CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM – JULHO DE 2009

O ABRAÇO ENTRE BAIRROS E FAVELAS

Juliano Werneck 1

As associações de moradores tem vivido um momento particularmente relevante do ponto de vista de sua importância nas discussões dos temas relativos à cidade e à construção da cidadania. Nossa trajetória tem sido, é bem verdade, errática, mas indiscutivelmente vinculada com as conquistas sociais e democráticas ao longo destes últimos 30 anos de redemocratização brasileira. Cumpre observar que é certo também que houve um período de extremo esvaziamento no que se refere à legitimidade e representatividade de seus quadros e lideranças, fruto, principalmente, de um tipo de atuação política, levado a termo em fins dos anos 80, de cooptação das lideranças pelas agências estatais, descaracterizando um movimento que tem por natureza uma independência em relação ao poder público. Somos agentes de transmissão de políticas, parceiros, mas principalmente críticos e formuladores de propostas de melhorias e preservação do ambiente urbano que quase sempre provocam reações nas administrações municipais. Mas o fato é que o período de desconfiança da sociedade em relação às associações passou. Como presidente de uma associação de moradores da zona sul, em alguns lugares, sou recebido até com certa pompa, o que no início chegou a me provocar um certo espanto. De onde, afinal, surgira aquela esperança de que um presidente de associação de moradores pudesse resolver algum problema da cidade? Paralelamente a esta mudança de “clima”, percebi uma outra, relacionada à linguagem e às expressões usadas no âmbito destes movimentos. O termo “sociedade civil organizada”, politicamente correto e adequado à descrição daqueles atores sociais havia sido substituído por outro, mais popular. A primeira vez que ouvi a frase “representante da comunidade de Copacabana”, confesso que me perguntei: como assim comunidade de Copacabana? O que afinal aquilo queria dizer? Era comunidade isso, comunidade aquilo. Até que caiu-me a ficha.

1 Presidente da Associação de Moradores do Bairro Peixoto. 1

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Sim, pois se as associações de moradores haviam perdido, durante um certo tempo, sua expressão e importância na sociedade, isso, a meu ver, teria acontecido principalmente nas áreas do “asfalto”. Nas favelas, morros ou conjuntos habitacionais não houve este fenômeno. À margem da cidade, sem a presença do poder público, tráfico e lideranças comunitárias têm tocado a vida. Em alguns lugares convivem, em outros se excluem. Mas, em sua maioria, as lideranças comunitárias – em muito alheias aos temas da mobilização popular e da organização coletiva (origem dos movimentos associativos) –, tem exercido um papel fundamental na conquista de direitos e políticas públicas, seja a partir de relações de proximidade com o poder público ou mesmo usando os instrumentos criados pela Constituição de 88, principalmente aqueles que permitem “enquadrar” as administrações a partir de solicitações de natureza jurídica. Assim, os movimentos associativos não só sobreviveram nas áreas mais carentes da cidade – as tais comunidades –, mas, ao conseguirem importantes conquistas de direitos, reformas e melhorias nas condições de vida destes lugares, acabaram por se qualificar como importantes interlocutores perante o poder público nas favelas, revestindo a liderança comunitária de uma certa centralidade no jogo de poder da cidade. Assim, no “asfalto” tornado “comunidade” por sucessivas administrações – cuja marca principal foi a divisão da cidade em feudos eleitorais e o uso político da desordem urbana –, o movimento associativo de bairros logra converter-se, mais uma vez, em uma força expressiva contra o estado geral de abandono da cidade. Novas prerrogativas, estratégias e uma nova linguagem, onde aparece com destaque o termo comunidade. Em 2006, por exemplo, no Bairro Peixoto, um pedaço ainda bucólico de Copacabana – cuja história e sobrevivência do seu ambiente arquitetônico guarda uma enorme dívida com o movimento associativo –, 813 pessoas saíram de suas casas para votar em duas chapas que disputavam a eleição daquele ano para a diretoria da AMA Bairro Peixoto. Chamados de volta à vida, temos procurado reorientar a trajetória então dominante dos movimentos de associação de bairros, mais inclinados a interpelar o Ministério Público por demandas e reivindicações, para um padrão mais tradicional de atuação, cujas marcas são a mobilização política e a organização coletiva. É evidente que a emergência destes novos atores na política urbana só tem sido possível graças a um processo mais amplo. O avanço da democratização das 2

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instituições políticas, caminho iniciado em 1988 com a promulgação da Constituição Cidadã e que se incorpora cada vez mais profundamente na sociedade brasileira, aliado a uma conjuntura de crise política das administrações municipais dos grandes centros urbanos, proporcionou, a meu ver, no , o renascimento do movimento associativo urbano. Neste processo, uma vitória importante do movimento associativo foi, sem dúvida, a abertura de algumas instituições para a participação direta da sociedade organizada. A criação, em 1999, dos Conselhos Comunitários de Segurança e dos Cafés Comunitários, ligados ao Instituto de Segurança Pública, aproximaram, de forma institucional, a Policia Militar do Rio de Janeiro das associações de bairro e sociedades de amigos e outras do gênero, tais como Lions Clube etc. A experiência tem sido extremamente exitosa e, particularmente em Copacabana, o Conselho se constituiu em um fórum privilegiado de construção de programas e políticas públicas, e até mesmo de elaboração da cidadania. Hoje, as reuniões do Conselho são concorridíssimas e seu modelo de atuação já funciona em outras instâncias do poder público municipal, que adotou o modelo nas Regiões Administrativas. Nesta conjuntura, e em face das novas discussões sobre o tema da favela na cidade – um tema sempre tratado de maneira marginal –, a associação de moradores do Bairro Peixoto, vizinha à comunidade do Morro dos Cabritos, que ganhou destaque recente na mídia por meio de um combate violento entre traficantes rivais, herdeira de uma tradição luta e de atuação política democrática e historicamente ligada ao movimento pela urbanização da favela do Morro dos Cabritos, optou por aprofundar uma linha de intervenção que há tempos já adotara. Integrar asfalto e favela tem sido um dos nossos objetivos. Fazemos isso participando ativamente das instituições presentes na comunidade tais como associação de moradores, projetos sociais, na Escola de Samba e convocando estas organizações a participarem da vida associativa do bairro, de modo a romper com o isolacionismo característico destes atores sociais. Recentemente, a OÁSIS realizou um encontro entre moradores das duas “cidades”, e o Secretário Municipal de Ordem Pública, sr Rodrigo Bethlem. Tal encontro, assistido por mais de 100 pessoas em uma terça-feira à noite, demonstrou o que já suspeitávamos. Apesar da presença significativa do tema das oportunidades, todos querem basicamente as mesmas coisas: ordem, calçadas limpas, ruas sem buracos... água encanada... paz..., em suma, tudo o que a vida urbana pode nos 3

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proporcionar. Quando apareceu a questão da expansão das comunidades, os relatos foram contundentes. A ninguém mais do que aos moradores da favelas, a expansão demográfica é mais problemática, na medida em que o adensamento – ainda mais quando não vem junto com políticas públicas e obras estruturais – não é, em hipótese alguma, benefício para ninguém, a não ser para quem financia a especulação imobiliária. Foi, enfim, um encontro revelador e um morador do Morro dos Cabritos foi aplaudido em seu desabafo por cidadania e ordem pública. Ao fim da reunião, propomos rasgar a teoria da cidade partida e resolvemos, no grito, proclamar nossa interdependência. Daí nasceu o projeto Círculo Cultural Tabajaras – Abraço da Paz , cujo objetivo central era promover um novo marco nos relacionamentos entre Copacabana e o Morro dos Cabritos e, em última analise, da cidade com as suas favelas. No release do projeto encaminhado para a imprensa escrevemos que os nossos objetivos eram “fazer uma ocupação cultural das calçadas de Copacabana (...)” para, enfim, “(...)num abraço , manifestarmos nossa decisão consciente de transformar a cidade em que vivemos em uma experiência de afirmação da cidadania”. O 1º Círculo Cultural Tabajaras teve como intuito “promover a integração da comunidade do morro dos cabritos com a cidade, fomentando o diálogo e estimulando o intercâmbio de experiências culturais, econômicas e políticas, além de propor alternativas de entretenimento e de desenvolvimento sócio-cultural.” Durante todo o dia de sua realização, uma série de manifestações artísticas tiveram como palco as ruas e o entorno da comunidade do Morro dos Cabritos, mobilizando, em número muito menor do que desejávamos (e que seria necessário para formalizar concretamente o tal abraço à comunidade) os moradores de Copacabana e do Bairro Peixoto. Vale dizer mesmo que, se o evento em si não foi um fracasso, também não foi coroado de sucesso, apesar da presença marcante da grande imprensa na quadra da Escola de Samba Unidos da Vila Rica, para onde convergiram todos os manifestantes e onde artistas se apresentavam para uma platéia bastante eclética. Pessoas que nunca haviam entrado em uma comunidade, subiram a pé a Ladeira dos Tabajaras e se juntaram aos moradores e amigos do Morro dos Cabritos. Faltou gente, faltou luz, alguns shows não aconteceram por falta de energia elétrica e, ao fim da noite, um temporal inundou a festa. Mas algo acontecido dias antes da realização propriamente dita do evento Abraço da Paz, já havia nos dado a pista de 4

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que havíamos construído algo antes impensável e de difícil elaboração. As associações de moradores de Copacabana, Morro dos Cabritos, , e diversas sociedades de amigos da terceira idade entre outros grupos associativos, comerciantes do bairro, grandes e médias empresas, hotéis do entorno e instituições como o SESC, entraram com vontade na organização do evento e mais do que isso incorporaram a comunidade do Morro dos Cabritos em suas dinâmicas associativas particulares, trazendo a favela de novo para a cidade, incorporando-a como elemento constitutivo de sua identidade e de sua abrangência como bairro. E mais. Dias depois do evento, na primeira reunião de avaliação, dezenas de pessoas de todos os lugares da cidade se reuniram na quadra da Escola de Samba Unidos da Villa Rica, no alto da Ladeira dos Tabajaras, coração do Morro dos Cabritos, para organizar os próximos passos, dando substância e energia ao Círculo Cultural Tabajaras. O abraço continua.

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