Estratégias expansionistas e conflitos políticos em (1575-1641) Mathieu Demaret

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Mathieu Demaret. Estratégias expansionistas e conflitos políticos em Angola (1575-1641). 1º Encontro Internacional de Jovens Investigadores em Históra Moderna, Sep 2009, Lisbonne, . ￿hal- 01736483￿

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políticos em Angola (1575-1641)

Mathieu Mogo Demaret

École Pratique des Hautes Etudes (Paris)

Introdução

O início oficial da presença portuguesa em Angola1 no final do século XVI e no princípio do século

XVII, situa-se num período em que o império português2 sofria importantes alterações políticas e territoriais. Na última parte do século XVI, assistimos a um processo de "territorialização"3. Até

àquela época, o império português era essencialmente uma rede de feitorias e de portos situados nas costas, com pouca profundidade territorial. A partir de 1550, a dinâmica expansionista mudou paulatinamente, e as conquistas territoriais ganharam fôlego, nomeadamente no espaço Atlântico.

Foi neste contexto político que a coroa começou a elaborar uma estratégia específica para Angola.

Desde o início, a política adoptada para aquele território foi caracterizada por constantes ajustes, efectuados em função da evolução dos objectivos políticos e económicos que Lisboa pretendia atingir.

O poder central, quer antes, quer durante o período filipino, não foi o único a formular propostas

1 Os portugueses formaram o termo Angola a partir do nome do chefe político do Ndongo, o Ngola, para designarem o território que colonizaram. Neste texto, empregaremos o termo Angola, não na sua aceitação contemporânea, mas para nos referirmos ao espaço estudado, isto é, a região de e o vale do Cuanza. 2 Empregamos a expressão império português para designar o conjunto das possessões portuguesas. Este texto não pretende interrogar este conceito. Da mesma forma, também não pretendemos interrogar o termo colonial ou colonização, que utilizaremos em certas ocasiões. 3 Tal como foi definido por L. F. Thomaz, nomeadamente no caso de Goa. Sobre esta questão ver De Ceuta a Timor, Lisboa, Difel, 1994, p. 247 políticas para Angola. Os agentes coloniais lá instalados, de forma definitiva ou não, também elaboraram planos a diferentes níveis para defenderem os seus interesses. Estes projectos, baseados num conhecimento do terreno, desencadearam por vezes importantes conflitos políticos e jurídicos, quer entre os diferentes grupos de portugueses, quer entre os portugueses de Angola e o poder metropolitano.

Neste breve estudo pretende-se analisar algumas das propostas estratégicas formuladas pelos portugueses que se encontravam em Angola no final do século XVI e no início do século XVII.

Prestar-se-á especial atenção às propostas que não foram aplicadas, justamente porque a sua não aplicação nos permite esclarecer tanto os objectivos políticos de uns e de outros quanto as relações de força entre os diferentes grupos de indivíduos concernidos. Estes projectos políticos "falhados" serão postos em perspectiva com os conflitos políticos que decorreram naquele espaço. O nosso objectivo é, por um lado, identificar e caracterizar as tensões políticas existentes naquele território, por outro lado, ver em que medida estes conflitos fornecem elementos para delimitar e identificar alguns dos grupos intervenientes no processo de expansão portuguesa em Luanda e no seu hinterland.

Enquadramos o nosso estudo no período da união das Coroas Ibéricas, porque este período apresenta uma certa coerência histórica. Os problemas colocados a partir da restauração da independência de Portugal, em 1640, responderam, tanto a nível local como a nível global, a lógicas diferentes que não pretendemos abordar neste texto.

Política expansionista e propostas estratégicas

Antes de apresentarmos as propostas políticas efectuadas pelos agentes coloniais de Angola, parece- nos importante voltar a situá-las no contexto da política elaborada pela coroa em relação àquele território africano. Na altura da criação da capitania de Angola, em 1571, um dos principais motores da expansão na

África Central era a busca de metais preciosos. Esta busca, que revestia um carácter quase obsessivo, explicava-se pelo facto de Portugal conseguir assegurar o seu abastecimento em ouro e prata apenas através da actividade comercial4. Com a procura de minas, Lisboa pretendia dispor dos seus próprios recursos em metais. Neste início do processo colonial em Angola, a conquista territorial foi portanto privilegiada e passou por confrontos com os estados africanos. A carta de doação então outorgada a Paulo Dias de Novais, apontava igualmente para a necessidade de fixar população europeia nos novos territórios conquistados5, abrindo assim um novo capítulo da expansão portuguesa na África Central Ocidental.

Na década anterior, uma embaixada dirigida por Paulo Dias de Novais e enviada para estabelecer relações diplomáticas com o Ndongo6, fracassou. Foi depois deste fracasso que a fórmula jurídica de capitania-donataria foi adoptada. Ao conceder a capitania de Angola ao neto de Bartolomeu

Dias, o rei de Portugal optou portanto por uma solução diferente da que adoptara em relação ao

Congo. Naquele território, onde tinham chegado em 1483, os portugueses tinham tentado converter as elites políticas conguesas ao catolicismo, para as transformarem em aliados. Enviavam regularmente missionários como conselheiros políticos do soberano africano, sem procurarem criar uma estrutura territorial e política que controlassem exclusivamente.

O modelo de capitania-donataria7 era característico do processo de expansão portuguesa no

Atlântico, e visava, entre outras coisas, conquistar e favorecer a instalação de população portuguesa nos territórios recentemente ocupados, nomeadamente através da utilização do sistema das sesmarias. No caso de Angola, o rei de Portugal utilizou um modelo jurídico-administrativo muito próximo do que vigorava no Brasil.

Durante o seu governo, P. Dias de Novais foi confrontado com uma falta crónica de meios materiais

4 Importa lembrar que na segunda metade do século XVI, o comércio português, nomeadamente o comércio das especiarias, conheceu um relativo processo de decadência. 5 Monumenta Missionária Africana, vol. 3, pp. 36-51. A partir de agora esta obra será designada pelas iniciais MMA, seguidas pelo número do volume e das páginas entre parêntesis, e em certos casos do documento citado. 6 Ndongo era o nome da principal estrutura política do hinterland de Luanda. Era povoado pelos Mbundu. 7 Sobre este tema ver Ilídio do Amaral, O Consulado de Paulo Dias de Novais. Angola no último quartel do século XVI e primeiro de século XVII, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, 2000, pp. 50-53. e humanos. Por esta razão, e apesar de ter conquistado alguns territórios, não conseguiu satisfazer as obrigações estipuladas na sua carta de doação, nomeadamente no que dizia respeito à conquista territorial e à fixação de população europeia. Apesar disso, Filipe II confirmou a validade da carta de doação em 15898. Neste mesmo ano, morreu P. Dias de Novais. A possessão portuguesa encontrava-se numa situação crítica, com a sua estabilidade minada pelos conflitos políticos9.

Depois da morte do capitão-donatário, o poder central procedeu a uma importante reforma administrativa.

Em 1591, Filipe II pediu um relatório que formulasse propostas para melhorar o funcionamento da colónia e "aumentar a fazenda real". O licenciado Domingos de Abreu de Brito foi para Angola para efectuar esta tarefa e em 1592 publicou o documento fundamental para a história do início da presença portuguesa em Angola : Sumário e descrição do reino de Angola e do descobrimento da ilha de Loanda e da grandeza das capitanias do Estado do Brasil10. Este relatório foi redigido num contexto marcado pela derrota dos portugueses contra o Ndongo perto do rio Lucala, em 1590. O autor descreveu os problemas de funcionamento crónicos da administração colonial em Angola, denunciou a falta de meios financeiros e humanos, e apontou para os erros políticos cometidos por

P. Dias de Novais.

O relatório parte destas observações para fazer sugestões que constituíram as grandes linhas da política portuguesa em Angola nos anos seguintes. Duma forma geral, correspondia a uma vontade de centralização do poder. Apontou para a necessidade de substituir a donataria hereditária por um sistema de capitania, através da nomeação dum governador geral por um período de três anos. Para fundamentar esta proposta, D. Abreu de Brito demonstrou que P. Dias de Novais não satisfizera as suas obrigações. O relatório reafirmava também a importância da exploração das minas, apesar de não negligenciar a questão do comércio dos escravos. A partir de 1592, algumas das propostas feitas por D. Abreu de Brito foram aplicadas.

8 MMA 4 (498-511) 9 MMA 3 (429-432) 10 D. Abreu de Brito, Um inquérito à vida administrativa e económica de Angola e do Brasil em fins do século XVI [1591], Coimbra, Imprensa da Universidade, 1931 A reforma implementada pelo poder central tinha também por objectivo pôr um termo a um aspecto singular da expansão portuguesa em Angola : o sistema dos amos11. Este sistema fora criado por

Paulo Dias de Novais para incentivar a conquista territorial. Tratava-se dum modelo jurídico que retomava certos aspectos das relações pré-existentes entre o Ngola e os sobas12 e visava submeter chefes africanos13 aos primeiros conquistadores de Angola e aos jesuítas, o que permitia a estes dois

últimos arrecadar tributos sem que a coroa ganhasse com a operação. Relativamente a esta matéria, o objectivo da reforma de 1592 era fazer que os sobas passassem a ser vassalos directos do rei de

Portugal, afastando assim os conquistadores do processo de levantamento dos tributos. As tensões provocadas por esta medida impediram que o novo governador, Francisco de Almeida, a aplicasse.

Em 1601, João Rodrigues Coutinho, foi nomeado governador por nove anos. A este cargo foi acrescentado o de contratador de Angola14. Estas duas funções não voltaram a ser concedidas conjuntamente nos anos seguintes. O novo governador de Angola tinha por obrigação conquistar os territórios onde se encontravam as minas de prata que os portugueses pensavam encontrar em

Cambambe15. Desta forma, a coroa de Portugal pretendia que o custo da conquista de Angola fosse assumido pelo contratador, e por conseguinte não pesasse nas finanças reais16. J. Rodrigues

Coutinho morreu prematuramente em 1603, sem ter atingido os objectivos que lhe tinham sido fixados, e foi substituído por Manuel Cerveira Pereira.

Em 1607, Manuel Pereira Forjaz recebeu o regimento de governador de Angola17. Ao cruzarmos a documentação, podemos supor que este regimento apresentava várias alterações em relação aos anteriores. Através dele, o rei considerava que a procura de minas de prata na região de Luanda fora um fracasso e gerara despesas supérfluas, e ordenava que cessassem as conquistas territoriais18. Isto 11 Sobre esta questão ver os artigos de B. Heintze :"Luso-african feudalism? The vassal treaties of the 16th to the 18th century", Revista International de Historia de , tomo XVIII, (1980), pp. 111-131 ; "The Angolan Vassal Tributes of the 17th Century", Revista de História Económica e Social, n° 6 (1980), pp. 57-78. 12 O termo soba designa os chefes africanos em Angola. 13 MMA 5 (50-51) 14 O contrato de Angola era um sistema de monopólio comercial concedido pela coroa de Portugal, para fornecer os escravos de que o Brasil e as possessões espanholas da Ámerica do Sul necessitavam. 15 MMA 5 (26) 16 MMA 5 (137) 17 MMA 5 (264-79) 18 MMA 5 (265) implicou uma mudança de estratégia nas relações com as entidades políticas africanas. O documento insistia ainda na necessidade de desenvolver relações pacíficas com os africanos.

Confirmava o fim do sistema dos amos, e ordenava que as doações efectuadas naquele contexto jurídico fossem canceladas. Pode-se considerar que o comércio de escravos suplantou definitivamente a busca de metais naquela época. Os regimentos posteriores não apresentaram grandes modificações.

Em 1616, Luís Mendes de Vasconcelos foi nomeado governador de Angola. O seu regimento insistia nomeadamente na necessidade de manter relações pacíficas com os africanos. No entanto, o mandato de Luís Mendes de Vasconcelos foi marcado por uma lógica de confrontação sistemática com os estados africanos, contradizendo desta forma as ordens régias. Este governo foi também caracterizado por importantes tensões políticas, em particular com Manuel Cerveira Pereira, entretanto nomeado de Benguela. Estes conflitos políticos foram relatados19 pelo missionário Manuel Baptista20, em 1619.

Em 1623, Fernão de Sousa foi nomeado governador de Angola, cargo que ocupou entre 162421 e

1630. Nessa época, Lisboa tentou reactivar as feiras de escravos, que tinham sido fortemente prejudicadas pela lógica guerreira conduzida pelos antecessores do novo governador. Durante o seu mandato, Fernão de Sousa foi confrontado por um lado com a ameaça neerlandesa, na sequência da criação da Companhia das Índias Ocidentais22; por outro lado, com a reconfiguração das relações com os estados africanos, nomeadamente com a rainha Nzinga.

A década de 1630 é relativamente menos documentada do que os períodos anteriores, nomeadamente no que diz respeito a propostas estratégicas para o projecto colonial e a conflitos políticos na colónia. Este período foi caracterizado pela ameaça neerlandesa e pelas queixas dos colonos portugueses de Luanda devidas à falta de meios para assegurar a defesa de Angola. O tema da fortificação de Luanda foi debatido em Lisboa e Madrid. Porém, as medidas tomadas pelo poder

19 Adriano Parreira, Documento no 105 da Caixa no 1, Angola, manuscrito avulso depositado no Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, IICT, 1993 20 Manuel Baptista foi eleito bispo de Congo e Angola em Fevereiro de 1609. Regressou a Lisboa em 1619. 21 B. Heintze, Fontes para a história de Angola do século XVII, Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 1985, pp. 140-153 22 A Westindische Compagnie (WIC) foi criada nas Províncias-Unidas depois do fim da trégua dos doze anos (1609- 1621), entre a Espanha e aquele estado. central revelaram-se insuficientes para impedir a ocupação de Luanda pela WIC em 1641.

Foi neste contexto complexo que, tanto os colonos portugueses como os membros da administração colonial nomeados por Lisboa formularam propostas estratégicas. Entendemos por “propostas estratégicas” o conjunto de projectos políticos coerentes formulado pelos agentes que intervêm e conhecem a realidade do terreno. No caso de Angola, estas propostas referiram-se essencialmente à organização administrativa da colónia, à conquista territorial, à distribuição das terras conquistadas e às relações com as populações africanas. Como já referimos, neste estudo a nossa atenção vai centrar-se nas propostas que não foram aplicadas, porque estas exprimem pontos de vista divergentes dos da coroa.

Embora os projectos formulados pelos agentes coloniais de Angola proviessem de personalidades diferentes e em diversos contextos, podemos observar uma certa continuidade nos que se referem à conquista territorial, nomeadamente à travessia do continente africano.

a) A travessia do continente

Desde o início do processo de colonização de Angola, as propostas relativas à penetração do continente africano ocuparam uma parte importante do discurso político produzido pelos portugueses que lá residiam. Com o avançar dos anos, estas propostas tornaram-se cada vez mais definidas quanto aos objectivos que pretendiam atingir.

A primeira proposta que ia no sentido da travessia do continente foi formulada por Paulo Dias de

Novais e visava abrir um caminho terrestre até ao Monomotapa para facilitar o acesso das minas de ouro daquele estado africano. Em 1584, numa carta dirigida ao rei, este governador de Angola defendia que, se recebesse os recursos militares adequados, seria possível colonizar e atingir o

Monomotapa em menos de sete anos, para depois seguir a partir daquele território até ao Cabo de Boa Esperança23. Numa carta datada do mesmo ano, reiterou a sua proposta24. Em 1585, o desembargador João Morgado apoiou este projecto, afirmando que a política de conquista conduzida por Paulo Dias de Novais até àquela data abrira a possibilidade de aceder ao reino do

Monomotapa25. Em 1586, o missionário jesuíta Diogo da Costa retomou a ideia de abrir um caminho até ao Monomotapa, afirmando que para tal bastavam 2000 soldados26. Em 1588, Diogo

Ferreira, que passara catorze anos ao serviço do rei em África, no Brasil e em Angola, também defendeu a necessidade de conquistar o Monomotapa. Propôs que esta conquista fosse chefiada por um vice-rei, que seria uma "pessoa ilustre do reino", ajudada por fidalgos27.

Em 1591, Domingos de Abreu de Brito redefiniu a ideia de travessia do continente no seu relatório.

Entre outras coisas, propôs abrir um caminho que fosse de Angola até Moçambique via

Monomotapa28. Em certos aspectos, a sua proposta retomava as dos seus antecessores, feitas na década de 1580. O licenciado formulou uma série de soluções que visavam derrotar os chefes africanos situados nos territórios que separam Angola de Moçambique e concluir com eles contratos de vassalagem. Neste projecto, observamos por um lado a reafirmação da vontade de se apoderar das minas de ouro do Monomotapa para financiar o projecto colonial português na África Austral; por outro lado, a vontade de abrir uma rota terrestre que permitisse encurtar o tempo de comunicação entre Lisboa e o Estado da Índia29.

Em 1616, Luís Mendes de Vasconcelos, que acabava de ser nomeado governador de Angola, dirigiu um memorial ao rei de Portugal30. Os argumentos utilizados para fundamentar a necessidade da travessia do continente eram essencialmente de ordem económica e comercial. O objectivo era mais uma vez abrir uma rota terrestre para facilitar o acesso às minas de ouro do Monomotapa e continuar um caminho até Moçambique e ao Oceano Índico. Desta forma, Luís Mendes de

Vasconcelos, pretendia abrir uma alternativa à rota marítima do Cabo de Boa Esperança, onde os

23 MMA 4 (421) 24 MMA 4 (430) 25 MMA 4 (447) 26 MMA 3 (339) 27 MMA 4 (492) 28 MMA 4 (542) 29 D. de Abreu de Brito, op. cit., p. viii. 30 MMA 6 (263-270) barcos portugueses sofriam a concorrência crescente dos navios neerlandeses e ingleses.

O projecto de travessia do continente foi também defendido pelas autoridades religiosas. Em 1623, numa carta destinada ao cardeal Barberini, o colector apostólico de Portugal, António Albergati, via na vontade manifestada pelo rei do Ndongo de se converter ao catolicismo uma ocasião para avançar na conversão das elites africanas e progredir na travessia do continente africano para atingir

Moçambique e Mombassa31.

O projecto de travessia do continente não foi seguido pelo poder central, embora a questão da abertura dum caminho terrestre até ao Monomotapa tivesse merecido alguma atenção por parte de

Lisboa32. No início do seu mandato, em 1607, Manuel Pereira Forjaz intentou esta travessia. Para tal empresa, nomeou Baltasar Rebelo de Aragão que não conseguiu atingir o seu objectivo33. Depois de ter percorrido oitenta léguas, o conquistador teve de voltar atrás para socorrer o presídio de

Cambambe34, que estava cercado pelos africanos.

No último quartel de quinhentos e no início de seiscentos, a coroa Portuguesa não possuía os meios financeiros nem dispunha dos recursos humanos, nem tinha talvez a vontade política para implementar um projecto tão ambicioso e complexo.

O facto da dificuldade da travessia ter sido subavaliada, constituiu um dos obstáculos maiores à realização deste projecto. A distância entre Angola e Moçambique estimada por D. Abreu de Brito e retomada pelos seus sucessores, era muito inferior à realidade. O autor do relatório de 1592 estimava que 400 léguas separavam a costa atlântica da costa índica, quando a distância real era de mais de 450 léguas. Subestimada também era a dificuldade militar e geográfica de penetração do continente. Cabe mencionar que, a partir da década de 1610, a coroa abriu, através do ex- governador de Angola, Manuel Cerveira Pereira, um segundo eixo de conquista territorial. Por um lado, esta nova empresa mobilizava recursos financeiros e militares, por outro os frutos de

31 MMA 7 (172) 32 MMA 5 (247) 33 Sobre este assunto ver R. Delgado, História de Angola, Lisboa, Banco de Angola, 1973, vol. 2, pp. 13-15; e A. Teixeira da Mota, A Cartografia antiga da África central e a travessia entre Angola e Moçambique 1500-1860, Lourenço Marques, Sociedade de Estudos de Moçambique, 1964 34 MMA 6 (340) exploração das minas de cobre situadas no sertão de Benguela pareciam mais imediatos que uma dificultosa e incerta travessia do continente. Esta ideia tinha ganho força depois se ter definitivamente desvanecido a ilusão de encontrar minas de prata em Angola. A conquista de

Benguela provocou importantes tensões entre os colonos de Angola e os conquistadores do novo território que desfrutava duma relativa autonomia em relação ao governo de Luanda.

No entanto, apesar da dificuldade da empresa, o projecto de travessia do continente africano será regularmente reformulado ao longo da história da presença portuguesa na África Austral, nomeadamente nos séculos XVIII e XIX, sem nunca ter sido levado a cabo. Ganhará um relevo particular no final do século XIX, na altura da conferência de Berlim e do ultimato britânico de

1891. Portugal utilizou então estes projectos e tentativas de penetração do continente para reivindicar a soberania histórica sobre os territórios que se situavam entre Angola e Moçambique.

b) O vice-reinado de Angola

Nalguns dos documentos que mencionámos, a proposta de travessia de continente era associada a um projecto de reforma administrativa que se devia concretizar com a criação dum cargo de Vice- rei de Angola. Este projecto provinha tanto de membros da administração colonial como de missionários e inspirava-se no modelo vigente na Índia. O primeiro a fazer uma proposta relativa à criação dum vice-reinado de Angola foi Paulo Dias de Novais numa carta secreta datada de 1576 e dirigida ao seu pai. Nessa carta, evocava a pertinência da criação deste cargo para Angola e para o

Brasil35. Como já vimos, este projecto também foi evocado por Diogo Ferreira em 158836.

Em 1591, D. de Abreu de Brito sugeriu que fossem criados um posto de governador do Congo, um de vice-rei de Angola e outro de vice-rei de Benguela, devendo estes dois últimos ser ocupados por

"ilustres fidalgos" de Portugal. No memorial que dirigiu ao rei em 1616, Luís Mendes de

Vasconcelos defendeu que o território conquistado no âmbito da abertura da rota terrestre entre

35 MMA 4 (288) 36 MMA 5 (26) Angola e Moçambique fosse atribuído a um vice-rei de Ethiopia37, cargo que propunha ocupar. Cabe mencionar que, no seu projecto, Luís Mendes de Vasconcelos também queria diminuir a jurisdição do vice-rei da Índia em Moçambique ao colocar o território de Tete sob responsabilidade do novo vice-rei de Ethiopia38.

Paulo Dias de Novais e Luís Mendes de Vasconcelos cobiçavam ambos o cargo de vice-rei cuja criação propunham. Cabe porém referir que, no império português, este cargo só existiu no Estado da Índia39 e no Brasil em circunstâncias bem definidas, que não estavam reunidas em Angola. Com efeito, o cargo de vice-rei estava intimamente ligado à noção de estatuto social, que nenhum dos autores das propostas para Angola possuía.

Se as propostas de travessia do continente e de criação dum cargo de vice-rei de Angola tivessem sido aplicadas no século XVII, teriam implicado uma reorganização de grande escala, que teria tido repercussões em todo o império ibérico. Apesar de demonstrarem uma "visão imperial" por parte dos seus autores, pareciam corresponder mais a iniciativas pessoais do que a interesses de grupos identificáveis. Em todo o caso, estes planos expansionistas, que careciam de uma certa fundamentação política e teórica, não conseguiram agregar, em Lisboa e em Angola, os apoios necessários para seguirem em frente.

c) A tributação dos chefes africanos

As discussões em torno do tema da tributação das estruturas africanas têm importantes repercussões sobre as relações com as entidades políticas locais. As diferentes propostas relativas a esta questão são fundamentais para compreender os contornos e a evolução da política expansionista portuguesa

37 MMA 6 (264-265) 38 MMA 6 (266) 39 Sobre o perfil social dos vice-reis da Índia ver Mafalda Soares da Cunha e Nuno Gonçalo Monteiro, " Vice-reis, governadores e conselheiros de Governo do Estado da Índia (1505-1834) : recrutamento e caracterização social ", Penélope n° 15 (1995), pp. 91-120 na África central.

Sobre esta matéria, os agentes coloniais portugueses, que conheciam a realidade angolana, formularam vários planos. Durante o período filipino, esta questão cristalizou uma tensão substancial entre os colonos, os membros da administração colonial e o poder metropolitano.

No fim dos anos 1570, o Ndongo recusou-se a abrir o caminho graças ao qual os conquistadores pensavam atingir as cobiçadas minas de prata. Esta recusa acentuou as tensões entre portugueses e africanos. Paulo Dias de Novais, apoiado pelos colonos e pelos jesuítas, encetou então uma lógica de conquista territorial e de submissão dos chefes africanos. Foi neste contexto que o sistema dos amos adquiriu toda a sua importância. Em 1594, na sua Relação Anual dos Padres da Companhia,

Fernão Guerreiro explicava que os amos retomavam em parte o sistema de relações existente entre os sobas e o rei do Ndongo. Os sobas "avassalados" pelos conquistadores portugueses passavam a ter um "protector" que fazia parte da "corte" do governador português, tal como tinham antes um protector que pertencia à corte do rei do Ndongo40.

Fernão Guerreiro afirma ainda que, durante o seu mandato, Paulo Dias de Novais submetera muitos chefes africanos. No entanto, depois da morte do primeiro governador de Angola, muitos destes

"senhores" tinham deixado de reconhecer a autoridade portuguesa41, mostrando desta forma o carácter frágil e aleatório dos laços entre portugueses e africanos.

Depois da supressão definitiva do sistema dos amos em 1607, os moradores portugueses de Angola começaram a elaborar projectos para contrabalançar a perda daquela importante fonte de rendimento. Pretendiam também contrariar a dinâmica de concentração do poder nas mãos dos membros da administração colonial que, teoricamente, agiam em proveito do poder central.

Numa carta escrita em 1618, Baltasar Rebelo de Aragão, que tinha perto de 26 anos de presença em

Angola, fez uma descrição detalhada da situação política e económica do território. Entre outras coisas, o velho conquistador salientava as potencialidades da colónia e denunciava o papel dos membros da administração em relação ao levantamento dos tributos. Para remediar esta situação, B.

40 MMA 5 (50-51) 41 MMA 4 (557-558) Rebelo de Aragão propôs substanciais alterações jurídicas, retomando alguns aspectos característicos do sistema dos amos. Defende que os sobas deviam ser submetidos aos conquistadores, o que, na sua opinião, impediria que fossem cometidos desvios e extorsões por parte dos capitães e governadores portugueses. B. Rebelo de Aragão propôs igualmente que os tributos fossem pagos em produtos agrícolas e não em escravos, a fim de diminuir o contrabando.

Sustentava ainda que o desaparecimento das feiras de escravos decorria tanto da atitude guerreira dos portugueses como da corrupção de certos membros da administração colonial42. Denunciava, desta forma, a criação dum imposto de 10 % sobre as vendas de escravos em proveito dos governadores.

Em 1620, o conquistador Garcia Mendes de Castelo Branco, que passara perto de quarenta anos em

Angola, foi a Madrid para defender um projecto de aforamento dos sobas, que retomava em muitos pontos a proposta formulada por B. Rebelo de Aragão43. No entanto, a proposta de Garcia Mendes de Castelo Branco previa conceder um papel menos importante à administração colonial, argumentando a diminuição dos custos para a coroa. Este projecto, no qual Luciano Cordeiro viu a influência dos jesuítas, retomava também os contornos dum sistema semelhante ao dos amos. O sistema de tributação previsto pelo conquistador devia ser supervisado por um comissário responsável pelo levantamento dos tributos, cargo que o próprio G. de Castelo Branco cobiçava.

Esta reforma devia também ser acompanhada por um projecto de instalação de famílias europeias no sertão angolano. Garcia Mendes Castelo Branco estimava que graças ao novo sistema de levantamento dos tributos, a fazenda real poderia arrecadar 15 000 000 de réis44. Afirmava que, naquela época, havia 200 sobas vassalos dos portugueses45.

Todavia, estas duas propostas não foram retomadas pelo poder central, certamente porque atribuíam um papel relevante aos conquistadores de Angola e por conseguinte constituíam um entrave à

42 MMA 6 (332-343) 43 MMA 6 (437-481) 44 MMA 6 (446) 45 MMA 6 (446-452) intenção da coroa de concentrar o poder na colónia africana. Apenas a ideia de comissário responsável pelo levantamento dos tributos foi retomada e aplicada pelo governador Fernão de

Sousa. A partir de 1624, o novo governador de Angola implementou um sistema centralizado de levantamento dos tributos, em que eram suprimidos todos os intermediários. Apoiando-se no sistema do baculamento46, o novo governador de Angola conseguiu melhorar de forma efectiva o levantamento dos tributos durante o seu mandato. Os conquistadores, militares e membros da administração eram então expressamente proibidos de levantar tributo.

Fernão de Sousa conduziu uma política sistemática de "avassalamento" dos sobas e de levantamento dos tributos. Reactivou também as feiras de escravos no sertão angolano. Desta forma, procurou assentar o domínio territorial e económico dos portugueses no vale do Cuanza. Em

1625, numa carta que dirigiu ao rei, afirmava que apesar do esforço de guerra fornecido contra certos estados africanos e contra os neerlandeses, não negligenciara a questão do levantamento dos tributos47. Para este efeito, enviara Manuel Dias para o interior das terras. Nesta carta, o governador fazia um primeiro balanço da sua acção : informava que conseguira que 109 sobas pagassem baculamento. Afirmava que "recuperara" os sobas que reconheciam a autoridade portuguesa na altura de Luís Mendes de Vasconcelos e que se tinham afastado devido à política de João Correia de

Sousa. Defendia que não se devia usar a força militar para proceder ao levantamento dos tributos48.

Naquela época, António Bezerra Fajardo, que fora para Angola com João Correia de Sousa, considerava que os tributos pagos pelos sobas obedientes rendiam anualmente 12 ou 13 000 cruzados.

O sistema de levantamento dos tributos devia ter sido suprimido por Pedro César de Menezes no início da década de 1640, mas esta medida não chegou a ser aplicado devido à ocupação holandesa de Luanda

46 A propósito deste termo A. Brásio diz : " O baculamento era um tributo de reconhecimento de vassalagem, de vassalo para senhor, pago a el-Rei de Portugal, correspondente ao tributo chamado luanda, pago pelos sobas ao Rei de Angola. Os governadores não podiam, legalmente, pedir luanda aos sobas, porque já pagavam baculamento ao Rei de Portugal", MMA 7 (348) 47 MMA 7, doc. 117 48 MMA 7, doc. 137 Todas estas propostas visavam oficialmente melhorar o levantamento dos tributos sobre os chefes africanos e defendiam teoricamente o desenvolvimento de relações pacíficas com os poderes políticos locais. Na documentação, podemos identificar essencialmente duas posições. Uma primeira posição, incentivada pelo poder central e defendida por alguns membros da administração colonial, consistia em afastar os colonos do processo de levantamento dos tributos para eliminar os intermediários e limitar as perdas para a fazenda real. Uma segunda posição, essencialmente defendida pelos conquistadores que haviam chegado nos primeiros anos da colonização, e pelos jesuítas de Angola, que se aproximava do sistema dos amos.

É importante salientar que para fundamentarem as suas propostas, tanto Garcia Mendes de Castelo

Branco como Baltasar Rebelo de Aragão criticaram o papel desempenhado pelos governadores e capitães de presídios que acusavam de cometer extorsões sobre os chefes africanos. Estas extorsões, que tinham por consequência uma degradação notória das relações entre portugueses e africanos, deviam-se essencialmente aos baixos vencimentos dos soldados e dos membros da administração.

Os conquistadores acusavam-nos de prejudicar não só o levantamento dos tributos como também as redes comerciais que eram essenciais para o comércio dos escravos, e de que vivia a maior parte dos colonos de Angola. Esta divergência de interesses traduzia-se regularmente em conflitos entre os diferentes grupos de portugueses presentes em Angola.

d) Colonização e exploração das terras

A política de atribuição e de repartição das terras também constituiu um dos elementos centrais do processo de colonização. No início da conquista da região de Luanda, a distribuição das terras fazia- se através do sistema das sesmarias, graças ao qual os governadores podiam conceder terras aos colonos e aos missionários. Em contrapartida, os proprietários das terras eram obrigados a cultivá- las num prazo de cinco anos. Estas terras eram submetidas ao regime da dízima. Quando assumiam o seu cargo, os governadores deviam fazer um balanço da distribuição das terras, para eventualmente redistribuírem as que não eram cultivadas pelos seus donos. Fernão de Sousa, por exemplo, estabeleceu um mapa detalhado das propriedades agrícolas dos arredores de Luanda quando chegou a Angola49.

A lógica de confrontação com os estados africanos seguida por alguns governadores também tinha como objectivo a distribuição das terras conquistadas pelos colonos. Na sua História de Portugal,

Manuel Severim de Faria afirma que João Correia de Sousa "libertou" um território de 12 léguas à volta de Luanda, depois de ter vencido o soba Cassange. Distribuiu então as terras pelos soldados veteranos, para que estes as cultivassem50.

Em 1618, Baltasar Rebelo de Aragão defendeu que o desenvolvimento da cultura das terras poderia ser benéfico para a coroa, graças à instauração de taxas sobre os produtos agrícolas. Num documento de 1622, António Dinis afirmava porém que os portugueses de Angola estavam mais interessados no comércio de escravos do que no cultivo das terras51. Este autor também salientava que a venda de escravos gerava rendimentos consideráveis, o que criava um desequilíbrio acentuado dos preços alimentares.

Apesar de a coroa manifestar a intenção de colonizar a região de Luanda na documentação oficial, a população europeia permaneceu estável na primeira metade do século XVII. A actividade económica era dominada pelo comércio de escravos, o que limitava o desenvolvimento da actividade agrícola e o aumento da população europeia.

A conflitualidade

No que diz respeito aos projectos expansionistas, observámos substanciais pontos de divergência entre a coroa e certos agentes coloniais. Estas divergências podem ser postas em perspectiva através

49 B. Heintze, Fontes para a história de Angola do século XVII, Stuttgart, Franz Steiner Verlag, 1985, pp. 158-165 50 MMA 7 (79) 51 MMA 7 (67) do número significativo de recursos à justiça constatados em Angola naquela época. A documentação dos séculos XVI e XVII evidencia um alto grau de conflitualidade, tanto entre os agentes coloniais e a metrópole como entre as diferentes categorias de agentes coloniais. Esta realidade demonstra uma profunda instabilidade política na colónia.

À primeira vista, a maior parte destes diferendos parece limitar-se a conflitos de interesses opondo uma ou várias pessoas; mas uma leitura mais pormenorizada da documentação permite-nos constatar que muitos desses diferendos têm implicações políticas.

Para abordar esta conflitualidade, vamos concentrar-nos na figura do governador e analisar os conflitos que lhe estão ligados. Entre 1575 e 1641, sucederam-se vinte governadores, dezassete dos quais entre 1592 e 1641, isto é, depois do fim do sistema da capitania-donataria. Destes vinte, apenas onze foram nomeados directamente pela coroa. Nove assumiram o poder em circunstâncias

"anormais", quer por morte do governador durante o seu mandato, quer por interrupção de um mandato. Quatro governadores foram presos antes do fim, no fim, ou depois do seu mandato. Os governadores que assumiram o poder em circunstâncias "anormais", foram quer eleitos pelos moradores de Luanda, quer escolhidos ou nomeados pelos jesuítas, quer escolhidos por ambas as partes.

O primeiro governador preso foi Francisco de Almeida. Fidalgo abastado, fora nomeado governador de Angola, para onde fora com 400 a 600 soldados, entre os quais numerosos cavaleiros fidalgos52.

Ao querer aplicar a provisão régia que acabava com o sistema dos amos, este governador viu-se confrontado com os interesses dos primeiros conquistadores, que na sua grande maioria tinham chegado a Angola durante o mandato de Paulo Dias de Novais, e com os dos jesuítas. Trata-se de uma luta política caracterizada entre o poder central e os colonos. O irmão de Francisco de Almeida,

Jerónimo de Almeida, tomou o partido dos conquistadores, anulou a provisão régia e assumiu o cargo de governador de Angola53. Neste conflito, os jesuítas alegaram o seu papel central no processo da "conquista" de Angola para pedirem ao novo governador que não alterasse o regime de

52 R. Delgado, op. cit. vol. 1, p. 371 53 MMA 3 (133) propriedade das terras. O seu representante, o Padre Baltasar Barreira54, adiantou que sem as terras e os sobas que possuíam, os jesuítas seriam obrigados a regressar ao Brasil e a Portugal, dado que não teriam recursos suficientes para se manterem em Angola. Acrescentou ainda que o rei estava mal informado ao querer proceder a uma reforma daquela natureza. A tentativa de centralização do poder conduzida por Francisco de Almeida foi portanto um fracasso, dado que os colonos se organizaram para salvaguardar os seus interesses contra a vontade da metrópole. O conflito culminou com a expulsão de Francisco de Almeida de Angola pelos jesuítas e pelos moradores55.

O segundo governador a ser preso foi Manuel Cerveira Pereira. Em 1607, o novo governador

Manuel Pereira Forjaz prendeu Manuel Cerveira Pereira que fora nomeado governador pelos jesuítas depois da morte de João Rodrigues Coutinho, em 1603. Manuel Cerveira Pereira era acusado de se ter apoderado dos bens do governador defunto56. Depois de ter regressado a Portugal,

Manuel Cerveira Pereira conseguiu justificar a sua inocência. Em 1612, logrou que o rei concordasse com o seu projecto de conquista de Benguela. Em 1616 voltou a Angola e em 1617 fundou Benguela e iniciou a penetração do seu sertão com o objectivo de apoderar-se da minas de cobre que se encontravam naquela região.

Durante o mandato de Luís Mendes de Vasconcelos, Angola foi abalada por importantes confrontos políticos, nomeadamente entre Manuel Cerveira Pereira e o governador57. A 15 de Junho de 1618, o principal representante da justiça em Angola redigiu um auto a pedido de Manuel Cerveira Pereira.

Este queria assim notificar à coroa de Portugal que em Luanda haviam sido redigidos documentos contra ele e contra a empresa de colonização de Benguela58. As tensões intensificaram-se na altura da chegada de João Correia de Sousa a Luanda, em 1621. Naquele ano, António Bezerra Fajardo redigiu um auto contra Luís Mendes de Vasconcelos, para que o novo governador pudesse ordenar a sua prisão59, a penhora dos seus bens e o seu degredo para Portugal. Luís Mendes de Vasconcelos foi

54 MMA 15, doc. 124 55 MMA 15 (323-327) 56 MMA 6 (192) 57 MMA 6, docs 106, 107, 109, 119, 144 58 MMA 6 (308) 59 A propósito deste conflito ver MMA 7, doc. 64 preso, mas conseguiu fugir durante uma escala no Brasil60. Alguns meses mais tarde, defendeu pessoalmente o seu caso na corte de Portugal. Poucos anos depois, foi consultado pelo Conselho da

Fazenda sobre assuntos relativos a Angola.

O quarto governador a ser preso foi João Correia de Sousa. Este governador travou uma política sistemática de confronto com os africanos, nomeadamente contra o chefe de Cassange. Tal forma de proceder era contrária às instruções contidas no seu regimento, que estipulavam que o governador devia manter relações pacíficas com as estruturas políticas africanas. O conflito contra Cassange culminou com a prisão dos principais chefes daquela estrutura política, com a sua degolação em praça pública e com o degredo de outros chefes de menor importância. A questão deste degredo arrastou-se durante a década de 1620. Manuel Severim de Faria relatou que o mandato de João

Correia de Sousa foi marcado por importantes tensões políticas, que atingiram o auge com uma dura polémica entre o governador e os missionários jesuítas61. A prisão e o degredo para Portugal do reitor do colégio dos jesuítas de Luanda, Jerónimo Vogado, e de Mateus Cardoso62, estavam na origem deste conflito. Depois de ter preso André Morais Sarmento, o mais alto responsável judicial da colónia, João Correia de Sousa fugiu de Angola, para se refugiar em Cartagena das Índias, deixando a colónia mergulhada numa situação de profunda instabilidade. Nos anos seguintes, o próprio João Correia de Sousa foi preso, sendo acusado de ter prejudicado os interesses da coroa de

Portugal em Angola63.

O mandato de Fernão de Sousa também foi marcado por conflitos, nomeadamente centrados na pessoa de Bento Ferraz, vigário geral de Angola. Um primeiro conflito opôs Bento Ferraz a Fernão de Sousa, no início do mandato deste último. O governador de Angola relatou este diferendo à Mesa do Paço64, em 1625. Alguns meses mais tarde, um segundo conflito opôs Bento Ferraz e Domingos

Feio65. Bento Ferraz tentou contestar a autoridade de Fernão de Sousa e portanto da coroa. Fernão

60 MMA 7 (78) 61 MMA 7, doc. 58 62 MMA 7 (80) 63 MMA 7 (81) 64 MMA 7, doc. 106 65 MMA 7, doc. 129 de Sousa pediu a nomeação dum novo vigário de Angola ao responsável religioso do Congo66. O rei de Portugal acabou por exigir que Bento Ferraz fosse embarcado para Portugal onde deveria prestar contas à Mesa de Consciência e Ordens67, e nomeou Dionísio de Faria no seu lugar. A atitude de

Bento Ferraz foi mais uma tentativa de resistência à política centralizadora da coroa.

Embora todos estes elementos não sejam suficientes para fornecerem uma caracterização definitiva do cargo de governador, podemos formular através destas quatro figuras, algumas hipóteses para traçar um perfil dos governadores de Angola. O governador era uma figura que concentrava as tensões políticas existentes na colónia, nomeadamente entre os moradores instalados havia vários anos e o poder central. Embora a prisão de governadores seja uma expressão recorrente destas tensões, não significa necessariamente a decadência política dos governadores concernidos.

Francisco de Almeida, Manuel Cerveira Pereira e Luís Mendes de Vasconcelos continuaram a desempenhar, a vários níveis, um papel político relevante. Importa também referir que os governadores não eram agentes coloniais neutros, dado que participavam de forma activa no comércio de escravos e tinham ligações com as redes comerciais do império, como era o caso de

Luís Mendes de Vasconcelos e de João Correia de Sousa.

A situação de instabilidade política que se manifestou em torno da figura do governador proporcionou uma importante margem de manobra aos moradores, que assumiram o poder em várias ocasiões naquele período. Neste contexto, é importante referir também o papel activo dos jesuítas, que muitas vezes apoiam os moradores antigos de Angola.

Conclusão

Durante o período de 1575-1641, a coroa de Portugal afirmou várias vezes a sua evidente vontade de centralização do poder. No entanto, a implementação dum poder colonial forte em Angola não

66 Sobre este conflito ver MMA 7, docs. 131, 132, 138, 139, 165 e MMA 8, doc. 35 67 MMA 7 (487) fazia parte das suas prioridades estratégicas, e por conseguinte a colonização daquele território padeceu duma falta crónica de recursos, limitando-se à gestão dos conflitos políticos que iam surgindo.

Na maioria, os projectos de expansão elaborados pelos agentes coloniais radicados em Angola não foram aplicados pelo poder central. O investimento que requeriam não compensava os frutos que a coroa podia esperar colher depois da sua implementação. Com efeito, nos primeiros anos de presença portuguesa em Angola, a conquista territorial foi muito superficial e limitou-se a Luanda e aos seus arredores. A política de expansão territorial seguida por Lisboa foi marcada por uma série de ajustes. A estratégia adoptada pela coroa consistia em controlar alguns pontos estratégicos e as rotas comerciais que permitissem o acesso às redes comerciais por onde transitavam os escravos destinados ao continente americano.

No que diz respeito às dinâmicas e aos grupos que constituíam o espaço colonial, podemos constatar que os objectivos comerciais obrigaram a uma constante adaptação à complexa realidade da sociedade colonial que se encontrava então em formação em Angola.

Neste texto, fizemos a distinção entre colonos e membros da administração colonial, embora esta divisão seja imperfeita. Com efeito, na documentação encontramos diferentes termos para designar as categorias de agentes coloniais. No seu relatório de 1591, Domingos Abreu de Brito diferenciava dois grupos entre os portugueses instalados em Angola : por um lado os moradores, colonos instalados em Luanda que se enriqueciam graças às suas actividades comerciais; por outro lado, os conquistadores, colonos empobrecidos e abandonados pelo poder central, que mantinham uma actividade militar no interior das terras. Podemos ainda acrescentar que os conquistadores, chegados nos primeiros anos da conquista de Angola, eram oriundos da nobreza, não necessariamente muito baixa. Este grupo tendia a combater a vontade centralizadora da coroa, mas o seu peso político foi- se paulatinamente reduzindo ao longo dos anos.

A documentação também evidencia o papel desempenhado pelos membros da administração, que muitas vezes eram acusados pelos moradores de cometer extorsões sobre os africanos, prejudicando o comércio de escravos. Cabe enfim salientar o papel político desempenhado pelos jesuítas, que acabaram por ser agentes coloniais tão importantes como os outros grupos, dado que se tornam proprietários de terras e que alguns dos seus membros, como é sabido, participam mesmo no comércio de escravos. Em várias ocasiões, os seus interesses chocam com os da coroa.

A delimitação de grupos no contexto angolano do século XVII é portanto extremamente complexa e os elementos aqui apresentados não podem constituir uma análise definitiva. Convinha em primeiro lugar proceder a uma análise mais sistemática dos agentes coloniais, explorando as suas origens sociais e geográficas, os motivos da sua ida para Angola, o tempo de permanência naquele território, os seus laços familiares no império etc. Seria também importante estudar as informações relativas a grupos menos "visíveis" na documentação : degredados; outros europeus nomeadamente neerlandeses; grupos que serviam de intermediários entre os colonos e os africanos, quer nas questões comerciais, quer nas questões coloniais.

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