Ano XIII Volume XV Nº 29 Janeiro/Junho 2018 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br

Cidades na linha de fronteira: estrutura Militares em Tabatinga (Brasil) e Letícia (Colômbia) Ricardo José Batista Nogueira1, Thiago Oliveira Neto2 e Fellipe Costa Barbosa3

Resumo Este artigo aborda a presença das estruturas militares em duas cidades fronteiriças de Tabatinga (Brasil) e Letícia (Colômbia), destacando a gênese das cidades e a formação dessa fronteira política com a estruturação de fortes até os pelotões de fronteira que atualmente possuem outra função daquela concebida inicialmente. As cidades citadas apresentam contiguidade espacial da área urbana e as estruturas militares sediadas possuem o objetivo atual de permitir a segurança do Estado e, simultaneamente a solidariedade da população residente na fronteira. Esse aparelhamento representa o poder nacional em escala local, mesmo em uma fronteira porosa. Algumas infraestruturas de uso militar e civil encontram-se dispostas de forma duplicada em cada território, pois o limite territorial restringe o compartilhamento. Essas infraestruturas são fortes consumidoras de espaço urbano e possuem visibilidade aos citadinos. Essas duas cidades possuem uma centralidade no comando das operações e na distribuição de bens de consumo às demais bases militares. Palavras-chave: Cidades, Amazônia, Fronteira, Defesa, Segurança.

Abstract This article discusses the presence of military structures in two border cities of Tabatinga () and Letícia (), highlighting the genesis of cities and the formation of this political border with the structuring of strongholds until the frontier squads that currently have another function of that Initially conceived. In the cities mentioned, it presents a spatial contiguity of the urban area and the military structures have the current objective of allowing the security of the State and, at the same time, the solidarity of the population residing at the border. Such rigging represents national power on a local scale, even on a porous border. Some infrastructures for military and civil use are arranged in duplicate in each territory, as the territorial limit restricts the sharing. These objects are consumers of urban space and have visibility to city dwellers. These two cities have a central role in the command of operations and distribution of consumer goods to other military bases. Keywords: Cities, Amazon, Frontier, Defense, Seguridad.

1 Professor Doutor, Associado IV, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas. 2 Mestrando pelo programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Amazonas. 3Graduado em Geografia da Universidade Federal do Amazonas. Recebido para publicação em 10/01/2018. Aprovado para publicação em 11/04/2018

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Introdução

presente artigo é resultado de pesquisa realizada na fronteira do Brasil-- Colômbia, em 2016, financiada pelo CNPq. Teve por objetivo identificar a disposição espacial das O estruturas militares existentes nas cidades desta fronteira e as formas de integração com a população civil dos países, visando assegurar a defesa e a solidariedade a partir de ações mútuas entre as forças militares e destas com a sociedade civil. Os núcleos urbanos mais densos são Tabatinga, no estado do Amazonas, no Brasil; Letícia, no Departamento do Amazonas, na Colômbia; e o povoado de Santa Rosa, no Departamento de Loreto, Peru. Estes objetivos foram formulados a partir das inquietações surgidas sobre a liberdade, a segurança e/ou vulnerabilidade das fronteiras num mundo que aponta para maior fluidez da informação, do comercio, do capital e mesmo das pessoas. Definiu-se, então, como problema da pesquisa, tomar o estudo de uma fronteira em particular como esta em virtude das inúmeras manifestações por parte do Estado brasileiro para ampliar a vigilância sobre diversos delitos e, simultaneamente, acordos de cooperação com os países vizinhos. Assim, a questão fundamental a ser tratada aqui diz respeito às estruturas estatais criadas na tríplice fronteira não apenas para a defesa, mas como estas mesmas estruturas encerram por ir além de suas atribuições para manter a porosidade fronteiriça necessária e a cooperação cívico-militar. De maneira geral, a Fronteira, enquanto objeto de estudo, nos remete aos clássicos da Geografia Política, desde a obra homônima de Friedrich Ratzel, de 1897, discutindo sua formação, passando outros como Jacques Ancel, que em sua obra “Geographie des Frontieres” (1938) as classifica de acordo com os Estados, chegando mais recentemente aos trabalhos de Michel Foucher (1991), cuja surpreendente contribuição ocorre num mundo em que as fronteira ideológicas entre capitalismo e socialismo são derrubadas, dando origens a inúmeras fronteiras políticas dos novos Estados nacionais. O mesmo autor, em obra posterior denominada “Obsessão por fronteiras” (2009), só vem reforçar a ideia da necessidade das fronteiras, mostrando, agora, não apenas os novos países, mas os novos muros construídos para forçar uma separação entre estados-nacionais. Já os estudos sobre cidades fronteiriças, é importante destacar o trabalho de Cuisinier- Raynal, que indica tipos de dinâmicas territoriais fronteiriças e as formas de articulações urbanas nesta faixa. Carlos Zarate (2012), procura elucidar a formação das cidades pares na fronteira amazônica colonial e durante a república, destacando a capacidade estatal de cada nação em exercer a soberania sobre territórios longínquos e tão singulares. Significativo também como suporte deste trabalho foi a pesquisa realizada por Lia Osório Machado (2005) que resultou numa Proposta de Reestruturação do Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira no Brasil-PDFF, pois esse trabalho cria metodologias para classificação e divisão do longo arco fronteiriço brasileiro, diagnosticando as diversas formas de relacionamento com os países vizinhos. Para realizar esta pesquisa procurou-se estabelecer, antecipadamente, metodologias que proporcionassem uma aproximação mais fidedigna ao problema da pesquisa. Primeiro, um

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levantamento das referências sobre estudos de fronteira, seus clássicos, suas proposições, os contextos em que foram elaborados; depois, as referências mais atuais que acompanham as mudanças no pensamento e políticas dos Estados-nacionais, tendo por consequência, uma tendência de amortecimento fronteiriço e como isto afeta as áreas periféricas dos países; por fim, definiu-se um roteiro de visitas a instituições estatais brasileiras, peruanas e colombianas instaladas nas cidades de Letícia, Tabatinga e Santa Rosa, para, a partir de entrevistas, compreender as ações cívico-militares que realizam na tríplice fronteira. O suporte do Exército brasileiro através de uma de suas estruturas – o Hotel de Transito – foi importante para a concretização da pesquisa na cidade de Tabatinga. O suporte civil, dado por moradores influentes em ambas as cidades, permitiu o acesso às instalações militares colombianas com a exposição de palestras sobre a atuação na fronteira com o Brasil e a cooperação com o Exército brasileiro; de modo semelhante, com a marinha colombiana e peruana, pois ambas dependem dos históricos acordos fronteiriços de livre navegação para atingir estas áreas fronteiriças. O imaginário fronteiriço – lugar de delitos, contravenções, suspeição, etc. – exige que se utilize canais de confiança para a obtenção de informações. Isto foi construído há cerca de uma década quando iniciamos nossas primeiras pesquisas na região (NOGUEIRA, 2007). Esta região internacional, habitada por diversas nações indígenas, anterior à colonização, passa por substanciais alterações quando a exploração dos recursos naturais ganha dimensão comercial, com destaque para a madeira e a borracha, principalmente. Assim, apresentaremos aqui, num primeiro momento, aspectos da formação regional e da consolidação das fronteiras nacionais; num segundo momento, a montagem do aparato de defesa militar da área; e concluiremos apontando as formas de integração existentes.

A formação da região fronteiriça

Os primeiros registros existentes sobre esta região fronteiriça são do século XVI com a expedição de Francisco Orellana, que, em nome do Império espanhol, saiu da cidade de Quito, em 1542 e percorreu a maior parte do que hoje chamamos rio Maranon, Solimões e Amazonas, chegando ao oceano Atlântico, deixando as crônicas escritas pelo Frei Gaspar de Carvajal, descrevendo os inúmeros povos, seus ambientes e territórios. Um século após, é a vez da expedição de Pedro Teixeira, que partindo da cidade de Belém, na foz do rio Amazonas, faz o percurso inverso, subindo o rio das Amazonas até a foz do rio Napo, próximo à cidade da partida de Orellana. Desta vez, são as crônicas de Cristobal de Acuña que relatam todo o percurso da expedição. O limite de Tordesilhas, estabelecido entre os impérios português e espanhol desapareceu com a união das duas coroas na Europa, e os portugueses, na oportunidade, avançaram território adentro, e com as fortificações ao longo das embocaduras dos rios consolidaram a posse (GONDIM, 1994). Dentre os diversos fortes construídos pelos portugueses, o de São Francisco Xavier de Tabatinga, construído em 1766, tornar-se-á a base para o surgimento do município de Tabatinga, na década de 1980. Já a cidade de Letícia possui uma gênese distinta em virtude da

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disputa territorial travada entre Peru e Colômbia. No lado peruano, encontram-se os povoados de Islândia, na margem esquerda do rio Javari e Santa Rosa, na margem direita do rio Solimões. Ambas estão implantadas em ilhas, numa área de várzea, inundável, em que a dinâmica da geomorfologia fluvial altera a cada ano as terras disponíveis. Na divisão político-administrativa do estado peruano, pertence ao Departamento de Loreto, cuja capital é , a maior cidade da Amazônia peruana. Ainda é importante citar a cidade brasileira de Benjamin Constant, na margem direita do rio Javari, em frente ao povoado de Islândia. Surgida a partir de um aldeamento religioso criado em 1750, a localidade inicialmente denominada de São José do Javari chegou a ser cogitada para ser a sede da Comarca do Alto Amazonas, porém foi preterida em prol de Mariuá, hoje Barcelos, no rio Negro. Benjamin Constant perderá gradativamente a sua centralidade política, deslocada para o lugar Tabatinga, que abrigava o aparato de defesa: o forte. Antes de ser ponto de encontro fronteiriço de três Estados, esta região estava repleta de nações como os Tikunas, os Omáguas, os Yurimáguas, Witoto, etc., assim como era disputada por ordens religiosas os Carmelitas portugueses e Jesuítas espanhóis (PORRO, 1995). No século XIX, foi a coleta de produtos extrativos e, mais intensamente o látex natural, caucho ou borracha, que atraiu a atenção para esta região. Neste período vários lugares já estavam consolidados: cidades, povoados, aldeamentos religiosos, fortificações; estavam em curso também as disputas territoriais remanescentes da derrocada do império espanhol na América. Os Estados nascentes procurando definir seus limites territoriais, as rendas geradas pela extração da borracha e o acesso ao oceano Atlântico pelo rio Amazonas, colocava esta região no centro das discussões, cujo extremo foi o conflito ocorrido em 1930 entre Peru e Colômbia. Este processo de acomodação dos limites fronteiriços apresentou, basicamente, dois tipos de acordos jurídicos: o uti possidetis juri, em que, sobre a posse da terra, prevalece aquilo que foi jurado, prometido, acordado; e o uti possidetis de facto, em que prevalece a posse da terra para aquele que de fato ocupa. A ação da Coroa portuguesa de implantar fortes como marca material da ocupação e defesa, assim como a Igreja com as missões religiosas, definiram possessões nesta região da Amazônia, efetivando a posse de fato. Na foz do rio Javari, o povoado de São José do Javari abrigava a representação política e religiosa, enquanto no rio Solimões o povoado de Tabatinga, com o forte, era a expressão maior da defesa territorial militar. Vê-se aí neste momento o significado dos rios como elementos fundamentais nos acordos, ajustes e defesa territoriais. Do lado das terras de Espanha, nenhuma materialização da ocupação estava expressa na paisagem. A região ganhará um impulso demográfico com a exploração da borracha a partir da segunda metade do século XIX, quando colonos ingressam na selva para coletar o produto. Isto provocou, simultaneamente, conflitos étnicos, pois a mão de obra indígena fora forçada ao trabalho da coleta. As fronteiras, até então incertas e sem acordo definidos, começam ser disputadas, principalmente entre o Peru e a Colômbia. Os peruanos tinham como certo que sua fronteira com a Colômbia era o rio Putumayo (que ganha o nome de rio Iça quando ingressa no Brasil). No entanto, a possibilidade da Colômbia de acessar ao rio Amazonas, deslocou este limite, formando o que hoje os colombianos denominam de Trapézio Amazônico. A principal

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cidade é Letícia, fundada por peruanos em 1876 e que servia de suporte e entreposto para a comercialização de produtos da floresta com destino à Iquitos. Porém este posto fronteiriço passou a ser disputado pelos colombianos desde o inicio do século XX, chegando a um breve conflito armado com os peruanos em 1932, quando se torna de fato a pertencer a Colômbia. É esta origem que faz com que a cidade de Letícia passasse a abrigar estruturas militares para consolidar a posse após acordo na Liga das Nações (NOGUEIRA, 2007). Antena para comunicação com Bogotá, aeroporto, guarnições militares e presídio, são as primeiras marcas dessas estruturas, associadas à mudança de estatuto político, deixando de ser Intendência para ser uma Comissária Especial na Amazônia colombiana. Aparatos civis, como representações políticas também são construídas para efetivar a posse colombiana. Simbolicamente, ruas, praças e prédios começam a receber nomes de personagens da história colombiana, como Santander, Vasquez Cobo, Agustin Codazzi4. Tal prática não é diferente no Brasil, ou melhor, em diversos lugares do mundo. A partir desta breve síntese da formação territorial da tríplice fronteira Brasil – Peru – Colômbia, apresentaremos, de modo mais detalhado, como as cidades de fronteira Tabatinga e Letícia, passaram a abrigar determinadas estruturas militares, suas características, funções e o necessário envolvimento com a sociedade civil das faixas de fronteira.

Cidades de fronteira: segurança e solidariedade

O que haveria de particular em uma cidade que surge nas bordas, nas fronteiras de um Estado moderno? Possivelmente, o que poderia caracterizar uma cidade de fronteira seria a sua função de posto de vigilância, abrigando estruturas de representação do Estado com o objetivo de controle dos fluxos com o exterior. A importância da localização geográfica é fundamental na distribuição, na disposição dos objetos ou equipamentos voltados à segurança do território do Estado. Acreditamos que esta concepção vigorou por séculos, e diversas cidades do mundo expressam ainda em sua malha urbana restos, traços de fortificações, muros, pontes e portais criados para defender, proteger o seu interior (TOYNBEE, 1973). No passado, a atividade de vigilância exigia esforços do conjunto da sociedade para que o Estado pudesse garantir a segurança das pessoas, deslocando homens da atividade produtiva para a de defesa. E quanto maior a tensão decorrente das relações com o exterior, maior o efetivo destacado para a missão de proteção. O “soldado”, com sua arma em punho e um uniforme, simbolizava a presença do Estado e a proteção dos demais cidadãos e do território nacional. Na atualidade, novas formas de controle são instituídas para regular o fluxo fronteiriço, desde aparatos tecnológicos utilizados por funcionários civis do Estado, como câmeras de vigilância, detectores de metal, etc.; passando por acordos bilaterais que dão porosidade ao trânsito permitindo a livre circulação de pessoas e mercadorias; até a clássica

4 Apesar da origem italiana, Codazzi (1793-1859), militar, cartógrafo e geógrafo, chega à América do Sul em 1820 e participa ativamente do movimento de libertação da América espanhola.

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presença do militar, que com sua aparência quase imóvel é capaz de impor ao outro sua autoridade. Quando a linha de fronteira abriga cidades em ambos os lados, costumam ser denominadas de cidades-gêmeas, porém nem sempre a história permite, de fato, esta condição. É importante tecer algumas considerações a propósito desta adjetivação, pois é comum apontar que as cidades localizadas na fronteira internacional, uma de cada lado, são gêmeas pelo simples fato de apresentarem contiguidade espacial; quando suas malhas urbanas são integradas; quando há fluxos livres entre ambas; ou quando apenas uma ponte as separa. Elas podem ter origens distintas, motivações diferentes em sua gênese que pode ser civil, comercial, militar ou até religiosa5; podem também apresentar um desequilíbrio populacional, com ofertas de serviços maiores numa delas, criando assimetrias; os Estados aos quais pertencem podem ter relações amistosas ou não, o que termina por reverberar na fronteira; o câmbio e as trocas, sempre definidos pelo centro, podem oscilar o movimento comercial, pendendo para um lado ou para outro, dificultando a assimilação de cidades-gêmeas. Os “modelos” são os mais diversos6,contudo tomaremos como referência aqui dois artigos: o primeiro, apresentados por Cuisinier-Raynal (2001), que parte da realidade da fronteira peruana; e o segundo de autoria de Benedetti (2014). Ambos ilustram as possíveis formas de integração urbana fronteiriça. De modo sumário, apresentamos as proposições de Cuisinier-Raynal para as situações singulares da dinâmica fronteiriça: a) Margem: dinâmica local e interna a cada país; b) Zona-tampão: quando um país cria restrições de contato fronteiriço a partir da instituição de parques ou reservas naturais; c) Frentes: formas de ocupação que podem ter origem cultural ou militar; d) Capilar: quando ocorrem vínculos, trânsitos e trocas principalmente no nível local; e) Sinapse: onde há forte grau de integração entre as populações e incentivo dos países para tal. A partir dessa caracterização, Cuisinier- Raynal aponta desdobramentos e possibilidades de matrizes de interações entre as cinco proposições básicas. O segundo modelo, de Alejandro Benedetti, é uma proposição de estudos fronteiriços para o continente sul-americano. Para consolidar seu modelo de estudos dos espaços fronteiriços, Benedetti indica a existência de seis componentes principais: a) a Diferenciação territorial, que diz respeito à gênese de cada formação nacional; b) Fronteirização, ligada à implantação de objetos e ações do Estado-nacional voltados ao controle das fronteiras; c) Territórios interiores, ou seja, as divisões subnacionais que são próprias a cada país e que na fronteira estabeleceriam “relações paradiplomáticas”; d) Territórios exteriores, constituídos pelos blocos ou associações de países com decisões multilaterais dedicadas seja a gestão de bacias hidrográficas, seja à circulação de mercadorias; e) Lugares de fronteira: os pontos de encontro e convivência urbana mútua pelos habitantes, que organizam seus tempos e espaços a partir dessa condição espacial; f) Mobilidades: estão associadas à processos de continuidade

5 Foucher (1991) indica pelo menos quatro processos principais de formação de fronteiras: Negociação, guerra, arbitramento e imposição. Atravessar uma fronteira é, na verdade, ingressar em outro ‘mundo’: outra construção histórica, ‘mitos nacionais’ diferentes; e outra construção geográfica. 6Ver em: Machado; Steiman (2002).

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que viabilizam a fluidez, ou descontinuidade, que criam barreiras ao movimento. Podem ser criados pelas sociedades fronteiriças (os caminhos) ou por ambos Estados (via férrea, rodovias) que tem o poder de controle dos fluxos. Interessa-nos propriamente o componente “Lugares de fronteira”, em que o autor elabora uma representação para demonstrar as possíveis formas de integração fronteiriça (Fig. 1).

Figura 1. Lugares de fronteira com os padrões de localização. Fonte: (BENEDETTI, 2014)

Ambos os modelos demonstram que o Estado, independente da dimensão territorial, da forma ou regime de governo, do PIB (produto interno bruto) ou do IDH (índice de desenvolvimento humana) tem na sua linha de fronteira a marca de sua existência. Num momento em que a tendência imposta para os Estados-nacionais é o enfraquecimento das fronteiras para a ampliação das trocas comerciais, ela é a única referência de garantia do poder soberano. Sem fronteira não haverá Estado. Mas os modelos não apontam apenas as ações destinadas à segurança e seus dispositivos. Também destacam a existência de processo de integração em diversos níveis de intensidade, até mesmo independente dos Estados lindeiros. Ou seja, as sociedades fronteiriças também podem criar uma identidade mútua assegurando solidariedades no nível local para resolução imediata de problemas de ordens diversas.

A dimensão espacial da defesa nas cidades de fronteira

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Na curva de um rio três países se encontram. O rio é o Solimões, assim denominado no Brasil, e Marañon no lado peruano e colombiano. Caudaloso, em consolidação de seu leito, carregando sedimentos de ambas margens e formando ilhas ao longo de seu trajeto, carrega também histórias comuns às populações originárias que aí habitam há séculos. A composição étnica diversificada antecede a criação dos três países que compartilham esta região, como vimos acima. Na margem esquerda do rio, mais alta que a margem direita, as cidades de Tabatinga, no Brasil e Letícia, na Colômbia, constituem, como fronteira seca, os núcleos urbanos polarizadores desta região. Na margem direita, várzea baixa, periodicamente inundável, os peruanos implantaram, numa ilha, uma vila que é o ponto final dos barcos que descem o rio desde Iquitos, cerca de quatrocentos quilômetros a montante da fronteira. O povoado de Santa Rosa complementa a vida na tríplice fronteira. A partir daqui começaremos a mostrar os resultados obtidos neste trabalho de pesquisa em cidades fronteiriças enfatizando a implantação das estruturas estatais de caráter militar, cuja função é eminentemente de defesa e proteção territorial, porém as atribuições se ampliam numa região em que as características particulares de baixa mobilidade no interior da rede urbana, dispersão populacional, extração de recursos naturais e descolamento dos respectivos centros de poderes nacionais. Estas condições permitiram que ações de grupos guerrilheiros, traficantes e de narcotraficantes consolidassem seu poder na região afetando a vida civil das populações instaladas há mais de um século. Daí, nas duas últimas décadas o reforço militar nesta tríplice fronteira. O aglomerado urbano binacional composto por Tabatinga e Letícia é responsável pela polarização de grande área na Amazônia. A condição de Letícia como capital de Departamento na Colômbia assegura uma liderança regional justamente por abrigar diversas representações do poder nacional na escala local. Infraestrutura e Serviços públicos instalados para dar suporte às representações, assim como a diversidade de serviços privados, caracterizam a hegemonia fazendo convergir para si fluxos diversos. Por outro lado, a cidade brasileira de Tabatinga, surgida para a defesa, é complementar no abastecimento de diversos produtos. Enfim, o povoado de Santa Rosa é apenas o ponto final do transbordo de mercadorias originária de Iquitos, porém abriga o essencial de representação pública como um posto da guarda nacional, um flutuante da marinha para controle da navegação, escolas de nível básico e posto de saúde. O que certamente convida à reflexão numa área de fronteira é a disposição das infraestruturas existentes, o que pode ser suficiente para demonstrar a presença de um Estado e a sua integração ao país vizinho. Emerge a função legal e jurídica como limitador de ampla integração, complementaridade e solidariedade. Mesmo vivendo num período marcado por intensas relações internacionais, em que os Estados são pressionados a ampliar a porosidade de suas fronteiras; num período em que diversas organizações da sociedade se mundializam ultrapassando qualquer fronteira, vigora a duplicidade de infraestruturas nas áreas fronteiriças. Ou seja, por mais solidários que os Estados possam ser através de tratados e acordos, o limite territorial estatal restringe o compartilhamento das infraestruturas de qualquer modalidade. Certamente são as assimetrias que, se por um lado pressiona o fluxo das

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pessoas que procuram apropriar-se das diferenças existentes, muitas vezes associada ao cambio para aquisição de mercadorias para suprimento local, por outro, o Estado e a consequente nacionalidade, coloca um freio ao movimento e poderia colocar em xeque a soberania do território. Por isso mesmo que a duplicidade de infraestrutura de serviços públicos, civis e militares é recorrente em diversas cidades de fronteiras pelo mundo, a serviço do cidadão ou do ser nacional e não do ser humano! Em Letícia, uma das primeiras infraestruturas a ser implantada na década de 1930 foi uma antena para rádio-comunicação com Bogotá; em seguida o aeroporto, e isto é bem compreensível em virtude da distância e da difícil acessibilidade do centro do poder; aqueduto, uma cadeia pública, um prédio do governo, a planta de energia, vão compondo a paisagem urbana. O lugar, conquistado ao Peru, vai ganhando aspectos de uma vida civil com a consolidação destas ações. O próprio traçado das avenidas, ruas, praças, os bairros, reforçam o caráter urbano. As estruturas civis de serviço público como aquelas destinadas à educação, saúde, lazer, registros e controle, abastecimento de água energia, presentes em qualquer cidade, também estão aí. Porém, seu uso é, regra geral, mais restrito aos nacionais colombianos. Pode até parecer normal e de direito que assim seja, contudo, numa condição fronteiriça de livre transito, em que as trocas comerciais e o consumo de bens é realizado indistintamente em ambos os lados da fronteira, parte da arrecadação de cada lado é composta por rendimentos oriundos do vizinho. Mesmo assim, não há como realizar a separação das contribuições de cada lado. Um almoço no restaurante, um serviço em salão de beleza, uma aposta nas casas de jogos, a compra de combustível, ou uma consulta médica são formas de dinamizar a fronteira. O que apenas é comum, compartilhado e acordado na escala local é o transporte coletivo urbano realizado entre as duas cidades, que não se limitam a linha fronteiriça, mas cumprem uma rota que atende bairros de ambas. Quanto as estruturas militares, estas, efetivamente, além de consumir grandes espaços em ambas cidades, apresentam forte duplicação. O porto de Letícia é essencialmente voltado ao uso das embarcações militares da Marinha e balsas de transporte de cargas. A atuação de defesa é realizada com apoio de helicópteros adaptados ao ambiente amazônico. A questão é que os rios e todos os ambientes fluviais – lagos, furos, paranás, ilhas – nesta região tem seu controle disputado por grupos que atuam ilicitamente, e usam o artifício fronteiriço para proteger-se. Daí a importância da atuação conjunta apregoada pelos países que compartilham a fronteira. Assim, é imperioso a rápida distribuição das informações entre as forças armadas localizadas na fronteira. O paradoxo é que numa região onde o transporte fluvial é essencial na mobilidade da população, com embarcações de pequeno porte realizando serviços ao público, além das embarcações de uso privado de camponeses para o transporte de sua produção agrícola, a inexistência de um porto civil com um mínimo de estrutura para ancoragem é demonstração de que não há prioridade para tal atividade. Mas isto é recorrente em toda a bacia amazônica. Os flutuantes7 e os barrancos dos rios são os portos das canoas.

7 Estruturas de ferro ou madeira montadas sobre toras de madeira que servem de portos.

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Figura 2. Mapa com a tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru e as pitas de pouso próximo à fronteira. No mesmo mapa é possível observar os recortes territoriais das divisões na escala municipal no Brasil e Colômbia e Distrital no Peru.

A organização da defesa das fronteiras na Colômbia é coordenada pelo OFAI – Oficina de Fronteras y Asuntos Internacionales. Possui como objetivos estratégicos a segurança e a estabilidade regional nas fronteiras terrestres, aéreas e marítimas; realizar alianças estratégicas com aliados; diversificar as relações internacionais fora da América do Sul; manter, fortalecer e atualizar as capacidades das forças armadas; segurança e estabilidade nacional. Para a fronteira com o Brasil há acordos nacionais e mesmo locais como a Comissão de Vizinhança e Integração. No Plano Estratégico de Defesa Nacional Amazonas 2008, afirma-se que para o Exército a defesa da Amazônia será o foco onde se concentrarão todas as diretrizes de controle e mobilidade rápida com apoio de aparatos tecnológicos de monitoramento. O Exército colombiano também dispõe de partes do espaço urbano da cidade, em decorrência da ocupação territorial das estruturas militares existentes. Esta unidade é subordinada à 6ª Divisão do Exército, com base em Florência, o efetivo do Exército na cidade de Letícia é composto por duas Brigadas de selva, um batalhão de Contra-Insurgência, e um batalhão de treinamento. O ambiente natural de floresta exige tropas especiais para a sobrevivência e o combate nesta região.

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Importa salientar que o reforço das tropas do exército colombiano em sua fronteira não está ligado, prioritariamente, à condição fronteiriça, mas ao fato da longa disputa com o grupo guerrilheiro -Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia-FARC–- que passa, no momento, por um processo de deposição das armas.

Figura 3. Organograma do Comando Militar da Amazônia. Org: Thiago O. Neto. Fonte: CMA. Disponível em: Acesso em: 02 de abril de 2017.

A Força Aérea Colombiana está aí presente desde a retomada de Letícia. Como vimos, o aeroporto foi uma das primeiras estruturas a ser criada para consolidar a posse. Durante muito tempo este aeroporto foi o único na região, até o Exercito brasileiro construir um aeroporto em Tabatinga. O principal grupamento aéreo em Letícia é o Grupo Aéreo del Amazonas-GAAMA, cuja ação é a proteção do espaço aéreo fronteiriço e o suporte as ações do exército numa região em que a mobilidade terrestre é difícil, sem rodovias. Do lado brasileiro, é o Comando Militar da Amazônia-CMA, a principal organização militar que, a partir de sua sede em , a 1.100 quilômetros da cidade de Tabatinga, coordena todas as ações nas áreas fronteiriças. O organograma da figura 3mostra a estrutura espacial do Exército, com as Brigadas, os Batalhões, os Grupamentos e os Pelotões de fronteira.

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Além de existir 21 Pelotões Especiais de Fronteira-PEF’s, justificado pela extensa linha fronteiriça de cerca de 5.000 quilômetros8, o Exército brasileiro desenvolveu técnicas sofisticadas de sobrevivência e combate na selva. Neste sentido é fundamental a atuação das Brigadas e Batalhões de Infantaria de Selva-BIS para vigilância e proteção neste ambiente natural. O Exército brasileiro herdou dos portugueses diversas fortificações na Amazônia, dentre as quais o forte São Francisco Xavier de Tabatinga, que foi levado pelas águas do rio Solimões em virtude do fenômeno das “terras caídas”9 e somente nos períodos em que o rio Solimões baixa seu nível é que as mesmas podem ser vistas na figura 4.

Figura 4. Resquícios do forte São Francisco Xavier de Tabatinga nas figuras a) e b). Fotos: Márcia Cambeba (2010).

Atualmente, a principal organização militar do Exército na cidade de Tabatinga é o Comando de Fronteira do Solimões-CFSol e o 8º Batalhão de Infantaria de Selva-BIS. Em seu muro está escrito uma frase que aparece em diversos pontos fronteiriços do Brasil: “Aqui começa o Brasil”. Também há um pequeno monumento construído em homenagem aos soldados mortos no combate com as FARC em 1999, na batalha do rio Traíra. No interior do quartel vê-se a seguinte inscrição: “Árdua é a missão de desenvolver e defender a Amazônia. Muito mais difícil, porém, foi a de nossos antepassados em conquistá-la e mantê-la.”, proferida pelo discurso do General Rodrigo Otavio Ramos em 1968 quando se deu a transferência do Comando Militar da Amazônia da cidade de Belém para Manaus. Além do quartel, há o hotel de trânsito, galpões para depósito, o hospital militar, um pequeno zoológico e dois conjuntos habitacionais destinados aos militares. Estas estruturas poderiam não ser notadas numa grande cidade, porém numa cidade de pequena dimensão como Tabatinga, há uma visibilidade patente. Ainda há os quatro pelotões de fronteira – Palmeiras do Javari, Estirão do Equador, na

8 Apenas na Amazônia. 9 Processo erosivo que ocorre nas margens dos rios na Amazônia com leito em formação.

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fronteira com o Peru, e Vila Bittencourt e Ipiranga, na fronteira com a Colômbia (Fig. 3). Todos eles só são acessíveis por via aérea ou fluvial, cuja base de suprimentos encontra-se em Tabatinga. Além das estruturas, é importante considerar que o efetivo militar aí implantado responde por uma parte substancial dos recursos que circulam na cidade de Tabatinga e mesmo de Letícia. A pirâmide da hierarquia militar tem na sua base soldados recrutados na própria cidade, estes passam a utilizar os salários obtidos nas forças armadas para compra de bens duráveis e não duráveis e outros, acarretando um fluxo de compras e vendas de produtos nas lojas e mercados locais. A Marinha do Brasil (Fig. 5) também possui uma forte expressão na Amazônia. Ambiente natural bem distinto do mar aberto, onde o largo horizonte permite visualizar objetos à longa distância, a bacia amazônica coloca outros problemas às ações de patrulha. Em primeiro lugar, o regime de cheia e vazante limita a circulação de navios-patrulha em vários meses do ano, em determinados rios e trechos de um mesmo rio; em segundo lugar, a inexistência de horizonte limita a visualização, que se por um lado facilita o patrulhamento, por outro a existência de inúmeros canais, ilhas, lagos, furos, paranás, verdadeiros atalhos fluviais, pode dificultar a vigilância. Daí a necessidade imperiosa do conhecimento de navegação dos moradores locais como apoio à navegação;em terceiro lugar, apontamos a dispersão da população rural, dos núcleos habitacionais, do suporte urbano mínimo para apoios emergenciais; enfim, a malha hidroviária na Amazônia soma cerca de 26.000 quilômetros com aproximadamente 35.000 embarcações registradas.

Figura 5. Distribuição Mapa dos Comandos Militares e dos Distritos Navais no Brasil. A presença desta força remonta ao século XVIII, no período colonial, quando em 1728 é criada a Divisão Naval do Norte, com sede em Belém (Grão-Pará), com o objetivo de controlar o ingresso de barcos no rio Amazonas. A pressão mundial para abertura à navegação, fez com

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que o Brasil permitisse o ingresso à navegação para as nações amigas. Assim, a Flotilha do Amazonas, foi criada cerca de 150 anos depois, em 1868, substituindo a antiga Divisão. Após mais 120 anos, em 1994, cria-se o Comando Naval da Amazônia Ocidental, para logo em seguida, em 2004 a Marinha criar o 9º Distrito Naval. A partir do 9º Distrito Naval, sediado em Manaus, que abriga diversas unidades - Capitania Fluvial da Amazônia Ocidental, Comando da Flotilha do Amazonas, Estação Naval do Rio Negro, Batalhão de Operações Ribeirinhas, Centro de Intendência da Marinha em Manaus, Capitania Fluvial de Tabatinga, o 3º Esquadrão de Helicópteros de Emprego Geral, Policlínica Naval de Manaus e o Serviço de Sinalização Náutica do Noroeste – a Marinha se esforça para vigiar, controlar os fluxos na região e ainda dar assistência aos ribeirinhos. A Capitania Fluvial da Amazônia Ocidental tem sob sua responsabilidade uma área continental, pois abrange desde o rio Mamoré, com a Agência Fluvial na cidade de Guajará-Mirim, fronteira com a Bolívia, até a divisa do Amazonas com o Para, na cidade de , onde há outra Agência fluvial, de um total de sete agências distribuídas pelos principais rios da Amazônia. Na cidade de Tabatinga, a Marinha do Brasil criou delegacia em 1969, porem inaugurada apenas em 1982, sendo elevada à categoria de Capitania Fluvial em 2002 para reforçar a vigilância na fronteira. O intenso movimento de embarcações de diversos portes e nacionalidades exigiu tal empreendimento. O controle portuário, controle de fluxos fronteiriços, inspeção de embarcações de carga e passageiros, a formação de condutores e o apoio às comunidades ribeirinhas fazem parte da missão desta organização militar. Como qualquer unidade de defesa, é consumidora de grandes espaços, que numa cidade pequena como Tabatinga ganha importância e visibilidade. Mas não é a fixação que caracteriza a Marinha e sim a mobilidade através de sua frota de embarcações que circulam pelos rios. O Comando da Flotilha do Amazonas possui em subordinação nove Navios, em que seis são destinados à patrulha e três voltados à atenção médico-hospitalar. A última força a merecer nossa análise geográfica é a Força Aérea Brasileira. A dimensão espacial da defesa implica em reconhecer as características particulares de cada força a ser empregada e o “teatro de operações”. Contudo, de modo geral, podemos dizer que o que marca o Exército é a presença física e mobilidade restrita por operar em terra; a Marinha é marcada pela mobilidade, espacialmente maior que o Exército, embora necessite de portos como pontos de apoio; e por último a força aérea, cuja principal característica é a rapidez e a velocidade do deslocamento, por consequência um alcance geográfico muito maior e permitindo uma distribuição espacial diferenciada de suas bases de operação. A Força Aérea Brasileira-FAB divide o território nacional em Comandos Aéreos-COMAR. Na Amazônia existem dois comandos, o I COMAR, criado em 1935, com sede em Belém e o VII COMAR, criado em 1983, com sede em Manaus. A história registra o papel inicial da aeronáutica na Amazônia com a utilização de hidroaviões e os serviços do Correio Aéreo Nacional-CAN10 (Fig. 6), fundamental no processo de integração da Amazônia ao Brasil. Não menos importante é a atuação da Comissão de Aeroportos da Região Amazônica-COMARA,

10 Os aviões permitiam voos para 147 localidades da Amazônia, propiciando apoio logístico ao exército, as missões religiosas e aos moradores locais.

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órgão responsável pela construção e manutenção de aeroportos na região. Para dar suporte às ações de vigilância na fronteira,o Sistema de Vigilância da Amazônia-SIVAM implantou uma rede de comunicações em diversas cidades da Amazônia. Assim, Tabatinga abriga não apenas o Aeroporto, mas equipes militares dedicadas à vigilância e controle de voos no Destacamento de Tráfego e Controle do Espaço Aéreo-DTCEA. Contudo, o que vem referendar o papel diferenciado da Aeronáutica é aquilo que dissemos acima sobre suas características particulares de velocidade e rapidez do deslocamento. Se a fronteira não é o lugar para estacionar equipamentos de voos pela possível vulnerabilidade, é a Base Aérea de Manaus e mesmo a Base Aérea de Anápolis11 que podem dar assistência a eventos delituosos.

Figura 6. a) e b) Avião Catalina do CAN (TARAUACÁ, 2017); c) Mapa das linhas áreas do CAN (BRASIL, 2016).

Portanto, é o conjunto destas organizações militares tanto brasileiras quanto colombianas e peruanas que se encontram nesta zona fronteiriça e que, a partir dos mais diversos acordos e tratados de cooperação bilateral, realizam atividades isoladas, que dizem respeito a cada um dos países, ou conjuntas, seja de repressão a delitos que afetam a todos os países, seja atividades de confraternização nacional que envolve a sociedade civil. Como a concentração de instituições civis e militares e de estruturas urbana estão mais presentes nas cidades de Tabatinga e Letícia, é compreensível que a dinâmica maior se dê nestas cidades. Considerações finais

11 A reestruturação da Força Aérea Brasileira está substituindo as Bases Aéreas e Comandos por Alas, com o objetivo de separar atividade fim (ações) e meio (administração).

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Apesar do avanço da ideologia neoliberal em afirmar que os Estados devem ampliar a fluidez das trocas impondo, com isso, um novo significado para as fronteiras, não se pode esquecer que cada Estado-nacional possui uma história particular, uma dinâmica produtiva própria, muitas vezes resultado de sua forma de inserção no comercio mundial, colocando em xeque a unificação dos discursos e práticas próprias do pensamento liberal. A rigor, a expansão do pensamento liberal indicando o fim das fronteiras, deveria provocar a gradativa redução dos efetivos de proteção das mesmas. Contudo, são as histórias nacionais e os relacionamentos internacionais, fronteiriços que definirão o que serão as fronteiras. Fomos instigados a investigar o adensamento das estruturas militares entre o Brasil, Peru e Colômbia, seus objetivos e metas a cumprir naquela região, cuja tradição de solidariedade vem desde o final do século XIX, exatamente pelo distanciamento dos centros de poder. Acreditamos ter conseguido atingir os objetivos a partir da compreensão geral sobre fronteira e a sua manifestação empírica, ou seja, num determinado lugar, num determinado momento, sob determinada conjuntura. Do mesmo modo, percebemos como o sentimento nacional numa região de fronteira pode apresentar variações históricas, sendo um componente fundamental da vida fronteiriça. O intercâmbio fronteiriço passa também pelas pessoas, seus habitantes e não apenas pelas instituições, e foi exatamente la amistad que viabilizou esta pesquisa numa região em que o estranhamento é presente. Esta tríplice fronteira já foi denominada de punctidolens na década de 1940 pelo geopolítico brasileiro Lysias Rodrigues (1974), ganhou uma expressão nacional na década de 1980 quando o tráfico de drogas dinamizava a economia local; com a ampliação do aparato militar e da burocracia estatal em ambos os lados ao longo da década de 1990, as cidades passaram a caminhar dentro do aspecto legal. Porém, mais recentemente, verifica-se uma ampliação do tráfico de drogas, tendo como indicador principal as apreensões realizadas pela polícia brasileira no Estado do Amazonas. As estruturas de defesa em ambos os lados se ampliam e ganham relevância dentro da hierarquia militar nos respectivos países em virtude da importância que esta fronteira tem para os três países, embora a participação do Peru seja a menor dentre eles. A ampliação do aeroporto de Letícia e de Tabatinga, a criação da Capitania fluvial da Marinha em Tabatinga, os órgãos de controle de vôo aí instalados, estruturas flutuantes da polícia federal para fiscalização de embarcações, etc. são indícios de que as cidades de fronteira, em meio à sua estrutura urbana, abrigam diferenças frente a outras localizadas fora desta zona. Mais ainda: a dimensão espacial da defesa é muito mais visível numa pequena cidade; as áreas ocupadas por essas estruturas de defesa são significativas frente à estrutura urbana total. Enfim, devemos reforçar que a marca maior destas cidades é a duplicidade de infraestruturas seja militar, seja civil, o que é plenamente compreensível quando se vive num mundo repartido pelos homens em Estados-nacionais, e é a expressão maior também da dificuldade de assimilação das diferenças. Como dissemos acima, é na fronteira que o ser nacional ou o cidadão de uma nação ganha sentido, pois o outro, do outro lado, é outro nacional, e não outro ser humano, com os mesmos sentimentos ou necessidades humanas universais, devendo, portanto, ser tratado diferente. Os dilemas colocados para os Estados- nacionais por um mundo cada vez mais integrados, atravessados por fluxos diversos, velozes, é

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que tudo tende a se tornar global – instituições ecológicas, instituições humanitárias, instituições financeiras, corporações globais, movimentos culturais, ficando o Estado refém de sua fronteira. Será que Michel Foucher (2009) tem razão quando afirma que o mundo para ser habitável precisa de fronteira?

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