A bola, a nação e a memória

The ball, the nation and the memory La pelota, la nación y la memoria

Gerson Wasen Fraga*

Resumo Bola ao centro

Este artigo tem como objetivo apontar O futebol conquistou seu espaço no alguns caminhos trilhados pela memó- meio intelectual brasileiro. De prática cul- ria acerca do futebol no Brasil. Partindo tural elitista e exótica a instrumento de alie- do pressuposto de que, os estudos en- nação popular a serviço das elites, o esporte volvendo as práticas esportivas têm en- bretão passou, a partir da década de 1980, a contrado crescimento dentro do campo ser percebido como um campo privilegiado das ciências sociais, e de que o futebol, para a compreensão das transformações eco- em específi co, confi gura-se como um nômicas, políticas e sociais de nossa história importante fenômeno cultural no Brasil, ao longo do século XX. Com efeito, diversos busca-se apontar como tal crescimento são os centros e grupos de pesquisa cujos repercute em termos de criação de uma trabalhos têm enfocado o futebol como ins- memória específi ca, envolvendo a traje- trumento de análise, o que por sua vez resul- tória dos meios de comunicação, as vin- ta na produção de uma boa quantidade de culações entre futebol e política ao longo 1 da história e o posicionamento da inte- livros, artigos e papers . lectualidade brasileira. A relação entre o futebol e as ciências humanas no Brasil, contudo, nem sempre Palavras-chave: Memória. Futebol. Identi- teve entrosamento. Durante longos anos, dade nacional.

* Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor da Universida- de Federal da Fronteira Sul/Erechim.

Recebido em 10/09/2012 - Aprovado em 06/11/2012 http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.13-n.2,2654

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 o assunto foi tratado como algo menor, in- A memória dos primeiros chutes digno de esforços por parte de nossa intelec- tualidade. Tal perspectiva (que em muito A memória do futebol brasileiro é con- refl etia um histórico de afastamento entre tada a partir do centro do país. Com efeito, o saber acadêmico e o cotidiano popular a versão que atribui a paternidade do espor- brasileiro), sabidamente, foi reforçada ao te bretão, entre nós, apenas a Charles Miller longo do regime militar brasileiro, quando (São Paulo) e Oscar Cox () pro- as conquistas do selecionado canarinho move uma série de lacunas em nossa memó- passaram a integrar as ferramentas que o ria esportiva e social, ignorando realidades regime utilizava em seu favor. Essa asso- diversas em uma nação de dimensões con- ciação direta entre a pátria de chuteiras e a tinentais. Anos antes de Miller desembarcar pátria de farda cerrou os olhos de muitos em São Paulo com suas bolas de futebol na pesquisadores para a importância do fute- bagagem, os jesuítas, infl uenciados por vi- bol enquanto instrumento de representação sitas feitas a estabelecimentos educacionais e compreensão da sociedade brasileira. O ingleses, incentivavam a prática rudimentar futebol, em outras palavras, deveria ser ou- do esporte no Colégio São Luiz, na cidade de vido, mas não lido (exceto quando pelos jor- Itu, vendo neste um instrumento para uma nais ou revistas especializadas); visto, mas atividade corporal sadia, conforme, os dita- não pensado; praticado nos tempos de folga, mes, então em voga, do higienismo (SAN- mas nunca estudado. TOS NETO, 2002). No Rio Grande do Sul, o Pretendemos, neste artigo, apontar contato estreito com a região platina e a im- brevemente alguns dos caminhos trilhados plantação das primeiras linhas férreas e fri- pelo futebol em busca de sua legitimação gorífi cos, a partir da inversão de capitais in- enquanto objeto de análise por parte das gleses, levaram ao surgimento de clubes ao ciências humanas no Brasil. Muito embora, longo da região da fronteira com o Uruguai saibamos da amplitude do tema proposto e no litoral Sul que, durante três décadas, ri- e das limitações de espaço inerentes a um valizaram em hegemonia com os clubes de texto dessa natureza, acreditamos que tal Porto Alegre2. Pelos diversos portos do país, exercício seja importante na medida em que marinheiros ingleses, ao fi nal do século XIX, a proliferação dos estudos acadêmicos sobre praticavam o futebol em seus momentos de o futebol constitui-se, em última instância, folga, despertando o interesse e a curiosida- na produção de uma memória acerca do es- de daqueles que por ali passassem. porte que popularmente integra nossa iden- Contudo, a memória futebolística bra- tidade nacional advinda de universidades e sileira tem em Charles Miller seu grande grupos de pesquisa (ou seja, uma memória herói3. Segundo Hilário Franco Júnior, tal social e politicamente produzida a partir das perspectiva integra uma espécie de “versão instituições de ensino superior). Bola ao cen- ofi cial” de nossa história, privilegiando as tro, iniciemos o jogo. elites como protagonistas que concederiam direitos às classes menos favorecidas. Tal

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 qual nossa emancipação política, a abolição lecendo o contraponto às perspectivas racia- da escravatura ou mesmo a proclamação do listas do começo do século XX. A obra, até regime republicano, o futebol teria entre nós hoje citada e criticada, possivelmente seja o a característica de uma benesse concedida a primeiro trabalho a integrar a memória fute- um povo incapaz de ser agente ativo de sua bolística nacional externamente ao âmbito li- própria história (2007, p. 61). terário. Destaque-se, também, o prefácio re- Assim, estabelecer paternidades quase he- digido por Gilbero Freyre em 1947, no qual roicas e datas ofi ciais não esclarece as rela- o sociólogo pernambucano, já reconhecido ções entre o futebol e a sociedade brasilei- pela publicação de Casa-Grande & Senzala, ra. Pelo contrário, suas signifi cações mais chancela a obra de Mário Filho dentro da profundas residem no processo de apro- priação pelos diversos setores sociais que historiografi a brasileira. o transformaram em fenômeno de massas Aqui está um capítulo da história do fute- (FRANCO JUNIOR, 2007, p. 62). bol no Brasil que é também uma contribui- ção valiosa para a história da sociedade e Essa criação, ocorrida ao longo da pri- da cultura brasileiras na sua transição da meira metade do século XX, está intimamen- fase predominantemente rural para a pre- te ligada à atuação da imprensa que, desen- dominantemente urbana. Além disto, as volvendo-se dentro de moldes capitalistas, páginas mais sugestivas de Mário Filho nos põem diante do confl ito entre estas percebia o potencial do futebol enquanto duas forças imensas – a racionalidade e a produto vendável, capaz de atrair a atenção irracionalidade – no comportamento ou de seus leitores e, por conseguinte, vender na vida dos homens. No caso, homens do jornais. Assim, as primeiras análises produ- Brasil. Homens de uma sociedade híbrida, zidas, vinculando o futebol com nossa nacio- mestiça, cheia de raízes ameríndias e afri- canas e não apenas europeias (FREYRE, nalidade, são apresentadas nas páginas dos 2003, p. 24). periódicos mesclando aspectos opinativos e interpretativos. Os textos encontravam-se Já então, a literatura havia desperta- eivados das visões elitistas existentes, distin- do para o potencial do futebol como tema, guindo o jogo praticado pela elite dentro de retratando não somente sua prática, mas a um pretenso espírito amador daquele prati- associação apontada por Gilberto Freyre cado nos arrabaldes e periferias dos grandes entre a popularização do jogo e o processo centros urbanos (PEREIRA, 2000). de urbanização do Brasil. Um dos primeiros Não causa estranheza, portanto, que a exemplos, nesse sentido, advém do moder- primeira obra de fôlego interpretativo acer- nista Antônio de Alcântara Machado que, ca de nosso futebol tenha vindo das mãos de em 1927, publicou o livro Brás, Bexiga e Barra um jornalista. Com efeito, O negro no futebol Funda, no qual consta o conto “Corinthians brasileiro, obra de Mário Filho, em que pese (2) vs. Palestra (1)”. Dando visibilidade a um seu caráter romanceado e seu foco exclusi- tema até então “pouco nobre” para a criação vo no cenário carioca, possui o mérito de artística, Alcântara Machado ousou, ainda, apresentar à nossa intelectualidade as vin- ao colocar como personagens principais culações entre futebol e brasilidade, estabe- de seu conto fi guras femininas que torcem

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 avidamente pelos seus clubes, contrariando conhecidos por todo o Brasil, sem que isto o paradigma do futebol como universo ex- demandasse a contrapartida pelo centro em clusivamente masculino. O fenômeno não se reconhecer no cotidiano futebolístico dos fi caria restrito a esse autor. Outros nomes da estados mais distantes da federação. Assim, literatura modernista, como Oswald e Mário a difusão do futebol pelo Brasil na primeira de Andrade explicitariam em seus poemas a metade do século XX obedeceu a lógicas que forma com que o futebol tomava conta das expressaram, ao seu modo, o problema de grandes cidades. nossa identidade nacional mal consolidada, Hoje quem joga? na qual a parte é tomada pelo todo, mas o O Paulistano. Para o Jardim América das todo é visto como um conjunto de retalhos rosas e dos pontapés! de tonalidades diversas e inconciliáveis. Friedenreich fez goal! Corner! Que juiz! Esse primeiro momento encontra seu Gostar de Bianco? Adoro. Qual Bartô... E o meu xará maravilhoso!... ápice com a realização da Copa do Mundo - Futilidade, civilização (ANDRADE, s/d, de 1950 em solo brasileiro. A organização do p. 47). certame tinha entre seus principais objetivos Contudo, se na primeira metade do oferecer a imagem de um Brasil moderno, século XX a massifi cação do apreço pelo fu- capaz de grandes conquistas e realizações. tebol já apontava sua condição de elemento Por meio do futebol, procurava-se provar ao constituinte da identidade nacional, sua di- mundo nossa condição de civilizados, con- fusão pelo país acompanhava o desenvolvi- trariando a perspectiva de uma imensa selva mento dos meios de comunicação, impondo a cercar uma ou duas cidades. É em busca uma espécie de “geografi a da grande mídia” desse objetivo que as seis cidades-sede pre- ainda hoje perceptível. Com efeito, a popu- pararam-se e receberam atletas e jornalistas larização do rádio e o desenvolvimento das (a afl uência de torcedores vindos do exterior 4 cadeias de comunicação levavam aos distan- era ainda muito pequena) . Era uma forma tes rincões do país os jogos envolvendo os de, ainda que por pouco tempo, receber vi- times e personagens do eixo Rio-São Paulo, sibilidade, provocando a sensação, talvez ao mesmo tempo em que o surgimento de falsa ou transitória, de que passaríamos a revistas semanais informativas (notadamen- entrar no mapa dos povos desenvolvidos. te O Cruzeiro, cuja circulação possuía uma É possível mapearmos esse propósito abrangência nacional) mostravam aos leito- observando as manifestações daqueles que res os rostos dos heróis e dos vilões de cada não foram escolhidos para mostrar sua civi- rodada. Criava-se, assim, uma identidade e lização e, assim, “entrar no mapa”. Em Sal- uma memória centralizadas, em que o in- vador, por exemplo, um dos articulistas do terior era capaz de se reconhecer e se iden- jornal A Tarde assim manifestava sua frus- tifi car com o centro (com seus clubes, seus tração por não ver a cidade como uma das jogadores, seu cotidiano) sem que o inverso sedes daquele certame: fosse verdadeiro. Nomes como Leônidas, ou Heleno de Freitas passaram a ser

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 Por que não deram à Bahia um estádio a al- sessenta e dois anos da abolição e, a rigor, tura de seu conceito no país? Em que fi ca- não seria impossível imaginar que dentre as ram as promessas no sentido de Salvador 200 mil pessoas presentes à partida fi nal no ser também conhecida no mundo inteiro como uma cidade onde não há onças ou Maracanã, houvesse uma que trouxesse na cobras nas ruas? Vejam a propaganda que pele as marcas do regime servil. Cremos que jogadores suíços e iugoslavos, ingleses e a culpabilização não era dita porque não era norte-americanos já fi zeram de Belo Hori- necessário que assim o fosse diante da per- zonte. Não pensavam que além do Rio e de São Paulo houvesse outro centro civilizado sistência da estrutura de pensamento que a no Brasil. E irão dizer que em Recife, em legitimava entre nós. Curitiba e em Porto Alegre também não há O segundo fenômeno, diretamente bichos voadores e mordedores ou índios relacionado ao anterior, está alicerçado na nas ruas (A TARDE, 27/6/1950, p. 5). ideia de que a conformação racial do bra- A derrota na última partida da Copa sileiro, resultante de uma grande miscige- do Mundo de 1950 criou ao menos três fenô- nação, teria gerado um povo inapto para menos estranhos em nossa memória, mas re- realizações e conquistas, o que encontra- lacionados entre si. O primeiro diz respeito ria comprovação no insucesso nacional de a uma suposta culpabilização dos jogadores 1950. Tal justifi cativa, tributária da ação de negros que compunham a defesa do selecio- intelectuais que, durante o século XIX e boa nado brasileiro (o goleiro Barbosa, o Zaguei- parte do XX atribuíram um valor negativo ro Juvenal e o lateral Bigode) que pretensa- à presença de caracteres negros e indígenas mente teriam falhado nos gols uruguaios. em nossa formação, encontrou ressonância Sendo tal atribuição de culpa um fato ocor- em alguns jornalistas da época nos mais rido na historiografi a futebolística nacio- diversos pontos do país, explorando uma nal5, seria imaginável encontrar exemplos espécie de genética da falta de patriotismo da mesma nos periódicos brasileiros que à e legitimando estereótipos e estigmas que, época buscaram respostas para os motivos em caso de vitória, fi cariam guardados para daquela que seria apontada como “a maior momentos mais oportunos.8 6 tragédia da história do Brasil” . Os textos E por que perdemos? jornalísticos da época, contudo, não explo- Perdemos não só pelas falhas gritantes ram o aspecto racial, existindo artigos que de Bigode e Barbosa, nos dois lances que redundaram em tentos uruguaios, como apontam Barbosa, Bigode e Juvenal como também pela falta de fi bra, de energia e de culpados, assim como artigos que descar- brios dos nossos jogadores “que se esque- regam suas frustrações sobre outros nomes ceram que estavam disputando uma Copa do selecionado ou sobre a seleção como um do Mundo”. Além disso, houve muita más- cara e excesso de otimismo, pois, segundo todo, incluindo a comissão técnica. A raciali- os jornais, o nosso team era o melhor do zação da culpa não se deu, dessa forma, por mundo e nosso trio atacante era fenomenal meio de textos jornalísticos, ao menos não (A TARDE, 19/6/1950, p. 5). expressamente7. Afi nal, qual seria a necessi- dade de dizer o óbvio? Estávamos há apenas

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 O revés [dos] brasileiros, ao contrário, era que seríamos assim, na pior das hipóteses, a decepção, o utilitarismo, a falta de espí- “ex-buchos” (RODRIGUES, 1994, p. 60-61). rito combativo, a inércia, a pretensão e a ausência absoluta de preparo psicológico, A fi gura anteriormente produzida pelo cro- este último um elemento sem dúvida al- nista tirava sua força de uma imagem já guma, que sobrava no team representativo consolidada e que remetia à própria ideia do Uruguai amigo (CORREIO DO POVO, da mestiçagem como algo depreciativo, 18/7/1950, p. 14). apresentando como personagem principal Por fi m, o terceiro fenômeno trata de a “pátria de chuteiras”, elemento privilegia- uma fi gura criada a posteriori, logo rebatida do para a construção de metáforas acerca da pelos acontecimentos e por seu próprio cria- brasilidade. Contudo, novas formas de ima- dor, mas que se entranhou de forma inde- gens surgiriam nesse momento, incremen- lével na memória esportiva nacional: trata- tando os caminhos pelos quais se constitui a -se da “síndrome de vira-latas”, expressão memória futebolística nacional. criada por Nelson Rodrigues no contexto da preparação brasileira para o mundial de A memória, a bola, a política e a 1958. sociedade Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se co- loca, voluntariamente, em face do resto do O período que se estende entre o fi m mundo. Isto em todos os setores e, sobre- dos anos 1950 e o início da década de 1970 tudo, no futebol. Dizer que nós nos julga- pode ser facilmente identifi cado como a mos “os maiores” é uma cínica inverdade. época de ouro do futebol brasileiro, quando Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, craques do porte de Pelé e Garrincha desfi - a equipe brasileira ganiu de humildade. lavam sua arte pelos gramados do mundo. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, Se a transformação do Brasil “vira-latas” em espetacular o nosso vira-latismo. Na já ci- tricampeão mundial seria sufi ciente para tada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a produzir uma imagem perene a respeito vantagem do empate. Pois bem: - e perde- da época, há um fator que contribui, decisi- mos da maneira mais abjeta. Por um mo- vamente, para a consolidação da memória tivo simples: - porque Obdulio nos tratou futebolística desse período: a disseminação a pontapés, como se vira-latas fôssemos da produção e exibição de imagens dos jo- (RODRIGUES, 1994, p. 51-52). gos, culminando, no caso brasileiro, com as A força da imagem criada por Nelson transmissões ao vivo do mundial de 1970, Rodrigues resistiu à própria conquista do no México.9 selecionado brasileiro em 1958. De pouco A memória nacional criada a respei- adiantou o autor anunciar, em nova crônica, to das três primeiras conquistas mundiais que a partir do título na Suécia “já ninguém é perpassada ainda pelo contexto político tem mais vergonha de sua condição nacio- vivido pelo país, o que nos aponta uma es- nal”, que “o povo não se julga mais um vira- pécie de contraponto à perspectiva de que -latas” ou que “o triunfo embelezou-nos” e futebol e política não se misturam. Por um

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 lado, as conquistas de 1958 e 1962 integram O primeiro fator está na já citada liga- a imagem do período desenvolvimentis- ção contextual, que permitiu ao regime da ta iniciado por Juscelino Kubitschek e que ditadura pós-64 utilizar a conquista brasilei- se estende ao projeto nacionalista de João ra como instrumento de propaganda. E, tal- Goulart. Tempos de Bossa Nova, de urbani- vez, nunca uma seleção brasileira tenha sido zação, industrialização, de uma nova capi- uma cópia tão fi el do regime político nacio- tal. No cenário interno, as transmissões por nal. Com efeito, toda a estrutura administra- rádio e as fi lmagens do Canal 10010, ambos tiva do selecionado no México estava sob a difundidos amplamente pelo território bra- mão dos militares: o Almirante Heleno Nu- sileiro, consolidavam a autoimagem do Bra- nes, que à época comandava a Confederação sil como país do futebol no momento em Brasileira de Despostos (CDB) no plano es- que o Torneio Rio-São Paulo passava a ser portivo e a ARENA no plano político entre- disputado com regularidade. Evidencia-se, gou a chefi a da delegação ao coronel Tinoco assim, a continuidade da construção de uma Marques. O major Kleber Camerino desem- memória acerca do futebol nacional que, em penhava a função de secretário enquanto o realidade, responde muito mais aos aconte- tenente Osvaldo Costa Lobo atuava como cimentos do centro do país e de seus clubes. assessor. A supervisão geral fi cava a cargo Efeito da centralização e do poder de alcan- do Major Carlos Cavalheiro, enquanto a ce dos maiores meios de comunicação, esse equipe responsável pela preparação física fenômeno repete o que ocorria já no período contava com o capitão Cláudio Coutinho, o anterior a 1950, reforçando a legitimação de tenente Raul Carlesso e o civil Carlos Alber- um “modo de jogar” e um “modo de torcer” to Parreira (FRANCO JUNIOR, 2007 p. 145). (o carioca) como representativos da nação Sendo o futebol um instrumento privilegia- (por mais evidente que tais “modos”, corres- do de reifi cação da nação, nada mais apro- pondentes a um futebol de mais técnica em priado que fazer da seleção um símbolo de detrimento da força física, e de intervenções afi rmação do próprio regime. festivas nas arquibancadas, sejam meras Tal aspecto ecoava nas páginas da criações discursivas). grande imprensa da época, que não tardou Por outro lado, a imagem daquela que em ver a vitória brasileira como um fato emi- é considerada a maior seleção brasileira de nentemente político. Os registros da alegria todos os tempos parece estar indelevelmen- popular nas ruas ou do General-Presidente te ligada à ditadura civil-militar implantada Médici recebendo a taça das mãos do capi- no país a partir de 1964. Essa ligação (que tão Carlos Alberto eram ladeadas por textos novamente nos evidencia que a memória nos quais o futebol exerce o papel de defesa acerca do futebol é eivada de memórias so- da pátria em perigo diante da ameaça revo- ciais e políticas) parece ter como motor al- lucionária. guns elementos que devem aqui ser elenca- dos.

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 Há, contudo, na homérica proeza dos pu- a participação naquilo de Benedict Ander- pilos de Zagalo, outro aspecto digno de son (1989) chama de “comunidade imagi- nota: o de propaganda – o de boa propa- nada”. Um bom exemplo está no texto “Da ganda – do Brasil no Exterior. Somos um país quase ignorado no resto do mundo. E unidade nacional em torno de um caneco”, que ultimamente, ainda por cima, entrou de autoria do jornalista Murilo Melo Filho, a sofrer uma campanha organizada e tele- publicado na Revista Manchete de 11 de ju- dirigida de difamação e calúnias, por obra lho de 1970, do qual apresentamos alguns da conspiração esquerdista mundial, que porfi a em ver o Brasil transformado numa trechos. “República Popular”, ao fi gurino de Cuba Acontece, porém, que vários torcedores, ou da Tcheco-Eslováquia. Então, por isso, expulsos dos estádios e proibidos de ne- se trata de desmoralizar os governantes les ingressar por dez anos, organizaram- e as elites brasileiras, e de pintar o nosso -se fora deles e partiram para o crime e o país como um desolado e triste cenário de desespero. Substituíram as bandeiras pelas opressão, miséria e fome. Mas como num armas, as faixas pelas bombas e as camisas país em tão calamitosas condições de vida pelas máscaras. pode ser organizada uma seleção de joga- dores de futebol, saída das camadas mais Que torcedores tão fanáticos eram esses? humildes do povo, com um vigor físico, Quando presos ou liberados nos resgates, uma habilidade, uma arte e uma alegria verifi cava-se que não se tratava dos criou- de competir esportivamente que chegam a los das gerais ou dos operários das arqui- suplantar o que apresentam as representa- bancadas, mas sim de jovens estudantes, ções de nações desenvolvidas e de milenar das cadeiras de pista, com média de 23 civilização? anos de idade, fascinados pelo delírio da aventura e enlouquecidos pela sede de vio- Vamos convir [que] a “Jules Rimet”, em lência que desaguaria numa onda de aten- mãos dos brasileiros, se constitui numa tados, sequestros e assaltos a mão armada pílula demasiado amarga para os detra- [...] tores do Brasil (CORREIO DO POVO, -Não passaremos das oitavas. 23/6/1970, p. 4). O presidente da República, que havia as- O discurso dos periódicos, contudo, sistido ao jogo contra a Áustria, última (e permitia-se ir além da simples transposição melhor) prova antes da partida, pediu a entre a nação e o selecionado ou ainda de seu fi lho Roberto que fosse ao vestiário di- zer ao capitão Carlos Alberto: denunciar a pátria em perigo diante de um pretenso avanço esquerdista no mundo. Aos -Traga essa Copa. Nunca precisei tanto de um caneco. próprios brasileiros contrários ao regime era negada a condição de brasilidade e, no -Diga a seu pai que pode fi car descansado. Nós traremos o caneco. campo do jogo político, eram equiparados aos adversários batidos no campo esportivo. E se o capitão falou, estava falado. A pro- messa seria cumprida ao longo de seis Sua “sede de violência” que desaguaria na provas duríssimas, nas quais um grupo de luta armada era comparada à “disciplina” brasileiros patriotas, humildes, disciplina- e “patriotismo” dos pupilos de Zagalo. Em dos e capazes – indivíduos competentes, olha a camisa deles! - deslumbrou o mun- outras palavras, excluía-se esses brasileiros do inteiro com seu futebol-arte […]. do conjunto da nação, negando-lhes mesmo

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 A turma do sereno não estava satisfeita negado, talvez, não seja tão irreal assim!) e, com toda essa alegria, assaz desinteressan- ao lado daquelas puramente ufanistas, ten- te para os planos negativistas do quanto tam promover a imagem do país vencedor, pior melhor, do povo triste, do país derro- tado, da nação incapaz. Na fumaça das co- foi somente no contexto da distensão do re- memorações da vitória sobre o Peru, espo- gime militar que a denúncia da barbárie no cavam outros tiros menos festeiros e mais contexto da conquista do tri-campeonato certeiros. Mas nem mesmo o sequestro do mundial pode tomar corpo, servindo o fi l- embaixador de um país que poderíamos enfrentar nas semifi nais conseguiu desviar me “Pra frente Brasil” como exemplo pa- o povo das celebrações que, num crescen- radigmático11. Passados pouco mais de dez do, desaguariam no maior carnaval de to- anos, o cenário político brasileiro passava a dos os tempos. O Brasil estava muito ocu- permitir, ainda que lenta e gradualmente, a pado com seus triunfos para preocupar-se transformação da imagem da conquista no com seus terroristas. México, passando de símbolo de um regime -Vamos, minha gente [...] ditatorial a elemento de um contexto mar- Quem, por exemplo, esperasse uma caça cado pela tortura e pelos crimes de Estado. às bruxas ou uma noite de São Bartolomeu O segundo fenômeno diz respeito à re- logo após o reaparecimento do embaixa- dor alemão, recebeu a notícia da Rodovia cusa da academia brasileira em reconhecer Transamazônica […]. o futebol, um notório fenômeno de massas, E pela primeira vez, nestes seis anos, abri- como objeto legítimo de estudo. As raízes ram-se ao povo os portões do Palácio da de tal postura, certamente, podem ser as- Alvorada. E o povo confraternizou com sociadas a posições manifestas por expoen- seu presidente, jogou bola com ele, pene- tes de nossa cultura na primeira metade do trou na zona do agrião, tirou de letra, deu de chilena e de primeira, estendeu um len- século XX, como Graciliano Ramos, que via çol, fez o corta-luz e a ponte, os passes de o futebol como um modismo passageiro in- profundidade e a cobertura, os dois toques capaz de constituir raízes entre os brasilei- e a embaixada. ros, ou mesmo Lima Barreto, que em 1919, -Ninguém segura este país (MANCHETE, juntamente com outros intelectuais, criaria a 11/7/1970, p. 20-21). “Liga contra o futebol”. Mesmo os já citados É importante perceber que, no caso es- modernistas, cujas imagens do urbano por pecífi co do selecionado de 1970, dois fenôme- vezes incluíam a prática do esporte bretão, nos incidem sobre a produção da memória encontraram em suas fi leiras vozes de opo- futebolística, quiçá de forma complementar. sição, bastando lembrar a fi gura já citada de O primeiro diz respeito ao reforço posterior Mario de Andrade que, em “Macunaíma”, de uma imagem atrelando aqueles obscuros arrola o futebol como uma praga, equipara- dias à luminosidade do futebol apresentado da ao bicho do café e à lagarta rosada (AN- pelo Brasil. Se, por um lado, matérias como DRADE, 1978, p. 61-62). as apresentadas acima negam sistematica- Ao mesmo tempo, o uso do futebol por mente a repressão (a necessidade de negar parte dos mandatários nacionais é uma prá- o que não existe é sempre um sinal de que o tica arraigada em nossa cultura, remetendo

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 aos primeiros anos da Era Vargas (1930- Brasil, gerando uma situação oscilante de 1945), quando este valia-se da distribuição torcida contra e a favor, provocando “fi ssu- de ingressos junto à máquina sindical para ras irreparáveis nas mais aguerridas convic- encher os estádios (notadamente o de São ções ideológicas” (FRANCO JUNIOR, 2007, Januário) que transmitiriam seus discursos p. 144). Há que lembrarmos, porém, que a durante os intervalos. Vargas desenvolvera utilização do futebol por parte dos militares ainda a prática de receber atletas e delega- foi muito além da utilização da imagem vi- ções diante das lentes dos fotógrafos12, algo toriosa. O próprio campeonato nacional de que, recordemos, possui dois sentidos com- clubes, disputado a partir de 1971, expressa plementares: apresenta o mandatário má- o nítido desejo de promover a integração na- ximo da nação como alguém que comunga cional a partir do esporte mais popular, en- dos mesmos hábitos e paixões de seus go- volvendo representantes de todos os estados vernados, como “um brasileiro a mais” a e territórios em uma mesma disputa. torcer pelo selecionado, criando uma ima- Essa utilização do futebol como instru- gem que o aproxima dos populares, ao mes- mento de propaganda por parte dos milita- mo tempo em que a deferência prestada ao res não pode, igualmente, ser dissociada do líder do executivo o coloca no papel de “bra- contexto da Guerra Fria e de seus refl exos sileiro número um”, lídimo representante ideológicos no Brasil. Com efeito, se a pro- da nação, especialmente nos momentos vi- paganda militar apoiava-se na conquista toriosos, quando o ato é revestido de grande brasileira no México e na popularidade do visibilidade. futebol, o caminho inverso, no qual esse es- A repetição desse cerimonial durante porte passava a ser visto como o “ópio do o regime militar brasileiro e a visualização, povo” era facilmente trilhável. Promovia- por parte dos militares, do poder de agre- -se a separação entre as arquibancadas e a gação do futebol, colaborou para a identi- intelectualidade, sendo que os intelectu- fi cação deste como um objeto ilegítimo de ais viam os frequentadores daquelas como estudo por parte das ditas Ciências Huma- simples massa de manobra à disposição do nas. Nesse sentido, a ampla cobertura dada autoritarismo. Assim, o pesquisador da área pelos órgãos de imprensa à recepção aos tri- de humanidades que desejasse frequentar a campeões por parte do general Médici, em arquibancada de um estádio deveria fazê-lo um momento de sabido recrudescimento da de forma quase clandestina. Voz dissonante repressão política, contribuiu para que a in- naquele contexto, Joel Rufi no dos Santos co- telectualidade nacional desenvolvesse reser- mentava, ao perguntar-se se o futebol seria vas quanto ao estudo do tema. O fenômeno digno de uma análise histórica: já seria identifi cável durante a realização do Se se supõe que as ciências sociais devam mundial de 1970. Conforme Hilário Franco responder, primeiro, às indagações da ca- Junior, mesmo nos aparelhos guerrilheiros beça dos intelectuais, claro que não. Nel- discutia-se qual seria a postura de um ver- son Rodrigues escreveu, com razão, que não há um só personagem da nossa lite- dadeiro revolucionário quando dos jogos do ratura que saiba bater um mísero corner.

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 Os estrangeiros se surpreendem de que no Ao mesmo tempo, os estudos envol- “país do futebol” não se haja escrito uma vendo o futebol têm se apropriado em gran- única história do futebol. Quanto aos nos- de medida de questões identitárias, seja a ní- sos principais editores, parecem conven- cidos de que “futebol não vende” - quem vel nacional, regional ou mesmo local. Nesse gosta de futebol não compra livros, quem sentido, a forma com que o futebol imbrica- compra livros não gosta de futebol. -se com as estruturas de pertencimento tem Seria fácil demonstrar – e tanta gente já o sido percebida como um contraponto à ideia fez – que o conhecimento intelectual do Brasil se move em redoma. Nada sabemos da aldeia global, na qual a massifi cação dos do nosso próprio povo embora, frequente- hábitos levaria a formas semelhantes de tor- mente, falemos em seu nome. Ora, como o cer15. Nesse processo, a afi rmação da temáti- futebol se transformou, aqui, em arte po- ca tem provocado um vantajoso diálogo da pular, caiu nessa gigantesca zona de som- bra que difi culta a compreensão de nossa história com outras disciplinas, tais como a própria realidade. O que é do povo não antropologia, as ciências sociais, a literatura interessa (1981, p. 77-78)13. e a geografi a, produzindo uma vasta produ- Embora seja necessário ressaltar que, ção que se opõe à ideia de que quem gosta de 16 essa conquista de legitimidade por parte do futebol não compra livros . No mesmo mo- futebol enquanto objeto de pesquisa diante vimento, os estudos envolvendo o futebol da academia brasileira suscite controvérsias, no Brasil têm discorrido de forma profícua dado que muitos professores ainda veem os com trabalhos produzidos em outros países, trabalhos sobre o esporte bretão como algo onde este esporte possui já uma certa tradi- de menos importância, é oportuno pergun- ção como objeto de pesquisa dentro do mun- tarmos como e porque ocorre tal ganho. Sem do universitário. Podemos citar aqui, como esgotar as possibilidades, gostaríamos aqui exemplo, a boa penetração que têm recebido de levantar alguns pontos que nos parecem no Brasil os trabalhos produzidos na Argen- dignos de nota. Inicialmente, há o alarga- tina, em especial aqueles conduzidos pelos mento do campo de objetos da história, le- professores Pablo Alabarces e Julio Fryden- 17 vando ao estudo dos mais diversos fenôme- berg . Além desses, trabalhos originalmen- nos que compõem o cotidiano. Ora, talvez, te editados no Reino Unido têm encontrado poucas práticas sejam tão marcadas no dia a tradução para o português, permitindo-nos dia nacional quanto o futebol, ou, ao menos, uma maior interação com o que vem sendo 18 as discussões que lhe envolvam, bastando pesquisado além-mar nos últimos anos . percebermos o espaço que lhe é destinado Por fi m, registre-se o belo trabalho de diá- nos grandes meios de comunicação para logo que o laboratório de história do esporte aferir tal fenômeno14. Isso conduz à discus- e do lazer da UFRJ vem produzindo com os são sobre se esse espaço é refl exo do interes- países africanos de língua portuguesa, re- se social pelo tema ou se, ao contrário, ele sultando em publicações em que o esporte pauta as conversas que ocorrem pelas ruas, como um todo tem integrado a identidade bares, escritórios e outros espaços, debate, a nacional de tais nações após o processo de nosso ver, estéril, uma vez que os dois cami- descolonização (MELO, BITTENCOURT, nhos parecem se locupletar. NASCIMENTO, 2010).

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 Buscando novos caminhos (até porque se inserem dentro da novas con- cepções de estádio e de público que por ora Se o terreno conquistado pelo futebol se implantam no Brasil, e porque o museu nos últimos anos junto ao universo acadêmi- é, sabidamente, um espaço que não frequen- co é uma realidade, também o é que muito ta a lista de prioridades de nossos clubes), é ainda há para ser trilhado, não somente no digno de nota aqui o trabalho desenvolvido meio universitário, mas na própria socieda- no Museu do Sport Club Internacional, já de. Basta aqui lembrar que, em que pese o anteriormente à execução das obras de mo- visível incremento do público feminino nos dernização do estádio Beira-Rio. estádios (principalmente a partir da majora- Essa trajetória percorrida pelos es- ção dos valores dos ingressos e do processo tudos acadêmicos envolvendo o futebol, de reelitização das torcidas, ora em curso) e transformando-o em objeto legítimo de es- o crescimento do número de meninas pra- tudo, deve ser saudada, uma vez que tal mu- ticantes do futebol, pouco há no país com dança de postura traz consigo a valorização referência à constituição de uma memória de um importante elemento de identidade da prática futebolística entre as mulheres. nacional. E nossa identidade, bem sabemos, Outras temáticas envolvendo o jogo, den- é perpassada, em boa medida, pelas coisas tro do campo ou nas arquibancadas como que envolvem este esporte, seja praticado ou as torcidas gays ou o futebol de cegos, tam- assistido. A memória nacional, sempre em bém, carecem de uma maior atenção por construção, agradece. parte dos pesquisadores, revelando-se como um campo em aberto para os estudos e, por Abstract conseguinte, para a sistematização de uma memória. Nesse sentido, podemos mesmo This paper aims at pointing out some nos questionar se o futebol, tomado como paths taken by memory about soccer instrumento de interpretação social, estaria in . Assuming that the studies a revelar não apenas as políticas de inclusão involving sports have found growth surgidas nos últimos anos, mas também os in the fi eld of social sciences, and foot- preconceitos que persistem em nossa socie- ball in particular appears as an impor- tant cultural phenomenon in Brazil, we dade e em nossa memória. show how this growth affects in terms Há que se destacar, também, que al- of creating a memory specifi c, involving guns clubes têm estabelecido uma refor- the trajectory of the media, the links be- mulação conceitual em seus museus, que tween football and politics throughout deixam de ser meras salas de troféus para history and position of the Brazilian in- tornarem-se espaços interativos, possibili- telligentsia. tando, inclusive, a realização de eventos, o que pode estabelecer um profícuo vínculo Keywords: Memory. Football. National entre futebol, identidade e educação patri- identity. monial. Embora, tais casos ainda sejam raros

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 Resumen que neste ano de 2012 promoveu na cidade de Florianópolis seu II Simpósio de Futebol; LU- DENS – Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Este artículo tiene como objetivo apuntar Futebol e Modalidades Lúdicas, reunindo pes- algunos caminos trillados por la memo- quisadores de universidades públicas e privadas ria acerca del fútbol en Brasil. Partien- do estado de São Paulo. O rol de exemplos certa- mente poderia prosseguir por um longo espaço. do de la presuposición que los estudios 2 Cf: JESUS (2001). O campeonato gaúcho passou a envolviendo las prácticas deportivas ser disputado a partir de 1919, com interrupções tienen encontrado crecimiento en el in- nos anos de 1923 e 1924. Até 1939, os seguintes clubes do interior venceram a competição: Grê- terior del campo de las ciencias sociales, mio Esportivo Brasil (Pelotas), em 1919; Guarany y que el fútbol en específi co se confi gura Futebol Clube (Bagé), em 1920 e 1938; Grêmio como un importante fenómeno cultural Esportivo Bagé (Bagé), em 1925; Esporte Clube Pelotas (Pelotas) em 1930; Sport Club São Paulo en Brasil, procuramos apuntar como tal (Rio Grande) em 1933; 9º Regimento de Infantaria crecimiento repercute en términos de (hoje “Grêmio Atlético Farroupilha” da cidade creación de una memoria específi ca, en- de Pelotas), em 1935; Sport Club Rio Grande (Rio volviendo la trayectoria de los medio de Grande), em 1936; Grêmio Foot-Ball Santanense (Santana do Livramento), em 1937; e o Foot-Ball comunicación, las vinculaciones entre Club Rio-Grandense (Rio Grande), em 1939. To- fútbol y política a lo largo de la historia y das essas cidades pertencem à chamada “metade el posicionamiento de la intelectualidad sul” do estado. 3 Tal versão é repetida sistematicamente pelos brasileña. meios de comunicação brasileiros sempre que estes se referem aos primórdios do futebol entre Palabras-clave: Memoria. Fútbol. Identi- nós. 4 A Copa do Mundo de 1950 teve como sedes: Rio dad nacional. de Janeiro, São Paulo, , Curitiba, Porto Alegre e Recife. 5 A tese é apresentada, por exemplo, por Mário Notas Filho, na nota à segunda edição de “O negro no futebol brasileiro”. Hilário Franco Júnior, na obra 1 Apenas para citar alguns exemplos: SPORT – já citada, também apresenta esta tese. (RODRI- Laboratório de História do Esporte e do Lazer, GUES FILHO, 2003, p 16) e (FRANCO JUNIOR, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em 2007, p. 91). História Comparada da Universidade Federal do 6 Dentre outras publicações, a expressão se encon- Rio de Janeiro (UFRJ); NEFS – Núcleo de Estudos tra em: (GALEANO, 2010, p. 91). Ver também: Futebol e Sociedade, organizado a partir do Pro- (PERDIGÃO, 1986). grama de Pós-Graduação em História da Univer- 7 Cf.: FRAGA (2009). A inexistência de tal culpabi- sidade Federal do Paraná (UFPR); a instituição lização é apontada também por: MOURA (1998, da disciplina “História Sociocultural do Futebol” p. 144). no Programa de Pós-Graduação em História So- 8 Citamos aqui alguns exemplos de autores que, cial da Universidade de São Paulo (USP); insti- em maior ou menor medida contribuíram para tuição da disciplina “História Social do Futebol”, a construção de uma autoimagem depreciativa com o status de opcional, pelo departamento de do brasileiro, a partir de sua confi guração racial, História da Universidade Federal do Rio Grande ação do meio, fatores históricos ou outras justi- do Sul (UFRGS); o Grupo de Pesquisa “História e fi cativas quaisquer: Euclydes da Cunha, em “Os Memória do Futebol, liderado pelo professor Fre- sertões”, ao se referir ao sertanejo, cunhou a fi gu- derico de Castro Neves, do departamento de His- ra do “Hércules Quasímodo”, fi gura embruteci- tória da Universidade do Ceará (UFC); Núcleo de da confi gurada por um meio hostil em oposição Sociologia do Futebol da Universidade Estadual ao brasileiro litorâneo e moderno. Oliveira Lima, do Rio de Janeiro (UERJ); Núcleo de Antropolo- em “Formação histórica da nacionalidade Bra- gia Audiovisual e Estudos da Imagem (NAVI) da sileira” identifi cou a assimilação da cultura na- Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), cional, inferior, pela europeia, superior, como o

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 caminho necessário à civilização, à superação da 13 O próprio Rufi no cita, em nota, a existência de “barbárie”. Monteiro Lobato, em Urupês, criou algumas “Histórias” do futebol brasileiro então o Jeca Tatu, matuto que foge constantemente da publicadas. De lá para cá a realidade tem muda- civilização representada pelo italiano. Já Paulo do, como já tivemos oportunidade de comentar Prado, em “Retrato do Brasil” retoma a ideia do acima. povo triste, fruto da busca desenfreada do pra- 14 A seção destinada aos esportes constitui-se em zer, do sonho da riqueza fácil, da ação do meio um espaço nobre dos jornais, sendo que a temá- ambiente e do surgimento de um bacharelismo tica normalmente ganha manchetes de capa ou inútil travestido de romantismo. Cf.: CUNHA contracapa. As redes de televisão constituem no- (2000); (LIMA, 2000); (LOBATO, s/d); (PRADO, ticiários específi cos para o universo esportivo. Já 1962). a programação de inúmeras rádios é repleta de 9 É curioso perceber que a memória acerca do mun- inserções ou de programas direcionados para as dial de 1950, no Brasil, está fundamentada, sobre- práticas esportivas, incluindo aqueles que se de- tudo, sobre depoimentos e fotografi as. Apenas dicam apenas ao debate. Em todos estes espaços, algumas poucas imagens em película sobraram o futebol é tema preponderante, em detrimento da fi lmagem feita quando da partida decisiva en- dos demais esportes. tre brasileiros e uruguaios. Segundo Ruy Castro, 15 No dia 25 de março de 2012, o jornal Zero Hora o material, gravado por Milton Rodrigues – ir- trazia como matéria de capa uma reportagem mão de Nelson Rodrigues e Mário Filho – sumiu sobre a construção do novo estádio do Grêmio misteriosamente por volta de 1963, incluindo có- Foot-Ball Porto Alegrense e sobre as reformas no pias e negativos, havendo as hipóteses de que as Estádio Beira-Rio, do Sport Club Internacional. fi tas teriam sido consumidas em um incêndio ou Sob a manchete “vai mudar até o jeito de torcer”, simplesmente furtadas. Paulo Perdigão, porém, a matéria ressalta as transformações que os novos faz referência à existência de algumas cenas, que espaços trarão para os hábitos de seus torcedo- foram aproveitadas no fi lme “Garrincha: alegria res. Tanto o modelo do novo estádio do Grêmio do povo”, dirigido por Joaquim Pedro, em 1962. quanto as reformas no estádio do Internacional, Cf.: CASTRO (1992); (PERDIGÃO, 1986). pensadas para a Copa do Mundo de 2014, são 10 O Canal 100 foi uma empresa cinematográfi ca inspiradas nos padrões europeus de estádio, fa- especializada em registrar imagens de partidas zendo com que o futebol seja apenas um detalhe futebolísticas no Rio de Janeiro sob a forma de a mais em uma estrutura que comporta shopping um cine-jornal. Esse material, de reconhecida centers, hotéis e restaurantes. qualidade visual, era posteriormente exibido nos 16 Citamos alguns trabalhos publicados ou produ- maiores cinemas do país, antes da exibição dos zidos no Brasil, a título de exemplo: (DAMO, fi lmes em cartaz. Suas atividades encerraram-se 2002); (GIULIANOTTI, 2002); (HOLLANDA, no fi nal do século XX. 2004); (ANTUNES, 2004); (JESUS, 2001). 11 O fi lme, dirigido por Roberto Farias, foi lançado 17 Ver, a título de exemplo: (ALABARCES, 2002); em 1982, mas apenas no ano seguinte seria libe- (ALABARCES, 2003); (FRYDENBERG, 2011). rado, em versão sem cortes. 18 Os melhores exemplos aqui são o já citado livro 12 A Revista do Globo, do dia 13 de maio de 1950, de GIULIANOTTI (2002) e (ELIAS; DUNNING, traz em suas páginas 48 e 49 uma cena ilustrati- 1992). va desse hábito. Na imagem o presidente Getúlio Vargas, em recepção ao elenco brasileiro que pre- parava-se para a Copa do Mundo de 1950, apare- Bibliografi a ce apertando a mão do centroavante Adãozinho, do Sport Club Internacional, e que compunha o ALABARCES, Pablo (Org.). Futbologías: fútbol, grupo inicial de jogadores que se preparava para o mundial daquele ano. A legenda da foto diz: identidad y violência en América Latina. Bue- “CONTACTO com as massas sempre foi culti- nos Aires: Clacso, 2003. vado por Getúlio, que democraticamente recebia ALABARCES, Pablo. Fútbol y pátria: el fútbol as delegações de futebol. Ei-lo aqui apertando a mão de Adãozinho, jogador gaúcho em disputa y las narrativas de la nación en la Argentina. no Rio. ‘Como é seu nome?’ – perguntou Getúlio Buenos Aires: Prometeo Libros, 2002. Dorneles Vargas ao moreno. ‘Adão Dorneles, res- pondeu o craque. ‘Se é Dorneles, é bom’, disse o ANDERSON, Benedict. Nação e consciência na- presidente”. cional. São Paulo: Ática, 1989.

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 328-342 ANDRADE, Mário de. De Paulicéia Desvairada JESUS, Gilmar Mascarenhas de. A bola nas redes a Café (poesias completas). São Paulo: Círculo do e o enredo do lugar: uma geografi a do futebol e Livro [s. d.]. de seu advento no Rio Grande do Sul. Tese de ANDRADE, Mário de. Macunaíma (o herói sem Doutorado em Geografi a Humana. São Paulo: nenhum caráter). São Paulo: Martins, 1978. USP, 2001. ANTUNES, Fátima Martin Rodrigues Ferreira. LIMA, Oliveira. Formação histórica da naciona- Com brasileiro não há quem possa! Futebol e iden- lidade brasileira. Rio de Janeiro: Topbook. São tidade nacional em José Lins do Rego, Mário Paulo: Publifolha, 2000. Filho e Nelson Rodrigues. São Paulo: Unesp, LOBATO, José Monteiro. Urupês. São Paulo: 2004. Brasiliense [s. d.]. CASTRO, Ruy. O anjo pornográfi co: a vida de MELO, Victor Andrade; BITTENCOURT, Mar- Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das celo; NASCIMENTO, Augusto (Orgs.). Mais do Letras, 1992. que um jogo: o esporte e o continente africano. CUNHA, Euclydes da. Os sertões. Rio de Ja- Rio de Janeiro: Apicuri, 2010. neiro: Francisco Alves/São Paulo: Publifolha, MOURA, Gisela de Araújo. O rio corre para o 2000. Maracanã. Rio de Janeiro: FGV, 1998. DAMO, Arlei Sander. Futebol e identidade social: PERDIGÃO, Paulo. Anatomia de uma derrota. uma leitura antropológica das rivalidades en- Porto Alegre: L&PM, 1986. tre torcedores e clubes. Porto Alegre: UFRGS, PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. 2002. Footballmania: uma história social do futebol no ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. Deporte Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova y Ocio en el Proceso de la Civilización. Madrid: Fronteira, 2000. Fondo de Cultura Económica, 1992. PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre FRAGA, Gerson Wasen. “A derrota do Jeca” na a tristeza brasileira. Rio de Janeiro: José Olym- imprensa brasileira: nacionalismo, civilização e pio, 1962. futebol na Copa do Mundo de 1950. Porto Ale- RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras gre: Tese (Doutorado) - Universidade Federal imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Com- do Rio Grande do Sul - UFRGS, 2009. panhia das Letras, 1994. FRANCO JUNIOR, Hilário. A dança dos deuses: RODRIGUES FILHO, Mário. O negro no futebol futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Compa- brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. nhia das Letras, 2007. SANTOS NETO, José Moraes dos. Visão de jogo: FRYDENBERG, Julio. História social del fútbol: primórdios do futebol no Brasil. São Paulo: del amateurismo a la profi ssionalización. Bue- Cosac & Naify, 2002. nos Aires: Siglo XXI, 2011. SANTOS, Joel Rufi no dos. História política do GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. futebol brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1981. Porto Alegre: L&PM, 2010. GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do futebol: dimensões históricas e socioculturais do espor- te das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2002. HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O descobrimento do futebol: modernismo, regiona- lismo e paixão esportiva em José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2004.

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