França 1938, III Copa do mundo O rádio brasileiro estava lá

Gisela Swetlana Ortriwano∗ Universidade de São Paulo ECA

Índice Quem, como eu, se criou ouvindo aqueles artistas da emoção que irradiavam os jogos, 1 Uma voz... a imaginação fez o resto 2 nunca pôde aceitar outro estilo de narrar 2 Goal, goal, goal...é guerra: as batalhas que não fosse o dramático latino. Lembro nos campos franceses 3 que na primeira vez em que fui ver um jogo 3 Cheiro de mistério no ar 4 até me decepcionei um pouco. Futebol no 4 Se não for a mãe do juiz, a culpa é do campo era emocionante, mas não era tanto técnico... talvez da imprensa 5 como no rádio. Mas nunca perdi a impres- 5 Tecnologia da usina de sonhos: for- são de que quem não transmitisse o futebol mato de oração 6 como um locutor brasileiro, de certa forma o 6 Façanhas esportivas de um rádio prin- estava traindo. Era inadmissível, por exem- cipiante: filmando o jogo com a voz 7 plo, que o grito de ‘gol’ tivesse um só ‘ó’.” 7 O espetáculo não pode parar: aventu- ras dos intrépidos pioneiros 9 Luis Fernando Verissimo (O Estado de S. 8 Copa de 38: até a final, o Brasil é todo Paulo, 24.06.1998) ouvidos 10 9 Charme e glamour de um artilheiro: Vibrante, polêmico. Foi assim que nas- futebol e rádio 11 ceu o rádio esportivo, um dos gêneros mais

∗ instigantes e desafiadores da programação. Gisela Swetlana Ortriwano é jornalista, doutora A combinação entre palavras e ambientação em Ciências da Comunicação e professora de radi- ojornalismo na Escola de Comunicações e Artes da sonora é adrenalina pura. Imagens mentais, a Universidade de São Paulo. Coordena o NJMT – Nú- matéria prima do diálogo do rádio com o ou- cleo de Jornalismo, Mercado e Tecnologia. Autora vinte, são arma poderosa. Se o futebol é adi- de A informação no rádio (Summus). E-mail: tornar-se explosiva. O torcedor não deixa de comparecer ao es- tádio mas leva seu radinho, amigo fiel, para ajudá-lo a sentir a emoção do que está acon- tecendo no campo e seus arredores. Ou, em 2 Gisela Swetlana Ortriwano casa, vê a imagem na televisão ouvindo o vezes era obrigado a ficar nas gerais, junto show que é a recriação do espetáculo propor- ao público, à beira do gramado, na linha cionada pelo rádio. de campo e, quando tinha sorte, nos telha- dos das redondezas” afirmaria, anos mais 1 Uma voz... a imaginação fez o tarde, rememorando seu feito para O Estado de S. Paulo. Em 1938, as transmissões radi- resto ofônicas eram feitas diretamente através de O Campeonato Mundial de Futebol de 1938, emissoras de Ondas Curtas, com sistema de realizado na França foi palco, fora das qua- antenas dirigidas. “Ao contrário do que se di- dras, de um importante marco do rádio bra- vulgou no Brasil, aquelas transmissões che- sileiro: a primeira transmissão esportiva, em garam muito bem até aqui e eu, pelo me- cadeia nacional, diretamente da Europa. nos, ganhava bem, naquela época em que Os cinco prélios dos quais o scratch brasi- Ary Barroso começava como locutor”. leiro participou, mais o match final que deci- Transmitir partidas internacionais de paí- diu o certamen, foram irradiados para a Ca- ses da América do Sul não era nenhuma no- deia de Emissoras Buyngton. Formada pelas vidade: os locutores esportivos já estavam rádios Clube do Brasil e Cruzeiro do Sul do acostumados. Formar cadeias de emissoras , Cosmos e Cruzeiro do Sul também era comum desde o início dos anos de São Paulo, além da Rádio Clube de San- 30. E, na Copa da Itália, em 34, o rádio tos, em colaboração com os jornais O Globo italiano já havia transmitido a partida final. e Jornal dos Sports, sob o patrocínio exclu- A proeza foi irradiar a participação nacional sivo do Cassino da Urca, o sucesso foi ime- em terras européias. diato. Conforme o team patrício, constituído Notícias dão conta de que em 1938 o Bra- por moços fortes, fazia cair os adversários, sil parou para ouvir as irradiações de Gagli- outras emissoras, de norte a sul, de leste a ano Neto. O povo, incrédulo e fascinado oeste do país foram se integrando à perfor- com os sons vindos do outro lado do oce- mance espetacular do rádio. ano, vibrava. Quem não tinha rádio em casa, O autor da façanha foi o locutor paulista se aglomerava no Largo do Paissandu em Leonardo Gagliano Neto, titular do Departa- São Paulo ou diante da Galeria Cruzeiro, no mento de Esportes da PRA-3 - Rádio Clube Rio de Janeiro. Por esse país afora, onde do Brasil do Rio de Janeiro que, apesar das fosse viável, as pessoas se reuniam para não limitações técnicas da época, irradiou tudi- perder as transmissões ampliadas pelos alto- nho para o prezado amigo radioouvinte. Ga- falantes que as emissoras espalhavam em lu- gliano era o único radialista sul-americano gares estratégicos, inclusive os estádios de em ação nos estádios franceses. Assim como futebol: os fans da pelota não queriam per- o Brasil era o único time participante abaixo der a façanha dos footballers patrícios nos da linha do Equador. “Naquele tempo, não campos franceses. existiam comentaristas, repórter de campo e Mesmo os que não eram apaixonados pelo toda a equipe que atualmente participa de esporte bretão não queriam deixar de parti- uma transmissão. O locutor na maioria das cipar do magnífico acontecimento, valori- zando a campanha do team nacional. En-

www.bocc.ubi.pt França 1938, III Copa do Mundo 3 tre eles, um garoto de onze anos que passava 2 Goal, goal, goal...é guerra: as férias em Rio Negrinho, no interior do Pa- batalhas nos campos franceses raná e acompanhava o tio na entrega de café feita com uma carrocinha puxada a cavalo. Após 17 dias de viagem na segunda classe Ao longo do trajeto, ouvia Gagliano Neto de um navio, os aguerridos footballers bra- narrando Brasil 6x5 Polônia, no longínquo sileiros desembarcaram em Marselha esban- 5 de junho de 1938. Em cada armazém, bar, jando confiança em sua actuação no cotejo praça pública estava a voz marcante que não mundial. Ternos, gravatas, capas de gabar- deixava ninguém perder o fio da meada, o dine, sapatos reluzentes, maletas padroniza- transcorrer da partida que estava sendo rea- das, o imprescindível chapéu (elegância es- lizada tão longe! É uma imagem que Mario merada que o traje social completo exigia), Fanucchi, depois profissional prestigiado, de não impediam que , Perácio, Do- múltiplas habilidades artísticas no rádio pau- mingos da Guia e os outros rapazes que de- listano e pioneiro de primeira hora da televi- fendiam as cores nacionais surpreendessem são brasileira, ainda guarda na memória. Na os franceses com suas embaixadas e cabece- época, não pensava em rádio ou em futebol: adas, em esplêndida demonstração de com- acabou apaixonado por ambos. petitividade, cheios de esperança em busca A transmissão chegou, como não podia de novos louros. Era o início do futebol-arte, deixar de ser, com chiados e interferências, pura fantasia que, até hoje, 60 anos depois, mas foi possível entender o som que ligava, continua encantando o mundo inteiro e faz como num passe de mágica, Brasil e França. do Brasil um mercado de elite do futebol. A narração consagrou, definitivamente, o lo- Emoções não faltaram para garantir o su- cutor que, com sua voz possante e pausada, cesso das narrações. O Brasil disputou 5 jo- imortalizou-se na história da radiofonia bra- gos, em seu uniforme azul e branco (apenas sileira, muito mais pelo significado de sua em 54 foi adotado o verde e amarelo, sur- arrojada iniciativa do que por outros atri- gindo a seleção canarinho) nos quais Gagli- butos artísticos. Como prêmio por sua cora- ano Neto gritou gol 25 vezes, 15 dos quais josa iniciativa, Gagliano Neto foi promovido assinalados pelos valorosos scratchman bra- ao cargo de diretor geral da Rádio Clube do sileiros. Na verdade, Gagliano gritava goal, Brasil e, partindo do princípio de que rádio que era o termo usado na época, em que as é sonhar, tentou vôos mais altos reunindo na camisas ainda não eram numeradas (o que só emissora dos Irmãos Buyinton a nata do rá- ocorreria a partir da Copa de 50, no Brasil), dio brasileiro. Como dirigente, suas iniciati- dificultando ainda mais a tarefa de nosso spe- vas de formar um cast fabuloso foram malo- aker. Conhecer a fisionomia dos brasileiros gradas. A orgia de contratar os maiores as- não era difícil. Mas dos adversários...haja tros e estrelas por somas astronômicas, durou imaginação! pouco. Nessa aventura, o próprio Gagliano Nessa terceira participação - única sele- dançou e foi para a Rádio Nacional, também ção, até hoje, a estar presente em todas as do Rio de Janeiro. Copas - o Brasil chegou às semifinais, fi- cando com o honroso 3o lugar. Leônidas, com oito gols, foi o artilheiro da Copa. O www.bocc.ubi.pt 4 Gisela Swetlana Ortriwano técnico era . Em 38, de- 3 Cheiro de mistério no ar vido a problemas, em sua maioria de or- Jogo de segredos e controvérsias. O back dem política, apenas 15 seleções disputaram , o Divino Mestre, consi- o mundial de futebol. derado o maior zagueiro-central do futebol Na estréia, a 5 de junho, Brasil 6x5 Polô- brasileiro, até então atuando como uma ver- nia mostram jogo ofensivo, com uma chuva dadeira muralha contra o ataque inimigo, de gols das mais espetaculares de todos os acabou sendo o responsável pelo penalty Campeonatos Mundiais. Nas quartas de fi- muito discutido e o tento que favoreceu os nal, Brasil x Checoslováquia (1x1 e 2x1) dis- oponentes. Os comentários technicos da im- putam duas partidas seguidas para desempa- prensa garantiam que houve mellé na área. tar: os teams travam uma verdadeira batalha Nosso quadro foi abatido por uma decisão na praça de esportes. Jogadores expulsos de iníqua do juiz. O crack raramente dava chu- ambos os lados, alguns checos hospitaliza- tões, preferindo sair driblando os adversá- dos, feridos com gravidade. Apesar dos ner- rios. Capitão da equipe de 38 (já havia atu- vos, um lance duvidoso garantiu a victória ado na Copa de 34) ele se envolveu em um nacional: a bola escapa das mãos do goleiro lance polêmico na malfadada partida. Ao brasileiro, entra, mas o juiz não vê e nossa ser cutucado por um atacante da Squadra imprensa faz de conta que não aconteceu, Azzurra, dentro da área brasileira, Da Guia evitando comentar o assunto. O tira-teima não hesitou em revidar. Ele sempre negou ainda não existia... que tenha cometido a penalidade, em lance Classificado para as semifinais, o técnico sem bola que acabou conhecido como do- não escala sua principal estrela, o centroa- mingada. vante Leônidas para o jogo Brasil x Itália, Histórias, muitas histórias, trágicas umas, a 16 de junho, dia de Corpus Cristhi. Re- cômicas outras. Se não são verdadeiras, sultado: a Itália vence pelo placard de 2x1. passaram a enriquecer muito o folclore que A ausência de Leônidas gerou muita con- cerca o futebol. Entre elas, a da cobrança do trovérsia. Para alguns, estaria contundido; pênalti pelo atacante italiano Giuseppe Me- segundo outros, Pimenta o teria preservado azza: ao correr para cobrar a falta máxima, para uma eventual partida final uma vez que de suprema importância àquela altura da par- o time estava cansado. O substituto natural, tida, seus calções caíram até os joelhos. Sem , que teria condições técnicas de de- se abalar, tranqüilamente, Meazza agarrou os cidir o jogo, não poderia ser escalado por um calções com uma mão, puxou-os para cima e imprevisto risível: tinha contrato profissio- marcou seu goal, enquanto o goleiro não se nal com um clube italiano. Naquela quinta- continha, rindo às gargalhadas. Com o gol, a feira, a delegação nacional viu-se desfalcada Itália foi para a final. ainda do guardião da meta Batatais, seu go- Enquanto isso, no Brasil, até a hora do leiro titular e do ponteiro esquerdo Hércules. jogo, havia muita expectativa sobre as trans- Se foi estratégia, tática esportiva, o tiro saiu missões. No grande momento - 13h00 -, na pela culatra. Praça Patriarca, em São Paulo, mais de mil pessoas se aglomeravam para ouvir a irradia-

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ção, da qual participaria também a Rádio Re- 4 Se não for a mãe do juiz, a cord, conforme noticia O Estado de S. Paulo. culpa é do técnico... talvez da Numa voz rouca, com altos e baixos, os alto- imprensa falantes retransmitem: “Prezados ouvintes brasileiros, Marselha parou hoje para ver o Mistérios, segredos, boatos. Sempre foi as- time do Brasil. Leônidas não joga. A esca- sim. Conta-se que os brasileiros estavam tão lação do selecionado brasileiro é a seguinte: certos da vitória que haviam comprado todas Walter, Domingos e Machado; Zezé, Martim as passagens do avião que sairia de Marselha e ; Lopes, Luizinho, Romeu, Perá- - sede da nossa seleção - para jogar a final em cio e Patesko”. Depois, Gagliano Neto rela- Paris. Mas, após a derrota, a chefia da dele- ciona a seleção adversária. Ainda segundo o gação não as vendeu para os italianos, que Estado, “mil homens, mil chapéus, na assis- foram obrigados a amargar uma longa via- tência da Praça Patriarca. Outros pontos de jem de trem. aglomeração para ouvir o jogo: Praça An- A confiança no triumpho era tanta que na tonio Prado, Líbero Badaró, Praça da Sé, véspera da partida válida pelas semifinais os Largo da Misericórdia”. dirigentes brasileiros contaram com o ovo O jogo chegou ao fim. Ninguém se confor- dentro da galinha: celebraram em grande mava com a consignação da falta máxima noitada numa boate de Marselha. cometida - ou não - por Domingos da Guia, Mais uma: dizem que o boato de que um dos motivos da derrota. Nas ruas do cen- Adhemar Pimenta tenha poupado Leônidas, tro, a tristeza era total. Só no Brás, reduto tanta a certeza de vitória, foi intriga do téc- de italianos, alguma alegria. Nem no Be- nico italiano em jogada psicológica ardilosa xiga houve comemoração devido aos muitos para que seus comandados, feridos no orgu- conflitos italianos x brasileiros. Entre as bri- lho, se sentissem ainda mais estimulados gas, algumas sérias: a multidão envolvia- rumo à vitória. Essa é mais uma das histórias se em tumultos, frustrada em seu desejo ar- que jamais foi convincentemente explicada. dente de victória. Em 38 o Brasil tinha equipe capaz de so- Restava conformar-se e disputar o terceiro nhar com o título. Os jogadores foram di- lugar, contra a Suécia, no dia 19 de junho. vididos no time azul, considerado titular e Leônidas volta à equipe (ah, os treinadores baseado na força física e no branco, os re- sempre tiveram seus mistérios...) e marca servas, embora fossem excelentes jogadores dois gols que lhe garantiram a artilharia do com técnica apurada. O azul era considerado campeonato, em fácil vitória baseada na me- mais agressivo e pesado e o branco, dos bai- lhor técnica e, mesmo parecendo estranho, larinos, mais leve. Ambos, times de respeito. melhores condições físicas. O Brasil encerra Os italianos venceram em partida contur- a participação na III Copa do Mundo alcan- bada com os brasileiros reclamando muito çando o pódio, mas deixando no ar muitas das falhas da arbitragem, o que truncou a controvérsias que envolveram em mistério e peleja. Mais grave: o apitador não teria mar- encanto aquelas aventuras pioneiras. cado duas penalidades máximas a favor dos nacionais. www.bocc.ubi.pt 6 Gisela Swetlana Ortriwano

Além das pressões políticas vindas de to- em suspense, tirou a chance de encerrar a dos os lados, as arbitragens desastrosas es- campanha com fecho de ouro. “Sob o ponto tiveram lado-a-lado com as figuras do gra- de vista estrito das regras, houve realmente o mado nos campos franceses em 38. E, como pênalti. Entretanto, o juiz poderia ter perdo- de futebol todos entendemos, o juiz foi o cul- ado considerando que a bola estava fora de pado. Assim como o técnico, claro. Con- jogo.” Nesse dia, apesar de Deus ser brasi- tusões mal explicadas tiraram do time seus leiro, o jeitinho não funcionou. goleadores principais, Leônidas e . Con- vocar um crack - Niginho - que não poderia 5 Tecnologia da usina de sonhos: ser escalado pois tinha contrato com um time italiano é outra das histórias estranhas e mal formato de oração contadas... Vivíamos a gloriosa fase em que o rádio bra- Em 38 tudo era difícil, não apenas para sileiro iniciava seus Anos de Ouro, do revo- a cobertura esportiva que o rádio brasileiro lucionário e moderno rádio a válvulas, que protagonizava. Faltava dinheiro e a sele- captava apenas AM - Amplitude Modulada: ção teve de viajar até a França em navio Ondas Médias (OM) e Ondas Curtas (OC). A de segunda classe (Gagliano Neto entre eles, FM - Freqüência Modulada - já existia, mas incorporado à delegação), com paradas na mal engatinhava em terras norte-americanas. Bahia e no Recife, onde foram realizados Os receptores a válvula, chamados Ca- dois treinos de campo. Pimenta afirmava pelinha por sua forma de oratório familiar, que “havia indisciplina e não dispúnhamos eram o que havia de mais moderno. Mas de gente suficiente para conter os jogadores. ainda convivia-se muito com os rádios ga- O Tim, que diz por aí que fui eu o culpado, lena, artesanais, feitos em caixas de charutos era o mais exaltado. Mas quem mandava ou de Matte Leão, onde eram organizadas as no time era eu. Jamais admiti interferência pequenas peças responsáveis pela captação de alguém, fosse quem fosse. Eu era o téc- das ondas hertzianas: cristal de galena, re- nico, o preparador físico, o massagista e o gulador de contato, indutor, condensador e roupeiro do time”. variável de sintonia. Barato e fácil de fazer Domingos da Guia, quase 30 anos depois, em casa. Assim, o rádio alcançava as cama- admitia, até com uma dose de exagero, sua das mais populares, ainda que em seus pri- culpa. “Eu perdi a Copa do Mundo de 1938... meiros tempos, fosse uma experiência mais confesso que perdi a cabeça, mas a justifica- excitante para aqueles que tinham nível cul- tiva me parece válida: fui cuspido, levei pon- tural mais elevado. No começo dos anos 30 tapé em todos lugares... num deles, revidei. o rádio já fazia parte do dia-a-dia do brasi- E por isso, perdemos a Copa”, afirmava ao leiro urbano acostumado com as modernida- Jornal da Tarde. des daqueles tempos. Gagliano Neto pensava um pouco dife- Durante a Copa de 38, o rádio ainda vi- rente a respeito do fatídico penalty que mu- via sua época romântica e as equipes espor- dou o score sportivo da contenda de football tivas não ficavam atrás. Locutores e técnicos e, apesar do desempenho leal e bravo, um excediam-se para colocar no ar uma partida tiro forte e calculado, que manteve o Brasil

www.bocc.ubi.pt França 1938, III Copa do Mundo 7 de futebol. Cada nova dificuldade significava Nas transmissões ao vivo, era preciso do- um desafio a ser vencido. Todo recurso era minar o infalível jeitinho brasileiro para dri- válido. Subir em telhados, muitas vezes com blar as deficiências técnicas. Socos e mur- binóculos para poder ver o campo e os lan- ros no equipamento surtiam efeitos surpre- ces a serem narrados, era dos mais comuns. endentes... Hoje, o rádio vive outro mo- Pedir emprestado o telefone dos vizinhos aos mento em que é necessário dominar a tec- estádios que, muitas vezes, cediam não só o nologia para conseguir seus melhores resul- aparelho, sempre graciosamente, mas ainda tados: o casamento entre o rádio e a informá- ofereciam café, bolo e biscoitinhos caseiros tica tem trazido à tona o melhor de sua po- aos heróicos responsáveis pela façanha de ir- tencialidade. Mais uma vez, os profissionais radiar as pelejas que tanto prazer proporci- sentem-se obrigados a driblar as dificulda- onavam aos aficionados, também fazia parte des técnicas com socos e murros... desta vez, das estratégias técnicas. Ou, ainda, escalar virtuais já que computadores são engenhocas os postes para completar ligações telefônicas sensíveis, pouco afeitas aos embates físicos. clandestinas usando precárias gambiarras. O que a imaginação sugerisse era tentado e, 6 Façanhas esportivas de um dando certo, repetido não somente nos pro- gramas esportivos como em outros gêneros rádio principiante: filmando o radiofônicos. jogo com a voz A qualidade das transmissões não era boa, Nicolau Tuma, o Speaker Metralhadora, em sempre sujeitas a muitas e diferentes interfe- suas transmissões esportivas realizava a fa- rências. Mas o rádio ocupava lugar de desta- çanha de pronunciar até 250 palavras por que, merecendo inteira atenção dos ouvintes minuto, que os ouvintes conseguiam enten- que se esforçavam para decifrar as palavras der, perfeitamente, mesmo com as deficiên- entre chiados e estalidos. O receptor Cape- cias técnicas, tanto de emissão como de re- linha, instalado na sala, em lugar de honra, cepção. Na Copa de 38 Tuma, no auge de era um verdadeiro oratório familiar. sua fama como locutor esportivo, acompa- Sob o ponto de vista do aparato técnico, nhou as transmissões como ouvinte uma vez também não era fácil trabalhar: os microfo- que a emissora em que então atuava, a Rádio nes eram grandes, pesados e funcionavam a Cultura de São Paulo, não tinha condições de carvão. Socos e murros eram recursos téc- entrar na disputa enviando seu locutor. Mas nicos indispensáveis para que pegassem me- lembra até hoje o trocadilho que surgiu em lhor, no tranco. Mas a paixão e a persis- função do violento futebol praticado pelos tência em completar as irradiações esporti- tchecoslovacos contra os brasileiros: checos vas ao vivo auxiliaram muito no aperfeiço- los toros e não checos los vacos, refrão que amento dos recursos técnicos, contribuindo Gagliano Neto repetia a todo instante. para desenvolver a linguagem do rádio como Antes da primeira irradiação lance por um todo e, principalmente, do seu jorna- lance, o rádio já acompanhava os eventos es- lismo que pôde alçar vôos mais altos, an- portivos e, no caso do futebol, divulgava no- corado nas experiências dos profissionais da tas sobre o andamento das partidas, princi- cobertura esportiva. www.bocc.ubi.pt 8 Gisela Swetlana Ortriwano palmente quanto aos gols: por telefone a in- paulistas, à esquerda, os paranaenses. No formação era passada ao locutor que a emitia intervalo, as equipes mudam de lado. Nada do estúdio. mais simples e objetivo para garantir a vizu- A transmissão de uma partida completa, alização mental do palco da ação. em cada jogada, ocorreu a 19 de junho de Em suas narrações, Tuma não usava o gol 1931 entre as seleções de São Paulo e do Pa- prolongado, como fazem os locutores atuais, raná. Nicolau Tuma fez a transmissão para competindo entre si para criar características a Rádio Educadora Paulista (depois Gazeta), próprias, uma marca registrada. Acreditava diretamente do campo da Chácara da Flo- que o ouvinte queria saber logo quem mar- resta. Ele decidiu filmar oralmente o jogo cou, como foi, detalhes que o grito de gol sendo obrigado, para alcançar seu intento, demorado retardaria. Por outro lado, o fato a narrar em alta velocidade. Não havia co- de ter que narrar todas as jogadas sem o auxí- mentarista, repórter de campo ou anúncio co- lio de recursos de sonoplastia ou a colabora- mercial para ajudá-lo a ganhar espaço e res- ção de comentaristas e repórteres de campo pirar. E, se no campo a bola parasse, ti- também era empecilho ao grito triunfante de nha que continuar falando pois o rádio não mais um gol. pode dar branco no ar. Vinhetas, efeitos O pioneirismo do rádio também esteve sonoros? Não tinham sido inventados. Pi- presente em outros esportes, não só no fu- oneiro, transmite o movimento da bola en- tebol. Em 1921, uma luta de boxe entre os tre os jogadores e descreve todos os lances, célebres pesos-pesados Jack Dempsey e Joe um a um. De passagem, enquanto a bola Carpentier foi transmitida pela KDK-A, de está fora de jogo, precisa de assunto: fala Pittsburgh, Pensilvânia, poucos meses após do clima, do público presente, relembra as o início da atividade comercial do rádio nos jogadas... Os paulistas venceram os para- EUA. No início, os pioneiros foram conside- naenses por 6x4 e o Speaker Metralhadora rados lunáticos, malucos, impostores, misti- estava consagrado e iniciava sua carreira de ficadores, bruxos, loucos... Com o tempo, estripulias. alcançaram o status de ídolos sendo, mui- Desde a primeira experiência Tuma esta- tas vezes, mais famosos e assediados que os beleceu as normas que, com pequenas vari- esportistas que proporcionavam os espetácu- ações, são válidas ainda hoje. Começou lo- los. calizando o campo para o ouvinte: explicou A Corrida de São Silvestre, disputada na que estava junto ao público das gerais em um Cidade de São Paulo a cada passagem de local que denominou reservado da imprensa, ano, desde 1924, à noite e com outro per- seu posto de trabalho. Domina, totalmente, curso que o atual, era transmitida pela maio- de forma intuitiva, a idéia da criação de ima- ria das emissoras paulistas. gens mentais. Solicita, de início, que pen- Havia muito charme e glamour nas irra- sem em uma caixa de fósforos. A partir daí, diações esportivas, mesmo que muitas ve- estabelece o diálogo com os ouvintes e as li- zes fossem forjadas ou não passassem de nhas gerais que ainda norteiam as aberturas simples brincadeiras de 1o de abril. Nico- das transmissões esportivas. Tuma completa lau Tuma tem muitas histórias para contar! o cenário explicando que à direita estão os Quanto à qualidade e à fidelidade do som,

www.bocc.ubi.pt França 1938, III Copa do Mundo 9 deixavam a desejar, variando de acordo com as equipes esportivas, verdadeiros artistas na as condições atmosféricas e a boa vontade arte da criação de imagens e no estabeleci- das empresas de telefonia pública que, da mento de diálogos mentais com seus ouvin- mesma forma que o rádio, eram principiantes tes. naquele tipo de prestação de serviços. Qual- Chico Buarque de Holanda, lembrando quer chuva acabava em festival de estáticas e em crônica n’O Estado de S. Paulo das emo- chiados, reproduzindo e ampliando o ribom- ções sentidas pelo garoto de 6 anos na Copa bar dos trovões após criar a imagem mental de 50, afirma que a grande sensação era “o dos relâmpagos com perfeição. Maracanã recém-concluído, o maior estádio O Circuito da Gávea, no Rio de Janeiro era, do mundo, (...) a primeira coisa maior do desde 1933, o palco dos adeptos do automo- mundo que faziam no Brasil, e a molecada bilismo, sendo as corridas transmitidas por enchia a boca para falar ‘Maracanã”’. Mas Renato Murce e Nicolau Tuma. Este, mais para Chico, “a verdadeira Copa, para quem uma vez pioneiro, conseguiu, em 1934, dis- morava em São Paulo, chegava pelas ondas tribuir informantes pelo percurso - hoje, se- da Rádio Panamericana. Mais que o locu- riam repórteres - que lhe passavam, via tele- tor, era o eco do Maracanã quem narrava o fone, as novidades que ocorriam em vários jogo. O estádio fazia ‘óóóóó’, e era jogada pontos do circuito para que o locutor os con- de efeito. Fazia ‘úúúúú’, bola raspando a tasse aos ouvintes. Também o Grande Prê- trave. Fazia ‘hhhhhhhhhhhhhhh’, Brasil de mio São Paulo era transmitido, já em 1936, novo no ataque. Gol, e o Maracanã explodia, pelas rádios Transmissora (RJ) e Rádio Edu- e a gente cantava Touradas de Madri pulando cadora Paulista pelo trio Tuma, Murce e na cama. No dia em que perdemos a taça Oduvaldo Cozzi. Eram consideradas espeta- para o Uruguai, claro que desliguei o rádio e culares, causando sensação nos meios espor- taquei a culpa no Maracanã”. tivos e radiofônicos, narrando com emoção Cabines de imprensa? Dos terraços ou te- as atuações dos ases do volante em seus pos- lhados de prédios vizinhos aos estádios, mu- santes bólidos, as baratinhas, e as reações nidos com binóculos, era possível irradiar da assistência perfilada ao longo do percurso as contendas, às vezes à revelia dos clubes. sendo, às vezes, vitimada por acidentes es- Os profissionais das emissoras tinham que petaculares, alguns fatais. resolver como dar suporte técnico para essas aventuras. O aumento de audiência muitas 7 O espetáculo não pode parar: vezes era conseguido pela polêmica: tanto os simpatizantes como os adversários ouviam aventuras dos intrépidos para poder contestar. Geralmente, os locu- pioneiros tores defendiam no ar as cores dos times de seu coração. Os pioneiros conseguiram ser O rádio esportivo, principalmente quando se vibrantes, tornando as narrações esportivas refere ao futebol, sempre foi um espetáculo uma das grandes atrações do nosso rádio. à parte, uma recriação do que ocorre em Com cada experiência, em cada façanha, ga- campo. É um novo show do qual, além dos nhou o rádio e ganhou o esporte. jogadores e do trio de arbitragem, participam A paixão recíproca entre o rádio e o fute- www.bocc.ubi.pt 10 Gisela Swetlana Ortriwano bol se manifestava de várias maneiras. Entre mingo na Bola, em meados dos anos 50. Ma- os fatos folclóricos dos tempos heróicos da noel da Nóbrega, pela Rádio Cultura de São Copa de 38, este também merece destaque: Paulo, animava o auditório nas tardes do- o goleiro titular da seleção cubana, Carva- minicais, com brincadeiras, música e humo- jales, abandonou a equipe no segundo jogo rismo que eram levados ao ar para alegrar o para... ser comentarista esportivo de uma rá- dia do merecido descanso do prezado amigo dio de Cuba! O goleiro-radialista voltou a ouvinte. defender o gol de seu time nas quartas de fi- Mas não era fácil concorrer com as atra- nal. Talvez, nem devesse ter voltado: tomou ções esportivas. A Rádio Panamericana oito gols. Mas dizem que defendeu outros - PRH-7, hoje Jovem Pan, foi consagrada sete... como a Emissora dos Esportes, em ampla Ary Barroso está entre os pioneiros que segmentação de programação, das mais pre- não podem ser esquecidos. Mineiro de Ubá, coces na história do rádio brasileiro. flamenguista inveterado, conhecido como o Speaker da Gaitinha pois em suas transmis- 8 Copa de 38: até a final, o sões reforçava o grito de gol pelo sopro de uma gaitinha. É exemplo de irreverência e Brasil é todo ouvidos provocação. Como narrador esportivo come- Domingo, 19 de junho. Gagliano transmite, çou a carreira na Rádio Cruzeiro do Sul em diretamente do Estádio Colombes de Paris, 1936. A seguir, foi para a Tupi, onde ficou a partida decisiva vencida pela Itália, que se mais de 15 anos, passando em seguida para a sagra bicampeã. TV Tupi, sempre no Rio de Janeiro. Seu pa- A façanha do rádio brasileiro na Copa de pel no jornalismo esportivo é importante: foi 38 foi possível graças ao pioneirismo, à vi- o precursor das vinhetas e dos efeitos sono- são e sobretudo à coragem de Gagliano Neto. ros. Como sempre, criação forçada pela mãe Com isso, o Brasil inteiro pôde acompanhar das invenções, a necessidade. Nos anos 30, todas as emoções que uma Copa do Mundo sem espaço apropriado para transmitir, Ary oferece, com a riqueza de detalhes que só as ficava na arquibancada, entre os torcedores. imagens mentais podem fornecer. Como havia muito ruído, gritava o gol como Aquelas irradiações realizadas por meio os outros narradores e, para frisar bem, to- de uma linha telefônica, nem sempre chega- cava uma gaitinha em movimento da direita vam aos receptores, espalhados pelos quatro para a esquerda e de volta para a direita, pro- pontos do país, com a mesma clareza e fide- duzindo um som característico que passou a lidade que a eletrônica proporciona na atua- ser sua marca registrada. Os efeitos sonoros lidade, quando as transmissões podem acon- nas transmissões esportivas só se tornam co- tecer via satélite, com som estéreo. Nesta muns a partir dos anos 70 passando, de certa nova Copa da França, em 98, houve emis- forma, a competir com a voz e o estilo do soras que transmitiram seu som por satélite; narrador. outras, via linha telefônica, a partir de um O futebol no rádio fazia tanto sucesso que suporte físico, um cabo submarino. E quem foram criados programas para atrair os que cumpriu a tradição de ver a imagem na TV não gostassem do esporte, entre eles, o Do-

www.bocc.ubi.pt França 1938, III Copa do Mundo 11 e o som no rádio pôde perceber, na prática, clubes no eixo Rio-São Paulo, encerrando a a diferença. O som via satélite teve quase carreira no São Paulo Futebol Clube que de- um segundo e meio de defasagem em re- fendeu de 1942 a 1949, após ter atuado em lação ao tempo real. Via cabo submarino, times do Uruguai e Argentina. Abandonou à velocidade da luz, esse descompasso foi o futebol em 1950, aos 37 anos de idade. muito pequeno, havendo uma quase simul- Ao todo, participou de 19 partidas oficiais e taneidade. A TV, transmitiu via satélite. As- 18 não oficiais pela Seleção Brasileira, mar- sim, quem ouviu uma rádio via cabo subma- cando 21 gols (é preciso lembrar que, de- rino, pôde imaginar que o locutor tinha uma vido à II Guerra, não houve Campeonatos bola de cristal e estava adivinhando as joga- Mundiais entre 38 e 50). Segundo o técnico das pois foi capaz de iniciar seu grito de go- Adhemar Pimenta, “Leônidas era fabuloso, ooooool antes mesmo dele ocorrer no vídeo. na época em que o futebol era violento... e Coisas da tecnologia contemporânea. porque não pude escalar Leônidas, contra os Um lembrete: em 1938 prevalecia o mo- italianos, perdemos a Copa do Mundo dispu- delo de narração criado por Nicolau Tuma: tada na França”. o gol era curto. O goooooool longo surge Também foi um dos pioneiros do rádio: apenas em meados da década de 40, lançado depois de pendurar as chuteiras no futebol, pelo locutor esportivo Rebello Júnior, apeli- Leônidas da Silva tornou-se um bem suce- dado Homem do Gol Inconfundível. dido comentarista esportivo, ingressando na Rádio Panamericana, a Emissora dos Espor- 9 Charme e glamour de um tes. Mais uma vez, encantou e arrebatou, não apenas os torcedores mas também corações artilheiro: futebol e rádio femininos, como o da Divina Elizeth Car- A III Copa do Mundo projetou um dos mai- doso. ores ídolos do futebol brasileiro em todos os tempos: Leônidas da Silva. Carioca de São Cristóvão, revelado na Copa de 34, foi o ar- tilheiro da Copa de 38 com oito gols (che- gou a ser convocado em 50, mas não parti- cipou por divergências com o técnico Flávio Costa). Inventor de acrobáticos gols de bi- cicleta, ficou famoso pela elasticidade que lhe garantiu o apelido de Homem Borracha, além de Diamante Negro. Seu carisma e prestígio eram tão grandes que acabou vi- rando um tipo de chocolate, famoso até hoje, além de marca de cigarros: Leônidas e Cra- que. Foi um monstro sagrado do futebol e emprestou seu talento e genialidade não só à seleção brasileira como também a diversos www.bocc.ubi.pt