Mauro Guilherme Pinheiro Koury Maria Cristina Rocha Barreto (Organizadores)

GREM João Pessoa, Janeiro de 2004

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Copyright by GREM, 2004

K88a KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro e BARRETO, Maria Cristina Rocha (Organizadores). Antropologia da Emoção. Ensaios. João Pessoa, GREM, 2004, 138 p. (Edição em CD-Rom).

Bibliografia. Antropologia 2.Antropologia da Emoção I. Título II. Título: Ensaios

UFPB/BC CDU-306.9

Edições GREM Caixa Posta 5144 CEP 58051-970 – João Pessoa – Paraíba - Brasil

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Sobre o GREM

O Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia da Emoção é uma base de pesquisa reconhecida pelo CNPq. Surgiu em 1994, integrado às linhas de pesquisa do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba. Objetiva compreender costumes, comportamentos, atitudes, percepções, representações e imaginários oriundos de sociabilidades surgidas no processo de constituição da sociedade ocidental, e brasileira em particular, a partir do século XIX. Organiza-se em linhas de pesquisa que congregam pesquisadores e estudantes em seu interior; estas se relacionam com um Banco de Dados e um Fórum Interdisciplinar Permanente em Sociologia e Antropologia da Emoção. O GREM edita a RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção e a série de livros Cadernos do GREM. O conjunto dá o formato final do grupo enquanto centro de formação, arquivo e divulgação de seus produtos, e troca sistemática de idéias entre pesquisadores, alunos e a sociedade em geral.

E-Mail: [email protected]

3 ÍNDICE

Introdução ...... 5

PRIMEIRA PARTE:...... 6 Estrutura dos Sentimentos e Sociabilidade ...... 6

Cuidando de si e do futuro: estrutura dos sentimentos nas práticas corporais femininas...... 7 Roberta B. C. Campos, Luciana C. Lira E Roberta S. Melo ...... 7

Saiu do bordel e foi a igreja: sociabilidade, família e prostituição no bairro do Jurunas, Belém-Pará...... 18 César A. M. de Souza e Luis J. C. Saraiva...... 18

SEGUNDA PARTE: ...... 34 Sofrimento Social, Medos Urbanos e Formas de Sociabilidade ...... 34

Metáforas de amor e paixão, vida e morte, no processo de mudanças de uma empresa do setor financeiro...... 35 Lea Carvalho Rodrigues ...... 35

Manipulação de uma identidade estigmatizada como estratégia de sobrevivência...... 51 Simone Simões Ferreira Soares ...... 51

Tão perto, tão longe: reflexões teóricas sobre o sofrimento social e suas representações na mídia...... 68 Maria Cristina Rocha Barreto...... 68

Medo, memória e pertença: o caso da Favela do Poço da Draga em Fortaleza (Ce) ...... 79 Vancarder Brito Sousa...... 79

Formas de sociabilidade e uso do espaço sob a ótica dos medos no urbano contemporâneo: um estudo de caso em alguns bairros da cidade de João Pessoa, Paraíba...... 91 Mauro Guilherme P. Koury, Ma. Sandra R Santos, Alessa C. P Souza, Alexandre P. Almeida, Anne Gabriele L. Sousa, Andréia V. Silva, Rivamar G. Silva e Francisco A. V. Cavalcante Fo...... 91

TERCEIRA PARTE:...... 99 Arte, Emoção e Formas de Sociabilidade...... 99

A estatuária funerária no brasil: representação iconográfica da morte burguesa...... 100 Maria Elizia Borges...... 100

A música erudita e o jovem...... 108 Virna Lisi Leite Vieira ...... 108

O divino e os estados extáticos e de comoção na figuração artística brasileira recente (1980 – 2002)...119 Marcio Pizarro Noronha ...... 119

“Sinal De Nascença Escolhido”: A Prática Da Tatuagem E A Valorização Da Pessoa Singular...... 133 Débora Krischke Leitão...... 133

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Introdução

Os trabalhos presentes nesta coletânea de ensaios fizeram parte das sessões do Grupo de Trabalho em Antropologia da Emoção, no interior da programação do VIII Encontro de Antropólogos do Norte e Nordeste, realizado em São Luis, Maranhão no período de 1 a 4 de julho de 2003.

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PRIMEIRA PARTE:

Estrutura dos Sentimentos e Sociabilidade

6 Cuidando de si e do futuro: estrutura dos sentimentos nas práticas corporais femininas. Roberta B. C. Campos

Luciana Campelo Lira

Roberta de Sousa Melo

Este trabalho tem por objetivo discutir os dados coletados durante a pesquisa “Cultura de Consumo e Subjetividade”, coordenada por Roberta Campos, com financiamento Propesq-CNPq, referentes às práticas corporais de mulheres recifenses, pertencentes às camadas médias da sociedade, consumidoras de dietas e musculação. O trabalho de campo foi realizado em clínicas de estética e em academias de ginástica. Foram aplicadas 32 entrevistas semi-estruturadas, no período de novembro de 2001 a agosto de 2002. O grupo de informantes apresentou variações na faixa etária, no perfil profissional etc. No entanto, houve algum padrão: de modo geral, as entrevistadas situavam-se na faixa dos 20 aos 35 anos, e, em sua maioria, eram estudantes ou profissionais liberais (advogadas, médicas, representantes comerciais etc.). O método qualitativo foi utilizado por ser mais adequado aos intuitos deste trabalho, que procurou enfocar elementos afetivos na relação das informantes com seu corpo, tais como satisfação, motivações, desejos, sofrimentos, frustrações, etc. Grande parte da literatura sociológica e antropológica recente tem dispensado bastante atenção ao corpo e às emoções nos processos de transformação da sociedade contemporânea, permitindo, desta forma, a percepção da relação existente entre as forças sociais e a expressão da afetividade e do corpo femininos. A grande procura por intervenções na estética corporal, desde as formas tradicionais (piercings, tatoo etc) até a recorrência à mais alta tecnologia (biotecnologias, cirurgias plásticas, internet etc.), nos aponta para uma nova relação com o corpo e, simultaneamente, para novos modos se sentir que estão por trás desse processo. Essas novas práticas estão associadas às mudanças mais estruturais e amplas da sociedade contemporânea como, por exemplo, o declínio da indústria pesada em oposição ao grande avanço dos setores de serviços. Em consequência, ocorre mudanças nos estilos de vida, também relacionadas ao desemprego, ao aumento da expectativa de vida e das oportunidades de lazer. Como afirma Bryan Turner (1996), o corpo passa de trabalhador para desejado e desejante; e torna-se um projeto de vida, justificando-se o investimento psicológico e financeiro neste patrimônio. Tais transformações sociais e econômicas ainda associam-se ao que Giddens (1993) chama de transformação da intimidade. Para Giddens (1993), as maiores transformações recentes ocorridas na sociedade localizam-se nas esferas doméstica e pessoais. Se antes as relações domésticas eram baseadas no contrato, agora são as expectativas em relação às satisfações pessoais através da intimidade e do contato sexual que são a base dessas relações. A importância do corpo e emoções na atualidade é evidente, de tal forma que Bryan Turner (1996) nomeia a sociedade contemporânea como uma sociedade somática (somatic society). Ou seja, uma sociedade onde as questões políticas e pessoais são ambas problematizadas no corpo e expressas pelo corpo. Outros autores como Gilles Delleuze e seus leitores mais assíduos, entendem que estamos diante de um outro tipo de formação social, caracterizado por um novo regime de poder e por tecnologias inovadoras de formação dos corpos e da subjetividade (ver Sibilia, 2002 e Vaz, 1996). Delleuze (1992) cunha o conceito de sociedade de controle que se diferencia, sem negar

7 continuidades, da sociedade disciplinar de M. Foucault. No sentido de Delleuze, apesar do corpo já não ser mais objeto de disciplina e punição, por trás dessa aparente liberdade, o corpo é controlado pelo mercado, pelos novos desejos, e novas terapêuticas. O “novo” corpo é um corpo consumidor, em busca de prazer e não de satisfazer pura e simplesmente necessidades. Porém, o novo capitalismo metaboliza nossos corpos, lançando e relançando no mercado novas formas corporais em grande velocidade, tornando-os voláteis e flexíveis. Essa maleabilidade corporal se acompanha de transformações no self do homem e da mulher contemporâneos, e podemos dizer, com as palavras poéticas de Paulo Vaz, que estamos deixando de ser o que somos. Assim, por um lado o corpo passa habitar o campo da liberdade, onde transformamos a sua forma e sua capacidade; e, por outro, essas formas são (im)postas pelo mercado e pela nova medicina (bio-genética, medicina esportiva, etc.). A possibilidade de corrigir os defeitos físicos indesejados, de aumentar a performance corporal, regular os afetos; enfim, corrigir erros que colequem em risco a beleza, a juventude e o potencial de socialização é uma promessa de real, plausível que a tecnologia pode realizar. O bio-poder é assim mais controle que disciplina, é o controle dos riscos; e se realiza fundamentalmente no jogo incessante de subjetivação. Como observa Paulo Vaz (1999), não se trata de um poder opressor, mas um poder que se realiza na interferência contínua no processo de subjetivação. A gerência de nossos corpos passou das instituições disciplinares para o âmbito privado. Cuidar de si, gerenciar os nossos prazeres em face dos riscos que eles apresentam é de responsabilidade individual. O risco passa ser o fundo de negatividade em nossos hábitos a ser evitado. De forma que é, através da avaliação do risco, da projeção ou simulação do futuro que o indivíduo pensa a relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo. A vida contemporânea tona-se um jogo entre um hábito e sua consequência, entre o prazer e o futuro (Vaz, 1999). Entre prazer e dor, entre liberação e subjugação, parecem estar situados os corpos e os afetos das mulheres por nós entrevistadas. Partindo dessas considerações, nosso principal interesse é trazer para discussão as experiências afetivas atreladas à dimensão corporal das mulheres entrevistadas. Deste modo, as falas afetivas que acompanham suas práticas corporais constituirão a orientação deste trabalho, no qual é estabelecida a relação entre Emoções, Corpo e Sociedade de Consumo. Através das falas sobre as práticas corporais das entrevistadas pretende-se perceber como essas mulheres vivenciam afetivamente as forças sociais sobre seus corpos e de que forma essa afetividade interfere em suas ações.

A LIBERDADE E O PRAZER

Durante o trabalho de campo, tornava-se cada vez mais evidente, pela fala das entrevistadas, uma transformação na sua afetividade, sendo esta vivenciada através do corpo. Suas práticas corporais foram tratadas principalmente como colaboradoras nos relacionamentos afetivo-sociais dessas mulheres, produzindo satisfação e prazer social. De tal forma, pode-se falar de novos modos de sentir através do consumo voltado para o corpo. E, para além, percebemos que o estado emocional dessas mulheres se refletia no modo e qualidade de sua imersão na vida social. A realização afetiva dessas mulheres parecia estar intimamente relacionada à possibilidade de construir um corpo capaz de ser utilizado como instrumento de promoção social e ascensão, seja no

8 campo dos relacionamentos afetivos, seja nos setores do mercado de trabalho que exijam boa forma (Sabino, 2000). A recorrência à academia de ginástica e/ou clínica de estética foi, de modo geral, relatada pelas informantes como conseqüência da necessidade de “cuidar de si”, prática inerente à cultura do narcisismo (Lasch, 1983), remetendo à produção de “uma preocupação narcisista, hedonista, com o ego” (Giddens, 1991). O corpo constitui, desse modo, o objeto privilegiado do amor próprio dessas mulheres, tal como sugere a seguinte fala: “Resolvi cuidar mais do meu corpo para a satisfação do ego. Para me sentir bem”. (A., 26 anos). Essa lógica é do ponto de vista de alguns autores como Anthony Giddens e Mike Featherstone, em grande parte, incitada pela indústria do corpo. O prazer, ou pelo menos sua promessa, torna-se um incentivo para produtos comercializados em uma sociedade capitalista (Giddens, 1993). É desse modo que sentimentos como satisfação e auto-estima elevada são tidos como prováveis por meio de uma maior atenção para com o próprio corpo e com a própria aparência. Freqüentar um salão de beleza, “renovar o guarda-roupa”, “malhar alguns dias na semana”, tornam-se provas de amor para consigo mesmas. Este tipo prática de consumo pessoal vincula-se a um capitalismo de superprodução, como bem observa Paulo Vaz (1998), onde o consumo já não é mais por necessidade e consome-se muito mais para produzir prazer. Na relação existente entre as emoções e o corpo feminino na cultura de consumo, observa-se um outro efeito produzido pelos cuidados corporais no cenário atual: O que ocorre neste caso é o alívio das tensões psicológicas provocadas pelo cotidiano contemporâneo. Um refúgio emocional passa a ser cada vez mais encontrado nos cuidados com o corpo, sendo este uma opção de resistência aos conflitos do dia-a-dia. De acordo com algumas falas, o cuidado com o corpo possui uma função terapêutica: “O prazer que eu sinto é porque quando eu venho pra academia eu saio do estresse da vida, da rotina, do corre-corre, prova, faculdade, essas coisas. E quando eu chego aqui eu relaxo, brinco, danço...” (L. 26 anos) Dessa forma, essas mulheres, através de uma prática narcísica, potencializa a sua socialização e o narcisismo torna-se assim a melhor maneira de lutar ou sanear as tensões e ansiedades da vida contemporânea (Lasch, 1983) Por tudo que foi exposto até agora, pode-se considerar a realização pessoal no espaço do corpo, no sentido de que essas mulheres podem recriar seu estado afetivo por meio dos cuidados estéticos. Existe, neste caso, um sentido libertador da afetividade feminina. Podemos falar até mesmo de novas formas de feminilidade através desse processo, uma vez que a mulher contemporânea é mais livre para “sentir”, em relação às mulheres de gerações passadas: elas estão pensando mais em si mesmas e dedicam-se mais à busca de sua auto-estima, ao invés de limitarem sua vida às ordens e aos desejos do marido, por exemplo. Nunca, como agora, a mulher pôde concentrar-se tanto sobre o destino que deseja para si mesma. Hoje é ela que decide, por exemplo, o momento de iniciar sua vida sexual. A sexualidade feminina já não é mais encarada como a reprodução da espécie humana, mas sim como um espaço de desejos e fantasias da mulher. Outras conquistas parecem evidenciadas no território do corpo feminino: a mulher contemporânea é livre para metamoforsear-se, sendo capaz de rejeitar algumas características genéticas que lhe causam desconfortos e sofrimentos. Pareceu-nos bastante evidente que, à medida que as entrevistadas percebiam que seus corpos estavam adequando-se ao modelo culturalmente imposto, elas tornavam-se mais confiantes em suas relações sociais: “Se você acha que emagreceu um pouquinho, que melhorou, então daí você já se acha mais bonita; você bota uma roupa e já acha que

9 ficou melhor. Então com isso você se relaciona melhor... com a sociedade mesmo...”. (M., 30 anos). O corpo, para estas mulheres, tornou-se um forte aliado para suas conquistas afetivas e sociais, e passou a materializar a possibilidade de evitar frustrações nessas esferas da vida. É o investimento nos seus corpos, cuidando de si, que essas mulheres acreditam criar a condição de se relacionar com as outras pessoas de modo igualitário. De fato, a possibilidade de aumentar a capacidade física, potencial estético e correção de desvantagens possibilita a criação de uma condição mais igualitária na competição, como observam Giddens (1991) e Loic Wacquant (2001). Nas relações sociais, seu corpo pode lhe propiciar uma situação confortável, ou, ao menos, condições de igualdade para com as demais mulheres, e também para com os outros homens, tal como vem ocorrendo no campo profissional em que são exigidos corpos com boa aparência, dinâmicos e ágeis. A mulher então, deixa de ser vista como o “sexo frágil”, já que seu corpo tornou-se forte elemento de sua intervenção no mundo em que ela vive. Ao adquirir cada vez mais espaço na cena social, esta mulher vai se libertando de antigas repressões emocionais criadas por sua dependência ao sexo masculino, passando a experimentar maior prazer em sua vida. Portanto, é a indústria do corpo que se dispõe a suprir as carências afetivas e antigas desvantagens sociais ligadas ao corpo feminino. Neste contexto, as novas tecnologias são vistas como libertadoras. A tecnologia se dispõe a realizar a subjetividade feminina e promove a liberação do corpo e do eu (Haraway, 2000). É possível construir parte da felicidade com a ajuda dos avanços tecnológicos e científicos – cosméticos, cirurgias, usos de próteses, regimes etc. (Sant’Anna, 2001). E passamos a ter o poder de vivenciar novos modos de sentir de estar no mundo. Passamos a desejar nosso próprio agrado, e, visto desse modo, o corpo surge como objeto gratificante, e como um lugar de fascínio, sedução, criação de alianças via pactos estéticos, que celebram o prazer e a criatividade (cf. Villaça & Góes, 1998). A satisfação e a realização femininas são construídas socialmente, sendo, portanto, a emoção desligada da idéia do que há de mais interiorizado. Ao invés disso, a emoção passa a ser condicionada pela esfera social e seus mecanismos: “Depois que eu comecei a malhar, passei a receber mais elogios, e eu mudei. Mudou tudo. Eu comecei a ter outra imagem em relação a mim mesma”. (H., 21 anos). Por outro lado, a satisfação pessoal depende também do sucesso e da tentativa de cada mulher na busca de sua melhora, e este sucesso só será confirmado pelo olhar e aprovação do outro. As emoções enquanto atreladas à estética feminina são desenvolvidas no momento da aparição pública. O estado afetivo, portanto, depende do impacto social, quando será julgado o modo como o corpo feminino se mostra ao mundo exterior, podendo ser aprovado ou não. O que queremos dizer com isso é que esses modos de sentir relacionados à dimensão estética só adquirem sentido ao nível do social, já que este corpo, embutido de investimentos, é como afirma Baudrillard (1978), sensível à temática latente da gratificação. O prazer, a auto-estima e a realização dos desejos dependem de “uma segunda opinião”, e de que seja aprovada a condição estética em que o corpo feminino encontra-se. É como se fosse a “recompensa pelos esforços”:

“Tem coisa melhor do que você se olhar no espelho e se achar atraente, com um corpinho sequinho, ou não ter vergonha de tirar a roupa na frente do namorado? (A., 27 anos). É justamente esse esforço em trabalhar seu corpo, de modo que ele expresse a imagem de feminilidade vigente, que pode provocar conflitos. De fato, os dados coletados também nos apontam que as mulheres sofrem o efeito de orientações moralizadoras, indicando-nos que o processo de liberação do corpo feminino não é algo tão simples. Há todo um controle que interfere na expressão de seu corpo e de suas emoções.

10 QUANDO O PRAZER E A AUTO-ESTIMA TORNAM-SE IMPERATIVOS

As teorias contemporâneas apontam para uma sociedade narcísica e hedonista, em que a busca pelo prazer e a satisfação pessoal se tornam um imperativo. O indivíduo deve apresentar o corpo e as emoções requisitadas culturalmente de forma a realizar seu projeto de vida. Nesse contexto, o corpo aparece como vetor de realização emocional (auto-estima, satisfação, prazer, sucesso, etc. ) através da capacidade de modelação deste pela via do consumo. Se por um lado, as mulheres estão mais livres da repressão emocional masculina, cria-se uma forte dependência emocional relacionada à satisfação com a imagem corporal (Del Priori, 2000). Nesses termos, a sua realização afetiva, traduzida, em grande medida, por auto-estima, estabelece uma relação de dependência com a adequação da forma do corpo ao modelo vigente. Dessa maneira, o projeto de felicidade dessas mulheres parece estar fortemente comprometido com a modelação de seus corpos, passando assim, como afirma Miranda (2002) a um corpo que resume em si todas as esperanças e ameaças. “Bem, eu não digo mudar o corpo nem ficar tão magra, mas, ficar definida com tudo em cima pra que você possa sentir orgulho do seu corpo, se sentir bem, com sua auto-estima elevada, porque você se sentindo bem espiritualmente, isto é, você se aceitando tudo são rosas”.(A, 27 anos) O bem-estar e a satisfação pessoal estão diretamente relacionados com a satisfação com o corpo. As informantes dizem sentir prazer ao cuidar de seus corpos, mas ao mesmo tempo em que isso lhes proporciona prazer, é também percebido como obrigação, como dever, o dever de cuidar de si. Isso parece ser uma característica da sociedade contemporânea: responsabilizar os indivíduos pela imagem e funcionamento do seu corpo. Essa idéia bem se expressa na seguinte fala: “Três homens me esculhambaram disseram que eu estava muito gorda. Falaram da minha barriga, aí eu tomei vergonha na cara e vim fazer exercício pra emagrecer”.(A, 27 anos). Esses dois aspectos parecem ser contraditórios, pois o cuidado de si gera prazer e satisfação pessoal ao mesmo tempo em que ele é uma obrigação, um dever. O que se percebe é que o prazer relatado pelas entrevistadas está intimamente ligado à adequação do corpo ao modelo imposto culturalmente e sua aceitação social, e por tanto este sentimento parece desempenhar um papel controlador. O corpo adequado gera prazer pois possibilita um melhor relacionamento social e afetivo, viabilizando o livre “trânsito” nos espaços sociais. O s prazeres da adequação corporal pode ser evidenciado na fala seguinte: “A recompensa é colocar uma roupa que todo mundo pode vestir e você também. Por que a maior dificuldade é que as pessoas só pensam na estética para magros. Então primeiro pra mim é roupa, segundo você ter sua saúde em ordem, você está bem consigo mesma, enfrentar um espelho sem ficar cobrando de você; aquele pneusinho, aquela catucheira, aquela barriguinha saliente, então acho que o principal é isso aí, você chegando naquele parâmetro que você exige de você, você vai estar bem em todos os sentidos; tanto nos seus relacionamentos amorosos, como na sua vida profissional”. (T, 30 anos) O olhar do outro parece está incorporado no próprio olhar do indivíduo sobre si mesmo. Essa construção da subjetividade permite que o controle social seja realizado através da própria imagem que o indivíduo tem de si mesmo, sendo esse o principal vetor de sofrimento e constrangimento causado pela “inadequação” do corpo, que, por sua vez, influenciará

11 diretamente na sociabilidade e na afetividade dos indivíduos (Melo, 2003). É necessário ter um corpo “adequado” para se relacionar social e afetivamente com sucesso; é necessário ter um corpo “adequado” para consumir os produtos da moda; é necessário ter um corpo adequado para exibi-lo em público. “O comentário é que eu ‘tô’ mais magra, quando eu colocar o biquíni agora eu vou mais satisfeita pra praia... Eu me sinto bem melhor, me sinto mais à vontade pra sair de casa, esse tipo de coisa. Porque a gente quer colocar um biquíni e ir pra praia; porque os homens reparam muito, comentam muito se você engorda...para evitar comentários “engraçados” dos outros..” (A, 27 anos) A idéia de que o cuidado de si irá determinar o grau de sucesso dos indivíduos traz consigo sua versão mais perversa. Pois cada um deve ser um investidor de si e só sobre este recairá a culpa pela não adequação de seu corpo ao modelo proposto culturalmente. A tecnologia em diversas áreas elabora instrumentos capazes de transformar a realidade corporal, gerando a possibilidade de adequá-lo a identidade pessoal e de grupo. Por outro lado, frustra e reprime os que não se encaixam no modelo culturalmente difundido. “Quando eu não estou bem com meu corpo, eu me sinto inferior a determinados tipos de pessoa; me sinto tímida, recalcada para lidar com as pessoas”. (L., 26 anos). O corpo narcísico é a fonte de alimento do nosso amor próprio, e é, ao mesmo tempo, usado como imagem de troca tornando-se um indicador do sujeito do qual dependerá a aceitação e a inclusão social. O prazer tão propalado numa sociedade caracterizada como hedonista pode ser considerado contraditório já que, para se conseguir alcançar a satisfação com a imagem corporal é necessário, além do consumo de técnicas, serviços e produtos, o conhecimento, disciplina e controle sobre o corpo. O desconforto com o corpo está principalmente relacionado à gordura, ao excesso de peso, ao que é esteticamente inadequado e ao que também dificulta uma boa performance, além de representarem riscos à saúde, segundo os depoimentos. Dessa forma, além das práticas corporais exercidas nesses espaços, existe um controle permanente da alimentação, entendido como estratégia para se alcançar um corpo “ideal”, a maioria faz alguma dieta ou pretende começar, ou ainda, diz não fazer dieta, mas controla sua alimentação, a palavra evitar é sempre recorrente, se evita qualquer coisa que possa engordar. “Já fiz muitas dietas na vida. Agora, a única coisa que eu faço é reeducação alimentar. Não faço uma dieta rigorosa, mas tudo que eu coloco na boca eu procuro saber quantas calorias tem, se aquele alimento combina com aquele outro pra não engordar...”(L, 28 anos)

“Estou tentando fazer dieta. É ruim, porque tudo que te circula são massas, doces; tudo é tentador. Mas quando você vê que está começando a perder peso, isso te estimula a continuar”. (T., 30 anos). Ou seja, no intuito de promover o prazer através da satisfação com o corpo as entrevistadas se submetem a um controle alimentar, por vezes severo, como estratégia legitima na modelação do corpo. Além disso, a maioria se reporta a uma rotina semanal, quase diária de exercícios, como também o uso de técnicas pouco confortáveis. Contudo, fica claro que todo esse sacrifício é compensado pelos

12 resultados na aparência corporal. O corpo inadequado parece mais pertinente como vetor de sofrimento e do contrário ao prazer, e a satisfação com a adequação do corpo vêm redimir qualquer dose de dor ou sacrifício em prol desse resultado tão almejado. O corpo então torna-se máquina de prazer e dor (Vaz, 1999). O desconforto com a imagem corporal tratado pelas entrevistadas como um entrave para a realização de seus desejos, pode ser desencadeado ou intensificado com as transformações no corpo ao longo do curso da vida, como por exemplo, durante a gravidez, tornando necessário o uso de serviços, produtos e técnicas que corrijam as conseqüências da maternidade sobre a aparência corporal. Existe assim, um sofrimento referente ao curso de vida feminino, o que fez com que várias mulheres declarassem o seu desconforto após terem filhos e o desejo de voltar ao corpo que tinha antes da maternidade. E ainda, algumas mulheres que ainda não tinham filhos, demonstraram grande preocupação com a possibilidade de uma gravidez futura transformar os seus corpos. “Depois de uma gravidez eu engordei bastante, aí depois que eu parei de amamentar decidi cuidar de mim, fazer uma dieta e fazer um tratamento mais especifico”(A, 26 anos)

“Depois que eu ‘tive’ filho eu engordei e aí eu voltei”(M.E, 30 anos)

“lipoescultura, eu penso quando eu tiver filho”(R, 21 anos)

Ou nesta fala onde a entrevistada fala do desconforto com o corpo no pós-parto: “Quero voltar logo ao meu corpo normal, perder essa barriga”.(R, 30 anos). Além das preocupações com as consequências estéticas com a gravidez, as entrevistadas relataram preocupações com aquelas ligadas à velhice. As preocupações com a velhice, entretanto, vão além de preocupações estéticas, estendendo-se às doenças próprias da degeneração do corpo biológico. A limitação física, diminuição da produtividade, agilidade e performance causam medo e preocupação. Se por um lado, tais preocupações revelam um certo pessimismo quanto ao lugar reservado na sociedade ao corpo doente e idoso, essas mulheres em face a essa projeção trabalham seus corpos para ter um futuro melhor. Como podemos observar no seguinte diálogo com R.C. ( 24 anos, solteira e advogada) E – O que você espera da prática dessas atividades? I – No meu futuro, uma velhice bastante tranquila e ter uma vida sempre ativa. Acredito que não vou ter problema no futuro não. E – Você fala de uma velhice tranquila em que sentido? I – De não estar em cima de uma cama, de não ter um derrame... Ou como outra entrevistada, A.G. (26 anos, solteira, professora universitária), nos disse: E – Como foi que você decidiu fazer atividades físicas, o que a motivou? I – A velhice. Porque quando você tá ficando mais velha, você vê que o exercício é importante não só por uma questão de estética, mas de saúde. O condicionamento pulmonar, muscular, e principalmente o que é mais importante em mim é a flexibilidade. Entendemos, portanto, que as possibilidades de transformação do corpo agregam os dois sentidos: liberta por designar aos indivíduos o poder sobre a constituição do seu corpo adequando-o ao seu

13 desejo; e paralelamente controla a partir do momento que oferece os modelos a serem seguidos e, de alguma forma, limita, subgrupa e oprime os que fogem desses modelos. É dessa maneira que o modelo de corpo ideal magro, jovem, disposto, elástico, saudável pode trazer consigo elementos de conflito em relação à capacidade de liberação dada às mulheres através das possibilidades de transformação do seu corpo.

O CUIDADO DE SI, O PRAZER, OS RISCOS E OS MEDOS

Cuidar de si revela-se nas falas dessas mulheres como uma estratégia possível de superar uma situação de desvantagem. A superação das desvantagens na performance física ou social por meio de práticas corporais (dietas, musculação, etc.) garante uma socialização mais eficiente, geradora de prazeres e de auto-realização. Sentir-se bem consigo mesma é sentir-se bem com o próprio corpo acima de tudo. Sentimentos de inadequação ou de vergonha associados a uma suposta ausência de amor próprio e auto-estima são superados, através de intenso investimento de tempo e dinheiro no corpo. A relação entre o corpo e os sentimentos sobre este (satisfação/insatisfação, prazer/sofrimento) passam a ser, também gerenciados no sentido de uma simulação do futuro, ou seja, o corpo pode ser pensado e trabalhado de acordo com o projeto que vislumbramos para ele e para nós conseqüentemente, já que o corpo espelha aquilo que se quer que ou outros pensem de nós e aquilo que pensamos dos outros, informando através da relação que temos com ele como nos sentimos e do que somos capazes. Em associação ao imperativo da beleza, o imperativo da saúde se interpõe na relação que as entrevistadas apresentam com os seus corpos. É interessante observar que boa parte das entrevistadas revelam um receio e medo com o destino inexorável dos corpos, o envelhecer. O envelhecimento certamente tem sentidos diversos e pode ser experimentado de formas também diversas de acordo com o contexto histórico e social. Na sociedade contemporânea, por exemplo, está ocorrendo uma dissolução das categorias fixas do ciclo de vida (cronologia, faixas etáias, etc.) e categorias mais fluidas ligadas a idéia do curso de vida (experiências de vida) tomam seus lugar. Neste sentido, a aparência e como o indivíduo se sente podem estar em conflito com a sua condição biológica e idade cronológica (Featherstone et al., 1991). Para ser velha não basta estar numa dada faixa etária, mas é preciso parecer velho, sentir-se velho, etc. Para além da dimensão simbólica ou semiótica da questão da velhice, queremos chamar atenção para a experiência fenomenológica do corpo em envelhecimento, que adoece e com isso perde capacidades, sofre limites, e gera dependências. As entrevistadas também revelam essa preocupação com o futuro de seus corpos jovens, saudáveis. Temem, em sua maioria, aquelas doenças que não matam mas debilitam. Um certo pessimismo pode ser observado aqui. Temem o que o pode acontecer no futuro. A simulação pessimista do futuro de seus corpos, por outro lado, fazem reagir, agir para evitar o pior e projetam a esperança positiva de manutenção e continuidade da agilidade, flexibilidade e performance necessárias para uma velhice “tranqüila”. Neste sentido, os prazeres são reavaliados em face dos riscos que seus corpos e suas identidades possam sofrer. Esse temor ligado à degeneração corporal está provavelmente associado às informações disponibilizadas pela mídia sobre os comportamentos de riscos ligados a uma alimentação rica em gordura e açucares, à falta de exercícios físicos, etc. A mídia também disponibiliza as estratégias possíveis para se prolongar a saúde e juventude dos corpos, e as estatísticas médicas viabilizam a simulação subjetiva do futuro através da relação calculada entre hábitos pessoais e riscos futuros. O que chama atenção é o medo da dependência, o medo da limitação física. Uma sociedade que valora o corpo perfeito promete a saúde perfeita e até mesmo a possibilidade de imortalidade (criogenia), provoca paradoxalmente um sentimento de temor dado pela própria

14 experiência fenomenológica do envelhecimento: o corpo fenece e decai. Na tensão entre a construção social e cultural do corpo e a fenomenologia do corpo na velhice, parece ser incontestável a predominância da materialidade do corpo, chegando ao que Kathleen Woodard, citada por Featherstone (2000:110), afirma: à medida que envelhecemos, avançamos em direção aos limites da representação, à vitória do natural sobre o cultural. O corpo, na velhice, é o que mais importa. Seus problemas e questões desbancariam as questões de raça e gênero. O medo da morte e o desejo de prolongar os prazeres do mundo material evoca um sentimento pessimista, mas por outro lado, em face da potencialidade da tecnologia, esse sentimento se transforma numa atitude otimista ou melhorista (ver Featherstone, 2000:112). Certamente aqui evoca-se uma questão ética e política, mas as entrevistadas não relatam tal preocupação. A preocupação é narcísica e a solução é individual, pessoal, depende da força de vontade, do amor próprio, de evitar os riscos, e calcular o futuro.

15 BIBLIOGRAFIA

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17 Saiu do bordel e foi a igreja: sociabilidade, família e prostituição no bairro do Jurunas, Belém-Pará1

César Augusto Martins de Souza

Luis Junior Costa Saraiva

De um lado ficam as casas e, atrás das janelas do andar térreo, que parecem vitrines de uma loja, pode-se perceber minúsculos quartos de putas. Elas estão vestidas com roupas de baixo, sentadas perto do vidro, em poltronas acolchoadas de almofadas. Parecem gatos entediados. lado da rua é ocupado por uma gigantesca catedral gótica do século XIV. Entre o mundo das putas e o mundo de Deus, como um rio que separa dois reinos, flutua um ocre odor de urina.2

CONHECENDO A “ALDEIA” JURUNENSE E SEUS MÚLTIPLOS ESPAÇOS

O que é um bairro? A pergunta poderia ter várias respostas do pesquisador interessado no assunto, mas tem uma diversidade maior quando entramos em contato com esse espaço tão plural que é o bairro do Jurunas. Espaço que agrega outros micros espaços de lazer, trabalho e sociabilidade.3 Já no primeiro contato com o bairro do Jurunas foi possível perceber a existência de dois espaços que mesmo separados por uma distância física, ligam-se por uma rede invisível de relações que, no decorrer da pesquisa, foram surgindo. O espaço religioso, representado pela igreja de Santa Teresinha do Menino Jesus, localizado em uma das extremidades do bairro na rua Roberto Camelier 4 e o espaço de prostituição, localizado na outra extremidade na orla ribeirinha na avenida Bernardo Sayão.5 “O meu bairro,” “a minha igreja,” expressões que são comumente ouvidas no cotidiano jurunense, deixando transparecer a relação de pertencimento, presente na fala de muitos moradores que, na sexta-feira, estão na igreja, espaço de encontro com os amigos, estabelecimento de vínculos afetivos entre os filhos das famílias que lá freqüentam. Ao final da missa o padre avisa ao microfone que vai haver pracinha, momento o qual os jovens tanto

1 O presente artigo foi elaborado integrando os trabalhos de ambos os pesquisadores, no bairro do Jurunas que resultaram em duas Dissertações de Mestrado. Consultar, SOUZA, César Augusto Martins de. Quando a “Santa Teresinha” é o ponto de encontro: sociabilidade, amor e família na paróquia do Jurunas, Belém-Pará. Dissertação de Mestrado. Belém, Departamento de Antropologia/Universidade Federal do Pará, 2002(mimeo) e SARAIVA, Luis Junior Costa. Lucia, Maria, Carmem: mulheres em trânsito. Dissertação de Mestrado. Belém, Departamento de Antropologia/Universidade Federal do Pará, 2002(mimeo). 2 Cf. KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985. p. 94. 3 Seguindo os argumentos de Michel de Certeau, podemos pensar o bairro em suas várias dimensões e no caso da presente pesquisa destacando a dimensão afetiva, pois é bastante claro o amor do jurunense pelo seu bairro, e isso nos leva a repensar o próprio espaço urbano no momento em que este “ ...se torna não somente um espaço de conhecimento, mas o lugar de um reconhecimento.”(grifo do autor). Sobre essas discussões, consultar CERTEAU, Michel de et alli. A Invenção do Cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Petrópolis, Vozes, 2000: p. 45. 4 Cf. Ilustração 1 na página 3. 5 Cf. Ilustração 2 na página 4.

18 esperam, pois é a hora dos encontros amorosos e então o espaço se metamorfoseia, a descontinuidade espacial se abre e a igreja agora é também um ponto de encontros. As horas avançam e a noite desce sobre o bairro do Jurunas, na orla ribeirinha, nas casas de prostituição as mulheres estão prontas para mais uma sexta-feira, dia de grande fluxo de clientes. Dos locais presentes nessa área, podemos destacar o espaço denominado Dancing Days and Nigth, conhecido como Céu,6 um dos locais de lazer mais conhecidos no bairro, como também tido como negativo por ser associado à prostituição. O local acima citado é freqüentado por homens e mulheres que moram no bairro ou mesmo pessoas que vêm de outros bairros, com a intenção de terminar a noite no Céu, pois tal espaço também inclui bares de fim de noite, pois permanecem abertos até o amanhecer. O que aproxima esses espaços? Seguiremos então os passos de pessoas que moram no bairro as quais tivemos contato durante a pesquisa em busca de desvendar esse conjunto de relações estabelecidas dentro do bairro do Jurunas.

COMEÇA A CAMINHADA PELO JURUNAS

O Jurunas traz diversas interrogações quanto às formas de convívio das pessoas, pois, ao mesmo tempo em que moram em um grande centro urbano, o seu modo de vida se aproxima muito do conhecido pelo senso comum como rural. Colocamos essa questão por observarmos que, em alguns pedaços do bairro, existe um relacionamento entre as pessoas o qual, ao mesmo tempo em que intensifica a interação, coloca a coerção social como um elemento presente. No Jurunas, portanto, existem modos de vida que diferem dos definidos por Park7 da Escola de Chicago, como urbanos. Segundo este princípio, dos modos de vida urbanos, as pessoas não têm muito contato umas com as outras, elas adaptam- se ao meio e passam, mesmo os migrantes a construir um cotidiano de maneira isolada umas das outras, porque a sociedade era vista por tal Escola, polarizada entre rural e urbano.8 Entretanto, no Jurunas, as pessoas identificam-se com o bairro como se ele fora parte delas próprias, é possível sentir o orgulho e observar o brilho nos olhos de um morador quando diz coisas como “eu sou jurunense”9, tais afirmações são comuns nos depoimentos dos moradores e a memória, sobretudo dos moradores antigos, é construída a partir das imagens que eles possuem elaboradas no espaço. Outra questão interessante sobre o bairro é o estreitamento de relações entre famílias em que os vizinhos visitam-se costumeiramente, oferecem um pedaço de bolo, pedem um pouco de algum tempero que está faltando, preocupam-se com o bem estar e a saúde do vizinho10.

6 Dancing Days and Night mais conhecida como Céu, é uma boate, ou mais precisamente um bordel localizado na avenida Bernardo Sayão chamada pelos moradores de Estrada Nova, próximo à avenida Fernando Guihon mais conhecida como Conceição, seu antigo nome, ponto de encontro na noite jurunense.

7 PARK, Robert Ezra. “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano” In:

VELHO, Otávio Guilherme. O Fenômeno Urbano. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 8 Wirth, um dos principais teóricos da Escola de Chicago, pensava a sociedade de modo polarizado entre rural e urbano em seus modos de vida. Sobre o tema, consultar WIRTH, Louis. “O urbanismo como modo de vida” In: VELHO, Otávio Guilherme. O Fenômeno Urbano. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 9 Através de nossas próprias amizades na cidade, observamos que moradores ou ex-moradores do Jurunas falam “eu sou jurunense” com certo orgulho, ou são assim denominados pelas outras pessoas. Sobre a discussão da identidade jurunense, consultar RODRIGUES, Carmem Izabel. “A nação jurunense no carnaval das tribos. cultura popular e identidade em Belém” In ACEVEDO, Rosa E. et al.(orgs.). Revista da I Jornada História e Cidade. Belém: UFPA/NAEA, 2001. 10 Pudemos perceber a existência destas relações nos relatos dos informantes Maíra, seu Miguel e Davi. Ressaltamos que todos os nomes de pessoas que utilizamos são fictícios para resguardar a identidade dos entrevistados.

19 Ao mesmo tempo em que este contato mais próximo expande relacionamentos, traz um maior controle social,11 pois as pessoas possuem um elevado nível de interação. As fofocas “do canto,” as conversas na saída da igreja ou numa visita, consolidam relações e delineiam comportamentos segundo as normas e códigos locais. Se a Escola de Chicago polariza o mundo em dois meios, como então o Jurunas seria classificado? Urbano? Rural? As críticas de Oliven12 à Escola de Chicago servem de caminho para compreender a esta questão: Wirth confundiu causa e efeito, quando afirmou que a cidade formava o caráter das pessoas, porque são as relações humanas que definem as formas de sociabilidade na cidade e não a cidade que define essas formas de sociabilidade. Não se deve fazer antropologia das cidades, mas em cidades. A expressão religiosa não se secularizou como previa a Escola de Chicago, porém altera-se conforme as especificidades locais, como também outras manifestações culturais, as quais, mesmo aparentemente contrapostas à religiosidade, como os bordéis, coexistem e interagem entre si. Não é possível fazer-se dicotomia entre rural e urbano porque não há como se traçar uma divisão lógica entre ambos sem anular os modos de vida diversificados em todas as sociedades. Nesse sentido, quando desenvolvemos o presente estudo, colocando em confronto e encontro o Céu com a Igreja de Santa Teresinha do Menino Jesus, observamos que, em tais espaços, desenvolve-se a sociabilidade entre as pessoas, as relações entre o público e o privado redefinem- se, os sujeitos passam a transitar em diversas esferas e ocorre de aspectos do íntimo desdobrarem- se coletivamente e vice-versa. O Jurunas não poderia, portanto, ser analisado como parte de uma dicotomia entre rural e urbano, pois o importante não seria colocar-lhe um rótulo, mas compreender a “...lógica que define a experiência de um sistema cultural particular.”13 Após uma breve discussão sobre o bairro, iniciamos nossa caminhada, alertamos, porém, o leitor, para que não se surpreenda e que tire os sapatos, calce um tênis, sandálias ou chinelos, pois percorreremos muitos becos, vilas, avenidas e travessas, em nosso ir e vir da igreja ao bordel, dois espaços aparentemente díspares e antagônicos, mas que se encontram no cotidiano jurunense.

QUANDO ENTROU NA IGREJA

A cidade possibilita múltiplos olhares e funciona como um caleidoscópio, cada olhar possibilita uma visão diferente e torna-se preciso saber lidar com a diversidade, sentir os cheiros que essa cidade emana, provar seus gostos, conhecer as pessoas, caminhar pelas ruas para podermos falar sobre ela, discuti-la, interpretá-la, compreender seus diferentes significados. Assim, ao descer do ônibus, a cada passo na avenida Roberto Camelier os pés a tocam lentamente entre o som de buzinas, motores e freadas de veículos. Pode-se ver as pessoas caminhando juntas ou solitárias, devagar ou depressa indo ao trabalho, à escola ou à igreja. De mãos dadas, de carro ou de ônibus as pessoas vão chegando à missa, sentimentos diversos as levam até ali, famílias vão se agrupando, sentando nos bancos. “Oi, você é novo aqui?” “Boa tarde! Nem tanto.” O

11 Sobre o tema, consultar DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo, Abril Cultural, 1972, pp. 375-463. 12 OLIVEN, Ruben George. Antropologia de Grupos Urbanos. 3ª Edição, Petrópolis: Vozes, 1992. 13 Cf. VELHO, Gilberto. O desafio da cidade. Novas perspectivas de antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 17.

20 sorriso da moça dirigido afetuosamente é um convite à conversa, ao olhar, à roda do grupo, à saída. A missa acabou e, nesse momento, alguns jovens vão se agrupando. “Pai, pode ir que eu vou atrás.” “Tu estás com a chave?” Agora, os pais já foram embora, só permaneceram os jovens, risinhos, conversas, beijinhos, tapinhas, abraços, olhares, acenos, apertos de mão, “ô, moleque larga meu cabelo.” O espaço é recriado, a rua é reinventada, ela agora é da igreja e a igreja já não é mais o templo e sim um ponto de encontro de amigos. Basta um olhar, um riso, um beijo e, após o término da missa, o templo é utilizado de outra forma, com seu significado transformado. DaMatta14 discute a diversidade de perspectivas que os espaços ganham em nossas sociedades, eles são (re)significados constantemente pelos sujeitos. Para o autor, o espaço é uma estrutura mas tem movimento. O movimento quem dá são as pessoas. A igreja é pública? Religiosamente sim, porque é a Casa de Deus, mas as pessoas que participam de suas atividades limpando-a e organizando-a antes e após a missa, muitas vezes vão à tarde para conversar com algum amigo ou para “ajeitar” algo que ficou faltando, possuem uma relação mais particular com a paróquia. Quando abordadas na esquina ou indagadas a esse respeito vem a célere afirmativa “essa é minha igreja” ou “na minha igreja...”15 Quando a família vai à igreja é o momento da reunião, do contato com outras pessoas, do convívio numa relação que se pretende propicie a melhoria das relações interpessoais e da própria educação dos filhos porque “é melhor que eles estejam aqui convivendo com gente de família, direita, do que com esse monte de marginal de rua,” já afirmava dona Rita com orgulho, acreditando que seguindo esse caminho criou adequadamente seus três filhos, “bem casados e bem de vida.” Mas por que se chega a tais afirmações? Porque a rua parece o espaço perigoso, assustador, onde todos estão à mercê dos riscos e das más influências. Na rua não é possível saber o que é bem ou mal, pois o perigo ronda, há um aspecto ameaçador para todas as pessoas. Para os pais com os quais conversamos, há uma diferença latente entre jovens criados com a família e os criados na rua: os da rua são aqueles criados sem regras, expostos à violência urbana a “se meter com aquilo que não deve,”16 enquanto que o jovem da casa é o criado sob os cuidados familiares. Trazer a família toda para a igreja é o sonho de muitos pais porque as companhias são conhecidas, têm boas referências, é um passeio “bom” juntamente com o namoro “saudável.” É saudável namorar sob monitoramento, na opinião dos pais, da igreja, porque através dela “a gente sabe que os filhos estão sendo ensinados nas regras boas a ser gente de bem, sem aquela influência toda da mídia,” já definia seu Antônio.17 O monitoramento pode ser explicado pela própria estrutura da igreja com seu Conselho Eclesiástico subdividivido em diversas equipes, grupos e pastorais, liderados pelos leigos. Cada um em sua atividade pode ensinar aos outros, propiciando que a igreja alcance a todos no bairro,

14 Cf. DaMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro, Guanabara, 1991. 15 Segundo Guattari e Rolnick, os humanos estão mergulhados num movimento constante de territorialização e desterritorialização em que os espaços mudam constantemente de significado devido o movimento das pessoas dentro deles, criando sua própria territorialidade. Consultar GUATTARI, Félix & ROLNICK, Sueli. Cartografias do Desejo. Petrópolis, Vozes, 1986. 16 Seu Antônio e dona Manoela em entrevista conjunta. Entrevista realizada em 10.08.2001. 17 Tive (César Martins de Souza) uma manhã muito prazerosa em companhia de seu Antônio e de dona Manoela. Com eles tive oportunidade de conversar livremente, discutindo desde futebol até tipos de comida prediletos de cada um em sua casa, localizada na rua Honório José dos Santos, próximo à rua dos Mundurucus. Ouvi as histórias desse casal, seu Antônio, aposentado como ferreiro do Ministério da Agricultura, 81 anos de idade e dona Manoela, 74 anos que luta através de diversos requerimentos no INSS para garantir sua aposentadoria como professora do Estado. Entrevista realizada em 10.08.2001.

21 como já vimos anteriormente.18 Mas como os jovens reagem a tais atividades, a essa busca de exercer um maior controle social sobre eles próprios? Pergunta complexa de resposta longa; vamos conferir o depoimento de um jovem que estava “gazetando” a aula de catequese, quando perguntado sobre a catequista: “ela [a catequista] tá lá dentro alienando todo mundo. Vão lá [risos] mas não digam que eu tô aqui, porque senão já viu. E não vão deixar ela alienar vocês também com os ensinamentos dela porque isso é coisa séria.”19 Existem discursos diferenciados e múltiplos na igreja, internamente às diversas categorias envolvidas. Os discursos dos leigos que servem de apoio nas atividades da paróquia e reúnem-se pelo menos uma vez por semana, organizando seus cursos, reuniões e festividades. Os leigos componentes das pastorais e/ou grupos da igreja são designados pelos próprios grupos para exercer cargos de liderança, mas precisam do consentimento do monsenhor para desenvolver suas atividades. Há os discursos dos jovens, os quais não participam da organização das missas, quase não as freqüentam, à exceção de domingo, porque ficam, aos sábados, na maioria das vezes nas salas de aula ou corredores da escola que funciona atrás da igreja. Ocorrem diferentes momentos da sociabilidade na igreja que precisam ser compreendidos segundo sua própria lógica: a missa, conforme dia e horário pode ser freqüentada por adultos, enquanto os jovens ocupam um espaço diferente; as festividades, quando a família inteira comparece; e nos cursos e reuniões, como de Noivos, Alcoólicos Anônimos, Apoio à Família, Equipe de Preparação para o Matrimônio e grupos diversos da Pastoral da Juventude. A sociabilidade se dá, então, em diversos momentos que (re)significam espaços e delineiam territorialidades. Both20 estuda a sociabilidade humana a partir da forma como os grupos sociais criam suas redes através de pontos, nos quais é possível estabelecerem relacionamentos entre si, de modo que a sociabilidade vem a ser o movimento de grupos sociais, na busca de espaços para a criação de laços de afetividade e amizade. Para Agier,21 as sociabilidades mostram as culturas na base do apego aos lugares urbanos, bem como a reprodução ou a “reinvenção dos laços sociais nos universos densos, abertos e heterogêneos das sociedades contemporâneas.”22 A rua, portanto, em torno da igreja, deixa de ser pública para se tornar a rua do lado da igreja, o muro da igreja vira o “paredão dos namorados,” a pracinha (como é chamada a quadra localizada atrás do templo) é o lugar das festas, das reuniões, dos encontros de casados, noivos ou namorados, o neófito possui definição e lugar social na paróquia atribuído pelos próprios freqüentadores. O bolo, o churrasquinho, o pudim e o refrigerante vendidos tanto após as missas de sábado quanto nas festas possuem um significado muito mais amplo do que o da alimentação e somente os convidados é que os comem de “graça” após o encerramento da reunião. As salas de aula da escola atrás da pracinha não são apenas salas de aula, tornam-se ponto de encontro, de

18 Historicamente é possível observar diversas ações da Igreja no sentido de exercer um maior controle social sobre a coletividade e a vida privada, contudo os mais diferentes sujeitos encontram formas de burlar o controle. Desta forma, como podemos observar ao longo do trabalho, na paróquia de Santa Teresinha, o controle é burlado por diversas ações como namoros fora do espaço da igreja ou nele próprio, através de algumas ações como freqüentar mais a Escola São Pio X, onde apenas jovens se fazem presentes aos sábados, as missas. Sobre o tema, consultar: VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro, Campus, 1989; VAINFAS, Ronaldo (org.). História e Sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1986 e VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. O cotidiano do desvio: defloramentos e adultérios no Ceará Colonial (1758- 1822). Dissertação de Mestrado. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica, 1997 (mimeo). 19 João, 16 anos, nos fez tal declaração enquanto, agarrado a duas jovens que também “gazetavam” as aulas no corredor que conduz às salas de aula onde funciona a catequese. Diário de Campo, 11.08.2001. 20 Cf. BOTH, Elizabeth. Família e Rede Social. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976. 21 Cf. AGIER, Michel. “Lugares e redes – as mediações da cultura urbana” In: NIEMAYER, Ana Maria & GODOI, Emília. Além dos territórios: para um diálogo entre a etnologia indígena, os estudos rurais e os estudos urbanos. Campinas, Mercado das Letras, 1998, pp. 41-64. 22 Idem, p. 45.

22 conversa, de gazeta. Até mesmo não freqüentadores da igreja comparecem à porta para esperar os que estão saindo da catequese ou para ficar conversando com os alunos. O curso de noivos também funciona como o momento de integração, de busca do interconhecimento, as pessoas se ajudam, se identificam e estabelecem relações muitas vezes que vão além daquele momento, porque números de telefones são trocados. O encontro no “esbarrão da missa” já não é mais com um desconhecido, mas um momento de rever conhecidos, por isso até as reuniões para os envolvidos nessas atividades são muito mais agradáveis porque vão além da devoção. São momentos diversos do ritual e fazem parte dele. A Igreja, não exclui tais momentos de suas práticas religiosas. Incentivar as relações interpessoais, o contato entre as famílias, estendendo a presença da igreja para dentro dos lares é um fator importante para a aproximação dos fiéis e, ao mesmo tempo, de tentativa de monitoramento da vida cotidiana. Cabe ao antropólogo, analisar, ouvir os passos das pessoas, aqueles pés dirigidos à missa, os que ficam ao seu término e, também, os que vão embora sem falar com ninguém. Tais elementos são importantes para pensar os significados contidos no momento em que saem todos os membros da família juntos para a missa e o porquê de, muitas vezes, não retornarem juntos, assim como retratar as queixas dos pais cujos filhos não freqüentam mais a igreja ou a alegria dos outros que ainda têm seus filhos freqüentando e participando ativamente nos trabalhos da “Santa Teresinha.” O processo ritual significa passagem de tempo e espaço diferenciados como afirma Van Gennep,23 é mudança de status, quem está numa outra posição ritual não olha para a anterior do mesmo modo, pois ocorrem mudanças, passagens. Adiantamos tal análise para sustentar as diferenciações internas à posição social. Seu Cássio e dona Vilma estão casados há 23 anos e seu Antônio e dona Manoela há 50 anos, existe uma série de representações e marcadores sociais os quais os distanciam. O que dizer então de Ronildo e Eliana, namorados há dois anos e meio? O amor, a família, o cotidiano vão se transformar e mostrar diversidade, a qual é difícil explicar através da análise de um discurso, aparentemente monolítico, elaborado pela igreja. Existem duas perspectivas complementares entre si para se estudar relações amorosas em uma sociedade: a diversidade e a circularidade de valores. Para Cardoso de Oliveira,24 a diversidade cultural se manifesta não apenas entre sociedades ou grupos sociais distintos pois também ocorre internamente aos grupos. Ele conta uma passagem de sua pesquisa realizada entre o grupo indígena Terêna, quando assistia a um ritual xamanístico de cura. Cardoso de Oliveira assistia ao ritual e ficou perplexo quando observou risos, conversas e namoros durante a sessão xamanística, enquanto o xamã, de nome Gonçalo, dançava e cantava em torno de um paciente deitado no meio da maloca. Num primeiro momento, o antropólogo pensou nos graus de aculturação do grupo, depois, porém, percebeu que conforme a posição ritual dos nativos, variava sua forma de conceber e portar-se no rito. A diversidade cultural vem a ser, portanto, categoria fundamental para a Antropologia, pois permite fugir às armadilhas do etnocentrismo, como traçar o perfil discursivo de um grupo social e pensar todos os sujeitos a partir de tal lógica, como se o discurso e as práticas fossem monolíticos e partilhados de forma unitária, sem variações ou contestações entre todos os membros de um grupo. Ginzburg,25 em seu estudo sobre a vida cotidiana de um moleiro em uma pequena cidade italiana, Friuli, o qual foi queimado durante a Inquisição, constrói o conceito de circularidade. Na visão

23 Cf. VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis, Vozes, 1989. 24 Cf. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Sobre o Pensamento Antropológico. Rio de Janeiro/Brasília, Tempo Brasileiro/CNPq, 1988. 25 Cf. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

23 do historiador italiano, em uma sociedade os valores não pertencem a determinados grupos sociais ou indivíduos mas circulam e são apreendidos de formas diversas. Assim, não se pode apenas fazer divisão interna conforme os marcadores sociais, porque os valores estão circulando nas mais diversas esferas e os sujeitos os apreendem e recriam de formas variadas, levando a discursos no interior do mesmo grupo ou da mesma faixa etária, profissão, renda. Diversidade e circularidade são complementares por afirmarem a existência de diversos valores em um mesmo grupo e a recorrência de valores aos mais diversos sujeitos de um grupo, abrindo um leque de possibilidades, sem nada ignorar, expandindo possíveis limitações conceituais. De forma complementar, nos mostram sociedades sem o véu das idéias preconcebidas, e ressaltam a necessidade de aprender no cotidiano com o grupo para compreender a construção de práticas sociais e discursos sem etnocentrismo. Os sujeitos muitas vezes desobedecem aos códigos de normas, reelaboram valores e, não podemos cair no lugar-comum de olhar o grupo segundo o que foi escrito e dito a respeito das relações afetivas na sociedade ocidental contemporânea, é necessário pensar os diversos aspectos da metodologia, problematizar a própria área de estudo, seus espaços, ouvir o que os nativos dizem, interpretar, descrever para elaborar uma discussão e um trabalho mais próximo das categorias nativas dos paroquianos de Santa Teresinha do Menino Jesus, no Jurunas. Após passarmos pelas reuniões da igreja e observarmos a metamorfose do espaço com o término das missas, a imagem mais forte que nos vem a mente, ao lembrarmos de tais momentos, é o teatro. No teatro, o tempo não é cronológico, anos podem decorrer em minutos e minutos podem ser segundos, o espaço se transforma conforme o tempo da peça: em um momento o palco é casa, no outro pode ser rua e, no outro, igreja. O movimento dos atores transforma o cenário e a rua pode ser igreja e casa em momentos distintos. Uma movimentação de cenários que em muito lembra os percursos dos atores de nossa pesquisa, por espaços considerados antagônicos pela sociedade, com os quais, entretanto, convivem. Acabou a missa de sábado à noite e a comida na quadra atrás da igreja (pracinha), alguns jovens permanecem próximos às árvores para conversar e namorar, enquanto seus pais se dirigem as suas casas, menos alguns que saem da igreja e vão ao bordel.

SAIU DA IGREJA E FOI AO BORDEL

A igreja agora adormece enquanto o bordel acorda, os bares da orla ribeirinha estão iluminados pelos olhos atentos de homens e mulheres que agora compõe o espaço. Convidamos então o leitor para conhecer o Céu, que fica a apenas alguns passos da igreja, passos que agora estão apressados para não perder a primeira rodada de cerveja, passos firmes que sabem muito bem onde querem chegar. A beira do rio Guamá desperta para mais uma longa noite jurunense. É durante a noite que homens e mulheres buscam o Céu para se divertir, mas há determinadas mulheres que o freqüentam por outros motivos. São mulheres que disputam o ambiente como local de trabalho, é a vida noturna no Céu que passamos agora a descrever.

“O acesso ao estabelecimento se faz através da entrada que fica de frente para a Bernardo Sayão, por uma escada que é bastante inclinada. Ao chegar à porta, percebi [Luis Saraiva] que para ter acesso ao salão de festas, precisava passar pelo guarda que verificava se não havia alguém armado. Na parede se lê a seguinte frase, ‘proibido a entrada de menor de 18 anos.’”26

26 Anotação de campo registrada em diário em 29.11.2000.

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Mesmo não sendo permitida a entrada de menores de 18 anos no estabelecimento, sua presença era muitas vezes negociada com o policial que, em troca de cerveja ou de determinada quantia em dinheiro, liberava a entrada do menor. No caso das mulheres, não percebemos a preocupação com a idade, mesmo porque em um dado momento ao nosso lado havia uma moça que pela aparência devia ter 16 anos27e caminhava tranqüilamente pelo estabelecimento sem ter sido abordada pelo guarda. Á frente do Céu estão os taxistas à espera de clientes e, pelo que pudemos perceber, o Céu é um dos ambientes de realização de festas mais movimentados da área, apesar de carregar um certo estigma, pois, apesar de algumas pessoas, mesmo freqüentadoras, se referirem ao Céu com um certo desdém, ainda assim a clientela é bastante diversificada. “Já por volta da meia noite, estávamos no Céu, nossa primeira atitude foi nos localizarmos em um ponto do qual pudéssemos observar todo o estabelecimento. Logo foi possível perceber que as pessoas que freqüentam o ambiente, eram de determinado grupo social específico como: pescadores, estivadores, pessoas que trabalham no porto do açaí, que fica ao lado do Céu, prostitutas e não prostitutas, homossexuais e policiais que controlam a segurança. A maneira como os freqüentadores se vestem é significativa ... os homens calça Jean e tênis. As mulheres (prostitutas) com saias bastante curtas e de tecidos claros deixando perceber suas roupas intimas enquanto dançam, ou caminham pelo salão. As músicas mais tocadas são os bregas e os merengues sendo que algumas musicas são mais solicitadas que outras. Uma das músicas mais tocadas da noite foi ‘A Feiticeira.’ Por volta das duas horas da madrugada o Céu já está no ápice, no que diz respeito à quantidade de pessoas que bebiam e dançavam embaladas pelo ritmo do brega, tendo no reflexo das luzes piscantes e multicores, a impressão que seus corpos se movimentam num ritmo mais frenético ainda.”28 O Céu começa a funcionar a partir das sete horas e vai até o momento em que já não há mais clientes. Esse espaço multifacetado possui uma série de códigos, os quais não se resumem as falas, mas são compartilhados pelo grupo, muitos deles só são percebidos pelos membros desta comunidade lingüística.29 É a expressão de aborrecimento no rosto do cliente, pela demora da prostituta em chegar até sua mesa, são os olhares insistentes que buscam seduzir, os gestos com as mãos que indicam o pedido de um cigarro. Códigos vários que só passam a ser percebidos a partir da observação atenta do pesquisador em campo. As roupas utilizadas pelas prostitutas, de imediato as diferenciam de outras mulheres que estão no estabelecimento, pois percebemos uma certa preocupação por parte da prostituta em atrair clientes, e uma das estratégias utilizadas é usar ou roupas curtas e claras que expõem o

27 No decorrer da pesquisa descobrimos que ela só tinha 14 anos e que a presença de menores no local não só era permitido como incentivado, pois aumentada o número de clientes que na maioria preferiam as mais novas. 28 Anotação de campo registrada em diário em 29.11.2000. 29 Comunidade lingüística pode ser entendida como um grupo de pessoas que compartilham normas comuns no que diz respeito à linguagem, e nesse caso fica claro que um grupo pode falar a mesma língua e não compartilhar da mesma linguagem, ou ao contrário, não falar a mesma língua, mas compartilhar códigos comuns ao grupo. Sobre a discussão, consultar ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas de discurso. Campinas: Pontes, 1996.

25 corpo ou roupas apertadas que o detalham. Ambas as formas de se vestir atraem os olhares dos homens. O pesquisador olha, mas também é olhado e não podemos ser ingênuos em pensar que o pesquisador poderá passar despercebido junto ao grupo. E isso ficou claro logo nos primeiros contatos com Carmem, que estava no Céu naquela noite. Em dado momento ela se vira para nós e diz que logo percebeu que nós não éramos dali. É curiosa tal afirmação se pensarmos o contexto em que se deu; chegamos travestidos de modo semelhante aos moradores e freqüentadores daquela área, no intuito de obter os dados, mas não funcionou “fomos descobertos por uma nativa.” Não precisamos nos travestir para interagir como o grupo, não parece, portanto, muito simpático para o “nativo,” que um “de fora” tente se tornar ou parecer “nativo,” o importante mesmo é compreender o que os “nativos” estão fazendo.30 O trabalho antropológico tem a característica de aos poucos desvendar aos nossos olhos a vida dos sujeitos que antes eram apenas pessoas anônimas em um emaranhado de relações sociais como também nos faz repensar a realidade social. Aos poucos, os rótulos de puta, prostituta, mulher da vida vão ficando para trás, agora é somente a Maria, a Maria que veio de um município próximo chamado Muaná e que tem dois filhos que moram com a avó, mas hoje um deles será batizado na Igreja de Santa Teresinha do Menino Jesus e eu (Luis Saraiva) sou um dos convidados para participar do batizado. Para Maria, o referencial religioso é muito importante e, apesar de acreditar que sua atividade noturna é pecado, isso não retira a sua felicidade em ver seu filho batizado. Na igreja o batizado se encerra mais a festa vai continuar agora em um outro espaço, pois os convidados de Maria, na maioria clientes e amigas de trabalho prepararam uma festa na vila da Maria José, localizada na orla ribeirinha e local de morada de outras prostitutas. Desvendar outras facetas do cotidiano de mulheres que têm como atividade a prostituição, é uma das intenções da presente pesquisa, na busca de libertar a prostituição da lógica pendular polícia- médico, como também “...mostrar essas mulheres como membros de redes sociais e universos simbólicos que vão bem além do metier...,’31 possibilitando desvendar a vida das prostitutas fora dos limites imaginários ou reais, nos quais o tema permaneceu restrito conseguindo assim apresentar a dimensão da construção de redes de sociabilidade e solidariedade que envolvem familiares, como no caso de Maria, como também clientes, vizinhos e outros personagens que fazem parte desse universo. Sarti32 destaca a importância desses vínculos construídos dentro de um bairro e como a família surge como um referencial fundamental na vida das classes pobres. Isso ficou claro no bairro do Jurunas, principalmente na área de prostituição, pois aí mulheres com uma renda mensal de dois a três salários mínimos, muitas vezes precisam unir suas economias para conseguir dar conta das despesas.

30 Geertz apresenta uma forma de fazer etnografia, em que o “...truque e não deixar se envolver por nenhum tipo de empatia interna com seus informantes.” No sentido de sempre estar claro os limites impostos ao pesquisador no trabalho de campo. Dessa forma, podemos perceber que o importante para a pesquisa antropológica não são os disfarces, as simulações, mas saber trabalhar os conceitos, os métodos e as técnicas da Antropologia para desenvolver a pesquisa a contento. Afinal, o antropólogo não é um exemplo de pessoa simpática que se adapta a qualquer lugar, o Diário de Campo de Malinowski foi importante para recolocar o antropólogo em seu lugar, o de um ser humano, com valores próprios, cultura própria e que não precisa agir como um semicamaleão. Sobre a discussão, consultar GEERTZ, Clifford. O Saber Local. Petrópolis: Vozes, 1998: p. 88. 31 Sobre a revisão dos trabalhos sobre prostituição no Brasil, consultar FONSECA, Claudia. “A dupla carreira da mulher prostituta” In Revista Estudos Feministas. V. 4, n° 1. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 1996. 32 Cf. SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas: Autores Associados, 1996.

26 O cuidado com os filhos também fica por conta de familiares ou mesmo vizinhos e mais uma vez as redes de relações são acionadas para que as mulheres possam trabalhar durante a noite, noite que aos poucos desvanece e dá lugar a longa madrugada. Agora já é possível ver Maria, em uma das mesas com o olhar cansado, negociando com um cliente seu último programa da noite, em outra mesa Carmem discute com uma amiga “.. o cliente era meu sua safada..”, o pesquisadores também já sentem o peso do dia que vem raiando, mas a caminhada ainda não acabou, pois ainda temos muito a percorrer e conhecer dessa cartografia do bairro. A noite acabou, o sol já está raiando, olhares cansados são trocados, o odor de cerveja e sexo mistura-se com o desejo crescente de encontro com a fé, ponto de apoio para as responsabilidades familiares e para as angústias, solução a todos os problemas que enfrentam durante a semana, desde a saída do trabalho, as discussões com a família, o beijo nem sempre carinhoso da esposa. Já é domingo pela manhã, hora de acordar, de levantar, esquecer a cachaça, o sexo, a cama ainda está quente, a noite foi agitada, desde a chegada com o brega tocando ao ritmo frenético, os corpos se tocando no pequeno espaço que cada um conseguiu no Céu, agora, porém vão em busca de outro céu, pelo qual se precisa exercitar a penitência e controle aos sabores da carne. A carne outrora trêmula e quente resfria, o corpo quer ajoelhar, quer rezar, pedir perdão? Talvez. Começa então a caminhada, um banho se faz necessário, do Céu-inferno em busca do céu-Paraíso, o corpo tem de estar limpo para receber as bênçãos e encontrar novamente com os amigos, com a família, defender o respeito aos valores, a rejeição aos prazeres na busca pela construção de uma vida melhor, sob o amor de Deus e concordância da comunidade. Desce a Conceição, alguns bêbados estão caídos próximo a sarjeta, nem olha, sente um certo repúdio por aquela situação, a missa das sete já vai se iniciar, um amigo, meio sóbrio, cumprimenta, lança um olhar, acena, roupa trocada, alguns carros chegando, dia sagrado, a brisa da manhã ainda não se dissipou, na Florentina33 muita gente chegando, de calções, discutindo o último jogo ou a superioridade do Remo ou do Paysandu.34 Vontade de jogar bola, no entanto é dia de missa. Muitas tentações depois, vai se iniciar a missa, vários cumprimentos são direcionados ao(s) nosso(s) personagem(ns), companheiros de idas e vindas entre a Roberto Camelier e Estrada Nova estão chegando, olhando, sorrindo uns para os outros, recebem O Domingo, um deles se dirige à portaria para distribuir os cânticos e perguntar um pouco sobre os vizinhos. Aparentemente estamos diante de um cenário de contradições num mundo flutuante, pois a integração de personagens aos espaços de prostituição e religiosos não é aceitável segundo o código de normas sociais, parecem ir de encontro, numa lógica mutuamente excludente e imponderável. DaMatta discute que, no Brasil, o meio é o que concilia situações de franca oposição, conforme o interesse. Criamos, portanto, zonas de inclusão onde o relacional é permanente: “... somos [no Brasil] uma pessoa em casa, outra na rua e ainda outra no terreiro ou no centro espírita.”35 A dinâmica no trânsito entre a casa, a igreja e o bordel não demonstra situação de contradição e sim da construção de entremeios, os quais tiram a franca oposição entre valores e espaços. Se aparentemente, prostituição e catolicismo são antagônicos, em nosso país tal questão é reconstruída pelos entremeios, pelas sociabilidades de amigos e parentes oferecendo legitimidade a ações consideradas ilícitas.

33 A Florentina, localizada na avenida Conceição é uma quadra de areia tradicional no Jurunas, na qual ocorrem campeonatos de futebol muito concorridos, bem como festas dançantes, ao som das aparelhagens de Belém, como Rubi ou Pop Som. 34 Remo e Paysandu são os dois principais clubes de futebol do Estado do Pará, existindo uma grande rivalidade entre suas torcidas. 35 Cf. DaMATTA, Roberto. “Dona Flor e seus Dois Maridos: um romance relacional” In: Revista Tempo Brasileiro 74. Rio de Janeiro, 1983, p. 10.

27 Como explicava um de nossos informantes, seu Manoel: “eu acho que essa coisa de ficar vigiando a vida dos outros não tem nada a ver não, o que vale é se a pessoa tá fazendo o seu trabalho direito. Quando é que a igreja denuncia a atitude de um coordenador de pastoral? Quando ele não trata os outros direito, não tá fazendo seu trabalho como deveria. Porque se depender de comportamento apenas, normalmente o pessoal não tá nem aí ou finge que não vê, porque tem um bom trabalho com a comunidade. Pode ir pro puteiro, encher a cara ou ter caso com as fiéis, o que não pode é deixar furos no trabalho dele nas pastorais da paróquia.”36

Na organização do mundo religioso, nos sermões, na dedicação à família, tanto por parte de prostitutas como de homens casados, ir ao bordel não é algo contraditório. Não necessariamente, tal situação nos oferece espaço para reflexões sobre a construção de valores e espaços de identificação na sociedade. Sair do bordel e ir à igreja é aparentemente desenvolver valores antagônicos, no entanto ter uma boa relação com a igreja, respeitar a todos, realizar seu trabalho de forma adequada, anula as possíveis condenações. O entremeio entre o bordel e a igreja é a boa relação com os freqüentadores da paróquia. A sociabilidade, como afirma Certeau,37 propicia ser identificado e protegido por todo o grupo do qual o sujeito participe, aumenta a coerção social, mas ela mesma não é unívoca, abre um campo de outras possibilidades, de acordo com as relações estabelecidas. Entre valores contraditórios, mediados pela sociabilidade, nossos personagens entram na igreja, para o encontro com a esposa e filhos, se os tiver, ou pai, mãe, irmãos e amigos, onde irá participar de toda homilia, interagir com fiéis e símbolos sagrados, rezar, pensando em todo o restante da semana, no dia de trabalho que se iniciará, em todas as caminhadas por fazer. Na sexta-feira recomeçarão suas caminhadas, irá percorrer vilas, travessas, botequins, mesas de bilhar, onde encontrará amigos. De lá seguirá novamente para a igreja, sábado à noite, missa de casais, dia de pracinha, comidas com os vizinhos, conversa alegre com os paroquianos. Quando a hora avança, recomeça o trânsito igreja-bordel-igreja-casa, com todos os companheiros e companheiras de diferentes espaços, não mais antagônicos e sim se encontrando através de elementos mediadores. Família, sexualidade, religiosidade, trabalho, amizade, festas na igreja e no bordel, teor diversificado de conversas, fazem parte do cotidiano jurunense, importante espaço para se pensar Belém, e refletir sobre a construção de valores e sociabilidades.

O BAIRRO EM SUA CARTOGRAFIA DESEJANTE: ABRINDO FRONTEIRAS

Para o leitor que acompanhou nossa trajetória por espaços que separados no mapa, os quais, porém, se encontram no cotidiano, não há mais como se furtar, como uma insistente viajante a acompanhar-nos nesses últimos trajetos em busca de uma Antropologia pronta a responder nossas inquietações cotidianas, e colocar inquietações naqueles que ora folheiam essas páginas. O desejo que move o homem o qual, mesmo cansado, não deixa de a ir à missa no sábado pela manhã, o desejo que na noite anterior despejava-se nas mesas do Céu, o desejo do homem que agora na missa espera a comunhão com Cristo, seria o bairro, como na expressão cunhada e

36 Entrevista realizada em 25.02.2002. 37 Cf. CERTEAU, Michel de et alli. A Invenção do Cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Petrópolis, Vozes, 2000.

28 utilizada pelo filósofo francês Giles Deleuze e pelo psicanalista Felix Guattari, uma Máquina Desejante?38 ou várias máquinas? Como mapear essa cartografia, esses pontos que se segmentam, mas que também se ligam por fios invisíveis ao primeiro olhar apressado? Ou melhor seria repensarmos o nosso próprio olhar? Afinal, o olhar antropológico também não é um olhar desejante? Desejo de saber, desejo de poder, desejo de objeto, desejo de sujeitos. Aos poucos nossas certezas ficaram tão escassas quanto à certeza do homem que na manhã de sábado não está em sua casa com a família e sim embriagado e caído na sarjeta mal conseguindo levantar a cabeça, ou da mulher que abre e fecha os lábios avermelhados de um batom barato repetindo o refrão de um brega, enquanto espera um cliente, ou do cliente que olha cada uma das mulheres que passam por sua mesas e sussurram “vamos fazer um sexo gostoso” frase que é jargão no Céu e que pode ser entendida apenas com o gesto dos lábios. O bordel se encontra com a igreja e desse encontro surgem dúvidas e não certezas, dúvidas, como as que agora habitam também a mente dos pesquisadores que estiveram em cada um dos espaços acima citados e que não podem deixar de pensar o papel da antropologia frente a toda uma dinâmica cotidiana que se esvai como fumaça pelas mãos do pesquisador, pois nesse exato momento em que chegamos ao final que preferimos chamar de final-início do presente texto, no Jurunas, a máquina nunca parou e nem vai parar. O mundo continuará a girar, pequenos, porém, importantes rituais do cotidiano continuarão a acontecer, fiéis se dirigirão à igreja não apenas para a devoção religiosa, como também para encontrar amigos, alguns deles ainda poderão ser encontrados em outros espaços como o bordel ou a casa, interrogações ficarão na mente dos pesquisadores, iremos enquadrar nossos personagens as categorias conhecidas da Antropologia? Ficam as interrogações, dificuldades para compreender emoções, valores e sociabilidades, num mundo aparentemente antagônico o qual, no entanto, funciona em sua lógica própria. O final do presente texto é, na verdade, um início, oportunidade para repensar possibilidades de estudos e entender a lógica interna aos grupos sociais e sujeitos que os compõem, até que recomecem as caminhadas e possamos nos dedicar a analisar múltiplas relações sociais e em uma pluralidade de encontros e desencontros internos aos grupos humanos. A carne outrora trêmula e quente resfria, o corpo quer ajoelhar, quer rezar, pedir perdão? Talvez. Começa então a caminhada, um banho se faz necessário, do Céu-inferno em busca do céu-Paraíso, o corpo tem de estar limpo para receber as bênçãos e encontrar novamente com os amigos, com a família, defender o respeito aos valores, a rejeição aos prazeres na busca pela construção de uma vida melhor, sob o amor de Deus e concordância da comunidade. Desce a Conceição, alguns bêbados estão caídos próximo a sarjeta, nem olha, sente um certo repúdio por aquela situação, a missa das sete já vai se iniciar, um amigo, meio sóbrio, cumprimenta, lança um olhar, acena, roupa trocada, alguns carros chegando, dia sagrado, a brisa da manhã ainda não se dissipou, na Florentina39 muita gente chegando, de calções, discutindo o último jogo ou a superioridade do Remo ou do Paysandu.40 Vontade de jogar bola, no entanto é dia de missa.

38 Cf. DELEUZE, Giles & GUATTARI, Felix. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.

39 A Florentina, localizada na avenida Conceição é uma quadra de areia tradicional no Jurunas, na qual ocorrem campeonatos de futebol muito concorridos, bem como festas dançantes, ao som das aparelhagens de Belém, como Rubi ou Pop Som. 40 Remo e Paysandu são os dois principais clubes de futebol do Estado do Pará, existindo uma grande rivalidade entre suas torcidas.

29 Muitas tentações depois, vai se iniciar a missa, vários cumprimentos são direcionados ao(s) nosso(s) personagem(ns), companheiros de idas e vindas entre a Roberto Camelier e Estrada Nova estão chegando, olhando, sorrindo uns para os outros, recebem O Domingo, um deles se dirige à portaria para distribuir os cânticos e perguntar um pouco sobre os vizinhos. Aparentemente estamos diante de um cenário de contradições num mundo flutuante, pois a integração de personagens aos espaços de prostituição e religiosos não é aceitável segundo o código de normas sociais, parecem ir de encontro, numa lógica mutuamente excludente e imponderável. DaMatta discute que, no Brasil, o meio é o que concilia situações de franca oposição, conforme o interesse. Criamos, portanto, zonas de inclusão onde o relacional é permanente: “... somos [no Brasil] uma pessoa em casa, outra na rua e ainda outra no terreiro ou no centro espírita.”41 A dinâmica no trânsito entre a casa, a igreja e o bordel não demonstra situação de contradição e sim da construção de entremeios, os quais tiram a franca oposição entre valores e espaços. Se aparentemente, prostituição e catolicismo são antagônicos, em nosso país tal questão é reconstruída pelos entremeios, pelas sociabilidades de amigos e parentes oferecendo legitimidade a ações consideradas ilícitas. Como explicava um de nossos informantes, seu Manoel: “eu acho que essa coisa de ficar vigiando a vida dos outros não tem nada a ver não, o que vale é se a pessoa tá fazendo o seu trabalho direito. Quando é que a igreja denuncia a atitude de um coordenador de pastoral? Quando ele não trata os outros direito, não tá fazendo seu trabalho como deveria. Porque se depender de comportamento apenas, normalmente o pessoal não tá nem aí ou finge que não vê, porque tem um bom trabalho com a comunidade. Pode ir pro puteiro, encher a cara ou ter caso com as fiéis, o que não pode é deixar furos no trabalho dele nas pastorais da paróquia.”42

Na organização do mundo religioso, nos sermões, na dedicação à família, tanto por parte de prostitutas como de homens casados, ir ao bordel não é algo contraditório. Não necessariamente, tal situação nos oferece espaço para reflexões sobre a construção de valores e espaços de identificação na sociedade. Sair do bordel e ir à igreja é aparentemente desenvolver valores antagônicos, no entanto ter uma boa relação com a igreja, respeitar a todos, realizar seu trabalho de forma adequada, anula as possíveis condenações. O entremeio entre o bordel e a igreja é a boa relação com os freqüentadores da paróquia. A sociabilidade, como afirma Certeau,43 propicia ser identificado e protegido por todo o grupo do qual o sujeito participe, aumenta a coerção social, mas ela mesma não é unívoca, abre um campo de outras possibilidades, de acordo com as relações estabelecidas. Entre valores contraditórios, mediados pela sociabilidade, nossos personagens entram na igreja, para o encontro com a esposa e filhos, se os tiver, ou pai, mãe, irmãos e amigos, onde irá participar de toda homilia, interagir com fiéis e símbolos sagrados, rezar, pensando em todo o restante da semana, no dia de trabalho que se iniciará, em todas as caminhadas por fazer. Na sexta-feira recomeçarão suas caminhadas, irá percorrer vilas, travessas, botequins, mesas de bilhar, onde encontrará amigos. De lá seguirá novamente para a igreja, sábado à noite, missa de casais, dia de pracinha, comidas com os vizinhos, conversa alegre com os paroquianos. Quando a

41 Cf. DaMATTA, Roberto. “Dona Flor e seus Dois Maridos: um romance relacional” In: Revista Tempo Brasileiro 74. Rio de Janeiro, 1983, p. 10. 42 Entrevista realizada em 25.02.2002. 43 Cf. CERTEAU, Michel de et alli. A Invenção do Cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Petrópolis, Vozes, 2000.

30 hora avança, recomeça o trânsito igreja-bordel-igreja-casa, com todos os companheiros e companheiras de diferentes espaços, não mais antagônicos e sim se encontrando através de elementos mediadores. Família, sexualidade, religiosidade, trabalho, amizade, festas na igreja e no bordel, teor diversificado de conversas, fazem parte do cotidiano jurunense, importante espaço para se pensar Belém, e refletir sobre a construção de valores e sociabilidades.

O BAIRRO EM SUA CARTOGRAFIA DESEJANTE: ABRINDO FRONTEIRAS

Para o leitor que acompanhou nossa trajetória por espaços que separados no mapa, os quais, porém, se encontram no cotidiano, não há mais como se furtar, como uma insistente viajante a acompanhar-nos nesses últimos trajetos em busca de uma Antropologia pronta a responder nossas inquietações cotidianas, e colocar inquietações naqueles que ora folheiam essas páginas. O desejo que move o homem o qual, mesmo cansado, não deixa de a ir à missa no sábado pela manhã, o desejo que na noite anterior despejava-se nas mesas do Céu, o desejo do homem que agora na missa espera a comunhão com Cristo, seria o bairro, como na expressão cunhada e utilizada pelo filósofo francês Giles Deleuze e pelo psicanalista Felix Guattari, uma Máquina Desejante?44 ou várias máquinas? Como mapear essa cartografia, esses pontos que se segmentam, mas que também se ligam por fios invisíveis ao primeiro olhar apressado? Ou melhor seria repensarmos o nosso próprio olhar? Afinal, o olhar antropológico também não é um olhar desejante? Desejo de saber, desejo de poder, desejo de objeto, desejo de sujeitos. Aos poucos nossas certezas ficaram tão escassas quanto à certeza do homem que na manhã de sábado não está em sua casa com a família e sim embriagado e caído na sarjeta mal conseguindo levantar a cabeça, ou da mulher que abre e fecha os lábios avermelhados de um batom barato repetindo o refrão de um brega, enquanto espera um cliente, ou do cliente que olha cada uma das mulheres que passam por sua mesas e sussurram “vamos fazer um sexo gostoso” frase que é jargão no Céu e que pode ser entendida apenas com o gesto dos lábios. O bordel se encontra com a igreja e desse encontro surgem dúvidas e não certezas, dúvidas, como as que agora habitam também a mente dos pesquisadores que estiveram em cada um dos espaços acima citados e que não podem deixar de pensar o papel da antropologia frente a toda uma dinâmica cotidiana que se esvai como fumaça pelas mãos do pesquisador, pois nesse exato momento em que chegamos ao final que preferimos chamar de final-início do presente texto, no Jurunas, a máquina nunca parou e nem vai parar. O mundo continuará a girar. Pequenos, porém, importantes rituais do cotidiano continuarão a acontecer, fiéis se dirigirão à igreja não apenas para a devoção religiosa, como também para encontrar amigos, alguns deles ainda poderão ser encontrados em outros espaços como o bordel ou a casa, interrogações ficarão na mente dos pesquisadores, iremos enquadrar nossos personagens as categorias conhecidas da Antropologia? Ficam as interrogações, dificuldades para compreender emoções, valores e sociabilidades, num mundo aparentemente antagônico o qual, no entanto, funciona em sua lógica própria. O final do presente texto é, na verdade, um início, oportunidade para repensar possibilidades de estudos e entender a lógica interna aos grupos sociais e sujeitos que os compõem, até que recomecem as caminhadas e possamos nos dedicar a analisar múltiplas relações sociais e em uma

44 Cf. DELEUZE, Giles & GUATTARI, Felix. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.

31 Anexo -- Croquis 1 e 2

AVENIDA ROBERTO CAMELIER

Área Livre junto ao Portão Á Guarita r v Portão o r e Pracinha ao Salas s Lado da Pastorais T Igreja E M Sala do Porta P Porta Pe. Jonas L Á O r Secretaria v o do Sala Monsenhor r e

s Cozinha Banheiros Casa Paroquial (altos)

Área Livre (local que

funciona como academia

de ginástica, dança e Quadra como ponto de vendas (Pracinha) nas festividades)

RUA DOS TIMBIRAS DOS RUA Bar

Ponto

das ESCOLA SÃO PIO X

Bicicletas César Martins de Souza Ilustração 1. Plano do Complexo de Santa Teresinha do Menino Jesus

32

Avenida Bernardo Sayão (Estrada Nova)

7 1 6 5

5 8

5

5

2

4 a 4 b

3 3 do Açaí Porto

3 3 a

RIO GUAMÁ

Saraiv Costa Junior Luis Ilustração 3 - Dance Days and Night (Céu) e adjacências - Legenda croqui 1. Bar 2. Salão 3. Quartos 4.a. Banheiro feminino 4.b Banheiro masculino 5. Bares que compõe o Buraco 6. Mini-aparelhagem de som 7. Frízeres 8. Balcão 33

SEGUNDA PARTE:

Sofrimento Social, Medos Urbanos e Formas de Sociabilidade

34 Metáforas de amor e paixão, vida e morte, no processo de mudanças de uma empresa do setor financeiro.

Lea Carvalho Rodrigues

Foi como um parto. As dores começaram devagar, esparsas, mas eu as sentia. A pressão se instalou como quem não quer nada e ficou. Cada vez maior. A incerteza brotou em nossos corações como grandes trepadeiras que se grudam a tudo que está a seu alcance. A dor aumentou, a tristeza chegou e a mágoa chorou. Não foi um dia, não foi um ano, foi quase uma vida. Muitas trocas, esperanças, tombos, mas sempre conseguimos nos levantar e começar a caminhar de novo. E as contrações foram aumentando mais e mais, os intervalos tornaram-se menores, a “respiração cachorrinho” já não aliviava tanto. A realidade amarga deixou o gosto inconfundível em nossas bocas. Dúvida atroz, cruel, faca de dez lados. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. A cabeça já não diferenciava muito bem as coisas. Pensa, pensa muito, pesa, analisa, pede benção ao bom Deus, que nos ilumine, mas a decisão cabe somente a uma pessoa, a mim ou a você. Já quase não se consegue mais suportar a dor e a pressão. E se isto? E se aquilo? Perde o sono, perde o sonho, perde a realidade também. Olho para cima. O sol brilha maravilhoso como nunca. Percebe-se que a vida continua ou, pelo menos, tem que continuar. Mas dói muito, está ficando insuportável. Pego as folhas, assino, acabou.... Nasceu uma vida nova, pariu. O peso nas costas some e me invade uma sensação de bem estar. Estou viva, estamos vivos, temos saúde para começar novamente. Dezoito anos ficaram para trás. Agora não importa mais. Eu passei a ser apenas M...., sem o sobrenome do Banco do Brasil. Pai duro, carrasco, insensível.

O texto acima corresponde à mensagem enviada por uma funcionária45 do Banco do Brasil, de uma agência localizada no interior do estado de Santa Catarina, no dia 14/07/1995, último dia para adesão ao Programa de Demissões Voluntárias (PDV) que o Banco do Brasil havia anunciado no início daquele mesmo mês, como parte do Programa de Ajustes que com essa primeira medida – redução do quadro funcional – iniciava um amplo processo de reestruturação que visava eliminar o desequilíbrio financeiro, elevar receitas e reduzir custos46. As reações dos funcionários aos acontecimentos que envolveram a implementação do programa de demissões foram as mais diversas: surpresa, negação, inconformismo e raiva, reações de exteriorização dos sentimentos de perda, aproximavam-se daquelas reações próprias aos anúncios das tragédias, das mortes inesperadas, quando se nega veementemente o fato, quando se culpa o

45 Os termos funcionário, funcionalismo, quadro funcional, corpo funcional e similares são categorizações êmicas e que aqui são utilizadas independentemente do fato de não se tratar de empregados do setor público. 46 O presente artigo foi realizado a partir de dados da pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP que resultou na tese de doutorado intitulada “Banco do Brasil: crise de uma empresa estatal no contexto de reformulação do Estado Brasileiro”, defendida em setembro/2001, no IFCH, Unicamp.

35 próprio morto pela tragédia47. Alívio, otimismo, expectativa, ansiedade e alegria, por sua vez, foram outras tantas reações que ocorreram, a expressar o vislumbre da liberdade e de um futuro mais ameno e promissor. Do exame do farto material coletado, composto de depoimentos e mensagens enviadas por funcionários ao Gabinete do Representante dos Funcionários (GAREF), em Brasília, mas também depoimentos dos dirigentes da empresa, principalmente por meio da imprensa e com o apoio das constatações das observações de campo e das entrevistas realizadas, foi possível identificar como os sentimentos em relação aos acontecimentos eram expressos por um conjunto de metáforas que se articulavam e muitas vezes se sobrepunham. O próprio presidente da empresa, naqueles dias tumultuados de julho de 1995, em entrevista ao jornal Correio Braziliense, se manifestaria com a frase “... as demissões são um enterro e um parto”, para explicar o clima de tensão e ansiedade que tomara conta da empresa. Numa empresa como o Banco do Brasil, onde o emprego era visto como “para toda a vida”, onde se afirmava uma relação de proximidade ao invés de distância na relação entre as partes, marcada por vínculos afetivos – acrescido à afirmação da existência de objetivos comuns que não se restringiam à busca de lucro mas se pautavam em ações voltadas à consecução dos objetivos nacionais - as demissões provocavam profundas rupturas com valores dados na tradição que, ao longo do tempo, marcaram as relações entre a empresa e seus funcionários. Dessa forma, se de um lado eram acionadas metáforas de morte e vida – no sentido tanto do nascimento como do renascimento – para expressar os sentimentos de perda e aqueles em relação a um novo começo, a essas metáforas se articulariam, ainda, aquelas do universo familiar e das relações amorosas: as imagens paternais e filiais, a relação entre irmãos, mas também as relações de amor e paixão, desde o simples enamorar-se: Durante toda a minha vida no Banco do Brasil eu me comportei como um rapaz apaixonado que vai encontrar-se com sua namorada, traz flores, cuida dela, quer vê-la feliz. Agora, de repente, eu me dei conta que passei a minha vida inteira trazendo flores e essa namorada nem existia mais... (ex-gerente de uma agência localizada em Campinas,SP)

Mas são metáforas que se referem também às relações conjugais e até mesmo às adúlteras e incestuosas, o que mostra o caráter passional que marcava as relações entre a empresa e os funcionários e o significado das rupturas que o programa de demissões provocava. Retomando o texto que abre esse artigo, pode-se ver como é grande o sentimento de perda em relação ao passado, imenso, “quase uma vida” fica para trás, diz a funcionária. O conteúdo da mensagem faz a analogia entre o período de decisão e o processo doloroso que acompanha os momentos que antecedem ao parto. Este se materializa no momento da assinatura da adesão. Mas é um parto indesejado, fruto de uma escolha também dolorosa. Como naqueles casos em que se é levado a decidir pela vida de um ou outro, mãe ou filho. Nesse sentido, a escolha implicará sempre numa morte provocada, voluntária ou imposta, que pode ser lida também, nesse jogo metafórico, como um suicídio que se comete para evitar um possível homicídio. Observe-se que a escolha, como diz a funcionária, caberia a apenas uma pessoa, a ela própria ou ao banco. E é curioso pensar que, de certa forma, todo o conjunto de mensagens enviadas a Brasília, a maioria redigida no dia da adesão, nos momentos imediatamente anteriores ou posteriores ao ato de assinatura, se assemelha bastante ao comportamento do suicida. Grande parte dos suicidas deixa uma ou várias mensagens expondo seus motivos, sentimentos, pedindo desculpas ou perdão.

47 A respeito, vide Caruso (1981), Kubler-Ross (1985), Mannoni (1985) e Vincente-Thomas (1983).

36 Seus interlocutores privilegiados são os entes mais próximos e queridos ou quem ocasionou o ato48. As mensagens enviadas a Brasília, mesmo que endereçadas ao GAREF, mesmo que dirigidas também aos demais funcionários, tinham quase sempre, como interlocutor privilegiado, o próprio banco. É a ele que se dirigiam as censuras, as mágoas, os sentimentos de tristeza e indignação que elas expressavam. Como no texto inicial, em que o interlocutor privilegiado revela-se num momento quase passageiro, ao dizer a funcionária que a decisão “cabe a mim ou a você”. E desse banco assim pessoalizado, pode-se então ver emergir várias facetas de sua simbologia. As metáforas de vida e morte se articulam às familiares e amorosas. A funcionária deixa de portar o sobrenome do Banco do Brasil. Este, no final da mensagem, figura como um pai; ou também como um marido, amante ou companheiro, que se converte, no momento seguinte, em “pai duro, carrasco, insensível”. No entanto, em outros casos, a separação converteu-se numa experiência de renascimento devido à possibilidade de realizar projetos abandonados no passado, por força das próprias exigências de carreira no Banco do Brasil; ou, ainda, o ímpeto em lançar-se a novas empreitadas, desenvolvendo habilidades inexploradas. Nesses casos, a saída da empresa, embora tensa, realizou-se com mais alegria e otimismo. Construía-se um novo projeto de vida, o futuro era acalentado por sonhos de realização pessoal antes impossíveis. Muitas vezes tratava-se, inclusive, de funcionários que não estavam em situação financeira difícil, que tinham uma vida estruturada, às vezes solteiros ou residindo com a família, ainda jovens muitos deles e que, portanto, não tinham construído uma relação tão próxima com o banco. Quando, no entanto, esses projetos e sonhos de futuro não se realizaram posteriormente de acordo com o previsto, ou redundaram em fracasso, aí sim, a dor foi mais intensa e a experiência de perda, de luto, de viver a experiência da morte, se fizeram mais presentes. O ingresso no Banco do Brasil, como narrado pela grande maioria dos entrevistados, já representara um nascimento. É interessante notar que a quase totalidade dos entrevistados declinava dia, mês e ano de ingresso no banco, quando iniciava o relato de sua trajetória na empresa. E como toda passagem, o ingresso no banco acabava significando o abandono de muitos dos planos desenvolvidos na fase anterior. O PDV colocava assim o indivíduo diante dessa possibilidade: fazer uma nova passagem, em sentido inverso, em que a trajetória na empresa seria sepultada, fazendo os projetos passados. No entanto, o entendimento sobre o alcance dessa ruptura demanda, ainda, uma melhor compreensão sobre o significado da estabilidade dentro da empresa. A estabilidade do funcionário do Banco do Brasil não era amparada em dispositivos legais, mas era, isto sim, uma prática ancorada em princípios não formais49, dados na tradição, e que se constituía até então em princípio básico das relações entre os funcionários e o banco. A estabilidade significava, para o funcionário, uma segurança e uma previsibilidade quanto ao seu futuro profissional – garantia de salários e benefícios, possibilidade de ascender na carreira, adequação dos seus interesses aos da empresa50- o que dava possibilidades de segurança também a sua vida particular. Assim, é importante ressaltar que a vida profissional do funcionário do Banco do Brasil mesclava-se a sua vida pessoal. O banco era uma extensão da casa, uma metáfora da família. E se por um lado essa estabilidade gerava tranqüilidade, em muitos casos

48 Na abordagem realizada por Dias (1991), a partir das mensagens deixadas por suicidas, diz a autora que embora nesses casos haja características particulares que os diferenciam dos demais, pode-se considerar uma abrangência suficiente para que sejam comportamentos comuns à população suicida em geral. 49 Nos pronunciamentos de membros da alta administração da empresa se tratava de uma estabilidade “consentida” pela empresa. 50 Na Política de Pessoal elaborada em 1994 há claramente esse sentido de adequação dos interesses da empresa aos dos funcionários.

37 acomodação, em outros dificuldades para a inovação, é também verdade que esses vínculos estreitos com a empresa reforçavam o alto grau de comprometimento e dedicação, quesitos esses que tinham consonância com os próprios valores enaltecidos pela empresa ao longo do tempo. Em pesquisa realizada em 1996 (Rodrigues e Gussi,1999)51, quando procuramos detectar os princípios de identificação dos funcionários com a empresa, notamos que a referência ao banco era feita em diferentes níveis e que havia importantes distinções a ser feitas. O banco apresentava-se ora com atributos negativos, quando era feita uma relação direta entre Banco e Governo, ora com uma conotação positiva, quando a referência era ao banco como uma instituição independente dos governos, suas presidências e diretorias. Esse banco instituição existia de forma perene, à parte dos governos que nomeiam seus presidentes e as diretorias por estes últimos constituídas, pois presidências e diretorias eram consideradas pelos funcionários como passageiras, efêmeras. Quando os funcionários diziam “o Banco”, em sua grande maioria, era como se falassem de uma pessoa com a qual eles mantinham um relacionamento muito íntimo; de quem conheciam as virtudes, os defeitos e as carências; a quem, na maior parte das vezes, queriam proteger; a quem pertenciam, ao mesmo tempo que dele se sentiam parte. Como bem observa Enriquez (1991), ao contrário das organizações que visam apenas a produção de bens ou serviços de forma delimitada e cifrada, as instituições se constituem em espaços específicos onde se produz, mesmo que minimamente, um consenso em torno de realizações que têm como fim a coletividade. Nesse sentido, para o autor:

[...] toda instituição tem vocação para encarnar o bem comum. Para isso, favorecerá a manifestação das pulsões sob a condição de que sejam metaforizadas e metabolizadas em desejos socialmente aceitáveis e valorizados, o desdobramento de fantasias e de projeções imaginárias na medida que “trabalhem” a favor do projeto mais ou menos ilusório da instituição, tendo a emergência dos símbolos por função unificar a instituição e garantir o trabalho desta sobre o consciente e o in-consciente dos seus membros. (Enriquez, 1991:53-4)

Além do mais, para o corpo funcional o Banco do Brasil era o “conjunto de seus funcionários”, uma idéia que foi passada de administração a administração, repetida em inúmeros discursos e missivas de ex-presidentes da instituição. Para o banco, afirmavam seus administradores, “os funcionários são o seu maior patrimônio”. Nesse sentido, ao rejeitar parte deste grupo e ao provocar a sua desintegração, de forma factual, as rupturas representavam, ainda, o fim do funcionário como um valor para a empresa. E se os elementos que conformavam a identidade do funcionário com a empresa pautavam-se em vínculos afetivos, expressos metaforicamente pela analogia às relações amorosas e familiares, a ruptura com esse padrão de relações, ao afirmar a opção primeira pelas leis de mercado, do lucro e da produtividade, tornava explícitas as tradicionais relações entre capital e trabalho e o fazia de forma mais acentuada e polarizada. O uso de metáforas foi uma constante nos dados coletados, principalmente quando se tratava de desabafos, depoimentos pessoais, cartas de despedida e grande parte delas valem-se de metáforas que acionam o universo das relações familiares e amorosas e a saída da instituição foi vista e sentida, na quase totalidade dos casos, como abandono e traição.

51 Esses dados referem-se à pesquisa realizada com o apoio da Fapesp, fazendo parte do projeto temático intitulado “Cultura empresarial brasileira: um estudo comparativo entre empresas privadas, públicas e multinacionais”, coordenado pelo Prof. Dr. Guilhermo Raúl Ruben.

38 Alguns estudos sobre empresas e organizações, dão ênfase à utilização das imagens do universo familiar como forma de dominação e perpetuação da assimetria entre capital/trabalho (Colbari, 1996). Normalmente, as figuras privilegiadas são a do “pai” como forma de identificação com o patrão e a de “filho” para os empregados. Assim, trabalhadores devem obediência e respeito ao patrão (pai) e dedicação à empresa, esta apresentada como metáfora da família. Mas no caso aqui referido, há distinções importantes a fazer, que tornam complexo o entendimento da sobreposição entre relações familiares, amorosas e relações de trabalho. Uma primeira constatação é que a transposição da relação pai/filho ou mãe/filho apareceu de forma reduzida no material pesquisado. A utilização da figura materna, ao invés do pai, apareceu uma vez apenas, na frase de uma funcionária que se manifestou contra a intervenção do sindicato no processo do PDV. Dizia ela, “Deixem-nos sair com dignidade. Sentimos que podemos fazer bem mais por nós e pelo país fora do útero protetor da mãe BB” 52. A figura do pai apareceu em algumas entrevistas, em especial quando o entrevistado expressava os sentimentos de perda em relação ao banco: “foi como se perdesse um pai...” 53 ou para expressar a mudanças nas relações entre a empresa e os funcionários: “O banco, que eu considerava como um pai, de repente me abandonou...” 54. São construções também presentes em mensagens e depoimentos de funcionários, como no texto abaixo, onde o banco figura não apenas como “pai”, mas um “pai patrão” que personifica as relações de exploração. No entanto, na referência ao passado, deve-se notar como são recuperados os sentimentos de admiração e amor que, como se pode perceber, foram construídos durante a longa convivência com a empresa. Transcrevo os trechos principais da mensagem para que se tenha uma idéia mais precisa de como eram os sentimentos dos funcionários em relação ao banco e como eles se manifestavam nesse momento difícil de despedir-se da empresa. Chamo a atenção, também, para uma característica presente na maioria das correspondências, dada pelo recurso às frases informais, ao uso de analogias e o expressar de um forte sentimentalismo nas frases muitas vezes entremeadas de versos e canções. Um sentimentalismo que parece totalmente contraditório com o ambiente de trabalho e as atividades então exercidas por esses funcionários, onde impera a lógica financeira: os papéis, os números, o cálculo, a linguagem técnica das instruções e normas, a linguagem burocratizada das correspondências, os processos de trabalho sistematizados, as relações hierarquizadas. No entanto, é por meio dessas mensagens sentimentais e dessa linguagem despojada e próxima que se percebe, em muitos momentos, que o verdadeiro interlocutor é o próprio banco, como se possível fosse pessoalizá-lo: Dia 31.07.95: último dia do ritual de assinatura do livro-ponto. Um gesto quase mecânico que se repetiu por mais de vinte anos, com símbolo de bom dia ao sisudo pai, o “patrão nosso de cada dia, dia após dia”, que se limitava a estar ali, controlando minha hora de chegada. Mesmo assim, eu o admirava (mirava de fora). Era um namoro que se fortalecia a cada ano. As pequenas ausências (férias, licença-prêmio, etc...), provocavam saudade daquele turbilhão de números. No regresso, chegava a fazer declarações íntimas: [...] Tudo era só felicidade até o dia em que o pai achou que a família estava muito numerosa. Era preciso expulsar alguns filhos de casa. Deixá-los na floresta com suprimento para algum tempo, com arco e flechas para a

52 Mensagem enviada ao Garef em 18/07/1995, com o título “Saiam do meu caminho, eu prefiro andar sozinha. Deixem que eu decida a minha vida”. 53 Funcionária de agência em Campinas, São Paulo, com 39 anos de idade e 12 anos de Banco. 54 Idem.

39 defesa pessoal (instrumentos de defesa obsoletos, considerando a astúcia dos predadores da floresta). Existem filhos que dominam a arte de defesa e caça. Outros, porém, durante os anos que passaram com o pai só fizeram foi capinar no roçado da família, buscando com esse gesto o reconhecimento paterno. Não aprenderam a arte da guerra. E agora? Caçar, ser caçado ou se caçar? [...] Ah! Mas essa postura fria do pai não vai me desgovernar. Se já não sou filho egrégio, meu destino também é a floresta. Com 42 anos e vários sonhos, vou pegar pincel e tinta, pintar um paraíso e depois nele morar. Vou ouvir sempre a voz da natureza que fala alto dentro de nós. Buscar o equilíbrio. Fugir das armadilhas na mata escura. Vou morar na floresta. [...] Vou chegando ao fim do nosso bate-papo e da permissão para uso deste instrumento pertencente ao pai. Sem mágoas, sem mágoas mesmo, rompemos nossa relação. Com um nó na garganta, estou prevendo uma saudade enorme desses irmãos que tanto carinho demonstraram e tanto me ensinaram durante nossa convivência. Meu irmão, minha irmã, um beijo na alma de cada um de vocês.”55

Embora se trate de analogia com as relações familiares e o banco se apresente na figura paterna, percebe-se o vínculo emocional com a empresa nas relações entre os funcionários (irmãos). Mais que isso, revela uma forte clivagem entre passado e presente pois que há uma modificação no estatuto dessas relações. Quando o funcionário se refere ao banco, no passado, este não aparece como pai, a relação é amorosa, mas não obrigatoriamente uma relação familiar. A relação de dominação aparece no presente, quando então o banco se torna um “pai-patrão”. A convivência passada, como se pode perceber, é relatada como prazerosa e feliz. A saída do banco é relatada como o abandono do pai a uma parte da família, pela expulsão de alguns filhos, quando então se torna o pai dominador. E, quanto a este ponto, o texto revela também um conteúdo bíblico, de raiz judaico-cristã, pela analogia com o episódio da expulsão do paraíso, como consta do Gênesis. E aqui vale lembrar que Chauí (2000) se refere ao mito fundador da nação como uma construção simbólica carregada de imagens bíblicas. Um elaboração mítica de um Brasil em estado de natureza que repõe a visão do Paraíso56. E assim é possível notar que esses elementos simbólicos se articulam e se sobrepõem, como, neste caso, as metáforas familiares e a da nação57. O que estou sugerindo é que mesmo se encontramos similaridades com as construções teóricas normalmente referidas quando do estudo das imagens familiares no âmbito das empresas há, no caso do Banco do Brasil, algumas particularidades a formar um intrincado quadro onde se cruzam e se sobrepõem as analogias e metáforas. A pesquisa mostrou que a utilização de metáforas familiares pode ser acionada nos momentos em que o funcionário se manifesta contra a empresa e a deprecia, em que correlaciona essas imagens à de exploração e dominação, mas, de forma muito mais generalizada, essas metáforas apareceram como expressão de sentimentos de grande afetividade para com a empresa. Nesses casos, ela não ocupa o lugar da “mãe protetora” ou do “pai exigente e cruel” e sim a de marido ou

55 Mensagem de despedida de funcionário de uma agência do interior do Paraná, enviada ao GAREF em 31/07/1995, data do desligamento dos que aderiram ao PDV. 56 Essa relação entre o descobrimento do Brasil e a visão do Paraíso encontra-se em Mello e Souza (1986). 57 Para uma melhor apreciação sobre as relações entre a empresa e os signos de nacionalidade vide Rodrigues (1999b)

40 amante. Até este ponto nada há de muito especial pois as figuras de marido e amante também podem reproduzir a mesma relação de dominação/submissão. No entanto, há uma figura do universo familiar que de forma implícita ou explícita está quase sempre presente e que fornece um outro estatuto a essa relação. É quando o banco ocupa a figura de filho. Um banco que como um filho deve ser cuidado e protegido e um filho pelo qual, na maior parte das vezes, não se mede sacrifícios. Além do mais, é um filho que está sempre em perigo, sempre exposto aos mais variados interesses e riscos. E por isto tudo precisa ser protegido. Para melhor entendimento dessas relações, vou me valer de uma mensagem encaminhada ao GAREF em 24/07/1995. Como é uma mensagem extensa mas repleta de elementos significativos, farei a exposição completa da mensagem, mas de forma paulatina, interpretando cada momento resgatado. O título do texto é “O divórcio” e se inicia da seguinte forma: Foi amor a primeira vista, eu era jovem, ele era bem mais velho, experiente, rico, poderoso. Fez-me passar por um teste, disse que precisava saber se eu era do seu agrado. Passei, casamo-nos de papel passado, lua de mel maravilhosa, uma vida nova, cheia de perspectivas.

Na qualidade de marido ou amante, a referência é a um relacionamento de longo tempo envolvendo namoro, casamento e expectativa de convivência de muitos anos. O sentimento é de amor e admiração, o futuro abre-se pleno de perspectivas, de uma vida feliz. Por causa dele eu renunciei a muitos sonhos, mas nunca me arrependi, sempre achei que valia a pena. Fiz até algumas loucuras, viajei com ele por terras inóspitas onde adquiri experiência, maturidade, conhecimento. Adquiri também algumas coisitas desagradáveis como infecções intestinais e uma malária da qual me orgulho como se fosse um ferimento de guerra e que me impede até hoje de doar sangue.

Num segundo momento, vêm à tona outros aspectos dessa relação que, como em toda a separação, surge como cobrança pela dedicação ou perdas vividas no passado58, mas que, no caso em questão, diz também sobre algumas características do funcionário e de sua relação com a empresa. Assim é que o ingresso no banco mostra-se como renúncia aos projetos de vida forjados no passado e a dedicação é apresentada como sacrifício ao sujeitar-se a ir para terras distantes e inóspitas. Interessante, ainda, a analogia entre sacrifício e orgulho, uma vez que ao considerar as marcas adquiridas no passado como semelhantes a ferimentos de guerra, cruzam-se não apenas a simbologia que resgata as figuras familiares no âmbito das relações de trabalho mas aquela que, ultrapassando o âmbito da empresa, diz respeito aos vínculos entre a empresa Banco do Brasil e os signos de nacionalidade. O orgulho por ferimentos de guerra só faz sentido quando se participa de algo como “missão”, como luta por uma causa nacional. Neste sentido, é conveniente resgatar a construção que faz Anderson (1989) sobre a utilização do vocabulário de parentesco ou do lar na referência à pátria, o que para o autor explicaria o “amor à pátria” 59. Dessa forma, por se tratar de uma empresa onde se articulam e se repõem constantemente elementos simbólicos que também vinculam a empresa à idéia de nação, a relação entre funcionários e empresa, embora colocada em termos de dominação/subordinação, pede a

58 Sobre as diversas fases vividas nas separações conjugais, sobre as perdas e os rituais de transição, bem como sobre a analogia entre estas e a perda do emprego vide Diane Vaughan (1991:223). 59 Diz ainda Anderson (1989:157) que a utilização de vocabulário de parentesco ou de expressões do universo familiar expressa a referência a algo a que se está ligado “naturalmente” e que, portanto, não se pode evitar ou escolher.

41 consideração destas nuanças e do entendimento do sentido dado à dominação, bem como o tipo de submissão. Passado algum tempo veio a temperança, a paixão diminui mas aumenta a afetividade, o amor. Desavenças? É óbvio que tivemos, como todos os casais normais, mas nada sério. Tudo passageiro, afinal, sempre tive uma grande admiração por ele e vivemos anos de felicidade conjugal. De repente a crise, ele começa a passar por problemas financeiros, diz que eu dou muita despesa, que me acomodei, e que preciso ajudá-lo a se recuperar. Eu reflito, chego à conclusão que ele tem razão. Sempre dependi dele, só tenho a agradecer tudo o que ele me deu e decido retribuir, sair do marasmo, mudar de vida, dedico mais tempo a ele, procuro ser útil e passo a viver em função de sua recuperação. Tudo que ele pede eu faço, é qualidade, contenção de despesas, sedução de clientes, etc.

Mesmo as relações empresa/funcionários sendo diferenciadas, a submissão está presente, pois “tudo que ele pede eu faço”, e o trabalho é visto como tarefa que se realiza como forma de “retribuição” não como algo que se recebe por direito. A tônica é a da reciprocidade, mas observe-se, a ele se contempla com a dedicação quase irrestrita em agradecimento a algo que se recebeu, que foi dado, porque a conclusão é “só tenho a agradecer tudo que ele me deu”. Considera-se o funcionário devedor da empresa, mesmo que na maior parte de todas as correspondências fique evidente a prática de muitas horas de trabalho gratuito, baixos salários e endividamento. É este um ponto importante, uma vez que o PDV e as medidas correlatas implementadas a partir de julho de 1995 encaminharam-se no sentido de explicitar as tradicionais relações capital/trabalho, rompendo o banco com esse envolvimento funcionários/empresa. No momento em que o funcionário deixa a empresa, aderindo ao PDV, a utilização das metáforas familiares torna-se ainda mais forte na mensagem. A demissão é vista como separação, abandono e traição:

Um belo dia ele me chama para conversar, diz que saiu do sufoco, que está muito agradecido, mas que as coisas entre nós não são mais como antes. Diz que deseja minha felicidade e que é hora de cada um seguir o seu caminho. Indago a razão, ele argumenta que quer sangue novo, pele viçosa, meu tempo passou, estou cheio de rugas e não evolui como ele queria. Mas diz que vai me recompensar financeiramente pela separação, quer que sejamos amigos, que o divórcio transcorra amistosamente, diz que até vai me ajudar a encontrar outro alguém, reconstruir minha vida. Eu, quase sem fala, queixo caído, ouso pedir, guturalmente, uma segunda chance. Ele, enigmático, não responde. Pergunto o que acontecerá se eu não der o divórcio. Ele ameaça, diz que eu vou me arrepender, que a separação pode ser litigiosa, que eu posso sair sem nada do que ele está me oferecendo. Eu me assusto. Ele está mudado. Acho que vou embora para a casa da mamãe.

Enfim, o divórcio, como uma separação indesejada, fruto de ameaças, que retratam a pressão sofrida pelos funcionários durante a implementação do programa. O funcionário se assusta, sente a magnitude das mudanças e decide sair. A submissão neste final chega a um ponto máximo pois o funcionário se humilha, pede outra chance “e ele enigmático, não responde”, frase que também expressa com bastante propriedade a falta de diálogo, a postura unilateral da empresa na condução do programa. E quanto a essa

42 postura, cabe reter como questão em que medida a natureza dessa relação e o significado da ruptura tiveram influência sobre a baixa mobilização funcional no contexto das mudanças. Vale ressaltar ainda que embora o banco ocupe o lugar de marido autoritário e dominador, o papel do cônjuge, como uma esposa submissa é representado por um homem60. Nesse sentido, do ponto de vista das abordagens de gênero, cabe notar que as figuras do masculino e do feminino independem de sexo, no sentido que propõe Marilyn Strathern de que gênero contempla “...todas as categorizações de pessoas, artefatos, eventos, seqüências e tudo o que desenha a imagem sexual, indicando os meios pelos quais as características de masculino e feminino tornam concretas as idéias das pessoas sobre a natureza das relações sociais (Kofes, 1993). O Banco do Brasil, nessa mensagem específica, mostra-se como uma empresa que comporta os referentes culturais dos atributos de uma masculinidade construída com ênfase na desigualdade, mas não importa o sexo daquele que se encontra do outro lado da relação e é dessa forma que tanto um homem como uma mulher poderia estar se dirigindo à empresa como se fosse uma namorada, uma esposa submissa e depois traída e abandonada. Vê-se, assim, que o banco ocupava ao mesmo tempo várias figuras do universo familiar ou amoroso, passando de “pai” e/ou ”mãe” a “namorado (a)”, ou vice-versa, ou ainda, figurando como amante ou como filho. Muitos funcionários, quando entrevistados, acionavam essa figura do banco como amante quando relatavam a sua situação familiar, a relação com o cônjuge e os filhos, a quem não podiam mais dar atenção, tantas eram as exigências colocadas pela empresa. Todo esse conjunto de metáforas –familiares e amorosas, da nação, de vida e morte- indica que percebiam todos o significado dos acontecimentos e viviam todos, tanto os que ficavam como os que partiam, a experiência da separação, da perda e da finitude. Morriam para a empresa os funcionários que partiam e com eles o banco antigo que a alta administração queria mesmo sepultar. Para os funcionários que partiam, por sua vez, a experiência era dupla: a sua morte voluntária na empresa implicava em fazer a passagem de uma vida estabelecida, de um futuro delineado -ou pelo menos circunscrito às possibilidades dadas no âmbito da empresa-, para um futuro totalmente aberto e incerto, embora prenhe de expectativas e possibilidades; e, ao mesmo tempo, o fim do próprio banco com o qual eles se identificavam. Para alguns, era a certeza da inevitabilidade da morte da empresa o que conduzia à opção pela demissão. Já para outros, a possibilidade da morte do banco era percebida como decorrência das demissões. O processo do PDV foi vivido como uma passagem que metaforicamente se expressou como a experiência da separação (conjugal) ou da morte simbólica. Mas sabendo que para efetuar a transição do indivíduo de uma situação a outra as sociedades desenvolvem mecanismos cerimoniais que ritualizam essa passagem (Van Gennep,1978), resta saber, enfim, quais mecanismos foram acionados com essa finalidade e qual a sua eficácia simbólica. Enterrar os mortos é condição para restituir o bem-estar aos vivos. Como bem mostrou Hertz (1990:30,32), enquanto o morto permanece entre os vivos, fisicamente ou em lembrança, a proximidade, a presença contínua, carregam de negatividade a vida social. A presença do defunto é fonte de perigos, causa o medo do contágio e lembra a todos constantemente sobre a finitude da vida e, portanto, a possibilidade de extinção do próprio grupo. Somente quando se finalizam os ritos mortuários e se completa o período do luto é que os sobreviventes estarão liberados. E não basta apenas enterrá-los pois, como observa José Carlos Rodrigues, “a morte real só acontece quando o morto é esquecido. Quando não há mais ninguém para sacrificar em sua intenção, quando não encontra mais suporte algum no mundo concreto” (Rodrigues,1983:101) 61.

60 Funcionário detentor de cargo de gerência média em um CESEC localizado na região nordeste do país, e que aderiu ao PDV. 61 Phillipe Ariés (1989) mostra que, na Idade Média o temor ao regresso dos mortos era de tal ordem que levava os indivíduos à veneração das sepulturas. Da mesma forma, “os mortos enterrados ou incinerados eram impuros: quando muito próximos, poderiam poluir os vivos” (Ariés, 1989:34)

43 Cabe então perguntar se no PDV, o Banco do Brasil, que encarnava a figura do pai, mãe, marido, amante e filho, e por meio dessas figuras a própria nação, enterrou definitivamente os seus mortos, viveu ritualmente o luto e as exéquias, expressou o pesar pelas perdas sofridas. Pois são os ritos da morte que afirmam a perenidade do grupo e afastam o fantasma do aniquilamento, “os funerais são ao mesmo tempo, em todas as sociedades, uma crise, um drama e sua solução: em geral uma transição do desespero e da angústia ao consolo e à esperança” (Rodrigues,1983:21). A empresa de consultoria contratada para administrar e conduzir o processo do PDV buscou tratá-lo, teoricamente, como uma perda similar à causada pela morte, denominando aqueles que permaneceram na empresa de “sobreviventes”. Tão logo terminado o processo e efetuadas as demissões, foi convocada uma reunião entre a diretoria, superintendentes estaduais e administradores do banco, quando se realizou uma palestra proferida pela psicóloga da empresa de consultoria. Nessa palestra, foi feito um trabalho de esclarecimento sobre a forma como os administradores deveriam lidar com os funcionários no pós-PDV62. Dizia a palestrante que o que deveria ser administrado dali para frente não era só um projeto de reconstrução do banco, do ponto de vista operacional, mas a reconstrução das relações de trabalho dentro da empresa. Na verdade, como ela enfatizou, tratava-se de administrar “a nova relação que vai ser estabelecida entre os funcionários e o banco”. No entanto, as medidas que se sucediam ininterruptamente, paralela e posteriormente ao PDV, indicavam a continuidade da crise, do clima de tensão e do medo em relação ao futuro. Faltando cinco dias para a efetivação das demissões, que ocorreram todas em 31/07/1995, de forma massiva e em todo o Brasil, o Banco do Brasil iniciou o movimento de transferências de funcionários entre as agências, em todo o país. De posse dos números do PDV, o banco divulgou uma lista das agências com vagas e os excedentes em todo o país foram convidados a buscar colocação em alguma delas e a transferir-se para as localidades no prazo de uma semana. Assim, os primeiros meses após o PDV já mostravam que ele havia sido apenas o início do processo pelo qual se alterariam radicalmente as relações de trabalho dentro da empresa. Dessa forma, as medidas que iam sendo acionadas, ao invés de indicar um retorno a uma situação de normalidade, ainda que precária, acentuavam a crise e deterioravam as relações internas. Além do mais, a tensão era tanta para os que permaneciam que em poucos lugares se realizaram alguma cerimônia de despedida para os que partiam, prática até então habitual na empresa, mesmo quando tratava-se de uma simples transferência de agência ou setor. Como fica claro do depoimento abaixo, de uma funcionária que permaneceu na empresa:

Então, a gente teve de trabalhar com a tristeza de ter perdido os colegas, que a gente aqui nessa agência era uma família. Então, começamos a trabalhar com essa tristeza... não era... nunca mais foi a mesma coisa...” Olha, eu, no último dia ... eu sou muito humana, eu gosto das pessoas... então, o que aconteceu? Eu não vi ninguém sair... porque saiu todo mundo quietinho, com a orelhinha abaixada, .... trabalharam até o último dia e depois não teve nenhuma despedida... Você lembra como era quando uma pessoa estava pra aposentar? Fazia festa, dava presente, tudo. Pra eles não teve nada, nenhum até logo, nem uma reunião..., pra ter um agradecimento, uma despedida. Na agência não teve!... eu não sei o porquê... [...] Aí eu via o pessoal saindo.... olha, chorei muito naquele dia, como se tivesse perdido um irmão mesmo. Verdade, chorei, muito, muito... acho que porque eu queria ir também ... e eu não tinha outra saída, porque nem

62 Reprodução da palestra, sem revisão da autora, foi veiculada em Informe BB-Reservado, nr.56, cuja cópia me foi fornecida pela representação funcional em Brasília.

44 aplicando o dinheiro eu ia sobreviver. E eu tomei a decisão certa de ter ficado... Mas eu chorei muito...[...] quando eles saíram era um dia de velório, e no dia seguinte nós estávamos de luto, porque os clientes estavam lá, a gente tinha de trabalhar, sem funcionário... mas sem a mínima vontade de .... Terminou o tesão, não sei, como se tivesse uma ruptura, uma separação, nunca mais o banco foi o mesmo... 63

A partir daquele momento, efetuadas as demissões, a presença da morte invadiu o cotidiano da empresa, instalando-se diuturnamente ao lado de cada funcionário, o luto agora transformado em uma experiência interminável que impedia a finalização da passagem. E quanto mais a cúpula da empresa afirmava a morte do banco do passado, mais ele era relembrado por todos; quanto mais se louvava o banco que nascia, mais ele era rejeitado, não existia. A frase mais repetida naqueles primeiros anos após as mudanças foi “o banco acabou”; mas se o banco acabou e nada foi colocado em seu lugar, a única referência persistia sendo ainda ele. E assim viviam todos das lembranças do que esse banco era ou foi num passado mais recente ou mais remoto, conforme a vivência de cada um, embora a alta administração da empresa, em seu discurso e ações, a projetasse para o futuro. Nada que a Antropologia já não tivesse demonstrado em sua vasta bibliografia sobre o tema, pois as perdas seguidas, o luto interminável, só poderiam provocar mesmo o sentimento contrário ao desejado pela empresa, a reafirmação daquilo que se pretendia destruir uma vez que a comunidade atingida pela crise, pela ameaça de desagregação, pela dor da perda, reage com a mesma intensidade e busca reter a lembrança e a presença interior daqueles que partiram.

MANIPULAÇÃO DA DIMENSÃO SIMBÓLICA COMO ESTRATÉGIA DA EMPRESA

O clima de instabilidade, apreensão e tensão que marcou todo o período de mudanças, que aqui analisei do ponto de vista simbólico, teve, por outro lado, conseqüências reais. As metáforas acionadas expressavam as situações vivenciadas. Os suicídios ocorridos no período64 foram a expressão extrema da deterioração das relações internas no Banco do Brasil. De muitas outras maneiras – embora de difícil mensuração – ela se manifestava: enfartes, crises de depressão e outros distúrbios psíquicos, alcoolismo, desestruturação familiar. Essas informações eu as fui obtendo ao longo do tempo, no decorrer da pesquisa, em conversas informais em várias cidades por onde passei buscando dados e realizando entrevistas. São casos os mais diversificados, que não constam de nenhuma estatística, dos quais não se tem ou não se divulgam registros65 mas que foram presenciados por aqueles que acompanhavam o dia-a-dia da empresa. No período anterior ao programa de demissões, a crise já instalada na empresa, presenciei o desespero de um funcionário de cargo elevado, prestes a perder a comissão e sob a ameaça de

63 Funcionária atualmente em licença-saúde por LER e depressão. À época do PDV contava oito anos de Banco e 35 de idade. 64 A respeito ver Xavier (1998). Também Benevides (2002). 65 Informações obtidas junto a uma funcionária que atua há mais de 25 junto à CASSI, responsável pelo acompanhamento de questões relativas à assistência médica, licenças-saúde, afastamentos, e que tem acompanhado todos esse acontecimentos, não existem registros sobre esses casos. Disse que ocorreram anteriormente alguns estudos mas dos quais hoje não se sabe o paradeiro. Disse mesmo que sobre todo o período anterior à desvinculação da CASSI da empresa Banco do Brasil , que ocorreu mais recentemente, houve praticamente um desinteresse em coleta e compilação de dados.

45 demissão – estava há meses da aposentadoria – e já perdendo também a mulher, os bens, a saúde e o interesse pelo trabalho. Também a morte repentina de um outro funcionário, por enfarte do miocárdio, um dia após ser notificado que seria transferido para o turno do dia, o que o impediria de continuar a clinicar – pois médico era sua segunda profissão a que ele chegara cursando a faculdade em idade já mais avançada, trabalhando sempre nos centros de processamento de dados, nas noites e madrugadas. Mas essa situação de crise, anterior ao programa de demissões, deve ser entendida como parte da estratégia da empresa para desmobilizar os funcionários. A situação de instabilidade criava um clima de boatos, expectativas e grande tensão. As entidades representativas e as lideranças no ambiente de trabalho viam-se envoltas em questões referentes a deslocamentos de funcionários, punição por endividamento, extinção de horários e setores. No momento do anúncio do programa de demissões, dado ainda o prazo reduzido em que ele se efetivou, como enfatizou a então presidente do Sindicato dos Bancários no Rio de Janeiro, as dificuldades de mobilização do quadro funcional eram grandes. Segundo ela, as reações a nível nacional foram muito fragmentadas “porque as pessoas estavam quebradas”. Durante os anos que se seguiram ao programa de demissões continuei acompanhando passo a passo os acontecimentos que envolveram o processo de mudanças no Banco do Brasil. Tão logo efetivadas as demissões o Banco do Brasil iniciou um programa de transferências para suprir os claros deixados por aqueles que saíram, uma vez que, na verdade, não havia excesso de funcionários mas a intenção de renovar o quadro, desfazendo-se dos funcionários mais antigos e, portanto, mais onerosos para a empresa. Nesse processo, os estados da região Nordeste foram os mais atingidos tendo o Ceará o maior percentual de funcionários considerados “excedentes” (30% do total de funcionários lotados no estado). Nos dois anos seguintes cerca de 30.000 funcionários se demitiram da empresa, grande parte devido às transferências compulsórias e suas conseqüências - perda de cargos comissionados, separação da família, impossibilidade de arcar com os custos nos grandes centros urbanos da região Sudeste do país-, representando uma diminuição de cerca de 37% do total antes existente. A criação da categoria excedente, pelo Banco do Brasil, pode ser considerada como um dos mecanismos mais violentos dentro do processo de mudanças ocorrido na empresa. Não apenas por ter se constituído em um mecanismo de exclusão de determinadas categorias de funcionários, sobretudo as que se encontravam de alguma forma em situação fragilizada no processo de escolha, mas porque a própria categoria excedente assim formada passava a ser alvo dos mais variados tipos de discriminação. Vale observar que funcionários doentes, também aqueles atuantes politicamente bem como outros considerados pouco produtivos ou que se recusavam a trabalhar horas excedentes não remuneradas, como era o caso de muitas mulheres, foram preferencialmente colocados nessa categoria. O excedente, tão logo assim categorizado, era excluído do quadro de funcionários da agência. Para eles foi criado um código de localização “virtual” e, assim, eles, mesmo trabalhando na dependência onde então se encontravam, passavam a fazer parte de um chamado Quadro de Excedentes pertencente à Direção Geral. E isto traduzia-se muitas vezes em conflitos no local de trabalho. O excedente era um “não funcionário” e era como um morto-vivo que ele prosseguia trabalhando naquela dependência, o que pode ser visto simbolicamente como uma “morte social”, num sentido próximo àquele apontado por Lévi-Strauss quando se refere à morte por enfeitiçamento, valendo-se das observações de Cannon em “Vodoo Death”66.

66 Vide Levi-Strauss (1975:193).

46 O trabalho de Cannon67 relata casos de adoecimento resultando em morte ocasionados pela exclusão social do indivíduo sobre o qual pesa a marca de enfeitiçamento. Considerado como um condenado, um morto-vivo, o enfeitiçado é excluído de todas as atividades da comunidade, como se morto estivesse realmente, e assim é que a morte social pode levar à morte natural pois o indivíduo ao ver-se banido do convívio social, ao perder os referenciais de identificação com o grupo, ao ser isolado e ter sua existência negada, aos poucos pode chegar a adoecer e finalmente morrer, pois, como conclui Lévi-Strauss(1975:194), “a integridade física não resiste à dissolução da personalidade social”. Além do que, o excedente não era apenas um excluído na sua unidade de trabalho. Quando ele se transferia, carregava a marca de sua condição; chegava sempre à outra dependência como alguém que foi descartado e que, portanto, já de antemão, era considerado um mau funcionário. Ademais, na possibilidade de ocorrerem novas mudanças ele estaria sempre na situação mais precária. Muitos foram os casos, apreendidos de depoimentos e cartas, de excedentes que mal chegaram à outra dependência e foram novamente colocados na situação de excedentes. Funcionários que se adoentaram, nos anos seguintes, enfrentaram, além dos problemas decorrentes da própria doença, o medo constante acerca de seu futuro na empresa. Como já abordado, funcionários doentes eram facilmente colocados como excedentes. E quando regressavam ao serviço passavam muitas vezes a ser rejeitados na unidade de trabalho, seja porque não alcançavam a produtividade desejada, seja porque haveria sempre o risco de um novo afastamento por doença. Assim é que, no Banco do Brasil, onde os casos de suicídio vinculados às situações oriundas do ambiente e das condições de trabalho já haviam se sucedido no período anterior e durante o PDV, algumas ocorrências voltariam a marcar o período posterior ao PDV. Os dados disponíveis sobre os suicídios ocorridos no Banco do Brasil, no período 1995 a 1996, mostram que no período anterior ao PDV as ocorrências – oito casos nos cinco meses que antecederam o PDV e quatro durante a realização do programa de demissões - se referiam a funcionários endividados com a empresa ou que não suportaram a tensão proveniente das ameaças de fechamento de dependências, perdas de comissão e demissões compulsórias, nenhum ocupando cargo elevado. Já no meses seguintes ao PDV, dos dez casos registrados sete se referem a funcionários exercendo cargo de gerência. Em todos os casos sob os quais foi possível acessar alguma documentação as ocorrências relacionavam-se à pressão no ambiente de trabalho. Alguns desses casos alcançaram expressiva repercussão na imprensa e nos meios de divulgação sindical porque as vítimas deixaram registrado que o motivo de seus atos era a pressão sofrida das instâncias superiores da empresa. Outros, porque os próprios acontecimentos envolvendo esses administradores apontavam a conexão com a situação vivida no banco. Um caso se refere a um gerente, 45 anos, transferido para uma agência do estado de Santa Catarina. Havia deixado na cidade de origem a mulher e dois filhos. Encontrou a nova agência sob auditoria, com elevado índice de inadimplência, sofreu pressões do banco para a regularização da situação, no processo de cobrança de dívidas entrou em conflito com os habitantes da localidade e recebeu seguidas ameaças de morte vindas de pessoas influentes do município. Outro caso, ocorrido em São Paulo, Capital, refere-se a um ex-assessor na Superintendência em São Paulo, um dos oitenta colocados em disponibilidade naquele início de 1996 pela superintendência em São Paulo, contando então 45 anos de idade e 25 de empresa. Nomeado gerente em uma agência da capital veio a sofrer forte pressão para recuperar créditos vencidos. Respondia, ainda, a processo administrativo por ocorrência de desvios sob os quais não tinha

67 American Anthropologist, vol.44, n. 2.

47 responsabilidade, pois anteriores a sua administração68. Seu suicídio nas dependências do banco comoveu os meios sindicais que publicaram em detalhes o ocorrido. Cada caso, cada notícia funesta, representava um golpe sobre todo o funcionalismo, assim deve ser entendida a crise na empresa, em sua dimensão simbólica. E, nesse sentido, a morte de um único funcionário, nas condições ocorridas, bem como cada demissão efetivada, deve ser entendida como capaz de atingir a todo o conjunto de funcionários, assim como a perda de qualquer membro de uma coletividade, como bem o disse Hertz (1990), representa a constatação da vulnerabilidade do grupo, de sua finitude e, portanto, da possibilidade de sua extinção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo procurou enfatizar a importância da dimensão simbólica no estudo dos processos de mudanças contemporâneos. No presente caso, trata-se do processo de mudanças ocorrido em uma empresa estatal do setor financeiro, o Banco do Brasil, implementado a partir do ano de 1995, quando da adoção de um amplo Programa de Ajustes que se iniciou com a adoção de um programa de demissões voluntárias. Mas poderia referir-se a processos semelhantes vividos em um número incalculável de empresas públicas, estatais e privadas que promoveram programas semelhantes, nos moldes do realizado pelo Banco do Brasil. Deu-se ênfase neste artigo ao impacto causado pelas medidas então adotadas pela empresa sobre os seus funcionários, dando ênfase às metáforas acionadas pelos diferentes atores, durante o processo, como expressão de seus sentimentos face ao momento que viviam. Ao privilegiar a dimensão simbólica, no caso estudado, enfatizei a forma como, durante o processo de mudanças, foram manipulados sentimentos e emoções, com a adoção de medidas que representavam fortes rupturas com valores e tradições, e, portanto, com os vínculos identitários que sustentavam as relações dentro da empresa, de forma a neutralizar a reação dos envolvidos nos acontecimentos. Dessa forma, os trabalhos de pesquisa realizados na empresa Banco do Brasil, e seus resultados (Rodrigues,2001), apresentam-se como uma outra perspectiva aos estudos dos processos de mudanças na esfera do trabalho. A grande maioria dos estudos sobre está temática, partindo da afirmação praticamente generalizada do esgotamento dos modelos tradicionais de organização dos processos de trabalho e gerenciamento da produção, buscam entender as mudanças no formato de uma seqüência causal e unilinear: esgotamento dos modelos e paradigmas vigentes, desenvolvimento de tecnologia e diminuição da demanda de mão-de-obra levando ao desemprego, à precarização e intensificação do trabalho e, como conseqüência, à retração da ação sindical. O caso do Banco do Brasil, como apresentado, rompe com essa unilinearidade no estudo do processo de mudanças e mostra que, ao contrário, a dimensão cultural, pela manipulação de valores e símbolos que conformavam a identidade dos funcionários com a empresa, foi central para compreender os acontecimentos: o alto nível de adesões, a desmobilização do quadro funcional e as mudanças nas relações de trabalho. Nesse sentido, vale ressaltar a importância de estudos que enfatizem, cada vez mais, a indissociabilidade entre estrutura/ação, indivíduo/coletividade, objetividade/subjetividade, racionalidade/emoções, pois ampliam as possibilidades teóricas, metodológicas e textuais, rompem com a rigidez das análises sobre a vida social e permitem uma melhor compreensão sobre os fenômenos estudados, sem que com isto se perca o rigor no tratamento dos dados e nas interpretações produzidas a partir deles. Colocar as emoções e sensibilidades como tema privilegiado de reflexão é, nesse sentido, um passo importantíssimo nessa direção pois estimulam a que, cada vez mais, se desenvolvam trabalhos –monografias, dissertações e teses- que

68 Jornal O Espelho de 03/07/96.

48 incorporem essas questões à análise, não como algo complementar, mas como inerentes ao fenômeno estudado. Em minha dissertação de mestrado (Rodrigues,1997) quando escolhi como tema as condições sobre as quais se constrói o trabalho científico na universidade, mostrei que se trata de um processo que na maioria das vezes está intimamente ligado à trajetória de vida do pesquisador, repleto de subjetividades, estas mesmas parte da criação científica, mas que, no geral, são omitidos no resultado final do trabalho. Busca-se o linguajar padronizado, a sistematicidade no tratamento dos dados, um modelo teórico que sustente os argumentos e cumpra as exigências de cientificidade que venham a legitimá-lo perante a comunidade acadêmica. Isto, a um só tempo delimita os interlocutores e impede ao autor lançar-se a um estilo muito solto, leve e pouco afirmativo, que possa expô-lo aos perigos da subjetividade, do romanesco e da falta de seriedade, fatores que certamente retirariam do trabalho o caráter de cientificidade. Isto, no geral, leva o pesquisador a depurar o conhecimento científico de todos os componentes subjetivos, quais sejam a sensibilidade, os sentimentos e as emoções. Naquela época, disse-me um entrevistado, professor da área de educação física, que “normalmente se constrói um trabalho acadêmico retirando dele toda a vida”. E isto, para o entrevistado, porque a comunidade científica segrega os espaços disciplinares e destitui de valor a sensibilidade. O corpo, para esse entrevistado, tem sido negado ou menosprezado por muitas áreas, como objeto de reflexão. E sendo o corpo a metáfora da vida, comporta a sensibilidade, os sentimentos, as percepções e experiências, de forma que também as exclui da reflexão acadêmica. O objetivo do presente artigo e da pesquisa que o originou (Rodrigues,2001) foi exatamente o de mostrar que mesmo temas como o aqui tratado, tradicionalmente abordados a partir de noções, categorias e modelos bastante rígidos, ao privilegiarem uma apreensão do fenômeno sob a perspectiva do simbólico permitem uma compreensão mais aprofundada dos acontecimentos em suas múltiplas dimensões. E o faz buscando reter aquilo que Malinowski (1984) já considerava como fundamental à realização da pesquisa etnográfica: dotar de “carne e sangue” o que pode, de outra perspectiva, ser visto apenas como uma estrutura inerte, um modelo coerente, um apanhado de variáveis e categorizações do qual se retira toda a dinâmica da vida social.

49 BIBLIOGRAFIA

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50 Manipulação de uma identidade estigmatizada como

estratégia de sobrevivência.

Simone Simões Ferreira Soares

O início dessa pesquisa deu-se em 1980 na cidade de Fortaleza (Ceará). Hoje, 23 anos depois, o drama vivido pelos indivíduos que manipulam a loucura e vivenciam suas emoções como estratégia de sobrevivência continua o mesmo. Mudam apenas os protagonistas, o palco e o cenário são os mesmos, desafiando o tempo e as insuficientes e ineficazes medidas governamentais. Este trabalho não se propõe a dar soluções sócio-psiquiátricas. Nosso objetivo é apenas analisar uma situação existente em nossa sociedade, que é a de determinada categoria de indivíduos manipular a loucura como estratégia de sobrevivência e enfoca não apenas os indivíduos da classe baixa. O que levaria estes indivíduos, ao que tudo indica não portadores de doença mental, a procurarem uma situação aparentemente esdrúxula e paradoxal ao simularem diante do psiquiatra um comportamento caracterizável como sendo de doente mental? No início de nossa pesquisa pensávamos que estes indivíduos procuravam o psiquiatra para obter uma licença saúde do INSS, que lhes propiciaria executar algum “servicinho” extra como biscate para complementação da renda familiar. Mas no decorrer da pesquisa contratamos um fato surpreendente: a grande maioria de indivíduos (de baixa renda) que procura o psiquiatra o faz para ficarem hospitalizados, assumindo a identidade de louco como condição para permanecerem em tratamento hospitalar. Os hospitais pesquisados (todos credenciados pelo SUS) recebem indivíduos portadores de diagnóstico de Psicose e Neurose. Nossos informantes são todos diagnosticados como neuróticos. A escolha somente de neuróticos se explica pelo fato de que pretendendo estudar a loucura como estratégia de sobrevivência, só aqueles indivíduos que não perderam o sentido da realidade, ou seja, os “rotulados” de neuróticos procuram e utilizam hospitalização psiquiátrica como uma ponte para a obtenção da licença-saúde do INSS com objetivo à aposentadoria, esperando com isso minimizar sua situação profissional e sócio-econômica, pois a maioria dos indivíduos portadores de diagnósticos de neurose, na realidade portam disfunções sócio-econômicas reduzidas à categoria de doença. (SAMPAIO,JOSÉ JACKSON - Uso de neurolépticos em neuróticos tratados pela Previdência). O quadro de miséria e fome descrito por eles durante as primeiras entrevistas foi por nós constatado no decorrer da pesquisa. Moram em subúrbios da cidade, em barracos de taipa e chão batido e com apenas dois compartimentos, onde amontoa-se uma família inteira. O acesso a eles só pode ser feito a pé, pois situam-se em morros ou ruelas que não permitem a passagem de veículos. Um fogareiro a carvão, um ou dois tamboretes, redes sujas e gastas pelo uso compõem a mobília dessas famílias. O único patrimônio dessas pessoas é ser previdenciários e assim manipulam os mecanismos de concessão de licença como estratégia de sobrevivência. O indivíduo chega ao psiquiatra carente de uma classificação média aceitável pelo estatuto previdenciário para sua doença social. A fome e o trabalho em excesso mal remunerados debilitam o organismo, e sendo um fato que o indivíduo está em condições físicas de trabalhar, sua produção começa a decair e a própria firma o aconselha a procurar um médico. Ele vai na sua

51 condição de previdenciário procurar um clínico geral, tira radiografias, faz exames, tudo negativo. Sua doença é fome e cansaço, mas ele não entende, e cada vez se sente mais fraco e sem condições de trabalhar. O próprio clínico o aconselha a procurar um psiquiatra – se o mal não é orgânico deve ser psicológico – E assim, começa a trajetória do círculo vicioso das hospitalizações psiquiátricas. Se não consegue “convencer” o psiquiatra de que está realmente doente, começa a simular um comportamento caracterizável como de louco. A hospitalização é a única saída que tem para conseguir a licença-saúde do INSS. A luta é brutal. Se faz a perícia fora do hospital terá pouca chance de conseguir a licença, mas se feita no hospital é quase certo que terá pelo menos um mês de licença que lhe garantirá ficar sem trabalhar, procurando, de início, uma melhora. Mas quando sai do hospital cai na mesma situação de miséria e fome. Apelar para a hospitalização psiquiátrica é para esses indivíduos uma tábua de salvação, sem se aperceberem que essa tão desejada hospitalização os poderá levar ao labirinto sem saída do mundo da loucura.

A IDENTIDADE ESTIGMATIZADA

Todas as sociedades impõem regras de conduta a seus membros e aqueles que se desviam do comportamento culturalmente prescrito pagarão algum preço por contrariar as expectativas do grupo social em que vivem. Esse “preço” poderá ser: ostracismo, prisão, morte, mutilação, escarificação, tortura, multa, etc., que são formas de representação de Poder exercido por um órgão ou autoridade que representa a lei implícita ou explícita daquela sociedade específica. Essas formas de punição, pelo menos formalmente, atingem todos os indivíduos indiscriminadamente. Por outro lado, essa repressão poderá ser difusa, diluída entre as diversas categorias de indivíduos que compõem uma sociedade e apresentar diferenças de acordo com as diversas expectativas inerentes a contexto diversos. A essa repressão difusa estamos dando o nome de Estigma. O termo Estigma que remonta sua origem à Grécia antiga sofreu alterações de significados através de tempos; achamos oportuno transcrever a síntese dessas alterações feitas por Goffman, para podermos analisar as implicações do termo em relação ao problema que estamos tratando: “os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com corte ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor – uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que deveria ser evitada, especialmente em lugares públicos. Mais tarde, na Era Cristã, dois níveis de metáfora foram acrescentados ao termo: o primeiro deles referia-se a sinas corporais de graça divina que tomavam a forma de flores em erupções sobre a pele; o segundo, uma alusão médica a essa alusão religiosa, referia-se a sinais corporais de distúrbio físico. Atualmente, o termo é amplamente usado de maneira um tanto semelhante ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria desgraça do que a sua evidência corporal. Além disso, houve alterações nos tipos de desgraças que causam preocupação. Os estudiosos, entretanto, não fizeram muito esforço para descrever as precondições estruturais do estigma, ou mesmo para fornecer uma definição do próprio conceito.(Goffman, Erving – Estigma – p.11) Para Goffman o indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena é um indivíduo estigmatizado (portador de uma identidade estigmatizada). Nossos informantes ao simularem a loucura serão postos à margem da aceitação social. Nos casos estudados por Goffman o indivíduo estigmatizado procura esconder a causa ou os atributos de seu estigma. Nos casos por nós observados os indivíduos não tentam esconder as características de sua presumida loucura e sim procuram realça-las e exagerá-las, manipulando a

52 sua identidade em determinadas situações ligadas ao processo de internamento e à obtenção dos benefícios previdenciários. Agindo, pois, diferentemente daquilo que se poderia esperar diante de um caso de estigma. A loucura para esses indivíduos não representa estigma pessoal, nos moldes Goffmanianos. Nos contextos familial e vicinal, como veremos adiante, eles não se envergonham de ser considerados loucos. Pelo contrário, eles utilizam os atributos estigmatizantes da loucura para conseguir aquilo que não poderiam obter de outra maneira. Se ser previdenciário é o único patrimônio desses indivíduos, eles procuram usufruir de todas as maneiras dos benefícios da Previdência Social. Os indivíduos aqui instrumentalizam uma categoria estigmatizada, razão pela qual não a assumem inteiramente. Com isso se dilui o estigma no campo de sua percepção. E assim, a hospitalização psiquiátrica propicia a emergência da identidade social de “louco” a determinados indivíduos que procuram a hospitalização como estratégia de sobrevivência. O processo de identificação inerente à identidade social de “louco” se dá a partir da relação indivíduo-instituição (hospital). E, assinale-se que a identificação depende “dos interesses e definições de outras pessoas em relação ao indivíduo cuja identidade está em questão”(1). A instituição ao aceitar e rotular aqueles indivíduos como loucos está imputando-lhes uma identidade a qual será manipulada por esses indivíduos para atingir seus fins. Portanto, a análise da identidade, “como um fenômeno que emerge da dialética entre indivíduos-sociedade”(2) transparece, no caso em estudo, pelos compromissos mantenedores da instituição e inversamente pela manipulação pelo indivíduo da identidade que lhe foi imputada. É aí que a noção de identidade pessoal conectada à identidade social emerge, pois “a identidade social, não se descarta da identidade pessoal, sendo esta um reflexo daquela” (3). A identidade social é, portanto, identificada e caracterizada culturalmente de acordo com os estereótipos de cada sociedade e de acordo com os interesses de um determinado grupo social, pois, como diz Roberto Cardoso de Oliveira “a identidade social surge como a atualização do processo de identificação e envolve a noção de grupo, particularmente a de grupo social” (4). A noção de grupo social “supõe relações sociais tanto quanto um código de categorias destinado a orientar o desenvolvimento dessas relações”(5). Este código poderá se exprimir nas “relações de ‘uns’ como pessoas que ‘qualificam’ e de ‘outros’ como pessoas que ofendem ou infringem as regras sociais operantes” (Becker – 1971). Essa afirmação do nós (pessoas que qualificam) diante dos outros (pessoas qualificadas) propicia a emergência da identidade estigmatizada. A manipulação da identidade de louco operacionalizada pelo paciente assume um caráter dialético envolvendo o psiquiatra, o hospital e em nível mais abrangente todo o sistema de assistência médica previdenciária. Como já se disse, o paciente manipula a identidade de louco com vistas à sobrevivência: “ No hospital eu como e tenho medicação na hora certa”. O psiquiatra para justificar a consulta diante da burocracia do INSS reforça a condição de doente do paciente aceitando sem questionamento o sintoma apresentado na simulação. O hospital visando uma lucratividade cada vez maior exige que os leitos nunca fiquem vazios; é nessas ocasiões que os indivíduos que procuram a hospitalização como estratégia de sobrevivência têm todas as chances de conseguir aquilo que desejam. Poder-se-ia mesmo afirmar que ser considerado louco para estes indivíduos é um prêmio ou comprovação de que sua dramatização na simulação do comportamento de louco atingiu o objetivo desejado. No entanto, eles não se auto-definem como loucos e sim “doentes dos nervos”, apesar de assumirem de maneira consciente um comportamento caracterizável como de louco; o

(1) GOFFMAN, Erving – op.cit. p.116. (2) BERGER,LUCKMAN – A construção social da realidade, p.230. (3) CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto – Identidade, Etnia, e Estrtura Social, p. 5. (4) CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto – op. cit. p. 5. (5) CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto – op. cit. p. 5.

53 estigma se reduz ao aspecto semântico da palavra, ao pavor de ser chamado louco. É importante ressaltarmos que em algumas situações o próprio atributo estigmatizante da loucura é manipulado de maneira clara e direta: “quando quiseram nos expulsar daqui eu fiquei na frente dos homens e gritava: não derrube a casa porque eu sou louca e não sei o que fazer”. No entanto essa auto- definição de louco só se dá em casos raros ou extremos como na situação descrita. Poder-se-ia dizer que o estigma da loucura é utilizado por esses indivíduos de maneira positiva, ou seja, para seu próprio benefício, procurando levar “vantagem” naqueles aspectos que outros indivíduos considerados doentes mentais levam desvantagem. O estigma, nesses casos assume, um caráter dicotômico pela existência dos aspectos positivo-negativo que ele poderá propiciar a esses indivíduos. A manipulação “positiva” do estigma da loucura (encontrado nos casos por nós observado) foge da regra geral conhecida. Por outro lado, é perfeitamente concebível o caráter inusitado das conseqüências inerentes a um fenômeno que poderíamos considerar como ímpar em relação às teorias existentes sobre Estigma. Daí concluirmos, que o acaso em si, apresenta situações tais que “oficializam” a dicotomização que falamos em relação ao termo Estigma. Se o indivíduo vê na hospitalização psiquiátrica a única solução possível para o seu problema, os efeitos associados a esse tipo de atitude, apresentar-se-ão conseqüentemente diferentes. O problema em pauta, apresentando-se como uma opção, as conseqüências aí advindas tomarão formas diferentes das normalmente esperadas em situações analisáveis como estigmatizantes. Voltando aos casos analisados por Goffman, neles os efeitos estigmatizantes da loucura são de uma maneira geral camuflados e os indivíduos sofrem a vida inteira os aspectos negativos da hospitalização psiquiátrica. Já os nossos informantes não estão preocupados em nenhum momento com os efeitos estigmatizantes da loucura. E quando eles surgem suas conseqüências são utilizadas em seu benefício, ou seja, se o indivíduo tem consciência que pelo fato de ter sido rotulado como neurótico, esse rótulo o impossibilita de retornar ao trabalho, esse aspecto será utilizado como reforço para continuar apelando para a hospitalização psiquiátrica. Assim, os efeitos “negativos” do problema, são transformados por esses indivíduos em efeitos “positivos” na situação que eles se vêem jogados. Não queremos, no entanto, afirmar que o louco não existe. Infelizmente, a doença mental é uma realidade. Para os pioneiros da Antipsiquiatria (Cooper, Laing, Foucault, Szasz, e outros) nada poderá justificar o confinamento e a segregação do Homem em hospitais psiquiátricos. Principalmente quando essa segregação e conseqüente estigmatização decorre do fato do indivíduo ser rotulado de louco por não concordar com os valores e ideologia predominantes na sociedade da qual faz parte, ou por outro lado, por ser vítima de uma sociedade onde o trabalho mal remunerado leva o indivíduo a desejar a hospitalização a fim de obter remédio e alimento em troca da coação física e moral do internamento.

A MÁQUINA FAZEDORA DE DOENÇAS

Várias são as formas de alienar o homem. A hospitalização psiquiátrica é uma delas. Szasz, em seu livro “A fabricação da loucura” ao fazer uma comparação entre a Inquisição e o movimento de saúde mental de nossos dias, denúncia a sociedade como uma máquina de fazer loucos com a cumplicidade do que ele denomina Psiquiatria Institucional. Transpondo a metáfora para o nosso caso, teríamos: a sociedade gera esse tipo de situação, o INSS reforça-a e o hospital psiquiátrico envolve os indivíduos nas malhas da loucura. O processo da loucura é tão paradoxal que o indivíduo passa a ser vítima de uma arbitrariedade de valores diante da realidade existente: “quando nos dizem que se um paciente psiquiátrico que

54 chega cedo para a consulta está angustiado, se chega tarde é hostil e se chega na hora é compulsivo, seria humorístico, se não fosse trágico”. De uma maneira geral, poder-se-ia dizer que toda hospitalização psiquiátrica é involuntária. Mas no caso específico de nosso estudo o quadro se apresenta diferente. O indivíduo chega à clínica psiquiátrica, na maioria das vezes, sozinho. Humilde ou agressivamente solicita ao psiquiatra seu internamento: “ Dr. Eu não tenho condições de me tratar dentro de casa, eu queria que o Sr. me internasse”. A vontade expressa de ser internado contraria as críticas existentes ao confinamento involuntário inerente às hospitalizações psiquiátricas. Mas, por outro lado, como tentaremos demonstrar, ser louco voluntário é uma opção forçada socialmente. Assim sendo, o problema não poderá ser reduzido à dicotomia voluntário/involuntário. O caráter de fechamento e segregação característicos das instituições totais analisadas por Goffman, (GOFFMAN, Manicômios, Prisões e Conventos, p.11) levando à “mutilação do eu” do internado e a uma perda ou despojamento, talvez, irrecuperável de seu papel social, não constitui apanágio das instituições de nosso objeto de estudo. Aí, a barreira ou ruptura entre o internado e o mundo externo não se apresentam tão rígidas. Em todos os hospitais pesquisados o neurótico só permanece no máximo 30 dias, tem licença para passar o fim de semana em casa e direito a visitas duas vezes por semana. Diante disso, não se pode considerar seu internamento como um afastamento, barreira ou ruptura com o mundo externo. Mesmo levando-se em conta as reentradas hospitalares, o contato com a família se dá de maneira freqüente e o tempo de internamento é relativamente curto. Este aspecto poderá livrar o indivíduo do processo de “desculturação”(6), mas por outro lado não o isentará do estigma de ex-paciente mental. Seguindo o raciocínio de Goffman, quanto à “mutilação do eu” provocada pela hospitalização psiquiátrica, poder-se-ia concluir que uma das conseqüências mais sérias decorrentes da hospitalização psiquiátrica se refere ao novo ajustamento do indivíduo na sociedade mais ampla. Assim, escreve Goffman: “Ao contrário do que ocorre com grande parte da hospitalização médica, a estada do paciente no hospital psiquiátrico é muito longa e o efeito muito estigmatizador para permitir que o indivíduo volte facilmente ao local social de onde veio” (GOFFMAN, Manicômios, Prisões e Conventos, p.289). Como vimos, nossos informantes não têm uma “estada muito longa”, nem se verifica o que Goffman denomina “despojamento do eu”, devido à ausência de determinados ritos de passagem presentes em algumas instituições totais, como corte de cabelo, uso de roupas padronizadas, entrega de objetos de uso pessoal, proibição para fumar, banho coletivo, etc., o que contribuiria para que o internamento tivesse tal efeito muito estigmatizador de que fala Goffman. O internamento psiquiátrico, como estratégia de sobrevivência, parece ser contraditório em todos os aspectos. A própria existência desse esquema de sobrevivência já é em si paradoxal por sua natureza de opção forçada socialmente e, assim, todas as conseqüências daí advindas tornar-se-ão também contraditórias. A convivência nos hospitais psiquiátricos com indivíduos portadores de psicoses cronificadas contribui para acelerar o processo de “aprendizagem” das caracterísitcas comportamentais que personificam a identidade de louco, necessárias á simulação representada diante do psiquiatra, por outro lado, os indivíduos portadores dessas características, convivendo com os neuróticos de nosso estudo, contribuem para perturbá-los e mesmo amedrontá-los: “Pedi para mudar de quarto, porque no outro tinha uma paciente que gritava a noite toda e eu nem dormia e tinha medo que ela me agarrasse”. (de uma paciente)

(6) O termo desculturação, segundo GOFFMAN, se refere a perda ou impossibilidade de adquirir os hábitos exigidos na sociedade mais ampla. (op. cit. p. 69)

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A farmacoterapia (a Técnica de cura utilizada) também apresentava reveses: a transcrição do discurso de alguns informantes nos mostra a dubiedade desse tipo de cura: “Eu tenho dor de cabeça de correr, mas não agrido ninguém, só comprimido dos nervos me faz melhorar, comprimido de “bodega” (analgésicos) não adianta”. (de uma paciente). “No hospital eu fico muito bem, parece que os remédios do hospital são muito fortes, diferente dos de casa, e eu durmo a noite toda”.

Até aqui estamos vendo apenas as vantagens que o próprio paciente percebe com a ingestão de psicotrópicos, para os quais além de surtir efeito nas cefaléias, os comprimidos atuam também como “fuga” dos problemas domésticos: “ No hospital, os remédios fazem a gente dormir logo, não dar tempo de se preocupar como os filhos que estão em casa”.

Pode-se constatar a dependência inerente aos psicotrópicos nesses depoimentos, que alguns pacientes reconhecem como desvantagens: “Remédio pra mim, quanto mais forte melhor, com 100 mg eu durmo mais ou menos uma ou duas horas aí acordo, se tiver outro mais fraco eu tomo para amanhecer o dia, se não tem eu passo o resto da noite acordada”. “Quando eu tomo muita droga em vez de dormir eu fico sonâmbula”. “A dor de cabeça ainda não passou. O médico aumentou a dose do remédio mas não passa”.

A familiarização com os psicotrópicos mostra-nos o envolvimento dos informantes com a vivência psiquiátrica. Mesmo pronunciando a grafia errada, eles se mostram conhecedores dos remédios que tomam e aqueles com os quais se sentem melhor: “No hospital, nesse último internamento eu não consegui dormir direito, o meu remédio certo é Neozine e estavam me dando Haldol com Fenergan. Também eu me dou bem com Haldom com Neozine, duas drogas juntas. Eu me impregno com Haldol. Mas eu fico até alegre quando me impregno, porque as outras pacientes dizem que quem se impregna ainda tem condições de ficar boa”. “Amplicitil pra mim não faz mais efeito, só Neozine”. Essa dependência em relação aos remédios se reveste, para alguns pacientes, de um misto de medo e fé: “Tenho medo de me impregnar por causa das injeções e pílulas. À noite é bom porque a gente dorme, mas de dia não, tenho medo daquelas injeções para ‘amolecer’.

No entanto a mesma paciente afirma: “Eu disse ao médico que se voltasse a trabalhar eu queria um remédio para não piorar”

Já um outro afirma: “Estava tomando comprimidos diários e uma injeção de 3 em 3 dias, acho que esta injeção está me fazendo mal”.

56 Se a busca de hospitalização psiquiátrica se vincula à necessidade que o indivíduo tem de minimizar uma situação sócio-econômica em que se vê lançado e onde precisa “enlouquecer” para conseguir a aposentadoria, a permanência no hospital, por mais paradoxal que seja, passa a ser o “modus vivendi” preferido por estes indivíduos, apesar das conseqüências estigmatizantes que acompanham o indivíduo rotulado de louco. “No hospital tem repouso e sono tranqüilo, em casa a gente é pobre e não tem alimentação. No hospital tem leite todo dia, em casa é diferente, tem dia que não tem o que comer”. “O repouso do hospital faz a gente melhorar, em casa não tenho repouso nenhum”. “Quando vim me internar só deixei água no pote. Tem dia que não tenho o que comer”. “Em casa eu deixo de comer para dar as minhas filhas. Aqui no hospital eu não estou vendo o que está se passando em casa”. No entanto, para esses indivíduos essas vantagens de alimentação, repouso e medicação são consideradas como causas secundárias. A causa principal, segundo os próprios informantes é que o hospital funciona como único meio que dispõem para conseguir a aposentadoria por se sentirem física e socialmente impossibilitados de retorno ao trabalho: “Se eu pudesse trabalhar não viveria da licença e hospital, mas até quando Deus quiser vai ser assim, até a aposentadoria”. “Vou à clínica de emergência para tentar me hospitalizar, pois fazendo a perícia no hospital é mais seguro a licença”. O desejo de permanecer hospitalizado só é quebrado quando a ausência de casa torna-se um problema, principalmente na caso das mulheres: “Eu gostaria de ser internada de novo, pois melhorava mais, mas não tem quem fique com minhas filhas e no meu marido eu não posso confiar, pois ele é alcoólatra”. Como frisamos, a contradição inerente ao fenômeno estudado se encontra presente em todos os aspectos que envolvem esse mecanismo de sobrevivência. O hospital, mesmo se apresentando como uma “coisa boa”, “sensacional”, onde encontram repouso, alimentação e a licença-saúde, é ao mesmo tempo um lugar onde se sentem preocupados por estar ausentes de casa: “Eu estando no hospital me aperreio porque penso em casa, mas acho a vida do hospital melhor do que de casa”. “Prefiro o hospital, só vou pra casa por causa dos meus filhos, se não fosse meus filhos, pedia ao médico para morar aqui dentro do hospital”.

RITUAIS DE HOSPITALIZAÇÃO E RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

O sistema de atendimento ao paciente começa nos consultórios do hospital de emergência (quando da época da pesquisa, 1979, o único do gênero em Fortaleza). Após o atendimento, que sempre se caracteriza pela definição de um diagnóstico (como veremos adiante), o psiquiatra decide pela continuação de um tratamento ambulatorial ou pela internação de 72 horas, principalmente nos casos de: dúvida diagnóstica sintomatologia aguda doenças crônicas em agudização necessidade de desintoxicação

57 Passadas as 72 horas de internação é feita nova avaliação que decidirá (também) pela alta para tratamento ambulatorial ou transferência para um dos seis hospitais existentes, onde permanecerá até 30 dias, que é o tempo permitido para os portadores de diagnóstico de neurose. Nesses casos de Neurose, isto é, os indivíduos que procuram manipular a “loucura” como estratégia de sobrevivência, o drama deles é chocante. Diferentemente dos loucos que são amarrados e levados à força e contra a vontade, tão bem descrito por Szasz, Foucault, Basaglia (1972), dentre outros, esses indivíduos são voluntários conscientes da hospitalização psiquiátrica. Ao invés de chegarem acorrentados e levados por outrem, eles chegam, muitas vezes, sozinhos; solicitam uma ficha de consulta para o psiquiatra como se estivessem comprando entrada para um filme onde eles serão os protagonistas. Muitos, devido ao grande número de hospitalização, têm seu psiquiatra preferido. Essa preferência se liga ao fato do psiquiatra ser considerado “bonzinho” para internamentos: “Eu me tratava com outro psiquiatra mas ele nunca dava internamento, só pra aqueles doido mesmo, aí mudei de médico”.

Quando entram na sala do psiquiatra, que atende uma média de 15 pacientes em duas horas, mudam totalmente seu comportamento. Os veteranos de hospitalizações já sabendo que impressionar o psiquiatra é a única arma que possuem, começam uma representação tão dramática que poderiam ser considerados excelentes atores. O pagamento por seu desempenho é um prato de comida e remédio “dados” pelo hospital. O objetivo é simular um comportamento considerado como de louco segundo os estereótipos de nossa cultura e assim conseguirem a tão desejada hospitalização. Poder-se-ia mesmo afirmar que o ritual de hospitalização assume em seu todo um conjunto de formas estereotipadas: Estereótipo de cultura: violência, destruição de objetos, quebrar a tv, não dormir, rasgar dinheiro, ouvir vozes, etc.(7) Estereótipo de laudo: alteração de conduta, agressividade manifesta, cefaléias, insônias, fugas de casa e do trabalho, destruição de objetos, periculosidade social, excitação psicomotora(8). Estereótipo da perícia: receita com remédios tipo neurolépticos, declaração de internamento, capacidade de persistência nas hospitalizações, primeiro semestre do ano (verba farta)(9). Os casos onde se registra tentativa de suicídio, tem internamento seguro e garantido. Durante nossa fase de observação direta onde assistimos o atendimento diário feito pelo psiquiatra que nos orientou na coleta desse material, presenciamos cenas que poderiam fazer inveja a qualquer bom ator. As vezes ficávamos observando o comportamento desses indivíduos enquanto estavam na sala de espera: todos eles conversavam normalmente, sem aparentar nenhuma diferença de qualquer indivíduo considerado normal. Mas ao chegarem na frente do psiquiatra a mudança era brusca e total: ora choravam, ora simulavam esquecimento, ora tornavam-se violentos e diziam sempre estar doentes dos “nervos”. Como vimos, os neuróticos (estudados) nunca utilizavam em seu discurso a palavra louco, a substituem por “doente dos nervos”, “doente da cabeça”, “fraca do juízo”, mas nunca louco ou doido, apesar de assumirem diante do psiquiatra um comportamento caracterizável como de louco, segundo os estereótipos de nossa cultura, como já mencionamos. De uma feita, uma mulher que estava desejando ser transferida, depois dos três dias passados na clínica e que tinha se comportado normalmente diante do psiquiatra, ao sair da sala, teve uma crise espontânea de revolta e dizia: “eu tive alta porque não sei fazer essas coisas de louco e só conversar com o médico não adianta de nada”. Essa mulher não tinha aprendido a simular a

(7) O que a sociedade (cultura) define como sendo sintomas de loucura (8) Redução pelo psiquiatra de sintomatologia para efeito de internação. (9) O que o perito (médico do INSS) poderá considerar válido para a concessão de benefícios (licença ou aposentadoria).

58 loucura, embora tivesse consciência do truque empregado pelos outros pacientes para conseguir a hospitalização. A convivência nos hospitais psiquiátricos com indivíduos portadores de psicose cronificadas aceleram o processo de “aprendizagem” das características comportamentais inerentes à categoria louco, naqueles indivíduos considerados apenas neuróticos na terminologia psiquiátrica. Os pacientes mais antigos exercem a função de professores de “arte-dramática” para os novatos na simulação a ser representada diante do psiquiatra. Se conseguiram “convencer” o psiquiatra começa a manipulação da identidade de louco como única saída para a resolução, ainda que tentativa, de seus problemas. É aí que a loucura passa a agir como estratégia de sobrevivência. O período de três dias passados na clínica difere enormemente do período de trinta dias (média atual) passados no hospital. Na clínica, pelo fato do indivíduo ter consciência de que está em fase de observação comporta-se de maneira simulada para tentar provar ao “doutor” que está realmente doente. Se o que sente já foi diagnosticado pelo clínico como “nervo” ele passa a assumir a identidade de louco para poder permanecer hospitalizado. Já no hospital (depois de ter sido transferido da clínica), o quadro é outro: no que tange ao comportamento do indivíduo, ele passa a agir de maneira natural, só voltando à simulação na ocasião da consulta com o psiquiatra do hospital; e isso, no caso dele ainda não ter feito a perícia e obtido a licença, pois quando conseguem a licença, começam a desejar a alta do hospital: “Tenho meus filhos e preciso ir para casa por causa deles, eles estão precisando de mim”. O contato com o médico do hospital se dá em média uma vez por semana. O médico conversa rapidamente com o paciente, prescreve a medicação e no final de 30 dias dá a alta por determinação burocrática: “O Dr. disse que se eu não melhorasse eu voltasse a me internar, se eu pudesse eu não sairia do hospital, mas no dia da alta tem que sair”. Muitos passam dois ou três dias em casa e voltam à clínica de emergência em busca de uma nova hospitalização. Assim, até que consigam a aposentadoria a via sacra desses indivíduos é sempre a mesma: clínica de emergência, hospitalização, licença-saúde, um período de alta hospitalar passado em casa, até fins da licença-saúde obtida, quando procuram novamente a hospitalização para garantir a renovação da licença-saúde. “Para pegar uma licença não tem como internamento”. Ou se tiver “sorte” a tão desejada aposentadoria: “Eu só falto mofar nos hospitais e eles não me dão aposentadoria, tenho 10 internamentos, fora as emergências que perdi a conta...”.

A própria ignorância técnico-científica, como diz, Basaglia(10), acerca da não precisão do diagnóstico psiquiátrico, propicia as condições, que sabemos existir, para a rotulação arbitrária baseada apenas na quantidade de sintomas apresentados por um indivíduo, e que, muitas vezes, nada tem a ver com distúrbio mental. A literatura existente sobre as falhas de diagnóstico psiquiátrico já tornou-se “folclórica”. A psiquiatria não tem meios objetivos (como radiografias, exames de laboratório, etc.,) para comprovar o grau de sanidade mental de um indivíduo; é o suficiente uma conversa com o psiquiatra e o comportamento do indivíduo em foco está pautado no modelo culturalmente prescrito. “Alterações graves de conduta, agressividade, excitação psicomotora, idéias de ruína, periculosidade social: o que estes conceitos apresentam na realidade? O ato de um faminto que, desesperado, tente roubar um armazém, pode ser totalmente apropriado por esta linguagem. Nestes casos o diagnóstico é signo, é semântica, é arbítrio”(11).

(10) BASAGLIA, Franco – Apuntes de psiquiatria Institucional, in Psiquiatria o ideologia de la locura? p.20. (11) SAMPAIO, Jackson – Problemas do diagnóstico em Psiquiatria, trabalho apresentado na II Jornada Cearense de Psiquiatria (nov.79).

59 Os emolumentos médicos, no que tange aos serviços psiquiátricos só serão pagos pela Previdência, se no laudo médico constar alguma síndrome mental. Assim, condicionado pelo salário produtividade, o psiquiatra que atende uma média de 15 pacientes em duas horas, tem apenas oito minutos pra ouvir os sintomas do paciente, definir um diagnóstico, prescrever uma medicação e planejar uma terapêutica. Deste modo, o que o diagnóstico pode “representar é um simples rótulo apressado despido de significação real, mas que, pelo peso do significado simbólico que ele acarreta, oprime o diagnosticado e o reduz a ser aquilo que o significado do diagnóstico obriga, numa inversão total dos processos. O diagnóstico deixa de ser efeito e passa a ser causa, desde que é incorporado pelo indivíduo”(12). Assim, qualquer indivíduo que procure os serviços psiquiátricos previdenciários tornar-se-á um “doente mental”, apesar de que se passasse por uma consulta mais demorada e acurada talvez aqueles sintomas apresentados ao psiquiatra não se enquadrassem como um problema psiquiátrico. Poder-se-ia concluir que só pelo fato do indivíduo procurar os serviços psiquiátricos previdenciários, apenas sua ida, já é condição sine-qua-non para o rótulo, pelo menos de neurose e a ingestão de neurolépticos, como terapia obrigatória. A relação médico-paciente se reveste de roupagens diferentes no contexto de clientela particular (consultorial) e clientela institucional (previdenciária). “Mas Allá de cualquier interpretación patogénica de la enfermedad mental, el tipo de relación que se instaura entre el médico y el enfermo puede dificilmente definir-se como neutro, existiendo como existem modalidades tan variadas como son la relación privilegiada (entre médico y enfermo de pago) y la relación institucional (con el internado de nuestros manicomios). Em ambos casos, la enfermedad, como hecho objetivo y concreto, actúa de denominador común, pelo lo que determina el tipo distinto de relaciones no és más que la diferencia de clases de los pacientes. Lo cual evidencia que, en la prática, la psiquiatria es una ciência que usa de manera discriminatória tanto los instrumentos de que dispone como su própria ideologia”(13). O INSS como agente do governo no que se refere à assistência médico hospitalar, ou seja, cuidar da saúde daqueles que pagam a Previdência Social para ter direito a usufruir de seus benefícios, torna-se em última instância o responsável por esta situação a que se vêem envolvidos, paradoxalmente, psiquiatra e paciente. O psiquiatra ao vender sua força de trabalho para o INSS se obriga a cumprir com as exigências e determinações tecno-burocráticas impostas por este Órgão. E como seus serviços médicos são prestados, através de hospitais credenciados pelo S.U.S, ele se vê obrigado a sofrer, assim como o paciente, também com a exigências burocráticas do hospital onde trabalha, assim, como, de forma mais ampla com as do INSS. O exemplo disso é que não existe nenhuma lei explícita proveniente do S.U.S que determine que o diagnóstico de Neurose implique em no máximo 30 dias de internamento, mas por outro lado, ele exige que o indivíduo portador de diagnóstico de neurose permanecer mais de 30 dias hospitalizado, o psiquiatra terá que enviar diariamente (a partir dos 30 dias) uma justificativa da permanência hospitalar daquele indivíduo; o que acarretaria um trabalho dispendioso como o aumento da burocracia e, conseqüentemente, de funcionários. Para evitar isso, o hospital determina 30 dias como permanência máxima para os casos de neurose. E o psiquiatra vê-se na contingência de dar alta ao paciente mesmo que esse não apresente uma recuperação satisfatória do quadro clínico. A relação psiquiatra-paciente implica numa prestação de serviços do psiquiatra para o paciente. Existe uma expectativa daquele que paga para aquele que vende seus serviços: o médico detém o saber e o paciente busca nesse saber a sua cura.

(12) op.cit. (13) BASAGLIA, Franco – la Asistencia Psiquiátrica como problema Anti-Institucional, in Psiquiatria o Ideologia de la loucura?.p.53

60 Para o previdenciário a relação com o psiquiatra não se apresenta como uma relação de reciprocidade, mas sim numa relação onde o psiquiatra assume o papel de dominador e o paciente de dominado, dando origem, assim, a uma relação de Poder, onde o diagnóstico não é discutido nem sequer dito: “O importante era o médico me dizer o que é que eu tenho, pelo menos conversasse comigo...”.

A exclusão do paciente previdenciário de tomar conhecimento de seu próprio destino (médico- hospitalar) e do diagnóstico corrobora a inexistência de diálogo (reciprocidade) entre psiquiatra- paciente: “Nem perguntando os médicos diz se a gente tem alta ou não do hospital, botam na parede, se a gente não sabe ler, outros ler pra gente”. Se o psiquiatra age ambivalentemente negando o internamento psiquiátrico (no caso do hospital de emergência) mas fornecendo um diagnóstico e prescrevendo psicotrópicos, forçado pelo contexto institucional, o paciente procura, por sua vez, manipular dentro de seus limites de “dominado”, esse próprio contexto institucional. Se o que ele deseja (a curto prazo) é a hospitalização, mesmo essa lhe sendo negada, só o fato de receber um rótulo psiquiátrico (independente de possuir qualquer síndrome mental), apenas para que o psiquiatra receba os emolumentos referentes àquela consulta, esse rótulo passa a agir em seu benefício: com o laudo de “doente mental” tornar-se-á mais fácil as investidas seguintes visando o internamento. O importante é saber representar diante do psiquiatra, quando de uma nova consulta, um comportamento de “louco”, o que, se nos é permitido fazer uma abstração, seria perfeitamente normal, pois ele estaria apenas justificando o diagnóstico existente em seu lado. Por outro lado, se ele conseguiu o internamento, recebeu um rótulo psiquiátrico (comprovação de que está doente) e toma “remédios”, por que então o médico da perícia do INSS não se aposenta? E o que se torna mais contraditório, por que lhe nega a licença-saúde? “Do pulmão peguei mais de um ano de licença, de nervo só pego meses, antigamente era mais fácil se aposentar, até de anemia se aposentava, agora até a licença é difícil”.

Diante dessas contradições a teia de manipulações cresce, envolvendo paciente, hospital, psiquiatra, perito, para não falar no familiares e vizinhos. Assim, poder-se-ia dizer que a relação paciente-psiquiatra em nível previdenciário, torna-se dúbia e falsa, podendo isso ser detectado a partir de uma reciprocidade de manipulações: o paciente manipula a identidade de louco e o psiquiatra o exercício do poder médico (conferido pelo Hospital) tornando-a uma relação coisificada ou como diz de maneira literária o Dr. Sampaio: “esta rede de manipulações só encontra paralelo nos círculos infernais de Dante”.

A FAMÍLIA DO PACIENTE

Morando em barracos deteriorados, situados em ruelas ou morros sem calçamento, sem esgotos ou qualquer condição mínima de higiene, vendo a família passar fome e se sentir impotente diante do problema, tudo isso forma o quadro geral que envolve nossos informantes. Se o indivíduo não dorme de noite, tem crises de choro, dores de cabeça, vontade de morrer, fica nervoso por tudo, falta ao emprego por sentir as pernas tremendo, sua família admite que ele está realmente doente: “ A mãe está doente e é muito, não é pouco, quem sabe é a gente que ‘luta’ com ela...”.

61 Se o clínico geral diz que ele não tem nada, a doença só poderia ser “nervo”. E assim, tanto a mulher ou marido quanto os filhos, concordam que a cura está na hospitalização psiquiátrica: “Se eu fosse a mãe eu nunca saía do hospital”. Embora existam outras variáveis na explicação da doença pelo paciente, a fome permeia o discurso da maioria deles: “Minha doença é devido a muita fome e trabalho demais”. “Adoeci por passar muita fome e aperreios do meu marido”. “A cachaça do meu marido e vê meus filhos passando fome atacaram meus nervos”. “Eu tenho revolta do meu marido, de só ver ele dentro de casa sem fazer nada ou no pé do balcão bebendo cachaça”. “Embora eu tivesse condições de trabalhar, qual é a firma que vai me querer com a idade que tenho? O empregador vê minha carteira desde 1970 afastado, quem vai me querer?” e com um misto de revolta e desânimo culpa os médicos da perícia do INSS por sua situação: “Esses médicos da perícia não entendem de nada, eles sabem que não tenho condições de trabalhar e não me aposentam”. “Estando de alta não posso pagar o INSS autônomo, e agora? Sem condições físicas para voltar ao trabalho, sem condições financeiras para pagar o INSS como autônomo, a solução é a licença-saúde; e, para facilitar sua obtenção, torna-se necessário que o indivíduo esteja hospitalizado: “Perdi a licença, o recurso que tenho é me internar, até quando Deus quiser vai ser assim de hospital em hospital, até a aposentadoria”. Se o indivíduo se vê numa situação de que só a hospitalização poderá lhe garantir a licença-saúde por se sentir “fraco e sem forças” para o trabalho, os próprios filhos e/ou o cônjuge considerado “sadio” vêem a hospitalização como algo vantajoso e benéfico: “Se eu fosse a mãe só vivia hospitalizada, em casa ela sempre piora, no hospital ela fica gorda e volta semi-boa”. “A mãe só melhora no hospital e quando ela está lá o pai não diz nada com a gente”. Poderíamos também acrescentar que sua saída de casa favorece à família por ser uma boca a menos e, ao paciente, por não presenciar a família passando fome e se ver impotente diante do problema. No âmbito vicinal, quando o indivíduo está hospitalizado, principalmente se é a mulher que entra nesse tipo de esquema de sobrevivência, os vizinhos passam a ajudar da maneira que podem: cuidando dos filhos pequenos ou, pelo menos, dando assistência, “dando uma olhadinha” como elas dizem, ou ainda ajudando com um pouco de alimentação. “A situação lá em casa faz pena, os vizinhos ajudam dando um pratinho de comida pros meninos” De uma feita, quando o “barraco” de uma de nossas informantes desabou, uma vizinha ficou com dois de seus filhos, enquanto construíram um outro, mesmo possuindo situação financeira tão precária quanto a dela. Na maioria dos casos, o paciente não sofre pressões nem sente-se estigmatizado por sua família. Registrando apenas dois casos em que os atributos estigmatizantes da loucura são identificados de maneira direta; num dos casos, a paciente é estigmatizada pelo marido: “Meu marido diz que sou doida sem vergonha e ‘manga’ de mim, diz que no hospital tem semvergonhice”

No outro caso, o filho sofre o estigma de ter a mãe internada em hospital psiquiátrico: “Quando meu filho chega no colégio, os alunos dizem: tua mãe é doida, ele se revolta, briga e fica de castigo porque brigou. Eu tenho o maior

62 desgosto, eu penso no meu filho vir a ser um recalcado porque dizem que a mãe é uma doente mental.” No âmbito vicinal, nunca registramos situações em que o indivíduo se sentisse estigmatizado, quer por palavras ou ações de outrem. Uma de nossas informantes, falando sobre esse assunto, nos disse: “A maioria das mulheres nesse quarteirão já tiveram internadas em hospital pra nervo”. Isso nos leva a crer que existe como que um pacto implícito entre elas por passarem por situação idêntica, excluindo, então, qualquer reação estigmatizante por parte de algumas delas. Outro aspecto que se pode deduzir dessa afirmativa é que este tipo de estratégia de sobrevivência está se generalizando entre os indivíduos de baixa-renda, corroborado pelo fato de que a maioria dos indivíduos, que buscam a hospitalização com o objetivo da aposentadoria, citam os vizinhos como “conselheiros” do primeiro internamento ou reforçadores do conselho do clínico geral de procurar um psiquiatra. Se o vizinho já utilizava também esse esquema de sobrevivência, ele será a pessoa procurada para dar informações sobre as providências burocráticas a serem tomadas em relação ao INSS ou providencia ele mesmo a “papelada” exigida. Essa solidariedade e ajuda mútua é considerado um dos mecanismos de sobrevivência da classe de baixa remuneração: “Observou-se que uma das estratégias de sobrevivência mais utilizada é a ajuda mútua entre parentes, amigos e vizinhos”(14) No que tange às reações familiares vicinais em relação ao indivíduo, encontramos uma ambivalência nos casos estudados marcada pela manipulação da identidade de louco, sem no entanto, o indivíduo sofrer de modo inequívoco o estigma; pois, como vimos, os vizinhos não exercem nenhuma pressão estigmatizante sobre o indivíduo. E a família compactua com ele, uma vez que, na maioria das vezes, o cônjuge sadio e/ou os filhos concordam, fortalecem a decisão de hospitalização e muitas vezes são eles próprios os acompanhantes do paciente para o hospital. Quando recebem alta do hospital e retornam às suas casas, começa a exercer suas atividades domésticas (principalmente as mulheres) como se tivessem retornado de uma viagem de turismo: “Quando me hospitalizo, volto tão tranqüila que não perco a paciência com os meninos”.

Também não se sentem inseguros quanto à receptividade de seus familiares: “Meus filhos estão doidos que eu volte pra casa, já são tudo grande, mas não tem como a dona da casa”. Como o período de internamento é relativamente curto (máximo 30 dias) permite ao indivíduo manter o desempenho de seu papel social no âmbito familiar (dona de casa, mãe/pai, esposa/esposo) o que não aconteceria se esse tipo de internamento psiquiátrico se enquadrasse no modelo clássico de hospitalizações psiquiátricas involuntárias de longa duração. O retorno à casa e a volta às atividades domésticas, no entanto, tem uma duração efêmera. A própria situação de miséria e a fome em que vivem começam a agir sobre o indivíduo, fazendo eclodir todos aqueles sintomas minimizados pelo repouso e alimentação do hospital: “Quando estou hospitalizada eu me sinto melhor, mas quando eu chego em casa eu pioro”. “O repouso do hospital faz a gente melhorar, em casa não tenho repouso nenhum”. “Chego em casa e passo uns dois dias bem, quando é depois minhas carnes começam a tremer de uma hora pra outra”.

(14) Relatório preliminar “ Mecanismos de Sobrevivência dos Indivíduos de Baixa-Renda” – Coordenação: Prof.ª Tereza Haguetti - UFC

63 Como se vê, a situação é ambígua, e os pacientes vivem-na como tal. Desejam retornar à casa; ao retornarem mostram-se satisfeitos com o reencontro da família e de suas ocupações domésticas e normais; tudo isto até a primeira crise (falta de alimentação, cansaço, falta de dinheiro, briga doméstica,etc.), quando então buscam a volta ao hospital.

OS CUSTOS DA IDENTIDADE DE LOUCO

Veremos agora o “preço” que o indivíduo tem que pagar por manipular uma identidade estigmatizada. Levando-se em conta toda a singularidade que envolve o fenômeno por nós observado, onde tentamos mostrar que ele não se enquadra nos estudos até então efetuados sobre Estigma no que diz respeito aos custos da identidade de louco, o fenômeno em pauta apresenta também conseqüências ímpares. Se o único patrimônio desses indivíduos é ser previdenciários procuram usufruir dele utilizando-o de todos os meios que lhes possam favorecer. A adoção da identidade de louco é uma saída extrema de uma situação de privação, pois foge ao seu controle. No entanto, essa opção forçada socialmente exige do indivíduo um “preço” bem alto, com algumas variações de indivíduo para indivíduo. Em um ponto todos são unânimes: para conseguir a licença-saúde o primeiro preço que têm a pagar é a hospitalização psiquiátrica: “Perdi a licença, o recurso que tenho é me internar” É importante ressaltar aqui que, mesmo reconhecendo algumas “vantagens” na hospitalização psiquiátrica como alimentação e repouso, a ida ao hospital se apresenta sempre como algo “forçado”: “Só me interno para ter minha licença, no hospital a gente não perde perícia”. A consciência da impossibilidade de retorno ao trabalho, pelo fato do carimbo de internamento psiquiátrico na carteira profissional e do “peso” da idade, atuam como reforço para continuar utilizando o hospital como tábua de salvação: “ Qual a firma que vai me querer com a idade que tenho? (46 anos). O empregador vê minha carteira com carimbo de hospital para nervo, quem vai me querer?”. Como não podem pagar o INSS como autônomos nem retornar ao trabalho, a obtenção da licença-saúde com vistas à aposentadoria é o único meio que possuem para garantir o recebimento de um salário: “Hoje em dia é o maior sacrifício para ganhar estes tostões; se eu pudesse eu não vivia assim, de hospital em hospital, porque trabalhando a gente ganha mais, mas a saúde e a idade (52 anos) não deixam. Só o Instituto pode me sustentar”. Encontramos também uma homogeneidade por parte dos informantes expressa em uma revolta generalizada em relação aos médicos da perícia do INSS. “ Esses médicos da perícia são burros e sacanas”, não entendem de nada, eles sabem que não tenho condições de trabalhar e não me dão aposentadoria”. Alguns informantes se sentem preteridos pelos médicos da perícia e recebem apoio de seus familiares quanto ao reconhecimento desse fato: “Os médicos dão aposentadoria aos bons e negam aos doentes” o que sua filha acrescentou: “Eu vejo quem é bom e vai fazer perícia morto de bêbado e ganha um ano de licença e com a mãe eles negam a licença, sem a licença ela se perturba demais”

64 A longa espera pela aposentadoria que, às vezes, leva mais de dez anos para ser conseguida, além de se sentir obrigado a apelar para a hospitalização como único meio de conseguir a licença- saúde, contribuem para agravar o quadro clínico apresentado por eles, advindo sempre uma crise quando o laudo pericial é “ALTA”: “ Eu passei dois meses tão bem, cortaram minha licença e eu piorei”. Um fato curioso é que esta revolta envolve apenas os médicos da perícia do INSS raramente o psiquiatra que, pelo contrário, é considerado uma pessoa “amiga” que concede a hospitalização, principalmente o psiquiatra do hospital de emergência. Na peregrinação de hospitalizações em busca da aposentadoria, o indivíduo tem como “penitência” maior a passagem obrigatória por três diferentes especialistas: o psiquiatra do hospital de emergência, que é o responsável por sua hospitalização; o psiquiatra do hospital onde está internado, que é o responsável por sua permanência hospitalar; e o “temido inquisidor”, que é o médico da perícia do INSS, o responsável por sua licença-saúde, alta ou aposentadoria. Outro aspecto inerente aos custos da identidade de louco se relaciona com a farmacoterapia. Um dos efeitos colaterais dos psicóticos é a apatia e indiferença, que poderão ser responsáveis pela frigidez sexual, e que foi reconhecido por uma de nossas informantes nesse depoimento: “Depois que comecei a tomar esses remédios (psicotrópicos) eu perdi o apetite pra ter relações. A coisa mais difícil do mundo é eu ir de gosto. Eu tenho é pena do meu marido”. A mulher de um dos nossos informantes associa a indiferença sexual de seu marido (que tem apenas 27 anos de idade) à ingestão dos psicotrópicos: “Ele sempre me ‘procurava’, mas depois desses remédios, ele só faz é dormir”. A existência de alguma reação relacionada com o comportamento dos indivíduos em estudo, considerada “estranha” ou “esquisita”, é associada pelo cônjuge “sadio” também aos psicotrópicos. A mulher de um de nossos informantes assim se expressou: “Eu acho o jeito dele tão esquisito, eu não estou entendendo mesmo, parece que está no outro mundo. Eu acho que esses remédios não fazem bem a ele, porque ele fica todo duro, não estira os dedos e pegou um piscado de olho que ele não tinha”.* E o marido de uma informante expressa sua crítica aos psicotrópicos assim: “Eu estou achando que esses remédios que ela está tomando não está servindo pra doença, pra cabeça dela, eu tenho a impressão que o remédio está ‘bulindo’ com a doença”. A preocupação com os filhos é outro aspecto dos custos da identidade de louco presente em todos os casos analisados; na maioria das vezes, quando é a mulher que está internada, sua preocupação se volta apenas para os filhos, no entanto, os homens sempre citam a mulher e os filhos como motivo de preocupação: “Tou preocupado com a mulher sozinha em casa com as crianças”. O medo de perder o direito de apelar para a licença-saúde, devido às altas da perícia, tornar-se um verdadeiro pesadelo para esses indivíduos, principalmente quando reconhecem que cada vez torna-se mais difícil “convencer” o médico da perícia da necessidade da aposentadoria. Reconhecem, por outro lado, que as atitudes de simulação anteriormente empregadas não estão mais “impressionando” os médicos: “O médico da perícia agora “ta” é sabido, não está dando mais licença a ninguém”. Ou ainda:

*Essa reação provocada pelos psicotrópicos é denominada em psiquiatria “impregnação”, que é definida como “a produção de síndrome diencefálica e extrapiramidal, caracterizada por espasmos, e/ou rigidez muscular, paralisias, oculógero”

65 “Dr. tão dizendo que o “diagnoste” 3.001 (CID 300.1) não serve pra gente ganhar licença”.** Diante dessa constatação, e representação perante o psiquiatra (do hospital de emergência) para que este “aumente” o grau da doença, poderá ser tão dramático que esses indivíduos poderão, mais cedo ou mais tarde, incorporar para sempre o personagem que lhes forçaram a representar. Assim sendo, a obrigatoriedade de se hospitalizar para conseguir a aposentadoria atua como o maior preço que o indivíduo tem que pagar por se ver forçado a “enlouquecer” para sobreviver. No entanto, somos levados a concluir que a respeito dos custos de identidade de louco, estes não se apresentam assustadores para o indivíduo, pois como vimos, o estigma da loucura com todo o conjunto de características negativas foge de seu campo de percepção. Esse fato poderá favorecer a existência e aumento crescente da utilização de um expediente que, afinal de contas, tem demonstrado sua eficácia no assegurar o usufruto do sistema previdenciário pelos usuários carentes. Para os atores de todo esse drama que tem lugar no contexto da Previdência Social, assumir a identidade de louco é uma solução digna e honesta e a única que poderão tomar diante da realidade existente. Torna-se um lugar comum entre eles a frase: “Antes ser louco, do que ladrão, mendigo ou prostituta”. Aprender a manipular a identidade de louco passa a ser, para esses indivíduos, uma questão se sobrevivência. Estes indivíduos vivenciam, o que para eles seria a lógica da loucura, uma teia de manipulações que envolve, dialeticamente, o paciente, o psiquiatra, o hospital o perito, o INSS, a família do paciente, o grupo vicinal e em níveis mais abrangente a própria sociedade.

** Diálogo com o psquiatra do hospital de emergência, responsável por seu diagnóstico psiquiátrico.

66 BIBLIOGRAFIA

BASAGLIA, Franco, Psicologia o ideologia de la loucura?, Barcelona, Editorial Aragirama, 1972 BASTIDE, Roger, Sociologia e doença mental, Lisboa, Publicações Europa/América,1965 BERGER, Peter e LUCKMAN, Thomas, A construção social da realidade, Rio, Vozes, 1975 BOSSEUR, Chantal, Introdução à Antipsiquiatria, Rio, Zahar Editores, 1976 CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto, Identidade, etnia e estrutura social, São Paulo, Pioneira, 1976 FOUCAULT, Michel, Doença mental e Psicologia, Rio, Tempo Brasileiro, 1975 ------, História da loucura, São Paulo, Perspectiva, 1978 GOFFMAN, Erving, Manicômios, prisões e conventos, São Paulo, Perspectiva,1974. ------, Estigma, Rio, Zahar, 1975 SAMPAIO, Jackson, “A alienação do alienista”, Revista Cearense de Psiquiatria, (1), Ano1,1979 ------,”A manipulação do diagnóstico psiquiátrico”, Revista Cearense de Psiquiatria,(2), Ano 2, 1980 SZASZ, Thomas, A fabricação da loucura, Rio, Zahar Editores, 1976

67 Tão perto, tão longe: reflexões teóricas sobre o sofrimento social e suas representações na mídia

Maria Cristina Rocha Barreto

A conjuntura atual é mais do que oportuna para a reflexão sobre o sofrimento humano. Vemos a todo o momento nos mais variados meios de comunicação um espetáculo de guerra feita não apenas pelo tradicional embate corpo a corpo, mas principalmente realizada no próprio território midiático, instância cada vez mais onipresente em todos os conflitos acontecidos tanto em nível local como mundial. A mídia cobre todos os aspectos das desventuras humanas acontecidas neste planeta, transformando-as em um espetáculo para saciar a curiosidade e, porque não, a morbidez de milhões de espectadores mundo afora. O sofrimento observado à distância, como estudado pelo sociólogo francês Luc Boltanski, é rotineiramente apropriado na cultura popular. O sofrimento humano é mundializado e se tornou em mais um dos inúmeros problemas da transformação cultural dos tempos atuais, uma vez que a experiência é usada como um produto de consumo e, através das transformações das representações culturais do sofrimento, a está sendo reelaborada, reduzida e distorcida. Ao relatar situações de trauma, dor e abusos de todos os tipos, compartilhados por sociedades abastadas ou não, e que afetam, primeira e igualmente, aqueles que são extremamente pobres e sem poder, a mídia muitas vezes se coloca como representante destes pobres sem voz, denominados por Baudrillard como maioria silenciosa, mas ao mesmo tempo confunde os limites entre realidade e ficção, transformando suas vidas em meras “histórias” ou “acontecimentos”, transformando-se no que alguns autores chamam de ‘infotainment’69. Os leitores, por sua vez, se vêem em um dilema de comprometimento nessas situações e, muitas vezes, se sentem impotentes para resolver, ou pelo menos amenizar, tais sofrimentos. Imagens de vítimas de desastres naturais, de conflitos políticos, de refugiados de guerra, da fome, de epidemias, de doenças de todos os tipos, de crimes bárbaros ou menores, de abusos domésticos, em resumo, das privações pelas quais passam os seres humanos onde quer que vivam, são onipresentes em toda a mídia e são por ela apropriadas com o objetivo de apelar, emocional e moralmente, tanto a públicos globais quanto a populações locais. Podemos observar então, que o sofrimento social é fruto de violências, tanto no que diz respeito a conflitos ideológicos e culturais, quanto a políticas governamentais (ou a falta delas) que causam alguma forma de privação a uma população desfavorecida e desprovida de voz. Os estudos sobre o sofrimento social examinam a vida cotidiana e como sua subjetividade é transformada no engajamento com a violência. Questionam a noção de cotidiano como o lugar do ordinário, procurando revelar que atores sociais mais amplos, tais como o estado, organizações internacionais, a mídia global, assim como o fluxo transnacional das finanças e de pessoas estão implicados na atualização da violência que transforma a vida de comunidades locais. Mostram também como as estruturas locais de emoção e sentimento influenciam no campo discursivo, impregnando-o de termos que demonstram um potencial para a violência (DAS e KLEINMAN,

69 Ver Neal Gabler. (1999). Vida. O filme. Como o entretenimento conquistou a realidade. São Paulo, Companhia das Letras.

68 2000), potencial este que não é diminuído na utilização do sensacionalismo pela imprensa mundial e local. No caso de nosso estudo, a interação da violência com a vida cotidiana se faz através da leitura de jornais, particularmente na Folha de Pernambuco, jornal fundado em 1998, logo se destacando no estado por suas imagens repletas de sangue e corpos dilacerados. Essas imagens longe de serem algo distante e longínquo, permeiam a vida diária das classes mais pobres do Grande Recife. A Folha coloca como elemento fundamental de sua identificação como produto, a valorização da fotografia como expressão noticiosa, além de proclamar ser de leitura rápida e fácil. Apesar deste jornal conter outras seções que visam atender a interesses diversos, o seu preço convidativo e a página policial logo o tornou um dos mais vendidos do estado. Excluindo a coluna social, o universo onde a Folha busca suas ‘inspirações’ é o mesmo onde é primordialmente consumida. As pessoas se engajam nas tarefas da vida diária em um mundo onde algozes, vítimas e testemunhas praticamente vêm do mesmo espaço social. Na periferia de uma grande cidade, lugar geralmente reconhecidos como ‘inerentemente violentos’, a identidade das relações face-a-face é distorcida e carregada com o potencial para violência e, não raro, se torna difícil distinguir o sofredor do causador do sofrimento, ou mesmo o espectador do sujeito da ação (DAS e KLEINMAN, 2000). Para auxiliar a análise sobre a relação leitor/jornal, ou espectador/ator, Boltanski (1999) desenvolve um modelo que denomina ‘política de piedade’ e que se baseia, primeiramente, em distinguir os sofredores daqueles que não sofrem e, em segundo lugar, reconhecer a grande atenção conferida ao espetáculo do sofrimento. Neste contexto ‘espetáculo’ significa a observação do sofrimento por aqueles que não o compartilham, que não o sentem diretamente e, assim, podem ser considerados como pessoas de sorte (BOLTANSKI, 1999, p.3). A política de piedade, todavia, não leva em conta se a má sorte ou miséria do desafortunado é justificável ou não. Ao contrário, se concentra na urgência da ‘ação’ para pôr um fim ao sofrimento. Nela, a relação entre sofredor e espectador deve ser próxima o suficiente para que este último tome conhecimento do primeiro e, ao mesmo tempo, distante o suficiente para que suas experiências e ações permaneçam claramente distintas (BOLTANSKI, 1999, p.5). Por exemplo, o espectador não pode ser um pai que lê uma reportagem sobre um acidente envolvendo parentes ou conhecidos, pois aí ele próprio se torna um sofredor. É justamente a reunião da possibilidade de saber sobre o sofrimento ou infortúnio do outro e a possibilidade de agir o que define uma situação de compromisso. Entretanto, as possibilidades de compromisso se ampliam a cada dia, com a expansão e penetração dos meios de comunicação, e alcançam as comunidades mais distantes do planeta. Mas não deve ser um compromisso qualquer, nem pode um espectador se comprometer em todo infortúnio do qual tem conhecimento. A ‘política de piedade’ requer que seja genérica, ou seja, deve ser destacada de laços comunais e locais e deve se referir à pluralidade de situações de infortúnio, não havendo vínculos entre o espectador e os desafortunados. Os detalhes de seu sofrimento é que os tornará singulares, ou seja, se um caso particular nos faz chorar, no interior da multidão eles têm um grande número de substitutos. Os sofrimentos manifestos através do acúmulo de detalhes devem também ser capazes de imergir em uma representação unificada, isto é, mesmo singulares, eles são também exemplares (BOLTANSKI, 1999, p.12). Na busca dessa generalidade uma ‘política de piedade’ deve manter as qualidades das situações particulares, dos detalhes, ao mesmo tempo em que cruza distâncias, não só geográficas, mas também sociais, através dos meios de comunicação. Disso resulta numa situação paradoxal, mesmo incômoda, ou seja, alguém que não sofre vendo à distância o sofrimento de outrem. E este é um problema que sempre é posto ao leitor, pois a imprensa, assim como a ‘política de piedade’, lida com o sofrimento sempre de um ponto de vista da distância, pois ambas se fundamentam na

69 massificação de uma série de desafortunados que não estão ali em pessoa (BOLTANSKI, 1999, pp.11-12). A partir destas observações poderemos analisar aqui os casos de desabamento de dois edifícios: o Edifício Ericka, em novembro de 1999 [Foto 1]70 e o Edifício Enseada de Serrambi , ocorrido um mês depois [Foto 2] 71 , ambos em Olinda (PE). Num olhar mais fortuito, essa cena de desabamento poderia ser de um terremoto no México (janeiro de 2003) ou de um bairro destruído por bombardeios nos incontáveis conflitos do Oriente Médio. Isto acontece porque o texto é um fato discursivo que faz com que a memória participe da organização dos elementos estão em jogo na análise, ou seja, levamos em consideração a relação da língua com a história. Imagens como estas são universalizadas através da mídia e o leitor as relaciona com diferentes processos de significação locais ou mundiais (ORLANDI, 2001, p.70). Mas logo percebe que a cena de infortúnio está bem mais perto e perfeitamente acessível. Toda a cena indica a urgência da situação, o que se observa a partir da atitude dos bombeiros e da presença de um corpo esmagado por uma viga no centro inferior do quadro. O primeiro momento da notícia é o relato do acontecido informando o choque de ter sido acordado no meio da noite pelo desabamento. A manchete é mesmo redundante quando vista diante das fotos: ‘Destruição e dor’, em letras garrafais em vermelho, sobre um fundo preto, seguida por ‘Desabamento do Ed. Éricka em Olinda deixa 4 mortos’. O conjunto fotográfico é recebido pelo leitor de uma vez só: destruição, morte e dor; e o interessa mesmo sem gostar. O punctum, o detalhe pungente (BARTHES, 1984, p.68), o que transforma a leitura da foto, é o corpo esmagado presente na foto maior e a dor evidente do pai das crianças mortas. Fora do campo da foto, as imagens são reforçadas pelos detalhes tocantes: a morte de uma mãe abraçada a seus dois filhos, a emoção dos bombeiros ao retirarem os corpos. Como toda imagem de sofrimento, esta provoca a vontade de agir de algum modo. Para que o leitor de um jornal qualquer seja levado a ação, movido pela solidariedade em relação a um desafortunado, é preciso existir uma cadeia de intermediários entre ambos, seja estado, ONG humanitária, organização internacional, entidades beneficentes, sistema bancário etc., que possam receber doações e endereça-las a quem necessita. No caso que ora analisamos, esta cadeia de intermediários não é tão extensa que impeça a ajuda concreta, caso um morador do Recife, por exemplo, se disponha a colocar, por um momento, seus afazeres diários de lado e prontificar seu auxílio. Mas a questão do compromisso não deve ser analisada tão apressadamente. Em primeiro lugar, existem propriedades relacionais que definem quem auxilia e também determinam o curso de sua ação. Em outras palavras, existem regras sociais a respeito de quem deve dar assistência e quais meios serão utilizados. Como afirma Boltanski (1999, p.11), convenções preexistentes estabelecem um pré-compromisso que apenas tem de ser atualizado quando preciso. No Brasil, não existe ainda uma tradição de organização e mobilização civil para a prestação de ajuda em caso de desastres, acidentes e assim por diante, esta tarefa é desempenhada pelos bombeiros e pela defesa civil. O cidadão comum pode contribuir apenas através da doação de dinheiro ou gêneros de primeira necessidade e raramente se põe em questão uma disposição física efetiva para tal. Para o leitor não envolvido em alguma causa, política ou humanitária, resta o discurso. Contudo para que o discurso seja entendido como ação é preciso o engajamento da opinião pública com entidades políticas. Tratando-se de um espectador individual, é através da posição de sua fala que ele pode manter a integridade quando deparado com um sofrimento sobre o qual não pode agir diretamente para minora-lo. Existe, porém, uma certa obrigatoriedade de alguma manifestação,

70 Folha de Pernambuco, 13/11/99, p.1. 71 Folha de Pernambuco, 28/12/99, p.1.

70 do contrário levaria a uma acusação de indiferença ou mesmo de extrair prazer do sofrimento (BOLTANSKI, 1999, p.21). Mas não é qualquer estilo de discurso que é eficiente. Um discurso que utiliza uma descrição pura e factual, almejando apenas afirmar as coisas ‘como são’, e apenas isso, está excluído daqueles que são aceitáveis para falar do sofrimento humano. O espectador do sofrimento não pode falar sobre o que viu em termos objetivos, mesmo que hoje isto pareça ser a melhor maneira de garantir a seriedade de uma descrição que aspira o status de verdade. No que se refere à imprensa isso é cobrado com maior freqüência. Mesmo que uma suposta imparcialidade da imprensa seja falaciosa, ela está sempre na pauta dos que fazem e lêem os jornais, e voltou recentemente à ordem do dia com o caso do repórter Jayson Blair, 27 anos, do New York Times que chocou o meio com sua admissão de plágio e fabricação de reportagens72. Podemos observar como é pouco apropriada e incômoda uma descrição puramente factual, com a preocupação principal de colocar as palavras sem deformação, na forma mais exata e econômica possível (como quando se cataloga um objeto ou o descreve de forma a ser reproduzido por outra pessoa).A descrição factual é apropriada para a representação da natureza, para relatos médicos e mesmo assim com certos limites. Mas quando pessoas são descritas, o repórter ou o jornal podem ser criticados, pois o desafortunado, que é o ‘objeto’ da desgraça, é também o objeto de uma descrição realística na qual o domínio é distribuído inteiramente em favor do sujeito que está descrevendo, uma vez que retira o foco da notícia e do sofredor e o coloca nas ênfases e dramatizações do discurso (BOLTANSKI, 1999, p. 23). Porém, existe a necessidade de um discurso público, pois uma das faces de constituição de uma esfera pública é a formação de causas, mais do que o espetáculo do sofrimento. É através das causas, mesmo que momentâneas, que a esfera pública e a política de piedade se ligam uma a outra. A consideração do sofrimento do outro institui a urgência da ação e o compromisso de pessoas em torno dela. É nesse momento que é fundamental a separação entre ator e espectador, entre o ver e o agir. O leitor também é um elemento dessa esfera pública porém, ao contrário do ator, não está vinculado a nenhuma relação preexistente com os desafortunados e, mesmo assim, realizar atos de compromisso. Ele faz parte de uma rede, constituída a partir do compartilhamento de uma mesma informação, onde qualquer relação entre seus membros é possível, mesmo um não estando necessariamente consciente do outro (BOLTANSKI, 1999, p.31). Nesse momento, nos deparamos com duas formas de se comunicar o sofrimento. A primeira, como acontece nas relações comunais, onde a informação é trocada por indivíduos, onde usualmente a narrativa é transformada e recontada para um público particular, por alguém que está envolvido e afetado pelo sofrimento. Seria o caso dos parentes e vizinhos dos moradores do Ed. Éricka relatando o acontecido e em cujas narrativas se reconhece a presença do próprio locutor através da emoção transmitida pela voz e pelos gestos, que pode sentir o sofrimento como seu próprio. Por outro lado, temos o relato do jornal que, por se localizar na esfera pública, espera-se que forneça uma representação do sofrimento como falsificável, ou seja, livre de rumores ou alegações mentirosas, para um grande número de pessoas (BOLTANSKI, 19993 p. 32). Esta necessidade da presença de um certo distanciamento na narrativa jornalística é contrabalançada pela presença de se entrar em casos particulares com o objetivo de provocar a piedade e envolver o leitor. Nos deparamos então com o limiar que separa as diferentes categorias de jornais, os ‘sérios’ e os ‘sensacionalistas’. Esse limiar é demarcado pela definição de quão longe o desejo de provocar a piedade no leitor entra em conflito com a necessidade contrária de respeito pela pessoa do desafortunado. No exemplo que utilizamos, talvez por se tratar de um fato inesperado, uma tragédia que atingiu famílias, podemos dizer que a Folha de Pernambuco utiliza um estilo brando, utilizando palavras mais fortes apenas para estabelecer a

72 Disponível em www1.folha.uol.com.Br/folha/mundo/ult94u57251.shtml e acessado em 15/04/03.

71 dimensão da tragédia ocorrida. Este estilo difere frontalmente do estilo emotivo utilizado muitas vezes na descrição de crimes de morte ou abusos. Aqui não aparecem os termos avaliativos, que contêm características semânticas que indicam um julgamento ou uma determinada atitude da parte do locutor – a Folha. Podemos ver o desenvolvimento de uma narrativa de uma forma quase aperspectiva na primeira página: DESTRUIÇÃO E DOR Desabamento do Ed. Ericka em Olinda deixa 4 mortos Os bombeiros se emocionaram ao retirar a microempresária, Maria de Fátima, que morreu abraçada aos filhos; Os oito apartamentos do Ericka se transformaram em ruínas. Tadeu (esquerda), pai das crianças mortas, se desesperou com a tragédia.

O tema, como esperado devido a suas proporções, se prolonga na página 3: UM PRÉDIO CHAMADO TRAGÉDIA Quatro pessoas morrem no desabamento do Edifício Ericka, em Olinda Quatro apartamentos do Ericka viraram pó na madrugada de ontem, deixando familiares das vítimas desolados; Busca por sobreviventes iniciou-se na madrugada; Onze moradores acabaram feridos no acidente; Thaís, Maria de Fátima e Thadeu estavam juntos na hora da morte.

FAMÍLIA MORRE ABRAÇADA Thadeu Bernardo perdeu mulher e dois filhos.

E na página 4: DEMOLIÇÃO É SAÍDA PARA EVITAR UM NOVO ACIDENTE Técnicos se dividem sobre o que ocorreu no Edifício Ericka Comissão fez vistoria ontem a tarde no local. Laudo só sai em um mês.

EMPRESA VAI ESPERAR LAUDOS Obra está condenada.

Podemos observar que as manchetes apresentadas acima não exploram o sensacionalismo tão comum e evidente nas páginas policiais do mesmo jornal. Antes de prosseguirmos, quero salientar que nem sempre há uma identificação direta e imediata entre jornais populares e sensacionalismo. O sensacionalismo é a escolha de um tipo de discurso para informar sobre a atualidade que valoriza o exagero gráfico, temático, lingüístico e semântico e contém em si valores e elementos desproporcionais, que são destacados, acrescentados ou subtraídos da realidade social e colocados em um contexto de informação (PEDROSO, 2001, p.52). Essa notícia sobre o desabamento do Ericka, porém, como outras notícias freqüentes no jornal, mantém uma característica comum aos jornais populares que é a utilização de conteúdos precisos acerca de acontecimentos singulares, não constando nenhuma análise ou aprofundamento. Apenas informam uma notícia ao leitor, supondo que ele já não a conheça. Por isso, de um modo geral, o discurso da imprensa popular é narrativamente linear e unieventual e seus títulos anunciam e classificam, ao mesmo tempo, a notícia” (PEDROSO, 2001, p.53). O desabamento de um edifício residencial, no meio da noite, não se coloca dentro de um espectro de sofrimentos inevitáveis ou legítimos. Ou seja, tal tragédia não se encaixa na necessidade disseminada de se acreditar que os sofrimentos são causados ou merecidos por alguma razão, mecanismo desenvolvido para suportar uma dor que poderia ser intolerável (Moore Jr., 1987,

72 p.622). O sofrimento causado por um acontecimento desse tipo passa anteriormente por responsabilidade e ética exigidas de profissionais que atuam em profissões de um certo risco, como é o caso da construção, e de órgãos civis e governamentais de fiscalização da qualidade do produto que será oferecido à população. Nesse caso, a criação de sentimentos de indignação moral é fundamental para a ação sobre uma determinada ordem social (MOORE JR., 1987, p. 636). É justamente este sentimento de indignação, o tom de denúncia e acusação que faz, na mídia, cada evento um caso e uma causa, característica ausente nas manchetes apresentadas acima. Os desafortunados estão evidentes e deveriam se constituir em uma causa em torno da qual um laço social poderia ser criado. A indignação pública em favor de um sofredor se voltando imediatamente para o culpado e se dirigindo para a busca de punição. A mídia, ocasionalmente, pode se transformar em líder e estabelecer um acordo implícito com os leitores e, ambos, instituírem uma linguagem unívoca designando um culpado (BOLTANSKI, 1999, p. 60). A indignação toma a forma de uma indignação moral e a coletividade reafirma seus valores estigmatizando a imoralidade de um culpado, seja ele um indivíduo ou uma pessoa coletiva – estado, por exemplo. O mesmo tom permanece um mês depois na ocasião do segundo desastre, embora a cobertura tenha sido mais intensa e prosseguido nos dias subseqüentes: CATÁSTROFE! Prédio desaba em Olinda, mata três pessoas da mesma família e fere mais de vinte (Folha de Pernambuco, 28/12/99, p.1.) Em poucos segundos, o Ed. Enseada de Serrambi, nos Bultrins, Olinda, desabou soterrando dezenas de pessoas; Moradores e bombeiros fizeram resgates dramáticos; Yung Sho achou a filha; Vazamento de gás atrapalhou a retirada das vítimas.

Catástrofe mancha Olinda de sangue. Um prédio de 4 andares desabou nos Bultrins, matando 3 pessoas (Folha de Pernambuco, 28/12/99, p.3.)

Resgate mobilizou um grande efetivo; A advogada Suleide Maria de Medeiros Galvão, 46 anos, foi uma das vítimas a ser socorrida para a Restauração, ontem; Ioneca Nakani passa muito mal no HR; Camila da Fonseca, 13, sofreu várias fraturas; Kaiane, 10 anos, perdeu parte da perna.

Para um jornal conhecido pelo sensacionalismo nas páginas policiais, a Folha de Pernambuco estabelece aqui um discurso surpreendentemente ausente de conteúdos afetivos. Podemos perceber isto através da ausência de ponto de vista, de opinião. Boltanski (1999, p.42) apresenta duas formas pelas quais se pode diminuir a força emocional de um enunciado. A primeira, é contradizendo uma afirmação ou mostrando-a como uma ‘distorção da realidade’ ou questionando as intenções do locutor, desafiando a autenticidade da emoção exibida pelo locutor e que ele se propõe a compartilhar. Para manter o primeiro desafio deve haver uma investigação procurando estabelecer os fatos reais do assunto. O trabalho de investigação dessa série de reportagens poderia ser classificado como praticamente inexistente, se não fosse o fato de terem sido recolhidas informações e sistematizadas em um breve relato. O tipo de investigação que caracteriza uma imprensa ativa em denunciar injustiças e sofrimentos pelos quais passam a população não se reconhece aqui, talvez

73 porque a necessidade de uma investigação pode facilmente ser sobrepujada tanto por uma pauta apertada em uma publicação diária quanto pelo um apelo à urgência de um sofredor que não pode esperar. Para manter o segundo desafio o interlocutor de ser pego em falta mostrando-se que não há correspondência entre sua emoção externa e suas intenções interiores: a emoção é ‘afetada’ ou ‘superficial’, não tem bases. Este desmascaramento da hipocrisia é usualmente baseado sobre um critério de ação: a prova do caráter não autêntico da emoção é que não é seguida por uma ação. Falar sobre a questão da objetividade aperspectiva na Folha de Pernambuco e a ausência do estilo emotivo.

74 BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland. (1984). A câmara clara. 4. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. BOLTANSKI, Luc. (1999). Distant suffering. Morality, media and politics. Cambridge (UK), Cambridge University Press. DAS, Veena et al. (2000). Violence and subjectivity. Berkeley (CA), University of Califórnia Press. DAS, Veena et al. (Ed.). (2001). Remaking a world. Violence, social suffering, and recovery. Berkeley (CA), University of Califórnia Press. KLEINMAN, Arthur & KLEINMAN, Joan. (1997). “The appeal of experience: the dismay of images: cultural appropriations of suffering in our times”, in Social suffering. Berkeley (CA), University of Califórnia Press. KLEINMAN, Arthur et al. (Ed.). Social suffering. Berkeley (CA), University of Califórnia Press. MOORE, JR. Barrington. (1987). Injustiça: as bases sociais da obediência e da revolta. São Paulo, Brasiliense. ORLANDI, Eni P. (2001). Análise de discurso. Princípios e procedimentos. 3.ed. Campinas, SP, Pontes. PEDROSO, Rosa Nívea. (2001). A construção do discurso de sedução em um jornal sensacionalista. São Paulo, Annablume.

75 ANEXOS – FOTOS

Foto 1 -Folha de Pernambuco, 13/11/99

76

Foto 2 - Folha de Pernambuco, 28/12/99

77

Foto 3 - Folha de Pernambuco, 29/12/99

78 Medo, Memória e Pertença: O caso da favela do Poço da Draga em Fortaleza (CE)

Vancarder Brito Sousa

O objetivo desta apresentação é discutir as relações entre os medos sociais, pertença e memória no Poço da Draga. O ponto de partida será a definição de um método que possibilite a aproximação interpretativa do universo simbólico particular deste grupo social, frente às demandas e transformações rápidas da metrópole. Parte assim, da possibilidade do trabalho com as imagens narrativas através das quais os moradores identificam emocionalmente os lugares, pessoas e situações que ora se coadunam para construir afetivamente o espaço onde se vive, ora para exprimir os medos, repulsas e angústias pela incerteza, pela insegurança das mudanças no ambiente urbano. Neste recorte metodológico, em um ambiente de pobreza, as narrativas destas pessoas se apresentam como construtoras e construídas, de e por uma cidade ao mesmo tempo imaginária e real, enraizada em suas experiências e curvas de vida. Na proposta em andamento, o ato de rememoração é tomado como uma das estratégias de refundação da ordem frente a alguns dos temores que rondam o imaginário social, a inevitabilidade do tempo e a ameaça de que tudo seja reduzido a ruínas. Desta forma, os depoimentos dos moradores podem esclarecer o quanto do imaginário do lugar e das relações locais ali constituídas podem ser importantes para a construção dos processos de significação e pertença, frente às ameaças internas e externas de dissolução do espaço comum. Meu primeiro contato com o Poço da Draga se deu no de 1999, durante minha pesquisa de mestrado sobre o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (Sousa, 2000) deparo-me com uma realidade inusitada não só para mim pesquisador, como também para a maioria das pessoas de Fortaleza: a existência de uma favela nas imediações do Centro Cultural. Mas como, uma favela ali, no lugar talvez mais elitizado da cidade? Não se pode ver nada ao percorrer a turística Praia de Iracema que indique a sua presença. As pessoas não comentam, a TV não mostra nada sobre a favela, os jornais menos ainda, mesmo as manchetes padronizadas sobre violência, dessas que costumam aparecer nos programas sensacionalistas, pareciam não ter um bom solo para vingar nas imediações do Poço da Draga. Apesar desta ausência das manchetes, algo que não acontece em outras áreas pobres como Pirambu, Serviluz, Lagamar e outras, existe um medo enraizado na cidade que aponta para a prudência de se afastar das áreas menos movimentas e ou policiadas da Praia de Iracema. Naquele momento, começava a surgir o campo fértil para a interrogação dos “porquês” daquela comunidade pobre, invisível para a cidade, ainda que paradoxalmente instalada num lugar destinado a ser a vitrine de Fortaleza para o mundo. E Numa manhã de domingo de 1999, com a ajuda de um amigo que conhecia a líder comunitária do Poço da Draga, ponho os pés pela primeira vez no que se poderia chamar, talvez, de um reverso simbólico do Centro Dragão do Mar. Temeroso, pois envolvido pelas imagens comumente associadas aos lugares de moradia da pobreza nas grandes cidades: gangues, tráfico de dragas, violência, qual minha surpresa ao deparar-me, na rua principal da favela, com um universo alegre, bem ordenado e... tranqüilo. A líder comunitária, D. Rocilda, nos recebeu calorosamente e durante alguns bons minutos conversamos na varanda de sua casa sobre a história e os problemas do lugar: os movimentos anteriores contra as tentativas de desalojamento da favela pela prefeitura e a eminência de

79 receberem a Cessão de Uso Real do Solo da União. Duas frases que disse me marcaram, “aqui não é favela não” e “o Poço da Draga é uma favela diferente”. Uma favela diferente? Mas por que? Sem saber, começava a me deparar com o que intuo serem uma parte das estratégias de transformação dos medos socais em reorganizadores da ação social frente às ameaças urbanas.

EXPERIÊNCIA SOCIAL E OS MEDOS NO POÇO DA DRAGA

A afirmação de D. Rocilda naquela época de que o Poço da Draga era uma “favela diferente”, também se fundamenta em algumas características do lugar, podem ser destacadas: ser uma favela instalada há 80 anos numa área onde hoje se apresenta uma das maiores valorizações imobiliárias de Fortaleza; seu pequeno tamanho, pois possui 1071 moradores em 263 imóveis (SEINFRA, 2001); posse da Cessão de Uso Real da Área. E também, neste momento, a atenção diferenciada que está recebendo do Governo do Estado em seu processo de remoção para uma área distante apenas seiscentos metros do atual local para um condomínio de alto padrão arquitetônico e condizente com as exigências de valorização do entorno. Atenção esta, marcada pelo assessoramento de diversos órgãos oficiais. O processo de remoção é motivado pelo projeto do Centro Multifuncional de Eventos e Feiras do Ceará (CMEFC), orçado em 150 milhões de reais, e que ocupará, além da área do Poço da Draga, mais 19 hectares de aterro marítimo, gerando desde já, profundas transformações na vida das pessoas do Poço da Draga. Durante o percurso desta exposição uma pergunta se fará presente, e diz respeito aos desdobramentos destas transformações, não apenas urbanísticos. Mas sobretudo simbólicos, intuídas a partir da materialização anterior do Centro Dragão do Mar e do futuro Centro Multifuncional de Eventos e Feiras do Ceará, sentidos através da perspectiva dos moradores da Favela do Poço da Draga. Como, e sobre que base se constitui a dimensão de pertença na Comunidade do Poço da Draga como tensão à relação cosmopolita-moderno, representada pelo Centro Cultural e o discurso que lhe deu origem? Neste sentido, o caminho dos medos urbanos parece ser bastante profícuo, podendo fornecer boas pistas para ajudar a definir a noção de pertença em uma comunidade pobre urbana face aos pressupostos da racionalidade urbanística, rápidas transformações e mudanças de significados do espaço. A Praia de Iracema, primeira área portuária de Fortaleza, bairro onde se encontra a favela do Poço da Draga e o Centro Dragão do Mar, depois de vários anos de esquecimento, encontra-se hoje plenamente integrada com as áreas a Leste da cidade, que se caracterizam por acolherem tanto a maior parte dos investimentos públicos em urbanismo, quanto da iniciativa privada em shoppings centers, turismo e equipamentos de lazer, ao mesmo tempo, em que lá se encontram as moradias mais ricas da cidade. A avenida Pessoa Anta, no seu sentido leste-oeste, passando na frente da fachada do Centro Cultural voltada para o mar, funciona como um corredor rápido de tráfego, as pessoas acessam de ônibus ou de carro seus locais de trabalho no centro da cidade, na Aldeota ou na região da orla marítima, rota privilegiada para o consumo de diversão e lazer na cidade. Em sua rápida passagem de carro ou ônibus, as pessoas pouco podem perceber das sutilezas que a memória dos antigos galpões portuários, das ruas estreitas e sobrados comerciais datando da transição do século XIX para o século XX podem suscitar. Muito menos sobre a presença de uma comunidade que vive naquele entorno, direta herdeira daquele antigo porto, o Poço da Draga. Como o Dragão do Mar, a Favela Poço da Draga pode funcionar também como símbolo da globalização, mas ligada a uma outra temporalidade, de um momento no qual o mundo chegava à

80 Fortaleza a partir da Ponte Metálica, e os moradores podiam projetar para o oceano suas expectativas de felicidade. Vinculada por outras mediações ao ritmo da metrópole, o tempo parece passar lento na principal rua do Poço da Draga, a Viaduto Moreira da Rocha, as casas mantêm com freqüência as portas abertas, os vizinhos conversam tranqüilamente nas frentes das mesmas enquanto as crianças brincam ao redor, nos vários botecos homens adultos sem camisas conversam em pé ao balcão do bar ou na rua – um tempo lento, provinciano... em uma aparente segurança, em alguma trama de amarras que a dimensão comunitária parece garantir. Afirmo parecer garantir, porque considero a noção de comunidade através da qual os moradores do Poço da Draga freqüentemente se denominam, merecedora de olhar mais aproximado. Longe de poder ser tomado em sentido puro, ou seja, um sentido que remeta a alguma organicidade natural como sugerido por Tönnies (1995) , pretendo o uso do termo comunidade mais de acordo com a proposta de Max Weber, quando afirma que

“uma relação social denomina-se de ‘relação comunitária’ quando e na medida em que a atitude na ação social (...) repousa no sentimento subjetivo dos participantes de pertencer (afetiva ou tradicionalmente) ao mesmo grupo”. (Weber, 1994, p. 25).

A partir da proposta de Weber, acredito a dimensão comunitária se mostrar mais aberta a comportar tanto os interesses ligados a memória comum, a pertença, quanto os interesses momentâneos, circunstanciais e muitas vezes conflitivos que os grupamentos humanos suscitam. Os indivíduos, os grupos e a comunidade costuram a sociabilidade local, articulam acordos políticos, ao mesmo tempo em que rompem com outros. No jogo social se sente antes de tudo que se pertence ao Poço da Draga, mas esta concordância parece se encontrar muito distante de representar uma acomodação dos interesses diversos. A observação das motivações de grupos heterogêneos que vão desde os evangélicos ao tráfico de drogas, passando pela Associação de Moradores e outras, ajudarão aqui a melhor definir as questões relativas às tensões vividas pela localidade neste momento de sua história. Berço da ponte metálica, o Poço da Draga em sua ambiência marítima pode nos estimular a questionar o quanto daquele antigo porto ainda anima o espírito do lugar, um porto mais discreto e intimista que o representado pelo Centro Dragão do Mar no seu intuito de conectar Fortaleza com o mundo globalizado, pois voltado para destinos no tempo, na nostalgia do passado, menos que nas ameaças do presente e incertezas do futuro. Se para os moradores da cidade que por ali passam apressados esta paisagem ambiental pouco pode dizer sobre o passado, por outro lado, para os habitantes do lugar, em especial os do Poço da Draga, a relação com este conjunto imagético e de memória pode sugerir pontos de referência seguros, em seus esforços de contínua transmutação de conceitos sociais negativos sobre si mesmos, sobre a identidade do grupo e de apaziguamento das tensões internas. Visando uma aproximação deste universo próprio do lugar, relacionado aos sentidos específicos da experiência e da memória das pessoas do Poço da Draga, optei por trilhar os passos de uma etnografia que, em forma de via de mão dupla entre os interesses do pesquisador e dos atores sociais em questão, suscitasse um quadro interpretativo dos medos, conflitos e angústias historicamente constituídos na comunidade. O caminho escolhido por mim, então, se adequaria ao que Magnani chama de “olhar de perto e de dentro” (Magnani, 2002, p. 17), já que, “a natureza da explicação pela via etnográfica tem como base um insight que permite reorganizar dados percebidos como fragmentários, informações ainda dispersas, indícios soltos, num novo arranjo que não mais o arranjo nativo (mas que parte dele, leva-o em conta,

81 foi suscitado por ele) nem aquele com o qual o pesquisador iniciou a pesquisa”. (Magnani, 2002, p. 17) A experiência da etnografia definida por esse “olhar de perto e dentro” se contrapõe à visão do universo das grandes cidades como somatório único de forças econômicas e políticas, das grandes estruturas administrativas e interesses internacionais, em favor dos atores sociais identificados com o cotidiano em suas ações e a interpretação de seu universo simbólico. Necessitando assim, um esforço de estranhamento do observador em relação aos objetos nascidos da problematização da cidade e seus atores, que pela proximidade, podem parecer tão familiares. Apoiando a perspectiva de Magnani de uma metodologia caracterizada por “olhar de perto e dentro”, tomo emprestado deste autor um outro conceito metodológico, o “de passagem” (p .18), que parece se adequar bem a esse momento de reconhecimento e aproximação do universo pesquisado. Desta forma, a modalidade “de passagem”,

“consiste em percorrer a cidade e seus meandros observando espaços, equipamentos e personagens (...) com seus hábitos, conflitos e expedientes, deixando-se imbuir pela fragmentação que a sucessão de imagens e situações produz”. (Magnani, p. 18);

O resultado pretendido é um mapa representativo dos somatórios das impressões a respeito da experiência espacial e de seus sentidos dos moradores daquela comunidade. Neste resultado suponho que a condição de enraizamento dos indivíduos, de criação de laços com o local, possam apontar para a possibilidade da formação de teias de sentido e sociabilidade próprias, que possam ser reconhecidas por todos os moradores. Neste esforço metodológico tive como referência o indicativo de Maurice Halbwachs de cruzamento entre espaço, tempo e memória, assim, para este autor “o grupo, no momento em que considera o seu passado, sente acertadamente que permanece o mesmo e toma consciência de sua identidade através do tempo” (1990, p. 86). O ato de rememoração pode ser tomado como uma das estratégias de refundação da ordem frente a um dos temores que rondam o imaginário social, a inevitabilidade do tempo e a ameaça de que tudo seja reduzido a ruínas – à morte. Mais do que isso, os próprios eventos oriundos das transformações da cidade, do seu crescimento e da especulação imobiliária, ressaltariam esta característica de defesa contra o esquecimento e a aniquilação. A respeito da construção de um sistema simbólico capaz de estruturar o grupo, DaMatta (1997) afirma que,

“cada sociedade ordena aquele conjunto de vivências que é socialmente provado e deve ser sempre lembrado como parte e parcela do seu patrimônio – como mitos e narrativas – , daquelas experiências que não devem ser acionadas pela memória, mas que evidentemente coexistem com as outras de modo implícito, oculto, inconscientemente, exercendo também uma forma complexa de pressão sobre todo o sistema cultural”. (p. 37)

A partir da reflexão de DaMatta, em que medida os atos de rememoração ou esquecimento vivenciados coletivamente no Poço da Draga responderiam por estas estratégias de resignificação do medo, do perecimento? Quais seriam os processos locais de elaboração desse acervo imaginário e simbólico em vista a tais estratégias? Como se definiria o diálogo entre a ordem simbólica das ameaças externas e as expectativas pessoais e coletivas no interior da comunidade? Enfim, de que se tem medo, quando e como, por quem é composta esta emoção no tempo e no espaço social? E diante das evidências de que o medo é também uma força motivadora e não só castradora, como age, qual seu poder no local para impelir à ação?

82 Os sujeitos com suas narrativas são personagens fundamentais destas estratégias. São responsáveis pela guarda de uma parcela de memória local, e esta, ao mesmo tempo em que emerge do grupo, define os laços de sociabilidade fortalecendo a união, ou possibilidades desta. Como também, os caminhos sobre os quais trafegam as distensões e conflitos entre os membros do grupo. Os depoimentos dos moradores podem esclarecer o quanto o imaginário do lugar e das relações locais ali constituídas, podem ser importantes para a construção dos processos de significação e pertença, frente às ameaças de dissolução do território comum, das incertezas, das tensões e ou conflitos internos ligados às mudanças da cidade. Sob a perspectiva analítica das emoções, das quais o medo parece ser um grande vetor de posicionamento dos atores frente ao mundo, como se constroem, naquela localidade, cartografias ligadas à experiência de conviver no cenário de intensas transformações e tensões que a cidade experimenta atualmente, e do qual o Centro Dragão do Mar se destaca como o novo signo de modernidade e progresso? Diante desta atmosfera de modernidade do entorno capitaneado pelo Centro Dragão do Mar, de que forma o sentimento de pertença circunscrito nas tensões se estabelece, e de que maneira é compartilhado pelos que habitam o Poço da Draga? Como se constituem na especificidade daquela comunidade as relações entre as cadeias da reminiscência enquanto conformadoras dos laços sociais? O caminho para compreensão destas questões parece se encontrar no entrelaçamento entre o presente e o passado, e do resultado deste cruzamento, o surgimento do sentido de uma luta contra o aniquilamento e pela permanência no lugar. Apoia-se também, na vivência e na relação dos indivíduos na construção de uma visão de cidade a partir desta experiência diária e nos suportes da memória coletiva.

RECONHECIMENTO ETNOGRÁFICO DO POÇO DA DRAGA

Após definir alguns sentidos mais gerais do aparato descritivo, conceitual e metodológico sobre o trabalho que desenvolvo na Favela do Poço da Draga passo agora ao momento de apresenta-lo sob forma de narrativa etnográfica dos medos e conflitos, tomando a liberdade mesmo de nomeá- la como uma aventura etnográfica, por se tratar de um esforço árduo de posicionamento e de aproximação, em busca do esclarecimento do que Geertz chamou de “uma gramática de significados” (Geertz, 1989). Ou seja, a reconstituição do universo simbólico através de um mergulho interpretativo das pistas oferecidas pelos atores sociais daquela localidade durante esta minha vivência de campo. É um sábado à tarde, por volta das 17 horas. A vida nas ruas do Poço da Draga aparentemente transcorre na mais tranqüila rotina, mesmo com todo o processo de preparação, debates acalorados e acompanhamento governamental que antecipa a transferência da comunidade para um outro sítio disto 600m de onde está localizada. Para quem visita o Poço da Draga pela primeira vez pode não achá-lo muito diferente da maioria dos bairros pobres ou favelas de Fortaleza. Após sair do estacionamento do Centro Dragão do Mar na avenida Pessoa Anta, por onde a vida da cidade (diurna e noturna) escorre frenética, entramos nessa temporalidade quase adormecida do Poço da Draga73.

73 Além de mim o grupo compunha-se pela Profa. Linda Gondim do PPGS-UFC e pela Graduanda em Ciências Sociais e sua orientanda Heloísa de Oliveira, que também desenvolvem pesquisas sobre a área da praia de Iracema e o Poço da Draga. Faz-se importante ressaltar que neste momento a Praia de Iracema e o Poço da Draga centralizam a atenção de grande número de pesquisadores devido aos profundos e diversos sentidos de mudança urbana que ensejam.

83 Escondida da Avenida atrás de um “paredão” de edificações é preciso percorrer um pedaço de rua para alcançá-la. Já no pequeno trecho (uns 15 metros) da Rua Boris, espremido entre a Agência da Caixa Econômica Federal e um prédio comercial de etiquetas metálicas (ALUPRINT), pelo contraste entre o dentro e fora, pelo ritmo, a impressão que tenho é de chegada noutro mundo: a descoberta de uma outra cidade (pobre) no coração da Fortaleza up to date. Um container de lixo remexido recebe a todos, simbolicamente demarcando os sentidos daquela territorialidade em relação ao entorno sofisticado. Ultrapassado o container, chega-se ao trecho mais largo da rua Gerson Gradvoll, antes que esta se bifurque uns 100 metros à frente para formar também a rua Viaduto Moreira da Rocha. O cenário que se abre é composto por casas simples de alvenaria com reboco e pintadas, outras muitas, sem reboco e sem pintura, além de algumas poucas de madeira74. Aproveitando a menor intensidade do sol, muitas pessoas se encontram em frente as suas casas, na sua maioria mulheres conversando em pé (aqui e acolá pode ser visto um homem ou um grupo deles). As crianças brincam na rua, correm e jogam bola. Nada que chame muita atenção. Andando ali naquele momento sentia que chamava a atenção pelo simples fato de ser uma pessoa estranha ao lugar, por onde passava era possível sentir, mesmo sem virar o rosto, os olhares inquiridores sobre este visitante vespertino. Para esta empreitada me lembrava daquela conversa que tive com D. Rocilda (residente há mais de 40 anos no local), quando dizia que a favela “era um lugar de gente ordeira e trabalhadora, que lá não tinha violência não”, e confusão, quando tinha, “era provocado por gente de fora”. Buscava me lembrar daquela conversa também para me tranqüilizar interiormente, para vencer meus receios de adentrar num universo para o qual eu era completamente estranho, e também, porque até pouco tempo, eu convivia com minhas próprias pré-noções sobre a insegurança na região. Também trazia em mente, as informações e entrevistas com moradores obtidas através dos jornais sob o calor do anúncio75 do projeto do Centro Multifuncional de Eventos e Feiras do Ceará. Bem como das notícias nos jornais desta época que chamavam a atenção para aumento repentino da violência no entorno do Centro Dragão do Mar. Destaque aqui, para os furtos a automóveis e turistas, venda e consumo de drogas, prostituição infanto-juvenil e brigas. O que resultou em muitas reuniões de entidades da sociedade civil com representantes do Poder Público, além da instalação de uma Delegacia especial em um prédio anexo ao Dragão. Nas matérias jornalísticas que versavam sobre o projeto do CMEFC e suas conseqüências para o Poço da Draga, alguns moradores foram ouvidos manifestando tanto receios quanto esperanças frente à proposta de remoção da comunidade para um novo lugar onde seria construído um condomínio para abrigá-la. Nestes relatos se confundem traços de identificação com o lugar, com os receios da mudança. O temor frente ao desconhecido tornado esperança que o projeto do CMEFC traga benefícios para a população em termos de ocupação, renda e infra-estrutura. Como também, traços de posturas que o estímulo da nova ameaça de remoção provocam em termos de elaboração de estratégias de negociação com o poder público e a acomodação da inquietude interna entre os próprios membros da comunidade. Assim, o senhor Edmar de Lima (65 anos), pintor, morador do local há 54, afirma: “só acredito vendo”, se referindo à eminência da desapropriação, ressaltando que a transferência deverá demorar por ser o projeto do CMEFC, “grande e caro”, e que passou a vida ouvindo notícias que

74 Segundo Censo Habitacional realizado no Poço da Draga pela SEINFRA (imóveis cadastrados), são 242 casas de tijolo, 20 de madeira e 1 de outro tipo de material de construção. O material utilizado nos pisos: 219 de cimento, 23 de cerâmica, e 6 de areia ou barro. Existência de vaso sanitário: 203 possuem vaso sanitário, 60 não. (SEINFRA, 2001) 75 Meados do ano de 2001.

84 sairiam dali. Também ressalta que apesar das melhorias pelas quais passou o local ao longo dos anos, pois antes “era só areia e mato”, ainda falta segurança e saneamento. Dessa forma, para ele “a segurança somos nós mesmos”76. A afirmação da ausência do poder público para garantir a segurança na localidade, ressalta o aspecto da existência de alguns conflitos e tensões internas, que precisam ser constantemente equacionados, levantando dúvidas sobre uma pax comunitária plena, algo como D. Rocilda havia afirmado. Abrindo margem para futuros questionamentos sobre esse campo da construção das relações entre os moradores, e entre estes e os estranhos ao lugar ou ao espírito e valores comunitários, que seriam responsáveis por parte desta violência, como brigas e tensão associadas, por um lado, à venda e consumo de drogas, e por outro, pela não colaboração, e até sabotagem, das ações de negociação com o Poder Público. Como afirma Dos Santos (1981), para distinguir os “moradores plenos” dos “não-moradores” na favela do Catumbi no Rio de Janeiro, foi preciso “evocar um ‘espírito’ para o bairro; a identificação com uma série de símbolos, a adesão e o respeito a um conjunto de comportamentos que qualificariam o morador” (Dos Santos, 1981, p. 200). Conceitualmente também, a experiência do Poço da Draga talvez se aproxime da realidade descrita por Elias & Scotson (2000) sobre a Comunidade de Winston Parva, na qual se estabeleceram relações de poder que discriminavam os moradores que não possuíam raízes ligadas aos fundadores do grupo. E assim, por não se integrarem organicamente à comunidade seriam sempre tomados como suspeitos pelos “natos”. Numa das primeiras visitas ao Poço da Draga, o grupo formado por mim e mais duas colegas foi abordado por um morador que nos interrogou sobre nosso interesse no “local”77. Mostrava-se bastante irritado com o projeto e a postura tomada pela Associação dos Moradores frente a este. Para ele “as pessoas estavam sendo enganadas” e que os “novos apartamentos eram uma pocilga”. Ficava cada vez mais exaltado à medida que falava do projeto, e atacou tanto a Associação quanto sua presidente, D. Rocilda, chamando-a de analfabeta e incompetente. Outros aspectos interessantes na fala do Sr. ª se referem à questão da violência, quando indagado sobre o assunto, respondeu que não há violência no Poço da Draga, e que lá você pode andar na rua à noite na hora que quiser que não existe perigo. E também, durante toda a sua fala não se referiu em nenhum momento ao Poço da Draga como uma favela. Retomo então o argumento de que os personagens tendem a não assumir a condição sua própria condição conflitiva. Apontam sempre para um outro, seja uma pessoa, grupo, situação ou interesse. Dessa forma talvez se resguardando emocionalmente e garantindo moralmente a salvaguarda de sua pessoa? Uma representante da Associação dos Moradores, em um momento posterior (dia 09/06/2002), quando indagada sobre as posições do Sr. A, afirmou que ele não tinha interesse na transferência da comunidade porque tinha envolvimento com o tráfico de drogas. E que, além disso, ele tinha ficha na polícia, enfim, não era uma pessoa comprometida com os interesses da coletividade, ou mesmo, um indivíduo desqualificado frente ao grupo. Essa diáspora entre interesses e pessoas no Poço da Draga também se destacou na Reunião de trabalho realizada por um dia inteiro em 11/05/2002, no auditório central do Campus do Itaperi da UECE, a qual acompanhei78. No período da tarde me acompanhei as discussões no workshop

76 Pintor Acredita que o Projeto vai Demorar. Jornal O POVO, 22/02/2002. 77 O s moradores do PD às vezes se referem ao local como bairro. 78 Esta reunião serviu para apresentar e discutir com os moradores, através de workshps temáticos (Pertença, Violência e Cidadania, Memória, Cultura e Lazer, Ações Educacionais, Formação Profissional), os objetivos de cada projeto de atuação dos órgãos (SEINFRA, SEBRAE, SINE, SENAC, SETAS, IDT/PEQ) em função do Poço da Draga.

85 Violência e Cidadania. Ouvindo os relatos dos moradores que participaram ficou claro que a violência que mais identificam é a relacionada com o tráfico de drogas e suas conseqüências. Após as apresentações dos técnicos e dos primeiros objetivos daquele encontro, o professor da UECE que facilitava a reunião perguntou: “Que tipo de violência existe no Poço da Draga?”. Durante alguns angustiantes minutos, o silêncio foi a resposta. Após uma nova tentativa e da reformulação da abordagem, alguém, se manifestou: “a droga, o problema lá é droga!”. Alguns instantes depois, um rapaz afirmou: “o pessoal que assalta e consome drogas é de fora, mas isso não quer dizer que lá também não tenha”79. Um morador antigo do Poço da Draga, Seu Ribamar Santos (67 anos) afirmou: “é fácil identificar quem trafica, basta perguntar a quem não quer permanecer com os mesmos vizinhos”. E como solução, arrematou: “só tem uma solução, tirar os elementos ruins pra outro lugar, o Pirambu”.80 Os mapas imaginários relacionados às experiências do medo e da sujeição no Poço da Draga além de apresentarem “mecanismos” eficientes de identificação dos outsiders, para utilizar a expressão de Elias & Scotson (2000), também operam muito bem na significação e hierarquização espacial do lugar. Desta forma, o Poço da Draga é representado pelos seus moradores como dividido por duas grandes áreas: a Aldeota (alusão ao bairro mais chique de Fortaleza) e o SERVILUZ (favela portuária de Fortaleza atual zona de prostituição). Na primeira estariam as casas de melhor padrão construtivo, portanto mais caras do Poço da Draga (localizadas nas duas ruas principais). Na segunda, as casas mais pobres, periféricas ou em locais de difícil acesso como nos becos, entre outras casas, ou nas áreas mais úmidas81. Estes mapas imaginários podem localizar as hierarquizações, relações de afeto e desafeto, tanto de origem internas à comunidade quanto no exterior. Assim, localizadas, contribuem para estimular reações e atitudes frente às sujeições simbólicas e materiais que afligem a vida destas pessoas, não só em relação só espaço, mas também em relação ao tempo. Através da constituição destes mapas simbólicos as emoções vão dando o tom das descrições dos momentos e dos lugares pelos moradores. As reações frente angústia e a sujeição se manifestam não apenas como desespero e ira, mas com negociações simbólicas delicadas, objetivando dirimir os efeitos da sujeição, podem ser discernidas observando as ações e falas dos moradores. Como exemplo deste tipo de operação de requalificação pelos indivíduos, dos sentidos da opressão vividos naquele cotidiano (em modulações de ação), podemos observar algumas narrativas referentes às ameaças simbólicas em curso e as passadas, neste caso a memória é quase sempre o seu veículo. Assim, a observação do atual processo de transferência da comunidade promovida pelo Governo do Estado e a forma como a ele reagem os moradores pode apresentar boas pistas para seguirmos. Antes do atual desassossego diante da eminente transferência, a comunidade convive desde muito tempo com um clima de tensão com um outro vizinho de peso, a proprietária da Indústria Naval do Ceará – INACE, Elisa Gradvoll, que ocupou, com o aval da Marinha, parte costeira da área da favela nos anos 60 para instalação de um estaleiro, obrigando muitos moradores a se mudarem. Alguns permaneceram onde hoje é o atual Poço da Draga. Ao longo desse tempo a INACE vem

79 Este silêncio pode ser uma evidência das violências ali existentes, cotidianas e invisíveis, como em todo lugar, mais difíceis de serem assumidas: violência contra mulher, violência doméstica, contra crianças etc. e outras sofridas na rua ou no trabalho (ou na falta dele) diariamente. Uma adolescente até esboçou um “acho que existe desrespeito com as mulheres”, mas os homens, que eram maioria não deram atenção e sua observação ficou no vazio. 80 Considerada a maior favela de Fortaleza (zona Oeste) e uma das mais antigas. Conhecida também por estar sempre na mídia como cenário de manchetes violentas. 81 O Poço da Draga é cortado por um riacho e ainda possui uma pequena área de mangue remanescente. Até o início dos anos 90 (antes das obras de drenagem da praia de Iracema, elevação do nível e pavimentação das ruas do Poço da Draga) eram freqüentes inundações na favela, principalmente quando coincidia com fortes chuvas, maré cheia e as ressacas. Na época ela ainda era considerada área de risco. Depois das obras da prefeitura a maioria das casas foi elevada para o novo nível rua (quase 1 metro de diferença).

86 avançando fisicamente sobre pequenas porções de terreno do Poço da Draga. Segundo uma moradora (37 anos), “nascida e criada aqui”, como se define:

“D. Elisa não presta, ela quer mesmo é botar todo mundo pra fora daqui. Cercou aquele terreno ali [apontando] da continuação da Viaduto Moreira da Rocha, e agora cercou pra ela um terreno onde haviam umas casas que foram desapropriadas pela prefeitura por serem área de risco [ficavam à beira-mar e sujeitas a ação das ressacas]. Ela não quer nem saber, bota cerca, segurança e pronto”82.

Em seguida, fala com carinho da época em que era criança e junto com os irmãos ia tomar banho na praia onde hoje é a INACE. Mostra-me uma foto do início dos anos setenta (não consegue determinar a data) onde ela e seus irmãos, ainda crianças ou adolescentes, estão em roupas de banho, molhados e aparentemente muito alegres sobre o paredão Hawkshaw83 A partir das informações desta moradora, como de outros, este momento parece marcado por uma sucessão de emoções na qual nostalgia e tensão se mesclam, apontando para um resultado emocional aparentemente contraditório sobre os eventos atuais e o balanço de suas vidas naquele pedaço da Praia de Iracema. Parece inclusive haver um retorno constante de um certo tipo de ameaça mais evidente, a de remoção, e das conseqüências emocionais destas na vida dos moradores. Porém, esta ameaça se apresenta sempre requalificada de acordo com os interesses envolvidos e a conjuntura política de cada época, como também os são as formas de reação e negociação da comunidade a estes momentos. A nostalgia é uma outra emoção presente no Poço da Draga sob efeito da atmosfera da mudança. Na plenária final da reunião de trabalho entre Governo e os Moradores, na UECE em 11/05/2002, uma moradora, D. Iolanda narrou emocionada seu sofrimento pela perspectiva de perda de seu quintal, no qual realiza reuniões, rezas e festas. Disse que é chamado pelos vizinhos de “pantanal da D. Antônia”84., que não agüentaria viver sem suas plantas, que cultiva no “pantanal”. Ao final de sua fala, perguntou ao Coordenador do projeto se não haveria um lugar como seu quintal no novo condomínio, onde pudesse cultivar suas plantas e reunir seus familiares. Com a resposta de que haveria o jardim do prédio e o salão de recepções, D. Iolanda chorou.

CONCLUSÃO

Esta primeira investida no campo tornou claro para mim as dificuldades e as recompensas de travar um contato tão aproximado com os atores sociais que compõem o Poço da Draga, ou uma realidade semelhante. Dificuldade por exemplo, em ser aceito. O desafio permanente de enfrentar, nas palavras de Geertz, “uma multiplicidade de estruturas conceituais complexas, muitas delas sobrepostas umas as outras” (p. 20), numa realidade para qual sou um absoluto estranho. Assim, a sujeição do pesquisador não só ao acerto, mas sobretudo às incertezas, escorregões e recomeços neste esforço interpretativo podem apontar para situações inusitadas que exigem “presença de espírito” ou bom senso, pois as surpresas acontecem a todo o momento e posturas e posições podem ser e são cobradas do observador. Uma dessas situações delicadas é de me

82 Entrevista concedida ao autor em 15/06/2002. 83 Construído na década de 1880 pelo engenheiro inglês John Hawkshaw, para abrigar o primeiro porto de Fortaleza e que fracassou devido à ação das correntes marinhas, o que levou a formar uma “piscina” de águas protegidas. Abandonado o projeto, a praia serviu por muitos anos de atracadouro para jangadas e banhos de mar dos moradores pobres da área. 84 Provavelmente uma alusão à região úmida e baixa onde se encontram quase todos os quintais das casas da rua Viaduto Moreira da Rocha do lado do Poente.

87 encontrar as vezes no papel de confidente de posições políticas antagônicas no Poço da Draga, fato que começa a exigir cada vez mais “jogo de cintura” de minha parte, e que exige deixar claro que estou ali de passagem e portanto só ocupo o espaço social de suas vidas momentaneamente. Comecei a desenvolver a consciência neste processo de aproximação, que mesmo o sucesso vem a reboque das parcialidades, quando as mais firmes certezas são reduzidas rapidamente a pouco além de especulações sem fundamento para, numa virada repentina, observar através dos novos contatos e, ou, dos novos sinais que a dinâmica social me apresenta a reabilitação daqueles insights que quase foram para o lixo. Processo de encontro e de perdas, este caminho etnográfico tem um começo mais ou menos claro como o exposto no início deste texto, porém sujeito às dúvidas das conclusões que trará ao final.

88 BIBLIOGRAFIA

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90 Formas de Sociabilidade e Uso do Espaço sob a Ótica dos Medos no Urbano Contemporâneo: Um estudo de caso em alguns bairros da cidade de João Pessoa, Paraíba.

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Maria Sandra Rodrigues dos Santos

Alessa Cristina P. de Souza

Alexandre Paz Almeida

Anne Gabriele Lima Sousa

Andréia Vieira da Silva

Rivamar Guedes da Silva

Francisco de Assis Vale Cavalcante Filho

Este trabalho tem por objetivo discutir as formas de sociabilidade e uso do espaço sob a ótica do medo no urbano contemporâneo. Parte de estudos de caso em alguns bairros da cidade de João Pessoa, Paraíba, integrantes de uma pesquisa maior, intitulada “Medos Corriqueiros: a construção social da semelhança e da dessemelhança entre os habitantes urbanos das cidades brasileiras na contemporaneidade” (KOURY, 2000)85. O objetivo da pesquisa maior é investigar a construção social do medo no imaginário do homem comum e habitante das cidades do Brasil na atualidade tendo, como perspectiva de análise, o medo enquanto construção significativa e inerente a toda forma de sociabilidade e mesmo enquanto força organizadora do social (KOURY, 2000 e 2002a). Neste sentido o medo é visto como “... uma das principais forças organizadoras deste social”. É um sentimento que rege todo o comportamento humano, “... em toda e qualquer forma de sociabilidade o medo encontra-se presente” (KOURY, 2002a, p. 121), e faz parte de toda e qualquer experiência social. O alto nível de conflito e tensões existentes no mundo atual, onde as pessoas se sentem inseguras frente ao outro, e a própria noção do outro ressalta o estranhamento e as diferenciações entre os indivíduos e grupos. O medo, assim como a vergonha (ELIAS, 1990 e 1993), parece fazer parte e dar sentido a uma norma através da qual, o esforço para o refreamento e autocontrole dos comportamentos individuais, se constitui como elemento fundamental para as relações humanas nas sociedades ocidentais. As relações sociais são sempre permeadas por elementos de tensão e conflito e, portanto, de medo. Assim, em toda e qualquer forma de sociabilidade, o medo encontra-se presente e, como

85 Os bairros até agora trabalhados como estudos de caso são: Tambaú, Tambiá, Estados, Ilha do Bispo, Valentina, Mangabeira, Cruz das Armas.

91 afirma Koury (2000, p. 1), no projeto de pesquisa Medos Corriqueiros: “As relações entre indivíduos ou grupos se encontram sempre permeadas e se configuram e reconfiguram sob a presença direta ou indireta do medo. São, deste modo, as formas que assumem o medo, enquanto processo social geral e específico de cada relação”. O que se está querendo compreender, assim, neste trabalho, são as formas de sociabilidade que assumem determinados grupos diante de situações corriqueiras e banais, onde medos e receios podem sem pensados como pano de fundo ou constituindo a trama interna que movimenta estas relações. Desde as trocas entre vizinhança e os códigos de segredo entre iguais até a situações mais gerais movidos por categorias como a pobreza, a violência, e as diversas formas e sentimentos de instabilidade grupal e individual, estão presentes nas relações entre os moradores da cidade de João Pessoa, Paraíba. Várias são as variáveis que movimentam os caminhos analíticos, remetendo o olhar crítico às formas em que os medos corriqueiros, enquanto categoria analítica, se faz presente. A categoria medo é entendida neste trabalho, deste modo, como um fenômeno histórico e social, porque construída socialmente. As formas possíveis que o medo assume em um social qualquer o faz ser sempre singular a cada relação, não sendo, deste modo, o mesmo para todos. Embora o medo ao ser constituído como uma categoria lógica de pensamento permite, ao pesquisador social, através dela, estabelecer critérios comparativos de cada singularidade social e sua eficácia formativa entre os seus membros. O medo, enfim, é um fenômeno que varia de acordo com determinada situação, mas que se encontra presente em toda forma de sociabilidade. Este trabalho, como dito acima, busca compreender as formas de sociabilidades a partir do sentimento do medo. Parte do pressuposto de que o medo é “... uma relação social significativa para a compreensão de qualquer formação social” (KOURY, 2002, p. 171), e busca compreender como se fundam, se estabelecem e se modificam as formas de organização social, vividas por uma população específica no cotidiano, através da rede de relações de aproximação e exclusão por elas tecidas real ou imaginariamente. Redes de relações que dão suporte e arcabouço para a constituição de sentimentos e noções de pertença, de pessoa, do eu e do outro no interior desta trama. O que faz uma população, aparentemente, se apresentar como uma organização social ordeira, proporcionar elementos de uma vida comunitária e, ao mesmo tempo, manifestar-se como uma teia de relações fundada em conflitos, contradições e ambigüidades. Em outras palavras, ao tomar o medo como uma noção fundante das relações sociais, o pesquisador se permite adentrar nos aspectos morais e estéticos de uma dada cultura e dos elementos valorativos nela e por ela configurados. O que o faz levar em conta as tensões cotidianas das trocas sociais, ampliando a compreensão sobre o ethos de um povo ou população determinada, definido por Geertz (1978, p. 143) como “o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral e estético e sua disposição, é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu mundo que a vida reflete”. Ou, ainda, seguindo Geertz, sobre a visão de mundo, entendida como os aspectos cognitivos e existenciais de um povo. Em suas palavras, “...o quadro que elabora das coisas como ela são na simples realidade, seu conceito de natureza, de si mesmo, da sociedade (p. 144)”. Para Geertz, o quadro elaborado por uma visão de mundo específica, contém as idéias mais abrangentes sobre o que uma determinada população apreende sobre as noções e significados de ordem e de normalidade, bem como permite entender as diversas formas de constituição das crenças e dos rituais a que estão submetidas ou se autosubmetem, se confrontam ou confirmam-se enquanto uma singularidade sempre tensa e ao mesmo tempo mutuamente afiançada. A pesquisa Far-se-á, aqui, uma apresentação dos caminhos percorridos pela pesquisa, tendo como objeto os estudos de caso em andamento nos bairros selecionados da cidade de João Pessoa, e as condições em que estão e ou foram feitos os trabalhos de campo. Foi definido pelo pesquisador principal,

92 em um primeiro momento de aproximação metodológica e treinamento da equipe de pesquisadores associados ao GREM, trabalhar com as categorias estabelecidas por Magnani (1984, 1993, 2000 e 2002) para o estudo das cidades e populações urbanas. Era preciso ter claro, deste modo, que a noção de festa era a categoria principal e o objeto de análise de Magnani, e que seria necessário retomar as categorias metodológicas aproximativas do espaço urbano sob uma outra ótica. A ótica dos medos corriqueiros, cotidianos e banais desenvolvida pela pesquisa e, através deste ajuste, buscar identificar as categorias de Magnani nos bairros trabalhados e tentar ver se elas dariam o suporte necessário a uma visão dos bairros e de seus moradores adequada à pesquisa em curso. Concomitante as tentativas de construção de um quadro de categorias aproximativas para o trabalho com a noção de medos corriqueiros nos bairros de João Pessoa, desenvolveu-se as primeiras entradas a campo. Cada pesquisador adentrou em um bairro específico para estudo de caso, tentando especificar algumas características e espaços próprios dos bairros. Neste percurso de campo foram realizadas entrevistas e observação participante. Foi feito, também, um levantamento de dados em lugares que pudessem auxiliar na composição e compreensão de cada bairro e de suas histórias, oficiais ou imaginárias. Foram visitados órgãos públicos, como a Secretaria Municipal de Planejamento, a Prefeitura Municipal, a Câmara dos Vereadores, a Biblioteca Municipal, a Biblioteca do Espaço Cultural José Lins do Rego e a Fundação de Ação Comunitária – FAC, CEHAP - Companhia Estadual de Habitação Popular; órgãos religiosos, como a Arquidiocese da Paraíba e as Paróquias dos bairros; Institutos de Pesquisa, como o IBGE, o IHGP e o NDHIR; e ONG`s como a AMAZONA, entre outros. Construção de categorias norteadoras Magnani, em seus diversos textos, configura o espaço urbano não apenas como um espaço com a funcionalidade de circulação, mas enquanto um espaço de sociabilidades. Esta perspectiva é a mesma utilizada pela pesquisa Medos Corriqueiros. Para discutir o espaço urbano como um espaço de sociabilidades, o autor elabora quatro categorias distintas para pensar a cidade. As quatro categorias por ele elaboradas são denominadas de pedaços, manchas, trajetos e pórticos. A categoria pedaço compreenderia o espaço intermediário entre o privado e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas, impostas pela sociedade. Ou seja, aqueles laços encontrados no âmbito da vizinhança, onde todos se conhecem e estão entre os considerados iguais e que funcionam como ponto de referência para os sentidos e sentimentos de pertença. As manchas, por sua vez, formam uma categoria caracterizada por espaços ocupados pela função de lazer e encontros, propostos ou dispostos em lugares específicos de uma sociedade, de um bairro ou de uma comunidade. Os espaços abarcados pela categoria de manchas, no entender do autor, seriam pontos de referenciais físicos de um determinado lugar, freqüentados, conhecidos ou apontados por uma população determinada. As categorias de trajetos e de pórticos se constituem enquanto lugares não pertencentes aos pedaços e as manchas, sendo considerados como lugares perigosos, sombrios, onde muitas vezes faz-se mister cruzar rapidamente, sem olhar para os lados (Magnani, 2002, pp. 20 a 25). Dentro dessa perspectiva, a pesquisa partiu para a coleta de informações capaz de elencar e organizar as categorias elaboradas por Magnani nos bairros escolhidos para estudos de caso na cidade de João Pessoa. Através de visitas aos bairros, das configurações das suas fronteiras, reais e imaginárias, internas e com os outros bairros, e em relação com o município de João Pessoa como um todo, dos traçados de moradias e equipamentos neles dispostos, de dados populacionais e institucionais e de conversas com seus moradores e transeuntes, se começou a elaborar um mapeamento de cada bairro visando à compreensão da cotidianidade neles imersas, tendo o conceito de medos corriqueiros (Koury, 2000 e 2002a) como núcleo fundamental de investigação.

93 Os bairros trabalhados foram divididos em dois grupos a partir de critérios sócio-econômicos situados a partir de uma representação da cidade como todo. Os bairros de Cruz das Armas, Ilha do Bispo, Mangabeira, Tambiá e Valentina, deste modo, fazem parte do grupo de bairros populares, e os bairros de Tambaú e Estados do grupo de bairros de classe média e média alta da cidade de João Pessoa. Na primeira análise comparativa entre os diversos estudos de caso foram encontradas algumas semelhanças e diferenças entre os dois grupos de bairros estabelecidos previamente. Os bairros populares se caracterizariam, em uma primeira instância, por ainda pautarem o seu cotidiano e as suas formas de relações sociais e sociabilidades em elementos que remetem a modos de vida mais tradicionais. Onde a idéia de comunidade aparece mais fortemente e, se si amplia-se às categorias de Magnani para um espaço maior do que elas pretendem situar-se, e se si estabelece uma forma comparativa an passant com os demais bairros da cidade, os bairros populares da cidade de João Pessoa parecem supor e comportar bem a categoria de pedaço estabelecida por Magnani e reutilizada aqui sob uma visão de possibilidades de sociabilidade pautadas na lógica conceitual dos medos corriqueiros trabalhados por Koury e por este trabalho. Nesses bairros é comum se encontrar moradores dispondo cadeiras ou ocupando espaços de conversas nas calçadas, uma intensa movimentação de vizinhança, uma ampla rede de solidariedade e de amizade. O que não se quer dizer que tudo são flores, mas que toda esta lógica do pedaço coloca os moradores em uma estreita relação cotidiana. O que os fazem próximos, no sentido da solidariedade e troca afetiva de amizades e compadrio, mas, ao mesmo tempo, no interior desta lógica comunitária, submetidos a relações tensas, oriundas desta mesma proximidade. Brigas entre vizinhos, por motivos vários, dificuldade de delimitação de espaços privados, todos se conhecem e tudo o que se passa fica conhecido por todo o bairro, inveja, mágoas e desafetos, entre outras formas de expressão de tensão fazem parte desta mútua relação de respeito e antagonismo presente em todas as formações onde a proximidade entre os pares das relações são intensas. Esse ethos comunitário presente nos bairros populares aqui trabalhados, em estreita associação com a visão de mundo presentificada nas relações entre si e com a cidade e país mais geral parecem permitir aos moradores a elaboração de uma autodefinição de si mesmos e dos outros guiados por uma lógica moral, e pautados nos conceitos de honestidade, de honra e de compadrio, sobretudo diante da onda de violência que se expande na cidade e no país, e de que são vítimas, tanto das visões estigmatizantes vinda de fora, da cidade, e das organizações policiais e da mídia, tanto quanto pela presença do crime organizado neles entranhado. O que leva, muitas vezes, esses laços de proximidade e solidariedade serem regados pelo sentimento do medo e de estranhamento do seu próximo. Dando origem a uma lógica meio perversa de que o outro, em potencial, é sempre possível de ser melhor ou pior do que o eu que reflete ou informa. Criando um espaço de desconfiança e solidão nas trocas entre os moradores, o que provoca uma ambivalência nas relações entre os iguais, e uma visão de inferioridade frente aos outros próximos ou distantes (KOURY, 1986, 1988 e 1994 e SARTI, 1994). Já o grupo de bairros elencados como de classe média e média alta possuem características especificas diferentes das anteriormente mencionadas. Nesses bairros o anonimato (SIMMEL, 1987) parece ser, em uma primeira aproximação, o principal elemento de identificação. Ë comum se encontrar muros altos e porteiros eletrônicos. No interior do espaço privado, constituído pelo âmbito das moradias, casas ou apartamentos, os seus moradores parecem buscar isolarem-se e criar uma rede de proteção sob o estigma de uma cultura do medo que se espalha e parece passar a ditar o cotidiano do brasileiro médio. A categoria de pedaço, aqui também visualizada de uma forma mais ampla que a utilizada por Magnani, parece, em um primeiro momento, não existir entre os moradores dos bairros que compõe esse bloco.

94 No que diz respeito à categoria de mancha, estabelecida por Magnani, identificamos a sua presença, nos bairros populares, de forma reduzida, com algumas exceções, contudo. Como a identificada no bairro de Mangabeira, onde é possível escolher dentre vários espaços de suporte de sociabilidades destinados às práticas de lazer e comércio, que comportam pessoas não apenas do bairro, como de toda a cidade. Embora, dentro de uma lógica mais aproximativa, é possível perceber em cada bairro popular uma rede informal de comércio e espaços de lazer que podem vir a ser caracterizada como manchas. Pontos de encontro específico de cada local onde a freqüência determina uma singularidade e demarcam referenciais precisos de ocupação por grupo de pessoas, faixa etária, tipos de atividade, etc. Assim, ligas de dominós, feiras semanais ou diárias, associações ou clubes comunitários, pátios e interiores de igrejas, praças, pontos de paquera, festas comunitárias ou de grupos específicos, pontos de venda e consumo ambulantes de produtos de lazer ou de utilidades em geral, entre tantos outros aspectos fazem parte do registro de territorialidades e sociabilidades permitido pela categoria de mancha no espaço da cada bairro popular. No grupo de bairros classificados como de classe média e média alta as manchas aparecem de forma mais intensa e visível, pelo fato de aparecerem enquanto um reduto de comércio e lazer para a cidade como um todo. Como é o caso do bairro de Tambaú. Ao se referir às categorias de pórticos e trajetos, e sua utilização para a pesquisa sobre os medos corriqueiros, é necessário trazer o conceito de estigma, utilizado por Goffman (1988), para uma melhor compreensão das categorias. Principalmente na discussão goffmaniana da noção de manipulação da identidade deteriorada. Goffman define estigma como um tipo especial de relação entre atributo e estereotipo. Atributo seria os meios de categorizar as pessoas, tanto negativamente, como afirmativamente e estereotipo seria a identificação do indivíduo a esse atributo. Quando os indivíduos se apresentam com atributos que os distingue dos outros e que, através deles se tornam pessoas diminuídas ou socialmente inferiores, eles são portadores de estigmas. O que parece gerar um indivíduo inabilitado para o exercício de seus papéis sociais e com dificuldade de aceitação social plena. O conceito de estigma discute o processo formativo e as formas de autoenxergar-se e ser visto pelo social mais amplo, ou por um outro indivíduo ou grupo particular, como um indivíduo marcado e que deve ser evitado ou submetido a um olhar piedoso. Neste sentido, os trajetos e os pórticos são trabalhados aqui como lugares sombrios e liminares, que fogem do conforto do já conhecido, e constituem o que Goffman chamou de estigma. Lugares desacreditados, socialmente inferiores, ou seja, diminuídos e, portanto, portadores de estigma. As categorias de pórticos e trajetos vistos desta forma são importantes para a pesquisa porque permitem situar espaços que, historicamente falando, se confundem e se misturam dentro e fora dos bairros, no imaginário ou no cotidiano das práticas dos seus habitantes. O que permite uma discussão sobre os significados das noções de semelhança e de dessemelhança entre os habitantes de cada bairro estudado, dentro de uma visão interna ao próprio bairro, ou na configuração de uma relação do bairro com os outros bairros ao redor, ou em relação com a cidade como um todo. Nesse sentido, pórticos e trajetos são categorias presentes nos dois grupos de bairros analisados, e importantes para a análise das formações imaginárias e reais das sociabilidades inerentes a formação de cada bairro e sua relação com a cidade mais geral. Conclusão Este trabalho discutiu os primeiros passos de uma pesquisa em alguns bairros da cidade de João Pessoa, Paraíba, que tem por objetivo compreender as formas de sociabilidade e o uso do espaço sob a ótica do medo no urbano contemporâneo. Tem como perspectiva de análise, o medo enquanto construção significativa e inerente a toda forma de sociabilidade, partindo do

95 pressuposto de que a análise dos medos corriqueiros permite a compreensão das redes de relações que dão suporte e arcabouço à constituição de sentimentos e noções de pertença, de pessoa, do eu e do outro no interior desta trama social. Cada pesquisador adentrou em um bairro específico, tentando especificar algumas características e espaços próprios dos bairros, usando as categorias analíticas elaboradas por Magnani para trabalhar com a problemática das festas em um contexto urbano, ajustadas e adaptadas à ótica dos medos corriqueiros desenvolvida pela pesquisa maior. Os bairros trabalhados foram divididos em dois grupos, a partir de critérios sócio-econômicos e, através deles, procurou-se compreender e discutir-se o ethos presente e característico a cada um dos bairros trabalhados, em relação estreita com suas visões de mundo, tal como conceituadas por Geertz. Bem como as noções de estigma e vergonha elaborados por Goffman e Elias como inerentes ao imaginário que impulsionam as relações entre os habitantes locais e da cidade como um todo. Para isso, foi preciso ter em vista que cada bairro, apesar de poder ser pensado como uma entidade autônoma, sua autonomia só podia ser compreendida relacionada a cidade de João Pessoa em sua totalidade, e mesmo, dentro de um contexto mais amplo, ao país como um todo. Estas aproximações teórico-metodológicas permitiram adentrar nas relações traçadas por cada morador e por cada bairro entre si e com a cidade e país mais geral. O que conduziu a uma chave compreensiva do processo de elaboração de uma autodefinição de si mesmos e dos outros, - definidos dentro de planos reais ou abstratos, - guiado por uma lógica moral, ética e social construídas internamente em cada bairro. Autodefinições referenciadas de um modo claro ou não, mas que se encontram em constante inter-relação com a sociedade mais ampla onde estão inseridos, seja como pessoa, morador, ou seja, como um bairro típico local. Permitiram, enfim, a compreensão do processo formativo dos laços de proximidade ou de ameaça ou intimidação, em cada bairro, com visões de mundo onde se inter-relacionam as experiências do cotidiano vivido por seus moradores, cruzadas com as informações trazidas de fora para dentro de cada bairro. Onde cada experiência pessoal ou comunitária específica aparece em um processo de redefinições vividas de forma ambígua e ambivalente em sua troca local ou com os outros de fora, regada pelo sentimento do medo e de estranhamento do seu próximo. O que parece criar espaços de isolamento e uma rede de proteção sob o estigma de uma cultura do medo que se espalha e ameaça ditar o cotidiano de cada morador e de cada bairro, nas suas trocas internas ou com a sociedade mais ampla (VELHO, 2000 e 2000a). O que leva a pesquisa, enfim, para uma discussão sobre os significados das noções de semelhança e de dessemelhança entre os habitantes de cada bairro estudado, dentro de uma visão interna ao próprio bairro, ou na configuração de uma relação do bairro com os outros bairros ao redor, ou em relação com a cidade como um todo.

96 BIBLIOGRAFIA

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SARTI, Cynthia Andersen. Ambivalência entre iguais: uma discussão sobre a moral dos pobres. Trabalho apresentado no XVIII Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, 1994.

97

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98

TERCEIRA PARTE:

Arte, Emoção e Formas de Sociabilidade.

99 A Estatuária Funerária no Brasil: Representação iconográfica da morte burguesa

Maria Elizia Borges

A presente comunicação objetiva, num primeiro momento, uma reflexão sobre a importância do estudo da arte funerária no Brasil, no período denominado por Michel Vovelle a ‘era de ouro dos cemitérios’ (1890-1930), caracterizada pela afirmação do luto burguês. Abordaremos os cemitérios convencionais secularizados das grandes cidades das regiões Norte e Nordeste do país, que preservam em seu território esculturas detentoras de uma iconografia folclorizante e ao mesmo tempo erudita, revelando representações estereotipadas, dotadas de funcionalidade, de valor artístico, simbólico e religioso. Faremos uma leitura das imagens contidas nos temas e motivos da morte burguesa associados ao sofrimento ocasionado pela perda do ente querido. Trata-se de uma leitura que atesta o caráter interdisciplinar desse tipo de pesquisa, embasada nos postulados da história da arte e da história das mentalidades, além do viés etnográfico da antropologia da emoção. Selecionamos, para este momento, da estatuária sagrada, a pranteadora; da estatuária profana, o patriarca e a família burguesa diante do túmulo e de ornamentos expressivos, cruzes, urnas, colunas partidas, mãos e coroas de flores, que delineiam um verdadeiro sistema iconográfico de cunho religioso e emocional, facilmente assimilado pelo público leigo. Essas são imagens que reforçam o sentimento de perda e de dor, cristalizado no fim do século XIX e início do século XX. A sociedade burguesa, para se afirmar, sentir-se individualizada e única, passou a encomendar a escultores e artistas-artesãos obras que expressassem seu gosto e suas pequenas fantasias advindas do “inconsciente coletivo” (Ariès, 1977). Adotando padrões estéticos convenientes a arte funerária contribuiu para desenvolver um ideário estético determinado. Como exemplo, citamos o neoclássico, o ecletismo, o “art-nouveau”, o “art déco”, estilos artísticos que serviam de modelo e de orientação para a formação do gosto estético da população (BORGES, 2002). Ao mesmo tempo, essas construções tumulares estão imbuídas de signos que expressam valores religiosos e socioculturais de fácil assimilação. Enfim, a arte funerária burguesa misturou com harmonia os símbolos cristãos e profanos que despertam nos sobreviventes o mais profundo e significativo sentimento.

UMA FONTE DE PESQUISA INESGOTÁVEL

Nosso interesse pelo estudo da arte funerária no Brasil advém da preocupação de preencher uma lacuna da historiografia artística, que se mantém mais atenta à qualidade estética da obra e à iconografia das elites e dos estetas. Quando optamos por essa linha de pesquisa há 20 anos, tínhamos consciência dos nossos limites e possibilidades. Atualmente, esse assunto continua sendo estudado ainda de maneira tímida. Não obstante, é possível observar uma crescente vitalidade das pesquisas, com excelentes contribuições de historiadores, sociólogos, folcloristas, geógrafos, arquitetos e historiadores da arte. Do ponto de vista da história da arte, esse tipo de produção oferece uma documentação vasta, porém dispersa e prestes a desaparecer. Pesquisar

100 arte funerária significa abarcar um tipo de fonte menos convencional, a fim de detectar a relação dialética entre as condições objetivas da vida dos homens e a maneira como eles a narram, vivem e expressam concretamente nos artefatos funerários. O universo abrangido nessa comunicação é o conjunto de documentos fotográficos de túmulos dos cemitérios instalados em algumas capitais do norte e nordeste do país: São João Batista, em Manaus; Santa Isabel e São Benedito, em Aracaju; São José e Nossa Senhora da Piedade, em Maceió; Santo Amaro e Dos Ingleses, em Recife. Esse registro formou-se de modo aleatório, isto é, conforme o surgimento de oportunidade de visitar e documentar esses locais. De cada sítio funerário procuramos registrar os túmulos considerados peculiares, representativos do seu entorno e/ou que expressem claramente os valores desse tipo de produto quanto ao apuro artesanal e artístico. Toda essa documentação consta do inventário informatizado que estamos organizando desde 1996, na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia. Esse banco de dados faz parte do Projeto Integrado de Pesquisa – Arte Funerária no Brasil, apoiado pelo CNPq (BORGES, 1999a). No livro Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros (VALLADARES, 1972), encontramos uma pequena historiografia de dois dos cemitérios documentados na presente pesquisa: Cemitério de Santo Amaro. Foi inaugurado em 1851, próximo ao antigo Cemitério dos Ingleses, no caminho que levava à cidade de Olinda. O plano urbanístico é de autoria do engenheiro, arquiteto e urbanista francês Louis Léger Vauthier e de sua equipe. Lá estão enterrados barões, políticos, “novos ricos”, escravos e menos abastardos do estado de Pernambuco. A planta é composta por alamedas que convergem para a praça, onde está sediada uma grande capela. Formam-se, assim, quadras poligonais e triangulares cujas orlas são ocupadas pelo loteamento de jazigos nobres ou por mausoléus coletivos de irmandades, ficando as áreas centrais reservadas para as covas rasas. O seu paisagismo contém palmeiras imperiais na entrada, além de árvores nativas, como jambeiros e mangueiras, plantadas de tal forma que se pode detectar o contraste entre as grandes massas de verdes com os túmulos monumentais e as sepulturas caiadas. (VALLADARES, 1972, p. 1103). Cemitério Nossa Senhora da Piedade. As lápides mais antigas datam de 1867, data provável de sua instalação. Seu traçado resultou na formação de quadras em que se aglomeram túmulos de alvenaria e de mármore, proveniente de Lisboa. Despertou, na época, um profundo sentimento de modernização por adotar, nas balaustradas, nos vasos, na iluminação e na capela, elementos da arquitetura neoclássica portuguesa (VALLADARES, 1972, p.1267). O mesmo ocorreu com o Cemitério São José, ambos no estado de Alagoas. A documentação fotográfica permite apontar algumas peculiaridades dos demais cemitérios investigados. Os cemitérios da cidade de Aracaju, estado de Sergipe, primam pela simplicidade e pelo número elevado de lápides sobrepostas, que formam paredões extensos. O mesmo ocorre com o Cemitério dos Ingleses em Recife, com lápides bem elaboradas, encostadas no muro do cemitério. Já o Cemitério São João Batista, instalado numa das cidades mais quentes do país, Manaus, estado do Amazonas, cultiva no seu paisagismo o cipreste, árvore comum em cemitérios e típica de clima frio. Isso se deve ao valor simbólico dessa árvore, sempre associada à morte, pois suas folhas escuras em forma de filetes, uma vez cortadas, nunca brotam novamente (BORGES, 20002, p. 298). Todos esses cemitérios remontam aos campos-santos do século XVII, que ocupavam o espaço em torno da igreja. Era aberto e integrado à estrutura urbana da cidade, prestando-se a diversas funções, como local para sepultamento, feira e mercado. A partir do século XVIII o cemitério passou por transformações, tornando-se extra-urbano, como o caso desses cemitérios. Deu-se uma reestruturação em seu recinto, passando a existir um entrelaçamento arquitetônico e naturalístico na sua geografia.

101 Os cemitérios convencionais secularizados podem ser identificados com base em alguns parâmetros que são comuns a todos eles: Analogia com a cidade. O lugar reservado ao morto está circunscrito a um recinto que reduz o seu limite ao muro. O portal causa solene impacto na entrada principal da necrópole e reforça a característica de ser uma instituição fechada. Em seu loteamento a céu aberto, as carneiras estão dispostas nas quadras, umas após as outras. Pode-se dizer que se trata de uma cidade em miniatura, com vias de acesso a um prédio principal, polarizador do espaço interno, que pode ser uma capela coletiva e/ou um cruzeiro. Como local público, o cemitério visa ao bem-estar coletivo e está imbuído de razões cívicas e religiosas. Graças a ele, a pequena burguesia consolida o direito à individualização também na morte. E as sepulturas passam a ser a personalização do indivíduo pós-morte. Discriminação social. Ocorre no momento em que os familiares escolhem o cemitério para enterrar o morto. A seleção é realizada levando-se em consideração alguns requisitos como: localização geográfica, número de amigos e parentes enterrados ali, medida das carneiras, valor do terreno e, o mais importante, o status que a necrópole confere perante a sociedade vigente. É voz corrente a distinção existente entre as pessoas enterradas nos cemitérios São José, mais simples, e no de Nossa Senhora da Piedade, mais sofisticado, em Maceió. Cabe à classe privilegiada adquirir os lotes mais bem localizados e mais caros do cemitério, como nas avenidas e alamedas que normalmente conduzem à capela. Citamos como exemplo a localização privilegiada do jazigo-capela de Joaquim Nabuco, no Cemitério de Santo Amaro, em Recife. Enfim, compra-se para o morto uma casa perpétua, de bom valor monetário, com escritura, nome e endereço. Para firmar essas prerrogativas, os poderosos burgueses das regiões Norte e Nordeste construíam túmulos sofisticadíssimos, monumentais, verdadeiros edifícios luxuosos com materiais perenes, como o mármore, procedente de Portugal e da Itália. Preocupavam-se com o conforto e a beleza das construções, a ponto de estas se tornarem verdadeiras obras de arte, nas quais imperava o gosto eclético. Tudo era realizado para enaltecer e preservar a individualidade do morto. A classe média, por sua vez, tenta agrupar seus mortos no interior das quadras com túmulos cujos modelos são produzidos em série e baseados na cópia dos padrões elitistas. As fossas comuns nas mediações dos muros do cemitério são destinadas à massa dos menos favorecidos. Esta subdivisão de espaço processa-se naturalmente, à semelhança do que ocorre com a estrutura social baseada na divisão em classes que compõem o mundo burguês dos vivos. Vê-se que há mortos e MORTOS ocupando o mesmo local, mas de maneira diferente. Impregnação naturalista. Embora haja alta densidade de construções no interior desses cemitérios, a arborização sempre existirá. Retomamos aqui a atenção dada às árvores nativas na maioria dos cemitérios do Norte e Nordeste; e as árvores típicas do local. Em geral, elas se acham dispostas geometricamente por entre as alamedas e avenidas. O caráter naturalístico da necrópole tem várias justificativas: o pretexto da higiene, a busca de um elemento de alegria no repouso dos mortos, a intenção de transformar o lugar num verdadeiro belvedere (a exemplo dos cemitérios oitocentistas dos países nórdicos). O cemitério convencional secularizado tornou-se “uma instituição cultural”, além de religiosa. Faz parte da invenção moderna, compartilha da reestruturação da sociedade que, desde o tempo em que ele surgiu (século XVIII), trabalha com o confronto dialético de duas realidades conceituais de vida: a cidade dos mortos e a cidade dos vivos. Com referência à cidade dos vivos, a burguesia preocupou-se com novos modelos gerais de urbanização e com novas tipologias de serviços, como residências, escolas, teatros, hospedarias e fábricas. As construções, numa primeira instância, visavam ao bem-estar coletivo e ao progresso, surgindo com o progresso econômico do ciclo da borracha, da cana-de-açúcar. Quanto à cidade dos mortos, a burguesia sentiu-se no direito de construir uma arquitetura funerária que refletisse, além de seu gosto,

102 também algo de suas fantasias. Assim, reproduz em miniatura, os tipos arquitetônicos da cidade ideal, construída de catedrais e túmulos suntuosos (VALERIANI, 1984, p. 40-48). A efervescência narcisista, típica da burguesia, levou a nova classe a querer registrar suas particularidades nos cemitérios que se tornaram o local propício para: perenizar o individualismo do homem, recém-valorizado após a morte; romper o anonimato das pessoas que passam a promover-se, distinguindo-se dos demais; adquirir propriedades perpétuas, cabendo aos homens poderosos o melhor quinhão, também, de vida eterna. Os cemitérios atestam, ainda hoje, o alto padrão social das famílias burguesas que se aglomeram nesse habitat póstumo. Um orador de 1848 explicita bem a necessidade burguesa de perenizar-se ao dizer que “ninguém esquecerá jamais o local onde o pai e os amigos estão enterrados, se esse local tiver o encontro que comove o coração e satisfizer o gosto, e se a terra que os contém não tiver outro atrativo, ela será sempre querida aos vivos por esta razão” (ARIÈS, 1982, p. 564).

A MORTE, O MORTO E A ARTE FUNERÁRIA

Para os grandes estudiosos da morte, Phillipe Ariès e Michel Vovelle, as atitudes diante da vida e da morte sofreram grandes oscilações no transcorrer da história. Para o primeiro, a morte é “dependente de motores mais secretos, mais subterrâneos, no limite do biológico e do cultural, ou seja, do inconsciente coletivo” (Ariès, 1977, p. 180). Além de admitir a importância do inconsciente coletivo, Vovelle tende a dar um peso maior para os costumes (1987, p. 129). Estão incluídos, nesse caso, as doutrinas religiosas, as filosofias morais e políticas, os efeitos psicológicos tanto dos progressos científicos e técnicos como dos sistemas socioeconômicos. Pode-se dizer que eles seguem caminhos muito próximos e divergem quanto às interpretações. Vovelle, baseado na história das mentalidades, instiga a pesquisa sobre os vestígios que a morte deixa. Para ele, as fontes iconográficas e arqueológicas têm uma importância tão grande quanto o discurso formal. A história da morte é também uma “história de silêncios” (Vovelle, 1987, p.130- 131). Hoje, mais do que nunca, a morte é a musa, discutida por várias áreas do conhecimento. Trata-se de um tema inesgotável e tão importante nos dias atuais quanto foi antes do final do Romantismo. Outros parâmetros norteiam, agora, o significado da morte, extrapolando o sentido da morte física. Daí a dificuldade em determinar os limites de um assunto tão abrangente, que requer uma abordagem interdisciplinar. A história da morte deve ser concebida de maneira vertical, segundo observa Michel Vovelle. Para ele, há a “morte consumada” e a “morte vivida”. A primeira consiste no fato bruto da mortalidade, cujo valor é difícil de ser apreciado, pois é determinado por vários referenciais, como o período histórico, a localização geográfica (cidade ou campo), as diferenças entre os sexos, as diferenças etárias sentidas desigualmente. A morte vivida é a rede de gestos e de rituais que acompanham o morto e seus familiares desde o percurso da última enfermidade até a agonia, ao túmulo (Vovelle, 1987, p. 130-131). O homem é o único ser que reconhece suas próprias condições de vida, seus limites e adquire a consciência da morte. Normalmente, ao reconhecer a morte do próximo, o sobrevivente tem a consciência do próprio destino. Embora não tenha como experienciar a morte do outro, o homem chega ao estado de angústia e de apreensão, pois essa morte ajuda-o a penetrar na dimensão do fenômeno. Na definição clássica, a morte é tratada como “um fato natural, assim como o nascimento, a sexualidade, o risco, a fome, a sede, e, como tal, é transclassista” (Maranhão, 1986, p. 20). Admite-se, num primeiro instante, a igualdade pré-social do homem diante da morte; todavia, existe a desigualdade que se assenta na organização da sociedade de classe a que pertence o

103 morto. Os sobreviventes buscam uma “morte cultural” para os seus entes queridos, expressa por meio do ritual fúnebre, do sepultamento e do luto. Pierre Chaunu afirma que se pode avaliar uma sociedade e definir sua cultura à medida que se conhece o seu sistema de morte (Vovelle, 1987, p.129). Apenas a dimensão biológica da morte remete à absoluta igualdade entre os homens, nivelando-os ao mesmo destino. Desse modo, a arte funerária, embora seja considerada por muitos como documento “indireto”, possui, sem dúvida, um discurso simbólico, metafórico de grande valia para a compreensão da morte. Quando o indivíduo se transforma em morto, deixa marcas profundas no contexto social que o abrigava. Ele continua a participar intensamente da vida cotidiana de seus familiares ou adeptos, em razão dos novos referenciais que adquiriu com a morte. O morto é geralmente transformado numa pessoa exemplar, o modelo a ser seguido pelas gerações futuras; seus pertences pessoais, fotos e lembranças passam a ser resguardados; o túmulo perpétuo será visitado, ao menos no dia de Finados e embelezado com flores e velas; nas festas familiares, ele sempre será lembrado com saudades. Entretanto, a relação entre o morto e seus descendentes sobreviventes vai-se esvaecendo aos poucos, alcançando, quando muito a terceira geração ascendente. Hoje, os túmulos do fim do século XIX e início do século XX encontram-se nas mãos dessa geração. Daí estarem eles em estado sofrível e/ou descaracterizados. A morte passou a adquirir, depois do século XVIII, um sentido novo: de exaltação, de desejo e de dramatização aplicada, antes de tudo, à morte do outro. Isso conduziu a um novo conceito da morte, a “morte burguesa”, a qual se acha representada nos cemitérios pesquisados. Michel Vovelle afirma que a concepção da morte burguesa passou por várias etapas na Europa. A primeira delas abarca o período de 1770 a 1820, denominada fase constitutiva, época em que a morte burguesa estava se estruturando como sistema e seus traços estavam se ordenando. Já a etapa de 1900 a 1914 foi fruto da crise profunda dos valores burgueses, que tomou conta do Ocidente desde o fim do século XIX. Esse momento histórico coincide com o período áureo dos cemitérios que integram esse registro. A morte apareceu no século XIX, como “reflexo de uma sociedade, porém como um reflexo ambíguo” (Vovelle, 1987, p.148). Acontecimentos históricos anteriores contribuíram para as grandes mudanças por que passou a morte burguesa. A Revolução Francesa, por exemplo, firmara na França, uma nova moral, baseada na sublimação pelo heroísmo ou pela vitória sobre a morte. No Brasil, essa transculturação sucedeu de forma distinta em cada região, isto é, no exato momento em que cada localidade incorporou-se ao espírito de modernização. Aos poucos, a atitude do homem diante da morte tornou-se eminentemente um discurso de abrangência mais social. Num primeiro momento, o burguês fez uso da simbologia religiosa para provar a si mesmo o grau de fé advindo da formação cristã. Entre os símbolos cristãos mais freqüentes, que têm a função de ornamentar e causar comoção ao túmulo, citamos as cruzes. É um dos mais velhos e universais de todos os símbolos, por agregar o emblema da expiação, da salvação e redenção do Cristianismo. Detectamos muitas e variadas formas de cruzes: a cruz latina – desde as mais improvisadas, como as de madeira, às mais elaboradas, como as de mármore, adornadas com monograma de Cristo, com a coroa de flores e com lírio. E, um caso raro em nosso levantamento, a presença da cruz ortodoxa russa e uns poucos exemplos da cruz presbiteriana. Podemos considerar também relevantes, dentro da simbologia religiosa, as coroas de flores, por ser um indicativo de alegria divina. São comumente empregadas para representar a vitória da alma humana sobre o pecado e a morte. Elas são compostas de várias flores, como rosas, lírios, margaridas e azevinhos, geralmente arrematadas por um laço de fita. Pelos exemplos aqui apresentados, pode-se distinguir o caráter primoroso e diferenciador da artesania importado pela sociedade portuguesa da italiana. As coroas de flores também contribuem para reforçar a melancólica beleza dos túmulos, um sentimento herdado do Romantismo.

104 Destacamos os exemplos de túmulos ornamentados com mãos postas, que simbolizam o gesto da prece ou da súplica do perdão de Deus, e com as mãos dadas, que exprimem a busca da paz. Nesses gestos, fica corporificada a nossa emoção e sensação diante da fé cristã (NOGUEIRA, 2002). Os símbolos cristãos, além de serem muitos, ainda agregaram imagens provenientes da Antiguidade clássica, como a representação da urna e da coluna partida. A primeira, imagem convencional do túmulo, normalmente vem apoiada em uma base com pés que representam patas de leão estilizadas. As tampas desses ataúdes exibem alguns cuidados especiais: são ricamente adornadas com folhas e flores – diríamos até se tratar de um “verdadeiro porta-jóias” que guarda relíquias. A segunda está associada à interrupção da vida. Ela é sempre dotada de ornamentos complementares. Normalmente, as colunas partidas são instaladas no topo do túmulo. As imagens profanas vão-se sobrepondo às cristãs, pois elas se prestam a reforçar os valores do cidadão civil, um homem tido como rico, bom, generoso, que necessita ocupar um lugar de destaque na sociedade vigente. Elas interpretam uma nova iconografia de espécies seculares, impróprias para as igrejas, mas que pulverizam os cemitérios com imagens de extremo realismo. Para exemplificar esse gênero de escultura funerária, citamos: O busto do patriarca. Reproduz a imagem do morto de modo idealizado, conforme os postulados da arte neoclássica e com isso agrada aos seus familiares. Aparece sob forma de alto-relevo ou nos medalhões ovalados, em baixo-relevo. Ele tem como objetivo celebrar a memória do vulto morto. Inicialmente, o busto servia como máscara da vaidade burguesa e do espírito de classe, pois só era destinado àqueles que tinham destaque no mundo político, econômico, social e cultural. Citamos aqui os bustos de Joaquim Nabuco, Othon Bezerra de Melo e Manuel Borba, no Cemitério Santo Amaro. O mesmo significado tem a representação da pessoa de corpo inteiro, como de Agamenon Magalhães, no referido cemitério. Aos poucos, banalizou-se seu emprego, de tal forma que ele foi perdendo o sentido que outrora lhe fora atribuído. A família diante do túmulo. Trata-se do encontro póstumo imaginário entre vivos e mortos, em que a família se reconstitui conforme a imagem ideal que faz de si mesma (VOVELLE, 1987, p. 336). Os casos aqui apresentados são de filhos, filhas e pais que choram e visitam seus entes queridos. Eles aparecem em atitudes e trajes bem detalhados e realistas. E, para completar nossa breve análise, entre essas imagens de um cerimonial da morte, apresentamos dois exemplos, considerados raros em nossas pesquisas: a iconografia da criança enferma e do túmulo, ambos em baixo-relevo. Todos esses túmulos são provenientes de marmorarias italianas e portuguesas, conforme atesta Valladares (1972). No contexto da sociedade burguesa, a morte também passou a ser mais um elo no processo de coesão familiar. Por meio de uma comunicação oral, o moribundo passou a delegar aos familiares parte dos poderes que havia, ciosamente, exercido até então. Um exemplo disso são as mudanças ocorridas no modo de se fazer um testamento, a partir da segunda metade do século XVIII. Para Vovelle, essa laicização é mais um sinal de descristianização da sociedade. Já Philippe Ariès, para tal fato tem uma outra explicação: “o testador separou suas vontades concernentes à transmissão de sua fortuna daquelas inspiradas por sua sensibilidade, devoção e afeições” (ARIÈS, 1977, p. 44). O momento da morte tornou-se muito importante para a família, que participa do ato numa relação fundada no sentimento, na afeição. A dor da perda do ente querido passou a ser extravasada literalmente, o que reforça uma intimidade maior entre o morto e sua família.

105 UM SENTIMENTO PECULIAR

Na feitura dos túmulos, como já dissemos, reproduziam-se ou importavam-se modelos adotados por marmorarias européias. Logo, é praticamente impossível identificar a caligrafia plástica de um marmorista ou de uma marmoraria dessas localidades, pois em geral as atitudes e os atributos são similares e repetitivos. Nos cemitérios estudados estão assentados túmulos vinculados aos estilos neoclássico, realista, eclético art déco e art nouveau, já defasados e alterados, de acordo com as contingências locais. Na realidade, apropriava-se de estilos artísticos já codificados, que se fundiam pela ação dos marmoristas e se popularizavam na sociedade local, de forma democrática e sem conflito. A maioria dos monumentos aqui apresentadas fatalmente se repete nos cemitérios das grandes metrópoles mercantis e industriais do país. Alguns desses puderam, por ventura, chegar a servir de renovação estética da época. Com base em entrevistas realizadas com marmoristas do período, podemos afirmar que eles conduziam a produção funerária de maneira especial. Transmitiam aos seus aprendizes e empregados uma mensagem de valor moral e espiritual, cada vez que um túmulo ou um altar de igreja seria confeccionado, diferenciando assim das demais encomendas. Implicava realizar uma obra de arte de real beleza, mas, sobretudo um objeto religioso que exigia maior respeito (BORGES, 2002, p. 289). Vê-se que o objeto funerário “joga” com as emoções de quem o produz e com as de quem o adquire (NOGUEIRO, 2002). Assim, podemos afirmar que a arte funerária apresenta um universo cultural próprio: é intemporal, foi feita no passado e sobrevive ao presente; é transmissora de significados peculiares, pois reflete a cultura emocional da época, o gosto dominante do grupo social de que procede e tem uma função ideológica relacionada com a ideologia da sociedade burguesa. Está imbuída de forte carga simbólica, pois nada é incorporado ao conjunto de modo aleatório. Diante do monumento funerário, podemos detectar seu significado artístico, religioso e moral; podemos tocá-lo, sentir sua textura, verificar o brilho dos cristais do mármore, reconhecer sua forma, sua função e, sobretudo emocionarmos. Enfim, a arte funerária tem uma abrangência maior do que se supõe. Está incorporada à história, ao contexto cultural, à experiência e à comunicação corporal (NOGUEIRA, 2002). No silêncio, os símbolos presentes nos túmulos, produzidos com certo gosto artístico, despertam em seus visitantes os mais profundos e significativos sentimentos.

106 BIBLIOGRAFIA

ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

______.O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. 2v.

BORGES, Maria Elizia. Arte funerária no Brasil. In: X Encontro Nacional da ANPAP, 1; 1999, São Paulo. Anais 99. São Paulo: PND Produções Gráficas, 1999. p. 142-147.

______. Arte funerária no Brasil (1890–1930): ofício de marmoristas italianos em Ribeirão Preto / Funerary Art in Brazil (1890- 1930): Italian Marble Carver Craft in Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002.

______. Imagens devocionais nos cemitérios do Brasil. In: XI Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 2001, São Paulo. CD-ROM: ANPAP na Travessia das Artes.

MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é morte. São Paulo: Brasiliense, 1986.

NOGUEIRA, Sandra. Cultura material: a emoção e o prazer de criar, sentir e entender os objetos. RBSE, v.1, no. 2 pp. 140-151, João Pessoa, GREM, ago. 2002.

VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura / Departamento de Imprensa Nacional, 1972. 2v.

VALERIANI, Enrico. Il luogo della morte tra memoria e immaginario. Hinterland 29-30, Milano, v. 7, p. 40-48, giug. 1984.

VOVELLE, Michel. La mort et l’occident de 1300 à nos jours, à paraite fin 1982. Paris: Gallimard, 1988.

______. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987.

______. Immagini e immaginario della storia. Roma: Editori Riuniti, 1989.

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A música erudita e o jovem

Virna Lisi Leite Vieira

Ouvir uma música significa sentir inúmeras sensações físicas e mentais como alegria, saudades e tristeza e dor. Todos podem saber do que falo, se tentarmos imaginar a dor, raiva ou esperança que alguns americanos sentem ao ouvir “New York, New York”86 ou se imaginarmos o sentimento de identidade que une os brasileiros em qualquer lugar do mundo ao ouvir “Aquarela do Brasil” . Porém, fazer música, tirar um som harmônico e melodioso de um instrumento, realmente poucos o sabem. Também não imaginam como seja a emoção que o músico sente ao tirar de seus próprios dedos, a música que causa tantas outras sensações aos que ouvem. Para aprender música todos dizem: “tem que botar cedo!”, e lá vai a criança, cinco ou sete anos, para a aula de piano. Mas a música não se aprende somente na infância. Uma pessoa com vinte ou trinta anos, tem a capacidade de aprender e tocar o piano, contra-baixo ou flauta transversal. Conheço muitos que tiveram a experiência de estudar música clássica já adultos. Tocam por prazer, porém é raro profissionalizarem-se, integrar orquestras e filarmônicas. Parece um preconceito, mas a prática se traduz assim. A musicalização na infância é um detalhe da história pessoal que todos os músicos, maestros e professores que entrevistei, tinham em comum. Esse aprendizado específico, mas não exclusivo, da música erudita na infância obtém a vantagem de poder representar uma brincadeira ou prazer para criança, na qual de forma divertida e lúdica ela aprende a ler e a tocar. Qual criança não se sente fascinada ou no mínimo curiosa com um instrumento sendo tocado? Fazer surgir a vontade de aprendê-lo portanto, não deve ser incomum. Para esses músicos, a música erudita é um hábitus (Bourdieu, 1989) familiar, feito com a segurança de um bom entendedor, pois foi ensinado ao mesmo tempo em que aprenderam a ler e escrever ou comer com garfo e faca, técnicas corporais que tornam-se automáticas e banais. Tocar numa orquestra constitui o objetivo final de qualquer um dos jovens. Para chegar lá, todos vão tomando consciência do trabalho a ser feito, do tempo e dedicação que vão dispensar à música. Nas entrevistas com os maestros Mendez e Medina, suas palavras, repetem o exemplo das suas histórias de vida, o sacrifício como único meio de conseguir chegar ao patamar máximo que o músico pode chegar. Essa característica é bastante perceptível nos membros da Orquestra Floresta Amazônica quando abrem suas emoções afirmando que o sacrifício é necessário: “me sinto muito bem quando toco, ás vezes cansa, mas faz parte...”. O presente trabalho traz à reflexão as impressões que o aprendizado e execução da música erudita impõe em crianças e jovens amazonenses. Estes, componentes da Orquestra Floresta Amazônica, financiada pelo Governo do Estado do Amazonas através da Secretaria de Cultura Turismo e Desporto. A orquestra formou-se em 1999, tendo sua apresentação de estréia em novembro do mesmo ano, tendo o maestro Carlos Mendez como regente até hoje. Atualmente conta com oitenta componentes.

86 Muitas vezes relacionada ao atentado de 11 de setembro de 2001, ao World Trade Center.

108 A pesquisa de campo tomou como postura, a observação participante em eventos culturais e ensaios, apoiada pela documentação em diário de campo, fotografias, entrevistas gravadas e questionários. A pesquisa monográfica iniciou-se em julho de 2000 e acompanhou o grupo até Fevereiro de 2002. Dos oitenta questionários distribuídos, somente 25 retornaram, constituindo um grupo amostral de 13 meninos e 12 meninas. A partir de uma perspectiva holística, os dados colhidos originaram-se a partir da fala oral dos entrevistados. Neste artigo foi transcrita em citações a fala tal qual foi posta nos questionários e entrevistas feitos com os maestros e componentes da orquestra floresta Amazônica e Orquestra Mirim.

ESTUDANDO A TEORIA MUSICAL

Antes do aluno do Cláudio Santoro aprender realmente a tocar, ele passa por um período de estudos teóricos. Começando pelo difícil (Howard, 1953), as crianças primeiramente são familiarizadas com história da música e a simbologia das partituras. Também aprendem sobre harmonia, timbre, melodia, estrutura, cromatização, etc. Este período é realmente difícil, e um pouco enfastiante para alguns ansiosos que não agüentam esperar pegar em um instrumento. Assim que passam a praticar o que aprenderam, o aluno descobre porém que o estudo teórico não terminou. A partir deste momento precisará de todos os conhecimentos adquiridos para treinar as partituras.

O INSTRUMENTO – REPETIÇÃO, TATO E POSTURA

Ao terminar os estudos teóricos de música, cada aluno deve escolher seu instrumento. Essa escolha deve ser muito bem pensada, pois leva em conta vários aspectos do indivíduo. O gosto musical, a freqüência da audição das obras clássicas, leva o sujeito a adquirir maior conhecimento da sonoridade e tonalidade de cada instrumento. Quando o aluno escolhe seu instrumento isso se torna fundamental para que ele tenha maior certeza e menos probabilidade de querer mudar de instrumento mais tarde, depois de já ter se adiantado no processo de desenvolvimento musical. O aspecto físico influencia diretamente. A proporção física facilita ou dificulta no caso de instrumentos grandes como o contra-baixo. É importante notar o tamanho dos dedos e das mãos; para quem quer tocar violino, a viola ou até a flauta píccolo, instrumentos de pequeno porte deve-se ter dedos ágeis e pequenos. Quem escolher instrumentos de sopro como o oboé, a clarineta e o fagote, instrumentos de sopro de madeira, deve ter atenção à formação dos dentes, porque problemas nos dentes influencia podendo prejudicar o desenvolvimento musical do aluno.

OS SONS-OUVIDO E PERCEPÇÃO

Ouvindo tocar o próprio instrumento, o aluno aprende a ouvir os sons que lhe rodeiam. A atenção redobra e a percepção vai ficando mais aguçada. Esse processo de desenvolvimento influencia nos vários âmbitos da vida do indivíduo. Isso é bastante expressivo quando eles falam sobre isso: “me sinto estimulada a aprender outras coisas” ou “melhorou meu rendimento” e até “me estimula a aprender mais história e a conhecer grandes nomes”. Em livros de medicina neurológica e musicoterapia, encontramos estudos que comprovam que a música estimula o lado direito do cérebro, que pouco usamos, aumentando o desenvolvimento mental em crianças deficientes ou com distúrbios. Em crianças normais, aumenta a capacidade mental nos estudos e dá mais equilíbrio emocional à criança, aumentando sua auto-estima.

109 O TOCAR - COORDENAÇÃO E REPETIÇÃO

Segundo os maestros Medina e Carlos Mendez, o cotidiano de um aprendizado persistência da repetição dos exercícios é imprescindível para o aperfeiçoamento musical do indivíduo. O ideal é o treino diário. Porém isso só é possível aos músicos da orquestra que permanecem ensaiando todos os dias. O aluno comum, somente tem acesso ao instrumento, nas aulas de prática de intrumento e quando ele vai ao Cláudio Santoro e encontra disponível seu instumento na instrumentoteca. Não é permitido ao aluno levar o instrumento para casa para que possa treinar. Ao ser questionado a respeito desse problema, um dos maestros afirma que a justificativa dada consistiu na impossibilidade de repor o valor do instrumento caso ele fosse danificado ou destruído. Para o maestro Mendez, o aluno deve levar o instrumento emprestado para casa. Para ele, isso desencadeia um sentimento de preservação e cuidado. O aluno passa a ter zelo e amor ao seu instrumento, conhecer sua composição e seu feitio, aprender a conservá-lo, a recuperá-lo ou restaurá-lo. Enfim, o aluno seria o responsável pelo seu bom funcionamento e conservação. Diferente do aluno comum, o componente da orquestra, possui um comprometimento maior com a instituição. Alem das aulas que freqüenta, sempre acompanhadas pela coordenação, tem que comparecer aos ensaios gerais. As faltas são diariamente verificadas. Apesar de não ter sido observado a occorrência de qualquer tipo de repreensões ou suspensões, foi notado que poucos realmente faltavem pelos simples fato da concorrência entre os instrumentistas ser acirrada. Como observou um dos maestros: “o aluno é o próprio responsável pelo seu fracasso, o que toca melhor não fica naquela posição para sempre... Aquele que toca mais ou menos treina, treina, até que chega o dia em que o melhor falha, ou falta muito, e então....perde o lugar”! Assim explica o maestro, sobre a relação de competitividade que existe dentro de uma orquestra. Não é incomum a repetição, não é raro passar os finais de semana e feriados se dedicando a praticar e ensaiar as composições. Para os alunos o sacrifício vale o preço do sucesso, de estar no palco, ouvir os aplausos do público, o reconheciemnto do governador e demais autoridades, a satisfação da família e o orgulho lá no intimo.

ENSAIO OU BRINCADEIRA?- A CRIANÇA NA ORQUESTRA

Em relação à criança da orquestra Mirim pude perceber um desconhecimento em relação à palavra sacrifício. Não transparecem cansaço, parecem se sentir em meio a uma brincadeira prazerosa. Eles treinam arduamente sim, porém existe um clima mais lúdico em relação à música do que entre os componentes da orquestra jovem, reforçando a noção de absorção natural, como elemento essencial para a formação do habitus conforme Bourdieu. Durante os ensaios no Ideal Clube, além da rigidez exigida pelo Maestro Medina, durante os intervalos, há sempre um tempo e espaço para as brincadeiras comuns das crianças: pega-pega, espadas(com o arco do violino, sempre interrompidos pelos monitores), grupinhos de meninas cochichando e sorrindo. Coisas comuns em qualquer ambiente que envolva crianças. Durante os intervalos, enquanto esperam um a um a vez do maestro afinar seu violino, quase todas ficam em fila, porque alguns se dispersam pelo salão nessas brincadeiras. Contudo, mesmo os que parecem nem querer ensaiar, são notados ao voltarem para a fila, para que seu violino seja afinado e que possa tocar com os outros. Quando o ensaio começa todos ficam sisudos e concentrados, aqueles que estava para lá e para cá, na bagunça, não sorri mais, enche o peito, segura seu violino ao queixo, fecha os olhos e, ao sinal do maestro, todos começam a tocar. Algumas crianças não estão lá para ensaiar, como a Taynara de dez anos, que está lá para fazer sua audição de viola para conseguir sua admissão na orquestra. Sua ansiedade é indisfarçável.

110 Outro grupo presente é o das mães, estão atentas cada uma em seu filho ou filha, porém nem todas estão contentes. Algumas das crianças faltaram o ensaio anterior e tinham deixado de receber a partitura que iria ser exercitada no dia reportado aqui. Desse modo algumas crianças estavam de fora, muitas com uma expressão triste, talvez de frustração. Uma aluna me chamou a atenção, Fernanda. Ela chorava copiosamente agarrada ao estojo do seu violino, enquanto uma monitora da Orquestra Jovem II tentava acalmá-la. Não conseguindo me responder porque chorava, deixei terminar o ensaio para conversar com ela “estava chorando porque não peguei aquele papel, e quando eu não aprendo a lição, eu fico triste. Eu queria ta (sic) lá”. Foi importante notar que, por melhor que fosse o aluno, ele deveria estar em dia com as lições de partitura, para poder participar do ensaio geral. Quem falta, perde ou simplesmente não treina, fica só assistindo. A impressão que me foi passada, através da observação e principalmente das entrevistas feitas com as crianças, foi a de que mesmo que sejam crianças e tenham vontades e desejos comuns a qualquer criança, existe uma atenção maior quando chega o momento de ensaiar e treinar. Todas parecem perceber a importância de levar a sério o aprendizado, de estudar e tocar. Ao serem perguntados o que significa tocar música erudita, emerge o sonho de estar num palco, que é um dos elementos que os empurra: “eu sinto assim...só de pegar no instrumento, eu sinto como se eu tivesse me apresentando, pronta para entrar na Filarmônica”. Porém, a emoção, o prazer que sentem quando tocam, expressando sentimentos de alegria, tristeza ou raiva, constitui o motivo mais comentado: “eu sempre sinto emoção” , “orgulho, pouquinho de medo e vergonha....mas muito mais emocionado!” “quando agente tá triste, se agente tocar, agente fica alegre...me faz bem”. A importância da musicalização na infância é nitidamente observável nessas crianças. Sua auto-estima aumenta: “eu me acho um pouco diferente das outras crianças”, o rendimento cresce em outras atividades e a atenção e percepção em relação ao mundo vai sendo desenvolvida.

SACRIFÍCIO E SUCESSO- A ORQUESTRA JOVEM

As impressões que ficam dos ensaios da Orquestra jovem passam uma imagem mais austera. É claro que sempre há um clima de descontração típico da juventude. É um grupo que já tocou nos maiores espetáculos de música clássica em Manaus como na Ponta Negra, no Teatro Amazonas e na Praça S. Sebastião. Porém ao me aproximar e falar a respeito de música e instrumentos, percebo uma leve entonação de seriedade. Eles parecem mais conscientes do sacrifício que a música erudita exige do que os componentes da orquestra mirim: “ás vezes cansa, faz parte, pois ainda não cheguei onde eu quero no meu desempenho prático”. Os músicos de instrumentos que ainda não estão sendo praticados na orquestra mirim como o oboé e o fagote e ainda os metais, não parecem constrangidos com o destaque que o violino ou o “cello” parecem ter entre o público: “todos os instrumentos são fundamentais numa orquestra”, parecem repetir as palavras de Gustavo Medina e de Carlos Mendez, maestros das Orquestras Mirim e Jovem I respectivamente. A repetição de movimentos é constante e incansável. De repente o maestro Mendez, pára de novo, manda repetir somente os violinos, depois, todo mundo junto. Pára novamente. Desloca-se em direção aos baixos acústicos, toma um para si e repete o movimento para os alunos, enfatizando o som grave. Novamente o conjunto repete o movimento, desta vez com todos os instrumentos. O Maestro parece satisfeito e o ensaio continua. Assim acontece em todos os ensaios. A paciência e a persistência são fundamentais para os que pensam em desistir e largar tudo. Mas o amor à música, a vontade de ser alguém, vai além da compreensão. Tocar música clássica e erudita é estar sempre ultrapassando seus limites em busca da perfeição e da satisfação pessoal.

111 AS IMPRESSÕES DA MÚSICA CLÁSSICA

Falar dos significados que a música erudita representa a cada um dos membros da Orquestra Jovem I constitui trabalho árduo, que seria tema suficiente para uma dissertação ou tese. Porém, como a proposta central da pesquisa exige uma abordagem ampla da construção do habitus musical, é impossível descartarmos uma investigação, mesmo que pouco profunda, das representações da música erudita nesses jovens. O meio mais eficiente de fazer essa análise foi deixar eles falarem por si mesmos. Ao serem perguntados sobre o significado que a música clássica tem para os alunos, emergem sempre os elementos positivos que são sentidos na vida prática de cada um: “aumenta o grau de conhecimento” “melhorou minha percepção tanto musical quanto em qualquer situação; “ “aumentou minha capacidade;” “melhorou meu rendimento e me faz ter vontade de aprender”. A motivação ou estímulo que a música causa foi citado em 32% das respostas. As falas expressam principalmente o efeito que a música têm sobre as atividades escolares e intelectuais, além da música. A musicalização estimula o lado direito do cérebro, pouco usado pela maioria, o que ajuda muito no desenvolvimento dos estudos: “facilidade na matemática” “me estimula a aprender mais história Aumentou minha cultura, também esteve em 32 % das respostas, o que reflete explicitamente o enriquecimento que representou a música erudita, inclusive para aqueles que já eram músicos: “arte; cultura; enriquecimento intelectual; prazer; sabedoria “me deu cultura erudita(conhecimento); me deu personalidade; me deu um pouco de bossa; alegria “me deu maior espírito de coletividade; aprendi a “

TABELA 1

O QUE SIGNIFICA A MÚSICA ERUDITA PARA VOCÊ?

Desenvolvi-me em outras atividades 8 Mais cultura 8 Aumentou minha expectativa no futuro 6 Realizou meu sonho 6 Demonstração de emoções (amor, raiva 4 etc) Paz 3 Deu-me maior sensibilidade 3 Dá-me orgulho 12 Dá-me prazer 2 Convivência em grupo 2 Sinto-me uma pessoa especial 2 /diferente

112

As perguntas que me propus a fazer, foram em relação ao significado da música clássica para si e para o Estado. A maioria das respostas se relacionava com o aumento do nível de cultura, revelando uma admissão de falta de cultura local. Esse tema obteve o mesmo número de respostas que revelam o aspecto de melhoria no “desenvolvimento em outras atividades” como os estudos e o relacionamento com a família “ hoje eles aceitam que eu toque porque fiquei mais tranquilo” . Seis falaram em realização de seus sonhos, satisfeitos com o grau a que chegaram. O mesmo número de entrevistados, afirmou, ser importante a música clássica em suas vidas por que aumentou sua espectativa no futuro. “vontade de continuar e nunca mais parar”, “adquiri mais espectativa no futuro”. Em seguida vem os que vêem a música como a pura expressão dos sentimentos: “demonstra todos meus sentimentos como amor, raiva, ciume, alegria e tristeza” Ser músico clássico leva as pessoas a se sentirem incomuns: “é ser alguém especial, o centro das atenções” Outro não se deixou levar pelas emoções e deu uma declaração bastante dura: “meio de vida difícil.”, refletindo uma perspectiva bastante realista da profissão de músico erudito. A outra pergunta era a respeito de como o aluno se sente quando toca. A maior parte das respostas descreveu sensações sendo o sentimento de felicidade cotado em 20% das respostas, seguido pelo sentimento de estímulo para fazer outras coisas, 16%. “excitado para tocar cada vez mais!” “me sinto bem relaxado” “me sinto entusiasmada, mas interessada em aprender “ leve e expressivo” “quando consigo aprender as lições ou as músicas, me sinto satisfeito pronto para aprender outras coisas”

A abstração dos sentimentos leva o indivíduo a criar o seu próprio mundo de sensações, fruto do seu imaginário: “como um pequeno barco navegando no mais imenso mar, repleto de paz, sabedoria e conforto” “incrivelmente bem! É como se estivesse subindo ou flutuando a cada nota tocada !” “envolto nos acontecimentos da respectiva música" Alguns se sentem “uma pessoa com um dom especial”, compromissada com a orquestra e com o público: “um verdadeiro artista capaz de proporcionar diferentes estados de espírito”. Mas às vezes orgulho de ser músico também aparece entre as respostas “digamos que eu sou o máximo porque nem todo mundo toca o que eu toco!”. TABELA 2 O que sente quando toca? Feliz 5 Motivada 4 Leve 2 Livre 1 Realizada 2 Emocionado 3 Especial/o máximo 2 Normal 2

113 A importância da música para o Amazonas dada pelos alunos relacionou-se diretamente com a cultura. De acordo com a fala dos depoentes, a noção de cultura é uma coisa mensurável, formando a concepção de que música erudita melhora ou aumenta a cultura amazonense: “ Sim, porque procura desenvolver a cultura deste povo que ainda não conhece a música clássica" “ Sim, porque assim todos vão saber qual é o verdadeiro sentido da música" Dois alunos admitiram a falta e pobreza da cultura local: “sim, porque nosso povo é pobre em cultura," “sim, porque falta cultura no povo do amazonas" Mesmo assim, a maioria declarou a importância para o desenvolvimento de Estado e do povo amazonense: “sim, porque é uma forma de investir nos moradores do Estado e fazer subir o turismo da cidade.” “Sim, completa o ciclo cultural do estado e estimula o desenvolvimento” Alunos que acreditam no benefício do povo para com a arte falam que “é importante desde que haja educação musical para o povo. Hoje em dia as pessoas gostam mais de ‘popular’ e da música fácil.” e “porque aproxima o povo para a cultura e arte”. Existe uma preocupação com a imagem que se tem do Amazonas e dos estereótipos construídos no senso comum: “Sim, porque assim param de pensar que somo(sic) um bando de Indio” “pois liga o índio amazonense “como somos chamados mundo afora” ao resto do planeta ou seja, cultura global” “As pessoas de fora, como eu, acham que o povo amazonense não tem condição de fazer acontecer a música. Mudei meu conceito quando cheguei a Manaus com 10 anos”

TABELA 3

Que importância tem para o Amazonas?

Mais cultura para o povo 11 amazonense Demonstra cultura perante o 4 mundo Incrementa o turismo 2 Aproxima o povo da arte 2 É bonita 11 Faz bem para a mente 1

Perguntados sobre o significado da apresentação para os alunos, a abstração expressa anteriormente, transforma-se radicalmente para uma perspectiva mais racional. Mesmo que em alguma resposta o concerto signifique “um alimento para o artista”, em 52% das respostas relacionaram o show ao resultado de todo um trabalho construído num lento processo de aprendizado e ensaios: “A apresentação é muito importante, pois é quando mostramos o que aprendemos no tempo que trabalhamos”

114 “significa a realização final de todo um trabalho do artista para com o público” “é o momento em que podemos mostrar o trabalho desenvolvido em horas de ensaio” “Significa o nosso esforço mostrado para as pessoas que gostam e sabem apreciar uma boa música “Expressão de tudo o que estudei” “a hora da decisão, tudo que treinamos num só dia” “é um momento especial e que é resultado de muitos estudos e ensaios.” O show representa para esta aluna o sacrifício passado nos ensaios e em optar pela música, quando se é jovem e cheio de oportunidades de sair para se divertir: “é como nós achamos a forma de mostrar tudo aquilo que damos o nosso suor, investindo o nosso tempo para estudar, quando ás vezes deixamos de sair pra (sic)se divertir ou coisa assim” o entusiasmo a emoção foi a segunda resposta mais citada pelos alunos, transmitindo a realização e satisfação de estar no palco, apresentando seu trabalho: “ o momento mais importante para oartista” “É como se a cada apresentação eu estivesse subindo um degrau na minha vida musical “

TABELA 4 O que é a apresentação para você? Trabalho realizado 13 Momento de emoção 9 Diversão 2 Não falou 1

A pergunta relacionada aos compositores preferidos, reflete bem a formação do habitus musical, pois com o detalhe de acrescentar na pergunta : “não é necessário citar somente compositores clássicos”, a presença destes foi maçiça, foram citados 56 vezes, enquanto que compositores populares só estiveram presentes 5 vezes. Outros que não quiseram se pronunciar, explicitaram seu enorme apreço à musica em geral: “não tenho preferência por compositores se a música é bom feita, esta me conquista.” Ou “Todos, porque cada um se expressa de maneira diferente.” A música clássica é o estilo mais apreciado entre os alunos, tendo 56% de citação. A seguir vem a MPB com 24%, a música gospel , o pop, o rock e chorinho, todos com 12% cada. Ainda foram citados apenas uma vez (4%) o funk, o jazz, o baião e músicas românticas. Dos compositores clássicos mais populares entre os jovens da Orquestra, foi Mozart (44%), Bach(40%) e Tchaikovsky(28%). Entre os compositores populares surgiram apenas nomes da música brasileira: Tom Jobim, Vinícius de Morais, Toquinho, Jorge Aragão, Pixinguinha e Renato Russo, além de alguns nomes da música Gospel.

115

TABELA 5

QUAIS SEUS COMPOSITORES PREFERIDOS?

Mozart 11 Bach 10 Tchaicovsky 7 Vivaldi 7 Beethoven 7 Haendel 4 Verdi 2 Rameau; Botessine; Ravel; Stravinsky;; 1 VillaLobos; Rachmeninov; Dragonete; Shostakovitch; Bruckner; Bruch Strauss Tom Jobim; Vinícius de Morais; Toquinho; 1 Jorge Aragão; Pixinguinha; Renato Ru0

A convivência em grupo leva a uma série de experiências que cada um levantam suas dúvidas e obtém suas respostas. Em relação da vivência de uma orquestra, perguntei que de mais importante foi absorvido e aprendido na Orquestra Jovem I:

TABELA 6

O que aprendeu de mais importante na Orquestra Jovem? Respeito 4 Conviver em grupo 3 Humildade 3 Disciplina 3 Responsabilidade 3 Deslealdade/ambição 2 Lutar pelo que acredita 3 Tocar/música 3 Dedicação 1

O Respeito foi citado em 4 respostas, 16%. Essa característica é importante na constituição de sua posição enquanto cidadão e ser humano. A vida do grupo orquestral de ensaios diários aproxima

116 os alunos uns dos outros. A delimitação de limites individuais torna-se necessário para a boa convivência. As palavras da aluna expressam uma das respostas que representou 12% : “disciplina(...) pois o ritmo de uma orquestra, pra (sic) se levar adiante é muito puxado, o resultado, quando o almejado é a perfeição, é muito prazeroso. Estou numa orquestra jovem, mas meu objetivo, como já disse é ser profissional, ser uma trompetista de garra.” O restante das respostas empataram em 12%. Os alunos declararam terem aprendido a ser mais humildes e responsáveis, a ter mais dedicação a lutar pelo que quer e a conviver em grupo: “além dos conhecimentos musicais, aprendi, que cada um deve aceitar as pessoas como são, e respeitar os limites de cada um “conviver e se relacionar em grupo é bom” ‘ganhei uma nova família aprendi a ouvir e ser ouvida “mais respeito, responsabilidade “responsabilidade por uma coisa nós consegui, eu consegui aprendi também a lutar pelo que se quer” Existem as decepções e obstáculos quando se pertence a uma orquestra. Sob essa perspectiva, falam aqueles mais realistas, que enxergam os percalços da carreira musical “coisas boas e ruins” “ a conviver com pessoas ambiciosas e puxa saco!!” “música não é um conto de fadas, mas sim de concorrência leal e desleal” Mas tem os que aprenderam a tocar e se importam somente com a música: “aprendi a tocar, posso tocar qualquer porcaria mas, toco!” Neste trabalho, aprendi mais do que transcrevo aqui. Envolver-se com o estudo da música e jovens amazonenses, leva a interagir com a vida do próprio pesquisador e seu modo de ver as coisas. A música, em especial a erudita, mexe no íntimo de cada um. Ouvir o som da orquestra ao vivo e ver no semblante do jovem aprendiz o turbilhão de emoções, levado pelo tocar e ouvir de seu instrumento, nos intriga e nos estimula a continuar a fazer da antropologia o grande instrumento das ciências humanas.

117 BIBLIOGRAFIA

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Thomaz. Rio de Janeiro, Bertrand, 1989. HOWARD, Walter. A música e a Criança. Coleção Fanny Abramovich. São Paulo, Summus, 1984.

118 O divino e os estados extáticos e de comoção na figuração artística brasileira recente (1980 – 2002)

Marcio Pizarro Noronha

OS ESTUDOS DA IMAGÍSTICA E A RELIGIOSIDADE

Se estivermos percorrendo um caminho de volta, na direção do pensamento simbólico e do modo como este aparece na Arte, teremos ainda que dar atenção a outro conjunto de autores, que estabelecem as ligações históricas e culturais, da produção da imagem e de uma cultura imagética com a religiosidade, em suas dimensões da cultura mágica e da cultura religiosa propriamente dita. O estudioso da cultura da Antigüidade clássica, Jean-Pierre Vernant, identifica na cultura grega a formação dos ídolos como o elemento de manifestação de uma ordem simbólica. Em todas as civilizações e culturas, a ordem divina e transcendental se organiza sob formas simbólicas. Estas formas podem ou não possuir um caráter material ou ainda serem reconhecidas como parte integrante e produtora de uma cultura plástica. A cultura plástica da civilização grega antiga encontrou na formação dos ídolos o momento de produção de um repertório de imagens que passariam a ser utilizadas por consenso social – aceitação das imagens. Este repertório forma uma linguagem imagética visual e que acaba por configurar um determinado imaginário cultural- social. Com isto, Vernant indica a passagem do símbolo à condição de imagem visual e a sua presentificação no campo das relações sociais, como momento permanente de atualização permanente da produção simbólica. Tanto Vernant quanto Debray identificam este momento específico, o da regularização da tarefa da produção dos ícones e suas técnicas de feitura – de reprodução cultural -, o momento que desenha e faz existir um campo artístico. Assim, as sociedades ocidentais constituem o espaço do fazer artístico numa duplicidade entre a realidade simbólica / transcendental e a realidade imaginária / e o conjunto de técnicas daí decorrentes. A arte estaria assim originalmente vinculada ao domínio da religiosidade propriamente dita e sua tarefa inicial teria sido a da imaginarização socialmente determinada (produção da imagem visual) e da realização técnica decorrente do objeto simbólico. Como podemos pensar as questões propostas por estes teóricos dentro do campo do imaginário tal como o foi proposto por Durand? A ordem simbólica presentifica-se num procedimento de imaginarização. Na cultura ocidental, esta imaginarização tomou algumas formas visuais e plásticas. A autonomização e a separação da vida simbólica em relação a seu repertório vieram a constituir o domínio da arte, uma espécie de zona privatizada e agora reunida em torno da cultura dos signos. Quando o ídolo passa a ícone ele torna-se elemento a-simbolizado. E isto teria deixado a arte livre de sua (sobre-) determinação de caráter mágico- religioso. Mas uma Antropologia da Arte não pode se deter em esquemas por demais generalizantes, mesmo tendo de levar em conta que, grande parte dos produtos artísticos (idéias e artefatos) culturalmente situados em nossa contemporaneidade sejam eles apenas obedientes a lógicas semiótico-semiológicas, do signo, e a lógicas da economia política do signo (Baudrillard) ou da economia simbólica (no sentido restrito, da sociologia do campo artístico de Bourdieu). O que estamos propondo é a retomada de um pensamento do simbólico e de que modo este pode ser

119 aplicado aos produtos artísticos, reconhecendo neles não apenas estas lógicas sociais, mas a presença – residual – de lógicas cosmológicas, naturais, sociais, culturais e biopsíquicas. Desse modo, esta problemática originária, tal como nos é apontada por estes estudiosos da Antiguidade (Vernant) e da Midiologia (Debray) somada ao pensamento da Arquetipologia (Jung, Bachelard, Durand), deve ser capaz de gerar uma compreensão nova e abrangente para a presença-ausência e dimensão residual da significação simbólica e seu caráter descritivo de fundo mágico-religioso na produção artística contemporânea. Quando pensamos nas “figurações do divino” estamos diretamente falando dos produtos que dizem respeito a imaginarizações do transcendente, em seu caráter histórico-cultural e em seu caráter arquetipal e simbólico. Isto significa dizer que não estamos a privilegiar um conceito de figuração que seja de caráter ilustrativo, no sentido reduzido da expressão. Figurar aqui não diz respeito apenas à produção de imagens visuais do tipo figurativo. Figurar constitui-se na ação propriamente dita de materialização e de "repertoriação" simbólica. O signo religioso encontra-se explicitamente presente nos produtos da arte sacra, da arte tumular e funerária, em diferentes manifestações da arte popular. O símbolo religioso não está necessariamente – obrigatoriamente – aprisionado a este registro cultural-artístico. O símbolo mágico-religioso está presentificado em toda a manifestação artística que se quer predominantemente usuária e manifestante de lógicas simbólicas e não de lógicas semiológico-semióticas. Desse modo, muitos dos produtos artísticos a serem investigados estarão fora desta rede convencional das religiões e acionando o imaginário religioso em suas tradições imagéticas na cultura brasileira. O repertório deve ser traduzido enquanto mentalidade e esta deve ser capaz de mostrar – tornar visível – os regimes de imagens enquanto traduções culturais visuais das ordenações do simbólico. A produção artística será observada do ponto de vista dos imaginários religiosos, presentificando na simbólica da obra um determinado imaginário – ou o cruzamento de diversos imaginários. Do imaginário histórico e social passamos para a percepção do que chamamos de imaginário simbólica / ordem simbólica / ordem arquetipológica. Nesta segunda instância, a busca do pesquisador é a de encontrar e / ou de perceber a presença / ausência em sua ideação e / ou materialização daquilo que uma cultura seleciona para si enquanto parte integrante do seu núcleo constituinte e instituinte, do que foi fixado, dentro de uma cultura, das relações sociais e individuais com o ambiente cosmológico e social; - e, mais ainda, do que foi projetado, por meio do equipamento biopsíquico, por meio da estruturação da subjetividade humana, no produto (seja ele uma idéia ou um artefato), demonstrando os modos do vivido, da alegria e do sofrimento humanos, nossos testemunhos individuais e da espécie. Isto constitui aquilo que já foi falado anteriormente: a via de mão dupla do trajeto antropológico. As imagens do divino são uma nova procura pelo momento da formação dos ídolos, antes da sua transição para a lógica do ídolo. E a permanente reinstauração do senso imaginário, enquanto sintoma e enquanto terapêutica, da espécie humana.

O ÊXTASE E A COMOÇÃO. O CASO DA FIGURAÇÃO ARTÍSTICA.

As representações pictóricas e de linguagens afins, pertencentes ao campo da teoria, da história, da crítica e das práticas artísticas, têm sido de grande relevância para os estudos de outras práticas culturais, ressaltando, do ponto de vista intelectual, justamente, o caráter bem mais antigo desta prática social e do uso da imagem para o entendimento da vida cotidiana em diferentes culturas no tempo e no espaço. Este artigo explora um determinado conjunto de figuras artísticas e as representações e simbolismos por elas sugeridos. Esta é uma tarefa muito árdua para o cientista social. Diversamente da fotografia, a pintura não possui um caráter predominantemente

120 representacional. Assim, representar estados emocionais, para um artista, pode ser justamente o ponto de confluência das estéticas mais tradicionais do Alto Modernismo e a afirmação do caráter romântico do artista e dos seus fazeres. E este não constitui em objeto e/ou objetivo deste texto. Depois das questões teóricas acima indicadas iremos tratar mais especificamente de um conjunto de artistas e de suas produções imagéticas, no campo bidimensional (pintura e linguagens afins), buscando analisar os modelos ali presentificados da comoção e do êxtase e uma reconcepção do campo transcendental na imagística brasileira contemporânea enquanto testemunho de transformações sócio-culturais mais profundas. O que pretendemos observar nestas imagens diz respeito, especialmente, a um conjunto de imagens visuais que se pretendem em funcionamento de caráter emocional, revelando a reconcepção estética da dimensão religiosa originária do e no campo artístico. Esta religiosidade passa por uma transformação e esta pode nos auxiliar a pensar sobre os índices de cultura presentes na obra de arte. Usando a terminologia das “tendências artísticas contemporâneas” enunciada por Kátia Canton, encontramos os seguintes termos: Narratividade (a obra de arte contemporânea suscita o ato de contar histórias) Memória física e psíquica Corporeidade (moldura, tema e campo de experimentações, envolvendo dimensões catárticas – experiências extáticas – e de autobiografia – emocionalidade subjetiva) Efemeridade e degradação física dos corpos Identidade e Anonimato, Individualidade e Massificação, o Estranho (dimensão político-social ou moldura político-social na qual se encontra a situação subjetiva psíquica e/ou corporal) Estéticas da violência, da solidão e dos grandes problemas que assolam as metrópoles Intimismo, internalismo, mundo doméstico (modelagem subjetiva que recupera concepções tradicionais do feminino, dando-lhe aspectos associados a formas culturais burguesas do século XIX e a formas culturais populares, conforme a estética adotada pelo artista; é uma situação de feminino em dimensão pós-feminista) Nova espiritualidade e formas da sinceridade, religiosidade como forma subjetiva (a espiritualidade assemelha-se a formas sociais de compromisso e estes enquanto via para a reconstituição do espaço do simbólico e suas formas transcendentais, tanto da situação subjetiva psíquica quanto da corporal). Kátia Canton aponta uma série de outras categorias descritivas que estariam presentes na arte contemporânea. Para nossa análise, ficaremos apenas com algumas dentre as que estão acima elencadas. Escolhemos pensar esta presença residual a partir da seguinte articulação, envolvendo as categorias acima grifadas de: corporeidade; identidade e anonimato, subjetividade e massificação, o estranho; nova espiritualidade e formas da sinceridade, a religiosidade como subjetividade. As outras categorias estarão sendo incluídas no interior desta trama de três elementos, compondo aspectos relevantes mas secundários para nosso modelo de análise da vida emocional contemporânea através da “obra de arte” e de seus artistas. Apenas a categoria da narratividade poderia receber um ponto isolado pois constitui-se em elemento de estruturação de um trabalho, uma vez que, nem toda a obra é de caráter narrativo. Para nós, a partir da observação realizada, a espiritualidade no campo das artes é tratada hoje de um ponto de vista prioritariamente subjetivo, envolvendo sempre um intercruzamento entre as dimensões do corpo em sua materialidade e da vida psíquica. O aspecto transcendental encontra- se mergulhado na cotidianidade e seus sinais apontam prioritariamente para as formas relacionais intersubjetivas tais como, a afetividade, a sinceridade, a abertura, o dialogismo. O espiritual é uma espécie de reduto de configuração identitária subjetiva e da formação de modos diversos de auto-imagem diante do espetáculo de fragilização da vida “do eu”. Devemos lembrar que os contextos da produção artística são prioritariamente urbanos e a experiência da vida citadina marca profundamente a produção da arte contemporânea. Nestas formas subjetivas, o “eu

121 flutuante” parece ser a forma “religiosa” e que revela, de um ponto de vista etnográfico, um determinado modo da emocionalidade – de ordenação da vida emocional – do habitante da cidade. Esta forma-emoção pode ser identificada ao termo ESTRANHO, apontado pela sociologia de Simmel e pela teoria psicanalítica de Freud. O estranho é um ser individualizado e identificado a um si-mesmo sem espelho e que, portanto, sofre constitutivamente de um adoecimento da auto- imagem. A imagem do eu é apenas a negociação permanente entre os estados emocionais flutuantes e a vida urbana em seu ritmo acelerado. Diante deste impacto, o sujeito ainda se vê acompanhado pela velocidade e efemeridade das relações e os próprios processos de intervenção / transformação / degradação da corporeidade, o que passa a ser uma forma de conteúdo das obras visuais e plásticas. O corpo que foi, até os anos 1970, o último reduto de uma positividade efetiva da arte. Em suas manifestações performáticas ou na forma dos happenings, os artistas ainda afirmavam a condição do EMBODIMENT. Na atualidade e, a partir das entrevistas concedidas, podemos perceber, o quanto o corpo deixa de ser uma afirmação mera e simples, positivamente constituída, para ser mais um lócus da problemática das representações. Corpo, psiquismo, memória, movimento, formas de organização subjetiva, identificações, são todas estas questões prioritárias no fazer artístico contemporâneo. O princípio que rege a análise é de caráter eminentemente simbólico e, portanto, estaremos falando de procedimentos de simbolização de estados emocionais, num recorte que envolve ainda o elemento estético. Assim, a simbolização de que trataremos aqui estará “(re)- (in)- vestida” de uma carecteriologia estética. Os estados emocionais privilegiados serão de caráter volitivo e dispersivo, constituindo a panorâmica dos fluxos que hoje atuam na produção artística e nos seus modos de interpretar o campo transcendental. Tratarei de um conjunto de artistas e de cada um deles indicarei, infelizmente, apenas, uma imagem que tomarei como uma exemplaridade da análise, mas não da totalidade do processo artístico.87 Delimitamos os seguintes conjuntos afetivo-emotivos na figuração artística: A comoção do estético pelo estético; A comoção pela matéria e suas transfigurações, decomposições e associações de histórias; e, A comoção pela narrativa visual, a imagem enquanto arte figurativo- narrativa na contemporaneidade. Trataremos de analisar um deles, em específico.

A COMOÇÃO DO ESTÉTICO PELO ESTÉTICO.

No primeiro grupo estudado e que aqui será apresentado, encontramos a produção de obras que tomam a arte e suas linguagens como referências autônomas e de ordem superior. De certo modo, herdeiros de uma fusão de teorias românticas com os movimentos estéticos do Alto Modernismo europeu e norte-americano e suas presenças brasileiras entre os anos 1920 e 1960, este grupo toma a problemática do sentimento como sendo algo tangível na produção da arte e no seu recolhimento a um determinado espaço social mágico. As convenções estabelecidas nos diálogos com os artistas e as decorrentes formalizações das obras produzidas indicam a pretensão de suprimir qualquer dado de caráter subjetivo e localizado, tentando oferecer ao espectador estados

87 Existem ainda importantes artistas do cenário nacional brasileiro os quais apenos cito nesta introdução por não terem sido objeto de uma pesquisa de caráter mais etnográfico por parte do pesquisador. São eles(as), Karin Lambrecht, Daniel Senise, Paulo Pasta, artistas de grande relevância entre a geração 80 e 90 e que ainda não foram entrevistados e tampouco acompanhados em seus processos de trabalho. Kanto, Chiarelli e Farias são importantes historiadores, curadores e críticos contemporâneos que também elencam um grande número de artistas e suas produções. Como nossa perspectiva de pesquisa envolve sempre a pesquisa qualitativa, com acompanhamento de artistas, observação e entrevistas, não nos faremos valer destes nomes e procuraremos demonstrar nossas afirmações a partir do grupo constituído e analisado. Assim, deixaremos a análise e interpretação destas produções de caráter nacional para momentos posteriores do projeto de pesquisa ao qual este artigo se relaciona.

122 emocionais avançados e eruditizados, embasados em referências de caráter universal. Aqui, cabe de forma exata o raciocínio desenvolvido por Jean-François Lyotard, na análise do expressionismo abstrato norte-americano e seus desdobramentos. Isto nos leva a uma compreensão de que tipo de estado emocional estamos a falar. Nesta apresentação de um tempo presente e congelado na imagem, a estética Newmaniana ocorre em uma ética, a ética de dar aos elementos constitutivos do quadro o seu devido lugar. As categorias da pintura são absolutamente voltadas para si mesmas nesta reflexão. E isto constitui uma sensação de impotência do espectador diante do quadro – da obra. A pintura fala pela pintura e, neste sentido, temos, mais uma vez, a afirmação da “obra pela obra”, “a arte pela arte”. O parentesco termina por aqui. A ocorrência silenciosa de uma obra do expressionismo abstrato será substituída ou completada paradoxalmente por um sentimento de caráter romântico. A performance do artista passa a ocupar um lugar preponderante no jogo dos acasos. O instante desaparece como resultado para se fazer presente como uma série de momentos e fluxos e acúmulos de tempo. A criação não é mais o acontecimento e não há um efetivo começo. Há sempre um fim. E, portanto, o fim é o gesto estético do artista. Neste momento, o artista – Frantz – recorta o tempo e seus acúmulos e destina uma fração deste à condição de objeto de observação e de apreciação estética. Da impotência ao sentido de julgamento, temos um caminho de volta às estéticas classicizantes e romanticizantes, que garantem a fidedignidade ao artista intérprete da própria obra. O grande paradoxo desta obra é que ela não é feita pelo artista singular, ela é apenas o resultado de muitos exercícios e frustrações de ateliê, de trechos e de traços de outros trabalhos e suas destinações. Como não possuem título e como o tempo de feitura é muito longo – geralmente o artista propõe os seguintes termos obras sem título e período de realização entre 1990 e 2000 – somos impedidos de encontrar as pistas da narrativa evidentemente presente mas oculta. A tela passa a ser ela mesma o ecrã de uma história que está situada em seu interior e em seus movimentos. Para observar estes sentimentos e sentidos acumulados deveríamos observar com lupas e seguir cada uma das manchas em seu percorrido na superfície. Aparentemente, tão distante do enigma frustrante de Duchamp e mais próximo tecnicamente do expressionismo abstrato, estamos diante de telas que contam histórias de modo não figurativo. A figura é aqui o movimento e o recorte. A narrativa sugerida é a dos acasos da existência e a presença de um olhar estético – artístico, mais especificamente – recortando a realidade no momento exato em que esta congela um conjunto de acontecimentos que tomam uma forma. Este formalismo avassalador de Frantz, sem qualquer auxílio de um texto complementar – um título, uma especificação técnica, um tempo de realização mais exato – quer nos impedir o jogo interpretativo e oferecer a obra apenas como resultante da capacidade e da atenção ao momento do artista. As obras tornam-se verdadeiros acontecimentos visuais e, por outro caminho, ocorre a mesma operação sintética que temos no expressionismo abstrato. A produção plástica de Frantz pretende-se um “filho” de um “pai” e este pai encontra-se no Alto Modernismo. Newman, no geral, conta uma história sem tempo, uma história que é ela mesma a própria dimensão do simbólico. Podemos pensar mesmo no método da “arqueologia do visível ou da arqueologia visual”. A grande questão é a do tempo, o tempo como acúmulo, o tempo como espaço e o tempo como uma história qualquer de acasos, soma de acontecimentos. A obra não é um acontecimento mas a sombria acumulação de acontecimentos, a sua simultaneidade e a sua distensão temporal e espacial. Como artista urbano contemporâneo, a sensibilidade aqui demonstrada é também a desta simultaneidade da visualidade contemporânea e a confusa presença que impede a produção de uma imagem verdadeira. No expressionismo abstrato, a “imagem-verdade” ainda existe ou se pretende existente como uma resultante do encontro com uma verdade externa dos acontecimentos, sejam eles os fatos, sejam eles os fatos estéticos – que seria a própria verdade do código. O Alto Modernismo afirmou que a Arte já não mimetiza.

123 O que lemos aqui é a compreensão historicamente situada de que as relações miméticas servem para outras formulações paradigmáticas da imagem. Michel Foucault, nos clássicos textos de As palavras e as coisas (1966), já apontava para esta transformação de caráter epistêmico. Assim, nos termos da sensibilidade artística e nos termos de uma teoria da imagem, o momento moderno afirma a inexistência de relações de mimese na constituição da imagem. Para o moderno, a imagem é: - uma projeção subjetiva, portanto, uma formulação narcísica; - um dado submetido à estruturação de uma linguagem e, portanto, referindo-se sempre a uma concepção de referente e de código, um “fato comunicacional”. Olhando por esta perspectiva, o referente é demasiado importante para as lógicas pré-modernas. E o código é justamente o domínio da lógica estética do moderno. A estética moderna procura este domínio da linguagem como o único meio de acesso ao sentido da realidade e nunca de um acesso ao Real. Este modo que indicia a formação de uma lógica minimalista e de uma estética do sublime não são aqui predominantes. O sentimento de terror e de impotência é substituído, como resposta que pretende permanecer no interior do modernismo, por meio de uma reafirmação do “eu flutuante” e de sua capacidade de retirar do caos os conjuntos formalizáveis. A obra é, então, um maximalismo, uma máxima ocorrência, um lugar máximo, onde podemos encontrar tudo ou quase tudo. Desse modo, estamos diante do narcisismo. Narcisismo estético quer dizer que toda a obra é a produção de resíduos de eleição exclusiva do sujeito e de sua relação particular com os chamados universais. Estaríamos diante de uma obra freudiana, preparada para realizar o parricídio? No campo do simbolismo, esta é a emoção que predomina na história oculta e latente. O filho de uma tradição estética provoca a sua destruição e a sua redenção liberadora, mostrando novos sentidos para a existência de um paradigma ético-estético no mundo. Eis aqui uma cartografia de um dado do sensível, de um modo como um determinado conjunto de imagens pode estar nos falando acerca da constituição da vida subjetiva e afetiva de seus participantes. Estas operações de Frantz, transitam para um trabalho de Ciça Fittipaldi, que denomino aqui de exercício da emoção da queda da obsessão classificatória. A artista plástica e designer, Ciça Fittipaldi, é aqui objeto de um comentário muito específico, no que diz respeito a um determinado conjunto de produtos artísticos e as reflexões suscitadas em torno deles. Diz respeito mais precisamente a uma série inicial de pesquisas bidimensionais em torno do que se pretende ser um estudo sobre e de objetos plumários, incidindo numa análise de caráter quase que exclusivamente estético de plumas retiradas de seus contextos originais de experimentação, apropriação e uso por parte das culturas indígenas, transformadas em objetos artísticos. O que chamo aqui de emoção da fúria anti-classificatória é justamente o aspecto da desordem implicitamente disposta à significação cultural e o deslocamento do objeto para um lugar de assignificância, pois mesmo entre nós – brasileiros – os produtos não remetem a uma significação complementar a da nossa própria cultura. A lógica simbólica, portanto, não é literalmente complementar à lógica da significação. O significado simbólico pode partir também do silenciamento da atividade comunicacional presente em todo e qualquer artefato. E neste sentido, o simbolismo estaria totalmente afeito ao mesmo princípio estético moderno presente na reflexão de Frantz.Há um certo princípio estruturalista reunido a um gosto modernista nesta inflexão estética e no conjunto emocional-cerebral que ele constitui. Algo que se assemelha à boa metáfora de Clifford Geertz do “selvagem cerebral”. Lévi-Strauss não gostava dos desdobramentos modernos – do alto modernismo e seus abstracionismos. Seguindo esta linha de análise a pintura deveria ser uma recriação do real. Esta recriação deveria ser capaz de levar o observador a encontrar as equivalências entre o mundo físico – a ser representado – e sua realidade efetiva e as operações construídas pelo artista para mostrar o mundo do sensível num plano inteligível. O mundo é absolutamente espetacular e conclama ao pleno exercício dos sentidos, num estado de êxtase permanente. A arte deveria ser capaz de ordenar este sensível num plano inteligível ou ser ela mesma uma produção imagética e de ordem

124 onírica capaz de promover o acesso a outras ordens míticas ocultas. Toda vez que tomamos de empréstimo um elemento de uma dada cultura, estamos transportando conjuntos semânticos e formais. As penas de pássaros são o mote para o oferecimento deste mundo físico, anterior ao estado da arte, ao observador-fruidor. Elas identificam os limites da obra de arte numa zona pré- sígnica, a do efetivo simbolismo implicado nas relações do humano com a natureza. Ao mesmo tempo, esta complexa trama identifica o gesto com as tradições do mesmo modernismo que se recusa a pensar a ordem artística fora de uma ordem da linguagem e, portanto, posicionando a arte ao lado da cultura dos signos. Isto pareceria a Lévi-Strauss deveras estranho pois daria às artes visuais um estatuto semelhante ao que propõe encontrar na música e nas suas relações de música e linguagem. Num raciocínio híbrido entre o moderno e o estruturalismo do inconsciente natural Lévi-straussiano, o trabalho de Fittipaldi é um convite para pensarmos sobre as emoções estéticas em campo mais vasto do que simplesmente o espaço da produção artística. O que estas penas escuras em fundo claro convidam a fruir é a repetição do gesto arcaico de rebuscamento da natureza. A estética da natureza como fonte para o exercício do pensamento e da contemplação religiosa. Ao mesmo tempo, o trajeto é profundamente moderno. O ritmo lembra ainda o do Alto Modernismo e o Expressionismo Abstrato, tal como as paisagens de Pollock. Nestes termos, podemos afirmar que a reflexão estética acerca da complexidade formal e da estruturação do fazer parecem ser predominantes no raciocínio da artista. A artista é uma pesquisadora de jogos. Esta ordem proposta por este conjunto de experimentos parece também querer provocar, tal qual em Frantz, uma paralisa do jogo da tradutibilidade, onde o objeto artístico é apenas uma resultante de forças institucionais e de caráter teórico. Em ambos os trabalhos, a “desculpa” moderna é um modo encontrado pela subjetividade estética em não deixar a imagem ser traduzida em palavras ou em frases. A narrativa oculta de Frantz é ilegível. A cultura outra de Fittipaldi também o é. Ambos tratam de nos mostrar as inscrições por acúmulo (Frantz) ou por rarefação (Fittipaldi). É aqui que o modernismo subverte o estruturalismo e sua lógica significacional. E propõe uma lógica simbólica que repõe a problemática da morte. A morte da estética ou a morte da arte, no canto wagneriano de Frantz. A morte da estética da natureza e da própria natureza reposicionada dentro da cultura contemporânea enquanto cadeia de artifícios em Fittipaldi. Os lixos de Frantz e os “objetos luxuosos da natureza” de Fititpaldi, ambos, por caminhos diferentes, demonstram modos auto-organizativos e simbólicos, fulgurando entre o estático e o transitório. Duas traições shakesperianas constituíram estas obras: a primeira traiu sua origem na estética moderna – estética do signo e do código -, convidando o silêncio modernista a falar; a segunda traiu sua origem pré-moderna – estética da mimese -, reinventando justo a natureza-morta enquanto uma operação moderna.

CONCLUSÃO.

Podemos sugerir que temos a configuração de determinadas tipologias e estilos imagéticos na produção pictórica brasileira no que tange a sua dimensão emocional. Uma delas diz respeito a uma forte e incisiva negação da emoção como parte integrante do fazer artístico. A forma, ou, por vezes, o conceito, estariam, ambos, definitivamente descompassados do sentimento, parafraseando o título de uma obra de Susanne Langer. Nestes trabalhos, a operação formal e/ou conceitual é prioritariamente a produção de um discurso sobre o sistema das artes ou sobre as linguagens artísticas – uma espécie de comentário sobre o fazer ou uma sugestão sobre os fazeres. De outro lado, temos algumas produções estilísticas preocupadas com a projeção de estados emocionais e uma tentativa ou de retratar movimentos subjetivos em suas formações materiais – numa espécie de biologia e física da emoção através do exercício e do gesto artístico – e um

125 terceiro domínio, que tenta reconstituir um campo figurativo tradicional e a produção de uma representação figurativa da emocionalidade da contemporaneidade. Este último caso não chega a se constituir numa forma de retrato ou em estética naturalista-realista. Muito antes pelo contrário, os conjuntos de artistas estudados durante o procedimento integral da pesquisa, demonstram mais afinidades com os trajetos estéticos do romantismo, do expressionismo e de suas formas atuais. A partir de entrevistas e observações de campo, classificamos estas atitudes emocionais dos seguintes modos, tal como o vimos no quadro acima e novamente aqui citado:

COMOÇÃO PELA VIA COMOÇÃO PELA COMOÇÃO NARRATIVA. ESTÉTICA MATÉRIA.

Ciça Fittipaldi (sp / go) Denise Haesbaert (rs) Débora Steinhaus (alemanha / sc – brasil)

Débora Steinhaus (alemanha Frantz (rs) Fred Svendsen (pb) / sc – brasil)

Denise Haesbaert (rs) Julio Ghiorzi (rs / go) Heloisa Maia (pb / rs)

Frantz (rs) Melina Moraes (rs) Julio Ghiorzi (rs / go)

Julio Ghiorzi (rs / go) Selma Parreira (go) Sergio Lucena (pb / sp)

Selma Parreira (go)

A comoção pelo estético foi o caso que procuramos apresentar aqui, seguindo os trajeto de Frantz e de Ciça Fittipaldi (especificamente em uma produção a partir de plumária de pássaros). Neste grupo ainda aparecem os artistas: Débora Steinhaus, Denise Haesbaert, Julio Ghiorzi e Selma Parreira. Em todos estes artistas há uma preocupação explícita com a pintura enquanto arte. Para este grupo, encontra-se, em grande parte, adequada as afirmações desenvolvidas por Richard Wollheim em seu livro sobre a pintura.

“[...] compreender quando e por que a pintura é uma arte, precisamos considerá-la da perspectiva do artista. [...] a pintura é uma atividade intencional. [...] É importante reconhecer que, no entanto, que embora a adoção da perspectiva do artista exija privilegiar o que o agente faz, não impõe que

126 nos limitemos a isso. Principalmente, não nos obriga a desprezar ou rejeitar o ponto de vista do espectador. O que essa perspectiva impõe é que o repensemos. E quando começamos a repensá-lo, a primeira coisa a nos chamar a atenção é que a distinção entre agente e observador não é uma distinção entre pessoas, mas principalmente entre papéis. Em segundo lugar, o que nos chama a atenção é o fato de que não só a mesma pessoa pode assumir diferentes papéis, como também que uma pessoa especial, um tipo de agente, tem de fazê-lo: o artista. O artista é essencialmente um espectador de sua obra. Para entender por que isso acontece, quero levantar uma questão que, ao que tudo indica, não recebeu muita atenção dos estetas. Não foi considerada digna de nota. Creio que essa questão, há muito ignorada e desdenhada, vai nos levar ao terreno da filosofia da pintura. Muitas mudanças se processaram, ao longo dos séculos, nas condições de exercício da pintura: mudanças nos materiais, na escala física do trabalho, na avaliação social da pintura, nas convenções vigentes, nas mútuas expectativas do pintor e do público, em uma miríade de coisas. Porém, como deixa claro a representação da pintura na pintura, um fato permaneceu constante em todas essas mudanças: a atitude do artista, a postura de corpo do pintor enquanto trabalha. Sua prática usual tem sido a de postar-se de frente para o suporte, do lado que vai marcar, com os olhos abertos e fixados nele. Quer a representação vise o naturalismo ou a alegoria, independentemente do deslocamento que pressuponha do pintor, a uma cena fictícia ou distante, ele mantém essa postura de corpo. [...]“ (WOLLHEIM, 2002: 37-39) O artista torna-se assim um tipo especial de observador, numa posição, no mínimo dupla, de quem faz e de quem faz observando e analisando e, isto, como diz Wollheim, aparece até mesmo no modo como os artistas trabalham. No âmbito da comoção pelo matérico identificamos as presenças predominantes de Melina Moraes, Denise Haesbaert, Selma Parreira, como também Frantz e Julio Ghiorzi. Denise Haesbaert trata da matéria do mundo e do corpo tomada como matéria a ser transformada na e pela pintura, e, portanto, confluindo também na direção da comoção estética. Aqui estarão presentes os processos transformacionais, de caráter físico-quimico, aqui as coisas não desaparecem simplesmente, elas permanecem como acúmulos afetivos. Elas transfiguram-em em outras, como um tipo de alquimia. Em Selma Parreira, o mundo é transformado em pintura, e neste sentido há também uma forte comoção pela via do estético neste trabalho. Em Melina Moraes, a matéria do mundo e a matéria do corpo tomam-se a matéria da pintura, envolvendo a degradação e a decomposição da vida orgânica, biológica. Parreira, Ghiorzi e Frantz tratam da matéria enquanto algo que interessa à reflexão da pintura, do mundo como representação pictórica, feito à feição e como passagem para a pintura. Ghiorzi, em suas diversas operações em pintura, consegue unir as três diferentes formas da comoção. A estética, com sua busca da complexidade formal e da estrutura do fazer, a matérica, com a investigação dos materiais propriamente ditos aplicados ao exercício de pintar e aos diferentes modos do esforço do artista – o quantum de energia física gasto na realização dos trabalhos de Ghiorzi, Parreira, Haesbaert e Moraes seriam um importante ponto para a pesquisa em torno da fixação emocional no campo matérico. E, para o âmbito da comoção narrativa, encontramos as textualidades de Sergio Lucena, Heloisa Maia e Fred Svendsen, todos os três artistas paraibanos e que freqüentam o universo da figura no campo propriamente figurativo. Lucena e Svendsen tratam de narrativas míticas e do reino fantástico. A emoção aqui é de ordem mágica, do fabulário e envolve os temas mais arcaicos e hodiernos. O medo, o sexo, a luxúria, o riso, todas as formas emocionais são ocupadas por máscaras. Em Heloisa Maia, os temas estão absolutamente próximos de “nossos eus”. Aqui, assistimos narrativas do mundo factual, da observação da cotidianidade, e de uma memória subjetiva de caráter emocional, psicológica. A pintora traça um comentário sobre o mundo de um ponto de vista exterior a todos os fatos, e um jogo entre contar uma historia pessoal dando a ela um toque impessoal, de estranhamento, de anonimato, ao mesmo tempo que oferece ao

127 espectador, uma estetização da cotidianidade, de uma historia intima, fazendo transitar o mais banal para o campo de uma historia publica e não doméstica. Nos mesmos termos temos os trabalhos de Débora Steinhaus. Só que aqui a narrativa é submetida ao domínio do estético e do seu rigor formal. É uma espécie de jogo de inversão em relação ao trabalho de Maia. O que assistimos é uma ordem de frieza na intimidade, o rigor da domesticidade, a miniaturização do gesto. E, para finalizarmos nossos comentários, em Julio Ghiorzi, as narrativas são rigorosamente formais, tais como as ilustrações do cotidiano de Steinhaus. Só que suas temáticas navegam entre as referências da historia da arte, da consciência histórica e estética, de citações e de referências alinhavadas com trajeto a-históricos, sejam eles da mera forma, sejam eles da presença de estruturações de caráter fabular e indicativo de uma mitologia. Resta ainda uma questão: a da subjetividade propriamente dita e sua trama emocional, tal como sugerida acima. Para tal tratamento adoto aqui um ponto para uma reflexão final, partindo da abordagem de Giddens para a questão da modernidade / alta modernidade / modernidade tardia. Este autor, em textos sobre o tema do mundo e da vida moderna, tem enfatizado a dimensão social do compromisso individual e as relações que a modernidade tem com a vida do indivíduo. As questões de Giddens lidam com a desesperança e com os cenários da complexificação da rede de confiança no plano mais técnico, inclusive. Esta problemática constitui o cerne da questão da identidade subjetiva de caráter egóico – uma identidade estável e estruturada / estruturante – e busca demonstrar como a complexidade do tecido social gera a fragilidade do indivíduo em relação “ao si mesmo”. Há, segundo ele, uma escassez de recursos no âmbito do valor, do tipo de valores que constituem a nossa esfera moral e de decisões que envolvem um quadro de juízos mais estáveis. Este mundo sombrio para o “pequeno eu” atinge a estrutura da vida emocional e a constituição dos sentimentos nos grandes centros urbanos, invertendo os próprios paradigmas da aprendizagem no qual fomos preparados e guiados. Estas configurações da vida emocional, materializadas através das práticas artísticas, são também elas parte integrante deste vasto projeto reflexivo pelo qual passa uma das identidades mais estáveis do quadro valorativo moderno: a identidade do artista. Independentemente de sua situação social e econômica, as sociedades burguesas do século XIX estabilizaram um determinado jogo identitário, no qual os artistas eram uma espécie de símbolo da individualidade crescente e afirmativa. Se a individualidade é hoje uma questão de caráter mais reflexivo, no dizer de Giddens, então há uma carência nos estudos das identidades artísticas, pois estas devem ser “verdadeiras” alegorias destes estados transicionais contemporâneos. A afirmação do eu foi substituída por uma reflexão e uma revisão permanente acerca de um “eu flutuante”. O que podemos esperar? O que podemos desejar? Assim, apontamos ainda para a relevância de uma reflexão mais profunda sobre as tribulações do eu e as trajetórias artísticas no mundo contemporâneo.

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130 ANEXOS

FITTIPALDI DESENHOS

131 FRANTZ

132 “Sinal de nascença escolhido”: a prática da tatuagem e a valorização da pessoa singular.

Débora Krischke Leitão

Proponho nesse texto uma reflexão a respeito dos usos e significados da tatuagem contemporânea a partir de pesquisa antropológica com mulheres tatuadas pertencentes a camadas médias da cidade de Porto Alegre. Procuro aqui discutir de que forma a tatuagem é percebida pelo grupo estudado como expressão e exteriorização de uma subjetividade individual. Inicio com uma breve reflexão sobre o estudo das técnicas do corpo na Antropologia, a idéia de construção do corpo nas sociedades tradicionais e os campos de estudo sobre a corporalidade e as aparências nas culturas contemporâneas. Trago uma breve descrição das particularidades da pesquisa de campo que deu origem a minha reflexão, para a seguir discutir analiticamente a relação entre a prática da tatuagem e valorização da subjetividade.

ANTROPOLOGIA E MARCA (SOCIAL) NO CORPO

As técnicas corporais têm sido tema caro à Antropologia desde os seus primórdios, quando esta ainda era, por excelência, uma ciência que tinha como objeto de estudo as sociedades tradicionais. A noção de corpo vem sendo, dentro dessa tradição, apreendida como fenômeno não apenas natural, mas histórico e social Diversos autores mostram que comportamentos naturalizados se encontram fundamentados em alicerces culturais, mais do que da esfera do biológico (BASTIDE:1983 e HEERTZ:1980), e que as diferenças encontradas de uma sociedade para outra na forma de usar o corpo reforçam seu fundamento cultural. As formas de caminhar, de nadar, de comer, de higiene, e até mesmo de parir devem ser compreendidas como parte de um habitus (MAUSS:1997a) que, de natureza social, configura os múltiplos elementos da arte de utilizar o corpo. A cultura seria de importância fundamental na determinação de gestos e posturas corporais, estando estes vinculados a um aprendizado. Haveria assim, segundo Mauss, uma série de "atitudes e técnicas corporais" próprias a cada sociedade, transmitidas através da eficácia da tradição.Uma vez incorporadas, como costumes, se prenderiam tão fortemente ao homem que nem mais poderiam ser por ele percebidas. Além das atitudes corporais apreendidas, o aspecto externo do corpo do homem vai ser modificado de acordo com parâmetros culturalmente definidos. Lévi-Strauss (1997b) nos diz, a respeito dos Caduveo, que para ser homem era preciso ser pintado. Uma vez decorado, vestido e pintado o homem exibiria sua humanidade. Desde seu nascimento teria impressos em seu corpo os caracteres da cultura (o habitus de que fala Mauss), através de comportamentos e sentimentos adequados e aceitos, de uma língua, de um jeito de vestir, entre tantas outras formas de tornar-se "humano". As modificações corporais são assim, de maneira bastante visível, parte desse formar, deformar e conformar o corpo (biológico, individual, social e cultural) do homem. Essas modificações, mesmo que também com objetivos estéticos, podem ser consideradas o que Michel de Certeau

133 chama de adaptação do corpo a um código, a uma norma (da cultura), constituindo o "retrato físico". (DE CERTEAU:1996). Pensar os adornos corporais em seu contexto social, procurando a lógica subjacente aos sistemas simbólicos é o que Anthony SEEGER (1980) propõe, procurando explicar a ornamentação de certas partes do corpo (orelhas e lábios) entre os Suyá através dos significados que tem os sentidos da fala e da audição (que ao contrário da visão e do olfato são faculdades de grande importância social) no grupo. Pierre Clastres, analisando a tortura nas sociedades tribais, também pensa no corpo como superfície de escrita. Segundo ele, do rito de iniciação o que resta, com o tempo, é a marca, as cicatrizes e desenhos deixados na pele do iniciado. (CLASTRES:1990). É o corpo o mediador do saber aprendido durante a iniciação. A lei escrita sobre o corpo do homem é a lei do grupo, e ser um homem marcado é, em grande medida, proclamar da forma mais visível possível seu pertencimento a ele.

OUTROS CORPOS

Também hoje, e para o antropólogo que se dedica ao estudo das sociedades urbanas ocidentais, os usos culturais do corpo (sob forma de vestuário, técnicas de postura e modificações corporais, entre outros) são fontes significativas de reflexão a respeito dos universos simbólicos em que estão inseridos. A partir desses pressupostos é que proponho que a tatuagem contemporânea seja tomada como objeto de estudo da Antropologia. O corpo construído, objeto da lei da sociedade e da cultura, pensado por Clastres é, entretanto, um corpo em certa medida diferenciado do corpo tatuado dos sujeitos ocidentais, contemporâneos e urbanos a respeito dos quais procuramos aqui refletir. Ainda que o conceito de construção do corpo seja fundamental para se pensar as marcas corporais da sociedade contemporânea, há de se atentar para as diferenças entre a idéia do corpo "igual" da sociedade tribal (CLASTRES:1990) e o corpo idealmente individualizado de nossa sociedade. Faço referência ao corpo em nossa sociedade urbana ocidental contemporânea como "individualizado", de acordo com a conotação dada ao termo por Dumont, quando o autor diz ser o "individualismo" a ideologia que predomina na sociedade ocidental moderna (DUMONT:1997). A noção de indivíduo como algo sagrado, auto-suficiente e independente do grupo seria, assim, uma das características da modernidade ocidental. Segundo Alain TOURAINE (1992), as duas categorias fundantes dos seriam a de Racionalidade e de Subjetividade, categorias aparentemente contraditórias mas que se completariam mutuamente. O corpo individualizado nesse contexto, seria muitas vezes percebido como superfície maleável, passível de modificação e transformação, de acordo com as vontades individuais (LE BRETON:1999). Em nossa sociedade, particularmente, essas modificações agiriam no sentido de uma escamoteação constante do corpo enquanto organismo natural (LE BRETON:1997), velando e escondendo seus aspectos mais fisiológicos através da higiene pessoal, maquiagem ou outras tantas práticas. (RIVIÈRE:1997). Tal afirmação parece paradoxal frente a enorme gama de práticas cosméticas, bio-médicas e estéticas as quais o corpo é constantemente submetido na sociedade contemporânea. Essas práticas, entretanto, que aparentemente colocam o corpo em lugar central da vida social também estão de alguma forma indo ao encontro da ideologia de anulação do corpo enquanto carne, trabalhando para moldá-lo e conformá-lo, possibilitando sua passagem para o âmbito da cultura. Os cosméticos e tratamentos de beleza há muito contribuem para transformar o dado natural, corpo, tornando-o “mais conveniente”, socializado, agradável ao olhar, segundo critérios

134 culturais particulares (RIVIERE:1997), desde os remédio corretores capazes de “curar a feiúra” do início do século XIX ( ver SANT’ANNA: 1995:121 e DEL PIORE:2000) aos tratamentos “naturais” que vendem a beleza de “ser você mesmo”. Atualmente, a cirurgia plástica estética (ver EDMONS:2002:189 e LE BRETON:1999) e o body building (ver MALYSSE:2002, SABINO:2002 e COURTINE:1995:81) também aparecem como forma de adaptação do corpo as normas e padrões culturais. Piercings (ver ROUERS:2001) e tatuagens (ver MAERTENS:1978, KRISCHKE LEITÃO:2000, LAMER:1995 e LE BRETON:2002), que aqui interessam particularmente, se inserem igualmente no hall das formas de modificação da aparência, marcando e expressando identidades/ papéis de gênero, classe, grupo etário, estilo de vida e grupo de pertencimento. A grande semelhança entre as modificações corporais nas sociedades tribais e nas sociedades complexas parece residir em dois pontos fundamentais. O primeiro, de ser reflexo, em ambos os casos, do trabalho humano – e por tanto cultural – sobre o corpo fisiológico natural, atribuindo- lhe conteúdos e sentidos. O segundo, profundamente imbricado ao primeiro, diz respeito a ligação dessas marcas (e das representações que os sujeitos tecem sobre elas) com o contexto social em que estão inseridas. Os conteúdos e sentidos atribuídos ao corpo através das marcas corporais só podem ser explicados, nos dois casos, a partir do contexto de sua produção, formado pelas práticas, valores e especificidades de cada sociedade.

PESQUISAR, PIGMENTAR

A pesquisa que dá fundamento a essa reflexão consiste em entrevistas individuais com mulheres tatuadas de Porto Alegre, cuja faixa etária variava de 20 a 35 anos, de profissões também bastante variadas (médicas, advogadas, secretárias, estudantes, professoras universitárias) e que tinham em comum, além de suas tatuagens, o gênero e o pertencimento a camadas sociais médias e altas da cidade. O uso das entrevistas tem como objetivo conhecer a trajetória de vida e visão de mundo dessas mulheres, tendo como foco a prática da tatuagem e os discursos construídos em torno dessa prática. O universo de pesquisa foi delimitado com o intuito de compreender o lugar dado a tatuagem e os significados a ela atribuídos pelas mulheres que a praticam. O recorte de gênero obedece, portanto, a essa intenção. A opção por restringir a pesquisa a mulheres de camadas médias da cidade de Porto Alegre deu- se em primeiro lugar pelo fato de a clientela principal dos grandes estúdios profissionais de tatuagem ser formada por pessoas pertencentes a classes médias e altas da cidade. A hora de trabalho dos tatuadores gira em torno de 120 reais, sendo que o mínimo para “ligar as máquinas”, não importando o quão pequeno venha a ser o desenho escolhido pelo cliente, é de 60 reais. Em uma experiência de pesquisa anterior (KRISCHKE LEITÃO:2000) foi realizado trabalho de observação durante um ano em um estúdio de tatuagem de Porto Alegre. Essa vivência perpassa, sem dúvida, minha reflexão a respeito da prática da tatuagem e, de forma mais objetiva, fornece material complementar e comparativo as entrevistas. Convém ressaltar que também o processo de entrevista com mulheres tatuadas pode ser considerado um trabalho de observação. Por essa razão há a preferência de que as entrevistas sejam realizadas na casa das entrevistadas, possibilitando uma aproximação e apreensão (ainda que breve) de seu modo de vida. Sendo as falas das entrevistadas registradas através de gravador, os demais componentes do processo de entrevista (que sem dúvida vai muito além do discurso) foram objeto de registro em diário de campo.

135 DA “BEM DE CADEIA” À “PRA FICAR BONITINHO”

Historicamente ligada à marginalidade e à exclusão econômica, política e social, ainda hoje a tatuagem é por vezes percebida pela grande público como marca que simboliza o desvio. Na mídia a tatuagem é explorada por dois vieses. De um lado, é vista como prática bizarra, de mutilação, e freqüentemente relacionada à criminalidade, e, por outro lado, é mostrada como uma moda “exótica” e muito freqüentemente erotizada. Mesmo ainda sendo por vezes classificada como prática desviante, é possível perceber uma ampliação no público que faz uso da marca. Essa ampliação é visível em sua presença na mídia, por exemplo, estampada na pele de modelos fotográficos e celebridades. O aumento significativo do número de estúdios de tatuagem no país e a crescente profissionalização dos tatuadores, seguindo normas de higiene e saúde estabelecidas por órgãos governamentais, também mostram um pouco do lugar ocupado pela tatuagem contemporaneamente. Entre as mulheres tatuadas entrevistadas o uso da tatuagem era percebida sobretudo como prática de embelezamento. A tatuagem era freqüentemente citada em conjunto a outras práticas (lipoaspirações, cirurgias plásticas, cuidados com o corpo, implante de próteses de silicone nos seios) que tinham como função um aprimoramento do corpo e da sua apresentação física. Tais procedimentos inaugurariam na contemporaneidade uma ideologia de autodisciplina e autocontrole da aparência (GOLDENBERG e RAMOS, 2002), centradas na necessidade da “boa forma física”, e da beleza não mais percebida como “dádiva da natureza” mas como resultado de um esforço pessoal de modificação do dado natural, corpo fisiológico, transformado em “obra pessoal”, ou ainda, nas palavras de BAUDRILLARD (1996), no “mais belo objeto de consumo”, digno de investimento de tempo e dinheiro. O uso da marca no grupo estudado era portanto baseado em justificativas estéticas, comumente referidas como fruto de sua vaidade e tendo uma especial funcionalidade na sedução e jogos amorosos com seus parceiros. Há, entre essas mulheres, um discurso comum que procura desvincular o uso de suas tatuagens (muitas vezes em oposição as tatuagens que trazem no corpo sujeitos pertencentes a outros grupos) de representações sobre desvio e transgressão. Assim, as discussões que trago aqui não dizem respeito a tatuagem enquanto emblema de desvio. Contribuem, entretanto, na compreensão das razões que teriam tornado possível as resignificações do uso da marca na atualidade88.

SINGULARIDADE E ORIGINALIDADE

Para as mulheres entrevistadas a tatuagem era comumente referida como expressão de uma individualidade e subjetividade. Ela parece marcar no mundo de fora, aos olhos dos outros, uma diferenciação interna dos sujeitos. Na medida em que a própria noção de subjetividade implica um sujeito único em suas características e particularidades (TOURAINE:1992), a tatuagem traz a reivindicação desse eu singular. A tatuagem é percebida então como marca capaz de representar as singularidades e particularidades individuais. Uma jovem entrevistada, Luisa, que possui três tatuagens espalhadas pelo corpo, conta das razões motivaram sua primeira tatuagem: “Fiz porque é uma marca realmente, e eu sou única com ela” Luisa, 25 anos, funcionária pública administrativa.

88 Para uma discussão mais aprofundada a esse respeito, ver: KRISCHKE LEITÃO, Débora. ”Transgressão e domesticação: a tatuagem contemporânea como ritualização das aparências” In: Cadernos do CEOM. Março de 2003.

136

Carla, que possui uma fada bastante colorida tatuada na parte interna do tornozelo, percebe sua tatuagem como algo que a faz “diferente”, com a função de “destaca-la”: “Eu sempre quis ter uma coisa assim, ai, que me destacasse sabe? Que todo mundo olhasse... que chamasse a atenção pra mim, me fizesse diferente. Daí foi passando o tempo e fiz minha fada” Carla, 29 anos, secretária executiva.

A idéia de “destacar-se”, assim como a da “diferença”, encontra alguma convergência com uma particularidade percebida por David LE BRETON (2000b e 1999) em certos aspectos da vida contemporânea. Algumas práticas, não apenas de cunho estético mas, por exemplo, determinados esportes radicais, estariam segundo o autor relacionadas ao desejo contemporâneo de singularização e originalidade dos gostos individuais. Tal singularização se daria por conta de um verdadeiro repúdio a uma possível uniformidade entre os sujeitos. Procura-se por tanto, escapar do temido anonimato, do “não ser como todo mundo” através de diversos signos, presentes no vestuário, nos cabelos, no corpo, em atitudes e opções pessoais e profissionais, e até mesmo no consumo. O uso desses signos traria a sensação de não se passar desapercebido, de existir aos olhos dos outros. Também BAUDRILLARD (1996) discute em profundidade questões relativas ao desejo de originalidade individual. Tal desejo seria uma das balizas fundamentais da sociedade de consumo na atualidade, em que haveria uma verdadeira produção industrial das diferenças. A necessidade de tudo “personalizar” (aqui no sentido de tornar pessoal, reflexo de si) estaria presente nos mais diferentes âmbitos da vida cotidiana, desde a escolha do estilo de vestuário ou do tipo de decoração da casa, ao carro que corresponde aos “desejos de sua personalidade”. A publicidade faria uso, contemporaneamente, desses elementos de originalidade e “personalização” dos bens de consumo (ver BATISTA e PEIXOTO, 2002 e KRISCHKE LEITÃO, 2002).

O “MUNDO DE DENTRO” E O “MUNDO DE FORA”

Em grande medida a noção de “destacar-se” através da marca da tatuagem diz respeito ao ato de personalizar, nesse caso, o próprio corpo do sujeito. O simples fato de ostentar a marca já traria a satisfação desse desejo: a marca “personaliza” o corpo. Mais além, é preciso também “personalizar” a marca, por exemplo quando da escolha dos desenhos impressos na pele. A tatuagem surge como representação externa do “eu”. A subjetividade e interioridade do sujeito deve ser expressada através do desenho na pele, ou ao menos deve haver um mínimo de sintonia entre essas duas dimensões. Aos desenhos bordados na pele são atribuídas características próprias a personalidade individual. O corpo (fisiológico, biológico) deve ser moldado/adornado de acordo com essa “personalidade”, e está subordinado a uma vontade (racional, emocional) do indivíduo. Essa subordinação só é possível, entretanto, se as noções de corpo e de mente (ou espírito, alma, razão, psique) forem tomadas como entidades separadas. A idéia dessa separação tem sua gênese historicamente datada. Na Idade Média, por exemplo, ela parece não existir (RODRIGUES:1999), o que explicaria, por exemplo, a adoração de partes dos corpos dos santos que, mais do que uma representação, seriam uma materialização do que remete à coisa divina, o sagrado em si. A dessacralização do corpo e sua separação da alma individual são na verdade um único e mesmo processo. David Le Breton (1998) situa a criação do dualismo corpo/mente na Itália do século XV. É nesse momento que, segundo o autor, começa a surgir a própria idéia de indivíduo, contemporânea e complementar a noção de dualidade entre corpo e mente.

137 O corpo, nesse período, começa a ser percebido como primeira fronteira, capaz de separar uma pessoa das demais e do próprio cosmos. É ele que dá os limites da existência e marca a diferença entre o “eu” e o mundo. Separado da mente ou da alma, haveria a possibilidade dessacralizar o corpo, e é quando pode passar a ser objeto de estudo dos primeiros anatomistas. A percepção dessas duas dimensões (da corporalidade e da subjetividade) ainda se faz presente no ideário contemporâneo. A oposição entre o físico (material e exterior) e o espiritual (interior, imaterial) norteia muitas das reflexões das mulheres entrevistadas a respeito de suas tatuagens: “Eu gosto de mostrar [a tatuagem] porque é um jeito de te conhecerem, porque revela pros outros um pouco do que tu pensa, de quem tu é, do teu mundo de dentro.” Fernanda, 27 anos, médica pediatra.

Falando das razões dos dragões que tem tatuados, Luisa revela a necessidade de tornar exterior algumas características que tomava como suas (interiores), mas que de outra forma não manifestava. A subjetividade, além de expressa, aparece então como constituída em sua exteriorização: “...ele [dragão] traz força, uma força que eu tinha mas não conseguia por para fora (...) meu signo é dragão [no horóscopo chinês], dragão eu já era.” Luisa, 25 anos, funcionária pública administrativa.

Através do desenho, Luisa diz “por para fora” uma característica sua, percebida como interior. É interessante pensar a respeito da superfície usada no processo, a pele, espécie de intermediário, limite simbólico ou, nesse caso, fronteira simbólica (porque permite trânsitos e deslocamentos) entre dois mundos: o externo e o interno. Nas palavras de Henri-Pierre JEUDY (2002:91), “a pele desvela e oculta a intimidade de nosso corpo...”, funcionando por vezes como uma espécie de “texto público” e “livro aberto aos olhos alheios”. A necessidade de uma profunda identificação pessoal com o desenho tatuado também aparece na fala de Antônio, um rapaz que freqüentava o estúdio de tatuagem onde realizei observação: “Claro que tem gente que arrepende de se riscar89...mas tem que fazer algo que tenha muito a ver contigo... muito a tua cara, que seja tu... aí não se arrepende nunca. Eu sei que tu muda, mas se tiver a ver com coisas tuas que não mudam, melhor” Antônio (2000) Gabriela, falando das carpas japonesas que tem tatuadas nas orelhas, diz que escolheu o desenho por ser uma representação de seu signo que seria, por sua vez, um símbolo capaz de falar de suas características pessoais. Ela brinca que hoje, professora “durona”, faria um par de tubarões, mais de acordo com o que gostaria de expressar de si: “ Eu gostava da questão do lugar mas não sabia o que fazer. Aí um dia eu resolvi fazer o meu signo. Eu sou uma pisciana, porque eu nunca vou mudar de signo. É eu, totalmente eu. Falei: “faz um peixe” e desenhei um peixinho assim modesto pra ele ter uma idéia. Hoje, se eu fosse fazer hoje acho que ia fazer um par de tubarões [risos] Pra dar mais um medinho neles [falando dos alunos].” Gabriela, 35 anos, professora universitária

Essa identificação entre “interior” e “exterior” na tatuagem parece essencial para assegurar o não arrependimento futuro. Ana e Carla falam de arrependimento, e da impossibilidade de arrepender-se dada a incorporação da marca ao seu corpo, seu modo de vida e sua personalidade:

89 Tatuar-se

138 “Tirar? Não penso, não pretendo. Pretendo contar historinha pros meus netos assim. Tem tudo a ver comigo, entende? Eu acho que agora já faz parte de mim, já tá incorporado, completamente. É o que eu sou.” Ana, 23 anos, booker de uma agência de modelos.

“Até hoje ela [sua mãe] me pergunta: “ai, tu sabe que tem como tirar com lazer, né?” E eu digo pra ela: “mas eu não tenho intenção nenhuma de tirar”. Porque essa fada, ela já faz parte de mim entendeu? Porque essa fada me descreve totalmente. Porque essa fada, ela tem nome, eu dei nome pra ela.. o nome dela é Jana. E ela é minha companheira, onde eu vou ela tá comigo .” Carla , 29 anos, secretária executiva.

Nesse sentido, pode-se mais uma vez referir-se a pele como fronteira metafórica entre a individualidade dos sujeitos e o mundo. Os deslocamentos através dela operados dão-se aqui em duas direções. É através dela que algo visto como interior é “posto pra fora”, nas palavras de Luisa, mas esse não é o único movimento. Através da superfície da pele também a marca da tatuagem, e todos os sentidos individuais e coletivos que carrega consigo, é incorporada. A marca incorporada, que “já faz parte do corpo”, aparece nas palavras de Gabriela como um sinal de nascença escolhido: “Pra mim é parte do meu corpo,como se fosse um sinal. Esses dias eu conheci uma menina, que ela tem uma mancha enorme assim no rosto, vermelha, e ela tem o olho rasgadinho, meio indígena, eu achei lindo. Ela tem uma tatuagem natural. Toda uma marca de nascença assim, que é dela. E eu acho que tem coisas que são parte de ti. Sabe, aquilo é parte dela. O meu não é de nascença, só isso. Eu escolhi, é um sinal de nascença escolhido que eu me dei de presente.” Gabriela, 35 anos, professora universitária.

TEMPORALIDADES

A oposição e a separação entre as dimensões espiritual e corporal envolvem certo grau de hierarquia. O espiritual é freqüentemente percebido como privilegiado na relação. A própria idéia de “essência” do eu, das “coisas tuas que não mudam”, invocam diferentes importâncias e temporalidades específicas para as duas dimensões. Essa essência ou personalidade individual remeteria à permanência. A vivência corporal, por outro lado, pode ser percebida como mais efêmera, sujeita a mudança e a transformação (ao envelhecimento e a morte, em última instância). A tatuagem traria, portanto, a possibilidade de imprimir certa permanência no efêmero. Ela funciona, nas palavras de uma entrevistada, como um marcador estético contrário à efemeridade das coisas do mundo: “Tudo é passageiro hoje, né... uma tatuagem não. Vai contra isso porque é definitiva, fica pra sempre.” Bia, 18 anos, estudante. A tatuagem, enquanto marca duradoura, sinal não descartável, poderia imprimir na pele algo do qual não se pode despojar-se. A marca não, entretanto, percebida como fixa, como se o tempo não passasse. Há, ao contrário, uma profunda consciência desse tempo, que em muito influi nas escolhas de lugares do corpo passíveis de receber uma tatuagem.

139 As mulheres entrevistadas sempre faziam referência a uma ponderação a respeito do futuro e do envelhecimento do corpo, presente no processo de decisão do lugar do corpo que alojaria a marca da tatuagem: “Tem que ser pensado o lugar pra não ficar deformado quando tu fica velha. É que vai ficar murchinho, sempre, e aí com a tatuagem... tem lugar que não dá porque fica tudo murchinho.” Sabrina, 27 anos, advogada.

O corpo, efêmero e aparentemente menos importante do que a dimensão subjetiva, parece ser, entretanto, reencantado através da tatuagem. Na mesma direção, enquanto os discursos sobre a prática nos remetem a separação entre corpo e mente na história ocidental, também parecem reivindicar que de alguma forma essas duas “entidades” ou “dimensões” sejam interconectadas. Há a idéia da separação, mas o desejo, expresso no próprio uso da marca, da complementaridade e da unicidade.

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