REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

volumejulho/dezembro - 2009 20

ISSN: 1517-7599

Editorial

Com este número 20, Per Musi completa 10 anos de publicação periódica semestral ininterrupta desde sua criação em 2000. Dentro da comum história de descontinuidade das publicações acadêmicas no Brasil, este desafio foi vencido graças à dedi- cação dos membros dos corpos editoriais, corpo científico, expediente e à confiança e apoio do Programa de PG em Música da UFMG, Pró-Reitorias de Pós-Graduação e Pesquisa da UFMG e agências de pesquisa FAPEMIG e CNPq e, principalmente, aos autores que confiaram seus trabalhos aPer Musi.

Neste número, apresentamos o segundo de dois artigos de Suzanne Cusick resultantes de sua participação na I Semana de Música Antiga da UFMG, realizada entre 19 a 25 novembro de 2007. A musicóloga norte-americana aborda as relações de poder e desejo dentro da questão de gênero no período barroco, com ênfase nos exóticos papéis desempenhado pelas cortesãs e castrati.

Ainda remanescente dos trabalhos da I Semana de Música Antiga da UFMG, Luiz Henrique Fiaminghi nos traz, após ter con- cluído sua tese de doutorado, uma discussão sobre as mudanças técnicas e estéticas acerca do violino, a redescoberta das prá- ticas de performance historicamente informadas (HIP) e seus ventos favoráveis à valorização da rabeca brasileira, epitomizada na eclética figura do compositor-performer-educador José Eduardo Gramani.

Ainda dentro da perspectiva de formação e consolidação da cultura da música antiga no Brasil, Pedro Persone apresenta um amplo panorama sobre a história do , desde as polêmicas contribuições anteriores a Bartolomeo Cristofori, passando pelos desenvolvimentos deste notável construtor, até os avanços ligados ao nome de Silbermann.

A partir de textos do próprio Arnold Schoenberg, Carlos de Lemos Almada analisa o processo de construção temática do compositor em excertos de sua música tonal e serial, abordando conceitos e abstrações, revelando aspectos de seu desenvolvimento estilístico.

Por outro lado, Liduino Pitombeira aborda os processos composicionais de Camargo Guarnieri no Primeiro Movimento do seu Concerto para Nº 5, revelando o envolvimento do compositor com o atonalismo, o serialismo e os possíveis aspectos numerológicos da obra.

Em seu estudo sobre pacientes com esclerose múltipla, Cecilia Cavalieri França, Shirlene Vianna Moreira, Marco Aurélio Lana-Peixoto e Marcos Aurélio Moreira mostram os efeitos benéficos da autobiografia musical enquanto tipo de procedimento musicoterápico com vistas à expressão e percepção das identidades pessoal, social, temporal e trans- pessoal.

Carlos Alberto Assis analisa os processos composicionais de H. Villa-Lobos nos seus Choros nº. 5, focando os planos formal, harmônico, rítmico e melódico, sua relação com figuras musicais da retórica e o sentimento de brasilidade nesta obra.

A partir de um survey com mais de 100 professores de piano, Karla Dias de Oliveira, Regina Antunes Teixeira dos Santos e Liane Hentschke traçam seu perfil quanto ao tipo de formação e modelos, escolha de repertório, faixa etária, gênero, experiência e local de atuação.

Patrícia Furst Santiago e André Borges Meyerewicz, integrando diversos conceitos de gesto e o referencial semiológico de Peirce, analisam os tipos, instâncias, aspectos comunicacionais e pedagógicos na performance em vídeo das obras Trilobita e Krishna I pelo grupo instrumental UAKTI.

Lembramos que todos os conteúdos e capas de Per Musi, desde janeiro de 2000 até dezembro de 2009, estão disponíveis para download ou impressão gratuitamente no site de Per Musi Online, no endereço www.musica.ufmg.br/permusi. As versões impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail [email protected].

Fausto Borém Fundador e Editor Científico dePer Musi PER MUSI - Revista Acadêmica de Música (ISSN 1517-7599) é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade e o debate são bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião da Comissão Editorial ou do Conselho Consultivo.PER MUSI está indexada nas bases RILM Abstracts of Music, Literature The Music Index e Bibliografia da Música Brasileirada ABM (Academia Brasileira de Música).

Fundador e Editor Científico Revisão Geral Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte) Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte) Maria Inêz Lucas Machado (UFMG, Belo Horizontte) Corpo Editorial Internacional Aaron Williamon (Royal College of Music, Londres, Inglaterra) Universidade Federal de Minas Gerais Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA) Reitor Prof. Dr Ronaldo Tadêu Pena Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra) Vice-Reitora Profa. Dra. Heloisa Maria Murgel Starling Denise Pelusch (University of Colorado, Boulder, EUA) Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Porto, Portugal) Pró-Reitoria de Pós-Graduação Janet Schmalfeldt (Tufts University, Medford, EUA) Prof. Dr Jaime Arturo Ramirez Jean-Jacques Nattiez (Université de Montreal, Montreal, Canadá) João Pardal Barreiros (Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal) Pró-Reitoria de Pesquisa Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA) Prof. Dr Carlos Alberto Pereira Tavares Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA) Lucy Green (University of London, Institute of Education, Londres, Inglaterra) Escola de Música da UFMG Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica) Prof. Dr. Lucas José Bretas dos Santos, Diretor Melanie Plesch (Univ. Católica, Univ. de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina) Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra) Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG Silvina Mansilla (Universidad Católica, Buenos Aires, Argentina) Prof. Dr. Maurício Loureiro, Coordenador Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Corunha, Espanha) Prof. Dr. Fausto Borém, Sub-Coordenador Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA) Planejamento e Produção Corpo Editorial no Brasil Iara Veloso - CEDECOM/UFMG André Cavazotti (UFMG, Belo Horizonte) Luana Castro (estagiária) - CEDECOM/UFMG Cecília Cavalieri (UFMG, Belo Horizonte) Cristina Capparelli Gerling (UFGRS, Porto Alegre) Projeto Gráfico Diana Santiago (UFBA, Salvador) Capa e miolo: Sérgio Lemos - CEDECOM/UFMG Fernando Iazetta (USP, São Paulo) Diagramação: Romero Morais - CEDECOM/UFMG José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa) Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio de Janeiro) Tiragem Márcia Taborda (UFSJR, São João del Rey) 250 exemplares Maurício Alves Loureiro (UFMG, Belo Horizonte) Maurílio Nunes Vieira (UFMG, Belo Horizonte) Acesso gratuito na internet Norton Dudeque (UFPR, Curitiba) www.musica.ufmg.br/permusi Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas) Rosane Cardoso de Araújo (UFPR, Curitiba) Salomea Gandelman (UNIRIO, Rio de Janeiro) Sônia Ray (UFG, Goiânia) Endereço para correspondência Vanda Freire (UFRJ, Rio de Janeiro) UFMG - Escola de Música - Revista Per Musi Av. Antônio Carlos 6627 - Campus Pampulha Conselho Científico Belo Horizonte, MG, Brasil - 31.270 - 090 Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC, Florianópolis) Fone: (31) 3409-4717 ou 3409-4747 Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas) Fax: (31) 3409-4720 André Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro) e-mail: [email protected] Ângelo Dias (UFG, Goiânia) [email protected] Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte) Beatriz Salles (UNB, Brasília) Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas) Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas) Fabiano Araújo (FAMES, Vitória) Flávio Apro (UNESP, São Paulo) Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte) José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas) Lea Ligia Soares (EMBAP, Curitiba) Lincoln Andrade (UFMG, Belo Horizonte) ABM Luciana Del Ben (UFRGS, Porto Alegre) Manoel Câmara Rasslan (UFMS, Campo Grande) Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador) PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n. 20, julho /dezembro, 2009 - Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte) Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2009 – Vladimir Silva (UFPI, Teresina) n.: il.; 29,7x21,5 cm. Semestral ISSN: 1517-7599 O Corpo de Pareceristas de Per Musi e seus pareceres são sigilosos 1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos. I. Escola de Música da UFMG Sumário artigos científicos Gênero e música barroca ...... 7 Gender and Music Suzanne Cusick Tradução de Silvana Scarinci

O violino violado: o entremear das vozes esquecidas das rabecas e de “outros violinos”...... 16 The fiddled violin: the clamor of forgotten voices from the Brazilian rabecas and “other violins” Luiz Henrique Fiaminghi

A aurora do (forte)piano ...... 22 The dawn of the (forte)piano Pedro Persone

Aspectos da construção temática de Arnold Schoenberg a partir de seus escritos teóricos sobre forma ...... 34 Issues of Arnold Schoenberg´s thematic construction related to his theoretical writings about form Carlos de Lemos Almada

O serialismo de Camargo Guarnieri no seu Concerto para Piano e Orquestra N.º 5...... 44 The serialism of Camargo Guarnieri in his Fifth Piano Concerto Liduino Pitombeira

Música e Identidade: relatos de autobiografias musicais em pacientes com esclerose múltipla...... 54 Music and identity: musical autobiographies in multiple sclerosis patients Cecilia Cavalieri França Shirlene Vianna Moreira Marco Aurélio Lana-Peixoto Marcos Aurélio Moreira

Fatores de coerência no Choros nº 5 (“Alma brasileira”), de H. Villa-Lobos ...... 64 Coherence factors in H. Villa-Lobos´Choros n. 5 (“Alma brasileira”) Carlos Alberto Assis

Um perfil de formação e de atuação de professores de piano de Porto Alegre ...... 74 Professional training and practice profile of piano teachers in Porto Alegre (Brazil) Karla Dias de Oliveira Regina Antunes Teixeira dos Santos Liane Hentschke

Considerações sobre o gesto na peformance do Grupo UAKTI ...... 83 Considerations on gesture in the performance of the Grupo UAKTI Patrícia Furst Santiago André Borges Meyerewicz 6 CUSICK, S. Gênero e música barroca. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.7-15.

Gênero e música barroca

Suzanne Cusick (New York University, Nova Iorque) [email protected] Tradução de Silvana Scarinci (UFMG, Belo Horizonte) [email protected] Revisão de Lúcia Carpena (UFRGS, Porto Alegre) [email protected]

Resumo: Na Europa dos séculos XVII e XVIII, a cultura musical e aquilo que os antropólogos denominam de “sistema de sexo/gênero” eram áreas importantes para seres humanos comuns (e não filósofos) confrontarem e se engajarem com as ansiedades epistemológicas e sociais que caracterizavam a era. Este ensaio deverá explorar a miríade de relações entre gênero e cultura musical barroca, com ênfase especial nos aspectos mais exóticos destas relações – os papéis adotados pelas cortesãs, castrati e seus patrões da mais alta elite com o intuito de manter a prática musical como um meio para a representação e circulação de poder e desejo.. Palavras-chave: Música Barroca, Música e estudos de gênero, cortesãs, castrati.

Gender and Baroque Music

Abstract: In 17th- and 18th- century Europe, both musical culture and what anthropologists call the sex/gender system were important sites for ordinary human beings (not philosophers) to confront and engage with the epistemological and social anxieties that characterized the age. This paper will explore the myriad relationships of gender and Baroque musi- cal culture, with special emphasis on the most foreign aspects of those relationships—the roles that courtesans, castrati and their most elite patrons played in ensuring that music-making was a means for both the representation and the circulation of power and desire. Keywords: Baroque Music, Music and Gender Studies, cortesans, castrati.

1 - Introdução preender esta obra de modo semelhante àquela que seu O estudo de gênero em relação à música barroca é uma criador e suas primeiras audiências o fizeram. Tentarei nova área de pesquisa, uma área caracterizada por ques- também fazer com que percebam porque todos aqueles tões ainda sem respostas e ao mesmo tempo por sua que se interessam por música barroca em contexto (em visão crítica ou histórica. Disto resulta que não há uma seus possíveis significados) gostam de saber algo sobre as narrativa completa sobre gênero e música barroca que relações desta música com as normas de gênero do século eu possa apresentar a vocês hoje, nem mesmo algo que XVII e XVIII. tente explicar a maneira pela qual gênero interagia com o amplo espectro de comportamento musical dos euro- Em primeiro lugar, no entanto, o que é gênero e quais são peus dos séculos XVII e XVIII (e suas colônias). Uma vez as premissas básicas e questões levantadas pelos estudos que não posso almejar uma abrangência total, tratarei de gênero em relação à música barroca? de introduzi-los às premissas básicas, questões e proble- máticas deste novo campo, com a esperança de oferecer Gênero é um sistema de distribuição de poder social alguns quadros de referência que poderão enriquecer sua baseado nas relações humanas com fins na reprodução própria pesquisa ou execução musical. Tentarei, como sexual. O sistema, seja qual for, depende da definição e fiz no início desta semana, finalizar com um estudo de imposição de normas sexuais (por sua vez, dependente caso que demonstra, por um lado, que refletir sobre as da definição, imposição e tolerância dos desvios sexuais). dinâmicas de gênero historicamente específicas que (in) Ambos os sistemas e suas normas podem ser pensados formaram uma obra em particular pode nos ajudar a com- como algo produzido performaticamente, isto é, pelas

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.20, 91 p., jul. - dez., 2009 Recebido em: 11/09/2008 - Aprovado em: 10/02/2009 7 CUSICK, S. Gênero e música barroca. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.7-15.

ações das pessoas, sejam estas ações na vida real ou no Quando estas ameaças frustraram o desejo das mulheres mundo paralelo da representação que foi tão importante para desenvolver sua musicalidade, e quando, paradoxal- para a cristalização de um imaginário do início do período mente, estas mesmas ameaças davam-lhes poder? Ha- moderno. Portanto, ambas as gendered 1performances em via circunstâncias nas quais as mulheres eram forçadas relação à produção artística (quem compõe, interpreta, a tornarem-se musicistas porque este era o trabalho da atua como empresário, poeta ou mecenas, etc) e o uso família? O que acontecia nas famílias nas quais as fi- da produção artística para representar gênero são rele- lhas eram melhores musicistas que os filhos? Uma vez vantes, assim como os lugares mais óbvios de interação que sabemos que muitas mulheres eram primordialmente entre as duas. instrumentistas e não cantoras, por que tantas fontes eu- ropéias do século XVII (diários, poemas encomiásticos e Gênero, na Europa, nos séculos XVII e XVIII, era muito objetos do gênero) representam a musicalidade feminina heterogêneo e muitos dos seus detalhes dependiam de como se fosse equivalente à expressão vocal? E por que costumes locais. No sentido mais geral, a percepção his- esta impressão aparentemente falsa e limitada persistiu tórica posterior sugere que normas de gênero podem ser por tanto tempo? percebidas de acordo com o eixo Norte (protestante)/Sul (católico), no qual o Norte protestante seria mais “libe- De que modo a produção de música sacra possuía uma rado” no sentido de tratar homens e mulheres com mais carga de gênero (gendered)? Quem podia interpretar igualdade, mas ainda assim com muito mais investimen- ou dirigir performances na igreja? Quem podia compor to na regulamentação estrita da sexualidade através do música para a igreja? Sabemos que as mulheres podiam casal heterossexual do casamento burguês. Em contraste interpretar, reger e compor música sacra em conventos, a isto, o sul católico parece mais “liberado” no sentido muitas vezes com tanto virtuosismo que as performan- de reconhecer um espectro muito mais amplo de luga- ces musicais em suas comunidades tornavam-se atrações res para o sujeito generized, especialmente com nuances turísticas provocando reações nas audiências que combi- nas questões de classe e no sentido de reconhecer um navam êxtase musical e espiritual com fantasias eróticas espectro muito vasto de comportamento sexual fora das sobre as mulheres que tocavam e cantavam por detrás normas do casal heterossexual. Este contraste tem ecos das grades, supostamente ocultas pelo véu monástico.2 em nossa época, ao menos na América anglófona, onde Além disto, sabemos também que a vida das mulheres existe uma permanente tensão entre o chamado “femi- nos monastérios era extremamente rica em termos mu- nismo liberal” (baseado nos ideais do norte protestante sicais, num nível que estas audiências masculinas jamais de igualdade de gênero dentro de um sistema determi- poderiam conhecer. Alguns conventos eram notórios pela nado a normatizar a heterossexualidade) e um feminismo execução diária de canto e dança e por apresentações de que se alinha com o ativismo queer num esforço de re- teatro musical sobre assuntos sacros com cena e vestu- conhecer, respeitar e assegurar igualdade para uma gama ário elaborados – performances para as quais a elite de muito mais ampla dos lugares do sujeito generized e dos mulheres laicas tinha acesso freqüente, embora fossem comportamentos sexuais. proibidas ao acesso masculino. Em vista desta rica tra- dição católica e da rica tradição das execuções musicais Nos últimos vinte anos, tem surgido um interesse nas nos orfanatos de Veneza, podemos nos perguntar sobre as questões de gênero e sua interação com as produções de implicações do protestantismo na vida musical das mu- música no Barroco – na maioria das vezes estas questões lheres. Até que ponto o protestantismo limitara as opor- surgiram a partir de uma questão básica na história das tunidades para a auto-expressão musical das mulheres? mulheres: onde estavam as mulheres na cultura musical? A resposta, é claro, é que as mulheres estavam em todos Como a questão de gênero moldou a relação do mecenato os lugares e que alguns aspectos das suas vidas musicais musical? Sabemos [a partir de Dell’Antonio e outros] que parecem ter sido agudamente gendered, assim como o os homens de elite, especialmente os que se tornavam gendering do comportamento musical sempre foi depen- nobres recentemente, demonstravam (performed) seu dente da classe social da mulher. Ainda assim, muitas, gosto refinado como ‘colecionadores’ das performances muitas questões permanecem apenas parcialmente res- de outros, através de retratos, manuscritos de cantatas, pondidas. Aqui estão algumas. diários descrevendo performances que eles assistiam. Sabemos que os próprios membros destas mesmas eli- Quem eram os músicos profissionais, tanto mulheres tes “colecionavam” os músicos, especialmente castrati e quanto homens? A quem cabia o papel de intérprete, cortesãs ou musicistas a quem tratavam como cortesãs. quem devia compor, quem devia dirigir as performances Poderíamos supor que, paralelamente, mulheres mecenas em público ou prepará-las privadamente? Quem exercia “colecionavam” retratos, manuscritos, guardavam lem- que tipo de papel profissional, onde e sob quais condições branças de performances e pessoas?3 Sabemos que em de trabalho? Quando o status de músico “profissional” meados do século XVII, em Roma, Olimpia Aldobrandini ameaçava a reputação de uma mulher em sua continen- competia com mulheres das famílias Barberini, Borghe- za (auto-refreamento, e todas as virtudes femininas que se e Pamphili pelo direito de declarar que seus concertos ela representa)? Como as mulheres em épocas e lugares privados eram os melhores da cidade e que ela mesma diferentes negociavam estas ameaças a sua reputação? acusava publicamente de prostitutas as cantoras que lhe

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tratavam com desrespeito (BROSIUS, no prelo). Mas os últimos vinte anos (incluindo meu próprio trabalho inicial documentos pessoais e financeiros das mulheres que não e o de Susan McClary) mostrou tendências de ler estas eram chefes de estado são raros ou imperfeitamente pre- representações através do viés contínuo da musicologia servados e não sabemos quase nada sobre o mundo mu- norte-americana de modo trans-histórico e descontextu- sical dirigido por mulheres de elite que não pertenciam à alizado — isto é, através de nossa tendência em escrever corte; portanto, não sabemos (ainda) se havia universos histórias da música como se os sentidos de várias repre- paralelos de produção musical feminina em meados do sentações codificassem verdades universais sobre gênero Barroco que fossem análogos ao que conhecemos sobre que pessoas como nós, vivendo num mundo completa- o início do período. Tampouco sabemos em que extensão mente diferente, pudéssemos compreender (MCCLARY, homens e mulheres musicistas no Barroco continuaram 1991 e CUSICK, 1992). Este tipo de crítica é fundamental- a servir – da maneira que serviram na era das cortes do mente não-histórica – o que não é algo necessariamente final do século XVI e início do XVII – como objeto de troca ruim, desde que se reconheça que isto não nos diz tudo para ser barganhado por seus patrões numa economia de que poderíamos querer saber ao pensarmos sobre gênero presentes que servia mais diretamente aos interesses dos em relação à música barroca. patrões do que aos interesses dos músicos. Até que ponto os músicos, tanto homens quanto mulheres, viravam o 2 - Gênero naquele tempo não era como jogo e controlavam seus patrões cujas paixões explora- gênero hoje riam em busca de sua mobilidade social ascendente? Quase quarenta anos de estudos feministas em várias dis- ciplinas demonstraram que gênero, sexualidade e diferen- Como a cultura que tratava a música como uma realização ça sexual são todos construídos socialmente e são sempre feminina emerge das práticas do Barroco e pré-Barroco? típicos de determinadas culturas, em momentos históricos A evidência dos livros de conduta que circulavam entre determinados. A partir dos trabalhos dos historiadores as novas classes nobres sugere que o fazer musical, es- da medicina, Thomas Laqueur e Katherine Park, podemos pecialmente a execução instrumental ou seu treino, era compreender que gênero na Europa pré-iluminista não era freqüentemente defendido para encorajar a modéstia fe- o mesmo que gênero hoje (em qualquer lugar), e tampouco minina, pois esta prática exigia que ela rebaixasse o olhar sexualidade, ou o que possamos imaginar que fosse o fato para seu instrumento ou para a música escrita que ela lia.4 biológico da diferença sexual (LAQUEUR, 1990 e PARK, A prática musical era quase tão boa quanto a leitura ou o 1997). De fato, historicizar gênero e sexo no Barroco nos bordado; todos eram comportamentos que reforçavam e leva para um mundo muito, muito estranho, muito dife- demonstravam as virtudes da continenza, isto é, o auto- rente do nosso. Aqui estão as premissas básicas através das refreamento. Além disto, a prática musical podia ser um quais gênero e sexo foram conceitualizados no Barroco, do meio tolerável para a auto-expressão feminina, pois nem modo como Laqueur e Parks as desenterraram cuidadosa- a execução instrumental nem o canto era o mesmo que mente dentre dúzias (senão centenas) de tratados médicos, a fala: a prática musical não violava a norma cultural que sátiras e livros de conduta. exortava a mulher a ser silenciosa. Mas ainda não sabemos quando, onde e sob quais circunstâncias tal prática musi- Desde pelo menos o século II a.C. até o final do século cal privada e amadora pode ter confinado a vida das mu- XVIII, a opinião médica dominante na Europa ensinava lheres. Tampouco sabemos o suficiente sobre quando, onde que havia somente um sexo e dois gêneros. Anatomica- e sob quais circunstâncias a prática musical dava poderes5 mente, mulheres eram homens incompletos, sua genitália às mulheres – seja ao possibilitar-lhes um escape para a tendo permanecido dentro do corpo (e viradas ao avesso) expressão emocional (como se tornou um lugar comum na por causa de calor insuficiente no útero de suas mães. cultura da sensibilité que surgiu no final do século XVIII na Portanto, mulheres e homens não eram sexos opostos. França), ou ao ensinar-lhes o hábito mental de explorar os Eles eram respectivamente variantes perfeitas e imperfei- paradoxos do sistema de gênero para servir a seus próprios tas do mesmo sexo. A hierarquia de gênero que valorizava fins. E conhecemos quase nada sobre as musicalidades os homens acima das mulheres simplesmente refletia o com carga de gênero (gendered) entre as pessoas que não valor maior dado à perfeição em oposição à imperfeição. faziam parte da elite, as pessoas cujas histórias os musicó- Pessoas com corpos de mulheres eram naturalmente mais logos têm a tendência de não conhecer. fracas em inúmeras formas. Fraqueza poderia se tornar, para algumas pessoas, inferioridade ou mesmo monstru- O que poderíamos pensar de Francesca Caccini e sua mú- osidade. Uma das razões pelas quais muitos homens na sica, se tivéssemos melhores respostas às questões que Europa do início da modernidade preferiam (e mesmo de- agora temos? Ou de Barbara Strozzi, Isabella Leonarda, fendiam) a sodomia ao invés da heterossexualidade era o Antonia Bembo, Elisabeth Jacquet de la Guerre? E o que desejo de evitar o contato físico íntimo com seres huma- faríamos com Buxtehude, Handel ou Bach? nos intrinsecamente inferiores (monstruosos).

O que poderíamos pensar das maneiras pelas quais gêne- Em função de lhes faltarem genitália externa adequada, ro é representado na música barroca, se conhecêssemos os corpos das mulheres eram incapazes de gerar tanto melhor o sistema no qual os criadores (homens e mulhe- calor quanto os homens. Elas eram “naturalmente” frias res) destas representações viviam? Parte da pesquisa dos e portanto úmidas, vazando os fluídos insuficientemente

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inflamáveis de seus corpos (os humores do sangue, fleuma, Tão estranhas e contrárias à intuição quanto possam bílis amarela e negra) como o leite, sangue menstrual e parecer estas idéias, elas apontam para um mundo que lágrimas. Os corpos dos homens, ao contrário, eram “na- compartilha uma característica com o amplo espaço cul- turalmente” quentes e secos, a espuma de seu sêmen era o tural rotulado pela palavra “queer” na América do Norte sinal de um fluído corporal corretamente inflamável. contemporânea. Gênero neste sistema é extremamente relativo. O gênero de uma pessoa (e mesmo seu sexo) Esquentar o corpo de uma mulher, especialmente (mas pode depender tanto do comportamento quanto do acaso não exclusivamente) próximo a seus genitais, era um do nascimento, e, por um lado, é algo muito mais literal pré-requisito para sexo bem sucedido e para o orgasmo, do que qualquer coisa imaginada nas teorias do final do o que por sua vez, era pré-requisito para a liberação da século XX sobre ‘performatividade’ de gênero. Além disto, semente que resultaria em gravidez. Mas se a quantidade como Stephen Greenblatt notou, “uma conseqüência do suficiente de calor deixava uma mulher pronta para en- [esquema de um só sexo] é um homo-erotismo aparente contros sexuais, calor excessivo poderia transformar seu em toda sexualidade (GREENBLATT, 1988, p. 92).” corpo humano incompleto no corpo humano plenamente desenvolvido de um homem. O primeiro sinal de calor Para mim, o conhecimento desta surpreendente concep- excessivo era a disfunção menstrual; mas também calor ção extremamente fluída da relação entre gênero e sexo excessivo podia significar um corpo pronto para sexo, ou apresenta grandes promessas, pois ela libera o estudo de pronto para transformar-se no corpo de um homem. Des- gênero e música no Barroco de uma preocupação com te modo, ao controlar a temperatura do corpo da mulher, a vida musical das mulheres, o que poderia tornar todo controlava-se seu uso reprodutivo, sua autonomia sexual o campo de pesquisa parecer marginal, irrelevante aos e seu gênero. Para manter o calor de seus corpos numa homens. Como Wendy Heller eloqüentemente demons- temperatura apropriadamente moderada, meninas e mu- trou, o modelo Laqueur/Park provê uma explicação intui- lheres eram aconselhadas a evitar comer carne, beber vi- tiva para o predomínio de mulheres surpreendentemente nho ou fazer exercícios extenuantes. Acreditava-se que fortes, freqüentemente até masculinas e de homens sur- mulheres atletas, dançarinas e cantoras colocavam sua preendentemente fracos, efeminados, como personagens capacidade reprodutiva em risco porque estas atividades centrais da ópera veneziana: mulheres quentes, asser- aqueciam seus corpos de forma antinatural; em função tivas, (às vezes mesmo masculinizadas) e homens frios, de seus corpos quentes, logicamente tais mulheres po- sensuais e efeminados eram amantes previsíveis na Eu- diam ser imaginadas sexualmente mais disponíveis que ropa barroca (HELLER, 2003). Além disto, esta compreen- outras mulheres e mais suscetíveis à mutação miraculosa são de gênero barroco fornece um contexto com um foco do hermafroditismo que as transformaria em homens. agudo para a complexidade freqüentemente estonteante do jogo de gêneros na ópera veneziana. Em suas múlti- Por causa de seus corpos imperfeitos, mulheres eram natu- plas camadas de cenas com vestimentas cruzadas, e, al- ralmente mais fracas que os homens.6 Alguns acreditavam gumas vezes, papéis com cruzamento de vozes que pare- que sua temperatura fria causava inferioridade intelectual, ce misturar irremediavelmente as identidades de gênero depravação moral, uma tendência inata a enganar e apeti- dos personagens, estas óperas literalmente encenavam o te sexual voraz. Homens que passavam muito tempo com sistema de gênero basicamente instável no qual as audi- mulheres eram considerados efeminados. Mesmo quando ências do século XVII acreditavam – permitindo a estas seu excessivo desejo heterossexual era o que levava estes audiências contemplar as implicações da instabilidade de homens a freqüentarem prostitutas, cortesãs, amantes ou gênero na vida política. Assim o modelo de Laqueur/Parks, suas próprias esposas. Homens com uma sexualidade for- quando acompanhado de exaustiva leitura da literatura te que desejavam ou necessitavam ser percebidos em sua panfletária do século XVII sobre feminilidade, possibilitou masculinidade, esforçavam-se por se envolver em ativida- a Heller explorar em grande profundidade os meios pelos des tipicamente masculinas, como comércio, caça, política quais a instituição da ópera interagia com o sistema de e guerra, e muitos deles preferiam buscar alívio sexual com sexo/gênero da Veneza setecentista. outros homens (normalmente mais jovens) do que serem vistos próximos demais das mulheres. 3 - Música barroca como troca erótica O modelo de Laqueur/Parks também ilumina o modo Acreditava-se que danos à genitália de um menino ou em que a música funciona como meio para as trocas homem, causado intencionalmente, por acidente ou do- de prazer erótico. Eu pretendo usar a palavra “erótico” ença, reduzia a capacidade deste corpo em produzir calor. com o sentido que funde as idéias similares de Platão, Portanto, tais homens, “naturalmente” mais frios, eram Freud e a poeta americana Audre Lorde, os quais usam também efeminados. A castração de um menino negava o conceito de eros para referirem-se à força vital – a ele o último impulso de calor que faria dele um homem, uma energia vital baseada nos sentidos que traz a alegre deixando-o numa espécie de lugar intermediário – nem consciência de se estar vivo e não morto.7 Trata-se da homem nem mulher, mas com um terceiro gênero, o me- experiência humana que inclui, mas não está de forma nino eterno. Como eterno menino, no entanto, ele seria alguma limitada, ou mesmo especificamente focada nos visto como efeminado, naturalmente mais sensual do que atos que usualmente chamamos de “sexo.” Esta função outros homens, mais inclinado à volúpia e à moral dúbia. da música como meio para a circulação de energia eró-

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tica e prazer me parece ter sido institucionalizada no pretações não eram de forma alguma improvisadas, mas sim Barroco italiano, tornando-se um elemento central da execuções perfeitas de ornamentos compostos para elas pe- sensibilidade barroca. los dois homens encarregados de liderar o conjunto – Ippo- lito Fiorini e Luzzasco Luzzaschi. A música tem sido associada com experiência erótica des- de pelo menos a época de Platão. Tanto em sua República Todas estas descrições possuem uma carga erótica, so- quanto em suas Leis, Platão argumenta que o estado devia bre a qual alguns autores têm interpretado como algo controlar a música, pois certos modos poderiam estimular provocado apenas pela presença física das mulheres em um perturbador desejo físico e uma inclinação (somente) à performance, as quais costumeiramente não fariam mú- auto-satisfação em delícias sensuais. Ao ameaçar a capa- sica fora de seus próprios círculos domésticos. Mas ao cidade para a razão e assim “suavizar” a alma a ponto de ler mais profundamente os tratados médicos do século enfraquecer o desejo de lutar, quando necessário, tais modos XVI, Bonnie Gordon e outros demonstraram como estas gravavam na alma de executantes e ouvintes padrões afeti- execuções devem ter sido vistas como algo claramen- vos que pareciam perigosos para membros da classe políti- te sexualizado (GORDON, 2004 e TOMLINSON, 1993). ca. Estes padrões desorganizavam o equilíbrio delicado das Em primeiro lugar, a literatura prescritiva desde a era qualidades de gênero que Platão acreditava que deveriam clássica aconselhava as mulheres a demonstrarem sua caracterizar os líderes de um estado ideal, produzindo uma castidade através do silêncio. A boca fechada da parte feminização inapropriada e disempowering 8 tanto em mu- superior do corpo simbolizava a boca fechada de suas lheres quanto em homens. Outras versões da ansiedade de partes inferiores. Assim, para mulheres de boas origens, Platão sobre o poder erótico da música proliferam na litera- quebrarem seu silêncio de forma tão extravagante em tura ocidental, tanto religiosa quanto secular. O tema veio frente a estranhos, implicava na possibilidade de que à tona dramaticamente no discurso musical profissional no elas estariam sexualmente disponíveis. Em segundo lu- início do século XVII, especialmente nas batalhas retóricas gar, como Gordon e Gary Tomlinson demonstraram, al- vociferadas contra a textura das linhas vocais e novidades guns médicos do século XVI acreditavam que a voz era harmônicas que compositores como Monteverdi, Peri e os uma substância que era pressionada para fora do corpo Caccini exploraram como meios de transformar a música com a respiração; esta substância vibrante penetrava o como discurso de verdades cósmicas numa arte de persuasão ouvido, provocando a experiência do mesmo afeto no e expressividade emocional.9 A relação entre a experiência corpo do/a ouvinte com que o/a orador/a ou cantor/a musical e a experiência erótica foi avidamente (ou também impregnara sua voz. Assim, os ouvintes desta musica se- ansiosamente) explorada durante o período histórico que greta que escreveram estas descrições poderiam muito agora chamamos de Barroco. Realmente, podemos também bem ter tido a experiência de terem sido penetrados – e, argumentar que a famosa musica segreta na corte dos Este portanto feminizados – pelas vozes das mulheres que se em Ferrara, o mais antigo conjunto imbuído da intenção es- apresentavam sexualmente disponíveis. Em terceiro lu- pecífica de produzir meraviglia musical, institucionalizou a gar, estas mulheres articulavam os deslumbrantes orna- ligação entre o musical, o erótico e o político que já havia mentos de suas canções com uma técnica chamada gor- sido previsto por Platão. Supostamente criado para servir a gheggiando, na qual mesmo as mais curtas notas eram jovem noiva do Duque de Este e sua comitiva, o conjunto era articuladas pelo abrir e fechar extremamente rápido das formado por quatro mulheres de boas origens e um nobre.10 cordas vocais que interrompiam e reiniciavam a passa- Estas mulheres, cantoras e instrumentistas virtuoses, são gem do ar. A cada uma destas articulações, uma cantora consideradas freqüentemente como as primeiras mulheres controlava o equilíbrio entre silêncio e som na sua pró- musicistas “profissionais.” Pagas com altos salários, garan- pria apresentação pessoal, como se em cada momento tidas por dotes extremamente generosos, nobres maridos e ela controlasse a abertura e fechamento de seu corpo; apartamentos no palácio de Este, elas serviam às mulheres deste modo ela apresentava através de sons musicais da família Este participando com elas em peças e balletti claros, sua habilidade em controlar sua castidade. Talvez produzidas somente para o prazer da família mais próxima. ainda mais excitante fosse o fato de acreditar-se que Mas elas também serviam às ordens do Duque, cantando gorgheggiando era produzido pela fricção constante e para os convidados que ele tentava agradar compartilhando tremulante não das cordas vocais, mas da glote – um os prazeres auditivos da vida doméstica de sua família. Na órgão que ao controlar o acesso à parte superior da gar- realidade, o musica segreta não tinha nada de secreto; quase ganta era considerado equivalente ao órgão que por sua todos os que pertenciam a uma determinada classe eram vez controlava o acesso à garganta inferior do corpo – o convidados a escutá-las, e quase todos que escreveram car- clitóris, o qual fora recentemente descoberto pelo mé- tas relatando a experiência, focalizaram os mesmo detalhes. dico Reynaldo Colombo como a localização principal do As damas cantavam música espetacularmente ornamenta- prazer feminino.11 Deste modo, o canto com extravagan- da, combinando cada gesto visível do rosto, mãos e corpo te gorgheggiando poderia facilmente ter impressionado com o afeto das palavras que elas cantavam. Quando seus os ouvintes como o som do prazer auto-erótico de uma convidados surpreendiam-se com o virtuosismo das aparen- mulher e talvez até como o som do orgasmo feminino. tes improvisações, o Duque orgulhosamente fazia circular o Estas chocantes implicações sexuais das performances do libro dei tirati, um livro manuscrito contendo centenas de musica segreta eram, no entanto, apresentadas para suas canções de seu repertório, para demonstrar que suas inter- audiências sob a firme autoridade do Duque. A circulação

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ostensiva que fazia do livro das músicas que as mulheres ti pareceriam tanto membros de um terceiro gênero sem cantavam assegurava que seus convidados compreendes- idade, suspenso para sempre em corpos que retinham as sem que, em Ferrara, a musicalidade, a sexualidade e o belas qualidades comuns aos meninos e às mulheres (in- corpo das mulheres eram controlados pelos homens: por cluindo suas vozes) assim como sua tendência efeminada homens que compunham música para elas, escreviam e ao excesso sexual. Uma vez que eles não eram meninos ensinavam-lhes os ornamentos e dirigiam seus gestos – vulneráveis, mas homens completamente adultos, castra- e também pelo próprio Duque, cujo prazer elas serviam. ti podiam, portanto servir como objetos seguros de desejo Podemos argumentar também que quando o Duque apre- pederasta para os homens que preferiam evitar os efeitos sentava seu musica segreta doméstico aos homens que o espiritual e fisicamente contagiosos dos contatos sexuais visitavam, ele explorava os temores de feminização des- com as mulheres. Freitas nos apresenta ampla evidência tes homens. Proporcionando-lhes a experiência do êxtase de ligações homossexuais entre castrati e seus patrões auditivo numa situação que ele controlava, o Duque se (o cantor romano Marc’Antonio Pasqualini com o Cardi- transformava no verdadeiro autor de sua feminização e nal Anonio Barberini, Pistoian Atto Melani com Carlo II seu prazer; assim o espetáculo ostensivo do controle pa- di Gonzaga-Nevers, que era Duque de Mântova nos anos triarcal sobre os corpos das mulheres também demons- de 1650, e o florentino Francesco de Castris com o Grand trava o controle do Duque sobre os corpos dos homens. Principe Ferdinando II de’ Medici no final do século XVIII). Ao relermos então estas performances através das idéias Tais ligações eram extremamente vantajosas para as car- contemporâneas de gênero e sexo, elas revelam-se como reiras musicais dos cantores, muitas vezes mais vanta- meios eficazes de assegurar a afirmação de autoridade josas que suas ligações igualmente comuns com mulhe- absoluta do Duque sobre seus súditos – afirmação essen- res (a quem eles ofereciam uma companhia agradável, o cial de um soberano. prazer visual da beleza infantilizada e a possibilidade de encontro sexual sem o risco de gravidez). Através do en- A ligação entre erotismo musical e sexual com o disem- trelaçamento de seus talentos musicais e eróticos, alguns powerment político tornar-se-ía um tropo importante castrati tornavam-se hábeis para adquirir terras e riqueza em escritos ocasionais sobre música nas próximas gera- pessoal suficiente que lhes permitia afastarem-se do que ções, a longevidade do tropo certamente reforçada pela muitos consideravam a degradação da destreza do canto persistência da instituição musical que o musica segreta virtuosístico profissional. provavelmente teve a intenção de evocar – a prática mu- sical intencionalmente erótica de trabalhadores do sexo O trabalho de Freitas possui implicações mais amplas. do século XVI e XVII.12 Fossem elas prostitutas analfabe- Primeiro, ele parte do estudo da música na cultura cor- tas ou elegantes e eruditas cortesãs, as mulheres de vida tesã para mostrar que as culturas de performance vocal independente que proporcionavam prazer erótico para na Itália do século XVII (e nas performances vocais de os homens como profissão quase sempre faziam música italianos do século XVII no exterior) estavam saturadas para ou com seus clientes. Dado os efeitos sobre o calor do que poderíamos chamar, a partir de Freud, de um do corpo, a prontidão e abertura sexuais, tal prática mu- erotismo polimorficamente perverso no qual tanto ho- sical compartilhada pode ter sido vista como uma forma mens quanto mulheres podiam ser sujeitos e objetos de de preliminar sexual. Ou pode ter sido vista como um desejo. Em segundo lugar, ele constrói sobre a afirma- deslocamento socialmente aceitável de erotismo, distan- ção de Martha Feldman a idéia de que nos séculos XVII ciada de outros tipos de intimidade que poderiam causar e XVIII “artistas nunca desapareciam completamente gravidez, doenças ou queda espiritual, substituída então em seus personagens” para mostrar que no século XVII, por um meio de deleite compartilhado que podia enalte- pelo menos os castrati recebiam os papéis masculinos cer tanto a saúde espiritual quanto somática de todos os principais porque seu lugar efeminado suspenso fazia envolvidos. Tal noção poderia explicar como o cavalheiro com que parecesse “natural” [apropriado] represen- florentino que eu mencionei em minha palestra na segun- tar homens apaixonados (FELDMAN, 2007). Portanto, da-feira poderia ter imaginado escapar da condenação à ele argumenta, os personagens de Nero e Ottone em morte ao descrever a si mesmo como tendo sido violenta- L’incoronazione di Poppea de Monteverdi eram logica- do pela música de uma freira, forçado à paixão que “era mente representados por castrati porque eles eram ho- como o amor,” mas não como o amor carnal porque “ele mens que tinham sido efeminados por sua paixão por se apaixonara pela beleza interior de seu espírito” que se Poppea. Mas como homens efeminados, eles não eram revelara na sua música instrumental e vocal.13 Uma pai- totalmente repugnantes para as mulheres. Ao contrário, xão que era “como o amor,” mas não exatamente como eles eram previsíveis objetos de fantasia para o desejo amor carnal, parece ter permeado os espaços nos quais dos ouvintes homens e mulheres, suas vozes trinando fazia-se música de câmara durante todo o século XVII. tanto a representação do glorioso desconhecimento do gênero, idade e capacidade sexual de seus corpos quan- No estudo ainda no prelo sobre o castrato Atto Melani, to a sua capacidade de execução virtuosística dos orna- de meados do século XVII, Roger Freitas usa o modelo de mentos que eram vistos como excesso às limitações dos Laqueur/Parks para explorar a fusão do musical e do eró- sentidos semânticos de uma ária. Como sabemos que as tico na paixão barroca pelos castrati (FREITAS, no prelo, práticas e o repertório centrado na cultura vocal italia- capítulo 4). Deste modo ele pôde explicar como os castra- na analisado por Freitas eram, na verdade, exportados

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para o amplo Império dos Habsburgo, para as cidades- da eroticamente que mesmo na execução de variações estado de língua alemã e para a Inglaterra do final do numa viola, alaúde ou cravo, ou mesmo na performance longo século XVII, o trabalho de Freitas nos desafia a de um trio sonata como música de fundo para uma re- confrontar o erotismo imanente na música italianizada feição, por ela trafegava a força vital do prazer erótico, de Buxtehude, Handel e Bach. proporcionando uma oportunidade para o erótico ser su- blimado? Seria a sublimação da carga erótica da música Mas este mesmo desafio aponta para as limitações na vocal barroca o elemento crucial da teologia jesuítica da maneira que os musicólogos têm, até agora, tentado com- música, que ensinava que a música poderia conduzir o preender a música barroca através da visão de Laqueur espírito à contemplação do divino? Quanto a isto, como e Parks de gênero barroco. Tão atraente quanto possam a carga erótica da experiência musical ou a compreensão ser os trabalhos de Freitas, Heller, Feldman e Gordon, eles de gênero e sexo como categorias intrinsecamente ins- até agora têm restringido seus esforços à música vocal, táveis teria conduzido à veneração luterana de um Jesus deixando-nos um vasto oceano não demarcado sobre a feminino que permeia as cantatas J.S. Bach? Até onde questão de como esta compreensão historicizada do gê- sei, estas são percepções que ninguém pode no momento nero no barroco possa se aplicar à execução instrumen- responder, mas são questões com grande potencial para tal. Teria sido a cena da música de câmara tão carrega- a pesquisa futura.

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13 CUSICK, S. Gênero e música barroca. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.7-15.

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Notas 1 N.T.: Preferi não traduzir a palavra gendered por “generisada,” como já foi usado por outros tradutores, por julgar o anglicismo demasiado estranho em nossa língua. 2 Sobre performance musical nos conventos, ver MONSON, 1995; KENDRICK, 1996; REARDON (2002); e WEAVER (2002). Sobre a cultura de performance das mulheres fora do claustro abrigadas nos orfanatos municipais de Veneza, ver também BALAUF-BERDES (1993). 3 Amy Brosius argumenta que as mulheres o faziam em BROSIUS, 2008. 4 O livro de conduta mais freqüentemente reeditado foi L’istitutione delle donne de Ludovico Dolce (1545), o qual espe- cificava que fazer música moderadamente era apropriado para meninas e mulheres. Annibale Guasco elaborou ainda mais esta opinião ao ligar a prática musical à leitura e à costura em seu Ragionamenti ad Lavinia sua figliuola della maniera di governarsi in corte (1586). O texto de Guasco está disponível em tradção inglesa de Peggy Osborne sob o título Discourse to Lady Lavinia, His Daughter: concerning the manner in which she should conduct herself when going to court as lady-in-waiting to the Most Serene Infanta, Lady Caterina, Duchess of Savoy (2003). 5 N. T.: no original, empowered. Alguns tradutores usaram o neologismo empoderado, o que prefiro evitar. 6 Para o sumário mais atualizado sobre masculinidades no Barroco, ver FREITAS, no prelo. 7 PLATÃO, 1993; FREUD, 2003; LORDE, 2007, p. 53-59. 8 N.T.: Aqui também tento evitar o anglicismo “desempoderador”, já usado em algumas traduções brasileiras. 9 Um exemplo bem conhecido é o conjunto de documentos que constituem a controvérsia Monteverdi/Artusi, os quais são inundados pela ansiedade do poder erótico da música. Ver CUSICK, 1993, p. 1-25. 10 Para os documentos primários sobre este conjunto, ver os apêndices de NEWCOMB, 1980. As análises mais recentes sobre a dinâmica de poder do conjunto está em WISTREICH, 2007, p. 239-251. 11 PARK, 1997. Sobre as implicações do trabalho de Park para as idéias do início do Barroco sobre o canto, ver GORDON, 2000, capítulo 1 e CUSICK, 2000. 12 Para maiores informações sobre este assunto, ver os ensaios em FELDMAM, 2006 e BROSIUS, no prelo. 13 Uma lista dos doze pontos que Sinolfo Ottieri fez em sua defesa encontra-se no Archivio di Stato de , Otto di guardia e balìa 2793, fasc. 2, f. 26r. Aqui eu resumo os pontos nove e dez, pontos que são ecos próximos do testemu- nho de Jacopo Cicognini e Innocentio Rucellai sobre Sinolfo Ottieri, que foi acusado de estuprar Suora Maria Vittoria Frescobaldi, em sua cela no Monastério di Santa Verdiana. Frescobaldi era conhecida como a melhor cantora de Florença. Sua professora era Francesca Caccini. Apesar das testemunhas nunca mencionarem-na pelo nome, Rucellai declarou que escutou a idéia de que um amador poderia ser “penetrado” e induzido a sentir uma paixão semelhante ao amor por uma performance virtuosística discutida na casa da própria Francesca Caccini, compartilhada por seu marido Giovanni Battista Signorini.

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Suzanne Cusick é professora de Música da New York University, instituição na qual atualmente coordena o Programa de Pós-Graduação em Música. Ph.D. em Música pela University of North Carolina (1975) e bacharel em Belas Artes pela Newcomb College (1969), a pesquisadora publicou importantes trabalhos nas seguintes áreas: a relação entre o fazer musical, identidade e corporeidade; abordagens feministas sobre história e crítica musical; estudos sobre homossexua- lismo e música. Em breve publicará, pela University of Chicago Press, uma monografia sobre Francesca Caccini, cantora, professora e compositora italiana do início do século XVII. Recebeu algumas das mais importantes bolsas de estudos internacionais, como o Frederick Burkhardt Residential Fellow at Villa I Tatti e bolsa para desenvolver pesquisa na Har- vard University Center for Italian Renaissance Studies (2001-2002). Foi coordenadora do Gay and Lesbian Study Group da American Musicological Society e integrou o corpo editorial do periódico dessa associação.

Silvana Scarinci realiza um pós-doutorado na UFMG, onde se dedica à pesquisa e ensino das teorias e práticas relacio- nadas à música barroca. Em 2008 publica o livro Safo Novella: uma poética do abandono nos lamentos de Barbara Strozzi (Veneza 1619-1677), pelas editoras EDUSP/Algol. O livro é acompanhado de um CD com Marília Vargas, Luís Otávio Santos, André Cavazotti, Silvana Scarinci e Sérgio Álvares. Em 2001, fundou o grupo Anima Fortis, grupo especializado em música escrita por mulheres do período Barroco, o qual foi premiado pela associação norte-americana Early Music América em 2002. Tem participado de várias produções de ópera barroca no Brasil e Estados Unidos, destacando-se I la- vori persi sob a direção de Nigel North, apresentado em 2002 no Bloomington Early Music Festival, EUA; Combattimento di Tancredi e Clorinda (Nicolau de Figueiredo dirigindo a Camerata Antiqua de Curitiba) e L’Orfeo de Monteverdi, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sob direção de Marcelo Fagerlande. Foi coordenadora científica daI Semana de Música Anti- ga da UFMG: barroco em contexto (novembro de 2007) e coordena a série Música Antiga no Casarão (Campinas, 2008).

15 FIAMINGHI, L. H. O violino violado: o entremear das vozes esquecidas... Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.16-21.

O violino violado: o entremear das vozes esquecidas das rabecas e de “outros violinos”

Luiz Henrique Fiaminghi (UNICAMP, Campinas) [email protected]

Resumo. A representação do violino como instrumento musical hegemônico é um fato incontestável se considerarmos sua presença nos mais diversos âmbitos das práticas da música ocidental. As últimas décadas presenciaram, porém, a emergência de algumas vozes dissonantes: as práticas interpretativas historicamente informadas (Historically Informed Performance ou HIP) redescobriram o violino barroco e todo o seu aparato técnico; no Brasil, a rabeca mostrou suas potencialidades, não mais somente nas mãos de ardorosos defensores da cultura popular, mas de músicos em busca de novas sonoridades. Tomando como exemplo a intersecção do popular e erudito contido nas peças para rabeca escritas por José Eduardo Gramani, pretende-se aqui, sobretudo, mais do que apresentar respostas definitivas, abrir novas questões relacionadas ao ensino do violino no mundo contemporâneo, a partir da inserção de instrumentos esquecidos pela história oficial. Neste sentido, reflete alguns dos aspectos defendidos por Walter Benjamin em Sobre o conceito de história, e traz para a pauta das discussões sobre interpretação musical a questão da padronização imposta pela indústria cultural. Palavras-chave: rabecas, violino barroco, práticas interpretativas, HIP (Performance Historicamente Informada).

The fiddled violin: the clamor of forgotten voices from the Brazilian rabecas and “other violins”

Abstract. The representation of the violin as a hegemonic musical instrument is an undisputed fact, regarding its presence within the widest scope of Western musical performance. The last decades have witnessed, however, the emergency of some dissonant voices: the Historically Informed Performance (HIP) practice has rediscovered the baroque violin and all its technical apparatus; the Brazilian fiddle rabeca claimed to be heard through its own voice, despite the neglectful approach from the mainstream scholars and musicians. Departing from the intersection between popular and erudite culture that characterizes most of Brazilian José Eduardo Gramani’s music written for rabeca, this article raises reflections about violin teaching in a multi-cultural society, according to the concepts of Walter Benjamin’s Über den Begriff der Geshichte. It discusses the standardization of performance practice imposed by the cultural industry. Keywords: Brazilian fiddle, Baroque violin, performance practices, HIP (Historically Informed Performance)

1 - O Império do violino compositores desta época, exceto os que escreveram Desde o seu aparecimento na cena musical em finais exclusivamente para a ópera, dedicaram ao violino, pelo do séc. XVI, o violino assumiu papel central na prática menos, um grande concerto. Estas composições acabariam instrumental européia. Suas capacidades intrínsecas por se cristalizar na programação habitual das salas de de articulação do som e a maleabilidade de potência e concerto, constituindo um representativo repertório do extensão melódica, que varia da imitação do murmúrio período romântico. das flautas à exuberância dos trompetes, qualificaram- no a rivalizar com o canto na arte das diminuições, do As mudanças ocorridas no ensino do violino para adaptá- virtuosismo e da representação retórica instrumental lo à linguagem romântica, têm como referência o ano com a função catártica de magnetização das audiências. de 1802. Nesse ano é publicado em Paris o “Méthode Como herdeiro de outras famílias de instrumentos de de violon par Baillot, Rode et Kreutzer”, três eminentes corda com arco que lhe deram origem (viola bastarda; professores de violino do Conservatório de Paris, que lira da braccio; rabeca medieval), estava predestinado a escreveram este método sob a égide do novo ensino, imperar soberanamente nos séculos seguintes, adaptando- estabelecendo as bases do ensino moderno do violino se como nenhum outro instrumento aos diversos estilos que perduram até os dias de hoje. Tecnicamente falando, musicais que surgiram ao longo de sua história. tratava-se de aparelhar o violinista para a prática de um novo estilo de música, que priorizava a grande linha O séc. XIX, na verdade, coroou esta história, podendo melódica e a igualdade das arcadas em detrimento da ser considerado o “século de ouro do violino”. Todos os clareza de articulação de pequenos motivos e da variedade

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.20, 91 p., jul. - dez., 2009 Recebido em: 15/06/2008 - Aprovado em: 02/12/2008 16 FIAMINGHI, L. H. O violino violado: o entremear das vozes esquecidas... Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.16-21..

nas inflexões de arco. O efeito retórico alcançado pelo “De fato, todas as regras de arcada descritas por Muffat são instrumento que “falava” e “articulava” o texto musical designadas para ressaltar as inflexões fortes e fracas da música, mostrando assim auditivamente o movimento de qualquer dança daria lugar, nesta nova técnica, à “pintura” e ao legato de que estiver sendo tocada. Como o arco para baixo significa longas frases musicais. Harnoncourt aborda este assunto acentuação e o arco para cima o reflexo fraco deste impulso, no muito precisamente: caso da utilização de um arco barroco, as convenções sobre arcadas resultam em convenções sobre inflexões fortes ou fracas, baseadas “Tratava-se de substituir a retórica pela pintura. Foi assim que se nas partes fortes ou fracas do compasso, ou como Muffat diz, nos desenvolveram o ‘sostenuto’, a grande linha, o ‘legato’ moderno. movimentos das danças”. (WILSON, 2001, p.104) Evidentemente a grande linha melódica já existia antes, mas constituída perceptivelmente de pequenas células reunidas As técnicas que tiveram sua origem na prática num bloco. Esta revolução na educação musical foi de tal forma popular, e eram remanescentes ou sobreviventes na radicalmente levada adiante que, em algumas décadas por toda a Europa, os músicos passaram a ser formados pelo sistema de música instrumental por intermédio das danças que, conservatório”. (HARNONCOURT, 1990, p.30) como vimos através do exemplo de Muffat, ainda eram vivas e mantidas nas práticas interpretativas Não é de se estranhar, portanto, que a primeira mudança barrocas, foram abandonadas por completo na estética técnica efetuada foi em relação ao arco. Embora o arco romântica. Um bom indício do seqüestro destas modelo Tourte, que é basicamente o mesmo que se utiliza práticas no romantismo é a ausência de treinamento até hoje, fosse conhecido desde a segunda metade do técnico específico para realização de tais nuances de séc. XVIII, ele passou a ser adotado como o arco ideal acentuação, nos métodos nascidos a partir do advento para reprodução da nova sonoridade somente a partir do Conservatório. Mesmo em países como a Inglaterra, das mudanças estéticas advindas com o romantismo. onde havia uma forte tradição do emprego do violino Sua capacidade de sustentação e de igualdade do som, no âmbito popular, através das danças originárias proporcionadas pelo maior equilíbrio de peso entre o talão de reels (rondós) irlandeses e escoceses, e ao mesmo e a ponta, e pela curvatura convexa do arco, o habilitaram tempo, era um grande centro editorial de partituras e a substituir os arcos antigos, provenientes de vários métodos, além de abrigar vários dos mais importantes modelos, utilizados desde o início do séc. XVII. Estes arcos, músicos da época, o interesse em aproveitar a sintaxe de fato, eram mais apropriados para o aproveitamento do dialeto popular e incorporá-la ao léxico disponível da articulação e da ressonância natural do instrumento, aos instrumentistas eruditos era inexistente. projetando, entretanto, menor volume de som que os arcos modelo Tourte. Sua característica principal O caso das strathspeys escocesas é exemplar neste sentido. era a leveza e a agilidade necessárias para realização O violino foi introduzido nas Highlands (terras altas) das figurações virtuosísticas barrocas, que envolvem escocesas nos finais do séc. XVII pelos lordes escoceses constantes mudanças de corda, tipo “bariolage”. interessados em anglicizar os costumes do povo escocês, como decorrência da união entre os dois países. O violino Um ponto de distinção importante entre os dois tipos não só foi aceito, como se tornou o principal instrumento de arco, é que os arcos barrocos mantiveram em suas da música folclórica escocesa, substituindo as tradicionais características rastros de sua origem nos sécs. XVI e XVII, gaitas de fole na prática de danças estilizadas, como é o quando eram utilizados para o acompanhamento de caso das strathspeys. Este estilo de dança instrumental, danças. Isto implicou na manutenção de uma hierarquia cujo maior representante foi o violinista autodidata na acentuação rítmica realizada pelo arco, como escocês Niel Gow, foi especialmente cultivado nos fundamento para boa execução musical regrada pela círculos urbanos londrinos na passagem do séc. XVIII para retórica dos gestos (na dança) e da oratória (na música), o XIX. Gow alcançou enorme reputação como intérprete exatamente o oposto da igualdade proposta pela nova e compositor, como atestam suas coletâneas editadas no escola. Esta hierarquia é descrita claramente em inúmeros período, tendo o seu estilo de tocar chamado a atenção tratados barrocos. Neste sentido, os tratados Florilegium de cronistas da época. Segundo Carlin: I e II de Georg Muffat, publicados respectivamente em 1695 e 1698, em Passau, são esclarecedores. Muffat foi “As coletâneas de músicas de Gow foram editadas entre 1784 até 1822. São raras não somente pela abrangência da música anotada o principal propagador do estilo francês de J. B. Lully fora como também pela qualidade dos arranjos e do cuidado com que a da França, descrevendo minuciosamente o uso do arco música foi tipografada. Niel Gow foi aclamado em sua época como para a correta execução musical deste estilo: o pioneiro do ‘up-driven bow’, um estilo de utilização do arco para a acentuação rítmica característica da ‘strathspey’... que é conhecido “[O uso do arco] indica a métrica da dança tão exatamente que como ‘Scotch snap’”.(CARLIN, 1986, p.14) pode-se reconhecer imediatamente o tipo da peça, e sentir o impulso da dança nos pés e no coração...Para o estilo de Lully, as notas mais Apesar de haver registros significativos em relação à importantes da métrica musical , são especialmente aquelas que começam o compasso e terminam uma cadência, evidenciando o prática das strathspeys, e da particularidade do “up- movimento da dança, devendo ser tocadas da mesma maneira.” driven bow” como golpe de arco, este “dialeto” não foi (MUFFAT, 1695, apud WILSON, 2001, p. 104) considerado relevante a ponto de ser incorporado à sintaxe moderna do violino e conseqüentemente, aos A importância da hierarquia nas inflexões das arcadas se métodos para formação de violinistas. Sobreviveu e esclarece no comentário de David Wilson: chegou até nós pela transmissão oral de sua prática.

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2 - Em busca da rabeca perdida: Mário de com uma poesia improvisada, cantada visceralmente e Andrade e o papel dos mediadores contrastante com a polidez e o tecnicismo dos cantores Dentro do panorama descrito acima, é natural que nos líricos, pode ser vista como uma atitude vinculada ainda depararemos com a completa ausência de registros acerca aos conceitos do idealismo romântico que procuravam das práticas musicais que envolvem a rabeca no período encontrar na arte primitiva o sinônimo de pureza. Ecos romântico e também nos subseqüentes. O pensamento tardios da teoria de Herder, tecida há mais de século e monolítico em relação aos instrumentos da “grande meio e que via no popular a purificação do erudito. A música” ou da “música séria” atravessou as fronteiras despeito de navegar guiado pela bússola do modernismo, do romantismo, seguindo saudável e seguro no séc. XX Mario estava ainda submerso nas ondas agitadas em adentro. Exemplo disto é a aparente contradição que solo alemão pelo idealismo romântico, que chegavam a Mário de Andrade expressa ao referir-se à rabeca. Aparente nossas praias após longo percurso de 150 anos, mas ainda porque, não há contradição alguma se considerarmos a vigorosas o suficiente para marear o arguto observador inserção de Mário como pioneiro do trabalho musicológico da Nau Catarineta. e etnomusicológico no Brasil. Suas pesquisas, empreendidas entre 1928 e 1938, e publicadas postumamente por Oneyda Apesar de, dentro da estética romântica, os artistas Alvarenga, não poderiam àquela altura, ser realizadas de abrirem as portas da criação para receber os fluxos outra forma, que não pelo ímpeto “romântico” do registro advindos das camadas inferiores da sociedade, e receber e sem as ferramentas utilizadas posteriormente pela desta a matéria básica a ser modelada, a cultura popular moderna etnomusicologia. permaneceu no lugar que sempre ocupou, ou seja, na posição inferior de fonte fornecedora de matéria prima Apesar da abrangência da obra de Mario de Andrade, em para a arte erudita. Analogamente, esta posição é a relação à rabeca, seus postulados acrescentam apenas mesma representada no jogo político entre metrópole e algumas poucas linhas acerca da origem do instrumento, colônia, que no caso do nosso hemisfério, perdurou, com evitando qualquer comentário sobre suas práticas e maior ou menor intensidade, de acordo com a balança aspectos técnicos. A despeito de encontrá-la à beira do das políticas internacionais, até os dias de hoje. desaparecimento, Mario de Andrade não dedicou a ela nenhum registro mais aprofundado, que lhe tirasse a Dentro da visão romântica e do nacionalismo, não havia, conotação de mero “violino primitivo” ou “versão popular do portanto, espaço para os instrumentos populares fora do violino”. O mesmo parâmetro não foi adotado, por exemplo, âmbito folclórico e tampouco para os músicos provenientes quando Mario registrou, com um encantamento contagiante, destas culturas. O mesmo poder-se-ia dizer em relação às o côco como gênero musical e a musicalidade do cantador/ artes plásticas e à dança: a adoção de temas pastoris ou embolador Chico Antonio, nas viagens do “Turista Aprendiz”, políticos na pintura e na escultura, sem dúvida ampliou em 1928. Neste caso, o parâmetro adotado não foi o canto o leque temático retratado, deixando intocada, porém, lírico, mas, pelo contrário, as potencialidades que aquele a relação privilegiada da Arte vis-à-vis ao artesanato; o gênero ancestral de canto poético, improvisado e visceral, Ballet, quando incluiu algum tema folclórico ou regional, poderia contribuir para a música brasileira, conforme os o fez sem deixar de excluir, no entanto, qualquer vestígio ideais estéticos que Mario defendia. de movimento corporal não originário das academias, e que fizesse referência à terra batida das aldeias. Para entendermos melhor este fenômeno devemos recorrer a outras fontes e contextualizar o momento em Sobre as implicações nacionalistas contidas no “resgate” das que Mario de Andrade empreendeu suas pesquisas e a tradições populares, Canclini mostra que a interação entre inserção da rabeca neste contexto cultural. Neste sentido, popular e erudito, cujo grau mais próximo do romantismo Peter Burke, em Cultura Popular na Idade Moderna, seria a posição sectarista do colecionador de “espécies raras oferece pistas sobre como abordar metodologicamente de cultura”, condiciona o próprio ato do registro: os elementos faltantes na composição de uma história “Apenas os investigadores filiados ao historicismo idealista se cultural, e aponta alguns aspectos fundamentais no papel interessam por entender as tradições em um âmbito mais amplo, dos mediadores, ou seja, os filtros culturais que atuam mas as reduzem a testemunhos de uma memória que supõem entre o objeto estudado e nós: útil para fortalecer a continuidade histórica e a identidade contemporânea... No final das contas, os românticos se tornam cúmplices dos ilustrados. Ao decidir que a especificidade da cultura “Estudar a história do comportamento dos iletrados é popular reside em sua fidelidade ao passado rural, tornam-se necessariamente enxergá-la com dois pares de olhos estranhos cegos às mudanças que a redefiniam nas sociedades industriais e a elas; os nossos e os dos autores dos documentos que servem de urbanas. Ao atribuir-lhe uma autonomia imaginada, suprimem a mediação entre nós e as pessoas comuns que estamos tentando possibilidade de explicar o popular pelas interações que tem com a alcançar”. (BURKE, 1995, p.94) nova cultura hegemônica. O povo é ‘resgatado’, mas não conhecido”. (CANCLINI, 2003, p.210) Portanto, o silêncio de Mário de Andrade acerca das rabecas é tão importante quanto o seu entusiasmo em Pela ótica romântica que forneceu as regras do jogo relação a Chico Antônio para determinar mudanças de da hegemonia cultural dos instrumentos musicais, atitudes dos mediadores entre cultura popular e erudita. especificamente do violino em relação à rabeca, o postulado Neste sentido, sua reação positiva face ao encontro acima se traduziria da seguinte maneira: as manifestações

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populares e seus respectivos instrumentos musicais deveriam causar o rompimento de comunicação com a audiência ser resgatados e incorporados ao acervo dos museus e e como reencontro do antigo e do tradicional através de coletâneas assim como os ossos dos nossos antepassados uma ótica contemporânea que busca ser a antítese do são classificados nos sítios arqueológicos. O único interesse idealismo romântico, conforme imaginava Herder em sua seria registrar a história para justificar o presente, e não incessante busca pela pureza do não polido. Também como conhecer o passado para transformar o presente. reação ao “oficial” e conseqüentemente ao convencional. Ser diferente não é mais perigoso, mas passou a ser visto 3 - A história oficial e a (des)continuidade na como qualidade por si mesma. transmissão da técnica violinística Para trilhar esses caminhos, o intérprete deve apoiar-se As considerações de Burke e de Canclini alertam para em algum fundamento. W. Benjamin oferece, em sua questões fundamentais quando se trata de desvelar traços teoria do “recobrimento dos momentos revolucionários culturais absorvidos ou obscurecidos por uma cultura do curso da história” uma instigante posição para validar hegemônica, e ao mesmo tempo, oferece subsídios para os buracos deixados pela história oficial, a história dos aqueles que desejam ir além da história oficial. Neste vencedores, que bem poderia servir ao especulador sentido, seus pensamentos alinham-se à visão de filosofia interessado em justificar suas opções pelos elos perdidos da história defendidos por W. Benjamin. A partir de suas da cadeia evolutiva dos instrumentos musicais. Segundo teses “Sobre o conceito de história”, outra face da história Gagnebin, citando W. Benjamin: dos oprimidos se revela. Segundo J. M. Gagnebin: “A história habitual é, de fato, a ‘comemoração’ das façanhas dos “De maneira extremamente ousada, Benjamin tenta pensar uma vencedores, ela é a ‘apologia’ que tende a ‘recobrir os momentos ‘tradição’ dos oprimidos que não repousaria sobre o nivelamento revolucionários do curso da história’. 2 A essa narrativa cumulativa da continuidade, mas sobre os saltos, o surgimento (Ur-sprung), e complacente ele opõe, nos dois fragmentos, a necessidade de a interrupção e o descontínuo: ‘O continuum da história é o dos ater-se a tudo o que poderia interromper essa aparente coerência: opressores. Enquanto a representação do continuum iguala tudo ‘A ela [isto é, à habitual representação da história ou à apologia] ao nível do chão, a representação do descontínuo é o fundamento escapam os lugares nos quais a transmissão se interrompe e, com 1 da autêntica tradição’” (GAGNEBIN, 2004, p.99) isso, suas asperezas e suas arestas que oferecem uma escora àquele que quer ir além dela’” 3 A continuidade na transmissão dos conhecimentos, no nosso caso, da técnica violinística, seria, dentro deste ponto “Parafraseando essas linhas, podemos afirmar que aquele que quer ir além dessa tradição dos vencedores (‘der über sie hinausgehen de vista, um obstáculo à emergência de outros valores, ou will’) deve saber agarrar-se a essas asperezas (Schroffen), a essas outros prismas para interpretação musical. As quebras, arestas (Zachen) que lhe oferecem tantas escoras ou pontos de os buracos escuros, a dúvida, e a incoerência, podem, por apoio (‘die dem einen Halt bieten’) na sua luta contra o fluxo sua vez, assumir uma função de ruptura do já conhecido nivelador da história oficial que, justamente, deixa escapar esses ‘lugares nos quais a tradição/transmissão se interrompe’ (‘Ihr e esperado, agindo como elementos catalisadores do entgehen die Stellen, an denen die Überlieferung abbricht)’”. questionamento perante uma verdade inquestionável. (GAGNEBIN, 2004, p.100) Isto é válido tanto para os procedimentos esquecidos de como interpretar música barroca com instrumentos de Desta maneira seria inútil procurarmos encontrar época, especificamente o violino barroco, quanto para valores essenciais da diversidade musical na prática incorporar instrumentos “sem história”, como a rabeca. violinística do séc. XIX, em especial nos métodos de violino como os citados anteriormente. De fato, O encontro da rabeca com o violino tem muito a acrescentar estes métodos visaram somente a manutenção da em relação às quebras de procedimentos herdados da tradição continuidade da transmissão de conhecimentos e do e utilizados irrefletidamente para interpretação musical. treinamento exclusivo para a interpretação de um Coloca-se aqui uma questão fundamental que enfoca este único estilo musical, não voltando suas atenções para encontro pela ótica da sobreposição e não de oposição nenhuma outra prática a não ser aquelas pertencentes à de linguagens. Transparências que não apagam as figuras “grande música”. Considerando que havia paralelamente cobertas pela nova camada de tinta, mas que somam uma extensos registros sobre as práticas violinísticas fora nova cor a cada pincelada. A nova cor que não é imposta por da tradição formada pelo romantismo, como por oposição causada pela cobertura de uma espessa camada de exemplo, os inúmeros tratados barrocos dedicados ao tinta, mas que emerge inesperada, movida pelas vibrações violino, e mesmo os provenientes da tradição popular, da luminosidade de ambas as cores. Uso propositalmente a como as coletâneas de música violinística de Niel Gow, analogia pictórica, pois trata-se em última instância, de uma percebe-se a unilateralidade com que o ensino gerado volta aos timbres, das particularidades de cada instrumento, pelo Conservatório se impôs. e principalmente da não uniformização. A saída encontrada dentro de uma ótica pós-moderna foi O movimento em direção ao encontro de instrumentos a adoção dos instrumentos musicais periféricos, alijados de corda fora do mainstream musical, seja a rabeca do processo interpretativo, como “escoras”, ou de acordo ou o violino barroco, passa, portanto, por caminhos com Gagnebin, como “pontos de apoio” para a pesquisa, semelhantes. Como movimento de reação ao modernismo, e, a partir deles, permitir a construção de uma técnica de que esticou o tecido da linguagem musical a ponto de performance que os incorporassem à práxis musical.

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4 - O Inferno de Orfeu: a rabeca como desvio “Na indústria cultural o indivíduo é ilusório não só pela estandardização das técnicas de produção. Ele só é tolerado do método e o exemplo de José E. Gramani à medida que sua identidade sem reservas com o universal A herança pedagógica deixada pelo romantismo, via permanece fora de contestação. Da improvisação regulada do jazz conservatório, trilhou um caminho oposto, adotando até a personalidade cinematográfica original, que deve ter um topete caído sobre os olhos para ser reconhecida como tal, domina uma técnica generalizada pronta e perfeita, o que, a pseudo-individualidade. O individual se reduz à capacidade obrigatoriamente, condicionou a aquisição técnica e a que tem o universal de assinalar o acidental com uma marca tão realização musical a uma única forma de conhecimento. indelével a ponto de torná-lo de imediato identificável” (ADORNO, Harnoncourt aponta para os perigos de uma técnica 2004, p.55-56) generalizada como base para formação musical de “Toda voz de tenor soa exatamente como um disco de Caruso, e forma contundente: os rostos das garotas do Texas naturalmente se assemelham aos modelos segundo os quais seriam classificadas em Hollywood. “Estritamente falando, o músico atual recebe uma formação, cujo A reprodução mecânica do belo, que a exaltação reacionária método é muito pouco compreendido, tanto pelo seu professor, da ‘cultura’, com a sua idolatria sistemática da individualidade, quanto por ele mesmo. Ele aprende os sistemas de Baillot e favorece tanto mais fatalmente, não deixa nenhum lugar para de Kreutzer [em referência aos primeiros métodos de violino a idolatria inconsciente a que o belo estava ligado” (ADORNO, editados no Conservatório de Paris], que foram concebidos para 2004, p.35) seus contemporâneos, e os aplica à música de épocas e estilos inteiramente diversos. Aparentemente, sem qualquer reflexão, A Arte como meio de abrir as portas iniciáticas de são utilizados na educação musical atual princípios teóricos que há cento e oitenta anos faziam sentido, mas que, hoje em dia, não mundos incógnitos, e a música como seu meio mais se compreendem mais...Um violinista com a mais perfeita técnica fluido e irracional, remete diretamente à mitologia de de Paganini e de Kreutzer não deveria acreditar-se ‘dono’ das Orfeu. Flautas mágicas e liras da braccio permeiam ferramentas necessárias para executar Bach ou Mozart. Para tal, os véus que encobrem “a idolatria inconsciente a ele precisaria conhecer as condições técnicas e o sentido da música ‘eloqüente’ do séc. XVIII” (HARNONCOURT, 1990, p.31) que o belo estava ligado”. Impossível não imaginar as representações renascentistas de Orfeu e sua lira, a cantar Seguindo a receita utilizada em todas as ditaduras, uma despreocupadamente. O inferno de Orfeu é “a reprodução formação musical ancorada em tamanha estandardização mecânica do belo”, a reprodução banal de sua Arte, uma técnica, seria, analogamente, o mesmo tipo de violência dentre as milhares de cópias do sorriso da Monalisa. que oferecer aos estudantes de humanidades uma Não é por acaso que um dos aspectos que mais chamou biblioteca formada unicamente por livros de uma a atenção de J. E. Gramani em relação às rabecas foi a determinada corrente estética ou filosófica. Longe de não padronização destes instrumentos. Cada rabequeiro, ser uma exclusividade da didática do violino, e ser ainda uma rabeca. Cada rabeca, uma música. Cada música, uma de uma atualidade preocupante, a padronização do interpretação. O inesperado som da rabeca 4 é uma ode a ensino musical reflete um universo maior, formado pelas não-padronização, o que estava perfeitamente de acordo mudanças em todas as esferas da sociedade, decorrentes com uma percepção do mundo voltada aos sub-textos da urbanização e da industrialização aceleradas como contidos nos discursos oficiais. A rabeca como desvio, conseqüências da revolução industrial. A individualidade violino violado que não violenta a tradição, e tampouco artística, que é uma das características do romantismo, busca a permanência de alguma tradição. Apenas expressa transfigura-se em individualidade ilusória que resulta da o protesto de um artista cuja voz retoma o canto perdido imposição de receitas ditadas por uma indústria cultural de um Orfeu ancestral e para isso, tanto mais efetivo é o ávida de produtos de uso imediato e rentáveis. Em suas seu canto, quanto mais longe do verniz está a porosidade definitivas análises sobre as mazelas da indústria cultural de sua arte. Técnica sim, mas não como congelamento de do pós-guerra, e em caráter profético, Adorno alerta para algum procedimento mecânico. as armadilhas da padronização cultural, muito antes do neo-liberalismo se tornar pauta dos jornais:

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Notas 1 BENJAMIN, Walter (1974) – Gesammelte Schiften, p.236, Frankfurt am Main, Suhrkamp. Trad. J. M. Gagnebin. 2 BENJAMIN, Walter – Passagen-Werk, Ges. Schr. V, pl 592, fragmento N9a,5. 3 BENJAMIN, Walter – Ges. Schr. 1-3, p.1242 (trad. J.M.G.) 4 Referência à “Rabeca, o som inesperado” (2002), editora independente, Curitiba, publicação póstuma de J. E. Gramani sobre a pesquisa realizada entre 1995 e 1997, com apoio da FAPESP, abordando o universo musical de quatro construtores de rabecas e rabequeiros brasileiros. Orgização Daniella Gramani.

Luiz Henrique Fiaminghi estudou violino com Paulo Bosísio e Ayrton Pinto (UNESP/SP). É bacharel em composição e regência pela UNICAMP/SP. Foi violinista da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas. Em 1987, obteve bolsa de especialização do CNPq para estudar violino barroco e interpretação de música barroca na Holanda, tendo estudado nos Conservatórios de Rotterdam (profa. Marie Leonhardt) e de Utrecht (profa. Alda Stuurop). Em 1995 escreveu a monografia “Violino e Retórica” com orientação do Prof. Dr. João A. Hansen no curso de especialização em “Arte e Cultura Barroca” da UFOP, MG. De 1993 à 1995, foi professor de violino na UDESC. Fundador do Trio Carcoarco. Desde 1996 é membro do grupo Anima, com o qual gravou e produziu 5 CD’s, e realizou diversas turnês no Brasil e no exterior, tendo recebido os prêmios “APCA” (1998) e “Carlos Gomes” (2000), como melhor grupo de música de câmara. Concluiu doutorado em música na UNICAMP com a tese: “O Inferno de Orfeu: rabeca, hibridismo e desvio do método nas práticas interpretativas contemporâneas – tradição e inovação em José Eduardo Gramani”, orientado pelo Prof. Dr. Esdras Rodrigues.

21 PERSONE, P. A aurora do (forte)piano. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.22-33.

A aurora do (forte)piano

Pedro Persone (UNESP/ FAPESP, São Paulo) [email protected]; http://fortepiano.org

Resumo. Este artigo revisita a aurora do fortepiano, instrumento que se tornaria ponto de convergência no fazer musical de fins do século XVIII até meados do XX, e apresenta referências documentais sobre o início da invenção da mecânica de Bartolomeo Cristofori, bem como documentações de outros projetos não Cristoforianos. Palavras-chave: Piano, Fortepiano, Cristofori, Tangentflügel, Piano tangente.

The dawn of the (forte)piano

Abstract. This article reviews the dawn of the fortepiano, an instrument central to music making from the second half of Eighteenth century to the middle of the Twentieth century. It presents documents that describe the beginning of Cristofori’s invention as well as non-Cristofori documents on the same subject. Keywords: Piano, Fortepiano, Cristofori, Tangentflügel, Tangent piano.

1- Os princípios de um novo instrumento Antes do advento do registro de patentes, muitas vezes mais antigo instrumento conhecido, um “octave virginal” poderia ser difícil conectar a invenção ao seu criador - a ou espineta construído em 1587 por Franciscus Bonafinis, idéia da patente é mais comum ao século XIX. Com a criação teve sua mecânica original substituída por uma mecânica da lei de patentes, por volta de 1790 nos Estados Unidos, a martelos tangentes em 1632. toda nova invenção, mudança, ou aprimoramento podiam ser diretamente relacionados a seu inventor ou executor. Jean Marius (?-1720), um hábil matemático, com No caso particular do piano, podemos traçar suas origens graduação em leis, inventor do clavecin-brisé (cravo e desenvolvimentos, sendo possível determinar a provável dobrável), submeteu em 1716 à Académie Royale des data, o lugar e seu inventor. É possível ver exemplos de Sciences de Paris quatro diferentes projetos de clavecin à melhorias patenteadas posteriormente na história do piano maillets (cravo a martelos): um tinha martelos (maillets) por Erard ou Pleyel. Cada invenção ou criação materializada substituindo os saltarelos, o segundo uma combinação por um construtor nas diversas etapas da história do de martelos e saltarelos que poderiam ser usados em fortepiano parece ter sido inspirada pelo desejo de fazer separado ou em conjunto; um terceiro incluindo duas um instrumento de teclado que permitisse ao intérprete maneiras de golpear as cordas, uma por baixo e outra tocar expressivamente com douceur, forte e piano.1 por cima; e um quarto projeto que era um modelo de “armário”. Nenhum destes instrumentos chegou a ser Desde o aparecimento, na Itália em 1711, do célebre construído (POLLENS, 1995, p.265-267). artigo de Scipione MAFFEI (1675-1755) (MAFFEI, 1711, p.144-159), posteriormente traduzido para o alemão Na Saxônia, Christoph Gottlieb Schröter (1699-1782) (MATTHESON, 1722-1725, p.336-343), até as mais apresentou uma idéia similar em 1717. Mais uma recentes pesquisas, Bartolomeo Cristofori (1655– vez nenhum instrumento foi construído. Além disso, 1731) pode ser considerado o inventor do (forte)piano. Marius e Schröter estavam experimentando com uma Examinando a história do instrumento podemos aprender mecânica mais direcionada a um piano tangente (Ex.1). que Henry Arnaut de Zwolle (fins do século XIV-1466), em Excelentes textos de Pollens (POLLENS, 2000, p.140-151) um manuscrito de ca. 1440, descreve um clavisimbalum sobre as correspondências entre Schröter e Friedrich - instrumento semelhante ao cravo - com uma ação Wilhelm Marpurg (1718-1795) apresentam tradução do de martelos. Hippolito Cricca, em três dentre as cartas documento para o inglês. O documento de Schröter sobre que escreveu ao duque Cesare d’Este (1561-1628), de sua auto-proclamada invenção aparece primeiramente Modena, no ano de 1598, menciona l’instromento pian et no livro de Lorenz Christoph Mizler (1711-1778), Neu forte con l’orghano, ou istromento piane e’ forte, ou ainda eröffnete musikalische Bibliothek publicado em Leipzig instromento piano et forte (POLLENS, 1995, p.229-231). entre os anos de 1739 e 1754 - vol. 3, pt. 3 - (POLLENS, Cricca não descreveu claramente este “instrumento suave 1995, p. 244-245) e, posteriormente, em 1763, sua carta e forte”, assim não podemos ter uma idéia real sobre o foi publicada no livro Kritische Briefe über die Tonkunst. mecanismo usado. Mas está claro que tal instrumento Berlin, 1760-64, vol. 3, pt. 1, de Friedrich Wilhelm Marpurg havia sido utilizado na corte dos d’Este, em Ferrara. O (1718-1795) (POLLENS, 1995, p. 246-264).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.20, 91 p., jul. - dez., 2009 Recebido em: 11/10/2008 - Aprovado em: 13/03/2009 22 PERSONE, P. A aurora do (forte)piano. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.22-33.

A carta de Schröter (1738), constante na Neu eröffnete Marius ou de Schröter, podemos entender que a linha de Mizler, explica que em 1717 foi comissionado a ele mais importante – não Cristoforiana – de instrumentos a um instrumento novo de teclado usando martelos. No martelos é a do tangent piano. Kritische de Marpurg, Schröter explicou que seu modelo No Tangentenflügel (Ex.2), as peças de madeira – uma mecânica acionada golpeando a corda tanto por (tangentes) deslizam livremente para golpearem as cordas baixo quanto por cima – fora submetido à apreciação da (letra C no Ex.2). Estas peças de madeira assemelham- corte em Dresden. Dessa corte, Schröter nunca obteve se mais a saltarelos do cravo que a martelos articulados nenhum resultado sobre uma possível aprovação ou ou pivotados, tal como na invenção de Cristofori. Franz mesmo desaprovação. Além desse silêncio, os documentos Jakob Späth (1714-1786), de Regensburg, inventou, em originais encaminhados à corte nunca foram devolvidos 1751, um dos instrumentos tangentes mais importantes. ao inventor. Não sabemos se algum instrumento de Alguns dos princípios mecânicos do piano tangente foram Schröter alcançou um estágio de construção real, uma incorporados em grande número de projetos. Atualmente, vez que nenhum sobreviveu. Schröter projetou uma ação em Ninove, Bélgica, um construtor de clavicórdios e totalmente diferente daquela de Cristofori. Provavelmente , Ghislain Potvlieghe – que gentilmente ignorava a data do Arpicimbalo de Cristofori. Se não há cedeu o esboço da mecânica acima – constrói cópias dos indícios da existência real de nenhum instrumento de Tangentenflügel de Baldassare Pastore, 1799.

Ex.1 - Projeto da primeira mecânica de Schröter. In: Marpurg‘s Kritische Briefe über die Tonkust, v.3.

Ex.2 - Design da mecânica tangente por Ghislain Potvlieghe (Ninove, Belgium) 2

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Outro alemão, Pantaleon Hebenstreit (1668-1750), o - moderador, efeito resultante da introdução de feltro ou mais famoso virtuose de dulcimer associou-se a Gottfried couro entre as cordas e os martelos ou tangentes; Silbermann (1683-1753) de Freiberg, que seguiu as primeiras instruções para a construção de um dulcimer - registro de alaúde (similar ao registro de alaúde do martelado não mecânico que se tornou conhecido como cravo) utilização de cordas de tripa ou superfície macia Pantaleon (Ex.3). Em 1697 Hebenstreit fez um novo no martelo ou no tangente; modelo de dulcimer3 combinando cordas de tripa e metal juntas. Este grande instrumento media mais de 9 pés. A - damper pedal4 um pedal de abafador (ou alavanca de técnica de Hebenstreit alcançou um nível tão elevado de abafador do joelho) que tinha o efeito de tirar os abafadores perfeição que se tornou quase impossível imitar o seu das cordas que, então, podiam vibrar livremente da mesma toque. Hebenstreit tocava seu Pantaleon com martelos maneira que o dulcimer sem abafadores. de madeira alterados às vezes por outros cobertos por material macio. Como o instrumento não tinha abafadores, Com base na existência da espineta de Bonafinis e de sua as cordas vibravam livremente, tendo por resultado um ação de tangentes, os detratores modernos da primazia som extremamente rico e poderoso. de Cristofori, indicam que o piano teve uma longa (pré) história anterior a Bartolomeo Cristofori. Devido à falta Sua habilidade como pantaleonista (e violinista) foi elogiada de instrumentos sobreviventes, o conhecimento de por Georg Philipp Telemann (1681-1767) e por Johann não-Cristoforianos ou pré-Cristoforianos torna-se uma Kuhnau (1660-1722), Cantor da Igreja de São Thomas em matéria muito difícil e praticamente especulativa. Leipzig. Kuhnau definiu a execução ao pantaleon como um “trabalho de Hercules”, devido à grande dificuldade Baseando sua teoria em um único exemplo - a espineta de se tocar tal instrumento. Esta sonoridade maravilhosa de Bonafis - e também em documentos originais pré- provavelmente motivou a adaptação de um teclado. Cristofori, os detratores da paternidade cristoforiana do Na correspondência de Hebenstreit com Telemann é piano supõem a existência e, provavelmente, alguma mencionada outra invenção de Silbermann, o Cembal construção de instrumentos similares ao piano. De fato, d’Amour, um pequeno instrumento de quatro oitavas com não se pode negar o conhecimento de mecânicas a tampo harmônico duplo associando a funcionalidade do martelos como os mencionados por originais de fontes cravo ao som delicado do clavicórdio. preliminares - tais como de Zwolle e Cricca, mencionados acima - mas não podemos supor nenhuma manufatura Equipado com um teclado e uma mecânica simples de de tais instrumentos. De acordo com tal pensamento, martelos com alguns registros, antigos dulcimers com teclado Cristofori pode ser considerado uma figura importante no poderiam, então, imitar o toque de Hebenstreit. Além do som desenvolvimento do piano, mas não pode ser considerado brilhante normal, os registros eram os seguintes: o ponto inicial de sua história. Os detratores da invenção

Ex. 3 - Concerto na Christ’s College, Cambridge, Junho de 1767: gravura de Abraham Hume segundo Thomas Orde mostrando (da esquerda à direita) P. Hellendaal (violino), V. Noel (violino), J.F. Ranish (oboé), West (violoncello), J. Wynne, compositor e editor de música em Cambridge (contrabaixo), G. Noel (Pantaleon) e D. Wood (cantor e posteriormente organista na Ely Cathedral).

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cristoforiana acreditam que o fato de ter as cordas apontou-o para o grupo de músicos da corte – conhecido golpeadas por um martelo pivotado ou por tangentes como virtuosi 9 – e pagou-lhe um salário mensal, bem de madeira de movimento livre não importa, desde que, como o aluguel de seu atelier na via a canto agli Alberti como resultado final, se consiga um efeito similar. Os (conhecida hoje como Via de’ Neri) onde mantinha dois pianos tangentes tiveram uma idade de ouro entre os assistentes, Giovanni Ferrini (?1669-1758) e outro não anos de 1750 e de 1830, quando este tipo de piano foi citado nas fontes. amplamente usado na Europa. O Grão Príncipe Ferdinando, filho de Cosimo III (1642- O piano tangente foi um sucesso no objetivo principal 1723), focou mais seus interesses em música e arte de manter a sonoridade rica, leve e brilhante do cravo, que em política. Ferdinando alcançou uma excelente tendo a possibilidade de nuances dinâmicas. A sonoridade reputação como hábil cravista, que podia ler e memorizar e o toque do piano tangente demonstram qualidades à primeira vista. Cultivou a ópera, a música instrumental e distantes das características do fortepiano tais como a commedia dell’arte em sua corte. Na lista de sua equipe os instrumentos dos anos 1780/90. Acreditam também de funcionários e dos virtuosi podemos ler os nomes que Pantaleon Hebenstreit desempenhou um papel de doze indivíduos, onze performers e um strumentaio decisivo - mesmo que contra sua própria vontade - no (O’BRIEN, 1994, p. 55): desenvolvimento do piano. - Francesco de Castris 2 - Bartolomeo Cristofori (1655-1732), - Raffaelo Baldi inventor ou estruturador? - Martino Bitti Bartolomeo Cristofori nasceu em 4 de Maio de 1655 - Domenico Salvetti na cidade de Pádua, República de Veneza e morreu em - Lodovico Ermano Florença em 27 de Janeiro de 1732. Brunelli Bonetti - Niccolò Sussier transcreveu a certidão de batismo da paróquia de San - Alessandro Bitti Lucca (BRUNELLI BONETTI, 1955, p. 31): - Antonio Francesco Carli - Francesco Mannucci No dia 6 de Maio de 1655, Bartolomio, filho de Francesco Christofani - C.Maggi e de Laura sua esposa, foi batizado por mim, Don Gagliardi, seu - Carlo Casali pároco, presentes à Santa Fonte o Sr. Camillo Chinoni da paróquia - Bartolomeo Cristofori. de San Lorenzo. A madrinha foi Pani Lina, empregada da Sra. Laura Papafava da paróquia do Duomo, nasceu no dia 4 do presente mês Cristofori, um homem de mente inquiridora e de engenhosa as 6:00 horas da manhã.5 imaginação técnica, experimentou com mecanismos de Devido a uma extensiva documentação (quase de teclado e produziu tipos especiais de instrumentos. O forma compulsiva) dos registros mantidos pela dinastia Arpicimbalo ou ‘gravicembalo col piano e forte’, significando 10 dos Medici, temos uma rica fonte de informação sobre um instrumento capaz de gradações dinâmicas, - deve ser Cristofori. considerado apenas uma dentre suas invenções. De fato, foi esse Arpicimbalo que o projetaria para as gerações Após haver examinado alguns dos instrumentos de futuras e que desempenhou um papel decisivo na história Cristofori em 1687, o Grão Duque Ferdinando de’ Medici dos instrumentos de teclado. (1663-1713) convenceu Cristofori (Ex.4) a fixar residência em Florença, onde sua perícia se mostraria um grande A referência mais antiga conhecida a um piano de beneficio à corte dos Medici, mas não se sabe ao certo Cristofori pode ser encontrada no inventário anônimo dos 11 quais as circunstâncias dessa reunião. O cembalaro 6 Medici em 1700. Cristofori, então com trinta e três anos de idade, não se Um Arpicembalo recém inventado por Bartolomeo Cristofori, que mostrou entusiasmado a princípio,7 finalmente aceitou produz o fraco e forte, com dois jogos de cordas em uníssono, com a oferta (O’BRIEN, 1994, p.69). Cristofori sempre teve a o tampo harmônico de cipreste sem rosácea, com lateral e moldura intenção de retornar a sua Pádua natal, como podemos ver parcialmente torneada com tiras de ébano, com alguns saltarelos com pano vermelho [abafadores ] que tocam nas cordas e alguns em seu testamento, nunca tendo alcançado esse intento. martelos que produzem o piano e forte, e todo o mecanismo é coberto por uma folha de madeira do cipreste filetada com ébano, Alguns autores acreditam que as famílias Papafava, de com teclas em bucho e ébano sem rachaduras que começam no Pádua, ou Albizi, de Florença, iniciaram as apresentações cisolfaut na oitava do baixo e terminam no cisolfaut com 49 teclas branco e preto, com os dois blocos negros nas extremidades para entre Ferdinando e Cristofori. Ferdinando tinha razões elevar e obstruir [o teclado] com dois botões pretos acima, com práticas para empregar alguém como Cristofori. Em 1700 o comprimento três braccia e sete oitavos [217.6cm], a largura Ferdinando possuía pelo menos trinta e três cravos, dois frontal de um braccio e seis soldi [98.6cm], com sua estante da clavicórdios e dois órgãos para contínuo. música da madeira de cipreste, e sua contra caixa externa de madeira branca, e de sua tampa de couro vermelho forrada com tafetá verde e orlada com fita de ouro.12 Embora experiente e com ótima reputação como construtor de cravos, 8 podemos considerar a carreira Cristofori foi o único a construir instrumentos de teclado de Cristofori a partir deste ponto. O príncipe Ferdinando a martelos reais e tocáveis, além dos pianos tangentes

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que viriam posteriormente. O texto acima, de uma fonte O Cardeal,16 em 1709, escreveu uma carta ao Príncipe primária: Inventário de diversos tipos de instrumentos para agradecer o raro cravo com que Ferdinando o musicais de propriedade do Sereníssimo Príncipe Ferdinando favoreceu. Cristofori permaneceu em Florença depois da Toscana, em um manuscrito encadernado datado de da morte de Ferdinando e se tornou o curador (custode) 1700, descreve o Arpicembalo recentemente inventado - da coleção de instrumentos musicais dos Medici até ou clavicembalo col piano e forte. Não sabemos o nome sua morte em 1732 (O’BRIEN, 1994, p.90)17 do autor do inventário, devido à falta da página de título no manuscrito, mas reconhecemos esta como sendo a Cristofori deve ser considerado o “inventor” do fonte mais antiga e segura a fixar a data do fortepiano de fortepiano (não apenas mais um experimento, mas de Cristofori. Podemos, assim, inferir que o arpicimbalo veio à um verdadeiro sucesso em funcionamento), apesar das luz por volta do ano de 1700 (O’BRIEN, 1994,p. 103-110). “reivindicações atuais da corrente do piano tangente” ou das reivindicações históricas por Marius ou por Schröter. Os pesquisadores se sentem completamente seguros ao De acordo com Francesco Mannucci, Fiorentino, podemos afirmar que Cristofori teve a idéia de desenvolver uma ler em seu diário (Fevereiro, 1711) que Cristofori tinha mecânica a martelos (Ex.5) antes de sua mudança para começado a trabalhar no novo cravo com piano e forte Florença. Nas anotações inéditas feitas por Scipione dois anos antes do centenário (o que significa 1698).18 Maffei (1675-1755) 13 a fim escrever seu famoso artigo Temos, também, uma data precisa encontrada em uma para o quinto volume do Giornale de’ Letterati d’Italia inscrição, ou melhor em uma nota manuscrita marginal, 14 sobre a nova invenção, podemos ler que Cristofori pelo músico de corte florentino Federigo Meccoli que em a desenvolveu por seu próprio desejo, o que contradiz sua cópia do Le istitutioni harmoniche de Gioseffo Zarlino, diretamente a idéia geral de que houve algum tipo de indica juntamente com informações interessantes sobre instigação pessoal por parte de Ferdinando. Este detalhe como tocar o novo instrumento: Estas são as maneiras deve ter sido intencionalmente omitido no artigo em que se é possível tocar o Arpi Cimbalo de piano e forte. arcadiano de Maffei, que intencionalmente quis elogiar Inventado pelo Maestro Bartolomeo Cristofani (sic) de Ferdinando de alguma maneira. Podemos encontrar em Pádua no ano de 1700, construtor de cravos do Sereníssimo suas notas: Bortolo Cristofali de Pádua, um empregado Grão Príncipe Ferdinando da Toscana.19 Note que Meccoli do Príncipe, inventou um cravo com piano e forte por chamou o instrumento de Arpi Cimbalo, provavelmente sua própria vontade, e até o momento construiu três, da mesma maneira que ele ouviu do próprio Cristofori dois vendidos em Florença e um ao Cardeal Ottoboni.15 (GOOD, 2005, p. 95-97).

Ex.4 - Bartolomeo Cristofori. (In:http://www.deutsches-museum.de/info/veranst/img/CristoforiBildnis.jpg)

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Ex.5 - Mecânica Cristofori (Harding, 1932). In: http://www.metmuseum.org/toah/hd/cris/hd_cris.htm

Ex.6 - Mecânica Cristofori com martelos empapelados por Denzil Wraight, Coelbe-Schoenstadt, Alemanha (In: http://www.denzilwraight.com/crisfp.htm).

Se o cravo pode ser considerado um desenvolvimento do isolado das seções críticas da caixa, o que permite um saltério, o piano pode ser considerado um desenvolvimento tampo harmônico especialmente ressonante. dos dulce melos (dulcimer). Mesmo que, do incansável intelecto de Cristofori tenha vindo a idéia de uma O erudito construtor de cravos e fortepianos Denzil mecânica com martelos antes de sua mudança para Wraight (Ex.6), da Alemanha, escreveu a seguinte Florença, somente vivendo e trabalhando nessa cidade sob explanação em seu web site: 20 o patrocínio de Ferdinando, Cristofori pode ter êxito em desenvolvê-la. Na Itália parece ter havido pouco resultado A amplitude dinâmica desta reprodução (baseada nas mecânicas de 1722 e 1726 de Cristofori) é também maior do que se espera, graças, imediato à monumental realização de Cristofori. em parte, pela construção do bentside duplo de Cristofori. Este desenvolvimento notável na estrutura do cravo em dois frames (ou Externamente a construção do fortepiano de Cristofori barragens internas) separadas, um para o tampo harmônico e outro parece similar a do cravo italiano do século XVIII. Na sua para as cordas resolveu o problema de usar uma tensão mais elevada das cordas e de se evitar as conseqüências da distorção inevitável da caixa ele introduziu um bentside (ou flanco curvo) interno caixa no tampo harmônico. Era tão adiante de seu tempo que só por para dar suporte ao tampo harmônico. O bentside interno volta dos anos 1820 os fabricantes de piano começaram a produzir permitiu que o tampo harmônico fosse estruturalmente os projetos estruturais que rivalizaram o de Cristofori na eficácia.

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A mecânica desenvolvida por Cristofori nos fortepianos Embora os pianos originais e reproduções do final do de 1722 e 1726 é um pouco mais pesada que a mecânica século XVIII tenham se tornado familiares ao intérprete vienense, ou Prellmechanik, dos anos 1790, o que é em moderno nos últimos anos, os instrumentos mais antigos parte explicado pela haste mais longa do martelo (Ex.7). tais como o de Cristofori, continuam a ser pouco familiares Entretanto, uma mecânica leve não é, necessariamente, uma vez que os três instrumentos sobreviventes residem rápida. Nestas mecânicas desenvolvidas por Cristofori as em museus e poucas reproduções tem sido feitas.21 teclas são um pouco mais curtas que em seus instrumentos anteriores a 1720 (cujo design foi a base do fortepiano Os três pianos de Cristofori que chegaram até nós são: português), muito mais curtos do que em mecânicas vienenses, mas tem um ponto diferente de equilíbrio que - 1720 - Metropolitan Museum of Art em New York City, faz o toque ligeiramente mais pesado e desse modo, rápido. - 1722 - Collezione degli Strumenti Musicali em Roma, Junto com o backcheck, que Cristofori também inventou, - 1726 - Musikinstrumenten-Museum da Universidade de estas características do projeto produzem uma mecânica rápida e capaz de repetição eficiente e confiável. Leipzig (Ex.8).

Ex.7 - Teclado e martelos de Denzil Wraight. Coelbe-Schoenstadt, Alemanha. (In: http://www.denzilwraight.com/crisfp.htm).

Ex.8. Piano de Bartolomeo Cristofori, Florença, 1726. (Musikinstrumenten-Museum, University of Leipzig). In: http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article/img/grove/music

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O Cristofori do Metropolitan, ou seja, seu mais antigo piano Em 1970 o curador assistente de instrumentos musicais, sobrevivente, tem uma caixa em forma tradicional, um Edwin Ripin, reencordoou o instrumento inteiramente único teclado e nenhum registro especial. Sua extensão 22 em bronze, substituiu o couro no registro abafador, e vai, hoje, do C ao f’’’. Originalmente era do FF ao c’’’, sendo reparou algumas partes da mecânica inadequadamente que o FF # e GG # eram omitidos. O instrumento tem as com cola epóxi branca! Desde então, ocorrem problemas seguintes inscrições (POLLENS, 1984, 67): com afinação, tendo por resultado ruptura de cordas. O que nos leva a considerar este fato como um indício para BARTHOLOMAEUS DE CHRISTOPHORIS PATAVINUS INVENTOR encordoar parcialmente com ferro. FACIEBAT FLORENTIAE·MDCCXX na atual barra dos martelos - mas uma marca precedente identificável nonameboard -, outra marca a tinta na esquerda da barra dos martelos: L’Anno 1875 Uma situação diferente pode ser encontrada nos dois outros de Restaurate/ da Cesare Poniscchi/ Firenze. pianos sobreviventes (1722 e 1726). Com uma extensão do C ao c’’’, o teclado desliza lateralmente, de modo que A alteração envolveu elevar a nota inferior em uma quinta somente uma das duas cordas de cada nota seja golpeada, - o FF ao C, ou, de fato cinco teclas: FF, GG, AA, AA #, um verdadeiro registro una corda, reduzindo a sonoridade BB. Isto podia ser conseguido reduzindo o keyframe (ou de todo o instrumento. Além deste efeito, Cristofori não base do teclado) trapezoidal no baixo para estendê-lo fornece nenhum outro registro para alternar o som. no agudo, deslocando-o à esquerda. O responsável pela reforma teve que fornecer uma nova medida movendo Pode-se imaginar que muito do trabalho feito em seus a ponte para mais perto da nut (ou pequena ponte últimos instrumentos (1720-1731) tenha sido realizado sobre o cepo das cravelhas). Uma restauração maior por seu aprendiz e empregado, Giovanni Ferrini, uma vez ocorreu em 1938, já no Metropolitan Museum of Art. que Cristofori morreu com a idade de 76 anos em 1731. Curt Sachs (1881-1959) atuou como o consultor e sob Ferrini continuou a usar a mecânica de seu mestre, e as seus conselhos o construtor do piano, Wolfgang Staub, fortes similaridades podem ser vistas nos exemplares que empreendeu o trabalho. Desta vez peças importantes sobreviveram de Cristofori e de Ferrini. foram removidas para serem substituídas por outras novas. Infelizmente incluíram: Cinco pianos de Cristofori e/ou de seu aluno Giovanni Ferrini foram comprados pela Rainha Maria Bárbara de - Tampo harmônico, Braganza da Espanha, patroa e discípula de Domenico - soundboard ribs (ou costelas sob o tampo harmônico), Scarlatti (1685-1757). Centenas das mais de 550 sonatas - parte inferior do cepo das cravelhas para teclado de Scarlatti em movimento único podem ter - nut (pequena ponte sobre o cepo das cravelhas), sido pretendidas para o piano em lugar do cravo como se supõe há tanto tempo. - ponte - fundo da caixa, Scipione Maffei achou o piano mais apropriado para solos - cordas, e para acompanhar a voz ou instrumentos solo, que grupos - cobertura dos martelos grandes devido a seu timbre intimista. Se comparado ao - material do abafador. cravo, este possui um som mais brilhante e volumoso do que estes primeiros pianos.

Ex.9 - Mecânica Silbermann. In: SUTHERLAND, David A. Silbermann, Bach, and the Florentine piano. p.53.

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3- A continuidade imediata teclado lateralmente de modo que os martelos golpeassem Johann Ulrich König (MATTHESON, 1722-1725, 336- somente uma das duas cordas disponíveis para cada nota. 343) traduziu o artigo de Maffei, incluindo o diagrama Se as diversas variantes nas mecânicas de Cristofori mecânico da Fig.5 acima. Johann Mattheson (1681- nos mostram uma constante busca experimental rumo 1764) incluiu a tradução mencionada em seu Critica à evolução e melhoria, os exemplos de Silbemann são Musica, parte ii publicado em 1725. Esta tradução dimensionalmente muito consistentes e até mesmo deve ter sido a primeira fonte a chamar a atenção do conservadoras, com um elevado nível artesanal e de famoso construtor de cravos e órgãos saxão, Gottfried refinamento. Embora e seu sobrinho Silbermann (1683-1753), para a grande realização de Johann Heinrich Silbermann (1727-1799) fizessem cópias Cristofori. Silbermann iniciou suas experiências com a diretas da mecânica a martelos de Cristofori, outros mecânica do fortepiano por volta de 1730 (Ex.9). Suas fabricantes alemães, alguns deles não familiarizados à tentativas iniciais, não aprovadas por Johann Sebastian mecânica de Cristofori, planejavam mecânicas menos Bach (1685-1750), tinham um toque pesado e um agudo complicadas. Alguns deles adotaram a forma retangular débil. Mais tarde, Bach elogiou os pianos de Silbermann do clavicórdio tendo por resultado os square-pianos. Em e tornou-se agente de vendas para seus instrumentos um dos primeiros exemplares, um martelo articulado à (WOLFF, 2000, 412 e 427). Podemos acreditar, devido às parte traseira da caixa é mantido ascendente por um bloco similaridades, que Silbermann teve uma experiência real no fim da tecla, tendo por resultado uma simplificação em primeira mão com um instrumento de Cristofori.23 As grosseira da mecânica de Cristofori reduzindo-a a um melhorias subseqüentes fizeram dos pianos Silbermann mínimo. Este tipo de mecânica transformou-se na particularmente bem sucedidos, levando Frederico, o Stossmechanik, que poderia ser considerado como o Grande (1712-1786), rei da Prússia, a adquirir diversos princípio básico do que posteriormente viria a ser o piano exemplares. Silbermann manteve o cepo invertido de inglês. A era de ouro da construção de piano no mundo Cristofori, o espaçamento das cordas, os martelos ocos saxão, entretanto, não será representada por nenhum feitos de papeis enrolados (Ex.6 acima), encontrados no destes desenvolvimentos ou mesmo por instrumentos de fortepiano Cristofori de 1726 e diversos outros detalhes. Silbermann, que, com a morte de seu filho, parece ter Silbermann, como Cristofori, mantém encordoamento sido conduzido a um fim na linha direta de construção duplo em toda a extensão. inspirada por Cristofori. Ao contrário, um novo conceito mecânico surgiu através de um aprendiz de Silbermann - Como ilustre representante da tradição de construção de usando um principio mecânico que ficou conhecido como instrumentos de teclado do norte europeu, Silbermann Prellmechanik – o qual dominaria a construção de pianos incluiu registros manuais para levantar os abafadores agudos alemães/vienenses pelas sete décadas seguintes. Mas isto e graves, além dos dispositivos de Cristofori para deslizar o já será matéria para outros artigos.

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Notas 1 Estas foram as qualidades utilizadas por Johann Andreas Stein (1728-1792) para dizer a Mozart sobre as qualidades do fortepiano. Vide carta de Mozart a seu pai datando de 17 de Outubro de 1777. 2 Este desenho me foi enviado via fax por G. Potvlieghe como suporte para minha explanação sobre a evolução do fortepiano. Por este motivo não consta das referencias bibliográficas. 3 Até então o dulcimer era tocado, principalmente, em tavernas ou locais semelhantes. 4 Usado pela primeira vez por Silbermann. 5 Adì 6. Mag.o 1655 Bartolomio F.o di Fran.co Christofani et di Laura sua consorte fù battezato da me D.on Gagliardi suo parocho com.e al s. Fonte il s. Camillo Chinoni della parochia di s. Lorenzo. Comadre fù Pani Lina serva della sg.ra Laura Papafava della parochia del Duomo nato adi 4 corrente hore 6 c.a. 6 Cembalaro é a palavra italiana para construtor de cravos. 7 Che fu detto al Principe, che non volevo; rispos’egli il farò volere io... “ Foi dito ao Príncipe que não desejava (me juntar à sua corte) ao que ele respondeu que me faria desejar”. 8 Infelizmente nenhum instrumento de seu período de Pádua chegou até nós. 9 Registros de despesas do Príncipe Ferdinando estabelecem a data da contratação de Cristofori como sendo 1688, bem como sua equiparação com os músicos da corte. 10 Projeto que começou ca. 1698, após algumas idéias que trouxe de Pádua. 11 Inventário de diversos tipos de instrumentos musicais de propriedade do Sereníssimo Príncipe Ferdinando da Toscana, 1700. 12 Un Arpicembalo di Bartolomeo Cristofori di nuova invenzione, che fa’ il piano, e il forte, a’ due registri principali unisoni, com fondo de cipresso senza rosa, con fascie e scorniciatura mezza tonda simile, con filetto d’ebano, con alcuni saltarelli con pano rosso, che toccano nelle corde, et alcuni martelli, cha fano il piano, et il forte, e tutto l’ordingo vien serrato, e coperto da un piano di cipresso filettato di ebano, con tastatura di bossolo, et ebano senza spezzati, che comincia in cisolfaut ottava stesa, e finisce in cisolfaut, con n. quaranta nove tasti, tra’ bianchi, e neri, con due sodi laterali neri, che uno da levare, e porre, con due palline nere sopra, lungo B.ª tre, sette ottavi, largo nel davanti B.ª uno, e soldi sei con suo leggio di cipresso, e sua contro cassa d’albero bianca, e sua coperta di cuoio rosso foderata di taffettà verde e orlata di nastrino d’oro. 13 Verona, Biblioteca Capitolare DCCCLX, fasc. VI, no. 1, Studii Miei. 14 Maffei, Scipione. Nuova invenzione d’un gravicembalo col piano e forte. Giornale de’letterati d’Italia, vol. V (Venezia, 1711), p.144-159. 15 Bortolo Critofali padovano stipendiato das S. Principe ha inventato senza motivo avuto de altra cosa il cimbalo col piano e forte, ne ha fatto tre fin ora, due venduti in Firenze, uno al Card. Ottoboni.

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16 Cardeal Otoboni é também conhecido por hospedar a famosa perfidia entre Handel e Scarlatti. Esse encontro-desafio fez uso de diferentes instrumentos e muito provavelmente o Arpicembalo estava entre eles. 17 Bartolomeo Cristofori, foi apontado para a posição de curador em 1716 por ordem do Grande Duque Cosimo III, supervisionando o inventário de instrumentos musicais nas propriedades de Ferdinando. 18 nuovi Cimbali con piano e forte, fabricatti nel Laburatorio per volere del Ser.mo Gran Principe Ferdinando, cominciato du’anni prima del Giubileo. 19 Questi sono gl’andamenti che si possono adattare in su l’ Arpi cimbalo del piano e forte, inventato da M.ro Bartolomeo Cristofani Padovano. L’Anno 1700. Cimbalaro del Ser.mo Gran P.pe Ferdinando di Toscana. Luisa Cervelli. Noterelle Cristoforiane. Quadrivium, 22, 1, 1981, p.157. 20 Idem. 21 Podemos citar os seguintes construtores que pesquisam e copiam pianos segundo Cristofori: Denzil Wraight (Alemanha), Kerstin Schwarz (Itália), David Sutherland (USA), Thomas and Barbara Wolf (USA), Keith Hill (USA) e Nobuo Yamamoto (Japão). 22 Utilizo a nomenclatura de Hermann Ludwig Ferdinand von Helmholtz (1821-1894). 23 Segundo pesquisas e correspondências entre Denzil Wraight e David Sutherland deve ter sido um instrumento Ferrini. Entre os pesquisadores somente Wolf Dieter Neupert acredita que Silbermann trabalhou exclusivamente com plantas ou desenhos e não com um instrumento real. A opinião de Neupert pode ser estudada no artigo “Gottfried Silbermanns Hammerflügel: eine Kopie Bartolomeo Cristoforis?”, Jahrbuch des Staatlichen Instituts für Musikforschung Preußischer Kulturbesitz 2004, p.136-144.

Pedro Persone é Doutor em Música – D.M.A. – em performance histórica pela Boston University com bolsa de estudos da Capes e sua tese é: The Earliest Piano Music: Lodovico Giustini’s (1685-1743) Sonate da cimbalo di piano e forte detto volgarmente di martelletti, Firenze, 1732, recentemente lançada em formato de livro pela VDM-Verlag de Saarbrücken, Alemanha. Mestre em Cravo pela UNICAMP sob orientação de Helena Jank (com pesquisa sobre obras non mesurés; com bolsa FAPESP). Na Europa, estudou com Huguette Dreyfus (École Nationale de Musique de Bobigny, França), cravo e fortepiano com Jacques Ogg (Academie voor Oude Muziek, Amsterdam) e com Patrick Cohen (França; bolsa da Fundação Vitae). Em 1991, foi o primeiro a reintroduzir o fortepiano no circuito musical brasileiro. De 2001 a 2004, foi professor de group piano na Boston University (EUA). Atualmente, realiza pós-doutorado com bolsa FAPESP sobre o tema A música pianística e camerística composta entre 1790 e 1826 presente na ‘Coleção Theresa Christina Maria’: uma abordagem segundo as práticas interpretativas relacionadas ao período.

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Aspectos da construção temática de Arnold Schoenberg a partir de seus escritos teóricos sobre forma

Carlos de Lemos Almada (UNIRIO, Rio de Janeiro) [email protected]

Resumo. Este artigo trata da construção temática do compositor Arnold Schoenberg, sob o ponto de vista de seus escritos teóricos sobre o assunto. Tal tipo de abordagem faz revelar, em plena atividade e em cores vivas, os traços que talvez mais caracterizem o pensamento composicional schoenberguiano, ou seja, as oposições tradição / inovação e teoria / prática. Na metodologia são utilizados exemplos extraídos de diversas fases criativas de Schoenberg (tonal, entre 1893 e 1908, e serial, 1923-51), num arco temporal do início e final de sua carreira, os quais são analisados a partir das definições que constam em obras didáticas sobre forma escritas pelo compositor, que se tornam assim o principal referencial teórico deste estudo. Pretende-se demonstrar que os tópicos teóricos elaborados por Schoenberg em seus escritos e derivados de minuciosas análises de obras dos grandes mestres (especialmente do período Clássico) servem de base consistente para sua própria prática composicional. Palavras-chave: Arnold Schoenberg, construção temática, teoria, prática, formas clássicas.

Issues of Arnold Schoenberg´s thematic construction related to his theoretical writings about form

Abstract. This paper deals with the thematic construction employed by composer Arnold Schoenberg, under the perspective of his own theoretical writings concerning this matter. This approach can vividly show some of the most characteristic issues of Schoenbergian compositional thinking, i.e., the oppositions of tradition / innovation and theory / practice. The methodology used in the present article consists of the analysis of examples extracted from several of the Schoenberg’s creative phases (tonal, between 1893 and 1908 and serial, 1923-51), covering the extremes of his career. These pieces were analyzed under the perspective of the concepts stated in the didactic work about form written by the composer. These writings are, therefore, the main theoretical references of the present study, which aims at showing that the formal theory elaborated by Schoenberg in his texts, derived from detailed analysis of the works produced by the great masters (especially those of the Classic era) served as a solid basis for his own compositional practice. Keywords: Arnold Schoenberg, thematic construction, theory, practice, classical forms.

1 - Introdução Arnold Schoenberg (1874-1951) é um caso singular na O estudo se estrutura em duas partes: inicialmente são história da música: além de figurar entre os maiores abordados e definidos os conceitos “período”, “sentença” e compositores de todas as épocas e ser considerado o “pequena forma ternária” (a-b-a’), descritos teoricamente principal e mais influente nome do modernismo musical, (e fartamente exemplificados com excertos da literatura produziu uma vasta obra teórica, abrangendo diversos musical) por Schoenberg em seu livro Fundamentals of assuntos, dispersos em livros, coletâneas de ensaios e Musical Composition (SCHOENBERG, 1990). A segunda manuscritos (vários deles ainda inéditos), alguns deles parte consiste numa investigação analítica de como tais entre os textos mais importantes já escritos sobre suas elementos formais são empregados na construção de temas respectivas matérias. 1 Talvez o mais marcante traço em obras selecionadas do repertório do próprio Schoenberg. comum entre tais escritos teóricos seja a preocupação de Schoenberg de sempre apresentar didaticamente o Considerando o espaço exíguo que convém a um artigo, objeto de estudo através de uma visão pessoal, calcada busquei reunir um conjunto mínimo de exemplos musicais fortemente tanto em sua prática composicional quanto que se ajustassem aos seguintes critérios: (a) restringir a em minuciosas análises das obras dos grandes mestres do escolha às peças instrumentais e não-programáticas; (b) passado. Este artigo pretende examinar um dos aspectos cobrir o mais amplo período de tempo possível, procurando no qual a dupla dicotomia tão caracteristicamente abranger todas as fases criativas do compositor; (c) schoenberguiana – teoria x prática / tradição x inovação escolher apenas entre temas que atuam em nítidas – torna-se bastante evidente: a construção temática. texturas de melodia acompanhada; (d) contemplar as três

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.20, 91 p., jul. - dez., 2009 Recebido em: 04/08/2008 - Aprovado em: 10/02/2009 34 ALMADA, C. L. Aspectos da construção temática de Arnold Schoenberg... Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.34-43..

categorias focalizadas (período, sentença e pequena forma 2 - Definição dos termos 4 ternária), de modo a permitir comparações; e (e) buscar a Segundo SCHOENBERG (1990, p. 20), “uma idéia musical maior diversidade possível em relação à instrumentação completa é articulada como período ou como sentença.” das obras escolhidas. A conciliação de tais requisitos São as duas estruturas preferencialmente escolhidas resultou no quadro mostrado no Ex. 1: para a construção temática pelos compositores clássicos (principalmente os da tradição austro-germânica). Observações: A única das fases composicionais não contemplada é a A forma-escolar (ou forma-padrão) do período, com atonal (1908-1923). Isso se deve à baixa ocorrência, entre as oito compassos, apresenta uma subdivisão binária em obras schoenberguianas compostas nessa fase, de estruturas antecedente (c. 1-4) e conseqüente (c. 5-8), normalmente semelhantes (ainda que minimamente reconhecíveis) às separados por uma curta cesura. O antecedente consiste formas-escolares abordadas neste artigo. 2 A elaboração do em um enunciado seguido de breve contraste (cada método de composição dodecafônico, de acordo com ROSEN fragmento com dois compassos). O conseqüente inicia-se (1983, p.105-108), permitiu a Schoenberg uma espécie com uma repetição do enunciado (c.5-6), à qual se segue de restauração de princípios tradicionais, num peculiar o desfecho cadencial (c. 7-8). neoclassicismo, estabelecido principalmente através da organização formal (o que se reflete, em nível microscópico, A forma-padrão da sentença também possui oito compassos também na construção dos temas); e duas subdivisões principais, com quatro compassos cada: o primeiro membro (c. 1-4), formado por um enunciado Por outro lado, foram escolhidos temas representativos (c. 1-2) seguido de sua repetição variada (c. 3-4), quase das três subfases dodecafônicas (inicial, intermediária e sempre numa estrutura de proposta / resposta ou, nos madura), já que estas possuem características distintas: termos schoenberguianos, forma tônica / forma dominante 3 o que especificamente interessa, neste trabalho, é (SCHOENBERG, 1990, p. 21-22). A segunda subdivisão investigar se tais diferenças chegam a influir também forma o complemento (c. 5-8), no qual geralmente as na construção temática ; idéias apresentadas no primeiro membro são brevemente elaboradas (c. 5-6), seguindo-se um desfecho cadencial Embora Schoenberg não tenha jamais abandonado a (c. 7-8). Deve ser ainda acrescentado que Schoenberg linguagem dodecafônica, retomou em seus últimos anos considera a sentença como uma forma mais complexa de vida o idioma tonal em algumas de suas composições. e, em conseqüência, artisticamente mais evoluída que o Nessas obras, no entanto, observa-se não uma simples período, pois ela “não apenas apresenta uma idéia, mas volta ao passado, mas uma espécie de revisão, a partir imediatamente inicia uma espécie de desenvolvimento” da longa vivência experimentada distante da tonalidade. (ibid., p. 58). Período e sentença se diferenciam, portanto, Torna-se assim, neste trabalho, especialmente na posição em que se dá a retomada do enunciado: interessante a comparação entre as estruturas dos temas imediatamente, no caso da sentença (seguindo-se sua tonais posicionados nos pólos opostos. elaboração) ou após a apresentação do contraste, no

Ex. 1 – Temas schoenberguianos selecionadas para análise

Identificação Número do Ano de Fase / subfase Título da obra Estrutura do tema Movimento composição composicional Peça para piano em Dó# menor Tema principal - 1894 Tonal (inicial) sentença (sem nº de opus) II a (período) - Tema do trio Primeira Sinfonia de Câmara, Op.9 1906 Tonal (final) (Scherzo) b- a’ V Dodecafônica Tema principal Suíte para Piano, Op.25 1923 sentença (Minueto) (inícial) Dodecafônica a (período) - Tema - Variações para Orquestra, Op.31 1928 (intermediária) b- a’ II Dodecafônica Tema principal Concerto para Violino, Op.36 1936 sentença (Andante) (madura) Variações para Banda Sinfônica, a (sentença) Tema - 1943 Tonal (retomada) Op. 43 - b- a’

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período. Ambos podem servir de base para uma construção 3 - Análises dos temas 6 temática mais complexa: a pequena forma ternária (a-b-a’). De acordo com SCHOENBERG (ibid., p.119-136), 3.1 - Tema da Peça para Piano em Dó# menor uma pequena forma ternária esquemática possui extensão (1894) variável, dependendo da constituição de seus elementos: a Como observa FRISCH (1993, p. 21-24), a peça em questão subseção principal (a) pode ser um período ou uma sentença apresenta forte influência brahmsiana, tanto no aspecto (portanto, com oito compassos), sendo seguida por uma harmônico como no de construção motívico-temática. Em subseção contrastante (b), em geral curta e composta por relação ao tema principal, uma particularidade – também seqüências sobre um enunciado ambientado em uma região característica de Brahms, segundo o mesmo autor – salta harmônica vizinha à principal. A recapitulação da subseção aos olhos: a “manipulação métrica” de sua construção, principal (a’) tem a extensão normalmente reduzida. com propósitos expressivos. O tema, apesar de escrito em compasso 2/4 (Ex. 2, versão original) soa como em 6/8, Abreviaturas empregadas nos exemplos analisados deslocado metricamente (o Ex. 3 transcreve o mesmo tema Períodos: per. – período; ant. – antecedente; cons. – num formato que poderíamos considerar mais “natural” e conseqüente; en. – enunciado; contr. – contraste. propício para a presente análise). Estrutura-se como uma Sentenças: sent. – sentença; 1º mbr. – primeiro membro; sentença quase convencional, pelo menos em relação ao compl. – complemento; prop. – proposta; resp. – resposta; primeiro membro. O complemento, no entanto, apresenta uma interessante e nova concepção, dividindo-se em dois Termos gerais: cad. – cadência; mod. – modelo (para fragmentos, num total de cinco compassos: um breve seqüência); seq. – seqüência; rep. – repetição; ext. – desenvolvimento motívico seguido pelo que poderia ser extensão; frag. – fragmento; des. – desenvolvimento; denominado, por analogia, “desenvolvimento métrico”. desf. – desfecho; var./... – variação do motivo ... (o mesmo Este resulta da omissão da anacruse esperada e das para outras operações); dim. – diminuição; inv. – inversão; conseqüentes mudanças de fórmula compasso (percebidas retr. – retrógrado; red. – redução; exp. – expansão; apenas auditivamente), criando um efeito de intensificação IP – idéia primordial [Grundgestalt].5 rítmica, adequado para a conclusão que se segue.7

Ex. 2 – Peça para Piano em Dó# menor (1894) – c. 1-11

Ex. 3 – Transcrição métrica do Ex. 2

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3.2 - Tema do Trio do Scherzo da Primeira através das várias manifestações do motivo a. É ainda Sinfonia de Câmara Op.9 importante mencionar que as alturas que constituem o Incrustada como um “oásis” de clareza e transparência motivo c (fragmento 2) representam em retrógrado, na numa obra de textura polifônica extremamente densa e notação alemã, as letras do nome de Bach (Sib-Lá-Dó- linguagem harmônica complexa, ainda que tonal, esta Si). No fragmento 4, seu correspondente na resposta, o linha melódica (ver Ex. 4) cumpre perfeitamente o papel mesmo motivo é bastante variado (transposto, invertido e de contraste que convém a um tema do trio de um scherzo intercalado por fusas), porém com seu contorno intervalar tradicional, de acordo com as observações teóricas do preservado, o que é suficiente para que o parentesco entre próprio compositor (SCHOENBERG, 1990, p. 141, 153). os fragmentos seja reconhecido auditivamente. Estrutura-se como pequena forma ternária, com a subseção a em forma de um período tradicional (4 + 4 compassos), a 3.4 – Tema das Variações para Orquestra subseção b consistindo em um modelo (baseado nos motivos Op. 31 principais) seguido de uma seqüência não estrita (2 + 2 O tema desta obra (ver Ex. 6), a primeira no período compassos) e a subseção a’ como uma retomada reduzida dodecafônico a ser escrita por Schoenberg para da subseção a, sendo quase uma cópia do antecedente (há grande orquestra (com todos os desafios e avanços aqui uma outra finalização harmônica). que trouxe para o desenvolvimento do método serial) 10 apresenta-se, como no tema do Trio do Op. 9, em 3.3 - Tema do Minueto da Suíte para Piano estrutura de pequena forma ternária (subseção a em Op.25 forma de período). Embora os dois temas compartilhem Fazendo parte de uma obra historicamente emblemática a mesma forma-padrão, a simples comparação entre (a primeira a ser composta integralmente no método ambos (Ex. 4 e Ex. 6) não deixa nenhuma dúvida sobre dodecafônico), este tema representa um interessante o maior grau de sofisticação da estrutura do tema do exemplo de construção tradicional desvinculada de Op. 31 (desconsiderando as diferenças de linguagem quaisquer referências tonais. A princípio parece um harmônica, bem entendido). Essa constatação só contra-senso, já que períodos e sentenças surgiram como confirma o quão flexíveis podem ser as fórmulas fruto das próprias manifestações das forças estruturais da estruturais aqui examinadas: períodos, sentenças tonalidade (por exemplo, a oposição tônica-dominante).8 e, conseqüentemente, pequenas formas ternárias No entanto, Schoenberg parece utilizar as formas-padrão com eles construídas, em certa medida, são apenas – mais do que como um tributo ao passado – na tentativa abstrações, a partir das quais podem ser organizadas de delas abstrair um “invólucro” básico para organizar as idéias musicais consideravelmente distintas. Neste idéias melódicas oriundas da série.9 O tema do Minueto tema, além de um intrincado trabalho de elaboração estrutura-se, de maneira consideravelmente nítida, como motívica que envolve o schoenberguiano princípio de uma sentença regular de oito compassos, como mostra o Ex. variação em desenvolvimento,11 a estrutura-padrão de 5. O tema se apresenta como uma linha melódica composta: período sofre diversas mutações, tornando-se mais a segunda voz complementa a primeira, principalmente ampla e menos explícita: além de as convencionais

Ex. 4 – Primeira Sinfonia de Câmara Op. 9 / Trio (Scherzo) – c. 200-215

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Ex. 5 – Suíte para Piano Op. 25 / Minueto – c.1-8

Ex.6 – Tema das Variações para Orquestra Op. 31 – c. 34-57

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repetições ou seqüências mais ou menos literais serem é acrescentada ao final do complemento, ligando-o a substituídas por variações mais camufladas, a simetria uma codeta, cuja função (como habitualmente) é trazer formal original é quebrada por extensões, justaposições equilíbrio formal a todo o grupo. Apropriadamente, a e supressões de segmentos esperados, que parecem codeta “liquida” 12 o material principal, resumido ao decorrer naturalmente de uma necessidade de expressão motivo a, que vai aos poucos perdendo sua característica mais aprofundada. É particularmente interessante rítmica, reduzindo-se a uma terça menor em duas analisar a segmentação da subseção a: o primeiro colcheias (indicado por “x”, no Ex.7), que passa então a fragmento, no antecedente, com três compassos, ser repetida sucessivamente em oitavas diferentes. subdivide-se em dois segmentos: o enunciado e uma espécie de repetição variada e contraída deste. No 3.6 - Tema das Variações para Banda fragmento correspondente dentro do conseqüente a Sinfônica Op.43 resposta é suprimida, reduzindo-o a dois compassos. Este tema de caráter marcial, escrito em Sol menor, é um Um procedimento análogo é obtido na construção típico representante da fase de retorno de Schoenberg do segundo fragmento: como resultado, antecedente ao universo tonal. 13 Adota a estrutura de pequena e conseqüente ficam com tamanhos distintos (7 forma ternária, com as subseções principais (a e a’) e 5 compassos). A subseção a’, como no tema do em forma de sentença (único caso entre os exemplos Trio do Op. 9 (e de acordo com a descrição teórica aqui examinados). Melódica e harmonicamente mais schoenberguiana), é uma versão reduzida da subseção “palatável” do que os temas dodecafônicos, é, por outro a, de 12 para 7 compassos; contudo, sua construção é lado, a estrutura formal mais complexa entre todas mais próxima da estrutura do conseqüente do que do analisadas neste estudo, o que, por certo, resulta do antecedente. A subseção contrastante b, como no Ex. 4, grande amadurecimento construtivo do compositor. O possui organização simples e simétrica, consistindo em que se torna ainda mais surpreendente é o fato de que um modelo seguido por seqüência variada e estendida essa complexidade parece ter brotado naturalmente, (2 + 3 compassos). fruto das necessidades internas da construção, o que pode ser constatado na pura audição do tema. Sem 3.5 - Tema do Andante do Concerto para comentar detalhadamente o trabalho de elaboração Violino Op. 36 motívica (que talvez possa ser rivalizado apenas com o Citado por Schoenberg entre alguns exemplos de do Op.31), a análise da estrutura do tema do Op. 43 (ver melodias expressivas de sua obra, construídas pela Ex. 8) revela vários aspectos interessantes, apontando ação conjunta de “cérebro e coração” (SCHOENBERG, para uma ainda maior flexibilização das formas-padrão: 1984, p. 73-75), este tema se apresenta de forma embora a subseção a se apresente quase como uma nitidamente simples e simétrica (principalmente sentença convencionalmente simétrica (ainda que pesem se comparado aos exemplos anteriores). À parte do os deslocamentos métricos no início do complemento e tratamento motívico, de notável economia, mostrado a extensão em seu final), a subseção a’ – novamente, na análise do Ex. 7, podemos perceber uma estrutura de como em todos os casos, com extensão reduzida em sentença, segmentada à maneira convencional (4 + 4 relação à subseção a – é apresentada numa engenhosa compassos). No entanto, uma extensão de um compasso nova maneira. Como mostra o Ex. 9, Schoenberg

Ex. 7 – Concerto para Violino Op.36 / Andante – c. 1-16

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cria para a reexposição uma versão compactada de mais a estrutura, a nova “forma-tônica” que surge dessa sentença, combinando elementos característicos do simbiose é superposta à “forma-dominante”. A partir primeiro membro e do complemento: a porção principal daí, volta-se à “normalidade”, sem maiores modificações da proposta (que surge, inusitadamente, transposta a significativas, com uma variante do fragmento 2 do intervalo de segunda maior em relação ao original) é complemento, seguida de uma breve codeta, que leva à acoplada ao segmento y. Além disso, contraindo ainda conclusão na tônica Sol.

Ex. 8 – Tema das Variações para Banda Sinfônica Op. 43 – c.1-21

Ex.9 – Derivação do conseqüente

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4 - Considerações finais 8); no caso do tema Andante, pelas tendências “arcaizantes” Embora tenha plena consciência de que o exame do compositor, que se acentuam nas obras dodecafônicas comparativo de apenas seis casos não é suficiente mais tardias (LEIBOWITZ, 1997, p.290-293); para generalizações (o que é sempre temerário quando o assunto é arte), creio poder extrair dele algumas Alguns pontos em comum na construção das três pequenas considerações interessantes: formas ternárias focalizadas (Op. 9, Op. 31 e Op. 43): (1) a subseção b possui curta duração (com 4 compassos, 5 Os escritos teóricos de Schoenberg sobre forma (e, no Op. 31) e estrutura-se simetricamente como modelo e mais especificamente, sobre a construção temática), seqüência (2+2 / 2+3); (2) a subseção a’ é apresentada de focalizados na obra dos grandes mestres e voltada para forma abreviada, numa extensão menor do que a subseção suas estratégias didáticas, serviram também de base para a; (3) a simetria padronizada pelas formas-escolares sua própria prática composicional; é “distorcida”, o que acontece preferencialmente na subseção a, através de extensões, omissões e justaposições Isso se deu num arco bastante abrangente (de 49 anos, de estruturas (comparar principalmente as construções dos pelo menos), contemplando todas as fases nas quais a temas do Op. 31 e do Op. 43). construção motívico-temática teve importância para o compositor (o que excluíria – pelo menos, até um estudo Tudo isso parece, por fim, vir confirmar aquele que é um mais aprofundado comprová-lo – apenas o período dos principais traços da personalidade composicional atonal-expressionista); de Schoenberg: a constante preocupação com o novo, que é, porém, sempre construído sobre uma sólida base Na transposição do campo teórico para o prático, e na tradicional, calcada em princípios clássicos-românticos, em adaptação de conceitos solidamente vinculados a uma especial, aqueles derivados da música austro-germânica. estética de origem clássica e linguagem tonal para No caso específico do assunto aqui abordado, chama novas e particulares condições, Schoenberg empregou atenção o emprego de estruturas consideravelmente abstrações das formas-padrão “período”, “sentença” semelhantes às padronizações apresentadas no livro do e “pequena forma ternária”, aprimorando-as com o compositor sobre análise formal (SCHOENBERG, 1990), passar do tempo. Tais abstrações possuem uma grande deduzidas a partir de minuciosas análises de obras de flexibilidade, não perdendo, entretanto, suas identidades compositores diversos, como Haydn, Mozart, Beethoven, em relação aos modelos originais. Mais do que fórmulas Schubert, Schumann etc. Schoenberg dá, por assim dizer, “modernizadas”, mostram-se únicas a cada caso, com nova vida a tais abstrações, adaptando-as às linguagens suas particularidades derivadas das condições que se melódico-harmônicas adotadas em suas várias fases apresentam – principalmente, da idéia primordial e do criativas. Tal procedimento parece ser, basicamente, fruto trabalho de elaboração motívica, realizando de maneira de uma necessidade de equilíbrio: compensar, com um eficaz a organização temática; 14 peso maior na identificação motívico-temática, a pouca (ou ausência total de) influência gravitacional de um A comparação entre os temas tonais analisados centro de referência. As fórmulas de construção temática (principalmente os do Op. 9 e do Op. 43, ambos pequenas representam assim um dos mais importantes aspectos da formas ternárias) revela um forte amadurecimento ligação entre passado e futuro que tanto caracteriza o construtivo: Schoenberg passa de uma estrutura mais pensamento e a prática musical schoenberguiana. esquemática, quadrática e “comportada” a uma outra muito mais assimétrica, flexível e ousada, o que estaria diretamente A realização de novas pesquisas, alargando o grupo associado aos processos de variação em desenvolvimento; de obras analisadas (incluindo mesmo aquelas do período atonal do compositor), pode trazer importantes É também possível comparar sumariamente as estruturas contribuições a este estudo, principalmente em busca dos três temas dodecafônicos: a maior sofisticação formal de variantes construtivas (como aquela apresentada no do tema do Op. 31 em relação aos outros dois parece tema do Op. 43). Ampliando a mesma linha, o exame da se ajustar às próprias características da subfase a que dualidade teoria / prática na obra schoenberguiana pode pertence, de grande amadurecimento e desenvolvimento ser estendido às formas cíclicas “clássicas”, notoriamente das possibilidades seriais. O maior “conservadorismo” empregadas pelo compositor: minueto, scherzo, sonata, formal dos temas do Op. 25 e do Op. 36 se explicaria por rondó etc. E uma terceira opção, subjacente a estas, motivos parecidos: no tema do Minueto, pela recente volta pode ser a abordagem da própria elaboração motívica, de Schoenberg à elaboração temática convencional (o ligando-a a um estudo mais profundo sobre a variação neoclassicismo descrito por Rosen – ver nota de rodapé nº em desenvolvimento na composição de Schoenberg.

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Referências CRAWFORD, John e Dorothy L. Expressionism in Twentieth Century Music. Bloomington: Indiana University Press, 1993. FRISCH, Walter. Brahms and the principle of developing variation. Los Angeles: University of California Press, 1984. ______. The early works of Arnold Schoenberg (1893-1908). Los Angeles: University of California Press, 1993. LERDAHL, Fred. Tonal pitch space. Nova York: Oxford University Press. 2001. LEIBOWITZ, René. Introduction à la musique de douze sons. Paris: L’Arche, 1997. NELSON, Robert U. Schoenberg’s variation seminar. The Musical Quaterly. Vol. L, No.2. April, 1964. PERLE, George. Serial composition and atonality. Londres: Faber & Faber, 1962. ROSEN, Charles. Schoenberg. Barcelona: Antoni Bosch, 1983. SCHOENBERG, Arnold. Style and idea: selected writings of Arnold Schoenberg. (Leonard Stein, ed.). Londres: Faber & Faber, 1984. ______. Fundamentals of musical composition. (Gerald Strang, ed.) Londres: Faber & Faber, 1990. ______. The musical idea and the logic, technique, and art of its presentation. (Patricia Carpenter & Severine Neff, trad. e ed.). Bloomington: Indiana University Press, 2006.

Notas 1 Ver, por exemplo, além dos livros que constam das referências bibliográficas deste artigo (SCHOENBERG, 1990, 1984 e 2006), os seguintes títulos: SCHOENBERG, Arnold. Harmonia. (Marden Maluf, trad.). São Paulo: Editora Unesp, 2001 (1911); SCHOENBERG, Arnold. Structural functions of harmony. (Leonard Stein, ed.) Nova York: W.W. Norton & Company, 1969; SCHOENBERG, Arnold. Coherence, counterpoint, instrumentation in form. (Severine Neff, ed.; Severine Neff & Charlotte Cross, trad.). Lincoln: University of Nebraska Press, 1994. 2 Entretanto, isso não impede que, sob um ponto de vista bastante flexível e, em certos casos, com uma grande dose de abstração e/ou liberdade, analistas consigam interpretar certos temas schoenberguianos atonais como que construídos numa das formas-padrão aqui consideradas. Ver, por exemplo, a análise feita por LEHRDAL (2001, p. 353-61) da primeira das Três Peças para Piano, op.11, de Schoenberg, cujo principal tema demonstra ser estruturado como período. A bem da verdade, o op.11 é a obra inaugural da fase atonal schoenberguiana, que passa a tomar ainda no mesmo ano de sua composição (1909) uma nova direção, com a busca deliberada pela construção atemática, como bem exemplificam os op. 16 (Cinco Peças para Orquestra), 17 (o monodrama Erwartung) e 19 (Seis Pequenas Peças para Piano). Tal importante característica (i.e., o atematismo), segundo CRAWFORD (1993, p.17-8), deve-se a razões não só musicais, como políticas, sociais e, principalmente às demandas geradas em outros campos artísticos, como a literatura, a pintura, a arquitetura, o cinema e o teatro, naquele fervilhante período conhecido como o Expressionismo alemão. 3 Para um detalhamento do período serial schoenberguiano e das particularidades de suas subfases ver PERLE (1962) e LEIBOWITZ (1997). 4 Baseada nas informações apresentadas em SCHOENBERG (1990, p. 20-81, capítulos V a VIII). 5 Segundo Schoenberg, todas as derivações possíveis (que ele mesmo classifica como motivos, Gestalten e figuras) de uma peça musical podem, de certa maneira, ser rastreadas de volta a um elemento inicial, o Grundgestalt, que traduzo como “idéia primordial”. O conceito de Grundgestalt é definido pelo compositor em um texto que só recentemente foi publicado: SCHOENBERG (2006, p.27 e p. 129), baseado em manuscritos anteriores às anotações que deram origem a SCHOENBERG (1990). Neste último, escrito originalmente em inglês, não há qualquer menção a Grundgestalt. O que, no texto, mais se assemelha à sua definição é “basic motive”, que julgo, contudo, ser um tanto ambíguo. 6 Presume-se que uma satisfatoriamente completa análise temática deva abordar dois aspectos interdependentes: o fraseológico (ou estrutural) e o motívico. A limitação de espaço, entretanto, obriga-me a restringir os comentátios do texto apenas ao foco principal deste estudo, que é a investigação sobre o emprego das formas-escolares definidas pela teoria na obra composicional schoenberguiana. A despeito disso, a análise motívica – imprescindível para o pleno entendimento da estrutura dos temas –, não está por inteiro ausente neste exame, já que é apresentada suficientemente detalhada nos exemplos musicais. Pela mesma razão óbvia de espaço, não há aqui comentários sobre os contextos harmônicos dos temas, a não ser quando estes influenciam mais decisivamente, de alguma maneira, na construção arquitetônica. 7 A construção assimétrica desse tema também remete a Brahms, como mostra o interessante ensaio Brahms the progressive (SCHOENBERG, 1984, p. 398-441). Para assimetria e irregularidades em geral na disposição fraseológica ver também SCHOENBERG (1990, p.137-40). 8 PERLE (1962, p.123) considera “exagerada” a importância que Schoenberg atribui à “função formal de operações motívicas tradicionais” na organização estrutural de suas peças atonais e dodecafônicas. Segundo o autor, tais formas (entre as quais aquelas que tratamos neste artigo) resultam intrinsecamente das necessidades e particularidades da tonalidade e, portanto, seu emprego seria incoerente na música nova. 9 Numa perspectiva diversa de Perle (ver a nota anterior), ROSEN (1983, p.108), referindo-se ao emprego das formas cíclicas clássicas por Schoenberg em sua música dodecafônica (o que pode, certamente, ser também estendido ao nível microscópico da construção temática), afirma que para o compositor “as formas não se impõem à música, e sim, realizam-se mediante a música (...). Schoenberg (...) empregou essas formas como se tivessem propriedades expressivas inatas.” 10 LEIBOWITZ (1997) analisa detalhadamente o Op.31, apresentando as diversas novas possibilidades ali criadas para o manejo da série. 11 Tradução do original, em inglês, developing variation. Trata-se, basicamente, do conjunto de técnicas e procedimentos que permitem variar elementos motívicos que, por sua vez, são também obtidos por variações, criando assim um processo que pode se estender indefinidamente. Embora a variação em desenvolvimento possa ser detectada em obras de compositores de períodos anteriores (principalmente Beethoven), foi a partir da análise de composições de Brahms que Schoenberg conseguiu elaborar tal princípio, assimilando-o em sua própria prática composicional. Para maiores informações a respeito, ver o ensaio Brahms, the progressive in SCHOENBERG (1984, p. 398-441) e o livro Brahms and the principle of developing variation (FRISCH, 1984). 12 Isto é, reduz gradualmente a idéia, eliminando o material mais importante, deixando apenas resíduos. Para mais informações sobre os processos de liquidação, ver SCHOENBERG (1990, p. 58-59).

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13 Uma sucinta análise harmônico-formal do tema e de suas variações pode ser encontrada em NELSON (1964, p.160-3). 14 A respeito da flexibilidade construtiva é também pertinente comentar sobre o conceito de “prosa musical” [musical prose], elaborado por Schoenberg a partir de análises da obra de Wagner e, principalmente, de Brahms. Schoenberg define a prosa musical como “uma apresentação de simples e diretas idéias, sem qualquer artesanato, sem meras repetições vazias e enfadonhas” (SCHOENBERG, 1984, p. 415). É interessante perceber que sua contrapartida, que poderia ser denominada “poesia musical” reflete uma construção mais quadrática e simétrica, justamente semelhante àquelas propostas pelas formas-padrão do periodo e da sentença. Ao flexibilizá-las, alternado a extensão dos “versos” / frases e ao fugir das “rimas” / correspondências esperadas, Brahms (e, como mostra este artigo, também Schoenberg) alcançam naturalmente a expressão prosaica, a partir do mesmo modelo construtivo.

Carlos de Lemos Almada é flautista, compositor, arranjador, professor e autor de livros sobre teoria musical e análise (Arranjo. Campinas: Editora da Unicamp, 2000; A estrutura do choro. Rio de Janeiro: Da Fonseca, 2006 e Harmonia funcional. Campinas: Editora da Unicamp, no prelo). Atualmente é doutorando em Música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, cuja pesquisa visa a análise da estrutura harmônica da Primeira Sinfonia de Câmara, op.9, de Arnold Schoenberg, dando continuidade a estudo realizado sobre a estrutura formal da mesma obra, durante o mestrado.

43 PITOMBEIRA, L. O serialismo de Camargo Guarnieri no seu Concerto para Piano e Orquestra N.º 5. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.44-53.

O serialismo de Camargo Guarnieri no seu Concerto para Piano e Orquestra N.º 5

Liduino Pitombeira (UFPB, João Pessoa) [email protected]

Resumo. Camargo Guarnieri, que com tanta firmeza lutou contra o estabelecimento do serialismo no Brasil, na década de 1950, posteriormente utilizou estruturas atonais e procedimentos seriais. Este artigo demonstra a utilização de atonalismo e serialismo no Concerto para Piano e Orquestra N.º 5, através da análise da exposição de seu primeiro movimento. Na análise, definiu-se um sistema classificatório para as cinco sonoridades atonais utilizadas no concerto, tomando como referência a teoria dos conjuntos de classes-de-notas (FORTE, 1973). Palavras-chave: Camargo Guarnieri, Concerto N º 5 para Piano, serialismo, atonalismo.

The serialism of Camargo Guarnieri in his Fifth Piano Concerto

Abstract. Brazilian composer Camargo Guarnieri, who firmly fought against the establishment of serialism in Brazil in the 1950s, later employed atonal structures and serial procedures. This article aims at demonstrating the use of atonalism and serialism in his Fifth Concerto for Piano and Orchestra, through the analysis of its first movement’s exposition. In the analysis, a system of classification for the five sonorities found in the piece was defined using pitch- class set theory (FORTE, 1973) as a reference. Keywords: Camargo Guarnieri, Fifth Piano Concerto, serialism, atonalism.

1 – Considerações históricas e estruturais em forma de arco (arch form) ABCBA (VERHAALEN, Camargo Guarnieri (1907-1993) compôs dez obras para 2001, p.232). 2 A obra é inteiramente construída a piano e orquestra, incluindo seis concertos.1 O Concerto partir do gesto mostrado no Ex.1, o qual consiste em para Piano e Orquestra N.º 5 foi encomendado pelo Jornal uma sétima maior ascendente, duas segundas menores do Brasil, para ter primeira audição durante o II Festival descendentes e uma terça menor descendente. Este de Música da Guanabara. Com vinte e três minutos de motivo de cinco notas, manipulado tanto de forma duração, esta obra foi composta no curto período de um ordenada como desordenada,3 é utilizado ciclicamente mês (janeiro de 1970), quando Guarnieri ensinava na na obra, isto é, aparece nos três movimentos, não Universidade Federal de Goiânia. A primeira audição foi somente como um motivo de natureza melódica, realizada pela pianista Laís de Souza Brasil, a quem a obra mas também como estrutura geradora da linguagem foi dedicada, em maio do mesmo ano. Em 1973, a obra teve harmônica. Assim sendo, as sonoridades de sétima maior sua primeira audição no exterior, com a mesma pianista e (primeiro intervalo), segunda menor (segundo e terceiro com Guarnieri regendo a Chicago Symphony Orchestra. intervalos), bem como harmonia quartal (intervalo entre a segunda e última notas) derivam deste gesto gerador. A obra tem três movimentos: Improvisando, Sideral e Este motivo é enunciado logo no início do concerto pela Jocoso. O primeiro movimento, único que será comentado orquestra e é sistematicamente elaborado, tanto pelo na análise, é na forma allegro de sonata, o segundo é piano como pela orquestra durante toda a peça, até o um ABA monotemático e o terceiro é na forma rondó seu último compasso.

Ex.1 - Gesto gerador do Concerto para Piano e Orquestra N.o 5 de Camargo Guarnieri

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.20, 91 p., jul. - dez., 2009 Recebido em: 13/10/2008 - Aprovado em: 23/01/2009 44 PITOMBEIRA, L. O serialismo de Camargo Guarnieri no seu Concerto para Piano e Orquestra N.º 5. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.44-53..

2 – Classificação dos tipos de sonoridade 2 Princípio da Equivalência de Oitava: de acordo com este princípio, Dó = Dó = Dó = Dó e, assim, sucessivamente utilizados na análise 0 1 2 (neste artigo, Dó é o Dó central do piano). Uma vez que a linguagem harmônica da obra não 4 utiliza nem o vocabulário nem a sintaxe tonais, 3 Princípio da Equivalência Inversional: conseqüência introduzir-se-á um conjunto de cinco tipos de direta do princípio de equivalência de oitava. De sonoridades, detectados em uma fase inicial acordo com este princípio, o intervalo criado pelo prospectiva, e definidos aqui como objetos contendo deslocamento de oitava de um de seus componentes dois ou mais intervalos melódicos e/ou harmônicos é taxionomicamente equivalente ao próprio intervalo desordenados e construídos a partir dos seguintes original. Este princípio se aplica também para princípios, inspirados em FORTE (1973): 4 intervalos compostos. Assim sendo, por exemplo, uma quinta justa é equivalente a uma quarta justa, já que 1 Princípio da Equivalência Enarmônica: intervalos a diferença entre estes dois intervalos só existe em enarmônicos são considerados equivalentes. virtude do deslocamento de oitava de uma das notas Portanto, um segunda aumentada é equivalente a destes intervalos. O quadro abaixo (Ex.2 a 6) descreve uma terça diminuta, por exemplo. os tipos de sonoridades utilizados na análise.

Exs.2 a 6 – Quadro de tipos de sonoridades utilizados na análise

EXEMPLO DESCRIÇÃO Tipo 1: tricorde contendo os seguintes intervalos, ou Ex.2 - Tipo 1 seus equivalentes: trítono, quarta justa (ou quinta justa) e sétima maior (ou segunda menor). Esta sonoridade corresponde à primeira, à mais aguda e à última nota do gesto gerador. Também pertence ao Tipo 1, um tetracorde cujos tricordes sejam todos do Tipo 1, por exemplo: Dó-Dó#-Fá#-Sol. Tipo 2a: tricorde contendo duas quartas justas Ex.3 - Tipo 2 consecutivas ou dois intervalos que possam ser arranjados em quartas justas através de deslocamentos de oitava. Esta sonoridade se relaciona com harmonia quartal, que é utilizada abundantemente por Guarnieri nesta obra. Se o conjunto tiver mais do que três quartas justas será denominado Tipo 2b.

Comparando as relações intervalares entre os Tipos Ex.4 - Geração do Tipo 3 1 e 2 observa-se que o Tipo 2 pode ser considerado como uma contração do Tipo 1. Observa-se, na figura 4, que, se o Dó permanecer como centro referencial, o Tipo 1 é transformado no Tipo 2 através da transposição das outras duas classes-de- notas uma segunda menor descendentemente. A continuação deste processo resultará na definição dos Tipos 3a (tríade menor) e 3b (tríade maior). Ex.5 - Tipo 4 O Tipo 4 também é derivado do motivo de cinco notas. É formado por segundas meno- res (ou intervalos equivalentes), em qualquer quantidade.

Ex.6 - Tipo 5

O Tipo 5 é construído pela adição de um trí- tono a uma das extremidades de um tricorde quartal, disposto em quartas (Tipo 2a).

45 PITOMBEIRA, L. O serialismo de Camargo Guarnieri no seu Concerto para Piano e Orquestra N.º 5. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.44-53.

3 – Análise da exposição do Primeiro um prato suspenso e por segundas menores executadas Movimento: “Improvisando” pelas cordas agudas, com o objetivo de criar ressonância O compositor prepara a entrada do primeiro tema com (Ex.9). A este cânon segue-se o primeiro tema, executado três eventos introdutórios, cada um com caráter distinto. somente pelo piano. Uma redução do primeiro evento, o qual é executado somente pela orquestra, é mostrada no Ex.7 5 Observa- Poder-se-ia afirmar que o primeiro tema do concerto é se uma textura densa produzida pela justaposição dos apresentado logo no início da obra. Neste caso, a segunda Tipos 1, 2 e 5. Os instrumentos mais graves executam entrada do piano seria uma reexposição do tema, uma vez claramente o motivo de cinco notas, que é o gesto que também é totalmente baseada no motivo de cinco gerador da obra. Seguindo-se a esta ‘explosão’ orquestral, notas. Este recurso, isto é, a exposição do tema pela ocorre um momento de silêncio, de onde surge o piano orquestra e subsequentemente pelo piano, é chamado de executando uma cadência (Ex.8), cujo material é exposição dupla e é tradicionalmente usado nos concertos inteiramente construído com os Tipos 2a e 5. 6 O último clássicos. No entanto, propõe-se, neste estudo, que evento introdutório consiste em um cânon à quinta, a o motivo de cinco notas é introduzido no início ainda três vozes, construído exclusivamente com o motivo de como material primitivo (embora tenha alturas, ritmos, cinco notas, executado pelos metais e acompanhado por dinâmicas e articulações bem definidas), tendo mesmo o

Ex.7 - Redução da abertura orquestral do Concerto para Piano e Orquestra N.o 5 de Camargo Guarnieri

Ex.8 - Cadência do piano do Concerto para Piano e Orquestra N.o 5 de Camargo Guarnieri

46 PITOMBEIRA, L. O serialismo de Camargo Guarnieri no seu Concerto para Piano e Orquestra N.º 5. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.44-53..

Ex.9 - Cânon dos metais do Concerto para Piano e Orquestra N.o 5 de Camargo Guarnieri

Ex.10 – Diagrama das introduções do Concerto para Piano e Orquestra N.º 5 de Beethoven (esquerda) e do Concerto para Piano e Orquestra N.o 5 de Camargo Guarnieri (direita)

caráter de arquétipo, de célula geradora inicial de onde Buscando este paralelo com o repertório tonal, examinemos toda a obra vai brotar. Considera-se que, mesmo a obra brevemente a abertura do Concerto para Piano e Orquestra não sendo tonal, Guarnieri, por sua forte ligação com a N.o 5 de Beethoven. Esta obra inicia-se com um acorde tradição, precisava estabelecer uma atmosfera sonora, de tônica (Mi bemol maior) executado pela orquestra, ao falando metaforicamente, antes que os temas pudessem ser qual se seguem uma série de arpejos tocados livremente apresentados e desenvolvidos. 7 Leve-se em conta, ainda, pelo piano, quase como uma cadência. Este mesmo que esta obra não é dodecafônica nem utiliza serialismo procedimento é repetido mais duas vezes, uma para a integral, técnicas que permitem conexões literais entre subdominante e outra para a dominante, e em seguida, materiais temáticos e arquétipos geradores. Desta forma, a orquestra executa o primeiro tema, o qual é reexposto considera-se que o motivo de cinco notas, em um primeiro mais tarde pelo piano. Com este material introdutório, momento funciona somente como um arquétipo desta consistindo de três momentos, Beethoven parece estar nova atmosfera sonora, tendo uma função análoga a uma simplesmente estabelecendo claramente a tonalidade introdução ou um prelúdio de uma obra tonal. da peça, através das funções principais. Como se pode

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8 observar nos diagramas do Ex.10, ambos os compositores devidas transposições). Considerou-se P0 o formato estão introduzindo vocabulário (sonoridades) e sintaxe em que o motivo foi introduzindo no início da obra. (como interconectar estas sonoridades), cada um dentro Guarnieri também utiliza estas formas seriais de maneira de uma linguagem específica, preparando o terreno desordenada, como veremos adiante. para a entrada do tema propriamente dito. No caso de Beethoven, a linguagem já é o então estabelecido sistema O Ex.12 mostra os quatro compassos iniciais da exposição tonal, enquanto que em Guarnieri, não somente a obra teve do tema feita pelo piano. Os números dentro de círculos de ser criada, mas também o próprio sistema. Em outras referem-se aos tipos de sonoridades. As formas seriais palavras, enquanto Beethoven escolheu entre as várias indicadas dentro de colchetes são formas desordenadas. Por

possibilidades sintáticas já amplamente disponíveis no exemplo, P0 é Mi,Ré#,Ré,Dó#,Lá#, mas [P0] indica qualquer sistema tonal, Guarnieri teve de criar o vocabulário e uma ordem destas cinco notas. Como se observa no Ex.13, tudo sintaxe específica para interconectar este vocabulário. é derivado do motivo gerador. Algumas vezes este motivo aparece em sua forma completa e na ordem original; Os tipos de sonoridades, definidos anteriormente, são noutras é desordenado, incompleto ou apresenta notas elementos desordenados. Examinemos a seguir, as interpoladas. A interpolação de notas estranhas às formas possíveis disposições do motivo de cinco notas, quando seriais é particularmente importante na construção do considerado do ponto de vista ordenado. O Ex.11 mostra primeiro tema (A), porque confere variedade e dilui a rigidez todas as formas ordenadas do motivo (original, inversa, sistêmica. Observa-se como Guarnieri reintroduz o motivo retrógrada, inversão da retrógrada, todas com suas de cinco notas no c.21, de forma cristalina e gradualmente

P0 E D# D C# A# R0 I0 E F F# G A# RI0

P1 F E D# D B R 1 I1 F F# G G# B RI1

P2 F# F E D# C R 2 I2 F# G G# A C RI2

P3 G F# F E C# R 3 I3 G G# A A# C# RI3

P4 G# G F# F D R 4 I4 G# A A# B D RI4

P5 A G# G F# D# R 5 I5 A A# B C D# RI5

P6 A# A G# G E R 6 I6 A# B C C# E RI6

P7 B A# A G# F R 7 I7 B C C# D F RI7

P8 C B A# A F# R 8 I8 C C# D D# F# RI8

P9 C# C B A# G R 9 I9 C# D D# E G RI9

P10 D C# C B G# R 10 I10 D D# E F G# RI10

P11 D# D C# C A R 11 I11 D# E F F# A RI11

Ex.11 - Formas do motivo de cinco notas do Concerto para Piano e Orquestra N.o 5 de Camargo Guarnieri

Ex.12 - Compassos iniciais do tema A (c.21-24) do Concerto para Piano e Orquestra N.o 5 de Camargo Guarnieri

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altera sua inteligibilidade pela superposição das diferentes A primeira sonoridade vertical é do Tipo 2b. A segunda formas seriais. Esta característica será ainda mais marcante sonoridade vertical é um composto de duas sonoridades do nos compassos seguintes do tema A (Ex.13). Tipo 1: Fá-Sib-Mi (mão direita) and Lá-Sib-Mi (mão direita e esquerda). Um ostinato, nos graves da mão esquerda, Como se observa no Ex.13, os c.25-27 do tema A contêm formado pela sonoridade do Tipo 4 permeia a passagem vários tipos de sonoridade. O motivo gerador aparece como um todo e se integra ao motivo gerador a partir de apenas uma vez, mas de forma desordenada e com uma [P7], nos dois últimos compassos. A nota com um asterisco nota interpolada (c.26). Dois recursos contrapontísticos são em P7’ deveria ser um Fá, para garantir o padrão do motivo utilizados brevemente nesta passagem. O primeiro é uma gerador. Contudo, parece que Guarnieri está utilizando um permutação de voz (voice exchange) envolvendo as classes tipo de apojatura em nível profundo, já que esta nota é de notas Láb e Fáb no c.25 (indicadas no Ex.13 com linha ajustada para o valor “correto” logo em seguida, em [P7]. Os pontilhada). O segundo é uma imitação literal, no c. 26, que últimos cinco compassos do tema A são mostradas no Ex.15. é indicada com colchetes pontilhados e uma seta. Observa- Consistem basicamente na interação do Tipo 1 (mão direita) se também uma similaridade de contorno entre o gesto com o Tipo 4 (mão esquerda); O Tipo 4 aparece como uma indicado com um x (c.25, mão direita) e o motivo gerador. 9 linha cromática ascendente. A mão direita encerra o tema A 10 Mais três compassos do tema A são mostrados no Ex.14. com o motivo gerador na forma de [R5].

Ex.13. Trecho do tema A (c.25-27) do Concerto para Piano e Orquestra N.o 5 de Camargo Guarnieri

Ex.14 - Trecho do tema A (c.28-30) do Concerto para Piano e Orquestra N.o 5 de Camargo Guarnieri

Ex.15 - Trecho do tema A (c.31-35) do Concerto para Piano e Orquestra N.o 5 de Camargo Guarnieri

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O segundo grupo temático (B), consiste de três temas: a sonoridade Tipo 1. Esta figuração rítmica, introduzida

B1, B2, and B3. B1, um tema curto e sincopado (Ex.16), é pela primeira vez no acompanhamento de B1, aparecerá construído a partir do motivo gerador e tem onze classes- diversas vezes na obra, combinada aos intervalos de 14 de-notas diferentes. B2, executado pelos trombones segundas maiores e menores. No c.50, o terceiro 11 (Ex.17), é inteiramente construído a partir da escala tema (B3) do segundo grupo temático é introduzido pentatônica (Solb-Láb-Sib-Réb-Mib) e, portanto, pelo trompete com surdina (Ex.18). Observam-se as consiste na sonoridade do Tipo 2 (harmonia quartal).12 segundas ornamentais executadas pelo piano (mão

Concomitantemente à apresentação de B2 pelos direita). O trecho de B3 executado pelo trompete pode trombones, o piano executa um ostinato ornamental ser analisado como uma mistura do Tipo 2b (Mi-Ré- que consiste em segundas maiores e menores13 na mão Sol-Si-(Sol#) Lá) com trítonos (Dó#-Sol, Si-Fá), exceto direita, enquanto a mão esquerda, ao mesmo tempo em pelo Sol#, que pode ser explicado como uma bordadura que complementa ritmicamente este ostinato, expressa incompleta. 15 O trítono deriva do motivo gerador, como

Ex.16 - Tema B1 (c.35-36) do Concerto para Piano e Orquestra N.o 5 de Camargo Guarnieri

o Ex.17 - Tema B2 (c.42-43) do Concerto para Piano e Orquestra N. 5 de Camargo Guarnieri

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vimos anteriormente. Consequentemente, B3 também é motivo gerador, o qual lhe fornece as possibilidades de derivado do motivo gerador. O piano, além de dobrar a utilizar tanto o atonalismo desordenado – através das parte do trompete executa um acompanhamento que sonoridades que definimos – quanto um serialismo que é, consiste verticalmente na sonoridade Tipo 4. Excluindo- algumas vezes ordenado e outras desordenado.16 se da mão direita a melodia do trompete, observa-se uma forma desordenada do motivo gerador, [P1], enquanto a Por último, observamos que, coincidentemente, o número linha superior da mão esquerda consiste na sonoridade cinco parece ter alguma significação numerológica Tipo 2 (Ex.19). nesta obra. Este é o quinto concerto de Guarnieri (cuja abertura se assemelha ao quinto concerto de Beethoven), 4 – Conclusão que é construído a partir de um gesto de cinco notas, O Ex.20 mostra a estrutura de todo o primeiro movimento o qual gera cinco sonoridades básicas. O evento inicial do Concerto para Piano e Orquestra N.o 5 de Camargo da orquestra dura cinco compassos, aos quais se seguem Guarnieri. Embora no aspecto formal, esta obra tenha blocos de arpejo, executados pelo piano, defasados por fortes conexões com a tradição (forma sonata), Guarnieri um intervalo de quinta justa. Um estudo que enfoque evidencia aqui uma sintonia com a composição sistêmica com profundidade esta conexão numerológica (como da segunda metade do século XX e um completo controle existe, por exemplo, no quinto Quarteto de Cordas de composicional de aspectos micro-estruturais, quando, de Bartók) pode revelar importantes facetas sistêmicas do acordo com nossa modelagem, parte unicamente de um serialista Camargo Guarnieri.

o Ex.18 - Tema B3 (c.50-51) do Concerto para Piano e Orquestra N. 5 de Camargo Guarnieri

o Ex.19 - Acompanhamento do tema B3 (c.50-51) do Concerto para Piano e Orquestra N. 5 de Camargo Guarnieri

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Seção Compassos Comentários

1— 4 Tutti orquestral

Intro. 5 Piano: cadência

6 — 20 Cânon dos metais

Primeiro grupo: Primeiro tema (piano) EXP. A 21 — 34 - A Segundo grupo: Tema B 35—36 1 (Corne inglês)

B 42—49 Segundo grupo: Tema B2 (trombone)

Segundo grupo: Tema B 50—51 3 (piano + trompete)

56—81 Desenvolvendo A e B1

82—100 B1 profundamente transformado DES. 101—110 Desenvolvendo A

Retrans. 111—126 Baseada na introdução

A 127—140 Primeiro grupo: Tema A

141—142 Segundo grupo: Tema B1

Material baseado no acompanhamento 143—152 usado no tema B (c. 42—49) RECAP. B 2 152—154 Prato suspenso como conector

155—168 Retrógrado de 87—100

Coda 173—190 Cânon + acorde sustentado.

Ex.20 - Estrutura do primeiro movimento do Concerto para Piano e Orquestra N.o 5 de Camargo Guarnieri

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Referências ALDWELL, Edward e Carl Schachter, Harmony and Voice Leading. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1989. FORTE, Allen. The Structure of Atonal Music. New Haven: Yale University Press, 1973. GUARNIERI, Camargo. Concerto para Piano e Orquestra No.5. Manuscrito do autor. São Paulo: [s.n], 1970. 1 partitura (75p.). Orquestra. VERHAALEN, Marion. Camargo Guarnieri: Expressões de uma Vida. Trad. Vera Silvia Camargo Guarnieri. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Imprensa Oficial, 2001.

Notas 1 Sua primeira obra sinfônica foi o Concerto para Piano e Orquestra N.º 1 (1931), composto treze anos antes de sua Primeira Sinfonia. 2 Nas notas de programa sobre esta peça, o próprio Guarnieri menciona que o segundo movimento é monotemático e organizado em três partes: exposição, desenvolvimento e recapitulação. Marion Verhaalen rotula estas três partes ABA. Também de acordo com Guarnieri, o segundo movimento foi o primeiro a ser composto (VERHAALEN, 2001, p.230). 3 Por exemplo, o primeiro tema do segundo grupo temático (Ex.17), no primeiro movimento, consiste na justaposição de duas formas diferentes do motivo, cada uma com uma diferente ordenação de notas. 4 Estes princípios são os mesmos utilizados por Allen FORTE (1973) para conceituar classes-de-nota, termo que aliás também será utilizado neste artigo, quando necessário. Optamos por utilizar um sistema contendo apenas cinco sonoridades em virtude de ser mais compacto e, portanto, de fácil assimilação e visualização durante o processo analítico, e também por conter relações de similaridade, especialmente auditiva, não contempladas explicitamente nas classes de conjuntos de classes-de-notas de Allen Forte. Assim, nosso Tipo 1 abrange os tricordes 016 e o tetracorde 0167; todos os gestos cromáticos (012,0123,01234,...) são agrupados no Tipo 4 e as sonoridades quartais são agrupadas no Tipo 2. 5 Abreviatura dos instrumentos: pic=flautim, fl=flauta, ob=oboé, cl=clarinete, vn=violino, c.i = corne inglês, tr=trompa, va=viola, fg=fagote, c.fg = contrafagote, tim=timpani, vc = violoncelo, cb = contrabaixo. 6 A idéia de introduzir o instrumento solista no início do concerto é fundamentada na tradição: foi utilizada por Mozart (Concerto N.º 9 em Mi bemol maior, K271), Beethoven (Concerto N.º 5 em Mi bemol maior, Opus 73, com o qual a abertura de Guarnieri parece ter certa semelhança textural) e, mais recentemente, por Schoenberg. 7 Encontramos paralelos deste processo no período tonal: temas levam tempo para se cristalizarem em obras tais como a Terceira Sinfonia e a Nona Sinfonia de Beethoven. 8 Obviamente, uma matriz 12x12 não pode ser utilizada neste caso, uma vez que a série contém somente cinco notas. Uma matriz 5x5 excluiria diversas classes-de-notas e, portanto, não refletiria a realidade da obra, uma vez que Guarnieri se utiliza de todo o espaço cromático. 9 Ambos os motivos iniciam na nota mais grave, movem-se ascendentemente para a nota mais aguda e descem gradualmente até alcançar a segunda nota mais grave. A linha descendente em ambos os motivos é cromática. 10 O Fá# do piano (mão direita, último compasso) é a mesma nota com que o oboé introduz o segundo tema do concerto. 11 Abreviatura dos metais: tp=trompete, tr=trompa, tn=trombone. 12 As notas de uma escala pentatônica podem ser facilmente arrumadas em quartas, preservando tanto a sonoridade pentatônica (pela pequena quantidade de notas), como criando harmonia quartal. 13 Segundas maiores e menores se relacionam diretamente com o motivo gerador. Se tomarmos uma das formas do motivo, por exemplo, Sol4-Fá#5- Fá5-Mi5-Dó#5, observa-se que sua porção central (Fá#5-Fá5-Mi5) é inteiramente construída a partir destes dois intervalos. 14 Esta característica revela conexões com a música de Bartók (Out of Doors ou a Suíte, por exemplo). Outra conexão Bartókiana seria o uso de harmonia quartal, amplamente utilizada no concerto de Guarnieri. 15 Bordaduras incompletas têm somente uma conexão conjunta com uma nota real (ALDWELL, 1989, p.316). 16 A rigor, o serialismo implica ordem. Porém, Guarnieri utiliza permutações livres do motivo gerador, como Hauer faz com os hexacordes de suas séries dodecafônicas, sem se preocupar com os postulados fundamentados pela Segunda Escola de Viena e mais tarde corroborados pelas vanguardas serialistas européias e norte-americanas.

Liduino Pitombeira é compositor com obras executadas pelo Quinteto de Sopros da Orquestra Filarmônica de Berlim, Orquestra Filarmônica de Poznan (Polônia) e Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Suas obras são publicadas pela Peters, Bella Musica, Filarmonika LLC, Cantus Quercus, Conners, Alry, RioArte, Criadores do Brasil (OSESP) e Irmãos Vitale. Pitombeira também vem tendo diversas obras gravadas regularmente desde 1997 pelos selos Magni, Summit, Centaur, Antes, Filarmonika e Bis, bem como por selos independentes. Atualmente, é professor adjunto de composição e teoria do Departamento de Música da Universidade Federal da Paraíba.

53 FRANÇA, C. C. et al. Música e identidade em portadores de esclerose múltipla. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.54-63.

Música e Identidade: relatos de autobiografias musicais em pacientes com esclerose múltipla Cecilia Cavalieri França (UFMG, Belo Horizonte) [email protected]; [email protected]

Shirlene Vianna Moreira (CIEM; UFMG, Belo Horizonte) [email protected]; [email protected]

Marco Aurélio Lana-Peixoto (CIEM; UFMG, Belo Horizonte) [email protected]

Marcos Aurélio Moreira (CIEM; UFMG, Belo Horizonte) [email protected]

Resumo: Autobiografias musicais constituem um recurso terapêutico eloqüente a respeito de como os indivíduos definem a si mesmos, auxiliando a (re)construção da identidade e contribuindo para a melhoria da qualidade de vida de portadores de Esclerose Múltipla. Oito pacientes adultos sob acompanhamento no Centro de Investigação em Esclerose Múltipla (CIEM) – UFMG, selecionaram entre 10 a 15 músicas significativas em sua vida, a respeito das quais discorreram em entrevista aberta. Os dados foram analisados qualitativamente segundo categorias criadas pelo musicoterapeuta norueguês Even RUDD (1998), que visam revelar como o indivíduo expressa suas identidades pessoal, social, temporal e transpessoal. Submetidos a tratamento quantitativo, os dados indicaram que, através da sua história musical, os pacientes aumentaram a percepção dos sentimentos e sensações corporais, expressaram-se de maneiras alternativas e ativaram memórias afetivas, contextualizando-as e adquirindo um senso de continuidade da vida. Palavras-chave: musicoterapia, esclerose múltipla, identidade, identidade musical.

Music and identity: musical autobiographies in multiple sclerosis patients

Abstract: Musical autobiographies consist a powerful therapeutic tool through which individuals define themselves, helping in the (re)construction of their identities and in enhancing quality of life of Multiple Sclerosis patients. Eight adult patients under treatment in the Research Centre for Multiple Sclerosis (CIEM) – UFMG, selected 10 to 15 significant pieces of music in their lives, after which they narrated in open interview. The data collected were submitted to the music therapist Even RUDD (1998) categories, which reveal how the person expresses his personal, social, temporal and transpersonal identities. The quantitative treatment indicate that, through their musical history, patients could better the perception of their feelings and body awareness, they could express themselves through alternative ways and activated affective memories, contextualizing them and achieving a sense of continuity of life. Keywords: music therapy, multiple sclerosis, identity, musical identity.

1 - A esclerose múltipla A esclerose múltipla é uma doença neurodegenerativa A prevalência da esclerose múltipla é maior em regiões inflamatória do Sistema Nervoso Central (SNC). A doença distantes da linha do Equador. Estudos epidemiológicos acomete a bainha de mielina, uma substância gordurosa e mostram que há uma maior incidência em indivíduos protéica que envolve e protege as fibras nervosas do SNC, originários do oeste europeu e zonas temperadas tornando possível a condução dos impulsos nervosos. O (CALLEGARO, 2005, p.15). Na Europa, a taxa média de processo de desmielinização em diversas regiões do SNC prevalência da esclerose múltipla é estimada em 79 casos causa os sintomas experimentados pelos portadores, sendo para 100.000 habitantes na população (OSTERMANN, mais freqüentes as lesões no quiasma e nervos ópticos, 2006, p.469). Nos estados do norte dos Estados Unidos cérebro, tronco encefálico, cerebelo e medula espinhal. da América, a prevalência é superior a 30 casos para

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.20, 91 p., jul. - dez., 2009 Recebido em: 14/06/2008 - Aprovado em: 13/02/2009 54 FRANÇA, C. C. et al. Música e identidade em portadores de esclerose múltipla. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.54-63.

100.000 habitantes na população. Este fato pode ocorrer das habilidades cognitivas. Esses problemas podem piorar devido a seus colonizadores serem oriundos da Noruega, durante o curso e estágios da doença causando um impacto Dinamarca, Islândia, Suécia e Irlanda (CALLEGARO, 2005, sobre as relações sociais do portador (MAGEE, 2004, p.180). p.16). A natureza tri-híbrida da população brasileira A esclerose múltipla exige do paciente e do seu cuidador (ameríndia, africana e européia) e sua distribuição um processo contínuo de adequação às condições impostas irregular pelo país dificultam a elaboração de um estudo pela doença. Um surto pode mudar o quadro sintomático epidemiológico nacional (CALLEGARO, 2005, p.27). exigindo do portador um ajuste à nova condição física, Estudos por regiões registram a prevalência de 15 casos podendo causar perdas nas atividades sociais, profissionais e para 100.000 habitantes em São Paulo e 18 casos para psicológicas influenciando sua auto-imagem, autoconfiança 100.000 em Minas Gerais. e liberdade (VIEIRA, 2004, p.55). Além dos tratamentos médicos convencionais, pacientes A esclerose múltipla não é hereditária. A causa da doença têm recorrido a tratamentos alternativos como a é desconhecida, podendo ocorrer por interferência dos acupuntura e a musicoterapia. Esta última, como fatores genéticos, étnicos, ambientais, exposição a agentes coadjuvante no tratamento da esclerose múltipla, tem infecciosos não específicos, alimentação, estresse físico como objetivo auxiliar pacientes a realizarem uma ou psíquico (MENDES, 2004, p.24). A esclerose múltipla grande variedade de tarefas que foram comprometidas é a enfermidade neurológica crônica mais freqüente em pela doença. Ela oferece um conjunto de atividades adultos jovens, sendo mais prevalente em mulheres na específicas dirigidas às necessidades de reabilitação do proporção aproximada de 2:1. O início dos sintomas é paciente, sendo as atividades musicais adaptadas ao geralmente entre 20 e 40 anos, embora possa ocorrer em nível de dificuldade cognitiva e motora do mesmo. Em outras faixas etárias (LUBLIN, 1996, p.908). busca realizada em 10/10/2008 no sistema MEDLINE, encontramos apenas dez estudos associados ao emprego A esclerose múltipla não é considerada uma doença da musicoterapia em pacientes portadores de esclerose fatal, pois um grande número de pacientes leva uma múltipla. A maioria dos estudos são qualitativos e não vida normal. Porém, a doença possui uma característica randomizados. A presente pesquisa investigou como os de imprevisibilidade, podendo tornar-se incapacitante e pacientes percebem sua identidade por meio da música, interferindo na vida cotidiana do paciente. A evolução pesquisa pioneira no campo da musicoterapia no Brasil. do quadro clínico da esclerose múltipla é variável, com períodos de surtos e estabilidade. O déficit neurológico do 2. Identidade musical e esclerose múltipla paciente é avaliado a partir de uma escala padronizada O conceito de identidade vem sendo submetido a críticas nas na literatura médica chamada EDSS (expanded disability suas várias propostas de definição. Porém, compreender a status scale) descrita por Kurtzke (1983). Estabelecido concepção de identidade permite apresentar um sujeito que o diagnóstico, o médico neurologista classifica o toma iniciativas de toda a ordem durante sua vida. Segundo déficit neurológico do paciente a partir desta escala. Ruud (1998, p.46), a questão da identidade desempenha um Em português, ela é comumente chamada de Escala de papel importante no esforço para compreender o indivíduo. Incapacidade Funcional Expandida, e tem sido o método Para este autor a identidade apresenta-se no discurso do mais amplamente utilizado de avaliação clínica em indivíduo, quando sua consciência está monitorando suas esclerose múltipla. No EDSS, o paciente recebe escores próprias memórias, atividades e fantasias (RUUD, 1998, apropriados de acordo com seu sistema funcional e p.36). A identidade pode ser definida de forma geral como habilidades para andar. O escore do EDSS varia de 0 a a consciência da posição do sujeito no mundo a partir de 10, admitindo variações de 0,5 ponto a partir do EDSS sua subjetividade. 1,0 (MOREIRA, 2004, p.61). Dessa forma, os pacientes também são avaliados de acordo com sua história clínica A música desempenha um papel importante na construção e a partir do exame neurológico (TILBERY, 2005, p.58). da identidade porque ela nos acompanha em diversas fases Essa escala permite a avaliação periódica da evolução e contextos da vida. O efeito da música na identidade vem clínica da doença (KURTZKE, 1983, p.144). sendo explorado por alguns autores nesta última década. Segundo Hargreaves, a música pode ser usada como Dentre os principais problemas neurológicos e clínicos que um meio pelo qual formulamos e expressamos nossas são avaliados e tratados na esclerose múltipla ocorrem: identidades individuais. Neste contexto investigam-se depressão; dor; fadiga; espasticidade (aumento do tônus como os indivíduos narram suas histórias de vida a partir muscular); tremor; alterações urinárias; alterações da função de um referencial musical (HARGREAVES, 2004, p.1). intestinal; alterações sexuais; ineficiência respiratória; hipernasalidade vocal; voz fraca, soprosa, rouca ou monótona; A psicologia social da música é um campo que investiga déficit articulatório; alterações no processo da deglutição; a influência desta sobre o comportamento e situações alterações da visão podendo ocorrer comprometimento da vida cotidiana (HARGREAVES, 2004, p.4) e, portanto, na distinção de cores, borramento visual, perda parcial ou sobre a construção da identidade do indivíduo. Hargreaves completa do campo de visão e visão dupla (FERREIRA, 2004, distingue dois aspectos da identidade com relação à p.39-42). A esclerose múltipla provoca perda das funções música: música na identidade e identidade na música. O motoras normais, mudança de humor e gradual perda conceito de música na identidade refere-se à forma como a

55 FRANÇA, C. C. et al. Música e identidade em portadores de esclerose múltipla. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.54-63.

música é utilizada como meio ou recurso para desenvolver 3. Método aspectos da identidade pessoal (HARGREAVES, 2004, p.4). Esta pesquisa teve como objetivo investigar como A identidade na música é definida pelos papéis sociais e portadores de esclerose múltipla expressam suas culturais que os indivíduos representam com relação a identidades pessoal, social, temporal e transpessoal ela (HARGREAVES, 2004, p.12). A música desempenha através da música. Devido ao número reduzido de um papel importante na construção da identidade, participantes e outras limitações da amostra preferimos preenchendo funções cognitivas, emocionais e sociais ao considerá-la como um estudo piloto. Este se caracteriza influenciar comportamentos (HARGREAVES, 2005, p.31). como de delineamento descritivo (GIL, 1996, p.46) e utiliza A música pode servir como referencial para o indivíduo o método qualitativo de análise de conteúdo utilizando as posicionar-se dentro da cultura tornando explícita categorias fechadas elaboradas por Even Ruud (1998) e sua origem étnica, o seu gênero sexual e a sua classe. adaptadas para esta pesquisa. O resultado das análises É utilizada para regular humores e comportamentos qualitativas foi submetido a uma análise quantitativa cotidianos e para se apresentar às pessoas da maneira para revelar a incidência de cada categoria. como preferida (HARGREAVES, 2004, p.1) A amostra foi selecionada por critério de tipicidade A maneira como cada indivíduo responde emocionalmente (LAVILLE, DIONE, 1999, p.170). Foram envolvidos oito às alterações decorrentes da esclerose múltipla leva a pacientes do Centro de Investigação em Esclerose mudanças fundamentais na sua identidade (MAGEE, Múltipla (CIEM) da Universidade Federal de Minas Gerais, 2004, p.180). Mudanças cognitivas e físicas alteram a sendo cinco do sexo masculino e três do sexo feminino. maneira como o indivíduo se percebe e como compreende A idade variou entre 22 e 58 anos, com EDSS de 0 a 5,0. e interage com o ambiente e os indivíduos que o cercam. A idade de início da doença variou de 12 a 43 anos e o Segundo Silva (2004, p.23), a doença crônica pode tempo de diagnóstico, entre 2 e 34 anos. O motivo de provocar uma ruptura biográfica na vida do portador, encaminhamento à musicoterapia também era variável. produzindo um impacto nos planos físico, socioeconômico Um resumo do perfil da amostra é dado no Ex.2. e temporal. A recomposição da identidade dos pacientes com esclerose múltipla permite a aceitação da doença na Todos os participantes assinaram o termo de consentimento vida cotidiana. livre esclarecido. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG- COEP , A música pode auxiliar o paciente no resgate da sua parecer número 501/05. Inicialmente, todos os pacientes identidade, pois ela pode desempenhar um papel de foram avaliados prospectivamente pela pesquisadora suporte em relação à sua história. As músicas trazidas a partir de um questionário de avaliação inicial em pelos pacientes para as sessões de musicoterapia fazem musicoterapia identificando variáveis basais; diagnóstico; parte da trilha sonora de suas vidas particulares. Seus motivo do encaminhamento; antecedentes sonoros e relatos autobiográficos musicais proporcionam um musicais; cultura musical; elementos extra-musicais; retrocesso no tempo a partir do qual o terapeuta tem ambiente sonoro atual; tratamentos utilizados; escalas a oportunidade de perceber como este se vê diante do neuropsicológicas aplicadas; conduta musicoterapêutica; mundo. Ouvir músicas relacionadas com sua vida pessoal planejamento do tratamento e encaminhamentos para contribui para a percepção de si mesmo, assim como de outras especialidades (VIANNA, 2004, p.32). Após a sentimentos e lembranças. avaliação inicial o paciente foi convidado a participar do estudo sobre identidade musical. A cada sujeito foi O musicoterapeuta norueguês Even Ruud estudou a solicitado que selecionasse de dez a quinze músicas conexão entre a música e identidade, ou seja, a forma significativas em sua vida e fizesse um comentário sobre como as pessoas se observam e se apresentam. Este autor elas. Este número de músicas foi baseado no estudo de coletou mais de 1000 experiências musicais ou narrativas, identidade musical realizado por Even Ruud (1998, p.32). autobiografias musicais de estudantes de musicoterapia Os entrevistados passaram por entrevistas abertas não (RUUD, 1998, p.32). A partir desses dados empíricos, o autor estruturadas que visavam coletar informações sobre o desenvolveu uma teoria de identidade musical, segundo a que sentiam quando escutavam as músicas. Os dados qual o ponto de formação de uma identidade resulta na foram coletados entre julho de 2005 e junho de 2006. maneira como os indivíduos narram suas histórias de vida. “Extraindo memórias de eventos significantes da vida 4. Resultados como elas foram experimentadas por meio da música, os indivíduos planejam enredos que organizam os eventos de 4.1- Análise qualitativa sua vida em narrativas coerentes” (RUUD, 1998, p.66). A As entrevistas dos participantes foram analisadas partir da análise dos dados, o autor criou quatro categorias separadamente segundo as categorias propostas por relacionando música e identidade: espaço pessoal, espaço Rudd (1998). Por razões de confidencialidade, as músicas social, o espaço de tempo e lugar e espaço transpessoal escolhidas pelos participantes foram omitidas no relato. (RUUD, 1998, p.33). Cada categoria é dividida em várias Para este artigo, selecionamos aleatoriamente um caso subcategorias. Estas são dadas no Ex.1. ilustrativo da etapa de análise qualitativa.

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Ex.1 - Tabela de categorias e subcategorias de análise sobre Música e Identidade

1 Primeiras relações Músicas que pais ou cuidadores cantavam para a criança.

2 Confiança básica Músicas que ancoravam lembranças primordiais de segurança.

3 Ser visto, confirmado O indivíduo tem a atenção de pessoas devido à situação musical.

ESPAÇO PESSOAL – 4 Consciência emocional Habilidade de experimentar, tolerar, refletir e nomear as emoções. aspectos individuais e pessoais 5 Consciência corporal Reações e sensações corporais e fisiológicas a música.

6 Mestria Habilidade de executar música.

Escutar ou tocar música leva à consciência de um espaço 7 Espaço privado individual. A experiência musical parece autêntica, verdadeira (não 8 Autenticidade comercial).

1 Experiência emergente de Capacidade de comparar o próprio gosto musical com os dos individualidade grupos sociais.

2 Rompendo com identificações Consciência do gosto musical diferente de outra pessoa.

3 Identificação Uso de ídolos musicais para adquirir sua identidade.

ESPAÇO SOCIAL – 4 Pertencimento grupal Percepção de ser parte de um grupo social. aspectos interpessoais Percepção de música de consumo X música como transformador da identidade 5 Conformidade X independência da realidade.

6 Gênero sexual A música ajuda a identificar-se com um gênero.

7 Relação com o outro A escolha musical simboliza o valor de ligação com uma pessoa.

8 Etnia A música simboliza o pertencimento étnico.

1 Calendário Pessoal Experiências musicais que ajudam a traçar a vida.

2 Momentos Significativos Momentos importantes .

3 Rituais Cotidianos Experiências do dia a dia. ESPAÇO DE TEMPO E LUGAR – aspectos 4 Celebrações Épocas festivas. relacionados a eventos Experiências musicais ligadas à transição de uma fase de vida da vida de onde venho 5 Fases da vida para outra. e à época vivida. 6 Época do tempo Período da vida.

Acontecimentos musicais que se tornaram parte da história oficial 7 Tempo Histórico assim como da história pessoal. 8 Pertencimento Regional e Ligações com raízes musicais e tradições. Nacionalidade

ESPAÇO 1 Experiências religiosas Experiências ligadas ao contexto religioso. TRANSPESSOAL – experiências musicais 2 Culminâncias Experiência de perder o sentido do tempo. que estão além da linguagem, produzindo 3 Extinção do ego Experiência de ser levado para fora de si mesmo. estados alterados da consciência. 4 “Maior do que” Pertencer a algo maior que o próprio indivíduo.

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Ex.2 – Tabela de caracterização da amostra

CATEGORIAS Caso1 Caso2 Caso3 Caso4 Caso5 Caso6 Caso7 Caso8

EDSS 0 1 3 5,0 0 3 1 3.0 Idade de início da 25 anos 18 anos 12 anos 41 anos 43 anos 19 anos 42 anos 35 anos doença

Tempo de doença 7 anos 33 anos 34 anos 13 anos 2 anos 3 anos 16 anos 8 anos canto Encaminhamento musico Ansiedade Depressão Canto canto pesquisa (demanda canto (motivo do paciente) terapia própria)

Ex.3 - Tabela de síntese das ocorrências

A) Espaço D) Espaço B) Espaço social C)Tempo/ Lugar Pessoal Transpessoal A.1 Primeiras B.1 Experiência emergente D.1 Experiência 00 01 C.1 Calendário Pessoal 02 01 Relações de indi­vidualidade Religiosa A.2 Confiança B.2 Rompendo 00 00 C.2 Momentos significativos 01 D.2 Culminâncias 00 Básica identificações C.3 Rituais A.3 Ser visto 00 B.3 Identificações 01 00 D.3 Extinção do Ego 00 Cotidianos A.4 Consciência 03 B.4 Pertencimento grupal 01 C.4 Celebrações 01 D.4 “Maior do que” 00 Emocional A.5 Consciência B.5 Conformidade X C.5 Fases da 03 00 00 corporal independência Vida B.6 Gênero C.6 Época do A.6 Mestria 01 02 03 Sexual Tempo A.7 Espaço B.7 Relação com 00 03 C.7 Tempo Histó­rico 00 Privado o outro C.8 Pertencimento A.8 Autenticidade 03 B.8 Etnia 00 Regional e 00 Nacionalidade

Total de ocorrências 10 Total de ocorrências 08 Total de ocorrências 07 Total de ocorrências 01

4.2- Caso (A.4) consciência emocional: “Tem uma coisa assim de Perfil: homem, brasileiro, com 51 anos, pardo, casado, alegria”; com curso superior. Diagnosticado com esclerose múltipla (A.5) consciência corporal: “E vem uma música aberta, recorrente remitente e EDSS igual a 1. Os dados coletados toda saltitante, toda viva, vida”; a respeito dos antecedentes sonoros musicais e da cultura (A.6) mestria: “Uma das primeiras músicas que comecei musical do paciente revelam que ele estudou piano dos a tocar”; sete aos 14 anos; gosta de piano e órgão de tubos; escuta (A. 8) autenticidade: “Muito introspectiva. Esta música diariamente e prefere os estilos: rock’n roll, new música é muito louca. Esta música é calma, mas ao age, internacional, pop internacional e música erudita. mesmo tempo você fica divagando. Liberdade, como vou dizer, é uma música que você fica pensando e 4.2.1- Análise da entrevista de um caso acha uma solução.” O entrevistado selecionou 11 músicas para sua autobiografia musical. Foram realizadas quatro entrevistas, com uma B) Categoria espaço social: foram encontradas oito média de uma hora de gravação. A análise das transcrições ocorrências nas subcategorias: revelou 26 referências às categorias de análise: (B.1) experiência emergente de individualidade: “Este A) Categoria espaço pessoal - foram encontradas tipo de música na época hoje seria New Age. Enquanto 10 referências a esta categoria, com ocorrências nas as pessoas curtiam carnaval, eu gostava desta música”; seguintes subcategorias: (B.3) identificação: “Eu me identificava muito com Beethoven”;

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(B.4) pertencimento grupal: “Eu fiz amizades que até hoje permanecem”; (B.6) gênero sexual: “Eu me reúno com amigos da faculdade”; (B.7) relação com o outro: “Foi justamente quando eu comecei a conhecer esta garota [...] Ela não saía da minha cabeça”. C) Categoria tempo e lugar: foram encontradas sete referências às subcategorias: (C.1) calendário pessoal: “Começo a sair de casa. Fui para a [...]”; (C.2) momentos significativos: “[...] marcou muito esta música”; (C.4) celebrações: “No meu aniversário fazia questão Ex.5- Gráfico de barras do número de ocorrências em de assistir a missa lá, que era toda em latim”; subcategorias no espaço pessoal (C.6) época do tempo: “Esta música me lembra a época que minha mãe melhorou, começou a andar Na categoria espaço social, a subcategoria relação de cadeiras de roda. É mais ou menos esta época. Eu com o outro se destacou com 38,29%. A subcategoria senti uma melhora nela”. pertencimento grupal apresentou 26,59% e a subcategoria identificação apresentou 17,02%. Estes dados podem ser D) Categoria transpessoal foi encontrada uma ocorrência visualizados no Ex.6. na subcategoria: (D.1) experiências religiosas: “Aquele clima de mistério, de você não saber o que está acontecendo, o que houve, aquele mistério eu achava muito interessante e me identificava com isso. Então esta música tem muito a ver com a Igreja... Você já entra e se sente pequenino você não é nada, você é somente uma parte daquele monumento todo. Esta música era tocada por um padre no Grande Órgão”.

As freqüências das subcategorias para este caso são sintetizadas no Ex.3 e totalizadas no Ex.4.

Ex.6 - Gráfico de barras do número de ocorrências em subcategorias no espaço social

A categoria tempo e lugar apresentou maior incidência na subcategoria época do tempo. As subcategorias fases da vida, momentos significativos e calendário pessoal também são representativas, como observados no Ex.7.

Ex.4 - Figura da distribuição das categorias de identidade e número de ocorrências

4.2- Análise das subcategorias de identidade referente aos oito casos Após a análise das entrevistas dos oito participantes, foram computadas as freqüências de todas as subcategorias. As subcategorias de maior incidência da categoria espaço pessoal foram: consciência emocional (39,47%), consciência corporal e autenticidade, como mostra o Ex. 5. Ex.7- Gráfico de barras do número de ocorrências em subcategoria no tempo e lugar

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Na categoria transpessoal, as subcategorias mais Esses dados podem ser visualizados no Ex.9, abaixo. relevantes foram experiências religiosas e “maior que” onde estão concentradas 85,7% das ocorrências, como A análise quantitativa dos dados mostra que há uma percebido no Ex.8. diferença significativa entre a categoria transpessoal e as demais categorias de identidade. O Ex.10 apresenta a tabela de distribuição e intervalos de confianças para cada categoria, também dados no Ex.11.

Alguns casos apresentam diferenças estatisticamente significativas (valor-p<0,01) em relação ao grupo total, a saber: dois casos na categoria espaço pessoal; dois casos na categoria espaço social e um caso na categoria tempo e lugar. Estes dados aparecem no Ex.12.

O Ex.13 a seguir mostra um resumo da Tabela acima, ilustrando o percentual de ocorrência em cada categoria por caso e no grupo total.

Ex.8- Gráfico de barras do número de ocorrências em subcategorias no transpessoal

Ex.9- Tabela da síntese das subcategorias dos casos

A) Espaço Pessoal B) Espaço social C) Tempo / Lugar D) Espaço Transpessoal B.1 Experiência emergente A.1 Primeiras relações 01 01 C.1 Calendário Pessoal 14 D.1 Experiência Religiosa 03 de indi­vidualidade A.2 Confiança Básica 06 B.2 Rompendo identificações 01 C.2 Momentos significativos 18 D.2 Culminâncias 01

A.3 Ser visto 02 B.3 Identificações 16 C.3 Rituais Cotidianos 09 D.3 Extinção do Ego 00

A.4 Consciência emocional 60 B.4 Pertencimento grupal 25 C.4 Celebrações 08 D.4 “Maior do que” 03 B.5 Conformidade X A.5 Consciência corporal 36 07 C.5 Fases da Vida 19 independência A.6 Mestria 11 B.6 Gênero Sexual 08 C.6 Época do Tempo 43

A.7 Espaço Privado 06 B.7 Relação com O outro 36 C.7 Tempo Histó­rico 04 C.8 Pertencimento Regional A.8 Autenticidade 30 B.8 Etnia 00 01 e Nacionalidade Total de ocorrências 152 Total de ocorrências 94 Total de ocorrências 116 Total de ocorrências 07

Ex.10- Tabela da proporção de cada categoria

CATEGORIAS Incidências Porcentagem IC 95% Espaço Pessoal 152 41% [36%; 45%] Espaço Social 94 25% [21%; 30%] Tempo/Lugar 116 31% [27%; 36%] Transpessoal 07 2% [1%; 4%] Total 369 100%

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Espaço pessoal

Espaço social

Tempo/espaço

Transpessoal

1 4 7 10 13 16 19 22 25 28 31 34 37 40 43 46 Proporções de intervalos de confiança Ex.11- Figura dos intervalos de confiança para as proporções em cada categoria de identidade

Ex.12- Percentual de cada caso nas categorias, com valor-p do teste Qui-quadrado*

Caso Espaço Pessoal Espaço Social Tempo/Lugar Transpessoal

1 30% (0,13*) 30% (0,49*) 40% (0,22*) 0% (0,99**) 2 38% (0,78*) 31% (0,55*) 27% (0,63*) 4% (0,42**) 3 41% (0,69*) 17% (0,12*) 39% (0,19*) 3% (0,64**) 4 17% (0,01*) 30% (0,59*) 53% (0,01*) 0% (0,58**) 5 53% (0,11*) 22% (0,64*) 22% (0,20*) 2% (0,99**) 6 32% (0,22*) 53% (<0,01*) 15% (0,02*) 0% (0,99**) 7 47% (0,38*) 21% (0,47*) 32% (0,98*) 0% (0,60**) 8 64% (0,01*) 5% (<0,01*) 23% (0,28*) 8% (0,06**) Total 41% 25% 31% 2%

Ex.13- Gráfico de barras do percentual de ocorrências em cada categoria por caso e no grupo.

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5. Discussão de apenas 2% das ocorrências nesta categoria. Observamos nos casos estudados que a categoria que ocorreu com maior proporção foi a espaço pessoal, com Todos os entrevistados relataram mudanças positivas em freqüência de 41%, e dentro desta categoria a subcategoria sua vida. Na análise da entrevista do caso 1, ele enfatizou consciência emocional foi a mais citada, com um índice de a saudade do seu passado, do que ele tinha sido e de 39,47%. Isto ocorreu devido à compreensão da qualidade uma determinada época de sua vida. Ele apresentava-se emocional das experiências musicais vividas pela maioria muito queixoso sobre o seu momento presente e a falta dos entrevistados. Para Even Ruud (1998), todas as de perspectiva futura, devido à condição de sua doença memórias significantes da música parecem ter certa e poucas possibilidades interpessoais e profissionais. Na qualidade de “presença afetiva”. A subcategoria consciência entrevista final, após relato de sua autobiografia musical, corporal apresentou um índice elevado, com 23,68%. o paciente trouxe o violão e fez planos para o futuro, Esta subcategoria demonstra que a música é fortemente como cantar no coral, procurar um emprego, desejar uma percebida pelos entrevistados como uma sensação corporal. namorada e sair com os amigos. O entrevistado 2 relatou A consciência dos sentimentos e as sensações corporais é que antes das entrevistas tinha dificuldades de lembrar uma parte importante da autoconsciência (RUUD, 1998, de músicas relacionadas à sua infância. O entrevistado 3 p.39). Estes exercícios emocionais em musicoterapia relatou que achou muito bom fazer a sua auto-biografia esclarecem os sentimentos relatados auxiliando o sujeito musical, porque “as coisas vão ficando represadas com o a se expressar de diferentes formas. passar do tempo”. Ele relatou que tinha dificuldades em se expressar e que, em cada música, voltou àquela época, Na categoria espaço social as subcategorias que mais se induzindo os sentimentos que passou em detalhes. O caso 4 destacaram neste estudo foram relação com o outro (38,29%) teve dificuldades de selecionar 10 músicas significativas em e pertencimento grupal (26,59%). As relações sociais são de sua vida. Porém, ao ouvir as músicas, conseguia se lembrar importância para o desenvolvimento da identidade do sujeito. de fatos relacionados principalmente a subcategoria época Segundo Ruud (1998) reconhecer os aspectos interpessoais do tempo que foi a mais enfatizada nos seus relatos. da identidade “conduz a uma grande consciência sobre o Observamos que as experiências musicais podem auxiliar papel de um contexto cultural maior, onde a identidade o paciente no resgate de momentos importantes de sua toma forma” (RUUD, 1998, p.41). A influência do contexto vida. No final das entrevistas, o caso 5 afirmou ter sido social na vida pessoal dos entrevistados mostra-se como um uma experiência nova o fato de relacionar a música com os fator importante de análise. momentos da sua vida. Diz ter achado muito interessante, pois a música grava um período que “mexeu muito”. Falava Na categoria espaço de tempo e lugar a identidade musical das suas lembranças destes períodos e do momento presente, está relacionada ao lugar que o indivíduo tem como afirmando que é tudo muito novo. Afirma que se sente bem referência e à época que ele está contextualizado. Nesta “desenvolvendo este outro lado”. O entrevistado 6 não fez categoria observamos que houve uma maior relevância referência às músicas de sua infância. Após as entrevistas, nas subcategorias época do tempo com 37,06%, e fases apresentou demanda para atendimento psicoterapêutico da vida que representou 16,37% das ocorrências. e foi, em seguida, encaminhado. O entrevistado 7 relatou no final das entrevistas que foi muito bom, pois teve a Algumas vezes, experiências musicais são percebidas pelos oportunidade de “desabafar algumas coisas que estava sujeitos como uma coisa “indefinida e indescritível, alguma segurando”. Disse que em algumas músicas chorou e outras coisa além dos limites da linguagem” (RUUD, 1998, p.46). trouxeram momentos de alegria. O entrevistado 8 relatou Esta sensação foi percebida por alguns dos entrevistados, no fim das entrevistas o benefício de “colocar para fora” as que relataram em suas autobiografias estados alterados memórias relativas às suas experiências musicais. de consciência ao escutar música. Porém, a categoria transpessoal não foi representativa em nossos estudos. Os resultados deste estudo confirmam a relevância da Esta categoria mostrou-se estatisticamente significante música na construção e reconstrução da identidade em relação às outras categorias, pois os intervalos de destes indivíduos. A música lhes recorda sobre o quê e confiança não se sobrepõem. Situações que envolvem quem são, de onde vêm, aonde vão e o que querem como estados alterados da consciência dificilmente são indivíduos, a despeito da fragilidade física e emocional expressos em linguagem, o que pode ter levado ao índice imposta pela enfermidade.

62 FRANÇA, C. C. et al. Música e identidade em portadores de esclerose múltipla. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.54-63.

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Cecília Cavalieri França é Doutora e Mestre em Educação Musical pela University of London. Pianista formada pela Escola de Música da UFMG e Especialista em Educação Musical pela UFMG. Autora das obras Para fazer música (Editora UFMG), Feito à mão: criação e performance para o pianista iniciante (Halt Gráfica e Editora),Poemas Musicais, que inclui o Cd e respectivo livro de partituras Poemas Musicais: ondas, meninas, estrelas e bichos, finalista do Prêmio Tim 2004, e o Cd Toda Cor. Co-autora do livro Jogos Pedagógicos para Educação Musical (2005) e da obra Matemúsica, material pedagógico original para o ensino dos compassos. Atua como professora e pesquisadora na Escola de Música da UFMG.

Shirlene Vianna Moreira é Mestre em Música pela Escola de Música da UFMG, psicóloga pela UFJF e musicoterapeuta. Tem fellowship em musicoterapia no Centre Hopitalier Georges Mazurelle na França e foi pioneira no estudo de pacientes com esclerose múltipla através da musicoterapia no Brasil.

Marco Aurélio Lana-Peixoto é Médico e Doutor em Oftalmologia pela UFMG. Atualmente é Professor Adjunto da UFMG. Diretor- Presidente do CIEM.

Marcos A. Moreira é Neurologista e Mestre em Medicina pela Santa Casa de São Paulo. Médico do CIEM.

63 ASSIS, C. A. Fatores de coerência nos Choros nº 5 (“Alma brasileira”), de H. Villa-Lobos. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.64-73.

Fatores de coerência nos Choros nº 5 (“Alma brasileira”), de H. Villa-Lobos

Carlos Alberto Assis (EMBAP, Curitiba) [email protected]

Resumo. Análise dos processos composicionais contidos nos Choros nº. 5 de H. Villa-Lobos, a partir da abordagem dos planos formal, harmônico, rítmico e melódico e sua relação com elementos da retórica (a partir do conceito de figuras musicais) a fim de descobrir o impulso gerador que organiza a obra em uma estrutura coesa e completa. Palavras-chave: H. Villa-Lobos, Choros nº 5, análise musical, coerência musical, figuras musicais.

Coherence factors in H. Villa-Lobos´Choros n. 5 (“Alma brasileira”)

Abstract. Analysis of the compositional processes involved in H. Villa-Lobos’s Choros nº. 5 regarding formal, harmonic, rhythmic and melodic aspects and their relation to rhetorical elements (within the concept of musical figures) in order to find out the generating impulse that organizes the work in a broad, coherent and complete structure. Key Words: H. Villa-Lobos, Choros N.5, musical analysis, musical coherence, musical figures.

1- Introdução Os Choros nº 5, também chamado de Alma Brasileira, é, Em entrevista concedida a Madeleine Milhaud, em 12 de sem dúvida, uma das peças mais execu­tadas do repertório Março de 1952 (KATER, 1991, p.94), Villa-Lobos afirma: pianístico de Villa-Lobos, tendo angariado o carinho de “O brasileiro não é romântico, como se acredita. Ele é público e de intérpretes desde sua estréia em 1927. sentimental, e não romântico.” Mais adiante, explicando Foi composta em 1925, um ano após a primeira estada a razão do título Choros, ele diz que “[...] tudo é triste. em Paris e já há alguns anos da tumultuada Semana Há uma tonalidade triste, uma maneira triste de ser [...] de Arte Moderna. Villa-Lobos, aos 38 anos de idade, é todos têm um ar de chorões e eis o título Choros dado um compositor maduro que – embora ainda sem um no Brasil para todo esse gênero de canções em lamento” reconhecimento público significativo – possuía já uma (grifo meu). bagagem de composições quantitativa e qualitativamente­ significativa (MARIZ, 2000, p.135, 143, 149, 160). Esta declaração contém dois elementos importantes, no que diz respeito ao objeto de análise dos Choros nº. 5: o Além disso, Villa-Lobos passava por uma fase de afirmação sentimentalismo e a tristeza. É sabido que Villa-Lobos de seu idiomático musical, agora assumidamente brasileiro, nutria uma tendência ao exagero em suas afirmações – e pois, mesmo sendo um músico popular de profissão, “poucos Mário de Andrade, por exemplo, não o perdoava por agir anos depois de finda a guerra, e não sem ter antes vivido assim: “Villa-Lobos é oito ou oitenta. E somos forçados a a experiência bruta da Semana de Arte Moderna, de São reconhecer que mais numerosamente ele não se deixa ficar Paulo, abandonava consciente e sistematicamente o seu no oito das discrições e das sabedorias, em vez, prefere o internacionalismo afrancesado, para se tornar o iniciador oitenta dos espalhafatos, dos espetáculos, das teorizações e figura máxima da Fase Nacionalista em que estamos” nascidas em cima da hora”. (apud COLI, 1998, p.165) (ANDRADE, 1939/91, p.25).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.20, 91 p., jul. - dez., 2009 Recebido em: 15/07/2008 - Aprovado em: 13/02/2009 64 ASSIS, C. A. Fatores de coerência nos Choros nº 5 (“Alma brasileira”), de H. Villa-Lobos. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.64-73.

evocando no ouvinte, através da memória e de processos Embora tenhamos que manter certa reserva em relação comparativos, a construção de um sentido ou de uma a esta atitude de Villa-Lobos, tais afirmações são muito imagem textual que se configura coesa e completa. Um interessantes do ponto de vista de como o compositor dos objetivos da análise é tornar conscientes tais pontos via sua própria obra e a manifestação musical do povo de referência, a fim de que a diversidade dos elementos brasileiro que lhe servia de inspiração, mais do que uma que constituem a obra possa ser elaborada numa unidade constatação fiel da realidade, e servirão como ponto de equilibrada e verossímil. Assim, segundo Reis e Lopes, partida – dada sua íntima e intensa conotação afetiva – “[...] um texto, para ser coerente, deve comportar em para as discussões analíticas que se seguirão. seu desenvolvimento linear elementos recorrentes” e, além disso, “Há uma série de mecanismos lingüísticos Antes, porém, de entrarmos no processo propriamente que funcionam como processos de seqüenciamento, dito de análise da obra, é neces­sário que revisemos alguns assegurando uma ligação semântica entre os elementos aspectos relacionados à “escolha ontológica que se apóia da superfície textual [...] Estes mecanismos favorecem sobre a natureza semiológica da música” (NATTIEZ, 2003, o desenvolvimento temático contínuo do texto, p.6), ou seja, a decisão de optar por uma linha de análise estabelecendo um fio condutor no interior do espaço que sublinha as questões afetivas e emocionais da obra textual”. (REIS e LOPES, 2000, p.66, 67) musical – que Nattiez chama de análise de orientação semântica – e tentar relacioná-la às linhas de análise que Outra ferramenta utilizada no processo de análise deste se apóiam sobre as estruturas imanentes da obra (id. ibid.). artigo é a utilização de alguns elementos oriundos da retórica, que sempre manteve com a música uma Com o objetivo de fornecer suporte para uma interpretação relação muito íntima, embora em nível metafórico. e uma execução adequadas, temos que buscar elementos Inicialmente associada aos processos composicionais que nos auxiliem na compreensão dos processos contidos da música vocal, manteve, no entanto, sua influência na obra, pois é grande a carga que se abate sobre o sobre os compositores mesmo com o crescimento intérprete, e não é sem uma ponta de ironia que Dunsby independente da música instrumental. E, embora tenha afirma: “[...] espera-se que a partitura ofereça amais atingido seu auge durante o período barroco e declinado completa evidência da intenção do compositor, e que o paulatinamente durante os séculos seguintes, renasce no intérprete tenha a responsabilidade de decodificar essa séc. XX como disciplina de estudo para a compreensão informação e de representá-la nos mínimos detalhes em do quanto a música ocidental dependeu e depende de uma execução musical.” (DUNSBY, 1989, p.8) conceitos retóricos. (BUELOW, 2001. p.265)

Onde buscar estes elementos torna-se uma aventura de A associação da retórica com os processos composicionais descobertas, dada a infinidade de abordagens possíveis. musicais atingiu sua expressão mais conhecida no Escolhê-las, selecioná-las, optar por esta ou aquela período barroco, com a Teoria dos Afetos. Desta teoria, dependerá da necessidade do momento, do nível de interessa-nos um aspecto muito específico e talvez o profundidade requerido para uma dada execução e de mais difundido: o das figuras musicais. vários outros fatores, e o ponto crucial que devemos manter em mente, frente a essa diversidade é que Em Der General-Baβ in der Komposition (1728), Heinichen amplia “[...] toda análise, todo discurso sobre a música é uma a analogia com a retórica para incluir os loci topici, elementos construção simbólica”. (NATTIEZ, 2003, p.11) padrões retóricos disponíveis para ajudar o orador a descobrir tópicos – ou seja, idéias – para um discurso formal. Os loci topici são categorias racionalizadas de tópicos dos quais idéias podem surgir para guiar a invenção. (BUELOW, 2001, p.266) 2 - Coerência e coesão Para podermos localizar e compreender os mecanismos A estas figuras são atribuídos, eventualmente – embora pelos quais Villa-Lobos exprimiu o que considerava arbitrariamente, às vezes, – sentidos e significados sentimental e a tristeza que tudo permeia, temos que emotivos, emocionais ou imagéticos, conotativos de uma lançar mão de duas ferramentas que nos auxiliarão a relação metafórica – repetições melódicas, intervalos, desvendar alguns aspectos da análise dos Choros nº.5. silêncios e dissonâncias – que, se por um lado nos dificultam a especificidade das atribuições, por outro nos A primeira será a que nos permite configurar os elementos facilitam a compreensão das grandes leis de percepção: que constituem os padrões de referência do discurso o reconhecimento dos elementos que constituem e musical e que concedem coerência ao texto do compositor. conferem coerência ao texto. E embora não seja do escopo A estes elementos, Nattiez se refere como “[...] grandes leis deste artigo uma abordagem dos processos retóricos da percepção: localização de repetições, periodicidades, aplicados ao texto musical, algumas figuras específicas paralelismos, delimitação – pelo ouvido – de entidades ajudarão a nortear alguns aspectos relevantes para a autônomas distinguíveis por contrastes, silêncios ou construção de uma interpretação, objetivo importante marcadores de seção, captação da continuidade e dos para a consolidação da execução da obra. prolongamentos.” (NATTIEZ, 1989, p.16) O que deve ter movido Villa-Lobos ao afirmar que “tudo Estes pontos de apoio distribuem-se ao longo da trajetória é triste” e mencionar “canções de lamento” é algo difícil, temporal da obra e, durante a execução, dialogam entre si, praticamente impossível de se avaliar, mas essa visão um

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tanto romântica e estereotipada do povo brasileiro assume (Mi maior); segue-se uma seção em que motivos e incisos proporções interessantes na medida em que refletem uma dos dois temas são desenvolvidos (Desenvolvimento); o postura e uma atitude muito pessoais de um compositor primeiro tema (Reexposição) retorna sem repetição. A não que soube captar essa alma brasileira de uma maneira reexposição do segundo tema e a ausência de uma Coda tão expressiva. Como Villa-Lobos captou esta alma, como nos remete a uma impressão de interrupção deliberada, organizou estes sentimentos e os estruturou numa obra principalmente com a brusca irrupção do grande arpejo tão popular e cativante é o que discutiremos a seguir. dos compassos finais. A ausência – aquilo que fica somente na memória – pode ser comparada, metaforicamente, à 3 - Análise saudade, e este fato torna-se muito relevante no que diz A abordagem analítica dos Choros nº.5 será distribuída respeito à alma brasileira. entre quatro planos – formal, harmônico, rítmico e melódico – visando mais uma tomada panorâmica que Villa-Lobos às vezes se tornou alvo de críticas quanto a uma perscrutação microscópica. Procurando não cair sua negligência em relação ao aspecto formal, criando na superficialidade, procurei abranger os pontos mais aos borbotões da inspiração sem se preocupar muito com significativos destes elementos em seu conjunto, sem os moldes formais, como, por exemplo, pontua Squeff: deter-me na profundidade e quantidade de detalhes – “Em qualquer compêndio de música contemporânea, uma análise excessivamente detalhista de cada plano aliás, lê-se sobre Villa-Lobos o que seus defeitos fugiria ao escopo deste trabalho. Alguns dados são normalmente induzem: que fez uma música caótica – aproximados e não serão discutidos em detalhes, para não ainda que poderosa; [...] que nunca limitou sua inventiva comprometer a visão geral proposta nesta abordagem. em prejuízo evidente da qualidade de sua produção.” Seguindo a ordem do maior para o menor, do mais geral (SQUEFF, 1983, p.57) para o mais específico, procurei desvendar um impulso gerador organizado numa estrutura coerente. Mário de Andrade concorda com essa posição em relação às obras de longa duração, mas defende as peças menos O objetivo é organizar os elementos principais que desenvolvidas, comparando-o a Schumann: “A expressão sustentam o desenrolar do discurso musical, proporcionando formal em que a personalidade dele floresce com maior um quadro geral que identifique as relações internas mais identidade, é a seriação de peças curtas, que não exijam fundamentais. desenvolvimento temático, e cuja estrutura interna se concreta em elementos rítmicos, dinâmicos e melódicos”. De um ponto de vista geral, a obra baseia-se num “[...] (apud COLI, 1998, p.176) padrão estrutural de melodias acompanhadas [...] o ostinato tem função preponderante de sustentação e Este é exatamente o caso dos Choros nº.5, e se observarmos ordenação do discurso musical, extrapolando a função de sua divisão formal, podemos perceber que há uma ordem acompanhamento de melodias”. (LAGE, 1991, p.72) Este estabelecida com certo rigor. Podemos dividi-lo da é um padrão freqüentemente utilizado por Villa-Lobos seguinte maneira: 32 compassos da Exposição (24 do para criar uma atmosfera, um ambiente muito peculiar, primeiro tema e 8 do segundo) mais 32 compassos do distribuído em planos sonoros distintos que se mesclam Desenvolvimento, mais 16 compassos da Reexposição, o e se sobrepõem, criando ao mesmo tempo unidade, que nos revelaria uma proporção aproximada de 2 : 2 : 1 contraste, dinamismo e suporte para o desenrolar da (32 + 32 + 16). trama temática. Relacionadas a aspectos de simetria, as divisões de 3.1 - Plano formal (forma e proporções) meio, terço e dois terços são muito conhecidas e A respeito dessa obra, Mário de Andrade comenta que: utilizadas e representam organizações simples derivadas “Não só a forma dessa obra-prima é muito perfeitamente provavelmente de influências advindas de processos conseguida, como o seu tecido temático é duma utilizados na retórica – apresentação, desenvolvimento e unidade e duma contextura esplêndida. E até mesmo conclusão – em relação à exposição e desenvolvimento inteligentemente sutil em certas soluções. Não há um só de idéias (SOUZA, 1995b, p.12). elemento melódico que esteja solto e sem razão”. (apud COLI, 1998, p.175) Menos conhecido e envolvendo relações mais sutis e complexas, o conceito de Seção Áurea tem atraído a Alma Brasileira está estruturada numa forma A B C A – atenção de diversos pesquisadores em relação a sua na verdade uma variação da forma A B A, em que a parte provável influência, consciente ou não, sobre compositores C é uma expansão da seção B, exercendo a função de e ouvintes. Define-se Seção Áurea como a divisão de Desenvolvimento. Olhando-se com mais cuidado para o um segmento de tal forma que o segmento menor está esquema formal, percebe-se que a obra se configura dentro relacionado ao segmento maior na mesma proporção de uma estrutura que se aproxima muito da forma-sonata: em que o segmento maior relaciona-se com o segmento a primeira seção (A) apresenta um tema, na tonalidade total, postulada por Euclides, em seus Elementos, como principal da peça (Mi menor), seguida de uma curta seção divisão de meio e extremo. (MADDEN, 2005, p.7; FETT, (B), apresentando uma melodia no tom homônimo maior 2006, p.157; ADAMS, 1996, p.243) 1

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Em relação às divisões e relações entre as partes, veremos, para evocar, em algumas passagens, o aspecto eventos significativos recaem sobre pontos mais popular de simplicidade harmônica. proporcionais bem delimitados: a seção áurea encontra-se próxima do compasso 50 – auge do Mário de Andrade aponta, embora sem explicar, que “Na Desenvolvimento; a metade da obra encontra-se maioria dos casos, a harmonia tem pouca importância próxima do compasso 38 – início do Desenvolvimento; na música popular”, considerando-a “pobre por demais” o primeiro terço encontra-se próximo ao compasso – entendendo-se pobre, aqui, por simples (ANDRADE, 25 – início da seção B; o segundo terço, próximo 1928/62, p.49). do compasso 50 – coincidente com a seção áurea. Outros eventos importantes acontecem a dois A primeira seção gira em torno da tônica menor e está quintos da obra – compasso 32, coincidente com estruturada sobre a cadência perfeita (Ex.3a e Ex. 3b). o início da transição para o Desenvolvimento – e a quatro quintos, no compasso 65, com o início Como podemos ver, a tônica dos primeiros quatro da reexposição do primeiro tema (Ex.1). Ainda é compassos se expande com a primeira inversão, no interessante notar que a simetria encontrada entre a compasso 5. O VI grau do compasso 6 tanto pode ser soma dos compassos em tonalidade maior e menor considerado um prolongamento da tônica como uma é a mesma (40 + 40 compassos) (Ex.2). antecipação da subdominante (iv e ii), denominadas pelo termo preferencial de pré-dominantes. O acorde do 3.2 - Plano harmônico primeiro tempo do compasso 8 pode funcionar como uma Como já mencionado, não abordarei a análise específica dominante individual da dominante (V) alterada, ou como de acordes isolados, mas o substrato geral que serve uma apojatura tripla do acorde de dominante, mantendo de esteio para o desenvolvimento dos temas e seções. um eixo enarmônico Mib – Ré#. Embora Villa-Lobos utilize conformações acordais ambíguas e complexas, com muitas dissonâncias A seção B funciona como contraste com a seção A, tanto na agregadas, a concepção estrutural tonal, nesta obra, é configuração melódica quanto na estruturação harmônica, relativamente simples no que se refere à utilização dos girando em torno da oscilação Tônica-Dominante. Mesmo o campos harmônicos. Esta aparente simplicidade é um vi grau do compasso 31 não altera este diálogo, nem tumultua recurso utilizado pelo compositor provavelmente para o ambiente de placidez, funcionando como extensão da não sobrecarregar a fluência do discurso musical e, como Tônica (sexta do acorde acrescentada sobre o I grau).

Proporções Compasso Evento Seção áurea 50 Auge do Desenvolvimento 1/2 38 Início do Desenvolvimento 1/3 25 Início da seção B 2/3 50 Seção áurea 2/5 32 Início transição para o Desenvolvimento 4/5 65 Início Reexposição

Ex.1 - Quadro de proporções nos Choros N.5 de H. Villa-Lobos. (A localização dos compassos é aproximada)

Ex.2 – Plano estrutural dos Choros n.5 (forma e proporções).

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Ex.3a – Configuração harmônica da seção A dosChoros n.5.

Ex.3b – Plano harmônico da seção A dos Choros n.5.

Ex.4 – Plano harmônico da seção Desenvolvimento dos Choros n.5.

O Desenvolvimento (Ex.4) é uma expansão da seção em 3.3 - Plano rítmico modo maior, ainda que a atmosfera geral soe menor. A inspirada e perspicaz brasilidade de Villa-Lobos Esta sensação se deve ao fato de que toda a seção de manifesta-se através de figurações rítmicas baseadas Desenvolvimento é uma expansão do ii grau e de que o em danças populares e em ostinatos que ajudam a criar auge desta seção recai sobre o vi grau (que equivale à um ambiente sonoro denso e dinâmico que permeia relativa menor da tonalidade principal – Do # menor). toda a obra e sustenta o discurso musical, unificando as seções. No início desta seção, a simultaneidade das terças maior (acorde) e menor (melodia) sobre o ii grau confere uma Nos Choros nº. 5, o suporte rítmico baseia-se em duas ambigüidade à função deste acorde: não podemos saber se estruturas simples (Ex.5) e contrastantes que criam ele funciona como apenas um ii grau ou como a dominante tanto uma atmosfera de embalo, de suave balanço, na da dominante. Em todo caso, seu papel no âmbito geral seção A e na seção B, quanto de intenso dinamismo, do desenvolvimento é cadencial, transformando toda a no Desenvolvimento. Estas estruturas rítmicas são seqüência numa ampla cadência expandida. constituídas pela célula 3 + 3 + 2, e por uma figuração Em resumo, o Plano geral harmônico reduzido, de toda a que Mário de Andrade vê como marcha: “A marchinha obra pode ser assim configurado: central [...] foi criticada por não ser brasileira. Quero só saber o porquê”. (ANDRADE, 1939/91, p.25) i (ii)­­­­­­­­­ V i A respeito da postura de Villa-Lobos em relação à grafia Exposição Desenvolvimento Reexposição de ritmos, torna-se interessante transcrever um trecho de

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Ex.5 – Estruturas rítmicas básicas dos Choros n.5.

Ex.6 – Melodia da seção A dos Choros n.5.

Ex. 7 – Incisos melódicos (Intervalos de segunda) – dos Choros n.5.

um delicioso diálogo ocorrido entre Mário de Andrade e 3.4 - Plano melódico Elsie Houston, em 10 de Junho de 1943: Como vimos, os três planos anteriores são construídos de forma a fornecer um pano de fundo consistente que — Mas qual é a teoria do Villa? emolduram e realçam a melodia. A experiência de Villa- — Ele lá tem teoria! Mas garante que o cantador se move Lobos com seresteiros e orquestras de cinema, foliões e estritamente dentro do compasso. músicos populares permitiram que ele pudesse unir uma — Eu sei. Já ouvi ele dizer isso, jurando que é possível grafar todo e qualquer ritmo. Veja os Choros nº 5. extrema complexidade própria da música erudita com a — Não seja idiota, Mário. Então você acha que a execução estrita da simplicidade característica da música popular. grafia rítmica do Villa pode dar o movimento – eu falo movimento, hein! – da alma brasileira? (apud COLI, 1998, p.44, 229) O tema da seção A (Ex.6) é uma melodia em que a contigüidade intervalar e a amplitude centrada no âmbito O aspecto mais interessante da obra reside justamente de uma oitava proporciona um caráter lírico, sentimental, nessa necessidade de grafar a espontaneidade que remete a uma intimidade contida. da defasagem que ocorre entre melodia e acompanhamento, tão comum na música cantada. O que chama a atenção já de início – e que contribui Assim, a complexidade que Villa-Lobos estabelece ao para conferir à melodia o caráter “choroso”, herdado mesclar o ritmo sincopado da primeira seção com a das serestas e das modinhas – são os intervalos de 2ª melodia em tercinas do primeiro tema, estabelecendo descendente – apojaturas (Ex.7). diferentes planos sonoros, torna a execução deste trecho particularmente difícil do ponto de vista técnico. Sintetizando as repetições, simplificando as reiterações, Além disso, a figura se expande e cria uma aceleração obtemos uma configuração como a do Ex.8, onde podemos na seção de Desenvolvimento, num ritmo que lembra notar o surgimento do intervalo de terça descendente o maracatu, o samba, o batuque e até o cateretê, Dó-Lá (compasso 6), que, como veremos, assumirá uma imprimindo dinamismo e vigor a toda a estrutura. importância grande no Desenvolvimento.

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Organizando a frase segundo seu direcionamento O segundo tema (Ex.12) possui um caráter que lembra uma melódico, podemos também notar sua simetria (Ex.9), cantiga de ninar, que é provido tanto pela reduzida extensão que se constitui de impulsos ascendentes e descendentes da melodia (quase não ultrapassa uma quinta) como pela e nos permite, a esta altura, dividi-la em três eixos – o presença do intervalo de terça descendente, características primeiro ascendente; o segundo central, em torno de Sol- freqüentes em muitas canções infantis – presentes, Fá#, e o terceiro descendente, simétrico ao primeiro: por exemplo, em cantigas de roda como Cai, cai, balão; Carneirinho, carneirão; Atirei o pau no gato e muitas outras. Sintetizando os eixos (Ex.10), chegamos a uma configuração que nos explica as relações surgidas e Se observarmos a condução inferior da melodia – decorrentes das apojaturas e a estrutura simétrica os pontos de apoio ou notas de repouso – podemos fornecida pelos três eixos melódicos: notar uma semelhança muito interessante com a condução harmônica do Desenvolvimento (ver Ex.4), um Finalmente, podemos ainda abstrair dessa síntese o motivo paralelismo que dificilmente será notado durante uma gerador básico que originou toda a frase, constituído de execução, mas que adquire uma importância relevante dois impulsos – ascendente e descendente – sobre a no processo de estabelecimento da coerência interna do tônica, a partir da apojatura, como mostra o Ex.11: discurso (Ex.12).

Ex.8 – Redução da linha melódica da seção A (com incisos e impulsos) dos Choros n.5.

Ex.9 – Eixos melódicos da seção A dos Choros n.5.

Ex.10 – Eixos melódicos da seção A dos Choros n.5, reduzidos (Apojaturas)

Ex.11. Âmbito geral da frase e direcionalidade dos eixos melódicos da seção A dos Choros n.5.

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Ex.12 – Plano melódico da seção B dos Choros n.5.

Ex.13 – Plano melódico do Desenvolvimento dos Choros n.5 (compassos 34 – 64). Incisos A (terças) e B (segundas).

O Desenvolvimento é composto de um novo motivo, mais dramático, sucedendo-se e sobrepondo-se e criando construído sobre e derivado dos incisos já apresentados planos sonoros distintos, provocando uma intensificação e tanto no primeiro tema quanto no segundo tema (Ex.13) – as um adensamento da textura. Do ponto de vista da construção, segundas (apojaturas) e terças descendentes. Os intervalos de o Desenvolvimento desempenha aqui uma função muito segunda (demarcados por círculos) e de terça (demarcados análoga ao Desenvolvimento da forma-sonata, reiterando a por quadrados) descendentes assumem aqui seu aspecto afirmação inicial a respeito da forma geral da obra.

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4. Considerações finais O objetivo principal desta análise foi tentar encontrar Devo reiterar que essas imagens não são estanques e subsídios na partitura que corroborassem as afirmações nem devem esgotar as possibilidades interpretativas. Elas do ponto de vista pessoal do compositor. Sua percepção auxiliam na formação de uma concepção interpretativa, íntima do que considera a alma brasileira, sua visão da possibilitando ao intérprete criar uma imagem mental tristeza inerente ao povo brasileiro são os elementos que coerente e coesa da obra musical. o motivam a buscar no tema folclórico ou infantil, na dança e nos ritmos populares os padrões que espelham Mas a estratégia formal em relação ao que poderia ter esta postura. A busca de tais subsídios justifica-se não por sido – mais do que a estrutura final que se apresenta – é mero reducionismo, mas por apresentar uma visão ampla, a maior e mais profunda manifestação deste retrato da embora simplificada de elementos internos que darão alma brasileira: a saudade do passado que se ausenta, suporte a uma execução mais consciente por parte do a ausência do esperado presente refletem a nostalgia intérprete. Esses elementos tornam-se pontos de apoio e mais íntima do interior que se expressa e se manifesta referência para a condução do discurso musical e podem na obra. Ainda é Mário de Andrade que reconhece esta servir de inspiração ao intérprete durante a execução. qualidade na exuberância e na espontaneidade com que os elementos populares fluem de sua música: “Há Assim, a obra atinge o objetivo desta busca porque uma generosidade esplêndida na obra dele, um total apresenta, de maneira singela e objetiva, através de figuras desprendimento de qualquer economia pequeno- musicais simples, alguns padrões arraigados em nosso burguesa, a volúpia descuidada de todas as aventuras e de inconsciente: a) a apojatura descendente como retrato todas as sinceridades explosivas da imaginação criadora”. do suspiro ou do lamento, e, portanto, da nostalgia e do (apud COLI, 1998, p.176) sentimentalismo1; b) a terça descendente como uma das manifestações possíveis do infantil e da inocência e c) a Villa-Lobos consegue atingir magistralmente – com a estrutura harmônica simples, solidamente fundamentada objetividade dos elementos mais simples – o objetivo nos processos tonais de encadeamentos, como maneira maior do propósito estético platônico: integrar a unidade de ser do músico popular. na diversi­dade e a diversidade na unidade.

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Leitura recomendada ADAMS, Courtney S. Erik Satie and Golden Section analysis. Music and Letters, vol. 77/2, May, 1996: 242-252. DOCZI, György. O poder dos limites: harmonias e proporções na natureza, arte e arquitetura. São Paulo: Mercuryo, 1990. FETT, Birch. An in-depth investigation of the Divine Ratio. The Montana Mathematics Enthusiast. Vol. 3, nº 2, 2006 (157-175). HOWAT, Roy. Debussy in proportion: a musical analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. MADDEN, Charles. Fib and Phi in music: the golden proportion in musical form. Salt Lake City: High Art Press, 2005. MAUS, Fred Everett. Narratology, narrativity. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. New York: Oxford University Press, 2001. 2nd. ed. Vol. 17: 641-643.RINK, John. In respect of performance: the view o musicology. Psychology of Music. Vol. 31 (3): 303 – 323. SANTIAGO, Diana. Proporções nos Ponteios para piano, de Camargo Guarnieri: um estudo sobre representações mentais em performance musical. Tese. Doutorado em Música. Universidade Federal da Bahia, 2001. SANTIAGO, Diana. Proporções nos Ponteios de Camargo Guarnieri: um estudo sobre representações mentais em performance musical. Em Pauta. Revista do Programa de Pós-Graduação em Música da UFRGS. Vol. 13, nº 20, Junho, 2002. p. 143-185. TATLOW, Ruth; GRIFFITHS, Paul. Numbers and music. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. New York: Oxford University Press, 2001. 2nd. ed. Vol. 18: 231-236.WHITTALL, Arnold. Form. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. New York: Oxford University Press, 2001. 2nd. ed. Vol. 9: 92-94.

Notas 1 Estudos e detalhes mais aprofundados sobre aspectos e propriedades matemáticas dos números relacionados à Seção Áurea podem ser encontrados em DOCZI, 1990; HOWAT, 1983; SANTIAGO, 2002; MADDEN, 2005. 2 Pense-se, por exemplo, na importância das apojaturas no Prelúdio do Tristão e Isolda, de Wagner, ou na ária Erbarme dich, da Paixão Segundo Mateus, de Bach ou no Crucifixus da Missa em si menor, também de Bach.

Carlos Alberto Assis é pianista e compositor, formado em piano pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, onde é professor de Linguagem e Estruturação Musical (Harmonia), Biologia Aplicada à Música e Piano. Mestre em Música – Execução Musical pela Universidade Federal da Bahia. Em 1998, classificou-se em 2º lugar no I Prêmio de Composição Guerra Peixe, da Escola de Música Villa-Lobos, no Rio de Janeiro. Em 2000, classificou-se em 3º lugar, no III Prêmio de Composição Guerra Peixe, da mesma escola. Integrou o corpo docente de diversos Festivais e Oficinas de Música (Curitiba, Londrina, Maringá, Cascavel, entre outros) e participou como pianista co-repetidor da montagem de diversas óperas, no Brasil e no exterior. Em 2005, apresentou a Integral das Sonatas para piano, de Beethoven. É também médico formado pela Faculdade Evangélica do Paraná, com especialização em Homeopatia e Acupuntura e professor e praticante de Tai Chi Chuan.

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Um perfil de formação e de atuação de professores de piano de Porto Alegre

Karla Dias de Oliveira (UFRGS, Porto Alegre) [email protected]

Regina Antunes Teixeira dos Santos (UFRGS, Porto Alegre) [email protected]

Liane Hentschke (UFRGS, Porto Alegre) [email protected]

Resumo. Este trabalho apresenta os resultados de um survey interseccional realizado com 104 professores de piano atuantes de Porto Alegre. Com relação à formação, cerca de 60% dos professores pesquisados possuem uma formação acadêmica na área de Música e menos da metade cursou o Bacharelado em Piano. A maioria dos professores considera ter aprendido a ensinar na prática e um terço da amostra alega seguir o modelo de seus professores. Quanto à atuação, os locais mais destacados são: a própria casa, seguido da escola de música e da casa do aluno. Os resultados revelaram que os professores investigados parecem aproximar-se dos modelos de professor improvisado, professor artesão e professor como profissional (RAMALHO, NUÑEZ e GAUTHIER, 2004). Palavras-chave: professor de piano, perfil de formação, perfil de atuação, profissionalização do ensino.

Professional training and practice profile of piano teachers in Porto Alegre (Brazil)

Abstract. This paper presents the results of a cross-sectional survey conducted with 104 piano teachers in Porto Alegre (Brazil). Concerning the professional training, about 60% of the interviewed teachers possessed an academic degree in Music, and less than half of them were Piano undergraduates. Most of the teachers considered that they have learned how to teach within their daily practice and one third followed the model provided by their previous piano teachers. Regarding their professional practice profile, most of the participants teach at home, followed by those who work in music schools or at the student’s home. The results revealed that the investigated teachers could be described according to what RAMALHO, NUÑEZ & GAUTHIER (2004) named as improvised, artisan and professional teacher models. Key Words: piano teacher, professional training profile, professional practice profile, teaching professionalization.

1 – Introdução Pesquisas recentes têm abordado aspectos vinculados à instrumento (FREDRICKSON, 2007). No Brasil, SCOGGIN temática de professor de instrumento. Sob a perspectiva (2003) discutiu aspectos que influenciam o processo do profissional, vêm sendo discutidos aspectos como o de ensino e aprendizagem de instrumentos de cordas, uso de estratégias de ensino de renomados professores- apontando a existência, muitas vezes, de amadorismo artistas (SCHIPPERS, 2006; DUKE; SIMMONS, 2006); a de alguns professores e escassez de oportunidades para perspectiva de ser professor ao longo da carreira de músico reciclagem. Assim, a literatura, se por um lado aborda (BAKER, 2005a, 2005b, BENNET; STANBERG, 2006); a a experiência do músico instrumentista trazida para a experiência de ensino no progresso e na qualidade de prática de ensino do instrumento, traz também a discussão performance de iniciantes (HENNINGER; FLOWERS; de como a experiência de ensino de instrumento pode COUNCILL, 2006); abordagens no ensino particular de desempenhar um fator de aprimoramento da prática e de instrumento (Lancaster, 2003; Wallace 2004). Do performance do instrumentista ao longo de sua carreira ponto de vista do estudante de instrumento, pesquisas têm profissional. Contudo, a literatura revela ainda como a abordado a mudança de direção na formação profissional atividade de ensino não parece estar presente nos planos de instrumentista para professor de instrumento (MILLER; dos estudantes/instrumentistas, que não cogitam em BAKER, 2007), as crenças de estudantes de conservatórios serem professores de instrumento. Um fato até certo britânicos, atuantes como professores de instrumento ponto alarmante, haja vista que inexiste um mercado (MILLS, 2004) e a percepção de estudantes universitários de trabalho promissor que garanta o sustento restrito a sobre sua atuação como professor particular de atividades de solista e/ou de instrumentista profissional.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.20, 91 p., jul. - dez., 2009 Recebido em: 17/06/2008 - Aprovado em: 13/02/2009 74 OLIVEIRA, K. D.; SANTOS, R. A. T.; HENTSCHKE, L. Um perfil de formação e de atuação de professores de piano... Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.74-82.

Na literatura nacional, certos autores (SANTOS, 1998; descrevem professores de instrumento que criaram uma LOURO, 1997, 2004; CERESER, 2003; DEL BEN, 2003) tradição de ensino e aprendizagem (vide, por exemplo, salientam a importância de inclusão de bases pedagógicas CHIANTORE, 2001). Em música, sempre existiu e existem na formaçao inicial do instrumentista profissional para renomados professores de instrumento. Entretanto, não o ensino de seu instrumento. Nesse sentido, algumas se pode negligenciar que para o ensino do instrumento, investigações revelaram tanto a falta de formação inicial existem possibilidades diferenciadas de engajamento para a docência do instrumento de professores graduados profissional, e a literatura acima mencionada evidencia em música, como as fontes empregadas para suprir suas tais perspectivas. Nesse sentido, POPKEWITZ (1995) carências (SANTOS, 1998; DAL BELLO, 2004; LOURO, considera que a palavra “profissão” encerra diferentes 2004; ARAÚJO, 2005). SANTOS (1998), na sua pesquisa significados, dependendo do tempo e do contexto. Para realizada com 19 professores de piano, constatou que um o autor, “profissão é uma palavra de construção social, pouco mais de três quartos dos entrevistados, durante a cujo conceito muda em função das condições sociais formação acadêmica, “não receberam qualquer tipo de em que as pessoas a utilizam” (POPKEWITZ, 1995, p. formação na área de pedagogia do instrumento durante o 38). Assim, falar de professor de instrumento implica curso de graduação” (p. 66). A autora coloca que a maioria considerar uma gama ampla de profissionais que lidam, dos entrevistados sentiu dificuldades em suas atuações de alguma forma, com o ensino de instrumento, para os como professores de piano. Por outro lado, ARAÚJO (2005) mais diversos fins e nos mais diversos níveis. Conhecer constatou que a formação específica para o ensino pode esse universo, não é uma tarefa fácil e conclusiva, pois vir a ser adquirida ao longo da carreira, por intermédio inexistem registros em bases oficiais do número de de diversas fontes. LOURO (2004) observou que muitos profissionais atuantes nesse tipo de profissão. Com base dos 16 professores de instrumento entrevistados em nessas observações, este artigo visa relatar parte dos sua pesquisa não receberam nenhum tipo de formação resultados referentes ao perfil de formação e de atuação específica para o ensino do instrumento. Contudo, eles de professores de piano em Porto Alegre (RS), obtidos alegaram que os fundamentos para suas práticas de ensino através de um survey. eram advindos dos modelos de seus antigos professores, das experiências pedagógicas adquiridas ao longo de suas 2 – O Método carreiras, de cursos de formação pedagógica realizados O método utilizado foi o survey, cuja seleção da amostra posteriormente, assim como de sua atuação profissional obedeceu aos seguintes critérios: ser professor de piano e como instrumentista. A falta de formação pedagógica estar atuando na cidade de Porto Alegre. A amostragem específica para o ensino de instrumento, demonstradas foi não-probabilística, do tipo “bola de neve” (snowball), pelas pesquisas acima mencionadas, aponta uma postura na qual se partiu de um pequeno número de professores, do instrumentista que considera quase que intrínseca a que funcionaram como informantes de outros potenciais sua função de ser músico, que tem de saber de lidar com participantes com as mesmas características, que por atividades de ensino de instrumento, mais na qualidade sua vez, indicaram outros (COHEN; MANION, 1994, p. de um problema a ser resolvido e superado na prática, 89). A amostragem foi encerrada no momento que os do que um conhecimento de base a ser fomentado e, professores indicados já faziam parte da amostra inicial. posteriormente, desenvolvido. A amostra foi composta por 104 professores de piano que responderam um questionário auto-administrado. Este foi BOZZETTO (1999) registrou que a maioria dos professores composto por 31 questões, sendo que 26 eram de caráter particulares de piano entrevistados considera essencial ter fechado, com opções de múltipla escolha. Cinco questões titulação, diploma ou um curso específico, em conjunto do questionário tiveram caráter aberto, ou seja, questões com uma formação de qualidade. Por outro lado, CANDÉA onde o professor teve que utilizar suas próprias palavras (2005), constatou que os profissionais que atuam em para articular sua resposta. conservatórios de música em Porto Alegre não consideram a formação acadêmica como sendo essencial à prática 3 – Resultados e Discussões de ensino. Outro aspecto também apontado na literatura De acordo com os dados coletados, a maioria dos brasileira diz respeito às motivações à escolha da prática professores de piano de Porto Alegre (63%) são mulheres. docente. Percebe-se que, muitas vezes, a escolha do Com relação à faixa etária, a distribuição de idades exercício da atividade docente não acontece como primeira levantada foi extremamente ampla, abrangendo o opção de trabalho. DAL BELLO (2004, p. 61) observou que intervalo de 19 a 82 anos. Contudo, a grande maioria alunos de Bacharelado em Instrumento muitas vezes são (72%) dos professores possui idade compreendida entre pouco conscientes em relação à opção pela docência. 20 e 49 anos. Tendências semelhantes foram apontadas pela UNESCO. No caso do ensino fundamental e médio A temática de investigação sobre o professor nacional, cerca de 80% dos professores são mulheres de instrumento exige alguns questionamentos e (UNESCO, 2004, p. 44). No sistema regular de ensino, a posicionamentos, uma vez que esta profissão enquadra- faixa de idade constatada foi de 26 a 45 anos (UNESCO, se entre aquelas fortemente sustentadas por uma 2004, p. 47). A idade dos professores brasileiros assemelha- prática de transmissão oral (e aural). Inúmeros se àquela reportada em países em desenvolvimento, exemplos na literatura, ao longo da História da Música, como Argentina e Venezuela, diferindo daquela relatada

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em 1994 para países desenvolvidos onde prevaleciam De acordo com o Ex.1, mais da metade dos professores docentes com idade acima de 40 anos: França (60%) ou pesquisados (60%) possuem uma formação acadêmica Alemanha (70 %) (VALLE, 2002, p. 221). na área de Música. Contudo, na subárea específica do instrumento, menos da metade cursou Bacharelado em 3.1 Caracterização da formação Piano (42%). Além disso, dos professores que responderam Segundo os dados obtidos, a maioria dos professores ter formação pedagógica (60%), três grupos puderam ser (68 %), na categoria de formação superior, possui curso identificados: aqueles que mencionaram possuir essa superior completo. O Ex.1 apresenta os dados distribuídos formação especificamente no instrumento (14%), outros segundo os diferentes tipos de formação superior. A em pedagogia geral (17%) e um outro grupo que destacou categoria “Formação pré-universitária” compreende os a formação em ambas as categorias (29%). níveis fundamental, médio e técnico.

Ex.1 - Percentagem de professores, segundo a formação (N = 104).

Ex.2 - Percentagem de professores, segundo os tipos de formações específicas adquiridas (N = 104. Os professores puderam escolher mais de uma alternativa).

Ex.3 - Percentagem de professores, segundo a aprendizagem do ensino do piano (N = 104. Os professores puderam escolher mais de uma alternativa).

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Na Inglaterra, MILLS e SMITH (2003, p. 3), em (iii) cursos de aperfeiçoamento musical – como cursos pesquisa envolvendo 134 professores de instrumento, de harmonia, arranjo, percussão, regência, áudio, constataram que 83% dos entrevistados possuíam tecnologia, musicografia Braille, oficinas com formação universitária em Música ou grau equivalente músicos variados (45%); (conservatório musical, por exemplo), dentre os quais, (iv) cursos ligados à educação musical – como Projeto 55% eram habilitados especificamente para o ensino Poema (Projeto da Orquestra Sinfônica de Porto do instrumento. Ao refletir sobre os dados dessas duas Alegre – OSPA – de Educação Musical Aplicada), realidades, percebemos uma preocupação significativa Projeto Brincando de Cantar na Escola, cursos de dos professores ingleses com a qualificação específica música para a escola (12%). para o ensino do instrumento, aspecto esse contemplado em apenas 14% da população de professores de piano Em termos de tipo de formação continuada almejada de Porto Alegre. por esses professores, os cursos mais citados foram de pedagogia do piano, improvisação, música popular e arranjo. Quanto aos tipos de formações específicas relacionadas ao Importante destacar que, além dos cursos mencionados, um piano, a maioria dos professores citou que a aula particular número significativo de professores gostaria de realizar a fez parte da sua formação (68%), seguida da graduação em graduação e a pós-graduação em música (25%). De acordo música (67%), conforme ilustra o Ex.2. Cabe salientar que com as respostas, observamos o interesse dos professores essa questão apresentou várias alternativas onde o professor em melhorar a sua atuação. Como destaca o professor P82, pôde marcar todas as que fizeram parte da sua formação. ele gostaria de “Cursos dirigidos especialmente a como dar aula de Piano e teclado cada vez melhor” (questão III 22, No que diz respeito à aprendizagem da docência do piano, P82). Apenas 8% dos professores relataram que não têm a maioria dos professores respondeu várias alternativas, interesse em realizar algum tipo de curso, como mostra conforme o Ex.3. alguns exemplos abaixo:

De acordo com o Ex.3, apenas 34% dos professores Atualmente não penso mais em curso formal para complementar consideram que aprenderam a ensinar a partir da minha formação. Assisto muitos concertos, ouço muita música (CDs/DVDs/Vídeos, etc.), tenho um grande acervo, enfim, mais formação pedagógica formal. Vale ressaltar que 9% dos toda a vivência que tenho praticamente diária com música, já é professores mencionaram que aprenderam a ensinar suficiente! (questão III 22, P3). exclusivamente na prática e 6%, seguindo unicamente o modelo de seus professores. Os demais mencionaram Nenhum. O melhor que a vida acadêmica me deixou foi a várias combinações de respostas. Na alternativa capacidade de estudar sozinho ou de formar grupos operativos de pesquisa (questão III 22, P32). ‘Outros’, os professores citaram que aprenderam a ensinar em masterclasses, na reflexão sobre a prática, Não tenho muito interesse na área. Estou mais voltado para como bolsista durante a faculdade, em estágio como performance atualmente (questão III 22, P72). professor de piano em grupo em escola de música, em encontros de professores. Percebemos que a De acordo com os posicionamentos acima, podemos maioria dos professores aprendeu a ensinar na prática, perceber que as três situações mencionadas referem- seguindo o modelo de seus professores e uma pequena se a exemplos de: (i) professores que se demonstram percentagem mencionou que a aprendizagem se deu satisfeitos com sua experiência formal adquirida (ii) na formação pedagógica. Sobre esse aspecto, SOUZA professores que, nas condições atuais, se sentem (1994, p. 44-45) mostra a sua preocupação em relação capazes de buscar complemento para a sua formação a esse professor que tem a própria experiência como (sozinhos ou em grupo), não sentindo necessidade de modelo de ensino, pois, para essa autora, sem fazer uma formação continuada para o ensino de instrumento; avaliação crítica, “a habilidade de dar aulas não melhora (iii) professores que não têm a docência do instrumento automaticamente com a prática de longos anos, ao invés como principal interesse profissional. disso, podem aparecer efeitos contrários e indesejáveis ao aperfeiçoamento [...]” (SOUZA, 1994, p. 45). Na relação entre a formação pedagógica e gênero, constatou-se que 73% das mulheres investigadas A formação continuada dos professores de instrumento foi tiveram algum tipo de formação enquanto que entre também objeto de investigação. Nos últimos cinco anos, os homens, somente 33%. O teste estatístico do Qui- 80% dos professores alegaram participar de cursos, oficinas, quadrado mostra que existe uma dependência entre as seminários ou encontros na área de música. Na análise das variáveis gênero e formação pedagógica, pois o resultado respostas, a participação dos professores está voltada a: foi p = 0,007, onde as mulheres predominam com esse tipo de formação. Significância estatística também foi (i) cursos de aperfeiçoamento técnico e pedagógico encontrada na relação entre a faixa etária e a formação relacionados ao piano – como masterclasses, pedagógica, conforme o Ex.4. cursos de pedagogia do piano (40%); (ii) encontros, congressos, palestras e festivais de De acordo com o teste do Qui-quadrado, existe música (50%); associação entre a formação pedagógica e a faixa etária

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Ex.4 - Percentagem de professores por faixa etária, segundo a formação pedagógica (N = 104).

Ex.5 - Percentagem de professores, por tempo de atuação (N = 104).

dos professores (p = 0,002). De acordo com o Ex.4, a Esses dados demonstram que os espaços informais diferença dos professores que têm formação pedagógica de trabalho são significativos. Talvez o que ajude a cresce, em comparação aos que não têm esse tipo de explicar essa realidade, de acordo com a resposta de um formação, com o aumento da faixa etária. Isso parece professor, é o fato das escolas de música “serem poucas revelar que os professores, com o tempo, vão buscando e pequenas”, o que ajuda a tornar o mercado de trabalho este tipo de formação. A maioria dos professores, no sem “condições de absorver os profissionais existentes” início da sua atividade docente, não se considera com e “a opção de dar aulas particulares em sua própria casa formação pedagógica. ou deslocando-se para a residência do aluno” é uma possibilidade “para obter um ganho mais satisfatório” 3.2 – Caracterização da atuação (questão III 9 P, P49). O tempo de atuação dos professores varia de 2 meses a 50 anos. O Ex.5 apresenta os percentuais desses professores Os professores têm preferência em ministrar aulas, em cada faixa, englobando períodos crescentes de 5 anos. principalmente, para alunos adultos (89%) e adolescentes (88%), seguido de crianças (78%). A preferência pelos De acordo com o Ex.5, o maior número de professores alunos adultos parece refletir, por outro lado, o interesse (23%) tem até 5 anos de experiência. Esse fato parece dessa faixa etária pelo aprendizado do piano. Esse revelar que a atuação como professor de piano se aspecto é reforçado por USZLER (1992) ao se referir aos configura uma opção de interesse como alternativa de adultos como uma população de alunos de música em trabalho, pois a maior concentração dos pesquisados crescimento. Em relação ao nível dos alunos, 92% dos está na fase de entrada ou estabilização na carreira pesquisados atendem alunos iniciantes, 88% os de nível (HUBERMAN, 1995). intermediário e 46% dos professores ministram aulas para alunos do nível avançado. Entre os locais de atuação mais destacados pelos professores se sobressaem: a própria casa (62%), seguido Com relação à utilização de algum material didático da escola de música (48%) e da casa do aluno (43%). específico com os alunos de piano, 77% dos professores

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afirmaram adotar algum tipo. Nessa questão, muitos interpretação, improvisação e composição para uma música professores mencionaram vários compêndios, em geral reprodutiva, com ênfase na técnica e na interpretação para iniciantes (94%), seguido para alunos intermediários (McPHERSON; GABRIELSSON, 2002, p. 99-100). (72%) e avançados (43%). Dentre as obras mais citadas, encontram-se aquelas de Alice Botelho e Leila Fletcher. Analisando principalmente as obras de um mesmo autor mencionadas por diferentes professores que as Esses resultados se mostram semelhantes aos de BOZZETTO utilizam com alunos do mesmo nível, percebemos que há (1999). Nos níveis intermediário e avançado, os autores diferenças nas concepções dos professores a respeito dos mais destacados pelos professores foram os do repertório níveis iniciante, intermediário e avançado. Esse ponto se “erudito tradicional”, como: Bach, Czerny, Chopin, Hanon, evidencia quando diferentes professores citam as obras Schumann, Cramer, Beethoven, Clementi e Burgmüller, de Bach, no nível intermediário – os títulos incluem ‘Ana entre outros. Alguns desses métodos (Leila Fletcher, Czerny, Magdalena Bach’, ‘23 Peças Fáceis’, Invenções a Duas Hanon, por exemplo) foram identificados por SANTIAGO Vozes’ e ‘Invenções a Três Vozes’. Podemos entender essas e FALCÃO (1995) como aqueles empregados na formação diferenças quando consideramos o nível de formação de 22 professores de piano atuantes em instituições específica (piano) que os professores tiveram. públicas do país. Em relação à música popular e jazz, poucos professores se referiram a algumas obras (4%). Segundo os professores, a escolha do repertório, na Entre os materiais mencionados, salientamos: ‘Método de grande maioria (93%) é efetuada em negociação com o Arranjo para Piano Popular’ de Rosana Giosa; ‘Songbooks’ aluno, conforme ilustra o Ex.6. de Almir Chediak; ‘The Jazz Piano Book’ de Mark Levine e ‘Harmonia e Improvisação’, sem mencionar o autor. De acordo com o Ex.6, os dados parecem apontar para um tipo de professor mais flexível, que, de alguma forma, Uma análise1dos materiais mais citados pelos professores - leva em consideração o aluno. Na alternativa ‘Outros’, de Alice Botelho e Leila Fletcher –, evidencia que, no volume acordo com as respostas, há uma preocupação por parte 1 de cada série, a abordagem da leitura é semelhante: dos professores com relação à seleção do repertório. notação convencional, pauta dupla nas duas claves, Abaixo, selecionamos a resposta de dois professores que partindo do Dó central nas duas mãos. USZLER (1992), entendem que a escolha do repertório de interesse do se referindo ao desenvolvimento dos métodos de piano aluno é importante para mantê-lo motivado: no século XX, destaca que, primeiramente, o foco estava no processo de ensino da leitura. Para McPHERSON e Depende do nível, objetivos do aluno e gosto. Acho que o repertório pode manter o aluno motivado pela aula ou pode afastá-lo, se não GABRIELSSON (2002, p. 99) esta é uma característica do for bem escolhido (questão III 17 P, P43). “estilo ocidental” de ensino de instrumento, iniciado a partir da metade do século XIX. Segundo esses autores, Em geral, sugiro algumas opções e o aluno escolhe. Algumas até então, o ensino do instrumento passava oralmente vezes, os alunos pedem para aprender determinada peça e, sempre que possível, disponibilizo a partitura porque considero muito de geração a geração e o objetivo dos professores era importante o aluno tocar peças que goste (questão III 17 P, P37). desenvolver um músico mais global, através da integração da técnica com outras habilidades musicais, como leitura, Nesses dois depoimentos, percebemos que, muitas vezes, improvisação e composição. Devido ao desenvolvimento da o entendimento do que seja negociar com o aluno varia imprensa, foi possível tornar as publicações relacionadas à entre os professores. Na primeira citação, a escolha do música mais acessíveis, tanto pela quantidade de materiais repertório vai depender do nível, dos objetivos e do gosto quanto pelo preço. A partir desse momento, com esse novo do aluno. Já no segundo depoimento, as sugestões de material impresso, a ênfase no ensino do instrumento repertório partem do professor e o aluno pode escolher mudou do desenvolvimento de habilidades relacionadas à entre as obras sugeridas.

Ex.6 - Percentagem de professores, segundo a escolha do repertório (N = 104. Os professores puderam escolher mais de uma alternativa).

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3.3 – Perspectiva como profissão ensino do piano ao aceitarmos que qualquer um que A grande maioria dos professores (80%) exerce outras saiba tocar piano pode ensinar? Mesmo que isso possa atividades além do ensino do instrumento, e somente ocorrer de maneira informal, o número significativo de 17% vivem unicamente com a renda relacionada a essa professores que se insere neste grupo acaba trazendo atividade. Para 59% deles, o exercício desta profissão uma necessidade de reflexão e de mobilização na área do equivale até a metade ou menos da renda mensal ensino do piano sobre essa problemática. total. Esses dados demonstram que a docência do instrumento não é a principal fonte de remuneração Entre os professores que têm uma formação superior de desses professores. Bacharelado em Piano (42%), 13% não se consideram com formação pedagógica. Esse grupo de professores Em relação ao mercado de trabalho, 56% dos professores parece aproximar-se do modelo de professor artesão, o consideram restrito. Talvez seja esse um dos motivos segundo classificação de RAMALHO, NUÑEZ e GAUTHIER para os professores buscarem outras atividades para (2004), pois dispõe de conhecimentos específicos do complementarem sua renda. Mesmo que um pouco mais instrumento a ser ensinado, sem formação específica da metade dos professores considere o mercado restrito, para o ensino. Não se pode negligenciar que esse tipo de 82% dos pesquisados destacaram que o desejo pessoal foi formação pode vir a ser deficiente, pois os professores o que os levou a escolher esta profissão. acabam construindo seu método de ação a partir de suas próprias experiências, nem sempre fundamentado. Até Os dados revelam que quase a metade dos professores de que ponto esses professores têm condições de lidar com piano entrevistados (49%) é filiada a alguma entidade alunos com diferentes perfis, diferentes faixas etárias e dentre esses, 35% possuem carteira de habilitação e diferentes níveis de desenvolvimento instrumental da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), embora a e musical? Até que ponto não existe uma reprodução maioria (74%) considere importante ser membro de dos processos de ensino e aprendizagem instrumental algum sindicato, associação ou entidade relacionada recebidos, isentos de uma atitude crítica e reflexiva? Esses à atividade de professor de piano. Esse fato parece questionamentos permanecem como potencial ponto de revelar certo desconhecimento dos professores quanto reflexão e de investigação a ser contemplados em pesquisas à obrigatoriedade de ser filiado a essa instituição para subseqüentes. fins do exercício dessa atividade profissional. De acordo com a OMB, órgão federal que fiscaliza o exercício Entre os professores que possuem graduação no da profissão de músico (BRASIL, 1960), para exercer Bacharelado em Piano, 29% se consideram com formação a atividade de professor de instrumento é necessário pedagógica. De acordo com RAMALHO, NUÑEZ e GAUTHIER possuir a carteira de habilitação dessa instituição, pois (2004), entendemos que esse grupo de professores se o Art. 29 da referida lei classifica o professor particular aproxima do modelo de professor como profissional, de música como músico profissional. pois eles, além de terem os conhecimentos disciplinares sustentados pelo conhecimento dos elementos técnicos/ 4 – Modelos de professor de piano: tendências performáticos do piano, possuem uma formação específica na amostra investigada para o ensino do instrumento. Esses dois pré-requisitos Na amostra coletada, 58% dos professores não têm parecem fundamentais para a condição de professor de uma formação superior no instrumento. Assim, esse instrumento num âmbito profissional. grupo de professores sem formação específica em Piano parece estar relacionado ao modelo de professor 5 – Considerações Finais improvisado, segundo RAMALHO, NUÑEZ e GAUTHIER O modelo de professor improvisado, que surgiu como (2004). Nesta perspectiva, GAUTHIER et al (1998, p. preponderante na amostra investigada aponta a 20) chamam de “ofício sem saberes”, pois não há uma necessidade de ações voltadas à regulamentação para formalização e qualificação direcionada as tarefas que a categoria profissional de professor de instrumento. A são próprias a essa profissão. OMB regulamenta o exercício da profissão de músico (BRASIL, 1960), considerando, dentro das classificações Duas perspectivas de formação apontam para o modelo de músico profissional, a possibilidade de ser professor de professor improvisado. A primeira diz respeito ao de música. De acordo com a atuação dessa instituição senso comum onde se afirma que todo instrumentista é é quase que uma conseqüência natural do músico potencialmente um professor de seu instrumento, o que ser professor de instrumento. Percebemos que este colabora para que se perpetue esse modelo de professor. A procedimento ajuda a perpetuar a noção de profissão segunda refere-se a algum tipo de formação em instâncias improvisada, desconsiderando a complexidade dos não profissionalizantes e essa formação faz com que eles processos de ensino e aprendizagem instrumental que se considerem habilitados e capazes de serem professores precisaria ser levada em conta por esse profissional. deste instrumento. Mesmo que esses professores tenham adquirido formação específica no instrumento em outros Embora um pouco menos da metade dos professores contextos, até que ponto, por algumas exceções, não (49%) sejam filiados a alguma entidade de classe, existe se estaria perpetuando uma idéia de improvisação do o interesse da maioria (74%) em estarem vinculados a

80 OLIVEIRA, K. D.; SANTOS, R. A. T.; HENTSCHKE, L. Um perfil de formação e de atuação de professores de piano... Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.74-82.

uma organização profissional. Acreditamos que o grupo Finalizando, juntamente com essa organização do grupo na qualidade de classe organizada poderia construir um de professores de piano, seria importante refletir sobre código de ética visando conferir um sentido orgânico à a necessidade de fomentar mais cursos superiores de atividade docente, pois de acordo com RAMALHO, NUÑEZ Música que contemplem no seu currículo, um corpo e GAUTHIER (2004), esse é um dos pontos essenciais na de conhecimentos que proporcione a formação do perspectiva da profissionalização dos professores. profissional para o ensino do instrumento.

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Nota 1 Não foi realizada uma análise aprofundada de cada material, pois este não foi o objetivo deste trabalho.

Karla Dias de Oliveira é professora de piano e teoria e percepção musical na “Estação Musical – Espaço de Música e Artes”, em Porto Alegre. É Mestre em Educação Musical pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Especialista em Educação Musical pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP) e Graduada em Piano pela UFRGS.

Regina Antunes Teixeira dos Santos graduou-se em Bacharelado em Piano, na UFRGS, tendo, posteriormente, realizado cursos de especialização junto a Université Toulouse Le Mirail (Toulouse, França) e Universidade Ueno Gakkuen (Tóquio, Japão). Em 2007 concluiu doutorado sob orientação da Profa. Dra. Liane Hentschke junto ao Programa de Pós-Graduação em Música da UFRGS. Em pesquisa, sua área de interesse concentra-se na interconexão entre prática instrumental e conhecimento musical.

Liane Hentschke é Doutora em Educação Musical pela University of London, Inglaterra. Professora Titular do Departamento de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e Presidente da International Society for Music Education-ISME. Pesquisadora Nível 1 do CNPq, e está desenvolvendo um projeto de pesquisa multinacional intitulado, “Os Significados da Música para Crianças e Adolescentes em Atividades Musicais Escolares e Não-Escolares”, com sede nos Estados Unidos. Possui publicações de artigos científicos e capítulos de livros no exterior e no Brasil. É autora de oito livros publicados no Brasil sobre educação musical, quatro dos quais publicados pela Editora Moderna de São Paulo. No âmbito internacional têm sido convidada a proferir palestras e cursos na Inglaterra, Holanda, Estados Unidos, Espanha, Hong Kong, Argentina, Chile e Venezuela.

82 SANTIAGO, P.; MEYEREWICZ, A. B. Considerações peircinanas sobre o gesto na peformance do Grupo UAKTI. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.83-91.

Considerações peircinanas sobre o gesto na peformance do Grupo UAKTI

Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte) [email protected]

André Borges Meyerewicz (UEMG, Belo Horizonte) [email protected]

Resumo. Este artigo lida com alguns conceitos e significados de gesto em música. A partir de uma definição de alguns dos aspectos que integram o gesto na performance musical e da perspectiva semiótica de Charles Sanders PEIRCE (2000), apresentamos, segundo nossa própria percepção, uma observação qualitativa da gestualidade na performance dos músicos do Grupo UAKTI, buscando compreender seus possíveis significados. Propomos reflexões sobre a função e importância do gesto na performance musical e suas implicações para a pedagogia dos instrumentos. Palavras-chave: gesto, performance musical, semiótica, Grupo UAKTI.

Percian considerations on gesture in the performance of the Grupo UAKTI

Abstract. This article deals with some concepts and meanings of gesture in music. Based on the definition of some aspects that integrate gesture in musical performance as well as on the semiotic perspective of Charles Sanders PEIRCE (2000), we offer, according to our own perceptions, a qualitative observation of the gestural performances of the musicians that form the Grupo UAKTI in order to understand their possible meanings. We reflect on the function and importance of gesture in musical performance and its implication for the pedagogy of the instruments. Key Words: gesture, musical performance, semiotics, Grupo UAKTI.

1. A título de introdução: alguns conceitos e Numa perspectiva sociológica, gesto é algo inteligível aspectos do gesto e culturalmente aprendido. Por exemplo, para MAUSS O que é gesto em música? Quais são os aspectos do (1974), gestos, postura e movimentos corporais gesto de um músico instrumentista, observáveis na representam mais do que estímulos biológicos; provêem, performance musical? O que estes gestos representam antes de modelos culturais, de processos de aprendizado e comunicam para os espectadores? Que vantagens a que variam de acordo com o contexto sociocultural ao observação da performance gestual de um músico traz qual o indivíduo pertence. Para MENDES E NÓBREGA para a performance e para a pedagogia da performance? (2004, p. 127), gestos são “campos de visibilidade da Estas são as perguntas que motivaram a elaboração do articulação entre natureza e cultura”. Muito embora presente artigo. a produção de gestos seja comum a todos os seres humanos, tais gestos “expressam as singularidades Uma definição de dicionário1 se refere a gesto como individuais e culturais apresentando linguagens sendo movimento de todos os segmentos do corpo, específicas” (MENDES; NÓBREGA, 2004, p.127). As voluntário ou involuntário, que revela “estado autoras ainda acrescentam: psicológico ou intenção de exprimir ou realizar algo”; A historicidade do corpo faz que haja modificações e nossos o gesto é definido como “aceno, mímica expressão gestos adquirem significados novos mediante as experiências singular, aparência, aspecto, fisionomia maneira de que vêm ocorrendo. E é através desses gestos que somos se manifestar; atitude, ação”. Porém, à medida que capazes de expressar muitos desses símbolos e esconder outros, formando, portanto, a linguagem do corpo; o corpo está sempre contextualizamos o conceito de gesto, ele se torna um se reorganizando. E por possuir espacialidade e temporalidade fenômeno complexo, envolvendo aspectos biológicos, próprias, cada corpo vai adquirindo percepções de acordo com o psicológicos e sociológicos. mundo que lhe é específico (MENDES; NÓBREGA, 2004, p.129).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.20, 91 p., jul. - dez., 2009 Recebido em: 21/08/2008 - Aprovado em: 05/04/2009 83 SANTIAGO, P.; MEYEREWICZ, A. B. Considerações peircinanas sobre o gesto na peformance do Grupo UAKTI. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.83-91.

No contexto musical, o conceito de gesto apresenta aspecto metafórico do gesto, que endossa a existência aspectos diversos. DELALANDE (In: ZAGONEL,1992, deste aspecto, referente à terceira instância de Delalande p.22; IAZZETTA, 2000, p.262) indica três níveis do (o gesto figurado). Ela aponta a diferença existente entre gesto em música: (1) O gesto que efetua, necessário uma simples gesticulação comportamental, por exemplo, para a produção mecânica do som; (2) O gesto que um aceno de mão, e uma gesticulação artística: acompanha, referente aos movimentos produzidos pelo corpo do instrumentista, mesmo aqueles que não Gesticulação, como parte do nosso comportamento, não é arte. se relacionam diretamente à produção sonora e (3) O É simplesmente movimento vital... Apenas quando o movimento que foi, inicialmente, um gesto genuíno, é executado a partir da gesto figurado, relacionado a aspectos metafóricos do imaginação, pode tal gesto se tornar um elemento artístico, uma gesto musical. dança-gestual. Desta forma, ele se torna uma forma simbólica livre, que poderá ser usada para transmitir idéias de emoção, As duas primeiras instâncias indicadas por DELALANDE consciência e premonição, ou poderá ser combinada a outros gestos ou incorporada a eles, para expressar uma intenção física e - o gesto que efetua e o gesto que acompanha - estão mental (LANGER, 1953, p.175). certamente relacionadas à natureza cinestética e sensoriomotora da produção sonora. Cinestesia se refere A função expressiva do gesto é foco de discussão em ao “sentido da percepção de movimento, peso, resistência CAMURRI et al. (2004). Para os autores, o gesto está e posição do corpo, provocado por estímulos do próprio associado ao domínio afetivo/emocional; gesto pode ser organismo”.2 DELALANDE afirma que: considerado como “expressivo”, tendo o propósito de comunicar conteúdos expressivos, relacionados a aspectos O performer usa corpo e gestos não apenas para produzir sons, mas também para recebê-los. O performer percebe com as mãos, tais como sentimentos, afeto e intensidade da experiência boca, respiração, cavidade toráxica e assim por diante. Entre emocional (CAMURRI et al., 2004, p.1-2). O gesto na produção e recepção, uma estreita imbricação é estabelecida, performance musical é multimodal por excelência, pois bastante comparável àquilo que pode ser observado na infância usa os canais auditivo e visual na captação de conteúdos (DELALANDE, 2003, p.314). expressivos (CAMURRI et al., 2004, p.3). No que diz respeito à terceira instância, o gesto figurado, DELALANDE sugere que uma forma ou ZAGONEL (1992) endossa a visão do gesto como produtor contorno sonoro, melódico ou rítmico, pode ter uma de significados e de expressividade. Para ela, gesto natureza sinestésica. Sinestesia se refere à “relação difere de movimento; enquanto movimento se refere que se verifica espontaneamente (e que varia de acordo a deslocamento ou mudança de posição no espaço em com os indivíduos) entre sensações de caráter diverso, função do tempo, não envolvendo um sentido expressivo, mas intimamente ligadas na aparência (por exemplo, “o gesto tem um objetivo preciso, de produzir ou determinado ruído ou som pode evocar uma imagem simbolizar” (ZAGONEL,1992, p.10). A autora distingue particular; um cheiro pode evocar uma determinada cor, dois tipos de gesto, o físico e o mental: etc.); cruzamento de sensações; associação de palavras O gesto físico é a ação corporal que, em contato com um objeto, ou expressões em que ocorre combinação de sensações provoca uma reação sonora. Mas o gesto não se limita a uma diferentes numa só impressão” 3 função técnica de produção de sons, por mais perfeita que seja: ele é, ao contrário, um elemento essencial do fenômeno de expressão Para o instrumentista, o simbolismo do movimento é musical. [...] O gesto mental se produz no pensamento, está sempre presente no músico enquanto compositor ou intérprete. O baseado na experiência gestual: intérprete, a partir da leitura da partitura, imagina o movimento sonoro desejado e associa o gesto físico necessário à emissão Há uma transição contínua entre a experiência sensoriomotora desse som. (ZAGONEL, 1992, p.15-17). e o simbolismo; isto pode ser um dos pontos chave para a explicação do significado musical. Em música e, especialmente, na música do mundo ocidental, a representação do movimento Segundo ZAGONEL (1992, p.20-1) o gesto de um tem sido considerada uma das bases do significado (DELELANDE, intérprete participa intimamente na produção do 2003, p.313). fenômeno sonoro dos instrumentos acústicos; ele é inseparável da percepção tátil e cinestésica do Quando escutamos um violinista, podemos perceber os instrumentista e se torna fator determinante na movimentos de subida, descida e aceleração do arco; “o construção da percepção e da musicalidade. Enfim, primeiro significado relativo ao som de um instrumento ZAGONEL vê o gesto como o intermediário entre o é produzido pelo gesto” (DELALANDE, 2003, p.314). pensamento musical e seu produto. Segundo DELALANDE, (2003, p.16) sempre usamos metáforas sinestésicas para descrever sons. Quando Ao enfatizar a importância da conexão existente ouvimos música, constantemente usamos metáforas, entre som e imagem, IAZZETTA endossa a natureza relacionando sons a elementos não sonoros; porém, multimodal do gesto: para vários indivíduos, diferentes formas de escuta e diferentes formas de metaforização podem ser [...] a presença do músico e do instrumento no ato estabelecidas (DELALANDE, 2003, p.16). da performance representam algo por si mesmas. A realidade física, biológica e social dessa presença Encontramos em LANGER (1953) discussão sobre o empresta à performance musical, tão imaterial e

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intangível, uma espécie de materialidade. O corpo da alusão a símbolos pertencentes ao universo cultural se expressa ao produzir música através do gesto, do instrumentista e daquele que o observa. mapeando o visível e o audível dentro de uma mesma geografia (IAZZETTA, 1996, p.24). Importante é enfatizar que, para nós, autores deste artigo, todos estes aspectos da gestualidade de um Também para IAZZETTA, (1996, p.26; 2000, p.260-261) músico e quaisquer outros que possamos reconhecer o gesto exerce papel fundamental na produção de como existentes, não atuam de forma isolada. Todos estes sentido musical. Segundo ele, “[...] nós aprendemos a atributos do gesto estão integrados na interpretação compreender os acontecimentos sonoros com o auxílio de uma obra musical. Neste sentido, voltamos nossos dos gestos que produzem ou representam esses sons” olhares para o ser humano que toca um instrumento (IAZZETTA, 1996, p.26). O gesto incorpora múltiplos musical e para os possíveis efeitos de sua gestualidade parâmetros ao mesmo tempo. sobre seus espectadores. Uma vez que o ser humano é um ser psicofísico, holístico, integrado por diversas Detalhada tipologia de gesto foi proposta por CADOZ E instâncias - sensoriais, emocionais, mentais, culturais, WANDERLEY (2000), a partir da comparação de diferentes espirituais, etc., consideramos que a sua gestualidade na definições provindas de diversos domínios, observando performance musical é de natureza psicofísica. O gesto suas vantagens e desvantagens, bem como suas limitações passa por seu corpo, visível ao espectador. Mas sendo o e abrangências. Um dos aspectos discutidos pelos sistema humano um sistema psicofísico, não é apenas autores refere-se à noção de gesto enquanto portador de o corpo que produz o gesto, mas o todo psicofísico de informação, sendo que a natureza de tal informação não é seu ser. Portanto, a realização gestual de um músico única nem absoluta, dependendo do objeto em si e do ponto instrumentista torna-se uma ação psicofísica, envolvendo de vista do observador (CADOZ; WANDERLEY, 2000, p.72). um processo cognitivo complexo e integrado, no qual Outro aspecto relevante se refere ao gesto em conexão ocorre uma conexão entre as instâncias de vida do ser e com as posturas físicas assumidas por seu executor. O os diferentes aspectos que seu gesto pode conter. gesto não pode ser considerado como independente da postura que possibilita sua correta realização, uma vez Certamente, o estudo de uma obra musical evolui que ele está associado à dinâmica do movimento (CADOZ; gradualmente, passando por diversas etapas e níveis WANDERLEY, 2000, p.72), que é realizada pelo corpo como de aprendizado. Na performance dessa obra, o músico um todo. Assim, gesto e postura coexistem. instrumentista pretende apresentar o resultado integrado de seu estudo, fornecendo a seus espectadores uma CADOZ E WANDERLEY (2000, p.73-4) consideram que interpretação unificada. O espectador irá, certamente, a referência ao comportamento corporal tende a ser o captar alguns dos significados dessa performance, de forma denominador comum entre a maioria das definições consciente ou subliminar, parcial ou holística. Mas em geral, atribuídas ao gesto. Para eles, quando a performance é consistente, o espectador reconhece a presença de sentido musical, unidade, coerência. A palavra gesto [...] necessariamente faz referência ao ser humano e ao seu comportamento corporal - sendo o gesto útil ou não, significativo ou sem sentido, expressivo ou inexpressivo, consciente Enfim, a gestualidade do instrumentista forma um conjunto ou não, intencional ou automático/reflexo, completamente inseparável do todo de seu sistema psicofísico e do todo controlado ou não, aplicado a um objeto físico ou não, efetivo ou de sua performance. Ela pode revelar a busca por um não, ou sugerido (CADOZ E WANDERLEY, 2000, p.73-4). significado que represente sua experiência no momento da performance. Experiência no amplo sentido do termo, 2. Gesto como ação psicofísica com tudo que uma experiência humana pode abarcar - As discussões apresentadas acima revelam diferentes sensações cinestésicas, sentimentos, idéias, concepções, perspectivas do gesto na performance musical. Ele é intenções, vivências, significados musicais e simbolizações. produtor e transmissor do fenômeno sonoro, fundamental Na perspectiva daquele que toca um instrumento, o gesto para a realização do som no instrumento acústico e engendra uma relação entre uma intenção musical, um para a execução de abordagens técnicas essenciais à movimento físico e “algo”, um algo artístico; o gesto é realização de determinadas passagens musicais. O gesto “gesto” porque estabelece relações entre eventos, entre envolve a percepção tátil e cinestésica do instrumentista, instâncias que podem ser percebidas e captadas por nós bem como sua atitude postural como um todo. O gesto - relações entre o movimento físico e outra coisa. O gesto é portador da identidade subjetiva e particular do representa esta “outra coisa”, musical ou extra-musical. instrumentista, transmissor de conteúdos expressivos Apesar de compreendermos que a gestualidade se relacionados aos seus sentimentos, afetos e intensidade articule de forma integrada ao ser que a produz e à sua de sua experiência emocional. O gesto é também portador performance, ao observarmos tal performance, para uma da identidade cultural do instrumentista, envolvendo compreensão analítica, faz-se necessário um olhar que seus valores, costumes e comportamentos vivenciados segmente vários de seus aspectos. Na multimodalidade, socialmente. Tal gesto torna-se transmissor de conteúdos reside nosso ponto de partida para a observação da ação especificamente musicais e também de conteúdos gestual na performance musical. Compreendemos que o simbólicos e metafóricos, que evocam a cultura através conceito de multimodalidade, proposto por CAMURRI at

85 SANTIAGO, P.; MEYEREWICZ, A. B. Considerações peircinanas sobre o gesto na peformance do Grupo UAKTI. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009, p.83-91.

al. (2004), pode ser ampliado, pois, além de apontar para a com NÖTH, (1995, p.67) objeto “é o segundo correlato forma multimodal de captar informação musical (auditiva do signo, corresponde ao referente, à coisa (prágma) e visual), o conceito pode aludir à superposição de camadas ou denotatum.” Em outras palavras, pode-se pensar no de significados potencialmente contidas no fenômeno objeto como idéias ou significados representados pelo musical e aos vários e diferentes aspectos que podem representamem. Como um exemplo, citamos o signo da ser foco da observação da gestualidade na performance cor preto como representação de luto. Por representamem musical. Assim, apesar de sua natureza holística, o gesto considera-se a cor que veicula a idéia (objeto) de luto. em música abrange vários níveis da percepção humana e Em NÖTH, (1995, p.71) encontra-se também a noção de atua de forma multimodal, como um canal de comunicação interpretante: “O terceiro correlato do signo que Peirce de significados simultâneos, que integram tempo e espaço. denominou interpretante é a significação do signo”. 4 Cada gesto específico, realizado por um instrumentista, pode ter sentido e propósito próprios e estimular o De um modo geral, consideramos a noção de interpretante espectador a captar determinada informação, musical ou associada às noções de representamem e objeto. não. Cada espectador, por sua vez, pode interagir com Voltando ao exemplo anterior, se temos a cor preta esse gesto de forma particular, captando significados que (representamem) que veicula a idéia de luto (objeto), condizem com sua própria condição. consideramos interpretante toda e qualquer razão ou contexto que permitem à cor preta veicular a idéia de Então, palavras acima citadas indicam uma forma multimodal luto. O interpretante, nesse caso, diz respeito à cultura, de ver o gesto em música - percepção tátil e cinestésica, aos costumes e histórias que sedimentaram a correlação atitude postural, sentimentos, afeto, experiência emocional, entre a cor e a idéia, neste caso, a cor preta à idéia de luto. metáfora, cultura, significação, informação e comunicação. Na relação entre representamem, objeto e interpretante Tais palavras nos levam a enfatizar as questões de concepção, percebemos o processo de significação, ou seja, a semiose. de função e de significação do gesto e a buscar uma visão que as integre: o gesto como signo. Neste sentido, Charles Uma vez esclarecido de forma breve o processo semiótico, Sanders Peirce pode nos fornecer, através da perspectiva ainda se faz necessário levar em consideração os graus semiótica, uma compreensão do gesto e suas relações com a fenomenológicos que sustentam o processo de semiose performance musical. proposto por Peirce. Segundo SANTAELLA (2002, p.7) entende-se por fenômeno qualquer coisa que aparece à 3. Gesto em música a partir da teoria semiótica percepção e à mente. Nesse sentido, a fenomenologia tem de Pierce por função apresentar as categorias formais e universais Devido à complexidade do pensamento e da arquitetura dos modos como os fenômenos são apreendidos pela teórica de Peirce, propomos de uma forma sintética uma mente. Para Peirce, são três as categorias fenomenológicas: abordagem ao conceito de signo. Encontra-se em PEIRCE primeiridade, secundidade e terceiridade. (2000, pág.36) uma breve definição: “signo é aquilo que, sob certo aspecto ou modo representa algo para alguém. [...] O “A primeiridade aparece em tudo que está ligado ao signo representa alguma coisa, seu objeto.” De acordo com acaso, possibilidade, qualidade, sentimento” (SANTAELLA, SANTAELLA (2000, pág.11) seria possível encontrar mais 2002, p.7). Neste sentido, fazemos então uma relação de 20 formulações ou definições do conceito de signo no entre o conceito triádico de signo e a primeiridade como decorrer dos oito volumes que formam o Collected Papers, categoria fenomenológica. A primeiridade faz com que a monumental obra de Charles Peirce. No entanto, em uma correlação entre um representamem e seu objeto seja uma formulação bastante simplificadora, SANTAELLA (2000, mediação subjetiva, pessoal, ligada ao sentimento. Um pág.11) fornece uma definição essencial: “Signo é alguma som musical ou uma seqüência de acordes, considerados coisa que representa algo para alguém”. como representamem podem evocar um sentimento (objeto) em quem os ouve. A relação entre som e De um modo geral, o processo de representação, chamado sentimento, neste caso, pode ser uma relação propiciada semiose, sustenta o conceito de signo, por mais amplo ou pelo grau fenomenológico de primeiridade, pois ouvintes complexo que seja tal representação. Pode-se, por exemplo, diferentes podem ter sentimentos diferentes em relação pensar em uma bandeira que representa um país, ou uma à sonoridade ou aos acordes. cor à qual são atribuídos significados (na cultura ocidental, preto representa luto, ou branco representa paz). Pode-se, Segundo SANTAELLA (2002, p.7) “a secundidade então, pensar o gesto em música: movimento corpóreo que está ligada às idéias de dependência, determinação possui significados, que representam algo diferente de si [...] singularidade”. No signo, quando a relação entre próprio (algo musical ou não). representamem e objeto se dá de uma forma singular, dependente, determinada, encontramos um signo Em Peirce encontramos também uma espécie de mediado por um grau fenomenológico de secundidade. estruturação da idéia de signo. Pode-se pensar no signo Por exemplo: o latido de um cachorro (representamem) composto em representamem, objeto e interpretante. percebido por nossos ouvidos nos veicula ao cachorro Segundo NÖTH (1995, p.66): representamem diz respeito que produziu o latido. Há uma relação de dependência, à materialidade perceptível do signo. Ainda de acordo determinação, factualidade entre o som e o animal.

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Ainda de acordo com SANTAELLA (2002, p.7) “a (2) Instância indicial: Quando a conexão entre o gesto e seu terceiridade diz respeito ao crescimento, inteligência”. significado se faz por uma relação de factualidade, o Apesar de tal afirmativa não nos parecer muito clara, gesto se dá por uma relação de secundidade. Neste caso, Santaella, no decorrer do texto, nos aponta para a o gesto se liga a aspectos especificamente musicais: terceiridade como o grau fenomenológico que engendra gesto e aspectos musicais se articulam em uma uma relação entre representamem e objeto mediado por relação física, “de fato”. A gestualidade do intérprete uma “lei”; entendemos aqui lei no sentido de convenção revela aspectos da materialidade da obra musical. Ex.: ou regra propiciada por um contexto cultural. Uma fraseado, estrutura formal, anacruse, ritmo, etc. marcha fúnebre, por exemplo, só pode ser entendida como tal devido a um contexto ou “lei” cultural que (3) Instância simbólica: Quando a conexão entre o engendra um correlato entre a marcha (representamem) gesto e seu significado se faz por uma relação e o sentido de morte e ritos funerais. mediada por aspectos culturais, o gesto se dá por uma relação de terceiridade. Neste caso, o Uma vez esclarecidos os conceitos de signos e graus gesto comunica significados simbólicos, revelando fenomenológicos, propomos uma forma de abordar aspectos que a cultura engendrou. O gesto o gesto musical com a intenção de identificar, a partir simbólico ultrapassa uma representação de idéias das categorias fenomenológicas propostas por Peirce, musicais. Ex.: movimentos circulares de corpo no os processos de semiose que correlatam gestos aos decorrer da performance podem ser lidos como seus sentidos ou significados. Se a relação entre o gesto movimentos simbólicos cujos significados dizem musical e seu significado se der por um correlato baseado respeito a conceitos culturais como significados na subjetividade, podemos pensar numa relação de ligados ao sagrado, idéia de eternidade, mito do primeiridade. Assim, pode-se dizer que o gesto sugere eterno retorno, dentre outros. um significado subjetivo, que pode diferir de individuo para indivíduo. Nesse caso, muitos dos gestos realizados Sugerimos que as três instâncias ou graus por um músico, tais como expressões faciais, movimentos fenomenológicos propostos por Peirce podem abarcar, aleatórios e gestos que exprimem sentimentos do de uma forma pragmática e sintética, muitos dos fatores intérprete, podem ter significados subjetivos em uma que têm formado os diversos conceitos de gesto em performance musical. música e podem nos ajudar a ver a situação do gesto na performance sob o ponto de vista do instrumentista No entanto, no decorrer da perfomance musical, há gestos e de seu espectador. Tais instâncias são inclusivas, ou que dizem respeito a questões da estrutura musical: gestos seja, a gestualidade de um músico/instrumentista será que revelam fraseados, articulações, dinâmicas. Neste caracterizada pela integração destes três aspectos, caso, há uma relação de factualidade entre o gesto e seus formando sua imagem psicofísica ou identidade significados: o gesto representa e indica aspectos da estrutura gestual global. Assim, no decorrer deste artigo, faremos musical. Pode-se então dizer que tal relação foi mediada em uma observação dos gestos e de seus significados na um grau fenomenológico de secundidade. Neste caso, tais perfomance gestual dos músicos do Grupo UAKTI a gestos “indicam” aspectos da estrutura musical. partir de tais instâncias. Tentaremos perceber em performances de peças musicais específicas do UAKTI Por fim, quando os gestos do intérprete adquirem um gestos que sugerem significados subjetivos (instância significado que se dá por um contexto cultural, tal relação subjetiva, grau fenomenológico de primeiridade); foi mediada por um grau fenomenológico de terceridade. gestos que indicam significados ligados à estrutura Ocorre aqui, então, um gesto simbólico. musical (instância indicial, grau fenomenológico de secundidade) e gestos que engendram significados Considerando a teoria de Pierce, podemos realizar a simbólicos (instância simbólica, grau fenomenológico observação da gestualidade na performance musical de terceiridade). através de três instâncias, a subjetiva, a indicial e a simbólica, discriminadas abaixo: 4. Observação e análise da performance gestual do UAKTI (1) Instância subjetiva: Quando a conexão entre o Apresentamos aqui o processo de observação das gesto e seu significado se faz por uma relação performances dos percussionistas Décio Ramos e subjetiva, o gesto se dá em uma relação de Paulo Santos, na peça “Trilobita” e do flautista Artur primeiridade. Se a relação for de ordem subjetiva, Andrés na peça “Krishna I”, que estão disponíveis no o gesto pode mostrar, dentre outras coisas, DVD intitulado UAKTI.5 Enfatizamos que o processo de características pessoais que são particulares de observação aqui empreendido leva em consideração os determinada pessoa. Ex.: movimentos particulares conceitos de Peirce e são conduzidos de acordo com as de um instrumentista ao tocar o instrumento. concepções particulares dos autores do presente artigo. Neste caso, também para o espectador, o gesto Outros observadores, bem como os próprios músicos, é percebido como um processo subjetivo entre certamente poderiam oferecer interpretações diferentes movimento e significado. das aqui apresentadas.

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As perguntas que motivaram nossa observação e indicial, pois tais movimentos indicam conexões com que procuramos responder ao longo desta seção são: estruturas musicais. (1) Que tipos de gestos nós observamos nas performances dos músicos do UAKTI, nas referidas Notamos, no entanto, que Décio realiza um gesto que peças? (2) Quais são as instâncias desses gestos que aponta para um significado que envolve um grau cultural nós poderíamos observar? (3) O que estes gestos simbólico (instância simbólica): o gesto em que ele pega representam e comunicam para nós? a mão de Paulo e a coloca sobre o instrumento, como que para conduzi-lo. Na cultura ocidental, o gesto de A trajetória metodológica qualitativa, adotada para a pegar na mão do outro, possui, simbolicamente, vários observação das performances, envolveu duas etapas significados. Porém, interpretamos tal gesto realizado por iniciais. Primeiramente, assistimos as performances Décio como referente à idéia de conduzir, levar, orientar das peças “Trilobita” e “Krishna I” buscando ter uma seu parceiro de performance. visão geral da gestualidade apresentada pelos músicos. A seguir, revimos as performances sucessivamente, Momento gestual 2: alternâncias e para obtermos uma descrição da gestualidade de cada simultaneidades sonoras um dos três músicos. Inserimos os gestos observados dentro das categorias específicas baseadas na teoria Depois de estabelecido o caráter lúdico no momento semiótica de Peirce (subjetiva, indicial e simbólica), gestual 1, a peça apresenta alternâncias e simultaneidades criando unidades significativas a partir das quais sonoras que sugerem um diálogo entre os músicos. pudéssemos explicar sua natureza e os significados Compreendemos que, em música, este referido diálogo que tais gestos tiveram para nós. pode abarcar a ocorrência de estruturas sonoras que podem se apresentar de forma alternada ou simultânea. Tal É importante enfatizar que nosso foco de observação diálogo se inicia com ataques alternados no instrumento foi a gestualidade dos músicos. Muitas vezes, mudanças por parte dos músicos. Gradualmente eles realizam da gestualidade pareceram acompanhar mudanças do ataques simultâneos nos instrumentos. Neste momento, aspecto formal das peças, mas isto não foi uma regra. para os nós, autores, não há ênfase numa gestualidade Portanto, nossa leitura aponta para grandes momentos que propicie significações num modo subjetivo (instância gestuais que podem estar relacionados, ou não, à estrutura subjetiva). Aparentemente, também não há gestualidade das peças. Para facilitar o entendimento das observações dos músicos que aponte para significados simbólicos que apresentaremos a seguir, optamos por designar os (instância simbólica). Há, então, uma prevalência de músicos apenas pelo seu primeiro nome: Décio, Paulo e gestualidade dos músicos associada à produção sonora e Artur. O leitor poderá compreender melhor os detalhes à estrutura musical, ou seja, tais gestos revelam aspectos de nossa observação se tiver acesso à gravação das da estrutura musical – gestos que indiciam estruturas performances em DVD. 6 musicais (instância indicial).

4.1 Gestualidade dos percussionistas Décio Momento gestual 3: ostinatos e solos Ramos e Paulo Santos em “Trilobita” Neste momento, não notamos gestualidades dos músicos que sugerem uma ênfase na instância subjetiva. O caráter Momento gestual 1: gestos de reconhecimento lúdico de diálogo permanece. Inicia-se um momento no do território sonoro qual um ostinato rítmico serve de base para um solo.

Este primeiro momento corresponde à introdução da Primeiramente Décio realiza um ostinato e Paulo um peça. Os músicos percutem o instrumento “Trilobita”, que solo. Depois, vice-versa. No final deste momento, há consiste num grupo de tambores formado por tubos de um acelerando que culmina na próxima seção da peça. PVC. Os tubos são cobertos por pele de cabra e se encaixam Para nós, parece não haver gestualidade dos músicos numa mesa de compensado de madeira.7 Gestos realizados que aponte para um significado simbólico. Neste por Décio e Paulo, tais como percutir diferentes lugares momento gestual, assim como no anterior, notamos do instrumento, simulações de percussões no ar, batidos uma prevalência de gestualidade dos músicos associada no microfone instalado acima do instrumento, batidas na à produção musical, portanto gestos indicadores de própria cabeça, sugerem uma espécie de reconhecimento do estruturas musicais (instância indicial). território sonoro, propondo um caráter de experimentação e uma atitude lúdica. Foram notados sorrisos e expressões Momento gestual 4: simultaneidade faciais de ambos os instrumentistas - Décio e Paulo - que a Aqui não notamos uma gestualidade dos músicos que nós, autores deste artigo, sugerem cumplicidade existente sugere uma ênfase nas instâncias subjetiva e simbólica. O entre eles, e também prazer e envolvimento. caráter lúdico de diálogo permanece. A partir do acelerando da seção anterior, os músicos chegam a um momento Evidentemente, além dos gestos lidos numa instância musical intenso: eles tocam simultaneamente ostinatos subjetiva, os músicos realizam gestos relacionados rítmicos, num crescendo e acelerando. Neste momento, à produção sonora no instrumento e expressão de nota-se algo interessante. Sílabas vocais são realizadas estruturas sonoras, que podem ser lidos na instância pelos músicos e parecem se relacionar às células rítmicas

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executadas no instrumento, reforçando-as e levando a psicofísico. O gesto de um músico também expressa suas música a um maior adensamento sonoro. Assim, notamos idéias e concepções musicais e, muitas vezes, idéias extra- uma prevalência de gestualidade associada à produção musicais, através do uso de símbolos e metáforas. Toda a musical, portanto indicial. gestualidade apresentada por um músico instrumentista na peformance se abre para inúmeras leituras, de acordo 4.2 Gestualidade do flautista Artur Andrés com diferentes observadores. O que nos propusemos no em “Krishna I” artigo foi oferecer nossa própria reflexão sobre o conceito de gesto embasados na perspectiva semiótica de Charles Momento gestual 1: gestos na introdução da peça Sanders Peirce. A partir de tal perspectiva, empreendemos Os três músicos executam esta peça, porém o solo é realizado uma observação qualitativa da performance gestual por Artur, na flauta transversal. Décio e Paulo tocam um dos músicos do Grupo UAKTI e inferimos potenciais instrumento chamado “Torre”. 8 O primeiro momento gestual significados de tal gestualidade. corresponde à introdução da peça. Décio inicia o movimento de girar o instrumento “Torre”, no silêncio. A seguir, Paulo O relacionamento estabelecido entre os percussionistas fere as cordas do instrumento com um sistema formado Décio Ramos e Paulo Santos na peça “Trilobita” nos por dois arcos. Os gestos executados por Décio e Paulo aponta para um diálogo musical que se estrutura em funcionam numa instância indicial, pois estão relacionados torno de perguntas e respostas. Este diálogo é claramente à produção sonora e à estrutura musical: uma sonoridade explicitado pelos gestos de ambos os músicos. Na em contínua modulação nos parâmetros altura, intensidade performance, ocorre intensa sincronicidade rítmica sendo e tempo (ritmo) é instalada por Décio e Paulo na “Torre” e a peça executada com grande apuro técnico e musical. permanece como base para o solo de flauta transversal que Igualmente, na peça “Krishna I”, Artur Andrés nos mostra será executado por Artur. Para nós, neste momento gestual, o gesto como resultado de uma integração dos diversos os gestos realizados pelos músicos estão em função das aspectos que compõem sua interpretação: o psicofísico, o estruturas musicais (instância indicial). musical e até o simbólico. A gestualidade dos três músicos do UAKTI nos revela um envolvimento holístico com o ato Momento gestual 2: gestos iniciais do flautista de tocar e de fazer música. Artur entra em cena tocando a flauta transversal, caminhando Enfim, a gestualidade dos músicos do UAKTI forma um lentamente. Para nós, numa instância subjetiva, este conjunto inseparável do todo de seu sistema psicofísico e do caminhar sugere leveza, além de favorecer a instauração todo de sua performance, consistindo numa ação psiofísica. de um caráter musical de introspecção. A seguir, numa Por outro lado, sua performance gestual evidencia a natureza instância indicial, Artur executa gestos de balanço do corpo multimodal do gesto em música, através dos diversos e movimentos de cabeça que indicam estruturas musicais, significados potencialmente suscitados ao espectador - tais como anacruses e desfechos de frases musicais. significados que nos foram revelados a partir da adoção

das três instâncias semióticas de Peirce, a subjetiva, a Momento gestual 3: gestos circulares indicial e a simbólica. Porém, é conveniente esclarecer que Artur inicia um lento movimento circular, girando o nossa leitura da gestualidade dos músicos do UAKTI revela corpo. Este movimento vai se acelerando, enquanto a apenas nossa percepção sobre as tendências gestuais destes melodia realizada na flauta continua. Nesse momento, músicos em momentos específicos de suas performances. o gesto de girar se integra à melodia e se liga a uma Outros observadores, assim como os próprios músicos, interpretação do tempo como uma vivência circular. poderiam oferecer interpretações bem diversas daquelas que Isto implica que, neste caso, o gesto tem um significado oferecemos aqui. Por outro lado, também compreendemos simbólico, pois em nossa cultura, movimentos circulares que as instâncias subjetiva e indicial são inerentes às dessa natureza remetem a simbologias tais como, performances musicais de qualquer intérprete. Já a instância vivência da totalidade do self, integração do self com simbólica, que suscita significados extra-musicais, nem tudo que o rodeia, percepção circular de vida, mito do sempre estará presente em uma interpretação. eterno retorno, eternidade, misticismo. O gesto circular diminui gradualmente até o fim da peça. No último Agora, nos perguntamos: Quais são as aplicações momento, Artur realiza um último gesto que nos remete práticas da observação da gestualidade de músicos novamente para a instância simbólica: ele aponta a instrumentistas, tais como a que empreendemos aqui, flauta para cima, o que poderia ser interpretado como para a performance e para a pedagogia da performance uma simbologia de transcendência. musical? Para a performance musical, fica destacado que a performance ao vivo envolve uma função multimodal; 5. Comentários finais o gesto é fator preponderante nesta função. Quando Neste artigo, focamos o conceito de gesto no contexto da o processo de expressão e significação musical é bem performance musical. Compreendemos que a gestualidade sinalizado em termos de gesto, poderá haver otimização de um músico instrumentista pode revelar inúmeros da comunicação entre músico e espectador. O movimento significados associados à sua experiência no momento físico na performance tem um conteúdo de linguagem da performance, envolvendo todo o seu organismo que pode veicular informações musicais e extra-musicais.

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Na instância indicial, o gesto se liga factualmente a musicais específicas. Assim, o gesto é parte integrante aspectos da estrutura musical. Por ser assim, o gesto da técnica musical, compreendendo que um conceito pode revelar aspectos da estrutura de uma obra musical abrangente de técnica envolve os aspectos motores e os não tão perceptíveis auditivamente, ou enfatizar tais aspectos musicais de uma performance. Este ponto nos estruturas, que se tornam mais “visíveis”, mais facilmente leva a outros dois, propostos por ZAGONEL (1992, p.20- apreensíveis pelo espectador. Além do mais, como explica 1): o gesto como intermediário entre o pensamento DELALANDE (2003, p.315), a coerência gestual está ligada musical e seu produto e o gesto como fator determinante à expressão. Um músico/instrumentista poderia, por na construção da percepção e da musicalidade. Na exemplo, realizar movimentos para indicar anacruses de pedagogia da performance, muito se poderia fazer para frases musicais, articulações rítmicas, dinâmicas. Músicos unificar o desenvolvimento técnico de um aluno em cameristas poderiam realizar gestos de regência com o conexão com os aspectos musicais a serem trabalhados, intuito de comunicação mútua, etc. uma vez que há uma correspondência entre o processo motor, a compreensão musical e o efeito sonoro a ser Por outro lado, pode haver aspectos extra-musicais numa alcançado, aliados às questões de linguagem e estilo performance, tornando-a, ao mesmo tempo, música e musical. O processo de ensino e aprendizado de um símbolo. Neste caso, o gesto pode propor metáforas que instrumento musical deveria integrar estes aspectos de o som não pode revelar, tais como a metáfora do círculo forma mais holística possível e talvez, através do estudo identificado por nós na performance do flautista Artur do gesto na obra musical, esta integração seja em muito Andrés na peça “Krishna I”. Ademais, frequentemente há favorecida. A afirmação de CADOZ E WANDERLEY (2000, elementos subjetivos na performance de qualquer músico p.72) endossa este ponto de vista: “O comportamento instrumentista, que apontam para suas características gestual gera um todo complexo, um sistema composto individuais no ato de tocar, tais como expressões faciais por múltiplas funções que são articuladas e combinados que sugerem sentimentos e sensações. Em suma, o entre si. Uma separação ou divisão excessiva de seus músico instrumentista revela suas concepções sonoras componentes poderia levar à perda de sua substância”. e vivências psicofísicas, relativas à performance, através de movimentos expressos pelo corpo: o conjunto destes Dentro da visão holística que propomos neste artigo, movimentos torna-se ações gestuais psicofísicas, sejam compreendemos que não existe na performance musical elas subjetivas, indiciais ou simbólicas, formando algo que possamos considerar como apenas “produção sua identidade gestual global. Mesmo na audição de sonora”, pois toda produção do som está ligada uma gravação, tal identidade poderia ser revelada ao factualmente a gestos que têm algum tipo de significado. ouvinte, como esclarece DELALANDE (2003, p.315): “ao Uma simples produção sonora talvez represente apenas ouvir sons fortes ou suaves produzidos por um músico uma ação mecânica; porém, mesmo uma simples ação instrumentista, somo capazes de inferir o gesto que foi mecânica deveria existir factualmente em função da adotado para tal realização porque, através da nossa produção de uma idéia sonora. No ato de fazer música educação sensoriomotora, nos tornamos aptos a traduzir num instrumento, entendemos que não é produtivo um som em gesto”. pensar num movimento físico que “produza” um som sem que haja uma conexão deste movimento com estruturas No que diz respeito à pedagogia da performance musical, musicais ou com outros significados. alguns dos aspectos do gesto discutidos aqui se mostram especialmente relevantes. A possibilidade do gesto ser O que compreendemos através da observação tratado como sugestão de conteúdos extra-musicais (em empreendida neste artigo é que, como espectadores, instância subjetiva), é importante. Muito se tem usado tal muitas vezes precisamos segmentar os diversos aspectos potencialidade, especialmente no ensino de instrumentos da performance gestual de um músico para melhor para iniciantes, notadamente no ensino do piano e apreciá-la e compreendê-la. No entanto, o que mais também na educação musical. Por exemplo, o uso de sons nos fascina é a natureza holística do gesto, o que fica instrumentais que sugerem conteúdos semânticos (sons bem exemplificado na performance gestual dos músicos que criam cenários, tais como chuva, movimentos de do UAKTI, mas que certamente poderia ser observado animais, sons da cidade). A natureza multimodal do gesto em performances de um número incontável de músicos torna-se, novamente, fundamental. instrumentistas. Enfim, acreditamos que músicos e professores de música se beneficiariam ao considerar Por ter uma repercussão audiovisual, o gesto pode que o gesto é parte integrante do estudo da obra indicar para um professor de instrumento a qualidade de musical e do instrumento. A busca por uma gestualidade uso do corpo de seus alunos - os níveis de tensão e de coerente com a intenção musical poderá proporcionar movimentação excessiva presentes em sua performance. um melhor desenvolvimento da compreensão musical e Alem disso, determinados gestos resultam de movimentos das habilidades técnicas desde o início do aprendizado, produzidos para se alcançar determinados resultados levando músicos instrumentista a alcançar níveis mais sonoros, desejáveis para a execução de certas passagens apurados de performance musical.

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DVD UAKTI. DVD gravado em 17 de setembro de 2006 no Teatro do Palácio das Artes, Belo Horizonte.

Notas 1 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 1.0. 2 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 1.0. 3 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 1.0. 4 Algumas vezes Peirce também fala de significance, significado ou interpretação do signo. 5 UAKTI. DVD gravado em 17 de setembro de 2006 no Teatro do Palácio das Artes, Belo Horizonte. 6 Para se familiarizar com a música do UAKTI, o leitor poderá, alternativamente, consultar o site do grupo, onde alguns vídeos e gravações estão disponíveis: http://www.berm.co.nz/cgi-bin/video/browse.cgi?t=uakti 7 Para obter maiores detalhes sobre o instrumento “Trilobita”, o leitor poderá consultar RIBEIRO, 2004. 8 Para obter maiores detalhes sobre o instrumento “Torre”, o leitor poderá consultar RIBEIRO, 2004.

Patrícia Furst Santiago é professora visitante na Escola de Música da UFMG (PROCOD/CAPES), onde conduz pesquisa sobre a Técnica Alexander e performance musical. Obteve o Doutorado em Educação Musical e o Mestrado em Educação Musical no Instituto de Educação da Universidade de Londres; o Bacharelado em Piano e a Especialização em Educação Musical na Escola de Música da UFMG. Formou-se como professora da Técnica Alexander no Constructive Teaching Centre em Londres.

André Borges Meyerewicz é professor da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG, Escola de Design, onde ministra a disciplina “Semiótica”. É também professor do curso de Design Gráfico do UNI-BH. Obteve o Mestrado em Letras (na linha de Literatura e outros Sistemas Semióticos) na Faculdade de Letras da UFMG.

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