III CONGRESSO HISTÓRICO DE GUIMARÃES D. MANUEL E A SUA ÉPOCA

A reorganização manuelina da Assistência em Barcelos: os casos da gafaria e do hospital do concelho

por Ramiro Manuel Batista Teixeira Romão

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A REORGANIZAÇÃO MANUELINA DA ASSISTÊNCIA EM BARCELOS: OS CASOS DA GAFARIA E DO HOSPITAL DO CONCELHO [

1. Introdução: a reforma da assistência em finais do século XV

Procuraremos nesta comunicação, necessariamente de forma sintética, apre­ sentar um exemplo da execução prática das medidas de reorganização das institui­ ções de assistência preconizadas por D. Manuel I. Face à diversidade de instituições existentes (albergarias, hospitais, leprosarias, etc), geralmente de pequena dimensão, criadas por instituições ou testamentos que privilegiavam a salvação da alma dos instituidores, atribuindo o grosso dos bens ou rendas vinculados à criação de uma capela e financiamento das missas perpétuas a celebrar, parecia impôr-se a necessidade de otimizar a gestão de recursos e espaços. Isto foi feito através de um esforço concertado de parte da coroa, agrupando pequenas unidades em hospitais maiores (como no caso do Hospital de Todos-os- Santos, em Lisboa) e clarificando os bens e rendimentos vinculados a cada insti­ tuição, pondo termo a desvios e apropriações indevidas, da parte de caseiros das terras ou mesmo dos administradores das capelas e legados. A fundação e difusão das misericórdias pelo país será uma forma de enquadrar e «normalizar» as práticas da assistência, pragmaticamente codificadas nas 14 obras de misericórdia.

2. O caso de Barcelos: o tombamento de bens e a gestão da gafaria e do hospital do concelho

Fontes utilizadas

Para a reconstituição do processo de inventariação de bens e rendas do hospital e da gafaria de Barcelos, utilizámos com fonte principal o texto dos tombos nele produzidos. O texto destes tombos manuelinos chegou até nós através de uma compilação, a Copea dos Tombos da Gafaria e Hospital, que integra a transcrição da carta régia de D. Manuel (1520), dos tombos da Gafaria e do Hospital e de algumas certidões a eles anexas, posteriores a 1500. Estas transcrições foram feitas em 1795, pelo tabelião do público, judicial e notas da vila de Barcelos Manuel Jácome da , a pedido do então secretário da Mesa da Misericórdia de Barcelos, Manuel José da Costa Felgueiras Gaio, que metia então ombros à tarefa de reorganização do cartório da Santa Casa, tornada premente pela crise financeira e institucional vivida nessa Misericórdia em finais do século XVIII. Por esse motivo, ordenou a transcrição em pública-forma dos tombos da gafaria e do hospital, fundamentais para o conhecimento e regulamentação dos bens e RAMIRO MANUEL BATISTA TEIXEIRA ROMÃO 4 592

rendas da Santa Casa, uma vez que os tombos originais estariam em mau estado e pouco legíveis. Isso pode explicar por que não se encontram actualmente no arquivo da misericórdia, sobrevivendo apenas as suas transcrições, o que levanta a hipótese da sua substituição imediata por estas. Temos assim duas transcrições, sendo a mais volumosa a do Tombo da Gafaria, com 68 «meias folhas», tendo apenas 26 a do Tombo do Hospital, executadas, confe­ ridas e cotejadas com os originais pelo tabelião, que numerou e rubricou as folhas, após o que originais e cópias foram devolvidos a Felgueiras Gaio. Este, para maior facilidade de manuseamento, reuniu as transcrições num único volume encadernado, a referida copea dos tombos da gafaria e hospital, que conta com índice e anotações do seu punho, relacionando os bens aí inventariados com a situação no seu tempo.

O início do processo

O tombamento dos bens da gafaria e do hospital de Barcelos foi regulamentado e determinado por carta régia, enviada ao Juiz dos Rezíduos, Capellas e Hospitaes, Gafarias, Confrarias em esta Comarca d'Emtre Douro e Minho (fl. 2), Diogo Borges, cavaleiro da casa real. No entanto, não é ele a assumir a condução do processo, por ficar muito ocupado em o fazer dos ditos tomos em haver d’ir por a dita Comarca (fl. 2), designando para essa função Pero Vaz, um mercador de Barcelos, por ser homem bom e de boa conciência (fl. 2), delegando-lhe a elaboração do Tombo da Gafaria e todollos outros das Capellas e Gafarias e Hospitaes que na dita Villa e Termos ouvesse (fl. 2), no que teria por tabelião a Afonso da Ponte, tabelião público e judi­ cial «na dita villa e termos delia» (fl. lv), para que os redigisse. Para o desempenho de tal tarefa, medidor e tabelião foram ajuramentados pelos Santos Evangelhos, para que bem e fielmente fizessem todo o Serviço de Deos e do Nosso Senhor Rey e bem das duas Hospitallidades (fl. 2v), mais especificamente as duas unidades assistenciais de maior peso na vila, a chamada ordem da gafaria e o Hospital do Santo Espírito. Deviam então medir as propriedades, usando uma vara de medir de cinco palmos asim de cumprido como de largo (fl. lv), descrevendo e referindo as confrontações dos terrenos, tal como Sua Alteza manda em sua Carta (fl. lv). As propriedades deviam ser identificadas pelos caseiros, que eram questionados sob juramento, para que bem e verdadeiramente as mostrassem e descobrissem (fl. 2v), sendo também chamados os antigos que sabiam parte dos ditos bens (fl. 2v). No caso da gafaria os bens dela foram dados a Inventario pelo Tombo Velho, mostrando a existência de um tombo anterior, que foi consultado. Verificámos que freguesia a freguesia foram localizadas e identificadas as propriedades, enumeradas as confrontações e medidos os terrenos. Nos terrenos de forma irregular, foram muitas vezes indicadas apenas as medidas de três dos lados. Foram também registadas as rendas a receber e, quando existiam, os encargos a que as propriedades estavam vinculadas. Casos especiais, como as rendas (censos) sobre heranças e propriedades de outros foram devidamente explicitados, identifi­ cando as propriedades vinculadas e os herdeiros. A elaboração dos tombos teve início a 8 de Março de 1498, tendo demorado mais de um ano. III CONGRESSO HISTÓRICO DE GUIMARÃES D. MANUEL E A SUA ÉPOCA 593

05 bens da gafaria e do hospital: propriedades

A gafaria de Barcelos (como tantas outras) encontrava-se fora da vila, encostada às muralhas, junto ao caminho que vinha da passagem a vau do Cávado. Era consti­ tuída por:

(...) hum acento de Cazas da dita Ordem, a saber hua Caza d adega com seu Alpendre e hum Oratorio apartado com grades sobre si, (...) d outra parte hua renga de Cazas para os Lazaros que sam seis Cazas repartidas, e diante das ditas Cazas està hum Alpendre tilhado, e todo o dito acento he cercado de paredes e de grades de pào todo bem corregido (...), emfronte do dito acento hua Caza sobradada feita de novo toda de paredes atè o tilhado (...), outra Caza terreira telhada pegada na sobredita em que està o lagar com hua porta que sàe para a vinha, e outro portal sàe para a rua.

Em volta tinha duas devesas com castanheiros e carvalhos, uma vinha e alguns terrenos (leiras e cortinhas) lavrados, que completavam o conjunto. Por sua vez, o Hospital do Espírito Santo ficava no centro da vila, na rua de Santa Maria, junto aos Paços do Concelho sendo assim descrito:

A Caza do Hospital cituada na dita villa na Rua de Santa Maria (...)tem hum alpendre cercado de hum peitoril com cinco esteios de pedra labrados, madeirado e tilhado de novo, (...) de cumprido seis varas e meia, e dáncho hua vara e seima, e a dita Caza he de cumprido nove varas e meia, e dáncho nove varas, (...) armada de dentro em quatro esteios, a saber dous de pedra labrados, e dous esteios de pao, em os quais esteios estam armadas quatro Camaras sobradadas (...) repartidas por taipas, e com portas de taboado novas com suas fichaduras, e as ditas Camaras saõ de cumprido nove varas (...) e dáncho em cada parte onde estaõ as ditas Camaras tres varas menos oitava e a dita caza he armada e madeirada quazi de novo, (...) descontra o levante dentro na dita Caza està hum altar Fichado, e ceicado com suas grades todo novo da invocaçaõ do Santo Espirito com seu guardapò todo novo (...) contra o levante [tem] um quintal para que sae a dita Caza com seu alpendre pegado na parede da dita Caza armado em très esteios de pao tilhado e madeirado quase novo, e he de cumprido dès varas e meia, e dáncho duas varas e seima, e o dito quintal he de cumprido honze varas, e em ancho cinco varas e meia

O quintal do hospital era cercado sobre si por vallo e paredes, tendo dentro dous cabeceiros de vinha de lata alta (...) e dentro no dito Quintal estam arvores de fruto, a saber figueiras, macieiras, pereiras, ameixieiras, romeiras, pecegueiros, marmeleiros (fl. 5-5v). Este quintal, identificado como quintal da dita Capella e Hospital (fl. 5) encon­ trava-se emprazado, juntamente com uma casa próxima, atrás da caza que foi sinoga (fl. 4v) e outra na porta do Vale, a João Afonso, Abade de Sanhoanne, que por tudo pagava ao hospital por ano quatro maravedis de moeda antiga. Não encontrámos quaisquer indícios da afectação dos frutos produzidos no quintal à dieta dos doentes aí recolhidos. Verificamos que a gafaria tinha um muito maior número de bens que o hospital, dispersos por um grande número de freguesias, em todo o concelho. RAMIRO MANUEL BATISTA TEIXEIRA ROMÃO

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Q uadro I Freguesias onde existem bens ou rendas tombados

Gafaria Hospital

Barcelos, Casal do Nil, Carregai, Creixomil, Barcelos, , Creixomil, Carregai, S. Carapeços, Facha (termo de Ponte de Lima), Paio do Sâo Fins de , , Gemezes, Gandra de Fão, S. João de Vila Boa, Lijó, Santa Leocádia do Neiva, S. Miguel das Mari­ nhas, S. Martinho de Vila Meã, S. Martinho de Alvito, S. Maria do Abade, Palmeira de Faro, S. Pedro de Adães, S. Paio de Belinho, , Quintiães, S. Salvador do Campo, São Salvador de Minhotães, S. Tiago de , S. Tiago do Couto, S. Tiago de Moldes, Vila Cova

Fonte: Copea dos tombos da Gafaria e do Hospital.

Nestas freguesias, aparecem inventariadas rendas vinculadas, casas e terrenos agrícolas. As casas aparecem na sua maioria integradas no tecido urbano da vila, fazendo as restantes parte dos núcleos habitacionais de casais agrícolas (a que hoje chama­ ríamos quintas). Aparecem também algumas casas arruinadas, os pardieiros.

Q uadro II Bens da Gafaria e do Hospital a) Casas

1 2 não Pardieiros Terreiras total Localização sobrado sobrad. especifíc.

Barcelos Outras b) Gafaria 2 + la) 4 4 6 17 11 6 Hospital 3 4 1 8 7 1 Total 3 7 8 1 6 25 18 7 a) 1 assento de pardieiros (sem número especificado) b) Casal do Nil, S. Martinho da Vila e S. Maria do Abade, em casais

O grosso dos bens é constituído pelas propriedades agrícolas, quer sejam terrenos de cultivo (bouças, leiras ou cortinhas), devesas (de carvalhos, mas por vezes com alguns castanheiros), pomares ou vinhas. Nos tombos refere-se também se e quando um terreno ou parte dele se encontra inculto ou abandonado (em mato ou codessal). III CONGRESSO HISTÓRICO DE GUIMARÃES ■ ■ ■ D. MANUEL E A SUA ÉPOCA 595

As dimensões dos terrenos são muito variadas, incluindo alguns com mais de 150 varas de lado. No entanto, predominam as pequenas parcelas que, sendo parte de unidades maiores (cortinhais ou casais), foram sendo legadas à gafaria ou ao hospital.

Q uadro III Bens da Gafaria e do Hospital b) Terrenos Agrícolas

Terras de Devesas Vinhas Pomares Mato/inculto Total cultivo a)

Gafaria 91 11 14 2 6 124 Hospital 12 6 4 3 5 b) 30

Total 103 17 18 5 11 154 a) bouças, leiras, cortinhas, etc b) partes de terrenos maiores

Os bens da gafaria e do hospital: as rendas

Quanto às rendas a haver por emprazamento, aforamento ou «censo» sobre heranças, estas eram recebidas em dinheiro e géneros.

Q uadro IV Bens da Gafaria e do Hospital c) Rendas em dinheiro

Libras a) Maravedis Reis Soldos Pretos

Gafaria 1 510 54,5 Hospital 8 6 29 7 Total 8 7 539 54,5 7 a) a 7 ceitis por libra de 18 pretos RAMIRO MANUEL BATISTA TEIXEIRA ROMÃO

Q uadro V Bens da Gafaria e do Hospital d) Rendas em géneros

Trigo Milho Centeio pão meado Castanhas Vinho Animais (alqueires) (alqueires) (alqueires) a) (alqueires (alqueires) (almudes)

Gafaria 10,5 68 60 2 10,5 b) 1 frango Hospital 10 6 4 4 frangos 2 capões Total 10,5 78 6 64 2 10,5 b) 5 frangos 2 capões a) mistura de milho e centeio b) mais o terço da produção anual de vinho do Casal de S. Tiago de Moldes

É na regulamentação das rendas a receber que observámos que a acção de Pero Vaz, como mandatário de Diogo Borges, ultrapassava a mera medição e confron­ tação de propriedades. Na Facha, no termo de Ponte de Lima, foram medidas nove leiras na presença de João Faria, o respectivo caseiro, que pagava cada armo oitenta reis (fl. 51v). Pero Vaz determina que há de pagar de Sam Miguel em diante cento e vinte reis. Em S. Salvador de Minhotães, feitas as medições de um casal composto por um assento de pardieiros, uma pequena vinha e três leiras de herdade na presença do caseiro João do Horto, que por ele pagava à Gafaria cada ano 100 reis, surge um tal João Martins da Torrente, que (fl. 48v) disse e asignou que daria por tudo cada anno trezentos reis, e Pero Vàs o recebeo, e [determinou] que de Sam Miguel por diante o haja. Referimos já que a gafaria auferia rendas de propriedades que não lhe perten­ ciam, por meio de vínculos estabelecidos por testamento, que os herdeiros desses bens deviam cumprir. Nos casos em que a herança pertence a outra instituição, como a vinha da Comfradia da Trintada de Barcelos (fl. 19v), ou a quinta em Palmeira de Faro perten­ cente aos Mosteiros de Vila do Conde e do Lorvão (fl. 28), o tombo relembra apenas a renda a pagar e as obrigações a ela ligadas, quando existem. Tal é o caso do caseiro da referida quinta, que, para além da renda anual de 20 alqueires de milho, era obrigado e comtrangido a pagar aos mamposteiros da Ordem da Gafaria cada hum anno (fl. 28). Quando os herdeiros dos bens vinculados à gafaria eram particulares, dava-se a natural dispersão das propriedades por vários herdeiros (das gerações seguintes). Estes são identificados e é definida a parte da renda que lhes compete pagar (que presumimos fosse proporcional à fraeção herdada). Nestes casos, a actuação de Pero Vaz é sempre idêntica, escolhendo um herdeiro (ou dois) para ser possueiro e pagador da respectiva renda, geralmente aquele que reside na freguesia onde jazem os bens. Quando tal não acontece, o designado III CONGRESSO HISTÓRICO DE GUIMARÃES D. MANUEL E A SUA ÉPOCA 597

desloca-se à freguesia onde está a herança para aí pagar o censo. Estes possueiros eram responsabilizados pelo pagamento face à instituição, e os outros herdeiros deviam pagar-lhes, geralmente a que eram obrigados por dia de Sam Miguel, sob pena de lhe pagarem em dobro (fl. 54v). No censo de um alqueire de trigo a receber pelo Cortinhal do Cónego, na Aldeia da Gandra (fl. 35v), o texto é mais explícito. Depois de identificar a extensa lista de herdeiros (Afonso Vinaldes, filhos de Garrido, João e Afonso Romeu, João e Fernão Vaz, João Velho, João Fernandes, filhos de Fernão de Afonso Marinhão, filhos de Afonso da Gandra), o dito Pero Vàs fès possueiro e pagador do dito alqueire de trigo Joaõ Vinaldes morador na dita Aldèa de Gandra onde estam as erdades, e se lhe os erdeiros ali naõ pagarem que elle as dè de sua maõ a quem quizcr, e pague o dito alqueire de trigo à Ordem.

Surgem também casos pontuais em que, de forma inversa, alguns encargos oneravam bens em posse da gafaria e do hospital. Em S. Martinho de Alvito, um pequeno campo cultivado no Cortinhal da Várzea pagava ao cazal reguengo do Senhor Duque (fl. 62) 5 quartos de pão e 17 reis. Pertencia ao hospital uma casa de dois sobrados, na praça da vila, que pagava anualmente ao Mosteiro de Vilar de Frades 17 reis e 2 pretos e à confraria de S. Maria de Barcelos 20 reis (fl. 8). Também uma casa sobradada na Rua de Santa Maria pagava à mesma confraria 7 soldos por ano, e no Carregai, um cortinhal de erdade e devesa pagava dois dízimos, um a Deus e outro ao Duque.

O final do processo: a validação dos tombos

Terminadas as medições e confrontações pelas freguesias, a 1 de Fevereiro de 1499 medidor e escrivão apresentam-se perante o referido Juiz dos Resíduos e Capelas, Diogo Borges, com os dois tombos concluídos, para que este os examinasse. Assim o fez o Juiz, na presença dos autores, Pero Vaz e Afonso da Ponte, tendo como testemunhas João Lopes, escrivão, e Fernão d’Alvares, de , contador dos feitos e custas. Nos dois casos, como tudo hera feito como devia e o dito Senhor Rey mandava (fl. 66), deu os tombos por encerrados, concedendo-lhes sua autoridade de Justiça Ordinaria, que valha e faça fee em Juizo e fora delle (fl. 66v). O processo continua três dias depois, quando o mesmo Juiz chama o medidor Pero Vaz, vereador nesse ano, e o escrivão da Câmara Pero da Costa para que, uma vez que gafaria e hospital estavam sob administração concelhia (... os Juizcs e Rege­ dores da dita Villa saõ admenistradores delia), fossem à Arca do Concelho procurar os estatutos e ordenação desta hospitalidade e gafaria (fl. 67), assim como o Estatuto e Ordenança deste Hospital (fl. 17v), com multa de 1000 réis, se o não fizessem. Procurava assim saber os encargos com que foram instituídas, e de que forma estavam vinculados os bens de cada. Na tarde desse mesmo dia, regressaram Pero Vaz e Pero da Costa à presença de Diogo Borges, dizendo ter procurado no Cartorio do dito Concelho, e que davaõ disso fee e testemunho que elles naõ achavaõ tal [tais] estatutofs] nem ordenança[s], e que RAMIRO MANUEL BATISTA TEIXEIRA ROMÃO

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certa soma de escrituras deste Concelho arderaõ, e que a prezumpçaõ de que ahi arderiafm] (fl. 17v). Nestas circunstâncias, o Juiz ordenou-lhes que declarassem sob juramento quem instituirá e edificara a dita ordem da Gafaria, e os encargos a que os bens eram obrigados, assim como quem edificara o hospital e com que encargos. Responderam que, relativamente à Ordem da Gafaria, pelas rendas que tinha se reparavam as casas dela, e dos lázaros, e se davam e pagavam as rações aos lázaros que aí vinham estar, ou mais exactamente aquilo que aos homens bons do Concelho parecia por bem e honesto e caridade dar-lhes. Quanto ao Hospital do Espírito Santo, pelas rendas que tinha se diziam duas missas semanais pella Alma do que o dotou (fl. 18v), e se algua cousa remanesse se ha de despender na roupa e reparo do hospital. Para isso tinha o capelão do Hospital entregue a si uma leira de deveza carvalhal (...) em disconto das Missas que dis assim como recebe toda a mais renda do Hospital (tomb hosp fl. 9v). Ouvidos os seus testemunhos, o Juiz mandou que se escrevesse asim tudo (fl. 67v), validando legalmente os tombos feitos. Dispôs ainda que os bens mal aforados se apregoassem e aforassem a quem por eles mais desse, e que tomaria anualmente contas da receita e despesa da gafaria e do hospital. Finalizou con­ firmando que a renda da gafaria era empregue nas rações dos leprosos e nas despesas de manutenção das casas, e que tomava conta ao capelão, que cumpria a sua obrigação.

3. A fundação da Misericórdia de Barcelos e a carta régia de 1520

Fundada no início do século XVI, a Misericórdia de Barcelos desempenhava na vila funções de assistência a pobres, presos e doentes. Para além do apoio a doentes crónicos (que não eram aceites no hospital), a Misericórdia concentrava a sua actuação nos doentes do Hospital do Espírito Santo, ainda sob administração do concelho. A gafaria surge vazia desde o início do século XVI, aparecendo identificada como o local onde se guardava a palha para as camas do hospital. Pudemos confirmar esta situação de administração camarária das rendas e bens do hospital vendo que em 1518 foi necessário actualizar o tombo de bens do hospital, devido à troca de huas cazas que foraõ do dito hospital (...) e (...) um emxido e pomar junto das ditas cazas pelo Casal do Souto, na freguesia de Creixomil. Como este não fora apegado, nem medido, nem posto em tombo, o então provedor do Hospital, Pero Nogueira, junto com Martim Machado e Afonso Azevedo, cava­ leiro, ambos juízes ordinários da vila, apresentaram-se perante Martim Lopes de Azevedo, então Contador dos Orphaons, Reziduos, Hospitaes, Capellas em [a] comarca d’emtre Douro e Minho por o dito Senhor Rey, o qual estava provendo sobre o Hospital e Gafaria da dita villa, e os seus bens e receitas e despezas em que receberão este anno, para lhe pedirem que mandasse por em tombo o cazal e erdades do Souto, que foi d ’Estevaõ Ferreira Fidalgo. Assim o fez Martim Lopes de Azevedo. Mandou o provedor do Hospital com um escrivão e alguns dos juízes da vila a Creixomil, para que ouvissem o caseiro e os ill CONGRESSO HISTÓRICO DE GUIMARÃES J D. MANUEL E A SUA ÉPOCA M 599

homens bons do lugar, medindo e registando em tombo as propriedades, rendas e encargos do respectivo casal. Este tombo faz parte dos documentos transcritos em 1795 a pedido de Felgueiras Gaio, e a sua cópia segue junto ao tombo do Hospital na Copea dos Tombos do Hospital e Gafaria. A Misericórdia de Barcelos assume na vila e seu termo papel similar à Miseri­ córdia de Lisboa: nela se vão centralizar as esmolas e as actividades de assistência. A falta de rendimentos próprios leva a que em 1520 os Juizcs Veriadores Procurador, e homens bons da Villa de Barcellos dirijam um pedido a D. Manuel, solicitando que a gestão dos bens da gafaria e do hospital seja confiada à Irmandade da Misericórdia. A resposta de D. Manuel, em carta de 12 de maio de 1520, transcrita no início dos tombos e cujo original tivemos a felicidade de encontrar no arquivo da Santa Casa, é esclarecedora:

Aquantos esta nossa Carta virem, fazemos saber que os Juizes Veriadores Procura­ dor, e homens bons da Villa de Barcellos nos emviaraõ dizer que na dita villa estava per nosso mandado instituída e Ordenada Confraria da Mizericordia, a qual pelo Provedor e Officiaes hera ahi bem regida e governada que os pobres e emfermos recebiam toda a Caridade e Consolaçaõ que se lhes devia fazer, porem que por as Esmolas, (fl. 2) e Renda que tinha ser muito pouca, nem podiam abranger a cumprirem todas as obras da dita Mizericordia, nem a muita parte delias, e que na dita villa havia hua gafaria que havia muitos annos que nam tinha nenhum doente, e as rendas delia andavam em maons de Recebedores e Pessoas que as gastavaõ, e asim estava hum hospital de que a dita Confraria tinha cargo que tinha também algua renda, e que se todo fosse junto a dita Confraria teria mais pocibilidade para fazer cumprir o que sam obrigados que nos pediam ouvessemos por bem de juntar as rendas dos ditos Hospital, e Gafaria à dita Confraria da dita Mizericordia; e visto seu requerimento, sabendo nós como por os Officiaes das (fl. 2v) Confrarias da dita Mizericordia que em nosso Reyno ha se cumprem as ditas obras de Mizericordia bem e como devem e sua pocibilidade pode abranger, e como por as ditas obras serem tam acceitas ante nosso Senhor que segundo he escrito na Sagrada Escritura por ellas principalmente no dia do Juizo nos hade tomar conta he razaõ que a dita Confraria seja de nós ajudada com toda a esmolla e favor que justamente se lhes poçamos dar para alem de terem mais renda com que as poçaõ cumprir vendo que com nosso favor saõ ajudadas lhes cresça mais a vontade para o fazerem com todo o Serviço de nosso Senhor nos pràs disso, e por esta nossa Carta anexamos (fl. 3) e ajuntamos as rendas, e Caza da dita Gafaria, e asim do dito Hospital da Villa de Barcellos à dita Confraria da dita Mizericordia, e lhe damos ao Provedor e Officiaes da dita Confraria toda a admenistração dos bens e Eranças da dita Gafaria, e Hospital, asim e como os atè qui tiveram os Officiaes e admenistradores que nas ditas Cazas foram asim para aforarem os bens e Eranças delias, como recolherem e arecadarem suas rendas, e fazerem todo o mais que ellas cumprir.

Com a administração dos bens vinham as obrigações: a Misericórdia devia cumprir os emcargos com que as ditas Cazas asim da Gafaria como Hospital, forem (fl. 3v) instituídas por as Pessoas que as ordenarem, ou que alguns bens e Eranças lhes deicharam asim e tam inteiramente como em seus Compremiços e instituiçoems for declarado. Para isso deviam constar do seu arquivo os testamentos ou instituições (ou as respectivas transcrições em pública forma) e o tombo dos bens. RAMIRO MANUEL BATISTA TEIXEIRA ROMÃO

A entrada em vigor destas determinações devia ser imediata, devendo o Provedor dos Reziduos, Hospitaes, e Capellas, e Gafarias da dita Comarca, e os Juises e Officiaes da dita villa de Barcellos a que pertencer, e esta nossa Carta for mostrada, meter em posse das ditas Cazas da dita Gafaria e Hospital (...) e dos bens e Eranças delias, e dahi em diante lhes deichem admenistrar como devem e tomem a conta das rendas da dita Gafaria; e Hospital (...) e o que acharem que devem as Pessoas que as receberam façaõ arecadar e emtregar à dita Mizericordia.

Conclusão

Encontramos assim cumprido à escala local o cenário pretendido pela coroa. Inventariaram-se bens, ordenaram-se as contas e, mais tarde, é criada uma miseri­ córdia, que absorve o hospital (uma vez que da gafaria só os bens subsistiam) e que, beneficiando dos privilégios da Misericórdia de Lisboa, cujo compromisso sempre seguiu, tentará centralizar em si a actividade assistencial em Barcelos nos séculos seguintes.