AS MODERNIZAÇÕES E SEUS OUTROS: DEMOLIÇÕES, RUÍNAS, TABULAS RASAS E REPRESENTAÇÕES DO PASSADO NAS CIDADES BRASILEIRAS

THE MODERNIZATIONS AND THEIR OTHERS: DEMOLITIONS, RUINS, CLEAN ESTATES AND REPRESENTATIONS OF THE PAST IN BRAZILIAN CITIES LAS MODERNIZACIONES Y SUS OTRAS: DEMOLICIONES, RUINAS, TABULAS RASAS Y REPRESENTACIONES DEL PASADO EN CIUDADES BRASILEÑAS

EIXO TEMÁTICO: História, Historiografia e Crítica

Coordenador 1 ATIQUE, Fernando Pós-Doutor; Universidade Federal de São Paulo [email protected] Coordenador 2 FREITAS, Maria Luiza Macedo Xavier de Doutora; Universidade Federal de [email protected]

A questão da ruína na constituição da ideia de patrimônio no Brasil RODRIGUES, Angela Rosch Doutora; Universidade de São Paulo – FAU [email protected] Notas sobre as ruínas (da modernização): dilemas do antigo, do velho e do tradicional DANTAS, George Alexandre Ferreira Pós-doutor; Universidade Federal do - PPGAU [email protected] SOUSA, Rebeca Grilo de Doutoranda; Universidade Federal do Rio Grande do Norte - PPGAU [email protected] Igreja de Nossa Senhora dos Remédios: investigando (mais) uma dissolução de materialidade na área central de São Paulo GONÇALVES, Cristiane Souza Doutora; Universidade Federal de Minas Gerais – EA Universidade Federal de São Paulo - EFLCH [email protected] Ciclo de modernização de 1909-1918 no Recife: suas demolições e os desdobramentos no debate cultural urbano ASSUNÇÃO, Gabriela de Andrade Lira Mota Doutora; Centro Universitário FACEX – pesquisadora HCUrb, UFRN [email protected]

Conectando margens: estudo sobre as primeiras pontes de Recife pelo viés da cultura técnica FREITAS, Maria Luiza Macedo Xavier de Doutora; Universidade Federal de Pernambuco – CAC/DAU [email protected] “Toldando” o “Solar”: a demolição do Solar de Monjope, a expansão imobiliária da Zona Sul Carioca e a crítica à arquitetura neocolonial ATIQUE, Fernando Pós-Doutor em História; Universidade Federal de São Paulo - EFLCH [email protected]

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo

AS MODERNIZAÇÕES E SEUS OUTROS: DEMOLIÇÕES, RUÍNAS, TABULAS RASAS E REPRESENTAÇÕES DO PASSADO NAS CIDADES BRASILEIRAS

Não existem processos modernizadores que não produzam subprodutos. Esta sentença explicita o que esta Sessão Livre intenta discutir. Embora faça parte da crítica sobre as operações urbanas levadas a cabo ao longo da Era Moderna, os processos de arruinamento, de demolição, de desconsideração das pré-existências citadinas e de representações desmerecedoras das configurações urbanas prévias às propostas de intervenção urbanas ainda são timidamente abordadas pelos historiadores e críticos urbanos. Dentro de certa linha historiográfica partilhada por inúmeros colegas, os projetos urbanos e arquitetônicos são vistos em “chave positiva”, incorrendo em uma escrita da história das cidades que supostamente é evolucionista e, além, decorrente de um processo de amadurecimento profissional. É corriqueiro, então, que dimensões atreladas às modificações espaciais que se historiam sejam vistas como desimportantes ou até mesmo inexistentes.

Nos últimos tempos, tem sido possível encontrar bibliografia da área da arquitetura, do urbanismo e da história urbana que tem se despertado ao debate dos subprodutos das grandes interferências modernizadoras. Tal qual explicitado no título desta sessão temática, estamos começando a tratar das modernizações espaciais e de seus “outros”: demolições intencionais, celebração de ruínas e estabelecimento de processos de arruinamento; enunciação de tabulas rasas em sítios com longa tradição de ocupação e, também, de investigações acerca de representações imagéticas e literárias de grande potência de convencimento, de maneira a despertar uma pauta de adesão aos “grandes trabalhos” de alteração do espaço. Uma das obras recentes que trata desta questão é a do arquiteto e historiador estadunidense Daniel Abramson (2016). Seu livro Obsolescence: an architectural history explora como a Ilha de Manhattan, na cidade de Nova York, foi transformada em um contínuo canteiro de obras nas primeiras décadas do século XX, decretando, com suporte da imprensa e apelo comercial, a obsolescência de prédios que contavam com 10, 15 anos de inauguração. Este mote da substituição de estruturas espaciais recentes ou outras mais “dignas” dos tempos modernos encontra eco em muitos lugares ao redor do globo, e com grande proporção nas cidades brasileiras, que nesta sessão procuramos investigar.

Desta maneira, o grupo de investigadores aqui reunidos tem, desde a última década, se debruçado sobre dimensões do universo propositivo da arquitetura e do urbanismo nacional, e se colocando a tarefa de lê-lo a contrapelo, conforme a precisa e poética expressão de Walter Benjamin (BENJAMIN, 1994, p.225). A história escovada a contrapelo, para Benjamin, permite não apenas a percepção das dimensões constituintes dos processos culturais, mas, em especial, ancora na escrita da história as estruturas fundamentais que estão escondidas na narrativa da superfície dos eventos. Assim, o trabalho 1 da sessão lida com uma das perguntas mais difíceis da compreensão dos processos investigativos do grupo ao enunciar que “a ruína compõe o cotidiano das cidades e da rede de significações que constrói a história, a memória e a identidade cultural. Mas, o que é uma ruína?” Como resposta, o trabalho mostra como concomitantemente à formação do IPHAN, a ideia de ruína passou a ser mobilizada como fundamental para a compreensão da seara do que valeria a pena ser mantido no rol dos bens patrimoniais. O trabalho 2 desenvolve a discussão sobre as ruínas nos processos de

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modernização das cidades brasileiras e procura mostrar como o “processo de construção das noções de moderno e progresso assim como dos valores e sensibilidades sobre a paisagem construída herdada poderia encontrar lugar” em um país “novo”, onde tudo estava “por se fazer, como muitos intelectuais e técnicos defendiam no início do século XX”. Curiosamente, o trabalho 3, dedicado à compreensão da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, em São Paulo, nos revela como o templo de origem colonial, e de grande relevância cultural para a cidade de São Paulo, por ter sido vinculado aos movimentos abolicionistas, foi descartado pela administração Prestes Maia, embora estivesse coeso e sólido, por estar, literalmente, no eixo viário de seu complexo de avenidas. Com indicação, por Mario de Andrade, para compor o universo de bens a ser tombado em São Paulo, a igreja foi divulgada como necessária ao progresso da cidade, mas não mediante à sua manutenção, e, sim, por meio de sua demolição. Esta temática é explorada também pelo trabalho 4 dedicado à compreensão da cidade do Recife nos primeiros tempos do século XX. Analisando as escolhas políticas, divulgadas como técnicas, o trabalho debate as demolições efetuadas no Recife, “por outro ângulo, enfatizando o que foi varrido ‘pela tempestade do progresso”, e procurando mostrar que os grandes arrasamentos, que foram silenciados na história da localidade causaram críticas densas, que agora são recuperadas.

O trabalho 5, abordando também o Recife, mostra como aquela cidade substituiu estruturas fundamentais para sua dinâmica urbana – as pontes – divulgando esses processos de modificação à luz da técnica. Esta dimensão, imperativa para a consolidação dos discursos acerca dos melhoramentos urbanos, apartava ou pelo menos intentava apaziguar os ânimos da sociedade na avaliação das “obras de arte” por serem fruto de especialistas. A ideia de cultura técnica, então, que o trabalho aborda, é fundamental para compreender as muitas faces das modernizações e seus discursos. Por fim, o trabalho 6 explora para a década de 1970 a expansão da especulação imobiliária na Zona Sul carioca, ao abordar o episódio complexo de demolição do Solar Monjope, edificação neocolonial que em processo de tombamento, teve seu rito patrimonial sustado pelo regime civil-militar, de forma que se construíssem torres de alto padrão habitacional. Manifestações sociais, verificadas em entidades de classe e em pessoas interessadas na área levaram a medidas protetivas que, se não impediram a demolição da casa, garantiram a instauração da preservação do verde, revelando, talvez, o fim de um discurso verificado nos trabalhos acima, por outro, que instaura uma nova fase dos atos modernizadores no país em tempos de redemocratização.

REFERÊNCIAS

ABRAMSON, Daniel. Obsolescence: an architectural history. Chicago: The University of Chicago Press, 2016.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e a história da cultura. 7ª. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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TRABALHO 01 A questão da ruína na constituição da ideia de patrimônio no Brasil

A ruína compõe o cotidiano das cidades e da rede de significações que constrói a história, a memória e a identidade cultural. Mas, o que é uma ruína? Considera-se aqui como uma condição de descaracterização de bens arquitetônicos de qualquer idade acometidos por degradações físicas mediadas por variáveis como: causa, grau e tempo decorrido do arruinamento, data da edificação e condição de uso. Essa complexa conjunção de fatores faz com que as ruínas contenham uma dúplice capacidade informativa sobre a reminiscência e a perda.

As ruínas constituem, portanto, um registro dinâmico que estabelece uma nova fruição para a apreciação das mudanças nos edifícios e cidades. Assim, o tema da ruína se torna crucial para o entendimento das transformações urbanas associadas às discussões patrimoniais.

Essa comunicação tem como objetivo problematizar a abordagem sobre a condição de ruína no âmbito das políticas de preservação do Instituto do Patrimônio do Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Considerando que a conformação de patrimônio compreende valores atribuídos pelos órgãos institucionais e pela sociedade civil, essa pesquisa procura identificar como e porque o ideário da ruína é articulado na composição de nosso patrimônio nacional? Quais são as nossas ruínas chanceladas com um valor cultural?

A princípio, a ruína está associada a uma urgência de preservação que norteia a estruturação da política de salvaguarda nacional, como pode ser constatado pelas asserções de Rodrigo M. F. de Andrade: “[...] A iniciativa do chefe da Nação tem uma finalidade prática relevante, que é a de dotar o Brasil de uma legislação adequada a impedir que se arruínem ou se dispersem os bens de notável valor artístico e histórico existente no país.” (ANDRADE, R. M. F., 1936 In: ANDRADE, R. M. F., 1987, p. 48).

No rol dos monumentos nacionais há uma série de conjuntos em ruínas, através das inscrições nos Livros do Tombo nas três primeiras décadas de atuação do IPHAN (1937-1967) constata-se uma concentração pautada pelo valor histórico do bem arruinado. Nessa primeira frase do órgão são poucos os conjuntos arruinados tombados por seu valor arqueológico. Esse aspecto indica que nosso legado paleoameríndio se caracteriza por outros tipos de evidências materiais como artefatos, geóglifos, pinturas rupestres, sambaquis, dentre outros (BASTOS, 2008) que não englobam edificações.

A partir de 1967, com uma nova diretoria, o órgão entrou em uma nova fase. Prosseguindo com uma análise das inscrições de tombamentos constata-se que, a maioria das inscrições referentes às ruínas ainda se concentra no Livro do Tombo Histórico. Há, porém, uma maior incidência no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico o que reflete um desenvolvimento da preocupação com as pesquisas arqueológicas no Brasil a partir da promulgação da Lei No 3.924/1961 e que tem se ampliado desde então.

Nesse contexto, a convite do IPHAN, o técnico da UNESCO Michel Parent esteve no Brasil entre os anos 1966-1967. Em seu relatório, Parent insere a problemática do patrimônio cultural brasileiro no cotidiano das pessoas diferenciando-o de países como Peru e México identificados internacionalmente por seus grandes sítios arqueológicos. Parent ressalta ainda a condição do estado de conservação de nosso patrimônio alertando sobre um futuro “[...] cuja ruína, brevemente será irreversível.” (PARENT In: LEAL, 2008, p.46). Nessas asserções promulgadas

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oficialmente pela UNESCO percebe-se, portanto, uma reiteração da leitura de que no Brasil não há ruínas suficientemente relevantes associadas a uma civilização distante; e se interpõe, mais uma vez, a necessidade de “salvar da ruína” o nosso patrimônio.

A partir dos anos 2000, embora tenhamos poucos conjuntos em ruínas oficialmente protegidos enquanto patrimônio nacional verifica-se que o entendimento sobre o valor desse tipo de remanescente tem se ampliado (ainda que de forma modesta) nas discussões nos órgãos de preservação (Nacional, Estaduais e Municipais), na sociedade civil e nos estudos acadêmicos.

Com essa comunicação é possível constituir um panorama sobre a atribuição de valor cultural aos bens em estado de ruína tendo como pano de fundo os critérios e juízos adotados pelo IPHAN em suas diferentes fases. A princípio, com a constituição do Estado Novo e a instituição do órgão em 1937 se desenvolveu um modelo que primava pela busca da origem da nação brasileira através de remanescentes arquitetônicos que pudessem constituir o ideário de patrimônio nacional articulando a cognição de uma identidade cultural (MICELI, 1987).

Mesmo após a década de 1960 essa abordagem se reproduz, a tipologia arquitetônica dos monumentos descritos como ruínas é similar ao período inicial do IPHAN; ou seja, há uma concentração de edificações provenientes do período colonial brasileiro (séculos XVI ao XVIII), que são basicamente: fortificações, estruturas religiosas e edificações rurais ligadas à manufatura de produtos (casas de fazenda e engenhos). São poucos os conjuntos de uma datação de construção mais recente (séculos XIX e XX).

A identificação a partir dos tombamentos e a compreensão sobre o critério de aproximação ao tema da ruína que se estabelecesse principalmente pelo seu valor histórico implicam somente numa parte da problemática do tema. Há tantos outros bens que têm sofrido processos de arruinamento antes mesmo de passarem pelo crivo institucional; ou, aqueles outros bens que, mesmo tendo seu valor cultural reconhecido se arruínam pela falta de manutenção conservativa. Daí a importância dessa comunicação se inserir em uma sessão em que há possibilidade de ampliar o debate sobre a ruína nos processos de memória e esquecimento da construção de nossas cidades e de nosso ideário patrimonial.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo e o SPHAN - coletânea de textos sobre o patrimônio cultural. : Ministério da Cultura, Fundação Nacional Pró-Memória, 1987.

BASTOS, Rossano Lopes. Normas e gerenciamento arqueológico. São Paulo: 9ª SR/IPHAN, 2008.

LEAL, Claudia F. B. (org.). As missões da Unesco no Brasil: Michel Parent. Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2008, p.42-46 e p.158-164.

MICELI, Sérgio. “SPHAN: refrigério da cultura oficial”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: IPHAN, n. 22, p. 44-47, 1987.

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TRABALHO 02 Notas sobre as ruínas (da modernização): dilemas do antigo, do velho e do tradicional

Das muitas possibilidades de leitura das “cidades mortas” de Monteiro Lobato, interessa-nos, para os propósitos das discussões que pretendemos delimitar, apontando o uso da palavra “ruínas” para caracterizar certo decadentismo das cidades retratadas (sintetizadas de diversas maneiras na fictícia Oblivion). Publicado em 1919, reunindo textos curtos escritos entre 1900 e 1910, “Cidades mortas e outros contos” compõe um retrato duro, ainda que cômico em diversas passagens, da paisagem cultural e social, tanto urbana quanto rural, do Vale do Paraíba na virada para o século XX (SILVA, 2012).

“Ruas ermas” de “raros transeuntes”, caminhos de “cidades moribundas [em que se] arrastam um viver decrépito” e seus “palácios mortos”, onde parece que sobraram “só os velhos sons coloniais – o sino, o chilreio das andorinhas na torre da igreja, o rechino dos carros de boi”, as imagens vívidas do atraso se sucedem no conto de abertura – “Cidades mortas” –, de 1906 (LOBATO, 2019, p.07-09).

Disso tudo, na imagem síntese de Lobato, começam a sobrar apenas ruínas:

“A quem em nossa terra percorre tais e tais zonas, vivas outrora, hoje mortas, ou em via disso, (...), uma verdade, que é um desconsolo, ressurte de tantas ruínas: nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas. (...). Progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas”. (LOBATO, 2019, p.07; grifos nossos).

Que ruínas são essas? Ruínas no sentido da sensibilidade romântica, que implicam contemplação e um processo de estetização quase inevitável? Antes que ruínas, talvez apenas taperas mesmos, expressões dos escombros da modernização nos campos e nas bordas das cidades em transformação.

O trabalho ora proposto parte dessas perguntas para, à luz de considerações sobre eventos de modernização no Brasil da virada do século XIX para o XX, delinear algumas questões teóricas sobre o lugar do tema das ruínas para investigar o processo de construção das noções de moderno e progresso assim como dos valores e sensibilidades sobre a paisagem construída herdada (lida ora como antiga ou como velha e atrasada ou mesmo, depois, como tradicional ou “histórica”). Antes ainda, qual o lugar do tema das ruínas num país “novo”, onde tudo estava por se fazer, como muitos intelectuais e técnicos defendiam no início do século XX?

Esse tema não deixou de ser mobilizado também nas grandes cidades em reforma nas primeiras décadas do século XX, como Recife e Rio de Janeiro, por exemplo, num registro que operava entre o embelezamento e os arremates indesejáveis para o seu imaginário dito moderno. Essas permanências do passado construído, vistas e sentidas no perambular pela cidade, para uns corruga as feições recém renovadas da urbe, para outros, lhe confere caráter singular.

Ao observar casos de demolição - como o do Convento da Ajuda na Avenida Central carioca em 1911, ou a ameaça de demolição da Torre Malakoff pernambucana entre 1925 e 1930 – nota-se o ganho de novos significados sobre as edificações ameaçadas. As ruinas não são denotadas como termos pejorativos e sim como “anais de pedra” da cidade e de seus citadinos. A formação dos detritos do processo de modernização ganha destaque em fotografias (como as de Francisco

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Du Bocage, em Recife, Marc Ferrez, no Rio de Janeiro, ou mesmo Manoel Dantas, numa provinciana Natal) que enquadram o porvir e o existente da urbe, e em relatos dos citadinos, que ora louvam dizendo que “os materiaos da metrópole antiga virão servir à glória da metrópole moderna” (BILAC, 1905, s/p), ora lamentando que “faltou à Repartição (contou-me isso mais tarde) para contemplar [...] um casebre do Castello, [...] Pobre Gonzaga! A casa tinha ido abaixo. Que dôr!” (BARRETO, 1919, p.56).

O olhar (gazing) para as ruínas sempre implica reflexões sobre a história e seus processos, como discutem Julia Hell e Andreas Schönle (2010): sobre a natureza do evento em si, sobre os significados do passado para o presente (o de então, dos agentes e atores envolvidos de alguma maneira com o evento, e o do pesquisador que inquire a cada tempo os significados e as condições de historicidade do evento) ou sobre a própria natureza da história (como ciclo, como progresso linear ou mesmo como apocalipse, i.e., como representação do fim disruptivo de um período).

Assim, pretendemos discutir o tema das ruínas a partir de três chaves, ao menos: como objeto material, como objeto de cultura e como processo (ruination). Nesse sentido, cabe pontuar uma pergunta crucial: em que momento as ruínas se tornam ruínas? Em que momento o escombro, o abandono, a destruição é valorada como ruína? Ou, antes ainda, a ruína tem sentido similar de valoração que as ruínas clássicas do Velho Mundo e ou do Oriente Próximo? Isto é, utilizar o termo “ruína” implicava necessariamente em uma atribuição de valor?

O simples delinear da questão implica em pensar numa ontologia das ruínas. Haveria então uma afinidade eletiva entre ruínas e modernidade? Parece-nos um tropo produtivo para compreender as figurações da modernização e da própria noção de modernidade – como um espelho invertido de sentidos cambiantes entre o (que poderia ser considerado) velho, o antigo e o tradicional.

REFERÊNCIAS

BARRETO, Lima. Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá. São Paulo: Edição Revista do Brasil, 1919.

BILAC, Olavo. Crônica. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 05 novembro de 1905.

HELL, Julia; SCHÖNLE, Andreas (eds.). Ruins of Modernity. Durham and London: Duke University Press, 2010.

SILVA, L. Cidades mortas: o rural como sinônimo de atraso e decadência. Plural, 19(2), 69-82, 2012. [disponível em https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2012.74436]

YABLON, Nick. Untimely ruins: an archeology of American urban modernity, 1819-1919. Chicago: The University of Chicago Press, 2009.

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TRABALHO 03 Igreja de Nossa Senhora dos Remédios: a dissolução de uma materialidade na área central de São Paulo

Entre as profundas transformações promovidas pela implantação do Perímetro de Irradiação, proposto pelo Plano de Avenidas (1924) de Ulhôa Cintra 1 e Prestes Maia2 , e colocado em execução na área central de São Paulo a partir do final dos anos 1930, está o redesenho da Praça João Mendes ou antigo Largo dos Remédios. O nome provinha da Igreja Nossa Senhora dos Remédios local referencial para o movimento abolicionista na capital, ao longo do século XIX, e cuja fundação remontava ao início do século XVIII. A relevância histórica da construção justificou sua inclusão no Primeiro Relatório encaminhado à direção do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1937, no qual constavam os bens de interesse de preservação no Estado de São Paulo, indicados por Mário de Andrade:

Pertencente à Irmandade de N. S. dos Remédios, ereta em 17 de julho de 1912. Não se conhece por enquanto a data de sua instituição. A fachada do edifício atual traz no frontispício a data de 1812, fachada toda de azulejos azuis. Nesta igreja se reuniam os abolicionistas de 1888, chefiados por Luís Gama e outros. As fotos da fachada já se acham na sede central do SPHAN (ANDRADE, 1981, p. 81).

A proximidade do Pelourinho, as raízes negras dos fundadores da confraria, o abrigo dado pela igreja à tipografia do jornal abolicionista A Redenção, e, por fim, a instalação de uma escola para os primeiros cidadãos brasileiros saídos de Lei do Ventre Livre, no interior da Igreja N. S. dos Remédios a ligaria, de forma indelével, à questão abolicionista na capital3.

Apesar disso, poucos anos depois, em 1942, se iniciam os trabalhos de demolição, finalmente concluídos em 1943. A igreja desapareceria deixando, em seu lugar, um emblemático vazio. A investigação de sua materialidade perdida, entre fragmentos de taipa, tijolos e cacos de telhas e azulejos azuis, pretende lançar luz sobre as representatividades (protagonismos, resistências e religiosidades) presentes na área central da cidade de São Paulo e as tentativas de torná-las invisíveis e impalpáveis.

OBJETIVOS

A pesquisa intenciona investigar, em perspectiva histórica, as relações entre o poder público, proprietários, moradores e a população que se utilizava dos serviços e se apropriava dos espaços constituídos no entorno da atual Praça João Mendes, na cidade de São Paulo, preliminarmente e após a sua implantação a qual acarretou na demolição da Igreja de Nossa Senhora dos

1 Formado engenheiro civil pela Escola Politécnica de São Paulo, em 1911, João Florence de Ulhôa Cintra integrou o corpo funcional da administração municipal de São Paulo entre 1913 e 1944. Em 1938, na gestão do prefeito Prestes Maia, tornou-se Diretor Geral de Obras do Município – cargo em que permaneceu até 1944, ao falecer aos 54 anos de idade. LUCCHESE, 2016, pp. 99-105. 2 O engenheiro Francisco Prestes Maia iniciou suas atividades na Diretoria de Obras Públicas (D.O.P), da Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Governo do Estado, logo após ter se formado, em 1918. Entre 1924 e 1926, tornou-se membro da comissão técnica criada para acompanhar o desenvolvimento da proposta do Perímetro de Irradiação concebido por Ulhôa Cintra em 1922. Ibidem, p. 100. 3 SOUZA, 2004, pp. 400-401.

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Remédios. Ao perscrutar as transformações pelas quais passou a área referida, pretendemos, para além dos aspectos formais, examinar os processos deflagradores de tais operações e as intenções – explícitas ou ocultas – que acompanharam as decisões, bem como as vozes contrárias ao desaparecimento de um bem cultural de importância reconhecida pelo recém- criado SPHAN.

MÉTODOS E RESULTADOS

O trabalho em desenvolvimento faz uso da pesquisa bibliográfica com o intuito de identificar pontos importantes da história urbana e da arquitetura em São Paulo, especialmente no que se refere às primeiras décadas do século XX. Entre os acervos consultados, destacamos: Bibliotecas e Arquivos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH- USP), da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH - Guarulhos), da UNIFESP; Biblioteca Mário de Andrade (em especial a Coleção São Paulo).

Outras fontes utilizadas são os documentos textuais, iconográficos e cartográficos que informam sobre o Plano de Avenidas e as alterações promovidas na área da Praça João Mendes, com ênfase na demolição e no processo de proteção da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios. A documentação relativa às desapropriações que se encontra no Departamento de Desapropriações da Prefeitura Municipal de São Paulo (DESAP), bem como as resoluções autorizando as demolições, é também objeto de consulta e análise, bem como os jornais, periódicos e almanaques, pelo retrato do cotidiano da época pesquisada e, em especial, pela possibilidade de localizar registros de manifestações contrárias à demolição da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios. Destacamos o banco de dados do Grupo Folha (Folhas da Manhã, da Tarde, da Noite e de São Paulo), Estado de São Paulo, Correio Paulistano, Província de São Paulo e outros que venham a ser identificados.

Intentamos, também, obter informações espaciais a respeito da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, visando sua reconstrução em modelagem 3D. Esta possibilidade tornar-se-á um veículo didático a ser usado em todos os níveis educacionais (fundamental, médio e superior), em articulação com as pesquisas desenvolvidas pelo professor Fernando Atique e uma equipe de alunos do CAPPH-UNIFESP, para a área central de São Paulo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Mário de. Mário de Andrade: cartas de trabalho. Correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade (1936-1945). Brasília: Mec-Sphan, Pró-Memória, 1981.

LUCCHESE, Maria Cecilia. “João Florence de Ulhôa Cintra: influências, amizades e profissão”. Risco: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo (Online), Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU USP), V. 14, n. 1, pp. 99-105, mai. 2016.

MAIA, Francisco Prestes. Os Melhoramentos de São Paulo. São Paulo, 1945.

SOUZA, Ney de. Catolicismo em São Paulo. 450 anos de presença da Igreja Católica em São Paulo (1554- 2004). São Paulo: Paulinas, 2004.

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TRABALHO 04 Ciclo de modernização de 1909-1918 no Recife: suas demolições e os desdobramentos no debate cultural urbano

No início do século XX, ciclos de modernizações transformaram a imagem de cidades brasileiras. Abertura das simbólicas avenidas se fizeram mediante demolições de áreas significativas dos núcleos de formação das cidades, apagando seletivamente a imagem de um passado atrasado e insalubre do período colonial que se queria superar (DANTAS, 2009; SATO, 2005). No Recife, de 1909 a 1918, as obras do porto sobre o pretexto de modernizar a atividade portuária, rasgaram o antigo núcleo de formação da cidade com um conjunto de vias radiais. A transformação da área implicou no arrasamento de quarteirões inteiros e de edificações singulares do sítio4, entre elas os arcos, da Conceição e de Santo Antônio, antigas portas da cidade colonial. Também a igreja do Corpo Santo foi demolida em 1913, mediante justificativa de utilidade pública. A edificação situada na mais antiga área sacra do núcleo de formação foi problematizada como obstáculo ao progresso local (figura 1 e 2), por estar no meio do alinhamento da extensão da Rua Marquês de Olinda (antiga rua da Cadeia).

Figura 1: Rua da Cadeia (posteriormente Rua Marquês de Olinda), fotografia de Moritz Lamberg, 1880. Fonte: Acervo do Instituto Moreira Salles.

Figura 2: Modernizações no Recife, Igreja do Corpo Santo ao centro da fotografia panorâmica de Francisco du Bocage (1913). Fonte: Acervo do Instituto Moreira Salles.

4 Nos jornais da cidade o tecido existente foi chamado de “inestético e monótono”, marcado por “ruas esconsas e vielas escuras”, que não combinavam com as novas avenidas projetadas e seus “prédios arquiteturalmente belos” (JORNAL DO RECIFE, 26 out. 1910, p.10).

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Nesse processo de modernização do Recife, questionamos se o apagamento de áreas selecionadas dos núcleos de formação das cidades e de seus símbolos passou incólume ao debate cultural urbano. O objetivo principal do presente trabalho5 é investigar as representações sobre a arquitetura do passado a partir de casos de demolições em Recife (realizados no período de obras do porto de 1909-1918), contribuindo para a compreensão de como se estruturam sensibilidades em torno do valor de tradição de certos exemplares e que, portanto, deveriam ser reconhecidos como parte da identidade local e nacional. O olhar para os escombros desse passado recifense, tem como objetivo específico analisar falas, identificar sujeitos e instituições que abordaram os casos de demolições estudados.

A estratégia metodológica do trabalho implicou abordar a modernização do Recife, por outro ângulo, enfatizando o que foi varrido “pela tempestade do progresso”6. Com aporte teórico- metodológico mais especificamente na história cultural urbana e nas possibilidades de contribuir com as grandes narrativas a partir de novos recortes. O viés adotado aprofunda em casos emblemáticos, como o da Igreja do Corpo Santo, a fim de potencializar a reunião de fontes através de palavras-chaves e de desvelar discussões apagadas pela construção da história da modernidade7.

Os resultados das análises das fontes demonstraram que os trabalhos de demolição não passaram indenes8. O olhar sobre estudos consolidados e sobre as fontes, enfatiza o papel das demolições como parte do projeto de modernidade. Lembremos da conhecida frase de Marshall Berman “Ser moderno ameaça destruir tudo que sabemos, tudo que somos.” O autor afirma ainda que a preocupação com o passado é moderna por excelência (BERMAN, 1986). Esse passado, então, passou a ser interpretado, moldado e usado pelos modernos.

Assim, no contrapelo do processo de modernização o legado histórico e artístico do período colonial passa a ser tematizado não só no contexto brasileiro, mas também latino americano. Ana Lúcia Cerávolo (2013, p.76) relacionou as transformações das paisagem urbana tradicional das cidades latino-americanas com a implantação de “políticas públicas efetivas de preservação do patrimônio cultural” sobretudo a partir de 1920”. O “elemento catalisador” da criação das políticas teria sido as transformações realizadas principalmente na década de 1910. Adrian Gorelik (2005, p.114) destacou o papel de “atores e instituições” na busca pela identidade da “cidade latino-americana”, que se dispuseram a construir intelectualmente.

No Recife, na virada para a década de 1920, homens das letras se colocaram numa “tarefa de recuperação do passado”, através de um “forte sentimentalismo”, demonstraram seu “estranhamento” com o presente e a identificação com o passado (ARRAIS, 2006, p.35). Nas falas

5 O material é recorte da tese de doutorado defendida em junho de 2019 pela autora desse trabalho. O trabalho, por sua vez é um dos produtos do projeto de pesquisa em desenvolvimento (iniciado em 2017), intitulado Demolições da cidade latino americana: arquiteturas, sensibilidades e cultura urbana (Brasil e Argentina, 1880-1930) – com financiamento do CNPQ. Cf. Dantas, Assunção e Sousa, 2017. 6 Inspirando-se em abordagem críticas da modernidade como a de Walter Benjamin que enfatizou os “destroços da história”, o lado ruinoso e mesmo castatrófico da tempestade. 7 A abordagem aproxima-se com o estudo dos “indícios” de Carlo Ginzburg (1989, p.145), que embora “imperceptíveis” possuem a capacidade de “dissolver névoas da ideologia” para decifrar a realidade. No trabalho com as fontes7, os “traços, cacos, fragmentos, registros, vestígios do passado” foram interpretados a partir da questão formulada pelo pesquisador, como orientou Sandra Pesavento (2012, p.97). 8 Os escombros inspiraram palavras de homens das letras. Theotônio Freire, por exemplo, se mostrou perplexo com a demolição da Igreja do Corpo Santo no Recife, ao ver o material de alta qualidade (como estruturas de madeira de lei, balaustradas de pedra, peças de mármores e granito convertido pelos trabalhos da “picareta” em “escombro”, “pó” e “poeira” que a ação dos “tempos práticos” levou (JORNAL DO RECIFE, 12 jul. 1914, p.1).

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de agentes como Manoel de Oliveira Lima, Anníbal Fernandes 9 e Gilberto Freyre alguns exemplares do passado colonial passam a receber novas associações. A igreja do Corpo Santo foi evidenciada nos discursos pelo seu valor histórico. Ora comparada às “relíquias", artefatos que recebem aura de sacralidade por ter pertencido a álguem importante ou por ter testemunhado fato notável da história. Ora com elementos portadores de “tradições”, relacionando-se às prática sociais que enfatizavam o sentido de pátria. Há ainda associações diretas com o termo “monumento histórico”, que poder ser definido como artefato (inclusive uma edificação modesta) que adquire interesse enquanto testemunha dos acontecimentos e elemento de rememoração do passado. O interesse “pitoresco” da cidade colonial para a ser evidenciado nas mobilizações sobre as demolições do Recife dos tempos da Igreja do Corpo Santo, indicando uma discussão em aberto sobre a valoração estética 10 . Observa-se uma mudança evidente de sensibilidade, quando as vielas da cidade colonial são comparadas com vielas da cidade medieval, mais especificamente com Nápoles, cidade italiana com tradição na defesa dos panoramas visuais (PERNAMBUCO, 1930, p.65).

Assim as perdas de símbolos da cidade colonial passam a ser mobilizadas, evidenciando outro uso das forças demolidoras, desta vez não planejado. Pois se as demolições ficaram marcadas no imaginário coletivo, quando passam a ser utilizadas nos discursos anos depois, atuam na sensibilização, na mobilização de sentimentos e trazem reflexão. Servem então, como estratégia retórica do debate cultural urbano, contribuindo consequentemente para dar sustentação à gênese da preservação no Brasil. Os escombros das edificações apagadas da imagem urbana foram mais do que restos inertes e fragmentos de um passado morto, passaram a constituir elemento de discurso, perdurando por décadas no debate cultural urbano.

REFERÊNCIAS

ARRAIS, Raimundo. A capital da saudade: destruição e reconstrução do Recife em Freyre, Bandeira, Cardozo e Austragésilo. Recife: Bagaço, 2006.

ASSUNÇÃO, Gabriela Lira. Imagens dissolventes da narrativa de modernidade: interpretações sobre a tradição a partir de casos de demolições em Recife e Salvador (1909-1933). Natal/RN, 2019. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Programa de Pós-graduação em arquitetura e urbanismo.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. (obras escolhidas III). 3. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução Carlos Felipe Moises, Ana Maria Loriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

9 Jornalista que recebeu fama pela defesa nos jornais locais da época pelas falas em defesa das demolições e reformas de edificações como mudança de estilo. Ele foi nomeado inspetor da Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais no ano de sua criação, em 1928, ano seguinte a criação na de Inspetoria semelhante (ASSUNÇÃO, 2019). Aparatos estaduais que antecederam a Inspetoria dos Monumentos Nacionais, criada em 1934, para atender demandas emergenciais do tombamento da cidade de Ouro Preto (Decreto nº 22.928 – BRASIL, 1933). Somente em 1937, foi criado o SPHAN – Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 10 Um das falas fundadoras de novas interpretações sobre a ruelas coloniais é a de Ricardo Severo, que se mostrou leitor atento de John Ruskin e proferiu importantes conferências em São Paulo assentando a tradição nacional na arte portuguesa adaptada ao meio, com ruelas “serpenteando” vales, conferindo um “caráter pitoresco” de “harmonia” (ESTADO DE SÃO PAULO, 26 jul. 1914, p.3; REVISTA DO BRASIL, abr. 1917, p.400).

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BRASIL. Decreto nº 22.928, de 12 de julho de 1933. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, 17 jul. 1933, seção 1, p.14153.

DANTAS, George A. F. A formação das representações sobre a cidade colonial no Brasil. São Carlos: 2009. 237p. Tese - Escola de Engenharia de São Carlos (EESC).

DANTAS, George; ASSUNÇÃO, Gabriela; SOUSA, Rebeca. Cidades Dissolutas: arquitetura, escombros e cultura urbana na virada para o século XX. In: 5º Seminário Ibero-Americano de Arquitetura e Documentação. Belo Horizonte, 2017.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

GORELIK, Adrian. La Grilla y el Parque: espacio público y cultura urbana en Buenos Aires, 1887-1936. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 1998.

PERNAMBUCO, Governo do Estado. Relatório da Inspetoria Estadual dos Monumentos Nacionais: apresentado ao Sr. Secretario da Justiça e Negócios Interiores. Imprensa Oficial, Recife, 1930.

PESAVENTO, Sandra. História & História Cultural. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

SATO, Alberto. Demolición y Clausura. ARQ, n.59, p.58-61, 2005.

Periódicos consultados

ESTADO DE SÃO PAULO, São Paulo, ano 40, n.13.001, p.1-24, 26 de julho de 1914.

JORNAL DO RECIFE, Recife, ano 53, n.275, p.1-4, 26 de outubro de 1910.

JORNAL DO RECIFE, Recife, ano 57, n.188, p.1-12, 12 de julho de 1914.

REVISTA DO BRASIL, São Paulo, ano 2, n.16, v.4, p.394-424, abril de 1917.

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TRABALHO 05 Conectando margens: estudo sobre as primeiras pontes de Recife pelo viés da cultura técnica

Implantada em terras margeadas por rios, como Capibaribe, Beberibe e Afogado, além de córregos, a cidade do Recife é caracterizada pelas pontes. Pontes que conectam margens. Margens que pareciam distantes, mas com o uso certo de técnicas construtivas são possíveis as conexões e, assim, o crescimento para terrenos fora dos limites delimitados pelos veios d’águas. Para além do crescimento urbano, as pontes permitiram o aprimoramento das atividades econômicas, por possibilitar a mobilidade das mercadorias produzidas nos engenhos de açúcar, do couro e de outros produtos, cuja produção estava alocada mais para o interior, em terras secas e planas.

A ponte Maurício de Nassau foi a primeira forma de ligação entre a Ilha do Recife e a de Antônio Vaz construída na época da ocupação holandesa (1630-1654). A ponte que lá está hoje, não é a mesma que foi construída pelos holandeses. Desde a sua construção e inauguração, em 1648, até meados do século XIX, ela tinha por nome Ponte do Recife, passando neste momento a ser denominada por Ponte Sete de Setembro, até o atual título. Ela já foi metade de pedra e metade de madeira, já teve lojas, já foi de ferro e hoje é de concreto armado. Já foi mas longa e estreita, e hoje é mais curta e larga. José Luiz Mota Menezes, em Pontes do Recife, confirma: “A ponte do Recife, chamada hoje de Maurício de Nassau, (...), teve cinco tempos e quatro intervenções” (MENEZES, 2014, p.21, grifo do autor).

Assim como a ponte Maurício de Nassau, outras pontes que conectam o bairro do Recife à antiga ilha de Antônio Vaz, atualmente os bairros de Santo Antônio e São José, e, desta ao continente tiveram sua forma transformada ao longo dos tempos, principalmente pelo impacto das técnicas construtivas, primeiro, do ferro (fundido ou laminado) e posteriormente, de concreto armado.

A ponte da Boa Vista é contemporânea à do Recife, e segundo Menezes (2015), foi encomendada pelo Conde Maurício de Nassau que queria criar um eixo de penetração para o interior das terras pernambucanas, conectando o porto aos engenhos. Inicialmente, a ponte da Boa Vista foi construída em madeira e no século XIX, foi reformada com uma estrutura de ferro fundido importada.

Nesse mesmo século, foram construídas as pontes Buarque de Macedo e Santa Isabel, dentro de um contexto de melhorias tanto no porto, quanto nas estruturas urbanas sobretudo no bairro de Santo Antônio. Foi melhorado e criado a Praça onde foram construídos o Palácio Campo das Princesas, sede do governo estadual e o Teatro Santa Isabel. Para conectar esse novo centro político, institucional e representativo da cidade, e, ao mesmo tempo ligar ao porto do Recife, foram construídas as duas pontes, que como a Maurício de Nassau e a Boa Vista, conformam um segundo eixo de ligação do bairro do Recife ao continente.

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Quando chegaram os novos tipos de transporte público em Recife, os trens – denominados por maxambombas - e os bondes, foi construída a ponte da Maxambomba, que conectava o bairro de Santo Antônio ao continente, mas pela qual apenas passava a linha férrea. Depois foi reformada no contexto da reforma urbana que abriu a Avenida Guararapes e se tornou, hoje, simbolicamente, a ponte mais conhecida e representativa do Recife no cenário Nacional e Internacional, a ponte Duarte Coelho.

A Repartição de Obras Públicas (ROP) foi criada pelo artigo 28 da lei provincial no. 9, de 10 de junho de 1835 e organizada em 10 de agosto do mesmo ano, como Diretoria das Obras Públicas do Estado de Pernambuco, e em 1842 passou a ter aquela denominação. Ambos os momentos foram ações tomadas durante o governo de Francisco do Rego Barros (1834-1841 e 1841- 1844).

No âmbito do ROP, foram discutidas questões sobre a modernização das pontes existentes, a Ponte do Recife e a da Boa Vista, e da criação de pontes novas para melhorar a circulação sobretudo das mercadorias que chegavam e saíam pelo porto. Um dos embates mais interessantes foi o ocorrido tratando da Ponte do Recife e dos possíveis projetos para a sua renovação / reconstrução. Mas diversos outros embates foram travados entre os engenheiros e técnicos do ROP, os profissionais estrangeiros que vinham contratados pelas empresas concessionárias dos serviços de transporte urbano, sobretudo ingleses e a sociedade como um todo, por meio da mídia impressa.

O presente trabalho tem como objeto estudar a trajetória dessas cinco pontes – Maurício de Nassau, da Boa Vista, Santa Isabel, Buarque de Macedo e Duarte Coelho - pelo viés da cultura técnica, dando ênfase no que denominamos modernidade concreta (Fig. 1).

O período se delineia, com mais clareza com relação aos documentos, entre o século XIX até meados do século XX. Parte-se do levantamento de fontes primárias (projetos, fotografias, documentos etc.) no Arquivo Público do Estado de Pernambuco Jordão Emereciano, cujos documentos serão apenas complementados, Biblioteca da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (ALEPE), Biblioteca Joaquim Cardozo (CAC-UFPE), Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Biblioteca Cícero Dias do Museu do Estado, Instituto Arqueológico, Histórico, e Geográfico Pernambucano (IAHGP) e Museu da Cidade do Recife, em conjunto com o levantamento de matérias publicadas em periódicos diários do acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional. Tem como intuito responder a algumas questões: Como foi a recepção das estruturas de ferro pela sociedade e pelos técnicos? No século XIX, quais os sistemas construtivos e estruturais que eram discutidos no âmbito dos engenheiros e arquitetos? Como

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foi a recepção do concreto armado pela sociedade e pelos técnicos? Quais foram os profissionais envolvidos que depois vão ter um papel de destaque nessa cultura técnica?

Cada resposta possibilitara traçar a trajetória da ponte através de dois nortes: da cultura técnica e da recepção de dois novos materiais: o concreto armado e a estrutura de ferro e metálica. O que se busca aqui é entender os conflitos e diálogos decorrentes da introdução das técnicas construtivas desenvolvidas no século XIX, como o ferro forjado ou laminado e o concreto armado, medindo assim os impactos. Estes no sentido de mudanças nas práticas e nos discursos.

REFERÊNCIAS

MENEZES, José Luiz Mota. Ruas sobre as águas: as pontes do Recife. Recife: Cepe, 2015.

_____. Pontes do Recife: a construção da mobilidade. Recife: Bureau de Cultura, 2014.

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TRABALHO 06 “Toldando” o “Solar”: a demolição do Solar de Monjope, a expansão imobiliária da Zona Sul Carioca e a crítica à arquitetura neocolonial

O Solar de Monjope foi uma das edificações vinculadas ao movimento neocolonial de arquitetura de maior envergadura e maior midiatização. Erigido por José Marianno Filho na segunda metade da década de 1920, foi tomado por seu proprietário como um manifesto construído de sua proposta arquitetônica. A edificação persistiu até o começo da década de 1970, quando então, após o falecimento de Violeta, a viúva de Marianno Filho, a casa foi colocada à venda pelos herdeiros. É este fato que despertou uma intensa movimentação de setores da sociedade carioca em torno da propriedade.

O jornalista Zózimo Barroso do Amaral (1941-1997), em sua coluna publicada no Jornal do Brasil, em 22 de outubro de 1973, trouxe uma nota que dizia que a propriedade estava sendo negociada com uma das maiores companhias construtoras em ação no Rio. O valor da transação era de “Cr$ 27 milhões” Poucos dias depois, ofício datado de 05 de novembro de 1973, redigido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil - Seção Guanabara –e assinado por seu presidente, João Ricardo Serran, solicitava ao governador Antônio de Chagas Freitas (1914-1991) o tombamento do Solar Monjope, pelo então Estado da Guanabara (IPHAN, Processo 895-T-74). Nove dias depois, Zózimo Amaral retomava a questão em sua coluna, confirmando o valor a ser pago pela Construtora Zein aos herdeiros de José Marianno, que já não residiam no Solar (Jornal do Brasil, 14 nov, 1973, s.p ).

Esses três documentos geraram uma verdadeira especulação midiática acerca da casa. Reportagens veiculadas a partir de 15 de novembro, em periódicos nacionais dividiram-se entre lamentar a potencial perda da arquitetura e da área verde, e a defender o direito de propriedade dos herdeiros. Cheio de conflitos e démarches, o Solar de Monjope serve para a discussão da grande especulação imobiliária que a Zona Sul carioca sofreu ao longo dos anos 1970, quando propriedades, outrora suburbanas, não apenas passaram a ser vistas como potenciais reservas de terra, como foram demolidas para a construção de complexos habitacionais de alto padrão.

No dia 17 de novembro de 1973, nota publicada no Jornal do Brasil informava que o Estado da Guanabara havia acatado a solicitação do IAB para o tombamento do Solar Monjope, abrindo processo para estudar a questão (Jornal do Brasil, 17 nov, 1973, p.10). Segundo nota desse jornal, em 16 de novembro fora emitido o aviso de tombamento provisório, mas o herdeiro José Marianno Neto alegava que ainda não o havia recebido. A reportagem cedeu espaço, então, ao proprietário do Solar comentar a iniciativa. Disse Marianno Neto que “estava surpreso com a notícia do possível tombamento do Solar, já que a sua propriedade t[inha] apenas 50 anos de existência, ‘o que não justifica[va] providência dessa natureza’” (Jornal do Brasil, 17 nov, 1973, p.16).

No dia 21 de novembro, contudo, uma reviravolta colocou o Solar Monjope novamente nas páginas dos jornais. Divulgava o jornal O Dia, que o Secretário da Cultura da Guanabara, Fernando Barata, havia mandado sustar o processo em tramitação. A alegação do Secretário da pasta era de que o Decreto-Lei n.2, de 11 de abril de 1969, que organizava o sistema de proteção do patrimônio cultural do estado da Guanabara carecia de regulamentação, incorrendo em “injuridicidade, não atingindo os seus altos objetivos” (O Dia, 21 nov, 1975). A medida ainda abria um precedente maior, pois não apenas a notificação do tombamento do Solar de Monjope tornava-se sem efeito, permitindo a venda da propriedade e sua demolição para a construção

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de seis torres de apartamentos, como extirpava a proteção por todo o estado da Guanabara, causando verdadeira corrida de incorporadoras, construtoras e demais subsidiárias envolvidas com o mercado imobiliário na negociação de terrenos e propriedades com tombamento em curso.

Com a suspensão do tombamento, a construtora adquirira o imóvel, mas os protestos da sociedade civil, e a ação do IAB, acabaram por gerar interrupções no processo de demolição. Fez-se necessário, então, armar uma contra-campanha à preservação, garantindo o cumprimento da venda assinada, à empreiteira. A casa, segundo a grande imprensa, não merecia maiores apreciações, contrariando a própria ideia de José Marianno, expressa em toda a campanha que desenvolveu nos anos 1920 e 1930 em prol de seu manifesto construído. O que interessava, ou o que restava, era defender a imensa gleba com cobertura vegetal. O Solar Monjope, assim, foi desagregado, arquitetônica e decorativamente, em 1974, mas a campanha em torno de sua manutenção, rendeu, curiosamente, a regulamentação de áreas de entorno no IPHAN, no Rio de Janeiro.

REFERÊNCIAS:

ESTADO DA GUANABARA. Decreto-Lei n.2, de 11 de abril de 1969. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/norma/normas/?tipoNorma=25&ano=1969

IPHAN. Processo 895-T-74. Arquivo Noronha Santos, IPHAN, Rio de Janeiro.

“Lance Livre”, Jornal do Brasil, 17 nov. 1973, p.10 (a);

“Moda Moderna em Casa Antiga”, Jornal do Brasil, 14 nov. 1973, [s.p.];

“Patrimônio prepara parecer sobre tombamento do solar Monjope pedido pelo IAB”, Jornal do Brasil, 17 nov. 1973, p.16 (b);

“Secretário da Cultura da GB Manda Sustar Tombamento do Solar Monjope”, O Dia, 21 nov. 1975, [s.p.].

“Solar que Lucio Costa em 1926 achou monstrengo será vendido por Cr$ 30 milhões”, Jornal do Brasil, 15 nov. 1973, p.5.

“Transa Imobiliária”, Jornal do Brasil, 22 out., 1973, caderno B-p.3

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