A CANOA DO AMOR SE QUEBRA NO COTIDIANO

THE LOVE'S CANOE IS BREAKING EVERYDAY

Irene Severina Rezende - (UNEMAT)1

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo propor sugestões interpretativas para o poema “Soneto de Fidelidade”, de Vinícius de Moraes. Para isso foi feito um pequeno levantamento da vida do poeta e de seu estilo, para depois se realizar a análise do soneto, abordando a estrutura, forma e a harmonia do mesmo. Com base nesses elementos, tentou-se sugerir uma das possíveis análises que se pode desenvolver a respeito do tema do amor. Para esse trabalho foram de grande valia os estudos de Alfredo Bosi, Antonio Cândido e José Aderaldo Castello, entre outros.

Palavras-chave: Vinícius de Moraes, lírica, poesia brasileira.

ABSTRACT: This paper aims to propose interpretive suggestions for the poem "Sonnet of Fidelity", . For this we made a small survey of the poet's life and your style, then perform the analysis of the sonnet, addressing the structure, form and harmony of it. Based on these elements, we tried to suggest one of the possible analyzes that can develop on the subject of love. For this work were valuable studies of Alfredo Bosi, Antonio Candido and Jose Aderaldo Castello, among others.

Keywords: Vinicius de Moraes, lyrical, Brazilian poetry.

1Doutora em Estudos Literários de Literatura Comparada, pela Universidade de São Paulo: USP. É também Mestra em Estudos Literários de Literatura Comparada, pela mesma Universidade. É professora Adjunta do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso, (UNEMAT) Faculdade de Letras, Campus de Tangará da Serra, MT, CEP -78.300.000, Brasil. Pesquisa: A Literatura Fantástica como forma de representação da Opressão e da Utopia Revolucionária na América Latina. Tem publicado os livros de poemas: Prolongamento (2005); Páginas rendadas colhidas ao amanhecer (2012); O Fantástico no contexto sócio-cultural do século XX: José J. Veiga (Brasil) e : (Moçambique) (2010); além de diversos artigos em Revistas Literárias. e-mail: [email protected]

A canoa do amor se quebrou no quotidiano. Maiakovski

A carreira de Vinícius de Moraes, como escritor, teve início em 1933 quando o poeta tinha apenas 20 anos, época em que ele publicou seu primeiro livro de poesia: O Caminho para a Distância, no qual apresentava poemas que tinham “como principal motivo o desejo de alcançar alturas”, segundo Valéria Rangel (2007, p. 08). Para essa estudiosa, quando Vinícius de Moraes publicou Forma e Exegese, em 1938, ele ainda buscava o sublime com bastante força, mas a certeza do pecado aparecia com maior violência, separando-o ainda mais de seus desejos de ascensão e, ainda de acordo com a autora, essa primeira poesia de Vinícius vinha “carregada de uma retórica suntuosa e de dramas ligados aos dogmas do catolicismo (...) com uma literatura composta por versos bíblicos e solenes”. (RANGEL, 2007, p. 09-10). José Aderaldo Castello e Antonio Candido (1972, p.344), antes de Valéria Rangel, haviam afirmado a respeito da obra de Vinícius de Moraes:

A partir de Cinco Elegias (compostas em 1938), nota-se uma inflexão, manifestada no plano formal pela maior contenção do verso; no plano dos assuntos, por uma maior liberdade de escolha e de expressão. É o que se verifica nitidamente em Poemas sonetos e baladas (1946), onde firma a sua maturidade e onde aparecem os matizes mais pessoais da sua inspiração. Inclusive o recurso intensivo às formas regulares, usadas com maestria excepcional, e a ousadia inovadora no uso de palavras muito realistas, e ao mesmo tempo muito líricas para descrever a ternura física.

Manuel Bandeira observou sobre as primeiras obras de Vinícius, que o escritor tinha uma forma muito solta, desabalada de compor e necessitava de mais disciplina; José Aderaldo Castello, (1994, p.11-14), lembrou que, a paixão pela transitoriedade e pelo risco eram os fundamentos de sua grande arte de viver, e que o poeta viveu para se ultrapassar e para se desmentir, para se entregar totalmente e fugir, depois, em definitivo. Para jogar com as ilusões e com a credulidade, por saber que a vida nada mais é que uma forma encarnada de ficção; “Carlos Drummond de Andrade, [...] disse, certa vez: “Vinícius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural. [...] Eu queria ter sido Vinícius de Moraes”. “Foi o único de nós que teve vida de poeta” (CASTELLO, 1994, p. 11-15).

Mas a carreira de Vinícius de Moraes só se consolidou no momento em que surgiu a “Bossa Nova”, no Brasil, em fins dos anos 50, quando apareceram no país, compositores que propunham mudanças. É nessa época que os artistas se voltam para as obras literárias de Carlos Drummond de Andrade, de Guimarães Rosa, de , de Fernando Pessoa, e de muitos outros. Entre esses compositores estavam de Holanda, que musicou os versos de Morte e vida Severina de João Cabral de Melo Neto; que, em sua composição “SAMPA”, cita a poesia concreta dos Campos, Maria Bethânia que enriqueceu seus LPs com os versos de grandes poetas, como os de Fernando Pessoa; Toquinho e Vinícius que cantavam as composições desse último. Assim, nessa época, com as canções da MPB, aparecia a força criadora do poeta Vinícius de Moraes, um dos principais compositores e intérpretes brasileiros, com um estilo predominantemente lírico e coloquial, e agora, já desligado dos temas religiosos. O poeta se tornou, então, um importante nome na história da música brasileira, tanto por suas composições, quanto pela sua visão madura a respeito da arte em geral. “A partir daí, a história das letras em nossa música popular se divide, sem qualquer exagero, entre o Antes-de-Vinícius e o Depois-de-Vinícius”. O poeta, ao emprestar seu coração à música, se transforma numa fronteira”. (CASTELLO, 1994, p. 200). Para se entender melhor a obra de Vinícius, é necessário conhecer também um pouco da vida do poeta e saber que as próprias experiências podem ter influenciado sobremaneira suas composições e que certamente os amores vividos lhe serviram de inspiração. Carioca, do Rio de Janeiro, Vinícius foi diplomata, jornalista, poeta, dramaturgo, compositor e cantor. Como compositor, o seu grande tema sempre foi a mulher e o amor em seus múltiplos significados e em seus mais variados tons. “Vinícius enfrentou os grandes dramas do ser humano, ousou falar de suas fraquezas, negou a superioridade masculina e viveu como cantou, casando-se nove vezes. (CASTELLO 1994, p.17). Chamado no país, de “poetinha”, “poeta do amor”, “poeta da mulher” e “poeta da paixão”, conhecido como boêmio e namorador, o poeta aceitou todos os rótulos que lhe impuseram sem contestá-los. Sabe-se, entretanto, que ele foi muito mais que o boêmio e que o namorador, já que sua poesia passou a ser lida e admirada, tendo seu nome alinhado aos de grandes poetas do país, como os de Manuel Bandeira e Murilo Mendes. Alfredo Bosi (1994, p. 558-559) afirma sobre o “poeta cantor”:

Os primeiros livros de Vinícius de Moraes foram escritos sob o signo da religiosidade neo-simbolista que marcou o roteiro de Schimidt; mas a urgência biográfica logo deslocou o eixo dos temas desse poeta lírico por excelência para a intimidade dos afetos e para a vivência erótica. Vinícius será talvez, depois de Bandeira, o mais intenso poeta erótico da poesia brasileira moderna. Tratando-se, porém, de um sensualismo contrastado ab initio pelas reservas de uma educação jesuítica, o poeta oscila entre as angústias do pecador e o desejo do libertino. O fato em si mesmo, de resto banal como caso psicológico, não interessaria se não interviesse no modo de escrever de Vinícius

[...] Alguns de seus sonetos deram vida nova à forma antiga e povoaram de ecos camonianos o estilo de não poucos jovens estreados depois da guerra. (grifamos).

Certamente as angústias, que conheceu de perto, nos relacionamentos amorosos, onde corpo e alma, fé e sexo, se misturavam na tomada das grandes decisões de sua vida, o ajudaram a construir o tema de suas obras, que foi predominantemente o amor. Esse tão contraditório sentimento, como já apontava Camões, (1975, p. 181): “se tão contrário a si é mesmo o Amor?”, foi retratado nos versos de Vinícius de Moraes, de todas as maneiras que se pode retratar, ou seja, Vinícius, envolvido pela facilidade de versejar sobre o amor, cantou os amores impossíveis, tais como aqueles que acabam em saudade ou em carência; cantou o amor platônico, como aqueles que existem apenas em pensamento e nunca se realizam; cantou os que terminam em solidão ou que nunca terminam para uma das partes; cantou o amor que escraviza e que resulta em prisão ou morte e, sobretudo aquele que, inevitavelmente culmina em sexo; cantou o amor cortês, o amor sensual; o amor ao amor, ainda que amor seja sentimento de difícil definição, ou seja, é “um não querer mais que bem querer”, (Camões 1975, p. 181); Vinícius sabia que o amor pode vir misturado a uma gama de outros sentimentos, devido à intensidade e à contradição do mesmo, assim sendo o poeta fez das relações humanas de amor, o seu tema principal. “O que torna Vinícius de Moraes um grande poeta é a percepção desse lado obscuro do homem. E a coragem de enfrentá-lo. Vinícius parte, desde o princípio, dos temas fundamentais: o mistério, a paixão e a morte”. (CASTELLO, 1994, p. 14) O “poeta do amor” criou uma nova concepção ao cantar esses amores de que falamos, uma vez que, em seus poemas, destruiu a noção da “eternidade do amor”, como era costume na época do romantismo. Ele elaborou em sua lírica, uma visão singular do amor, capaz de reunir num mesmo verso o efêmero e o eterno: “Que seja infinito enquanto dure”, pois em seus textos ressoa a lírica camoniana, como bem afirmou Alfredo Bosi, na citação anterior. Em seus textos, especificamente, ressoa a lírica do conflito amoroso que se situa entre o ideal e o real, pois muitas vezes, ao concluir a idéia de um texto, o poeta, ao invés de reiterar a concórdia do amor, nega essa mesma idéia nos últimos versos, como acontece com o “Soneto de Fidelidade”, poema que figura entre os mais conhecidos, mais lidos, e, certamente, um dos mais estudados do autor e que selecionamos para esse artigo. Sendo um dos grandes nomes do lirismo no Brasil, Vinícius de Moraes conseguiu exprimir, em seus sonetos, as noções sobre o significado de amar, lembrando que o homem deve ser livre e que, muitas vezes a obrigação da fidelidade escraviza o ser humano, e para reiterar essa ideia escreveu seus vários sonetos, cuja forma torna-se a marca do poeta, a partir de quando ele escreve “Quatro sonetos de meditação”, “Soneto do maior amor”, “Soneto de separação”, “Soneto de despedida”, “Soneto do amigo”, “Soneto a quatro-mãos”, entre tantos outros, até que em 1957 publica sua obra: Livro dos sonetos. O soneto, sabemos, é o poema de forma fixa que atravessou os tempos, chegando até nossos dias. Segundo Candido (1996, p. 20), é uma adoção de um instrumento expressivo italiano (ou fixado e explorado pelos italianos) apto pela sua estrutura a exprimir uma dialética. Ainda de acordo com o estudioso, o soneto é uma forma ordenada e progressiva de argumentação e nela há certa analogia entre a marcha do soneto e a de certo tipo de raciocínio lógico em voga ainda no tempo de Camões: o silogismo. Em geral, segundo o estudioso, contém uma proposição ou uma serie de proposições (ou algo que se pode assimilar a ela) e uma conclusão (ou algo que se pode a ela assimilar). Todos nós sabemos que o modelo clássico de soneto obedece à composição em decassílabos e ao esquema de rimas ABBA, ABBA, CDC, DCD. Porque, de acordo com Candido, (1996, p. 20), este esquema permite a divisão do tema e a constituição de uma rica unidade sonora, na qual a familiaridade dos sons e a passagem dum sistema de rimas a outro ajuda ao mesmo tempo o envolvimento da sensibilidade e a clareza da exposição poética (proposição, conclusões). O soneto de Vinícius de Moraes “Soneto de Fidelidade”, segue a estrutura formal da metrificação perfeita com os versos decassílabos, e a disposição das rimas bem marcadas e alternadas como acontece nos poemas de Petrarca, de Camões de Fernando Pessoa, dentre outros. “Soneto de Fidelidade” foi retirado do livro Poemas, Sonetos e Baladas, escrito em 1946, em cuja obra Vinícius apresenta um uso mais regular da métrica e das formas fixas tradicionais como o próprio título já sugere, ou seja, a obra está composta por baladas e sonetos num momento em que o poeta procurava abandonar o idealismo religioso de seus primeiros versos e buscar uma poesia mais próxima da realidade concreta, momento em que “deslocou o eixo para a intimidade dos afetos” segundo Bosi, (1972, p. 510-511) o que nos remete às palavras de Norma Goldstein (1989, p. 07), quando essa autora lembra que a questão do sujeito “da (na) poesia” de expressão pessoal, o sujeito lírico: do “ego” racionalista da poesia clássica, passa pelo subjetivismo romântico e chega ao sujeito da poesia moderna, quando, assumindo a diferença entre o “eu” real do poeta e o “eu” que aparece no poema, o conceito de sujeito lírico se amplia. Ou seja, se a apreensão do mundo se faz por meio da linguagem, nada impede que a vida e a poesia desse autor se misturem num todo artístico, manejadas pelas mãos poéticas do homem Vinícius, onde se juntam forma e sentimento; o homem Vinícius e o eu-lírico do texto. Afinal já dizia Fernando Pessoa (In: Cavalcanti Filho, 2011, p.78): “Entre o sono e o sonho / Entre mim e o que em mim / É o que eu me suponho, / Corre um rio sem fim”. Continuamos com o soneto e lembramos que uma das primeiras coisas a se observar, num poema, como bem recomendou Marcelo Tápia (2009, p.10), “é a textura sonoro-musical que a palavra pode oferecer quando é posta a fluir num contexto estético formado pelas relações que a própria palavra, em sua “materialidade” fônica, estabelece com suas semelhantes”. Ainda segundo Tápia, “é dessa relação que surge o ritmo do poema, a musicalidade dos versos”. Completamos essa ideia com as frases de Paul Verlaine, (2009, p.13): “De La musique avant toute chose”, como recomendava (Música acima de qualquer cousa); “De La musique encore et toujours!” (Música, sempre e cada vez mais!), como bem acentuou o poeta francês (2009, p. 76), ao se referir ao ritmo do poema, pensando que este deveria ser harmônico, sonoro e musical. Para conseguir a musicalidade e a harmonia no poema, Vinícius lançou mão das rimas opostas ou interpoladas nos quartetos (ABBA) e entrecruzadas nos tercetos (CDE - DEC), como se pode conferir a seguir:

De tudo ao meu amor serei atento - (A) Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto - (B) Que mesmo em face do maior encanto - (B) Dele se encante mais meu pensamento -(A)

Quero vivê-lo em cada vão momento (A) E em seu louvor hei de espalhar meu canto - (B) E rir meu riso e derramar meu pranto (B) Ao seu pesar ou seu contentamento - (A)

E assim, quando mais tarde me procure (C) Quem sabe a morte, angústia de quem vive (D) Quem sabe a solidão, fim de quem ama (E)

Eu possa me dizer do amor (que tive): (D) Que não seja imortal, posto que é chama (E) Mas que seja infinito enquanto dure. (C)

O eco camoniano de roupagem nova, como afirmou Bosi, se fez ouvir perfeitamente no “Soneto de Fidelidade”, primeiramente na sonoridade, e depois na estrutura, uma vez que o poeta realmente “deu vida nova à forma antiga e povoou de ecos camonianos o estilo de não poucos jovens estreados depois da guerra”. Também nas contradições da vida amorosa que aparecem em diversos textos de Vinícius, vemos os mesmos ecos camonianos, mas isso não implica na redução da sua poesia à simples emoção sentimental que todos possam enxergar ao ler seus textos, nem numa reprodução fiel do que ocorria à época camoniana, já que ele “parecia saber, desde o início, que o poético estava no indistinto, no mistério, na imperfeição”. (CASTELLO, 1994, p. 14). Para decifrar a mensagem do soneto, iniciamos nossa jornada pelos primeiros versos, na nossa tentativa de compreensão da mesma. No início, encontramos um eu lírico que pensa em ser zeloso com o amor:

De tudo ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento.

Nesse primeiro quarteto faz-se necessário perceber o enjambement, que é a ruptura da unidade sintática, usado nos dois primeiros versos: “De tudo ao meu amor serei atento /Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto”. Sem a ruptura teríamos: “Antes de tudo, serei atento ao meu amor, e com tal zelo, e sempre, e tanto”. Nesses versos há o tempo verbal “serei”, que é o futuro do presente do indicativo, e onde se percebe que há somente uma intenção de ser cuidadoso com esse amor, pois o eu lírico, usa a forma afirmativa para prometer: “Antes de tudo”, ou seja, acima de tudo “serei atento ao meu amor”. A estrutura gradativa do verso seguinte “e com tal zelo, e sempre, e tanto”, demonstra claramente que esse sujeito que fala no poema, está completamente preso à promessa que acaba de fazer, pois será capaz de, por causa desse amor, “rir seu riso, derramar seu pranto – ao seu pesar ou seu contentamento”. Na segunda estrofe, a relação: eu poético e o amor, torna-se plena, pois o primeiro deseja viver esse amor em cada instante, como podemos ler nos seguintes versos:

Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento

Nesta estrofe encontramos a ideia do eu lírico de viver esse amor de maneira intensa e a sutil noção de fidelidade aparece nos dois últimos versos: “E rir meu riso e derramar meu pranto / ao seu pesar ou seu contentamento”. A intenção de união se faz presente, pois há um comprometimento de rir junto ao amor, nos momentos de contentamento e derramar um pranto comum nos instantes de tristeza. Esses versos lembram as promessas do casamento cristão, com as pessoas ligadas ao mundo católico: “amá-lo e respeitá-lo, na saúde e na doença, até que a morte os separe”. Ao pesquisar, no dicionário Houaiss, o real sentido da palavra fidelidade, encontramos os seguintes conceitos: “característica do que é fiel, do que demonstra zelo, respeito por alguém ou algo; constância, nos compromissos assumidos com outrem; constância de hábitos, de atitudes; outros dicionários nos trazem os conceitos de: firmeza nas afeições, nos sentimentos; perseverança, constância nos hábitos, nas atitudes”. O sentido de fidelidade nem sempre pode ser atrelado ao amor, pois nem sempre esses dois sentimentos caminham lado a lado. Nem todo amor pode ser fiel, nem toda fidelidade é completa. A fidelidade é a vontade de querer estar junto, de querer viver em “cada vão momento”, de cantar louvores, já que, segundo Camões: “amor é fogo que arde sem se ver”. Fidelidade é ter por verdadeiro esse amor “enquanto durar”, até que surja um novo sentimento que supere o atual, ou que apareça um encantamento maior por outra pessoa, pois a vida é contraditória, pode mudar os amores, os sentimentos, os sonhos, as vontades e também os parceiros das pessoas. A fidelidade não pode ser um dever, senão nos escraviza. Muitos são fiéis por moral, pelo compromisso assumido perante Deus, a Igreja e a Sociedade e, às vezes, menos pelo amor. E como acentua Fiorin (1989, p. 348):

O Sujeito que vive em sociedade é, assim, modalizado pelo dever. Essa modalidade consta de prescrições (dever fazer) e de interdições (não dever fazer). Para que um indivíduo possa executar bem os comportamentos prescritos, precisa adquirir um saber (savoir faire), que se constitui basicamente do conhecimento do que é correto ou incorreto numa dada situação.

Portanto, não se deveria fazer diferente do que recomendam os preceitos da sociedade, isto acarretaria em “estar errado”. Por muito tempo a separação entre casais não foi aceita pela sociedade. Assim as pessoas permaneciam juntas, ainda que infiéis. Mas, ainda hoje, há aqueles que permanecem fiéis por conveniência, por comodidade, para não dividir os bens materiais, porque vivem numa sociedade capitalista, onde o que impera é o lucro, e assim vão vivendo: “até que a morte os una”, como bem cantou Chico Buarque de Holanda. Ser fiel a si mesmo talvez seja a difícil tarefa humana, pois sendo um ser dotado de consciência, o homem pode realizar escolhas livremente, e isto é o que o separa dos outros animais, é a consciência que lhe dá poderes para avaliar o mundo que o cerca e, sobretudo o leva a avaliar-se. O homem consegue entender o mundo que o cerca de várias formas: pelas emoções e sentimentos e pelo consciente. As experiências concretas de vida, a cultura, a classe social, o grupo étnico, o grupo religioso vão moldando o caráter do homem e fazendo dele um ser capaz de viver em sociedade. Mas essa mesma sociedade, organizada nos moldes burgueses, é lugar de ideologias e de conflitos, e por isso entorpece o raciocínio, impede a reflexão e aniquila a crítica, garantindo, assim, seu modo de operação por muito tempo. Sorte é que o ser que vive em sociedade, mas que tem consciência de si e de seus atos, compreende o meio relacionando e conceituando o que está à sua volta e, abstrai, distingue, conceitua e pode decidir e escolher a maneira que deseja levar a vida e os amores. Se fidelidade implica em exigência, compromisso, em perdão: dos atos, de vontades que muitas vezes são sufocadas em nome do amor; de desejos reprimidos em nome de uma relação que possa já estar fadada ao término, então “nesses vãos momentos” o amor e a fidelidade tornam-se prisão. Pois como diria o poeta dramaturgo Irlandês Oscar Wilde (1962, p. 36): “A fidelidade é para a vida sentimental o que a coerência é para a vida do espírito: uma pura e simples confissão de incapacidade”. Ainda, se a fidelidade entre pessoas que se amam, implica em confiança e vice-versa, esta ideia está contida no verso “infinito enquanto dure”; e se fidelidade é, sobretudo a do pensamento, o eu lírico exprimiu bem esse sentimento, já que quer vivê-lo em cada instante e em seu louvor espalhar o canto; mas o poeta sabia que tudo é transitório, que as pessoas mudam e o amor muda junto com elas, por isso recomenda que a fidelidade deva existir somente enquanto durar o amor. Assim percebemos que o título que de imediato nos leva a formular a opinião de que se deve ser fiel à pessoa amada, representa muito mais o desejo do eu poético de ser fiel ao amor e não à pessoa que se deixa de querer. A constância, e a perseverança, estariam então, diante de um poema que nega o compromisso por alguém, mas não o compromisso consigo mesmo e com o amor, pois ser fiel a si mesmo é muitas vezes ter de dizer não ao outro. E, já que não se pode alcançar a plenitude em cada relacionamento, visto que os encantamentos físicos são transitórios, o eu-lírico declara ser fiel ao amor e mesmo que surja algo com o qual ele possa se encantar: “Que mesmo em face do maior encanto”, mesmo que apareça esse maior encanto, o pensamento se encantará mais com o amor que está a acontecer no momento. Ainda que Vinícius de Moraes comova o leitor, com o seu soneto, ele não fica apenas no nível do sentimentalismo, já que o amor que ele canta alcança a plenitude da significação do verdadeiro amor: “Infinito enquanto dure”. Fragmenta, portanto a imposição da sociedade burguesa, que propaga a ideia de amor eterno, mas não a plenitude do amor. A frase: “enquanto dure”, ironicamente apresenta uma conotação de fim, já que temos o termo “enquanto”, de significação temporal que remete a agora, a momento atual, ao instante já, e “dure” que é o verbo que demonstra o sentimento de duração, mas um sentimento de instante: somente “enquanto dure”. Se realizarmos uma leitura rápida desse poema, não percebemos o jogo que confere densidade de significação diversa à palavra chama. Essa junção do tempo enquanto e do verbo durar: “enquanto dure”, aponta para a solidão do indivíduo, após o resultado do fim do sentimento, como se existisse uma relação de causa e efeito entre quem ama e quem automaticamente ficará só, posto que amor é chama, e já que esse é o resultado apontado no poema: “Que não seja imortal, posto que é chama, /mas que seja infinito enquanto dure!”. Está claro que a relação só deve perdurar enquanto existir o amor e que ele, o amor, possa ser tão grande quanto o infinito, mas limitado a esse tempo de sua existência. Como vimos, o poema está perpassado por imagens que sugerem um eu lírico disposto a ser atento ao amor mesmo em face de alguma outra circunstância, ou seja, mesmo diante do encanto de outrem que possa lhe chamar a atenção, ele será fiel sim, mas ao amor caso ele ainda exista, pois não se pode esquecer dos parênteses que estão no verso: “eu possa me dizer do amor (que tive), como se fosse um comentário à parte, que delimitasse um amor que o eu lírico já teve, que já foi vivido, mas que passou. Que não foi imortal, posto que era chama e por isso acabou, mas que, certamente foi intenso enquanto existiu. O texto decorre, até à última estrofe, numa atmosfera de harmonia até que encontramos os últimos versos, quando essa harmonia começa a se dissipar e nos deparamos com a ideia da precariedade existencial do ser humano, e é neste momento que a felicidade dá lugar ao desespero: “a morte, angústia de quem vive / a solidão, fim de quem ama”. Morte e solidão diluem a ideia de perenidade, de harmonia e de felicidade eterna. Esse final resulta em sentimento de angústia, pois caracteriza os tormentos da alma de quem ama e pode sentir a contradição desse sentimento. Assim o poema passa a revelar a descrença do eu lírico, pois além de pensar na morte, a certeza do fim do amor físico é evidente. A tensão que nesse ponto tende para a apreensão, inquieta muito mais do que tranquiliza, pois tece um verdadeiro movimento de contradições, já que na medida em que desejamos viver um amor em “cada vão momento” sabemos que a solidão, inevitavelmente, segundo o texto, será o resultado para aqueles que amarem. O poeta joga com as possibilidades do amor existir e ser imenso, mas prepara o leitor para o encontro do amor com o sofrimento, já que a impossibilidade de amor eterno vai se tornando evidente. O soneto termina com os versos: “Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”. Ser infinito enquanto durar apresenta uma contradição, um paradoxo já que estabelece a relação entre dois termos de significados opostos que são “infinito – enquanto dure”, como vimos anteriormente. Nestes três últimos versos, o eu-lírico encontra representada a maneira de viver do poeta Vinícius, que partilhou intensamente a vida e seus sentimentos com muitas pessoas, sendo o infinito apenas o ideal de amor e a chama seu aspecto efêmero, passageiro, transitório. E, ainda que o eu poético do sujeito da poesia moderna, quando, assumindo a diferença entre o “eu” real do poeta e o “eu” que aparece no poema, tenha o conceito de sujeito lírico ampliado, (GOLDSTEIN, 1989, p. 07), não podemos deixar de enxergar o homem Vinícius representado no “eu” do poema. “Um ‘eu’ que, ao construir o poema, dá a cada verso o seu timbre e a sua vida”, diriam Mello e Souza, Gilda e Antonio Candido, (1979, p. 13), como o fizeram ao construírem a introdução da obra Estrela Inteira de Manuel Bandeira. Ou como diria Jorge Koshiyama (2010, p.84): “A poesia é esse trabalho de, através de uma experiência com o Ser, lembrar e custodiar, mediante a força de uma linguagem bela e memorável, aquilo que, nomeando-nos, é o sinal de uma comunidade autêntica”. Enfim, o soneto de Vinícius de Moraes surpreende, não apenas pela capacidade de atualizar a lírica de Camões, mas, sobretudo pela capacidade do poeta de alcançar e falar de uma maneira densa e ao mesmo tempo pura e concentrada de amor, se valendo de uma forma fixa de poesia que ele modernizou. Vinícius deixou um legado que ainda carece de estudos, pois precisa ser mais lido e explorado, até mesmo porque o lirismo e a expressividade de suas composições nem sempre são inteiramente compreendidas.

REFERÊNCIAS

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FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, EDUSP, 1989.

GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons e ritmos. 9 ed., São Paulo: Ática.

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