centros urbanos como as cidades de Rosário, Córdoba e La Plata além da gigantesca capital Buenos Aires recebiam enormes quantidades de imigrantes europeus vindos em sua maioria para servir de mão de obra dos grandes proprietários e industriais capitalistas, “vencedores” da anteriormente citada Guerra Civil. Italianos, Russos, Poloneses, Espanhóis, entre outros, muitos deles judeus, socialistas e anarquistas desembarcaram na Argentina na busca de trabalho e melhores condições de vida27. Apesar de serem a imensa maioria, esta é apenas uma das facetas da imigração, os imigrantes trabalhadores. Há entretanto uma outra categoria de imigrantes que é representada em quase sua totalidade por britânicos: os imigrantes proprietários. Na Buenos Aires do final do século XIX viviam cerca de 40 mil ingleses28. Berço da Revolução Industrial que estava em cena, a Inglaterra era considerada o centro da modernidade mundial. Os ingleses que desembarcavam nas cidades argentinas não traziam apenas investimentos financeiros para manter seu domínio global. Os padrões de comportamento e suas práticas que eram consideradas o máximo exemplo de modernidade também vieram na bagagem e eram extremamente admiradas pelas elites locais. A respeito disso, Julio Frydenberg pontua: Durante a segunda metade do século XIX, se conformou em nosso país uma colônia britânica composta por proprietários de terra, empregados hierárquicos de empresas ferroviárias e transviarias, comerciantes e bancos. Apesar de seu peso numérico ser pequeno, sua influência econômica política e cultural resultou significativa. Os britânicos e seus descendentes, além de praticar seus esportes típicos dentro de suas associações, consideravam que a difusão desses esportes teriam um

27A historiadora Ema Cibotti aponta que: “Hasta 1910, se radicaron alrededor de 1.000.000 de italianos, 700.000 españoles, 90.000 franceses, 70.000 rusos, en su mayor parte de origen judío, 65.000 turcos, en su mayoría sirios y libaneses, 35.000 austro-húngaros, es decir, centroeuropeos, 20.000 alemanes y un número muy inferior de portugueses, suizos, belgas y holandeses.”CIBOTTI, Ema: Nueva Histor... 367. 28 MASCARENHAS, Gilmar. A bola nas redes e o enredo do lugar. Uma geografia do futebol e de seu advento no Rio Grande do Sul. São Paulo: USP (tese de doutorado), 2002. p.42

24 forte impacto civilizatório sobre o resto do planeta29.

Diferentemente dos imigrantes trabalhadores, os imigrantes proprietários que chegaram à Argentina estavam alojados em postos de chefia de empresas e bancos britânicos e muitas vezes eram proprietários de terra. Enquanto o imigrante trabalhador era obrigado a se acriollar, ou seja, viver em um país cujos costumes e comportamentos eram desprezados e repugnados pela elite, que não suportava os habitantes dos Conventillo30. Ao contrário, os imigrantes proprietários despertavam admiração da elite dominante argentina que deseja viver e desfrutar seus padrões de comportamento e estilo de vida. Não eram os ingleses que teriam que virar argentinos, mas sim a elite argentina que desejava ser inglesa. É o padrão de vida britânico que será idealizado e praticado nas escolas e clubes de origem inglesa, altamente excludentes, com quotas altíssimas para associação, bem como a necessidade de ser apadrinhado por diversos associados. São essas instituições excludentes e elitistas uma das primeiras portas de entrada (mas não a única como veremos) para o esporte mais popular da Argentina, o futebol. Julio Frydenberg, ao estudar a chegada e o desenvolvimento do futebol na Argentina, pontua a importância das instituições de ensino criadas pela colônia inglesa, principalmente na cidade de Buenos Aires. [as escolas] introduziram no âmbito rio-platense o modelo inglês que incorporava os esportes ao programa escolar. E entre os esportes se destacava o futebol. Segundo os parâmetros educativos vigentes desde pelo menos quatro décadas na Grã-Bretanha, a disciplina era um elemento fundamental e modelador da conduta dos alunos, com uma concepção que os esportes desempenhavam um papel central. Esses objetivos dominaram o programa educativo geral e o esportivo em particular, sobre tudo em relação a incorporação da moral do sportsman pelos alunos31.

A Educação Física e a prática esportiva para a saúde do corpo faziam parte do programa curricular das escolas britânicas onde estudavam a elite argentina. Os chamados sportsmen dedicavam seu tempo livre (já que não trabalhavam) para praticar uma pluralidade de esportes (Turf, Rugbi, Ciclismo, Futebol entre outros). Sempre exaltando o chamado “Fair Play”32, os esportes praticados nas escolas desprezavam o espírito

29 FRYDENBERG, Julio. História Social del Fútbol: del amateurismo a la profesionalización. Buenos Aires. SigloVeintiuno Editores, 2013. p 25. 30 Eram habitações coletivas semelhantes aos cortiços. 31 FRYDENBERG, Julio. Op.Cit.. p. 26. 32 MASCARENHAS, Gilmar. A bola nas redes e o enredo do lugar. Uma geografia do futebol e de seu advento no Rio Grande do Sul. São Paulo: USP (tese de doutorado), 2002. p. 23.

25 competidor por esse motivo o amadorismo era uma de suas premissas fundamentais. A grande maioria dos primeiros clubes de futebol da Argentina era formado no interior dessas instituições, bem como os primeiros campeonatos e ligas organizados no país. Essas iniciativas serão o pontapé inicial para o que os historiadores consideram o começo do futebol oficial na Argentina (1891 – 1911). Era objetivo dos associados dos clubes e colégios que praticavam o futebol a sua difusão e desenvolvimento. Para tanto, era necessário a criação de torneios, condições para a formação de times, criação de um órgão organizador entre outras coisas. Com isso, no ano de 1891, o escocês Alejandro Watson Hutton, fundador da Buenos Aires English High School (BAEHS) funda, juntamente com outros imigrantes britânicos, a Argentine Association Football League (AAFL) primeira iniciativa de organizar o futebol local. Nesse primeiro período, os campeonatos oficiais eram extremamente excludentes, os clubes e escolas inglesas eram ambientes masculinizados, onde as mulheres eram proibidas de serem associadas, com mensalidades e inscrições em torneios bastante caras. Desde os primórdios, o amadorismo e o “espírito desportivo” são exaltados por essas entidades. Como veremos, a defesa do amadorismo era uma das estratégias de perpetuar a exclusão da grande maioria da população das práticas esportivas que não tinha recursos financeiros nem tempo livre para praticar futebol e esportes em geral. Entretanto, esse cenário rapidamente começa a mudar e o futebol passa a fazer cada vez mais parte do cotidiano dos argentinos tornando-se no maior espetáculo de massas do país. Como e quando isso ocorreu? É o que tentaremos debater a seguir.

1.1.2 O espetáculo: a popularização do futebol na Argentina

Os principais centros urbanos argentinos, principalmente a cidade de Buenos Aires, vivenciaram nas décadas de 1910 e 1920 um intenso processo de urbanização. Milhares de imigrantes advindos de diversas partes da Europa, somados a interioranos que saíram do campo em busca de trabalho nas cidades como Rosário, Córdoba e Buenos Aires transformaram em poucos anos essas antigas cidades em metrópoles, com uma população extremamente heterogênea, vivendo em novas aglomerações urbanas com o surgimento de novos bairros. Esse contexto trouxe grandes transformações na paisagem das cidades como aponta Frydenberg: A chamada modernização plena significou a transformação dessas vizinhanças e das zonas intersticiais que as separavam em áreas plenamente urbanizadas pelo formato de um tabuleiro de xadrez

26 diagramado pela ação estatal. Esse processo significou, nos anos 1920, o surgimento dos “bairros”, em sua maioria nascidos sobre a uniformidade morfológica da quadrícula. O movimento urbano e social que abrangeu o nascimento dos bairros implicou o aparecimento de um novo espaço público local, estruturado pela ação conjunta de novas associações (associações de bairro, bibliotecas populares, clubes); novos atores sociais (as barriadas – bairros pobres - socialmente homogêneas); novos cenários (a rua, a esquina, o café do bairro); novas sociabilidades; e novos setores populares ou, melhor dito, nova cultura desses setores populares. Todo esse conjunto foi misturado mediante a ação de agentes que ajudaram a conectar a nova vida cidadã ao mundo local. A escola, os meios de comunicação de massa, os novos consumos, assim como a construção de rituais profanos massivos cumpriram esse papel.33

Como diversas cidades do continente Sul-Americano, os governantes de Buenos Aires do início do século XX financiaram diversas reformas urbanas com o objetivo de “modernizar” a cidade e o país. O capitalismo passava a exigir das grandes cidades, esse novo cenário cada vez mais presente na realidade do sistema, que oferecessem serviços, que criassem um mercado consumidor, que disciplinassem uma massa trabalhadora e as reformas tinham essa finalidade de organizar o capitalismo, adaptando a cidade para a modernidade34. Com clara influência da arquitetura parisiense, prédios, amplas avenidas, bulevares, parques, teatros, etc foram construídos. É desse período que advém obras que caracterizam até os dias atuais a capital argentina tais como: Teatro Colón (1908), Avenida Norte a Sud (1912 – hoje Avenida 9 de Julio) e inauguração da primeira linha de metrô da América Latina (1913). Tais obras, revelavam o ímpeto da classe política para mostrar a Argentina como grande potência econômica do continente. O cenário político argentino durante as primeiras décadas do século XX é bastante agitado. O Partido Autonomista Nacional (PAN) ou Partido Conservador, governava o país com uma falsa democracia, em que as eleições eram fraudadas com o direito a voto sendo limitado, não secreto e com candidatos únicos. Nesse período, muito por influência das levas de imigrantes que chegam ao país, principalmente espanhóis e italianos, entram na Argentina ideias Socialistas, Comunistas e Anarquistas e a classe trabalhadora começa a se organizar em torno dos primeiros sindicatos, reivindicando melhores condições de trabalho e salário. Destaca-se nesse período a Federación Obrera Regional Argentina (FORA),

33 FRYDENBERG, Julio. Os bairros e o futebol na cidade de Buenos Aires de 1930. Campinas. Cadernos AEL, v.16, n.28, 2010. p.184. 34 STÉDILE, Miguel. Da Fábrica à Várzea: clubes de futebol operário em Porto Alegre. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado UFRGS, 2011. p.42

27 fundada em 1901, de cunho anarquista, e a Unión General de Trabajadores (UGT), socialista, fundada em 1902. As condições dos trabalhadores eram extremamente precárias, com jornadas de trabalho altas e salários baixos. O acirramento das tensões entre um governo antidemocrático e autoritário e trabalhadores cada vez mais organizados, gerou uma série de greves e conflitos. As pressões não vinham apenas da classe trabalhadora, setores da burguesia, industriais, órgãos de imprensa e sociais democratas também pressionavam os conservadores para a adoção do sufrágio secreto e eleições transparentes. O principal partido formal de oposição, a Unión Cívica Radical (UCR), liderada por Hipólito Yrigoyen, ganhava força no terreno político. No ano de 1910, é eleito Roque Sáenz Peña no contexto de embates por conquista de direitos sociais. Em 1912, seu governo finalmente sanciona a lei de número 8.871, mais conhecida como Ley Sáenz Peña, que promulgou o voto secreto na Argentina bem como ampliou o direito a voto. Muitos historiadores, apesar das limitações da lei, consideram a sua promulgação como um marco inicial para a democracia na Argentina. A lei 8.871, como é sabido, estabelece um novo regime eleitoral de sufrágio universal masculino, secreto e obrigatório para os maiores de 18 aos com alocação de dois terços de cargos a ser eleito pela lista que obtenha maior quantidade de votos e um terço restante ao que segue (ao sistema de voto restrito e limitado). Ficam excluídos do direito de votar as mulheres e os estrangeiros de ambos os sexos, como também os homens argentinos comprometidos por razões de incapacidade (dementes, surdos e mudos), de estado e condição (padres, militares, policiais, presos, mendigos) e/ou de indignidade (dez casos, entre eles os donos de prostíbulos).35

Finalmente, no ano de 1916 acontece a primeira eleição presidencial depois da assinatura da lei anteriormente citada. Com um número de 1.189.254 de pessoas aptas para votar, o que representava cerca de 15% da população total, 745.875 pessoas votaram (62,7%). A candidatura de Hipólito Yrigoyen (UCR) saiu vitoriosa, com 340.802 (45,59%)36, representando o fim do ciclo dos conservadores no poder. A esperança de mudanças era grande, e a classe trabalhadora acreditava que seus reclamos e lutas, teriam maior chance de diálogo com o novo governo eleito. A década de 1920 e o governo da UCR marcará um grande salto no processo de incorporação das massas ao consumo,

35 ANSALDI, Waldo. La trunca transición del régimen oligárquico al régimen democrático. p. 18. In: FALCÓN, Ricardo. Nueva História Argentina: democracia, conflicto social y renovación de ideas (1916 - 1930). Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 2000. 36 ANSALDI, Waldo. La trunca transición del régimen oligárquico al régimen democrático. p. 20. In: FALCÓN, Ricardo. Nueva História Argentina: democracia, conflicto social y renovación de ideas (1916 - 1930). Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 2000.

28 maiores índices de alfabetização e acesso a mídias como jornais, aumento dos salários e do tempo livre, fatos decisivos para a popularização do futebol. Entre 1922 e 1928 as estatísticas reconhecem que a Argentina viveu anos de bonança econômica, fruto do aprofundamento de seu papel produtor e exportador de produtos agropecuários. Os setores trabalhadores viveram um momento em que o custo de vida diminuiu com o aumento do tempo disponível para o desenvolvimento de atividade recreativas, e uma maior presença como consumidores de produtos de massa, por exemplo, jornais como Crítica, ou frequentar os estádios de futebol, esporte instalado como a maior atração popular.37

A década de 1920 é marcada pela consolidação e popularização do futebol como um espetáculo esportivo de massas, da cultura popular, e com isso, sua relação com a imprensa toma uma outra dimensão, como veremos mais adiante, e sem dúvida o contexto político e econômico influenciou decisivamente para esse cenário. Entretanto, já nas décadas de 1900 e 1910 temos a raiz dessa popularização, com o surgimento dos primeiros clubes criollos38, clubes de equipes não britânicas39, desassociados com as instituições de ensino, pioneiras do esporte no país. A transformação do futebol foi avassaladora. No ano de 1891, a primeira final da Liga entre Saint Andrews e Old Caledonian, contou com o público de 500 espectadores, enquanto no ano de 1916 (ou seja, 25 anos depois) o embate entre os selecionados de Argentina e Uruguai atraiu mais de 19 mil pessoas. Como o futebol se transformou em algo tão atrativo em tão pouco tempo? Frydenberg aponta que as visitas de equipes estrangeiras, na sua maioria britânicas, foram significativas para o desenvolvimento do espetáculo futebolístico no país. Na Inglaterra o futebol já era um esporte consolidado e altamente popular, inclusive na classe trabalhadora. O futebol repercutia também na Europa como um todo, principalmente na Alemanha, Itália e Espanha, países de levas significativas de imigrantes que desembarcaram na capital argentina. Visitas de equipes como o Southampton (1904), Everton (1911), Tottenham (1912) e o italiano Torino (1914), bem como as partidas da lendária equipe do Alumni40 atraíam a atenção da população e da

37FRYDENBERG, Julio. Boca Juniors en Europa: el diario Crítica y el primer nacionalismo deportivo argentino. Curitiba. Editora UFPR, Questoes &Debates, n.39. p. 94. 38 O sentido da palavra Criollo é amplo. Nesse contexto, remete-se a equipes de futebol de origem argentina, não britânicas. 39 São notáveis exemplos: Club Atlético Boca Juniors (1905), Club Atlético San Lorenzo de Almagro (1908), Club Atlético River Plate (1901), Racing Club de Avellaneda (1903) entre outros. 40 O Alumni Athletic Club era a denominação da equipe de futebol da Buenos Aires High School. É considerado por alguns estudiosos como o “pai do futebol argentino”. Foi decacampeão argentino entre os anos de 1900 e 1911 (ficando na segunda posição no ano de 1904). Tal sucesso repercutiu

29 imprensa, gerando grande expectativa e curiosidade41. O público desses eventos, que Frydenberg classifica como “protoespetáculo,42 era heterogêneo, contendo altos funcionários do governo, a elite inglesa e local, mas outro segmento da população, que será o impulso para a sua popularização: os jovens que jogavam futebol como aficionados, muitos deles advindos das camadas populares. Esses jovens praticantes do futebol, moradores dos bairros criados pela expansão urbana, começaram a desenvolver novas ligas e novas entidades, independentes da excludente liga fundada pelos britânicos. Com o já citado, maior acesso aos veículos de comunicação de massa, o futebol começa a despertar o interesse mais amplo da população. No ano de 1907, na região metropolitana de Buenos Aires, já existiam doze ligas independentes (não reconhecidas pela Liga Oficial) que organizavam torneios que aglomeravam mais de 300 equipes. Essas ligas, denominadas como “fútbol aficionado”, começaram a despertar o interesse dos jornais, como o periódico La Argentina. O jogo acertou em cheio a massa popular, está triunfando em todas as partes e até os rapazes pobre estão praticando, pois vimos mil vezes nas ruas eles chutando bolas de confecção caseira com um entusiasmo e habilidade que falam muito em favor das condições do nosso povo para os esportes atléticos. Os clubes que não formam parte da liga estao se multiplicando [...] passam dos 400 e contam com mais de 6000 entusiastas futebolistas.43

O futebol é um esporte de fácil acesso e prática. Como apontou o texto acima, os meninos dos bairros jogavam com bolas de meia, tão presentes até os dias de hoje, principalmente nas periferias. O improviso faz parte de sua essência, dois chinelos simulam perfeitamente uma trave, a rua pode ser o campo, a meia a bola. O drible, a jogada inesperada, pode nascer dos praticantes mesmo sem acesso aos treinamentos e instalações adequadas. Como é coletivo, dezenas de pessoas podem praticá-lo simultaneamente. Diferentemente do Turfe, Esgrima ou Boxe, o Futebol tem esses elementos que facilitaram sua popularização e apropriação, tornando-o extremamente fascinante e apaixonante. Essas ligas menores foram essenciais para a difusão popular do futebol e foram

positivamente na sociedade e imprensa de Buenos Aires durante a década de 1900. O Alumni é certamente o primeiro exemplo de sucesso e fama para além dos exclusivos ciclos futebolísticos dos clubes britânicos da época. 41 FRYDENBERG, Julio. História Social del Fútbol: del amateurismo a la profesionalización. Buenos Aires. SigloVeintiuno Editores, 2013. p 41. 42 Ibidem. p 46. 43 La Argentina (7/4/1907) apud Ibidem. p. 47.

30 o nascedouro da grande maioria dos clubes que hoje dominam o futebol argentino. O reconhecimento dessas ligas era fundamental para o objetivo desses novos clubes, criados fora do ciclo da elite britânica, que era o de se filiar à AFA e ascender à grande divisão do futebol da época. Para entrar na Liga principal, uma série de exigências eram estabelecidas como ter um campo de jogo regulamentado, vestiários com chuveiros, uma quantidade mínima de tribunas, exigências que demandavam tempo, trabalho e dinheiro. As ligas independentes, que não tinham tais dificuldades funcionavam portanto como uma espécie de “caminho obrigatório” para os novos clubes que surgiam, pois possibilitavam a participação em campeonatos regulares, onde o clube ganhava adeptos, identidade, cores e corpo. Uma rápida visita por Buenos Aires e fica evidente como, ainda hoje, os clubes da região (com exceção dos grandes), são clubes com alto vínculo com seus bairros44. Durante toda a década de 1920 o futebol se consolidou como a grande paixão dos argentinos. Os estádios dos principais clubes estavam sempre lotados, surgem as primeiras publicações dedicadas exclusivamente ao futebol, o esporte começa a movimentar a economia, a política e principalmente os corações de milhares de jovens que veem nele uma possibilidade de ascensão social. Esse contexto da década de 1920 será trabalhado no próximo capítulo onde as questões relativas ao profissionalismo e ao amadorismo marrom serão discutidas.

1.2 URUGUAI: FUTEBOL E POLÍTICA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Quando analisamos o processo de chegada e popularização do futebol no Uruguai, percebemos de início, uma grande similaridade com o processo argentino, citado anteriormente. Tal fato não é estranho, pois historicamente os dois países têm laços e relações (econômicas, políticas, sociais e culturais) muito fortes. Ao conhecer ambos os países ficam evidentes suas semelhanças e também suas rivalidades, e com o futebol não poderia ser diferente. Tratando de semelhanças relevantes, a primeira que podemos apontar é a economia uruguaia. Assim como citado no contexto argentino, o Uruguai possuía, no final do século XIX e inicio do XX, uma economia baseada na exportação de matérias-

44 O Club Atlético Lanús, por exemplo, se orgulha da alcunha de ser “O maior time de bairro do mundo”. Há muitos outros exemplos de clubes que concentram quase que a totalidade de seus torcedores em um único bairro: Club Atlético Banfild, Chacaritas Juniors, Ferro Carril Oeste entre outros.

31 primas e importação de manufaturas. A pecuária, que ocupa ainda hoje um papel de destaque, era o principal segmento da economia uruguaia. Os produtos provenientes da pecuária (lã, carne, couro) constituíam-se como principais e quase exclusivos itens de exportação.45 Outra semelhança fundamental com a Argentina é a injeção de capital britânico para obras de escoamento da produção. O Uruguai construiu, proporcionalmente ao seu território, uma grande malha ferroviária que concentrou as exportações através do porto da capital e maior cidade do país, Montevidéu. A concentração populacional no Uruguai é ainda mais gritante do que na Argentina. Segundo dados, em 2017 a população do país era de 3.360.148 pessoas, e somente a capital Montevidéu concentra 1.319.108 habitantes46. Essa concentração urbana em torno da capital é fruto da importância adquirida com seu porto para as exportações. Assim como na Argentina, o Uruguai recebeu levas significativas de imigrantes vindos da Europa em busca de trabalho, que serão fundamentais para a difusão do futebol no país.

1.2.1 Política Uruguaia: breves apontamentos

Historicamente a política uruguaia é dominada por dois partidos que disputavam a hegemonia do poder local. O Partido Nacional (Blancos) e o Partido Colorado47. Apesar de suas disputas, no final do século XIX ambos estavam alinhados aos interesses dos britânicos na região e abraçavam a política de exportação. Após anos de crescimento econômico estimulado pelo capital inglês, o Uruguai entre os anos de 1887 e 1890 registrou um forte déficit da balança comercial (quando o valor das importações é maior que o valor das exportações) de 21 milhões de pesos48. Diante desse cenário de agravamento da situação da balança comercial, setores da burguesia urbana montevideana, formado principalmente por jovens com formação superior, começaram a

45 FREGA, Ana. La formulación de un modelo 1890-1918 In: FREGA, Ana; RODRIGUEZ AYCAGUER, Ana María; RUIZ, ESTHER; PORRINI, Rodolfo; ISLAS, Ariadna; BONFANTI, Daniele; BROQUETAS, Magdalena; CUADROS, Inés. Historia del Uruguay en el siglo XX: 1890- 2005. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2011. p. 17. 46 Dado disponível em: < http://www.ine.gub.uy/poblacion> Acesso em 03 jul 2018. 47 “Os dois partidos “tradicionais”, “históricos” ou “fundacionais”, o Partido Nacional e o Partido Colorado, são anteriores à própria democracia e nasceram logo no início da existência do Uruguai como país independente. Se a Declaração de Independência ocorreu em 1825 e a primeira Constituição data de 1830, os dois partidos surgiram pouco depois, em 1836.” In: REIS. Guilherme Simões. A disputa político-partidária no Uruguai: oponentes externos, adversários internos. Rio de Janeiro. Observatório Político Sul-Americano v. 6, n. 03. 2011. p. 4 48 FREGA, Op. Cit.; p. 18.

32 formular propostas que criticavam a política exclusivamente exportadora do país.49 As reflexões acerca da condição dependente do país e sua precária estrutura econômica criaram uma consciência no mundo político e intelectual do final do século XIX e início do XX, sobre a necessidade de um Estado mais protagonista50. Durante a última década do século XIX, o Estado uruguaio assumiu um conjunto de atividades econômicas com o objetivo de “modernizar” o país e diversificar sua economia. A construção e gerência do novo porto de Montevidéu e da companhia elétrica da capital uruguaia, bem como a criação no ano de 1896 do Banco de la Republica Oriental del Uruguay entre outras medidas foram concretizadas no período. Com esse discurso modernizador, ascende à presidência do Uruguai no ano de 1903 o jornalista filiado ao tradicional Partido Colorado, José Batlle y Ordóñez, inaugurando o início do predomínio de uma cultura política denominada batllismo, corrente política do Partido Colorado que se tornou a mais dominante ideologia política do Uruguai durante a primeira metade do século XX, tendo como principais ideais um estado intervencionista na economia e a criação de leis sociais e trabalhistas. Ao tratar das complexas tendências políticas presentes no Partido Colorado José Cabral pontua: No interior do Partido Colorado de 1903 a 1910, moldado por uma imprecisa ideologia liberal, podia-se perceber a presença de três correntes ideológicas: i) a sustentada pela maioria dos dirigentes partidários no Senado e na Câmara de Representantes, tradicionalista em relação à organização econômico-social do país e atenta a demanda das classes conservadoras; ii) a moderada, representada pelo presidente Cláudio Williman e sua equipe de Ministros, admitiu a necessidade de algumas reformas econômico-sociais para “manter” o sistema, ou seja, reformas para garantir a continuidade da ordem vigente e; iii) a radical, liderada por Batlle desde o Poder Executivo, buscou a substituição do “modelo” por outro de conteúdos éticos e humanitários.51

Durante os anos de 1903 e 1912 temos o período do primeiro batllismo onde, como aponta Camou: Crescem os salários reais e em um contexto de crescimento do produto, como consequência de uma melhora dos preços das exportações e a expansão interna da indústria e dos serviços. Se trata de um período em que o Estado instrumenta melhoras nas condições de trabalho e através

49 Idem, p. 20. 50 YAFFÉ, Jaime. El intervencionismo batllista: estatismo y regulación em Uruguay (1900 – 1930). Montevideo. Facultad de Ciencias Economicas y Administración Udelar. p. 6 51 CABRAL, José Pedro Cabrera. O pensamento de José Batlle y Ordóñez no Uruguai do Novecentos: componentes de sua ideologia. In: PAULA, Dilma Andrade de (org); MENDOÇA, Sonia Regina (org). Sociedade Civil: ensaios históricos Jundiaí. Paco Editorial p. 6.

33 da legislação trabalhista.52

O primeiro governo de Batlle y Ordóñez impulsionou – com a clara intenção de tornar o Estado um agente ativo de primeira ordem - amplamente a industrialização e a nacionalização/estatização de empresas e recursos. Buscando romper com a dependência dos ganaderos (grandes proprietários de gado), o governo buscou a diversificação da economia, criando em 1907 o Ministerio de Industrias, Trabajo e Instrucción Pública. A criação do ministério foi fundamental para o desenvolvimento da indústria local, destinada a atender as demandas do mercado interno e diminuir a dependência de produtos manufaturados. Os principais produtos manufaturados pela jovem campanha industrial nacional eram alimentos, bebidas, móveis, tecidos e produtos do couro53. Os pensamentos de Batlle y Ordóñez a respeito da necessidade de industrialização do país podem ser encontrados nas páginas do jornal El Día, periódico fundado em 1886 pelo próprio Dom Pepe (como era chamado pelos colegas de partido) e que foi o principal veículo de difusão das ideias reformistas do batllismo. O presidente da República [escrevia Battle y Ordóñez] é inimigo declarado do que se manda fazer fora do país o que se pode fazer no mesmo. Há muito anos vem teorizando sobre o assunto, e seu ideal de governo será que se importe o menor número de artefatos possíveis, para o bem do desenvolvimento de nossa indústria e com o laudável fim de que o dinheiro que por aqueles conceitos vai diretamente ao estrangeiro, fique no país na maior quantidade possível, favorecendo principalmente a classe trabalhadora.54

No plano social, o Uruguai viveu no período batllista um avanço em relação aos direitos trabalhistas, sendo uma vanguarda nesse sentido para a América Latina. As primeiras Leyes Laborales foram criadas na primeira década do século XX, sendo o Uruguai primeiro país da região a garantir direitos que até hoje são conferidos aos trabalhadores como, por exemplo, a ley de las ocho horas (1915)55. Além da lei que estabelece oito horas como jornada de trabalho, outras leis de proteção e melhores condições de trabalho bem como leis sociais foram criadas no período: Ley de Silla

52 CAMOU, María Magdalena. Salarios, desigualdad y capital humano en Uruguay (1900 - 1960). Montevideo. IX Jornadas de Investigación de la Facultad de Ciencias Sociales, UdelaR, 2010. p. 8 53LEONOR, Fermin Peralta. El MIEM: sus primeros 100 años y su rol en el siglo XXI. Montevideo. 2007. p. 110. 54BATLLE Y ORDÓÑEZ, José. “Por nuestras industrias”. Artigo publicado no diário “El Día”, 10 de junho de 1903. p. 7. Biblioteca Nacional del Uruguay, “El Día” 1900 – 1905. 55Em comparação com as duas potências vizinhas e regionais do Uruguai (Brasil e Argentina): a lei que garante jornada de trabalho de oito horas no Brasil foi decretada no ano de 1937. Já na Argentina, a lei foi assinada no ano de 1929.

34 (1918), que garantia e estabelecia um número mínimo de cadeiras para mulheres que trabalhavam no comércio “puedan tomar asiento siempre que sus tareas lo permitan”56 , bem como um amplo debate de reformas que culminaram na elaboração da nova constituição no ano de 1918, substituindo a constituição de 1830 (ano da independência política do Uruguai). Antes mesmo da aprovação da nova constituição, diversas reformas já haviam sido aprovadas, entre elas a lei que garante o direito ao divórcio (1907) por mútuo consentimento e por “sola voluntad de la mujer” (1913), além da proibição do ensino religioso nas instituições de ensino (1909)57. A constituição de 1918 consolidou essa onda reformista e aprovou propostas importantes para a modernização do país. A laicidade do estado: “Todos los cultos religiosos son libres en el Uruguay. El Estado no sostiene religión alguna”; o voto secreto, a proibição dos militares formarem parte de grupos políticos e o sufrágio universal obrigatório para homens acima dos 18 anos58.

1.2.2 O futebol no Uruguai

Como citamos, a população uruguaia se concentra na cidade de Montevidéu e sua região metropolitana. Com o futebol essa concentração é mais evidente. No ano de 2018, o Campeonato Uruguaio da Primeira Divisão, conta com 15 equipes, sendo 13 equipes sediadas na capital do país.59 Se analisarmos os campeões, tal concentração é ainda mais chocante. No campeonato nacional, que é um dos mais antigos do mundo (iniciado no ano de 1900, possui 114 edições completas), nunca uma equipe do interior uruguaio foi campeã nacional. O que chegou mais próximo foi o modesto Rocha Fútbol Club da cidade de Rocha que conseguiu no ano de 2006 o vice-campeonato. Além da concentração geográfica do futebol no país, o futebol uruguaio é certamente o mais claramente dividido e dominado por dois grandes clubes que concentram a imensa maioria dos torcedores, títulos e recursos. O Club Atlético Penarol e o Club Nacional de Football. É impossível falar da história do futebol uruguaio sem falar da história dessas duas instituições. No ano de 1890, The Central Uruguay Railway (C.U.R.) – companhia de capital

56URUGUAI. Lei nº 6102 de 10 de Julho de 1918. Artigo 1º 57CABELLA, Wanda. La evolución del divorcio en Uruguay (1950 - 1995). Montevideo. Programa de Poblácion de la Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad de la Republica. 2004 p. 4 58URUGUAY. Constituición (1918). Constituición de la Republica Oriental del Uruguay. Montevideo. Parlamento del Uruguay. Capítulo V e II. 59As exceções são: Club Atlético Atenas da cidade de San Carlos e o Club Atlético Boston River da cidade de Las Piedras.

35 britânico que administrava as ferrovias do país – comprou no bairro de Villa Penarol, na periferia de Montevidéu, dezessete hectares de terra para instalar, nessa região, uma oficina de trem.60 Os patrões da companhia, incentivaram a prática esportiva de seus funcionários, principalmente a do futebol, esporte cuja popularização já estava consolidada em território inglês. Franklin Morales, jornalista uruguaio que tem diversas obras sobre o futebol no país, pontua o pensamento dos proprietários da empresa, que acreditavam que em tempos de conflitos sociais, o futebol poderia controlar as massas de trabalhadores, conferindo-os disciplina e obediência. “Quién organiza partidos de fútbol, no organiza huelgas”61. O futebol era, portanto, na cabeça dos dirigentes da C.U.R, uma forma de controle no tempo livre dos funcionários. É nesse contexto que é fundado, no ano de 1891, o Central Uruguay Railway Cricket Club (CURCC), clube de recreação esportiva dos trabalhadores da empresa. Desde o princípio, o football converteu-se em esporte majoritariamente praticado no clube, o que confere ao CURCC o título de ser uma das primeiras entidades futebolísticas do Uruguai. A ata fundadora do CURCC é um reflexo da sociedade uruguaia da virada para o século XX, marcada pela imigração de milhares de europeus. Dos 124 fundadores, 45 eram criollos uruguaios, 78 britânicos e 1 alemão62, o que demonstra como, apesar de seu embrião europeu, o futebol desde muito cedo teve contato com os habitantes locais. Admitindo desde sua fundação, jogadores não ingleses em suas fileiras, muitos deles vindos de setores populares e operários63, o CURCC constituiu uma exceção dentro dos primeiros clubes de futebol criados no país, oriundos quase que sua totalidade de escolas britânicas como o The English High School (1874) e o The British School (1885) onde dessas duas instituições derivam o Albion Football Club (1891) e o Uruguay Athletic Club (1898) respectivamente.

60 120, serás eterno como el tiempo. Direção:Shay Levart. Produção: Ari Carretero, Lucía Moreira, Shay Levart. Montevidéu, Doc, 145 min, 2012. 61 MORALES, Franklin. Literatura y Fútbol. Montevidéu. Centro Editor de América Latina. Capitulo Oriental 42, s/d. p. 657. 62 El Grafico: Peñarol la história. Nº 1. Novembro de 1998. p. 3. 63 No contexto brasileiro, mais precisamente na cidade do Rio de Janeiro, é interessante referenciar o caso da criação em 1904 do The Bangu Athletic Club (que posteriormente se tornaria Bangu Atlético Club). Assim como o CURCC, nasceu de uma fábrica – têxtil, da Companhia Progresso Industrial – de capital britânico, diferente dos outros clubes cariocas criados principalmente por estudantes de famílias abastadas que estudavam nos colégios europeus. O Bangu (assim como o CURCC com os uruguaios), desde sua fundação admitia operários de nacionalidade brasileira (bem como de outras nacionalidades como italianos e portugueses). Além disso, foi o primeiro clube brasileiro a escalar negros no seu elenco. Ver: LOPES, José Sérgio Leite. Classe, Etnicidade e Cor na Formação do Futebol Brasileiro. In: BATALHA, Claudio H. M.; SILVA, Fernando Teixeira; FORTES, Alexandre (org). Culturas de Classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas. Editora da Unicamp, 2004. p. 130 – 134.

36 Nos anos finais do século XIX havia registros na imprensa de mais de oitenta clubes praticando futebol em Montevidéu. Com a cada vez maior adesão do esporte em terras orientais, o sentimento criollo crescia e esse movimento pode ser percebido nos nomes dos clubes que cada vez mais adotavam designações em castelhano, como por exemplo, Platense, Oriental e Progreso64. O CURCC, que seguramente era a equipe com maior popularidade devido a sua origem fabril, passou a ser chamado de Peñarol, como referência ao bairro de origem da equipe e dos jogadores conhecidos como Los de Peñarol. Nesse contexto, ocorreu, no ano de 1899 a fusão de dois importantes clubes da cidade o Club Montevideo e o Uruguay Athletic, dando origem ao popular Club Nacional de Football. Idealizados por estudantes universitários e com um forte sentimento nacionalista, o novo clube reivindicava a alcunha de ser o primeiro time legitimamente uruguaio, ou seja, uma equipe criolla. Suas cores foram pensadas nesse sentido, tricolores (azul, vermelho e branco) assim como “la Bandera de Artigas”, um dos símbolos do país65. Tais sentimentos nacionalistas eram compartilhados pelo setor batllista do Partido Colorado, defendendo a industrialização do país e uma menor dependência estrangeira. Nos anos iniciais do século XX o batllismo tornou-se majoritário dentro do coloradismo e chegou ao ano de 1903 à presidência com o seu líder José Batlle y Ordóñez. Não é possível entender a assimilação do futebol no Uruguai sem ter em conta o contexto político do Uruguai nas primeiras décadas dos novecentos. Assim como citamos no caso argentino, os direitos sociais adquiridos pela classe trabalhadora, bem como a melhora na qualidade de vida durante as primeiras décadas do século XX foram fundamentais para a consolidação do futebol como esporte massivo. Nesse sentido, o professor Rodolfo Porrini disserta como a partir do estabelecimento de leis trabalhistas, principalmente depois das leis laborais da década de 1910 (jornada de oito horas, descanso semanal, férias), os trabalhadores dispunham de um maior “tempo livre” e o estado uruguaio fomentou políticas de recreação e lazer para essa nova estrutura, pensada como questão de saúde pública, buscando uma melhor qualidade de

64 LUZURIAGA, Juan Carlos. Nacional y Peñarol en el Novecientos:la génesis de larivalidadclásica. In: Cuaderno de História 14. A romper lared: miradas sobre fútbol, cultura y sociedad. Montevidéu. Biblioteca Nacional, 2014. p 194 65 A rivalidade Nacional x Penarol é uma das mais intensas do mundo. Um dos elementos dessa rivalidade é a disputa para saber quem é o “verdadeiro Decano do futebol uruguaio”. O Nacional se intitula como decano pois a mudança do nome do rival de CURCC para Penarol ocorreu somente no ano de 1913, ou seja, quatorze anos após a fundação do Nacional. Um dos motivos de provocação dos torcedores da equipe do Nacional para os torcedores do Penarol é o fato deste já ter tido “um nome inglês”.

37 vida em meio a um modelo econômico industrial que gerava para o trabalhador nocivas condições de trabalho66. É nos anos de governo de Batlle y Ordóñez que é criada a Comisión Nacional de Educación Física com o objetivo de desenvolver o esporte e a recreação. No ano de 1900 foi fundada a Asociación Uruguaya de Fútbol (AUF) onde os primeiros campeonatos nacionais foram organizados e a seleção uruguaia – que ficaria conhecida como Celeste devido a cor do uniforme – foi criada. A construção de praças e parques foram marcas do período e o seu uso incentivado. O futebol popularizava-se dentro da classe trabalhadora com a criação de ligas de bairros e ligas sindicais paralelas a AUF. O pioneirismo uruguaio nesses aspectos sociais tornou o país um dos que melhor assimilou o futebol, com uma população interessada em praticá-lo desde as primeiras décadas do século XX. Esse cenário contribuiu significativamente para o êxito uruguaio nas primeiras disputas internacionais de futebol como a conquista do torneio Sul- Americano de Seleções no ano de 1916 e o bi campeonato olímpico nos anos de 1924 e 1928, credenciando o país a ser sede da primeira edição da Copa do Mundo da FIFA no ano de 1930.

1.3 O RIO GRANDE DO SUL: ENTRE O BRASIL TROPICAL E OS PAMPAS PLATINOS

A memória do futebol brasileiro é tradicionalmente contada a partir do eixo Rio- São Paulo, sendo a experiência futebolística vivida por cariocas e paulistas, como a história oficial do futebol brasileiro. A versão clássica dos chamados “pais do futebol brasileiro”, Oscar Cox no Rio de Janeiro e Charles Miller em São Paulo foi durante muitos anos a definitiva explicação para a introdução do futebol no Brasil. Entretanto, o nosso país possuí dimensões continentais e o futebol não teve apenas uma via de acesso, mas sim uma pluralidade de entradas e cada uma com suas especificações. O estado do Rio Grande do Sul é o estado mais meridional do Brasil e tem uma enorme fronteira com os dois países platinos, Uruguai e Argentina. A fronteira gaúcha é particularmente diferente de outras regiões fronteiriças do Brasil, pois é certamente a fronteira mais “viva”, ou seja, é a fronteira mais habitada com cidades de médio e grande

66 PORRINI, Rodolfo. Izquierda uruguaya y cultura obrera. Propuesta al ‘aire libre’: el caso del fútbol (Montevideo, 1920 – 1950). Maringá. Diálogos v. 16, n.1, 2012. p. 75

38 porte de ambos os lados67. As conexões culturais, econômicas e políticas do estado com os países vizinhos são inegáveis. No imaginário gaúcho, os verdes e vastos pampas são uma terra sem fronteiras. Certamente essa configuração gerou uma história ímpar para o futebol rio-grandense.

1.3.1 “Milonga de Tres Banderas”: o Rio Grande do Sul e suas relações com o Prata

Brasileño y Oriental, Rio-Grandense y Argentino, Piedras del mismo camino, Aguas del mismo caudal, Hicieran, de tu señal, Himnos de patria y clarin, Hasta el mas hondo confin, Bajo el cielo americano, De Osório-Artigas-Belgramo, Madariaga y San Martín!68

Poucos estados brasileiros possuem uma dicotomia territorial tão marcante como o Rio Grande do Sul, dividido em duas claras e distintas grandes regiões: a campanha e o planalto (ver mapa abaixo)

67 As cidades gaúchas de Santana do Livramento, Dom Pedrito e Bagé possuem, segundo dados do último Censo (2010), uma população de 83.464, 38.898 e 116.794 pessoas respectivamente, somando uma população de 239.156 pessoas. As cidades citadas fazem fronteira com a cidade uruguaia de Rivera, que conta com uma população de 79.900 pessoas. Na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina, as cidades brasileiras de Uruguaiana (125.454 pessoas) e São Borja (61.761 pessoas) juntamente com a cidade argentina de Paso de los Libres (43.251) são as maiores populações da região. 68 GUARANY, Noel. Milonga de Tres Banderas: Payador, Pampa, Guitarra (1976). Disponível em Acesso em 27 set. 2018.

39

A campanha, região sul do estado, caracterizada pelos pampas e pelos latifúndios pecuaristas e charqueadas, dominou o cenário político e econômico do Rio Grande durante todo o século XIX. Suas cidades principais, Rio Grande, Pelotas, Santana do Livramento, Bagé, Alegrete e Uruguaiana, estavam localizadas geograficamente próximas às fronteiras com o Uruguai e Argentina, divisa meramente política, pois culturalmente e economicamente essa região estabeleceu conexões muito sólidas com a região Platina, conexões essas muito mais consistentes que com a capital do estado, a cidade de Porto Alegre69. Como já citamos anteriormente, a região Platina, comandada pelas cidades portuárias de Buenos Aires e Montevidéu era a principal zona de influência do imperialismo britânico na América do Sul e essa influência se expandiu para suas fronteiras. A malha ferroviária uruguaia comandada pela “The Central Uruguay Railway Company” cresceu vertiginosamente. No ano de 1883 o país vizinho dispunha de 1.535 km de ferrovias, que atingiram as cidades

69 Um exemplo marcante da maior conexão com a região do Prata é a cidade de Uruguaiana. Desde o ano de 1886 a cidade estava ligada através de ferrovias com a capital uruguaia Montevidéu. Os trilhos do trem somente vão conectar a cidade com a capital do estado, Porto Alegre, vinte anos depois, no ano de 1907.

40 fronteiriças de Artigas e Rivera70. No lado gaúcho, a rede viária do estado do Rio Grande do Sul apresentava muita precariedade e dificuldade para escoar a produção, cenário que condicionou os pecuaristas gaúchos a utilizarem com uma frequência muito grande o porto de Montevidéu em detrimento ao porto de Rio Grande, fortalecendo ainda mais suas relações com a região Platina. A região do Planalto norte do estado que até meados do século XIX era pouco habitada, modifica-se radicalmente com a imigração, principalmente a alemã (na região do Vale do Sinos) e italiana (na Serra e Noroeste). Com um dinamismo econômico totalmente diferente da tradicional campanha, baseando-se em pequenas propriedades (mini fundiárias) e na diversificação de produtos agrícolas, a região começou a se desenvolver e no início do século XX exercer poder econômico (o poder político ainda estava nas mãos dos pecuaristas do sul) do estado71. É nesse momento que a cidade de Porto Alegre começa a se sobrepor ao domínio do eixo Pelotas-Rio Grande e começa a se consolidar como grande potência econômica e cultural do estado gaúcho. Essa breve contextualização geográfica, econômica e política do Rio Grande do Sul, suas conexões com os vizinhos do Prata, é fundamental para entendermos a excepcionalidade do estado na recepção e difusão do futebol. É o que buscaremos problematizar no próximo subcapítulo.

1.3.2 O Advento e Difusão do Futebol no Rio Grande do Sul

A campanha gaúcha, como vimos anteriormente, tinha grandes conexões com Argentina e Uruguai, pioneiros na atividade futebolística da América do Sul. O fato de cidades como Montevidéu já se destacarem nos primeiros anos do século XX, na prática organizada do futebol, naturalmente afetou toda sua área de influência, permitindo a região da campanha (muito menor em todos os aspectos, ao eixo Rio-São Paulo, que também já praticavam o esporte bretão) um contato precoce com o futebol naquele período. O primeiro clube de Pelotas a praticar futebol contou com uma bola trazida da capital uruguaia, onde o esporte já era referencia72. Na cidade de Santana do Livramento, fronteira com a uruguaia Rivera, foi fundado em 1902 o Sport Club 14 de Julho. Como pontua Mascarenhas: Em 1902, muito raro eram as cidades brasileiras que praticavam o futebol com alguma regularidade, e somente uma delas, São Paulo, já dispunha de uma liga, que naquele ano realizava seu primeiro campeonato de clubes. Uma aglomeração urbana como de Livramento, naquele momento, teria ínfimas chances de dispor da informação “futebol” e ainda menores probabilidades de incorporá-lo como prática social. Considerando-se sua localização, distante dos grandes centros

70 MASCARENHAS, Gilmar. A bola nas redes e o enredo do lugar: uma geografia do futebol e de seu advento no Rio Grande do Sul. São Paulo: USP (tese de doutorado), 2002. p. 122. 71 Idem. p.125. 72 ALVES, Eliseu de Mello. O futebol em Pelotas. Pelotas: Livraria Mundial, volume I. 1984. p. 14.

41 urbanos nacionais, das zonas portuárias mais dinâmicas ou de outras atividades potencialmente aglutinadoras de agentes britânicos (minas, grandes fábricas etc.), Livramento certamente estaria alijada do mapa do futebol no Brasil no início do século. Não fosse, é claro, a forte conexão com Montevidéu73.

O caso de Santana de Livramento não constitui uma exceção. A maioria das equipes mais antigas do estado do Rio Grande do Sul, que ainda hoje estão em atuação, é da fronteira Sul do estado. Como já citamos, a cidade de Pelotas, grande centro urbano da região com o Esporte Clube Pelotas (1908) e o Grêmio Esportivo Brasil (1911). A cidade de Rio Grande, principal porto da região, que mantinha contato frequente com Montevidéu e dispunha de uma pequena colônia britânica, com o Sport Club Rio Grande (1900, o clube mais antigo do Brasil, ainda em atividade). Bagé com o Guarany Futebol Clube (1907), entre muitos outros. A campanha nesse contexto não somente foi responsável pela difusão do futebol, mas também obteve a hegemonia dos primeiros campeonatos organizados no Rio Grande do Sul como veremos mais detalhadamente no próximo capítulo74. O domínio dos clubes da região da Campanha durante os primeiros anos do futebol no Rio Grande do Sul está diretamente ligado com a sua influência platina, mas esse domínio não se deve somente ao fato da região ter adotado de maneira precoce o futebol em relação ao restante do estado. Na região do Prata, a popularização do futebol inseriu, precocemente, o esporte em uma lógica mercadológica, onde o futebol já era tratado como espetáculo (rentável), ultrapassando as barreiras da “prática pela prática” como pregavam os sportsman. No Uruguai e na Argentina, já no início da década de 1910 encontraremos uma forte presença da prática do “profissionalismo marrom” ou “profissionalismo disfarçado”, como forma de reforçar as equipes para as competições. Essa política de contratações “às escuras”, foi assimilada rapidamente na região da campanha. Mascarenhas pontua: O Guarany FC, de Bagé, foi campeão estadual em 1920 com time de operários e negros, sendo quatro jogadores de origem uruguaia. Era comum se reforçar clubes da Campanha com talentos argentinos e uruguaios, que cruzavam a fronteira com toda a tranquilidade. Estava em formação um mercado de trabalho para os jogadores do futebol

73 MASCARENHAS, Gilmar. A bola nas redes e o enredo do lugar: uma geografia do futebol e de seu advento no Rio Grande do Sul. Sao Paulo: USP (tese de doutorado), 2002. p. 161. 74 Entre 1919, data do primeiro campeonato estadual do RS até 1939, os times da campanha venceram 10 dos 19 campeonatos disputados. As cidades de Pelotas, Rio Grande e Bagé acumulariam três títulos cada e Santana do Livramento um.

42 platino na metade sul do RS.75

1.3.3 Pelotas: a primeira capital do futebol gaúcho

A cidade de Pelotas era a maior e mais rica cidade da campanha gaúcha. Centro das charqueadas e com uma elite enriquecida, Pelotas nos primeiros anos do século XX era uma cidade cosmopolita, apta para receber e acolher as inovações e novidades advindas da modernidade. Se nos dias atuais, o futebol gaúcho está altamente concentrado no predomínio da dupla Grêmio e Internacional, é na cidade de Pelotas que o futebol se torna pela primeira vez, no estado do Rio Grande do Sul, um esporte verdadeiramente de massa. Visitando o centro histórico de Pelotas pode-se ter dimensão da prosperidade que a cidade adquiriu nos anos finais do século XIX e início do XX. Cafés ao estilo parisiense, teatros, parques, belos monumentos e edificações públicas, largos bulevares e praças, trazem um pequeno retrato da riqueza que a cidade, centro das prósperas charqueadas, concentrava. A elite local deseja e busca a modernidade. Para isso envia seus filhos a estudar na Europa (centro de tudo que é moderno) para que voltassem, transformados, refinados, modernos. A cidade já não era meramente a capital das charqueadas. Seus altos investimentos em infraestrutura, ferrovias, telégrafos, navegação, permitiu um forte crescimento industrial, possibilitando a entrada e o consumo dos mais variados produtos, tornando o eixo Pelotas-Rio Grande, a principal zona industrial do estado. Rio Grande como o ponto de exportação e importação e Pelotas como centro dos negócios e sede das principais empresas e bancos76. Esse dinamismo econômico, riqueza e cosmopolitismo pelotense permitiu que a cidade tivesse um ativo setor de entretenimento, comparado aos grandes centros brasileiros77. É nessa cidade ativa e vibrante que o futebol ganhará terreno fértil para a sua popularização. As primeiras partidas de futebol em terras pelotenses aconteceram em parques,

75 MASCARENHAS, Gilmar. A bola nas redes e o enredo do lugar: uma geografia do futebol e de seu advento no Rio Grande do Sul. São Paulo: USP (tese de doutorado), 2002. p.165. 76 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Economia & Poder nos anos 30. Série documento n. 5. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. P. 55. 77 MASCARENHAS, Gilmar. A bola nas redes e o enredo do lugar: uma geografia do futebol e de seu advento no Rio Grande do Sul. São Paulo: USP (tese de doutorado), 2002. p. 190.

43 praças e campos improvisados. O embrião do esporte na cidade foi uma partida de exibição do Sport Club Rio Grande em 1903. Já em 1912, o futebol ganhava corpo com uma forte liga composta por clubes que atraiam grandes públicos. O jornal “A Opinião Pública” já tinha páginas exclusivas para o futebol.78 O futebol rapidamente começou a frequentar as conversas de bares e os estádios passaram a fazer parte da paisagem urbana da cidade. A população de Pelotas comprou a ideia do futebol e a cidade era suficientemente estruturada para ter uma liga estável (com clubes organizados), rentável (estádios lotados) e bem sucedida (times com um bom nível técnico). Exemplo do sucesso do esporte bretão em Pelotas é o embate ocorrido entre o Esporte Clube Pelotas e o , partida que fazia parte das comemorações do centenário da cidade em 1912 (ano de fundação da Liga). Eliseu Alves afirma que cerca de sete mil pessoas compareceram ao estádio para ver a vitória do time pelotense79. Esse número representava mais que 10% de toda a população da cidade na época. Fundado em 1911, o Grêmio Esportivo Brasil cumpre um papel importante na popularização do futebol pelotense. Diferentemente dos demais clubes da Liga, que tinham origens em clubes da elite, o Brasil nasceu de funcionários de uma fábrica, a Cervejaria Haertel. Desde os primórdios aceitou nos seus elencos operários e negros. A localização do seu primeiro estádio é o bairro operário Cidade Nova, possibilitando um contato das classes populares cada vez maior com o futebol80. Nos dias atuais o Brasil é certamente o clube mais popular da cidade e sua torcida, conhecida como Xavante, é uma das mais numerosas e fieis do Rio Grande do Sul. O futebol de Pelotas foi pioneiro também na realização de partidas noturnas, quando a equipe do Sport Club Rio Branco, inaugurou a iluminação em seu estádio. Mas a grande contribuição do futebol pelotense para a mudança de paradigmas do futebol foi o pioneirismo da cidade em adotar o “profissionalismo marrom”. Já em 1914, com o espetáculo futebolístico consolidado, os clubes com um desejo cada vez maior de disputa,

78 Segundo Mascarenhas, o fato do jornal já no ano de 1911 destinar um jornalismo especializado para o futebol exemplifica a popularidade do esporte e a vanguarda do futebol pelotense. Pesquisando jornais de Porto Alegre, Fortaleza, Belo Horizonte, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro, o autor afirma que o jornal “A Opinião Pública” é um dos maiores exemplos da precoce dedicação a promoção do futebol. MASCARENHAS, Gilmar. A bola nas redes e o enredo do lugar: uma geografia do futebol e de seu advento no Rio Grande do Sul. São Paulo: USP (tese de doutorado), 2002. p. 200. 79 ALVES, Eliseu de Mello. O futebol em Pelotas. Pelotas: Livraria Mundial, 1984. p 54 80 Idem p.66

44 a contratação do atacante carioca Décio Viccari81, além da contratação de quatro uruguaios e um argentino82 pela equipe do Esporte Clube Pelotas, instituição que no mesmo ano desafiou e ganhou do Grêmio Football Porto-Alegrense, confirmando a cidade como hegemônica no futebol do cenário local. A cidade de Pelotas, portanto foi o berço do futebol espetáculo no estado do Rio Grande do Sul e pioneira em muitos aspectos de sua popularização. Entretanto com o início da década de 1920 e durante a toda a década de 1930, a cidade de Porto Alegre, capital do estado, assume definitivamente a dianteira econômica da região, representando a ascensão da região do Planalto em detrimento da Campanha. É nesse momento que o futebol de Porto Alegre passa a ter amplo domínio no estado.

1.3.4 Porto Alegre e a conquista do futebol

Desde as últimas décadas do século XIX, Porto Alegre começa a ter acesso a serviços importantes para o desenvolvimento capitalista na região. Em 1867 chega o telégrafo, a iluminação a gás e a ferrovia em 1874, rede de abastecimento de água em 1876, e a telefonia em 1886, além de uma vertiginosa expansão industrial e urbana83. Entre os anos de 1920 e 1940, a população da cidade cresceu 54% alcançando a impressionante cifra para a época de 275.867 habitantes. Nos 40 primeiros anos do século XX, Porto Alegre praticamente quadruplicou de tamanho84. A explicação para esse crescimento segundo Fortes é a criação de uma ampla rede de transporte (ferroviário e fluvial principalmente) que estimulou a criação de um grande parque industrial, bem como o escoamento da produção vindo das regiões das colônias do planalto (italianas e alemãs)85. Porto Alegre, portanto, consolidava-se como a principal força econômica e política do estado do Rio Grande do Sul, diminuindo o protagonismo das antigas tradicionais forças do sul do estado (Pelotas e Rio Grande), atraindo um fluxo migratório intenso, modificando sua paisagem e criando bairros

81 Jogador que havia sido campeão carioca pelo Botafogo em 1910; campeão paulista pelo Americano em 1913. Portanto tratava-se de um atleta que certamente jogava futebol profissionalmente, apesar da ilegalidade (o futebol era permitido apenas amadoristicamente). 82 Alves Op. Cit. p.71. 83 STROHAECKER, Tânia Marques. Atuação do público e do privado na estruturação do mercado de terras de Porto Alegre (1890 – 1950) In: Scripta Nova: Revista electronica de Geografia y ciência sociales, vol. IX, nº 194, Barcelona, 2005. 84 FORTES, Alexandre. Nós do Quarto Distrito: A classe trabalhadora porto-alegrense na Era Vargas. Campinas, Tese de Doutorado UNICAMP. 2001 p. 12. 85 Idem. p.12

45 operários como por exemplo o Quarto Distrito, São João e Navegantes, que concentraram o crescimento populacional da cidade86. Na cidade de Porto Alegre é clara a ação do poder público para levar a cabo esse projeto modernizador. Regiões centrais como os antigos Beco do Poço, Beco do Trem e Beco do Rosário, foram destruídos e seus habitantes desalojados para a região das ilhas (onde ainda hoje se concentram bairros muito pobres da cidade). Além disso, campanhas higienistas foram lançadas contra a população pobre, principalmente após a elaboração do Plano de Melhoramentos e Orçamentos em 1914, baseado na tríade “trânsito, beleza e higiene”87 . Como aponta Sandra Pesavento, a ações que buscavam “modernizar” a cidade não estavam limitadas apenas ao espaço urbano, mas atacavam também espaços de sociabilidade que atentassem contra a ordem burguesa e os “bons costumes”. Nesse período, portanto, não só os becos e cortiços foram destruídos como também as casas de jogos, os bordéis e os botequins onde a “vadiagem” era discriminada88. É nesse contexto que o futebol chega e desenvolve-se na cidade. Introduzido como uma, dentre tantas outras “novidades” advindas da modernidade, ele é primeiramente exclusividade dos abastados como vimos nos outros exemplos citados. Porém, a cidade assiste uma rápida popularização do esporte, principalmente durante as décadas de 1920 e 1930. Com o crescimento vertiginoso de Porto Alegre, o futebol também foi um dos produtos “importados” pelas estradas de ferro do interior do estado. A colônia alemã oriunda do Vale dos Sinos teve um papel pioneiro no futebol porto-alegrense diferentemente da região da campanha. As primeiras associações que praticariam futebol foram fundadas pela comunidade teuto-brasileira, dentre eles o tradicional Grêmio Foot- Ball Porto Alegrense no ano de 1903. Os imigrantes alemães dominavam a indústria local bem como formavam boa parte da elite de Porto Alegre89. A colônia alemã caracterizava- se pelo incentivo à prática esportiva e a ampla maioria dos clubes que praticavam o Turf, o Ciclismo, o Hipismo e o Pugilismo eram de origem teuta. Nesses clubes, o futebol passou a ser praticado e admirado, porém a popularização teve uma resistência maior que

86 STÉDILE, Miguel. Op Cit. p. 43. 87 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Da invisibilidade a regularização fundiária: a trajetória legal da moradia de baixa renda em Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS (dissertação de mestrado), 2000.p.58. 88 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os pobres da cidade: vida e trabalho – 1880-1920. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1994 p.10. 89 MAZO, Janice. Atlas do esporte no Rio Grande do Sul. Revista de Ciência do Esporte, Porto Alegre, 2006. p.206

46 no caso pelotense anteriormente citado. Na capital gaúcha segundo Stédilli, somente em 1922 há registro de clubes com operários nos seus elencos90, e é a partir da década de 1920 que a popularização do esporte acontece efetivamente na cidade. Para fazer parte da Liga Principal do futebol de Porto Alegre, existiam regras extremamente excludentes com o objetivo de afastar a população pobre dessa prática esportiva. Primeiramente um clube tinha que pagar a salgada quantia de 50 mil réis, comprovar sua existência, possuir campo próprio e boas condições de infraestrutura. A título de comparação, esse valor equivale ao valor de aquisição de um imóvel de grandes dimensões na área central da cidade. Depois de aprovado, o clube teria que pagar uma contribuição anual de 40 mil réis e outra mensal de 5 mil réis, bem como um título de joia de 200 mil réis91. Mesmo com todas essas exigências, a Liga ainda tinha o direito de recusar, sem nenhuma explicação, a inscrição de qualquer clube. O amadorismo era regra na liga dificultando o pagamento a jogadores. O jornal Correio do Povo, amplo defensor do amadorismo da Liga em nota enfatiza o artigo da instituição que proibia a prática profissional do futebol. Art.33 – A Liga não admitirá em seus matchs jogadores proffisionais ou indivíduos cuja reputação seja notoriamente duvidosa. Considerando-se profissionais aqueles que recebem remuneração de qualquer espécie, salvo gastos de viagem. A assembleia tendo conhecimento e provas de infração deste artigo, por parte de qualquer clube coligado, excluirá tais jogadores, cientificando os demais clubes e imporá ao infrator as que penas que julgar de justiça92.

Como um trabalhador poderia jogar futebol com essas normas tão rígidas e excludentes? Como um clube formado por operários poderia participar da Liga de futebol com essas regras? Essa forma de exclusão foi responsável pelo surgimento de novas ligas que praticaram e popularizaram o futebol na cidade. Nesta conjuntura, a cidade de Porto Alegre passou a possuir três ligas diferentes de futebol o que fazia deste esporte um dos aspectos relevantes do cotidiano da cidade e que ganhava cada vez mais espaço nas páginas dos jornais, como reflexo de sua importância. A população negra e pobre não ficava de fora dos ciclos futebolísticos, tendo ligas próprias para prática do futebol, dentre elas a conhecida “Liga dos canelas pretas”, na qual trabalhadores e negros eram aceitos,

90STÉDILE, Miguel. Da Fábrica à Várzea: clubes de futebol operário em Porto Alegre. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado UFRGS, 2011. p.80 91 Idem. p 90 92 Correio do Povo, 20/04/1911. p.2. In: STÉDILE, Miguel. Da Fábrica à Várzea: clubes de futebol operário em Porto Alegre. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado UFRGS, 2011.

47 e a afiliação de clubes não tinha custos, ou custos simbólicos. Para os torcedores – personagem novo que emergiu da popularização do futebol – o importante era que suas equipes apresentassem um bom desempenho e que ganhassem jogos e campeonatos. Nesse contexto surgem rivalidades históricas (como por exemplo Internacional x Grêmio) e o desejo de vencer estava cada vez mais presente, e esses torcedores eram também os consumidores do futebol. Isso levou os clubes a pagarem gratificações e premiações em dinheiro ou em presentes como forma de atrair os melhores jogadores para seus plantéis, pouco importando a classe social, nacionalidade ou a cor desse jogador. Esse fato colocaria em xeque essa característica tão presente do futebol: o amadorismo. Giulianotti aponta que a Europa viveu nos anos de 1920 esse paradigma que culminou na adoção do profissionalismo em países como Itália e Espanha93. Não foi a imprensa que popularizou o futebol. Foi o futebol, ao tornar-se uma prática social marcante, tornando-se cada vez mais um produto “vendável” e capaz de atrair milhares de pessoas a um estádio e de leitores, que possibilitou o surgimento de um jornalismo esportivo especializado. O jornal Correio do Povo, principal jornal gaúcho do período fazia ampla cobertura desses eventos esportivos e passou a ter grande procura popular por suas matérias futebolísticas. A evolução da popularidade do futebol possibilitou o pioneirismo da cobertura esportiva, da crônica e a criação do “especialista” tão presente até os dias de hoje. De pequenos anúncios nos cantos das páginas, o futebol passou a estampar as capas dos jornais rapidamente. Mas para isso acontecer, precisou deixar de ser objeto de distinção social, para ser parte fundamental da cultura popular. Passou do silêncio da aristocracia para a festa da ralé nas arquibancadas. Deixou de ser assunto em clubes distintos para assunto preferido das mesas de bar.

93 GIULIANOTTI, Richard . Sociologia do Futebol. São Paulo: Nova Alexandria, 2002. p.142

48 CAPÍTULO 2: FUTEBOL E IMPRENSA

O jornalismo esportivo, com destaque para o futebol, é hoje uma das principais áreas do jornalismo brasileiro e sul-americano. Milhares de publicações em sites especializados, cifras milionárias nos direitos de transmissão dos campeonatos94, programas radiofônicos e televisivos (em canais abertos e fechados), atualmente fazem parte do cotidiano da população. Tal fenômeno só foi possível graças ao processo de popularização que o futebol sofreu durante as décadas de 1910 e 1920. Entretanto nem sempre foi assim. O futebol já foi tratado pela imprensa como algo secundário – e em certa medida ainda é tratado dessa forma – que lhe conferia pouco ou nenhum destaque. Era considerado, como aponta o jornalista esportivo Paulo Vinícius Coelho, “um assunto menor”95, destinado muitas vezes a leitores considerados “inferiores”. Nunca que o futebol, ou qualquer outro esporte, poderia ousar ter o mesmo destaque que uma importante notícia sobre a vida política do país. A década de 1920 marca o início do processo de mudança desse cenário com o surgimento de uma imprensa especializada (revistas, colunas, jornalistas), do desejo cada vez maior do público em consumir o futebol e o crescente interesse político/econômico no esporte. Tais mudanças não ocorreram de forma uniforme na região estudada, os processos de surgimento da imprensa esportiva e da sua influencia para os rumos que do futebol tem processos distintos. Este capítulo será dividido em duas partes: na primeira o objetivo é mostrar o surgimento do jornalismo esportivo/futebolístico especializado e profissional na Argentina, Uruguai e Brasil (com destaque para o estado do Rio Grande do Sul). As primeiras publicações e seu processo de popularização na classe trabalhadora, acompanhando a “febre” do futebol como um esporte de massa. Na segunda parte o objetivo é apontar os principais embates nessa nova imprensa esportiva a respeito do processo de profissionalização do futebol e sua influência nesse processo.

94 As cifras envolvendo as transmissões do futebol aumentam anualmente. Na Argentina no ano de 2017 os direitos de transmissão somaram o montante de 586 milhões de reais. No Brasil essa cifra é ainda maior chegando a incrível marca de 1 bilhão e 800 milhões de reais no ano de 2020. Ver mais em: Acesso em 04 jan. 2020. 95 COELHO, Paulo Vinícius. Jornalismo Esportivo. São Paulo. Editora Contexto, 2003. p.7.

49 2.1 SURGIMENTO DA IMPRENSA ESPECIALIZADA

No ano de 1919 surge em Buenos Aires o que virá a ser a primeira revista especializada em esportes (e rapidamente o futebol será o principal) de grande circulação da América Latina, com o nome de El Gráfico. A publicação nasce em meio a uma conjuntura em que as “leis do mercado” ganham cada vez mais destaque. Data desse período uma mudança significativa da imprensa argentina e, estendendo para níveis continentais, a imprensa da América do Sul, onde os periódicos vão cada vez mais deixar de serem publicações oficiais de partidos e grupos políticos para adotarem um discurso mais, pelo menos oficialmente, isentos. A ideia da “neutralidade da imprensa” algo característico até os dias atuais advém desse período, onde uma imprensa partidária passou a ser vista como algo negativo. El Gráfico desde seu inicio deixa claro que não tem objetivo de ter opiniões políticas em suas páginas dedicando-se exclusivamente ao entretenimento (aqui se enquadra desde os eventos que aconteciam na cidade como os filmes em cartaz, shows até fotos de bailarinas), corpo humano e dos esportes. No ano de 1921 a revista tornou-se majoritariamente esportiva e o futebol o principal assunto a ser explorado. Na década de 1920 a revista chega a marca de 200 mil exemplares semanalmente e se solidifica como o grande difusor do jornalismo esportivo argentino96.

FIGURA 1: Uma das primeiras capas de El Gráfico, datada de 1920, período em que a revista ainda não era em sua totalidade dedicada aos esportes.

96 ARCHETTI, Eduardo. El potrero y el pibe: territorio y pertenencia en el imaginario del fútbol argentino. Porto Alegre. Revista Horizontes Antropológicos. Ano 14, vol 30. 2008. p. 263.

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El Gráfico: capa da ediçao 008 de 28 de outubro de 1920

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FIGURA 2: Capa da Revista El Gráfico, edição de 05 de novembro de 1932. Com o futebol a eminencia da profissionalização, a revista já era uma publicação dedicada exclusivamente aos esportes e quase que em sua totalidade dedicada ao futebol. A capa mostra os anos iniciais do que seria uma das maiores rivalidades do futebol mundial: Boca Juniors x River Plate

El Gráfico é um dos periódicos responsáveis pela construção de uma história do futebol argentino. Foi o primeiro veículo de imprensa que falava a “linguagem de arquibancada”, diversos apelidos dos clubes mais populares do país foram popularizados por El Gráfico97. Eduardo Archetti aponta que a revista é responsável pela desenvolvimento da “dupla fundação do futebol argentino”. Se por um lado o futebol na

97 Assim os jogadores do Club Atlético Independiente passaram a ser chamados de “Diablos Rojos” em referencia as cores da instituição; O Club Atlético Boca Juniors era chamado de Xeneize (uma referencia da origem genovesa dos imigrantes que fundaram o clube); o Club Atlético San Lorenzo de Almagro eram chamados de “Cuervos” pois a instituição foi fundada por padres; o Racing Club de Avellaneda era chamado de “La Academia” pelo bom futebol que desempenhava e jogadores que revelava no início da década de 1930. Esses são apenas alguns exemplos de apelidos que foram popularizados pelo estilo de redação fundado com El Gráfico.

52 Argentina tem uma raiz britânica, é somente com o surgimento do futebol criollo98 que o futebol passa a ser um símbolo da nação. A fundação criolla é datada a partir do ano de 1913 com o Racing Club que, sem nenhum jogador de origem inglesa, conquistou o campeonato argentino, acabando com anos de domínio do Alumni (tradicional time de origem inglesa)99. O futebol começou a se difundir quando os nomes dos craques deixaram de ser britânicos para se transformar em sobrenomes puramente latinos, especialmente italianos e espanhóis como García, Martínez, Ohaco, Olazar, Chiappe, Calomino, Isola, Latoria, etc.100

El Gráfico foi fundamental instrumento para a construção do futebol como um elemento importante da nacionalidade argentina. A partir dessa interpretação de duplo nascimento do esporte, o futebol assim como o tango, também poderia ser considerado algo genuinamente argentino e por esse motivo, um orgulho nacional. O futebol britânico passa a ser visto como algo mecânico, coletivo e previsível. Em oposição, o futebol criollo, no qual dominam a improvisação, o gingado ou, como gostam de pontuar os argentinos, o “futbol de gambeta”101. Um dos principais jornalistas da revista foi, sem dúvidas, Ricardo Lorenzo, conhecido dos leitores pelo seu apelido “Borocotó”. Uruguaio nascido no ano de 1902, Ricardo começou a trabalhar como jornalista no jornal uruguaio El Día no início da década de 1920. Leitor assíduo, muito influenciado pela literatura, seus artigos no jornal uruguaio chamaram a atenção de Aníbal Vigil, o primeiro diretor da revista El Gráfico, que convidou o jovem jornalista uruguaio a trabalhar na revista esportiva argentina no ano de 1927102. Adotando o pseudônimo de Borocotó, Lorenzo assinava crônicas semanais em El Gráfico e se converteu em um dos mais influentes jornalistas esportivos da Argentina, responsável direto pela a aproximação do futebol com a literatura e pela criação de uma história própria do futebol portenho como podemos verificar em artigo

98 A palavra Criollo advém do período colonial. Designava uma classe de pessoas que eram descendentes diretos dos colonizadores espanhóis que, entretanto, nasceram na colônia. O sentido conferido por El Gráfico quando pontua um futebol criollo, é o surgimento de um futebol genuinamente argentino, apesar de suas origens britânicas. Um futebol com estilo próprio, um estilo único. 99 ARCHETTI Op. Cit. p. 265 100 (EG, n. 470, 1928, p. 15). Apud Archetti. 270. 101 A palavra “gambeta” deriva da literatura gauchesca da Argentina que descreve a maneira de correr do “ñandú” (uma espécie de ave, parecido com uma Ema, presente por todo o pampa argentino). A referência futebolística da palavra está associada ao ato de driblar, um estilo de jogo individual e carregado de improviso. 102 Depoimento de Clotilde Torterolo de Lorenzo, esposa de Ricardo Lorenzo. “100 anos de El Gráfico”. https://www.elgrafico.com.ar/articulo/1099/33880/ricardo-lorenzo-borocoto (acesso em 15 jan 2020)

53 publicado em 1928: ...uma criança de cara suja, com um cabelo que protestava ao pente o direito de ser rebelde; com os olhos inteligentes, esvoaçante, enganador e persuasivo, com olhares cintilantes que geralmente dão a sensação de riso travesso que não pode expressar a boca de dentes pequenos, como se estivesse desgastada por morder o pão "de ontem". Alguns remendos unidos o servirão como calças. Uma camiseta listrada com as cores argentina muito decotada e com muitos buracos feitos pelos ratos invisíveis de uso. Os joelhos cobertos com feridas que desinfetaram o destino; com os pés descalços, ou com alpargatas cujos buracos na ponta dos dedos mostram que foram atingidas por muitos chutes. Sua atitude deve ser característica, dando a impressão que esta realizando um dribbling com uma bola de pano. Claro: a bola não pode ser outra. Pano, e de preferência forrado com uma meia velha. Se algum dia esse monumento fosse inaugurado, seríamos muitos os que de frente dele nos descobriríamos ante um altar.103

Borocotó e El Gráfico são difusores da ideia de que o verdadeiro futebol nasce dos campos de várzea, dos meninos jogando descalços nas ruas com bolas improvisadas. Esse pensamento é uma inevitável influência da popularização do futebol nas parcelas mais pobres da sociedade e a imprensa soube capturar esse momento. O futebol não era mais exclusividade da elite inglesa e os pobres começaram a viver o esporte seja como hinchas nas arquibancadas seja como cracks nos gramados. Esse movimento será fundamental para o debate acerca da profissionalização do futebol, debate esse feito entre a imprensa, clubes, associações e torcedores. Entretanto, os esportes e o futebol não eram domínio apenas de El Gráfico, outros jornais importantes como o diário Crítica, um dos periódicos de maior circulação no país durante o período, dedicavam páginas para os esportes e durante a década de 1920 é visível que o futebol começa a se destacar como assunto preferido das páginas esportivas com o surgimento do jornalismo especializado no esporte bretão que se popularizava a passos largos. Para compreender essa expansão do futebol como assunto nos jornais é preciso fazer uma breve contextualização das transformações sociais que a Argentina e sua população, em especial em sua capital, estava passando. Como apontado no capítulo anterior, na década de 1910 a população argentina tinha um grande contingente de imigrantes e filhos de imigrantes. Segundo o censo realizado no ano de 1914, 30% dos habitantes da Argentina eram estrangeiros104, e essas

103 El Gráfico. Edição n 480. 15 de Setembro de 1928. P. 11. 104 Censo da República Argentina de 1914. http://www.estadistica.ec.gba.gov.ar/dpe/Estadistica/censos/C1914-T1.pdf (acesso em 03 jan 2020)

54 cifras eram aumentadas se considerarmos os filhos de imigrantes. As principais cidades do país como Rosário, Córdoba, La Plata e principalmente a capital Buenos Aires, eram centros urbanos cosmopolitas, onde pessoas de diferentes lugares do mundo (principalmente europeus, em sua maioria italianos e espanhóis) viviam e relacionavam-se, carregando consigo línguas e culturas diferentes. Nesse cenário, a integração desses imigrantes na sociedade passou a ser uma questão aos governantes argentinos. Beatriz Sarlo pontua que a educação será um importante mecanismo para essa integração. Políticas públicas de acesso à educação formal e programas para a alfabetização da população são implantados durante as décadas de 1910 e 1920. Essas políticas refletiram na quase erradicação do analfabetismo em Buenos Aires, registrando números de 2,39% de analfabetos entre os nativos argentinos e 6,64% entre os imigrantes105. Tais números aumentaram de maneira significativa os leitores, ou pelo menos os potenciais leitores do país. Soma-se a isso o fato de que durante esse período diversas e importantes leis trabalhistas106 foram aprovadas no país, o que possibilitava à população um tempo livre maior para se dedicar a práticas esportivas, de lazer e a leitura. O futebol nesse período popularizou-se em duas direções: na prática do esporte em si, com a população das periferias e regiões metropolitanas jogando futebol, fundando times de bairro que vão ser decisivos para a popularização do futebol no sentido do surgimento de torcedores. Ou seja, o futebol não era apenas praticado pela população como também era comentado, discutido e acompanhado, tornando-se um potencial “produto” que os jornais começarão a explorar. Fundado em 1913, o jornal Crítica é caracterizado pela inovação no modo de se produzir e escrever um periódico. Como aponta Sylvia Saitta, Crítica foi o primeiro jornal argentino a incorporar em suas páginas material para além da discussão política, sendo o primeiro jornal a criar uma “página policial”, um “caderno cultural” onde informava os leitores das peças de teatro, shows e eventos que estavam acontecendo, bem como é o primeiro jornal a dar uma importância aos esportes criando o “caderno esportivo”107, páginas dedicadas aos mais variados eventos esportivos praticados, principalmente em Buenos Aires, mas também em toda a Argentina.

105SARLO, Beatriz. Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, Nueva Visión, Buenos Aires, 1988, p. 18. 106 Idem. 107 SAITTÁ, Sylvia. Regueros de tinta. El diario Crítica en la década de 1920. Buenos Aires, Sudamerica; 1998. P.15.

55 Em seu caderno esportivo, criado em 1915, o jornal dedica duas sessões fixas: “Carreras”, dedicada ao Turfe, referente às corridas de cavalo realizadas principalmente no pomposo hipódromo de Palermo em Buenos Aires. A outra sessão fixa era intitulada “Football, aviación y otros deportes”. Na década de 1910 fica evidente, portanto, o destaque ao Turfe, apesar do futebol já estar presente nas páginas do jornal. Esse cenário mudará na década de 1920, quando o futebol passa a ocupar um lugar de destaque devido a sua inigualável popularização. Em 1923 o jornal atinge a marca de 145 mil exemplares diários e o futebol passa a ser claramente o principal esporte abordado. Nesse período, Crítica inova em dois sentidos: em primeiro lugar surge em suas páginas a crônica futebolística, que vai expor o futebol para além das informações básicas (resultados, tabelas, horários), aproximando o esporte da literatura opinativa, conferindo-lhe um destaque nunca antes presenciado. O redator do jornal na época, Juan José de Soiza Reilly relata como foi concebida essa inovação do jornal: Um dia, Natalio Botana – mestre genial dos jornalistas-, lamentava-se que seu diário Crítica não estava alcançando a difusão que ele sonhava. Preciso de algo – dizia -, que possa me servir de alavanca. El Diente – apelido de um dos vendedores de jornal (canillitas) mais inteligentes das ruas Eduardo Dughera – lhe aconselhou: Se queres que Crítica vá as alturas, dedique uma página inteira ao futebol. Botana abriu os olhos. Tinha a disposição alguns cronistas no jornal, e para falar de futebol escolheu um rapaz cheio de talento, um literato puro, de um estilo requintado. - Tu estás responsável pela página de futebol! - Eu? Mas eu não entendo nada de futebol! - Melhor! Assim tu dirás coisas novas. Te confio a tarefa de embelezar o futebol... Foi Pablo Rojas Paz, o primeiro entre outros talentos literários que levou o futebol para a literatura108.

Assim como El Gráfico, o jornal Critica também foi inovador no sentido de conferir aspectos da literatura às crônicas futebolísticas, aproximando o público do esporte. Pablo Rojas Paz109 era um dos mais importantes escritores do país e amigo pessoal de Jorge Luis Borges. Entre as décadas de 1920 e 1940 foi cronista futebolístico do jornal Critica com o pseudônimo de “El negro de la tribuna”. Era responsável pela coluna intitulada “El Partido de Ayer” onde comentava as partidas do campeonato

108 SAITTA. Op.Cit. p 3 109 Nascido em Tucumán em 1896, Pablo Rojas Paz foi agraciado com o Premio Nacional de Literatura em 1940 em homenagem a sua mais importante obra o livro “El patio de la noche”. Faleceu em Buenos Aires no ano de 1956.

56 disputadas no dia anterior. É visível a preocupação estética do texto, onde a escrita não é tratada como algo mecanicamente informativo (quanto foi o resultado, quantas pessoas foram ao estádio, quem fez os gols etc.), mas sim uma redação que busca transportar o leitor para dentro do espetáculo, sentir a emoção do estádio, os preparativos das torcidas, a rivalidade, a alegria e a tristeza, como podemos constatar na crônica que comenta o “Clássico Platense” disputado pelos dois principais times da cidade de La Plata, Estudiantes e Gimnasia y Esgrima: Uma cidade inteira jogou futebol La Plata jogou ontem seu clássico, seu extraordinário match. A cidade experimentou assim as emoções mais profundas. Toda a cidade estava na arquibancada. Nada se iguala ao entusiasmo com que os platenses esperavam este dia em que Estudiantes e Gimnasia y Esgrima deveriam lutar para estabelecer posição. Uma nota característica foi a torcida que incentivou com seus gritos os meninos corajosos que honram o futebol argentino. É explicável, de modo que na cidade não se falou em mais nada durante esses dias. Chegamos a La Plata as 11h da manha. Queríamos ver tudo nos seus menores detalhes. A essa altura já desde a rua 25 até a avenida Berisso estavam cheias de torcedores esperançosos em Morgada [atacante do Gimnasia] que vinham gritando com bandeiras nas mãos. Nos saudavam ao passar com gritos de entusiasmos. No estádio havia um clima tranquilo, se conversava com alegria e ninguém falava da luta eminente, como bons soldados que guardavam em silencio uma hora antes do ataque. A uma da tarde, toda a arquibancada estava tomada de torcedores. A que hora haveria de ter chegado essa gente toda? “Eu cheguei as 11 e não me mexi daqui”, nos disse um menininho pendurado em uma coluna. Atrás de mim uma bela moça me pergunta: “Quanto falta senhor?”. É torcedora do Estudiantes e está tremendo de impaciência. Para ela e suas companheiras de tribuna seria melhor que a partida já tivesse começado. Era incrível como sofriam as pobrezinhas. [...]110

As crônicas do jornal permitiam, muitas vezes, que poucas horas depois do jogo os leitores soubessem com detalhes o que aconteceu na partida111. Outra inovação do jornal foi a utilização de fotos panorâmicas do estádio, bem como fotos dos lances mais significativos das partidas descritos publicação112. As relações do diário Critica com o futebol argentino estreitam de maneira significativa durante a segunda metade dos anos de 1920, principalmente por dois fatos históricos: a cobertura massiva que o jornal fez do giro europeu que o Club Atlético Boca

110 Critica. 19 de Outubro de 1931. P. 7 111 Naquela época a maioria das partidas ocorriam ás 12h. O jornal Crítica tinha uma tiragem vespertina que chegava as bancas as 17h. 112 SAITTÁ. Op.Cit p.2

57 Juniors, time mais popular do país, realizou no ano de 1925 e a chegada de Natalio Botana, dono do jornal, a presidência da Asociación Argentina de Football (AAF), entidade máxima do futebol portenho naquele momento, em 1926. Centraremos nossa análise nesses dois fatos.

2.1.1 “Tu bandera azul y oro, en Europa tremoló!113”: o giro europeu do Boca Juniors

Um evento histórico que transformou a forma como o futebol era tratado pela grande imprensa argentina foi a cobertura feita pelo jornal Critica da gira europeia114 realizada pelo Club Atlético Boca Juniors no ano de 1925. Era a primeira vez que uma equipe argentina jogava no “Velho Continente”. Patrocinado pela Asociación Argentina de Fútbol (AAF) o time boquense embarcava para a Europa para partidas na Espanha, Alemanha e . O futebol sul-americano e, em especial, o futebol rio-platense, chamava a atenção e era uma atração na Europa. Um ano antes, superando todos os prognósticos, o Uruguai havia se sagrado campeão dos jogos olímpicos de Paris. O futebol, portanto, estava se globalizando e a iniciativa do clube argentino não era algo isolado, como aponta o historiador Juan Antonio Simón: O desafio futebolístico e cultural que impulsionou o clube argentino estava mostrando as bases de um esporte que começava a compreender- se desde uma perspectiva global, beneficiada pela melhora dos meios de transporte que permitiam – tantos os clubes europeus como os sul- americanos – poder enfrentar rivais do outro lado do oceano e, ao mesmo tempo, gerar maiores benefícios econômicos para suas sociedades. Não se pode esquecer que a gira do Boca Juniors na Espanha coincidiu com as da equipe uruguaia do Club Nacional de Montevidéu e dos brasileiros do Club Athletico Paulistano (equipe que depois se converteu no São Paulo Futebol Clube), fato que foi incorporado pela imprensa através de continuas comparações entre as equipes.115

Uma rápida pesquisa nas redes sociais (oficiais ou não) dedicadas ao Boca Juniors

113 Hino Oficial do Club Atlético Boca Juniors 114 Durante o ano de 1925 o Club Atlético Boca Juniors realizou uma gira europeia (Espanha, França e Alemanha). Ao total a equipe argentina jogou 19 partidas em solo europeu, com 15 vitórias, 1 empate e 3 derrotas, somando 78% de aproveitamento. O Boca foi liberado pela Asociación Argentina de Football para a disputa e ao regressar recebeu o título de “Campeão de Honra” pelo seu bom desempenho. 115 SIMÓN, Juan Antonio. Fútbol global e identidades nacionales en 1925: la gira del Club Atlético Boca Juniors en España a través de su impacto en la prensa. Bogotá. Revista História Crítica n.61. 2016. P. 45.

58 monstrão a importância do giro europeu de 1925 na história do clube116, o museu da instituição, situado em Buenos Aires, anexo ao estádio La Bombonera, dedica um espaço privilegiado para o evento, com fotos, troféus e documentos oficiais. O próprio hino do Boca cita a aventura europeia da equipe Azul y Oro. O ano de 1925 e o giro europeu do Boca são marcos transitórios na maneira como a imprensa aborda o futebol. Antes de 1925, como veremos com mais detalhes adiante, o consenso no jornalismo esportivo argentino era condenar as práticas profissionais que eram proibidas e duramente reprimidas pelas entidades que organizavam o futebol no país. A ampla cobertura da imprensa da exitosa campanha boquense, principalmente do jornal Crítica, consolida o futebol como um esporte argentino por excelência, aglutinador da identidade nacional, aumentando as fileiras de adeptos e interessados nesse assunto117. Pela primeira vez uma equipe de reportagem foi enviada para o outro lado do mundo para acompanhar in loco e com atualizações diárias um evento esportivo. Depois dessa inovação do diário Crítica, os outros periódicos, percebendo o grande interesse da população no futebol, enviaram repórteres para acompanhar a delegação argentina nos dois últimos grandes eventos futebolísticos antes da profissionalização: os Jogos Olímpicos de Amsterdã, de 1928, e a primeira Copa do Mundo de Futebol, de 1930, realizada no Uruguai. O Boca Juniors já era uma importante instituição do futebol argentino. Era bicampeão (1923 – 1924) do campeonato organizado pela AAF. O clube era a base do selecionado nacional que em 1924 ganhou do selecionado uruguaio campeão olímpico que havia causado um grande espanto em terras europeias. Essa vitória foi fundamental para apontar o lugar de destaque do futebol argentino como um dos melhores do mundo, o que justificaria a iniciativa de um giro europeu. O pensamento lógico da época era: “se havíamos ganhado dos ganhadores, somos tão bons como eles, ou ainda melhores!”118. O giro começou a ser organizada entre dezembro de 1924 e janeiro de 1925. Desde o início o jornal Crítica fez uma cobertura especial para o evento, incentivando todos os admiradores do futebol a unir forças para apoiar o Boca Juniors nesse importante evento: É necessário perceber o que significará para o prestígio do clube Boca Juniors a gira que se iniciará. É necessário perceber o significado que essa gira terá para o futebol argentino e também temos que pensar sobre a importância patriótica que envolve a realização da gira planejada, para

116 No site oficial do clube https://www.bocajuniors.com.ar/el-club/historia, a gira europeia tem destaque especial na história do Boca Juniors. 117 Luciano Servera. Op.Cit p. 10. 118 FRYDENBERG Op. Cit. p. 93

59 justificar aquela explosão de entusiasmos que estamos comprovando entre os associados do Boca Juniors, entre os jogadores e torcedores em geral. O futebol argentino precisa ser conhecido no exterior para que seu verdadeiro avanço poça ser testemunhado porque o conhecimento que os estrangeiros tem do nosso futebol obtidos por equipes europeias que nos visitaram pode não ter sido suficiente. Somente assim conseguiremos que nos considerem como somos e não como eles acham que somos. A viajem levará o objetivo de obter no exterior o mais grande dos êxitos para a instituição, para o esporte e para o nosso país119.

O que estava em jogo, portanto, era o prestígio do futebol argentino. Enviar uma equipe de reportagem para esse giro era considerado pelos diretores e redatores do jornal como um ato patriótico. O diário Crítica trabalhou desde o início das tratativas para a realização do giro para a construção de um consenso do Boca Juniors como um representante nacional, com o objetivo de acabar ou pelo menos minimizar as rivalidades existentes entre os clubes e seus torcedores, pois apesar de a equipe boquense ser um time extremamente popular (já era na década de 1920 o clube com a maior torcida da Argentina), o clube representava apenas uma parte dos torcedores. Era preciso criar uma atmosfera favorável para que os leitores, torcedores de outras instituições, compreendam que a representação do Boca na Europa vai defender as cores do país e não apenas do clube120. Na noite do dia 4 de fevereiro de 1925 a equipe do Boca embarcou com destino a Montevidéu no Uruguai para posteriormente prosseguir com viagem rumo à Espanha. Crítica convoca os torcedores a comparecerem ao embarque para dar o último apoio à delegação. A convocação foi bem sucedida pois cerca de 10 mil pessoas compareceram, segundo o jornal: Dez mil torcedores despediram-se do Boca Juniors A grande multidão evidenciou a simpatia que desperta a instituição boquense e a confiança depositada no mérito dos jogadores que a representam. Um grande cortejo acompanhou os jogadores desde o estádio boquense até a Doca Sul, destacando a manifestação dos sócios do River Plate com sua bandeira. O entusiasmo foi comovente, provocando um sentimento de júbilo. Os jogadores foram levados e aplaudidos pela multidão que os aguardava. A despedida da equipe adquiriu aparência apoteótica na noite passada. Um mundo de fanáticos de todas as tendências unidos por um único anseio e uma única esperança, se despediu com um otimismo juvenil de uma vitória próxima.121

119 Crítica, 2 de janeiro de 1925, p. 14 120 FRYDENBERG Op. Cit p.98 121 Crítica, 5 de fevereiro de 1925. P.5

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Qual era o particular interesse e expectativa do jornal para estar tão empenhado na cobertura e divulgação desse evento esportivo? Como apontamos anteriormente, Crítica foi fundado em um contexto de crescimento do consumo por parte da população que estava tendo cada vez mais acesso a serviços e entretenimento. Nesse contexto, tanto o futebol como os jornais alavancaram sua penetração na sociedade e, consequentemente, suas receitas. Três anos antes, no ano de 1922, durante o Campeonato Sul-Americano de Seleções realizado no Brasil, o proprietário do jornal Crítica, Natalio Botana, percebeu que o futebol era um mercado em ampla expansão, pois as vendas do jornal cresceram exponencialmente devido à diária cobertura feita para o evento. Hugo Marini, redator chefe do jornal foi designado por Botana para acompanhar a equipe do Boca durante todos os meses do giro europeu, trazendo informações diárias, tornando assim Crítica o primeiro jornal a enviar um correspondente especial para acompanhar um evento esportivo122. Crítica na Europa Hugo Marini nosso enviado especial. Crítica sempre foi e seguirá sendo, um dos jornais que mais tem feito pelo esporte. Não podíamos deixar de acompanhar essa delegação a Europa. Enviamos com eles um representante nosso que fará o leitor conhecer os detalhes de cada uma das partidas e intimidades da viagem. Os torcedores ficaram informados de tudo que acontecer na gira. A tarefa foi conferida ao chefe dessa página, don Hugo Marini, jornalista de sangue, com habilidades pouco comuns. 123

A cobertura da campanha da equipe boquense na Europa foi um verdadeiro “divisor de águas” no modo como a imprensa lida com o futebol. Não interessava mais uma imprensa meramente informativa dos resultados, das tabelas ou da cobertura das partidas. A imprensa começa a tornar-se participativa e opinativa na construção de um debate público a respeito do que apropriado ou não para o futebol, do que é moral ou não, do que é justo ou não. Durante toda a década de 1920 o futebol na Argentina era oficialmente amador. Entretanto a partir de 1925 podemos constatar de maneira significativa uma maior presença na discussão a respeito da pratica conhecida como “amadorismo marrom” e um debate sobre a importância da discussão acerca o profissionalismo no futebol. E a imprensa não queria mais ser apenas um veículo

122 SAÍTTA, Sylvia. Regueros de tinta. El diario Crítica en la década de 1920. Buenos Aires: Sudamericana, 1998. P. 66 123 Crítica, 4 de fevereiro de 1925, p. 15

61 informativo dessas questões, mas sim um sujeito mediador desse debate. Um exemplo disso é a eleição de Natalio Botana à presidência da Asociación Argentina de Football (AAF) em 1926.

2.2: URUGUAI: GLORIOSA CELESTE OLÍMPICA: O PAPEL DO ESTADO E DA IMPRENSA NA POPULARIZAÇÃO DO FUTEBOL

O Uruguai é um país que respira futebol. Assim como citado na música “Gloriosa Celeste” do cantor folclorista Canario Luna, em cada esquina, em cada bairro, em cada escola encontraremos um campinho e muitos meninos sedentos por jogar bola. Esse pequeno país da América do Sul, com pouco mais de três milhões de habitantes, carrega o orgulho de ser o primeiro campeão mundial de futebol (1930) e o primeiro sul- americano campeão olímpico de futebol (Paris 1924), título que se repetiu no ano de 1928, em Bruxelas. O processo de modernização, tanto no âmbito político como econômico, vivido pelo Uruguai nas primeiras décadas do século XX foi fundamental para a popularização do futebol especialmente na capital Montevidéu. O desenvolvimento industrial e o crescimento urbano gerados principalmente com a chegada de José Batlle y Ordóñez à presidência, intensificou a imigração, sustentando um “nacionalismo cosmopolita”124, segundo o qual os imigrantes necessitavam também serem integrados à sociedade, tornarem-se uruguaios, e os esportes de um modo geral – principalmente o futebol – desempenharam um papel decisivo nessa tarefa. É impossível compreender como o futebol se popularizou no Uruguai sem entender o processo histórico e cultural que José Pedro Barrán e Benjamin Nahum classificam como “o Uruguai dos novecentos”125. É nesse momento que podemos definir que começa a criação do “uruguaio moderno” do século XX, que deixaria no passado as disputas e guerras civis sangrentas, marcas do país durante todo o século XIX. A criação de escolas públicas bem como o combate ao analfabetismo são marcas desse novo país. O acesso à atividade física (algo cada vez mais visto como positivo pelas políticas públicas) e à imprensa são cada vez mais partes integrantes da realidade dos uruguaios:

124 QUINTELA, Guido. Colombes 1924: El triunfo celeste y sus usos políticos. In: Cuaderno de História 14. A romper lared: miradas sobre fútbol, cultura y sociedad. Montevidéu. Biblioteca Nacional, 2014. p. 18 125 BARRÁN, José Pedro; NAHUM, Benjamín, Batlle, los estancieros y el Imperio Británico. Primer tomo: El Uruguay del Novecientos, Montevideu ebo, 1979.

62 A imprensa de grande tiragem foi possível pela difusão do ensino primário que ampliou o número de potenciais leitores, o acesso das maiorias a vida política. A venda nas ruas substituindo as assinaturas enviadas pelos correios, o barateamento dos custos unidos a chegada da publicidade, o aperfeiçoamento das maquinas de impressão, tudo isso conjugado. Por sua vez a estabilidade política tendeu a democratizar a grande imprensa, por um largo período livre de censuras, colocando em discussão os principais problemas do país126.

Rodolfo Porrini disserta como a partir do estabelecimento de leis trabalhistas, principalmente depois das leis laborais da década de 1910 (jornada de oito horas, descanso semanal, férias), os trabalhadores dispunham de um maior “tempo livre” e o estado uruguaio fomentou políticas de recreação e lazer para essa nova estrutura, pensada como questão de saúde pública, buscando uma melhor qualidade de vida em meio a um modelo econômico industrial que gerava para o trabalhador nocivas condições de trabalho127. É nos anos de governo de Batlle y Ordóñez que é criada a Comisión Nacional de Educación Física com o objetivo de desenvolver o esporte e a recreação. No ano de 1900 é fundada a Asociación Uruguaya de Fútbol (AUF) onde os primeiros campeonatos nacionais foram organizados e a seleção uruguaia – que ficaria conhecida como Celeste devido a cor do uniforme – foi criada. A construção de praças e parques foram marcas do período e o seu uso incentivado. O futebol popularizava-se entre a classe trabalhadora com a criação de ligas de bairros e ligas sindicais paralelas a AUF. Os esportes constituíam um fator atrativo na vida dos trabalhadores. Se jogava ou assistia, se dedicava pouco o muito tempo. Se constituía um forma de vida "profissional" ou se praticava por pura diversão. É muito provável que o sucesso futebolístico da "Celeste" no cenário latinoamericano - desde 1916 - e mundial desde as Olimpíadas de 1924 influenciaram na explosão e no crescente interesse do futebol128

As grandes conquistas da Celeste na década de 1920 ajudam a compreender o processo de popularização do futebol no Uruguai bem como evidenciam a estreita relação entre futebol e política e imprensa. No ano de 1919 a política uruguaia, no âmbito executivo, era dividida em dois setores: a Presidência da República e o Consejo Nacional de Administración (CNA)129 para apaziguar as disputas (durante décadas, sangrentas)

126 Idem 127 PORRINI, Rodolfo. Izquierda uruguaya y cultura obrera. Propuesta al ‘aire libre’: el caso del fútbol (Montevideo, 1920 – 1950). Maringá. Diálogos v. 16, n.1, 2012. p. 75 128 Ibdem p. 77 129 Na Constituição de 1918 foi aprovado que o poder executivo uruguaio seria composto pela presidência e pelo Consejo Nacional de Administración. Foi um grande acordo entre as lideranças dos tradicionais grupos políticos (colorados e blancos), para evitar novos confrontos que marcaram a política uruguaia

63 entre os dois partidos tradicionais, bem como disputas internas do próprio partido Colorado. Três anos depois, no ano de 1922, divergências entre as direções dos dois já históricos rivais, Nacional e Peñarol, resultaram em um racha na administração do futebol uruguaio. Neste ano, foi criada a Federación Uruguaya de Football (FUF) uma cisão da AUF, sob o comando do presidente do Peñarol Júlio María Sosa. O mandatário carbonero (como é conhecido o Peñarol) era membro do Partido Colorado, figura histórica do batllismo, que, entretanto, tornou-se um colorado mais moderado nos anos de 1920 e membro do CNA130. A cobertura da participação do selecionado uruguaio nos Jogos Olímpicos de 1924 pode ser classificada como um marco da imprensa esportiva do país. Desde a década de 1910 o futebol já é tema recorrente nos principais jornais do país, entretanto, o entusiasmo e destaque conferidos pelas Olímpiadas, um evento de repercussão mundial, transforma de maneira definitiva a relação entre os leitores e a imprensa. Nesse contexto, dois jornais dividiam o protagonismo na imprensa uruguaia: El Día, jornal com tendências claramente battlistas e El País, publicação com tendências nacionalistas (blancos). Assim como a política local, a imprensa igualmente estava dividida entre as duas principais tendências políticas da época. O futebol também não escapava dessa polarização. A cisão na AUF ocorrida em 1922 caracteriza bem esse cenário. A AUF estava sob o comando de Atílio Narancio, dirigente histórico do Club Nacional de Football e uma das figuras mais influentes do batllismo. Também era membro do CNA, tendo atuado anteriormente como deputado e senador. Certamente os governos batllistas tinham ciência da relevância de manter o controle de uma entidade importante como a AUF em mãos de aliados políticos como Narancio. Na vice presidência da AUF estava o filho de Batlle y Ordóñez, César Batlle Pacheco. Outro filho do presidente, Rafael Batlle Pacheco, era editor chefe do jornal El Día e amigo pessoal de Narancio. A atribuição legal junto à FIFA de enviar o selecionado uruguaio para as disputas internacionais era da AUF, já que era a entidade reconhecida internacionalmente. Com tamanho prestígio frente à Presidência da República e na AUF, o jornal foi privilegiado na cobertura dos Jogos Olímpicos. Durante os meses que

durante todo o século XIX. O Conselho era composto por nove membros eleitos e tinha mandato de seis anos. 130 O motivo para a criação da FUF seria que no ano de 1922 o Club Atlético Peñarol desejava enfrentar em amistosos a equipe argentina do Racing Club de Avellaneda, que pertencia a Asociación Amateur Argentina, entidade não reconhecida pela FIFA. Esse pedido foi negado pela AUF por ser contra o estatuto, que permitia apenas encontros contra equipes filiadas a Asociación del Fútbol Argentino (AFA). Essa negativa motivou os dirigentes do Peñarol a criar a FUF.

64 antecederam a ida da seleção para a França, diariamente o jornal escrevia sobre o tema. O jornal El Día foi o único meio de comunicação uruguaio que enviou um correspondente a Paris, e mais uma vez a filiação batllista fica clara, já que o enviado é o jornalista Lorenzo Batlle Pacheco, irmão de César, Rafael e filho de José Batlle y Ordóñez. Exaltando a vitória como “Nuestra Victoria”, com o objetivo de passar um sentimento de unidade nacional, a cobertura do jornal buscou também exaltar figuras não desportivas, como o próprio caudilho colorado José Batlle y Ordóñez, tido como um visionário seguidor do futebol que não via os primeiros jogadores a praticar o esporte no Uruguai como “loucos, mas sim como jovens entusiasmados por um jogo que depois ia conquistar o Uruguai e mostrá-lo para o mundo inteiro”131. Outro líder batllista exaltado pelo jornal foi o presidente da AUF Atílio Narancio, numa clara intensão de associar o sucesso da seleção ao sucesso do grupo político que o jornal fazia parte: O doutor Narancio, presidente da Associação Uruguaia de Futebol, foi a grande alma da disputa do time uruguaio nas Olímpiadas. Seu grande entusiasmo, sua energia e dedicação, derrubaram mil obstáculos.132

Seguindo a mesma linha, o outro grande diário uruguaio exaltava figuras políticas tidas como decisivas para a conquista celeste. Porém, com a posição claramente oposicionista, a figura exaltada foi o deputado do Partido Nacional e integrante da AUF, Casto Martínez Laguarda, que teria sido o responsável pela gira de amistosos no continente europeu que antecederam os Jogos Olímpicos, deixando ao colorado Narancio um papel secundário. “Quem conheceria na Europa o futebol uruguaio e seus craques se Casto Martínez Laguarda não abrisse o caminho?”133. Languarda era amigo de Natalio Botana, proprietário do jornal Crítica de Buenos Aires e um dos articuladores, como vimos, da gira do Boca Juniors. Laguarda organizou uma gira nos mesmos moldes para a equipe do Nacional do Uruguai, na qual houve uma ampla cobertura jornalística de El País no ano de 1925. Se a conquista em Paris consolidou definitivamente o futebol como esporte mais popular do Uruguai, o bicampeonato Olímpico em Amsterdã em 1928 foi a afirmação de uma escola. O estilo rioplatense de jogar futebol.134

131 El Día, 13 de junho de 1924 p. 9 132 El Día 12 de junho de 1924 p. 8 133 El País, 10 de junho de 1924 p. 3 134 MORALES, Andrés. La identidad rioplatense y el fútbol. Confraternidad y violencia en el clásico del Río de la Plata. In: Cuaderno de História 14. A romper lared: miradas sobre fútbol, cultura y sociedad. Montevidéu. Biblioteca Nacional, 2014. p. 32

65 A vitória de 1924 colocou o futebol uruguaio e sul-americano em evidência, e na década de 1920 os selecionados argentino e uruguaio dominavam o cenário local. Assim, o futebol rioplatense conquistava o “velho continente” com grandes clubes locais, como o Nacional e o Boca Juniors, sendo convidados a realizarem giros. É nesse período que a imprensa começa a utilizar expressões como garra charrua135, que definiam o estilo de jogo como um forte elemento de identidade nacional. Um estilo moldado, segundo Franklin Morales, muito mais no coletivo que no individual, no qual o fenômeno político do batllismo, com seu estado de bem-estar, com a construção de parques, pistas e canchas pública,s trouxera como resultado muito mais logros em esportes coletivos que individuais.136 Nos Jogos Olímpicos de 1928 realizados em Amsterdã, na Holanda, Uruguai e Argentina foram soberanos, chegando à final, que foi decidida em dois jogos, onde mais uma vez La Celeste sagrou-se campeã. O sucesso futebolístico uruguaio nos anos de 1920 foi decisivo para que o país fosse escolhido como sede do primeiro Campeonato Mundial de Futebol organizado pela FIFA no ano de 1930. A euforia não era apenas no âmbito esportivo: no político, a jovem democracia uruguaia mostrava-se estabilizada, com a aprovação de leis trabalhistas e sociais. É nesse momento que surge o apelido de “Suíça das Américas”. O campeonato mundial seria uma espécie de “cereja do bolo” para coroar o batllismo bem no ano do centenário de independência do país.137 Centenário foi o nome dado ao imponente estádio, com capacidade para mais de 70 mil espectadores, construído na capital uruguaia para a realização do torneio. Sua construção ocorreu em tempo recorde de nove meses138. Além disso, os custos do torneio foram custeados pelo Estado uruguaio, o que mostra o grande interesse do governo batllista no evento futebolístico. Os nomes das quatro tribunas do estádio são emblemáticos: Colombes (em referência ao estádio da final do torneio Olímpico de Paris de 1924); Amsterdã (segundo título Olímpico de 1928); América e Olímpica. A particularidade para a popularização dos esportes, particularmente do futebol,

135 Charrua é a denominação do povo nativo que habitava o sul do Rio Grande do Sul e o Uruguai antes da chegada dos colonizadores europeus. Considerados como um povo extremamente guerreiro e que dominavam como poucos a montaria de cavalos, o povo Charrua é elemento fundamental para a identidade uruguaia. A expressão garra charrua até os dias de hoje é utilizada para caracterizar o estilo de jogo aguerrido e com muita força física do futebol uruguaio. 136 MORALES, Franklin. Maracanã: os labirintos do carater. São Paulo. Companhia das Letras, 2014. p. 3 137 FACCIO, Florencia. El primer Campeonato Mundial de Fútbol, Uruguay 1930, en el contexto de laglobalización. In: Cuaderno de História 8. A romper lared:abordajesen torno al futbol uruguayo. Montevidéu. Biblioteca Nacional, 2012. p. 50 138 http://www.estadiocentenario.com.uy/site/History Acesso em 11 jan 2020

66 para o Uruguai, é uma clara iniciativa pública para a atividade física. O futebol era visto como um esporte moderno e que poderia ser útil para moldar esse espírito do “uruguaio do novo século”. O futebol foi usado politicamente pelas diversas correntes políticas do período e tratado na imprensa através de suas filiações. Os êxitos uruguaios nas Olimpíadas, Campeonatos Sul-Americanos e no primeiro Mundial da FIFA foram certamente produtos da sua popularização ao mesmo tempo que contribuiu decisivamente para ela.

2.3: BRASIL

No Brasil o futebol já era o esporte das multidões durante a década de 1920. O símbolo máximo do futebol brasileiro concentrava-se no sudeste brasileiro, praticado com maior destaque nas cidades de São Paulo e na capital federal o Rio de Janeiro. É dos grandes centros brasileiros que surgem as primeiras publicações especializadas a respeito de esporte e futebol no país. Durante toda década de 1920 presenciamos um aumento significativo e gradativo da presença do futebol nas páginas dos jornais da época. A vitória brasileira no campeonato Sul-Americano de 1919, realizada no Brasil, teve enorme influência para a popularização e difusão do futebol como assunto de interesse geral, como aponta o jornalista André Ribeiro: Pela primeira vez na história da imprensa esportiva, um jornal, A Noite, do Rio de Janeiro, estampava em sua primeira página a foto dos pés de um jogador – o pé esquerdo de Fried139. A manchete: “Eis o pé da vitória”. O jornal vendeu como água, assim como quase todos da concorrência, no Rio e em São Paulo. Nunca uma partida de futebol mobilizara tanto a imprensa como esse Sul-Americano140.

O futebol conquistava a passos largos a sociedade e com isso muitos jornais e revistas surgiram nesse período. Nos jornais tradicionais, as seções dedicadas ao futebol superaram as notícias de remo e turfe, esportes até então tradicionais no gosto do brasileiro. Na Capital Federal, a cidade do Rio de Janeiro do início da década de 1920,

139 Em referencia a (1892 – 1969), atleta do Paulistano, considerado o melhor jogador do Brasil em 1919. Foi autor do gol sobre o Uruguai na final do Sul-Americano de 1919 140RIBEIRO, André. Os donos do espetáculo: histórias da imprensa esportiva do Brasil. Sao Paulo, Editora Terceiro Nome, 2007. p.53

67 podemos atestar a conexão entre esporte, imprensa e política ao analisarmos a figura de Macedo Soares. Dono do jornal fluminense chamado O Imparcial, uma das publicações de maior circulação no Brasil, Soares era presidente da CBD (Confederação Brasileira de Desportos), entidade que comandava o futebol a nível nacional, responsável pelo selecionado brasileiro. Além disso era deputado federal, aliado político de Nilo Peçanha, então candidato à presidência da república no ano de 1921. O jornal de Soares foi responsável por inovar na cobertura do futebol sendo uma das primeiras publicações a trazer fotos das partidas em suas páginas141. O período era de entusiasmo para o futebol brasileiro e os proprietários de jornais não queriam deixar de aproveitar essa oportunidade de angariar novos leitores. Os estádios estavam sempre lotados, as ligas ganhando novos associados, as rendas de bilheterias batiam recordes. Nesse cenário de crescimento de um público fiel ao futebol, revistas especializadas são lançadas: é o caso da Revista Sport Ilustrado e da Revista do Esporte142. A similaridade do processo de crescimento da cobertura jornalística brasileira sobre a temática do futebol com os vizinhos Argentina e Uruguai é marcante, como podemos constatar no atual capítulo. Se na capital do país o crescimento do futebol na imprensa era evidente como esse processo se desenvolveu em outras regiões do Brasil? Como o futebol repercutia na imprensa gaúcha nesse período, já que nesse estado as influencias vindas dos vizinhos platinos era muito mais evidente?

2.3.1 O futebol, sua popularização e a imprensa gaúcha

Durante os anos de 1920 e 1930, dois periódicos, ambos sediados na capital do estado, a cidade de Porto Alegre, destacavam-se como os principais veículos de imprensa do Rio Grande do Sul: Os jornais Correio do Povo e A Federação. Correio do Povo, periódico que ainda está em circulação, foi fundado no ano de 1895 pelo jornalista e empresário sergipano, radicado no Rio Grande do Sul, Caldas Júnior, propunha-se desde sempre, opondo-se às tendências vigentes na época, a ser um jornal “apartidário”, acreditando na filosofia de que sua suposta “neutralidade” aumentaria a sua credibilidade com os leitores. Como sabemos essa neutralidade é relativa pois em seus editoriais é nítido seu compromisso com as forças políticas

141 RIBEIRO, André. Op. Cit. P. 57. 142 Idem p59

68 conservadoras do estado. A busca pela neutralidade, ainda que relativa, é uma característica dos novos tempos, “modernos”, nos quais os veículos de imprensa buscam obter lucro e orientar suas publicações sob as necessidades de um mercado consumidor143. Mais conectado com as tendências modernas, o jornal foi a vanguarda quando o assunto era entretenimento, e consequentemente a cobertura esportiva e futebolística foi de certa forma inaugurada na capital rio-grandense pelo Correio do Povo. Já na década de 1910 o jornal trazia pequenos textos que relatavam os confrontos ocorridos no estado do Rio Grande do Sul e, principalmente, na capital. Essa tradição acentua-se na década de 1920 com a presença de textos mais detalhados, fotos das partidas e charges com a temática do futebol. Em oposição a esse estilo jornalístico, porém igualmente de grande circulação no estado, estava o jornal A Federação. Esse jornal estava vinculado ao Partido Republicano Riograndense (PRR), que governou durante praticamente todo o período estudado o estado do Rio Grande do Sul144. Tal tradição partidária fez com que a cobertura esportiva de A Federação tivesse um início tardio (somente durante a década de 1920). Entretanto, após a adoção das páginas esportivas, pode-se registrar um aumento significativo nas páginas dedicadas ao futebol durante toda a década de 1920 e boa parte da década de 1930 (o jornal encerrou suas atividades no ano 1937). Como citado no capítulo anterior, o futebol gaúcho e, a partir da década de 1920, o futebol porto-alegrense popularizaram-se de maneira significativa, atraindo um número cada vez maior de adeptos, tanto praticantes que buscavam associar-se a alguma agremiação para jogar efetivamente o futebol, como também interessados em acompanhar os confrontos locais como espectadores. Nesse contexto de popularização, um clube, que atualmente é um dos mais populares times do estado, tem um papel importante. O futebol da capital nos primeiros anos do século XX é dominado pela forte comunidade teuto-riograndense, que controlava as primeiras competições e embates futebolísticos. Nesse cenário, dois clubes dominavam o futebol da cidade: o Grêmio Foot- Ball Porto Alegrense (fundado em 1903) e o Fussball Club Porto Alegre (1903)145. Tais

143 SANTOS, Maurício Garcia Borsa dos. O futebol vira notícia: um lance da modernidade: uma história do futebol em Porto Alegre (1922 -1925). Porto Alegre. Dissertaçao de Mestrado UFRGS. 2014.p.4 144 Sob a liderança política de Borges de Medeiros que foi Presidente do Estado do Rio Grande do Sul durante 25 anos durante o período de 1913 a 1928. 145 Ambos os clubes foram fundados no dia 15 de setembro de 1903. O motivo para sua fundação, foi uma apresentação que o Sport Club Rio Grande realizou na capital do estádio para comemorar o dia da Independência do Brasil.

69 clubes tinham estatutos bastante rígidos para a aceitação de novos sócios (especialmente para quem não era descendente de alemães)146. O Sport Club Internacional, fundado no ano de 1909 é uma instituição que nasce graças a essa política restritiva dos tradicionais clubes da cidade. Por iniciativa de Henrique Poppe, um comerciante paulista que chega a Porto Alegre durante o período de vasto crescimento econômico e populacional da capital, e de seus irmãos, o Internacional é fundado, pois os Poppe, assim como outras pessoas advindas da classe média, principalmente estudantes, encontravam entraves em associar-se ao Grêmio e praticar o futebol de maneira organizada. O próprio nome da nova agremiação “Internacional” tem relação direta com a ideia de ser um clube que aceitaria todas as nacionalidades no seu quadro social147. Mas, um fator que foi decisivo pelo rápido processo de popularização foi, um ano após a sua fundação, no ano de 1910, o clube passar a atuar no chamado “campo da várzea”, próximo ao Parque da Redenção. Esse local era cercado pelos bairros Areal (atual Cidade Baixa) e Colônia Africana (atual Rio Branco). Esses bairros concentravam a população de origem africana e descendentes de ex-escravos. Como o novo campo do Internacional não tinha muros ou algo que impedisse a visão das pessoas que circulavam o local, o clube passou rapidamente a chamar a atenção dessa população e a atrair esses moradores de origem pobre. Com isso, rapidamente o Internacional tornou-se o clube mais popular da cidade. Seus jogos reuniam uma quantidade significativa de espectadores, bem como negros começaram a atuar no time148. O Internacional durante a década de 1920 passou a ser vinculado à imagem de “time dos negros” da cidade e, com a expansão do futebol para os bairros pobres e operários da capital, rapidamente passou a contar com a maior torcida do município149. Paralelamente, é nesse contexto histórico, principalmente a partir da década de 1920, que a cidade de Porto Alegre passou por um crescimento demográfico e industrial acelerado ultrapassando a cifra de 200 mil habitantes150. A população do interior do

146 DAMO, Arlei. Excertos de uma história social do futebol gaúcho e sua especificidade em reação ao Brasil. In: Verso e Reverso. São Leopoldo: Ed. Unisinos, ano XVI, nº 34, 2002 147 OSTERMANN. Ruy Carlos. Internacional: meu coração é vermelho. Porto Alegre. Editora Mercado Aberto. 1999. p. 18 148 STÉDILE, Miguel. Op. Cit. p. 66. 149 A vinculação da imagem do Internacional com a comunidade negra do Rio Grande do Sul é algo bastante difundido. A partir da década de 1940, período de grandes conquistas em âmbito regional o clube passa a ser retratado nas charges dos jornais locais como um “crioulinho”, jovem torcedor negro. Mais tarde passa a ser adotada a figura do Saci Pererê, que posteriormente foi oficializado como mascote da instituição. 150 Mapa demográfico do Rio Grande do Sul

70 estado, principalmente da região da Campanha, começa a chegar à capital em busca de empregos e de uma melhora na qualidade de vida. Esses operários, trabalhadores, muitos descendentes de ex-escravos, passaram a viver em grandes bairros operários e populares que se formaram rapidamente em Porto Alegre151. Nesse cenário, a capital gaúcha não ficou alheia ao contexto de reformas urbanas promovido em larga escala nas principais cidades do Brasil152. Como citamos anteriormente, o futebol que chegou ao continente sul-americano como um esporte das elites, fruto dessa mesma lógica modernizante que as reformas estavam inseridas, rapidamente passou a penetrar no cotidiano dos pobres e operários das cidades. O contexto citado da chegada do futebol nas imediações dos bairros pobres de Porto Alegre é, como alerta Hilário Franco Júnior, uma realidade ao mesmo tempo indesejável e inevitável para as elites: As cidades – verdadeiros centros amplificadores de tensões – promoviam um indesejável compartilhamento de espaços públicos. Elas se transformaram em palcos de manifestações políticas e culturais inconvenientes das camadas médias, do proletariado e dos demais setores subalternos. As demandas sociais, abafadas pela estrutura política da República, encontravam nas cidades ambiente para sua expressão e proliferação.153

Durante toda a década de 1920, a cidade de Porto Alegre, que até o ano de 1909 (fundação do Internacional) abrigava sete agremiações futebolísticas, assiste a uma verdadeira avalanche de novos clubes e ligas. Muitos desses clubes eram de funcionários das indústrias locais. Paulatinamente, começaram a surgir clubes ligados a trabalhadores, como garis, garçons, estivadores etc. Nessa época surge (no ano de 1920) uma Liga, pouco estudada e pouco documentada, que foi decisiva para a popularização do futebol na capital gaúcha e que mudou relação do futebol com a sociedade e consequentemente com a imprensa. Falamos da Liga Nacional de Foot-Ball Porto Alegrense, que ficou

151 FORTES, Alexandre. Nós do Quarto Distrito: a classe trabalhadora Porto-Alegrense e a Era Vargas. Caxias do Sul, Educs. 2004 152 As reformas urbanas ocorridas nas principais cidades brasileiras nas primeiras décadas do século XX visavam inserir o conjunto urbano a padrões e hábitos considerados “modernos” e “civilizados”. É nesse contexto que a população pobre das cidades, considerada propensa a doenças e a “vadiagem” é literalmente expulsa das regiões centrais e jogada nas periferias e morros. Um exemplo clássico disso são as reformas urbanas ocorridas na capital brasileira, Rio de Janeiro, durante os anos de governo do prefeito Pereira Passos (1903 – 1906). Reformas urbanas como a demolição dos antigos cortiços, construção de largas avenidas, praças e iluminação pública eram fundamentais para a transformação do Brasil em uma sociedade capitalista, de trabalho-livre e “moderna”. 153 FRANCO JR. Op cit. p. 65

71 conhecida – pejorativamente – como “Liga das Canelas Pretas”154. É interessante constatar no nome da nova liga o objetivo de desvincular o futebol da sua faceta eurocêntrica, com a adoção de nome “Nacional”. Assim como aconteceu na Argentina com o surgimento do futebol criollo, no Rio Grande do Sul e no Brasil também começou a se “brasilizar” o futebol com a adoção de um estilo próprio. Os registros oficiais da Liga estão perdidos, e a cobertura da imprensa impossibilita uma análise profunda, pois são escassos. O jornal Correio do Povo dedica pequenas notas à “Liga das Canelas Pretas”, geralmente depreciativas, reafirmando seu compromisso com os times tradicionais. No dia 13 de maio de 1920, em uma breve nota, o jornal informa sobre a criação da nova liga, enfatizando serem times de “segunda linha”155 do futebol. É interessante constatar que o dia escolhido para a inauguração da liga é o dia da abolição da escravidão, reafirmando a hipótese provável da liga ser uma forma encontrada pelas populações negras da cidade, que estavam afastadas de qualquer possibilidade de praticar o futebol de forma formalizada, seja por questões étnicas ou econômicas, de organizar algo que já praticavam. Apesar de desprezada, segregada e mal documentada, a Liga das Canelas Pretas é um forte sintoma da popularização do futebol na cidade e no estado. O futebol que nasceu em berço aristocrático no Brasil, sendo considerado um traço de distinção social, símbolo da modernidade tão almejada pela jovem república, passou rapidamente a ser interesse da classe média e dos trabalhadores, dos pobres e dos negros, que passaram a praticar e a consumir futebol, seja frequentando os estádios, comprando ingressos ou se informando pelas páginas dos jornais, que rapidamente perceberam esse movimento e começaram a dar destaque ao esporte nas suas páginas. O futebol e seus assuntos a partir de então viraram notícia. Em três décadas, desde a fundação do Grêmio e Fuss Ball, seriam criados 97 clubes de futebol na capital. As agremiações de outras modalidades somam 46 clubes, menos da metade dos times de futebol no mesmo período. Os dados evidenciam que a maior difusão do esporte, aferida pelo número de clubes, concentra-se na década de 1930, período que são fundadas 70 agremiações dedicadas ao futebol.156

A cobrança de ingressos não podia evitar que pessoas consideradas pelas elites

154 JESUS, Gilmar Mascarenhas de. O futebol da canela preta: o negro e a modernidade em Porto Alegre. Anos 90. Porto Alegre. p. 145 155 Correio do Povo, 13 de maio de 1920. p. 6 156 STÉDILE. Op. Cit. p. 87.

72 como “indesejáveis” tivessem contato com o futebol. Era comum pessoas assistirem aos jogos em morros ou pendurados nas árvores. A rigidez para a criação de clubes e associação nas ligas era o jeito encontrado para evitar o confronto (e uma possível derrota), o contato e o convívio entre as elites e os pobres que estavam se apaixonando pelo futebol. Entretanto, a segregação não conseguiu sobreviver a uma verdadeira febre que foi o futebol, e logo ficou impossível “conter os negrinhos”157 das ligas. Ao analisar os periódicos em questão conseguimos perceber na imprensa gaúcha uma grande influência, tanto do futebol do Prata, com notícias recorrentes do futebol argentino e uruguaio, bem como do futebol do centro do país, especialmente o carioca. Esse fato contribui com a ideia defendida de que o futebol do Rio Grande do Sul viveu um processo histórico que podemos caracterizar como transnacional, onde, por sua posição geográfica, suas influências culturais, políticas e econômicas, a recepção do esporte bretão em terras rio-grandenses teve um desenvolvimento único. Como aponta Igor Luis Andreo: Para a história transnacional, o mais relevante é o fenômeno da recepção, ou seja, de como o objeto estrangeiro é apropriado e reinterpretado no país receptor, tornando-se fundamental desvendar o papel desempenhado pelos mediadores culturais e pelas redes de sociabilidade que se constroem em torno desses indivíduos.158

A passagem de equipes uruguaias e argentinas é frequente durante todos os anos de 1910 a 1930. O número exato de giros realizadas por equipes desses países ao Rio Grande do Sul nesse período é difícil de exatificar. Entretanto, nas fontes analisadas constatamos, para o período de 1916 a 1938, incursões de doze times uruguaios e oito times argentinos. A imprensa esportiva fazia uma ampla cobertura desses eventos, como o ocorrido no ano de 18 de setembro de 1916, quando um selecionado uruguaio esteve no Rio Grande do Sul para enfrentar as equipes filiadas à Federação Sportiva Rio Grandense (FSRG): Missao Sportiva Uruguaya Desde anteontem, Porto Alegre hospeda, com prazer, os distintos membros da missão esportiva uruguaia. Aos esforços da Federação Sportiva Rio Grandense quando dirigida pelo Dr. Rodolpho Campani e actualmente pelo Dr. Aurelio Py, coadjuvado pelo cônsul da República do Prata, Dr. V.M.Carrió deve-se a realização da semana esportiva na capital sulina.

157 Depoimento de Genésio dos Santos, ex jogador da Liga das Canelas Pretas. MASCARENHAS p. 152. 158 ANDREO, Igor Luis. América Latina e as histórias transnacionais, conectadas e cruzadas: a comparação ainda é pertinente para o campo historiográfico? Revista História: Debates e Tendências. Vol 17 n.1. Passo Fundo. p 105, 2017.

73 Nas localidades do território brasileiro, por onde passaram, os sportsmen uruguaios receberam cordialíssimas manifestações das autoridades e povo que os esperavam na Estação Férrea.159

Ao longo de toda a reportagem, os uruguaios e seu futebol são exaltados e comemorados. “Talvez fruto do cansaço”, graças à longa viagem, o selecionado do país vizinho perdeu do time do Grêmio no primeiro dia dos confrontos pelo placar de 2 a 1. As outras partidas da excursão uruguaia foram amplamente divulgadas e cobertas pela imprensa local. Tais eventos eram apontados pelos jornais como uma oportunidade de aperfeiçoar o futebol gaúcho, já que estava enfrentando o que havia de melhor e certamente o clima que gerava na cidade contribuiu com a popularização do futebol na sociedade e na imprensa. Os jornais contavam com serviços de telégrafos que mantinham contato com correspondentes e parceiros nos países vizinhos, atualizando os leitores gaúchos sobre a tabela e jogos dos campeonatos argentinos e uruguaios. Tal fato possibilitou que o processo de profissionalização do futebol nesses países fosse amplamente divulgado, influenciando nas discussões de abandono ou não do amadorismo no Rio Grande do Sul, como veremos no capitulo seguinte. Entretanto não foram somente os embates entre os times gaúcho com times das região do Prata que chamaram a atenção da imprensa gaúcha para o futebol. Um evento em especial foi decisivo para a popularização do futebol e mudou a forma como a imprensa gaúcha cobriu o futebol. Assim analisaremos a criação dos Campeonatos de Seleções Estaduais criado em 1922, ano da comemoração do centenário da Independência política do Brasil.

159 A Federaçao 18/09/1916.

74 CAPÍTULO 3: CHEGA O PROFISSIONALISMO AOS PAMPAS

Em novembro 1920 o campeonato gaúcho, organizado pela Federação Rio-Grandense de Desporto, entrava em sua fase decisiva quando uma notícia abalou o futebol do estado e quase mudou os rumos da disputa. A hegemonia futebolística no Rio Grande do Sul estava com os times da chamada “Segunda Região”, onde as equipes da região da Campanha e da região Sul disputavam um campeonato regionalizado que dava direito a participar da fase final do certame. Tal região era influenciada em todas as esferas (política, social, cultural, econômica) pelos seus vizinhos, Argentina e Uruguai. Não era incomum, nos quadros das equipes dessa região, a presença de atletas uruguaios e argentinos. Naquele ano, a final do campeonato da Segunda Região seria disputada entre os times do Esporte Clube Pelotas (detentor do título de campeão gaúcho de 1919) e o Guarany Futebol Clube, time da cidade fronteiriça de Bagé. Depois de dois jogos muito acirrados, o alvi-rubro de Bagé sagrou-se campeão ao vencer a equipe pelotense pelo placar de 2 a 1. Entretanto, aquela partida não acabaria nas quatro linhas, graças ao protesto do Pelotas, alegando uma grave irregularidade ao regulamento: o descumprimento do amadorismo por parte do Guarany: O profissionalismo no futebol Porto Alegre, 13: Causou sensação nesta capital a notícia de que a Associaçao Uruguaya expulsará do seu seio, por serem profissionais, os players Seijal, Ruibal Cruz e Grecco, pois todos os expulsos locarisaram-se na cidade de Bagé, tendo disputado a poucos dias o campeonato estadual, vencendo os campeões do Rio Grande, o Pelotas. Parece que o Club Guarany em vista de tal facto, perderá a sua colocação, por ter incluído esses mesmos players em sua equipe. O Pelotas, junto a Liga Pelotense de Foot-Ball, reclama o direito a vaga, para enfrentar no mês corrente as equipes do Grêmio (vencedora da Primeira Região) e do Uruguaiana (vencedor da Quarta Região)160

A reclamação da equipe pelotense não surtiu efeito e, no dia 21 de novembro, com gol de um dos jogadores uruguaios envolvidos na polêmica, o atacante Grecco, o Guarany bate o Uruguaiana por 1 a 0 e sagra-se Campeão Gaúcho. Grecco foi autor também do gol da vitória (igualmente por 1 a 0) sobre o Grêmio, na estreia do triangular decisivo.

160 Correio do Povo 13/11/1920. p. 6

75 Para além do resultado futebolístico, a tentativa de “tapetão” do Pelotas nos demonstra duas coisas importantes: o intercâmbio de jogadores na região entre Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul, bem como o debate a respeito da vigência do amadorismo no futebol, bem como práticas como do que ficou conhecido como “amadorismo marrom” ou “profissionalismo encoberto” são assuntos desde pelo menos o início da década de 1920. Sobre essa prática, Frydenberg pontua: O surgimento do “marronismo” marcou, para os jovens das famílias trabalhadoras, a possibilidade da prática desportiva em alta competitividade uma vez superada a etapa da primeira juventude. Seu desenvolvimento esteve associado a distintos fatores, entre eles vale mencionar o crescimento do espetáculo com sua lógica de mercado, somado ao surgimento das rivalidades existentes no futebol, até a ideia cada vez mais difundida que associava o treinamento e o cuidado ao pessoal a uma melhor performance. Por outro lado, para que o profissionalismo ilegal pudesse expandir era necessário que os próprios clubes se desenvolvessem e influenciassem sobre os grupos de proprietários que podiam dar trabalho aos jogadores ou sobre as autoridades que podiam mudar o caminho nas listas de empregados na administração pública. A retribuição aos jogadores podia tomar forma de um premio depois de cada partida ou gorjetas para pagamento de hospedagem e comida, ou através de um emprego de fachada161.

Durante todo esse período não serão poucos os exemplos de práticas nesse sentido e suas consequências para o que culminaria no inicio da década de 1930 na profissionalização de fato do futebol na região. O processo de profissionalização do futebol, sua cobertura e debate na imprensa bem como as estratégias e lutas adotadas pelos jogadores para a sua implementação são o tema desse capítulo.

3.1 SER JOGADOR DE FUTEBOL: STATUS/PRIVILÉGIO X SONHO/OPORTUNIDADE

O futebol é certamente um dos esportes mais democráticos do mundo. Com apenas uma bola e dois pares de chinelo, pode-se praticar o esporte em praticamente qualquer lugar (na rua, na calçada, no terreno baldio etc). Nos dias atuais, onde o futebol já se consolidou como principal prática esportiva da América do Sul, para um amante do esporte, soa estranha a afirmação de que jogar futebol já foi um privilégio destinado a poucos e endinheirados jovens. Entretanto, era assim que o esporte era encarado nos primeiros anos de sua existência em terras sul-americanas. Como vimos, a década de 1920

161 FRYDENBERG. Op.Cit. p.189-190

76 foi um período único para a popularização do futebol e a disseminação de sua prática entre as populações pobres. Podemos afirmar que é desse período que surge a perspectiva do futebol se tornar uma oportunidade de vida melhor, imaginário que move os sonhos de milhões de jovens e adolescentes. O que significava, na década de 1920, ser jogador de futebol? Estudantes universitários, membros da elite aristocrática, operários, imigrantes, a situação socioeconômica dos praticantes do futebol era variada. Conforme o futebol se popularizava na imprensa esportiva, as histórias de vida dos jogadores passaram a ser tema de interesse do público leitor. Não era raro, nesse período, entrevistas com os principais jogadores das ligas, onde podemos constatar diferentes formas do introdução ao futebol. Na Argentina, a revista El Gráfico inovou nesse sentido, principalmente nos artigos assinados por Borocotó, como exemplo da entrevista com Juan Antonio Rivarola, atacante do Club Atlético Colón em 1928: - Como te descobriram? - Jogava nos terrenos baldios, perto do porto de Santa Fe. Meu velho ficava furioso, por julgava o futebol como coisa de desocupado. Eu desafiava as broncas do meu pai e ficava ali jogando com os outros meninos. Até que um dia chegou um senhor chamado Emilio Deneri, velho torcedor do Colón e dirigente do clube, que gostou do meu estilo e perguntou: “- Queres jogar no Colón?” Eu respondi que sempre fui partidário desse clube e ele me disse “vá a sede do clube que eu vou te colocar no terceiro time”. - E o seu pai? - Ele queria que eu estudasse, conquistasse um emprego. Futebol era coisa para desocupados na cabeça do meu velho

Para uma pessoa como Rivarola, o futebol poderia significar uma chance de ascensão social, pois já na década de 1920 era possível – apesar de muito difícil – ganhar dinheiro praticando o esporte. Esse dinheiro entretanto era considerado ilegal e imoral, o que justifica a reação de uma pessoa como o pai do atleta, que gostaria que seu filho conquistasse um emprego “decente”, legalizado e formalizado. Porém é nessa época que o futebol começa a se tornar um sonho e uma oportunidade para os meninos da classe trabalhadora, não sendo mais um privilégio de poucos. A transformação desse paradigma, pelo qual anteriormente o futebol era considerado um produto para as elites, é essencial para o processo de sua profissionalização, já que o amadorismo não era mais compatível com competitividade e popularidade cada vez mais elevada que o esporte atingiu.

77 3.2 A FUGA DE JOGADORES PARA A EUROPA

No dia 17 de março de 1921 o jornal A Federação publicou em seu caderno de esportes o novo Estatuto da Federação Rio-Grandense de Desportos, entidade que era responsável pela organização do futebol no estado. Em seu artigo 25 estava escrito: A Federação exige que as Ligas, Associações e Clubes encaram a lei do amadorismo de acordo com as exigências da Confederação Brasileira de Desportos, podendo crear dispositivos enérgicos para evitar o profissionalismo.

Durante toda a década de 1920 a discussão em relação a práticas de profissionalismo no futebol foi acalorada nas associações e federações que organizavam o futebol e as punições não eram raras. As punições eram aplicadas a dirigentes, jogadores e clubes. Durante a primeira metade da década, principalmente, práticas profissionais foram duramente reprimidas e as denúncias eram recorrentes, como por exemplo, o caso do clube argentino San Isidro que foi suspenso por um mês do campeonato organizado pela Asociación Amateurs no ano de 1924162, ou o caso do dirigente do Miramar Misiones, do Uruguai, Fernando Gabin, que foi excluído do futebol pela Asociación Uruguaya de Futbol, por pagamentos comprovados a três atletas do elenco163. Entretanto, podemos constatar que em um primeiro momento a imprensa tem um papel simplesmente informativo e pouco questionador ou opinativo a respeito do tema. Não se encontra nas fontes consultadas um questionamento das práticas profissionais no futebol. O papel da imprensa nos primeiros anos da década de 1920 é informar as denúncias de profissionalismo e a defesa oficial do amadorismo, sem muitos questionamentos. Porém, ao analisarmos as fontes a partir do ano de 1925 conseguimos constatar uma verdadeira transformação na forma como os jornais tratam do tema, com textos opinativos (muitos defendendo o profissionalismo, outros defendendo o amadorismo), questionando a relevância da questão. O que teria acontecido no futebol da região que possibilitou essa mudança na prática da imprensa? Qual o papel dos atletas nessa mudança? Como citado no capítulo anterior, no ano de 1925 duas tradicionais equipes de futebol do continente (Boca Juniors da Argentina e o Nacional do Uruguai) realizaram

162 Critica 30/12/1924 163 El Pais 18/08/1923

78 bem sucedidos giros pelo continente europeu. No velho continente o profissionalismo do futebol já era uma realidade concreta. Com exceção da Inglaterra que legalizou o profissionalismo ainda no século XIX, é a partir dos anos de 1920 que o futebol na Europa toma uma nova direção. Os Jogos Olímpicos de Antuérpia, em 1920, os primeiros depois da Guerra Mundial, marcaram uma internacionalização do futebol nunca antes vista164. Equipes de toda Europa disputaram o torneio, vencido pela anfitriã Bélgica em final contra a Espanha. O intercâmbio de jogadores e a popularização do esporte no continente tornaram a possibilidade do profissionalismo uma prática latente. Na Itália a profissionalização chegou no ano de 1923 e na Espanha no ano de 1925. O debate a respeito da profissionalização crescia tanto que no ano de 1926 a FIFA enviou para todas as nações filiadas uma convocatória para a discussão do profissionalismo em sua próxima assembleia. O intercâmbio cada vez maior com o futebol europeu, através de giros das equipes, e êxito do futebol uruguaio nas Olimpíadas de 1924 e 1928, despertou a atenção e o interesse das equipes europeias, recém profissionalizadas, em contar com o talento dos desportistas sul-americanos. Analisando as fontes, podemos verificar que um dos motivos para o debate sobre a profissionalização do futebol se acentuar a partir do ano de 1925 foi a fuga massiva de jogadores brasileiros, argentinos e uruguaios para o futebol europeu. Ironicamente um problema que persiste, com outras características, nos dias atuais. São muitos os exemplos encontrados nas fontes dessa preocupação pelo “messianismo” no futebol sul-americano. O primeiro futebolista da América do Sul a se transferir para a Europa foi o argentino . Nascido em Rosário, o atacante do Newells Old Boys teve um desempenho fantástico nos campeonatos sul-americanos de 1921 e 1922165. Tinha o apelido de El Matador e era tido como um dos principais jogadores argentinos da época. No mês de agosto de 1925, poucos meses depois da gira do Boca Juniors, dirigentes do clube Torino, da cidade italiana de Turim, bem informados a respeito do futebol argentino, contratam Libonatti, causando grande notícia na imprensa esportiva argentina: Um argentino na Itália Causou grande alvoroço no futebol rosarino e argentino a notícia da contratação de Julio Libonatti ao Torino da Itália, um dos principais quadros daquele país. Libonatti é um representante legítimo do talento

164 FLIX, Xavier Torrebadella; RULL, Antoni Nomdedeu. La popularización del fútbol en España. Análisis del fenómeno a través de la literatura especializada del fútbol (1920-1936). Barcelona, Revista General de Información y Documentación. Ediciones Cumpletense, 2006. p. 125. 165 Marcou 3 gols no Campeonato de 1921 (onde foi artilheiro) e 4 gols no Campeonato de 1922.

79 argentino, com um remate rápido e potente conquistou os torcedores do Newells Old Boys. Juntamente com o atacante rosarino a equipe italiana contará com o defensor do Boca Juniors Mario Basso166.

A contratação de Libonatti abriu as portas do futebol europeu para os jogadores sul-americanos. No mesmo ano foi a vez do principal jogador uruguaio em atividade assinar contrato com um gigante da Europa. Hector Scarone, jogador do Nacional, encantava pela sua habilidade e elegância ao jogar futebol. Como aponta Franklin Morales, recebeu o apelido de “O Gardel do Futebol”167 em reverência ao maior cantor de tango de todos os tempos. Foi jogador fundamental para a conquista dos Jogos Olímpicos de Paris em 1924. Em 1925, durante o giro europeu do Nacional, foi o principal goleador da equipe, com 29 gols em 38 partidas. Nessa gira recebeu o apelido de “El Mago” e chamou a atenção dos dirigentes do Barcelona. Recebeu a tentadora oferta de 50 mil pesetas para assinar um contrato de cinco anos com a equipe catalã. A repercussão foi grande, inclusive em Porto Alegre, onde o futebol uruguaio era muito apreciado, como mostra publicação de Correio do Povo: Os profissionais Sul-Americanos As visitas dos sul-americanos – brasileiros, uruguaios e argentinos – a Europa revolucionaram o futebol por aquelas plagas. Um amador que passe para profissional é sempre um caso a se pensar. Seria ele um verdadeiro amador? Hector Scarone, o popular e afamado atacante acaba de receber uma boa oferta do Club Barcelona para ficar no Velho Mundo, como jogador do seu primeiro quadro por um contrato de cinco anos. Marco Russo do Boca Juniors e Julio Libonatti do Newells Old Boys foram contratados pelo clube Torino de Itália. Tanto Libonatti quanto Russo receberam boas propostas, além de passagem e hospedagem para suas famílias ganharam...salários! O profissionalismo disfarçado assume um novo aspecto que trará como resultado final a criação de uma nova liga: a liga dos Profissionais. Pois é evidente que esta forma tão descarada de praticar futebol amador não pode continuar. Os uruguaios perderam um grande deanteiro, o qual com Petrone, não tem substitutos atualmente. De qualquer forma não deixa de ser lisonjeiros para os sul-americanos estes acontecimentos, pois isso prova que os mestres do popular esporte estão no Rio da Prata. Muito eloquente deve o conceito sobre os nossos jogadores na Europa, para levarem seus homens de tão longe e com propostas tão tentadoras...168

Scarone jogou apenas 18 partidas pelo Barcelona e a explicação também residia

166 Crítica 13/08/1925 167 MORALES, Franklin. Maracanã: os labirintos do carater. São Paulo. Companhia das Letras, 2014. 168 Correio do Povo 01/09/1925

80 na questão do profissionalismo/amadorismo. Antes de assinar o contrato definitivo com o clube espanhol, o craque uruguaio foi informado por dirigentes uruguaios que um compromisso profissional significaria o fim das relações do jogador com a seleção uruguaia, pois a AUF e a FIFA não permitiam jogadores profissionais em seus quadros. Como o jogador tinha o desejo de jogar os Jogos Olímpicos de 1928 decidiu retornar ao Nacional como relata em suas memórias: Eu pensava na minha pátria, no fato que estava chegando mais uma Olímpíadas em 1928 e que eu devia vestir a camisa celeste, pensei no Nacional também, que eu já não poderia voltar a jogar. Não quis assinar. Poucos dias antes de eu embarcar de regresso ao Uruguai me fizeram uma última proposta, um contrato de cinco anos e mesmo assim não aceitei. Vim jogar de novo pela celeste e por meu Nacional.169

No futebol brasileiro é notável a saída de jogadores fundamentais para os principais times do eixo Rio-São Paulo. Escrito em 1937, o livro Grandezas e Misérias do Nosso Futebol, de autoria de Floriano Correa publica o depoimento de Amilcar Barbuy. Jogador experiente no ano de 1931 (tinha na data 38 anos), Amilcar foi um dos primeiros ídolos do Corinthians, o clube mais popular de São Paulo. Posteriormente foi jogar no Palestra Itália e igualmente obteve sucesso. Em 1931 seguindo a tendência da época, o jogador buscou melhores condições de vida e de trabalho em uma liga que aceitava o profissionalismo, transferindo-se para a Lazio, equipe da capital italiana: Vou para a Itália. Cansei de ser amador no futebol onde essa condição há muito deixou de existir, maculada pelo regime hipócrita da gorjeta que os clubes dão aos seus jogadores, reservando-se para si o grosso das rendas. Os clubes enriqueceram e eu não tenho nada. Vou para o país onde sabem remunerar a capacidade do jogador.170

Interessante constatar a ideia de exploração da mão-de-obra dos jogadores como aponta Amilcar. O profissionalismo marrom, que era considerado uma conduta imoral por boa parte da imprensa e da elite esportiva, pois feria os princípios dos sportsmen, homens que praticavam o futebol pelo divertimento e pela qualidade de vida, para os jogadores advindos das classes populares era considerado uma forma de exploração, pois o futebol, que era um esporte cada vez mais rentável, estava enriquecendo muita gente, menos os verdadeiros protagonistas do espetáculo: o jogador. Para muitos jogadores as práticas do profissionalismo encoberto eram consideradas migalhas. É recorrente nas

169 REYES, Andrés. Historia de Nacional. Montevidéu, Aguilar. 2013. p. 13. 170 CORREA, Floriano. Grandezas e Misérias do Nosso Futebol. Rio de Janeiro: Flores & Mano Editores, 1937. p.127.

81 entrevistas de muitos jogadores que embarcavam para a Europa essa consciência de classe, percebendo que seu ofício era cada vez mais valorizado e que a fuga de atletas para países onde o profissionalismo já era uma realidade foi uma estratégia importante para a luta contra uma lei arcaica e elitista como a do amadorismo. O ano de 1931 marcou profundamente a saída de grandes astros brasileiros para o futebol europeu, seguindo a tendência inaugurada pelos vizinhos uruguaios e argentinos. Ministrinho, grande craque do Palestra Itália, foi contratado pela equipe italiana do Genova. Correio do Povo reportou essa notícia que impressionou a imprensa brasileira pelos valores envolvidos na negociação: O Profissionalismo no Foot-Ball Confirma-se a notícia de que o craque Ministrinho aceitou o convite para jogar no Genova Foot-Ball Club. O contrato será assinado no dia 27 ou 28 desse mês em São Paulo com representantes daquele Club, estipulando esse documento que, no ato da sua assinatura Ministrinho receberá a quantia de 52:500$000 e receberá na Itália um ordenado mensal impressionante de 2:500$000.171

A Federação também repercutiu a venda de Ministrinho, que escancarou o receio da imprensa brasileira com a fuga de atletas. Percebe-se que a tendência da imprensa esportiva a partir da fuga de atletas para Europa foi uma ampla defesa do profissionalismo, pois percebiam que o nível técnico do futebol Sul-Americano, considerado o melhor do mundo no período, estava sendo ameaçado:

3.3 ARGENTINA 1931: A GREVE QUE GEROU O PRIMEIRO CAMPEONATO PROFISSIONAL DA AMÉRICA

Em 1918 o Campeonato Argentino organizado pela Asociación Argentina de Football (AAF) chegou ao fim com o triunfo do Racing Club de Avellaneda. La Academia como é conhecido a equipe branca e celeste, fez uma campanha gigantesca, que se encerrou com 17 vitórias e apenas 2 empates. Entretanto, não é pelo título do Racing que esse campeonato é marcado. Outros dois clubes, ambos da zona oeste da cidade de Buenos Aires protagonizaram uma discussão que seria o início de uma ruptura no futebol do país. O regulamento do campeonato previa a queda para a Segunda divisão dos dois últimos colocados do certame. A tradicional equipe do Ferro Carril Oeste do bairro de

171 Correio do Povo 17/03/1931. P.6

82 Caballitos ocupou a décima nona posição e, pelas regras, teria que descender de categoria. No bairro vizinho – Liniers – o Vélez Sarsfield sagrava-se campeão da Segunda Divisão e estava habilitado para ocupar um lugar na máxima categoria do futebol argentino. Porém a disputa não se limitou as quatro linhas. Uma disputa judicial vai marcar o início das tensões entre os dirigentes dos clubes argentinos. O Ferro Carril alegou que os jogadores da equipe do Vélez recebiam pagamentos para jogar futebol, ferindo os princípios do amadorismo, regra máxima – em tese – da AAF. O Tribunal Disciplinar da entidade acatou o pedido e anulou as partidas da equipe de Liniers. Entretanto como aponta Horácio Rossati não podemos entender a cisão de 1919 através de apenas uma causa ou explicação. Houve uma série de motivos que foram escancarados a partir da questão dos clubes citados, que contribuíram para que no ano de 1919 o futebol argentino tivesse duas entidades representativas, organizando dois campeonatos em paralelo172. Além da questão do chamado profissionalismo marrom, houve uma grande disputa interna na AAF, que não aceitou a inscrição de novos delegados representativos nomeados pelos clubes para tratar da questão envolvendo as equipes do Vélez e Ferro Carril. Com um clima totalmente desfavorável, no ano de 1919 foi criada a Asociación Amateurs de Football (AAmF), entidade que reunia a ampla maioria dos principais clubes do país. Faziam parte da AAmF no ato da sua fundação as seguintes equipes (14): Racing Club de Avellaneda, Vélez Sarsfield, San Lorenzo de Almagro, River Plate, Independiente de Avellaneda, Platense, Gimnasia y Esgrima de La Plata, San Isidro, Estudiante de Buenos Aires, Atlanta, Defensores de Belgrano, Sportivo Barracas, Estudantil Porteno e Tigre. Já filiados a AAF permaneceram as equipes (6): Boca Juniors, Estudiantes de La Plata, Huracán, Eureka, Sportivo Almagro e Porteno. Durante o período de 1919 e 1926 o futebol argentino conviveu, portanto com dois campeonatos paralelos, com uma presença massiva das consideradas “grandes equipes”173 no Campeonato da AAmF (River Plate, Independiente, Racing e San Lorenzo). No Campeonato da AAF continuava filiado e dominando os títulos a equipe do Boca Juniors. Ambas as entidades condenavam oficialmente práticas profissionais, os

172 ROSSATI, Horácio. Historia de Boca Juniors: una pasión argentina. Buenos Aires, Ed. Galerna. 2009. p. 117 173 É tradicional na imprensa argentina o uso da expressão “cinco grandes” para se dirigir aos clubes River Plate, Boca Juniors, Independiente, Racing e San Lorenzo. São os clubes que mais concentram torcedores e títulos no futebol do país.

83 jogadores argentinos estavam proibidos de serem remunerados de qualquer forma pelas equipes. Entretanto a prática do amadorismo marrom passou a ser praticamente a regra. Era amplamente relatada na imprensa, os clubes faziam vistas grossas e, para os torcedores, esse novo ator social do futebol, era a forma possível para a sua equipe formar elencos melhores e disputar campeonatos, o que efetivamente importava naquele momento onde o caráter “saudável e moral” do esporte já não era mais considerado. O futebol já era um negócio rentável, todos os grandes clubes construíram na década de 1920 estádios para mais de 20 mil pessoas174, sendo que os domingos de jogos concentravam milhares de pessoas que pagavam entradas gerando uma grande receita para os clubes. O número de associados também cresceu consideravelmente nesse período: Em torno dos anos de 1920, 1921 e 1922 surge o primeiro grande salto no número de associados. River chegou a superar os 3.500 no ano de 1922 e 5.000 no ano seguinte, quando mudou a sua sede. San Lorenzo triplicou sua massa associada entre 1920 e 1922, chegando a 1500. Ao decorrer da década houve um grande crescimento de sócios. Assim River e San Lorenzo terminaram a década (antes da chegada do profissionalismo) com 15.000 sócios cada, Boca chegou a 8.500, Indiependiente 4.200 e Racing a 3.000.175

Este notável crescimento pode ser explicado em partes pelo crescimento econômico do país, já que além do futebol, que era certamente a principal atividade dos clubes, essas instituições eram verdadeiros centros recreativos com sedes sociais e campestres para seus associados. Mas principalmente pela mudança de interesse com o futebol, que se transformou em um espetáculo atrativo para a maioria da população. Os estádios de futebol na Argentina estavam rodeados por publicidades (algo também inaugurado em 1920), que traziam rendas consideráveis aos clubes. A mudança de patamar do futebol é evidente e o amadorismo já não era mais compatível com esse cenário de competitividade que estava sendo construído. Com isso, a questão do marronismo passou a ser tratada na imprensa não como algo a ser simplesmente criticado e denunciado, mas sim algo a ser superado, sendo que o antídoto para isso seria uma ampla e séria discussão sobre a adoção do profissionalismo. Entretanto, como realizar isso com duas ligas paralelas correndo?

174 Em 1928 o Independiente de Avellaneda inaugurou seu estádio chamado de La Doble Visera, o primeiro estádio em concreto da Argentina, com capacidade superior a 40 mil pessoas. Antes disso o Boca Juniors e o River Plate, vizinhos de bairro no período, já tinham estádios que recebiam públicos superiores a 20 mil pessoas. 175 Frydenberg. Op.Cit. p. 165.

84 A necessidade de unificação do futebol argentino era uma unanimidade nos veículos da imprensa esportiva e também para os atletas. Para os jogadores, aumentavam as possibilidades de novas oportunidades, ainda que o regime fosse legalmente amador, pois os atletas que jogavam em uma liga estavam proibidos de ingressar a quadros da outra liga. Os atletas que jogavam em clubes filiados à AAmF também estavam impossibilitados de serem convocados pela Seleção Argentina, já que essa era atribuição da AAF, entidade que era reconhecida pela FIFA. O jornalista Natalio Botana, começa então uma verdadeira empreitada em seu jornal Crítica, postulando-se para a presidência da AAF, com um claro e direto objetivo: buscar a unificação das ligas de futebol. Natalio percebeu durante a Gira do Boca e a cobertura de Jogos Olímpicos que o futebol é um produto rentável e consumido pelos leitores. Unificar o futebol significaria fortalecê-lo e maximizar os possíveis lucros. Nesse cenário, no ano de 1926, Botana assumiu a presidência da AAF e, em seu discurso de posse, em fevereiro, afirma: Senhores conselheiros: Ao presidir pela primeira vez as reuniões desse conselho, primeiro ato também como presidente da Asociación Argentina de Football, desejo expressar como uma aspiração definitiva, a única talvez que me moveu a aceitar esse cargo de responsabilidade, meu propósito de trabalhar pela unificação do futebol argentino. Do lado oposto foram pronunciadas palavras auspiciosas para a fusão; Que vão as nossas palavras, sem perda de tempo, mais que auspiciosas, fraternas para encontrar o caminho da reconciliação e da concordância. Os clubes que me votaram estão totalmente de acordo com esse ponto, porque é uma das qualidades mais interessante dos homens dos esportes, o esquecimento de velhas desavenças e o violento e amigável aperto de mão com que selam as vitórias. Mas daqui não surgirão, senhores conselheiros, nem vitoriosos, nem derrotados. O triunfo será para todos nós e, no amplo plural, quero entender a Asociación de Amateurs, cujos clubes devem ser confundidos com os nossos e cujos homens devem conquistar, juntos, os triunfos verdadeiramente desejáveis dos líderes internacionais. Não deve esperar o conselho, nem deve esperar o futebol argentino, outra coisa mais importante da minha gestão. Não tenho experiência no esporte, isso sim, tinham razão os clubes que não quiseram votar no meu nome. Não sou nada além de uma vontade forte e determinada a serviço da fusão. Não entendo a politicagem do futebol e permitam-me senhores, não quero entender. Sou um espectador atento que durante anos desde as colunas do meu jornal, que tem dedicado muito ao engrandecimento do futebol, tenho notado os grandes males que causa a divisão. Um espectador que sabe, nesse século dos esportes, a honra de se associar a essa empresa. Senhores conselheiros: aqui está meu propósito, claramente enunciado. Aqui é uma síntese do que deve ser feito176.

176 Crítica: 04/03/1926. p. 6

85 Natalio foi aclamado pelo conselho, confirmado na presidência da AAF, e seu nome era tido como a peça central para a conclusão da fusão das ligas. Porém, a jornada para a aprovação da fusão não era uma tarefa fácil. Os dirigentes futebolísticos estavam em constantes disputas pelo poder desse lucrativo esporte. Botana teve durante sua curta gestão (de fevereiro a agosto de 1926) muitas dificuldades de avançar na questão da fusão. A principal dificuldade foi o número de delegados representantes de cada equipe. Equipes que possuíam estádio próprio defendiam o direito de possuir três delegados, contra dois das equipes sem estádio próprio177. Foi acusado de mesclar os interesses do seu jornal com a função de Presidente da AAF. O caso mais emblemático ocorreu quando, no inicio dos campeonatos de 1926, seu jornal Crítica dedicou duas páginas inteiras para os jogos da AAF, com fotografias, comentários e análises, e apenas informou as datas dos jogos do torneio da AAmF178, gerando críticas de dirigentes esportivos e dos torcedores. Sua credibilidade estava questionada. Natalio se afastou da Presidência da AAF em agosto sem conseguir ser o mediador da fusão entre as ligas. Entretanto, após a sua saída, outro importante setor da sociedade serviu como mediador dos conflitos, o que mostra a importância e a relevância que o futebol estava atingindo na Argentina. Muito possivelmente pela primeira vez na história do futebol argentino houve uma intervenção estatal para resolver um problema no âmbito futebolístico. Influência essa que nunca mais se desvinculará do esporte mais popular do país. Ao final do ano de 1926, com a participação direta do Presidente da República, Marcelo Alvear, como mediador do conflito, houve a fusão das duas ligas através de um decreto, e os campeonatos entre 1919 e 1926 foram unificados. A partir de 1927 uma nova liga seria formada, sob o nome de Asociación Amateurs Argentina de Football (AAAF). A partir dessa nova fusão, é visível a mudança de postura, agora definitiva da imprensa em relação ao profissionalismo. Principalmente El Gráfico, que anteriormente tinha um discurso bastante discreto em relação ao tema, agora sai em defesa do profissionalismo como única forma de moralização e organização do espetáculo futebolístico. Crítica, que já adotava desde antes do período Botana na presidência da AAF uma defesa da causa, com a fusão, aumenta o tom desse posicionamento. A fuga de jogadores para a Europa e a inabilidade de se combater o marronismo são os principais

177 Crítica 06/06/1926. P. 5 178 SAITTA, Sylvia. Op. Cit. p. 3

86 argumentos dos jornalistas esportivos argentinos. Para os jogadores, de uma maneira geral, o profissionalismo era uma reinvindicação mais antiga ainda. Além da possibilidade de ascensão social através do futebol, os jogadores passariam a ter segurança jurídica em relação a pagamentos, contratos, associações mutualistas e sindicatos. Eles encaravam o marronismo como uma forma arcaica de relação de trabalho, na qual os maiores beneficiados eram os dirigentes que repassavam para eles, sem garantia alguma, uma pequena parcela dos lucros cada vez mais pomposos do futebol. A imprensa nesse sentido tem um papel importante, pois apesar de, assim como os jogadores, defender o profissionalismo, suas ambições são diferentes dos atletas. Entretanto, como os atletas poderiam pressionar e lutar pela profissionalização da sua profissão? O principal canal entre os atletas e o público (torcedores) é a imprensa, que dava o espaço necessário para os jogadores se posicionarem. A transferência de atletas já era uma prática comum na década de 1920, o que mostra que a fidelidade institucional, tão característica do amadorismo, era algo cada vez mais raro e os atletas se moviam conforme suas oportunidades. Como aponta um quadro feito por Julio Frydenberg, a mobilidade de jogadores era uma tendência nos anos que antecedem o profissionalismo. O historiador levantou o nome de 45 jogadores que foram entrevistados durante a década de 1920 pelo jornal argentino La Cancha e fez uma analise de carreiras179: QUADRO 1

Quantidade de clubes que defendeu Entrevistados por La Cancha

1 5

2 8

3 12

4 9

5 4

6 3

7 3

Luis Vaccaro, meio campista e capitão do Argentinos Juniors, era considerado

179 FRYDENBERG, Julio. Op.Cit. p.185

87 em 1927 um dos maiores craques do futebol argentino. Em entrevista para El Gráfico, o jogador, que acumulava passagens por San Lorenzo e Boca Juniors, defendeu o profissionalismo: - Você seria atleta profissional? - Sou partidário em absoluto do profissionalismo! Acredito que todos os atletas deveriam ser remunerados de maneira justa pelo seu desempenho e mérito. O amadorismo disfarçado é prejudicial para o atleta, muitas vezes esse jogador nao percebe pois acredita que está conseguindo um soldo, um sustento. Mas vive na clandestinidade, sem liberdade nenhuma de passe, sem nenhuma garantia. Olhe o que está passando na Espanha, com jogadores bem treinados, bem alimentados, dedicados para exercer a profissão. O futebol só tem a crescer com o profissionalismo180.

Muitos ex-jogadores, que viveram em um período onde os princípios do amadorismo eram mais sólidos, posicionavam-se contrários a práticas profissionais (como troca de time ou receber para jogar), entretanto defendiam a implantação do profissionalismo. Era o caso de José Diebe, ex-zagueiro do San Lorenzo de Almagro, que também foi entrevistado por El Gráfico em 1927. Já sou velho e me passou a idade das ilusões. Não concordo com essa troca de jogadores entre os clubes, essa falta de identificação ou essa falsa identificação. Entretanto sou favorável ao profissionalismo. Assim como um ator recebe para apresentar um espetáculo acredito ser justo que o jogador de futebol também merecem receber pelo seu trabalho181.

Depois da renúncia de Botana, Crítica endurece sua campanha jornalística a favor da profissionalização, com o objetivo de criar uma opinião pública favorável e unânime: Nossa opinião sobre o profissionalismo tem sido bem recebida no ambiente esportivo. Dirigentes, jogadores e público reconhecem que o único que pode salvar o futebol da falência em que se encontra é a implementação definitiva do profissionalismo. Temos que ir de uma vez por todas ao profissionalismo. Haverá assim, menos equipes na Primeira Divisão, mas veremos um melhor futebol. Os clubes amadores, aqueles que realmente praticam o esporte por simples prazer, sem levar em consideração a questão monetária, poderá continuar sua vida atual, sem sofrer maiores prejuízos, já que o profissionalismo não diminuirá seus valores e seu prestígio. A única salvação do futebol, lá única maneira em que poderemos voltar as épocas de ouro do passado, é voltar ao profissionalismo. E isso deve ser um ponto, o quanto antes, evitando os males atuais que só servem para desprestigiar o velho jogo,

180 El Gráfico. 12/02/1927. p. 17. 181 El Gráfico: 26/02/1927. p. 17

88 fazendo perder seus melhores valores e conceitos182.

No ano de 1929, ano do terceiro campeonato após a unificação, a junta diretiva da AAAF decidiu criam uma polêmica cláusula na lei que regulava os passes dos jogadores e que vai repercutir no mundo futebolístico argentino de maneira decisiva. Chamada de cláusula cerrojo o candado, essa nova regra buscava regulamentar as transferências de jogadores sob a justificativa de combater o amadorismo marrom. A cláusula determina duas coisas: a primeira era que os jogadores tinham que permanecer no mínimo três anos em cada passagem por nova equipe e a outra dizia que a transferência de jogadores somente poderia ser consumada com a concordância do clube de origem. Ou seja, os jogadores passaram a ficar dependentes dos dirigentes, podendo ficar presos aos clubes, mesmo recebendo propostas mais tentadoras para jogar por equipes diferentes. Os dirigentes justificavam a regra como única forma de moralizar o futebol em um cenário onde o profissionalismo não era legalizado. El Gráfico trouxe a opinião dos dirigentes por meio da palavra do delegado do Independiente e secretário da AAAF, Juan Biscay: Acredito que a regulamentação do passe sancionada pela última assembleia ordinária da AAAF era e é sumariamente necessária. Ela coloca uma pá de cal ao vergonhoso e imoral comércio entre clubes e jogadores. Eu acredito que enquanto não se declare o profissionalismo aberto e devidamente regulamentado, os clubes tem a obrigação de fazer escola do futebol183.

Borocotó da revista El Gráfico também comentou sobre a necessidade da regra: Essa regulamentação de passe constitui, em principio, um atentado, pois significa tirar de um jogador considerado amador a liberdade de ir e vir. Porém como na realidade o jogador é amador "marrom", e os clubes, especialmente os mais modestos, viviam sobre a permanente ameaça de "pedidos" que poderiam representar uma quebradeira em suas finanças, a lei, praticamente, representa um beneficio geral. É impossível continuar nessa posição duvidosa e de ambiguidade que só favorece os maus elementos do futebol. Se os jogadores não são nem querem ser amadores, devem logicamente serem profissionais184.

Essa polêmica regra foi o motivo fundamental para a eclosão de uma greve de jogadores no futebol argentino (principalmente na capital Buenos Aires e em Rosário),

182 Crítica: 28/06/1926.p. 6 183 El Gráfico: 13/03/1929. p.7 184 El Gráfico: 14/03/1929. p. 8

89 que foi fundamental para o definitivo surgimento do profissionalismo no futebol do país. A prática do amadorismo marrom estava difundida por todo o futebol argentino, por praticamente todos os principais clubes. O marronismo ser considerado justificativa pelos dirigentes para a implementação da nova cláusula chega a ser irônico e hipócrita. Como pode, dirigentes que praticam o marronismo livremente, criarem uma lei que iria frear tal prática? Na realidade, e essa foi a percepção dos jogadores, a lei era uma forma de controle dos atletas, que além de não terem garantias profissionais ainda estariam presos à vontade dos dirigentes. O campeonato de 1930 foi encerrado somente no ano de 1931, no mês de abril. O motivo para isso foi um recesso de três meses para a disputa da Primeira Copa do Mundo da FIFA, jogada no país vizinho Uruguai. A Argentina faz uma grande campanha, sendo vice-campeã mundial, perdendo a final para os donos da casa. Ao finalizar o campeonato, em abril, com a consagração do Boca Juniors como campeão do futebol argentino, os jogadores de futebol das equipes filiadas à AAAF declararam que estavam em greve. A principal exigência era o fim da cláusula cerrojo o candado e a liberdade de passe para os atletas. Apenas alguns dias depois de iniciada a greve, em maio de 1931, outro episódio serviu para o aumento das tensões entre dirigentes e futebolistas. A AAAF tinha firmado um compromisso com a Liga Paraguaya de Football Association (LPFA) para a realização de um amistoso entre as seleções argentina e paraguaia. Os jogadores em greve se negaram a alistar-se, não foram ao Paraguai e, no dia 12 de abril de 1931, fizeram uma manifestação sobre Avenida Santa Fe, em direção à Casa Rosada. O objetivo dos atletas era falar com o Presidente da República. Em 1931 o Presidente argentino era o militar José Felix Uriburu. Chegou ao poder através de um golpe e governava o país em estado de sítio. O presidente constitucionalmente eleito, Hipólito Yrigoyen, havia sido detido e as manifestações públicas estavam proibidas185. Mesmo nesse cenário, Uriburu concordou em receber os atletas e suas reclamações, como relataram Crítica e El Gráfico: O Presidente da nação, senhor Uriburu recebeu hoje nas escadarias da sede do governo uma comitiva de jogadores de futebol argentino que estão estado de greve. O Presidente ouviu os reclamos dos atletas e solicitou ao intendente municipal o senhor Guerrico que intervenha junto aos clubes e atletas com o objetivo de criar uma solução para o

185 PERSALO, Ana. Los gobiernos radicales: debate institucional y prática política. In: FALCÓN, Ricardo. Nueva Historia Argentina: Democracia, conflicto social y renovación de ideas (1916 - 1930). Buenos Aires: Editorial Sudamericana. 2000. p. 61

90 conflito no futebol argentino186.

Os jogadores se reuniram em assembleia e decidiram levar ao Presidente Provisório Uriburu, a fim de que ele com sua influencia intercedera para obter o fim das sanções e a regulamentação dos passes livres. Em manifestação os jogadores se dirigiram até a Casa Rosada. Uma comissão foi conversou com o chefe de governo provisório que se comprometeu em acabar com as dificuldades que existem entre jogadores e dirigentes187.

É interessante analisar que em um contexto de total violações dos direitos humanos e do direito de manifestação, que foi o período de Uriburu na presidência, os atletas de futebol tenham sido ouvidos pelo poder público em suas manifestações. Isso mostra que o futebol tem um status na Argentina como algo de relevância. Os domingos sem partidas refletiam negativamente na sociedade e era do desejo de todos uma solução rápida para o conflito. Liderados por Hugo Roque Settis, jogador do Huracán, e uma das principais estrelas do futebol argentino, os jogadores, reunidos em um embrião do que seria a primeira Associação Mutualista do futebol argentino, tinham duas reclamações básicas para terminar a greve: a liberdade de passe e o fim das sanções impostas pela AAAF aos jogadores que se negaram a participar do amistoso no Paraguai188. Em nenhum momento encontra-se a palavra profissionalismo nas suas reinvindicações ou em suas assembleias. Já em 1928 a imensa maioria dos dirigentes dos clubes de futebol era favorável ao profissionalismo, e em 1931 essa opinião era mais sólida ainda. O grande empecilho para avançar na formalização do regime profissional na Argentina era justamente a questão de como implementar. Sobre essa questão Crítica escreveu em 1928: O futebol mundial está sofrendo verdadeira evolução, como consequência da sua grande popularidade. As Grandes receitas que os matches de futebol produzem, e a circunstancia de serem os que praticam, em sua imensa maioria, rapazes de condições modestas, tem dado lograr a que os dirigentes para conservar os bons jogadores nos seus elencos, utilizem-se de toda a sorte de ofertas secretas seja em empregos, em remunerações mensais ou por partidas ou pagamento de exageradas ajudas de custo. Isso ocorre aqui, no Uruguai, no Brasil, no Chile em toda parte onde o esporte adquiriu popularidade. A Inglaterra cuja grande experiência nos esportes permitiu regular suas coisas a muitos anos divide os amadores dos profissionais. Não se pode ver mais com bons olhos a mentira internacional do amadorismo. É a opinião da ampla maioria dos dirigentes do futebol argentino a profissionalização

186 Critica: 13/04/1931. p.6 187 El Gráfico 14/04/1931. p.3 188 Os atletas que se negaram a participar da partida entre Argentina e Paraguai foram excluídos da AAAF por tempo indeterminado.

91 do esporte em no nosso país. O entrave reside justamente nos interesses pessoais, no jogo de poder que atrapalha a verdadeira evolução em nosso futebol189.

De fato, o profissionalismo parece ser uma unanimidade entre os dirigentes do futebol argentino. Nas fontes consultadas não encontramos dirigentes que defendam o amadorismo como os primórdios do futebol. Principalmente para os considerados “grandes” do futebol, o profissionalismo era um desejo. Esses clubes que detinham as melhores receitas, maior quantidade de sócios e que eram os verdadeiros “gerentes” do espetáculo futebolístico, estavam muito interessados no profissionalismo, mas não estavam interessados na liberdade de passe. A situação em 1931 era complexa: os jogadores de futebol estavam em greve e o profissionalismo não era uma reinvindicação oficial da associação mutualista (apesar de historicamente a classe defender essa causa). Seus reclamos eram claros, o fim das sanções aos grevistas e a liberdade de passe. Os dirigentes dos clubes tinham uma opinião unanime sobre a necessidade do profissionalismo no futebol para conter a fuga de jogadores e melhor gerir os recursos cada vez maiores do esporte. Entretanto, não entravam em acordo sobre o modelo a ser adotado. A imprensa, desde 1925, era uma ferrenha defensora do profissionalismo acreditando que esse regime tornaria o futebol um espetáculo ainda mais rentável. O golpista Uriburu demonstrou pouco interesse em mediar pessoalmente a questão entre os dirigentes e jogadores e nomeou o intendente da cidade de Buenos Aires, José Guerrico, como encarregado da questão. A intervenção estatal era um pedido dos atletas, mas também não era vista com maus olhos pelos dirigentes. Os jogadores, diferentemente de outras categorias, não estavam organizados em torno de uma bandeira política nem tinham uma orientação ideológica clara. Seu protesto aconteceu através de despachos oficiais e marcando reuniões formais. Os jogadores, como citado anteriormente, jamais pediram o profissionalismo de maneira formal em assembleia. Os dirigentes mostravam-se intransigentes a respeito de qualquer acordo relevante ao passe livre. Mas nesse contexto apareceu a figura do Estado. A estratégia de Guerrico nas suas reuniões com os dirigentes dos clubes foi mudar o objetivo final para o fim do confronto. Deixou a discussão polêmica - a questão do passe livre - de lado e passou a discutir a formalização de algo que a principio unia as duas categorias: o profissionalismo

189 Crítica 13/06/1928. p.6

92 As reuniões foram levadas adiante entre estado e dirigentes. Paralelamente, os jogadores reunidos em assembleia mantinham-se firmes em greve. No dia 27 de abril, o diário Crítica estampava em seu caderno de esportes a manchete: “Hoje os jogadores resolvem a greve. A expulsão de oito companheiros estimulou o entusiasmo gremial190”. O periódico de Botana defendia a greve dos jogadores, entretanto em suas páginas a questão do passe livre não era mais mencionada. O que existia era uma ênfase na demanda de liberação dos atletas sancionados e uma defesa do profissionalismo como uma resposta definitiva a situação caótica que estava vivendo o futebol argentino. No dia 18 de abril, em meio às negociações para a solução do conflito, El Gráfico publicava em suas páginas uma ferrenha defesa do profissionalismo. Citava o número excessivo de clubes, a redução da qualidade do espetáculo e do interesse do público, a falta de disciplina dos jogadores e os casos de violência no futebol como frutos do falso amadorismo. A solução para todos os males passou a ser o profissionalismo: A revolução dos jogadores argentinos de futebol. Ela terá. por definição, a mais lógica das soluções: o profissionalismo. Ninguém é mais culpado que os dirigentes por essa situação caótica. A solução demorou a sair e infelizmente precisamos vivenciar uma situação de crise extrema para que a decisão correta fosse acatada191.

Novamente a questão do passe livre é deixada de lado e o profissionalismo é exaltado como grande solução do problema. O argumento criado nas reuniões entre os dirigentes e o Estado para a solução do conflito passava pela crença de que o profissionalismo era o "verdadeiro" desejo dos jogadores. Sob esse argumento o conflito tinha raízes puramente econômicas e, com o profissionalismo, os jogadores teriam a possibilidade de ganhar mais dinheiro e de maneira legalizada. Com isso, a questão do passe livre seria esvaziada. Para os dirigentes a constituição do profissionalismo representaria o fim das amarras que o amadorismo, mesmo que informal, representava para o desenvolvimento do futebol como espetáculo rentável. Possibilitaria o acúmulo de divisas e do investimento no futebol de maneira legalizada. Além disso, o profissionalismo possibilitaria que os contratos obedecessem regras criadas pela Liga profissional que, protegeriam os clubes do que eles chamavam de golondrineo192. No dia 19 de maio de 1931, uma reunião entre dirigentes das equipes da AAAF,

190 Crítica: 27/04/1931. p. 6 191 El Gráfico 25/04/1931. p.4 192 Expressão utilizada na época para descrever as transferências de jogadores. No período do amadorismo marrom era comum que um jogador disputasse o campeonato por mais de uma equipe, ou até mesmo, mais de uma liga.

93 já convencidos da necessidade do profissionalismo, teve como consequência a criação de uma nova entidade. A Liga Argentina de Football (LAF), a primeira liga oficialmente profissional da América do Sul, criada pelas principais equipes do futebol argentino (18): Boca Juniors, River Plate, San Lorenzo, Racing, Independiente, Estudiantes de La Plata, Gimnasia y Esgrima, Ferro Carril, Huracán, Atlanta, Chacarita Juniors, Argentinos Juniors, Lanús, Platense, Quilmes, Talleres, Tigre e Veléz Sarsfield. A recém criada LAF era constituída pelas equipes com os maiores estádios, públicos, sócios e renda do futebol argentino. A enorme quantidade de clubes pertencentes à AAAF era considerada um entrave para o crescimento do esporte como espetáculo. Acreditavam que somente uma liga forte e para poucos poderia conduzir o futebol para o profissionalismo. Os dirigentes da LAF criaram uma regra segundo a qual, no primeiro ano do campeonato, estava proibida a troca de jogadores entre clubes membros da Liga, como uma espécie de “acordo de cavalheiros”. Os outros clubes menores que continuaram na AAAF sofreram um duro golpe com a saída dos grandes. Ofereceram aos jogadores o passe livre como forma de atraí-los a permanecer na AAAF, apesar de manter o amadorismo como regra. Para os jogadores restaram duas opções: manter-se na AAAF, ter o passe livre, mas com muito menos recursos, ou jogar em equipes da LAF, não ter um regime de passe livre, mas ter os melhores salários, os melhores contratos e jogar nas melhores equipes. A imprensa exaltou a criação da LAF e a chegada do profissionalismo. El Gráfico193 estampa em sua capa a figura do jogador Hugo Settis, um dos líderes do movimento dos atletas em greve. Apesar das reuniões que definiram a criação da LAF serem realizadas com os dirigentes dos clubes, sem a participação efetiva dos jogadores nas negociações, a revista coloca os jogadores como protagonistas da oficialização do profissionalismo. Jogadores de futebol, já eram nessa época figuras carismáticas e seguidas, que trariam um apelo popular maior para a causa do profissionalismo.

193 Ediçao de 30/05/1931

94 FIGURA 3: Capa da primeira edição de El Gráfico após o profissionalismo

Com a chegada do profissionalismo na Argentina, houve uma nova cisão no futebol. Novamente duas ligas paralelas organizavam o campeonato local. A antiga AAAF ficou esvaziada, ficando com equipes menores que atraíam cada vez menos a atenção do público. Já a LAF crescia suas receitas exponencialmente, como mostra o balancete das receitas dos jogos de ambas as ligas, publicada pelo jornal Crítica em junho de 1931: O futebol na Argentina: situação financeira da Liga Profissional e da Associação Amadora A implantação do profissionalismo criou uma situação interessante. Fundada a Liga Profissional os grandes clubes a ela se filiaram, abandonando a Associação Amadora, que ficou visivelmente enfraquecida. Sem bons campos, sem grandes craques e figuras populares a AAAF já não esta mais atraindo a atenção do público ao passo que a Liga Profissional tem atraído enormes assistência como se pode comprovar nos dados abaixo: RENDA DOS JOGOS DA LIGA ARGENTINA DE FOOTBALL Gimnasia y Esgrima Vs Estudiantes ...... 13.192

95 F.C.Oeste Vs Boca Juniors ...... 12.539 River Plate Vs San Lorenzo ………………………………..10.495 Racing Vs Veléz Sársfield ...... 3.808 Lanús Vs Independiente ...... 3.754 Huracan Vs Platense ...... 2.088 Chacarita Vs Talleres ...... 1.247 Quilmes Vs Atlanta...... 986 Argentinos Juniors Vs Tigre ...... 789 TOTAL: ...... 48.896 pesos

RENDA DOS JOGOS DA ASSOCIAÇAO AMADORA Almagro Vs Liberal ...... 444 Estudantil Vs All Boys ...... 320 Banfield Vs Nacional ...... 236 San Isidro Vs Unión ...... 187 La Paternal Vs Nueva Chicago ...... 79 Retiro Vs Defensores Belgrano ...... 76 TOTAL: ...... 1.342 pesos194

A greve significou a chegada do profissionalismo, mesmo que não fosse seu objetivo inicial. A criação da Liga Profissional vai transformar completamente o futebol argentino com a extinção de muitas equipes que ficaram agonizando na falida AAAF. As relações entre dirigentes e jogadores também se transformaram com os jogadores criando oficialmente uma entidade mutualista e posteriormente um sindicato de atletas, exigindo melhores condições de trabalho e salário, no decorrer das décadas de 1930 e 1940.

3.4 URUGUAI 1932: OS CAMPEÕES DO MUNDO TORNAM-SE PROFISSIONAIS

O processo de profissionalização do futebol uruguaio foi muito influenciado pelo caso argentino. O regime de contratações no país oriental era exatamente o mesmo ao da Argentina. O passe livre não existia e os jogadores reclamavam constantemente nas páginas dos principais jornais do país a respeito das dificuldades do marronismo. É o caso da entrevista do jogador José Pedro Cea, artilheiro do primeiro campeonato mundial de 1930 e considerado um dos melhores atacantes uruguaios de todos os tempos. Em 1931, o jogador do Nacional comenta em entrevista ao jornal El Día: Eu sou pelo profissionalismo! É difícil sustentar um regime onde os jogadores não tem garantia alguma, preso a vontade dos dirigentes. Eu tenho um ótimo relacionamento com dirigentes tricolores mas sei que não sou a regra... Nós mesmos, jogadores uruguaios, conquistamos com muita dificuldade o direito de os clubes cobrirem nossos gastos médicos em caso de lesão. Nada mais justo! O futebol já a tempos tornou-se um negócio de magnitude. Acredito que o profissionalismo é um remédio

194 Crítica: 24/06/1931. p. 6

96 amargo e inevitável para o nosso futebol195.

A Argentina, com adoção do profissionalismo passou a significar a possibilidade de ascensão para os jogadores uruguaios. Logo após a solução do conflito na Argentina o San Lorenzo de Buenos Aires contratou para suas fileiras nove jogadores uruguaios196. Tentando evitar potenciais crises e fuga de atletas uruguaios, o presidente do Nacional, José María Delgado, propôs uma reunião na Asociación Uruguaya de Fútbol (AUF) para debater a adoção do regime profissional. Foi acompanhado de imediato pelo Peñarol. Como vimos no caso argentino, era natural que as equipes com maior torcida, dinheiro e número de sócios desejassem o profissionalismo com maior entusiasmo que as demais equipes. Desejavam um futebol de poucos e fortes. Foi o que aconteceu, com a criação em 1932 da Liga Uruguaya de Football Profesional: Vou emitir minha opinião pessoal, pois no Rampla Juniors não falamos oficialmente sobre tão interessante assunto. Creio que devemos ir ao profissionalismo porque entendo que é a única maneira de levantar nosso futebol. Para mim o problema não é complexo. Pelo contrário, o vejo muito claro. Poderia concretizar nestas palavras minha opinião a respeito: o profissionalismo viria legalizar um situação que já existe de fato. Os clubes com a implantação do profissionalismo, sairão ganhando, pois aumentarão a renda em consequência de maior público a quem se daria melhor espetáculo. Nao creio na indiferença do público nem no efeito que poderia causar-lhe essa troca fundamental em nosso desporto. Não creio porque é notório que os jogadores, na atualidade, percebem favores de seus respectivos clubes e o entusiasmo pelas cores não decaiu. Por outro lado, estimo que a implantação do profissionalismo influa na educação do público, que deve ir-se acostumando a ser um bom espectador e sem que pare o entusiasmo e suas simpatias por determinado clube, saiba apreciar o melhor jogo e premiar os melhores197.

Essa era a opinião de Ernesto Moirano, jogador do Rampla Juniors. No Uruguai a adoção do profissionalismo aconteceu sem maiores atritos. Foi quase que uma consequência do processo iniciado na Argentina. No dia 30 de abril de 1932 foi criada oficialmente a Liga Profissional, com as dez principais equipes do país: Wanderers, Nacional, Rampla Juniors, Peñarol, Central, Misiones, Defensor, Sud América, Bella Vista e Racing.

195 El día: 12/04/1931. p.6 196 Crítica: 19/09/1931. p.4 197 El País: 23/02/1932. p. 7.

97 3.5 RIO GRANDE DO SUL 1937: O CONFLITO ENTRE CEBEDENSE E ESPECIALIZADAS

A constituição do profissionalismo no futebol argentino e uruguaio rapidamente repercutiu no Brasil. A imprensa esportiva brasileira comentou extensivamente o processo de profissionalização nos países vizinhos. Como citamos anteriormente, a fuga de jogadores para a Europa era uma preocupação para os dirigentes e torcedores sul-americanos. Esse problema se intensificou a partir de 1931, pois a Argentina tornou- se um destino dos craques brasileiros. É o caso de Vani, jogador do São Paulo, que rumou para o San Lorenzo no ano de 1931: O nosso embarque é coisa certa. Os dirigentes do futebol nacional preferem o regime mascarado e, por isso, vamos ganhar a vida legalmente, no futebol que nos dá garantias e é mais honesto. A catilinária dos antiprofissionalistas, escreva lá, não impedirá o advento do profissionalismo no futebol brasileiro. Já se foi o tempo em que este era jogado pelos almofadinhas, filhos dos “pais da pátria”. Hoje, o soccer é privilégio dos rapazes humildes, como eu, que, para aprendê- lo gastaram muito sapato, rasgaram muita roupa. Os “gansos do Capitólio”, do nosso amadorismo aleijado, cansarão de grasnar suas asneiras contra os profissionais no dia em que eles abrirem e compreenderem o espírito humano e democrático do estatuto profissional. Eu vou para a Argentina satisfeito e pretendo voltar para ainda jogar futebol como profissional de verdade no Brasil, minha pátria.198

Talvez o maior craque do futebol brasileiro da década de 1930, Leônidas da Silva, conhecido como “Diamante Negro”, transferiu-se para o Peñarol, do Uruguai, no ano de 1934. Olheiros argentinos e uruguaios constantemente vinham ao Brasil para possíveis contratações, como mostra a nota de A Federação: Os argentinos em busca de jogadores paulistas! Segundo "El Diário" de Montevidéu, o San Lorenzo da Argentina acaba de enviar emissário ao Brasil, afim de contratar alguns jogadores para atuar como profissionais. Jogadores receberam salários fixos e auxílios para cuidados médicos. Os clubes brasileiros, principalmente Rio e S, Paulo, ficaram desfalcados, pois é sabido que os jogadores brasileiros em grande maioria desejam ingressar no profissionalismo. Diz ainda que, na volta do Rio e S. Paulo o emissário argentino percorrerá o Rio Grande do Sul afim de verificar o progresso do football...Os candidatos que se preparem!199

198 CALDAS, Waldenyr. O pontapé inicial: memória do futebol brasileiro. São Paulo: IBRASA, 1990. p.133 199 A Federaçao: 19/11/1931

98 Os primórdios do profissionalismo oficial no Brasil aconteceram, como era de se esperar, na capital do país. No Rio de Janeiro, a regulamentação do profissionalismo e o consequente fim do amadorismo começaram a se desenhar no ano de 1933. Antônio Gomes Avelar, presidente do América Football Club, percebia a movimentação do futebol sul-americano e entendia que o futebol carioca e brasileiro estava fadado ao fracasso caso continuasse com o regime amador. Juntamente com Arnaldo Guinle, dirigente do Fluminense Foot-Ball Club, e Ary Franco, presidente do Bangu Atlético Clube, eles redigiram um projeto de profissionalização do futebol, com o objetivo de criar a Liga Carioca de Foot-Ball (LCF). O Jornal dos Sports, entusiasta defensor do profissionalismo, publicou com euforia a proposta de criação da Liga: Tornada público o projeto de regulamentação do profissionalismo A comissão incumbida de elaborar a regulamentação do profissionalismo, composta dos ilustres Drs. Arnaldo Guinle, Antônio Avellar e Ary Franco, apresentará ao Conselho de Fundadores da AMEA o seu complexo trabalho, no qual são focalizados todos os aspectos da momentosa questão. Trata-se de uma obra caprichosa, feita com o máximo escrúpulo e não menor habilidade, como se poderá avaliar apreciando o seu todo, cuja transcrição fazemos nas linhas que seguem200.

A AMEA era a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos, entidade criada no ano de 1924, filiada à Confederação Brasileira de Desportos (CBD), responsável pela organização do futebol carioca e pela realização do campeonato estadual. A AMEA e a CBD eram entidades que defendiam o amadorismo. O Jornal dos Sports publicou na íntegra a proposta de criação da LCF. No capítulo II da proposta, dedicado às obrigações dos clubes, encontramos entre as exigências para ser membro da Liga um cuidado especial para as condições dos clubes. Desejava-se, assim como na Argentina, a criação de uma Liga de poucos e fortes clubes, que tinham condições de elaborar um projeto profissional para o futebol: Art. 8 - São condições essenciais para a permanência de qualquer clube: [...] f) possuir sede social própria, e praça de esporte com capacidade mínima para dez mil espectadores e com as necessárias dependências técnicas, adequadas para a prática do esporte201.

Em um primeiro momento, os criadores da proposta da LCF não romperam com a AMEA e gostariam que a proposta do profissionalismo fosse aceita por unanimidade.

200 Jornal dos Sports: 13/01/1933. p.1 201 Idem.

99 Entretanto, não foi o que aconteceu. O primeiro a se pronunciar contrário à fundação da Liga foi o presidente do Botafogo de Futebol e Regatas, Paulo Azevedo, que defendeu o amadorismo da AMEA. Juntamente com o Botafogo, Flamengo e São Cristóvão também posicionaram-se contrários à criação da Liga. Entretanto Flamengo e Botafogo ficaram encurralados pelo sucesso do campeonato da Liga, que tinha público e renda maiores que o tradicional campeonato da AMEA. Porém, para que o profissionalismo desse certo era necessário que não se limitasse ao Rio de Janeiro, como aponta o historiador Rafael Klein: Para a afirmação da corrente profissionalista, era vital que esta não ficasse circunscrita ao Rio de Janeiro, mas se difundisse para outras cidades. Com esta intenção, o movimento expandiu-se, em poucos dias, para São Paulo, onde foi acolhido quase consensualmente pelos dirigentes dos clubes. De fato, na capital paulista, havia um ambiente mais favorável, mais simpático, à causa profissionalista, visto que a principal entidade que controlava o futebol, a Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA) era mais frouxa no combate às práticas semiprofissionais do que a AMEA no Rio de Janeiro, de modo que estas transpareciam mais ao público. Evidência disto é o fato de que, já em 1929, o tradicionalíssimo Clube Atlético Paulistano decidiu encerrar suas atividades futebolísticas46, devido à proliferação, na liga paulista, de práticas profissionais, com as quais não concordava. Desde então, houve pouca resistência ao profissionalismo em São Paulo, de modo que apenas Santos e Ponte Preta esboçaram uma reação contra a adoção do regime profissional pela APEA, que se efetivou em março de 1933. Ambos os clubes acabaram acatando a decisão da liga, que, diferentemente do caso carioca, manteve-se unificada202.

No Rio Grande do Sul os ecos do profissionalismo chegaram por uma via dupla. Muito repercutiu na imprensa gaúcha, como citamos, o fim do amadorismo na Argentina e no Uruguai. A crise do futebol carioca instaurada pela cisão da AMEA e criação da LCF também despertou o interesse da imprensa do estado e fomentou, ainda mais, o debate a respeito da adoção do profissionalismo formal nos gramados rio-grandenses. A proposta de criação da LCF, juntamente com a articulação com APEA paulista, tem uma característica que vai ser fundamental para o profissionalismo no Rio Grande do Sul. Os defensores do futebol profissional tinham o desejo de especialização das entidades que administram os esportes. A CBD era uma entidade que administrava dezenas de modalidades esportivas além do futebol como remo, natação e atletismo. Os criadores da LCF articularam com seus pares de São Paulo a criação da Federação Brasileira de Football (FBF), entidade que seria responsável por administrar – exclusivamente - o

202 KLEIN, Rafael Belló. O profissionalismo imoral e a pacificação necessária: Imprensa, futebol e política na “crise das Especializadas” no Rio Grande do Sul (1937-1938). Porto Alegre. Dissertação de Mestrado PUC/RS. 2014. p.44

100 futebol no âmbito nacional. Nesse cenário ocorre uma divisão não somente no futebol brasileiro, mas também em todos os outros esportes. Quem defendia o amadorismo ficou conhecido como cebedense, pois defendia o regime promovido pela CBD. Quem defendia o profissionalismo nos esportes ficou conhecido como especializado, porque lutava pelo profissionalismo. O futebol na capital gaúcha era organizado pela Associação Metropolitana Gaúcha de Esportes Atléticos (AMGEA) de maneira hegemônica desde 1930, organizando o campeonato citadino da cidade de Porto Alegre, tendo como associados os principais clubes de futebol da cidade203. Essa entidade era subordinada à Federação Rio- Grandense de Desporto (FRGD), que organizava o campeonato gaúcho e estava subordinada à CBD. Portanto, seguindo essa ordem, o regime oficial do futebol gaúcho era o amadorismo. No ano de 1937 chega de maneira definitiva no Rio Grande do Sul o debate a respeito das especializadas. Na ocasião, três clubes membros da LCF, Flamengo, Fluminense e América, seguindo o plano de interiorização da ideia do profissionalismo, articulavam um intercâmbio com os dois grandes times do futebol gaúcho, Grêmio e Internacional. Com isso, a poderosa dupla de Porto Alegre estava comprometendo-se a advogar pela adoção do profissionalismo no estado gaúcho, articulando a criação de uma liga especializada e profissional. Seguindo essa estratégia, Grêmio e Internacional conquistam a adesão de mais três equipes (São José, Cruzeiro e Força e Luz) da cidade de Porto Alegre e criam, em abril de 1937, uma nova entidade, batizada de AMGEA especializada com caráter profissional. As equipes Americano e Porto Alegre decidem continuar com o regime amador da antiga entidade, que ficou conhecida como AMGEA cebedense (pois estava filiada à CBD). Para concorrer com a especializada, a entidade cebedense convida clubes de ligas menores para fazer parte do campeonato. Com isso juntaram-se à AMGEA cebedense os clubes Grêmio Sportivo Renner e o União da Villa Nova. Além disso, convidam o Novo Hamburgo, equipe da região metropolitana, a disputar o campeonato citadino de Porto Alegre. São formados, portanto, dois campeonatos em paralelo na capital do estado, um de caráter profissional e outro amador como podemos verificar no quadro abaixo:

203 KLEIN. Op.Cit. p.47

101 Tabela – Divisão no futebol porto-alegrense em 1937204. AMGEA cebedense – Amadora AMGEA especializada - Profissional

Porto Alegre Grêmio

Novo Hamburgo Internacional

Americano Força e Luz

Renner São Jose

Villa Nova Cruzeiro

A Federação Rio-Grandense, responsável pela organização do campeonato gaúcho, condena a atitude de Grêmio e Internacional e não reconhece o campeonato da AMGEA especializada. Com isso os representantes da região da capital no campeonato gaúcho eram os vencedores do campeonato da AMGEA cebedense, como aconteceu no ano de 1937, quando a equipe do Renner foi a representante e, no ano seguinte, 1938, quando a equipe do Novo Hamburgo conquistou o direito de representar a região da capital. Entretanto não foi apenas no âmbito esportivo que tivemos uma divisão entre defensores do amadorismo e do profissionalismo. Na imprensa gaúcha de grande circulação, diferentemente do que ocorreu em Buenos Aires ou no Rio de Janeiro, onde havia um consenso a respeito da defesa do profissionalismo, também houve uma divisão. Os dois jornais de maior circulação do estado tinham posições antagônicas a respeito dos rumos que o futebol gaúcho deveria tomar. Enquanto o Correio do Povo tinha uma posição de defesa da CBD e do amadorismo, A Federação era defensora das especializadas e do profissionalismo. Analisaremos agora o papel desses dois periódicos nesse contexto conflituoso.

3.6 PROFISSIONALIZAR OU NÃO PROFISSIONALIZAR? EIS A QUESTÃO: “CORREIO DO POVO” E “A FEDERAÇÃO” NO FINAL DO AMADORISMO DO FUTEBOL GAÚCHO

Como vimos no capítulo anterior, o jornal Correio do Povo era um produto do jornalismo moderno. Sua linha editorial primava por uma suposta neutralidade. Porém,

204 Retirado de KLEIN, Rafael. Op.Cit. p.51

102 cabe aos historiadores e pesquisadores questionar se é viável um discurso editorial completamente isento de um veículo de imprensa. Partimos do pressuposto de que é impossível uma completa isenção, pois como afirma Tânia de Lucca: “a imprensa periódica seleciona, ordena, estrutura e narra, de uma determinada forma, aquilo que se elegeu como digno de chegar até o público205”. Nessa perspectiva, o fato de a publicação não se posicionar configura uma forma de posicionamento editorial, resultado de escolhas e posicionamento dos jornalistas e editores. Ao analisar as páginas esportivas de Correio do Povo encontramos uma exaltação à corrente cebedense da AMGEA. Tal exaltação poderia ser feita de maneira sutil, como por exemplo, em matéria publicada no dia 09 de junho de 1937, quando o jornal exalta o aniversário da CBD: A data de ontem foi festiva para o desporto nacional porque marca a passagem de mais um aniversário de fundação da sua grande benemérita, a Confederação Brasileira de Desporto. Não se torna necessário elencar nessa coluna a enorme soma de benefícios que a C.B.D tem prestado aos desportistas brasileiros. Tudo ressalta desse verdadeiro monumento da organização desportiva, motivo de orgulho para o Brasil inteiro. O desporto nacional tem tido na Confederação Brasileira de Desporto o seu mais denodado paladino, e o que ela tem feito pelo desporto no Brasil é de conhecimento de todos, mesmo dos seus inimigos que são forçados a confessar essa imensa soma de serviços. Aos mais "sportmen" que lançaram a cisão no país e tiveram a vaidade de supor e afirmar publicamente que, sem eles, ela não teria 3 meses de vida, a C.B.D, com Luiz Aranha a frente, responde vitoriosamente, a 4 anos, com uma atividade desportiva que constitui justo padrão de gloria para os desportos do Brasil. Não são os programas escritos apenas no papel para embasbacar os tolos ou os ignorantes em matéria desportiva; não são instalações adredes preparadas para impressionar os que desconhecem os verdadeiros problemas do desporto brasileiro; não são palavras bonitas artificiais e capciosamente dirigidas para deslumbrar ingênuos. Nada disto, Nada de "farol" com a C.B.D; tudo foi no terreno das realizações práticas, com as mais fulgurantes páginas do desporto do Brasil 206.

Como podemos observar, as realizações da CBD são exaltadas e um texto como esse, escrito apenas três meses após a fundação da AMGEA especializadas, é um posicionamento forte do jornal a respeito de qual regime o futebol gaúcho deveria seguir. É uma defesa total do amadorismo, mesmo sem usar a palavra “amador” ou “profissional” em momento algum do texto. Em outros momentos do texto, a CBD é exaltada como uma

205 LUCA, Tânica Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006. Vol. 1, p. 153 206 Correio do Povo, 09/06/1937, p.13.

103 entidade unificadora do esporte nacional, cobrindo todo o território do país. Para Correio do Povo, a CBD era uma entidade sólida, com realizações concretas e sem “promessas mirabolantes”. Mas, como lidou o jornal com a filiação dos dois principais clubes de futebol do estado às especializadas? Uma coluna interessante, publicada em maio de 1937, com a assinatura de “Free Kick”,207 ironiza a dupla : Esse telegrama, procedente de Paris, foi publicado pelos jornais do último sábado: "Foi aceita a inscrição da Bolívia ao campeonato mundial de foot-ball, a ser realizado, breve, em Paris. Não foi aceita, ao mesmo tempo, a inscrição da Conchinchina, por não possuir a filiação internacional. Na América do Sul, apenas obtiveram inscrições o Brasil e a Bolívia.” Essa a notícia publicada, há poucos dias, pelos jornais locais. Ela nos toca de perto, por isso que os nossos principais clubes estão com desejos de abandonar a C.B.D, filiando-se as Ligas Especializadas e perdendo a filiação internacional, que pertence a primeira daquelas entidades. Quer dizer, em vernáculo, o seguinte: se o Rio Grande do Sul aderir ao "guinlismo", só terá o direito de se bater com Flamengo e o Fluminense. E depois de fazer América, só poderá medir forças com o time da Conchinchina, que também não possui filiação internacional. Qual será a solução mais prática? Fazer vir a Porto Alegre o quadro da Conchinchina ou mandar para a Conchinchina, só com passagem de ida, o Tisberieck chefiando o time gaúcho?208

Tisberieck é uma referencia a José Tisberieck, um dos articuladores no Rio Grande do Sul da proposta das especializadas de Arnaldo Guinle. O texto ironiza o fato de a CBD ser a entidade reconhecida pela FIFA e ser responsável pelo selecionado brasileiro. O artigo sugere como um erro a associação dos times gaúchos às especializadas, pois limitaria o intercâmbio de times e as disputas internacionais. O objetivo do jornal era, portanto, desqualificar a tentativa de um regime profissional e ao mesmo tempo exaltar a atuação entidade oficial. Nessa proposta de desqualificação das especializadas/exaltação da CBD podemos citar outro texto publicado pelo jornal em abril de 1937 com a clara intensão de frear as investidas das especializadas nos clubes gaúchos, com o objetivo de obter novos sócios a nível nacional. Intitulado “Ficamos com a CBD!”, o texto pontuava: Vendo o terreno fugir-lhe dos pés na Capital da República e sem

207 ““Free-Kick” é o pseudônimo usado pelo cronista Luiz Miranda, com o qual assinava na seção de desportos do “Correio do Povo” uma coluna própria, de regularidade variável, mas de grande sucesso, onde abordava, com um toque de humor, os principais acontecimentos futebolísticos em Porto Alegre e no estado, tenham eles ocorrido dentro ou fora das quatro linhas”. In: KLEIN, Rafael. Op.Cit. p. 77. 208 Correio do Povo, 18/05/1937, p.14.

104 receber, há muito, qualquer adesão relativa, a corrente do Sr. Arnaldo Guinle não deixa em paz o desporto gaúcho, consciente de que depende do Rio Grande do Sul o sucesso e o insucesso de sua causa. Os clubes e ligas Rio-Grandenses, porém, ainda não se decidiram a abandonar a poderosa entidade oficial. Não pairam sombras de dúvidas quanto a solidez do bloco granítico sobre qual se assenta o prestígio e a força incontestável da entidade do Sr, Luiz Aranha [...] Os campeonatos gaúchos - de futebol, de remo, de natação, de polo aquático, de atletismo, de basquete, de todos os desportes enfim! - são patrocinados pela CBD e se desenvolvem normalmente, sem "casos" importantes, só havendo, de quando em vez, ligeiras questões de ordem, facilmente resolvidas a contento das partes interessadas. Porque, então, interromper a marcha normal da nossa vida desportiva, apenas para satisfazer os caprichos do Sr. Arnaldo Guinle? É melhor deixarmos em paz o desporto gaúcho!209

O posicionamento do jornal é claro: defende a “certeza” do amadorismo, ao invés das incertezas do projeto das especializadas. A CBD representava para o jornal uma entidade sólida, moralizada e com um histórico de sucesso nos esportes brasileiros. Contrariamente ao posicionamento do Correio do Povo estava o jornal A Federação, periódico que de modo aberto vai se posicionar favorável à proposta das especializadas, pois esta seria uma forma de acabar com os casos de amadorismo marrom e elevar o nível do futebol gaúcho. O destaque que o jornal confere ao campeonato organizado pela AMGEA especializada é consideravelmente maior do que ao da AMGEA cebedense. O fato dos dois gigantes do futebol porto-alegrense figurarem nos quadros especializados é fundamental. Grêmio e Internacional eram equipes com quadros sociais sólidos e estádios com capacidade superior a 10 mil espectadores. Em 1931 o Internacional inaugurou no bairro Menino Deus o estádio dos Eucaliptos, com capacidade inicial de 12 mil espectadores. Era o primeiro estádio da cidade construído exclusivamente com concreto. Localizado no bairro Moinhos de Vento, o Grêmio era proprietário do estádio da Baixada, que reunia encontros com 10 mil espectadores. As vindas das equipes do Flamengo e do Fluminense a Porto Alegre eram exaltadas como uma prova de que o profissionalismo do futebol permitira que os clubes gaúchos adquirissem outro patamar: O Flamengo virá! Afinal depois de ativas negociações de parte a parte, ficou resolvida em definitivo a vinda do Flamengo a Porto Alegre, onde disputará diversas partidas com os mais forte conjuntos locais de futebol. Essa maravilhosa notícia ecoou simpatizantes nos meios desportivos da

209 Correio do Povo, 21/04/1937, p.12.

105 cidade, despertando os mais vivos entusiasmos, pois dada a fama do forte esquadrão rubro-negro, há possibilitado a realização de sensacionais partidas do esporte bretão. É uma oportunidade única para mostrar a força do futebol praticado em terras gaúchas e um indicativo do eminente sucesso que a liga especializada deve alcançar210.

No mês posterior, seria a vez do Internacional embarcar para o Rio de Janeiro para partidas contra as equipes da Liga Carioca, algo que gerou um grande entusiasmo nas páginas esportivas do jornal. O advento do profissionalismo trouxe à tona dúvidas a respeito de qual regime de contratações mais adequado. Seguindo o exemplo do caso argentino, a AMGEA especializada criou um “acordo de cavalheiros” em que, no primeiro campeonato organizado pela instituição, as transferências de atletas seriam proibidas. Instaurou-se uma polêmica com o caso do atleta . Jogador do Grêmio, Russinho estava com contrato de transferência acertado com o Internacional. Conhecido como “Perigo Louro”, o atleta era considerado o melhor atacante gaúcho e o Internacional, clube com grande tradição marronista, já demonstrava que, com o advento do profissionalismo, poderia transformar-se na grande equipe do futebol gaúcho211. O Grêmio acreditava que tinha direito ao atleta para o campeonato de 1938, já o Internacional questionava o acordo: Pode Russinho ingressar no Internacional? [...] Os dirigente do Internacional cientes das responsabilidades que lhes cabem com a chegada do profissionalismo estão em franca atividade para apresentar seu esquadrão com o máximo de suas possibilidades. O novo elemento - Russinho - que já realizou ensaios com os demais integrantes colorados. Surge em nossas rodas esportivas, entretanto, uma interrogação: Poderá Russinho jogar pelo Internacional? Explica-se, Russinho como se sabe, assinou uma inscrição pelo prazo de cinco anos com o Grêmio, o prazo termina somente em 1939. No ano passado, em face de desentendimentos com diretores do clube da "baixada", Russinho retirou-se dos tricolores. Quis, então, a devolução de sua inscrição, afim de ingressar o Americano. Houve um intenso movimento no sentido de obter a devolução. O Grêmio, porem, terminantemente, negou-se a ceder Russinho, com o atleta ficando fadado a não jogar. O tempo passou e a pouco verificou-se o dissidio no futebol gaúcho, ficando

210 A Federaçao: 27/08/1937 211 Fato que concretizou-se no ano de 1939 com a formação da equipe que seria considerada o “Rolo Compressor dos Eucaliptos”. O Internacional era uma equipe com tradição em contratar atletas oriundos do interior gaúcho e das Ligas menores da capital, como a já citada Liga das Canelas Pretas, fato que possibilitou o clube popularizar-se rapidamente nas camadas mais pobres da população. Praticava o amadorismo marrom e com o advento do profissionalismo, todo seu poderio foi legalizado. Com isso no período de 1939 a 1949 o Internacional montou uma equipe hegemônica no futebol gaúcho, conquistando oito campeonatos gaúchos (seis deles de forma seguida).

106 Grêmio e Internacional de um lado e o Americano do lado oposto. Chegou assim o momento de liberdade de Russinho, que pode como desejava ingressar no time do Americano.

A questão era: Russinho, com a cisão no futebol entre AMGEA especializada e cebedense, ficou livre para encerrar seu contrato com o Grêmio (membro da especializada) e assinar compromisso com o Americano (membro da cebedense). O Internacional, portanto, alegava que estava contratando um jogador da liga cebedense, e com isso o “acordo de cavalheiros” não se aplicava. Já o Grêmio alegava que tinha compromissos com o atleta e que o acordo estava em vigência. Usando casos semelhantes ao de Russinho, em que a questão jurídica do regime de contratações ainda não estava plenamente estabelecida, o jornal Correio do Povo atacava o profissionalismo justamente nesse caráter financeiro, que a publicação considerava “imoral” e “ganancioso”. Em matéria publicada no dia 14 de maio de 1937, Correio do Povo ataca Internacional e Grêmio, acusando os clubes de estarem se “vendendo” às especializadas: Por toda parte, domina a confusão. Não há sinceridade. Procura-se tirar partido das mínimas coisas e das menores atitudes. Clubes tradicionalmente ordeiros e desportistas arraigadamente conservadores tentam ludibriar a opinião pública, com o escopo, único e exclusivo, de tirar partido da situação. Segundo o nosso informante, as Especializadas se comprometeram a auxiliar com elevada quantia em dinheiro os clubes Internacional e Grêmio, caso estes passassem a lhe dar imediato apoio212.

Em linha diferente, A Federação usava a questão financeira para exaltar a proposta das especializadas. Em texto intitulado “a mania do amadorismo causa prejuízos”, o jornal critica o fato do zagueiro do Internacional, Tupan, havia deixado o colorado gaúcho para ingressar no profissionalismo na capital do Brasil, atuando pela equipe do Flamengo. O texto apontava que a mania de continuar com um regime que era fadado a acabar representava um atraso para o futebol gaúcho: [...] quem perdeu com a saída desses jogadores? Seus clubes e os torcedores! E por que? Porque, com a mania de amadorismo, que existe na imaginação dos dirigentes, os jogadores continuaram a ir jogar em plagas onde o profissionalismo é uma realidade213.

Durante todo o ano de 1937 tivemos dois campeonatos paralelos em Porto

212 Correio do Povo, 14/05/1937, p.12. 213 A Federaçao, 03/03/1937. p. 6.

107 Alegre. O conflito se estendeu até o ano de 1938. Pelo campeonato da AMGEA especializada, o Grêmio foi bicampeão citadino, porém, como citamos anteriormente, foi impedido de disputar as finais do campeonato gaúcho, pois a mesma era atribuição da FRGD, entidade à qual a AMGEA cebedense era filiada. Com isso os representantes foram, respectivamente, Novo Hamburgo (1937) e Renner (1938). Os campeões gaúchos foram novamente equipes do interior do estado – Grêmio Santanense (1937) e Guarany de Bagé (1938) - em um período em que a dupla GreNal já dominava o cenário futebolístico estadual. Enfraquecida, a AMGEA cebedense foi perdendo cada vez mais rapidamente o interesse do público e foi obrigada a negociar uma solução para o conflito. No ano de 1937, o jornal A Federação encerrou suas atividades. Portanto a nossa análise vai centrar- se exclusivamente ao jornal Correio do Povo e sua cobertura nas negociações para a unificação do futebol gaúcho. Na Capital Federal, o ano de 1937 significou a “pacificação do futebol brasileiro”. Por iniciativa de Pedro Pereira Novaes, presidente do Vasco da Gama, equipe filiada à corrente cebedense, e Pedro Magalhães Correa, presidente do América, equipe filada à Liga Carioca de Foot-Ball, foi assinado no mês de julho um acordo que ficou conhecido como “pacto Vasco-América”. A pressão da imprensa para o sucesso do acordo foi decisiva para a concretização do mesmo. O principal jornal esportivo do país, Jornal dos Sports, publicação dirigida por Mário Filho foi um dos principais defensores da pacificação. A pressão popular era enorme, pois já se estava há pelo menos quatro anos sem a realização de clássicos do futebol carioca, com dois campeonatos em paralelo. Em edição do dia 18 de julho de 1937, o Jornal dos Sports estampa em matéria de capa “Será impatriótica qualquer oposição ao pacto América e Vasco214”. Essa matéria era uma pressão especial ao Botafogo, equipe que estava contrária ao projeto de pacificação das ligas. A pacificação foi concretizada e é formada a Liga de Foot-Ball do Rio de Janeiro, entidade abertamente profissional, com a participação de todos os principais clubes do futebol carioca. Essa notícia repercutiu positivamente na redação do Correio do Povo. Interessante perceber que as críticas ácidas que o jornal despendia ao profissionalismo deram lugar a um discurso pacificador. Como podemos perceber em publicação de 26 de julho: Com o acordo entre Vasco e América se inicia uma nova fase no

214 Jornal dos Sports: 18/07/1937. p.1

108 futebol. A pacificação plena não depende da simples assinatura de um acordo. Agora se torna preciso o trabalho verdadeiramente decisivo para a pacificação dos espíritos. É indispensável não reacender ódio, não reavivar ressentimentos, para o sucesso da unificação215.

Durante todo o ano de 1938, tendo o exemplo carioca como horizonte, o jornal cobriu de maneira destacada as tentativas de pacificação no futebol gaúcho. Os ataques aos especialistas cessam, e o periódico passa a ter um discurso de união e harmonia entre as duas entidades conflitantes. Apenas três meses antes do definitivo acordo de paz, assinado em agosto de 1938, publicação de Correio do Povo mostra otimismo e ansiedade em um desfecho positivo ao conflito: Nos bastidores do futebol trabalha-se ativamente para uma pacificação definitiva dos desportistas dos pampas. E podemos assegurar que todos os trabalhos são pautados pela mais apurada moralidade, motivo por que é certo que, dentro de horas, talvez, não haja mais antagonismos dentro dos limites do Rio Grande do Sul desportivo. A alegria nos círculos desportivos é indisfarçável. Toda gente sentia a necessidade de vê voltar aos convívio da família gaúcha clubes do passado e do prestígio do Grêmio, Internacional, São José, Cruzeiro, Força e Luz, já agora, do Americano, que, quase no apagar das luzes filiou-se a corrente dissidente. Tivemos ensejos de ouvir, durante o dia de ontem, os presidentes de todos os clubes interessados na pacificação e a impressão dominante era uma ó: a de que a paz terá de ser concertada dentro de poucos dias, porque assim o exigem os altos interesses do desporte gaúcho216.

Assim como no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul era insustentável um campeonato gaúcho sem a participação de equipes como Grêmio e Internacional. A pressão popular pela unificação das AMGEAs era muito forte, e a defesa irrestrita ao campeonato da ANGEA cebedense, que estava cada vez mais em decadência, não era uma estratégia inteligente. Em agosto de 1938, após quase dois anos de litígio, as negociações avançaram e o futebol gaúcho foi pacificado. A partir da disputa de 1939, o futebol porto-alegrense estaria unificado sobre o mesmo campeonato. O futebol do interior do estado, que nunca abandonou a bandeira da CBD, também entraria na era do profissionalismo formal com a criação de uma nova entidade sob o nome de Federação Rio-Grandense de Futebol (FRGF). As AMGEAs foram extintas, com uma clara vitória da corrente especializada, o futebol gaúcho deixava no passado o amadorismo. Ao final do conflito, o jornal Correio

215 Correio do Povo: 26/07/1937. p. 12. 216 Correio do Povo, 04/05/1938, p. 9

109 do Povo comentou: A pacificação, ninguém ousará contestar, interessa, acima das facções em litígio, ao próprio Rio Grande: com ela adviria o prestígio que o nosso glorioso Estado desfrutava dentro e muito além de suas fronteiras, antes do dissídio; com ela, o ressurgimento dos seus aureolados tempos, nos quais a união sagrada se impunha como paradigma para os demais estados217.

A formalização da pacificação e do profissionalismo no futebol gaúcho ocorreu em 28 de agosto de 1938. Em reunião na cidade de Pelotas, com a presença dos membros de ambas as AMGEAs e da FRGD foi formalizada a disputa do campeonato gaúcho e citadino de 1939.

217 Correio do Povo, 22/08/1938, p. 12

110 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final dessa dissertação consideramos o processo de profissionalização do futebol na região estudada foi extremamente complexo e conflituoso. O futebol é sem dúvida o esporte mais popular da América do Sul e o estudo científico desse verdadeiro fenômeno social está em plena expansão. O esporte bretão penetrou em nossa sociedade por meio de diversos fatores sociais, ligados ao domínio político e econômico da Inglaterra na região. Não foram iniciativas pessoais, como as de Charles Miller ou Oscar Cox, que possibilitaram a chegada do futebol na região. A região platina teve um protagonismo na América do Sul que influenciou decisivamente o desenvolvimento do futebol no Rio Grande do Sul, por sua proximidade geográfica e cultural. O futebol, que antes era produto da modernidade britânica e disfrutado apenas pela aristocracia, rapidamente transformou-se em uma verdadeira paixão dos mais pobres. O processo de popularização do futebol está intimamente ligado aos processos sociais que atravessaram Argentina, Uruguai e o Brasil durante a década de 1920. Com um aumento do tempo livre da classe trabalhadora, maior acesso a bens de serviço, a educação pública e a direitos trabalhistas. O futebol somente pode ser praticado e apreciado pelo povo com o surgimento dessas condições. Encontrou resistência da elite, que tentou barrar de todas as formas a entrada do futebol nos círculos da “ralé”, usando o amadorismo como premissa básica para se praticar o esporte. Porém o futebol era cada vez mais praticado nas fábricas, nas ruas e nas várzeas, com bolas e goleiras improvisadas. Durante a década de 1920 o número de equipes de bairro e de operários não parava de crescer e o futebol transformou-se em um elemento de identidade nacional. A imprensa, percebendo que o futebol era um produto rentável e desejável pela classe trabalhadora e pelos potenciais leitores, foi um elemento importante para a popularização do futebol. Nesse contexto o futebol passou a ser uma oportunidade de vida para os jovens da classe trabalhadora. As práticas do amadorismo marrom tornaram-se comuns e entrou em pauta um processo de profissionalização do futebol que foi o tema central para essa dissertação. Com esse trabalho esperamos ter contribuído, ainda que de maneira modesta, para um maior entendimento do processo histórico desse elemento fundamental da sociedade da América do Sul.

111 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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