UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS CAMPUS DO SERTÃO

CAMILA FAUSTINA SANTOS PEREIRA RAMOS

LAYLA: UMA BORBOLETA NEGRA SERTANEJA ABORDAGEM QUEER DA PERFORMATIZAÇÃO DE SI COMO MULHER TRANS

Delmiro Gouveia 2018.

CAMILA FAUSTINA SANTOS PEREIRA RAMOS

LAYLA: UMA BORBOLETA NEGRA SERTANEJA ABORDAGEM QUEER DA PERFORMATIZAÇÃO DE SI COMO MULHER TRANS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Letras-Português, Licenciatura da Universidade Federal de Alagoas-Campus do Sertão, como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciada em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Ismar Inácio dos Santos Filho.

Delmiro Gouveia 2018

CAMILA FAUSTINA SANTOS PEREIRA RAMOS

LAYLA: UMA BORBOLETA NEGRA SERTANEJA ABORDAGEM QUEER DA PERFORMATIZAÇÃO DE SI COMO MULHER TRANS

Trabalho de Conclusão de Curso submetido ao corpo docente do Programa de Graduação em Letras- Português Licenciatura da Universidade Federal de Alagoas- Campus Sertão e aprovada em 28 desetembro de 2018.

Banca Examinadora:

______(Professor Doutor Ismar Inácio dos Santos Filho, UFAL-Sertão) (Orientador)

______(Professora DoutoraAna Cristina Conceição Santos, UFAL-Sertão) (Examinadora Externa) ______(Professor Mestre Samuel Barbosa, UFAL-Sertão) (Examinador Interno)

Aminha mãe Maria, e ao feminino em suas diversas possibilidades.

Ao Prof. Dr. Ismar Inácio dos Santos Filho, dono da minha admiração e profundo respeito, meu orientador, por não apenas acreditar, mas por ter depositado fé em mim e em meu trabalho, por todo seu empenho, paciência e dedicação.

À Maria de São Pedro, minha tão amada e admirada mãe, que mesmos com todas as suas limitações físicas e financeiras, me apoiou, suportou e sustentou sem esmorecer, durante toda minha caminhada.

A minha irmã Carolina,pelo apoio, confiança, paciência e por sempre tentar compreender que mesmo precisando da minha presença, eu precisava continuar essa minha jornada.

Ao meu pai, Paulo Roberto, pelo incentivo, apoio e confiança.

A minha amiga e madrinha acadêmica, Ana Cristina, por seu apoio e puxões de orelha, e por ter me ensinado na pratica o “uma sobe e puxa a outra”.

A minha amiga Maria Aparecida, meu exemplo, minha referência, eque tanto me apoioue incentivou de diversas maneiras.

A todos os professores e todas as professoras que me ensinaram por toda a minha vida escolar até este momento, com empenho, dedicação e paciência.

Aos amigos e amigas e colegas que mesmo sem saber, com suas demonstrações de carinho e confiança, me ajudaram a recuperar as forças para alcançar esse objetivo.

A Layla Moura, que tão gentilmente compartilhou partes de sua história para que fosse possível essetrabalho.

Ao NUDES-UFAL (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Diversidades e Educação do Alto Sertão Alagoano) e ao GELASAL (Grupo de Estudos em Linguística Aplicada do Sertão Alagoano) por terem contribuído grandemente em meus conhecimentos. Forças espirituais e mentais que me fortalecem.

“(...)Não passo pano pra otário E mesmo ameaçado, eu serei cada vez mais viado Quebrando armários, extermínio à normatividade Revolução! Bicha preta se amando de verdade Botando fogo nas regras dessa sociedade Vai falar mal, mas vai assistir a nossa liberdade Vamo assistir você ouvindo a nossa realidade Tirando nossas capas de invisibilidade As mona unidas pro combate e olha no que deu Se quer verso com massagem, pare de socar os meus.” (Harlley, 2018)

RESUMO

Este Trabalho de Conclusão de Curso expõe ideias que visam refletir acerca da construção do gênero social por meio da língua(gem), aqui tomada enquanto ação, e da relação sócio-interacionalque se constrói variavelmente de acordo com o tempo, contexto e espaço, não sendo a língua(gem) neutra, mas sim política e ideológica. A concepção de gênero aqui defendida é a de constructo social, portanto não admitindo a compreensão enquanto papeis essenciais dos sujeitos. Buscamos, dessa forma, compreender, em análise linguístico-enunciativa dos sentidos propostos nas falas colhidas durante entrevista realizada com uma mulher de gênero trans, assumidamente negra e sertaneja, como se dá a construção de seu gênero, os processos de subjetivação que constroem esse sujeito político, que com sua própria vida questiona os discursos dominantes, com apoio dos entrecruzamentos dessas outras performances marginalizadas que compõem o seu ser enquanto sujeito político e social que existe enquanto discursos de resistência. A própria existência do gênero trans configura-se dissidente e desenvolve em si performatividade que TRANSgride, TRANSpassa e TRANSforma, de modo que dentro da visão estruturalista da forma binária de gênero, que imputa sua inteligibilidade, referindo-se apenas a homem e mulher, segue chocando a tradição heteronormativa. São considerados, para enriquecer e elucidar a discussão, os conceitos de multidões queer e atos performativos, entre outros. O trabalho se dá embasado nos estudos de Linguística Queer, que serve de arcabouço teórico por propiciar maior liberdade para a sua realização, por se configurar um campo do conhecimento atuante com indisciplinaridade, contestação e provocação de renovação, desconstrução e reconstrução de conhecimentos solidificados na estrutura social, e que defende a tese do conceito de identidade de gênero enquanto sentidos construídos e praticados na língua(gem) e em perspectiva dialógica, em que sua compreensão se dá de forma refratada. Como fundamentação teórico-metodológica para a pesquisa são utilizados os estudos de Bakhtin (2004), Bento(2009), Borba (2006; 2016); Butler (2003); Louro (1997; 2008), Preciado (2011); Santos Filho (2012; 2015a; 2015b; 2015c; 2017a; 2017b), entre outros. Palavras-chave: Linguagem; GêneroTrans; Transexualidade; Performatividade; Linguística Queer.

ABSTRACT

This academic work exposes ideas that reflect on the construction of the social gender through language, understood as action, and the socio-interactional relationship that is constructed according to time, context and space. In this understanding, language is not neutral, but political and ideological. The conception of gender defended here is that of social construct, therefore, moving away from the notion of the essential roles of subjects. In this way, we intend to understand, in linguistic-enunciative analysis, the meanings proposed duringan interview with a woman, admittedly Black and sertaneja. The purpose is to understand how the construction of her gender, the processes of subjectivation that construct this political subject, that with his own existence questions the dominant discourses, with the support of the intertwined ones of these other marginalized performances, that make upherbeing asa political subjectand social that exists as discourses of resistance. The existence of the transgender configures itself dissident and develops performativity that TRANSgresses, TRANSpasses and TRANSforms, so that, within the structuralist view of the binary form of gender, which impute its intelligibility, referring only to man and woman, it continues to shock the heteronormative tradition. The concepts of queer crowds and performative acts, among others, are considered to enrich and elucidate the discussion. The work is based on the studies of Queer Linguistics, which serves as a theoretical frame work for providing greater freedom for its realization, for setting up a field of knowledge that acts with indiscipline, contestation and provocation of renovation, deconstruction and reconstruction of solidified knowledge in thestructure social, and that defends the thesis of the concept of gender identity as senses constructed and practiced in the language and in a dialogical perspective, in which their understanding is given in a refracted way. As theoretical and methodological basis for the research are used the studies of Bakhtin (2004), Bento (2009), Borba (2006; 2016); Butler (2003); Louro (1997, 2008), Preciado (2011); Santos Filho (2012, 2015a, 2015b, 2015c, 2017a, 2017b), among others.

Keywords: Language; GenderTrans; Transsexuality; Performativity; QueerLinguistics.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 01: Manchete em site jornalístico ...... p. 15 FIGURA 02: Manchete em site jornalístico ...... p. 15 FIGURA 03: Recorte de jornal ...... p. 22 FIGURA 04: Capa de Revista ...... p. 31 FIGURA 05: Capa de Revista ...... p. 42 FIGURA 06: Quadro de imagens de Layla Moura durante a entrevista ...... p. 58 FIGURA 07: Imagem da Layla, a entrevistada ...... p. 63 FIGURA 08: Cena em que o companheiro da entrevistada aparece ...... p. 64 FIGURA 09: Imagem de Layla, em construção de sim como mulher trans durante a entrevista ...... p. 72

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SUMÁRIO

10 CAPÍTULO 01 – INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 02 – DA (TRANS)FORMAÇÃO EPISTÊMICA QUEER NOS 22 ESTUDOS LINGUÍSTICOS

2.1 Por uma Linguística Queer 23

2.2 “Toda nossa fala ordinária é um ato performativo” 27

2.3 Linguagem, gênero e sexualidade 30

CAPÍTULO 03 – DA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES 37 TRANSVERSAIS

3.1 Transgênero 40

3.2 A cultura de gênero no Sertão/Nordeste: o fator masculinidade 44

3.3 Raça 50

56 CAPÍTULO 04 – INTRPRETANDO POSSIBILIDADES TRANS

4.1 A pesquisa 58

4.2 Das perguntas de pesquisa 63

4.3 Narrativas de si como mulher trans 69

CONSIDERAÇÕES FINAIS 77

81 REFERÊNCIAS

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Capítulo 01: INTRODUÇÃO

ma pesquisa1 realizada no ano de 2016, pelo site de conteúdo pornográfico, RedTube, mostra que o Brasil lidera o ranking de país que mais busca por Uconteúdo pornográfico em que estejam em cena transexuais/travestis. A pesquisa não relata números, contudo, evidencia algumas características mais relevantes desta relação do Brasil com a pornografia, argumentandoque a busca por Shemale – termo que usualmente se utiliza para a referência de conteúdo trans/travesti em sites pornôs – está em 4º (quarto) lugar dentre os mais buscados pelos brasileiros, e segue em 9º (nono) lugar quando comparado mundialmente. A pesquisa afirma que as buscas por conteúdos pornográficos com o tema relativo a transexuais/travestis tem 89% (oitenta e nove) por cento a mais de chances de ocorrer se esta for originada do Brasil. Essa busca, vislumbrando o prazer sexual, por sujeitos que cruzaram os gêneros binários (mulher e homem), colide ferozmente com a outra realidade comprovada em relatos reunidos por organizações preocupadas com a existência, sobrevivência e bem viver depessoastravestis e transexuais no Brasil, atuantes, assim, no exército da luta por adquirir e sustentar direitos para essas e esses, a exemplo da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e o Grupo Gayda Bahia (GGB). Esses relatos foram organizados e publicados em relatório pela ONG TransgenderEurope (TGEU)2, expondo internacionalmente que o Brasil também é o país em que mais ocorrem assassinatos de pessoas travestis e transexuais no mundo. De acordo com esse relatório, o Brasil marca absoluta vantagem referente ao México, por exemplo, que está posicionando em 2º (segundo) lugar, registrando, dessa maneira, uma superação de três vezes mais o número de homicídios registrados: entre o período de janeiro de 2008 a julho de 2016 foram notificados e registrados para o Brasil 868 (oitocentos e sessenta e oito) assassinatos de travestis e transexuais em comparação ao México, com seus 259 (duzentos e cinquenta e nove) mortos e mortas. No que se refere a essa questão, durante minha trajetória de vida pessoal e de militância, vivi e presenciei inúmeras situações de violências aplicadas contra sujeitos

1 A pesquisa não foi intitulada, por este motivo o nome da pesquisa não foi especificado. 2Relatório da TGEU de 2016, disponível em acesso virtual em .

13 de corpos que não se adéquam totalmente ao que as ordens heteronormativas de gênero e sexualidade concebem enquanto pessoas “válidas”, “viáveis” (SANTOS FILHO, 2015b), ainda mais quando essas transgressões são realizadas por corpos negros, que além de sofrerem o apagamento social em direitos, também sofrem a hipersexualização.A violência contra esses sujeitos se inicia com o cruel processo de invisibilização e inviabilidade de vidas válidas para esses corpos dissidentes.Esse movimento se dá no ato da construção dessas identidades, via língua(gem) sob o olhar hegemônico e binário da heteronormatividade (COLLING, 2015). Essa existência de cultura naturalizada de violência contra corpos que divergem dos esquemas cunhados para sexualidade e os gêneros alicerçados na lógica da estrutura hétero é o que justifica a existência desse estudo. Essa estrutura toma por estratégia rumar o caminho do abafamento e não consentimento à voz para esses corpos a ela desobedientes, para de fato alcançar a remodelagem ou extermínio, pela lâmina afiada da desatenção política, marginalização social e autorização, por negligência, à violência simbólica e física empregada contra esses corpos TRANSgressores, considerados desviantes (LOURO, 1997; 2000). Em duas cenas em que podemos perceber a construção, pelo outro, desses corpos na inviabilidade/vulnerabilidade,ocorrendo via língua(gem), é possível perceber ainda mais concretamente a relevância desse estudo na tentativa de enxergar, de forma sensível, os danos acometidos a esses corpos devido à disseminação e manutenção do discurso prejudicado pelo preconceito, auto referenciação heterocentrada e negação em compreender esse outro rosto enquanto possível de ser habitável (LOURO,2000), de modo a perceber as violências desumanizantes que naturalizaram o forjar da construção de sujeitos desobedientes, aqueles que se atrevem a romper com a (hétero)normatividade hegemônica. A esse aspecto são somadas outras características que podem relegar ainda mais esses rostos à vulnerabilidade da margem (BUTLER, 2011). Para a primeira cena em que se evidencia a construção de um corpo não habitável, estranho, inviável, dissidente, está Verônica Bolina, 24 anos, mulher trans negra, que foi acusada e presa por agressão. Após sua detenção, foram divulgadas na internet algumas fotos do tratamento recebido, que infringiu esse corpo3. Nas fotos clicadas, ainda na delegacia em que foi detida, seu rosto é apresentado completamente

3Endereço de acesso ao conteúdo disponível nas Referências.

14 desfigurado, apresentando hematomas em várias partes, como costas e abdômen. Teve seus longos cabelos raspados. Em uma das imagens registradas, aparece sentada no chão do pátio rodeada por policiais, pés algemados, mãos para traz – certamente também imobilizadas por algemas. A parte superior do seu corpo é apresentada completamente desnudada. Sobre esse fato lamentável, Bento (2015) relembra esse tratamento truculento e de desumanização por violência física e simbólica empregado a Verônica Bolina, quando detida no Segundo Distrito Policial (2º DP) da capital paulistana naquele mesmo ano. Para a pesquisadora, merecem atenção os marcadores de gênero, sexualidade e raça construídos para/performatizados no corpo desse sujeito, pois foi por motivo da existência de cada um deles transversalizando um mesmo corpo em desobediência que se busca justificar a permissividade das violentas ações realizadas. Tendo em vista que em nossa cultura ocidental remetemos tanto os cabelos longos quanto a presença de seios a marcadores do gênero feminino, o ato de raspar aqueles cabelos longos, da mesma forma a exposição dos seios nus, pode ser lido como a busca por provocar referência ao masculino para aquele corpo, já que culturalmente compreende-se que compete aos homens a permissão da exposição pública da parte superior de seu tronco. Ainda é possibilitada a leitura da tentativa de implantar para aquele corpo uma situação vexatória, já que sendo reconhecido enquanto masculino, apresentaria, devido ao implante mamário, deformidade – o que de acordo com a heteronormatividade se qualifica por desvios e segue sendo não permitidos para ele, ainda mais este sendo um corpo negrohipo ou hipersexualizadopela estrutura do racismo. Assim, a lógica que esse sujeito deveria seguir é a de ser considerado viril, desbravador, ferozmente ativo em suas performances – mas que, se ainda tido enquanto feminino, este estaria sendo exposto publicamente, algo que para cultura brasileira remete à vergonha, já que a exposição pública dessa parte de corpo feminino ainda deve se reservar ao privado – o que poderia se tomar por prova viva do terror de se colocar habitando um corpo feminino trans negro pobre no Brasil. Em outra cena, registrada em um vídeo de um pouco mais de um minuto, e disponibilizado na internet4, há um corpo feminino sentado no chão de uma rua, cercado por várias casas, frente a um carrinho de mão, trajando short curto e movendo-se com

4Link de acesso disponível em referências.

15 dificuldades, tentando vestir-se com uma blusa que possivelmente lhe foi retirada, com a cabeça ensanguentada – certamente devido às agressões sofridas momentos antes do início do registro em vídeo.Visivelmente sem forças, tenta obedecer, mas sem grande sucesso, a ordem de seus agressores para que subisse no carrinho a sua frente, entre risos, xingamentos, chutes e chineladas na cabeça e costas, paulada nas costas.Seus algozes despejam e carregam-na no carrinho para o local de seu apedrejamento e alvejamento com arma de fogo na cabeça. Essa é Dandara dos Santos, aos 42 anos, travesti. Sem reservas ou restrições, essa cena brutal e covarde de tortura, em plena luz do dia, que foi filmada e disponibilizada na internet por seus próprios executores, faz transparecer o sentimento de impunidade, assim como na cena anterior, de Verônica, sem pudor, no fato da ousadia de registrar esses momentos sem que haja demonstração de preocupação quanto à presença de testemunhas ou mesmo da existência do registro desses ocorridos. No vídeo do linchamento de Dandara, as vozes de seus agressores dirigem-se a ela aos gritos e de forma pejorativa, dizendo “vai viadinho”,“baitola”, “a mundiçatá de calcinhae tudo”, revelando a repulsa às expressões de gênero e sexualidade desenvolvidas no e pelo corpo de Dandara. Essa violência contra corpos avessos ao esquema inteligível hétero-binário busca a preservação do modelo padrão de ser e de viver, na estratégia de silenciamento, e porque não dizer de apagamento existencial de pessoas dissidentes, como as pessoas trans. O processo de flagelo a esses corpos acontece via língua(gem) e pode ser percebido, por exemplo, nas escolhas feitas tanto dos temas, quanto na forma que são “apresentados” (construídos) esses sujeitos pela grande mídia.Mesmo com publicações diversas sobre pessoas trans e travestis atualmente, ainda há uma timidez no desejo de falar sobre esses sujeitos na TV, revistas e jornais, exceto quando atores e humoristas as interpretam – ou seja, sem a participação direta desses corpos transgressores de gênero, sexualidade e desejo, mas apenas a interpretação segundo a visão de um outro observando esse rosto – com o intuito de adquirir risos, ou de outro modo – dessa vez em participação direta, mas não em primeira pessoa – se fazendo presentes nas páginas policias, que, mesmo quando se propõem a noticiar, constroem no discurso esses sujeitos de forma pejorativa, mesmo que estejam ali na condição de vítimas. Considerando esses aspectos, é preciso evidenciar que a compreensão adotada para o uso linguístico é de que todo e qualquerrecurso linguístico realiza-se enquanto marcador contextual (SANTOS FILHO, 2015a). Ou seja, conforme esse linguista, o

16 sujeito com os usos linguísticos, ou mesmo a falta de recursos linguísticos, está constantemente produzindo sentidos para si e para o outro, sobre si e sobre o outro com quem interage, e essa construção é forjada no momento da interação. Além disso, configura-se como relação de poder, pois é no uso dos recursos linguísticos que ocorrem os processosque tornam corpostrans não viáveis, invisibilizando- os/inviabilizando-os,tornando-os abjetos, seres malquistos, mal vistos, indesejáveis.Isso implora atenção para uma maior compreensão das motivações ao tratamento empenhado aos dissidentes sexuais e de gênero – aqui focando nas pessoas de gênero trans – a exemplo das escolhas lexicais para noticiar quaisquer fatos relacionados a esses sujeitos, pois as referências que são adotadas para mencionar essas pessoas não raras são desenvolvidas com a confusão e despreocupação em identificar as identidades travestis e transgêneros. Assim, a maioria dos sujeitos termina por ser marcada enquanto travesti, não importando seu auto reconhecimento – certamente por motivo de reconhecimento social da identidade travesti em maior vulnerabilidade que a de pessoas trans. Outra característica é a marcação visando a preservação do gênero de modo inteligível, referenciando a pessoa por sua genitália, com a escolha, por exemplo, do uso de artigose de morfemas de gênero masculino como “o” ou “um”, como em “o/um transexual”, “o/um travesti”, ou “travesti assassinado”, priorizando a marcação não de acordo com a assumida expressão de gênero desenvolvida por aquele sujeitono feminino, mas sim referenciando a genitália que se desenvolveu até seu nascimento. Exemplos evidentes desse aspecto podem ser apreciados na Figura 01, do Jornal do Comercio, alocado no portal de notícias UOL,e na Figura 02, do MG, no Ar do portalR7, na sequência:

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Figura 01: Manchete em site jornalístico Fonte: Jornal do Comércio, 25 de novembro de 20175.

Figura 02: Manchete em site jornalístico. Fonte: R7, 21 de setembro de 20176.

5Link de acesso , com acesso em 04 de outubro de 2017. 6Link da matéria, < encurtador.com.br/jrxP4 >, com acesso em 04 de outubro de 2017.

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Porém, nos últimos anos, não apenas nos espaços acadêmicos, devido aos avanços nos meios de comunicação, como a web 2.0 e uma maior difusão das mídias virtuais alternativas –blogs, vlogs, murais de redes sociais, entre outras, é possível perceber com maior facilidade as muitas transformações discursivas em apoio e respeito à possibilidade de existência desses corpos dissidentes. Essa movimentação contrária à normatividade e em prol desses sujeitos é bem comum por parte de pessoas que militam, mesmo que apenas virtualmente, dentro dos espaços de discussões feministas e/ou em prol dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, de pessoas travestis e transgêneros (LGBT), e é nessa relação dialógica de influências que os gêneros discursivosentram em processo de abertura às insurgências, a exemplo de campanhas comerciais e/ou mesmo programas televisivos ou on-lineque agora roubam a cena e tornam possíveis as falas e os corpos de sujeitos antes apenas silenciados (SANTOS FILHO 2017a), como é o caso do canal alocado no site de vídeos YouTube denominado “Barraco da Rosa”, com o programa de mesmo nome, comandado por Rosa Luz, mulhertrans negra periférica, artista e acadêmica, que “expõe” sua realidade e impressões do mundo, construídas a partir do seu lugar de fala, de maneira politizada e ao mesmo tempo explosiva, impactante e um tanto irreverente. Ou mesmo pessoas sensíveis às questões de valor e respeito às vidas humanas também de sujeitos travestis e transgênero, a exemplo de muitas que independentes do lugar social que ocupam, curtem, compartilham e comentam positivamente as aparições na mídia da artista “terrorista de gênero”7, MC Linn da Quebrada, “uma bicha transviada, uma bicha travesti, periférica, preta, que tá experimentando o corpo”8, e que em suas letras e performances, segundo ela,não somente no palco, avança no debate chamando a atenção para problematização sobre gênero, sexualidade, desejo, raça e classe, assim como o aprisionamento social desses corpos ante a percepção social que se tem para o seu direito ou não de existir. Por outro lado, também é fortemente perceptível a movimentação da campanha em direção contrária à insurreição, que é validada por muitos que demonstram desconforto com as alterações da ordem social em relação as mais diversas possibilidades de existência de gêneros, sexualidades e desejos refratados, nãopertencentes ao paradigma uno heteronormativo, apenas podendo perceber sua única

7Denominação adotada e auto referênciada pela cantora, no sentido de não obediência às normas inteligíveis de gênero. 8Fala da artista em apresentação de si, em entrevista para o programa “Prazer, Eu Sou”,exibido pelo canal Regina Valparo, no site de vídeos Youtubeem 06 de setembro do ano de 2016.

19 verdade enquanto possível, aceitável e referenciável, tomando este enquanto argumento lógico de justificativa para seguir em confronto direto com realidade das diversidades, na tentativa de preservar a permanência da ideia de conservação ou imutabilidade dos conceitos e dos modos de existência para os sujeitos dentro da sociedade. Nítido exemplo dessa realidade foi o discurso fundamentalistaconstruído por muitos representantes e integrantes de instituições religiosas que bradam lutar em prol do que, de acordo com suas concepções, é natural e estabelecido pelo divino, se mobilizando contrariamente ao que não percebem enquanto aceitável, a exemplo do veto ao projeto “Escola sem Homofobia”9,do Programa do Governo Federal, “Brasil sem Homofobia”e do recente caso “Queermuseu”10. Diante desse quadro do uso linguístico-discursivo ocorre a banalização, normalização e naturalizaçãodas violências e construções tendenciosas que favorecem a permanência do poder hegemônico sobre gêneros, sexualidades e desejos, permitindo um único modelo considerado válido, o modelo inteligível, de modo a inviabilizar a existência desse Outro, sujeitos relegados à imoralidade, ao desvio, à marginalidade social e de direitos, ao ostracismo, à invisibilidade de seu rosto e inviabilidade de seus corpos, de modo a dedicar-se ao seu abafamento, apagamento existencial, sendo por sua contradição, esse mesmo grupo, integrante de uma multidão que busca sobreviver às tentativas de extermínio de seu ser não validado pela heteronormatividade, personificando uma

(...) guerra sustentada por uma visão de mundo naturalista, que tem em seu alicerce a heterossexualidade, que é tomada como paradigma na sociedade, já

9Projeto do Programa Brasil sem Homofobia do Governo Federal e conveniado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que elaborou material impresso e de áudio e vídeo para ser distribuído às instituições educacionais por todo o Brasil, que foi embargado pelo Governo no ano de 2011, já pronto para ser impresso, devido à pressão da campanha da Bancada Evangélica e de conservadores do Congresso Nacional, de setores conservadores da sociedade. A justificativa central para validar as acusações feitas para o que foi pejorativamente apelidado de "kit gay" foi a de que o material desenvolvido seria responsável por "estimular o homossexualismo e a promiscuidade”. 10A “Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira” foi uma exposição de vários artistas, apresentada na cidade de Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul, no mês de agosto do ano de 2017, versaria questões de gêneros e das diversidades sexuais. Essa exposição, que deveria permanecer no espaço Santander Cultural, de 15 de agosto a 08 de outubro do mesmo ano, teve seu término antecipado, devido a manifestações encabeçadas pelo Movimento Brasil Livre (MBL), que acusou a exposição de fazer apologia à pedofilia e à zoofilia. Esse movimento de não aceitação teve vários apoiadores de grande significância política e religiosa – leia-se “grande significância” no sentido de arrebanhar um quantitativo de adeptos que melhor aceitam suas ideias, devido á posição religiosa que ocupa e/ou representa – como é o caso de Marcelo Crivella, atual prefeito do Rio de Janeiro e também bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, que vetou a presença da exposição no Museu de Arte do Rio (MAR), justificando, segundo o jornal El País, que “a população do Rio de Janeiro não tem o menor interesse em exposições que promovam zoofilia e pedofilia”.Contudo, essa ação foi tomada sem consulta à opinião pública.

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que nesta é muito forte a solidariedade entre qualquer identidade e sexualidade e gênero; a heterossexualidade é a norma (SANTOS FILHO, 2015b, p.05).

A omissão ao socorro e àdenúncia, ou, como nos específicos casos das duas cenas apresentadas anteriormente, a participação direta na violência empregada contra corpos que carregam em si marcadores de gênero, sexualidade, e mesmo raça, não hegemônicas e dissidentes, revelam, sem deixar margens para dúvidas, como bem emprega Bento (2015), o projeto político de extermínio – por parte da sociedade e Estado – a fim de exemplificar uma vida matável (SANTOS FILHO, 2015b). Com isso, o estranhamento ao nosso contexto cultural, político e social no que diz respeito aos gêneros e à sexualidade heterocentradas, diante da real existência de diversidades, de possíveis outras configurações que não apenas a construída e pré- estabelecida via língua(gem) enquanto natural, é o que justifica a existência dessa pesquisa, no sentido de problematizar a compreensão de inteligibilidade do gênero, refletindosobre a construção do feminino em um corpo de gênero trans negro, buscando interpretar os sentidos propostos na relação entre sujeito, linguagem, significado e identidade, em uma entrevista. Sendo assim, para além das faces apresentadas sob influências midiáticas e/ou políticas, como já demonstrado e exemplificado, aqui a atençãoé direcionada para a realidade experimentada pelo sujeito dessa pesquisa, umamulherestrans negra sertaneja, vivendo em Delmiro Gouveia, Alagoas, alto sertão. O focoé em como se constrói no momento da interação, considerando as cargas das influências desde antes do nascimento, chegando à educação escolar e até o momento dessapesquisa, o posicionamento e influências/interferências dessa esfera na construção desse sujeito que contraria a expectativa da normatividade social imposta para o gênero, sexualidade e o desejo. Mantendo em vista o processo dialógico, questionamos como esse sujeito recebe e dá em contrapartida, e convive com todas as imposições, já que se posiciona em movimento contrário ao esperado para ela dentro da lógica heteronormativa,a da heterossexualidade compulsória. Para tanto, o problema chave que norteou esse estudo foi pensar: “Como se dá a construção do gênero fortemente marcado no feminino desse sujeito que também se constrói trans negro sertanejo e que performatiza sua sexualidade de modo (pressuposto) desafiador à heteronormatividade? De que maneira essa construção se dá, apesar dos processos que inviabilizam sua possibilidade existencial, intensificado pelo

21 intercruzamento de suas identidades empurradas a abandonar às condições de marginalidade, de vulnerabilidade?Como, apesar de imerso em uma cultura de base fortemente machista, patriarcal e racista, esse corpo nega obediência ao modelo imposto relativo ao exercício da sua construção performativa?De que jeito, apesar de toda campanha normatizadora compulsória hétero, se construiu esse corpo em resistência e “oposição” ao masculino? Essas questões são respondidas ao longo do desenvolvimento desse trabalho. Com isso, não apenas percebendo os processos violentos de tentativa de remodelagem de corpos desobedientes, mas também percebendo todo empenho social, político e estrutural de pintar as genitálias de rosa ou azul, os corpos de branco e guardar no armário hétero-hegemônico, para o esquecimento, “corpos desviantes” (LOURO, 1997; 2000), e resgatando todo meu processo de construção no reconhecimento enquanto mulher negra lésbica não feminilizada, relembrando todo policiamento, rechaçamento/repressão – física e psicológica – sofridos devido ao desenvolvimento performativo de gênero e sexualidade avesso ao normativo, aliados ao desejo de falar de mim, mas não sobre mim, é que se construiu esse estudo, no objetivo de compreender a construção de si, por si, no momento da interação em uma conversa com esse sujeito sertanejo de corpo trans negro, sujeito de um corpo que ao mesmo tempo em que consegue despertar estranheza, aversão, repulsa, medo, desconforto, ódio, também provoca admiração, curiosidade, empatia, desejo. Percebendo como uma figura tida enquanto tabu social, e que apesar de ser muito pautada em diversos momentos, raramente tem voz, sofrendo assim com a existência de um grande problema de invisibilização, esse corpo viajante (LOURO, 2008) acometido à vulnerabilidade, passividade, ou melhor, o compromisso de ser matável, de não viabilidade existencial, compreender como em meio a todas essas adversidades e no momento de nossa interação ela construiu o seu gênero. Buscando uma melhor compreensão dos processos de construção desse sujeito, foram necessárias três etapas: foi preciso inicialmente compreender o sistema no qual opera esse movimento de silenciamento, e porque não dizer de apagamento existencial de pessoas trans, assim como de travestis, via língua(gem).Com esse fim, inicialmente foram realizados estudos bibliográficos, discussões e debates relativos à linguística de perspectivas queer,para que se percebesse a língua(gem) para além da subjetividade de seus falantes e acolhesse as escolhaslinguístico-discursivas de modo desobediente, para que houvesse possibilidade de problematização de sujeitos e das práticas de

22 sexualidades e de gêneros em subversão a normas vigentes, à luz dos conceitos abordados por Santos Filho (2012; 2015b; 2015c) e Borba (2016), por exemplo.Também foram desenvolvidos estudos bibliográficos e travadas discussões para melhor entendimento teórico no que se refere àconstrução de identidades de gênero, bem como da sexualidade, fora da percepção de inteligibilidade, mas na performatividade via língua(gem), por sob a tutela dos conceitos em Livia e Hall (2010), Butler (2003; 2011), Bento (2008; 2012), Louro (2000; 2003), Santos Filho (2012), entre outros, percebendo o alcance dos prejuízos com os preconceitos cunhados na política da heterossexualidade compulsória (COLLING, 2015), sem perder de vista as questões de complexa pluralidade que envolve o sujeito dessa pesquisa, integrante em uma multidãoigualmente estranha e complexa em sua multiplicidade (PRECIADO, 2011). A segunda etapa consistiu na elaboração previa de um roteiro, intencionando proporcionar mais segurança no desenvolvimento da conversa, e, depois, efetivação da entrevista, tendo seu registro em vídeo, com posterior transcrição. E, finalmente, no tocante à terceira e última etapa, essa se deu no desenvolvimento da análise, seguindo os critérios dos conhecimentos conceituais adquiridos no início do processo da pesquisa e elaboração escrita do trabalho. De posse das ferramentas necessárias para a elaboração e desenvolvimento para o registro dos conhecimentos adquiridos nos estudos e análises para o desenvolvimento dessa pesquisa, o discorrer do processo de escrita resultou, além dessa Introdução, na elaboração de 03 (três) capítulos, cujo primeiro teórico versa sobre a Linguística Queer, apresentando um breve histórico, resgatando seu surgimento tutelado na Sociolinguísticaatrelada à Teoria Queer, fortemente influenciada por estudos feministas;seu desenvolvimento indisciplinado e preocupado com a problematização das relações estabelecidas entre sujeito, identidade, linguagem, significado desenvolvidos na performatividade; uma ciência linguística que visa trazer a pique vozes de corpos dissidentes para melhor compreender, por exemplo, os processos de construção, estruturação, negociações e manutenção do controle das sexualidades e dos gêneroscontidas e organizadas na heteronormatividade, entender esses processos de construçõesenunciativo-discursivas materializadas para reverberar incansavelmente. No que se refere ao outro capítulo teórico, este versa, para uma melhor compreensão, sobre esse sujeito agridoce, situado em transição aos gêneros de caráter binário e inteligível, a identidade trans. Em diálogo com o conceito de gênero adotado,

23 foram relembradas as características da performatividade e ressignificação, bem como a invenção dessa identidade sertaneja e negra forjada em abundante masculinidade, para, assim, melhor compreender o sujeito trans, ocupante desse corpo construído para não ser habitável. Por fim, no quarto e último capítulo, estão disponíveis dados da metodologia aplicada na pesquisa, do conceito do gênero discursivo elegido para a geração dos dados, além das interpretações da entrevista de uma mulher trans que se constrói avessa, quando em sua própria construção de gênero questiona haver possibilidades de se construir fora dos esquemas predeterminados para as performatividades de seus modos de ser e de viver no mundo. A construção desse trabalho, com estudo e pesquisa, foram fundamentais para perceber mais intimamenteos processos que movimentam essa construção para a inviabilidade de sujeitos,além de perceber queas ocorrências desse modelo de construção existentes nas mais diversas esferas sociais, enquanto um processo do projeto estrutural e estruturante, político, ideológico e partidário da norma heterocentrada, que como um Cébero11, dilacera, dizima, corpos que a ela tentam escapar. É evidenciar e reconhecer o valor, a importância política e social na existência da resistência de construções dissidente sobre as sexualidades e gêneros não heterocentradas, reconhecendo que às margens, antes silenciadas, hoje gritam fazendo ecoar, reverberar, TRANScender a envergadura da heteronormatividade, abalando as estruturas da ditadura heterocentrada. Para compreender todo esse processo de construção desse e para esse sujeito, devemos antes desconstruir, destrinchar, a estrutura no sentido de compreender os conceitos que estão pautados para sua sustentação, conceitos que nortearam a perspectiva epistêmica para a efetivação dessa pesquisa. Dessa forma,no avançar da leitura serão elucidadas questões queajudarão a perceber de fato os processos de construção dos corpos, pois só compreendendo os processos estruturantes é que poderemos problematizar e até mesmo desconstrui-los.

11 Animal mítico da cultura grega, também conhecido como Cão do Inferno. Édescrito como um Imenso cão feroz de três cabeças com dentes bem afiados e rabo de serpente, incumbido pelo próprio Hades, deus do submundo, de guardar os portões do inferno para que ninguém de lá possa escapar.

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Capítulo 02 DA (TRANS)FORMAÇÃO EPISTÊMICA QUEER NOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS

década de 1980, remete, entre outras questões, à epidemia da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), que muito influenciou, tanto na vida das pessoas, quanto nos pensamentos político e científico e com as produções acadêmicas da época. Segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil teve seu primeiro caso de AIDS registrado no Estado de São Paulo, no ano de 1982, e, de acordo com a primeira reportagem brasileira exibida na emissora de TV aberta, Rede Globo, no programa Fantástico, do dia 27 de março de 1983, 70% (setenta por cento) das vítimas infectadas com o vírus eram homossexuais. Seguindo nessa mesma perspectiva, o jornal impresso O Globo, assim também como outros, classificou o vírus como “câncer gay” e “mal de homossexuais”, como mostra a Figura 03,a seguir.Esse movimento desenvolvido pelas mídias contribuiu muito com o advento da AIDS, em, para além de difundir pânico motivado pela incapacidade momentânea de conter a doença, ou mesmo compreender como um todo seu funcionamento, proporcionar um reforço negativo sobre o imaginário referente à homossexualidade12.

Figura 03: Recorte de jornal. Fonte: O Globo, 9 de maio de 198313.

12 Dados colhidos em documentários: Retrospectiva da década de 1980 (TV Globo) e Fantástico 30 Anos - A descoberta da Aids - Domingos Inesquecíveis. 13Link de acesso < encurtador.com.br/doB12 >.

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O medo coletivo causado nesse momento histórico tornou-se também o agente de repatologização, não apenas simbólica, mas também concreta da homossexualidade, pois mesmo que historicamente a patologização e criminalização na maioria dos países ao redor de todo o globo terrestre já tivesse sido superada, a exemplo da iniciativa da Associação Americana de Psiquiatria, que, após a publicação em seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mentais, no ano de 1952, colocou a homossexualidade na qualidade de desordem, retirando-a de sua lista de transtornos mentais no ano de 1973. Contudo, a nível internacional, a Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu o “homossexualismo”14 na Classificação Internacional de Doenças (CID) de 1977 enquanto doença mental, e só retirou desta lista no início da década de 1990. E assim, em meio a essa atmosfera de horror e pânico coletivo dos anos de 1980, ocorreu a validação do imaginário coletivo relativo à homossexualidade, simbolicamente associada à ameaça deferir a sobrevivência existencial de toda ordem social ou mesmo das pessoas na Terra.

2.1 Por uma Linguística Queer

Na academia, o emergir dos estudos gays e lésbicos, tanto no exterior como no Brasil, entre as décadas de 1970 e 1980, tendiam, sobretudo, a tentar compreender a existência de outras sexualidades, mantendo sempre o modelo heterossexual enquanto referencial único e legitimo, perpetuando o conceito da existência de identidades fixas, fazendo com que as dissidências sexuais e de gênero fossem encaradas enquanto desvios às normas para o sexo e para o gênero. Assim, por essa perspectiva, apenas um quantitativo mínimo da parcela populacional – a considerada como“anomalias desviantes” – poderia sentir desejo por pessoas do mesmo sexo que o seu, o que reforçava a ideia que ainda hoje no imaginário coletivo perdura, a de que a naturalidade do desejo sexual é hétero.

14 Segundo Ceccarelli (2000), o termo foi inicialmente utilizado no ano de 1869 por usos médicos, sob a proposta do médico húngaro KarolyBenkert de ser retirada a “homossexualidade” do critério de crime para o de doença, transferindo assim do poder jurídico para o poder médico a tutela da manifestação da sexualidade não heterossexual classificada enquanto “homossexualismo”. Com o reconhecimento e exclusão da “homossexualidade” enquanto categoria de doença em 1973, hoje muitos argumentam que o sufixo “-ismo” denota o sentido antes aplicado de patologia, empurrando assim esse sujeito ao ser nomeado para a qualidade de doente. Com isso, adotou-se o uso do termo “homossexualidade”.

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Aqui também a Sociolinguística manteve-se dentro da perspectiva determinista da linguagem e dos sujeitos, como bem abordam Finegan (1997) e Santos Filho (2015a),pois essa área do saber defendia (defende?) a ideia de que a língua é a expressão do lugar do(a) falante, e que este lugar é pré-definido e pré-linguístico, o que implicaria dizer, por exemplo, que a mulher é sensível, mais propensa a pensamentos e ações de caráter emocionais que o homem. Assim sendo, as mulheres fariam uso de determinados recursos linguísticos consonantes com essas características, simplesmente por ser mulher. É essa uma atmosfera de horror coletivo, de aversão à dissidência sexual e de gênero similar aos momentos vividos por corpos como os de Verônica e Dandara (mencionadas na Introdução), que houve o nascimento da Linguística Queer, no fim dos anos de 1990. Quando nascem, esses estudos em Linguística Queer vêm também com a intenção de opor-se a essa ideia de língua enquanto expressão da subjetividade do(a) falante, na qual as características dos sujeitos, nesse sentido, são pensadas partindo de um caráter biológico, de uma essência, visando o corpo em sua materialidade, defendendo que todo comportamento linguístico está diretamente ligado, atrelado, à essência desse corpo material, validando o senso comum para a noção de língua, enquanto comportamento linguístico que expressaria o lugar do sujeito falante, não possibilitando problematizar a linguagem ou mesmo o sujeito (SANTOS FILHO, 2015a). Os estudos linguísticos com essa perspectiva queer em sua abordagem podem possuir tanto o caráter aproximado aos estudos etnográficos, que inclusive foi o grande foco no início do desenvolvimento dessa perspectiva epistemológica, no sentido de refletir sobre os usos do sistema gramatical de gênero usado por sujeitos de sexualidade e gênero dissidentes, como travestis, na possibilidade de marcações identitárias, quanto aproximação dos estudos enunciativo-discursivos, no sentido de construir diálogos com as questões de tradição cultural existente nos discursos (SANTOS FILHO, 2017). Assim, nessa abordagem teórica da Linguística Queer, as identidades não são tidas enquanto preexistentes, mas sim forjadas nos instantes dos usos da língua, e para sua análise devem ser considerados tanto o aspecto macrossocial quanto o micro contextual, atentando-se, por exemplo, ao momento histórico, a para quem fala, a porque fala, ao quadro político e aos contextos sociais relevantes que possam interferir na construção dessas identidades, no momento em que a prática de linguagem acontece, pois toda prática de linguagem do(a) falante é elaborada em acordo ou

27 desacordo/referente a questões que acontecem no momento histórico e da interação particular em que esse sujeito vive.A linguagem é compreendida não como naturalmente dada e oriunda da essência do sujeito, mas sim enquanto forjada em processo de construção que acontece no meio social, e o meio social também é construído pela linguagem, pois são nos usos linguísticos dos sujeitos que os modos de ser e de viver no mundo vão sendo forjados (LIVIA e HALL 2010 [1997]; SANTOS FILHO, 2015a). A urgência na necessidade de se perceber os estudos e pesquisas em língua(gem) com um novo, crítico e desobediente olhar, oferecido por uma nova e emergente episteme, que preze perceber com estranhamento o que já é dado como certo, correto, único e verdadeiro, passa a ser abordada, conforme esclarece Santos Filho (2015c). Essa abordagem necessária é, como já apontamos, a Linguística Queer, área que teve por marco inicial a publicação do livro organizado por Anna Livia e Kira Hall intitulado Queerlyphrased: Language, gender, andsexuality, publicado no ano de 1997, que mescla Teoria Queer relacionada ao feminismo e questionamentos aos estudos que envolviam linguagem, sexualidade e gênero. A Linguística Queer nasceu da junção de discussões no campo da Sociolinguística, recebendo sua tutela – apesar de levantar questionamentos em oposição a elae aos antecessores estudos linguísticos, que percebiam a língua apenas pelo sistema linguístico, por sua estrutura, dispersando todo o entorno que participa, dialoga, envolve, que se conecta com esse sistema – e do abraço forte da Teoria Queer. O “queer”, que leva em seu nome, é uma expressão da língua inglesa que foi/é utilizada pejorativamente como insulto direcionado às pessoas dissidentes sexuais e/ou de gênero, tidas por pervertidas, a exemplo de pessoas homossexuais, travestis e transgênero. Este termo não tem uma tradução exata, mas no que se refere a uma aproximaçãoremete ao “indefinido”, ao “estranho”, ao “esquisito”, de maneira abjeta, equivalente ao que em algumas regiões do Brasil expressariam com o uso de termos como “baitola”, “bicha”, “boiola”, “marica” ou “viado” (SANTOS FILHO, 2012). A Teoria Queer, segundo o professor Richard Miskolci, em fala no “I Seminário Queer”15, realizado pela Revisa CULT e SESC no ano de 2015, possui genealogias diversas, multissituadas, e que em seu forjar no fim da década de 1980, no fogo provocado das discussões acadêmico-feministas acerca de gênero, constrói-se enquanto

15 Acesso no link < encurtador.com.br/nopyY>.

28 uma corrente teórica militante preocupada com a “dinâmica da sexualidade e do desejo nas relações sexuais”, conforme esclarece Santos Filho (2012), entendendo o sujeito e suas identidades como construtos.Por este motivo, joga luz e opõe- seàheteronormatividade com o intuito de problematizá-la. Devido à complexidade do objeto desse trabalho, a escolha da perspectiva de análise que o fundamenta deve, sem sombra de dúvidas, acompanhar seu ritmo intenso e frenético,no que diz respeito à construção via língua(gem) do gênero de um sujeito trans, para que questões ali presentes que o envolvam e/ou o transversalizem, a exemplo de seu reconhecimento de pertencimento ao feminino, identidades negra e sertaneja, não escapem por limitação do interesse da metodologia elegida. O sujeito do estudo também é percebido no exercício de expressão de desconstrução, desobediência, afrontamento, transgressão e, porque não dizer, dissidência em certos aspectos. Assim sendo, em harmonia com essas características, para melhor atender às exigências da pesquisa, a metodologia aqui adotada é esta que nasce da emergente preocupação em compreender a construção das identidades nos estudos linguísticos. Dessa maneira, compreendendo que essa construção das identidades se dá através da língua(gem), a Linguística Queer se coloca enquanto uma ciência desobediente, indisciplinada e contestadora, que critica e problematiza as normas sociais no que se refere às identidades de gênero e de sexualidade, possibilitando alcançar também outras identidades, a exemplo das de classe, territorial e raça, que permite a percepção para a defesa de sujeitos e características de corpos dissidentes, notando as relações que influenciam a construção desses sujeitos no mundo, tanto em âmbito micro quanto no macrossocial, como sendo uma problemática pertencente a toda sociedade (SANTOS FILHO, 2015c). A esse respeito, Santos Filho (2015b) afirma que a

“Linguística Queer” questiona justamente a linguagem e a captura de seu referente, ou se há nesse processo falhas, apresentando, portanto, a noção de performatividade, como posicionamento crítico em relação à linguagem e a sua falha. Nesse raciocínio, é possível pensarmos sobre as implicações dos usos linguísticos e a performatividade, e nesses a construção de subalternidades, precariedades e vulnerabilidade, e também de subversão, no tocante a gêneros e sexualidades, queerizando, desse modo, os estudos em linguagem, focalizando a relação linguagem, significado, sujeito e identidade, nesse contexto cultural de uma ditadura heteronormativa (SANTOS FILHO, 2015b, p. 18).

Assim, os estudos linguísticos na perspectiva queer preocupam-se em provocar abalos, no sentido de desconstruir, estranhar, problematizar as engrenagens desse sistema normativo imposto. Esse caráter de estranhamento, de problematização, se dá

29 em sentido de estratégia, vislumbrando compreender não como os sujeitos são, como se estes fossem fixos em sua essência, mas sim no sentido de desconstruir a cultura para então compreender estruturalmente o como e os porquês esses e/ou aqueles sujeitos se constroem ou são construídos do jeito que se constroem ou que estão construídos, permitindo evidenciar e questionar a visão hegemônica, produzida e mantida com apoio da socialização via linguagem, que percebe o mundo assim como as coisas nele, de modo que silencia e, outras muitas vezes, apaga vozes e corpos considerados por ela abjetos, inadequados, inferiores, anômalos, ‘corpos matáveis’ (SANTOS FILHO, 2015b), relegando-os à vulnerabilidade. Mas, agora, essas vozes, esses corpos, emegem para que os enxerguemos no mundo, provocando com isso os almejados abalos à norma imposta, ampliando, abrindo, outras possibilidades para os sujeitos existirem e resistirem no mundo. Epistemologicamente, para esse campo do conhecimento é percebida a língua(gem)de forma atrevida e subversiva, enquanto prática de ressignificação dentro dos estudos linguísticos.Isso se faz possível ao perceber e estranhar os conceitos linguísticos, movimentando-se em oposição, em direção a outras abordagens dentro das múltiplas ramificações do campo da Linguística.

2.2 “Toda nossa fala ordinária é um ato performativo”

Também, nos sentidos antes comentados, a condição do sujeito é percebida não por uma perspectiva de sujeitos anteriores aos discursos, sujeitos pré-discursivos e que tenham plenitude de controle sobre suas enunciações, ou até mesmo existentes enquanto incorruptíveis verdades morfofisiológicas, e que por isso as condições referentes ao que é relativo às suas vidas (pensamentos, expressões, emoções) já estão dadas, sendo estes sujeitos livres, cujas escolhas são absolutas, com identidade primária que deva ser constatada e/ou descrita, representada. Tampouco o sujeito é percebido como assujeitado, como folha de papel em branco ou gaveta vazia, aguardando ser preenchida por esquemas normatizadores que o façam assumir papeis pré-estabelecidos (SANTOS FILHO, 2015c). Aqui a concepção para o sujeito que se faz interessante perceber é a de “sujeito que fala”, assumido como um sujeito que age, sujeito que forja seus movimentos, não necessariamente de forma retilínea, que existe com possibilidades, percebendo essas possibilidades dentro da perspectiva da performatividade, de Austin(1962), assumida

30 por Butler (2003).Por essa perspectiva, entende-se que “toda nossa fala ordinária é um ato performativo, uma ação pela língua(gem), na qual nos situamos em alguns ‘processos de fazer’ e ou nos ‘afastamos’ de outros” (SANTOS FILHO, 2015c, p. 01), compreendendo que

(...) um ato linguístico transforma-se em um ato performativo com êxito quando as citações têm poder vinculante, isto é, quando têm a capacidade de “passar a valer”, a capacidadede não meramente orientar, mas de produzir um efeito “obrigatório”, no entendimento de que devem ser acompanhadas, devem ser seguidas. Esse poder vinculante dá força ao enunciado, transformando-o, assim, em ato, em ação, via sua capacidade de interpelação (SANTOS FILHO, 2015c, p.19).

Essa noção de performatividade nos permite perceber a língua(gem) enquanto ação, no sentido de que constrói sentidos que por sua vez podem provocar identificação dos sujeitos com esses significados propostos. Assim, quando ocorre a concordância com os sentidos propostos na enunciação, esses são tomados enquanto válidos em seus sentidos. Dessa forma, o sujeito incorpora, assimila, esses sentidos como sendo verdadeiros, ou mesmo o sujeito pode contrapor-se, criando desidentificação, fazendo com que o ato performativo não tenha sentido válido, não logre êxito. Conforme Santos Filho (2015c), quando falamos em estrutura do ato performativo o que se busca compreender dentro dessa abordagem é o funcionamento estrutural do ato de fala, compreender como a autoridade moral marca sua presença na ação, no sentido de como ocorre a autorização e manutenção dela enquanto performatividade. Para tanto, evidenciar que um ato performativo não é um ato linguístico em si, é necessário, pois, na realidade, a cena discursiva que está constituída deve ser percebida em dimensões sociais macro e micro, de modo a perceber esses sujeitos discursivos agindo na interação e se construindo no instante dela,tendo em vista também que o ato performativo mantém relação dialógica com a cultura na qual está inserido, construindo e sendo construído por ela. A estrutura do ato performativo é constituída por citações, e estas citações são vozes com autoridade resgatadas para validar o discurso, a exemplo de quando um dosagressores na cena 2, apresentada na Introdução, interpela Dandara com arecriminação contida na frase “a mundiça tá de calcinha e tudo”.Esse ato de fala busca na cadeia de citações, também imersa “na cultura heteronormativa, sustentada por scripts de significados que postulam a essência dos corpos e da língua(gem)” (SANTOS

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FILHO, 2015c, p.17),resgatar apoio de ordem epistêmica determinista, a qual prevê papeis de gênero para os sujeitos, baseando-se no caráter morfofisiológico daquele corpo, na essência, para predeterminar o que são comportamentos apropriados para a mulher e/ou comportamentos adequados para o homem, como se os modos de ser e de viver no mundo refletissem, demarcassem, o lugar do sujeito. Nesse sentido, a sustentação, a força da citação, está em seu constante resgate, sua repetição, e é nessa força de citação que se pode gerar sentido ao que está sendo enunciado. Conforme argumenta Santos Filho (2015c, p. 19), “Isso é possível porque a citação se constitui no poder vinculante e se constitui poder vinculante”. No que diz respeito ao agir desse sujeito, é recebido enquanto efeito documprimento de determinadas normas que o precedem e o comandam. Assim sendo, convenções e regras o constituem e o afetam diretamente, condicionando-o à dependência uns aos outros para viver. Diante desse entendimento, não cabe possibilidade para entender esse sujeito enquanto autoconsciente dos limites do seu eu, da sua subjetividade. Devido a esse caráter, segue sempre dependente de que scripts culturais estabeleçam a cena de interpelação, a exemplo dos da “ditadura heteronormativa” (COLLING, 2015) e dos das insurreições que ocorrem por motivo dela, gerando tanto uma atmosfera de falta de liberdade quanto também de possibilidades. Logo, não há corpos e/ou identidades que tenha sua definição já dada em seu nascimento, ou antes dele, pois o sujeito é entendido não como um sujeito unificado, que se desenvolve retilineamente e de forma progressiva, seguindo a perspectiva tradicional humanística, que presume que o sujeito possa ser concebido enquanto pessoa substantiva, com características essenciais e outras não essenciais. A noção defendida para o estudo é a de que o sujeito é constituído em meio a processos conflituosos, abundantes em divergências e pluralidades, variação, difuso, como se esse sujeito fosse “lançado em uma viagem ao longo da vida, na qual o que é importante é o andar e não o chegar”(LOURO, 2008, p.13). Assim, esse sujeito age, pode ser percebido como um sujeito situado, na perspectiva bakhtiniana (SANTOS FILHO, 2015c). Fazer tais leituras, compreender e levantar tais questões no campo da linguística, de modo a problematizaras relações elaboradas entre a construção da língua(gem), do sujeito, suas identidades e dos significados não seriam abordagens acadêmicas possíveis sem a perspectiva queer para guiar esse estudo, já que anterior a essa compreensão, a Sociolinguística se empenhou em afastar-se da noção de língua apenas enquanto sistema, porém com resultados negativos, a exemplo da noção de gênero concebido tão

32 somente enquanto sexo biológico, essência, morfologia de nascimento. Isso limitou essa área dos estudos linguísticos, não a permitindo dialogar com os sujeitos em toda sua complexidade, limitando-se, desse modo,a perceber esses sujeitos retidos ao espaço que eles são designados, abandonando-os ali para retornar ao sistema, não às práticas de linguagem, interação, discurso. Ou seja, o sujeito nesse momento não era priorizado, pois os interesses da Sociolinguística se prenderam à análise e à avaliação da língua (FINEGAN, 1997; SANTOS FILHO, 2017).

2.3 Linguagem, gênero e sexualidade

Assim, nos estudos sociolinguísticos, como apontados anteriormente, não havia problematização das sexualidades, dos gêneros, dos corpos, nem mesmo da língua(gem), causando a sublimação do sujeito, pela preocupação direta em analisar determinados padrõeseestilos (socio)linguísticos, no sentido de perceber as identidades enquanto rígidas, sem possibilidade de mobilidade, por serem compreendidas como essenciais, biológicas, dando vazão ao estranhamento, a problematização subversiva da Linguística Queer. Aqui, ainda bebendo da fonte de águas butlerianas para a compreensão desses sujeitos, no que concerne as suas identidades de gêneros e sexualidades, compreendendo-os enquanto não dados ou mesmo inerentes à morfologia de seus corpos, mas pelo entendimento de que se dão em construção por meio do diálogo, através das convenções culturais, e esses meios são atuantes enquanto autoridade moral e vinculante consolidadas via língua(gem). Logo, as afirmações ou negações na construção sobre esses corpos não se dão por autonomia desse sujeito, ou mesmo de sua reflexividade, pois é a língua(gem) que interpela os sujeitos para alcançar sua constituição, pois é o

(...) corpo feminino ou masculino. Um processo que é baseado em características físicas que são vitais como diferenças e às quais se atribui significados culturais. Afirma-se e reitera-se uma sequência de muitos modos já consagrada, a sequência sobre gênero-sexualidade.Oato de nomear o corpo acontece no anterior da lógica que supõe o sexo como um “dado” anterior à cultura e lhe atribui um caráter imutável, a-histórico e binário. Tal lógica implica que esse “dado” sexo vai determinar o gênero e induzir a uma única forma de desejo. Supostamente não há outra possibilidade senão seguir a ordem prevista. A afirmação “é um menino” ou “é uma menina” inaugura um processo de masculinização ou feminização com o qual o sujeito se compromete. Para se qualificar como sujeito legítimo, como um “um corpo que importa”, no dizer de

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Butler, o sujeito severá obrigado a obedecer às normas que regulam sua cultura (SANTOS FILHO, 2015c, p. 14).

Compreensões de estudos anteriores, como no campo da sociolinguística,trabalhavam a categoria de gênero sob a luz da concepção de papéis de sexo, em que se pensa sexo pela morfologia, pela materialidade, enquanto uma questão fisiológica, fisiologia que determina, por suas características, expectativas e papeis específicos a serem desenvolvidos na sociedade, e que a efetivação do desenvolvimento desses papeis por esse sujeito deveatingir também as expressões do comportamento linguístico, já que este também é pensado sob a luz determinista, percebendo o sujeito limitado em conformidade com a materialidade a qual pertence, como sugeriu no ano de 2015 a manchete de capa da revista O Cérebro e a Sexualidade da editora Alto Astral, que pode ser observada na Figura 4, convidando o(a) leitor(a) a perceber que o comportamento humano, suas ideias, assim como atividades cerebrais,podem serespecíficos para cada sexo.

Figura 04:Capa de revista. Fonte: O cérebro e a sexualidade, 2015.

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Estudos como este, e em especial os da SociolinguísticaVariacionista, importavam-se tão somente com os padrões linguísticos da mulher, da lésbica, do homem, do gay, visando conhecer a linguagem específica da mulher, do homem, da lésbica, do gay, como se essas linguagens já estivessem dadas, pré-condicionadas, pré- existentes de acordo com as categorias identitárias dos sujeitos. Dessa maneira, não poderia estranhar, por exemplo, o emprego dos termos “viadinho” e “baitola” para adjetivar sujeitos como Dandara ou Verônica, ou mesmo problematizar tanto o uso quanto a revolta, a abjeção, a repulsa, ao uso da calcinha por corpos como aquele. Em contraposição a esse entendimento, a Linguística Queer está preocupada em compreender os processos da linguagem em uso que levam a construção desses sujeitos, que performatizam identidades, e em como as linguagens em uso constroem esses corpos, como os usos linguísticos utilizados por e sobre sujeitos os constroem, os situam no mundo, dando com essa ação a condição necessária para a problematização, tanto da língua(gem) quanto de categorias identitárias, a exemplo de gênero e sexualidade (SANTOS FILHO, 2015b; 2015c). Louro (2008, p. 15) salienta que a afirmação de que um sujeito pertence ao gênero feminino ou masculino “instala um processo que, supostamente, deve seguir um rumo ou direção”, o que imputa decisão sobre um corpo e não o descreve. Assim, as enunciações não são aqui compreendidas enquanto expressões de si, ou mesmo que expressem um suposto lugar do(a) falante, ou ainda que essas sejam descrições de si ou mesmo do Outro. Assim sendo, os usos linguísticos são compreendidos como “decisões” sobre os corpos, no sentido de que esses estimulam o processo de construção, de “fazer” um corpo, de construir um sujeito, ainda dentro das convenções e normas culturais, visto que é no ato linguístico de nomeação ou auto nomeação que a vida se faz possível¸conforme Santos Filho (2015a). Assim sendo, de acordo com Santos Filho (2015c, p. 01), “a identidade social é condição de um ato linguístico-discursivo de performatividade”. Dessa forma, toda nossa fala se caracteriza como um ato performativo, ou mesmo uma ação desenvolvida por meio da língua(gem), as quais por vezes concordamos, nos situando em proximidade e concordância em relação a alguns “processos de fazer” – logrando êxito a esses atos performativos de fala – e por vezes discordamos e nos “afastamos” de outros, dando margem para outros usos linguísticos que diante do curso normativo constroem-se em processo de ressignificação, desobediência, desconstrução, emergindo com outros scripts, sendo estes dissidentes, subversivos. Logo,

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(...) as normas podem ser reelaboradas, transgredidas,subvertidas, porque outros scripts culturais são passiveis de serem forjados, já que os sujeitos não são simplesmente sujeitados aos esquemas normalizadores, no sentido de que apenas os replicam indistintamente, ao assumirem dada posição-sujeito (SANTOS FILHO, 2015b, p.15).

Dessa forma, as falas tomadas enquanto projetos de representação ou descrição não se fazem possíveis, pois todas tentativas de representações e/ou descrição são falhas, assim como argumenta em “Problemas de gênero” a filosofa (2003), ao afirmar que é possível o entendimento de que a mulher “representada” política e linguisticamente pelo feminismo da época, na verdade, é a configuração de critérios pré-estabelecidos para os quais visam forjar um sujeito que é resultado dessa atuação, desse movimento, em sentido dos supostos projetos de representação, que são na realidade exercícios performativos que buscam autorizar sentidos e sujeitos. Consequentemente, a pseudo-representação só cabe aos corpos que se adéquam dentro dos critérios reconhecidos para sujeitos, não cabendo assim para as enunciações serem consideradas representações de si ou mesmo de outros, pois são na verdade atos performativos com a função normativa de na língua(gem) construir, “revelando” ou “distorcendo” as verdades consideradas para as normas inteligíveis referentes a determinados “rostos”, corpos, sujeitos, ou mesmo aspectos de suas vidas (BUTLER, 2011). Exemplificando esse argumento, apresento dois trechos dos versos da canção intitulada Mulher, da cantora e pensadora contemporânea MC Linn da Quebrada, em que são levantadas algumas questões relativas a gênero, quando diz,

De noite pelas calçadas Andando de esquina em esquina Não é homem nem mulher É uma trava feminina (...) Ela tem cara de mulher Ela tem corpo de mulher Ela tem jeito Tem bunda Tem peito E o pau de mulher!

Com essa construção literária, a funkeira problematiza o gênero em sua noção binária, normativa e centrada na heterossexualidade, ao argumentar apossível existência

36 do ser travesti em comparativo aos gêneros mulher e homem, ao dizer que “não é homem nem mulher, é uma trava feminina”, fazendo também alusão a outras possíveis expressões de travestilidade que não apenas a feminina, ao preferir especificar a qualidade dessa “trava” enquantofeminina, além de trazer a possibilidade de um sujeito que não é construído enquanto mulher ser reconhecido enquanto feminina,com o uso da adjetivação. Esse movimento linguístico posiciona o ser travesti à situação de condição de possibilidade de gênero, trazendo à pique possibilidades outras para a existência dos gêneros para além de binaridade. Essa construção questiona também a noção de realidade em face ao próprio entendimento hegemônico morfofisiológico referente ao imaginário do ser mulher, desenvolvendo nesse ato enunciativo-discursivo atos performativos para o sentido, construindo o ser mulher ligado ao fato de possuir um corpo feminino, mas não apenas no que tange ao ideário comum e hegemônico de um corpo biológico demulher. Ainda aqui, é importante perceber que ao propor possibilidades para esse sujeito, sempre fazendo uso do pronome pessoal “Ela”, a construção de Linn segue apontando esse corpo enquanto pertencente ao feminino, e aproxima-se em concordância do discurso determinista ao atribuir verdade em especificar características físicas enquanto pertencente em destaque e/ou (in)existência, diferenciando-se entre elas e, dessa maneira, atuando enquanto marcadores de gênero, o que se pode perceber com o uso da preposição “de”, visando determinar que essa ou aquela característica pertence a um gênero específico e não ao outro, ao alegar que “ela tem cara de mulher”, “ela tem corpo de mulher”. Então, até aqui o ato de fala de fundamento essencialista logra êxito. Contudo, o ritmo desse movimento em consonância com o discurso normativo relativo à inteligibilidade do gênero, que busca enquadrá-los de acordo com a morfologia dos corpos de seus sujeitos, é rompido quando a cantora traz a possibilidade da existência do “pau” – referência feita em alusão à genitália considerada dentro da lógicaessencialista imanente enquanto pertencente ao, e tão somente ao, masculino – é agora construída como também componente integrante do pertencimento dessa figura fortemente construída no feminino. A artista e pensadora contemporânea, com essa afirmação de que esse sujeito possui “pau de mulher”, constrói performatização outra para diferentes e possíveis feminilidades que possam ser atuantes em corpos com morfologias diversas, apresentando a problemática em relação ao sentido estreito dedicado ao imaginário dos

37 gêneros, atribuídos aos sujeitos para as “representações” de seus corpos, e essa performatividade que é gerada se dá diretamente em afronta à estrutura de normas relativas às noções do gênero binário e inteligível como sendo único e possível, a qual valida apenas às ocorrências dicotômica e binária homem/mulher em suas condições atuantes em afinidade direta com a norma heterossexual, seguindo a lógica da obrigatoriedade existencial de um esquema fechado que deve ser rigidamente seguido para assimilar verdade às concepções de gênero, bem como as combinações afetivo-sexuais. Lembramos que esse sujeito com “pau de mulher” tão somente pode ganhar vida pelo ato linguístico de autonomeação, visto que a artista no decorrer de sua letra deixa bem evidente que a personagem de sua criação é uma travesti, identidade performatizada e autoreconhecida pela artista, como já explicitado no capítulo deIntrodução, ao se autoidentificar como uma “bicha travesti”. E o que se tem por necessidade para este estudo é a defesa da percepção de possibilidades viáveis para várias e diversas expressões de gênero, feminilidades,bem como também masculinidades, sexualidades, entre outras identidades atuantes em corpos diversos, enxergando-as não enquanto fixas, ou que se mantenham em um feixe único, mas sim enquanto em um contínuo de permanente construção, pois

Nessa perspectiva, nada há de exclusivamente "natural" nesse terreno, a começar pela própria concepção de corpo, ou mesmo de natureza. Através de processos culturais, definimos o que é – ou não – natural; produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, consequentemente, as tornamos históricas. Os corpos ganham sentido socialmente. A inscrição dos gêneros – feminino ou masculino – nos corpos é feita, sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com as marcas dessa cultura. As possibilidades da sexualidade – das formas de expressar os desejos e prazeres – também são sempre socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade.... ela é uma invenção social, uma vez que se constitui, historicamente, a partir de múltiplos discursos sobre o sexo: discursos que regulam, que normatizam, que instauram saberes, que produzem "verdades" (LOURO, 2000).

Em síntese, conforme o que foi discutido, a Linguística Queer, no que se refere à possibilidade de atenção e análise, entende a importância de evidenciação dos corpos de sujeitos dissidentes, sexuais e/ou de gênero, por exemplo, esses que não fazem parte ou mesmo não se aproximam do referencial hegemônico e normativo, e nem o buscam. A Linguística Queerenxerga a importância de compreender as engrenagens desse sistema

38 hegemônico opressor para então perseguir a desconstrução da norma heterocentrada, para se lançar à tona, por sob a luz do reconhecimento, práticas de expressõesqueer. A Linguística Queer rouba o breu lançado sobre esses corpos revolucionários, atuantes no combate à normalidade para a transformação da sociedade, abalando a noção de identidades fixas e preexistentes, estranhando, discutindo e questionando como os discursos normativos vem sendo produzidos, reproduzidos e sustentados, além de perceber esses corpos nessa dissidências, ações políticas de resistências, que criam novos conhecimentos acerca das possibilidades diante da complexidade dos sujeitos e da sociedade. É no movimento de buscar conhecer uma das personagens que compõem essa “multidão queer” (PRECIADO, 2011),no sentido de compreender o que é esse sujeito de identidade de gênero trans, que avançamos para o próximo capítulo, pois também são esses sujeitos de corpos nesse entremeio, desobedientes, que via língua(gem) provocam consideráveis transformações por suas práticas performativas.

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CAPÍTULO 03 DA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES TRANSVERSAIS

ara além de apenas explanar acerca do conceito de gênero, faz-se grandemente importante refletir sobre os motivos que o faz ser tão estudado e receber tanta importância na academia nos últimos anos. Em outras palavras, faz-se necessário compreender a importância de se discutir questões relativas a gênero, e especificamente relativas a transgênero. É através da identidade de gênero, assim como das questões de sexualidade como um todo, que configuramos a subjetividade diante do meio social.Nesse sentido, saio em defesa da ideia de que o sujeito não vem para o mundo já predeterminado, mas que se constrói ao longo de sua vida em relação dialógica de interpelações, sendo interpelado, e interpelando, nas mais diversas esferas sociais, tais como família, escola, igreja, entre outras, aprendendo, por exemplo, o que é ser mulher, o que é ser homem, aprendendo como mulheres e homens devem se comportar, quais os lugares e papeis sociais cada qual deve desenvolver, como devem se portar nas relações entre si, entre outras muitas questões. Esse processo de formação, de construção do sujeito, está diretamente ligado aos valores vigentes em sociedade, capacitando-os para atribuir juízo de valores, mensurando o bom e o ruim, o correto e o incorreto, o positivo e o negativo. Assim, faz- se urgente que os sujeitos estejam atentos em não reforçar como verdade a ideia de que distintas características são naturais, pois a naturalização torna-se bastante problemática, principalmente quando é buscada para justificar discursos e ações violentas e preconceituosas, tais como as apresentadas contra sujeitostrans, na Introdução. Assim, estudar gênero é buscar problematizar, no sentido de conhecer, questões que afetam diretamente o nosso convívio, nossas relações no mundo, buscando a desconstrução, quando necessária, visando o conforto e o bem-estar coletivo, respeitando a existência das diversas formas de ser mulher ou homem, bem como das muitas possibilidades de expressões de feminilidades e masculinidades, ou mesmo a possibilidade de expressão de quaisquer outros gêneros alheios ao sistema binário, dicotômico e normatizado. Logo, como argumenta Louro (1997), as palavras têm/fazem história. Dessa maneira, o conceito/termo “gênero” está diretamente ligado à história de luta do movimento feminista. Essa luta teve início mais visível por volta da metade do século XIX, por todo o Ocidente, e perdura até os dias atuais em todo o globo, mantendo o

40 clima de reação contraria às opressões vividas pelas mulheres. O feminismo enquanto forma de movimento socialmente organizado teve a disseminação dos ideais de luta feita de forma coletiva e individual.Assim, o movimento ganhou força e visibilidade por todo o globo terrestre. Sua luta é em prol da busca por direitos das mulheres e se mantém até hoje em manifestação contrária à discriminação e à submissão do feminino. Em síntese, a busca pelo direito ao sufrágio feminino, entre outros direitos sociais e econômicosé marcada como constituinte de seu primeiro momento, sua primeira onda.Emcontinuidade, por volta da década de 1960, deu-se início a segunda onda, em que as reivindicações avançaram para direito ao corpo e ao prazer, e, porfim, a terceira onda forjou e problematizou o conceito de gênero,seguindo a noção de que este não é estanque, não é definidor natural dos modos de se portar dos sujeitos. A esse respeito, podemos argumentar que debates relativos a gênero têm ganhado terreno nos últimos anos, principalmente através de discursos que buscam definir os comportamentos de mulheres e homensembasados no saber de perspectiva essencialista/biológico, comumente encontrados em livros escolares, revistas, jornais, TV, entre outros meios de difusão de ideias. Logicamente, esse discurso busca ser validado por autoridade da biociência, trazendo à cena as condições hormonais para justificar as diferenças não apenas físicas, mas também emocionais e comportamentais entre mulheres e homens, justificando assim os comportamentos de forma naturalizada.Essa compreensão torna cada vez mais difícil a possibilidade de perceber os acordos feitos nas relações estabelecidas entre sexo e sujeito, no sentido de que, antes mesmo de nascer, em conformidade com a genitália apresentada por aquele corpo, é criado todo um imaginário preconcebido para designar a subjetividade, os modos de ser, de viver para esse corpo. Com isso, não é difícil perceber na sociedade ocidental contemporaneamente,no imaginário, a crença de que está na biologia as respostas para as personalidades e padrões de comportamentos distintos entre as mulheres e os homens. No que diz respeito ao gênero, aqui é entendido que a biologia não desenvolve um papel determinante dos comportamentos, mas que este é proveniente do convívio com a vida em sociedade, no qual através das interações os sujeitos aprendem e constroem seu gênero; é através das interaçõesque os sujeitos constroem significados para o ser mulher em contraposição ao que ser homem, por exemplo.O que aqui me interessa trazer para contribuir com esse estudo é a noção de gênero enquanto “performatividade”, conforme Butler (2003), para dialogar como os estudos da

41 expressão de gênero trans, em abordagem por Bento (2008), visando compreender a construção do sujeito desse estudo. É a partir da noção butleriana de gênero performativo que se faz possível entendermos gênero enquanto construção discursiva, de modo que o gênero assegura sua existência, bem como as formas de expressões, mediante seu pronunciamento, no sentido de que nossa fala ordinária, toda ela, se configura enquanto ato performativo, ou seja, se constitui uma ação via língua(gem), que por hora nos aproximamos e por outra nos afastamos dos sentidos propostos. Dessa forma, performatividade não se constitui enquanto um mero ato linguístico em si, pois este só pode ser sustentado pela autoridade moral e vinculante, e esse caráter vinculante acontece na citação, que por sua vez só tem força pela repetição.A esse respeito, é importante lembrar que o sujeito que desenvolve o ato performativo de fala está imerso em uma dada cultura, que segue umscript regulamentador. Em um exemplo prático, quando em nossa sociedade, que segue um script cultural pautado na heterossexualidade, uma médica ao fazer o exame de ultrassom alega que aquele feto “é uma menina”, todo um imaginário é construído para esse corpo mesmo antes dele nascer. Contudo, isso só é possível pela autoridade moral da médicae seu discurso biologizado para classificar a genitália daquele feto pertencente ao sexo feminino.Diante disso, a vinculação está na citação que repete a ideia de que aquele feto sendo uma menina logo segue a relação sexo, gênero e desejo estipulado para aquele corpo no feminino.Com isso, todo o universo começa a se construir para aquele feto, o seu nome, os brinquedos e as vestes.Todo o universo desse sujeito será pautado nessa relação. Porém, ogênero entendido como performativo permite o estranhamento. Desse modo, a construção do gênero para esse corpo não necessariamente é obrigada a se filiar ao script cultural heteronormativo,podendo, assim, filiar-se ascripts dissidentes, construindo seus modos de ser e de viver de forma outra, diferente do modelo heterossexual imposto, fazendo com que aquele ato performativo de fala da médica, por exemplo, não logre êxito (LÍVIA E HALL, 2010 [1997]; SANTOS FILHO, 2015d). Com isso, pensando no conceito de transexualidade, com Bento (2008), enquanto experiência de gênero fruto da variaçãoda categoria gênero, essa se dá em conflito com o modelo compulsório, hegemônico, binário, dicotômico e heteronormativo, dado enquanto natural, biológico, único e verdadeiro. Configura-se, assim, uma variação já prevista, dado o teor falseado de única expressão possível.

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Entendemos também que o gênero sempre se dá de modo relacional e interseccional/transversal, no sentido de que o masculino e o feminino se constroem relacionalmente, em caráter de simultaneidade, de modo que este “relacional” não deve ser entendido como o homem se construindo em oposição a mulher, como sendo totalmente assimétricos, mas sim em um “movimento complexificador do relacional” (BENTO, 2012, p. 2658), relacionando-se de modo transversal no que tange às outras identidades que se inter-relacionam na totalidade da construção do sujeito. Partimos dessa compreensão de gênero, poisesse entendimento interessa diretamente à minha pesquisa, para que seja possível de fato perceber como o corpo se constrói “transgênero” em diálogo com a cultura de gênero no Sertão/Nordeste e com a noção de raça, focalizando o negro imerso na construção brasileira que ainda vivencia o saldo das políticas eugenistas.

3.1 Transgênero

Aqui, os termos“trans” e “transgênero” são assumidos como um “guarda-chuva” que abarca as identidades de gênero que seguem em desarmonia, em conflito, com o referencial binário heterossexual imposto, no sentido de que os sujeitos em suas construções se forjam não se pautando na obrigatoriedade de se construir dentro de uma linearidade imposta para a relação do gênero com cromossomos, tal como “mulher xx” ou “homem xy”, podendo se construir no mundo dentro das ainda não mensuradas possibilidades de variação da construção de gênero, tais como “mulher xy”, ou mulher trans, “homem xx”, ou homem trans, “travesti”, “mulheres xx masculinizadas”, “homens xyfeminilizados”, entre tantas outras.Berenice Bento, em seu livro “O que é transexualidade”, compreende que "a transexualidade é uma experiência identitária, caracterizada pelo conflito com as normas de gênero" (BENTO, 2008, p. 18). A socióloga,acerca das questões de construção dessa categoria identitária, evidencia que estudos históricos mostram que o trânsito entre os gêneros está presente em culturas diversas e em distintos momentos históricos. Argumentaque, entretanto,o tratamento patológico pelas ciências psi, como a psicanálise, a psicologia e a psiquiatria, colocaram a transexualidade no campo de doenças mentais,prejudicando bastante o olhar sobre os corpos dissidentes de gênero, a exemplo de pessoas trans. Segundo informa, o discurso que patologiza as pessoas em trânsito de gênero data do século XX, vindo até junho de 2018, momento no qual a Organização Mundial de Saúde

43 admitiupara a Classificação Internacional de Doenças (CID) 11 a inconsistência relativa na relação direta entre transição de gênero e doença de transtorno mental. Logo, quanto a essa realidade, em diálogo com Butler (2003; 2011),entendemos que é preciso garantir a compreensão de que o trânsito entre os gêneros não deve ser analisado por uma perspectiva de “presenteísmo”, que se configura na ação de universalização de uma série de pressuposições, desprezando questões históricas ou mesmo culturais, seguindo uma linearidade para a possibilidade de existência. A esse respeito, Bento (2016)16 trava discussão acerca das lutas do movimento militante relativo à despatologização das identidades trans, problematizando também a expressão “disforia de gênero” adotada pela comunidade médica em substituição a “transtorno de identidade de gênero”, que, segundo a pesquisadora, continua a perpetuar a classificação moral de cunho religioso na definição dos sentidos de masculino e feminino. Com esse entendimento de que as identidades trans são ainda categorizadas enquanto patologia, muitas pessoas trans criticam o caráter paternalista do poder médico, que segue a lógica heteronormativa para criar classificação sobre seus corpos17. Dessa forma, o condicionamento das “experiências trans” enquanto doença mental foi na verdade uma forma de aprisionar o sujeito na condição existencial fonte de seu próprio conflito, bem como também se configura em um movimento desenvolvido pelo “centro”18no sentido de acolher a margem para melhor excluí-la, no sentido de que ao mesmo tempo que patologiza essa expressão de gênero, também afirma a referência hétero enquanto única e verdadeira. Bento (2006; 2008) ainda salienta que por muito tempo os saberes médicos encararam que a reivindicação por parte de pessoas trans de adequação por meio de intervenção cirúrgica ao corpo era a expressão do desejo de ajuste do corpo, no sentido de uma unidade de gênero e sexualidade, no entendimento de que uma mulher trans, por exemplo, reivindica uma vagina por genitália para que esta possa receber um pênis e por sua vez um homem trans reivindica o falo por genitália para então ter sua masculinidade garantida a partir da existência de um pênis em seu corpo. A disseminação desse saber apoiado na autoridade médica ainda hoje cultiva um mundo acostumado com a relação

16Em “Gênero e Direitos Humanos”, de Berenice Bento. 17Em Ariel Modara, ativista trans, SER TRANS NÃO É MAIS DOENÇA (CID 11). 18 A relação de “centro” e “margem” é no sentido de um centro hegemônico, tomado enquanto modelo referencial a ser seguido, nesse caso o modelo heterossexual. Em relação a esse, as margens se configuram em tudo o que está fora, que não se encaixa, não segue esse modelo, que nesse caso são todas as outras identidades, expressões de gênero, sexualidades e desejos que nãotêm o modelo hétero enquanto modelo referencial válido.

44 estabelecida entre sexo, gênero e desejo de forma linear, partindo de uma perspectiva determinista, se confundindo diante da ousadia relativa à reivindicação de identidade em uma posição de desobediente a esta relação. Essa visão equivocada relativa aos corpos transdialoga com a concepção de gênero enquanto fator biológico, tendo à genitália por signo chave demarcador e que estabelece papéis de sexo específicos e naturais, causando confusão entre as concepções de sexo, gênero, desejo e sexualidade, como pode ser observado na Figura 06, a seguir, em que a revista Veja traz como matéria de capa uma discussão sobre filhos trans, em que em seu subtítulo alega que essas crianças “não se identificam com seu sexo biológico”.

Figura 05: Capa de revista Fonte: Veja, em 18 de outubro de 2017.

A revista Vejafala da transexualidade não a referenciando ao gênero, mas sim ao sexo. Refere-se a “meninas que não se sentem adequadas com seu corpo feminino” e

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“meninos que não se reconhecem com seu corpo masculino”, alegando que o sujeito “nasceu menino”, para falar de Caroline de 6 (seis) anos.Essa e outras marcações denotam que o discurso da Veja para a concepção de gênero está atrelado ao conceito da lógica estruturalista, que segue de acordo com a lógica de gênero inato, dado ao nascimento, não separado da noção de sexo. Diferentemente da ideia essencialista que norteia o referencial da revista, e o referencial médico abordado anteriormente, Bento (2008) explica que a transexualidade é uma expressão identitária que está relacionada de forma direta à capacidade dos sujeitos de construírem novas possibilidades de sentido sobre feminilidades e masculinidades, dando-se no estranhamento com a norma previamente imposta para a construção de gênero, a receita, a fórmula regrada e normal que a heteronormatividade qualifica de natural. É um processo de inversão, diante do qual essas experiências, não raro, são barradas, castradas, no sentido de serem impedidas, e apontadas como anormais, por seguirem a construção em contradição ao que é considerado apropriado para o sexo do sujeito.É a performatização de um corpodissidente. Dessa forma, a genitália torna-se obstáculo, um entrave real para os trânsitos de gênero. Assim sendo, a chamada na capa da revista “se equivoca”, pois a não identificação não necessariamente é com a genitália, ou “sexo biológico”, como evidenciado, mas sim com as “expressões de gênero”, e vivências, impostas referenciadas na genitália e imersas dentro dos limites das convenções e normas heterocentradas(BENTO, 2008.) A existência transrevela as negociações que se estabelecem aos gêneros na tentativa de uma estabilidade para eles, ao mesmo tempo em que quebra, “tomba”, a verdade imposta relativa à relação que busca sistematizar-se em uma lógica inteligível de esquema sexo-gênero-desejo contido nos limites do sistema binário imposto ao corpo sexuado. Sendo assim, está na própria existência da experiência trans o “abalo” da estrutura de valores relativos a gênero e a sexualidade (BENTO, 2006; 2008). Borba (2016)19 alega que o problema do gênero da pessoa trans não está nela, e sim nos outros, estando fora dela. Isso significa dizer que o real problema enfrentado pelas pessoas trans, devido à construção de seu gênero em dissidências ao modelo referencial, está exatamente na existência desse modelo referencial, desse modelo pronto, visto que a variação na construção do gênero é o caráter natural e a imposição de um modelo se faz

19Em O (Des)aprendizado de si.

46 arbitrário e antinatural e inverte a lógica do natural, violentando esses corpos como uma tentativa de erradicar a anomalia social. Fechando essa parte da reflexão, retomo o pensamento de gênero pensado em interseccionalidade, considerando a pluralidade e complexidade do caráter da composição do sujeito que se dá em possibilidades (BUTLER, 2003). Assim,ampliamos a discussão referente à cultura de gênero, dando atenção ao caráter de sua construção na cultura do sertão/Nordeste, que se faz rigidamente construída, inventada e inundada de masculinidade (ALBUQUERQUE JR. 2013), de modo a possibilitar e alcançar a compreensão do meu sujeito de pesquisa.

3.2 A cultura de gênero no Sertão/Nordeste: o fator masculinidade

Para pensar a respeito da performatização na composição da construção do gênero do sujeito dessa pesquisa, que vive no sertão alagoano, relembro uma enunciação de Euclides da Cunha, imortalizada em sua obra, “Os Sertões”, na qual constrói o sujeito sertanejo/nordestino enquanto prioritariamente forte. Diz que “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Discursos como esse forjam o imaginário relativo aos sujeitos sertanejos e nos possibilita trazer à tona questões para melhor compreender como se constrói esse sujeito em sua transgressão de gênero, que o permite transpassar as dimensões estabelecidas pela hegemônica normatividade heterocentrada, relativamenteàs possibilidades de ser, estar e viver no mundo. Albuquerque Jr. (2013) em sua obra “Nordestino: a invenção do falo” problematiza os sentidos da noção de sujeito nessa construção, que é dura, forjada na força, na resistência, pela virilidade, na violência, para a idealização do sujeito sertanejo, iniciada por razões políticas e econômicas de uma elite heterocrata, na década de 1920, uma década após o início da construção e demarcação geográfica da região Nordeste, que nasceu das relações de interesse em permanência do poder e privilégios de políticosgovernantes dos estados situados nos territórios compreendidos de Alagoas ao Ceará. Segundo Albuquerque Junior (2013), a primeira referência com a intenção de nomear o povo que vivia naquela nova região, que antes era o Norte, é feita no Diário de Pernambuco, em 1919, em resposta do então deputado do Ceará, Ildefonso Albano, para o projeto do também então deputado Eloy de Souza, do Rio Grande do Norte, solicitando um financiamento para a irrigação das terras daquela região.

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Para ajudar a pensar a construção desse sujeito, Albuquerque Junior (2013) explica que a literatura de maior consumo das classes menos abastadas na região Nordeste era o cordel, e que nesse gênero literário a identidade nordestina só inicia a ser forjada no final da década de 1930, com a primeira referência ao termo nordestino, no ano de 1937, período que coincide com o crescimento do movimento de migração para a região Sul do país, mas só ficando recorrente duas décadas mais tarde, convivendo com outros termos muito mais usuais no discurso desse gênero discursivo, como “brejeiro”, “matuto”, “sertanejo”, entre outros, em referência às pessoas dessa localidade. A figura do nordestino/sertanejo, assim como também o recorte forjado para a região Nordeste, é proveniente de uma série de práticas regionalistas forjadas por algumas figuras da elite da região Norte do país por volta do final do século XX. Assim, o tipo nordestino/sertanejo começa a ser forjado em uma militância de exaltação regionalista, em que se enaltece um passado que estava desaparecendo, um passado de características patriarcais que estava sendo submetido por uma sociedade que Albuquerque Jr. (2013)diz ser “feminizada”, fazendo assim referência ao imaginário de brandura atribuído ao feminino. Nesse sentido a imagem do sujeito forjado para esta região deveria andar em sentido oposto ao que estava sendo colocado em alusão ao sujeito moderno e dos grandes centros urbanos da região Sul, com sua vida delicada, artificialidade, histeria, superficialidade. Dessa forma contraposta, o sujeito nordestino é construído enquanto

Um homem de costumes conservadores, rústico, áspero, masculino. O Nordestino é definido como um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em crise, um ser viril capaz de retirar sua região da situação e passividade subserviência em que se encontrava (ALBUQUERQUE JR., 2013, p. 150). A figura desse sujeito é pensada no sentido de forjar um ser capaz de mudar o curso histórico rumado desde o começo do século, sendo um ser resistente às transformações históricas que estavam sendo compreendidas como “feminização”, que culminaria no declínio político, econômico, cultural e social da região. Assim, esse sujeito poderoso resgataria a antiga posição de predominância econômica e política privilegiada para essa região do país, de modo a valorizar um passado em que o patriarcalismo servia não apenas enquanto guia familiar, ou de relações entre os sexos, mas, para além, enquanto norteador da ordem social.

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Para esse resgate, é que se pensa no sujeito intensamente forjado em uma masculinidade inundada de virilidade, firmeza, força, bravura, brutalidade, dureza, fibra, conservadorismo, um sujeito que não se permita à“feminização” que teria vindo junto com a modernidade, a industrialização das cidades, trazidas com o estabelecimento da República. Esse deve ser um macho por excelência, capaz de retomar, mesmo que à força, e preservar também à força, a potência antes tida, reagindo à“penetração” de transformações para os interesses alheios. Assim, então, se dá a construção do nordestino, do sertanejo, um sujeito símbolo desse resgate, aquele capaz de suportar e superar o declínio das novas gerações da elite, visto como “feminização”.Essa questão deixa bem evidente a relação direta que se faz entre masculinidade e poder, de modo que a feminização do espaço regional, de acordo com esse discurso, significa a perda de poder, a impotência e a submissão. Dessa forma, a construção deste sujeito é direcionada para a configuração de uma “reação viril”, contrária à passivização da região e da elite. O forjar dessa personalidade é desenvolvida pelo discurso da elite regional, visando defender seus interesses pessoais, fazendo com que essa nova construção seja atravessada por diferentes matrizes e atraia estratégias políticas singulares entre si. Nessa construção, específicas figuras típicas regionais que a antecederam devem compor essa nova personagem, tais como o coronel, o matuto, o senhor de engenho, o cangaceiro, o vaqueiro, o jagunço, o retirante, o caboclo, entre outras mais. Essas demais figuras vão ajudar a compor a imagem dessa nova figura, o sertanejo, o nordestino. Devido ao fato de várias dessas identidades terem sido forjadas ao longo do século XX, não seria improvável a existência de influências de concepções sócio darwinista, naturalista, positivista.Na realidade, essas influências são bem marcantes nos traços dessas identidades. Essa face do nordestino é atravessada por discursos com diferentes pensamentos, porém vinculados ao discurso naturalista, onde obteremos enunciados e temas confluentes e vinculados à formação discursiva nacional e popular, formando assim essa figura oscilantemente no entremeio de discursos naturalista e culturalista. Dos diversos discursos utilizados na construção do ser nordestino/sertanejo, segundo Albuquerque Jr. (2013), estão presentes características antropogeográficas ou mesmo biogeográficas, para pensar esse sujeito com características da própria natureza em relação direta, como se estas características igualassem sua biologia em relação à natureza e à geografia local. O evidente exemplo dessa personificação, seja por motivos

49 históricos-cultural, dado ao exagero, temos para esse sujeito a definição como o “cabra da peste” ou “cabra macho”, em comparação ao próprio animal que se adaptou com facilidade à natureza e ao clima um tanto inóspitos, aquele que sobrevive à escassez hídrica e à carência de recursos naturais e em exaltação ao masculino, pois não é qualquer cabra, é “o cabra macho”, o “cabra” que sobrevive, que supera a peste, apresentando para a construção identitária desse sujeito a valentia, a presença de fibra, a virilidade, a dureza, para sobreviver; um ser uno com a natureza local, um ser biogeográfico. Nesse sentido, a raça não seria o determinante social, mas sim um fator de adaptação do sujeito para com aquela natureza, de modo que ela própria seja capaz de transformar as características primárias daquele grupo étnico, de modo a fortalecer ou devastar com a adaptação ou ausência dela. O nordestino/sertanejo foi construído enquanto vigoroso, que mesmo sem incentivo e recursos, adapta-se para lutar por sua sobrevivência, um ser de identidade forjada na luta contra a aridez da terra, a seca, na e contra a severidade da natureza que castiga e a desatenção política por parte dos governantes, como bem esclarece Albuquerque Jr. (2013), ao dizer que

Fenômenos como o cangaço e o messianismo seriam produto da psicologia particular de uma plebe rural à qual faltava o auxílio dos governantes no sentido de civilizar, ou seja, de ter as condições técnicas de dominar e vencer a natureza, dispor de educação suficiente para compreender racionalmente os mistérios da natureza, abandonado à explicações místicas (ALBUQUERQUE JR., 2013, p. 168).

A construção da força pertencente a essa identidade para alcançar com maior êxito essa adaptação perfeitamente sintonizada com a natureza, de modo que evolua alcançando unidade, como características primárias e essenciais desse sujeito, está pautada no fato da mestiçagem desse sujeito, que, ao invés de produzir um ser degenerado, como temia alguns discursos de perspectiva evolucionista, na realidade a mestiçagem possibilitou uma raça possível de natural adaptação, moldando um ser rústico, feroz, forte, viril, ríspido, bruto, não raro autoritário, impiedoso e cruel, tal qual o meio natural local. Atenho-me aqui a essas características mais embrutecidas do primeiro momento do discurso regionalista, no que se refere à construção desse sujeito nordestino, com o objetivo de melhor evidenciar a construção no meio cultural do sujeito desse estudo, pois

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Fica patente que no momento de pensar o nordestino como um homem forte e resistente, um homem heroico na sua luta contra natureza, o discurso regionalista nordestino privilegia a área do sertão e o sertanejo como exemplos deste embate entre o homem e a natureza e da formação de um tipo regional adaptado a esta vida difícil (ALBUQUERQUE JR., 2013. p. 171). Dando seguimento a essa relação com a natureza e a construção da sua masculinidade rígida e estanque, esse sujeito passa a ser descrito enquanto homem de fibra, assim como as do vegetal algodão mocó, típico da região, na época um dos grandes responsáveis pela riqueza regional: um homem capaz de se adaptar assim como a cabra, vivendo em terreno pedregoso, de solo árido, que sobrevive às pestes, entre outras dificuldades naturais, saldo de grandes hiatos de estiagem, convivendo em meio às mais precárias condições. A utilização do vocábulo “homem” para falar desse sujeito aqui não é gratuita, ou não intencionada, pois a própria analogia, antes mencionada, da existência do feminino em comparação ao declínio, dá-nos a dimensão da intensidade da campanha com propósito de forjar a identidade desse sujeito apenas pela masculinidade. Assim, a figura do nordestino em suas bases é desenhada e direcionada em relação direta ao masculino, e essa característica atinge de frente, de forma certeira, o feminino, como a própria analogia de “feminização social”.De acordo com essa concepção, o voltar-se para questões que envolva esse universo feminino é concebido como perigoso, negatividade, indesejável.Assim sendo, ocorre esse ataque direto na tentativa de apagamento das características relacionadas à expressão feminina. Para essa realidade, as mulheres seriam invisibilidades/apagadas ou secundarizadas nas narrativas, ou raramente quando ganhasse destaque seriam construídas majoritariamente nesse ideal de masculino, ainda objetivando a construção identitária desse sujeito macho por natureza, pois

Só um macho poderia defrontar-se com uma natureza tão hostil, só com uma exagerada dose de virilidade se conseguiria sobreviver numa natureza tão adusta, ressequida, áspera, árida, rude; traços que se identificam com sua própria masculinidade. Por isso, até uma mulher sertaneja seria masculinizada, pelo contato embrutecedor com um mundo hostil, que exigia valentia, destemor e resistência. Só os fortes venceriam uma terra assim. A masculinidade nordestina é forjada na luta incessante contra o meio em que apenas os mais potentes, os mais “membrudos”, os mais rígidos, homens que nunca se vergavam, nunca amolecer um diante de qualquer dificuldade, conseguiam vencer. Os homens fracos, débeis delicados, impotentes, frágeis, afeminados, não teriam lugar numa terra assim, não sobreviveriam. Ser macho era, pois, a própria natureza do nordestino. Seria no espelhamento do mundo natural que esses machos hiperbólicos se haviam formado. Se a masculinidade representa o

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espírito guerreiro, da luta, o nordestino surgia de uma luta muito particular, uma luta que o singularizava, a luta contra as intempéries da natureza, a luta contra natureza feroz(ALBUQUERQUE JR., 2013, p. 172).

O empenho de construção desse modelo de masculinidade visa produzir uma masculinidade como ainda hoje é almejada, uma masculinidade que preza pela incapacidade dosujeito importar-se com atos violentos e manter-se distante da expressão do feminino, referenciada pela capacidade de expressar ou interessar-se por questões ligadas às emoções. Esse modelo ainda hoje reverbera em nossa sociedade, o da construção do sujeito nordestino forjado como sendo verdadeiro, natural, além de oposição total, também em depreciação e repulsa à toda e qualquer característica que remeta ao imaginário do feminino, torna-se o principal fator de precarização da existência do feminino no contexto das relações de gênero, ainda mais nos tratos para com os sujeitos dissidentes de gênero, que trilhem o caminho inverso ao da construção de masculinidade hegemônica heterocentradaimposta ao corpo, referenciada em sua morfologia inata, sua genitália. Nesse sentido, o sujeito transse constitui em relação inversamente proporcional ao que é tido como verdade evalidade existencial de seu corpo, e em relação diretamente proporcional à precariedade. Ou seja, para o sujeito que possua a morfologia gestacional sócio-culturalmente convencionada masculina, de acordo com a heteronormatividade, tendo o pênis por genitália, e que em sua construção para o seu gênero dedique-se ao afastamento desse modelo masculino bruto, aproximando-se das construções relacionadas ao estilo de manifestação do feminino, quanto maior for essa movimentação em afastamento do masculino e proximidade ao femininomaior também será a precariedade existencial para seu corpo; menor será a validade de sua existência, estabelecendo então vulnerabilidade. Assim, os corpos que vivem experiências trans se posicionam na contramão desse modelo construído de masculinidade heterocentrada e imersa em um sistema binário, normativo e compulsório. O movimento de atribuição, definição de verdade, ao que venha a ser homem ou ser mulher, reflete diretamente e faz emergir as definições do que é a verdadeira pessoa trans.Dessa forma, a resposta para o que é a transexualidade ou transgeneridade pode ser encontrada nas convenções hegemônicas para os gêneros. Pessoas trans não são as únicas a romperem os limites estabelecidos socialmente para os gêneros, também o fazem as dragqueens, os dragskings, por exemplo. Desse modo,a existência desses sujeitos questiona a relação pré-estabelecida enquanto verdade absoluta da binaridade,

52 no que se refere a esse sistema que estabelece como modelo único a relação genitália- gênero. Para tanto, pode ser definida as expressões trans, a transexualidade, bem como a travestilidade ou mesmo transgênero, enquanto expressões identitárias divergentes às normas de gênero fundamentadas em idealizações de heterossexualidade e binaridade morfológica.Assim, as normas sobre os gêneros definem o que socialmente se considera no campo do "real", sendo este um delimitador ao que se pode conferir humanidade ou mesmo precariedade aos corpos (BENTO, 2008).

3.3. Raça

Outro discurso que atravessa a base de construção do sujeito de pesquisa certamente é o eugênico, discurso implementado na tentativa de elaboração identitária para o Brasil enquanto nação independente de Portugal. Esse é um discurso de base evolutiva, que acreditava e defendia que a constituição biológica do homem, por ser mais forte, prevaleceria na construção da raça. Entre outras características, o que pode ser percebido de similaridade entre a construção do nordestino e do próprio Nordeste e o projeto de construção de nação brasileira é o apego ao passado em seu ideal intelectual político e econômico e o temor às mudanças culturais que reescrevem a ordem social, desejando, dessa maneira, a permanência do poder, buscando para isso o autoritarismo, cultivando as ideias ligadas ao conservadorismo político para permanência da hierarquia de poder e privilégios. O sociólogo Richard Miskolci, em seu livro “O desejo da nação” resgata a questão da biopolítica como característica do planejamento e agregação de saberes relativos às práticas de atuação sobre a população nacional, a vida e os corpos. Iniciada durante a transição de um regime político de monarquia escravocrata para uma república de trabalho livre, que se dá diante do medo de revoltas negras, que há muito já vinham acontecendo, devido ao descontentamento com a situação de escravidão, e ainda, potencializado pelo pavor da influência pelo levante emancipatório negro ocorrido em São Domingos, em 1804, e a ilusão mantida pela elite de embranquecimento populacional. Dessa forma, a construção do sujeito nordestino, assim como a do próprio Nordeste, é herdeira de políticas eugênicas e higienistas, políticas de branquitude, que, para alcançar o sentimento de êxito social político e econômico, patrocina com incentivo público, visando embranquecer a raça, a vinda de aproximadamente 4.000.000

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(quatro milhões) de estrangeiros europeus para o Brasil, com promessas de trabalhos e direitos à terra, em um período de 30 anos.Em comparação a esse número populacional, o quantitativo de pessoas negras sequestradas em diversos países do continente africano, com “direito” a serem escravizados em condições miseráveis e desumanas, é quase o mesmo, contudo em um período mais longo de quase três séculos, relegados a uma maior precariedade das margens, por agora não mais estarem sob a responsabilidade dos senhores escravistas. Essa população já não mais estava em condição de escravizada e, portanto, abandonada a própria sorte, pois

(...) o ideal de homogeneidade racial que pautava a reclamação do caráter hegemônico do nosso povo. Segundo a interpretação de nossa elite econômica, nossos políticos e intelectuais, nação era sinônimo de homogeneidade racial e de harmonia política ou, melhor dizendo, de branquitude e civilização (MISKOLCI, 2012, p. 30).

Esse pensamento eugênico que relacionava a prosperidade da evolução social diretamente ligada à evolução biológica, em que se considerava a raça branca superior à raça negra, ou qualquer outra, e que por isso em ligação direta com o sujeito de sexo masculino, por também ter força de sobreposição biológica em relação ao feminino, justifica a campanha de miscigenação para o embranquecimento e construção próspera da nação após a abolição da escravatura em 1888, pautada no homem branco, e mais tarde na invenção do Nordeste e em consequência a posteriori na invenção desse sujeito nordestino. Outros discursos ligados às ciências biológicas contribuíram para forjar os corpos negros do passado, entranhados nas bases estruturais da nossa cultura, forjada pelo processo histórico racista. Esses discursos perpetuam ainda hoje a construção do imaginário de um corpo negro.Quanto a isso, Damasceno (2007)argumenta que

(...) foi o discurso médico que construiu o conceito de negritude. O corpo feminino negro foi pensado como anormal, desviante em relação ao corpo masculino europeu. Nele, se articulavam categorias de raça e sexo que universalizadas acabaram por criar o estereótipo de hipersexualidade da mulher negra que impera até hoje e que foi estendida aos homens negros em geral. Noções de que o tamanho dos órgãos sexuais (...) e das nádegas hotentotes eram, por fim, naturais a todas as mulheres negras, acabaram por criar o “mito científico” de que este tamanho era diretamente proporcional ao seu apetite sexual, o que fazia das negras mulheres devassas que não tinham domínio sobre o seu corpo, pura natureza (DAMASCENO, 2007).

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Assim sendo, o caráter da hipersexualização que constrói o imaginário de corpos negros pode aqui nos ajudar a refletir enquanto um outro fator de construção de masculinidade e feminilidade, ou melhor, de hiper feminilidade e hiper masculinidade, tendo a heteronormatividade por referencial para a construção de um corpo negro generificado, no sentido de que por se constituir um corpo negro, o imaginárioque é forjado na construção desse corpo, é o do “negão pegador”e o da “mulata fogosa”. Dessa forma, seguindo por esse raciocínio (“lógico”), um corpo negro que se construa tranversalizado por um gênero dissidente, constrói-se duplamente em precariedade. Por outro lado, observando a pesquisa produzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), e divulgada no próprio site do IPEA, intitulada “Atlas da violência”, de 2018, pode-se perceber um dado importantíssimo que pode nos forçar a voltar nosso olhar sobre uma outra ótica igualmente cruel, se não mais do que a já apresentada. A pesquisa nos revelaque nos últimos 10 (dez) anos, mesmo com a implantação da Lei 11.340 do ano de 2006 – que criminaliza violência doméstica e familiar contra mulheres – enquanto a taxa de homicídios entre mulheres não negras – que engloba indígenas, amarelas e brancas – caia 8% (oito por cento), crescia brutamente para 15% (quinze por cento) o número de registros na taxa de homicídios cometidos contra mulheres negras, ocorrendo assim uma diferença de quase 71% (setenta e um por cento) na taxa de homicídios no que se refere à junção de vários grupos étnicos raciais, ocupando um patamar inferior em relação esses dados, e uma só categoria étnico racial em disparado no topo dessa lista. A existência dessa discrepância exorbitante nos dados, em que uma maioria cai e uma minoria sobe, é sintomático. Trago os dados dessa realidade para ajudar a pautar o outro lado dessa mesma moeda, que é a construção do corpo da mulher negra e o lugar social a que está sendo relegado, para que seja aqui lançada a luz na reflexão também sobre uma outra vertente. Essa outra face que aqui quero expor é a também cruel hiposexualização desse corpo negro feminino que proporciona a solidão da mulher negra. Tanto quanto a questão da hipersexualização do corpo negro, que colocam as mulheres negras com corpos que se encaixam nas características aceitáveis pela estética colocada pela hegemonia enquanto padrão, por exemplo, na qualidade de mulata, em que seu corpo, e tão somente seu corpo, é desejado, reduzindo este corpo a uma vagina, também ocorre a questão do desamor, do menosprezo pelo corpo de mulher negra, que atinge e ainda mais as que não alcançam a expectativa aguardada para o corpo da

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“mulata”, o que as colocam em maior vulnerabilidade, pois, para além do fato da hipersexualização do corpo da mulher negra a colocar em evidencia – e é uma evidencia que deve ser problematizada – tanto a hiper quanto a hiposexualização do corpo negro femininocolocam essas mulheres em lugar do serviço, lugar subalterno, em que seu corpo está somente para a servidão braçal e/ou sexual para todos os outros acima dela nessa pirâmide social, em que esse sujeito ocupa a base.Nunca fugindo a regra no que diz respeito a esse imaginário, a construção social do papel da mulher negra se compõe em um não lugar, o da exploração e o do abandono. Souza (2008) em sua dissertação de mestrado intitulada “A solidão da mulher negra, sua subjetividade e seu preterimento pelo homem negro na cidade de São Paulo”, ajuda-nos a definir essa solidão sentida pelas mulheres negras. Diz que essa solidão não é apenas pela sensação física de estar só, pois, para além dessa questão tangencial, perpassa pelo plano emocional. Relata casos de mulheres negras com companheiros negros que se sentem solitárias.Expõe ainda que este sentimento de solidão é um saldo da diáspora pelo sequestro, tráfico e escravização negra, quando coloca que

(...) ser destituída de seus meios de produção e de seu próprio corpo enquanto transformador de matéria-prima, de seus sentimentos e de seus afetos. Esse processo, que se configura em uma diáspora negra imposta, denota que tal ocorrência, dolorosa e traumática, afetou o caráter das relações sociais desse grupo social no Brasil e do seu processo de identidade cultural.(SOUZA, 2008, p. 60.)

O lugar social construído para a mulher negra ocupar se faz um não lugar, pois tanto o espaço da erotização quanto o da negação de seu corpo enquanto desejável, situam-na em subalternidade e em negação e exploração de seus corpos, não gratuitamente, pois na ausência também se encontra a ideologia, nesse caso a intenção de permanência de lugar de dominação pela classe hegemônica, pois, como bem discute Moutinho (2004), foram sobre os corpos negros, de mulheres negras com maior ênfase, que todo o processo durante e pós escravizaçãocriaram sólidas e homéricas ações que compõem as engrenagens da “maquina colonial”,que se personifica na existência macho branco enquanto colonizador no topo dessa hierarquia, e a mulher negra colonizada, na base dessa pirâmide de poder. De fato, não existe um modelo único de construção das identidades de gênero, muito menos para os gêneros trans.Contudo, a característica da autonomeação, enquanto um “relato de si” é de fato o que faz possível a vida, existência, para esses corpos, como abordado no Capítulo 01. Nesse ato de se auto marcar ocorre a busca, a reivindicação de

56 validade de seu corpo, podendoeste ser percebido como o movimento de ressignificação dos sentidos antes propostos, fugindo do que antes era dado como sentido ontológico e único da palavra, mas agora como forma de resistência, é positivamente ressignificando e tomando para si, até mesmo criando novas possibilidades antes inimagináveis, a exemplo da positivação feitas aos termos “bicha”, “travesti”, “periférica” e “preta”, antes concebidos de forma pejorativa, eagora da criação de uma nova possibilidade de sujeito que “não é homem nem mulher, é uma trava feminina” com “peito e pau de mulher”,trazida nos versos da Linn da Quebrada, assim como na apresentação da Youtuber Rosa Luz, ao colocar-se enquanto “mulher preta de peito e pau”,conforme apresentado no Capítulo 01.Esses atos de fala se colocam enquanto subversivos, por problematizarem as expressões dicotômicas e binárias de feminino e masculino dentro da noção do modelo hétero imposto, estampando a existência do caráter variável em um universo de possibilidades para a construção de gêneros. Dessa forma, pensar a existência de um corpo trans negro, portanto corpo que desenvolve expressão de gênero dissidente, performatização de um corpo em descomunhão ao modelo hegemônico imposto, inserido em um local de cultura conservadora, patriarcal, machista e racista, é pensar em precariedade e resistência de um corpo de especificidades “descontidas” em realização ao que se tem por certo, por normas válidas e especificamente reservadas para ele. É perceber um corpo que em sua constante construção se faz ousado, no decorrer em que acontecem as reivindicações, os posicionamentos, no transgredir as normas impostas para o gênero ao qual foi condenado, condicionado; um corpo fascinante, intrigante, valente em sua viagem desobediente; rebelde, complexo e simples por ser nada mais que uma ocorrência de variação inevitável às normas impostas arbitrariamente enquanto naturais e inteligíveis em relação às morfologias dos corpo. Assim, temos em mente os conceitos de gênero performativo, esse gênero que se constrói via língua(gem), no ato performativo de fala, em acordos ou desacordos com os sentidos que lhes são propostos para sua construção, um gênero interseccional em possibilidades. Compreendemos que o gênero é atravessado por diversos aspectos, relacionando-se dialogicamente com a cultura na qual está inserido, de modo que a construa, sendo construído por ela. Dessa maneira, entendemos que o corpo trans negro sertanejo está triplamente em confronto com à imposição de masculinidade hétero prevista para sua construção, que por esse conflito também é triplamente construído para a inviabilidade e precariedade de sua existência. Como esse corpo se constrói no

57 momento da entrevista? No capítulo que segue, falamos um pouco do conceito de sujeito que adoto para esse estudo, assim como da perspectiva metodológica. Abordamos o conceito de entrevista, para que melhor possamos compreender esse gênero discursivo que possibilitou a efetivação da pesquisa. Por fim, realizamos as interpretações dos dados gerados.

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Capítulo 04 INTERPRETANDO POSSIBILIDADES TRANS

atmosfera de horror coletivo em aversão à dissidência sexual e de gênero que proporcionam legitimidade às violências exercidas sobre corpos em descomunhão, os desobedientes e rebeldes, que extrapolam, transpassam e transgridam as normas inteligíveis prevista para os gêneros contidas no modelo binário e dicotômico, contextualiza o surgimento da LinguísticaQueer no fim dos anos de 1990, enquanto área do conhecimento intencionada na contraposição da ideia de língua enquanto expressão da subjetividade do(a) falante, noção que concebia as características dos sujeitos dentro das abordagens essencialistas,visando o corpo em sua materialidade, defendendo assim que o comportamento linguístico em sua totalidade estaria diretamente atrelado à essência desse corpo material, tornando impossível a problematização da língua(gem) e dos sujeitos, conforme já discutimos no Capítulo 02. Assim, a Linguística Queer constituiu-se como um novo campo do conhecimento de modo crítico, indisciplinado e desobediente; uma nova e emergente episteme que preza perceber com estranhamento o que já é dado como certo, único e verdadeiro para as normas sociais relativas às identidades dos sujeitos. Desse modo,compreendemoso sujeito dentro da noção bakhtiniana enquanto situado, bem como da noção butleriana de agente de ação, “sujeito que age”, “sujeito que fala”, sujeito viajante, conforme Louro (2008), aquele queexiste em possibilidades contidas na perspectiva da performatividade, visto que suas ação, seu agir, são encarados enquanto atosde fala, fortalecidos pela mobilização de citações. Logo, a Linguística Queertem por objetivo focalizar as relações estabelecidas entre sujeito, linguagem, significado e identidade, como foi possível ser observado no Capítulo 02, em sentido de melhor compreender como se dão os processos de construção via língua(gem) do gênero,em nosso caso de um sujeito que habita um corpo de gênero transgressor, desobediente e que conflita com as normas de gênero estabelecidas no centro da heteropolítica. Conforme já discutimos, esse sujeito é desobediente em relação ao que diz respeito ao imaginário construído em atribuição às outras identidades culturalmente idealizadas sobre seu corpo trans negro marginalizado, por ter sido imerso em uma cultura forjada em branquitude, que constrói os sujeitos com base em uma nação desejada dentro das concepções eugenistas e de recorrentes tentativas de branqueamento, visando, sempre, a higienização nacional (MISKOLCI,

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2012). Esse é um corpo tecido no seio do ideal de masculinidade tradicional, fortalecida e afirmada na força e violência (ALBUQUERQUE, 2013), na construção do imaginário da identidade nordestina/sertaneja, que se caracteriza ferozmente aversa e avessa à feminização, idealizando a construção de um macho intenso e embrutecido pela natureza agressiva da região, sem refino ou lapidação, capaz de reacender a chama de um patriarcalismo em crise. O sujeito em estudo se constrói avesso às campanhas normativas idealizadas para seu corpo, estabelecendo-se em possibilidades, construindo-se, assim, na variação de experiência na construção de gênero de seu corpo marginalizado pelo centro,que lhe provocavulnerabilidade, inviabilidade, precariedade, proporcionando a situação de vida matável, situação intensificada pela transversalização das construções identitárias vulnerabilizadas que compõem e constroem a totalidade de seu corpo. Dessa forma, como já exposto no Capitulo 03, a adoção do conceito de transexualidade, pautada nas ideias de Bento (2006; 2008), enquanto expressão identitária está relacionada diretamente com a capacidade dos sujeitos de construírem-se em possibilidades, forjando novas formas de performatizar e construir sentidos sobre feminilidades e masculinidades, revelando as negociações estabelecidas para os gêneros, na tentativa de estabilizá-los, ao passo que quebra com a noção de verdade imposta, que busca sistematização, imputando a lógica inteligível no esquema sexo-gênero-desejo, imposto aos corpos-sexuados, que promove em sua existência de experiência TRANSgressora na estrutura de valores relativos ao gênero e à sexualidade. Quem é meu sujeito de pesquisa? É nascida e criada na cidade de Delmiro Gouveia, no sertão alagoano. Sempre se mostra vaidosa, delicada, gentil, sorridente, para citar apenas algumas características estampadas nesse ser tão complexo, como podemos ver no quadro de imagens que segue. Como uma linda borboleta delicada, a jovem Layla, de 28 anos, reivindica para seu corpo as identidades trans/negra/sertaneja.Assim, compreender o gênero desse corpo é o objetivo nesse estudo, visando entender como esse corpo se municia de recursos da língua(gem) para sua construção e que construção é essa.

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Figura 06: Quadro de fotografias de Layla durante a entrevista. Fonte: A autora.

4.1 A pesquisa

Filiada à lógica de compreensão situada fora do alcance de tradição positivista, baseada assim na filosofia pós-estruturalista, essa pesquisa assume o caráter epistemológico interpretativista, qualitativo, visando compreender o fenômeno da

61 construção do gênero via língua(gem), em que assume ametodologia aplicada das teorias utilizadas, que têm por objetivo romper com a concepção cartesiana, que compreende a existência do mundo social independente do sujeito(BORTONI- RICARDO, 2008). Nesse sentido, adoto para o desenvolvimento metodológico da pesquisaa compreensão de mundo efetivado no “fato de que os significados que o caracterizam serem construídos pelo homem [sujeito], que interpreta e reinterpreta o mundo a sua volta, fazendo assim, com que não haja uma realidade única, mas várias realidades” [intervenção nossa] (MOITA LOPES, 1994, p. 331).Compreendemos esse sujeito como o que age, constrói, desconstrói e transforma as realidades, transformando os significados ao seu redor, sendo essa construção possibilitada pela língua(gem) em interação, como a própria condição existencial do mundo social.Assumo, pois, que

(...) não há como observar independente das práticas sociais e significados vigentes [pois] a capacidade de compreensão do observador está enraizada em seus próprios significados, pois ele (ou ela) não é um relator passivo, mas agente ativo (BORTONI RICARDO, 2008, p. 32). Esse estudo está situado em um fazer científico desobediente, indisciplinado, efetivado na forma como o conhecimento é organizado fora da noção social tradicional, aquela que percebe as identidades como sendo essenciais, rígidas, inteligíveis e imutáveis, concepção naturalizada e validada nos saberes científicos dominantes. De maneira diferente, a abordagem metodológica aqui adotada obrigatoriamente deve entender que o mundo e as coisas nele são construídas, desconstruídas e continuamente negociadas por meio da língua(gem) em cotidianas interações. Desse modo, a lógica conceitual da perspectiva metodológica deve se pautar na desconstrução para atender as necessidades do sujeito estudado e dos objetivos pretendidos para a pesquisa desenvolvida, que seja a compreensão da construção desse gênero alheio ao modelo compulsoriamente imposto como único possível, válido e verdadeiro. Mediante a isso, visando o objetivo aqui proposto para a efetivação da pesquisa, realizei uma entrevista, entendida como “conversa controlada” (HOFFNAGEL, 2003), tendo em vista as respostas enquanto dados gerados para possibilitar a análise, as interpretações posteriores da performatização linguística desenvolvida no momento da interação. No que se refere ao convite para a participação de Layla nesse estudo, esse se deu em um momento informal e de descontração em uma reunião na casa de uma colega em comum, alguns anos antes de, de fato, ser efetivada a entrevista. O convite se deu

62 após muito observar, com olhar ainda admirado e apaixonado, a existência na resistência desse corpo rebelde, desse sujeito que eu há poucos meses acabara de conhecer. O convite foi aceito de imediato. Exatamente por não compreender muito bem, propus-me a mergulhar nesse excitante mistério, que de pronto me hipnotizou. Confesso que por estar no início do curso da graduação, não compreendia de fato o quão preciosa se dava a existência daquele corpo, apenas enxergava que aquele sujeito, aquele único corpo, carregava em si todas as questões – gênero, raça e sexualidade, habitando transversalmente um único corpo negro TRANSgressor – que eu ambicionava pensar enquanto sujeito de pesquisa, de modo a participar do meu aprendizado durante a graduação, como professora de Língua Portuguesa, professora de língua(gens). A conversa foi desenvolvida na própria cidade onde ela nasceu e reside, Delmiro Gouveia, no estado de Alagoas, em um bairro central, na varanda da casa da entrevistadora. O registro dessa interação teve a realização no dia 22 (vinte e dois) do mês de outubro do ano de 2017 (dois mil e dezessete), com duração de 27:31 (vinte e sete minutos e trinta e um segundos). O registro da entrevista foi feito em vídeo, e posteriormente feita suatranscrição. Para a concretização da análise dos dados construídos durante a entrevista, compreendo que essa conversa se dá enquanto gênero discursiva de estrutura comum em seus variados tipos possíveis de ser desenvolvido, e que apresenta possibilidades de estilos diversos.Assim sendo, é umapratica de linguagem padronizada, implicando em expectativa de desenvolvimento de papeis característicos e específicos por parte de seus interlocutores (HOFFNAGEL, 2003). A entrevista está sendo aqui considerada enquanto conversa em interação social, em que os envolvidos constroem narrativas de si e do outro. Ao interpretar essas narrativas construídas nessa interação, estou interessada em compreender como o sujeito desse corpo avesso ao que está posto enquanto válido pelo modelo hegemônico se posiciona na construção de seu gênero transversalizadoe quais características identitárias estão presentes. No que se refere à análise e interpretação dos dados desse estilo específico do gênero discursivo aqui adotado, está sendo compreendido que para o desenvolvimento são levadas em consideração não apenas as participações diretas, visto que entendemos que toda a interação é construída pensando não apenas em considerar a presença da entrevistadora e entrevistada, mas também a presença de uma audiência.Assim sendo, todas as perguntas, bem como as respostas, são concebidas

63 como construídas tendo em mente esse expectador (HOFFNAGEL, 2003). Dessa maneira, entrevistei um sujeito que se autodenomina enquanto pessoa de “gênero trans”, mais especificamente “mulher trans”,que traz a essa cena discursiva narrativas que serviram para a interpretação da performatização desse sujeito acerca da tessitura de seu gênero no momento dessa interação. Nesse sentido, a pesquisa assume aproximação dos estudos de caráter etnográfico, bem como dos estudos enunciativo-discursivos, com o foco da interpretação sobre a construção do gênero desse corpo rebelde. O pesquisa se deu interessada em compreender as características culturais que o alicerçam histórica, social e politicamente, de modo a pensar sobre essa construção via língua(gem), analisando arranjos e rearranjos linguístico-enunciativos, perpassando por uma metodologia de análise dos dados gerados dentro da noção de “etnolinguística da fala viva”, de Bakhtin/Volochínov (2004), em posição crítica e avessa à ideia do estruturalismo e formalismo linguísticos de signo linguístico alheio à vida, e em sentido favorável em compreender a língua(gem) não apenas enquanto um sistema autônomo, mas sim enquanto processo constante, como estando de fato viva, através de enunciações concretas; como ato de fala. Desse modo, analiso a estrutura do ato performativo, entendendo a entrevista enquanto cena discursiva e interpelativa, considerando pois que os sujeitos discursivos estão no momento da interação se construindo e construindo o Outro, com o uso de ato performativo inserido na e construindo a cultura que é sustentada por scripts de significados, tendo em vista que em nossa cultura heteronormativa essesscripts exigem o caráter essencialista, tanto para a concepção de corpo, como também de língua(gem), mesmo nos scripts de culturas dissidentes, o que nesse caso causa uma “guerra cultural”, assim tornando a cena performativa uma cena de interpelação, em sentido de provocaro interlocutor, buscando causar identificação com os sentidos e com os sujeitos que são forjados no discurso. Lembramos que os atos de fala são enunciados que quando lançados também realizam ação e exercem poder vinculante, pois os atos são forjados a partir de discursos que os autorizam. Por sua vez, o ato performativo é aqui entendido enquanto prática discursiva que vivifica, ou constrói, o que nomeia. Relativo à transcrição realizada do registro da interação, essa se deu de acordo com os parâmetros previstos para a transcrição de um texto em língua falada para a língua escrita, para uma melhor analise da conversação, conforme Caputo (2014). Considerando que durante o ato da interação os interlocutores se alternam

64 constantemente, em contraste aos textos escritos, o foco está direcionado para o processo, no sentido de perceber a linguagem não apenas enquanto verbalização, mas em suas características singulares, no sentido de queo texto oral tem sua construção on- line, imediata, sendo sua elaboração no momento da fala.O desenvolvimento se dá em uma participação coletiva e em processo interacional e pode ser reformulada, não apenas por seu locutor, mas também pelo interlocutor.Ocorre imediata possibilidade de o locutor perceber as reações do interlocutor e ir(re)formulando e(re)direcionando sua fala para atingir seu objetivo.Por fim, o texto oral deixa marcas de todo o seu processo de criação. Sabendo, então, que a língua falada possui características peculiares, que sem um regulamento para sua transcrição o texto escrito não daria conta de evidenciá-las, usamos normas para a realização da transcrição a partir da configuração demonstrada na tabela a seguir,com a qual damos conta das ocorrências (os episódios que ocorrem durante a interação), dos sinais (signos adotados para ilustrar a ocorrência ) e das exemplificações (explicação de como se aplicar o sinal em conformidade com a ocorrência):

OCORRÊNCIAS SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO Incompreensão de palavras Quando chagamos lá... vi um ( ) em ( ) ou segmentos cima da camaque dei para Acho que ela foi (viajar) ... mas (quem Hipótese do que se ouviu (hipótese) sabe) volta logo Truncamento / Sou uma pess/ uma mulher sensível Entoação Enfática Maiúsculas NÃO posso mais viVER assim Alongamento de vogais ou :: ou::: e daí hé:: ela foi correr... hé:::: na pista consoantes s, r Silabação - você esta correndo pe-ri-go Interrogação ? ela conseguiu ? Qualquer pausa ... na feira e comprou melão... pêssego... Comentário descritivo ((minúscula)) ((pigarrou)) Comentários do locutor que quebram a sequência - - uma benção – se quiser chamar assim – temática; desvio temático A. Como você foi a casa dela? [ Superposição, [ Ligação de linhas B. Eu não fui Citações literais, reprodução Conmo diria o compadre... “sabe de de discurso direto, ou leitura “” NADA INOcente” de textos

Quadro 01: Orientações para a transcrição. Fonte: Adaptado de Caputo (2014).

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4.2 Das perguntas da pesquisa

Na entrevista, as perguntas foram previamente elaboradas, com o intuito de resgatar experiências antes compartilhadas por Layladurante conversas informais em momentos descontraídos, bem como buscando trazer à cena outros possíveis relatos de experiências vividas por ela para melhor compreender como forja narrativa sobre sua trajetória de vida, ao passo quese dá a construção de seu gênero no momento de nossa interação. O registro da entrevista foi feito por meio audiovisual.Dessa forma, possibilitou interpretações mais concretas dessa construção, pois a cena pode ser interpretada partindo de uma perspectiva da multimodalidade, composta pelos múltiplos códigos utilizados, que são responsáveis pela construção como um todo desta cena – é importante o registro do uso de diário de bordo no registro de interações cotidianas para uma melhor elaboração das questões empregadas. O cenário do registro é montado com o enquadramento da entrevistada da cintura para cima e no centro da tela, sem movimentação de transição de imagem, na varanda da minha casa na cidade do alto sertão alagoano, Delmiro Gouveia, como vemos na figura que segue:

Figura 07: Layla, a entrevistada. Fonte: A autora.

O lado esquerdo da tela aparece apenas quando recosta suas costas no sofá, porém enquadrado somente pela metade.Também, sentado, encontra-sedurante toda a entrevista o atual companheiro da entrevistada,que se manteve durante toda a interação calado,apenas movimentando-se, buscando melhor conforto no espaço que ocupava.Dado o avanço da interação, a prolongação da conversa, demonstrou apatia em

66 poucos momentos (bocejando, espreguiçando-se, mexendo de modo a se ajeitar no sofá, recostando-se no encosto lateral e/ou traseiro), compondo, assim, a cena apenas visualmente. Isso não significa dizer que sua presença ali não tenha sido relevante na construção daquela interação, pois, certamente por ocupar o lugar de companheiro em uma relação afetivo-sexual com a entrevistada, as respostas construídas por ela foram elaboradas pensando tanto em uma audiência oculta, mas também e principalmente nessa audiência presencial. Dessa forma, a figura desse companheiro se constrói na penumbra da construção da cena, mas não excluído, como vemos na imagem que segue.

Figura 08: Cena em que o companheiro da entrevista aparece. Fonte: A autora.

A imagem da entrevistadora não se faz presente para o registro. Somente sua voz ajuda a compor a cena. A relação à nível pessoal pré-estabelecida entre entrevistada e entrevistadora certamente influenciou em como esse sujeito construiu o seu gênero nessa interação, além do meu corpo, como o construo, o lugar que assumo publicamente de mulher negra lésbica não feminilizada.Essas e outras marcações que eu possa performatizar na construção da totalidade do meu corpo, que possam marginalizá-lo ou mesmo colocá-lo em lugar de privilégio em relação a outros corpos, interpelaram o corpo dessa minha entrevistada.O papel de entrevistadora acadêmica também pode e certamente influenciou na construção do gênero que Laylapreformatizou. Foi possível perceber que durante o momento da entrevista não ocorre a marcação linguística explícita da identidade étnico/racial enquanto “negra”.Contudo, essa identidade é fortemente assumida por Layla em outros momentos de interação em que estabelecemos.

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Já de início é solicitado à entrevistada que se apresente, dizendo seu nome e contando um pouco sobre si. Nesse primeiro momento, além de intencionar perceber quem é Layla, como esse sujeito que fala, quero entender como esse sujeito percebe o mundo e se percebe no mundo, posicionando-se em um lugar de fala. Foi pretendido também proporcionar uma sensação de segurança e maior conforto na condução da entrevista, de forma que a ação das provocações e questionamentos se parecessem como em uma conversa informal, a exemplo do a) uso do pronome de tratamento “você” e/ou de seu primeiro nome e a referência sempre em primeira pessoa do singular, nas interpelações para aludir a quem interessava suas respostas em “me conta”, “me diga”, “me falou”, b) uso de palavras no diminutivo, afim de provocar uma atmosfera de maior intimidade, intencionando o conforto para maior exposição no momento da interação da entrevista, como em:

então é:::: acho que seria interessante já você começar é:: faLANDO um pouco seu nome né?! se apresentando... falar quem você é... e:: falar um pouco de você... falar sua história... contar um pouco de você

então Layla... me conta um pouquinhoé:: da sua:: da sua história assim da sua infância... on/ como é que... o que você se lembra da sua infância?

e assim a sua vida escolar? conta um pouquinho dela

é::uma vez você me falou é:: dium/ de um ocorrido/ desculpa qual/ até qual período você:: estudou? me diga uma coisa... é:: não sei se você se lembra... teve um/ um caso... que:: depois que você retornou os estudos::

Excerto entrevista 01

Mesmo que o gênero entrevista de fato assuma esse caráter de “conversa controlada”, conforme Hoffnagel (2003), a busca por proporcionar a sensação de segurança e conforto, de modo que Layla sendo entrevistada sentisse que tinha domínio e controle, pode ser percebido durante toda a interação, através do uso de recursos linguísticos no intuito de chamar a movimentação de entrega de controle por parte de quem interpela, como pode ser percebido nos momentos de oferta de liberdade, domínio e poder, com o uso do “pode ficar à vontade” “não sei... você quem sabe”, “pode falar... pode ficar à vontade”.

68

As provocações, interpelações, forjadas no decorrer da interação foram também com o intuito de perceber as reações por parte das esferas sociais, tais como escola, família e trabalho sobre essa construção desobediente, no que tange até mesmo violências sofridas pela externa campanha de tentativa de remodelagem, que intencionava que seu corpo dissidente abandonasse os comportamentos contraditórios, as normas hegemônicas, e iniciasse e permanecesse em uma construção performativa sobre seu gênero condizente com as normas heterocentradas, bem como identificar outras ações que apoiaram essa construção, o que é possível de ser percebido nos expostos a seguir

o que você se lembra da sua infância?

como é:: esse/ esse processo se dá em casa assim com a família?

é::e assim a sua vida escolar? conta um pouquinho dela

na escola... é:: com relação a essa sua:: a forma como você se apresenta... (...) como é que você percebia? os olhares? a forma como as pessoas te tratavam... dos professores dos alunos da direção... como era isso?

me diga uma coisa... é:: não sei se você se lembra... teve um/ um caso... que:: depois que você retornou os estudos:: e:: com relação ao uso dos banheiros... é:: não sei se você se lembrar desse/ desse episódio... se você se lembrar poderia relatar um pouco do que aconteceu

você ficou um período sem estudar:: conta um pouquinho ai dessa fase

e com relação assim a:: mercado de trabalho você:: disse que:: é nascida e criada aqui em Delmiro Gouveia é isso? é:: o seu primeiro emprego foi aqui:: ? foi/ como é que você se vê até hoje no caso... você pode falar um pouco da sua trajetória... no mercado de trabalho?

Excerto entrevista 02

Ainda buscando compreender as relações e acordos estabelecidos diante da performance de gênero construída por esse sujeito de corpo transgressor, busco perceber se e quando ocorreram processos de forclusão, em um movimento de falsear insurgência em tentativas de reconhecimento desse corpo avesso por parte do “centro” para melhor marginalizá-lo.A intenção para proporcionar essa leitura pode ser percebida com maior vivacidade no seguinte trecho do diálogo em queLayla é questionada sobre suas relações de trabalho e relações afetivo-sexuais, visandointerpretar, por exemplo, se mesmo com a existência dessas relações, se elas ocorriam explicitamente, havia a preocupação em ocultar esse corpo para o restante da sociedade, impedindo ao máximo possíveis ocorrências públicas.

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você:: sempre trabalho no comercio né isso ? (...) você trabalhou mais... é:: (...) em todos esses estabelecimentos que você trabalhou em que mais você trabalhou (...) você trabalhou... mais ah:: no lado interno ou externo você trabalhou mais atendendo o público ou você trabalhou mais desenvolvendo atividades internas?

você sempre foi muito namoradora? (...)o meu interesse aqui é em saber se você é:: percebia alguma:: difiCULDADE... por ser mulher trans e se colocar publicamente enquanto mulher trans... para:: é:: se relacionar? SE RELACIONAR... é essa a questão (...)se você já teve dificuldade se sentiu dificuldade em alguma:: alguma relação... se você acreditar que tenha alguma dif/ que por ser mulher trans se colocar enquanto mulher trans você tenha... dificuldades é:: nessa questão de/ de relacionamento?

Excerto entrevista 03 Para esta cena as questões e provocações dirigidas a Layla constroem esse corpo resgatando citações que o situam em insurgência e dissidência, no sentido da construção heterocentrada para gênero.Em toda a cena discursiva é possível perceber essa construção de modo a referenciar o modelo heteronormativo em sentido de comparação com a construção que ali está sendo forjada para esse corpo, sempre buscando evidenciar que esse corpo não atende ao que lhe foi previamente imposto para a construção de gênero, que para ele a citação filiada à lógica essencialista que prevê o modelo hegemônico como único e válido não logra êxito. As questões constroem esse corpo de modo a perceber que ele se coloca avesso ao exigido para a modelagem de seu gênero em um modelo pautado majoritariamente em sua morfologia e, a certa medida, de forma significativa referenciando também a cultura sertaneja em que está inserido, buscando evidenciar a performatização indisciplinada e de resistência desenvolvida na construção do gênero em um corpo que sofre com o imaginário forjado para a construção de seu gênero em uma relação de tríplice hipermasculinidade, tendo como norte sexo, raça e região de nascimento, a exemplo dos momentos em que evidencia esse sujeito forjando-o enquanto não heterossexual e em possibilidade de gênero não normativo, ao confirmar que sua identidade sexual inicialmente era “GAY”, ao questionar a identidade de gênero e sexual, bem como ao questionar possibilidade de tratamento diferenciado, levantando a discussão do uso do banheiro na escola, a designação de posto de trabalho e desenvolvimento de suas relações afetivo-sexuais, pautando a construção de sua performatização de gênero, abrindo possibilidades, trazendo à cena não apenas um único modelo, sem opção para escolhas, como é possível ser observado nos seguintes construções enunciativo/discursivas:

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nessa conferência... você:: até então se:: colocou... ou se colocava enquanto um GAY... né?

mas como foi essa:: qual foi esse Insight esse momento... que você parou e/ e se:: colocou/ começa a se colocar enquanto... agora sua identidade?... que aí você pode dizer qual é a sua identidade::: (...) sua identidade sexual e de gênero no caso

é:: e assim... na escola... é:: com relação a essa sua:: a forma como você se apresenta... você:: percebia como era? na:: você... como é que você percebia? os olhares? A forma como as pessoas te tratavam... dos professores dos alunos da direção... como era isso?

é:: não sei se você se lembra... teve um/ um caso... que:: depois que você retornou os estudos:: e:: com relação ao uso dos banheiros... é:: não sei se você se lembrar desse/ desse episódio... se você se lembrar poderia relatar um pouco do que aconteceu

e com relação assim a:: mercado de trabalho você:: disse que:: é nascida e criada aqui em Delmiro Gouveia é isso? é:: o seu primeiro emprego foi aqui:: ? foi/ como é que você se vê até hoje no caso... você pode falar um pouco da sua trajetória... no mercado de trabalho

Excerto entrevista 04

Esse movimento de questionar a possibilidade de tratamentos diferenciados desenvolvidos devido àperformatização de gênero desenvolvida para aquele corpo só é possível em possibilidade de construção de gêneros fora do modelo único, pois, do contrário, não faria sentido questionar a esse sujeito se tem problemas em usar banheiros públicos, ou mesmo se há uma tentativa de ocultação de seu corpo por parte de empregadores, ou em seus relacionamentos, ou mesmo se percebe distinção nas abordagens e relações sociais devido ao seu gênero. Não haveria lógicaem tais questionamentos, pois, se o modelo fosse realmente único, sem variáveis, não haveria também variáveis nas interações, nas relações estabelecidas por nenhum corpo tendo por referência o gênero. Em outras palavras, apesar da lógica heteronormativa que dita um modelo único válido e verdadeiro para construção do gênero para os corpos, é construído para esse sujeito um lugar de variação, um lugar de embaralhamento da noção hegemônica, em sentido de que, apesar da lógica heteronormativa ditar que,pelo fato deste corpo ter nascido com pênis e pele negra em sua morfofisiologia, sua masculinidade estaria então garantida, ainda mais sendo delmirense, nascido e criado em cidade situada na região nordeste do Brasil, mais especificamente no sertão alagoano, imerso em cultura fortemente construída em uma masculinidade tradicional e violenta, em que até mesmo o imaginário do feminino não escapa, normalmente construído visando esse modelo

71 masculino radical de força, rigidez e valentia.Nessa campanha de modelagem contrária, esse sujeito é construído e percebido em discordância da obrigatoriedade de seguimento da lógica inteligível que estabelece relação única e linear entre sexo, gênero, desejo, raça e territorialidade?

4.3 Narrativas de si como mulher trans

na minha infância eu lembro do... uma criançané? porquenão/ não se nasce homem não se nasce mulher... não se nasce menino... se nasce uma criança

então é:: a minha fase... eu vou/ eu vou por como uma FASE porque se a pessoa por vários processos... de transformação isso sim/ isso é uma fase na vida dela... então ela procura se melhorar se conhecer melhor... então quando a gente se preocupa conhecer se procura... é:: se conhecer melhor isso PRA MIM eu chamo de FASE... na/ no meu tempo de:: gay... tudo pra mim era sei lá era difícil...

a cada dia que passamos... eu acho que:: as nossas vidas ela é... um casulo (...) é... daque/ deum/ de um de uma simples ação... de um simples gesto... eu acho que a gente transforma a vida... (...)então acho que é isso EU acho a VIda do ser humano... ela é em estado de transformação...

Excerto entrevista 05

A construção do gênero forjada por Layla, para este corpo, segue a lógica que prevê gênero enquanto constructo social, construído em possibilidades, e essa afiliação de sentido fica marcada já de início com a mobilização de citação em um movimento de resgate da famosa fala de Simone de Beauvoir em rejeição à tese essencialista, que defende que o sexo determinaria o gênero, no momento em que responde sobre sua infância, e, posteriormente, resgatando a ideia de sujeito em constante transformação, construção de si e do mundo ao seu redor, ao buscar a ideia de fase, enquanto lugar/estado não fixo e a figura do casulo, em alusão ao desenvolvimento/transformação de alguns tipos de insetos. Apesar dessa filiação ao script de sentido dissidente que defende a construção do sujeito no meio social de forma dialógica, Laylareconhece também a existência do script de sentido hegemônico normativo, “não se nasce menino... se nasce uma criança cujo sexo define né?/ quem é quem não é...”/ “então ela procura se melhorar se conhecer melhor... então quando a gente se preocupa conhecer se procura... é:: se conhecer melhor”, bem como em “não senTIA atração por/ por uma pessoa do mesmo sexo... porém... eu senti um algo diferente... porém não sabia o que era... e foi passando

72 os tempo... fui me descobrindo aos pouco... com quinze anos me assumi”. Há então filiação ao conceito essencialista, que toma a genitália, o sexo,como definidor do gênero, definindo quem é menino e quem é menina, gênero como lugar fixo e já dado, como se fosse pré-textual. Essa citaçãoé feita justamente com o uso do verbo de ligação “é”, fazendo alusão a um estado permanente, rígido, e no uso do “se conhecer”, “fui me descobrindo”, dando a ideia de sujeito pronto que precisa apenas ser encontrado, desvendado, descrito, e não construído. Esse movimento, desenvolvido nessas construções aqui apresentadas, de se filiar à proposta de sentidos dissidentes e reconhecer a força dos sentidos de imposição hegemônica, sugere também o reconhecimento da existência de uma campanha de moldagem do gênero de modo a encaixá-lo dentro do modelo hegemônico heterocentrado, enquanto fixo e imutável, o que pode também ser percebido na citação que resgata essa campanha preocupada principalmente com a manutenção do modelo de masculinidade radical, ao citar a alusão elaborada para o modelo de masculinidade forjada na construção do sujeito nordestino/sertanejo, ao colocar que “e ainda mais vo/ a pessoa morar numa cidade... de coronel... onde se ((gesticula sinal de aspas com os dedos)) fala que é cidade de cabra homem cabra macho... então que homem tem que honrar... o que ele é e PONTO...”. Layla citaa identidade regional forjada em comparação à natureza local(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013), que nesse caso está em comparação à resistência doanimalcabra, em “cidade de cabra macho”, bem como também é construída em referenciação à cultura local no resgate da figura política e econômica, signo dessa masculinidade tradicional na figura do coronel, “cidade... de coronel”. Reconhece a mobilização da campanha cultural de imposição de modelo fixo de masculinidade ao trazer à cena o pensamento do imaginário social de que “então que homem tem que honrar... o que ele é e PONTO...”, mobilizando esse sentido de imutabilidade com o uso do verbo, em “tem”, e o substantivo “PONTO” – principalmente com o uso de ênfase nesse segundo e no uso do “ainda mais”, recursos que buscam dar noção de peso, de maior intensidade – e do verbo de ligação “é”. Essa presença ou mesmo aceitação do discurso hegemônico filiado à ideia de sujeito, sustentada na primazia da essência para justificar sua existência, pode ainda ser vistaem outras partes da narrativa de si:

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porque eu me sentia mulher... mas ainda fisicamente sou... fisicamente sou homem...

só que sempre existe a crítica sempre existe... é::é homem também não pode frequentar... banheiro feminino... é:: eu não quero sentar perto dela ou DELE como às vezes as pessoas chamam...

não queria que usasse... por/ por não/ questão pessoal... que:: eles disseram queJAmais deixaria um HOMEM...usar um banheiro feminino... que isso seria/... que eu estaria... elas poderia se sentir ameaçada comigo...

Excerto entrevista 06

Nesses atos performativos de fala,Layla se constrói afirmando que “fisicamente sou homem” e é construídacomo “é homem”, “DELE” e “HOMEM”, com seu gênero marcado no masculino, situando esse corpo ao “centro”, de acordo com a lógica dominante de noção de sujeito, de modo a lograr êxito ao discurso de lógica essencialista, aquele que compreende o gênero pautado na morfologia referenciada na genitália do corpo.Contudo, apesar do forjar esse movimento favorável à ideia de sujeito biológico, imanente, a predominância da construção performativa do gênero desse sujeito é em discordância a essa lógica, pois mesmo reconhecendo que sua morfologia de acordo com a tese inteligível de gênero deveria ser posicionada inteiramente no masculino o sujeito se rebela a essa ordem e se constrói no feminino, não logrando êxito a lógica essencialista, aquela que prevê relação direta e única de modo inteligível para a relação sexo, gênero, desejo e raça, construindo-se, assim, enquanto um corpo desobediente/transgressor, em dissidência de gênero, ao posso que se percebe e se reconhece fora da lógica inteligível de gênero, reconhecendo a todo momento seu pertencimento como mulher de gênero trans, pois afirma “sou uma pes/ uma mulher transexual”. Essa marcação de si no feminino pode ser observada também com a adoção do nome social Layla, que em nossa cultura faz referenciação não a um corpo masculino, mas a de um corpo que desenvolve a construção desse gênero no feminino, um feminino que performatiza para esse corpo rebelde, inundando-o de delicadeza e sensualidade, que pode ser percebido no leve balançar de seu corpo, enquanto movimenta seus ombros, que oscilam em direções opostas para frente e para trás, e simultaneamente com leve inclinar frontal de cabeça, com semi-aproximação de pálpebras, olhar fixo e penetrante, sempre desenvolvendo movimentos sutis, voz calma e quase

74 sussurrantes,com a intenção de enfatizar algumas palavras ao final de suas frases. É um corpo construído com signos que marcam uma expressão do feminino e que também aludem à vaidade, o que é perceptível, estampado em seus cabelos alisados e cumpridos na altura do ombro, no uso de adereços que, de acordo com o imaginário social também são pertencentes ao universo feminino, tais como o colar em volta de seu pescoço, com o que parece ser um pingente de borboleta, o uso de brilho labial, e em seu vestuário, de roupas socialmente convencionadas de uso próprio de mulheres. Tem a utilização de adereços considerados pertencentes apenas ao universo feminino, como é o caso do sutiã, sobrancelha delineada e afinadas, postura contida ao máximo, de forma que ocupe o mínimo de espaço, o que ocorre até mesmo em seu sorriso, leveza na gesticulação e movimentação de seu corpo, entonação da voz sempre baixa ou moderada, e rosto depilado, apresentado sem a presença de pelos na região inferior (SANTOS FILHO, 2016).

Figura 09: Imagens de Layla, em construção de si como mulher trans durante a entrevista. Fonte: A autora.

No desenvolvimento do discurso forjado por Layla, pode ser percebido que ela reconhece os processos de violência infringidos contra a construção de seu corpo como dissidência da norma hegemônica, no que se refere a gênero e a sexualidade, nessa cultura rigidamente construída pela ideia de masculinidade no sertão alagoano, exatamente por este corpo se construir alheio às normas heterocentradas:

pra pessoas que se assumiram... igual a eu... nos anos noventa - que foi a mina infância-... foi um pre/ foi uma BARreira muito grande... pra enfrentar família... pra enfrentar... a sociedade... ainda/ e ainda maisvo/ a pessoa morar numa cidade... de coronel (...)

no meu tempo de:: gay... tudo pra mim era sei lá era difícil... ah um motivo de:: de piada... um motivo de:: preconceito... motivo de:: sabe?... como as pessoas dizem aberração... porque não é heteronão é homem... porque:: não pode construir uma família... então isso é um preconceito:: par e/ pro público heterossexual é uma aberração... que muitos dizem ai

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não tenho preconceito... mas tem até mesmo porque o preconceito ele é mascarado...

nessa minha fase... de::pessoas/ de mulher trans... (...) quando eu me assumi nos primeiros dias houve aqueles ve/velhos boatos...porém para mim serviram como crítica... nos primeiros dias quando mesu/ quando me assumir houve certas críticas... certos preconceito... que me distanciei da minha família durante d/que me distanciei da minha família durante dez anos...

ouvi muitos preconceitos dos meus próprios irmãirmãos:: das minhas próprias irmãs disseram que isso era... coisas que não devia fazer:: que isso era... in/ é:: eu tava sendo induzida por outras pessoas... é isso

na escola os olhares era... diferente outros e iguais umas opiniõese:: favorável outras contra...

sempre existe a crítica sempre existe... é::é homem também não pode frequentar... banheiro feminino...é:: eu não quero sentar perto dela ou DELE como às vezes as pessoas chamam...

eu estudava em uma outra escola... que:: eu entrei no banheiro... feminino... os alunos não gostaram... e:: foi para diretoria na diretoria... ai a diretori/ a diretora disse que eu não poderia usar o banheiro... até conversar conversarem com os pais dos alunos... para ver se eles aceitavam... e:: eu tive que/eu fui interrompida do/ do uso... que levou a minha::... o meu afastamento do colégio...

que foi numa boate... onde:: o próprio dono do:: do estabelecimento... ele era preconceituoso... ele tanto tinha preconceito com:: pessoas homossexuais pessoas... transexuais... quanto pessoas gordas... ai eu fui... (...) levei meu currículo... levei meu currículo e:: cheguei lá procurei o dono... e o dono disse que não aceitava pessoas homossexuais no seu estabelecimento...

Excerto entrevista 07

As referênciasnarradas por Layla, que constroem as violências vividas e aplicadas sobre esse corpo desobediente,sustentam-se em citações de discurso referenciado na família tradicional e normativa, versada no discurso religioso de lógica cristã, como em “as pessoas dizem aberração... (...)porque:: não pode construir uma família...”.Ela narra muitos outros discursos versados no discurso do saber médico, que por muito tempo abjetaram corpos que não se adequavam às normas dominantes, quando diz “as pessoas dizem aberração...”, provocando a rejeição a esses corpos transgressores de gênero e sexualidadeemvárias esferas sociais. Além dessas citações, a ação de marcar esse corpo enquanto “aberração” implica na tentativa do referenciado centro de situar esse corpo no campo da abjeção, no sentido de que essa qualidade seja tomada enquanto verdade por esse sujeito.O objetivo é que Laylapudesse então ser

76 deixada interpelar-se, modificar-se, em movimento de adequação da “margem” em direção ao “centro”. Contudo, mesmo com essa agressiva, ou melhor, violenta campanha,que se utilizaaté mesmo de cerceamento de direitos para a remodelagem desse corpo transbordante em rebeldia, esse sujeito traz à cena a construção de discurso de ressignificação, discurso de resistência e de possibilidades e forja outros sentidos válidos, de viabilidade, com os usos de recursos linguísticos que causam sentido de afirmação e positividade de sua existência, como nas seguintes ocorrências:

luto pela causa LGBT... mais precisamente... na:: em relação ao público de travesti e pessoas transexuais e/ a favor dos nossos direitos... do não preconceito...

me assumir como uma pessoa... transgênero... eu nem me identificava como homem... e nem me identificava como... uma pessoa gay... então.../ e muito menos como uma mulher...tipo..trajando um/ uma roupa de homem... porque eu me sentia mulher...

me assumi uma pessoa transexual... me sinto muito mulher psicológica e fisicamente

hoje sou uma pessoa transexual SIM com muito orgulho... tenhominha casa minha família

Excerto entrevista 08

Nessas narrativas de si,tais afirmações contrariam tanto o discurso do saber médico, que antes definia pessoas trans como tendo nascido no corpo errado, confundindo sexo biológico com a construção de gênero, como antes demonstrado com a Figura 06, na capa da revista Veja, como discutido no Capítulo 03. Também mobiliza citações que problematizam a referenciada lógica biologizante, aquela que relaciona sexo, gênero e desejo para pensar os sujeitos, como em “me sinto muito mulher psicológica e fisicamente”.Emerge em sua narrativa de si o discurso de ressignificação, no movimento de autoconstrução com os recursos linguísticos que provocam sentido positivo ao que antes era relegado ao não-lugar, ao lugar de apagamento, de invisibilidade, de vergonha e não aceitação. Há a afirmação e ênfase com o uso do advérbio “SIM” e o advérbio de intensidade “muito”, para intensificar o substantivo “orgulho”, em “sou uma pessoa transexual SIM com muito orgulho...”. Dessa maneira, constrói-se em possibilidade outra e alheia à lógica de gênero inteligível e

77 binário, tal como com o usopronominal “nosso” e do “sou”, incluindo-se na referenciação de sujeito trans. Nessa análise da construção desse gênero trans, é possível perceber que o desenvolvimento performativo desenvolvido por e para esse corpo é construído em toda essa interação em um movimento que busca sempre situar o seu corpo trans em relação de igualdade a outros corpos não trans, o que pode ser observado em:

na escola os olhares era... diferente outros e iguais umas opiniões e:: favorável outras contra... é:: questão de banheiro... nunca foi discriminada sempre tive... total acesso ao banheiro feminino ... a aceitação dos alunos – dos colega de classe – como os professor também foi normal... só que sempre existe a crítica sempre existe...

eu nunca tive dificuldade para arrumar trabalho... até mesmo porque eu sempre fui uma pessoa... que sempre procurei melhorar... na/ na minha formação trabalhista... na minha formação de/ quanto pessoa trabalhadeira... é:: sempre procurei... é:: conheci/ ter conhecimento em várias áreas... tanto de pizzaria quanto a cozinha... então... eu tenho vários conhec/ conhecimentos de nas áreas...

me/tra/ meus tra/ meus trabalhos (...) até hoje se houve algum tipo de preconceito... ele foi mascarado... porque nessa mina... trajetória toda no mercado de trabalho... nunca houve sequer... um momento de preconceito comigo... do/ das pessoas... ao meu patrão

eu acho que:: dificuldades/dificuldades tá:: em todos os sentidos... tanto na parte de pessoas heterossexuais... quanto ao público LGBT... eu acho que eu to no meio de cada um... foi difícil... pra outros foi fácil... eu acho que eu to no balancete ali... razoável

Excerto entrevista 09

Assim sendo, a construção desse sujeito, apesar de não escapar completamente das noções binárias de gênero, devido ao forjar da expressão do feminino que constrói para si, este corpo se configura em afrontamento às normas previstas para seu corpo, construindo-se avesso àidentidade imposta à masculinidade, intensificada por sua cultura regional e de raça. Layla nega, rejeita, o seu mais destacado lugar de privilegio previsto para a sua morfologia. Layla constrói-se como umamulher transe sertaneja que percebe a vulnerabilidade, a precariedade, imposta para seu corpo transgressor, mas busca legitimidade, validade pela resistência, ressignificando os sentidos impostos para seu corpo, sua existência.É possível interpretar que ela se constrói o mais próximo do que entende por expressão de feminilidade. É de fato uma mulher trans, negra e sertaneja que segue “afrontando”, “causando” e “tombando” com o “centro” das

78 estruturas do sistema inteligível, binário, dicotômico hétero-hegemônico de gênero e sexualidade, dizendo que sim, dizendo que seu corpo existe por ser possível. Layla é uma borboleta negra sertaneja. Dessa forma, ouso dizer que, de acordo com o caráter dessa pesquisa objetivei o rompimento, o desacordo, o desassossego, em não conformidade com um modelo hegemônico de fazer ciência, assumindo a perspectiva indisciplinarqueer. Assim, procurei romper com esse modelo, apresentando a possibilidade da pesquisa acontecer alheia a ele.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

as considerações, é necessário dizer que com o estudo aqui desenvolvido é possível compreender a importância da urgência e permanência de estudos linguísticos em uma perspectiva queer, estudos linguísticos que não apenas se atentem à estrutura do sistema linguístico em si, mas que, para além disso, também transcenda, voltando seu olhar para o sujeito, estranhando as relações que este estabelece com a linguagem, bem como com significados e identidades. Logo, faz-se necessário estranhar os saberes linguísticos já postos e que ajudaram a perpetuar as construções de privilégio das identidades dentro do modelo rígido da imobilidade e impossibilidades, construído na binaridade e dicotomia da heterossexualidade, e que realizam o desserviço de validação na criação e manutenção da atmosfera de clima inabitável para sujeitos de corpos dissidentes. Faz-se necessário estampar na superfície do entendimento coletivo essa “farsa” do gênero inato binário. Faz-se necessário queerizar essa campanha de modelagem e remodelagem para a permanência dos modos de ser e de viver, disseminado enquanto modelo único e verdadeiro pelo hegemônico sistema de política heteronormativa, que com suas práticas de manutenção e remodelagem para o controle social violenta os corpos dissidentes ao seu modelo central, empurrando esses corpos Outros para as margens, relegando a eles o lugar da invisibilidade, inviabilidade de seu ser. Esse é empurrado ao não lugar, onde suas vidas são precárias, seus corpos matáveis, onde seu direito mais básico enquanto humano, o direito à vida, é subtraído, pois a esses corpos é negado o “privilegio” de terem reconhecida sua humanidade. Contudo, é preciso também perceber como esse corpo, que enunciou na entrevista, constrói-se enquanto mulher trans negra sertaneja, de modo a situar-se em dissidência, desobediência desafiante,performatizando sua experiência de gênero em negação à expressão da masculinidade previamente prevista pela relação sexo-gênero- desejo, produzindo em si marcas que a lógica hétero busca invalidar, invisibilizar, apagar em atribuição a esse corpo. Layla constrói seu gênero rebelde, avesso, tão multiplamente desafiador e, por isso, é colocado em precariedade, passando a habitar um corpo matável, mas que também estabeleceem sua própria existência um ato de luta e resistência, uma insurgência por fuga da ditadura de modelagem padronizada dos corpos. É um ato de transgressão para a criação de um sujeito plural e ainda assim ímpar, que desestabiliza, desterritorializa, na negação à norma de padrões de gênero

80 situada no cerne heterossexual.Em sua singularidade, constitui-se como mais um rosto que integra a resistência de tão vasta multidão, tornando-se, assim, também, um ser complexo e completo, que “causa” novas possibilidades de expressar feminilidades assim também como masculinidades, abrindo possibilidades para outras novas expressões. A existência desse corpo singular, no que se refere às especificidades de sua plural constituição – em razão de ser atravessado pela noção de masculinidade idealizada em relação ao seu sexo, raça e cultura regional – põe em xeque, “tomba”, com as imposições aos modos de ser e de viver socialmente construídos.Causa rachaduras na estrutura da lógica centralizada prevista para o gênero almejando, adequando os corpos segundo interesses políticos, culturais e econômicos de uma hegemonia heterocentrada que busca tornar inquestionável seu esquema, visando o controle social, referenciando suas justificativas às ideias que remetem ao natural (biológico), ao divino, para legitimar o funcionamento de seu aparelho normatizador – exatamente por afrontar essas normas de gêneros, expondo-a como uma ficção com verdades frágeis, enquanto não imutáveis, mas sim existente na variabilidade, nas possibilidades. Layla é um corpo “afrontoso” que questiona a naturalização das excreções de gênero para as relações sociais e sexuais, sinalizando em direção do fato que gênero é histórico e construído social e culturalmente, estampando a possibilidade variacional que possibilita que diversos outros sujeitos nesta ou em diversas outras comunidades culturais possam TRANSgredir, TRANSpassar, TRANSformar ou mesmo TRANSbordar as normas impostas dentro do esquema binário, inteligível, hétero, limitador e dicotômico, no sentido do reconhecimento das diversas possíveis expressões de feminilidades bem como também de masculinidades. Toda essa construção de sujeito habitando esse corpo, construído em problematização à política normativa heterocentrada de gênero se dá nas negociações e renegociações dos usos dos recursos do sistema linguístico-discursivo, no movimento de ressignificação de sentidos forjando no ato performativo de fala construções de si, em atos linguísticos de autonomeação não convencidas com o caráter de subjetividade essencializada do discurso hegemônico centrado na hétero-política, trazendo, assim, novas citações estabelecidas na autoridade moral e vinculante, de modo a proporcionar para esse sujeito discursivo a ação de construção da cena discursiva e de si no instante

81 da interação, também em relação dialógica, que, em resumo, acontece via processos de língua(gem). A interseção posicional desse corpo pelo intercruzamento das características morfofisiológicas em atribuição ao seu gênero e raça, somada à cultura regional, forjadas no fogo da masculinidade tradicional e rígida, intensifica em uma tripla vulnerabilização acometida sobre esse corpo por sofrer com violências provenientes do machismo, racismo e transfobia, fortalecendo um sistema de relação de poder responsável por manter corpos dissidentes como esse situados na inferioridade e na submissão. Dessa forma, este estudo se mostrou relevante, no sentido de fazer entender que os estudosque versem acerca de questões relativas aos sujeitos, a exemplo das questões de gênero, sexualidade, ou mesmo raça, devem ser totalizantes, no sentido de ser obrigatório perceber os corpos dos sujeitos em perspectiva transversalizada, a fim de alcançar suas especificidades, pois os corpos são complexos, são únicos, não unos, em sentido de que os sujeitos são singulares por suas especificidades, e diferentes por não serem como em um feixe único; as vozes são plurais. A importância se dá tanto para um melhor desenvolver de uma profissional de Letras quanto de todo e qualquer ser social, exatamente na urgência – pois nós temos pressa – da emergência do compreender e respeitar a vida em convívio com as diversidades, pois a não aceitação das diversidades, que são reais, não só permite, mas também empurra, esses corpos desobedientes, variantes, dissidentes, para a permanência de sofrimento com as históricas violências e violações de direitos. Produzir esse trabalho teve para mim, de muitas formas, importância, mas principalmente no alcance da compreensão dos processos de construção do meu corpo negro lésbico que performatiza uma de tantas outras possíveis formas de feminilidades masculinizadas. Teve importância por possibilitar finalmente ter a noção de leitura das razões que autorizaram este meu corpo desobediente às normas impostas para gênero e sexualidade a experienciar exposição a situações de violência. Sei que questões de gênero e sexualidade perpassam nossas vidas cotidianamente, a nível micro e macro social, e compreendo que as lutas contra o aparelho e seus vários tentáculos e engrenagens que insistem em aprisionar nossos corpos, codificado e setorizando hierarquicamente as expressões de gênero, assim como as de sexualidade, estigmatizando as expressões dissidentes, estão longe de findar, pois entendo que a compreensão do sistema, na realidade, se dá enquanto início do enfrentamento, e é

82 precisamente por este motivo que defendo ser urgente compreender os processos de construções das questões relativas a gênero, bem como as de sexualidade, levando em consideração as mais diversas possibilidades existências, de forma que possamos perceber a resistência e a rebeldia personificada na ocorrência da variação enquanto ocorrência “natural”, e não mais enquanto a personificação de um mal que deve ser ferozmente combatido. Aprendi que o gênero e a sexualidade, performatizados em construções linguístico-discursivas, identificados na constituição do corpo, colocam-se como espectros, como algo intangível, não palpável, cujas construções sociais imputam códigos específicos, construídos via língua(gem), para as expressões de suas experiências, atração, desejo, códigos específicos para modos de ser, de viver e de se colocar no mundo, relacionando-os de forma direta à morfologia dos corpos dos sujeitos, mesmo que este desejo, estas experiências, estes modos de ser, de viver e de se colocar no mundo, existam independentemente de signos ou fatores biológicos.Possibilita, assim, a inviabilidade e improbabilidade do reconhecimento desses corpos TRANSgressores enquanto humanos, servindo para negar seus direitos legítimos, relegando-os ainda mais à marginalidade do não lugar. Embora, obviamente ainda tenha muito para ser compreendido acerca das possibilidades de construções performativas relativas às expressões de gêneros, o que deixa margem para desenvolver e/ou dar continuidade a outros estudos e pesquisas com as inúmeras possibilidades temáticas relativas à gênero, certamente à diversidade, a variabilidade seja uma das poucas verdades a respeito das características de suas expressões que perdurará nos estudos e análises de abordagens futuras.

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