Universidade do Estado do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Estudos Sociais e Políticos

Diogo Tourino de Sousa

De um ponto de vista mais geral: a república como ideal normativo

Rio de Janeiro 2015

Diogo Tourino de Sousa

De um ponto de vista mais geral: a república como ideal normativo

Tese apresentada, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Ciência Política.

Orientador: Prof. Dr. Renato de Andrade Lessa

Rio de Janeiro 2015

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA IESP

S725 Sousa, Diogo Tourinho de. De um ponto de vista mais geral: a república como ideal normativo / Diogo Tourinho de Sousa. - 2015. 285 f.

Orientador: Renato de Andrade Lessa. Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos Sociais e Políticos.

1. República – Teses. 2. Democracia – Teses. 3. Tradição (Filosofia) – Teses. 4. Ciência Política – Teses. I. Lessa, Renato. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Estudos Sociais e Políticos. III. Título.

CDU 378.245

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a fonte.

______Assinatura Data

Diogo Tourino de Sousa

De um ponto de vista mais geral: a república como ideal normativo

Tese apresentada, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Ciência Política.

Aprovada em 06 de março de 2015. Banca Examinadora:

______Prof. Dr. Renato de Andrade Lessa (orientador) Universidade Federal Fluminense

______Prof. Dr. Frédéric Vandenberghe Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ

______Prof. Dr. Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ

______Prof. Dr. Luiz Jorge Werneck Vianna Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

______Prof. Dr. Marcelo Gantus Jasmin Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2015

DEDICATÓRIA

Ao meu pai (in memoriam), pela retidão, pela amizade, pelo exemplo. À Louise e Sofia, com amor.

AGRADECIMENTOS

A elaboração de um trabalho desta natureza envolve, naturalmente, muitas vidas. Mais ainda quando o processo, por motivos diversos, se estende no tempo. Desde o momento em que ingressei no doutorado até o presente, muito aconteceu. No longo percurso que me trouxe até aqui, fiz novos amigos e reforcei antigos laços. Tenho, por certo, muito o que agradecer. À banca examinadora devo um agradecimento pela prontidão e disponibilidade em ler este trabalho. Ciente dos inúmeros afazeres aos quais o cotidiano docente nos submete, entendo que este não é apenas um aceite de rotina, mas um compromisso que muito me honra. Nesse sentido, agradeço aos professores Marcelo Gantus Jasmin, de quem tive a felicidade de ser aluno no antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e que constitui referência neste trabalho, Frédéric Vandenberghe, intelectual sempre disponível e indiscutivelmente versado na bibliografia aqui em discussão, e ao professor Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco, meu “veterano” no antigo IUPERJ e hoje docente do Instituo de Estudos Sociais e Políticos. Luiz Werneck Vianna foi, por certo, muito mais do que um professor. Werneck é um amigo e uma inspiração. Sem culpa-lo pelo que se segue, nunca escondi que meu encontro com ele, quando eu ainda era um jovem estudante de graduação, mudou tudo. Intelectual de paixão, professor dedicado, alguém que fala com a premência da transformação, Werneck soube, nos anos que se passaram, transformar o ordinário da vida em algo extraordinário. Sou grato pelas aulas, conversas, “broncas”, conselhos, instruções literárias esporádicas. Sou grato, sobretudo, pelo convívio. Muito me honra tê-lo, agora, como avaliador e espero eu não o “contrariar” em demasia com a “desorganização” do argumento. Devo um agradecimento especial ao professor Rubem Barboza Filho, mestre desde os primeiros anos de graduação, intelectual criativo, referência neste trabalho, amigo e responsável por valiosas indicações bibliográficas. Rubinho debateu comigo diversas facetas do argumento ao longo desses anos, desde a qualificação do projeto, e foi ele quem me lembrou de e Gadamer, obras centrais para o desenvolvimento do argumento da tese acerca do tema da “tradição” e da “autoridade”. Espero ter entendido o seu recado. Igualmente, devo particular agradecimento a José Monroe Eisenberg, meu orientador de mestrado e grande responsável – sem que dele nada possa ser cobrado, é bom lembrar –, pela minha ida para o antigo IUPERJ. José é um amigo que muito admiro, pelo modo dinâmico e inventivo com o qual exerce seu ofício, além de ter sido ele quem me acompanhou até o

primeiro ano do doutoramento, orientando a elaboração do projeto de tese para a qualificação. Do antigo IUPERJ, destaco, ainda, a importância de Cesar Augusto Coelho Guimarães e Maria Alice Rezende de Carvalho. Ambos, dentro ou fora de sala de aula, em textos ou conversas, palestras ou seminários, contribuíram de modo resoluto para a minha formação. Ao lado deles, lembro da alegria que era entrar na casa da Rua da Matriz e ser recebido pelos funcionários do Instituto. Permanentemente dispostos a nos ajudar, tornando os desafios burocráticos coisas “simples” de resolver, eles são parte substantiva de gerações e gerações de mestres e doutores que por lá passaram. No Instituto trabalhei por alguns anos como pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES), coordenado por Werneck, Maria Alice e Eisenberg. Aos colegas de CEDES, Cássio Soares (camarada desde a graduação, quem, inclusive, primeiro me recebeu no Rio), Ana Paula, Daniela Tranches, Gustavo Ribeiro, Paula Salles, Carla Soares e Marcelo Diana, agradeço pelo aprendizado, convívio e trabalho colaborativo. O CEDES, de alguma forma, conferiu, ao lado do IUPERJ, uma identidade institucional a todos nós. No antigo IUPERJ e no novo IESP, tive a felicidade de fazer muitos amigos, companheiros de jornadas intelectuais, afetivas, lúdicas e festivas. Dentre eles, lembro de Thaís Aguiar, Raíza Siqueira, Maro Lara, Cesar Kiraly, Diogo Lyra, Helga Gahyva, Thiago Nasser, Rafa Abreu, Bernardo Bianchi e Mayra Goulart. Quando ingressei no doutoramento ainda era professor substituto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde me graduei. É inevitável o débito com os professores daquele departamento, responsáveis pelos primeiros passos que dei nas ciências sociais. Lembro, especialmente, do amigo e orientador de graduação, Raul Francisco Magalhães, de quem primeiro herdei a predileção pela teoria política e a disposição para o debate, e dos professores Carlos Alberto Hargreaves Botti, o Tuim, e Beatriz de Basto Teixeira, bons exemplos nessa jornada. Ao longo desses anos atuei como professor da Faculdade Machado Sobrinho, pelo que agradeço o apoio da Profa. Luciana Gouvêa Leite, e do Colégio CAES, onde realizei, ainda que por um curto período, o sonho de lecionar na educação básica. No CAES convivi novamente com o grande amigo Marco Antonio Macarrão, parceiro desde os tempos de movimento estudantil na graduação. Por certo, minha dívida com os professores, funcionários e, sobretudo, estudantes dessas muitas “casas” que tive ultrapassa o enriquecimento profissional. Em 2010 tornei-me professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Viçosa. Ao novo contexto sou devedor do profissionalismo, da criatividade e da motivação de uma equipe de trabalho que transborda competência. O DCS/UFV tem se

mostrado, desde então, um lugar promissor para vida profissional, além do epicentro de várias amizades fraternas que se formaram. Agradeço, assim, à Profa. Nádia Dutra de Souza, chefe do departamento, por ter me proporcionado todas as condições que lhes estavam ao alcance para que este trabalho fosse concluído, aos colegas professores e à equipe administrativa. No DCS fiz, ainda, amizades para a vida. Pessoas as quais me orgulho de ter conhecido e que reforçam diariamente a certeza da acertada escolha por Viçosa-MG. Já valeu por eles e por elas. Nesse sentido, agradeço às amigas Daniela Alves e Daniela Rezende (esta minha colega de sala, interlocutora de assuntos diversos, confidente e parceira intelectual), e aos companheiros de muitas jornadas, Marcelo Oliveira (grande antropólogo e figura humana) e Thiago Silame. Aqui reencontrei um amigo dos tempos de IUPERJ e CEDES, e tive a oportunidade de com ele reeditar parceiras antigas e bem-sucedidas. Foi ele quem, inclusive, forneceu pistas caras no arranjo final da tese, como a indicação dos estudos sobre o dom e a necessidade de situar o republicanismo na modernidade. Ao amigo Igor Suzano Machado, meu muito obrigado. A UFV me deu muitos novos amigos (e alguns reencontros). Este é o caso de Rubens Panegassi, Márcia Machado, Carlos D’Andrea, Anna Claudia, Felipe Stephan e Luciana Ávila. Todos, vindos de fora como eu, passaram a integrar o cotidiano deste trabalho, com suas agruras e conquistas, inclusive porque vivemos isso tudo quase ao mesmo tempo. O trabalho já caminhava para o final quando o amigo Geraldo Emery conseguiu, no seu trânsito pelas bibliotecas da UFMG, referências importantes para a conclusão do argumento. Ao Gegê sou grato pela gentileza, além de admirar profundamente seu trabalho no Colégio de Aplicação da UFV. É reconfortante saber que jovens têm a oportunidade de ouvi-lo numa fase tão atribulada da vida. Na UFV tive a satisfação de integrar três equipes de trabalho que em muito enriqueceram minha formação, além de permitirem com que eu avançasse naquilo que entendo como sendo o papel da Universidade na sociedade brasileira. Nessa direção, agradeço a oportunidade de convívio e o trabalho dedicado de vários bolsistas, voluntários, técnicos e professores com quem mantive contato nos projetos de extensão e cultura “Café Filosófico” e “Parlamento Jovem”, e no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência/PIBID- CAPES, que coordenei entre 2011 e 2014. Alguns estudantes do curso de Ciências Sociais da UFV representam algo a mais na minha jornada. Foram amigos, orientandos, parceiros intelectuais, pessoas em quem confiei e com quem mantive laços fraternos nos últimos anos. Mais do que isso, alguns deles me ensinaram algo importante no ofício docente. Por vezes tendemos ao elogio narcísico daqueles

que conosco se assemelham. Vício este que impede o reconhecimento dos estudantes naquilo que são, talvez diferentes de nós. Aprendi isso por aqui. Por tudo isso, sou grato a Arthur Fontgaland, Mariane Reghim, Mariana Lima, Maíra Costa, Raul Nunes e Mauro Penna. Já na reta final da tese, aceitei o convite para trabalhar ao lado do Prof. Clóvis Andrade Neves, na Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFV. A ele sou grato pela oportunidade, uma oportunidade ímpar de repensar os caminhos da extensão universitária, bem como pela compreensão com a situação na qual eu me encontrava, premido pelo tempo e oscilando entre a reflexão teórica e um presente acelerado. Igual compreensão encontrei na equipe da Diretoria de Extensão, que me recebeu com prontidão, dando curso ao seu trabalho com eficiência e responsabilidade. Não posso deixar de mencionar o apoio da Profa. Nilda de Fátima Ferreira Soares, Reitora da UFV. Foi ela quem depositou em mim todo reconhecimento e confiança que espero sinceramente ter feito por merecer. Depois de cinco anos na instituição, integrar sua equipe foi motivo de orgulho e motivação para avançar na conclusão da tese, com esperanças renovadas no papel que universidade tem na sociedade brasileira. Nos anos que antecederam este momento, vários amigos, em diferentes lugares, compuseram um elenco sem o qual vida feliz não é possível. Em Brasília, agradeço a Claudia Andrade, Michel Popolin, Benetti Mendes, Daniel Santos, Mariana Létti e Octavio Guimarães. Em Juiz de Fora, sou grato a Bella Mendes, Thiago Maganha, Sabrina Navarro, Dudu Dessupoio, Flávio Duque, Fábio Souza, Bruno Junqueira e Eduardo Freitas. Este último, uma presença quase constante, mesmo que a distância tenha persistido. Nos encontros universitários, agradeço a André Drummond, Fernando Filgueiras e Christian Lynch pelos comentários e críticas feitas em nossas conversas. Ao Christian devo, ainda, um agradecimento particular pelo apoio na condição de coordenador do programa de Pós-Graduação em Ciência Política do IESP, minha nova “casa” e onde este trabalho é apresentado. Fernando Perlatto é, por certo, a figura mais importante ao longo desses anos. Companheiro desde os tempos da UFJF, Fernando foi amigo, confidente, parceiro intelectual e grande inspirador de várias das ideias aqui contidas. Sua chegada ao IUPERJ e, posteriormente, ao CEDES, conferiu o ânimo criativo e a energia para o trabalho que há muito precisávamos. Ao lado dele desenvolvi parte do argumento desta tese, pelo que sou imensamente grato. Mais do que isso, estimo nossa amizade e a cumplicidade com que encaramos juntos desafios diversos nos últimos anos. Alguns anos depois, como se não bastasse o que de bom já havia feito, o IESP me

apresentou o grande Jorge Chaloub. Das muitas afinidades que temos (o Botafogo é apenas uma delas), surgiu uma amizade da qual me orgulho. Esta transbordou em algumas idas ao Maracanã, muitas gargalhadas, ideias trocadas e palavras de apoio. Jorge acompanhou a elaboração deste trabalho, assistindo diversas apresentações do argumento em congressos e seminário, e se dispondo a ler trechos da tese. A ele sou grato, e dele me orgulho. Afinal, Jorge é meu amigo. Júlio Cesar encontra-se em vários momentos disso tudo. Curioso notar, com razoável ironia ante ao argumento aqui exposto, como o presente próximo oblitera o passado com facilidade. Conheci Júlio na graduação, mas sem maiores desafios (ou exatamente porque muitos deles enfrentamos juntos), nos tornamos amigos para vida. Dividimos muita coisa nos últimos 15 anos, inclusive a vinda para o antigo IUPERJ. Não sei se a ele sou propriamente grato (talvez por me ouvir muito e falar pouco, ele mereça um “muito obrigado”). Todavia, foi lado a lado, ombro a ombro, que passamos por tudo isso. E agora, que venham os próximos desafios. O orientador ocupa, por certo, um lugar de destaque, para o bem ou para o mal. Renato de Andrade Lessa felizmente é caso para boas lembranças. Malgrado nossas desavenças clubistas (afinal, ninguém é perfeito, eu ou ele), Renato foi colaborador decisivo neste trabalho. Intelectual criativo, filósofo público, professor brilhante, ele se mostrou disponível e animado com as ideias que apresentei, exercendo bem o papel do orientador: me trazer de volta ao mundo quando dele muito eu escapava (isso quase sempre se traduz em cortar pedaços da tese ou indicar leituras seminais). Se há algum valor neste trabalho, afirmação nada retórica, ele se deve ao modo como Renato confiou em mim e me ajudou a caminhar. A ele sou grato e devedor de uma relação fraterna e respeitosa. Numa tese sobre república, é inevitável não lembrar daqueles com quem compartilho uma narrativa, uma identidade densamente construída. Tia Penha, minha madrinha, vem me cercando de cuidados desde que saí de Brasília, em 1999. De lá pra cá ela tem sido minha “mãe” de perto, algo que se intensificou quando fui para o IUPERJ em 2005 e passei a “morar” com ela, nem que seja por alguns dias. Seus conselhos, carinho e amizade estão contido na minha trajetória. Beatriz, minha mãe, sofreu com a ausência desse filho consumido pelo tempo, num tempo que por vezes não era este. A ela devo mais desculpas pela ausência. Fernanda recebeu esse “filho postiço” igualmente bem, a quem sou grato pela proximidade. Meus irmãos, Camilla e Pedro, são os amigos da vida. Rimos, brigamos, mais rimos do que brigamos. Deles sempre trago a lembrança do quanto é bom ter irmão. Meu pai, Aurélio (in memoriam), é a síntese disso tudo. Dele ouvi, nele pensei, a ele sou grato nas linhas que se

seguem. Foi meu pai quem primeiro me apresentou a vida intelectual que hoje sigo. Era ele quem sempre tinha respostas para tudo. Nele admiro a serenidade, a justiça nos atos. Pai, enfim terminei. Enfim, terminamos. A narrativa seria, por fim, faltosa se não fossem elas: Louise e Sofia. Já na reta final do trabalho nos conhecemos e a vida foi mais uma vez grata. Louise não é apenas um amor. É uma parceira, compreensiva, leal, dedicada, temperamental, bagunceira, humana. Ela é de verdade, como um amor de verdade se faz. E fez. Dele veio Sofia, nossa ainda pequena menina que sorriu todos os dias desde que nasceu. Um sorriso que me alimentou nos momentos de fraqueza. Louise e Sofia são a razão disso tudo. Afinal, conviver é mais importante do que viver.

Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? Assim: como se lembrasse. Como um esforço de “memória”, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro e a lembrança é em carne viva. Clarice Lispector – A descoberta do mundo

Mas não posso senão dizer a mim mesmo – talvez devido à minha aspereza de coração e a um apego obstinado ao evangelho que outrora recebi – [...] que modas mudam, e que o discreto cinza da filosofia permanece. Ernest Barker – O estudo da ciência política

A tradição não nos entrega à prisão do passado e irrevogável. Transmitir, délivrer, é um libertar para o diálogo com o que foi e continua sendo. [...] Uma coisa é verificar opiniões dos filósofos e descrevê-las. Outra coisa bem diferente é debater com eles aquilo que dizem, e isto quer dizer, do que falam. – Que é isto – A filosofia?

A filosofia que não tem contato com as sombras na parede só poderá produzir uma utopia estéril. Michael J. Sandel – Justiça

Somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política. Vimos, de um salto, da homogeneidade da colônia para o regime constitucional: do alvará para as leis. Euclides da Cunha – Da Independência à República.

Quem não tem ferramentas de pensar, inventa. Manoel de Barros – O fazedor de amanhecer.

RESUMO

SOUSA, Diogo Tourino de. De um ponto de vista mais geral: a república como ideal normativo. 2015. 285f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

O retorno ao republicanismo tem ocupado parte significativa dos debates contemporâneos acerca da democracia, notadamente seu esforço na problematização de alguns dos pressupostos básicos do pensamento liberal. A tópica republicana vem, assim, consubstanciando a reflexão sobre noções como justiça, liberdade e participação, a partir da retomada da tradição do pensamento político ocidental, onde arranjos institucionais e experiências comunitárias anteriores à modernidade são mobilizadas como contraponto crítico ao presente. O objetivo da tese é recuperar elementos da teoria política na construção de uma tradição republicana de pensamento, a partir da discussão de alguns conceitos-chave como afinidades eletivas e escolhas pragmáticas não evidentes nas classificações correntes. Trata-se da construção de um ideal normativo de república, definido a partir de cinco elementos: (1) “bom governo”; (2) autoridade; (3) liberdade; (4) reciprocidade moral; e (5) não-violência. Porém, diferentemente da perspectiva “contextualista” – ocupada com a intencionalidade dos autores na reconstituição do contexto original em que as obras foram escritas –, mas sem negar sua validade e importância na retomada do pensamento republicano no séc. XX, a proposta aqui é avançar numa perspectiva “analítica”, centrando-se na possibilidade de encontrarmos argumentos similares ao longo da história proveitosos na leitura crítica do presente. Dessa forma, a despeito da inexistência de igualdade de condições históricas – preocupação dos contextualistas –, a tese identifica uma analogia de condições teóricas dos autores analisados, mesmo num corte diacrônico. Aqui, portanto, a ideia de república é pensada para além dos limites históricos de suas abordagens, abrindo caminho para dois movimentos relacionado: por um lado, a recuperação dos autores do passado tem o objetivo de encontrar respostas para os dilemas da democracia presente, superando, por meio do recurso à tradição, a limitação imposta pela agenda liberal; por outro, a proposta aqui defendida permite com que uma tradição republicana própria seja desenha entre nós. O trabalho recorre, dessa forma, a um conceito de tradição que não negligencia os contextos históricos particulares, mas persegue a possibilidade de entrelaçarmos diferentes momentos da imaginação política com aportes reflexivos sobre o presente, cruzando linhagens em busca de uma agenda republicana dotada de elementos progressistas alternativos aos modelos vigentes. Trata-se, sobretudo, de recuperarmos, por meio do recurso à tradição, a república como ideal normativo para o enfrentamento dos dilemas da democracia brasileira.

Palavras-chave: República. Democracia. Tradição.

ABSTRACT

SOUSA, Diogo Tourino de. A broader point of view: the republic as a normative ideal. 2015. 285f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

The return to has occupied a significant portion of the contemporary debates concerning , particularly the effort to problematize some of the basic assumptions of liberal thought. The topic of Republicanism has thus been the reflection upon notions such as , liberty and participation building upon a return to the tradition of Western political thought, in which institutional arrangements and communitarian experiments prior to modernity are mobilized as a critical counter point to the present. The goal of the thesis is to recover elements of political theory in the construction of a Republican tradition of thought, based on the discussion of key concepts such as elective affinities and pragmatic choices that are not evident in current classifications. The endeavor consists of the formulation of a normative ideal of Republic based on five elements: (1) “good ”; (2) authority; (3) liberty; (4) moral reciprocity; and (5) non-violence. However, unlike the “contextualist” perspective – preoccupied with the intentionality of actor in the reconstitution of the original context of works – yet without denying its validity and importance in the recovery of Republican thought in the twentieth century, this thesis advances an “analytical” perspective, centered around the possibility that similar fruitful arguments can be found in history for a critical understanding of the present. Thus, despite the inexistence of such a thing as equal historical conditions – a contextualist concern – the thesis identifies an analogy in the theoretical conditions of the analyzed authors, notwithstanding the diachronic. Hence, in this situation the idea of Republic is thought of beyond the historical limits of their approaches opening the path to two related movements: on one hand, the recovery of authors of the past has the goal of finding answers to the dilemmas of democracy in the present, overcoming through tradition the limitations imposed by the neo-liberal agenda; on the other one, the argument sustained here allows for the outline of our very own Republican tradition. The investigation thus employs a concept of tradition that does not eschew particular historical contexts, but pursues the possibility of interweaving different moments of political imagination and contribute critically to present reflections, crossing lineages in search of a Republic agenda with progressive elements that serve as an alternative to extant models. This endeavor is above all an effort to recover, through tradition, the Republic as a normative ideal in facing the dilemmas of Brazilian democracy.

Keywords: Republic. Democracy. Tradition.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 15 1 CIÊNCIA E TEORIA (1): MODOS DE FAZER...... 35 1.1 O retorno aos “clássicos”...... 36 1.2 A teoria política e o papel da história...... 45 1.3 A ciência política como disciplina autônoma...... 58 1.4 Ciência, teoria e pensamento...... 66 1.5 Teoria e história: república e analogia de condições...... 80 1.6 Teoria política e problemas públicos...... 83 2 CIÊNCIA E TEORIA (2): QUESTÕES DE MÉTODO...... 93 2.1 A relevância da obra de Quentin Skinner...... 98 2.2 O “ofício do historiador”...... 105 2.3 O programa metodológico do contextualismo linguístico...... 114 2.4 A reação de Skinner aos críticos...... 123 2.5 As críticas ao programa skinneriano...... 131 2.5.1 Historicismo radical...... 134 2.5.2 Intencionalismo...... 135 2.5.3 Antiquarismo...... 136 2.6 Hermenêutica e tradição...... 138 2.7 A contribuição de Skinner para a teoria política normativa...... 152 3 A REPÚBLICA(1): ELEMENTOS PARA DEFINIÇÃO...... 156 3.1 A República como “bom governo”...... 170 3.2 A República como “autoridade” política...... 188 3.3 A República como um regime de “liberdade”...... 199 3.4 A República como “reciprocidade moral”...... 216 3.5 A República como “não violência”...... 231 4 A REPÚBLICA(2): EM BUSCA DA NOSSA TRADIÇÃO...... 236 4.1 Governo das leis? Uma constituição própria...... 243 4.2 A Carta de 24 como fonte de “autoridade”...... 251 4.3 O Estado como o “lugar” da liberdade...... 257 4.4 Um ideal incompleto?...... 265

CONCLUSÃO...... 268 REFERÊNCIAS...... 273

INTRODUÇÃO

13. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo. 14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível. Italo Calvino – Por que ler os clássicos.

Em setembro de 2008, por ocasião da apresentação do Plano Estratégico de Defesa, o então ministro de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, afirmou que o governo pretendia rediscutir o sistema de serviço militar obrigatório, em funcionamento no país desde o início do século XX. Ainda que o fato não tenha repercutido substantivamente na sociedade brasileira, alguns veículos da imprensa noticiaram a reunião entre a cúpula da segurança naci- onal, formada, à época, pelos ministros da Defesa, Nelson Jobim, e da Casa Civil, Dilma Ro- usseff, além do próprio Mangabeira Unger, com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva1. No encontro, Lula anunciou que convocaria o Conselho Nacional de Defesa para discu- tir as mudanças a serem implementadas, optando por submeter o debate a um órgão colegiado. Contudo, a despeito da opção do presidente, o ministro Mangabeira Unger destacou em algumas oportunidades parte das mudanças contidas no texto. Em entrevista concedida após o desfile de 7 de setembro daquele ano, o ministro afirmou que o Plano trazia entre suas propostas o apro- fundamento do serviço militar obrigatório, bem como a regulamentação do uso dos militares na garantia da lei e da ordem nas cidades, visando estabelecer regras mais precisas para o mandato constitucional das Forças Armadas. Ao ser questionado sobre as alterações no serviço militar, o ministro afirmou que havia consenso entre lideranças civis e militares de que o alistamento obrigatório deveria ser mantido e aprofundado. Isso porque, segundo ele, “num país tão desigual como o nosso”, a medida representaria um “nivelador republicano”. Mangabeira Unger explicou o termo empregado des- crevendo a atividade como “um espaço no qual a nação pode se encontrar acima das classes”, e completou afirmando que “todos nós queremos que as Forças Armadas do Brasil continuem

1 Giraldi (2008) antecipou, em abril do mesmo ano, alguns pontos que seriam discutidos na reunião de setembro, a partir de manifestações do próprio Mangabeira Unger. Sobre o referido encontro, conferir, dentre outros, Ribeiro (2008).

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a ser a própria nação em armas e não uma parte da nação, paga pelas outras partes, para defende- las” (RIBEIRO, 2008). Atualmente o serviço militar no Brasil é obrigatório para todos os jovens que completam 18 anos de idade2. No entanto, a grande maioria dos jovens obtém dispensa em razão do excesso de contingente nos quartéis ou de eventuais impedimentos previstos em lei3. A mesma matéria jornalística que noticiava as medidas previstas pelo Plano, trazia a informação de que na prática apenas jovens de famílias de baixa renda ingressam nos quartéis. O próprio Mangabeira Unger já havia abordado o ponto, quando em abril daquele ano afirmou que, em geral, “os recrutas são rapazes pobres que não têm outras alternativas” (GIRALDI, 2008). Nessa direção, uma das propostas do ministro era repensar os critérios de dispensa dos jovens, bem como a possibili- dade de substituição do serviço nos quartéis por uma espécie de serviço social obrigatório para todos. A informação acerca da composição social das Forças Armadas mobilizada por Manga- beira Unger coaduna, por sua vez, com impressões fornecidas pelo próprio Exército Brasileiro. Segundo seu portal de notícias, “As dificuldades em arranjar um primeiro emprego – e também uma remuneração – tem contribuído para que o número de jovens interessados em servir às Forças Armadas tenha aumentado nos últimos anos”. O texto citado traz ainda o depoimento de uma funcionária responsável pelos alistamentos que afirma que “os rapazes estão cada vez mais interessados em servir [...] pelo fato de receberem durante esse período uma remuneração

2 Conforme informações extraídas do sítio do Exército Brasileiro, “O alistamento deve ser realizado por todo jovem brasileiro, do sexo masculino, no período de 1º de janeiro ao último dia útil do mês de junho do ano em que o cidadão completar dezoito anos, na Junta de Serviço Militar (JSM) mais próxima de sua residência. Caso esteja residindo no Exterior, deverá procurar os Consulados ou as Embaixadas do Brasil.” Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2014. A obrigatoriedade do serviço militar está definida no Art. 143 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

3 A Revista Veja também repercutiu as propostas de alteração contidas no plano apresentado por Mangabeira Unger, trazendo, ainda, alguns dados sobre a composição das Forças Armadas no Brasil em perspectiva comparada. Em sua edição on-line, o veículo afirmou que “Proporcionalmente à sua população, o efetivo militar brasileiro é um dos menores do mundo. Em 2006, dos 1.648.550 jovens que se alistaram, aproximadamente 73.200 (4,5%) foram de fato incorporados a alguma organização militar.” In: Veja.com, Seções On-line, Perguntas & Respostas, out. 2008. Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2014. Sobre os impedimentos previstos em lei, a Constituição Federal de 1988, Art. 143, § 1º, prevê a dispensa do serviço militar por “imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar”, com previsão de prestação alternativa de serviços. Nessa direção, a lei no. 8.236 de 04 de outubro de 1991 regulamenta o referido artigo constitucional, prevendo, em seu Art. 3º, § 4º, que “O Serviço Alternativo incluirá o treinamento para atuação em áreas atingidas por desastre, em situação de emergência e estado de calamidade, executado de forma integrada com o órgão federal responsável pela implantação das ações de proteção e defesa civil.” Ao que tudo indica, a proposta de Mangabeira Unger não trazia necessariamente uma inovação, mas sim reforçava, por meio de outros argumentos, conforme aqui discutido, uma prática já prevista no arcabouço legal brasileiro.

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que, para muitos, serve como ajuda na despesa de suas casas” (AMARAL, 2012). A despeito do elemento laudatório presente no texto, notadamente o incentivo para que jovens ingressem nas Forças Armadas, o reconhecimento da remuneração como fator atrativo endossa o argu- mento aqui em curso. Em perspectiva comparada, este cenário figura próximo do observado na realidade norte-americana. Conforme dados citados por Michel Sandel, jovens de baixa renda também representam a maioria nas fileiras ativas do exército nos Estados Unidos da América. O autor lembra como “os 10% mais pobres da população (muitos dos quais podem não preencher os requisitos de educação e capacidade) e os 20% mais abastados [...] são o que têm menor repre- sentação” (SANDEL, 2012, p. 107). Sandel aponta, ainda, a baixa escolaridade média dos que resolvem servir ao exército, identificada pelo declínio substantivo na adesão dos recém-forma- dos em nível superior4. Lá, como aqui, a opção pelas Forças Armadas reproduz a lógica do mercado, constrangendo escolhas profissionais a partir das opções disponíveis. Ainda que ancorados em trajetórias distintas – assumindo um exagerado acento indivi- dualista nos EUA –, os modelos de alistamento militar norte-americano e brasileiro manifestam, na prática, princípios semelhantes de recrutamento, recebendo críticas no que diz respeito aos valores que reverberam. Com efeito, a crítica vocalizada por Sandel e presente, em parte, nas declarações de Mangabeira Unger, mostra como ambos os modelos tendem a forçar o recruta- mento de um determinado setor da população – jovens de baixa renda –, atraído pelos salários ante o veto imposto pelo mercado ao exercício da livre escolha. Algo que ilustra, segundo o argumento aqui defendido, uma determinada concepção moral de sociedade que deve ser re- pensada a partir de outros ideais normativos. Trata-se, em outras palavras, da possibilidade de construirmos uma crítica aos valores do mercado presentes nas sociedades democráticas con- temporâneas, com vistas a contornar os perigos decorrentes da fragmentação da sociedade. Entre nós, o Plano Estratégico de Defesa debatido em 2008 constitui, conforme apon- tado, um exemplo dessa crítica, ainda que não sistematizada no debate jornalístico. O projeto foi aprovado por unanimidade em dezembro do mesmo ano pelo Conselho Nacional de Defesa, conforme sugestão de encaminhamento do presidente Lula, sendo efetivado, posteriormente, por decreto presidencial. O texto, que fora construído por Mangabeira Unger e Nelson Jobim entre os anos de 2007 e 2008, trazia alguns pontos sigilosos, de acesso exclusivo dos comandos

4 Sandel menciona dados recentes de uma pesquisa sobre a composição social do exército norte-americano, tomando como exemplo formandos da Universidade de Princeton. Segundo o autor, se em 1956 a maioria dos 750 membros da turma (450 alunos), ingressou no exército após a formatura, em 2006, dos 1.108 formandos da mesma universidade apenas 9 se alistaram. Ao lado disso, Sandel aponta o baixo percentual dos filhos de congressistas no serviço militar (SANDEL, 2012, p. 107).

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militares, mas manifestava, em linhas gerais, a intenção do governo de aumentar o investimento na indústria bélica, além de reorganizar a composição das Forças Armadas. Malgrado a rele- vância para a agenda pública de um exame mais aprofundado acerca das medidas previstas no texto, importa para o argumento aqui avançado a centralidade da expressão “nivelador republi- cano”, utilizada por Mangabeira Unger como justificativa para a correção das desigualdades presentes na sociedade brasileira. Expressão esta passível, com efeito, de aproximação da crítica comunitarista5 enunciada por Michel Sandel no contexto norte-americano (SANDEL, 2005; 2012a; 2012b). Decerto, o termo não foi corretamente explorado no debate que cercou a aprovação do Plano. Sua colocação no contexto específico manifesta, porém, a virtuosa percepção do ministro sobre a importância de resgatarmos determinados valores normativos para correção da demo- cracia presente, pautada quase exclusivamente por noções de livre-mercado e bem-estar social que em momento algum resumem a pluralidade de concepções de liberdade presente na tradição do pensamento político ocidental (PETTIT, 1999; SKINNER, 1999; 2010), nem ao menos es- tabelecem consenso acerca dos valores que sustentam a vida democrática (SANDEL, 2012a). Mangabeira Unger pode, seguramente, não ter mobilizado a noção de “república” nos mesmos termos a serem explorados neste trabalho. Ainda assim, sua trajetória e formação, além da exa- ustiva reflexão teórica e da agenda propositiva sobre os destinos do país (UNGER, 2001; 2005), permitem certas ilações sobre a escolha específica desta expressão no debate sobre um tema caro à tópica republicana, a saber, a constituição de exércitos nacionais com cidadãos e o patri- otismo necessário à vida comunitária. O assunto foi tratado, para retermos o exemplo notório, por Maquiavel em O Príncipe, sendo posteriormente incorporado à extensa e plural interpreta- ção republicana de sua obra6. Trata-se, em linhas gerais, do modo como Maquiavel associa a manutenção da liberdade ao elemento cívico da vida comunitária (BIGNOTTO, 1991; SILVA, 2010b; SKINNER, 1988). Nascido no Rio de Janeiro em 1947, Roberto Mangabeira Unger formou-se na Facul- dade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, e figura hoje como um dos mais destacados filósofos do direito, com decisivas contribuições para o debate da teoria social contemporânea.

5 No terceiro capítulo discuto, a partir da obra de Sandel (2005), a relação entre o “comunitarismo” e o “republicanismo”, mostrando como o autor apresenta certo desconforto com o primeiro rótulo. Por ora, fixo apenas ambos como propostas alternativas de sociedade ao liberalismo vigente.

6 As relações entre a guerra e a política em Maquiavel foram alvo de inúmeros estudos. Para um exame mais aprofundados do tema, ver, dentre outros, o trabalho de Coelho; Menezes (2013).

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Professor da Universidade de Harvard desde 1971, eleito membro vitalício da Academia Ame- ricana de Artes e Ciências, sua obra é citada por autores como Jürgen Habermas, Richard Rorty e Perry Anderson, compondo importante interlocução sobre alternativas constitucionais ao for- mato presente. Em concomitância à sua produção intelectual, Mangabeira Unger mantém ativa militância política, ganhando notoriedade na última década ao estruturar a reforma trabalhista do primeiro ministro da Inglaterra, Tony Blair. No Brasil, atua na arena pública desde a rede- mocratização, seja como candidato, seja no apoio ao projeto político de conhecidos atores do cenário nacional7. Após ser um crítico do primeiro mandato do governo Lula, Unger assumiu a Secretaria de Assuntos Estratégicos, alçada ao status de ministério, permanecendo no cargo entre 2007 e 2008, quando elaborou e participou das discussões sobre o Plano Estratégico de Defesa acima mencionado. Em 2009, ele reassumiu suas atividades acadêmicas em Harvard8. A breve menção à biografia do ex-ministro permite, com efeito, supor que o uso da expressão “nivelador republicano” na descrição do serviço militar e/ou social obrigatório não foi despretensioso. Mangabeira Unger tem consciência do que o termo “república” comporta na reflexão contemporânea sobre a democracia, sobretudo no contexto em que foi utilizado, a saber, o debate sobre a criação de espaços de convivência comuns numa sociedade permeada por desigualdades de toda ordem. Ainda que no caso em particular a questão não tenha sido tratada a contento, a retomada da tópica republicana na agenda pública, levada a cabo por um importante intelectual à frente das discussões sobre a reforma da política de defesa, se dá em consonância com o movimento mais amplo de retorno ao republicanismo na reflexão ocidental, gestado a partir do diagnóstico comum de que a “república não vai bem” (BIGNOTTO, 2000; 2013; CARDOSO, 2004; e PER- LATTO; SOUSA, 2013). Seguramente tal retorno guarda clivagens decisivas entre seus adep- tos. Contudo, a constatação da necessidade de enfrentarmos os problemas da vida democrática

7 Mangabeira Unger esteve, por exemplo, engajado na campanha de Ciro Gomes (na época filiado ao Partido Popular Socialista – PPS) à Presidência da República em 2002.

8 Já na revisão deste trabalho, Roberto Mangabeira Unger assumiu novamente a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, substituindo o então titular da pasta, Marcelo Neri, agora a convite da presidente Dilma Rousseff (PT). Na posse, ocorrida em 05 de fevereiro de 2015, Unger enfatizou a reforma das instituições como um instrumento de transformação. Em seu discurso, o ministro disse que “O sonho brasileiro é ver a pungência casada com a ternura, mas esse sonho sempre ameaça virar ilusão se não caminhar junto com ações que possam transformar a estrutura do país, e, portanto, mudar as suas instituições. A transformação institucional é o ponto crucial, decisivo, que nos permite construir esse horizonte de futuro. Quando a imaginação institucional der olhos ao dinamismo brasileiro, a vitalidade se transformará em grandeza”. Disponível em: . Acesso em: 07 fev. 2015. Ainda que o tema da “república” não tenha sido explicitamente priorizado, a agenda da reforma institucional figura como um tópico caro ao debate republicanismo, conforme observamos, por exemplo, em: CARDOSO Jr.; BERCOVICI, Gilberto, 2013.

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a partir de valores capazes de ampliá-la e consolidá-la vem se tornando diagnóstico corrente entre nós, associado, ainda, ao exercício propositivo de instrumentos para a tomada de posição frente aos desafios da contemporaneidade, subsidiando decisões estratégicas no âmbito do Es- tado (CARDOSO; BERCOVICI, 2013). A obra de Mangabeira Unger, notadamente seus ensaios de intervenção, transparece, com efeito, a mesma necessidade de “corrigirmos” a democracia presente em suas declarações. Malgrado não constituir o autor referência central do argumento aqui avançado, uma sumária exposição das suas proposições poderá contribuir para a compreensão do exemplo mobilizado, a saber, o declínio do dever cívico como indício de esfacelamento dos laços morais de solida- riedade na democracia. Em linhas gerais, Unger sustenta a possibilidade de implementarmos uma política transformadora, por ele denominada “segunda via”, para além da recorrente opo- sição entre o “indivisível sistema capitalista” e a “fantasmagórica alternativa centrada no mo- delo socialista” (UNGER, 2005). Tal política se daria por meio do que o autor define como “experimentalismo prático”. Trata-se da possibilidade de reorganizarmos a sociedade por meio de operações concretas, não capitulando a superstições deterministas inibidoras do imprescin- dível desejo transformador. O elemento “experimental” da proposta abriga grande originalidade: Unger defende o experimento como método, ou seja, a adoção de alternativas práticas que seriam num tempo específico reavaliadas, podendo ou não serem incorporadas ao arranjo institucional. Em outras palavras, Mangabeira Unger aponta a ausência de tentativas como responsável pela inexistência das necessárias práticas transformadoras no aprimoramento do formato institucional presente. E as finalidades dessa transformação seriam, nas palavras do autor,

A curto prazo, [...] a realização de nossos interesses reconhecidos e para que possamos professar mais completamente nossos ideais, sem termos que aceitar arranjos arraiga- dos como modelos dentro dos quais precisamos preencher nossos interesses ideais. A longo prazo, para reconciliarmos fortalecimento com solidariedade, e grandeza com amor, e revigorarmos nossos poderes de modo que se afirmem e não se mitiguem as responsabilidades que temos uns para com os outros (UNGER, 2005, p. 61).

A conciliação entre solidariedade e interesses é, por certo, tarefa difícil9. A despeito disso, o trecho enaltece valores que consubstanciam o argumento a ser aqui defendido: a neces- sidade forjamos liames morais capazes de responsabilizar os indivíduos uns para com os outros.

9 Em chave distinta, porém digna de nota, esse debate surge na ciência política por meio da metáfora do “mercado político”. Em linhas gerais, a conciliação entre solidariedade e interesse aparece associada ao tema do desenvolvimento político, por meio da defesa da transposição dos princípios de competição do mercado – regras definidas, maior número de competidores para aumentar a concorrência e, consequentemente, beneficiar o “consumidor”, dentre outros –, como estratégia para a superação do nosso “atraso”. Uma engenhosa exposição

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Unger é claro neste ponto, assim como foi quando, na qualidade de ator estatal, apresentou sua defesa da adoção de “niveladores republicanos” para atenuar a desigualdade de classe. O exemplo há pouco mencionado foi alvo, ainda, de uma reflexão substantiva na obra do autor. Num conjunto de ensaios sobre o “futuro do Brasil”, Mangabeira Unger aponta como imprescindível pensarmos a democracia no cotidiano de nossas ações. Isso tornar-se-ia evi- dente, segundo sua construção, através de três princípios estruturantes elencados como tarefas para o cumprimento da proposta de transformação há pouco apresentada: (1) libertar a demo- cracia do mercado; (2) democratizar práticas cotidianas; e (3) integrar as Forças Armadas à nação. Ainda que de maneira sumária, a apresentação dos princípios enunciados pelo autor su- gere preocupações próximas do argumento aqui defendido. O primeiro princípio por ele elencado diz respeito aos desencantamentos com o sufrágio universal no Ocidente. Isso porque, a entrada das massas no mundo da política não ocasionou, como alguns esperavam, a adoção de medidas a elas favoráveis. Devemos, em razão disso, “libertar a prosperidade nacional do arbítrio dos ricos” (UNGER, 2001, p. 80), sem o que não seremos capazes de construir um futuro comum. O segundo princípio esbarra naquilo suposta- mente se apresenta como “necessário” ou “sagrado”: a forma da sociedade, desigual e fragmen- tada. Qualquer tentativa de reforma nesse sentido soa, segundo Unger, como uma ameaça de crise econômica, inviabilizando tentativas proveitosas por meio do receio da mudança. A pro- posta do experimentalismo vai contra essa postura conservadora. O terceiro princípio refere-se, com efeito, ao exemplo abordado nesta introdução. Ao defender a necessidade de integração entre as Forças Armadas e a nação, Unger aponta o perigo para os procedimentos democráticos por parte dos militares como um empecilho à efetiva con- solidação da democracia. Devemos, conforme sua defesa, superar os perigos decorrentes pre- sença do facciosismo nas Forças Armadas para que a democracia possa então crescer. E o ca- minho por ele apontado, em consonância com manifestações futuras – como à época da discus- são do Plano Estratégico de Defesa –, é o recrutamento de cadetes e aspirantes entre todas as camadas do povo e correntes de opinião, deixando em aberto as preferências políticas das For- ças Armadas. Isso porque, “a experiência brasileira nos ensina que o isolamento do oficialato como corporação, seu recrutamento entre faixas limitadas da população e sua independência de uma fiscalização civil efetiva levam a República ao despenhadeiro e distorcem a própria insti- tuição militar” (UNGER, 2001, p. 84).

dessa discussão pode ser encontrara em Reis (2000). Aqui, porém, o argumento caminha em direção oposta, defendendo a necessidade de algo mais do que a simples manutenção das regras de competição no funcionamento da democracia, sem desconhecer, é claro, sua importância.

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Certamente, Mangabeira Unger expõe suas alternativas ao formato presente com maior cuidado e sofisticação do que a breve apresentação dos seus argumentos aqui avançada. A des- peito disso, o objetivo foi inscrever suas declarações quando na posição de ministro de Assuntos Estratégicos num quadro reflexivo mais sistemático, sustentando a hipótese de que a adoção de determinadas expressões na condução das políticas de governo manifesta entendimentos subs- tantivos sobre as noções de dever cívico, patriotismo e desigualdade, por exemplo. Tais enten- dimentos podem, conforme aqui sugerido, ser situados dentro de um marco conceitual especí- fico, a saber, uma determinada tradição de pensamento republicano. Ainda que o termo “república” abrigue uma incômoda polissemia, o argumento da tese perpassa a reconstrução de uma tradição específica de pensamento, por meio de um duplo re- torno aos autores do passado, menos com interesses historiográficos, e mais com pretensões normativas. Trata-se, (1) por um lado, de remontar, a partir do pensamento político ocidental, elementos que consubstanciam o modelo de “república” a ser defendido como ideal normativo; e, (2) por outro, de buscar nos “nossos clássicos”, ou na tradição nacional de pensamento polí- tico, elementos para (re)construir semelhante ideal normativo para a “correção” da democracia brasileira. Ambos os aspectos serão melhor explorados a seguir. Importa lembrar, todavia, que este movimento de retomada da tópica republicana, seja no âmbito da teoria política ocidental, seja na busca de exemplos históricos nacionais com vistas a embasar o modelo, seguramente não é exclusivo inteligência nacional. Nessa direção, a contribuição dada pelo filósofo norte-americano Michael Sandel, pró- cer da crítica comunitarista ao liberalismo contemporâneo, constitui contraponto esclarecedor no debate aqui desenvolvido. Sandel tem discutido a questão da moralidade dos mercados por meio de exemplos cotidianos. Conforme mencionado, um dos temas tratados pelo autor aborda precisamente as distintas formas de composição dos exércitos e as correlatas concepções de justiça que elas acarretam, apontando problemas, seja na visão libertária que defende a soberana liberdade dos indivíduos na realização de escolhas voluntárias – considerando, assim, as inter- ferências no mercado como violações da liberdade individual –, seja no argumento utilitarista que aponta os mercados livres como capazes de promover o bem-estar social ao permitir acor- dos que aumentem a felicidade geral. O autor nos mostra como os críticos do livre mercado consideram que as escolhas individuais nem sempre são livres, ou mesmo que existem deter- minadas práticas sociais que são corrompidas pelas transações em dinheiro (SANDEL, 2012a; 2012b). No bojo do comunitarismo, Sandel reconstrói em sua obra uma tradição intelectual de discussão sobre a justiça, partindo do utilitarismo e da ideologia libertária para, em seguida,

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levantar impasses na doutrina do individualismo moral formulada por Kant e Rawls, apontando saídas através da retomada da concepção aristotélica de justiça, presente, dentre outros, no im- portante livro de Alasdair MacIntyre (2001). Seu objetivo principal vem sendo a popularização de um modelo de justiça não redutível às concepções de liberdade e felicidade advindas, res- pectivamente, da ideologia libertária e do utilitarismo, nem à doutrina do individualismo moral, que encontra em Rawls sua formulação mais sofisticada. Em linhas gerais, o autor propõe uma noção narrativa de indivíduo, rejeitando a possibilidade de concepções neutras de política e justiça. Sua vocação para o debate público tem, com efeito, popularizado o comunitarismo e o questionamento ao livre mercado nos dias de hoje, propondo a criação de espaços de encontro para além da desigualdade de classes – como o ensino público, por exemplo – na construção do que ele define como uma “política do bem comum”10 (SANDEL, 2012a, p. 323-330). Seguramente, a crítica comunitarista não compõe um conjunto homogêneo de proposi- ções, por um lado, bem como a própria rotulação é passível de questionamentos, por outro. No exemplo em questão, o próprio Sandel reforça seu distanciamento para com os termos “comu- nitarista” ou “comunitarismo” em prol do rótulo “republicano”, sob a alegação de que o comu- nitarismo sugere certo “majoritarismo” ao supor que a opinião da maioria pode ser considerada “justa”, ou mesmo um hiper-relativismo moral, ao dimensionar como justas as opiniões que prevalecem nas comunidades concretas (SANDEL, 2005, p. 9-18; SILVA, 2008, p. 163). O ponto será melhor explorado a seguir, na justificativa da adoção do termo “república” como ideal normativo. Por ora, basta retermos o debate proposto por Sandel no tocante ao elemento cívico negligenciado nas discussões sobre o funcionamento dos mercados, como contraponto crítico aos impasses presentes na modernidade. Nesse sentido, ainda que seja possível operarmos uma separação mais cuidadosa entre o republicanismo e o comunitarismo, conforme o próprio Sandel enuncia, aqui ambos serão tomados em conjunto como manifestações da necessidade de buscarmos alternativas para a correção do projeto filosófico da modernidade, sem abandoná-lo em sua essência11 (HABER- MAS, 2000). Nos termos propostos, o filósofo norte-americano exemplifica o retorno da tópica

10 Os argumentos de Sandel (2005, 2012a, 2012b) e MacIntyre (2001) serão melhor debatidos no terceiro capítulo desta tese, mobilizados na construção de um modelo normativo de república para a correção da democracia contemporânea.

11 Entendo aqui o projeto filosófico da modernidade nos termos de Habermas (2000), como a garantia da liberdade individual e a manutenção dos direitos individuais através de um progressivo processo de racionalização da vida, não apenas na sua dimensão instrumental, mas sobretudo através do potencial emancipatório presente na razão ocidental. Kant figura, dentre outros, como um exemplo marcante desse projeto, ao defender a possibilidade de alcançarmos uma legislação racional universal ancorada na dimensão individual, assegurando a dignidade humana por meio da ação guiada por imperativos. Sandel descreve a concepção kantiana de justiça como pautada por princípios que independem dos fins perseguidos (SANDEL, 2005; 2012, p.

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republicana ao debate público, como sua discussão sobre os limites morais do mercado e as concepções de justiça nele implícita manifesta12. O poder do argumento esboçado por Sandel pode ser medido inclusive pela disparidade dos exemplos que mobiliza. Ao apresentar os impasses presentes na defesa do livre mercado, o autor escolhe como exemplos combater em guerras e gerar filhos, mostrando como tanto no recrutamento “voluntário” dos exércitos, quanto no fenômeno crescente do mercado de “barri- gas de aluguel” – notadamente em países como a Índia –, esbarramos em questionamentos substantivos acerca dos conceitos morais envolvidos (Sandel, 2012a, p. 97-131). Em linhas gerais, os exemplos apresentados por Sandel despertam a necessidade de buscarmos “nivelado- res republicanos” extraídos da tradição, mobilizando, aqui, a expressão de Mangabeira Unger em consonância com o argumento proposto. Sandel recupera um episódio marcante da história dos Estados Unidos da América no século XIX, que constitui contraponto interessante no debate desencadeado pelo Plano Estraté- gico de Defesa há pouco mencionado. Trata-se da lei de alistamento compulsório da União, decretada em 1862 pelo presidente Abraham Lincoln durante a Guerra Civil Americana. A me- dida, que previa a obrigatoriedade do serviço militar, atingia frontalmente a tradição individu- alista norte-americana. Não por acaso, o Lincoln enfrentou forte descontentamento após a pro- mulgação da lei, sendo a União obrigada a realizar amplas concessões para conter os ânimos da população. Inicialmente, os convocados que não quisessem servir poderiam contratar pessoas para combater em seu lugar. Em 1863, tentando contornar a crescente insatisfação da sociedade, o Congresso americano flexibilizou a lei, facultando aos convocados pagar uma quantia em dinheiro para não servir. A despeito disso, várias manifestações violentas foram testemunhadas nos postos de alistamento, ganhando tons mais dramáticos na cidade de Nova York. Na prática, poucos foram os que serviram (SANDEL, 2012a, p. 100-103). O fato é que o mecanismo adotado na Guerra Civil Americana pode parecer injusto aos olhos contemporâneos, conforme provoca Sandel, pois operaria uma discriminação de classe, permitindo, naquele contexto, que os “ricos” contratassem os “pobres” para lutar em seu lugar.

133-174). O ponto é melhor explorado no terceiro capítulo da tese.

12 A possibilidade de pensarmos o republicanismo como uma alternativa aos impasses gerados pelo comunitarismo é melhor explorada ao longo da tese. Trata-se, sobretudo, da tentativa de escaparmos às armadilhas presentes nos debates sobre a modernidade, ora “pós-modernos” (ou conservadores de diferentes formas, conforme o argumento habermasiano), responsáveis por uma leitura exagerada do liberalismo em questões morais, ainda que quase sempre conservadora em questões políticas e/ou econômicas; ora “pré- moderno”, incorrendo nos perigos daquilo que definiu como o processo de “materialização do direito” (WEBER, 1999). Por ora, basta retermos a discussão de Sandel como um exemplo da retomada da tópica republicana do “bem comum” – por meio, dentre outros, do argumento aristotélico –, como manifestação da necessidade de buscarmos alternativas para a modernidade, sem abdicarmos da essência do seu projeto.

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A grande maioria dos americanos tem, com efeito, declarado atualmente preferência inconteste pelo modelo de exército “voluntário”, ou seja, vem novamente rejeitando a obrigatoriedade do serviço militar, defendendo como mais “justo” o recrutamento de um corpo de soldados profis- sionais remunerados pelo Estado. O que os americanos não percebem, entretanto, é a seme- lhança entre o sistema adotado na Guerra Civil e o exército “voluntário” por eles defendido. Sandel alerta para a inadequação do termo “voluntário” neste caso, pois “ninguém é recrutado, e o trabalho é desempenhado por aqueles que concordam em fazê-lo em troca de dinheiro e outros benefícios” (ibidem, p. 103). Em outras palavras, diferentemente de ações de caridade, onde voluntários oferecem ajuda aos necessitados, por exemplo, o exército “voluntá- rio” de profissionais pode ser equiparado a qualquer profissão no mercado onde indivíduos aceitam desempenhar determinadas funções em troca de uma remuneração em dinheiro. O que assemelha este modelo ao adotado na Guerra Civil, contudo, é a constatação de que hoje a grande maioria dos americanos prefere pagar seus impostos para que alguém coloque a vida em risco no seu lugar. Ainda que de maneira indireta, o sistema assemelha-se ao adotado no século XIX. O debate pode ser melhor ilustrado, conforme sugere Sandel, ao compararmos três di- ferentes formas de composição dos exércitos que campeiam a discussão: (a) o alistamento com- pulsório (modelo presente, por exemplo, no Brasil, mas com algumas ressalvas importantes, conforme discutimos acima); (b) a convocação com possibilidade de contratação de um substi- tuto para servir em seu lugar (sistema adotado na Guerra Civil Americana para atenuar a insa- tisfação com a obrigatoriedade); e (c) aquilo que o autor define como sistema de mercado (ou exército “voluntário”, sem negligenciarmos a ressalva feita anteriormente ao termo). Segundo Sandel, seja na concepção de liberdade encampada pela ideologia libertária, seja na concepção de felicidade defendida pelo utilitarismo, a terceira forma de composição dos exércitos – o sistema de mercado – figura como a mais “justa”, seguida da segunda forma – uma espécie de híbrido do sistema de mercado, mas semelhante a ele nos seus princípios. Isso porque, o alistamento compulsório soa aos libertários como uma interferência arbitrária nas escolhas dos indivíduos, ao impor uma espécie de trabalho escravo nas fileiras do Estado, ao passo em que representa uma redução da felicidade geral aos utilitaristas, pois impede trocas voluntárias entre os indivíduos, capazes aumentar a felicidade geral13. Contra o sistema de mer- cado, porém, Sandel apresenta duas objeções.

13 Sandel é cuidadoso na apresentação dos princípios gerais do utilitarismo e da ideologia libertária, mostrando suas falhas e o modo como a doutrina do individualismo moral presente em Kant e Rawls tenta superá-las. Tal exposição, porém, foge aos objetivos aqui propostos. Para uma melhor compreensão do ponto, ver: Sandel

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(1) A primeira aponta para o problema da equidade e da liberdade nas escolhas realiza- das no mercado em sociedades desiguais. Isso porque, ao afirmar que os indivíduos operaram escolhas no mercado livremente, o sistema negligencia o constrangimento imposto pelas neces- sidades concretas. Assim como Mangabeira Unger expôs em sua defesa do aprofundamento do serviço militar obrigatório (com a possibilidade de substituição por um serviço social), Sandel retoma a falta de alternativas da população de baixa renda como um impedimento ao exercício efetivo da liberdade. Não por acaso, a realidade norte-americana por ele descrita se aproxima do caso brasileiro anteriormente mencionado: os jovens mais privilegiados da sociedade não têm optado pelo serviço militar (SANDEL, 2012a, p. 107). Logo,

A primeira objeção à lógica de mercado para o exército voluntário refere-se à iniqui- dade e à coerção – a iniquidade da discriminação de classe e a coerção que pode ocor- rer se as dificuldades financeiras compelirem os jovens a arriscar sua vida em troca da educação superior e outros benefícios (SANDEL, 2012a, p. 108).

O autor é claro ao afirmar que essa objeção não é contra o sistema de mercado em ab- soluto, mas sim contrária ao sistema de mercado em sociedades desiguais. É importante lem- brarmos, todavia, que a existência de sociedades perfeitamente igualitárias é impossível. (2) A segunda objeção aponta o elemento de obrigatoriedade cívica presente no serviço militar, desconfigurando, assim, seu status de emprego. Na construção do seu argumento, San- del compara o serviço militar obrigatório ao tribunal do júri: cidadãos são convocados para atuar “voluntariamente” como jurados, sem serem remunerados por isso. Eles o fazem por res- ponsabilidade cívica. No caso do júri, não permitimos que pessoas sejam contratadas para subs- tituírem umas as outas, nem ao menos aceitamos o sistema de mercado defendido como modelo mais “justo” na composição dos exércitos. Em outras palavras, o júri não pode ser recrutado profissionalmente em troca de um salário. Segundo Sandel, o motivo para isso é que conside- ramos o exercício da justiça nos tribunais uma responsabilidade que deve ser compartilhada por todos os cidadãos. Além disso, entendemos a prática como uma espécie de educação cívica. Dessa forma,

Pode-se dizer o mesmo sobre o serviço militar. O argumento cívico para a convocação obrigatória afirma que o serviço militar, tal como o dever para com o júri, é uma res- ponsabilidade cívica. Ele expressa e aprofunda a cidadania democrática. Desse ponto de vista, transformar o serviço militar em mercadoria – serviço que contratamos outras pessoas para executar – corrompe os ideais cívicos que deveriam governá-lo. De acordo com essa objeção, é errado contratar soldados para a guerra, não porque isso

(2012a).

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seja uma injustiça para com o pobre, mas porque nos permite abrir mão do dever cí- vico (SANDEL, 2012a, p. 110-111).

Sandel recupera a noção de cidadania presente em Rousseau, mostrando sua desconfi- ança para com o mercado por meio de exemplos ainda mais provocativos. Segundo ele, se po- demos utilizar o sistema de mercado na composição dos exércitos, nada nos impediria de con- tratar estrangeiros, ou mesmo de privatizar as Forças Armadas, como parte das intervenções bélicas norte-americanas recente demonstra. Em linhas gerais, somos inclinados a enxergar no Estado a opressão pela força e nos mercados a liberdade, quando, na prática, pode ser o contrá- rio. Em todos esses casos paira, sobretudo, uma questão central: “Quais são as obrigações que os cidadãos de uma sociedade democrática têm para com os demais e como surgem essas obri- gações?” (SANDEL, 2012a, p. 116). Essa questão já fora, em termos ligeiramente distintos, apresentada a partir da ênfase de Mangabeira Unger na necessidade de reforçarmos a “respon- sabilidade” dos cidadãos uns para com os outros. Aqui, mais do que esgotar a sofisticação do argumento de Sandel para a correção do mundo contemporâneo, o objetivo é apontar a retomada de determinados elementos da tradição como princípios normativos no aperfeiçoamento das sociedades democráticas. Isso porque, a despeito das diferenças entre o caso norte-americano e o brasileiro, o debate desencadeado por Sandel traz consigo alguns dos elementos que serão explorados na definição de uma ideia de “república” que pode constituir, conforme o argumento sustentado, ponto seguro de inflexão sobre os rumos do país. O exemplo em questão manifesta, sobretudo, oposições substantivas sobre justiça e direitos, com evidentes discordâncias práticas acerca do formato das instituições e do seu funcionamento. Todavia, importa para o argumento aqui em construção, percebermos como discordâncias semelhantes estão presentes também no debate político brasileiro ao longo de sua história. Nessa direção, ainda no tocante ao tema da composição dos exércitos e da defesa da pátria, o dezenove brasileiro travou embates parlamentares semelhantes ao descrito por Sandel no contexto dos EUA, mostrando como as questões que ocuparam inteligência nacional na con- formação das nossas instituições estavam em sintonia com países como EUA, Inglaterra e França (DOLHNIKOFF et al., 2012). Em síntese, a definição de quem poderia ou não servir ao Exército na defesa da pátria esteve aqui vinculada ao debate maior sobre a extensão da cidada- nia, transparecendo, assim, uma concepção específica de sociedade e direitos. Tal enquadra- mento do debate aproxima-se do modo elaborado como Mangabeira Unger e Michael Sandel discutem o serviço militar.

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O problema da restrição do acesso aos direitos políticos já havia sido enfrentado por Madison no contexto norte-americano. Na reação contra os grandes proprietários do sul, que reivindicavam a inclusão dos escravos no cálculo da população, de modo a assegurarem para os seus estados um número maior de representantes, Madison defendia que os escravos eram considerados propriedade e não pessoas, logo poderiam ser incluídos nos cálculos referentes à tributação, mas não na contabilidade eleitoral. Do confronto, “Acabou prevalecendo na Cons- tituição norte-americana uma solução intermediária, pela qual o escravo contava como três quintos de uma pessoa”14 (DOLHNIKOFF et al., 2012, p. 111). No Brasil, um intenso debate instalou-se na Câmara dos Deputados em 1867, em função de um decreto do governo que libertava os escravos que fossem lutar em defesa da pátria na Guerra do Paraguai. O deputado do Rio de Janeiro, Adolfo Bezerra de Menezes, questionou o decreto à época, afirmando que os escravos eram propriedade da nação, e não do governo, tendo o ato ferido o “direito sagrado de propriedade” (DOLHNIKOFF et al., 2012, p. 112). Decerto, o uso do repertório liberal na defesa da escravidão, por meio do artifício do direito de proprie- dade, já foi amplamente questionado no que trazia de contraditório (SCHWARZ, 2000). Aqui interessa, contudo, os argumentos apresentados no veto à participação dos escravos no Exército nacional, atestando uma compreensão mais substantiva acerca dos direitos e deveres da cida- dania nas discussões em questão, bem como propostas menos incongruentes quando compara- das à solução que observamos na experiência norte-americana acima mencionada. Isso porque, manifestando coerência com sua posição, o deputado Bezerra de Menezes “salientava que aquele que não gozava de cidadania por ser coisa, não podia também cumprir obrigações atribuídas aos cidadãos, como defender a pátria” (DOLHNIKOFF et al., 2012, p. 113). Sua resposta estava endereçada ao deputado da Paraíba, Aristides Lobo, que havia defen- dido a participação dos escravos na guerra sob o argumento de que os homens livres também marchavam para defender a nação com a própria vida. Dessa forma, o impasse entre escravidão e formação de um Exército não era apenas de ordem prática, mas da natureza da própria con- cepção da cidadania e do acesso aos direitos num regime político: por conceber os escravos como coisa, Menezes lhes negava direitos e, ao mesmo tempo, os desobrigava do cumprimento dos deveres. A pátria não era deles, mas dos outros, dos homens livres. Contrariamente ao tratamento conferido ao tema nas discussões cotidianas, os deputa- dos no oitocentos ao menos transpareciam um entendimento da relação entre direitos e deveres

14 É inevitável o estranhamento com tal solução, não apenas pela rejeição moral da escravidão nos dias de hoje, mas também pela incoerência da proposta. Isso porque, ou os escravos eram contabilizados como pessoas, ou como propriedade.

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dos cidadãos em muito distinto daquela em voga no presente, dominado pelo “triunfalismo do mercado” e pela sensação de que o dinheiro a tudo pode comprar (SANDEL, 2012b). Nesse sentido, o modo como Sandel interpela o serviço militar a partir do tribunal do júri e dos deveres cívicos, ou mesmo as questões antepostas por Mangabeira Unger sobre a ausência de “nivela- dores republicanos” como espaços de convívio para além da desigualdade de classes, consti- tuem momentos exemplares de qualificação do debate público, mostrando a necessidade de buscarmos ideais normativos para o aprimoramento das práticas democráticas, apresentando, ainda, caminhos consistentes a serem trilhados. Sandel figura, por certo, como uma das mais argutas críticas nessa direção, conforme sua defesa contemporânea de uma política do bem comum manifesta. Ao apontar a dimensão de “sacrifício” presente na cidadania, enaltecendo o papel da escola pública na formação cívica, por exemplo, o autor reforça a necessidade do sentimento de comunidade para o estabeleci- mento de uma sociedade justa. Em seu argumento transparecem expressões caras ao léxico republicano, como boa vida, virtude cívica e bem comum. É precisamente por meio delas que Sandel aponta os limites morais do mercado, a necessidade do enfrentamento das desigualdades na promoção da solidariedade e da virtude cívica, enfim, a importância da construção de uma política de comprometimento moral, capaz de tematizar valores na vida pública em busca da construção de modelos concorrentes de “bem comum”, sem descuidar do respeito mútuo (SAN- DEL, 2012a, p. 330). Todo esse movimento é operado a partir do retorno ao que comumente definimos como “clássicos” do pensamento político, tarefa inescapável ao exercício imaginativo e crítico aqui defendido. Sandel, para retermos um dos argumentos estruturantes deste trabalho, refaz em sua obra os percursos do utilitarismo de , da ideologia libertária de Robert Nozik, da doutrina do individualismo moral de Kant e Rawls para, em seguida, questioná-los a partir da concepção aristotélica de justiça, sempre mobilizando exemplos cotidianos de dilemas mo- rais a serem enfrentados (SANDEL, 2012a). Ciente dos perigos que o retorno à tradição acar- reta, notadamente no que tange à imposição forçosa de finalidades comuns aos indivíduos e os consequentes riscos à liberdade (BERLIN, 2002), Sandel encontra na concepção narrativa de indivíduo formulada por MacIntyre um contraponto normativo para a concertação do presente. Em síntese, o autor defende que valores morais sejam tematizados no mundo público, perspectiva contrária aos anseios por neutralidade presentes na teoria política liberal de Kant e Rawls. Isso porque, “Se deliberar sobre o que é bom para mim envolve refletir sobre o que é bom para as comunidades às quais minha identidade está ligada, talvez a ideia de neutralidade

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seja equivocada. Pode não ser possível, nem mesmo desejável, deliberar sobre justiça sem de- liberar sobre vida boa” (SANDEL, 2012a, p. 296). Nesse sentido, o retorno aos clássicos do pensamento político será aqui entendido como instrumento privilegiado na interpelação do mundo público, além de tarefa inescapável ao exer- cício proposto, qual seja, elaborar um modelo normativo de república. Sem desconsiderar a decisiva contribuição de metodologias específicas em sua abordagem – notadamente os traba- lhos de Quentin Skinner na reformulação do estudo da história das ideias políticas –, o argu- mento da tese pretende avançar situando o lugar da história na teoria política normativa. Isso porque, ainda que a história seja importante para a “imaginação de mundo possíveis” (LESSA, 2003a), ela não pode, por certo, atuar como sua limitadora. Outro movimento aqui importante será retomada dos nossos clássicos do pensamento. Em permanente diálogo com a teoria política ocidental, a proposta é encontrar na tradição do pensamento político brasileiro elementos para a montagem de um ideal normativo de república. Creio que com isso teremos a oportunidade de forjar armas próprias para o enfrentamento dos desafios presentes. Todavia, mais do que isso, pretende-se mostrar como podemos, por meio deste movimento, construir contrapontos críticos ao andamento global das ciências sociais a partir da nossa tradição, recuperando aqueles que seriam os “nossos clássicos” em permanente diálogo com outros contextos nacionais (MAIA, 2009).

A estrutura da tese

A presente tese está dividida em quatro capítulos. No primeiro, faço um balanço da relação entre a teoria política e a história, situando o surgimento da ciência política e algumas das mais importantes transformações no campo de estudos sobre a política. O foco do capítulo e contrastar os diferentes “modos de fazer”, mostrando o surgimento das cátedras em ciência política no Reino Unido, e sua ênfase na história e na filosofia como percursos inescapáveis, o modo como a disciplina foi conformada no contexto norte-americano, e a idiossincrática biografia da ciência política no Brasil. O objetivo central do capítulo é resgatar o compromisso público da disciplina com questões presentes na agenda contemporânea, escapando ao naturalismo por vezes presenta na disciplina tal como praticada nos círculos acadêmicos hoje. No segundo capítulo discuto a metodologia proposta pela história das ideias para o estudo do pensamento político – responsável, em grande medida, pelo resgate do

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republicanismo nos estudos contemporâneos –, centrando a análise da obra do historiador Quentin Skinner. Isso porque, a despeito da heterogeneidade das contribuições neste campo, Skinner é sem dúvida quem mais se ocupou de uma discussão exclusivamente metodológica para a análise das ideias políticas, produzindo, desde a década de 1960, uma série de artigos afirmativos sobre os quais uma extensa fortuna crítica foi gerada. Skinner integra o grupo conhecido como “Escola de Cambridge”, ou “Escola Collingwoodiana”, como o próprio autor prefere denominar, ao lado de influentes figuras no pensamento contemporâneo, como John Pocock e John Dunn. Ainda que comumente tais autores sejam abrigados em posturas metodológicas semelhantes, Skinner conserva particularidades decisivas, capazes de alça-lo à posição de interlocutor privilegiado no que tange à abordagem da história do pensamento político hoje (SILVA, 2010a). O objetivo do capítulo é, com efeito, discutir os aspectos metodológicos da obra de Skinner, opção que se justifica pelo destaque deste na construção de premissas para o estudo do pensamento político, sem, no entanto, aderir integralmente ao programa proposto pelo historiador. A obra do autor será, assim, apresentada a partir da sua reação aos críticos, mostrando como o próprio Skinner alinhava a possibilidade de apropriações normativas dos estudos historiográficos por parte a teoria política. Conforme discutido no primeiro capítulo, meu argumento sustentará a virtude de abordagens normativas no entendimento crítico do presente, sem endossar qualquer perspectiva concorrente entre ambos os campos de investigação. Trata-se, dessa forma, de afirmar o lugar da história na teoria política normativa. Nesse sentido, a proposta segue o entendimento de que “A história do pensamento político e a filosofia política são de fato disciplinas distintas, mas isso não nos deve levar a duvidar da legitimidade de uma em favor da outra” (SILVA, 2008, p. 153). O terceiro e o quarto capítulos devem ser pensados em conjuntos. É neles que elaboro um ideal normativo de república, buscando elementos na tradição do pensamento político ocidental e na história do Brasil. Tal modelo ancora-se em cincos elementos, assumidamente arbitrários, que servem ao propósito de interpelar criticamente a agenda contemporânea. Logo, os capítulos discutirão a ideia de “República” da seguinte forma: (1) A República como o “bom governo”: a partir da leitura de Francis Wolf sobre o pensamento político de Aristóteles, a república pode ser definida como uma forma de governo onde impera não os interesses de quem governa, mas sim o interesse de todos. Isso permite com que a “realeza”, termo utilizado na interpretação de Wolf, seja incluída na chave do “bom go- verno”, pois nela o monarca governaria para todos. Seu contraponto imediato na teoria das

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formas de governo de Aristóteles é a tirania, onde o tirano governa apenas para si. A definição do “bom governo” em Aristóteles influirá a tradição subsequente por meio da ideia da Repú- blica como o “governo das leis”. No caso brasileiro, o debate que circundou a convocação da primeira Assembleia Constituinte em 1823 foi permeado por questões dessa natureza. Basta observar o modo como frei Caneca, líder da Revolução Pernambucana de 1817, recebe elogio- samente D. Pedro I em 1821, quando ainda radicava no horizonte a esperança de consolidação de uma constituinte no país. A definição de Pedro I como um “monarca constitucional” exem- plifica o ponto; (2) A República como autoridade política: o argumento de Hannah Arendt sobre a ino- vação do mundo romano aponta a invenção da autoridade política. Segundo Arendt, diferente- mente da experiência grega, que tentou derivar a autoridade a partir de modelos privados de exercício, os romanos foram capazes de, ao separar poder e autoridade, construir uma definição duradora de república. No arranjo de Roma, o poder era exercido pelo povo, por meio do tri- buno, ao passo em que a autoridade radicava na tradição, sendo manifesta no Senado. O poder é presente, deste povo; a autoridade, por sua vez, repousa na tradição. Isso permitiria com que o poder pudesse sempre ser questionado a partir de uma autoridade que deriva das gerações que nos precedem, responsáveis coletivamente pela construção da república. No Brasil, a Carta de 1824, outorgada por Pedro I, pode ser lida como a fundação de uma tradição que seria, ao longo do Império, separada do poder. O instituo do Poder Moderador, definido como o poder neutro, representa, conforme sustento no argumento de tese, este ponto; (3) A República como um regime de liberdade: a recuperação de uma ideia alternativa de liberdade, superando a dicotomia originalmente formulada por , e reposta em termos mais elaborados por no século XX, entre liberdade positiva e liberdade negativa, aponta a existência de uma tradição que antecede o liberalismo. Seja na vertente his- toriográfica, com os trabalhos de Quentin Skinner, seja no plano normativo, com o poderoso argumento de , encontramos uma noção de liberdade como status de não-domina- ção, admitindo a existência de ameaças não apenas a partir do Estado, mas igualmente no coti- diano da sociedade. No Brasil, a leitura de Visconde do Uruguai sobre a disjunção entre “sertão” e “litoral”, apontando o Estado como o lugar da “civilização” e da “liberdade”, exemplifica este ponto; (4) A República como produção de laços morais: a existência de outras fontes de obri- gação moral que não a vontade deliberada, como os laços de reciprocidade, questiona a natura- lização do individualismo moral presente, originalmente, na filosofia contratualista. O ponto

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vem sendo mobilizando, dentre outros, por Michael Sandel para mostrar a possibilidade de cri- armos vínculos de obrigação moral não apenas por contrato e decisão voluntária, mas também em razão das obrigações de solidariedade. O ponto é desenvolvido pelo autor a partir da reto- mada da obra de Aristóteles, em crítica ao individualismo moral presente em Kant e Rawls; (5) A República como não-violência: Hannah Arendt, em argumento já citado, aponta a durabilidade da república americana em razão da não-violência de sua fundação. Ainda que o elemento possa ser questionado, Arendt recorre ao debate sobre as “revoluções” modernas, aproximando Maquiavel de Robespierre, e os distanciando dos pais fundadores da américa. Ainda que a filósofa admita o uso da força em momentos de fundação, a durabilidade da repú- blica depende da sua autoridade, conforme discutido no terceiro elemento definidor. No terceiro capítulo, os dois últimos elementos são apenas enunciados como provocação a partir da teoria política, mas não são desenvolvidos no tocante ao contexto nacional no capí- tulo quarto. O objetivo com ambos foi enunciar um ideal ainda em constrição dentro da nossa tradição de pensamento. Na conclusão, resgato o tema título da tese como explicação do que entendo por república: a possibilidade de agirmos tomando como norte um “ponto de vista mais geral”. Trata-se do modo como Renato Lessa, em ensaio que discute a indiferença como o mais perverso dos vícios (2009), recupera o pensamento de em sua descrença acerca da possibilidade das paixões produzirem, sozinhas, “simpatias”. Essa emoção, a simpatia, não pode ser pensada, segundo Hume, em sujeitos descolados da história, e estes, por sua vez, carregam predileções particulares que podem, como efetivamente ocorre, gerar preferências. O filósofo, no entanto, acredita na possibilidade de correção dos sentimentos por meio da adoção do que ele define como “um ponto de vista mais firme e geral”. Tal como nos lembra Lessa,

A correção dos sentimentos através da adoção de um ponto de vista mais geral é o que permite alguma proteção diante do capricho das circunstâncias particulares. Hume está a revelar um agente moral marcado pela falibilidade e pela necessária particularidade de sua inserção no mundo da vida. Mas, não há antagonismo existencial entre a capacidade da simpatia e seu exercício errático e imperfeito. Somos capazes de corrigir – de modo imperfeito, claro – as imperfeições caprichosas da simpatia, pela adoção moral e cognitiva de princípios de natureza mais geral (LESSA, 2009, p. 171).

O que defino aqui como tradição republicana é, precisamente, adoção de um “ponto de vista mais geral” tal como proposto por Hume para o controle das paixões. Ainda que em alguns momentos isso aparente um uso demasiado instrumental da história, trata-se, sobretudo, da

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defesa de lermos a história ouvindo o “barulho da rua”, assim como sugeriu Italo Calvino acerca do retorno aos clássicos. Este deve ser o compromisso da ciência política.

1. CIÊNCIA E TEORIA (1): MODOS DE FAZER

Mas dizer que nenhum filósofo pode esperar muito de si próprio sozinho, não é dizer que a filosofia política enquanto tal não possa lograr algo significativo. A perspectiva de uma discussão política permanentemente privada da reflexão dos filósofos políticos não é nada promissora, e oferece a contemplação o panorama de um frio deserto. Pois graças ao trabalho destes teóricos, os termos da discussão política são sistematicamente questionados e posto em relação uns com os outros, e por vezes, renovados ou substituídos. Uma discussão sem qualquer ponto a partir do qual se possa sustentar uma reflexão desse tipo, não tardaria a se atirar no abismo babélico de afirmações e contra-argumentos dogmáticos. Se os filósofos políticos não existissem, haveríamos de inventá-los. Philip Pettit – Republicanismo.

A discussão sobre a relação entre a teoria e a ciência política encerra uma importante dicotomia. Ainda que passível de questionamentos acerca da sua fragilidade ou inconsistência, ela pode ser traduzida em dois tipos de reflexão de natureza heterogênea, pressentes nos dissídios contemporâneos que tem ocupado seus praticantes: (1) de um lado, um tipo de reflexão com estatuto “prescritivo”, caracterizado pela proposta de normatização do mundo e desenho de alternativas “ideais”; e, (2) de outro, a presença de uma pretensão descritiva, explicativa do mundo tal como ele é. Certamente, a utilização do que entendemos por história – seja enquanto disciplina ou evidência empírica – oscila de forma essencial entre os tipos de reflexão mencionados, conforme nossa tradição de pensamento demonstra (JASMIN, 1998). Ao lado dela, a presença da filosofia também recai de maneira distinta nos modos de fazer teoria e ciência política, ao menos depois do século XX e do impacto que o positivismo imprimiu no pensamento científico. O objetivo deste capítulo é, assim, refazer o percurso de diferentes modos de fazer teoria política, sempre tomando como norte sua influência na conformação deste campo de estudos no Brasil. Dessa forma, serão tomados como casos paradigmáticos dentro do argumento aqui

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desenvolvido o caso do Reino Unido e sua proximidade com os estudos históricos, por um lado, e o caso norte-americano e seu flerte decisivo com a concepção positivista de fazer ciência, por outro. Entre ambos, o lugar do que convencionalmente definimos como “clássicos” do pensamento é distinto e esclarecedor sobre modos de pensar. Por isso, o capítulo começa exatamente pela discussão sobre a importância dos clássicos na literatura, na filosofia e na sociologia para, então, problematizar as formas de estudo da política. Ainda que dotado de pretensões expositivas, é inegável que o argumento aqui em curso toma um determinado modo de fazer como premissa de trabalho. Logo, a teoria política mobilizada na tese é dotada de um parentesco indissociável com o pensamento filosófico, recorrendo a um exercício que lança mão da história de forma “livre” ou, no limite, arbitrária, no intuito de “desenhar mundos possíveis”. Algo que faz da teoria uma peça assumida de “ficção” (LESSA, 2003a). Nesse sentido, há uma espécie de apropriação do real “descompromissada”, sem, no entanto, eliminar por completo sua influência. Ao mesmo tempo, o retorno aos “clássicos” do pensamento se justifica antes pelo que apresentam de atemporal, não abdicando, todavia, por completo da dimensão contextual, mas reforçando seu teor analítico. Fato é que a razão, compreendida e utilizada como mecanismo de reflexão, permite que a história seja arbitrariamente reconstruída ou, no limite, negada. Pois como enuncia em verso o poeta Manoel de Barros, “Quem não tem ferramentas de pensar, inventa”.

1.1 O retorno aos “clássicos”

Na década de 1980 o escritor italiano Italo Calvino publicou um conjunto de ensaios sobre aqueles que seriam os “seus clássicos”. Calvino coligiu, numa coletânea que seria posteriormente editada em vários países, textos sobre os escritores, poetas e cientistas que, segundo o próprio autor, o influenciaram nos diversos períodos de sua vida. Lá encontramos Xenofonte, Ovídio, Diderot, Balzac, Charles Dickens, Flaubert, Tolstói, Mark Twain, Jorge Luis Borges e outros, precedidos por uma instigante e influente discussão acerca da importância dos clássicos. No ensaio “Por que ler os clássicos”, datado de 1981 e que dá nome à edição brasileira da coletânea, Calvino apresenta e discute quatorze propostas de definição para o que ele considera um “clássico”, fornecendo elementos para pensarmos sua importância na literatura e,

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de maneira provocativa, na ciência. Em linhas gerais, o escritor aponta o retorno aos clássicos como um processo de permanente descoberta e interpretação, fazendo com que suas (re)leituras figurem como parte integrante das próprias obras e, sobretudo, tornando aquilo que chamamos “clássico” algo que nunca cessa de dizer “aquilo que tinha para dizer” (CALVINO, 2007, p. 11). Daí a validade da sua leitura, por vezes negligenciada por aqueles que julgam encerrada a contribuição dos autores do passado. Ao admitir a fortuna crítica como parte integrante do que denomina “clássico”, Calvino fornece, por certo, uma polêmica definição, por duas razões básicas: por um lado, o autor rebate o argumento corrente do positivismo na ciência, que nega a originalidade da interpretação dos autores do passado, apontando sua pouca utilidade para o progresso do conhecimento (ALEXANDER, 1999); e, por outro, vai contra a perspectiva historicista que vem influenciando o estudo dos autores do passado, notadamente a partir da década de 1960 com os trabalhos de Quentin Skinner e a Escola de Cambridge, ou mesmo a contribuição da “história conceitual” de Reinhart Koselleck (LOPES, 2002). Em parte, a polêmica oriunda da definição de Calvino encontra eco maior no pensamento científico do que propriamente na filosofia e na literatura. Isso porque, a filosofia há muito reconhece a interpretação sobre os autores do passado como parte integrante de sua obra. Marilena Chaui (2002) nos lembra como Platão, por exemplo, foi, no correr dos últimos vinte e quatro séculos, lido, reinterpretado, refutado e apropriado ininterruptamente, ocasionando distintas interpretações e muitos “Platões”29. Dessa forma, as diferentes interpretações, não só de Platão, mas de outros tantos filósofos, mostra como inexiste um texto que independa dos seus leitores, na esteira do que Calvino define como sendo um “clássico”. A despeito disso, Chaui defende que devemos evitar o relativismo cético que supõe todas as interpretações equivalentes e verdadeiras. A autora acredita na possibilidade de construção de uma história da filosofia válida, mas apresenta algumas considerações. (1) Primeiro, a compreensão de uma obra filosófica requer,

29 O recente livro de vai ainda mais longe. O filósofo efetua uma aberta interpretação do diálogo “A República” de Platão, autodenominando seu exercício de “maníaco”, onde além da atualização dos exemplos mobilizados pelo filósofo grego em suas conhecidas alegorias, Babiou ainda reorganiza a própria estrutura da obra, reordenando e coligindo seus livros de forma distinta do original, introduzindo novos personagens ou mesmo diálogos improvisados em importantes passagens. Ciente das eventuais acusações de apóstata a partir dos especialistas, Badiou confessa: “Evidentemente, meu próprio pensamento e, mais genericamente, o contexto filosófico contemporâneo infiltram-se no tratamento do texto de Platão, e sem dúvida na mesma proporção de minha inconsciência disso. Foi com toda consciência, porém, que introduzi, por assim dizer axiomaticamente, mudanças notórias na ‘tradução’ de certo conceitos fundamentais” (BADIOU, 2014, p. 14). O exercício de Badiou é, por certo, passível de grande polêmica. Todavia, assim como discuto nesta tese, sua liberdade na apropriação da tradição do pensamento filosófico responde por virtuosas ferramentas de reflexão acerca do presente.

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seguramente, a compreensão das questões que sua época lhe propunha. Essa será a preocupação do historicismo no estudo do pensamento político, conforme discutiremos a seguir. (2) Em segundo, os autores do passado podem constituir um estoque permanente de questões para os problemas do presente. Segundo a autora,

Muitas vezes, nosso interesse por um filósofo não se deve tanto às respostas que ele encontrou, mas às perguntas novas e ao modo de perguntar que ele inventou e que nos ajudam a formular nossas próprias questões ao nosso tempo. O pensamento de um filósofo abre-se para nós quando captamos o que, em sua época, exigia o seu trabalho e o que, em nossa época, suscita em nós a necessidade ou o desejo de conhecê-lo (CHAUI, 2002, p.224).

(3) A terceira consideração apresentada por Chaui é central para os propósitos do argumento desta tese, e foi há pouco mencionada como alvo da crítica ao modo como Calvino define um “clássico”. Segundo a autora, uma obra filosófica é constituída pelos textos do filósofo em questão e por todos os textos que foram produzidos por seus leitores sobre ele, ou seja, por sua extensa fortuna crítica. Nessa direção, somos hoje incapazes de interpretar a obra de Platão sem recorrermos ao modo como Nietzsche, Heidegger ou Hannah Arendt, por exemplo, o interpretaram. E mais: as diferentes leituras produzidas radicam, por certo, nos diferentes problemas que ao longo da história seus leitores discutiram e interpretaram, sem que algo de perene se perdesse. Chaui lembra o argumento François Châtelet, segundo o qual é impossível separar Platão do contexto em que produziu, mas ao mesmo tempo sua validade atemporal justifica-se por ter sido ele quem, pela primeira vez no Ocidente, definiu os critérios de racionalidade que organizam nossa vida. Platão é, nesse sentido, quem nos disse o que é a “filosofia” e, ao mesmo tempo, quem caracterizou aquilo o que hoje entendemos por “razão” (CHAUI, 2002, p. 225). A possibilidade de identificarmos nos autores do passado argumentos com validade atemporal constitui, assim, motivo sempre renovado pelo presente para um fértil retorno aos clássicos. Nessa direção, uma das propostas de definição apresentadas por Calvino mostra-se particularmente interessante para a discussão aqui proposta. Trata-se do alerta do escritor para o perigo de abster-nos de “ler os jornais”, sob pena de esquecermos de onde partimos quando operamos esse defendido retorno aos clássicos. Segundo Calvino,

O dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente ou para trás. Para poder ler os clássicos, temos de definir “de onde” eles estão sendo lidos, caso contrário tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal. Assim, o rendimento máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe alterná-la com a leitura de atualidades numa sábia dosagem. [...] Talvez o ideal fosse captar a atualidade como o rumor do lado de fora

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da janela, que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo, enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos, que soa claro e articulado no interior da casa. Mas já é suficiente que a maioria perceba a presença dos clássicos como um reboar distante, fora do espaço invadido pelas atualidades como pela televisão a todo volume (CALVINO, 2007: 15).

A necessidade de sabermos de “onde se fala” é, conforme Calvino sustenta, ponto inescapável nesse processo de (re)descoberta dos clássicos. Isso porque, sua validade reside precisamente na atualização das questões postas pela tradição, num movimento que é capaz de inquirir o presente a partir do passado, ou seja, é capaz de buscar no passado as ferramentas para se pensar o presente. Em resumo, os clássicos sempre têm algo a nos dizer precisamente porque fornecem pistas constantemente renovadas na leitura dos problemas de hoje. No plano da teoria social, o ensaio de Jeffrey Alexander, “A importância dos clássicos”, talvez represente a mais acabada discussão sobre o papel dos clássicos no pensamento contemporâneo, o que aqui justifica seu tratamento detido (ALEXADER, 1999). O texto, ocupado centralmente com questões atinentes ao campo da sociologia, fornece, entretanto, importantes argumentos tanto para uma aproximação com as definições sugeridas por Calvino, quanto para o dimensionamento do lugar dos autores do passado entre os praticantes das ciências sociais no presente. Dessa forma, ainda que sua discussão tenha como foco a sociologia, creio que podemos, sem detrimento do argumento, aproximá-lo da ciência política, conforme farei a seguir. O ensaio é aberto com o questionamento da postura daqueles que o autor denomina como “cultores do positivismo”. Estes, ao enfatizar a dimensão empírica no exercício da ciência, levantam dúvidas acerca da relevância dos textos escritos no passado para a produção de conhecimento sobre o mundo hoje. No entanto, a dúvida no que tange a importância dos clássicos não provém, segundo o autor, apenas dos positivistas “radicais”, mas encontra obstáculos mesmo entre os humanistas, responsáveis pela adoção de perspectivas metodológicas na delimitação do contexto e validade da contribuição dos clássicos. Na mesma direção que Italo Calvino havia seguido, Alexander não se exime de uma definição do que entende por clássico, em tom mais objetivo, porém:

Um clássico é o resultado do primitivo esforço de exploração humana que goza de status privilegiado em face da exploração contemporânea no mesmo campo. O conceito de status privilegiado significa que os modernos cultores da disciplina em questão acreditam poder aprender tanto com o estudo dessa obra antiga quanto com o estudo da obra de seus contemporâneos. Além disso, tal privilégio implica que, no trabalho diário do cientista médio, essa deferência se faz sem prévia demonstração: é tacitamente aceita porque, como clássica, a obra estabelece critérios básicos em seu campo de especialidade. Graças a essa posição privilegiada é que a exegese e a reinterpretação dos clássicos – dentro ou fora de um contexto histórico – se tornaram

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correntes importantes em várias disciplinas, pois o que se tem pela “significação verdadeira” de uma obra clássica repercute amplamente (ALEXANDER, 1999, p. 24, grifo do autor).

A definição acima traz alguns elementos que serão explorados ao longo da tese. Por ora, enfatizo o modo como Alexander descola a autoridade dos clássicos do contexto histórico no qual se situam, enaltecendo a exegese e a reinterpretação como recursos para o trabalho científico presente. Sua definição, além de guardar forte identidade com a proposta literária de Calvino, carrega importantes elementos para a noção de normatividade, tal como defenderei adiante. A afirmação de que os clássicos seriam desimportantes no progresso do conhecimento, vem acompanhada da comparação com o trabalho científico no âmbito daquilo que os positivistas entendem como “ciências naturais”. Estas seriam marcadas pela ausência de “fundadores” que gozem de status privilegiado na geração de consensos, o que permitiria supor que, a longo prazo, também as ciências sociais se veriam livres da necessidade de recorrer aos autores do passado em busca de ferramentas para a discussão dos problemas contemporâneos. Segundo Alexander, tal suposição estaria assentada num duplo equívoco: (1) por um lado, a crença de que a ausência de textos clássicos nas ciências naturais manifesta, por conseguinte, um caráter puramente empírico; e (2) por outro, a suposição de que as ciências naturais e as ciências sociais são, no fundo, a mesma coisa. Robert Merton foi, segundo o argumento tratado, quem melhor demarcou o debate no campo da sociologia, situando a diferença entre o que denominou história e sistemática da teoria sociológica. A teoria científica é sistemática porque testa leis explicativas por meio de processos experimentais e, dessa forma, acumula conhecimentos verdadeiros que dispensam a necessidade de textos clássicos. Estes seriam, por sua vez, alvo da história da disciplina. Hoje, conforme argumenta Merton, pessoas comuns são capazes de resolver problemas que antes grandes cérebros eram incapazes de pensar, o que nos leva a reavaliar a necessidade do retorno aos clássicos nos termos propostos. Isso porque, “A investigação de personalidades antigas representa uma atividade histórica que nada tem a ver com o trabalho científico: é tarefa para historiadores, não para cientistas sociais” (ALEXANDER, 1999, p. 26). Tal postura nega, assim, que a obra clássica possa integrar a experiência direta das gerações posteriores. O risco apontando a partir desse diagnóstico é o da fusão entre sistemática e história, que colocaria obstáculos ao progresso da ciência ao dificultar a aquisição de conhecimento empírico. O processo é descrito por Merton como uma “reverência” aos “ancestrais ilustres”, que desfoca a originalidade ao centrar-se na erudição sobre os textos antigos. Dessa forma, o

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autor desconsidera a pesquisa dos textos clássicos como interpretação, nos termos há pouco tratado, apontando apenas a existência de uma “atitude servil” para com as obras antigas: não apenas a reverência, mas uma reverência acrítica. Isso levaria a sistemática histórica a apenas fornecer “resumos” dos textos antigos aos contemporâneos. As alternativas à fusão entre sistemática e história fornecidas por Merton escapam aos objetivos da tese. Basta retermos que o autor apresenta uma noção de sociologia próxima ao modo como os positivistas descrevem as ciências naturais, admitindo embates não-empíricos apenas no âmbito dos pressupostos metodológicos. A sociologia seria, assim, descrita nos termos de uma ciência progressiva. Há, ainda, uma premissa ancilar, implícita e não independente no argumento do autor: “Trata-se da noção de que o significado de textos antigos e notáveis está aberto a todos” (ALEXANDER, 1999, p. 30). Tal premissa deriva da condenação de Merton ao que foi nomeado como sistemática histórica e sua capacidade, conforme a crítica apresentada, de apenas produzir “resumos”. Contrariamente ao argumento dos “cultores do positivismo”, Alexander apresenta o que denomina “visão pós-positivista” de ciência, responsável pela reabilitação da teoria. Visão esta que ancora-se em quatro pressupostos, a saber: (1) o entendimento de que “Os dados empíricos da ciência são teoricamente moldados. A distinção fato-teoria não é epistemológica nem ontológica, ou seja, não é uma distinção entre natureza e pensamento. Trata-se de uma distinção analítica” (ALEXANDER, 1999, p. 31-32); (2) “Os empreendimentos científicos não se baseiam apenas em evidências empíricas” (ibidem, p. 32); (3) “A elaboração geral e teórica é normalmente dogmática e horizontal, não cética e progressiva” (ibidem, p. 32). Ou seja, hipóteses e categorias residuais podem ser desenvolvidas para explicar fenômenos descobertos por formulações gerais; e, (4) “Mudanças fundamentais na crença científica acontecem apenas quando alterações empíricas são acompanhadas pela disponibilidade de alternativas teóricas convincentes” (ibidem, p. 32). Sendo assim, o primeiro pressuposto mobilizado por Merton, a saber, a irrelevância de considerações não-empíricas nas ciências naturais, não se sustenta na visão pós-positivista. Resta agora, conforme avança o argumento desenvolvido por Alexander, entender por que as ciências naturais não recorrem aos clássicos no exercício rotineiro de suas pesquisas. Neste aspecto, o autor aponta como o traço distintivo mais a capacidade de produção de consensos, e menos a existência ou não de clássicos nos termos debatidos até então. Isso porque, as ciências naturais mascaram sua carência de “clássicos” através da aquisição de dados empíricos, o que não anula a existência de “modelos” – descritos como exemplos concretos de trabalhos bem-sucedidos, conforme definição de Thomas Kuhn –, que são transmitidos aos

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“neófitos” antes do efetivo exercício da pesquisa empírica. De maneira distinta, a ciências sociais são incapazes de gerar consensos sem recorrer à autoridade dos clássicos, refazendo seu percurso. O que não implica negarmos a possibilidade de produção de conhecimento nas ciências sociais. Nas palavras do autor,

Não estou afirmando a inexistência de um conhecimento “objetivo” nas ciências sociais, nem mesmo a impossibilidade de predições acertadas e leis explicativas. […] Afirmo apenas que as condições da ciência social tornam altamente improvável o consenso sobre a natureza exata do conhecimento empírico – para não falar do consenso sobre leis explicativas. Em ciência social, portanto, os argumentos a respeito da verdade científica não se referem apenas ao nível empírico; eles atravessam o leque total de empreendimentos não-empíricos que amparam pontos de vista concorrentes” (ALEXANDER, 1999, p. 36).

Alexander apresenta algumas razões cognitivas e valorativas para este quadro. Basta, contudo, compreendermos o modo como conclui seu raciocínio sobre a capacidade de produção de consensos nas ciências sociais: dado que nem os referentes empíricos nem as leis explicativas promovem consenso, tudo o que é captado pela percepção empírica é alvo de debates, fazendo com que a ciência social permaneça inevitavelmente diferenciada pelas tradições e escolas que a compõem. Dessa forma, o discurso – e não apenas a explicação – torna-se um dos traços destacados, evidenciando a necessidade de nos debruçarmos sobre as tradições interpretativas para que possamos, a partir daí, gerar consensos. Nesse sentido, a ciência social é essencialmente polêmica, estando suas conclusões sempre sujeitas a contestações com referência a considerações que o autor define como “supra- empíricas”.

Todo nível de discurso supra-empírico absorveu critérios distintos de verdade. Tais critérios ultrapassam a adequação empírica referindo-se também a pretensões relativas quanto à natureza e conseqüências dos pressupostos, à estipulação e adequação de modelos, às conseqüências das ideologias, às metaimplicações de modelos e às conotações das definições. […] As atuais disputas entre metodologias interpretativas e causais, concepções de ação utilitárias e normativas, modelos de equilíbrio e conflito das sociedades, teorias da mudança radicais e conservadoras – isso é mais que discussão empírica. Tais disputas refletem os esforços dos sociólogos para articular critérios de avaliação da “verdade” em diferentes domínios não-empíricos (ALEXANDER, 1999, p. 44).

O ensaio caminha para a defesa dos clássicos por meio de razões extraídas da visão pós- positivistas acima apresentada. Assim, os clássicos teriam o papel de integrar o campo do discurso teórico, auxiliando na produção de consensos. Isso porque, seu reconhecimento consensual implica a existência de referências comuns que atuam como símbolos que condensam uma série de compromissos diferentes, apresentando, nos termos do autor, quatro

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vantagens funcionais: (1) o clássico simplifica o debate teórico, permitindo que uma obra substitua a miríade de formulações existentes; (2) o clássico permite que compromissos gerais sejam discutidos sem a necessidade de tornar explícitos os critérios para a sua adjudicação. Ou seja, o fato de que um clássico tratou determinada questão já a torna importante; (3) ao aceitarmos um clássico como instrumento comum de comunicação, ironicamente deixamos de reconhecer a existência de discursos gerais; e (4) em razão do poder conferido aos clássicos, a menção a eles constitui elemento estratégico de afirmação dos argumentos produzidos (ALEXANDER, 1999, p. 46-47). Após explorar mais detidamente as razões apresentadas, o ensaio aborda, ao final, alguns questionamentos oriundos do campo das humanidades sobre a importância dos clássicos, ou sobre o seu lugar nos estudos contemporâneos. O movimento do texto é, assim, decisivo: além de enfrentar os argumentos formulados a partir da visão positivista de ciência, Alexander debate a ofensiva da perspectiva historicista sobre o estudo dos autores do passado A relação entre os autores do passado e as preocupações teóricas contemporâneas, identificando na pesquisa do significado dos textos históricos instrumentos para a condução dos estudos no presente, é um dos pressupostos que embasa a defesa do retorno aos clássicos. Tradicionalmente, as humanidades constituem o campo de conhecimento que defendeu a singularidade e a importância da contribuição dos clássicos, conforme apresentei a partir dos exemplos da literatura, da filosofia e da própria sociologia numa visão pós-positivista. Segundo Alexander, mesmo Merton teria percebido essa singularidade, ao apontar a dimensão interpretativa das humanidades, em contraposição à dimensão explicativa, atribuída ao pensamento científico nos moldes positivistas. No entanto, a perspectiva historicista formulada por Quentin Skinner, influente desde a década de 1960, ocupa-se da formulação de procedimentos metodológicos adequados para a aproximação com os textos antigos ocasionando reações importantes. Seguramente o projeto de Skinner será discutido com maior atenção ao longo do trabalho, visto que constitui argumento central para os propósitos desta tese30. Por ora, basta percebermos como este conjunto de propostas construídas a partir do campo das humanidades logrou maior sucesso do que o projeto de Merton acima descrito, ainda refém de determinada visão da ciência que seria superada ao longo do século XX:

Enquanto a injunção de Merton da mescla de história e sistemática tenta livrar a sistemática da bagagem histórica, a teoria skinneriana repele a mescla a fim de limpar a história da mácula da sistemática. A intenção é transformar discussões de textos antigos em pesquisas puramente históricas, isentas de pressupostos, pesquisas que,

30 Trato especificamente da contribuição metodológica de Skinner no segundo capítulo desta tese.

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ironicamente, seriam mais explicativas que interpretativas na forma. Ora, como Skinner aborda o problema do ângulo oposto, a conseqüência de seu raciocínio se revelaria exatamente a mesma. Se a história pode ser ateórica, então a teoria pode ser a-histórica. Se os clássicos poder ser estudados sem o fardo da interpretação, então a interpretação certamente não precisa invadir a prática da ciência social destituída de clássicos. Skinner oferece o tipo de história intelectual que Merton queria mas não conseguia encontrar (ALEXANDER, 1999, p. 74-75).

A crítica central de Skinner recai sobre o que ele define como leitura “anacrônica” dos textos antigos. Segundo o historiador, privilegiar determinados paradigmas no estudo dos clássicos promoveria não o clareamento acerca do significado das obras, mas sim “mitologias” na sua interpretação. Em linhas gerais, Skinner defende que os textos são motivados historicamente e devemos ser capazes de situá-los no seu contexto para que possamos descobrir seu real significado. A bem-sucedida formulação de Skinner não exime, por certo, as conclusões do seu programa metodológico de críticas. Alexander aponta três problemas, que serão aqui retomados no tempo adequado. São eles: (1) a impossibilidade da completa reconstrução do contexto sócio histórico, o que torna as generalizações operadas sempre seletivas; (2) a existência de intenções opacas, tal como o avanço da psicanálise freudiana nos mostra, o que torna a perseguição do significado imputado pelos autores uma perda de tempo; e, (3) a necessidade de admitirmos certa autonomia dos textos com relação ao contexto, reconhecendo que a intenção dos autores só pode ser buscada no próprio texto (ALEXANDER, 1999, p. 76-81). Malgrado o entendimento crítico de Alexander, a obra de Skinner cumprirá um importante papel no desenvolvimento do argumento aqui avançado. Isso porque, o historiador de Cambridge foi, conforme defendo, quem melhor situou o papel da história na teoria política, contribuindo decisivamente para o estabelecimento dos seus limites metodológicos sem, no entanto, desfocar as possibilidades normativas da teoria (SILVA, 2008). Porém, antes da discussão mais detida sobre sua contribuição, o objetivo aqui é evidenciar diferentes modos de fazer presentes no estudo da política, com o confesso objetivo de combater perspectivas naturalistas presentes na ciência política contemporânea (LESSA, 2010a). O recorte proposto, seletivo, por certo, envolve dois contextos intelectuais em particular: (1) a criação e consolidação do campo de estudos sobre a política no Reino Unido, enfatizando sua proximidade com a história enquanto método e objeto e, por conseguinte, a importância dos clássicos no seu desenvolvimento; e (2) a transformação operada no contexto norte-americano, comumente narrada a partir da “revolução behaviorista”, onde a política passa a ser concebida como objeto autônomo, o que significa, dentre outras, a rejeição da história e do estudo dos clássicos como fonte de instrumentos para o exame do presente. Tal inventário é operado com

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o propósito de situar a reflexão sobre a política no Brasil e, por conseguinte, fixar os pressupostos que embasam o presente argumento.

1.2 A teoria política e o papel da história

Na década de 1970, o polêmico Preston King organizou uma coletânea contendo as conferências inaugurais das cátedras de ciência política no Reino Unido, notadamente das Universidades de Oxford e Cambridge e da School of Economics. As intervenções publicadas no livro “O estudo da política” (KING, 1980), proferidas por estudiosos como Ernest Barker, Isaiah Berlin, W. Greenleaf e Bernard Crick, constituem, assim, referência inescapável para apreendermos as transformações pelas quais o estudo da disciplina passou. Ainda que circunscritas ao Reino Unido, as abordagens coligidas por King ensejam aproximações produtivas com o histórico do campo disciplinar em outros países. Isso porque, ao traçar um mapa dos caminhos percorridos pelo estudo da política no século XX, King alerta para uma primeira e importante constatação: a despeito da longevidade dos estudos que tomam a política como objeto de análise, em épocas remotas estes não eram realizados com base na distinção entre o exame da política – pretensamente autônomo – e as demais áreas, assim como observamos hoje, sobretudo a partir da experiência norte-americana e sua influência em outros contextos nacionais, conforme será discutido na próxima seção. Segundo King, ainda no tocante ao contexto continental, “A sociedade era considerada, quando menos, como constituindo-se em uma única unidade de estudo” (KING, 1980, p. 03). O exame de autores clássicos – instrumento central para os propósitos desta tese –, como Bodin, Hobbes, Locke, , Kant, Hegel, Bentham e Mill, nos mostra como sua preocupação com o direito e a teoria política se dava na mesma proporção. Contudo, King alerta para uma mudança neste cenário ao longo do século XX: “O estudo da política nas universidades não é, de forma alguma, novo; entretanto, certamente o é a separação dos estudos políticos dos estudos de direito, economia, história, sociologia e psicologia” (KING, 1980, p. 03). Nessa direção, as aulas inaugurais fornecem um interessante panorama histórico dos problemas enfrentados ao longo do estabelecimento das fronteiras do campo de estudos sobre a política. Este era o desafio posto à época, visto que a ciência política sofria certa confusão com disciplinas vizinhas no contexto da institucionalização das áreas no interior da Universidade. As palestras manifestam, com efeito, o reconhecimento de um razoável grau de

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interdependência do estudo da política com as demais áreas. King, porém, nos mostra como à medida em que avança seu processo de consolidação, o debate passa a concentrar-se na especificidade das agendas de pesquisa dos professores envolvidos, além de tornarem-se mais evidentes as preocupações metodológicas no interior do campo. Em linhas gerais, os textos representam um bom momento para constatarmos como as visões sobre o estudo da política evoluíram com o tempo. As abordagens contidas no livro são, seguramente, plurais e merecem detida atenção. Entretanto, para os propósitos do argumento aqui defendido, basta retermos um entendimento comum às exposições compiladas por King: apesar da pretendida separação entre o estudo da política e os demais campos do saber, os autores apresentam certas proximidades necessárias como pressuposto metodológico para a ciência política em construção. Trata-se da insuperável relação entre esta e o estudo da história, por um lado, e a reflexão filosófica, por outro, como podemos observar em algumas das falas aqui selecionadas. A conferência proferida por Harold Joseph Laski (1893-1950), na London School of Economics, em 1926, e originalmente publicada com o título “On the Study of Politics”, constitui o primeiro exemplo deste movimento (LASKI, 1980). Nela, após uma questionável definição da ciência política como o estudo do homem e sua relação como Estado organizado, Laski problematiza os métodos adequados para o desenvolvimento do estudo. Segundo ele,

A ciência política não possui a qualidade axiomática da matemática. Em suas equações, as variáveis são seres humanos cujo caráter sui generis impede que sejam reduzidas a lei, no sentido científico dessa palavra usada com bastante abuso. Lidamos com tendências; podemos prever, com base na experiência. Mas nossas previsões estão limitadas pela necessidade de reconhecer que os fatos não estão no âmbito do nosso controle. Podemos influenciar, fazer tentativas; nunca podem ser nossas a certeza e a precisão do químico, ou mesmo do psicólogo (LASKI, 1980, p. 10, grifo do autor).

A partir desse diagnóstico, Laski defende o estudo da política em termos históricos. Somos, conforme seu entendimento, a consequência de tradições e instituições que não criamos, mas que nos determinam de alguma forma. Nesse sentido, se o objetivo for compreendermos nossa própria época, devemos atentar para os elementos que a constituíram. O autor defende, assim, como principal interesse o estudo da história das ideias políticas, que nos facultaria a virtuosa percepção dos alicerces da sociedade em que vivemos. A abordagem sugerida por Laski requer, contudo, uma metodologia específica: a filosofia política de qualquer pensador não pode ser isolada das circunstâncias em que brotou. Logo, “O que devemos evitar é o hábito fatal de elaborar uma lista de princípios, crua e objetiva, como a contribuição do pensador, e de

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se omitir tudo o que tornou seus princípios vivos e influentes” (LASKI, 1980, p. 13). Laski antecipa as preocupações historiográficas de Skinner, sem, é claro, manifestar as mesmas referências na elaboração do seu programa de estudos. E o que é mais importante: o autor de longe afasta-se das conclusões alcançadas pelo contextualismo linguístico. Em especial porque Laski admite a possibilidade interpretativa do passado, associando o interesse pela sua reconstrução com as necessidades postas pelo presente, proposta que assemelha-se à defesa do retorno os clássicos há pouco mencionada. Assim, o historiador surge dentro desta concepção como alguém que interpreta o passado com o objetivo de fornecer lições para a nova época que se abre, facultando ao estudioso da política a chance de tornar-se o “progenitor do futuro”, não “inevitável ou predizível”, é claro (LASKI, 1980, p. 112). Em parte semelhante, a conferência proferida por Sir Ernest Barker (1874-1960), na Universidade de Cambridge, em 1928, e originalmente publicada com o título “The study of political Science in its relation to cognate studies”, transparece um desconforto ainda maior com relação ao uso do qualificativo “ciência” para o estudo da política (BARKER, 1980). Barker, abertamente influenciado pelo helenismo, mostra-se receoso em aplicar as aspirações do pensamento científico moderno ao estudo da política. Diz ele,

Não estou inteiramente satisfeito com o termo “Ciência”. Foi tão amplamente reivindicado, e quase que exclusivamente, para o estudo exato e experimental dos fenômenos naturais, que sua aplicação à política pode trazer sugestões e estimular antecipações que não podem ser justificadas. Se eu tiver que usar a designação de ciência política, usá-la-ei como Aristóteles a fez [...], para significar um método, ou forma de investigação ligada ao fenômeno moral do comportamento humano nos estudos políticos. Preferiria chamar tal método ou forma de investigação pelo nome de Teoria Política, porque esperaria com seu uso evitar a aparência de um zelo excessivo pela exatidão, e estaria indicando mais precisamente a natureza da investigação como sendo simplesmente uma especulação [...] sobre um agrupamento de fatos no campo da ação política, uma especulação que pretende resultar num esquema geral que ligue os fatos sistematicamente entre si, explicando assim sua significação (BARKER, 1980, p. 23-24).

Ao optar pela denominação “teoria política” em detrimento do emergente termo “ciência política”, Barker permite que a matéria seja vinculada a uma tradição de longa duração, que encontra em Aristóteles sua origem. Concomitante a isso, seu movimento é decisivo na caracterização do objeto em questão, a saber, um conhecimento limitado ao campo da “especulação” e distante da “exatidão” pretendida pelo cânone científico. Feita esta definição, resta agora estabelecer, assim como Laski havia apontado, o método adequado ao seu exame. A tradição de Cambridge mostra como vários dos precursores do estudo da política dedicaram-se, com efeito, ao estudo da história. Nesse sentido, há uma afinidade entre a história

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e a teoria política que pode, de acordo com Barker, constituir um caminho interessante para questionarmos até que ponto a teoria política procede da história, e até que ponto transcende os limites dos estudos históricos. A preocupação do autor, ainda na primeira metade do século XX, encontrará engenhosas soluções nas décadas seguintes. Mesmo assim, o modo como ele se ocupa da distinção do objeto da política sem reivindicar, porém, autonomia e separação dos campos disciplinares, representa um virtuoso entendimento dos fenômenos sobre os quais a política se debruça. Entendimento este próximo ao que será aqui descrito a partir da defesa apresentada por Lessa de uma perspectiva de estudos “pré-disciplinar” (LESSA, 2001). A proximidade da teoria política com a história é inconteste. Entretanto, despreocupado com a precisa demarcação dos campos disciplinares, ao menos nos termos que seriam conhecidos posteriormente, Barker nos lembra como na Grécia os historiadores tornaram-se filósofos – Heródoto, por exemplo –, assim como os filósofos tornaram-se, se não historiadores, empenhados alunos de história – é o caso de Platão em “As Leis”. Tal constatação o permite afirmar, recuperando um trocadilho devidamente referenciado, que a “História sem Ciência Política não tem frutos: Ciência Política sem História não tem raiz” (BARKER, 1980, p. 26). Certamente, história e teoria política marcham juntas, assim como observado entre os estudiosos de Cambridge. A despeito disso, Barker argumenta que ambas são áreas de estudo separadas e independentes. Isso porque, segundo o autor, se tomarmos como premissa a proposta de Croce de que “toda história verdadeira é história contemporânea”, então

Podemos passar a admitir que uma boa parte da teoria política surgiu parcialmente a partir do estímulo da experiência atual, mas parcialmente também a partir do estudo e do estímulo de algum passado que lhe correspondesse em caráter e que se tornou vivo e presente, a partir de sua identificação com a experiência atual (BARKER, 1980, p. 26).

Foi assim, por exemplo, que Rousseau construiu sua teoria do contrato social a partir da própria experiência na República de Genebra, mas influenciado, ao mesmo tempo, pelo estudo das cidades-Estado gregas. Lançando mão da metáfora literária há pouco mobilizada a partir da obra de Italo Calvino, Rousseau figura como um bom exemplo da adequada dosagem entre o retorno aos “clássicos” e a leitura das “atualidades”. Barker, em parte semelhante ao modo como Calvino discutirá a questão na segunda metade do século XX, aponta a forma proveitosa como a experiência atual recebe do passado uma lufada criativa. Contudo, isso não significa que a teoria política esteja inequivocamente atrelada à história. Nas palavras de Barker,

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Se podemos prontamente admitir a dívida de tal teoria ao estudo de história, devemos igualmente admitir a possibilidade de uma teoria da política importante e influente que não tenha qualquer base definida na história. Pode ser o método de um pensador político presumir, como seu axioma, certos pontos de vista sobre a natureza da mente humana e o fim da vida humana, e deduzir uma teoria sistemática, a partir desses pontos de vista (BARKER, 1980, p. 26-27).

Platão em “A República”, ou Aristóteles, que mesmo fortemente influenciado pela história foi puramente filosófico na concepção das finalidades e na derivação das instituições, figuram como bons exemplos dessa reclamada independência da teoria política frente à história. Nessa direção, sem desconhecer a íntima relação há pouco apontada, Barker afirma a possibilidade de termos “uma boa teoria política sem que esta esteja enraizada no estudo histórico, da mesma forma que se pode ter história que seja boa sem resultar em qualquer fruto de ciência política” (BARKER, 1980, p. 27). Podemos dizer, em consonância com seu argumento, que a teoria política perde sua verdadeira natureza precisamente no momento em que se subjuga desnecessariamente à carga dos acontecimentos factuais. Ela pode, por certo, surgir a partir de provocações do passado e tomá-lo como permanente interlocutor. Mas a dosagem entre este a as “atualidades” confere relativa independência no seu exercício, capaz de libertar-se dos dados históricos na construção de argumentos prescritivos para o presente. Contrariamente ao programa que será apresentado na segunda metade do século XX por Quentin Skinner, Barker aponta a existência de “constantes eternas”, tanto da sociedade como do pensamento, defendendo, assim, o papel da teoria política no enfrentamento de questões “atemporais”. Em outras palavras, a teoria política interessa-se por problemas fundamentais – como questões de essência, finalidade e valor –, que independem de processos históricos. No exemplo utilizado por Barker, podemos até admitir que a teoria do contrato social foi em algumas situações expressa em termos de um relato histórico. Todavia, ela é mais uma teoria filosófica do que uma narrativa histórica, visto que explica não os antecedentes cronológicos, mas sim as hipóteses lógicas do Estado, como a conhecida exposição de Hobbes manifesta31.

A filosofia exclui tanto a história como a política, embora sejam sumariamente úteis – ou, melhor, necessárias – à filosofia; porque tal conhecimento não é senão uma experiência, e não fruto do raciocínio. ‘Sumamente úteis – ou melhor, necessárias’. Nutrido como fui pela história, seria o último a tentar denegrir sua utilidade, e, na verdade, sua necessidade, com relação às finalidades de minha matéria. Qualquer filosofia verdadeira deve ser aquela que esteve imersa na experiência – a do passado e a do presente (BARKER, 1980, p. 28).

31 Jasmin (1998), constitui, por certo, referência inescapável sobre este ponto. O autor é responsável por uma organizada exposição acerca dos distintos usos da história na teoria política, enfatizando que “Ora a história é tomada por ontologia, ora como representação da ontologia. Ora ela é um conjunto fragmentário de eventos, ora a totalidade processual destes. Por vezes, se confunde com a empiria em geral. Em outras, com um certo modo específico de estruturação diacrônica dessa empiria” (JASMIN, 1998, p. 11).

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A demarcação da singularidade e independência dos campos de pesquisa – história e teoria política –, permite com que o autor desenlace seu argumento. Se num primeiro momento Barker separa ambos os campos de estudos, sua defesa final aponta, na mesma direção que Laski, para história das ideias políticas como instrumento privilegiado no estudo da matéria. Uma defesa efetuada em tom peremptório: para que sejamos teóricos políticos minimamente toleráveis, devemos ser, antes, conhecedores da história das ideias políticas, pois “Quanto mais se estuda a evolução das idéias políticas, tanto mais rico será o desenvolvimento da teoria política – conquanto que, apresso-me a acrescentar, seja estudada como um meio e não como um fim, e conquanto que seja novamente estudada de maneira abrangente e profunda” (BARKER, 1980, p. 29). As condições impostas – de maneira abrangente e profunda – para o adequado estudo da matéria são proveitosas. (1) Sobre a primeira condição, Barker alerta para o perigo do estudo de matérias especulativas, pois seu desenvolvimento pode se sufocar com a história do próprio passado. (2) Sobre a segunda condição, o autor nos mostra como a teoria política é fruto de mentes conscientes e individuais. Algo que não resume, porém, a totalidade das formas de se pensar a política. Há um pensamento político presente em toda sociedade e muitas vezes possuidor de vaga consciência sobre si mesmo, que mantém e modela a evolução da vida política. Segundo Barker, devemos estar atentos a ele também. A importância maior dos estudos históricos, e em parte dos estudos jurídicos e econômicos, para o desenvolvimento da teoria política é contrastada com os “modismos” que vez ou outra acometem seus praticantes. À época, Barker aponta a psicologia como área de estudos que ensaiava proximidade com a teoria política. Ainda que o autor reconheça sua contribuição, ele reforça o “discreto cinza da filosofia” como algo perene ante as modas passageiras. Este é, por certo, um dos elementos de fácil atualização no argumento do autor. Também hoje “modismos” invadem o campo de estudos sobre a política, por vezes mascarando a ausência de argumentos32. A conclusão de Barker surge eivada do elemento prescritivo aqui perseguido. De acordo com o autor, a teoria política se ocupa primordialmente do propósito ou do fim pelo qual o

32 Apenas a título de exemplo e sem entrar nos méritos do próprio argumento, a proposta de traçar estratégias eleitorais a partir do entendimento de como os eleitores reagem emocionalmente às campanhas políticas, manifesta um “modismo” presente. Ainda que os argumentos apresentados sejam plausíveis, ou que as estratégias sugeridas logrem sucesso eleitoral, é sempre problemático ouvir cientistas políticos versando sobre lóbulo frontal e córtex cerebral. Sobre o exemplo mencionado, ver, dentre outros o livro de Antonio Lavareda (LAVAREDA, 2009).

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homem se interessa como ser moral, vivendo em comunidade e associado a outros seres morais. Dessa forma, a matéria é um estudo dos fins e das formas de realização desses fins. É isso o que vemos em Platão, Aristóteles – constante referência em seu argumento – ou mesmo nos contemporâneos que produziram em Cambridge.

Em seus elementos essenciais, o problema da teoria política é uma constante. Tem ela de determinar o fim, ou o valor fundamental, que governa e determina a vida da sociedade política: tem de descobrir os meios apropriados e congruentes através dos quais esse fim pode ser realizado, esse valor fundamental realmente aproveitado. Mas, numa época, pode ser enfatizado um aspecto do bem irrefutável, e, numa outra, um outro; e os meios de realização também variam, não apenas com variações no aspecto de vem irrefutável selecionado por razão enfáticas, mas também com as variações do meio – com o que quero dizer o agregado de instituições, costumes, condições e problemas contemporâneos – no qual tem de se chegar a uma realização. Esta é a razão por que a teoria política é sempre nova assim como sempre antiga, e por que está constantemente mudando, mesmo quando permanece a mesma (BARKER, 1980, p. 33-34).

Feito o diagnóstico, Barker não se exime, coerentemente, da proposição de um prognóstico. Segundo ele, o problema que incomoda a sociedade à época em que escreve é o desenvolvimento de uma personalidade plena, que implica a liberdade individual e o convívio organizado. A liberdade permanece como algo precioso. No entanto, a realidade das democracias de massa parece colocar em questão o exercício dessa liberdade, favorecendo o reaparecimento de formas autoritárias. Daí a necessidade de pensarmos uma educação para a vida democrática. Ainda com o objetivo de mapear alguns temas relevantes para os propósitos desta tese, presentes no desenvolvimento da disciplina no interior da reflexão universitária, a conferência proferida William Howard Greenleaf (1927-2008), no University College of Swansea, no País de Gales, em 1968, traz novos elementos para o debate sem, contudo, desfocar o argumento aqui avançado. Greenleaf contesta, logo de saída, o status da disciplina em questão, afirmando não ser a teoria política uma disciplina acadêmica tradicional. Sua fala reproduz desconforto semelhante ao observado nas intervenções de Laski – de quem foi aluno na London School of Economics – e Barker, endossando um ponto particularmente caro aos propósitos desta tese: o inerente “ecletismo” do estudo da política.

Quero começar por lançar uma certa dúvida sobre o status da matéria que professo. Porque a teoria política e de governo, no seu sentido estrito, não é, de maneira alguma, uma disciplina acadêmica: é assim, um interesse ou uma área de atenção. Não existe nenhuma técnica ou método especial pelos quais a ciência política se possa distinguir e, sendo assim, os trabalhos dos seus entusiastas são, com certeza, diferentes do trabalho do cientista natural, do historiador, do filósofo ou do crítico literário. De fato, a sugestão de que um estudante de política é um eclético está muito bem apresentada,

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pois ele lança mão de tantos caminhos de análise quantos possam servir aos seus propósitos. E se a moda corrente é tentar competir com os métodos e empregar as categorias das ciências naturais (como é, na verdade, o caso do campo de estudos sociais em geral), não se deve, porém, supor que esta é uma tendência única, ou necessariamente desejável, ou além da possibilidade de uma reversão (GREENLEAF, 1980, p. 193, grifo do autor).

Greenleaf tem diante de si um quadro histórico mais dilatado. Escrevendo na segunda metade do século XX, o autor é capaz de dimensionar os impactos negativos do que define como uma concepção naturalista de política, alertando sua audiência para a heterogeneidade das abordagens existentes: o estudo da política envolve vários métodos, teorias e estilos, o que constitui, com efeito, um dado positivo. Ante os desafios postos pelo objeto, apenas abordagens assumidamente ecléticas são capazes de avançar na compreensão dos fenômenos políticos. Sua enunciada tarefa, a saber, definir o “mundo da política”, encontra respostas propositivas: ainda que no senso comum todos saibam o que é a política, a tarefa de todo verdadeiro conhecimento é, precisamente, contradizer o senso comum. Nessa direção, o autor recorre ao modo como Wittgenstein define os jogos de linguagem, para afirmar que a política engloba elementos pertencente a uma mesma “família”. A metáfora é sugestiva, pois os membros de uma família apresentam grandes diferenças entre si, mas guardam características comuns que permitem inclusive que sejamos capazes de apreender as diferenças. O grande erro no estudo da política seria, assim, tentarmos reduzir seus elementos diversos a uma única fórmula. De acordo com a formulação de Greenleaf, devemos, contrariamente, ser capazes de apreender a “unidade na diversidade” por meio do “caráter” dos fenômenos presente no mundo da política, abandonando enganosas e reducionistas tentativas de generalização. A busca do referido “caráter” da política cobra, com efeito, a adoção de métodos apropriados. Assim como Laski e Barker haviam realizado, após a definição do objeto de estudo – a política –, Greenleaf caminha para uma discussão acerca dos métodos de pesquisa. Segundo sua concepção, parecem existir duas abordagens possíveis: (1) naturalista e (2) histórica. A imagem mobilizada pelo autor para elucidar as escolhas a serem feitas a partir de então é simples e esclarecedora:

Gostaria de falar alguma coisa sobre essas duas maneiras de ver o mundo da política. Cada uma é como um par de óculos cujas lentes apenas permitem que certas idéias e certos tipos de fatos as atravessem e cheguem até os olhos do seu portador. Mas, claro, este símile implica que existe um outro problema perante nós. Qual destes dois meios nos dá uma visão mais clara do mundo da política? (GREENLEAF, 1980, p. 198).

A proposta de Greenleaf transparece de saída um entendimento caro ao modo como

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discutimos a teoria política até aqui. Ainda que parcialmente influenciado pela filosofia analítica e sem abandonar o elemento diretivo sobre os rumos da disciplina, comum a quase todas as conferências presentes na coletânea organizada por King, Greenleaf define o método com um “par de óculos” que nos permite ver o mundo segundo enquadramentos condicionados. Nesse sentido, ao vincular o entendimento dos fenômenos observados ao modo como se olha, o autor abdica das pretensões naturalistas que ocuparam parte da ciência política no século XX, pretensões essas responsáveis pelo abandono da dimensão interpretativa no campo de estudos e, consequentemente, dos autores do passado enquanto fonte de conhecimento. O exame das duas abordagens possíveis pode auxiliar na compreensão do argumento. Em primeiro lugar, Greenleaf questiona o que está envolvido numa compreensão naturalista da política. Segundo o autor, essa perspectiva marca os momentos que delimitam o caráter do conhecimento científico: (a) por um lado, a ciência entendida como pensamento dedutivo, defendendo a existência de um mundo estável de ideias cujas generalizações consistem numa análise dos conceitos entre si; e, (b) por outro, a ciência como um campo de conhecimento que se apoia em hipóteses, observações e experiências no mundo empírico com vistas a estabelecer padrões de regularidade. A ciência política genuinamente concebida deve ser compatível com esta configuração de crenças científicas. (a) No que toca ao primeiro aspecto, “O conhecimento político, como um sistema dedutivo de idéias científicas, é uma noção que se pode reencontrar pelo menos desde o começo do mundo moderno” (GREENLEAF, 1980, p. 199). O autor nos lembra que precisamente essa postura pode ser encontrada nas obras de Hobbes, Bentham e James Mill, por exemplo. Posteriormente, a proposta de Anthony Downs de uma teoria econômica da democracia exemplifica essa mesma perspectiva. Mas é, sem dúvida, a teoria geral de análise dos sistemas políticos construída por David Easton o melhor exemplo de um exercício confessadamente imitativo das ciências naturais. (b) Já no que se refere ao segundo aspecto, “O conhecimento deduzido de uma pesquisa empírica sobre o comportamento político real é também um empreendimento em voga e o tem sido desde a época de Maquiavel, Bacon e todos os seus” (GREENLEAF, 1980, p. 199). A contribuição destes, a quem Greenleaf refere-se como “indutores indolentes”, foi, sem dúvida, responsável por um grande acúmulo de conhecimento sobre os fenômenos políticos. A partir de então, entramos em contato com informações sobre uma variedade de sistemas políticos e formas de organização, contando, em tempos recentes, com o recurso das “grandes máquinas” – os computadores –, para a manipulação das informações obtidas. O autor afirma que a postura “indolente” não implica necessariamente o que denomina

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“hiperfactualismo”33, ou seja, “recolher fatos sem razão, esperando que, mais tarde, algumas idéias surjam para explicar esses fatos, ou dar-lhes algum sentido” (GREENLEAF, 1980, p. 200). Parte das pesquisas abrigadas no âmbito desta perspectiva tem sido, com efeito, norteada por grandes hipóteses. O que não exclui, por certo, a existência de generalizações mais modestas34. O fato que merece atenção, contudo, é que as realizações da ciência moderna têm sugerido que o mundo do homem e a sociedade seriam adequadamente examinados por categorias e métodos naturalistas. Esta atitude é parte da propensão do nosso tempo, sobre a qual devemos ter cuidado.

Ora, seria com certeza ridículo sugerir que esta abordagem naturalística dos estudos políticos seja sob qualquer aspecto imprópria ou totalmente sem valor. Nem se põe a questão de se colocar um cartaz à porta do campo político, dizendo “proibida a entrada de cientistas”. Além do mais, seria absolutamente absurdo insistir num ponto de vista que poderia parecer lançar alguma espécie de difamação no método científico com tal. Certamente eu não quero fazer isto. Mas o que realmente desejo sublinhar é que esta perspectiva científica não é a única valida e pode até conduzira erros; pode não ser muito frutuosa, pelo menos no que diz respeito ao estudo do mundo político (GREENLEAF, 1980, p. 200).

E as razões para sugerir isso não são apenas a dificuldade de realização de experimentos sobre a política, ou mesmo erros nos instrumentos de mensuração, tal como sugere seus praticantes. Trata-se, na verdade, do reducionismo presente no processo de abstração. Na tentativa de elucidar sua preocupação, Greenleaf aponta duas formas de reducionismo possíveis: (1) “A primeira forma de abstração está implicada na tentativa das teorias gerais de transcenderem ou conterem as características variáveis e complexas da vida prática, e chegarem a uma visão estável desta experiência que, diferentemente da original, é completamente uniforme e ordenada e livre de todas as contingências” (GREENLEAF, 1980, p. 201); e (2) “O segundo tipo de abstração compreende a seleção e armazenamento de certos aspectos de uma dada experiência, por uma consideração e ênfase especiais” (GREENLEAF, 1980, p. 201). Em ambas as formas, o objeto passa a ser encarado como a coleção de vários atributos que podem ser distinguidos imaginariamente. Tal procedimento aponta a limitação de

33 A crítica de Greenleaf assemelha-se ao que Lessa define como “tirania do método” (2001), e Brandão denomina “metodolatria” (BRANDÃO, 2007), a saber, o abandono de discussões acerca dos argumentos substantivos sobre a política em prol da valorização do método na coleta de dados, na crença de que esse procedimento, por si só, seja capaz de fornecer respostas para as questões tratadas.

34 O eufemismo utilizado pelo autor – “generalizações mais modestas” –, não o exime de mencionar pesquisas que exemplificam o comportamento que critica, como os estudos de Gosnell sobre o comportamento eleitoral e sua motivação partidária (GREENLEAF, 1980, p. 200).

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determinadas escolhas arbitrárias em favor de características que são privilegiadas no processo de análise. Algo que assemelha-se, conforme lembra o autor, à anedota do bêbado que perde as chaves numa rua escura, mas as procura em baixo do poste por ser a única região iluminada: os resultados interessantes alcançados manifestam apenas a região que se pode iluminar por meio das características elencadas para a análise. Essa questão pode ser particularmente percebida no método comparativo adotado em ciência política. Este apresenta-se como um substituto nas ciências humanas da experiência de laboratório: “o que se faz é isolar, quer dizer, abstrair certas características ou funções significativas, que parecem ser semelhantes umas às outras, e utilizá-las como uma base de classificação e comparação, freqüentemente numa base internacional” (GREENLEAF, 1980, p. 202). A dificuldade, porém, é saber quais se as características escolhidas são realmente semelhantes, considerando, ainda, que diferenças podem ser mais elucidativas do que semelhanças. Outro ponto problemático lembrado pelo autor diz respeito ao próprio processo de abstração: o que se compara não é um todo orgânico, mas sim aspectos selecionados. O erro é supor que existe uma espécie de denominador comum entre as distintas formas analisadas, alcançando conclusões que podem ser simplificadoras. Ao conceber a visão naturalista da política como vazia e defeituosa, Greenleaf, em consonância com os argumentos anteriormente tratados a partir das exposições de Laski e Barker, aponta para a história como uma maneira mais apropriada de leitura do mundo da política. A pesquisa história pode ser concebida de várias maneiras. Um momento limitador do seu caráter é, todavia, o naturalismo presente na proposta de realizar uma pesquisa científica da história35. Contrariamente, Greenleaf afirma que a história não deve preocupar-se com generalidades, mas com o estudo o mais completo possível, do “indivíduo” histórico. Este é por ele concebido de forma particular: não só uma pessoa humana, mas um grupo de pessoas, instituições, atividades, ideias, processos ou qualquer outra coisa que constitua uma unidade para o historiador. Assim, qualquer que seja o “indivíduo” escolhido, ele deve relatar a história completa em todos os detalhes, procurado sua identidade, mostrando suas tensões. A abordagem histórica compreendida desta maneira é mais apropriada para mostrar o caráter do mundo da política: enquanto o naturalismo preocupa-se externamente, a história observa a política internamente, seguindo o que Collingwood apontou como “história do pensamento”. Nas palavras do autor,

35 Ainda que Greenleaf não faça qualquer referência direta aos trabalhos de Quentin Skinner, é inevitável não associar sua crítica ao modo como o historiador de Cambridge começava a desenhar seu programa metodológico à época.

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A política, como qualquer outro esforço, é então vista como um aspecto da tentativa do espírito humano para construir, ele próprio, um mundo que seja compatível com a maneira como deseja viver. E é neste sentido que o estudo da política se ocupa especialmente com o exame do pensamento político nas suas relações com o contexto do qual ele emerge, com as atividades e instituições nas quais ele encontra expressão, com os vários níveis de articulação e coerência (GREENLEAF, 1980, p. 205).

Esses dois estilos de pensamento – naturalista e histórico – não são, segundo entendimento do autor, inteiramente irreconciliáveis. A unidade entre ambos pode ser encontrada sob um ponto de vista filosófico. Greenleaf conclui sua exposição apontando, assim, a importância da filosofia na definição do “caráter” do mundo da política. Ainda que figure como um discurso aparentemente antiquado à época, sua importância recai, no limite, sobre a possibilidade de ao menos apontar quais caminhos devem ser evitados. Certamente, está implícito que o estudo da história das ideias e o estudo das instituições não pode ser separado. Uma instituição política só pode ser compreendida se as ideias e propósitos por trás também forem compreendidos. Nesse sentido, o estudo da história do pensamento político é, novamente, a melhor maneira para identificarmos o caráter do mundo da política. No entanto, Greenleaf reforça o alerta:

Um mero catálogo cronológico de opiniões e de doutrinas políticas, sem qualquer tentativa para conseguir uma referência contextual e coerência temática, é um travesti do que o estudo desta história deveria ser. A análise detalhada dos conceitos e argumentos de uns tantos “grandes livros” selecionados arbitrariamente não é história, mas apenas o que chamei de teoria política sob outra forma; e a base racional desta forma de pesquisa pseudofilosófica em si é (como já disse) um assunto para explicação histórica. Assim, quando alguns proponentes desta teoria analítica e o historiador saem juntos para um passeio, como disse Collingwood, o historiador volta com o filósofo dentro de si (GREENLEAF, 1980, p. 207).

Greenleaf já transparece preocupações que invadiram o campo de estudos da história das ideias políticas a partir do programa do contextualismo linguístico. A obra do historiador Quentin Skinner será amplamente discutira no segundo capítulo desta tese. Por ora, o objetivo é mostrar como a relação entre teoria política e história ocupou o debate entre alguns dos seus mais notáveis praticantes, em diferentes configurações nacionais – assim como no caso das cátedras no Reino Unido aqui discutido, ou mesmo da “revolução behaviorista” no contexto norte-americano, abordada a seguir –, ensejando uma proveitosa reflexão sobre o sentido (ou a falta de sentido) de se fazer teoria política hoje. Sobre este debate, Feres Júnior e Pogrebischi recuperam uma interessante metáfora construída pelo cientista político norte-americano Terence Ball, referência importante no campo

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(FERES JÚNIOR; POGREBINSCHI, 2010). A própria adoção da expressão “teoria política” – menos usual no meio intelectual brasileiro, mas recorrente na matriz anglófona –, no lugar de “filosofia política” – presente na tradição de pensamento continental –, cobra dos autores uma justificativa. Segundo eles, além da nota biográfica, a matriz anglófona demonstra maior sistematização e possibilidade de diálogo com outras tradições e culturas intelectuais. Ao questionar a ausência de uma satisfatória conceituação nos dicionários de política usuais entre nós, Feres Júnior e Pogrebischi optam por resumir sua definição – não-empiricista, conforme expressão adotada –, para teoria política a partir do elemento normativo característico, tema já abordado na abertura deste capítulo. Nessa direção, a teoria política preocupar-se-ia com aquilo que “deve ser”, com valores e crenças que pautam escolhas individuais e coletivas, e não apenas com a descrição do “que é”. Por certo, tal definição não apresenta elaborado grau de originalidade. A despeito disso, a metáfora espacial construída por Terence Ball, e mobilizada na explicação dos autores, contribui decisivamente para a definição aqui perseguida, bem como abre caminho para discutirmos as transformações ocorridas no contexto norte-americano. Ball entende a teoria política como um campo que habita a região limítrofe entre a ciência política, a história e a filosofia política. Ainda que a separação entre tais campos do saber careça, ela própria, de uma discussão mais aprofundada, creio que designação sugerida cumpra o que se propõe. Isso porque, Ball

Criou um chiste que exemplifica de maneira bem humorada essa relação. Segundo ele, os cientistas políticos tomam os teóricos da política como historiadores ou filósofos. Os filósofos estranham o fato de os teóricos terem grande interesse por política e história. Já os historiadores não querem sua companhia (FERES JÚNIOR; POGREBINSCHI, 2010, p. 04).

O traço distintivo entre a ciência política e a teoria política é, conforme enfatizam Feres Júnior e Pogrebischi, menos o interesse empírico e mais a postura epistemológica. Isso porque, a teoria política prescinde da neutralidade axiológica (ausência de juízos de valor), ao passo em que a ciência política a persegue. Em relação a história, porém, a teoria política lida com um grau maior de abstração e generalização, não se limitando a contingência contextual. Ao passo em que o historiador constrói um fio narrativo, o teórico da política opera generalizações e abstrações que, mesmo quando historicamente orientadas, trabalham sob o imperativo da teorização. Isso quando não contém nenhuma reflexão histórica, conforme o argumento de Barker apresentado acima. Os autores sustentam, ainda, que a história do pensamento político manifesta uma

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vocação histórica mais acentuada, preocupada com a reconstrução de contextos a partir de argumentos factuais. Dessa forma, a definição da teoria política a partir da metáfora espacial implica a possibilidade de zonas de interseção. A separação com relação a filosofia política é, porém, menos nítida. Feres Júnior e Pogrebischi sustentam que, por vezes, ambas são consideradas a mesma disciplina, apenas variando o grau de abstração. Isso constitui, entretanto, uma distinção viável: a filosofia política é em geral mais abstrata e generalizante do que a teoria política, que está preocupada em contatar-se à prática concreta. A metáfora espacial de Ball antecipa algumas preocupações que serão discutidas a seguir. Ao passo em que esta seção ocupou-se do papel da história na teoria política, o objetivo agora é problematizar os impactos da ciência política produzida no contexto norte-americano, já enunciando sua influência no campo de estudos formado no Brasil. Conforme mencionei há pouco, o objetivo é apontar o “modo de fazer” ciência política específico adotado nesta tese, a saber, um exercício normativo que parte da história, mas não se limite a ela.

1.3 A ciência política como disciplina autônoma

A ciência política norte-americana é fonte de referências teóricas e metodológicas para diversos modelos de produção acadêmica em outros contextos nacionais. Conforme discutiremos a seguir, seu modo de fazer específico exerceu decisiva influência na conformação da prática disciplinar no Brasil, ainda que tal influência tenha se dado “vaticinada”, ou seja, ainda que seu programa metodológico tenha aqui aportado já acompanhado das críticas geradas no próprio contexto de origem (LESSA, 2011). O objetivo por ora é, contudo, apresentar alguns elementos da constituição histórica do campo naquele país para, em seguida, aproximar a reflexão do contexto nacional. Mesmo nos EUA, onde a disciplina apresenta razoável longevidade, não há uma história sistemática e unificada da ciência política, mas sim um conjunto de narrativas que diferem significativamente entre si (FERES JÚNIOR, 2000). Isso não impede, porém, que tenhamos lá uma história “oficial” da disciplina, ao lado narrativas alternativas que encontram variado grau de aceitação. Caso semelhante se repetirá do Brasil, com um adendo importante: entre nós, a jovem disciplina convive, ainda hoje, com aqueles que teriam sido seus “fundadores”, fazendo com que a história “oficial” permaneça contemporânea dela própria e sem maiores

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questionamentos. O ensaio de Renato Lessa que será discutido com vagar na próxima seção constitui, assim, uma primeira tentativa organizada e bem-sucedida de enfrentamento dessa narrativa “oficial” (LESSA, 2011). Feres Jr. argumenta, em texto assumidamente crítico sobre a relação entre a história da ciência política norte-americana e a nossa, que a corrente atribuição da invenção do estudo sistemático sobre a política aos EUA é um erro. Segundo o autor, “O que estes fizeram, de fato, foi criar uma profissão acadêmica especializada no estudo da política e institucionalmente separada do estudo da História e da Filosofia” (FERES JÚNIOR, 2000, p. 97). Ao lado deste processo de desenvolvimento institucional, com a criação de departamentos especializados no interior das instituições de ensino, de revistas específicas para a publicação de pesquisas e de entidades científicas para aglutinar pesquisadores, a academia norte-americana consolidou o processo de especialização. Feres Jr. enfatiza que em nenhum outro contexto tal padrão de especialização foi visto. Mesmo no Brasil, onde a disciplina acadêmica recebeu influxo decisivo desta experiência, a ciência política não vivenciou – e ainda não vivencia – os mesmos padrões de institucionalização. O fato, porém, é que a disciplina nos EUA exerceu, talvez em razão da sua organização de vanguardismo, forte influência em outros países, tendo seus departamentos constituído modelos de exportação. Há, com efeito, uma história “oficial” da ciência política norte-americana. Esta aponta, ainda em 1857, a criação, pela Universidade de Columbia, de uma cátedra de História e Ciência Política. Em 1880, conforme relata Feres Jr., a mesma universidade criou um departamento de ciência política e, em 1903, surgiu a Associação Americana de Ciência Política (APSA)36. Inevitável não comparar esta datação com aquela que comumente descreve a formação do campo das ciências sociais no Brasil e a emergência da ciência política em particular, constatando, numa primeira impressão, a longevidade da experiência norte-americana quando comparada à brasileira (FORJAZ, 1997; MICELI, 2001). O dado substantivo desta história “oficial” apontada por Feres Jr. é, todavia, a missão da qual a disciplina estava investida ainda no século XIX. Como uma “ciência de Estado”, a ciência política deveria dedicar-se à educação política dos cidadãos. E sendo o Estado americano democrático, a ciência política apresentaria uma vocação confessadamente democrática em sua origem, dado este inquestionável por diversos pesquisadores. Isso não

36 Feres Jr. mobiliza diversas fontes sobre a história da disciplina no contexto norte-americano, apontando correntes distintas entre os pesquisadores. Dentro do objetivo proposto nesta seção, porém, irei me limitar a apontar os traços gerais da disciplina naquele país, abdicando da indicação das obras referenciadas pelo autor. Para uma análise mais detalhada, ver: FERES JÚNIOR, 2000.

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impediu, porém, que a disciplina enfrentasse desafios ao longo do seu desenvolvimento, em parte semelhantes ao que discutiremos adiante. Assim, Feres Jr. nos mostra como

A história da vocação democrática da Ciência Política tem também seus percalços. [James] Farr lamenta que o comprometimento republicano da Ciência Política tenha se deteriorado devido à excessiva profissionalização da disciplina. Para o autor, o inchamento do sistema universitário e a autonomia dos critérios acadêmicos de promoção e sucesso profissional levaram o cientista político para longe da política. Ao invés de desenvolverem uma solução dos problemas concretos da democracia americana, os cientistas políticos cada vez mais passam seu tempo discutindo entre si teorias com pouca relevância prática (FERES JÚNIOR, 2000, p. 99).

Importa percebermos, por ora, como mesmo no cenário norte-americano a profissionalização da disciplina promoveu efeitos contraditórios: a ciência política foi progressivamente abandonando o debate público para ocupar-se de questões de método que pouco dialogavam com a agenda de questões caras à sociedade americana. Se na origem a disciplina trazia a defesa da democracia como pressuposto, seu desenvolvimento testemunhou o abandono da perspectiva normativa em prol de julgamentos pretensamente isentos de valor. Nessa virada, os praticantes da ciência política produziram uma reação aos imperativos “pragmáticos” impostos à disciplina por meio de um esforço de aproximação com as ciências naturais, naquilo que ficou conhecido como “revolução behaviorista”. Uma das propostas deste movimento era a separação do estudo sobre a política verdadeiramente científico da história das ideias. O tema já foi aqui discutido na perspectiva da teoria social a partir do argumento de Jeffrey Alexander sobre a importância dos clássicos. No que se refere à ciência política, a “revolução behaviorista” apregoou a construção de um novo projeto de ciência a partir do positivismo lógico, defendendo a separação entre fatos e valores e a verificabilidade empírica das teorias. Feres Jr. ressalta, contudo, que mesmo entre seus defensores o compromisso com a democracia se fazia presente ao ponto de não ser tematizado. O objetivo de Feres Júnior é, ao final, criticar o modo como a academia brasileira tende a assimilar acriticamente o percurso seguido pela disciplina nos EUA, ignorando, por um lado, os erros cometidos pelos praticantes daquele país, e, por outro, a singularidade dos diferentes contextos. O modo como o autor discute o tema abre caminho para avançarmos na compreensão do modo como o estudo da política no Brasil foi marcadamente influenciado pelo congênere norte-americano. A aproximação entre a ciência política norte-americana e sua “equivalente” na academia brasileira ocasionou, todavia, críticas diversas. Em linhas gerais, a pretensão da “revolução behaviorista” de construção de um saber objetivo sobre a política, erigido a partir do

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levantamento empírico e que, por conseguinte, dispensa o retorno aos clássicos na produção de conhecimento, foi recebida de maneira distinta entre os praticantes da disciplina no país37. (1) Por um lado, a pretensão do comportamentalismo alimentou um flerte entre os modos de estudar a política aqui em curso e o que era ensaiado no contexto dos EUA; (2) por outro, o behaviorismo recebeu críticas severas, consubstanciadas, inclusive, pelo rebatimento ao seu projeto dentro do próprio contexto onde foi gerado (LESSA, 2011). Gláucio Soares talvez seja quem melhor sintetizou, sem promover uma cega recepção, o namoro entre a ciência política brasileira e sua congênere norte-americana. O autor figura entre os precursores do estudo da política no país, tendo publicado resultados de pesquisas empíricas desde pelo menos os anos 1960, versando sobre temas como comportamento eleitoral, sistema partidário e, mais recentemente, criminalidade e segurança pública, além de exercer ativo papel nos programas de pós-graduação em ciências sociais no país e em suas associações científicas. Em texto recente, Soares discute o que denomina nosso “calcanhar metodológico”, mostrando o que considera a principal fraqueza da ciência política brasileira (SOARES, 2005). A despeito da importante contribuição do autor para o campo, tomo seu argumento como um exemplo das consequências deletérias que o “deslumbre” com a mencionada “revolução comportamentalista” pode ocasionar. Nesse sentido, importa aqui a crítica que Soares direciona ao modo de fazer ciência política no Brasil, mostrando como seu argumento, apesar de sedutor, planta algumas armadilhas para o desenvolvimento da disciplina. O autor apresenta, logo de saída, seu diagnóstico: entre nós vigora certa ojeriza com relação ao uso de métodos quantitativos – incluída aí uma aversão à estatística –, e, mais grave ainda, essa rejeição vem acompanhada da total ausência de reflexão sobre técnicas de pesquisa e métodos adequados. Quadro semelhante se repete no uso de metodologias qualitativas, que apensar de supostamente bem aceitas, quase nunca resultam de discussão competente. O lastro empírico mobilizado na defesa deste diagnóstico é o exame dos artigos publicados em alguns expressivos periódicos brasileiros, que constata a diminuta presença de estudos empíricos e análises comparadas. Segundo o autor,

A sociologia, talvez mais que a ciência política, abraçou uma perspectiva “qualitativa”, mas muitos trabalhos ditos qualitativos são, apenas, trabalhos não- quantitativos. Muitos se esquecem que há métodos qualitativos rigorosos, e

37 Além do precursor estudo de Lamounier (1982) sobre o campo da ciência política no Brasil, e do ensaio de Lessa (2011), amplamente discutido nesta introdução e referência inescapável para o argumento da tese, novos pesquisadores têm se dedicado ao debate teórico-metodológico na disciplina. É o caso, dentre outros, do artigo de Marcelo Sevaybricker Moreira, que realiza um inventário das leituras correntes, abrangendo, ainda, o papel do pensamento político brasileiro na conformação da linguagem corrente entre os atores políticos (MOREIRA, 2012).

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confundem ensaísmo com trabalhos que usam métodos qualitativos. Deixaram o rigor que deve existir na antropologia e a tradição de pesquisa de campo na ilusão de que, não sendo quantitativos, seus trabalhos seriam antropológicos (SOARES, 2005, p.29, grifo do autor).

Soares lembra dos obstáculos materiais impostos aos que almejam a construção de pesquisas específicas, mas menciona, por sua vez, a existência de inúmeras bases de dados hoje disponíveis como uma estratégia viável para o treino metodológico dos estudantes de ciências sociais. Logo, ao passo em que associações internacionais de pesquisa na área têm abrigado a discussão sobre o desenvolvimento de novas metodologias para o trabalho empírico, no Brasil a polêmica ainda é rudimentar. Conforme menciona, houve momentos em que parte dos nossos praticantes defendeu, inclusive, a impossibilidade de conferirmos tratamento rigoroso aos fenômenos políticos e sociais. Feito o diagnóstico, o autor aponta quais seria os desdobramentos desse quadro no andamento das pesquisas em ciência política entre nós. Nessa direção, há duas consequências decorrentes da ausência de estudos empíricos no Brasil: (1) em primeiro lugar, o isolamento da ciência política e da sociologia com relação as disciplinas que fazem pesquisa empírica (economia, demografia, saúde pública, dentre outras); e, (2) em segundo lugar, a perda de espaço junto às agências de fomento, dificultando a aquisição de recursos para a realização de novos estudos. Além disso, a ausência de padrões metodológicos mínimos acarreta, conforme argumenta, a ausência de uma área comum, interdisciplinar. Este ponto é, talvez, o maior obstáculo apresentado pelo auto. Dessa forma,

Sem uma formação metodológica mínima, muitos cientistas políticos (e sociais) não conseguem sequer ler muitos trabalhos dessas áreas. Pior: não conseguem ler muitas obras de ciência política, particularmente artigos e relatórios de pesquisa que usam métodos quantitativos. Isso cria uma ampla área de acesso proibido para essas pessoas, um interdit metodológico, que as obriga a buscar refúgio em campos cada vez mais distantes das pesquisas empíricas (SOARES, 2005, p. 36, grifo do autor).

Contrariamente ao argumento há pouco mobilizado em defesa de uma necessária postura “pré-disciplinar” (LESSA, 2001), Soares aponta precisamente a falta de adequada formação metodológica como um impedimento para o diálogo entre as diferentes áreas, sem discordar, contudo, do processo de compartimentalização dos saberes. Em outras palavras, não há, no entendimento do autor, problemas maiores em considerarmos a ciência política uma disciplina autônoma e apartada das demais áreas do saber. O problema reside, ao contrário, na incapacidade dos estudiosos da área em estabelecer pontos de interseção com as demais disciplinas “empíricas”, por meio de um suposto diálogo metodológico. Ainda que não seja essa

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uma defesa explícita, o texto sugere que argumentos substantivos sobre a política possam ser comunicados por meio de súmulas metodológicas, disponíveis para todos os iniciados. A pobreza da nossa formação se traduziria, ainda segundo Soares, na baixa inserção internacional dos nossos praticantes. A partir da pesquisa de Pippa Norris sobre alguns do mais influentes periódicos internacionais da área, uma constatação adicional endossa o argumento do autor: a quase totalidade dos artigos publicados nos periódicos analisados – sobretudo no contexto norte-americano –, pertence aos pesquisadores dos próprios países, tendo os brasileiros quase nenhuma representatividade. O ponto alto do argumento avançado no texto é, contudo, a denúncia do que o autor nomeia como “colonialismo teórico”. Ao voltar sua análise para as referências bibliográficas presentes nos programas de pós-graduação da área no país, Soares constata a quase ou nenhuma presença de autores latino-americanos ou do dito Terceiro Mundo. Em compensação, clássicos europeus ocupam a grande maioria das leituras indicadas. Isso quase sempre se justifica pelo desconhecimento, por parte dos professores desses programas, dos autores latino-americanos e do Terceiro Mundo, o que os leva a optar pela teoria gerada e desenvolvida nos países industriais.

Os professores de teoria, que, em sua maioria, não fazem pesquisas empíricas, usam um arsenal teórico e conceitual gerado nas sociedades industriais, ex-potências coloniais e atuais potências imperialistas e sub-imperialistas. Pensam o Brasil a partir de conceitos e categorias criados para descrever fenômenos de países industriais; não pensam a partir de conceitos elaborados para descrever fenômenos do Brasil ou de países estruturalmente semelhantes. A isso eu chamo de colonialismo teórico. Tal colonialismo é muito poderoso e se expressa na total incapacidade de pensar o país a partir da sua própria lógica, por parte de cientistas políticos e sociais que sentem necessidade cognitiva de “traduzir” o Brasil em conceitos com os quais estejam familiarizados. [...] Nos casos extremos de colonização conceitual, os conceitos (descritivos e analíticos) gerados pela pesquisa no Brasil precisam ser “traduzidos” para um referencial já conhecido. [...] Infelizmente, no Brasil as “teorias” se limitam a um cansativo cardápio requentado de “grandes teóricos” ou, na melhor das hipóteses, de linhas teóricas a eles associadas. Ironicamente, alguns já chamam de “os três porquinhos” os autores mais tradicionais (Marx, Dürkheim e Weber). O ensino de teorias políticas e sociológicas se concentra na leitura de autores – são teorias de quem e não de quê (SOARES, 2005, p. 38-39, grifo do autor).

O trecho citado é central para o argumento aqui em curso. Isso porque, ao criticar a ausência de teorias produzidas no contexto local em prol dos conceitos gerados nas sociedades industriais, Soares incorre numa armadilha curiosa: ele critica o que denomina “colonialismo teórico” sem perceber que padece de certo “colonialismo metodológico” (fazendo uso retórico da própria categoria presente no seu argumento). Concomitante a isso, o autor atiça o abandono dos “grandes teóricos”, sugerindo que o retorno a eles produz apenas um “cardápio

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requentado”. A crítica assemelha-se ao que Alexander havia apontado, mostrando como a visão positivista de ciência tende a classificar o retorno aos autores do passado como um processo rebaixado de produção de “resumos” ilustrados. Algo que pode ser identificado, sobretudo, na oposição entre teoria e pesquisa empírica presente na afirmação de que “professores de teoria [...] em sua maioria, não fazem pesquisa empírica”. Apesar da defesa do não abandono do estudo das teorias importadas, o autor parece descuidar da armadilha ensejada pelo seu próprio argumento. Soares avança na sua crítica mostrando, ainda, como a ciência política norte-americana, canadense e europeia são “provincianas”, publicando e consumindo em sua maioria autores nacionais. A despeito disso, nós insistimos em buscar neles conceitos e teorias para interpretarmos a realidade nacional, o que reforça a acusação de colonialismo teórico acima delineada. Como alternativa, o autor defende que sejamos capazes de criar um diálogo interdisciplinar, o que envolve o acurado treino metodológico que nos falta. Sua defesa de uma maior presença de estudos empíricos metodologicamente guiados nas pesquisas em ciências sociais vem, com efeito, acompanhada da crítica ao que considerada uma exagerada presenta de artigos “ensaísticos” nas publicações nacionais38. Ao lado da acusação de colonialismo teórico, Soares apresenta um prognóstico perigoso. O autor nos lembra que a grande maioria dos cientistas sociais brasileiros depende do setor público. Nossas pesquisas, salários e financiamentos diversos provém das Universidades públicas e das agências de fomento estatais. Por sua vez, a realidade do país apresenta enormes desafios que cobram das ciências sociais respostas a altura. Respostas estas que não podem pautar-se, conforme expressão mobilizada pelo autor, em “achismo”, mas devem ser produzidas a partir da pesquisa empírica rigorosa e metodologicamente capacitada. Soares traz para o debate ideia de “inovação”, sugerindo que pesquisas teóricas seriam incapazes de fornecer respostas satisfatórias aos desafios postos39. Assim,

38 Escusa lembrar que a defesa de uma postura “pré-disciplinar” como possibilidade de diálogo e inovação no enfrentamento dos desafios postos pela empiria, assim como nos termos de Lessa (2001), reconhece o “ensaio” como forma virtuosa de interpelação dos problemas públicos. O próprio Soares admite que mesmo entre os críticos da baixa presença de estudos empíricos nos periódicos nacionais, não é consensual a condenação do “ensaio” como forma. Caso digno de nota é Luiz Werneck Vianna (SOARES, 2005, p. 47).

39 A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) outorga anualmente o prêmio de melhor tese produzida nas diferentes áreas do saber. Curiosamente, a agência reconheceu como melhor trabalho no ano de 2014 a tese “Uma genealogia dos princípios de demofilia em concepções utópicas de democratização”, de autoria de Thais Florencio de Aguiar, defendida no Instituto de Estudos Sociais de Políticos – IESP/UERJ (Portaria 134, de 30 de setembro de 2014/CAPES. Disponível em: . Acesso em: 09 nov. 2014). A pesquisa – exclusivamente teórica – contribui para o debate acerca do conceito de democracia a partir da emergência das massas no cenário político. Creio ser um trabalho inovador, decisivo para a reflexão das

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As ciências políticas e sociais têm a oportunidade e, na minha concepção, o dever de contribuir para a solução desses problemas. Não obstante, uma parte considerável dos cientistas políticos e sociais se dedica a um divertissement intelectual que, na melhor das hipóteses, é ortogonal aos problemas do país e, na pior, contribui para desviar mais e mais recursos, inclusive intelectuais, da solução desses problemas. Essas pessoas vivem num mundo pedante e alienado, onde o conhecimento excêntrico é valorizado, e o trabalho duro e a pesquisa séria são desprestigiados. Importa mais repetir ‘os clássicos’ e os autores que estiverem na moda do que inovar, pesquisando o país. [...] Assim, a ciência política no Brasil se encontra numa encruzilhada: ou pesquisa e contribui para solucionar ou minorar os problemas do país, ou continua a não pesquisar e a se dedicar à discussão sem fim e nada criativa das teorias geradas em países industriais” (SAORES, 2005, p. 42, grifo do autor).

O trecho é particularmente problemático. Isso porque, ao apontar a existência de desafios concretos a serem enfrentados, afirmando a necessidade (e o dever) das pesquisas em ciência política e ciências sociais ocuparem-se do seu estudo, Soares arvora-se a condição de julgar quais agendas de pesquisa são “sérias” e merecem recursos e atenção. Ao mesmo tempo, ele retoma o que considera perda de tempo, a saber, o estudo dos autores considerados “clássicos” ou “na moda”. O autor é claro em sua crítica, enquadrando os estudos teóricos como um direito auto-outorgado pelo pesquisador de não ser incomodado pelos problemas concretos da sociedade. Relembrando o dado de que pesquisadores carecem de financiamentos públicos, Soares assevera que “Há um problema ético em virar as costas para a sociedade que, deixando de receber, é quem nos paga” (SOARES, 2005, p. 47). O objetivo até aqui foi mostrar como as transformações sobre o estudo da política ensejadas no contexto norte-americano ganharam relevância entre os praticantes da disciplina no Brasil, conforme a defesa contemporânea de Soares manifesta. Na próxima seção discuto, em tom assumidamente crítico, tal influência no país, apontando os caminhos que pretendo seguir no desenvolvimento do argumento da tese. Em linhas gerais, defendo que o retorno aos clássicos pode, contrariamente ao argumento positivista, ocasionar leituras inovadoras sobre a realidade política, precisamente porque o universo de problemas com os quais este campo do conhecimento lida são passíveis de transformações (LESSA, 2012a). Em outras palavras, rejeito certas concepções naturalistas de política, admitindo a possibilidade de forjarmos, por meio da reflexão teórica, ideias normativos para intervenção no mundo público.

formas contemporâneas de política, e merecidamente reconhecido pela CAPES. Nesse sentido, a crítica de Soares sobre a ausência de inovação não encontra eco nas agências de fomento, assim como o próprio autor em parte enuncia.

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1.4 Ciência, teoria e pensamento

A discussão de Calvino e Alexander, apenas para retermos dois argumentos distintos e amplamente reconhecidos sobre o tema, sobre o lugar dos autores do passado, bem como sobre a postura que os intérpretes do presente devem assumir, fornece importantes pistas para pensarmos as transformações sofridas pelas ciências sociais nos últimos anos, notadamente pela ciência política depois da década de 1950, em razão da chamada “revolução behaviorista” desencadeada na academia norte-americana. Conforme aponta Renato Lessa, tal movimento foi curiosamente capaz de operar a vinculação do conhecimento científico a um suposto realismo objetivista, por um lado, ao mesmo tempo em que produziu discursos cada vez mais distantes da linguagem ordinária, por outro (LESSA, 2001). Lessa mobiliza tal crítica na defesa de uma premissa aparentemente esquecida pelas disciplinas científicas em tempos recentes, a saber, a de que “todo problema intelectual tem a forma de uma pergunta” (LESSA, 2001, p. 46). Nessa direção, se declinarmos, conforme defende o autor, à “fábula do empirismo de que os fatos falam por si mesmo”, somos levados a reconhecer que “a possibilidade de falar do mundo depende da presença de tradições intelectuais fortes, que constituíram tanto os objetos como os idiomas de seus modos de tratamento” (LESSA, 2001, p. 47). Tais tradições, conforme o argumento a ser aqui defendido, abrigam precisamente aquilo que definimos como “clássicos” do pensamento. A ciência política, no entanto, parece ter abdicado desse exercício questionador em prol do reconhecimento fático de dados e eventos presentes no mundo, supostamente passíveis de apreensão objetiva e transmitidos, por mais paradoxal que isso possa parecer, por meio de uma linguagem não-ordinária. Dessa forma, ao invés de assumir o potencial normativo observado ao longo da sua tradição, capaz de dizer também o “que não há” no mundo, a ciência política vem se tornando uma simples “técnica”, “uma observação metódica dos fatos, capaz de mostrar como a vida se dá, como os fatos que povoam e configuram o campo político se estruturam” (LESSA, 2001, p. 50). No limite, ela distancia-se da sua própria tradição, adotando perversa cegueira analítica em nome da tirania do método: o instrumento torna-se premissa para o mundo, em outras palavras, o método se faz pensamento. Contrariamente, Lessa defende a retomada dessa tradição esquecida, sustentando a virtude de recuperarmos a postura normativa presente no conhecimento pré-disciplinar, quando a ciência sobre a política transitava sem ressalvas entre a literatura, a história, a filosofia, a economia, a psicologia, a antropologia e a sociologia, por exemplo, disciplinas que tornaram-

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se compartimentadas em anos recentes, inviabilizando o diálogo sob pena da condenação por eventuais descuidos metodológicos. Ou seja, mais do que a defesa de um “discurso surrado pela interdisciplinaridade”, o autor aponta a necessidade de construirmos “uma nova ciência social, na medida em que ela seja capaz de simular uma situação, talvez, pré-disciplinar, onde essas compartimentalizações não se estruturaram” (LESSA, 2001, p. 52). Somente dessa forma seríamos capazes de nos libertar do aprisionamento acadêmico que no presente faz com que a ciência política encontre-se presa ao mundo, incapaz de pensar para além do que há, o que não há. O argumento avançado por Lessa sobre recuperarmos o elemento pré-disciplinar nos estudos sobre a política assemelha-se, por sua vez, à defesa feita nas conferências organizadas por Preston King sobre a política não constituir uma disciplina científica, mas sim uma área de interesse. Conforme vimos, esta foi, no entendimento aqui em curso, a grande “inovação” (deletéria, no caso) da ciência política norte-americana: promover a autonomização do campo e a profissionalização e especialização dos seus praticantes. Contrariamente, pretendo defender aqui o que Greenleaf denomina como uma postura mais “eclética”. Nessa direção, o ensaio de Renato Lessa, “Da interpretação à ciência: por uma história filosófica do conhecimento político no Brasil” (LESSA, 2011), constitui uma proposta narrativa cara ao “modo de fazer” teoria política aqui defendido. O texto, ao mesmo tempo em que refaz os marcadores históricos tradicionais do campo de estudos no país, nos convida a pensar na singularidade da ciência política dentro das ciências sociais, enfatizando seu aspecto inevitavelmente normativo e questionando, ainda, a concepção positivista de ciência há pouco debatida por meio dos argumentos de Jeffrey Alexander (1999) e Terence Ball (2004). O ponto de partida adotado por Lessa recai sobre a problemática datação “oficial” da ciência política no Brasil. Isso porque, a adoção de determinados marcos históricos manifesta escolhas substantivas sobre a narrativa que se propõe. Lessa declina, dessa forma, a concepções naturalistas de história, ao propor que argumentos outros possam ser desenhados por meio de escolhas assumidamente arbitrárias. No caso brasileiro em particular, a história “oficial” nos mostra como a partir da década de 1970 o conhecimento político deixou de ser “interpretado” e passou a ser “explicado” por enunciados com manifesta pretensão à “demonstração”. Lessa reforça que ainda que tal distinção seja insustentável em termos conceituais – pois toda “explicação” é, no limite, uma “interpretação” –, ela foi capaz de marcar campos cognitivos distintos entre nós: (1) de um lado, aquilo que designamos como “intérpretes do Brasil”; (2) e,

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de outro, o campo de uma ciência da política surgido a partir de 197040. Nesse sentido, “Sob o rótulo genérico de ‘pensamento político brasileiro’, um conjunto variado e expressivo de esforços cognitivos se transforma em objeto de história intelectual, enquanto que o corpo conceitual da nova ciência é tomado como condição para inteligibilidade do mundo político” (LESSA, 2011, p. 18). Dentro dessa perspectiva, os “intérpretes” reemergem como assunto afeito à história das ideias, e não mais como autores capazes de explicar o que o país “é” e/ou “deve ser”. Estudar os autores do passado deixa de ser fonte de instrumentos para a compreensão do presente, e torna-se matéria de erudição que pode, quando muito, produzir “resenhas ilustradas”, retomando aqui a definição de Alexander (1999). Em resumo, Lessa quer problematizar a direção assumida a partir da década de 1970, “de uma ciência positiva da política, depurada das confusões ‘normativas’ do campo das humanidades e progressivamente afastada das demais ciências sociais, em nome da defesa de uma autonomia e de uma distinção de seu objeto” (LESSA, 2011, p. 18). O inventário elaborado por Maria Cecília Spina Forjaz, devidamente referenciado no ensaio de Lessa, traduz tal perspectiva (FORJAZ, 1997). A autora centra seu levantamento no que denomina grupos mineiro e carioca, sediados no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (DCP/UFMG) e no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), e liderados, respectivamente, por Fábio Wanderley Reis e Wanderley Guilherme dos Santos. Seu objetivo é mostrar como ambos os centros de estudos foram responsáveis pelo processo de institucionalização e profissionalização da ciência política no Brasil, através da afirmação de paradigmas teóricos autônomos em relação aos ramos mais antigos das ciências sociais, notadamente o direito e a sociologia. O processo descrito foi, assim, abertamente influenciado pelo paradigma norte- americano – Forjaz enfatiza o treinamento acadêmico de muitos dos seus praticantes em universidades nos EUA –, e teve como alvo comum o enfrentamento com a Escola Paulista de Sociologia, de vocação marxista e condenada como “ideologizante”. Seu recorte histórico é em parte semelhante ao que propôs Miceli (2001) como datação oficial das ciências sociais no

40 A referência inescapável nesta datação é, certamente, o projeto “História das Ciências Sociais no Brasil”, coordenado por Sergio Miceli. A pesquisa, publicada posteriormente em livro (MICELI, 2001), apontou o surgimento das universidades e institutos de pesquisa como um marco divisor entre o “ensaísmo” pré-1930 e o nascimento das ciências sociais no Brasil, a partir da adoção de modernos métodos de pesquisa e da importação de teorias. No campo da ciência política em particular, a pesquisa derivada de Maria Cecília Spina Forjaz manifesta entendimento semelhante, apontando a virada dos anos 1960/70 como o ponto de referência para o surgimento da ciência política como campo de estudos autônomos no país (FORJAZ, 1997). O argumento será melhor discutido adiante.

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Brasil, e que será explorado a seguir a partir da análise de Wanderley Guilherme dos Santos sobre o tema, com o adendo de que a ciência política teria se firmado apenas depois do ciclo de urbanização e industrialização ocorrido entre as décadas de 1930 e 1960. Nesse sentido, tanto a Escola Sociológica Paulista quanto o Instituto de Estudos Brasileiros (ISEB) teriam exercido influência decisiva na conformação do campo de estudos sobre a política no país, distinto apenas a partir dos anos 1960. A sociologia uspiana era, conforme descrição de Forjaz, fortemente influenciada pelo funcionalismo francês em sua origem, notadamente pela obra de Durkheim, sendo posteriormente marcada pelo paradigma marxista, ao passo em que no ISEB predominava uma ciência social de cunho ideológico e militante (FORJAZ, 1997). Características que deixavam pouco espaço para o desenvolvimento de uma reflexão política de cunho acadêmico, tal como apregoava o modelo norte-americano há pouco descrito. O fato é que no Brasil a política não emergia como objeto de investigação científica, permanecendo seu campo de estudos atrelado às demais áreas das ciências sociais, dado negativo conforme o entendimento daqueles que “fundarão” a disciplina acadêmica nos anos subsequentes. Todavia, as décadas de 1960 e 1970 foram, de acordo com essa narrativa, favoráveis ao florescimento da disciplina. Duas ordens de fatores concorreram para tanto. Por um lado, a constituição de um sistema de pós-graduação na Universidade brasileira, por outro, a “montagem de agências de fomento vinculadas a um sistema nacional de desenvolvimento científico e tecnológico, crescentemente vinculado às políticas de planejamento e desenvolvimento econômico” (FORJAZ, 1997, p. 103). Segundo Forjaz, as agências de fomento passaram a constituir um novo centro de poder, concentrando uma soma significativa de recursos e tomando decisões independentes do sistema educacional. Embora o regime político implantado em 1964 tenha sido fortemente repressivo, as ciências humanas beneficiaram-se do processo mais amplo de expansão da pesquisa científica e da indústria cultural no país. Ao lado disso, a presença das agências de fomento internacionais, notadamente a Fundação Ford, exerceu forte influência no desenvolvimento da ciência política brasileira. Dessa forma, a atuação dessas agências de fomento teria moldado a ciência política brasileira, permitindo a criação de institutos privados de pesquisa – dentre eles o IUPERJ como exemplo marcante – que poderiam agregar pesquisadores plurais, ou mesmo agrupar interesses de pesquisa convergentes. Do ponto de vista substantivo, Forjaz aponta a rejeição do marxismo enquanto paradigma explicativo e a luta pela autonomia frente à sociologia e ao direito como dados que unem os praticantes responsáveis pela constituição do campo disciplinar no Brasil. Tratava-se,

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no limite, de incorporar a influência norte-americana em nome da autonomia do objeto, conforme apregoavam os cultores do positivismo naquele contexto. Nessa direção, os grupos que gravitaram em torno do DCP/UFMG e do IUPERJ teriam recebido, ainda, o influxo do antigo ISEB. Com isso, fecha-se o que Forjaz aponta como característica desta nascente ciência política brasileira.

Apesar das influências isebianas na fase inicial, o grupo mineiro/carioca tentou se afirmar e construir uma identidade intelectual própria enfrentando três correntes distintas do pensamento social brasileiro: a Escola Sociológica Paulista, o adversário principal; o ISEB, e a Ciência Política mineira tradicional, vinculada à Faculdade de Direito e liderada por Orlando de Carvalho. Nesse enfrentamento, a Ciência Política buscava se autonomizar simultaneamente da Sociologia e do Direito, e ao mesmo tempo invocava para si um estatuto de ciência na rejeição ao caráter “ideológico” da produção isebiana. Queremos dizer que a constituição de uma cara própria e uma presença específica da Ciência Política acadêmica significou, para esse grupo, confrontar essas três tradições anteriores das ciências sociais brasileiras” (FORJAZ, 1997, p. 111-112).

O argumento aponta a centralidade do grupo mineiro-carioca na delimitação do campo da ciência política no Brasil. Ambos teriam sido responsáveis pela distinção entre a ciência política e as demais áreas das ciências sociais – notadamente a sociologia, o direito e a economia –, ao retratarem a política a partir de variáveis exclusivamente políticas. Quanto ao método, o grupo manifestou razoável pluralidade. Ainda assim, é evidente o consenso com relação à crítica do marxismo dominante nas ciências sociais: “Sem ser empiristas, ou funcionalistas, como freqüentemente são caracterizados, eles se notabilizam pela preocupação em coletar evidências empíricas e históricas que suportem a explicação científica” (FORJAZ, 1997, p. 115). É precisamente contra essa datação que Lessa constrói sua narrativa. Ainda que a disciplina entre nós não possua uma história sistematizada e institucionalmente reconhecida – o estudo de Forjaz manifesta apenas uma tentativa de construção dessa história –, algo que pode ser justificado por seu estrato recente, o autor nos mostra como o caso brasileiro pode ser inscrito numa perspectiva mais ampla, buscando precisamente no campo disciplinar construído nos EUA elementos para nossa compreensão. Nesse sentido, o mais sistemático exercício de reflexão sobre a constituição da ciência política no Brasil foi elaborado por Bolívar Lamounier, em síntese do seminário “A ciência política nos anos 80” (LAMOUNIER, 1982). Nele Lamounier fixou a datação que marca a identidade da maioria dos cientistas políticos brasileiros, reafirmada posteriormente por Forjaz, que aponta os anos de 1960 e o início de 1980 como o marco de surgimento e consolidação do campo disciplinar. A despeito dessa datação, Lamounier reconhece, contudo, a presença de uma

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reflexão sistemática a partir do século XIX, ocupada dos fatores de ordem política e institucional na configuração do país. Trata-se, no entendimento de Lessa, de um justo reconhecimento das intervenções no mundo público a respeito do experimento social e institucional a ser desenvolvido no país. Isso porque,

Nenhuma dessas intervenções preencheria, com certeza, os protocolos mais tarde fixados para configurar uma ciência supostamente rigorosa da política. No entanto, o propósito de intervenção imediata de modo algum apareceu, nos primeiros pensadores políticos do país, como algo paroquial e idiossincrático. Ao contrário, foi sempre visível a incorporação fertilizadora de tendências coetâneas no campo da filosofia política, no plano internacional (LESSA, 2011, p. 22).

Dessa forma, é possível identificar no Brasil do dezenove a presença de um pensamento político motivado por tendências “estrangeiras”, e ao mesmo pela oportunidade de intervir no processo de criação da nova unidade política. Presença que deve, conforme o autor, deflacionar nossas sensações de que o campo do conhecimento estabelecido a partir da consolidação da moderna pós-graduação no país é contemporâneo de sua própria história. Isso não impede, porém, que Lamounier diagnostique um avanço do campo de estudo da política entre nós, notadamente a partir da criação das pós-graduações na área e do incentivo das agências de fomento, enquadrando a contribuição dos autores do passado como “pré- disciplinar”. Este avanço será, assim, descrito pelo autor a partir de dois fatores centrais: (1) a presença de uma acentuada autonomia na constituição do objeto próprio da ciência política, enfatizando as dimensões política e institucional; e (2) a consequente distinção entre a ciência política e as demais ciências sociais e humanidades. Em síntese, Lamounier situa o marco de surgimento da ciência política no Brasil a parti da constatação de que apenas a partir dos anos 1960 teríamos a autonomia do objeto e a profissionalização dos seus praticantes. Além de sistematizar o que seria a narrativa oficial da ciência política no país, Lessa contribui ao problematizar os marcos estabelecidos a partir de uma perspectiva alternativa, filosoficamente informada. Nesse percurso, o autor resgata o modo como Manuel Villaverde Cabral narra a história da disciplina em Portugal, recorrendo ao conceito de “embeddness”, originalmente aplicada por pare descrever circuitos de troca econômica num contexto intocado pelo “credo do mercado”. Neste cenário, trocas econômicas estariam envolvidas em um conjunto de injunções não econômicas. Cabral afirma que a ciência política portuguesa atravessou em sua formação um “ciclo de embeddment”, evidenciando a marca do autoritarismo do governo salazarista (CABRAL, 1982). De forma semelhante ao argumento de Lamounier, a ideia de “autonomização” surge como característica decisiva para a compreensão

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da ciência política como campo disciplinar. O argumento, porém, guarda uma distinção importante. Assim,

É possível sustentar que todo processo de autonomização resulta de uma recusa a padrões de embeddness. O segmento a ser autonomizado deve ser apresentado como dotado de qualidade ontológicas próprias, que justificam o destaque com relação a conjuntos que, até então, determinavam seu sentido e seu alcance. O contrário também pode ser afirmado: a recusa de padrões de autonomia implica a adesão a vínculos mais totalizadores, sem os quais o sentido do fragmento esmaece (LESSA, 2011, p. 26, grifo do autor).

O termo “autonomia”, tal como inserido por Lamounier, designa a ausência dos efeitos de “embeddness”, responsáveis pela dissipação da sensibilidade analítica dos fenômenos políticos. Logo, os chamados fatores estritamente políticos seriam construídos de modo não encerrado em narrativas de outras ordens. Lessa mostra como dentro desta concepção a tradição de pensamento deveria ser superada na afirmação do conhecimento político como “um campo que não fará concessões ao ‘historicismo’, ao ‘culturalismo’ e ao ‘sociologismo’” (LESSA, 2011, p. 26). A autonomia significa, conforme a descrição elogiosa de Lamounier, que os fenômenos políticos deveriam ser observados no que revelam de intrinsecamente políticos, a partir de variáveis purificadas de qualquer contaminação por outras disciplinas. Lessa enfatiza, porém, a presença de dois padrões distintos de embeddness nos argumentos de Cabral e Lamounier, distinção cara ao seu argumento. Ao narrar o desenvolvimento da disciplina em Portugal, Cabral significa o “ciclo de embeddment” como o apagamento da sensibilidade analítica por força de um regime político autoritário que impunha “narrativas hagiográficas” aos seus praticantes. De forma distinta, Lamounier aponta a presença de uma perspectiva analítica embebida de modos distintos de apreensão do objeto que teria sido superada com a autonomização do campo disciplinar. Tal distinção é fundamental para entendermos a afirmação de um pensamento político no Brasil. Isso porque, Lamounier mostra, a partir da noção de embeddness, como até os anos 1960 identificamos uma tradição ensaísta no país envolvida por outas narrativas – históricas, literárias, filosóficas, sociológicas, econômicas –, dado que será positivamente superado com a autonomização e profissionalização do campo. Assim,

“Autonomia”, nesse caso, implicava apenas o reconhecimento de um domínio de objetos a considerar, mas não a adesão a um saber distinto e independente das demais narrativas sobre a experiência histórica, cultural e social. Se a primeira forma de autonomia é uma condição necessária para que falemos de política, a segunda é mais discutível (LESSA, 2011, p. 28).

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Em linhas gerais, segundo Lamounier encontramos, até 1960, intelectuais isolados, produzindo ensaios histórico-sociológicos sem adensamento disciplinar. A partir de então, com o incremento da pós-graduação e a diversificação das formas institucionais de trabalho, a reflexão sobre a política ganharia maior continuidade e sistematicidade, com a progressiva profissionalização dos seus praticantes. A demarcação operada pelo autor, e consolidada na narrativa oficial da disciplina no país, foi influenciada pela conhecida “revolução behaviorista” e sua ruptura com o discurso das humanidades, por um lado, e pela imposição de variáveis e linguagens próprias da ciência política, por outro, esta responsável pelo apartamento com relação às demais ciências sociais. Ao examinar os autores que produziram no período anterior à datação imposta por Lamounier, Lessa constata, porém, um virtuoso padrão de produção do conhecimento capaz de aproximar “disposição analítica” e “projeção normativa”. Assim, autores como Visconde do Uruguai, Vitor Nunes Leal, Oliveira Vianna, Guerreiro Ramos e Raymundo Faoro que eram, muitos deles, também atores da política, ocuparam-se da produção de diagnósticos sobre a situação do país, descrevendo o que era a sociedade e sua trajetória, para, então, apresentarem seus prognósticos. Ainda que plurais em suas constatações e proposições, seus estudos traduzem um importante modo de fazer teoria política. Nas palavras de Lessa,

Tal conjunto opõe-se, a um só tempo, às cláusulas da autonomia/embeddness e da distinção progressiva, na medida em que associa de modo explícito análise e prescrição e persegue a ideia de que a inteligibilidade da política deve ser buscada nos nexos que mantém com a história, com a vida social e, o que é mais importante, om o que se quer do futuro. Se algo há em comum entre os autores acima mencionados, como representativos da reflexão política e social brasileira entre os anos 1940 e 1960, é seu caráter indisfarçavelmente normativo (LESSA, 2011, p. 33, grifo do autor).

Em linhas gerais, as preocupações explicativas manifestas no período anterior ao surgimento da ciência política como disciplina autônoma entre nós traziam, necessariamente, indicações normativas sobre a sociedade brasileira. Ao lado disso, seus argumentos ainda não manifestavam os marcadores de profissionalização posteriormente impostos pelo campo, lançando mão de maneira proveitosa de narrativas históricas, sociológicas, econômicas, dentre outras. Conforme mencionado anteriormente, o entendimento da curta história da ciência política no Brasil cobra, com efeito, sua inscrição numa história mais ampla, no rastreamento da influência decisiva das transformações ocorridas no contexto norte-americano entre nós. Lessa, embasado por bibliografia competente, mostra como na América a autonomia acadêmica e o profissionalismo disciplinar vincaram tendências fortes no modo de fazer ciência,

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promovendo, por certo, transformações também no estudo sobre a política. Mais do que isso, essa transformação implicou, como dado negativo, o descolamento entre o conhecimento científico e os problemas públicos.

Com a virada, ocorrida ao fim dos anos 1940 e durante a década seguinte, marcadores internalistas passam a ter primazia como aferidores de excelência, em detrimento de outros, de natureza externalista, mais atentos ao vínculo da academia com o espaço cívico e público. Difunde-se um padrão de excelência definido em termos cada vez mais endógenos (LESSA, 2011, p. 38).

Assim, ao sustentar a (1) devoção ao modelo das hard sciences, (2) o compromisso com a objetividade científica, (3) a confiança no poder da análise formal, e (4) a aversão à ideologia e a ameaças à “pureza disciplinar”, esse novo modo de fazer ciência adquiriu uma confessada perspectiva internalista, ocupada antes com o desenvolvimento disciplinar e o treinamento dos iniciados. Algo manifesto, por exemplo, nas declarações de Talcott Parsons sobre a importância precípua do desenvolvimento da disciplina para, apenas posteriormente, dedicar-se à comunicação dos seus resultados ao grande público (LESSA, 2011). A descrição até aqui referiu-se ao modo como o conhecimento científico em geral sofria uma transformação substantiva na virada dos anos 1940. Esta, entretanto, imprimiu marcas indeléveis também no estudo da política, conforme discutimos até aqui. Lessa resume esse processo por meio da definição do que teria sido a conhecida “revolução comportamentalista”.

Um tanto triunfalista, a expressão “revolução behaviorista” designa uma reorientação ocorrida no campo do conhecimento político, a partir dos anos 1950. A virada pretendia afirmar tal conhecimento como uma “ciência”, com protocolos distintos dos praticados pela filosofia política, percebida como contaminada por fortes componentes historicistas e normativos. A reorientação proposta pretendia, ainda, executar uma virada empírica e positiva no campo do conhecimento da vida pública, voltada para a explicação de como os fenômenos políticos ocorrem no assim chamado mundo real. Uma ciência da política, assim revolucionada, deveria sustentar-se em bases exclusivamente realistas e experimentais e dispensar referências de ordem normativa (LESSA, 2011, p. 40).

Tratava-se, conforme Lessa problematiza, da construção de um saber sobre a política descontaminado das disputas ideológicas e apegado aos procedimentos de descrição rigorosa. O fato, porém, é que mesmo essa proposta nasceu contaminada por indisfarçáveis pressupostos normativos, não sobrevivendo, ainda, aos debates que ocuparam a agenda pública a partir dos anos 1970. Assim, no caso da ciência política norte-americana aqui discutida, a defesa da democracia esteve presente em toda sua história, e os debates desencadeados pela Guerra do Vietnã, a luta por direitos civis, dentre outros, minaram as pretensões “positivas” presentes no

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projeto do comportamentalismo em ciência política. O ponto alto do argumento de Lessa é, porém, mostrar como a ciência política brasileira nasceu influenciada pelo projeto comportamentalista e, concomitantemente, recebeu o influxo do seu rebatimento. Tal como a datação imposta por Lamounier sugere, o processo de autonomização e profissionalização do campo disciplinar entre nós se deu precisamente no momento onde o pressuposto que alimentava a reflexão intelectual nos EUA, a saber, a defesa da democracia, encontrava-se ausente no contexto nacional. Assim, a descrição da democracia entre nós assumiu, de saída, uma descrição da “não-democracia” e dos caminhos para a democratização, conforme argumenta Lessa. Ao vislumbrar o “autoritarismo” e as formas de sua superação, a ciência política brasileira trouxe um indisfarçável elemento normativo misturado às pretensões objetivas presentes da ciência positiva da política. O competente inventário realizado por Lessa traduz, dessa forma, um confessado posicionamento sobre o “modo de fazer” ciência política adequado. Afeito à reflexão filosófica, o autor evidencia de maneira sugestiva o inescapável elemento prescritivo no estudo sobre a política. Tal leitura é, com efeito, cara ao argumento desta tese. Em consonância com a defesa de Lessa, sustento o necessário diálogo entre a ciência política e as demais disciplinas, além de assumir, ciente da crítica em que posso incorrer, a prescrição como meta. Ao lado da renúncia do potencial normativo identificado especialmente depois da revolução behaviorista, a ciência política entre nós vem perdendo, ainda, seu próprio apreço pela produção teórica quando aceita as armadilhas decorrentes da ausência de diálogo com a história e a filosofia, e sucumbe, em decorrência disso, ao engano de que a “teoria é para os outros”. Com efeito, na mesma direção apontada por Lessa, Gildo Brandão recupera a necessidade de construirmos ativamente teoria política a partir do sul da América, recusando o “analfabetismo ilustrado que reifica tabelas e números”, quando afirma:

É claro que sempre há aqueles para quem “a teoria é para os outros” e que nos aconselham sempre se limitar à pesquisa empírica, que já nos dá trabalho suficiente e, bem feita, nos assegura cidadania acadêmica internacional. Atitude que se casa com um ponto de vista generalizado no e do próprio centro, para o qual “nós fazemos teoria, você devem falar dos seus países”. [...] Nesse sentido, se não quisermos nos condenar a comparecer ao mercado internacional de idéias apenas como produtores de matéria-prima tropical para consumo e industrialização pelos intelectuais dos países centrais, a produção de teoria de primeira qualidade e a realização de leituras inovadoras dos grandes pensadores políticos, parecem ser um desafio institucional inelutável (BRANDÃO, 2007, p. 188).

O argumento de Brandão sustenta o necessário diálogo com nossa tradição de pensamento político na busca de linhagens e matrizes próprias. Porém, mais do que matéria-

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prima para a reflexão teórica “dos outros”, nossa tradição de pensamento fornece elementos inovadores para pensarmos mesmo o andamento das ciências sociais como um todo. Esta é, precisamente, a premissa desta tese, que busca uma tradição republicana de pensamento como ponto de inflexão do pensamento político ocidental. Entre nós, Wanderley Guilherme dos Santos foi, como justa lembrança, quem primeiro enfrentou este debate. Desde a publicação de “A imaginação político-social brasileira” (1967), “Raízes da imaginação política brasileira” (1970), e do ensaio “Paradigma e história: a ordem burguesa na imaginação social brasileira” (1978), onde une a reflexão inicial contida nos primeiros trabalhos, apresentando uma tese sobre o pensamento político e social brasileiro, o autor abriu um campo de estudos que seria fartamente explorado nas décadas seguintes. Segundo Santos, a absorção e difusão interna dos avanços metodológicos e substantivos gerados pelos centros culturais, e os estímulos produzidos pelo desenrolar da história econômica, social e política, constituem processos decisivos do desenvolvimento das ciências sociais, não só no Brasil. O autor destaca, porém, nossa peculiaridade a partir da complexidade dos processos sociais através dos quais fomos adquirindo nossa individualidade nacional, ao mesmo tempo em que nos integramos à história universal. Santos situa, assim, a história do Brasil mostrando como sua inserção no mundo dependia do estágio de civilização em que se encontrava a própria metrópole. Portugal foi, de acordo com o autor, uma das primeiras comunidades humanas a se organizar como nação, no sentido moderno, encerrando a era feudal antes da grande transformação capitalista burguesa. Entretanto, Portugal não chegará a completar as transformações em curso, passando pela obscurantista e restauradora Contra Reforma. O retorno à Escolástica, contrário às ciências, o abandono do humanismo renascentista, aliam-se a uma forma de exploração mercantil dependente da nobreza fundiária e caudatária da monarquia. Santos mostra como será sob esta influência obscurantista que Portugal colonizará o Brasil. Após 1822, contudo, inicia-se uma nova fase na história do país, que irá redefinir sua relação com o próprio passado e com o presente. A evolução no pensamento político e social estaria associada, porém, ao desenvolvimento organizacional da atividade científica. Santos mostra como durante o século XIX, as Escolas de Medicina e Direito eram o reduto do pensamento filosófico. A inexistência de instituições especializadas, fazia das escolas de Direito o reduto dos estudos econômicos e políticos. Malgrado essa trajetória institucional, o autor sustenta que desenvolveu-se, durante todo esse tempo, uma intensa crítica social e política em jornais e publicações. “Quando se analisa a evolução das ciências sociais no Brasil é ao

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conteúdo da produção intelectual ao longo desses cento e cinqüenta anos que se está considerando” (SANTOS, 2002, p. 25). Silvio Romero, conforme cita Santos, já reservava espaço para os estudos sociais em sua obra, exemplificando a preocupação de compreender nosso passado reflexivo. Contudo,

É curioso [...] observar como é escasso o número de investigações relativamente recentes sobre o desenrolar do pensamento político e social brasileiro. Talvez seja este um dos aspectos que permitem entender o fato de que a maioria das hipóteses formuladas, a partir da segunda metade da década de 50 sobre os processos sociais brasileiros mais importantes, incluindo as que foram produzidas nesta primeira metade dos 70, não faz senão repetir, embora de maneira mais sofisticada, as especulações dos 20 e dos 30 (SANTOS, 2002, p. 25-26).

A descontinuidade do pensamento político-social brasileiro pode ser atribuída, de acordo com o autor, ao interlúdio autoritário de 1937-1945. A geração de intelectuais que começa a produzir sob o Estado Novo ignora em larga medida a história crítica do passado em decorrência da fixação de padrões universais de trabalho científico. Em vista disso, Santos defende ser compreensível que a lista de estudos sobre o tema seja curta e de sofisticação duvidosa. Esta é, aliás, uma das grandes contribuições do autor à época: realizar um extenso levantamento bibliográfico sobre a produção do pensamento político e social brasileiro. As fontes mencionadas por Santo adotam critérios distintos de seleção para a composição da história do pensamento social brasileiro. É possível agrupar tais análises, conforme sua classificação, em três modalidades principais. (1) “Por matriz institucional entende-se a organização, classificação e avaliação da evolução do pensamento social brasileiro, segundo marcos organizacionais e institucionais” (SANTOS, 2002, p. 29). Fazem parte do grupo, segundo o autor, nomes como Costa Pinto, Florestan Fernandes, Fernando de Azevedo, dentre outros. Costa Pinto e Edson Carneiro formulam leitura exemplar da matriz em texto sobre as ciências sociais no Brasil. Nesse sentido,

Entende-se assim que 1930 seja tomado como ponto inicial de periodização e que esta contemple apenas marcos legais institucionais. Tratava-se, a rigor, de conhecer o estágio organizacional e institucional da profissão de cientista social, e por isso a ênfase é estritamente legal. O resultado contudo é que o texto não oferece, talvez não tenha sido nem mesmo sua intenção latente, uma história das Ciências Sociais no Brasil, mas antes uma cronologia das etapas de institucionalização educacional da atividade dos cientistas sociais brasileiros (SANTOS, 2002, p. 29-30).

A perspectiva de Djacir Mencezes e Florestan Fernandes é, conforme argumenta Santo, ainda mais grave: os autores associam a periodização institucional a uma periodização epistemológica ou teórica: “É basicamente à institucionalização das atividades científico-

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sociais que se atribui o caráter de divisor de águas entre o período pré-científico e o período científico da produção intelectual brasileira. Embora rudimentar, tal periodização tornou-se de certo modo clássica” (SANTOS, 2002, p. 30). As consequências desse esquema são evidentes: até o segundo quartel do século XX produziram-se ensaios sobre temas sociais, a partir de então produziu-se ciência. Independente da qualidade do que se fez ante, seu exame é irrelevante para o progresso da ciência. “O interesse histórico se resumiria a catalogar a produção do primeiro período (pré-científico) pela temática e a explicar de que modo as variações na estrutura da sociedade introduziram modificações na temática pré-científica” (SANTOS, 2002, p. 31). (2) A segunda matriz, exemplificada pelos textos de Florestan Fernandes de 1956 e 57, Edgar Carone, Nelson Werneck Sodré e Helgio Trindade, é nomeada “sociológica”:

Por matriz “sociológica” entende-se a análise que se desenvolve tomando como parâmetro características da estrutura econômico-social quer, como no caso de Florestan Fernandes agora mesmo citado, para explicar variações ocorridas sobretudo no conteúdo das preocupações dos investigadores sociais, como decorrência de modificações processadas na estrutura socioeconômica, quer, em casos extremos, para deduzir os atributos ou dimensões do pensamento social dos atributos e dimensões do processo social (SANTOS, 20002, p. 31).

Santos mostra como na análise de Florestan, a evolução das ciências sociais se daria na conjunção de dois fatores: a desagregação da sociedade patrimonial escravista, e concomitante aparecimento da sociedade de classes, e absorção da parafernália metodológica e teórica própria do trabalho científico moderno. Segundo essa leitura, os autores analisados podem ter cometidos erros de prognóstico, mas nunca de diagnóstico. Isso porque, a matriz toma por premissa o que deveria explicar, descrevendo processos sociais de racionalidade cristalina. Os trabalhos de Carone e Trindade apresentam incompreensões de sentido e indistinções conceituais. Florestan foi quem seguramente produziu as análises mais férteis. (3) Já os estudos de Guerreiro Ramos, quem melhor compreendeu a virtude de nossa tradição, segundo Santos, mas que ainda apresenta problemas, inserem-se nesta matriz “ideológica”.

Finalmente, por matriz “ideológica” entendeu-se a preocupação de analisar os textos brasileiros de reflexão social com o objetivo explícito de buscar sua caracterização conceitual própria, independentemente dos azares de conjunturais da empiria. Não se trata de afirmar que a empiria histórica é irrelevante para a formação do pensamento social, nem que esse mesmo pensamento não se refira em algum momento ao transcurso histórico. Apenas se reivindica a diferenciação e análise conceitual como procedimentos legítimos e necessário na apropriação adequada dos determinantes estritamente conceituais do presente (SANTOS, 2002, p. 36).

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Ramos sempre optou por organizar o pensamento político e social brasileiro conforme o método empregado – indutivo ou dedutivo –, produzindo categorias de análise. Ainda que seja discutível o resultado alcançado por seus estudos, de acordo com Santos sua visão é substantivamente mais elaborada e manifesta a virtude de libertar a análise do ordenamento cronológico. “O acidente de ter nascido alguém no século XIX não o condenaria, ipso facto, a ser um fracassado postulante ao ingresso na comunidade científica” (SANTOS, 2002, p. 37, grifo do autor). A proposta aqui não foi, por certo, esgotar o argumento de Santos, mas sim mostrar seu esforço, ainda nos anos 1960 e 1970, de proposição de um “modo de fazer” distinto para a ciência política. Ao sintetizar este ponto, o autor nos diz:

A ordenação do pensamento político e social brasileiro pode ser realizada, como se mostrou, segundo diversos ângulos, em obediência aos interesses de investigação do historiador. Maior ou menor perícia será responsável pelo grau de persuasão que as “histórias” irão possuir. Importante é reter que não existe uma única história das idéias políticas e sociais no Brasil, nem das disciplinas sociais, quando já institucionalizadas, que permita descartar as demais como falsas. Isto, entretanto, não quer dizer que não seja possível, ou útil, traçar-se essas diversas histórias. Tudo depende da utilidade do objetivo que se tem em vista. Se se está interessado em um refinamento metodológico das reflexões sobre processos sociais, então é útil; se se está buscando identificar o sentido histórico das pregações sociais, a despeito da retórica manifesta que exibem, então também é útil. Se entretanto apenas se procuram justificativas científicas únicas para as opções que se fazem hoje, sejam opções metodológicas, teóricas ou políticas, então é inútil. Quase sempre é possível provar o oposto (SANTOS, 2002, p. 65).

O autor abre, dessa forma, caminho para o desenvolvimento de um importante campo de estudos. Em meio ao próprio processo de institucionalização, onde ele, conforme a datação oficial, será um dos protagonistas na autonomização do campo da ciência política entre nós (FORJAZ, 1997), Wanderley Guilherme dos Santos se empenha em apresentar distintos “modos de fazer”, extraídos da nossa tradição de pensamento. Nesse movimento, Santos implode a datação oficial centrada na cronologia, recuperando virtuosamente a tradição. Nesse sentido, o objetivo agora é recuperar elementos de uma suposta tradição republicana de pensamento, a partir da discussão de alguns conceitos-chave como afinidades eletivas e escolhas pragmáticas não evidentes nas classificações correntes (BRANDÃO, 2007; WERNECK VIANNA, 2004). Em especial, o modo com Newton Bignotto vem discutindo o que ele classifica como “novo republicanismo”, a partir da recuperação da tradição do humanismo cívico, constitui importante norte teórico e metodológico desta tese ao propor uma arguta interpelação do presente segundo elementos extraídos da tradição republicana (BIGNOTTO, 2000b; 2004). O ponto, seguramente não consensual entre os estudos

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desenvolvidos no campo, será melhor trabalhado no capítulo seguinte. Por ora, apenas enuncio o que constitui o “modo de fazer” aqui defendido.

1.5 Teoria e história: república e analogia de condições

Cicero Araujo produziu, recentemente, um competente estudo sobre a “república” como forma política, tomando como balizas fundamentais as noções de constituição mista e Estado, ambas associadas, conforme defende o autor, à longa busca da inteligência política por um padrão de convívio humano. Araujo enfatiza como a palavra “república” goza de grande prestígio no vocabulário político, o que em parte justifica os crescentes estudos sobre o seu significado e as disputas deles decorrentes, admitindo a grande polifonia abrigada no termo. Ante esse debate, o autor afirma não pretender apresentar uma réplica na discussão em curso, manifestando, contrariamente, um entendimento particular da “república”, “não como um objeto empírico perfeitamente decantado, mas como um conjunto de práticas no qual seres humanos investidos de um determinado papel, o de ‘cidadão’, orientam suas ações para promover certos valores comunitários, entre os quais a liberdade, a igualdade, o império da lei e a própria participação política” (ARAUJO, 2013, p. XI). Tal discussão não se limita, contudo, aos aspectos formais, envolvendo, de acordo com o autor, valores substantivos que dão sentido às práticas de um regime político. Isso porque,

No fundo, toda prática constitui uma tensão entre o que é, o que deve ser e o que é possível. Como a tensão ocorre numa certa estrutura de tempo e espaço, seu significado concreto varia de acordo com a concepção dessa estrutura implícita na respectiva forma política [...]. De qualquer modo, segurar essa tensão, nunca deixando que ela relaxe e finalmente se reduza à mera acomodação ao que aí estiver, é o que empresta dignidade à forma política. E a república é o nome que se dá a essa dignidade (ARAUJO, 2013, p. XII).

Araujo afirma, todavia, que a discussão sobre a república não deve ser realizada em abstrato, tratando, assim, a forma política no interior da tradição do pensamento político. Ainda que a tradição por ele perseguida afasta-se dos objetivos aqui elencados, seu entendimento do modo como o estudo deve se dar constitui importante referência nesta tese. Nas palavras do autor,

Não se pretende, contudo, uma correlação unívoca, causal ou de qualquer outro tipo,

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entre a construção intelectual da forma política e a forma da vida social. A primeira é o foco da análise, enquanto a segunda, embora preciosa no esclarecimento hermenêutico, é tomada como um elemento adicional de contexto. E é um pressuposto deste livro que uma certa elaboração teórica possa transcender o contexto em que se originou, e mesmo sobreviver intelectualmente a seu eventual fracasso em se viabilizar nele, para reaparecer em contextos muito distintos. Mais do que isso: dependendo de como se enriqueça em sua recepção e ressignificação, ela pode até ganhar maior potência prática do que antes (p. XIII).

Araujo centra-se no conceito de “constituição mista” e no modo como este é reposto ao longo da tradição do pensamento político ocidental, a partir do experimento grego. Assim, na tentativa de sintetizar a teoria da constituição mista ao longo da tradição, seu objetivo é mostrar como a teoria do Estado soberano pode ser pensada como parte de uma concepção de república. O trabalho de Araujo manifesta o necessário posicionamento da reflexão contemporânea frente ao estudo da tradição de pensamento, transparecendo distintas abordagens metodológicas possíveis no tratamento dos autores e obras do passado. Para os propósitos do argumento aqui em curso, é cara sua defesa da sobrevivência de elaborações teóricas aos contextos históricos, postura, por certo, alvo de questionamentos metodológicos no campo de estudos sobre a política, conforme discutimos anteriormente. Todavia, a existência de polêmicas acerca da abordagem metodológica do pensamento social no Brasil tem, igualmente, ocupado os pesquisadores da área, cientes da necessidade de maior rigor nas releituras, expondo limites e, por vezes, estratégias que escapam à disjunção entre as abordagens41. Nessa direção, diferentemente do que vem sendo chamada perspectiva “contextualista” – ocupada com a intencionalidade dos autores na reconstituição do contexto original em que as obras foram escritas, conforme a metodologia skinneriana discutida no próximo capítulo –, mas sem negar sua validade e importância na retomada do pensamento republicano no séc. XX nos trabalho de Skinner e Pocock, aqui adoto o que Bignotto propõe como uma perspectiva “analítica”, centrando-se na possibilidade de encontrarmos argumentos similares ao longo da história proveitosos, inclusive, na leitura do presente. Postura que se aproxima, em grande parte, da abordagem sugerida por autores dedicados ao inventário da nossa tradição reflexiva aqui adotada (BOTELHO, 2009). O que se afirma é que a despeito da inexistência de igualdade de condições históricas –

41 Em recente simpósio sobre o pensamento social no Brasil, realizado por Lilia Moritz Schwarcz e André Botelho, diferentes pesquisadores da área mostraram-se cônscios dos desafios e carências metodológicas enfrentados pelo campo, fundamentalmente a partir de questionamentos advindos do contextualismo linguístico desenvolvido por Quentin Skinner. Entretanto, vários deles, como Elide Rugai Bastos, Gláucia Villas Boas, Luiz Werneck Vianna, Ricardo Benzaquen de Araújo, Rubem Barboza Filho e Sergio Miceli, apenas para mencionar alguns exemplos, defenderam a adoção de uma postura que leve em consideração a tensão entre as distintas abordagens sem, contudo, privilegiar “doutrinariamente” uma delas (Schwarcz; Botelho, 2011).

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preocupação dos contextualistas –, podemos identificar analogia de condições teóricas, mesmo num corte diacrônico, sem, contudo, desfocar a necessidade de abordagens contextuais no andamento metodológico dos estudos. Ou seja,

Se o fim é “analítico”, no sentido de uma reivindicação da comunicação entre interesses teóricos contemporâneos e pesquisas sobre o significado de textos mais antigos, os meios para atingi-lo passam, necessariamente, por alguma contextualização ou avaliação dos textos em termos históricos. O significado teórico de qualquer texto não poderá ser identificado de modo consistente sem que seja minimamente contextualizado ao menos em relação a determinadas tradições intelectuais que tornaram possíveis a formulação de determinadas idéias em determinados momentos da vida social e não noutros (BOTELHO, 2009, p. 150).

Em consonância com essa perspectiva, Bignotto nos mostra como o humanismo cívico foi capaz de reinterpretar os textos clássicos, recuperando os temas da vida ativa na cidade, do bem comum, da valorização da retórica no mundo público, da construção de valores cívicos e da liberdade como definidores da ideia de república. Com isso, ainda que o republicanismo encontre diferentes “inimigos” nos distintos contextos históricos, tais categorias permanecem quase intocadas na defesa, sobretudo, da liberdade e do interesse comum. Ponto, aliás, comum ao modo como Brandão (2007) e Werneck Vianna (2004), apenas para citar dois exemplos clássicos no mapeamento da nossa tradição reflexiva, conduzem suas pesquisas. A ideia de república seria, conforme Bignotto defende, pensada para além dos limites históricos de suas abordagens, no momento em que o humanismo cívico reinterpreta os textos clássicos elegendo novos “inimigos”. Constatação que permite com que interpelemos, a partir do republicanismo, contextos contemporâneos sem, contudo, incorremos em usos instrumentais da história. Segundo o autor,

Vale lembrar ainda que, na tradição que nos interessa, a república é sempre pensada à luz de suas oposições, ou de seus outros. [...] A oposição entre república e tirania não pode ser vista como operador absoluto do republicanismo. Em outros momentos históricos, a república foi oposta à monarquia absoluta, ao império, ao mesmo à anarquia. O que importa é que buscou-se sempre associar a prática da liberdade a uma configuração política concreta, oposta a outras organizações, que não podem abrigar essa prática. Nos tempos atuais, podemos imaginar que a república pode ser pensada como oposta a todas as formas de autoritarismo e mesmo aos regimes totalitários derivados da mobilização das massas (BIGNOTTO, 2000b, p. 57).

Abre-se, dessa forma, a possibilidade de construirmos um conceito de república a partir de “inimigos” concretos. No presente argumento, tal operação é realizada em dois sentidos interligados: (1) por um lado, recupero “inimigos” teóricos na tradição do pensamento político ocidental; (2) por outro, situo o debate a partir de exemplos extraídos da nossa tradição de

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pensamento. Trata-se, sobretudo, da defesa de que devemos ler a história ouvindo o “barulho da rua”, assim como sugeriu Italo Calvino acerca do retorno aos clássicos discutido neste capítulo. Além do aberto compromisso normativo, o argumento desta tese assume, assim, inimigos concretos no debate político presente, conforme apontarei nos próximos capítulo. Antes, contudo, reforço mais um elemento do “modo de fazer” aqui defendido: o compromisso público.

1.6 Teoria política e problemas públicos

O diagnóstico sobre a constituição e o desenvolvimento da ciência política no Brasil formulado por Renato Lessa (2011), aponta os problemas decorrentes do abandono, por parte dos praticantes da disciplina, do diálogo com os problemas presentes na agenda pública. Este teria ocorrido em decorrência das pretensões objetivas de uma ciência positiva da política, desenvolvida no contexto norte-americano a partir da conhecida “revolução behaviorista”, e que logrou grande influência na constituição do campo disciplinar entre nós. A defesa da autonomização e da profissionalização presentes no processo ocasionou, conforme o argumento aqui adotado, efeitos deletérios para o andamento dos estudos sobre a política. O mais grave deles foi, por certo, a adoção de “marcadores internalistas” para auferir excelência, com prejuízo claro para o enfrentamento dos problemas públicos42. O diagnóstico histórico do autor traz, por sua vez, elementos importantes para redirecionarmos o modo de fazer teoria política hoje43. Michael Sandel, no seu já clássico curso sobre justiça há pouco mobilizado na discussão sobre os direitos e os deveres do cidadão, nos apresenta uma série de dilemas morais extraídos

42 Por certo este não é um desafio exclusivo da ciência política, nem ao menos das ciências sociais. Mais ainda, o apartamento entre as discussões científicas e os problemas públicos tem ocupado o debate sobre a prática científica em outros contextos nacionais. Nessa direção, a polêmica acerca da “sociologia pública” desencadeada por Micheal Burawoy é referência inescapável para o debate (BRAGA; BURAWOY, 2009). No caso brasileiro em particular, o recente trabalho de Fernando Perlatto traz um minucioso levantamento das pesquisas sociológicas aqui desenvolvidas desde a primeira metade do século XX, problematizando a relação entre a reflexão intelectual e os problemas públicos (PERLATTO, 2013).

43 A título de nota, é curioso o fato de que a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), responsável pela avaliação dos programas de pós-graduação no país, desconsidere como índice de produtividade as atividades de extensão realizadas no interior das universidades. A prática extensionista pode constituir um canal direto e imediato de diálogo com a sociedade, divulgação científica e intervenção social. No entanto, atados aos padrões de exigência impostos pela CAPES, professores e pesquisadores precisam sacrificar esforços de trabalho que não sejam “quantificados” de acordo com marcadores internalistas de produtividade.

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de exemplos cotidianos, e o modo como a filosofia política pode contribuir na sua reflexão (SANDEL, 2012). O fato, enunciado pelo autor, é que a vida nas sociedades democráticas é repleta de divergências entre o certo e o errado, entre o justo e o injusto. Divergências que envolvem o direito ao aborto, taxações para distribuição de renda, cotas para admissão no ensino superior, tortura de criminosos para a extração de confissões, dentre outros exemplos contemporâneos. O modo como o autor descreve a reflexão moral por ele conduzida é particularmente interessante para os propósitos desta tese. Isso porque, Sandel nos mostra como a exposição aos dilemas morais cria uma tensão entre as opiniões que portamos e decisões que precisam ser tomadas. E expostos a tal tensão, podemos encontrar nos princípios presentes na longa tradição da filosofia política instrumentos para ampliar e qualificar nossa reflexão. Este retorno aos “clássicos” já foi aqui amplamente defendido. Agora, contudo, chamo a atenção para o modo como Sandel conecta a filosofia política ao cotidiano em busca de instrumentos para a correção da vida prática. Conforme sua defesa, a reflexão moral cobra a presença de um interlocutor – real ou imaginário –, precisamente porque se constitui numa busca coletiva e não individual. Nessa direção, o autor cita o mito da caverna por meio do qual Platão constrói não apenas seu projeto político, mas a própria ideia de razão ocidental, tal como discutimos acima (CHAUI, 2002). No conhecido diálogo platônico, Sócrates compara os cidadãos comuns a um grupo de prisioneiros confinados no interior de uma caverna, restritos ao mundo das sombras projetadas na parede. Na metáfora, apenas o filósofo seria capaz de libertar-se das sombras e enxergar a verdade iluminada pela luz do sol no lado de fora da caverna. Este, por conseguinte, seria o indivíduo capacitado para o exercício do governo, precisamente porque capaz de captar o verdadeiro sentido de justiça e vida boa, posicionando- se acima dos preconceitos e opiniões cambiantes. Segundo Sandel, porém, Platão estaria apenas parcialmente correto. Isso porque,

Os clamores dos que ficaram na caverna devem ser levados em consideração. Se a reflexão moral é dialética – se avança e recua entre os julgamentos que fazemos em situações concretas e os princípios que guiam esses julgamentos – necessita de opiniões e convicções, ainda que parciais e não instruídas, como pontos de partida. A filosofia que não tem contato com as sombras na parede só poderá produzir uma utopia estéril. Quando a reflexão moral se torna política, quando pergunta que leis devem governar nossa vida coletiva, precisa ter alguma ligação com o tumulto da cidade, com as questões e os incidentes que perturbam a mente pública (SANDEL, 2012, p. 38-39, grifo meu).

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A conexão entre a filosofia política e os problemas cotidianos é, assim, pensada como uma forma de tornar o debate público proveitoso. No seu enfrentamento, Sandel convoca a companhia dos autores do passado, mas não com o objetivo de organizar um compêndio de história das ideias políticas, recuperando aqueles que teriam influenciado a formação do pensamento político. A proposta, cara aos objetivos desta tese, é, contrariamente, permitir um exame crítico do mundo contemporâneo com vistas ao incremento da compreensão sobre o que somos, queremos ou devemos ser, descompromissado com o rigor historiográfico e com clara pretensões normativas. A conferência de Ernest Barker há pouco mencionada manifesta semelhante compreensão do papel da filosofia política, inclusive com relação ao lugar da história na produção teórica. Já em 1928, o helenista Barker, responsável por uma competente sistematização da teoria política grega (BARKER, 1978), defendia a necessária ligação entre a filosofia e os problemas concretos. Segundo ele, “Nenhuma filosofia de vida humana pode viver somente de livros; e a filosofia política, não menos que outras, deve estudar o tumultuado ruído do cotidiano da caverna, antes de transportar-se à luz da contemplação” (BARKER, 1980, p. 23). Conforme vimos, isso não implica formular propostas normativas necessariamente plasmadas pela história. O contratualismo, notadamente em chave hobbesiana, é um bom exemplo disso (JASMIN, 1998). Novamente, sobre a relação entre ciência política, filosofia e história, a defesa de José Eisenberg do fazer normativo e do enfrentamento dilemas da modernidade no plano da política é fecunda para exemplificarmos o argumento aqui avançado. Segundo Eisenberg, os departamentos de ciência política em nosso país tradicionalmente abrigam um universo dividido entre dois campos de investigação que não estabelecem interlocução entre eles. “Chama de ciência política o estudo empírico da política tal qual ela se apresenta nos múltiplos contextos contemporâneos. Chama de história do pensamento político a investigação dos autores do passado que interpretaram a política tal qual ela se apresentava nos contextos em que eles viveram” (EISENBERG, 2003, p. 15, grifo do autor). Como prova dos efeitos deletérios da especialização e autonomização há pouco aludidos, nos departamentos de filosofia poucos são os que se engajam no debate enfadonho sobre o que seja estudar a política filosoficamente, e nos departamentos de história aqueles que estudam história dos eventos políticos convivem pacificamente com aqueles ocupados da história das ideias políticas. É nos departamentos de ciência política, contudo, que encontramos investigadores da teoria política, curiosamente espremidos entre cientistas políticos e historiadores do pensamento político. Em tom irônico, Eisenberg afirma que:

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Para estes estranhos habitantes, pensar a política freqüentemente se confunde com fazê-la, e fazer teoria política não é nem explicar o pensamento do passado, nem explicar a política do presente, mas sim produzir argumentos moralmente válidos que sejam capazes de persuadir uma determinada audiência. Se as perspectivas da ciência e da história requerem argumentos capazes de produzir um consenso intersubjetivo sobre o mundo objetivo (dos fatos ou idéias), a perspectiva da teoria política produz sua legitimidade no interior do próprio discurso, em um consenso intersubjetivo sobre a racionalidade e a validade moral dos argumentos formulados (EISENBERG, 2003, p. 16, grifo do autor).

Eisenberg resgata a etimologia da palavra teoria para a compreensão do problema. Segundo o autor, originalmente, theôri designava os embaixadores enviados aos oráculos ou para os jogos. Com o tempo, passou a significar os espectadores em geral. A theôria, em todos os seus significados, distingue-se, lembra o autor, da palavra scientia precisamente no seu elemento de ação. Logo, a teoria pressupõe a ação de quem contempla. Dessa forma, ao passo em que a ciência política procura entender a trama que se desenrola para explicar os fatos da política, a teoria contempla e especula com olhar crítico. “O que diferencia estes dois empreendimentos é o caráter contemplativo (e explicativo) do primeiro e o caráter ativo (e normativo) do segundo” (EISENBERG, 2003, p. 17). Na tentativa de evidenciar tal distinção, Eisenberg mobiliza uma frase de Heródoto na descrição de um dos sentidos de theôria: “ir ao estrangeiro para ver o mundo”. Podemos, assim, dizer que a teoria política é um empreendimento que busca sair da polis, para criticá-la, sem sair do mundo. Logo, “Enquanto a ciência política ‘sai’ do mundo da política em busca de um olhar objetivo sobre ele, a teoria permanece neste mundo em busca de um olhar intersubjetivo, ao mesmo tempo interno e externo ao mundo observado” (EISENBERG, 2003, p. 17). A questão apontada pelo autor, em perspectiva história, é precisamente mostrar como essa postura declinou ao longo do século XX. Vários foram os fatores e interpretações para este processo, alguns deles discutidos ao longo deste capítulo. O diagnóstico, contudo, permanece:

Dividida entre uma história do pensamento político (voltada para a erudição do conhecimento do cânone que constitui a tradição milenar da política no Ocidente), uma ciência política behaviorista (inspirada no positivismo lógico e no empirismo experimental) e uma filosofia analítica (voltada para os problemas lógicos e neurológicos do microcomportamento humano), a reflexão teórica sobre a política, ao longo de boa parte do século vinte, erradicou a idéia weberiana de postulados racionais relativos a valores e, consequentemente, obstruiu a produção de uma interpretação ao mesmo tempo objetiva e normativa da política, preocupada simultaneamente em explicá-la e transformá-la (EISENBERG, 2003, p. 19-20).

A década de 1960, segundo Eisenberg, testemunhou o renascimento da teoria política. E o modo como cientista político Terence Ball descreve, a partir de um relato biográfico, a

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importância da teoria política resume, por certo, a perspectiva aqui defendida (BALL, 2004). Ao apontar os problemas da concepção de ciência nos moldes positivistas, Ball afirma que ele próprio pretendia tornar-se um cientista nesses termos. No entanto, os dilemas morais impostos pela guerra do Vietnã o impeliram a matricular-se num seminário de teoria política em busca de instrumentos para refletir as questões colocadas pela conjuntura: jovens pobres, negros e sem instrução eram enviados para morrer nos campos de batalha, ao passo em que estudantes brancos e das classes altas conseguiam liberação. O autor afirma que o seminário, motivado pela guerra, o fez optar pela teoria política como profissão. Assim, a teoria política prospera, conforme seu relato e interpretação, na medida em que lida com problemas políticos concretos. A discussão do autor sobre o futuro da teoria política é, aliás, chave para compreensão do argumento avançado neste capítulo (BALL, 2004). Isso porque, ciente de que as avaliações que fazemos do passado são sempre motivadas pelas preocupações do presente – o que justifica na perspectiva de Calvino e Alexander o retorno aos clássicos –, Ball se propõe a traçar alguns passos dados pela teoria política no passado para, em seguida, promover uma inflexão sobre o presente e delinear caminhos futuros. Sua leitura resume o que foi discutindo, apresentando ainda um alerta acerca dos cuidados a serem tomados. Na história narrada por Ball, foi David Easton que anunciou, em 1953, o fim da teoria política como ela existia até então: “Uma Teoria Política ‘normativa’, preocupada com a estrutura e o ordenamento apropriado do ‘Estado’, era afinal afastada. A abordagem dos ‘sistemas’ descartava o conceito de Estado e limitava, se não evitava in totto, quaisquer preocupações normativas” (BALL, 2004, p. 10). O sistema político seria, com efeito, reduzido e estudado em seus vários “subsistemas”, em suas demandas e respostas, numa linguagem claramente distante da teoria política. Easton não era o único crítico da teoria política normativa, ou “tradicional”. O debate por ele iniciado mobilizou outras vozes e alguns chegaram a decretar o “fim da ideologia” no Ocidente, apontando um consenso normativo acerca dos problemas centrais da sociedade democráticas na metade do século XX. Isso implicaria perspectivas cada vez mais pragmáticas, infensas aos debates substantivos introduzidos pela filosofia no estudo sobre a política. Na mesma direção, Peter Laslett apontou, conforme lembra Ball, a “morte” da filosofia política, que ainda foi anunciada por autores que discordavam em essência do processo, como Sheldon Wolin, por exemplo. Nem todos eram, contudo, pessimistas como Laslett. Isaiah Berlin e John Plamenatz consideravam, contrariamente, a impossibilidade de eliminarmos a teoria política enquanto existir seu genitor, a saber, a política, aproximando-se dos argumentos aqui apresentados a partir do contexto inglês.

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A partir daí, Ball coloca seu argumento em termos paradoxais: de fato, a teoria política estava à época, sob alguns aspectos, morta ou morrendo, e ainda assim não poderia jamais morrer. O paradoxo enunciado pelo autor pode começar a ser resolvido apontando uma distinção provisória entre teorizações de primeira e segunda ordens, distinção esta que será posteriormente abandonada por ele. Assim, teríamos: (1) “Teorizações de primeira ordem surgem em conexão com a atividade de prestar atenção ao ordenamento de uma sociedade. Na medida em que pessoas vivem juntas em comunidades, questões fundamentais inevitavelmente aparecerão” (BALL, 2004, p. 11). Nesse sentido, nenhuma sociedade pode sobreviver sem se fazer questões sobre justiça, equidade, obediência política, demarcações conceituais, dentre outras. As questões em que os teóricos políticos estão interessados são precisamente aquelas que qualquer comunidade civilizada deve formular e procurar responder. Aristóteles e Hobbes são exemplos disso, conforme lembrança do autor. Logo, independentemente da qualidade dos que responderam a tais questões, um fato permanece: a teorização política nesse sentido é importante, ou mesmo necessária; e teríamos, ainda (2):

Em contraste, muito do que passa por Teoria Política na academia deveria, de maneira geral, ser denominado de teorização de segunda ordem. Ela consiste largamente, embora de maneira alguma exclusivamente, na atividade de estudar, ensinar e comentar os “clássicos” do pensamento político. Se a teorização de primeira ordem é quase imortal, a teorização de segunda ordem é eminentemente mortal. Ela pode morrer ou desaparecer – ou, ao menos, ser desacreditada, descontada ou ignorada, como aconteceu em vários departamentos de Ciência Política durante o auge do comportamentalismo (BALL, 2004, p. 12).

Muitos dos praticantes da teorização de segunda ordem nos departamentos de Ciência Política norte-americanos não encontraram receptividade, transferindo-se para os departamentos de Filosofia ou História. Imagem, aliás, mobilizada há pouco por Eisenberg na discussão sobre o lugar de determinados dissídios. Ao propor essa distinção, Ball “resolve” o paradoxo por ele formulado: Laslett teria acertado ao apontar a morte da teorização de segunda ordem; ao mesmo tempo, Isaiah Berlin e Plamenatz estavam corretos ao chamar a atenção para a imortalidade ou necessidade da teorização de primeira ordem. Assim como algumas das leituras aqui mobilizadas, Ball também aponta a ausência de uma história adequada da “revolução comportamentalista”, enfatizando a necessidade de discutirmos a ascensão e a queda dos princípios filosóficos que a nortearam. Isso porque, por mais que os comportamentalistas contraponham a ciência à filosofia, sua defesa depende de uma filosofia em particular: o positivismo. Como uma filosofia da ciência, o positivismo forneceu, assim, os critérios para a demarcação entre ciência e não-ciência, exercendo uma

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função normativa na definição do que deveria ser o estudo científico da política:

Primeiramente, a Ciência Política deveria distinguir entre “fatos” e “valores”. Em segundo lugar, ela deveria ser “empírica” ao invés de “normativa”. E, por fim, ela deveria ser explicativa no sentido acima indicado. Toda explicação genuinamente científica, de acordo com os critérios positivistas de suficiência explicativa, depende da descoberta e do desenvolvimento de “leis” universais e eternas (BALL, 2004, p. 13).

Por certo, boa parte da teoria política “tradicional” não se conformava aos critérios positivistas e deveria, com efeito, ser rejeitada como não-científica, ou no máximo pré- científica, e destinada a ser superada. Ball nos mostra, entretanto, como a crítica ao positivismo não tardou. Isso porque, cedo ficou provada a impossibilidade de afirmações científicas completamente neutras com relação aos valores. Ainda pior: percebeu-se a inexistência de “leis” gerais do comportamento político a serem desvendadas. A queda do positivismo deixava, assim, definitivamente desamparado o comportamentalismo na ciência política. Soma-se a isso aquilo que Alasdair MacIntyre denominou “o fim do fim da ideologia”: a partir dos anos 60, novos movimentos políticos suscitaram questões na agenda pública que deveriam ser enfrentadas por meio da teorização de primeira ordem.

Qualquer explicação do ressurgimento da Teoria Política deveria também incluir uma consideração das conseqüências políticas de uma concepção particular da relação entre a Ciência Social e a prática política – não em abstrato, mas (para usar uma frase feita freqüentemente lançada contra os teóricos políticos acadêmicos) no “mundo real” (BALL, 2004, p. 14).

A esperança de se estabelecer uma ciência política positivista, nos moldes de , soçobrou. Lessa, aliás, mobiliza esteargumento para mostrar como a influência do comportamentalismo norte-americano chegou no Brasil portanto seus “antídotos”. Lá a teoria política prosperou na medida em que lidava com problemas políticos concretos, sem desconsiderar a importância da reflexão acadêmica neste processo. É o caso do livro “Uma teoria da justiça” (1971), de , marco do renascimento da teoria política no contexto dos EUA. Refeitos seus passos até o presente, Ball ensaia alguns apontamentos sobre o desenrolar da teoria política que podem, com efeito, ajudar a iluminar o que vem ocorrendo entre nós. Segundo o autor, o crescimento da teoria por ele testemunhado no contexto norte-americano após a década de 1970, pode ser um presságio do seu eminente declínio, assim como observado na trajetória da ciência política comportamentalista entre meados dos anos 1950 e início da década de 1970. Alguns sinais apontam esse risco: (1) o crescente isolamento da teoria política

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em relação ao seu tema, a saber, a política, compartilhado agora com a ciência política de corte positivista; (2) a crescente profissionalização da teoria política, já apontada aqui, quando da discussão sobre a história da disciplina nos EUA como um obstáculo no seu desenvolvimento; (3) o aumento da preocupação dos teóricos políticos com questões de métodos, abandonando a agenda pública; e (4) a propensão a engajar-se em disputas metodológicas, tendência resumida nas noções de profissionalização e especialização. Com efeito, Ball resume seu diagnóstico: “Em suma, estamos tornando-nos o tipo de criatura que outrora já criticamos” (BALL, 2004, p. 16). O isolamento da teoria política tem, conforme apontamos anteriormente, relação direta com a profissionalização do campo na academia norte-americana (LESSA, 2011). Ball toma como exemplo, todavia, o crescente espaço conquistado nos encontros acadêmicos e periódicos, dado da institucionalização crescente da área no interior da reflexão acadêmica, como sinal de alerta. Este processo, supostamente positivo, pode fazer com que a teoria política incorra nos mesmos erros que no passado criticou. Ball o faz por meio de outra interessante metáfora espacial.

Essa especialização não é por si só uma coisa ruim; ela tem suas vantagens, mas também, e não de maneira menos importante, suas desvantagens. A profissionalização é um pouco como se mudar para o subúrbio: diminui a chance de ser assaltado, mas também diminui a chance de encontrar novas pessoas, sendo mais provável de conversar com pessoas parecidas consigo mesmas. Logo, logo o subúrbio torna-se um pequeno mundo contido em si mesmo – seguro, a salvo, familiar, amigável e completamente previsível (BALL, 2004, p. 17).

O paralelo com o caso brasileiro é inevitável. Ao lado do duradouro grupo de trabalho sobre “Pensamento social brasileiro”, realizado nos encontros anuais da Associação Brasileira de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) e que recebe usualmente trabalhos de pesquisadores das três grandes áreas das ciências sociais – antropologia, ciência política e sociologia – dedicados ao debate sobre o pensamento nacional, a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) criou, no seu último encontro, uma nova área temática: “Pensamento político brasileiro”, ao lado da já tradicional “Teoria política”44. Por certo, a demanda crescente justificou a abertura de novas frentes de trabalho, inclusive com o objetivo pragmático de incorporar novos pesquisadores ao debate intelectual. No entanto, a metáfora do “subúrbio” mobilizada por Ball incomoda: estaríamos nós dialogando de maneira segura com

44 O IX Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política ocorreu em Brasília-DF, em agosto de 2014. Disponível em: Acesso em: 15 nov. 2014.

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pares e abrindo mão do diálogo externo, seja com as demais áreas do conhecimento, seja com os problemas presentes na agenda pública?45 No desenrolar do seu argumento, Ball lembra como num determinado momento Sheldon Wolin criticou os comportamentalistas precisamente em razão do seu “metodismo”. Isso porque, as disputas metodológicas em torno das técnicas de mensuração e quantificação da realidade ocupavam o proscênio dos debates no campo, assim como, entre nós, Lessa (2001) e Brandão (2007) descreveram a partir das expressões “tiraria do método” ou “metodolatria”. Conforme o argumento de Ball, contemporaneamente a mesma crítica pode ser dirigida aos teóricos políticos. Suas disputas metodológicas giram em torno dos métodos e técnicas de leitura e da interpretação textual: “contextualistas” históricos disputam com “textualistas” de vários matizes, ao passo em que pós-modernos transformam tudo em “texto” etc. Seu objetivo, porém, não é dizer aonde a teoria política não deveria ir, mas sim traçar três caminhos possíveis para a disciplina no século XX. Estes seriam: (1) em primeiro lugar, a teoria política pode e deve retomar o seu devido papel: “dedicar todas suas forças em rever, avaliar, criticar e possivelmente, em algumas ocasiões, apreciar os arranjos da sociedade em que vivemos” (BALL, 2004, p. 18). Neste processo, a fonte mais rica disponível é, com efeito, a própria tradição do pensamento político ocidental. Por mais polêmica que possa parecer essa afirmação, não há, segundo Ball, um ponto de Arquimedes fora do mundo que nos permita criticá-lo. Sendo assim, podemos trabalhar e aperfeiçoar o que temos à mão, e seria equivocado dispensar nossa tradição. Em alguma medida, este é o caminho adotado nesta tese; (2) em segundo lugar, devemos reconhecer a existência de uma série de crises com as quais a reflexão política ocidental não se preocupou, não as reconhecendo como dignas de tratamento teórico. Um exemplo marcante é a crise ambiental. Na qualidade de agentes morais, cidadãos e analistas da política, devemos atentar para isso. De alguma forma, a própria crítica ao pensamento moderno emerge eivada desta preocupação. No caso desta tese em particular, a defesa de um ideal normativo de república pode, por certo, deixar de fora atores usualmente negligenciados, como a questão ambiental, por exemplo46; (3) em terceiro, as questões da teoria política não devem ser monopólio dos teóricos políticos. Se as questões abordadas pela teoria política estão relacionadas às crises do nosso tempo, o diálogo entre os teóricos e os denominados cientistas políticos empíricos deve existir. Para tanto, é necessário superar velhos obstáculos, muitos deles

45 O exemplo da extensão universitária há pouco aludido (nota no. 29), ilustra, novamente, este ponto.

46 Agradeço ao Prof. Raul Francisco Magalhães (UFJF) o alerta para este ponto. Ainda que a discussão mereça tratamento adequado em momento oportuno, registro a preocupação com uma noção mais abrangente de modernidade.

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legados pelo velho comportamentalismo. Segundo o autor,

A divisão do trabalho curricular convencional designa aos teóricos a tarefa de traçar a avaliar idéias, ideais e crenças, deixando para os investigadores empíricos a tarefa de descrever e explicar o efetivo comportamento dos agentes políticos. Essa divisão do trabalho sugere que há dois domínios bem separados, um do pensamento ou ‘teoria’ e outro da ação ou ‘comportamento’, cada qual podendo ser bem caracterizado sem referência ao outro. Mas essa divisão é notadamente falsa. O agente que tem certas crenças não é separável do agente que atua (BALL, 2004, p. 19).

Conforme nos alertou Alasdair MacIntyre, não há dois passados separados, um da ação política e moral e outro da teorização política e moral. A separação entre ambos é reponsabilidade dos hábitos mentais gerados pelos modernos currículos acadêmicos. “Dessa forma, as ‘idéias’ ou ‘crenças’ estudados pelos teóricos e o ‘comportamento’ estudado pelo cientista político não são duas coisas, mas uma única” (BALL, 2004, p. 19). Esta é, com efeito, a preocupação geral desta seção. Talvez a imagem da caverna no mito de Platão melhor ilustra o ponto. Por fim, a distinção entre teorização de primeira e segunda ordem parece reiterar uma afirmação vulgar: “aqueles que podem, fazem; aqueles que não podem, ensinam” (BALL, 2004, p. 20). Isso leva Ball, conforme prometido, a abandonar a distinção que ele próprio trouxe para o debate. Segundo o autor, a distinção correta não seria entre teorização de primeira e segunda ordens, mas sim entre teorizações de primeiro e segundo nível. Isso porque, na qualidade de cidadãos interessados e preocupados com a política, podemos nos apropriar do pensamento de teóricos de primeiro nível. Isso não significa necessariamente concordar com o que eles dizem. Ball lança mão da distinção de Wendell Berry a respeito dos tipos de aprendizado para ilustrar o ponto. Segundo o autor, uma coisa é aprender a respeito, ou seja, adquirir informações sobre algo; outra, porém, é aprender com. No estudo da teoria política devemos aprender com ela, apropriar-se criticamente da sua tradição enriquecer nossa visão de mundo, questionar afirmações e sistemas conceituais convencionais. Em parte, esta é a proposta da presente tese. Assim, em sentido análogo ao que propôs Heidegger em sua seminal definição do que é a filosofia (HEIDEGGER, 2000), o objetivo aqui é estabelecer um diálogo com a tradição. Este se dará por meio da construção de um ideal normativo de república para o enfrentamento dos problemas presentes na agenda presente.

2. CIÊNCIA E TEORIA (2): QUESTÕES DE MÉTODO

A crítica, quase sempre, confunde as coisas, e acaba interpretando ao contrário o que, na verdade, quero dizer. Por esta razão, nunca me interessei pela opinião dos críticos a meu respeito, por julgar que nem sempre ela é tão objetiva como deveria ser. Um exemplo que sempre me utilizo para justificar minha posição em relação ao assunto, é o da crítica ao meu primeiro livro publicado: Perto do Coração Selvagem, lançado em 1944, quando eu contava dezessete anos. Na época o livro foi classificado de hermético e incompreensível, e anos mais tarde, tornou-se um dos mais vendidos. Isto me intrigou profundamente, tanto que um dia resolvi perguntar a um amigo: O que está acontecendo? O livro continua o mesmo. E meu amigo, então, respondeu: É que as pessoas se tornaram mais inteligentes, de uns anos para cá. Clarice Lispector – carta a Olga Borelli (set. 1975)

A biografia de Clarice Lispector, “Clarice: uma vida que se conta”, escrita por Nádia Battella Gotlib (GOTLIB, 2013), traz uma instigante (e polêmica) proposta narrativa: mostrar como Clarice foi dominada pelo mundo da ficção que ela própria forjou. Num texto bem informado e envolvente, Gotlib apresenta a escritora a partir do confuso encontro entre o ficcional e o biográfico, sugerindo que na vida da autora qualquer tentativa de rígida separação entre ambos está fadada a deixar escapar a complexidade da sua vida e obra. O livro de Gotlib mobiliza em vários momentos a correspondência entre Lispector e sua amiga Olga Borelli. Numa delas, a ambiguidade da relação que a escritora conservava com a crítica à sua obra é sugestiva para o argumento deste capítulo. Ainda que a literatura e a ciência política guardem singularidades, a aproximação entre ambas – já realizada no capítulo anterior a partir do ensaio de Italo Calvino sobre a importância dos clássicos (CALVINO, 2007) – pode contribuir para escaparmos ao estreitamento imposto para o estudo da política pela concepção positivista de ciência. Em outras palavras, a literatura é novamente aqui mobilizada como contraponto produtivo para refletirmos sobre os (des)caminhos da ciência política no século

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XX, agora tomando como provocação o diálogo entre a autora e a crítica à sua obra, possível no caso de Clarice. Isso porque, em meio à vasta correspondência trocada entre Lispector e Borelli no decorrer de 1975, o incômodo com a crítica chama particularmente a atenção. Nas cartas a escritora declina a todo momento a imagem da “intelectual” de vida incomum, clamando pela normalidade do cotidiano de uma mulher, mãe, que cuida da casa e dos filhos. O resto, conforme diz Clarice, é “mito” (GOTLIB, 2013, p. 544). É precisamente aqui que Gotlib ressalta a ambivalência da posição de Lispector com relação à recepção de sua obra pelos críticos. O modo cambiante com o qual seu primeiro livro foi tratado, soa aos seus ouvidos como uma incógnita só explicada pela mudança na percepção do público que o lê: “O livro continua o mesmo”, mas “as pessoas se tornaram mais inteligentes”. Gotlib descreve como nessa “crítica da crítica”, Clarice denunciava os erros de interpretação sobre sua obra, não reconhecendo a “coincidência entre a intenção sua e a da crítica” (GOTLIB, 2013, p. 544). Todavia, essa não era, conforme aponta Gotlib, uma relação linear. Clarice sentia a necessidade do reconhecimento de um público mais vasto, que só viria nos anos 1960. O fato que chama a atenção, contudo, é o modo como a escritora se irritava com a leitura de especialistas. Algo que pode ser constatado na afirmação feita à sua amiga Nélida Piñon, sobre um seminário na PUC do Rio de Janeiro, onde sua obra era debatida. Segundo relato, Lispector teria declarado: “Diga a eles que se eu tivesse entendido uma só palavra de tudo que eles disseram, eu não teria escrito uma única linha de todos os meus livros” (GOTLIB, 2013, p. 544). A “crítica da crítica” ensejada por Clarice encontra formulação ainda mais curiosa numa de suas últimas aparições públicas. Em entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner em 1977, e exibida no mesmo ano no programa “Panorama Especial” da TV Cultura, a escritora é logo questionada sobre as características da produção da jovem Clarice, ao que responde: “Caótica, intensa... inteiramente fora da realidade da vida”. Esta é a mesma Clarice que reclama a incompreensão de “Perto do coração selvagem”, livro da mocidade. No entanto, o ponto alto da entrevista concedida a Lerner recai sobre a autoimagem que escritora carrega. Ao ser perguntada sobre se considerar ou não uma escritora popular, Clarice é peremptória: “Não”. A razão apontada é precisamente a classificação, pela crítica, de uma obra “hermética”. Ela, porém, discorda e afirma “Eu meu compreendo, de modo que eu não sou hermética pra mim... bom, tem um conto meu que eu não compreendo muito bem”. Lerner, curioso, pergunta qual e Clarice responde: “O ovo e a galinha”. O dado que por si só já causa estranheza – como a escritora não compreende a própria

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obra? –, é alimentado por Clarice imediatamente depois. Ao ser questionada pelo entrevistador sobre possuir um “filho predileto” em sua obra, Lispector não tergiversa: “‘O ovo e a galinha’, que é um mistério para mim...”. É intrigante imaginar que Clarice elege como preferido precisamente o conto que não compreende o sentido. A escritora, que já havia desfocado o tema da intencionalidade, acusando a crítica de nunca captá-la, agora incomoda a extensa fortuna crítica gestada a partir de um conto que ela mesma não consegue significar, abdicado da autoridade sobre ele ao reconhecer que ela própria não compreende seu significado. As questões suscitadas por Clarice Lispector ocupam, por sua vez, o centro do debate sobre a história das ideias políticas nas últimas décadas. Tal como discutido no capítulo anterior, desde a rejeição, por parte da concepção positivista de ciência, do retorno aos clássicos como forma legítima de produção de conhecimento sobre os fenômenos políticos, a relação entre história, filosofia e ciência política tem ocupado o proscênio dos debates teóricos no campo. Por certo, a literatura e a filosofia parecem ter superado os questionamentos que ainda incomodam os estudiosos da política. No caso da história das ideias política, é inescapável a referência ao enfoque dado pelo programa do contextualismo linguístico ao debate sobre o retorno aos clássicos. Conforme afirma Silva, independentemente da avaliação que se faça da influência exercida pelo grupo de historiadores comumente agrupados na “Escola de Cambridge” – preenchido por nomes como John Pocock, John Dunn e Quentin Skinner –, o contextualismo linguístico por eles proposto vem sendo objeto de interesse, tanto de adeptos quanto de críticos (SILVA, 2010a). Seguramente, os autores abrigados nesta abordagem conservam substantivas discordâncias entre si. Ainda assim, todos pactuam de alguns pressupostos centrais para a discussão aqui em curso. O objetivo deste capítulo é, dessa forma, debater os aspectos metodológicos do contextualismo linguístico, notadamente em sua formulação a partir da obra de Quentin Skinner. Tal opção se justifica pelo destaque deste autor na construção de premissas metodológicas para o estudo do pensamento político, apresentando um notável esforço de sistematização do método historiográfico adequado para a produção de leituras sobre os textos do passado. Skinner é responsável, ainda, pela defesa da “intencionalidade autoral” como objeto da interpretação historiográfica, sustentando, ao menos num primeiro momento, a “autoridade” como prerrogativa dos autores dos textos. O mote de abertura do capítulo é, com efeito, provocador. A autora Lispector desafia, por um lado, as interpretações sobre sua obra, rejeitando as leituras como incompatíveis com suas “intenções”, e, por outro, abre mão da “autoridade” sobre seus textos ao reconhecer que

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ela própria não compreende um conto – “O ovo e a galinha” – amplamente debatido pela crítica. Nesse sentido, a provocação de Lispector, ainda que no plano literário, serve como questionamento inicial aos propósitos do contextualismo linguístico, abrindo a possibilidade de repensarmos o lugar da prescrição na ciência política contemporânea, conforme os propósitos desta tese. O fato é que a relação entre a ciência política e a teoria política tem abrigado, em anos recentes, discussões de método que antecedem formulações substantivas acerca da realidade empírica, sejam elas proposições normativas – manifestamente ambiciosas com relação ao mundo público –, ou mesmo constatações de teor descritivo – mais “modestas” no que se refere à organização das instituições e ao comportamento dos atores. Trata-se, sobretudo, da crescente necessidade de situar as pesquisas e formulações contemporâneas frente ao debate metodológico no campo, cioso em relação ao método adotado e às conclusões que ele permite, sob pena de incorrer em “erros” na condução dos estudos. A produção da ciência política encontra-se, assim, cada vez mais impedida de ir adiante sem antes esclarecer suas opções metodológicas, num processo que implica, quase sempre, abdicar do debate teórico substantivo – inescapavelmente atrelado aos “clássicos” do pensamento político –, em favor da pesquisa empírica rigorosamente orientada (BRANDÃO, 2007). Traço não exclusivo da disciplina no Brasil, ainda que aqui mais evidente em razão da dinâmica própria do conhecimento político entre nós, seu desenrolar tem ensejado consequências deletérias conforme apontam algumas leituras críticas sobre o campo, amplamente discutidas no capítulo anterior (LESSA, 2011). Inventários produzidos sobre outras experiências nacionais atestam a constância dessa mesma tensão entre ciência e teoria política, presente em qualquer aproximação propedêutica da disciplina, por vezes apreendida de maneira menos dramática na demarcação do campo de estudos (BOBBIO, 2000; PASQUINO, 2010). O diagnóstico sobre as consequências limitadoras dessa opção já figura, contudo, recorrente entre os críticos dos rumos que a ciência política vem tomando. Gildo Marçal Brandão, em discussão realizada no capítulo inicial desta tese, refere-se ao processo como uma espécie de “idolatria do método” – ou “metodolatria”, conforme sua definição –, eivada, ainda, de marcações políticas na divisão do trabalho científico quando atentamos para o caso brasileiro. Segundo o autor, nossa “cidadania acadêmica internacional” dependeria apenas da realização de pesquisas empíricas com o objetivo de acrescentar dados “exóticos” ao arsenal teórico importado, numa relação resumida pela assertiva de que “a teoria é para os outros” (BRANDÃO, 2007, p. 188). A posição diminuta da reflexão teórica nacional já foi amplamente

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discutida adiante. Por ora, basta retermos o modo como Brandão acertadamente percebe a sobrevalorização do método na ciência política em detrimento das discussões teóricas, procedimento que aparentemente cinde a disciplina em relação aos seus pressupostos básicos. Nesse sentido, o campo da ciência política, conforme observamos na sua produção intelectual e na inserção dos seus profissionais, encontra-se hoje mais ou menos dividido segundo sua proximidade com o debate teórico, notadamente influenciado pela tradição da filosofia política, e pelo modo como a contribuição dos “clássicos” disciplinares – ou mesmo a eleição de quais autores e obras podem ser alçados a este posto –, deve ser recebida pelos praticantes contemporâneos da disciplina (LESSA, 2001). Em outras palavras, a ciência política contemporânea encontra-se diante do suposto dilema de optar por uma postura mais normativa, que aceita de bom grado a contribuição analítica da tradição do pensamento político, ou adotar uma postura descritiva, seja por meio da realização de pesquisas empíricas rigorosas, seja pela adoção da perspectiva historiográfica no estudo dos autores do passado (SILVA, 2008). O parentesco entre a moderna ciência política – disciplina acadêmica delineada especificamente na segunda metade do século passado, conforme discutimos no capítulo anterior – e a filosofia política, longeva na história do Ocidente, permanece, contudo, passível de questionamentos. Nessa direção, o debate na mesa redonda “Por que rir da filosofia política?”, ocorrido no âmbito do 21º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós- Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), em outubro de 1997, congregou alguns dos melhores argumentos sobre a polêmica em questão65. A intenção aqui não é recuperar a riqueza do debate, mas sim chamar a atenção para o descompasso entre a ciência e a teoria política no âmbito acadêmico. A título de ilustração, Renato Lessa mobilizou em seu argumento à época o parecer emitido a um conceituado programa de pós-graduação em ciência política no Brasil, que teria sido aprovado pelo avaliador, mas sob pena do seguinte comentário: “trata-se de um bom programa de ciência política, o que há que registrar é uma preocupante presença excessiva de temas de filosofia política” (LESSA, 2003b, p. 129, grifo do autor). Ainda hoje, o lugar da filosofia política e seu inescapável conteúdo prescritivo na produção de conhecimento em ciência política encontra-se em disputa. Vez ou outra, é precisamente a história das ideias política a disciplina aceita como a única legítima no estudo dos autores do passado, restando

65 A Revista Brasileira de Ciências Sociais publicou, no ano seguinte, as intervenções dos participantes da mesa redonda ocorrida no encontro da ANPOCS, trazendo as valiosas contribuições de Renato Janine Ribeiro, Luiz Eduardo Soares, Gildo Marçal Brandão e Renato Lessa, este organizador do debate, sobre a relação entre teoria política e filosofia política (RCBS, v. 13, n. 36, fev. 1998).

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para a ciência política a aquisição de informações empíricas para o andamento dos seus estudos. A despeito da tensão existente, o rápido exame das áreas temáticas que compõem a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), entidade que congrega pesquisadores da área no país, atuante de forma organizada desde a segunda metade da década de 1990, manifesta a presença de discussões sobre o pensamento político brasileiro e a teoria política. Contudo, no âmbito da ABCP, discussões de método também encontram abrigo, mostrando, novamente, o incômodo lugar da filosofia política na produção de conhecimento hoje. Certamente uma miríade de fatores concorre na conformação desse cenário, conforme tentei demonstrar pelo esforço realizado no primeiro capítulo desta tese. Todavia, os estudos historiográficos produzidos pela Escola de Cambridge, especialmente os trabalhos de Quentin Skinner, ocupam uma posição interessante. Skinner foi quem mais investiu na recuperação dos autores do passado nas últimas décadas, impactando o debate no campo ao propor uma metodologia específica para sua abordagem. Além disso, o autor manteve-se aberto ao debate sobre sua obra, apresentando sensíveis reformulações do seu argumento ao longo da segunda metade do século passado. Este capítulo se concentrará, assim, na contribuição de Quentin Skinner para o debate metodológico contemporâneo, mostrando como as formulações do autor são compatíveis com a teoria política de corte prescritivo, conforme pretendo avançar no argumento da tese. Num primeiro momento, serão apresentados os principais elementos do seu programa de pesquisas, mostrando, inclusive, como Skinner permaneceu atento ao debate metodológico, reformulando pontos importantes do seu argumento. Em seguida, apresento uma síntese das principais críticas ao programa skinneriano, apontando saídas para algumas delas a partir dos próprios argumentos de Skinner. Na penúltima seção do capítulo, dedico maior atenção aquela que representa, no meu entendimento, a grande crítica ao contextualismo linguístico: as hermenêuticas de Gadamer. A obra de Gadamer será mobilizada, ainda, em sua importante defesa da “tradição” como pano de fundo para o diálogo com os autores do passado. Por fim, sustento que a contribuição de Skinner pode ser utilizada na construção de perspectivas analíticas sobre a política, precisamente porque, como defende o autor, nos libertar das amarras do passado para o exame dos problemas presentes.

2.1 A relevância da obra Quentin Skinner

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Por ocasião da divulgação dos ensaios metodológicos de Skinner em língua portuguesa (SKINNER, 2005a), Diogo Ramada Curto enfatizava a importância do diálogo entre modelos consolidados no meio intelectual e o desejo por inovações de método nas pesquisas historiográficas. Segundo ele, “é necessário reconhecer que os ensinamentos de Skinner desafiam as tendências mais empíricas de fazer história e as inércias mais instaladas orientadas para a simples reprodução dos modelos de análise” (CURTO, 2005, p. IX). Ainda que os estudos assumidamente metodológicos de Skinner não tenham recebido a devida atenção de projetos editoriais no Brasil, sua obra historiográfica foi amplamente publicada no país, ocasionando as transformações no quadro intelectual e historiográfico brasileiro que Curto reclama para o contexto português66. Como prova disso, basta atentarmos para a repercussão dos estudos de Skinner dentre os círculos intelectuais nacionais, com a publicação de relevantes artigos e coletâneas sobre o tema67. Curto chama a atenção para o alcance da obra de Skinner, apontando como hipótese explicativa o investimento do autor em projetos editoriais ambiciosos. Nesse sentido, a publicação pela Universidade de Cambridge de “Ideas in Context” e “Camridge Texts in the History of Political Thought”, ambos destinado à articulação de trabalhos coletivos, explicitando a divergências entre os autores através dos debates contidos, teria consolidado os objetivos do programa historiográfico avançado por Skinner: por um lado, o empenho metodológico dentro do “giro linguístico”, e, por outro, sua preocupação em restabelecer a vitalidade do pensamento político moderno ante as ofensivas sobre o abandono dos “clássicos” (CURTO, 2005). Ainda assim, Curto lembra como as críticas dirigidas ao historiador, notadamente acerca de uma suposta uma “visão despolitizada” da política fruto da reconstrução histórica demasiado longínqua dos valores políticos presentes, mostram como o método proposto por Skinner não se distancia dos debates políticos da atualidade68. Conforme discutiremos aqui, seus primeiros

66 Os principais ensaios metodológicos de Skinner, produzidos num período espaçado de tempo, foram coligidos pelo próprio autor no primeiro volume de “Visões da política” (SKINNER, 2005a). Quando refiro-me aos seus trabalhos assumidamente metodológicos, utilizo a edição portuguesa da coletânea citada. Sobre os demais trabalhos do autor, amplamente divulgados no Brasil, discuto, em particular, “Maquiavel” (SKINNER, 1988), “As fundações do pensamento político moderno” (SKINNER, 1996), “Liberdade antes do liberalismo” (SKINNER, 1999) e “Hobbes e a liberdade republicana” (SKINNER, 2010).

67 Ao longo do capítulo discuto alguns destes trabalhos, focando, porém, as contribuições de Marcelo Gantus Jasmin, João Feres Júnior e Ricardo Silva. Ainda que os autores e textos escolhidos não esgotem o debate, creio serem estes os principais responsáveis pela divulgação do programa metodológico de Skinner entre os estudiosos brasileiros, além de promoverem um rico debate entre a história das ideias e a história conceitual de Reinhart Koselleck, permitindo, com isso, um diálogo produtivo com a teoria política.

68 O ponto será retomado na segunda metade deste capítulo, quando discutirmos as críticas ao programa de

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escritos trazem a influência de Wittgenstein, John Austin e , na defesa de que o uso da linguagem ocorre dentro de um determinado contexto e manifesta, assim, intenções específicas. Logo, “A reconstituição do significado de um texto ou de uma obra implica, assim, uma investigação acerca dos usos devidamente contextualizados da linguagem, bem como uma recuperação das intenções do seu autor, no acto em que proferiu ou escreveu esse mesmo discurso” (CURTO, 2005, p. XV). No entanto, a respeito da problemática noção de “intenção”, a proposta de Skinner assemelha-se mais ao que foi sugerido por Max Weber na compreensão da “motivação” das ações sociais, conforme lemos no ensaio “O ‘significado social’ e a explicação da ação social”, presente na coletânea aqui tratada (SKINNER, 2005a). Segundo Curto, isso manifestaria o aberto interesse de Skinner em intervir no debate intelectual do seu tempo, particularmente em três aspectos centrais: (1) o autor propõe uma reformulação no método tradicional da história das ideias presente, dentre outros, em Arthur Lovejoy, que entendia a ideia como unidade de análise independente dos seus usos; (2) seus estudos metodológicos criticam, ainda, uma enganosa “mitologia da coerência das doutrinas”, presente em , por exemplo; e (3) Skinner questiona a corrente noção de “influência”, então em voga nos estudos historiográficos (CURTO, 2002 , p. XVI). Os objetivos do historiador encontram-se manifestos mesmo nos trabalhos não dedicados exclusivamente ao debate sobre métodos históricos. No entanto, as críticas sobre ter Skinner, ele próprio, descumprido a abordagem metodológica por ele sugerida serão discutidas a seguir, por meio de alguns competentes inventários sobre sua obra (FERES JÚNIOR, 2005; JASMIN, 2005; SILVA, 2010a). Por ora interessa o modo consciente como o historiador reafirma seus compromissos de pesquisa com o leitor. É o que encontramos, como exemplo notório, na abertura do grande trabalho “As fundações do pensamento político moderno” (SKINNER, 1996), referência inescapável para qualquer aproximação séria com o tema. O livro traz, segundo Skinner, três objetivos centrais: (1) oferecer um quadro panorâmico dos principais textos do pensamento político de fins da Idade Média e começos da era moderna. O historiador nos lembra que nenhum levantamento deste tipo foi realizado desde o importante tratado de Pierre Mesnard, “A ascensão da filosofia política no século XVI” (1936). Conforme entendemos aqui, o objetivo coaduna com a proposta semelhante de retorno aos clássicos defendida no capítulo anterior (ALEXANDER, 1999), não representando propriamente a originalidade dos estudos de Skinner; (2) utilizar os textos da teoria política do

Skinner, bem como a possibilidade de contextualizarmos o próprio historiador dentro de propostas normativas para a pesquisa historiográfica.

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período abordado com a proposta de iluminar um tema histórico mais amplo, a saber, o processo pelo qual veio a formar-se o Estado moderno. O passo decisivo neste processo foi, conforme discutido por Skinner, a passagem da noção de “governo” como a preservação do poder do governante para a ideia de que existe uma ordem legal e constitucional distinta, a do Estado, que o governante tem o dever de conservar. Um dos efeitos desta transformação foi, com efeito, o poder do Estado, e não do governante, passar a ser considerado a base do governo. É precisamente aqui que surge sua inovação de método, ao mostrar a relação entre a mudança conceitual e a semântica histórica. Segundo o autor, “O mais claro indício de que uma sociedade tenha ingressado na posse consciente de um novo conceito [...] está na geração de um novo vocabulário, em termos do qual o conceito passa a ser articulado e debatido” (SKINNER, 1996, p. 10). Conforme discutiremos a seguir, este propósito constitui o cerne do seu programa metodológico, amplamente exposto e debatido nos ensaios coligidos em “Visões da política” (SKINNER, 2005a), e reafirmado no terceiro objetivo elencado na abertura de “As fundações”, a saber, (3) iluminar certo modo de proceder ao estudo e interpretação dos textos históricos, tal como debatido em reflexões metodológicas anteriores. Skinner argumenta que a obra de Mesnard trata essencialmente de uma história dos “textos clássicos”, método utilizado na história das ideias mais tradicional. Contrariamente, afirma:

Procurei não me concentrar tão exclusivamente nos maiores teóricos, preferindo enfocar a matriz mais ampla, social e intelectual, de que nasceram suas obras. Começo discutindo o que considero ser as características mais relevantes das sociedades nas quais eles originalmente escreveram. Pois entendo que a própria vida política coloca os principais problemas para o teórico da política, fazendo que um certo elenco de pontos pareça problemático, e um rol correspondente de questões se converta nos principais tópicos em discussão (SKINNER, 1996, p. 10).

Skinner rejeita o que define nos seus ensaios metodológicos como “contextualismo sociológico”, afirmando não apreender as superestruturas ideológicas como uma consequência direta da base social. Ainda assim, transparece o cerne da sua proposta, defendendo ser inegável que o vocabulário normativo disponível em qualquer época contribua para determinar as vias pelas quais certas questões em particular serão identificadas e discutidas. Logo, Skinner afirmar ter tentado “escrever uma história menos concentrada nos clássicos e mais na história das ideologias, [com o] objetivo construir um quadro geral no qual possam ser situados os textos dos teóricos mais proeminentes da política” (SKINNER, 1996, p. 11). A insatisfação do autor com o que define como sendo uma perspectiva “textualista” presente nas abordagens tradicionais se traduz na reivindicação de produzirmos uma história da teoria política de um modo verdadeiramente histórico. Conforme Skinner, na perspectiva

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textualista os “clássicos” são apreendidos como portadores de um nível de abstração e inteligência o qual nenhum dos seus contemporâneos teria alcançado. Contrariamente, “se [...] tentarmos cercar esses clássicos com o seu contexto ideológico adequado, poderemos ter condições de construir uma imagem mais realista de como o pensamento político, em todas as suas formas, efetivamente procedeu no passado” (SKINNER, 1996, p. 11). O prefácio de “As fundações” aqui citado é claro na defesa do programa historiográfico do autor. Antecipando o modo como procederá seu estudo, Skinner afirma que a perspectiva por ele defendida é capaz de escrever uma história da teoria política com “caráter genuinamente histórico”. Tal perspectiva laçaria luz, ainda, nas relações entre teoria política e prática política, ao mostrar como os comportamentos políticos conservam íntima conexão com determinados princípios que lhes confere significação. Trata-se, sobretudo, de perceber a importância do vocabulário normativo disponível na descrição e avaliação da vida política. Nas palavras do autor,

Segue-se que todo indivíduo desejoso de ter sua conduta reconhecida como a de um homem honrado se verá limitado a praticar apenas um certo elenco de ações. Assim, o problema de um agente que pretenda legitimar o que está fazendo ao mesmo tempo que obtém o que deseja não se reduz à questão, simplesmente instrumental, de recortar sua linguagem normativa a fim de adequá-la a seus projetos. Terá de ser, pelo menos em parte, a questão de recortar seus projetos a fim de adequá-los à linguagem normativa de que dispõe (SKINNER, 1996, p. 12).

Nesse sentido, a história das ideologias defendida por Skinner nos daria condições para um retorno mais consciente aos clássicos, ampliando nossa perspectiva para compreendê-los sem nos limitar à leitura do texto “vezes e vezes sem conta”, como propuseram os expoentes do procedimento “textualista”. O autor entende seu programa de pesquisas como uma renovação dos estudos historiográficos, superando limitações impostas pela perspectiva tradicional ao inserir outra dimensão de análise. Devemos, assim, atentar para o contexto histórico, buscando a compreensão do significado das expressões normativas na interpretação das “intenções” do autor. A defesa de Skinner é clara: dificilmente podemos compreender o significado antes de reconhecermos as intenções do autor a respeito das questões abordadas dentro do seu contexto.

O que, exatamente, o procedimento aqui proposto nos permite identificar nos textos clássico que não se possa encontrar à sua mera leitura? A resposta, em termos genéricos, penso eu, é que ele nos permite definir o que seus autores estavam fazendo quando os escreveram. Podemos começar assim a ver não apenas que argumentos eles apresentavam, mas também as questões que formulavam e tentavam responder, e em que medida aceitavam e endossavam, ou contestavam e repeliam, ou às vezes até ignoravam (de forma polêmica), as idéias e convenções então predominantes no

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debate político. Não podemos esperar atingir esse nível de compreensão estudando tão-somente os próprios textos. A fim de percebê-los como respostas a questões específicas, precisamos saber algo da sociedade na qual foram escritos. E, a fim de reconhecer a direção e força exatas de seus argumentos, necessitamos ter alguma apreciação do vocabulário político mais amplo de sua época (SKINNER, 1996, p. 13, grifo do autor).

O trecho enfatiza uma expressão cara o programa skinneriano extraída da obra de Austin: o que os autores estavam “fazendo”. John L. Austin (1911-1960) deu grande contribuição à filosofia da linguagem contemporânea com sua concepção de “atos de fala”, formulada na série de conferências “Quando dizer é fazer” (AUSTIN, 1990), publicadas postumamente em 196269. Em linhas gerais, Austin tentou sistematizar o uso da linguagem em contextos específicos, sempre tendo como norte a realização de determinados objetivos. Nesse sentido, o autor percebeu que a linguagem não era constituída apenas de sentenças “verdadeiras” ou “falsas”, conforme tradicionalmente compreendida pela filosofia da linguagem, mas deveria ser pensada como um “ato de fala” onde o sucesso e a felicidade na realização de uma ação são considerados. Conforme sustenta, “Por mais tempo que o necessário, os filósofos acreditaram que o papel de uma declaração era tão-somente o de ‘descrever’ um estado de coisas, ou declarar um fato, o que deveria fazer de modo verdadeiro ou falso” (AUSTIN, 1990, p. 21). A grande contribuição do autor foi, nesse sentido, mostrar como o uso da linguagem é a realização de um ato, e não somente a descrição da realidade (MARCONDES, 2009). Inicialmente, Austin opera uma distinção entre (a) atos “constatativos” (sentenças utilizadas para descrever fatos e eventos, possuindo, assim, condições de verdade ou falsidade), e (b) atos “performativos” (sentenças utilizadas para realizar algo e não para relatar, devendo ser pensadas como bem ou mal sucedidas). O autor mostra como atos performativos possuem uma natureza contratual, ao firmar um compromisso com o ouvinte no momento da fala. Daí sua definição da fala como uma ação. Conforme defende a partir de exemplos usuais, existem sentenças que claramente não pretendem “descrever” algo que se estava “praticando” quando se disse, nem “declarar” o que se está fazendo. Estes não seriam, com efeito, proferimentos “verdadeiros” ou “falsos”, mas sim sentenças de natureza distinta. Logo,

Que nome daríamos a uma sentença ou a um proferimento deste tipo? Proponho denomina-la sentença performativa ou proferimento performativo, ou, de forma

69 O livro é composto essencialmente pelas notas de Austin para as doze conferências feitas em 1955, na Universidade de Harvard. A obra, porém, foi publicada postumamente, sem a revisão do autor. Ainda assim constitui referência obrigatória para a filosofia da linguagem, ao trazer a noção performativa para o centro dos estudos sobre a linguagem (AUSTIN, 1990).

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abreviada, “um performativo”. O termo “performativo” será usado em uma variedade de formas e construções cognatas, assim como se dá com o termo “imperativo”. Evidentemente que este nome é derivado do verbo inglês to perform, verbo correlato do substantivo “ação”, e indica que ao se emitir o proferimento está – se realizando uma ação, não sendo, conseqüentemente, considerado um mero equivalente a dizer algo (AUSTIN, 1990, p. 25, grifo do autor)

Num segundo momento, porém, Austin abandonará a dicotomia original, estendendo a dimensão performativa para toda a linguagem, apontando o inescapável uso das palavras como uma forma de agir. Ao abandonar a dicotomia entre atos constatativos e performativos, Austin passa a considerar o ato de fala como constituído por três dimensões integradas ou articuladas: (1) atos locucionários, referentes ao conteúdo proposicional presente no ato de dizer algo; (2) atos ilocucionários, relativos ao que o agente está fazendo ao dizer algo; e (3) atos perlocucionários, relativos aos efeitos produzidos pelo agente na audiência ao dizer algo. A reformulação de Austin, decisiva para o projeto skinneriano, é expressa da seguinte forma:

Ao iniciarmos o programa de encontrar uma lista de verbos performativos explícitos, pareceu-nos que nem sempre seria fácil distinguir proferimentos constatativos, e, portanto, achamos conveniente recuar por um instante às questões fundamentais, ou seja, considerar desde a base em quanto sentidos se pode entender que dizer algo é fazer algo, ou que ao dizer algo estamos fazendo algo, ou mesmo os casos em que por dizer algo fazemos algo (AUSTIN, 1990, p. 85, grifo do autor)

Skinner apropria-se, assim, da noção de “performance” para erigir um articulado método de pesquisas, mobilizando a dimensão ilocucionária da fala como objeto no qual o historiador deve ser contrar. Segundo o autor, “É na dimensão ilocucionária de um proferimento que reside sua força enquanto ação, forma que se identifica com a intenção do agente ao dizer algo em determinado contexto de convenções linguísticas” (SILVA, 2010a, p. 307, grifo do auto). Os ensaios contidos em “Visões da política” (SKINNER, 2005a) traduzem essa apropriação, bem como apresentam a originalidade e o investimento do autor na renovação da história das ideias políticas. A leitura atenta da coletânea mostra, todavia, como Skinner reformulou significativamente vários dos textos republicados (JASMIN, 2005). Para os propósitos do argumento desta tese, tal reformulação constitui, porém, um indício positivo do modo como o historiador vem aprimorando seu programa de pesquisas e mostra como certa incompreensão de parte dos seus argumentos alimentou debates que o próprio Skinner se encarrega de dirimir. Assim, tomo como objeto de discussão alguns dos ensaios contidos na coletânea há pouco citada, situando a originalidade da contribuição de Skinner, para, em seguida, apresentar algumas das críticas mais substantivas ao seu programa.

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2.2 O “ofício do historiador”

Na abertura de “Visões da política”, Skinner ocupa-se da descrição do que denomina um “desafio cético” às pretensões subjacentes ao modo positivista de fazer ciência. Segundo ele, embora algumas vozes influentes da filosofia contemporânea tenham questionado a possibilidade de obtenção de fatos incontestáveis, muitos historiadores parecem partilhar da ideia de que “na vida só contam os factos” (SKINNER, 2005b). Contrariamente, Skinner afirma que seus ensaios analisarão três aspectos deste “desafio cético”. (1) Em primeiro,

Um dos ataques contra o mundo dos factos foi lançado há algum tempo pela teoria do conhecimento. Esta batalha foi inicialmente travada por aqueles interessados em desacreditar a crença empirista, segundo a qual o nosso mundo é feito de informação sensorial passível de ser apreendida directamente e descrita de forma indiscutível. No que respeita a esta questão, não há muito mais a dizer, apenas que esse dogma do empirismo caiu fatalmente em descrédito. Já quase ninguém acredita hoje na possibilidade de edificar estruturas de conhecimento factual assentes numa independência absoluta em relação aos nossos julgamentos (SKINNER, 1996, p. 01).

Diante disso, Skinner afirma que devemos adotar uma postura mais realista sobre a relação entre os historiadores e suas fontes, tendo em mente que o conceito de verdade é irrelevante na tentativa de explicação das crenças do passado. Sua perspectiva já traduz positivamente uma reação às duras críticas recebidas durante a segunda metade do século XX (SILVA, 2010a), notadamente ao relativizar a possibilidade de encontrarmos a “verdade” nas pesquisas historiográficas. (2) Em segundo, além das críticas oriunda da epistemologia, o “mundo dos fatos” foi desafiado também pelos recentes desenvolvimentos nas “teorias do sentido”. De acordo com Skinner, o “postulado fundamental das filosofias positivistas da linguagem assentava na ideia de que todas as afirmações de sentido devem remeter para factos e, desse modo, os significados das proposições derivam necessariamente de um método de verificação das asserções nelas implícitas” (SKINNER, 2005b, p. 02). Contudo, depois das contribuições de Quine, Wittgenstein, Austin e Searle, o historiador nos mostra como o uso da linguagem para fins de comunicação é não só “dizer algo”, mas também “fazer algo”. Precisamente aqui a contribuição de Austin, conforme enunciada acima, é decisiva. “Esta contribuição, a somar às outras, teve ainda como efeito uma mudança de atenção dos ‘significados’ para questões em torno da agency, do uso e, em particular, da

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intencionalidade” (SKINNER, 2005b, p. 03). Isso porque, até então era comumente aceito que o estudo dos textos clássicos se justificaria pela “relevância” dos temas por eles tratados para o presente. Conforme sustenta Skinner, pressupunha-se enganosamente que os autores do passado estavam preocupados com as mesmas questões que as nossas, sem que os historiadores se perguntassem o que os filósofos antigos estavam a fazer quando escreviam o que escreveram. Ainda que matizado a partir das críticas recebidas, o afastamento de Skinner com relação ao que o próprio autor define como uma perspectiva “tradicional” no campo da história das ideias políticas é inconteste.

Como já antes dei a entender, o fulcro da minha argumentação é este: se o que pretendemos é uma história da filosofia feita com um espírito genuinamente histórico, devemos ter como uma de nossas principais tarefas a contextualização intelectual dos textos em estudo de forma a que possamos dar sentido ao que os seus autores estavam a fazer quando os escreviam. O meu intuito não é penetrar nos processos mentais de pensadores há muito desaparecidos; trata-se apenas de utilizar as técnicas básicas da investigação histórica de forma a captar os seus conceitos, seguir as suas distinções, apreciar as suas crenças e, tanto quanto possível, ver as coisas tal como elas são (SKINNER, 2005b, p. 04).

Skinner reage à acusação de que seu programa sustentaria certo psicologismo, ao negar a pretensão de inferir “processos mentais”. Ao contrário, o autor entende que a linguagem pode assumir duas dimensões distintas, sobre as quais deve o historiador refletir em busca do método acertado. Por um lado, (a) a dimensão do significado, ocupada do estudo do sentido e da informação supostamente ligados às palavras e às frases, tal como praticado pela hermenêutica tradicional. Por outro, (b) a dimensão da ação linguística, preocupada com o que os oradores são capazes de fazer com o (e através do) uso das palavras e frases. Conforme os estudos desenvolvidos por Skinner defendem, ambas as dimensões são igualmente importantes. Entretanto, devemos seguir a indicação de Wittgenstein: “as palavras também são atos”. O programa avançado por Skinner trata-se, assim, de uma reflexão acerca do papel da causalidade na ação, tendo em mente que motivos funcionam como causas, o que não exclui a existência de explicações não causais para a ação. Logo, ao aproximar-se do estudo da filosofia da ação, surgiu a necessidade do exame racional das crenças no ofício do historiador. Skinner pretende, com efeito, examinar as crenças específicas situando-as no contexto de outras crenças, pois “aquilo que é racional acreditar depende em grande medida da natureza das nossas outras crenças” (SKINNER, 200b, p. 06). (3) O terceiro aspecto do desafio cético tratado por Skinner refere-se aos aspectos puramente retóricos da escrita e do discurso. De acordo com o autor, “forçoso será reconhecer que utilizamos a nossa linguagem não apenas para comunicar informação mas,

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simultaneamente, para atribuir autoridade àquilo que dizemos, para produzir emoções nos nossos interlocutores, para criar fronteiras que integram ou excluem e para nos envolvermos em muitos outros exercícios de controlo social” (SKINNER, 2005b, p. 06-07). A preocupação do historiador está voltada para as técnicas retóricas capazes de fortalecer ou enfraquecer a construção do nosso mundo social. Os críticos de Skinner afirmam que tal abordagem retira o sentido do objeto de estudo, desfocando a possibilidade de encontrarmos uma “sabedoria perene” nos textos clássicos e convertendo seu estudo em “atractivo poeirento do antiquário”. Acerca deste aspecto, Skinner diz:

É bem verdade que o meu trabalho é histórico. Aliás, quanto mais histórico melhor. No entanto, pretende simultaneamente contribuir para a compreensão do mundo social dos nossos dias. [...] Uma compreensão adequada do passado pode ajudar-nos a avaliar até que ponto os valores que presidem ao nosso estilo de vida actual, bem como as nossas formas actuais de pensar acerca desses valores reflectem uma série de opções tomadas em diferentes momentos e entre diferentes mundos possíveis. Essa consciencialização pode ajudar a libertarmo-nos de qualquer abordagem hegemónica acerca desses valores e da forma como devem ser interpretados e compreendidos (SKINNER, 2005b, p. 08).

Logo, por meio do método proposto, Skinner defende que a argumentação filosófica está profundamente ligada a reivindicações de poder social. “Aquilo que os registros históricos nos sugerem fortemente é que ninguém consegue estar acima das batalhas, precisamente porque só existem batalhas. Uma última implicação moral é que talvez a agency deva, no fim das contas, ser privilegiada sobre a estrutura quando se trata de apresentar explicações sociais” (SKINNER, 2005b, p. 09). Este ponto é particularmente importante para o argumento da tese. Isso porque, a concepção normativa de república que será defendida radica em disputas políticas em torno de enfrentamentos concretos. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que a linguagem constitui um constrangimento social a nos moldar, ela é também o recurso de que dispomos para moldar o mundo. Dessa forma, devemos reconhecer, conforme sustenta Skinner, a escrita como uma arma poderosa nos contextos onde disputas política concretas se dão.

Estamos, como é óbvio, embrenhados em práticas e por elas somos constrangidos. Mas essas práticas devem a sua predominância, em grande medida, ao poder que a nossa linguagem normativa tem para as sustentar. E podemos sempre utilizar os recursos da nossa linguagem para subverter, bem como para sustentar essas práticas. Na verdade, somos muito mais livres do que aquilo que pode vezes supomos (SKINNER, 20025b, p. 09-10).

Skinner escolhe um ensaio dedicado ao “ofício do historiador” para a abertura de “Visões da política”. Em “A prática da história e o culto do fato” (SKINNER, 2005c),

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originalmente publicado em 1997, o autor centra sua atenção na obra de Sir Geoffrey Elton e seus argumentos sobre o método e o objetivo da história. Malgrado não figurar entre os trabalhos mais citados de Skinner, creio ter o autor formulado nele algumas das respostas mais interessantes aos críticos do seu programa. Conforme venho sustentando aqui, a reação à sua obra, inclusive na última década, desconsiderou revisões substantivas operadas pelo próprio Skinner em seus trabalhos, reincidindo, assim, em críticas por ele assimiladas e superadas na revisão dos trabalhos metodológicos (FERES JÚNIOR, 2005; JASMIN, 2005; SILVA, 2010a). Assim, opto por examinar seus argumentos em “Visões da política”, ciente de que os textos ali contidos distanciam-se em pontos capitais do que foi outrora apresentado em suas versões originais, por privilegiar a possibilidade de apreender o modo como Skinner permanece permeável ao debate na teoria política contemporânea. Nesse sentido, encontramos em sua obra a síntese de um fecundo debate metodológico desenrolado durante a segunda metade do século XX. Logo, ao questionar-se sobre o “ofício do historiador”, Skinner avança na discussão do “desafio cético” acima aludido. A despeito dos diferentes caminhos apresentados pela cultura pós-modernista, o autor nos lembra como uma caracterização permanece atual para muitos historiadores britânicos: “eles gostam, por vezes, de considerar-se empiristas na verdadeira acepção da palavra, ou seja, a função do historiador passa por revelar os factos sobre o passado e por conta-los o mais objectivamente possível” (SKINNER, 2005c, p. 11). Em consonância com a concepção positivista de ciência aqui discutida no capítulo anterior (ALEXANDER, 1999), a obra de Sir Geoffrey Elton representa, no argumento de Skinner, um indisfarçado “culto do fato” e constitui momento esclarecedor dos pontos de vulnerabilidade dessa abordagem, combatida pelo programa skinneriano. Assim, contrariamente ao que se supunha, Skinner rejeita as pretensões objetivistas presentes na concepção positivista, conectando, em parte, as preocupações do historiador com a agenda presente. Skinner reconstitui a obra de Elton com confessada finalidade crítica. Ainda que sua leitura carregue um travo questionável, importa aqui sua interpretação dentro do argumento em curso. Nessa direção, o autor nos lembra como Elton retrata o aspirante a historiador por meio de uma poderosa metáfora: o aprendiz de carpinteiro que produz sua primeira obra a ser avaliada pelo mestre. De acordo com a imagem mobilizada, o aprendiz precisa, assim, ser “instruído, guiado e treinado” no seu ofício. O tom utilizado por Elton manifesta, segundo Skinner, sua ânsia por impor regras que deverão ser rigorosamente seguidas pelo aprendiz, caso ele queira ser ensinado corretamente. Logo, a primeira lição importante imposta por Elton, presente no capítulo inaugural de “The practice of history”, afirma que a história lida com “acontecimentos”

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e não com “estados”, ou seja, “investiga coisas que ocorreram e não coisas que são” (SKINNER, 2005c, p. 13). Conforme esta perspectiva, o historiador deve explicar acontecimentos tendo em conta a mudança, deduzindo consequências a partir dos diferentes fatos que observa. Tais afirmações são, todavia, discutíveis. Skinner toma como exemplo a história da arte e da filosofia, onde o aprendiz perceberá que nem sempre os historiadores estão preocupados em apresentar explicações ou deduzir consequências. Pelo contrário, muitos estão preocupados em avançar interpretações, situando seu objeto no interior dos campos de significado. Sem dúvida, conhecer as consequências pode levar o historiador a reconsiderar a importância de um determinado acontecimento. Entretanto, “quando se trata de encontrar uma explicação, o historiador deve centrar-se não nos resultados dos acontecimentos mas sim nas condições causais da sua ocorrência” (SKINNER, 2005c, p. 14). Elton, no entender de Skinner, pensa diferente, afirmando que a suposição das causas não é o principal objeto do historiador. “Nesse caso, sinto-me incapaz de dar sentido à sua visão de explicação histórica, simplesmente porque não consigo perceber de que forma o acto de traçar as consequências de um acontecimento tem qualquer relação com a explicação da razão de ser da sua ocorrência” (SKINNER, 2005c, p. 15). Skinner mostra como em seu segundo livro – “Political history: principles and practice” –, Elton desenvolve o argumento em tom mais incisivo e polêmico, afirmando que os historiadores devem fornecer explicações históricas aceitáveis e, desse modo, ignorar “disparates filosóficos”. Assim como na polêmica acerca da importância dos clássicos evocada anteriormente, ele parece ignorar que as “explicações históricas são, antes do mais, explicação. E a questão acerca do que se pode considerar como sendo uma explicação é inevitavelmente uma questão filosófica. Não pode ser apenas aquilo que os historiadores dizem; o que interessa é saber se aquilo que dizem faz ou não sentido” (SKINNER, 2005c, p. 16). Elton por certo dirige suas críticas aos filósofos que elaboraram modelos demasiadamente rígidos de análise. Entretanto, os filósofos em questão tinham, conforme lembra Skinner, razão em apontar que explicações causais em história dependem da capacidade de relacionar exemplos particulares com generalidades mais vastas. A defesa de Elton de que os historiadores deveriam preocupar-se exclusivamente com acontecimentos singulares mostra- se, nesse sentido, equivocada. O aprendiz é, assim, enganosamente informado por Elton de que deverá concentrar-se em um único aspecto: a procura do ele define como “os factos verdadeiros”. Logo,

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A nova e contrastante pretensão que Elton deseja fazer vingar não nos merece reparos: é verdade que os historiadores estão basicamente empenhados na recolha de factos com o objectivo de atingir a verdade. Depois de anunciar este comprometimento, Elton confessa sua submissão inabalável ao culto do facto. Não restam dúvidas, insiste ele, de que “a verdade pode ser extraída a partir dos dados empíricos” e, sendo assim, ao desvendar os factos da história, o historiador pode aspirar à descoberta “da verdadeira realidade do passado” (SKINNER, 2005c, p. 17-18).

Em uma série de conferências discutidas por Skinner, Elton reforça que o historiador deve preocupar-se apenas com a descoberta da verdade, ou, em outras palavras, “contar a verdade sobre o passado”. É precisamente isso que aparece no segundo capítulo de “The practice of hisrtory”, quando o autor aponta o que considera itens de relevância histórica sobre os quais o historiador deve debruçar-se para extrair a perseguida verdade. Mobilizando uma importante imagem que será posteriormente desconstruída por Skinner, Elton defende que o historiador deve concentrar-se em “algo parecido com um cálculo financeiro ou um registro de caso de tribunal, ou ainda dos vestígios materiais do passado, como uma casa” (SKINNER, 2005c, p. 19). O que dizer, então, das obras do passado que enriquecem nossas bibliotecas? A pergunta feita por Skinner é cara aos propósitos desta tese. Isso porque, trato aqui precisamente da possibilidade de, por meio da leitura dos autores do passado, formular um ideal normativo para a correção do presente. Este exercício é seguramente tributário da interpretação histórica, mas que pode, com efeito, libertar-se dela conforme observamos em momentos exemplares na tradição da teoria política (BARKER, 1980; JASIMIN, 1998; LASKI, 1980). Em outras palavras, ainda que passível de questionamentos com relação a ausência de rigor ou ao eventual uso instrumental da história na construção do argumento, a proposta aqui é conservar razoável liberdade com relação aos fatos históricos, aceitando positivamente a interpretação, a imaginação e a fabulação como passos decisivos para a teoria política normativa (LESSA, 2003a). Mesmo que centrada no “ofício do historiador”, a perspectiva de Elton distancia-se da proposta desta tese ao vetar o uso “interpretativo” da história. O autor capitula, assim, ao que Skinner denomina “culto do fato”, afirmando que

O aprendiz deve ser capaz de estabelecer uma distinção entre os aspectos facultativos do estudo histórico e a história “verdadeira” ou “pura e dura”. A “linha dura” da investigação e do ensino histórico “deve centrar-se nas ações dos governos e dos governados e na vida pública da sua época”, sendo este o único tema “suficientemente importante para arrastar atrás de si todos os outros” (SKINNER, 2005c, p. 19).

A defesa aberta da possibilidade de apreensão da “verdade” por meio dos estudos

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históricos é, sem dúvida, a grande fraqueza da proposta de Elton, resumida por Skinner por meio da expressão “culto ao fato”. Este se traduz na ciência política, conforme discussão do capítulo anterior, na defesa da supremacia do método durante o processo de construção do conhecimento, postura que negligencia, quase sempre, argumentos substantivos em prol do debate sobre técnicas e instrumentos. Tal postura prescinde, igualmente, do retorno aos clássicos como fonte de um estoque de perguntas e soluções para os desafios do presente, desfocando o lugar da história das ideias políticas – ainda sem adentrarmos na inovação proposta por Skinner – entre os praticantes da ciência política contemporânea. Seguramente Elton reconhece a importância da história das ideias nesse processo. Todavia, ao diagnosticar a crescente atenção direcionada ao campo ele reforça que esta não constitui a “verdadeira história”. O historiador aprendiz de Elton deve “preocupar-se em recolher factos, e, desse modo, extrair a verdade a partir de tais evidências empíricas” (SKINNER, 2005c, p. 20), ciente do seu sucesso caso siga rigorosamente as instruções dadas pelo mestre. Skinner nos lembra que assim como “acontece com todas as formas de culto bem sucedidas, o culto do facto promete conduzir-nos a uma verdade final, ‘uma verdade que’, como Elton sentencia, ‘é mais absoluta que a mera exactidão’” (SKINNER, 2005c, p. 21). De maneira incisiva, ao constatar a existência de muitos historiadores que não procedem de acordo com suas regras impostas, Elton estabelece uma distinção entre o que define como historiadores “amadores” – que de alguma forma “impunham seus gostos ao passado” –, e os “verdadeiros historiadores” – que “aguardam que as evidências empíricas façam despontar por si próprias questões relevantes” (SKINNER, 2005c, p. 21). Em outras palavras, “O verdadeiro historiador é ‘um servo das suas fontes’, às quais ele ‘não deverá colocar questões específicas enquanto não tiver assimilado o que elas têm para dizer’” (SKINNER, 2005c, p. 22). Skinner nos mostra como Elton reproduz, em parte, um dos temas característicos da obra de Gadamer, que será tratada na penúltima seção deste capítulo. Ambos apontam os perigos de nos deixarmos levar pelos nossos preconceitos e adequarmos a empiria aos nossos padrões interpretativos. No entendimento de Skinner, Gadamer, porém, não aprovaria a “confiança positivista” de Elton, visto que o objeto exige, conforme a leitura hermenêutica, pela sua própria natureza, uma “explicação”. Logo, “Como Gadamer gosta de sublinhar, nós estamos envolvidos num processo de interpretação logo que começamos a descrever, com as nossas próprias palavras, qualquer aspecto eu diga respeito às nossas fontes” (SKINNER, 2005c, p. 23). A aproximação com a obra de Gadamer já nos anos 1990 transparece, conforme venho sustentando, a abertura de Skinner ao diálogo. Fato importante neste movimento, contudo, é a possibilidade de interseção entre o contextualismo linguístico de Skinner e seu principal

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contraponto crítico, a hermenêutica de Gadamer. O ponto será explorado a seguir. Segundo Skinner, outra questão problemática presente nas proposições de Elton é a defesa de que o historiador deve ambicionar o conhecimento de “todos os dados” para pode contar a “verdade” sobre os fatos. Skinner questiona até que ponto podemos obter um “conhecimento total” do objeto de estudos, ainda que aceitemos a proposta do autor de direcionarmos nossa atenção para dados materiais, como uma casa, conforme seu exemplo. Mesmo tendo Elton atenuando sua proposta em elaborações posteriores – em vista da dificuldade de obtenção da totalidade dos fatos, a verdade deve ser encontrada por meio do recolhimento cada vez maior de fatos incontestáveis –, o autor enfrentou, conforme relata Skinner, críticos desconstrutivistas que afirmaram a impossibilidade de certezas absolutas no conhecimento histórico. Dessa forma, Skinner resume a proposta de Elton como a busca da verdade por meio da capacidade de desvendar e enunciar uma série de fatos, o que não elimina as dificuldades inerentes, seja da escolha dos fatos relevantes a serem investigados, sejam as dificuldades próprias do exercício de classificação por meio das palavras, como apontou (por exemplo, se o aprendiz opta por classificar as obras de arte, ele deverá decidir se o mobiliário é ou não obra de arte, ou seja, ele deverá definir o que entende por obra de arte). Novamente, Skinner flerta com outro referencial crítico ao seu programa metodológico – neste caso, a obra de Foucault – com o objetivo de afastar-se em absoluto das pretensões positivistas de Elton. Nesse momento, Skinner mostra como o aprendiz de Elton pode sentir-se perdido com relação aos fatos sobre os quais deverá se debruçar. Uma das alternativas que se apresenta é perguntar sobre objetivo do estudo: o que o historiador pretende com sua investigação? Nesse aspecto, Elton também não fornece, segundo o autor, respostas satisfatórias ao aprendiz, pois concebe a natureza do trabalho do historiador de forma particular: “‘As questões fundamentais que colocamos às nossas fontes’ devem permanecer ‘independentes das preocupações do inquiridor’. [...] O que distingue os ‘verdadeiros’ historiadores de ofício é a predisposição para concederem ao passado ‘o respeito que ele merece mas por mérito próprio’” (SKINNER, 2005c, p. 29). Poder-se-ia supor que com isso o autor defende a objetividade na investigação histórica. No entanto, sua pretensão é maior:

Segundo Elton, devemos ter o cuidado de não seleccionar os nossos tópicos de investigação com base naquilo que consideramos ser os nossos interesses ou (pior ainda) a relevância ou importância social que ele tem na actualidade. [...] O historiador deve evitar ‘justificar o seu trabalho a partir da sua utilidade social’. Proceder desta maneira é cometer ‘o erro cardeal’. É preciso não esquecer que todo o seu trabalho

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‘implica, acima de tudo, um alheamento deliberado em relação ao presente’ (SKINNER, 2005c, p. 30, grifo do autor).

Mesmo uma leitura rápida evidencia que Skinner distancia-se da proposta inicial do seu programa metodológico, ao abrir a possibilidade para inquirirmos o passado a partir de provocações do presente. Skinner critica o modo como Elton despolitiza o estudo e o ensino da histórica, defendendo sua função no debate político contemporâneo. Nessa direção, Elton fornece uma resposta para o aprendiz que coaduna, conforme sustenta Skinner, com uma determinada compreensão do próprio papel da Universidade e do conhecimento, a saber, sua defesa de que não devemos entulhar conhecimentos e ideias na cabeça dos estudantes, mas sim “exercitar sua mente” por meio do treino rigoroso em determinada disciplina.

Os verdadeiros historiadores, como refere no início, não se distinguem pelos problemas que estudam mas pelo “modo como estudam”; esses problemas podem parecer “limitados ou insignificantes”, todavia, a sua importância advém das “técnicas de estudo” que põem em prática. Esta verdade deve ser apreendida não só pelos professores de história, mas também “por todos aqueles que se interessam, de alguma forma, pelas análises históricas” (SKINNER, 2005c, p. 30-31).

A separação que Elton opera entre o conteúdo e os fundamentos das análises históricas merece atenção. Isso porque, ao operá-la, Elton defende, ao mesmo tempo, a supremacia da forma sobre o conteúdo. Novamente, Skinner critica Elton naquilo que ele próprio, Skinner, foi alvo de críticas: a sobrevalorização das discussões metodológicas em detrimento dos argumentos substantivos sobre a política. Mas é quando questionado sobre a utilidade da história para os dias de hoje, que Elton apresenta uma postura decisivamente cética, afirmando que os historiadores deveriam “abandonar e renunciar a tais aspirações. Em suas conferências, Elton declara firmemente que ‘não nos devemos preocupar muito’ com as alegadas lições da história, pois tal seria estudar o passado com um ‘objetivo inapropriado e que leva, não raro, a conclusões erradas’” (SKINNE, 2005c, p. 35). Nessa direção, Skinner mostra como em vários momentos Elton reforça a tese de que a análise histórica reside na capacidade de exercitar um certo tipo de raciocínio que serve de maneira mais adequada para o exame dos dados empíricos. Daí a propriedade da metáfora do mestre carpinteiro: não importa o que estamos a construir, se mesas ou cadeiras, mas sim se a técnica que empregamos é adequada. Logo, por trás deste entendimento subsiste uma concepção do que é o ensino que será incisivamente desafiada por Skinner.

A principal razão que pode ter levado Elton a valorizar a técnica sobre o conteúdo parece ser profundamente irónica: o medo de que a análise histórica nos possa

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transformar, ajudando-nos a reflectir mais sobre a nossa sociedade e sobre a possibilidade de a modificar e reorganizar. Embora isso me pareça estranho tendo em conta que se trata de uma pessoa que dedicou toda sua vida ao ensino, Elton tentou claramente impedir que tal acontecesse. É muito mais seguro insistir que na vida só contam os factos (SKINNER, 2005c, p. 37-38).

O ensaio “A prática da história e o culto do fato” (SKINNER, 2005C) foi publicado por Skinner nos anos 1990, duas décadas após a apresentação do programa metodológico do contextualismo linguístico. No texto, o autor mobiliza, em tom razoavelmente irônico, os argumentos do historiador britânico Sir Geoffrey Elton para desconstruir a sua defesa da primazia do fato e do método nos estudos históricos. De alguma forma, Skinner identifica em Elton algumas das características as quais ele mesmo foi acusado de sustentar (SILVA, 2010a). Sugiro que a estratégia do autor foi eleger a obra de Elton como alvo de sua crítica com o objetivo tácito de responder aos seus próprios detratores, marcando distinções importantes com relação ao que denomina “culto do fato”. Tais marcações constituem, por sua vez, argumentos importantes para esta tese, notadamente sua defesa de que o estudo da história pode servir para a intervenção no presente. A autodefesa de Skinner classifica a postura de Elton – “de que na vida só contam os fatos é” – como conservadora, mostrando como sua perspectiva inibe a possibilidade de modificação e reorganização do presente a partir dos ensinamentos históricos, ao centrar a atenção apenas no método de estudo do passado. Skinner critica, sobretudo, a definição de Elton do “verdadeiro historiador” como aquele que permanece “servo” de suas fontes. Tal como venho sustentando aqui, a partir do argumento do Lessa, a perspectiva semelhante a de Elton tem feito com que a ciência política encontre-se hoje “cativa” da realidade, abrindo mão da possibilidade de “reorganizá-la”. Esta é, de alguma forma, a pretensão do argumento aqui exposto: recuperar a tradição do pensamento político com o confessado objetivo de intervir na realidade contemporânea. Antes, porém, de avançar o argumento sobre a importância da tradição, apresento as bases do programa metodológico de Skinner, discutindo algumas de suas reformulações a partir das críticas recebidas e sistematizando, em seguida, os argumentos mais relevantes contra seu método de estudos históricos.

2.3 O programa metodológico do contextualismo linguístico

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Quentin Skinner produziu um número significativo de estudos históricos, sendo responsável por uma renovada compreensão de alguns dos mais importantes autores e obras do pensamento político ocidental. Em toda eles, com maior ou menor rigor, o historiador conduziu suas pesquisas pautado por um método de estudos que seria alvo de severas críticas. Mas foi, sem dúvida, com a publicação de “Meaning and understanding in the history of ideas”, em 1969, que Quentin Skinner impactou decisivamente o debate sobre a história das ideias políticas no século XX, lançando as bases do seu programa metodológico que seria, nas décadas subsequentes, alvo de inúmeras reações70. Segundo Skinner, o objetivo do ensaio é criticar a visão corrente à época acerca da história das ideias, ocupada em estudar e interpretar um cânone de textos clássicos como portadores de uma “sabedoria intemporal” expressa em “ideias universais”. Em síntese, Skinner pretende questionar o hábito corrente do historiador das ideias de ler os textos clássicos “como se tivessem sido escritos por um contemporâneo nosso” (SKINNER, 2005d, p. 81-82). Nessa direção, Skinner critica a proposta de buscar nos textos clássicos questões recorrentes na moralidade, na política, na religião e na vida social, desafiando a proposta de retorno aos clássicos a se cercar de métodos rigorosos com vistas a evitar erros sedutores de leitura. Nas palavras do autor,

Não é possível estudar apenas aquilo que um escritor disse (especialmente numa cultura que nos é estranha) sem que tal ponha em causa as nossas próprias expectativas e os nossos preconceitos acerca do que elas estarão a dizer. [...] O dilema daí resultante pode ser apresentado, tendo em conta os meus objectivos, em termos de uma proposição segundo a qual os modelos e os preconceitos que inevitavelmente organizam e ajustam as nossas percepções e pensamentos tenderão a actuar como factores determinantes daquilo que pensamos e apreendemos. Para compreender precisamos classificar e só podemos classificar o que não nos é familiar através daquilo que nos é familiar. O perigo recorrente, nas nossas tentativas de alargar a nossa compreensão histórica, é que as nossas expectativas acerca do que alguém estará a dizer ou a fazer acabarão por determinar a nossa compreensão, levando-nos a afirmar que o agente está a fazer algo que ele não aceitaria como sendo uma descrição daquilo que ele estava a fazer (SKINNER, 2005d, p. 83, grifo do autor).

A partir daí, seu diagnóstico é conclusivo: o historiador das ideias não tem produzido história, mas sim “mitologias”. Skinner antecipa, ainda na década de 1960, o argumento que será posteriormente elaborado sobre o “ofício do historiador”, conforme vimos acima. O curioso, porém, é que na década de 1990 ele construirá precisamente uma crítica ao modo como

70 Em 1988, James Tully editou a coletânea “Meaning and contexto: Quentin Skinner ande his critics”, publicada pela Princeton University Press. A obra é referência para este debate, já tendo republicado alguns dos textos presentes em “Visões da política”. O ensaio citado foi traduzido para o português como “Significação e compreensão na história das ideias” (SKINNER, 2005d).

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Elton defende a “verdadeira história”, distanciando-se deste por meio da defesa inconteste da “interpretação” nos estudos históricos, bem como do seu papel na luta política presente. O ponto é polêmico e será retomado a frente. Por ora, importa retermos a crítica ao modo idealizado como os historiadores das ideias construíram suas representações do passado, incorrendo em erros de interpretação. O autor aponta, assim, a existência de quatro “mitologias” para consubstanciar seu diagnóstico. (1) Mitologia das doutrinas. Segundo Skinner, por vezes o exame das ideias do passado leva o historiador a cair no paradigma de tentar “encontrar” a doutrina de um dado autor em todas as duas afirmações. Na história das ideias essa postura geralmente se manifesta no equívoco de identificar um “pensamento unitário” na obra dos autores em discussão. A primeira mitologia apresentada por Skinner aponta, com efeito, um perigo recorrente para os estudos históricos em geral, a saber, o de apresentar leituras “anacrônicas” sobre as obras do passado. Isso se traduz na tentativa de descobrir que um determinado autor teria defendido uma perspectiva específica em decorrência de semelhanças terminológicas contingentes. Skinner cita como exemplo a tentativa de identificar a doutrina da separação dos poderes na obra de Marsílio de Pádua, ou mesmo atribuir a Sir Edward Coke, em sua decisão no caso de Bonham sobre as leis tradicionais inglesas se sobreporem aos decretos parlamentares, a origem da doutrina da revisão judicial, conforme operam os comentadores norte-americanos modernos71. Contrariamente, Skinner apresenta uma questão: “Se um autor pretendia apresentar a doutrina que lhe é atribuída, porque é que ele não o conseguiu fazer de forma explícita, obrigando o historiador a reconstruir as suas alegadas intenções a partir de conjecturas e suposições?” (SKINNER, 2005d, p. 88). Nessa direção, o objetivo da história das ideias que incorre no erro da “mitologia das doutrinas” é, de acordo com Skinner, “traçar a morfologia de uma dada doutrina ‘a partir de todos os domínios da história em que ela surja’” (SKINNER, 2005d, p.88), conforme encontramos na formulação de Arthur Lovejoy. Tal postura promoveria, com efeito, determinadas restrições, responsáveis pela ocorrência do que o autor classifica como dois “absurdos” históricos: (a) primeiro, a tendência a procurar aproximações entre os tipos idealizados produz uma história quase inteiramente voltada para a identificação das “antecipações” das doutrinas (Maquiavel, no exemplo de Skinner, seria lido como alguém que

71 O jurista inglês Sir Edward Coke (1552-1634) notabilizou-se pela defesa de que a common law estava acima do Parlamento. Em 1630, ao discutir o caso do Dr. Thomas Bonham, que havia sido preso por exercer a medicina sem o certificado da Escola Real de Medicina, Coke determinou que “quando um ato do Parlamento é contrário ao direito comum e à razão, ou é repugnante ou impossível de ser exercido, a common law o moderará e o julgará nulo” (Disponível em: Acesso em: 21 nov. 2014).

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antecipa algumas das formulações de Marx). Nesse sentido, os autores do passado são julgados – recebendo elogios ou críticas –, como se possuíssem a capacidade de pensar como nós, nos dias de hoje; (b) o segundo “absurdo” recai sobre as discussões acerca de uma dada “ideia unitária” ter realmente emergido num determinado período, ou se ela está realmente presente na obra de um dado autor. Em suma, Skinner assim define a “mitologia das doutrinas”:

O primeiro esboço da mitologia das doutrinas está assim assente, nessas diferentes configurações, num erro de interpretação de observações dispersas e ocasionais produzidas por teóricos clássicos sobre os temas que os historiadores estariam à espera que eles tivessem desenvolvido. A segunda manifestação dessa mitologia, na qual pretendo centrar agora minha atenção, refere-se a uma inversão desse erro. Um autor clássico que não tenha sido capaz de criar uma doutrina reconhecível sobre um dos temas obrigatórios é criticado por não ter conseguido desempenhar a sua missão (SKINNER, 2005d, p. 91).

A investigação histórica da teoria moral e política estaria, de acordo com a crítica de Skinner, tendencialmente eivada por uma versão “demonológica” desse erro: os intérpretes contemporâneos buscam falhas nos autores do passado, por vezes depositando nos clássicos questões que os mesmos não se fizeram. Todavia, Skinner argumenta que “a versão mais influente deste tipo de mitologia [...] consiste em atribuir aos autores clássicos doutrinas que lhes são próprias mas que eles inexplicavelmente não desenvolveram” (SKINNER, 2005d, p. 92), como afirmar, por exemplo, que Marsílio de Pádua concordaria com a democracia, uma vez que a soberania por ele defendida diz respeito ao povo. A estratégia mais comum é mobilizar uma doutrina que determinado autor deveria ter desenvolvido e criticá-lo por não tê-lo feito. Outra forma corrente desta mitologia é, contudo, acreditar que os clássicos estavam a escrever contribuições sistemáticas para as disciplinas atuais. Na defesa do seu argumento, Skinner recorre a um bom exemplo: apenas nas democracias contemporâneas as eleições e a opinião pública são centrais; no entanto, Platão é comumente criticado por não ter refletido corretamente o papel da opinião pública, manifestando o erro denunciado por Skinner em seu diagnóstico. (2) Mitologia da coerência. A segunda forma de mitologia apontada por Skinner consiste em atribuir aos clássicos uma coerência que pode não existir em suas obras. Por vezes, a interpretação leva o estudioso a proceder uma leitura sistemáticas dos textos clássicos em busca de uma coerência interna de sua doutrina que deve ser “descoberta”. Nessa perspectiva, “a ambição é ‘chegar’ a uma ‘interpretação unificada’, de forma a ‘atingir’ uma ‘visão coerente do sistema de um autor’” (SKINNER, 2005d, p. 97). Isso resultaria, de acordo com Skinner, não em história, mas sim numa metafísica, no sentido pejorativo do termo, sobretudo em

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decorrência de dois fatores: (a) com o objetivo de extrair o máximo de coerência, pode-se não dar importância às declarações de intenção que os próprios autores produziram para justificar seus argumentos, ou até mesmo desvalorizar determinadas obras que possam comprometer a coerência do seu sistema de pensamento; (b) os obstáculos à coerência interna devem ser percebidos pelo intérprete como contradições ou, no limite, aparentes contradições. Logo, não é permitido, por exemplo, a Marx ter mudado de opinião entre os escritos humanistas dos anos 1840 e a visão delineada 20 anos depois no “Capital”. (3) Mitologia da prolepse. A terceira mitologia descrita por Skinner mostra o erro de se estar mais interessado no significado retrospectivo de um dado episódio, do que no seu significado para o autor que o vivenciou. Nas palavras do autor, “a mitologia da prolepse serve para ilustrar a assimetria entre o significado que um observador considera ter encontrado num dado episódio histórico e o significado do próprio episódio” (SKINNER, 2005d, p. 104). Exemplos desse procedimento seriam, na lembrança de Skinner, associar Platão e Rousseau ao totalitarismo. Em síntese, conforme denuncia a mitologia da prolepse, o episódio descrito teria que esperar pelo futuro para que pudesse ser desvendado. A crítica de Platão ao mundo da doxa, ou a defesa de Rousseau da “vontade geral”, tiveram que aguardar a emergência do totalitarismo no século XX para que pudessem ser compreendidas enquanto tal. (4) Mitologia do paroquialismo. A quarta mitologia diagnosticada por Skinner aponta a presença de análises históricas sem amplitude. Isso porque, mesmo se o objetivo for descrever o conteúdo de um dado texto clássico, Skinner nos mostra como o historiador pode incorrer em erros “provincianos”, como a sistematização equivocada do sentido geral do texto, os perigos decorrentes da tentativa de compreensão de um “esquema conceitual” próprio de outra cultura, que não a nossa, e, por fim, a sedução de encontrar algo “familiar” e proceder, a partir daí, uma descrição limitada. É precisamente aqui que o autor introduz outro importante elemento para a montagem do seu programa metodológico. Ao lado da denúncia do “anacronismo”, Skinner aponta a noção de “influência” como um dos problemas a serem controlados pela produção de uma história das ideias efetivamente histórica. Sobre este ponto, Skinner é claro:

A análise da história das ideias está marcada por duas formas particulares dessa estreiteza de espírito. Em primeiro lugar, há o perigo de o historiador fazer um uso errado da sua posição privilegiada na descrição da aparente relação de alguma afirmação num texto clássico. Um argumento numa obra pode fazer lembrar ao historiador um argumento similar apresentado noutra obra mais antiga ou que aparentemente o contradiz. Em qualquer dos casos, o historiador pode partir erradamente do princípio que era a intenção do autor referir-se a esse outro autor mais antigo e, desse modo, acaba por referir-se, incorretamente, à “influência” dessa obra

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mais antiga (SKINNER, 2005d, p. 106, grifo do autor).

Skinner argumenta que em geral a descrição de “influências” é puramente mitológica, pois carece de comprovações históricas. Assim, para explicar a presença de uma doutrina num dado autor mais contemporâneo através da “influência” de um autor mais antigo, seria necessário um conjunto razoavelmente complexo de provas: (a) que o autor contemporâneo reconhecidamente estudou as obras do autor mais antigo; (b) que autor contemporâneo não poderia ter encontrado as doutrinas em causa em qualquer outro autor que não o autor antigo em questão; e (c) que o autor contemporâneo não poderia ter alcançado sozinho a elaboração da doutrina em questão (SKINNER, 2005d, p. 107-108). Em suma, as provas exigidas pelo autor desafiam, na prática, qualquer possibilidade efetiva de comprovação da “influência” de um dado autor antigo sobre outro autor contemporâneo. A passagem é central para o argumento aqui defendido. Ao sustentar a possibilidade de mapearmos uma tradição de pensamento republicano no pensamento político, assumo, por conseguinte, a “influência” de um quadro determinado de autores sobre a reflexão contemporânea. Mais ainda, sustento a possibilidade de que tal influência possa, sobretudo, traduzir pretensões normativas sobre o presente. Assim como o próprio Skinner apregoa, a escrita carrega um inescapável artifício retórico, que deve ser buscado no significado das expressões normativas mobilizadas nas disputas contextuais. O argumento aqui avançado não destoa dessa perspectiva, recorrendo, por certo, a um conjunto de expressões extraídas da tradição do pensamento político, com o confessado objetivo de tomar partido na luta política atual. O historiador aponta, ainda, outro perigo decorrente da mitologia da prolepse:

A outra forma dominante dessa estreiteza de espírito deriva do facto de os analistas utilizarem de forma errada, inconscientemente, a sua posição privilegiada na descrição do sentido de uma dada obra. Há sempre o perigo de o historiador estruturar o argumento de tal maneira que os seus elementos não familiares acabam por se dissolver numa familiaridade enganadora (SKINNER, 2005d, p. 108, grifo do autor).

A associação da defesa de Locke contra os governos tirânicos, elaborada por meio da noção de “direito de resistência”, à defesa de um governo por consentimento é o exemplo mencionado por Skinner para ilustrar o engano apontado. Isso porque, Locke nos fala da origem das sociedades políticas quando mobiliza a noção de consentimento, e não da legitimidade de disposições legais numa associação civil. Skinner reforça, assim, o perigo do historiador das ideias abordar suas fontes portando paradigmas preconcebidos.

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Em síntese, não se pode afirmar que um determinado autor pretendia ou tenha atingido algo que ele nunca tenha aceito como uma descrição daquilo que ele queria dizer ou alcançar. Isso não exclui, porém, a possibilidade de análises mais completas, indisponíveis para o autor (Skinner lembra das possibilidades de análise abertas pela psicanálise, por exemplo). Todavia, essa demonstração depende, segundo Skinner, da utilização de critérios de classificação que estavam disponíveis ao autor. Dessa forma, ao levarmos em consideração a intenção dos autores, determinadas questões podem, aos olhos dos historiadores, se mostrarem inúteis (como se perguntar se Marsílio de Pádua antecipou a doutrina da separação dos poderes, no exemplo recorrentemente citado por Skinner). Feito o diagnóstico acerca dos problemas decorrentes do modo como a história das ideias tradicional opera, Quentin Skinner parte, na seção final do ensaio, para a construção da sua proposta. O historiador organiza, assim, uma agenda negativa de crítica ao estado da arte da disciplina à época, para em seguida apresentar uma agenda positiva, apontando caminhos a serem seguidos para a necessária renovação da história das ideias políticas. Malgrado a extensão do trecho citado a seguir, creio que ele resume a essência do argumento de Skinner ao apontar as duas razões que justificam o seu programa.

Na minha opinião, a abordagem acima analisada não nos permite, em princípio, compreender adequadamente os textos que estudamos na história do pensamento. [1] A razão fundamental, caso queiramos compreender um texto dessa natureza, é que deveremos ser capazes de interpretar não apenas o significado do que foi dito, mas também a intenção que o autor em questão pode ter tido ao dizer aquilo que disse. Um estudo que se concentre exclusivamente naquilo que um autor disse acerca de uma dada doutrina, não apenas será inadequado, como também, em alguns casos, será a chave errada para interpretar o que o autor em questão pretendia dizer ou fazer. Consideramos agora este ponto óbvio: os significados dos termos que utilizamos para expressar os nossos conceitos mudam por vezes com o tempo, de tal forma que uma análise daquilo que um autor disse acerca de um dado conceito pode levar-nos a interpretar erradamente o significado do texto. [...] [2] Uma segunda e mais importante razão para pensar que aquilo que um autor diz acerca de uma dada doutrina pode revelar-se uma forma enganadora de chegar ao que ele queria dizer é o facto de os autores utilizarem frequentemente, e de forma deliberada, aquilo que poderíamos designar por estratégias retóricas oblíquas. Dessas, a mais óbvia é a ironia, a qual implica com que se distinga aquilo que é dito e aquilo que se pretende dizer (SKINNER, 2005d, p. 113-114, grifo do autor).

A proposta de Skinner é, assim, cabal: ele defende como pretensão legítima do historiador das ideias não a descoberta do que o autor do passado disse, mas sim a busca das suas intenções ao dizer. Mesmo a mudança de determinados significados e a presença de ironias que podem conduzir o intérprete ao engano são apontadas por Skinner como razões concentrarmos nossas atenções na intencionalidade. Por certo, é difícil sabermos até que ponto o fato de lermos um texto repetidas vezes nos permite passar daquilo que é dito para uma

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compreensão daquilo que se pretendia. O objetivo de Skinner é questionar a metodologia por trás das interpretações revisionistas que acreditam na possibilidade de um exame profundo dos textos do passado por si próprios ser suficiente para a construção das interpretações. No seu entendimento, os argumentos revisionistas implicam aceitação de algumas conjecturas peculiares sobre os autores e a época em que viveram. Logo, para compreendermos uma afirmação importante devemos, na defesa de Skinner, procurar não apenas o significado do que foi dito, mas também o que o autor “estava a fazer quando disse” (SKINNER, 2005d, p. 117). Precisamente neste ponto transparece a influência das contribuições de Wittgenstein e John Austin. O ponto, já anunciado anteriormente, será melhor discutido a seguir. Por ora, Skinner apresenta um exemplo, extraído dos trabalhos de Richard Popkin sobre a histórica do ceticismo, para ilustrar seu argumento: ao invés de buscar o significado de sua obra, devemos perguntar o que Descartes pretendia ao expor a sua doutrina da certeza do modo como expôs. Isso é compreender sua intencionalidade no contexto onde seus argumentos foram gestados. Popkin vem, nesse sentido, demonstrando como a obra de Descartes é uma reação ao ceticismo e com isso tem permitido aos estudiosos contemporâneos o entendimento de pontos outrora obscuros (POPIKIN, 2000). Sua contribuição nos faz refletir sobre questões caras ao programa skinneriano, como “porque é que o texto está organizado de certa maneira; porque é que se utiliza um determinado vocabulário e não outro; porque é que certos argumentos, em particular, são escolhidos e sublinhados; porque é que, em geral, o texto possui uma identidade e uma configuração específicas” (SKINNER, 2005d, p. 119). Conforme enunciado logo na apresentação de “Visões da política”, Skinner concentra sua crítica no modo como Arthur Lovejoy elabora sua história das ideias, baseado na busca do que o historiador define como “ideias unitárias”. Em linhas gerais, trata-se de analisar um determinado tema considerado importante, embora difícil de ser captado, durante certa época. Contrariamente, Skinner afirmar que: (1) se quisermos compreender uma determinada ideia, devemos estudar os diferentes contextos em que ela foi utilizada. Lovejoy erra, no entender do autor, ao considerar imutável o significado da ideia, e também ao supor um significado essencial; (2) Lovejoy não consegue, igualmente, enxergar qual o papel da ideia no pensamento do autor, nem qual o lugar por ela ocupado no clima intelectual do período em que foi elaborada. Skinner conclui, assim, que não existe uma história das ideias, mas sim uma história dos seus diferentes usos e das diversas intenções que seus usos comportam. Segundo o autor,

Na verdade, a persistência no uso de determinadas expressões diz-nos muito pouco de fidedigno acerca da persistência das questões que elas supostamente estariam a responder, como também nos dizem muito pouco sobre o que os diferentes autores

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queriam realmente transmitir com a sua utilização. Em síntese, quando percebemos que há sempre uma questão que precisa de ser respondida acerca daquilo que os autores estão a fazer quando afirmam determinadas coisas, parece-me que devemos deixar de lado a pretensão de organizar as nossas histórias em torno de “ideias unitárias” ou daquilo que os autores individualmente disseram sobre os “temas eternos” (SKINNER, 2005d, p. 121, grifo do autor).

Skinner não pretende, com isso, negar a presença de continuidades na filosofia social e moral do Ocidente. Seu objetivo é escapar da organização da história das ideias em torno de “ideias unitárias” e “temas eternos”. Isso porque, seu erro “reside em supor que existe um conjunto de questões que os diferentes pensadores procuraram analisar” (SKINNER, 2005d, p. 122). Contrariamente, devemos concentrar nossos estudos nas continuidades, mas buscando a contribuição particular de cada autor em seu próprio tempo. Logo, “A única história das ideias que deve ser feita é a história dos usos a que as ideias estão sujeitas” (SKINNER, 2005d, p. 123). Skinner deriva, a partir daí, algumas conclusões gerais: (1) a compreensão dos textos implica procurar o sentido que lhes está subjacente e a forma como seus autores pretendiam que esse sentido fosse apreendido; (2) o estudo da história das ideias conserva uma importância para a análise filosófica, notadamente em relação a inovação conceitual, a mudança linguística e a mudança ideológica; e (3) o mais importante, o programa proposto mostra como determinadas questões atribuídas aos textos clássicos são ingênuas, conforme aponta Collingwood, “não existem temas eternos na filosofia. Existem apenas respostas individuais a questões individuais e provavelmente questões tão diversas quanto os pensadores que as colocam. Em vez de nos preocuparmos com as ‘lições’ da história das ideias, faríamos melhor em aprender a pensar por nós próprios” (SKINNER, 2005d, p. 125). Isso não significa, porém, que Skinner negue qualquer valor filosófico à história das ideias. O estudo do passado pode, seguramente, nos mostrar soluções distintas para os problemas enfrentados, permitindo com que sejamos capazes de refletir sobre questões atuais. O estudo da história das ideias conforme a metodologia proposta, permite com que enxerguemos como fruto da contingência o que antes era tido como verdade intemporal. Skinner encerra o artigo com uma provocação final:

Exigir à história do pensamento uma solução para os nossos problemas imediatos é incorrer não apenas numa falácia metodológica mas também num erro moral. Pelo contrário, aprender com o passado – e não há outra forma de aprender – a estabelecer uma distinção entre o que é essencial e o que não passa de um produto contingente das nossas próprias convenções locais é encontrar uma das chaves do auto- conhecimento (SKINNER, 2005d, p. 126).

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Em consonância com a crítica dirigida por Skinner à obra de Elton, o estudo da história é aqui descrito a partir da sua relevância para a desnaturalização de concepções presentes. Isso não implica, porém, o abandono do rigor metodológico na condução das pesquisas. Ainda assim, Skinner parece reagir a mais uma acusação dirigida ao seu programa: se na discussão sobre o “ofício do historiador” ele rejeita a pecha de positivista, agora, no encerramento do clássico ensaio sobre a metodologia para uma nova história das ideias, Skinner nega que seu trabalho concentre-se apenas sobre descobertas “antiquárias”, enfatizando, mais uma vez, sua contribuição para o presente. Resta agora apreendermos como o historiador esmiúça sua recepção da filosofia da linguagem.

2.4 A reação de Skinner aos críticos

A opção por discutir aqui alguns dos ensaios metodológicos de Skinner republicados, com substantivas alterações, em “Visões da política” (SKINNER, 2005), justifica-se, conforme enunciei anteriormente, pela possibilidade de diálogo aberta pela reação do próprio autor à fortuna crítica de sua obra. Mais do que isso, o modo como Skinner atenua algumas de suas formulações originais, bem como o questionamento sobre ter o historiador seguido, nos demais trabalhos, o método por ele mesmo elaborado, abrem a possibilidade de aproximarmos a história das ideias políticas na chave skinneriana ao argumento proposto na tese, a saber, a construção de um ideal normativo de república a partir da ideia de “tradição”. Já no texto introdutório aqui discutido acerca do “ofício do historiador”, Skinner formula algumas importantes inflexões. Mas é em “Motivos, intenções e interpretação” (SKINNER, 2005e), publicado ainda na década de 1970, que Skinner transparece as primeiras reações ao impacto causado por “Meaning and undertanding”. Diante da constatação de um “ceticismo” reinante na “época pós-moderna”, que teria colocado em cheque o projeto humanista tradicional de interpretação de textos, o autor faz um questionamento central: até que ponto se justifica falar em recuperação de motivos e intenções dos autores na distinção entre leituras aceitáveis e não aceitáveis dos textos filosóficos? Skinner antecipa, já na abertura do ensaio, dois elementos que serão detidamente trabalhados ao longo do argumento: (1) a distinção entre “motivos” e “intenções”, negligenciada pelos críticos, mas substantiva no seu entendimento. Tal distinção requer, antes, o entendimento de diferentes noções de “significado”, conforme veremos a seguir; e (2) a aceitação da existência de “leituras

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aceitáveis” e “não aceitáveis” dos textos filosóficos, conservada, no entanto, a ressalva feita inicialmente sobre o “ofício do historiador”. Algumas escolas de pensamento, de acordo com Skinner, convergiram na ideia de que questões relativas aos autores, às intenções e aos significados dos textos devem ser abandonadas. Este é o caso do New Criticism – corrente representada por autores conhecidos, Roland Barthes e Michel Foucault –, que lançou um ataque virulento contra a possibilidade de recuperação da intencionalidade autoral. Seu impacto no plano dos estudos literário e filosóficos foi, por certo, significativo. Entretanto, foi, no entendimento de Skinner, a campanha de Jacques Derrida, desencadeada no final da década de 1960, a mais prejudicial contra o programa histórico de resgate das intenções autorais, ao afirmar que a própria ideia de interpretação textual é um erro. Skinner classifica tais ataques como “céticos” e adota uma interessante estratégia. Antes de apresentar seus argumentos, autor desgasta as diferentes teses contra a possibilidade de resgate da intenção autoral colocando-as umas contra as outras. O historiador ocupa-se, assim, de rebater os argumentos contrários mostrando como seus expoentes mobilizam distintos conceitos de “significado” que devem, com efeito, serem esclarecidos com vistas a evitarmos erros de interpretação. Skinner aponta a existência de três tipos de significado: (1) O significado [1], aparentemente utilizado por alguns membros do New Criticism para denunciar a falácia da intencionalidade, pode ser assim descrito: “O primeiro é que colocar a questão acerca do significado neste contexto é quase o mesmo que perguntar: o que é que as palavras significam ou o que é que certas palavras ou frases específicas significam num determinado texto? [A este significado chamarei significado (1)]” (SKINNER, 2005e, p. 128, grifo meu). Segundo Skinner, Derrida também refere-se ao significado [1] quando associa a sua recuperação com o que ele denomina “logocentrismo”, ou seja, a crença de que os significados existem no mundo e nos chegam por meio das palavras que os designam. Conforme observa o historiador, Derrida utiliza o vocabulário heideggeriano para argumentar que essa crença dá origem a uma “metafísica da presença”, nos dando a ilusão de que a verdade sobre o mundo está disponível ao nosso raciocínio por intermédio da “linguagem denotativa”; (2) O significado [2] pode, nas palavras de Skinner, ser assim descrito: “Ao contrário do significado (1), podemos perguntar: o que é que este texto significa para mim? [Chamarei a este significado (2)]” (SKINNER, 2005e, p. 129-130, grifo meu). Este parece ser, com efeito, o conceito mobilizado pelo New Criticism em geral, ao apontar as questões envolvidas na recepção do texto. Os teóricos que se mostraram mais interessados por esse conceito foram, de acordo com Skinner, os adeptos das “teses da fenomenologia” que formularam a abordagem

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interpretativa denominada reader-response, como o exemplo notório de Paul Ricoeur. Este “admite que os textos podem ter sido concebidos, na sua origem, com significados específicos, mas refere também que, com o decorrer do tempo e devido às características polissémicas e metafóricas da linguagem, todos os textos adquirem ‘um campo de significado autónomo que deixa de estar dependente da intenção do seu autor’” (SKINNER, 2005e, p. 130). Dessa forma, devemos nos concentrar na interpretação dos textos a partir dos nossos próprios objetivos, pois o ato de interpretar nos coloca perante questões distintas; (3) Já o significado [3] é resumido pelo historiador da seguinte forma: “Em vez de nos questionarmos acerca do significado (1) ou do significado (2), devemos antes perguntar: o que é que um escritor quer dizer com aquilo que afirma num determinado texto? [Chamarei a este significado (3)]” (SKINNER, 2005e, p. 131, grifo meu). Conforme afirma Skinner, é este o significado que Derrida diz ser impossível recuperar ao mobilizar um excerto de Nietzsche – “esqueci-me do meu guarda-chuva” –, para dizer que o autor pode, com tal pronunciamento, não ter querido dizer nada. Logo, Derrida afirma não ser possível recuperar o significado (3). A reação de Skinner aos críticos caminha, em seguida, numa direção importante: a distinção entre “motivos” e “intenções”. Sua proposta é examinar os diferentes argumentos que têm sido mobilizados contra a tese do contextualismo linguístico, de que devemos recuperar os motivos e intenções dos autores na compreensão do significado das obras. Conforme defende Skinner, há dois argumentos contra seu programa metodológico que devem ser diferenciados. (1) O primeiro defende que “todas as obras de arte têm de se explicar a si próprias” (SKINNER, 2005e, p. 133). Conforme parte do New Criticism defende, mesmo que sejamos capazes de acessar a informação biográfica dos autores, não devemos fazê-lo sob o risco de contaminar nossa compreensão da obra; (2) um outro argumento influente elencado por Skinner deriva, contudo, de duas teses opostas. (2.1) Uma delas defende que os críticos não devem prestar atenção nos motivos e intenções dos autores, pois podemos encontrá-los somente no interior do texto. Nesse sentido, o crítico descobre o que o poeta pretende apenas se o poeta conseguir, por meio do texto, fazer-se entender; (2.2) a outra tese, incompatível com a anterior, defende, contrariamente, que os motivos e intenções são “exógenos” ao texto, não compondo sua estrutura. Assim, o crítico deve abster-se de procurá-los, concentrando-se somente no texto. Skinner afirma, ainda, a possibilidade de identificarmos três razões distintas para justificar a não atenção aos motivos e intenções, precisamente por estarem ambos “para além” do texto. (1) A primeira aponta a impossibilidade de recuperarmos motivos e intenções, por se tratarem de “entidades íntimas às quais ninguém consegue ter acesso” (SKINNER, 2005e, p. 134); (2) a segunda afirma que mesmo que seja possível recuperarmos os motivos e intenções,

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ao mobilizarmos ambos incorremos num padrão não desejável de valoração da obra literária ou filosófica; (3) a terceira razão em discussão argumenta que embora sejamos capazes de recuperar motivos e intenções, ambos não são relevantes para a compreensão do significado. Sobre a terceira razão, Skinner enfatiza a perspectiva de Ricoeur:

Um argumento similar tem sido sustentado, no que toca à interpretação dos textos, pela perspectiva fenomenológica e, mais genericamente, pela abordagem do reader- response. Como vimos, um teórico como Ricoeur não tem dúvidas em afirmar que os textos possuem significados “prístinos” e concebidos de forma consciente; considera apenas que a sua reconstituição é um assunto de importância secundária quando comparado com a tarefa essencial e muito mais interessante de investigar os “significados sociais” que eles vão adquirindo ao longo do tempo (SKINNER, 2005e, p. 136, grifo do autor).

Pode-se argumentar, em consonância com a perspectiva de Ricoeur, que conhecer os motivos e intenções é um exercício irrelevante para a compreensão do significado do texto, em qualquer das três acepções de significado anteriormente apontadas. A ênfase na fenomenologia de Ricoeur transparece, conforme argumento aqui, uma importante reformulação de Skinner sobre um ponto central do seu programa metodológico. Isso porque, o historiador reconhecerá a validade do argumento de Ricoeur sobre a existência de diferentes significados no interior do texto, muitos deles atribuídos pelos intérpretes sem que coincidam necessariamente com a intenção do autor (SKINNER, 2005f). Nessa perspectiva, as intenções dos autores mostrariam apenas o que eles quiseram dar a entender com elas, mas não impediriam que outros significados possam ser atribuídos ao longo da interpretação. Este reconhecimento é central para o argumento aqui em curso, pois ao abrir a possibilidade para a existência de outros significados dentro do texto, Skinner reconhece o diálogo, ou a crítica, da hermenêutica de Ricoeur, promovendo uma revisão substantiva do seu argumento inicial. No entanto, Skinner afirma ser inegável que o conhecimento dos motivos e intenções altera a interpretação do significado dos textos, condicionando, por conseguinte, a recepção da obra dos autores em questão. Nas palavras do autor,

Conhecer motivos e intenções é conhecer a relação que um autor estabelece com o que ele ou ela escreveram. Conhecer as intenções é perceber se o autor estava a gozar, se estava a falar a sério ou se estava a ser irónico ou, de uma forma mais geral, saber que actos discursivos estaria a levar a cabo quando escreveu o texto em questão. Conhecer os motivos significa tentar saber quais as razões que levaram o seu autor a realizar esses actos discursivos, isso para além do seus carácter e do seu estatuto de verdade enquanto proposições (SKINNER, 2005e, p. 136).

No que se refere aos argumentos que derivam da análise dos próprios conceitos de

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motivo e de intenção, teríamos, segundo Skinner, três argumentos centrais: (1) o primeiro argumento parte da ideia de que não podemos recuperar atos mentais, sendo que as intenções envolvidas em qualquer comunicação bem-sucedida são publicamente acessíveis. Tal como no exemplo dado por Wittgenstein do homem que acena à distância, só compreenderei se ela está afastando uma mosca ou me alertando para algum perigo, em outras palavras, só compreenderei o significado do seu ato se as intenções subjacentes a esse ato forem entidades com um caráter essencialmente público; (2) o segundo argumento incorre no erro de supor que o conhecimento dos motivos e intenções pode fornecer-nos algum padrão para julgarmos o mérito ou sucesso da obra. Skinner rejeita, de pronto, a valoração de uma determinada obra a partir desta perspectiva; (3) já o terceiro argumento parece, conforme anunciamos acima, parcialmente correto, pois ainda que não seja válido no que se refere às intenções dos autores, ele acerta ao apontar que seus motivos vão muito além das obras, de tal maneira que a reconstituição dos motivos é irrelevante para a compreensão do significado. No entanto, Skinner afirma, como movimento decisivo do seu texto, que toda a discussão parece descuidar a importante distinção entre “motivos” e “intenções” quando lidamos com a questão da interpretação. Nesse sentido, o autor define que (1) falar dos “motivos” é falar de uma condição que antecedeu a criação da obra, ao passo em que (2) falar das “intenções” pode designar tanto um plano, como uma referência a uma determinada obra. Por conseguinte,

No primeiro caso, tudo indica (como quando falamos acerca de motivos) que se trata de uma condição contingente que antecedeu o surgimento da obra. Mas no último caso, parece tratar-se de uma característica própria da obra. Mais especificamente, parece tratar-se de uma caracterização da obra como personificando um objectivo ou intenção particulares e, nesse sentido, como perseguindo um propósito em particular (SKINNER, 2005e, p. 139).

É precisamente aqui que o autor recorre aos filósofos da linguagem, notadamente aos estudos de John Austin, para argumentar que o ato de fazer uma afirmação peremptória não transmite apenas um significado, mas possui o que Austin define como “força ilocucionária”.

A forma como Austin normalmente coloca a questão é dizer que quando “entendemos” a força ilocucionária de uma afirmação isso significa compreender aquilo que o seu autor estava a fazer ao exprimir-se daquela maneira. Todavia, outra forma de colocar a questão – crucial para o meu argumento – seria dizer que a compreensão do acto ilocucionário levado a cabo pelo seu autor corresponderá à compreensão das suas intenções primárias ao exprimir-se daquela maneira (SKINNER, 2005e, p. 139).

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A distinção operada por Skinner entre motivos e intenções é, com efeito, central para o desenvolvimento do argumento. Isso porque, o historiador afirmar que quando nos referimos aos motivos estamos a falar de fatores “externos” e contingentes à obra. O que ele defende, por sua vez, “é que podemos falar das intenções de um autor no acto da escrita, residindo elas, em certo sentido, ‘dentro’ dos seus textos, e não no ‘exterior’, numa relação contingente à sua produção” (SKINNER, 2005e, p. 140). Assim, é precisamente porque as intenções encontram-se no interior da obra que o crítico deve, no entendimento de Skinner, dedicar especial atenção na sua reconstituição para compreender o significado dos textos. Recorrendo novamente à tipologia dos atos de fala formulada por Austin, se, por um lado, podemos nos perguntar sobre o que o autor pretendia ao escrever de uma certa forma (intenções perlocucionária), o objetivo do contextualismo linguístico, por outro, é discutir o que o autor poderia ter pretendido comunicar ao escrever de uma certa maneira (intenções ilocucionária). A busca do significado exige, de acordo com Skinner, uma análise que independe do autor ter ou não conseguido atingir o que pretendia. O historiador retoma, com efeito, a distinção operada no início do ensaio para, a partir de então, concluir seu argumento. Logo, (1) se pensarmos no significado de tipo [1], dificilmente a intenção ilocucionária interessara no processo de compreensão. (2) Se penarmos, por outro lado, no significado de tipo [2], parece evidente que a compreensão da intenção dos autores pouco importa na discussão sobre o significado da obra para um determinado leitor. Porém, (3) quando o objetivo é o significado de tipo [3], é relevante conhecer as intenções de um autor no ato da escrita. Dessa forma, Skinner chega a estabelecer a equivalência entre as intenções do autor no ato da escrita e o significado [3]: “Como antes referi, saber o que um autor queria dizer numa determinada obra significa descobrir quais as intenções dele ou dela quando escreveram o que escrevera” (SKINNER, 2005e, p. 142, grifo do autor). Após reagir aos argumentos direcionados contra o seu programa metodológico, Skinner se resguarda de duas críticas correntes, reformulando de maneira clara três dos seus pressupostos: a intencionalidade como objeto de interpretação, a autoridade do autor na definição do significado, e as convenções linguísticas como indicadores do contexto. Nessa direção, o autor nos diz:

Tem sido muitas vezes sugerido que “o principal critério para aferir o rigor” da interpretação só pode ser fornecido pela análise do contexto original em que a obra foi produzida. [...] Não vejo nenhum inconveniente, quando estamos a referia a uma obra, em atribuir-lhe um significado que o seu autor nunca poderia ter concebido. Nem tão-pouco a minha tese entra em conflito com essa possibilidade. A minha

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preocupação sempre esteve centrada no oposto: independentemente daquilo que o autor estava a fazer no acto da escrita, tal será sempre relevante para o acto interpretativo e, nesse sentido, entre as tarefas de qualquer intérprete dever-se-á incluir a reconstituição das intenções do autor ao escrever o que ele ou ela escreveram (SKINNER, 2005e, p. 143, grifo do autor).

Fica clara no trecho citado a tarefa do intérprete: centrar-se sobre a intencionalidade. Dessa forma, se o objetivo é recuperar a intenção dos autores, devemos estar preparados para conceder-lhes total autoridade na produção dos significados? Sobre este ponto, Skinner é igualmente claro:

Como é óbvio, o agente ocupa uma posição privilegiada quando se trata de caracterizar as suas próprias intenções e acções. Ainda assim, não vejo qualquer problema em conciliar a ideia de que devemos ser capazes de caracterizar as intenções de um autor caso queiramos interpretar o significado 3 das suas obras com a outra ideia segundo a qual é por vezes aconselhável relativizar as suas próprias afirmações acerca daquilo que estavam a fazer. Não quer isto dizer que não seja importante compreender tais intenções para nos orientarmos na interpretação das suas obras. O que me parece é que um autor pode não estar totalmente consciente das suas intenções, pode enganar-se a si próprio quando as explica ou pode ser incompetente na forma como as expõe. Trata-se de enganos que todos, inevitavelmente, acabamos por cometer (SKINNER, 2005e, p. 143-144).

Por fim, é importante percebermos que a compreensão do significado por meio do resgate da intenção autoral depende, ainda, do reconhecimento das convenções linguísticas em vigor no ato da comunicação. Isso porque,

Se quisermos compreender aquilo que um autor pretendia com a utilização de um determinado conceito ou argumento, devemos, em primeiro lugar, captar a natureza e o tipo de coisas que poderiam, reconhecidamente, ter sido realizadas com esse conceito em particular, como tratamento desse tema em particular e nessa época em particular (SKINNER, 2005e, p. 144).

Ao enfatizar as convenções linguísticas como objeto de análise do historiador, Skinner manifesta sua proposta de renovação da história do pensamento político dentro do conhecido “giro linguístico”. Ainda que sua busca pelo contexto possa sugerir que o historiador deva, segundo o método proposto, concentrar-se em algo para além do texto, Skinner mostra como o entendimento das convenções linguísticas configura o texto como objeto. Skinner não esconde ter se apropriado inventivamente a teoria de Austin. É o que observamos em sua reação aos críticos que denunciaram a aplicação a teoria dos atos de fala na interpretação dos textos, em razão de uma interpretação errada da própria teoria. Segundo o historiador, os críticos não conseguiram captar a essência da distinção de Austin entre força ilocucionária – o recurso da linguagem –, e ato ilocucionário – a capacidade dos agentes

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explorarem esse recurso num processo de comunicação. A força ilocucionária de um ato é, de acordo com Skinner, determinada pelo contexto em que ele ocorre. Dessa forma, em razão da riqueza de qualquer língua, a maioria de nossas afirmações incluirão algum elemento com força ilocucionária não intencional, o que não me permite dizer que exista uma categoria de atos ilocucionários não intencionais. Contudo, a teoria de Austin “não afirma que as intenções dos autores dos discursos, sejam eles orais ou escritos, constituem o único ou melhor guia para a compreensão dos seus textos ou outras expressões discursivas” (SKINNER, 2005f, p. 155, grifo do autor). Skinner mostra como a preocupação principal de alguns dos seus críticos não tem sido, contudo, com o significado, mas antes a concretização de atos ilocucionários. A questão de saber o significado pretendido pelo orador levanta ainda complicadores, conforme aponta do historiador, em pelo menos dois outros casos: (1) o primeiro quando o intérprete se vê confrontado com códigos retóricos dissimulados, como o caso da ironia, quando o intérprete enfrenta a dificuldade adicional de saber se o autor pretendeu realmente atribuir o significado àquilo que disse.

Por outras palavras, o problema de detectar a ironia diz respeito não ao significado mas aos actos ilocucionários. O autor irónico produz uma afirmação com um determinado um significado. Ao mesmo tempo, tudo indica que esse autor esteja a levar a cabo um acto ilocucionário que é aquele convencionalmente atribuído a essas afirmações (SKINNER, 2005f, p. 157).

(2) Os outros casos colocam problemas específicos, como o do orador ou escritor que produz uma afirmação séria, mas não consegue esclarecer o sentido exato pretendido, seja pela falta de um motivo padrão que permita a compreensão do intérprete, seja porque o significado da afirmação ser evidente num determinado contexto, levando o autor a não duvidar da capacidade do leitor de compreender o ato ilocucionário pretendido. Certamente, quando tratamos textos históricos, escritos para um público que já não somos, a dimensão da reconstituição fica dificultada, conforme reconhece o próprio Skinner. Contudo, sem a reconstituição daquilo que o autor queria ao proferir determinadas sentenças a compreensão fica arredada.

Resumindo: distingui duas questões relativamente ao significado e à compreensão dos textos. Uma é a questão de saber aquilo que um texto significa, a outra é a questão de saber o significado que um autor pode ter pretendido transmitir. Defendi que, se quisermos compreender um texto, deveremos responder a ambas as questões. Todavia, se é verdade que essas questões são distintas, no final deixam de o ser. Se é meu objetivo compreender o significado que alguém pretendeu atribuir àquilo que afirmou, devo em primeiro lugar ter a certeza de que o significado daquilo que foi afirmado era

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o pretendido. [...] Qualquer texto incluirá normalmente um significado intencional e a reconstituição desse significado é uma pré-condição para compreendermos o significado que o seu autor poderá ter pretendido transmitir. Mas um texto com alguma complexidade incluirá sempre muitos outros significados que até o autor mais vigilante e imaginativo jamais poderia ter pretendido atribuir às suas afirmações. Paul Ricoeur referiu-se a estes significados que vão para além das intenções dos autores, um argumento com o qual concordo plenamente. Deste modo, longe de mim supor que os significados dos textos podem ser identificados com as intenções dos seus autores; aquilo que deve ser identificado através dessas intenções é apenas o que os seus autores quiseram dar a entender com elas (SKINNER, 2005f, p. 159-160).

Novamente, Skinner assimila parte da crítica dirigida a sua obra, agora reconhecendo a validade parcial dos argumentos de Paul Ricoeur. Com isso, mesmo o questionamento sobre o lugar da “intencionalidade” dos autores nos textos do passado foi reavaliado por Skinner. O objetivo da próxima seção é sistematizar as críticas dirigidas ao historiador, abrindo, com isso, caminho para sua aproximação com a obra de Gadamer. Isso não implica, porém, desconsiderarmos sua influência marcante na demarcação metodológica do estudo do pensamento político. A afirmação inicial que marca a posição de Skinner permanecerá, com efeito, a mesma: “A inexistência de ‘ideias perenes’ na história da teoria política decorre do fato de que todo autor, por mais inovador que seja, está irremediavelmente situado num universo de convenções linguísticas que são, ao menos em parte, exclusivas do contexto de enunciação” (SILVA, 2010a, p. 306).

2.5 As críticas ao programa skinneriano

O artigo de Ricardo Silva, “O contextualismo linguístico na história do pensamento político: Quentin Skinner e o debate metodológico contemporâneo” (SILVA, 2010a), realiza, sem dúvida, a mais competente e sistemática organização da contribuição de Skinner para o debate sobre o método da história das ideias. Tomo aqui a estrutura de sua análise como norte para a classificação da crítica ao programa skinneriano, conforme venho anunciado ao longo deste capítulo. Silva nos lembra que o historiador Peter Laslett é responsável pela primeira investida dos contextualistas de Cambridge contra aquilo que denominou “estilos convencionais de história das ideias políticas”. Laslett defendia um “modesto exercício de historiador” como sendo o primeiro propósito no estudo do pensamento político: estabelecer uma interpretação do texto a partir do modo como o seu autor gostaria que ele fosse lido e fixá-lo em seu contexto

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histórico. Sua contribuição teria influenciado decisivamente o conjunto de autores englobados na Escola de Cambridge, notadamente John Pocock, John Dunn e o próprio Quentin Skinner. Pocock criticou, ainda em 1962, a preocupação filosófica unilateral com o estabelecimento da “coerência racional” das ideias dos autores do passado, sem negar-lhes elaborados “níveis de abstração”. Dunn, por sua vez, insistia na íntima conexão entre abordagens filosóficas e acuradas pesquisas históricas, agora em chave collingwoodiana, conferindo destaque para a reconstituição do contexto linguístico em busca da intenção dos autores na produção das obras. Mas coube, de acordo com Silva, a Skinner a elaboração mais sistemática do encontro entre a filosofia da história de Collingwood com o aparelho analítico da filosofia da linguagem ordinária. Isso porque, ao questionar a história das grandes ideias políticas retiradas de seus contextos de origem, Skinner argumentou, conforme vimos anteriormente, contra a suposta “coerência” dos grandes pensadores, além de problematizar a noção de “influência” presente nos estudos convencionais. Na síntese de Silva,

O autor censurava o procedimento padrão do textualismo, que consistiria, em suas expressões mais caricaturais, em “ler e reler” determinado texto até se chegar a uma compreensão correta de seu significado. O pressuposto deste procedimento é que o texto é autônomo em relação ao contexto de seu surgimento, o que é consistente com a crença de que determinados textos (aqueles dignos do interesse do historiador) contêm “elementos intemporais”, “ideias universais” e “uma sabedoria sem tempo” de “aplicação universal” (SILVA, 2010a, p. 304).

Nessa perspectiva, as abordagens tradicionais não gerariam história, mas sim as “mitologias” já descritas aqui. Silva nos mostra que “A característica comum a todas essas ‘mitologias’ seria a produção de interpretações ‘anacrônicas’, mediante as quais são atribuídas a determinado autor ideias e intenções cujos recursos linguístico-expressivos eram ainda indisponíveis no contexto histórico do proferimento” (SILVA, 2010a, p. 304-305). Concomitante ao seu ataque contra a abordagem “textualista”, Skinner dirige, ainda, sua crítica aos contextualismos que privilegiam o “contexto social” e não o “contexto linguístico”. É isso que lemos, por exemplo, na abertura de “As fundações” e na sua defesa da busca pela intencionalidade autoral no texto, mapeando as convenções linguísticas presentes. Segundo o autor, as abordagens textualistas de outra natureza perseguem a determinação causal de uma ideia como sua compreensão propriamente dita. Assim, as ideias não seriam mais do que epifenômenos, expressões ou reflexões de uma “realidade material” ontologicamente anterior, de acordo com a síntese de Silva. Contra o textualismo e o contextualismo sociológico, Skinner recupera a tradição intencionalista na filosofia da história, presente nos trabalhos de G. Collingwood. Não por

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acaso, o próprio autor opta em vários momentos por definir seu enfoque metodológico como collingwoodiano (FERES JÚNIOR, 2005). Collingwood chamou a atenção para a necessidade de distinguirmos os aspectos externos (“eventos”) dos aspectos internos de um acontecimento, mostrando como o historiador deve operar a reconstituição do pensamento do passado nos seus estudos. Skinner escapa, porém, da armadilha “mentalista” presente em algumas afirmações de Collingwood ao recorrer, conforme vimos acima, aos conceitos extraídos da filosofia da linguagem. Será por meio da filosofia do segundo Wittgenstein em sua célebre formulação de que “palavras também são atos”, que o historiador defenderá a necessidade de compreendermos o significado dos atos linguísticos dentro de determinados jogos de linguagem. Aqui a contribuição de J. L. Austin e a teoria dos atos de fala é igualmente determinante. Conforme vimos acima, Skinner mobiliza a taxonomia dos atos de fala formulada por Austin para defender o processo de compreensão do significado de um texto histórico como o ato de revelar o que o autor estava fazendo ao escrevê-lo. Dessa forma, “dever-se-ia estudar o modo como a intenção do autor se inscreve no contexto de convenções linguísticas em que o texto foi produzido” (SILVA, 2010a, p. 308). Este método não confunde, segundo distinção já operada aqui, o motivo que levou determinado autor a escrever um texto – causas externas que se conectam apenas de modo contingente –, com a intenção – incorporada à ação linguística. Logo, Silva reforça que

A compreensão do significado de um texto não requer do intérprete a misteriosa habilidade de penetrar na mente do autor para revelar seus estados psíquicos interiorizados na forma de desejos, planos ou desígnios. Requer, sim, o procedimento muito mais prosaico – embora necessariamente paciente e erudito – de situar o texto em questão no contexto de convenções linguísticas e sociais que governam o tratamento dos temas e problemas dos quais o texto se ocupa (SILVA, 2010a, p. 309).

A ênfase de Skinner nas convenções linguísticas se justifica, sobretudo, pela pressuposição de que o autor de textos políticos está envolvido em um ato de comunicação quando escreve ou publica seu texto, devendo estar atento aos padrões convencionais de comunicação acerca dos temas para os quais deseja chamar atenção, ainda que seu objetivo seja, no limite, a alteração de termos e conceitos de uso corrente. Silva nos mostra como Skinner recebeu críticas das mais diversas e incoerentes entre si. Segundo os propósitos do seu argumento, o autor agrupa as críticas três ordens analiticamente diferenciadas: (1) objeções ao seu estatuto epistemológico, acusando Skinner de manifestar um “historicismo radical”; (2) objeções à teoria intencionalista do significado de textos como expressões de atos linguísticos; e (3) objeções que mostram como seu historicismo radical o

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levaria a uma postura “antiquária” em relação aos autores do passado.

2.5.1 Historicismo radical

Skinner vem sendo, conforme aponta Silva, denunciado pelos seus críticos como defensor de uma postura metodológica positivista, a partir de sua orientação para que o historiador das ideias dedique-se ao estudo do passado nos seus próprios termos. Assim, para “muitos de seus críticos, tal recomendação teria como pressuposto a crença na possibilidade de uma radical separação entre os valores sustentados pelo intérprete situado no presente e aqueles pertencentes aos pensadores do passado, os quais o intérprete toma como objeto de investigação” (SILVA, 2010a, p. 311). Silva sustenta, contudo, a rejeição da herança positivista nos textos de Skinner. Nesse sentido, ele recusa a suposição da existência de fatos puros disponíveis ao escrutínio do historiador, classificando-a como um erro epistemológico. Skinner acredita, com efeito, que nosso acesso aos fatos é condicionado pelas crenças que sustentamos.

Quando selecionamos determinados eventos do passado e os elevamos à categoria de fatos, estamos, ao mesmo tempo, ignorando uma infinidade de outros eventos, muitas vezes por seques estarmos capacitados para perceber sua própria existência. Os fatos não falam por si, e nosso acesso à realidade é irremediavelmente theory-laden (SILVA, 2010a, p. 312, grifo do autor).

Concomitante à crítica objetivista, Silva nos lembra que Skinner é também acusado de excessivo “subjetivismo” ao negligenciar os “fatos reais”, por ele considerados “extra- linguísticos” no estudo dos atos de fala, o que resultaria numa perspectiva política conservadora. Skinner se defende, afirmando que seu estudo da ideologia parte de outra compreensão do termo, apreendendo a ideologia a partir do seu papel de legitimação das instituições e práticas política, e não como “falsa consciência”. Logo, “O fato de determinadas ideias serem verdadeiras ou falsas não teria nenhuma relevância para defini-las como expressões de ideologias. O que importa é o modo pelo qual as ideias se vinculam às posições práticas em disputa nos conflitos políticos de determinada época” (SILVA, 2010a, p. 313-314). Tal postura não sobreviveu, contudo, imune à crítica, conforme nos lembra Silva. Nesse sentido, Charles Taylor aponta o erro de Skinner ao tentar isolar o “contexto de luta” no qual as ideias são produzidas do seu “contexto de verdade”. Porém, em sua defesa o autor

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Afirma que o que lhe parece errôneo é a tendência de conceber as crenças dos historiadores e intérpretes do presente como o padrão pelo qual deveriam ser julgadas as ideias e crenças dos agentes do passado. Este tipo de “paroquialismo” é prejudicial porque impede o historiador de perceber a racionalidade das crenças dos agentes no contexto específico do passado simplesmente porque tais padrões pretéritos de racionalidade já não se encontram em vigência no contexto contemporâneo do intérprete (SILVA, 2010a, p. 314).

Não se trata, todavia, de renunciar a toda e qualquer concepção de racionalidade, mas sim perceber o mínimo de pressuposições comuns sobre o processo de formulação de crenças, contra a afirmação da existência de crenças universais substantivas compartilhadas entre o intérprete e o agente do passado. Malgrado a manutenção de seu posicionamento sobre os estudos tradicionais de história das ideias, Skinner rejeita a postura positivista.

2.5.2 Intencionalismo

Silva nos mostra como ainda nos anos 1960 e 1970 do século passado, os autores da chamada “nova crítica literária” foram responsáveis pela retomada da perspectiva textualista criticada por Skinner. Derrida – “não há nada fora do texto” –, Barthes e Foucault – que mobilizaram a metáfora da “morte do autor” –, são exemplos desse movimento. Conforme vimos a partir da reação do próprio Skinner aos seus críticos, “O novo textualismo parte de um radical ceticismo em relação à possibilidade de recuperação do significado original dos textos, especialmente quando se busca associar tal significado às intenções dos autores [...]. Nunca saberíamos ao certo o que um autor quis dizer ou fazer ao escrever o que escreveu” (SILVA, 2010a, p. 316). Ao lado dessa objeção, Silva nos mostra como alguns críticos – como o exemplo notório de Paul Ricoeur – apontaram as limitações presentes no uso da teoria dos atos de fala, sobretudo em razão das distinções entre o discurso escrito e o discurso presente na conversação ordinária. Nesse sentido,

A mais importante distinção entre o discurso escrito e o discurso presente na conversação ordinária consistiria no fato de que, no primeiro caso, as sentenças deixam de ser endereçadas a um “interlocutor igualmente presente na situação do discurso”. O discurso escrito é destinado a uma audiência que “se cria a si própria”. Qualquer um que possa ler é potencial destinatário da locução contida no texto, o que revela a “espiritualidade” e a “universalidade” do discurso (SILVA, 2010a, p. 317).

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Ricoeur aponta, ainda, a impossibilidade de apreendermos as dimensões ilocucionária e perlocucionária no texto escrito, em razão dele não incorporar gestuais, prosódias etc. Esta é precisamente a crítica vocalizada por Feres Júnior contra a contribuição de Skinner, na defesa de que a história das ideias deveria concentrar-se nos “estudos de recepção”. Isso porque, no exame do texto restaria, segundo essa crítica, apenas a possibilidade da apreensão dos atos locucionários, não incorporados, porém, à metodologia skinneriana. Logo,

Ao reduzir o texto a um ato de fala compreensível apenas mediante a recuperação das intenções autorais em um contexto sincrônico de convenções linguísticas, Skinner estaria perdendo de vista a dimensão diacrônica da vida do texto, manifesta na história dos efeitos produzidos nos leitores pelo conteúdo proposicional (ato locucionário) dos enunciados contidos no texto (SILVA, 2010a, p. 318).

A ênfase de Skinner na intenção ilocucionária despertou críticas do próprio campo da história das ideias. Silva recupera referencial caro aos seus propósitos, mostrando como Mark Bevir apontou os perigos do contextualismo linguístico de Skinner em enfatizar a intenção do autor original (o criador do texto) como critério exclusivo de interpretação. Segundo Bevir, Skinner parece assumir que os textos têm significados em si mesmos, não importando o que seus intérpretes e leitores pensam a respeito.

Bevir, por seu turno, além de duvidar da crença de que um método, qualquer que seja, possa ter a virtude de garantir uma interpretação correta, também argumenta que textos não têm significados em si mesmos. Sem a intervenção humana, textos nada mais são do que marcas registradas em papel ou outro meio físico. São os indivíduos (tanto autores quanto leitores), dotados de capacidade de agência, que a eles atribuem significados (SILVA, 2010a, p. 319).

Os esforços de Skinner para se defender têm promovido um refinamento de suas ideias originais, conforme venho argumentando aqui. Ainda que o autor arrefeça sua defesa do exame da intencionalidade, ele não incorre, porém, na perspectiva cética da “morte do autor” defendida, dentre outros, por Foucault. Skinner se esforça para mostrar como devemos fazer jus aos momentos em que convenções são desafiadas, e isso não nos permite dispensar a categoria do autor. “Quanto às convenções linguísticas, elas deveriam ser compreendidas não apenas como constrangimentos à ação dos agentes, mas também como recursos que tais agentes mobilizam para efetuação da ação” (SILVA, 2010a, p. 321, grifo do autor).

2.5.3 Antiquarismo

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Conforme discutimos acima, ainda que Skinner tenha atenuado algumas de suas afirmações, o mote do programa metodológico do contextualismo linguístico permaneceu o mesmo: a crítica do historiador ao estudo dos autores e obras do passado como portadores de verdade intemporais e universais. Skinner reforça o papel da história na organização do mundo contemporâneo, assim como lemos em sua crítica aos princípios sustentados por Elton. Todavia, para o autor, apreender com o passado requer que sejamos capazes de empreender um esforço para “ver as coisas do modo deles” (SKINNER, 2005b). Skinner critica, dessa forma, a tentação “presentista” de extrair dos textos ensinamentos para os problemas atuais, mostrando como isso constitui um erro epistemológico e moral. É assim, inclusive, que o autor encerra seu mais notório ensaio metodológico, “Meaning and understanding”, defendendo que devemos ser capazes de “pensar por nós mesmos” (SKINNER, 2005d). A crítica, porém, não poupou a obra de Skinner também neste aspecto. Ao lado das acusações sobre empreender uma leitura positivista da história, ou mesmo de ter se apropriado de maneira equivocada de conceitos oriundos da filosofia da linguagem, os opositores de Skinner apontaram um outro problema em levarmos adiante seu programa metodológico: a perda de sentido no estudo do passado. Alinhados com a perspectiva hermenêutica que será discutida na próxima seção, os críticos afirmaram que Skinner teria transformado o passado numa “relíquia exótica em nosso mundo presente” (SILVA, 2010a, 322). Isso porque, conforme a crítica aponta, o estudo dos clássicos deve, sobretudo, estar a serviço da resolução dos problemas presentes. Conforme referência de Silva, tal perspectiva, influenciada pela obra de Gadamer, defende a máxima “autores mortos, livros vivos”, enfatizando a ideia de tradição intelectual como algo aberto, a serviço da reflexão sobre a experiência histórica. A atenção detida no contexto histórico dos autores do passado diluiria, assim, as grandes obras num conjunto particular de textos sem significação, privilegiando o contexto no lugar do texto (SILVA, 2010a, p. 323). Em suma, o erro de Skinner segundo a crítica que o classifica como “antiquário” seria recusar o elevado grau de abstração presente nos textos filosóficos, abstração esta responsável pelo tratamento de problemas, de alguma forma, “perene”. Silva relata que esta é, certamente, a crítica que mais perturba o historiador. No entanto, Skinner reage de maneira produtiva para os argumentos desta tese.

O fato é que em sua defesa, Skinner é forçado a trilhar uma linha de reflexão que, pra

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dizer o mínimo, não estava contida em suas declarações metodológicas iniciais. Afirma que o ceticismo em relação à possibilidade do aprendizado de uma sabedoria universal e intemporal dos textos do passado não significa que nada de contemporaneamente relevante se possa apreender com o estudo da história. Uma das principais vantagens do estudo da história do pensamento para o entendimento do presente residiria no incremento de nossa percepção da natureza contingente de nossas próprias crenças atuais (SILVA, 2010a, 323).

Nesse sentido, ao aprender, por meio do rigoroso estudo da história, que as crenças que herdamos do passado são fruto de escolhas contingentes e peças retóricas, somos mais capazes de empreender o difícil exercício da “desnaturalização” das nossas próprias crenças, libertando- nos do “paroquialismo” presente na reflexão contemporânea, conforme o autor denunciou como uma de suas “mitologias” (SKINNER, 2005d). Skinner acrescenta, ainda, um segundo argumento em sua defesa, capital para os nossos propósitos: o estudo do passado libertaria, com efeito, a reflexão presenta para a inovação necessária. Conforme sintetiza Marcelo Jasmin,

Vale notar que a reivindicação de um programa rigorosamente historicista que recusa a existência de “problemas filosóficos perenes” e que paga o preço da redução drástica do alcance das “lições” do passado, dado que a história só lidaria com respostas particulares a problemas epocais particulares, tem como contraparte a “libertação” da elaboração teórica contemporânea para criar respostas novas (e particulares) para os problemas novos (e também particulares) do presente (JASMIN, 2005, p. 30).

Esta é, assumidamente, a perspectiva deste trabalho: uma abordagem não historicista do pensamento político, mas sim analítica, em busca de respostas “novas” (e talvez particulares) para os problemas presentes. Jasmin aproxima, ainda, a reformulação da reflexão de Skinner com a hermenêutica de Gadamer. Ao mostrar, segundo Gadamer, que a intenção original dos autores é inapreensível, Jasmin reforça que “A cognição, sendo ela mesma produtiva e produtora de significados a partir da tradição em que se inscreve, transforma-se em recepção tornando essencial que idéias e conceitos sejam apreendidos em seus efeitos” (JASMIN, 2005, p. 30). A próxima seção ocupa-se, com efeito, desta discussão.

2.6 Hermenêutica e tradição

Hans-Georg Gadamer (1900-2002) figura, por certo, entre os maiores filósofos do século XX. Sua contribuição para uma hermenêutica filosófica, presente, em especial, em “Verdade e método” (GADAMER, 2011), publicado originalmente ainda na década de 1960,

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marcou decisivamente o campo, mesmo que o autor não tenha, em vida, logrado sucesso na tradição anglófona. O objetivo desta seção é discutir alguns elementos da contribuição de Gadamer como contraponto crítico ao programa metodológico de Quentin Skinner, abrindo caminho para pensarmos o lugar da história do pensamento político na produção da teoria normativa. Chris Lawn situa o pensamento de Gadamer num debate filosófico maior, gerado a partir da modernidade (LAWN, 2011). Nesse sentido, o projeto de uma hermenêutica filosófica construído por Gadamer tinha como alvo o racionalismo científico tributário das ideias de Descartes. Seu trabalho, como o da maioria dos autores do seu tempo, começa, nesse sentido, com ataque ao fundacionismo cartesiano. Segundo Lawn,

O que muitos pensadores contemporâneos, na tradição continental, conseguem realizar intencionalmente ou sem intenção alguma, é re-avaliar a importância de uma cultura literária formal, através de um desafio à ciência e uma justificativa da importância da autenticidade da arte e literatura como incorporação de formas de conhecimento e verdade na discrepância a uma imagem simplista da ciência como uma imagem exata de todas as coisas (LAWN, 2011, p. 17-18).

Lawn recorre ao autor inglês C. P. Snow e sua separação entre “duas culturas” – a literária e a científica –, mostrando como a cultura literária desempenha um papel importante na ciência. O fato é que mais do que uma separação cultural, podemos enxergar, conforme aponta Lawn, uma cisão do próprio pensamento filosófico, presente na oposição entre a tradição continental e a analítica. Para Gadamer, contrariamente, existe apenas uma cultura ou tradição, devendo ser sempre possível encontrarmos idiomas comuns em busca do entendimento. Nesse sentido, a hermenêutica afirma a possibilidade do diálogo entre as culturas nacionais hostis, destoando da filosofia analítica, que conserva certa subserviência ao modelo da ciência. Isso porque,

O estilo da filosofia que conhecemos atualmente como analítico, que considera o exame da linguagem como um meio de obter a verdade, começa a partir de uma visão da linguagem que sugere a possibilidade de uma réplica exata de um mundo através dos meios linguísticos que temos à nossa disposição para falar sobre aquele mundo (LAWN, 2011, p. 18).

A referência à filosófica analítica é central para o debate aqui em curso, haja vista sua mencionada influência no pensamento de Skinner. A visão da linguagem presente em Wittgenstein, por exemplo, está em consonância com essa perspectiva, e tem como consequência a desqualificação das técnicas literárias, metafóricas e retóricas, compreendidas como obstáculos a serem erradicados por uma linguagem perfeita. A filosofia continental, à

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qual Gadamer se filia, distancia-se dessa visão, apresentando com frequência uma noção expressiva da linguagem. Esta não é mais compreendida como neutra, mas é condicionada culturalmente. Lawn nos mostra como Gadamer, influenciado pela obra de Heidegger, distancia-se da filosofia analítica, razão pela qual não obteve sucesso no mundo anglófono. Ao invés de optar pela análise moldada segundo os procedimentos e métodos da ciência natural, Gadamer trabalha na tradição da hermenêutica, afirmando, por sua vez, que todo entendimento é interpretação:

Aquilo que acontece quando interpretamos um texto é o que acontece quando procuramos entender qualquer coisa em nosso mundo sociocultural, seja o significado da vida ou uma interpretação mais comum dos objetos diários, das ideias e situações. A leitura é interpretação, olhar é interpretação, pensar é interpretação; interpretação não é uma atividade especial restrita à elucidação de textos difíceis, ela é um aspecto de todas as formas do entendimento humano (LAWN, 2011, p. 20-21).

Nesse sentido, Gadamer está mais preocupado com o “entendimento” do que com o “conhecimento”, vendo na apropriação e negociação diária do mundo o entendimento hermenêutico em funcionamento. Lawn nos lembra como sua atitude não é hostil em relação à ciência, mas sim manifesta a preocupação de questionar a autoridade do discurso científico como a única voz legítima na conversação do entendimento humano. O método científico que alimenta a filosofia analítica ocasiona um otimismo inapropriado sobre progresso do pensamento humano e suas aplicações à tecnologia e à ciência. O passado, segundo tal perspectiva, é enxergado como um “país estrangeiro”, região negra da ignorância, infância do pensamento. De forma contrária,

As hermenêuticas de Gadamer dependem da ideia de um diálogo constantemente re- trabalhado entre o passado e o presente, e esta posição não pode ser reconciliada com a perspectiva científica, pressupondo um mundo sem mediação e não distorcido pelas constantes mudanças da verdade histórica. Por outro lado, para Gadamer, a verdade é histórica e o mundo eterno da crença científica não é mais que uma ideia absurda. Para aqueles críticos de Gadamer, ele é culpado de abolir a verdade, ou, pelo menos, relativizá-la tanto que a palavra verdade não tem mais um significado compreensível (LAWN, 2011, p. 24).

Em síntese, contra as pretensões da filosofia analítica, Gadamer apresenta uma perspectiva historicista que enfatiza o papel da tradição, mostrando a fragilidade e limitação do conhecimento humano. Sua proposta é questionar a autoridade do método na interpretação, abrindo caminho para a historicização do conhecimento. Nessa direção, Lawn nos mostra como Gadamer considera o surgimento do método como uma característica central da filosofia moderna, responsável pelo desaparecimento de outras abordagens da cultura. “Verdade e

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método” promoveria, com efeito, uma tese histórica importante:

A era moderna vê o passado somente pela perspectiva do presente e deixa de apreciar a extensão na qual sua leitura das eras passadas corre o perigo de coibir verdades importantes. O valor das hermenêuticas filosóficas não é somente o de nos alertar sobre este perigo, mas sim de resgatar aquelas ideias – e verdades – tão rapidamente dispensadas em nome do progresso, ou avanço, isto é, modernidade. A fixação moderna no método ofusca formas alternativas de abordar a verdade (LAWN, 2011, p. 47-48);

Desde a publicação de “Discurso do método”, em 1637, a obtenção de certezas no pensamento filosófico requer um método de procedimentos no mesmo nível da ciência natural. Lawn nos mostra como o argumento do cogito construído por Descartes é autoevidente, ao passo em que a autoridade da tradição pode estar fundada em preconceito, superstição, opinião, fantasias, costumes e não nos princípios do questionamento científico. Segundo o autor, “Para Descartes, a beleza desse método é que ele é irrefutável, claramente estabelecido e, consequentemente, verdade autoevidente” (LAWN, 2011, p. 50). Por certo, Descartes cumpre um papel inquestionável para a tradição do pensamento filosófico ao subverter as formas de autoridade do antigo escolasticismo. Lawn afirma que malgrado a importância de Descartes para o desenvolvimento do debate sobre a importância do método no pensamento filosófico, porém, a quase totalidade dos pensadores do século XX, incluindo Gadamer, começaram sua obra com uma crítica ao pensamento cartesiano. Para Gadamer, a descoberta do método significou o esquecimento de formações maiores. Ele aponta como o Iluminismo representou, além da perda da harmonia, em razão da fragmentação entre o “novo” e o “velho”, o esquecimento de um arranjo mais unitário: a tradição. Assim, “O estabelecimento de um novo método para fundamentar o conhecimento precisa sempre se reconciliar com a força mais fundamental da tradição, através da qual toda atividade cultural é apresentada e sustentada” (LAWN, 2011, p. 53). Gadamer mostra, sobretudo, como a crença numa ideia genuína de razão colocada fora da história e capaz de examinar de forma neutra a tradição é um “equívoco do Iluminismo”. De maneira geral, aquilo que definimos como racional é sempre conformado dentro dos parâmetros da “tradição” negligenciada pelo Iluminismo. Logo, Gadamer é contrário à ideia de que a tradição cai diante de uma razão imparcial. Nessa direção, Lawn aponta como o filósofo recupera o significado original da tradição – “passar adiante” –, mostrando como a transmissão não está livre de um processo de re-elaboração, re-processamento e re-interpretação. Com efeito, “faz sentido dizermos que a razão, longe de ser aquilo que se coloca fora da tradição como um teste imparcial, é aquilo que é transmitido na tradição” (LAWN, 2011, p. 54). Em

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suma, Gadamer aponta a importância da tradição como sinônima da linguagem.

Portanto, ignorar a tradição como um oposto da razão é ignorar que a razão pode, em si, ser uma característica da tradição. A ideia de transformar a tradição em objeto de investigação sugere, erroneamente, que existe um espaço conceitual e crítico a ser encontrado fora da tradição, um ponto arquimediano a partir do qual acessamos a racionalidade das atividades tradicionais. Nunca conseguimos escapar da tradição, pois sempre estamos nela (LAWN, 2011, p. 55).

Lawn afirma que o Iluminismo, ao se voltar contra a “tradição”, abandonou ideias a ela associadas, como “autoridade” e “preconceito”. Logo, assim como Gadamer já havia feito com a noção de tradição, ele questionará o modo como a modernidade descreveu ambas as noções. Na tradição Iluminista, a autoridade é, como aspecto negativo, pensada como oposta à razão e à liberdade, pois boa parte da autoridade se exerce efetivamente pelo poder e pelo domínio. Entretanto, Gadamer nos convida a pensar a “genuína autoridade” que possui, conforme ele descreve, sua própria legitimidade. Lawn recupera o modo como o filósofo exemplifica seu argumento por meio do exemplo da pedagogia: assim como podemos imaginar um professor que exerce sua autoridade por poder e coação, há o professor que se legitima pelo conhecimento. Dessa forma,

Nós podemos transpor questões de autoridade aos tópicos relacionados às verdades dos textos, ideias e dissertações. Ao invés de questionar se o trabalho filosófico é verdadeiro, no sentido de representar com exatidão a realidade, podemos questionar, alternativamente, a veracidade das questões que ele levanta e procura responder. [...] Gadamer procura demonstrar que são as questões apresentadas pelos textos que são, de alguma forma, mais importantes do que o produtor textual (LAWN, 2011, p. 57).

O trecho destoa do modo como vimos até aqui discutindo a metodologia para o estudo do pensamento político, ao defender que não o autor, mas sim as questões presentes no texto interessam ao intérprete. Skinner, conforme discutimos anteriormente, chega a atribuir a autoridade exclusivamente ao autor. Já Gadamer afirma que ter autoridade é conhecer algo e o conhecimento é, sobretudo, tradição. Lawn argumenta que Descartes ignora precisamente este ponto, ao ignorar que o escrutínio racional por ele almejado depende de uma razão que é definida pelo código moral do seu tempo. Também com a noção de preconceito, Gadamer nos convida a pensar seus aspectos positivo e negativo. “O ponto apresentado aqui é que os julgamentos são possíveis, não por uma razão neutra e abstrata, mas sim por um conjunto de envolvimentos pré-refletidos com o mundo que está por trás dos julgamentos e, de fato, o tornam possível” (LAWN, 2011, p. 58). Assim, a razão não é mais apreendida como uma matriz neutra de avaliação do mundo, mas torna-se

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necessária a própria descoberta do que está por trás da razão e que a torna possível. Para isso, Gadamer mobiliza a hermenêutica de Heidegger rejeitando a ideia de que um mundo unitário dá acesso a um tipo definitivo de conhecimento. As hermenêuticas revelam, conforme Gadamer sustenta, que todo entendimento humano é basicamente interpretação. Assim, “O que nunca devemos esquecer é que sempre somos parte daquilo que buscamos entender: a suposta lacuna entre o conhecedor e o conhecer é mais como uma linha faltosa ou fronteira móvel do que uma fenda propriamente dita” (LAWN, 2011, p. 59). Com isso, Gadamer nos faz repensar suposições fundamentais do Iluminismo, sobretudo sua crença de que o método correto dá acesso à verdadeira natureza do mundo. Lawn lembra que de acordo com esta perspectiva, pensamentos, opiniões, percepções e atributos corporais (mobilizando o clássico exemplo da cera da abelha apresentado por Descartes), constituem distrações, obstáculos ao entendimento puro. Gadamer, por sua vez, mostra como este relato da ciência ignora o fato de que o investigador é parte daquilo que investiga. Segundo o filósofo, “Não importa quão cuidadoso somos sobre o método usado para investigar o mundo, precisamos sempre nos lembrar de que o mundo está sendo visto a partir de uma determinada estrutura e dimensão humanas” (LAWN, 2011, p. 59-60). Segundo o inventário realizado por Lawn, Kant já havia apontado uma questão filosófica central, ao mostrar como o conhecimento depende da especificidade do humano (suas categorias de tempo e espaço), colocando o problema da relação entre sujeito e objeto do conhecimento. Nesse sentido, se o sonho da ciência é abolir a especificidade em busca de uma suposta universalidade comum a todos os sujeitos, o que Gadamer mostra, por meio da hermenêutica filosófica, é que os sujeitos e os objetos são indivisíveis. Tal lacuna – entre sujeito e objeto – está presente em toda a história do pensamento filosófico, como observamos na separação entre o pensamento e o mundo já em Platão. A suposição de que o pensamento pode retratar o mundo por meio da linguagem ignora, porém, que a linguagem é ela própria instrumento de construção do mundo. Nessa direção,

O status e a existência das ciências humanas estão sob ameaça. A verdade, como um produto do método infalível, ignora as verdades da experiência contidas dentro de uma tradição cultural comum. [...] Isso é para mostrar como a verdade nunca deve ser metodizada. E que ela nunca é algo que finalmente alcançamos e obtemos. Todas as nossas atividades no mundo social estão “no caminho da” verdade, mas nunca finalmente a alcançam (LAWN, 2011, p. 61-62, grifo do autor).

O objetivo de Gadamer é, conforme aponta Lawn, romper com uma forma de entendimento regulada pelo método, mostrando como a modernidade ofuscou alternativas de

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entendimento presentes na tradição. Assim como discutido anteriormente, o racionalismo científico da modernidade ofusca e impede a manifestação de caminhos alternativos à verdade e ao entendimento, sobrepondo o método como forma privilegiada. Gadamer contesta, por sua vez, a “modernidade filosófica”, defendendo a universalidade da hermenêutica: todos os aspectos do entendimento humano pressupõem interpretação. Nesse sentido, a hermenêutica não é, no entendimento do autor, um método alternativo à modernidade, e sim uma forma de conhecimento reprimida que deve ser recuperada. Na segunda parte de “Verdade e método”, intitulada “A extensão da questão da verdade à compreensão nas ciências do espírito”, Gadamer fará um inventário das transformações pelas quais passou a hermenêutica (GADAMER, 2011). Para os propósitos do argumento aqui em curso, importa percebermos a contribuição decisiva de Schleiermacher ao criar uma “hermenêutica geral”, um procedimento, conforme sua definição, aplicável a todas as formas de interpretação. Schleiermacher o faz colocando a noção de “círculo hermenêutico” como o enigma central de todo o processo de interpretação. Na definição clássica do “círculo hermenêutico”, “O todo deve ser entendido em relação às suas partes, e as partes ao todo” (LAWN, 2011, p. 68). Um bom exemplo na compreensão do que propõe Schleiermacher, é pensarmos na leitura de um romance: ao longo da leitura estamos sempre antecipando o significado total do texto (o final da história). Logo, “Os significados das palavras em um texto não devem ser considerados isoladamente, mas sim como unidades de significados que estão constantemente em processo de modificação em relação ao significado total implícito no texto” (LAWN, 2011, p. 69). Schleiermacher mostra, ainda, como em cada nível de interpretação o círculo se expande, revelando novos significados. Lawn cita o verbete “Hermenêuticas”, elaborado por Michael Inwood, como a melhor descrição desta noção:

Em cada nível de interpretação nós estamos envolvidos em um círculo hermenêutico. Não podemos conhecer a leitura correta de uma passagem em um texto a menos que saibamos, de maneira aproximada, o texto como um todo; não podemos conhecer o texto como um todo a menos que conheçamos determinadas passagens. Não podemos conhecer o significado de uma palavra a menos que conheçamos os significados das palavras vizinhas e do texto como um todo; conhecer o significado do todo envolver conhecer o significado de palavras individuais. Não podemos entender totalmente o texto a menos que conheçamos a vida do autor e as palavras como um todo; mas isso requer conhecimento dos textos e outros eventos que constituem sua vida. Não podemos entender totalmente um texto a menos que conheçamos toda a cultura da qual foi extraído, mas isso pressupõe um conhecimento dos textos, etc., que constituem a cultura (LAWN, 2011, p. 69-70).

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Dessa forma, Schleiermacher estende a interpretação até os significados culturais mais amplos e históricos que dão contexto ao texto, mostrando como o significado é relativo ao contexto. Um aspecto do círculo hermenêutico é a lacuna existente entre os processos de pensamento do autor, suas crenças e intenções, e os significados comumente entendidos das palavras utilizadas. A despeito do reconhecimento da importância Schleiermacher na elaboração de uma hermenêutica unificada, Gadamer aponta os perigos presente na pretensão de interpretar as intenções do autor. Segundo ele, Schleiermacher teria cometido um equívoco ao “divinizar” o autor, tentando reconstruir suas intenções e enfatizando sua imparidade. Para Gadamer, o entendimento hermenêutico é mais dialógico e interativo, e não somente decorrente do intérprete diante do texto. Isso porque, um texto contém elementos expressivos e faz, ao mesmo tempo, reivindicações de verdade sobre o mundo. Schleiermacher teria, conforme Gadamer critica, se concentrado apenas no elemento expressivo. A segunda contribuição marcando no desenvolvimento da hermenêutica é dada pelo filósofo alemão Wilhelm Dilthey. Lawn mostra como Dilthey se coloca contra a tendência da época de juntar todos os conhecimentos numa categoria ampla de ciência, operando a distinção entra as ciências naturais e as ciências humanas: ao passo em que as ciências naturais disponibilizam explicações de causa e efeito, nas ciências humanas o entendimento é necessário, e não a descrição empírica direta. Dessa forma, Dilthey ressalta que em ciências humanas somos parte daquilo que pretendemos explicar, movendo-se na direção mais ampla da “vida” em busca do entendimento. Os estudos humanos pretendem, assim, entender o mundo num nível de “experiências vividas”.

O entendimento da vida no mundo, na época atual, está sempre conectado com o passado cultural que é a história das ciências e dos estudos humanos, manifestados nos artefatos culturais e textuais do passado. Para Dilthey, o entendimento hermenêutico está inextrincavelmente conectado ao passado. A categoria vida mostra que as interpretações no presente estão sempre conectadas à sua história no passado. Nós somos, irremediavelmente, históricos (LAWN, 2011, p. 76).

Lawn argumenta que ainda que Schleiermacher tenha apontado a importância do contexto, será Dilthey quem irá decisivamente enfatizar este elemento, fornecendo elementos para que Heidegger, posteriormente, construa sua “hermenêutica da facticidade”. Contudo, Dilthey era um homem do seu tempo e ainda acreditava na possibilidade de adquirirmos conhecimento objetivamente válido, mesmo que histórico e interpretativo, crença que será criticada por Gadamer. Dessa forma, para Gadamer foi Heidegger “quem genuinamente revelou a historicidade

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do entendimento e liberou as hermenêuticas de sua conexão, na busca por um método paralelo às ciências naturais” (LAWN, 2011, p. 77). Gadamer explora uma seção importante da obra de Heidegger, “Ser e tempo” (1927), analisando a significância do círculo hermenêutico. Para ele, “antes de podermos interpretar corretamente o mundo, nós precisamos estar cientes do fato de que certas coisas não podem, por si só, serem interpretadas subjetivamente como são aquelas coisas das quais as interpretações dependem. Heidegger fala de uma ‘pré-posse, pré-visão e pré-conceito’” (LAWN, 2011, p. 78). Contrariamente ao que havia afirmado o pensamento cartesiano, Heidegger procura mostrar que as condições que tornam o pensamento possível são estabelecidas bem antes de nos engajarmos em atos de introspecção. Nesse sentido, o pensamento não é autogovernado. Lawn lembra que a observação de Wittgenstein sobre a impossibilidade de duvidarmos de tudo (por meio do exemplo da linguagem), mostra, contra Descartes, que a condição para duvidarmos de tudo é que certas coisas não podem ser duvidadas.

Certas coisas precisam ser estabelecidas antes que a dúvida possa prosseguir: nós podemos nos engajar com o mundo, num senso prático, antes mesmo de refletirmos a respeito. [...] Não podemos nos distanciar da linguagem que falamos para questionar sua verdadeira natureza ou perguntarmos se a linguagem que falamos é realmente tudo aquilo que consideramos. Deve existir sempre um engajamento tácito com um mundo linguístico, antes de podermos levantar questões significativas (LAWN, 2011, p. 79).

Heidegger desafia, assim, o “Mito do dado”, mostrando como o treinamento cultural transmite uma perspectiva de mundo irrefletida anterior a qualquer exame racional. A existência humana para Heidegger – Dasein – projeta o futuro com profundas raízes no passado, através do envolvimento prático com um mundo culturalmente interpretado. Logo, “estamos sempre interpretando o mundo, até mesmo antes de tentar algum tipo de entendimento filosófico dele” (LAWN, 2011, p. 80). No entendimento de Gadamer, foi com Heidegger que a hermenêutica alcançou o status de filosofia ao sair da teoria da interpretação – definida como uma arte técnica para o entendimento –, para a interpretação em si – por meio da noção existencial de círculo hermenêutico presente em Heidegger. Dessa forma,

A dinâmica circular entre a parte e o todo se transformou numa maneira de descrever a estrutura (pré-filosófica) do entendimento humano diário. A experiência, o pensamento e a linguagem são hermenêuticos no sentido de que envolvem uma dinâmica constante entre as pré-concepções, que são fundamentadas não na natureza, mas sim na cultura e interpretação. Juntas, elas incluem a tradição, que não é somente a parte inerte, mas também um diálogo entre o passado, presente e o futuro (LAWN, 2011, p. 82).

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A hermenêutica existencialista de Heidegger tem muitas consequências radicais para as concepções tradicionais, ao redefinir a verdade fazendo renascer uma versão mais fundamental de verdade absoluta. Gadamer, assim como Heidegger, rejeita o discurso da verdade como correspondência ou adequação. Contrariamente, o autor nos mostra como a verdade se confunde neste debate com as teorias filosóficas sobre a verdade e sua pretensão de objetividade, afirmação por certo implosiva para as pretensões da historiografia skinneriana em discussão neste capítulo. O método, segundo Gadamer, obstrui a verdade. Em outras palavras, “um encontro básico e fundamental com a verdade é perdido quando recorremos à dependência do método” (LAWN, 2011, p. 84). Gadamer procura mostrar as dimensões da verdade encobertas pela dependência do método na modernidade, apresentando, em “Verdade e método” (GADAMER, 2011), as três experiências básicas de verdade que foram perdidas: a arte, obliterada pela estética; a experiência histórica, transformada em ciência histórica metodizada, impedindo a experiência dentro da tradição, conforme parte da crítica direcionada ao programa do contextualismo linguístico aqui tratada; e a linguagem, reduzida a uma abstração alienada: a filosofia da linguagem. Lawn sugere que a obra maior de Gadamer poderia chamar-se, com efeito, “verdade ou método”, visto que tais experiências não são apontadas como métodos de acesso à verdade, mas sim verdades reveladas que devem ser revividas por meio do entendimento mais fundamental da verdade: a hermenêutica filosófica. A filosofia empírica acredita que o conhecimento experiencial é fundamentado na repetição, constituindo a estrutura do conhecimento indutivo. Gadamer irá mostrar, porém, que a repetição somente captura um senso limitado e ignora outras nuanças possíveis do significado. Contrariamente, Gadamer chama a atenção para as qualidades do não repetível, do único, definido como sendo a “experiência hermenêutica”. Assim,

Em encontros hermenêuticos genuínos somos surpreendidos e insatisfeitos de maneira única e irreverente. Expectativas são frustradas quando as “certezas” dos padrões normais diários confrontam o inesperado. A verdade, como Gadamer descreve, é da variedade hermenêutica com sua capacidade de surpreender e frustrar expectativas, ao invés de passivamente confirmá-las. A verdade é revelação, aquilo que se manifesta no encontro entre o familiar e o desconhecido (LAWN, 2011, p. 87).

A experiência da verdade é hermenêutica, onde a parte modifica o todo. Logo, ainda que o texto escrito não mude, por exemplo, permanecem infinitas as suas possibilidades de significado. A epígrafe deste capítulo, onde Clarice Lispector questiona a mudança de aceitação de sua obra, exemplifica bem este ponto.

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Lawn reforça o fato de que Gadamer lança mão da noção de “verdade revelada” formulada por Heidegger para se contrapor à pretensão iluminista do acúmulo de conhecimento. Nessa direção, a experiência, segundo Gadamer, só nos ensina suas próprias limitações. Só podemos esperar dela o insight na falibilidade das possibilidades humanas e suas limitações. A possibilidade de controle sobre a vida e o mundo desaparece, assim como a noção de sociedade do “conhecimento” pensada a partir do acúmulo do conhecimento por meio do progresso. Gadamer assim define a experiência:

A experiência, para Gadamer, é a qualidade da pessoa não dogmática se abrir para novas possibilidades. E isso está de acordo com a visão de Heidegger da verdade como um outro tipo de abertura, uma que sai de seu esconderijo. Portanto, Gadamer, usando a noção de Heidegger da pré-estrutura do entendimento, rejeita a ideia modernista de que a verdade é o acúmulo de experiências sob o controle do método. Ele substitui isso com um discurso da verdade, como abertura à experiência (LAWN, 2011, p. 89).

Ao lado de sua reformulação da noção de verdade, agora compreendida como experiência história, Gadamer apresentará uma crítica marcante contra outro referencial importante para o programa skinneriano: a filosofia analítica. O filósofo nos mostra como a filosofia analítica, que chega a Skinner por meios dos estudos da linguagem, é geralmente hostil à ideia de que a verdade é histórica, afirmando que a verdade não pode ser maculada pela temporalidade, pois a verdade é infinita e imutável. Ainda que o próprio Skinner para numa direção contrária em suas conclusões, uma das questões colocadas ao autor é precisamente acerca do “paroquialismo” do seu método. Em outras palavras, o contextualismo linguístico seria, ele próprio, fruto do contexto, com pretensões particulares? A hermenêutica de Gadamer contesta a visão de uma verdade intemporal, afirmando que as identidades construídas antecedem qualquer autorreflexão. Daí a importância para Gadamer da noção de “horizontes” e sua concepção de “fusão de horizontes”, marcadamente influenciada por Heidegger.

Os julgamentos individuais acontecem, necessariamente, dentro de um contexto de preconceito, e isso nós já confirmamos. O senso do eu, revelado na busca pelo autoentendimento, sempre acontece dentro do contexto da realidade histórica. Apesar da imagem do pós-Iluminismo do eu como autônomo, autorreflexivo e não constrangido nas garras da conformidade social, os indivíduos são, ao contrário, enraizados, e incrustrados num ambiente cultural específico, dentro do qual os movimentos em direção ao autoentendimento sempre devem ser reconciliados. Este ambiente específico Gadamer chama de tradição. Mais uma vez, contrário à sabedoria recebida da Modernidade, Gadamer considera a tradição como sendo, assim como o preconceito, parte de um plano de fundo para nosso engajamento no mundo. Nunca pode se tornar um objeto de investigação, pois estamos sempre dentro dela e nunca podemos encontrar um ponto fora dela para testar sua validade (LAWN, 2011, p. 91).

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Gadamer pensa o horizonte como a linguagem que nos oferece meios para nos comunicarmos, por um lado, mas também um ponto de vista através do qual podemos ver o mundo, uma visão global, por outro. “À medida que adquirimos a capacidade de usar a linguagem e, como resultado do processo de aculturação, adquirimos ao mesmo tempo um ‘horizonte’, uma perspectiva do mundo” (LAWN, 2011, p. 91). Segundo o filósofo, ter um horizonte é possuir uma perspectiva sobre o mundo, que é adquirida através da linguagem, que nos oferece revelação e limitação. Gadamer reconhece que a fusão de horizontes não é harmoniosa, mas afirma que a interpretação é constante e sempre presente. Isso porque, o horizonte não é fixo, sendo constantemente modificado com o passar do tempo, não por meio do acúmulo de experiências, mas por um processo de expansão.

O pensamento aqui é de que um horizonte pode ser colocado em contato com outro horizonte. Ao invés de um obliterar o outro, acontece um processo de fusão. A ideia de Gadamer é de que isso acontece com diacronia e sincronia. Existem muitas maneiras de resgatar a metáfora da fusão, porém a mais óbvia está relacionada com o entendimento do passado (apesar de incluir entendimento interpessoal e até mesmo intercultural) (LAWN, 2011, p. 92, grifo do autor).

Lawn afirma que o relativismo nega a possibilidade de construirmos pontes sobre as distâncias históricas ao afirmar que toda perspectiva é basicamente autorreferencial. Daí as enormes dificuldades existentes na lacuna entre o passado e o presente, como as dificuldades conceituais e linguísticas quando pensamos no problema hermenêutico do entendimento dos textos antigos, por exemplo. Este é precisamente o desafio diagnosticado por Skinner e combatido com outras armas. Todavia, seria um erro supormos, aponta Gadamer, a possibilidade de interpretação do passado por meio de um método cuidadoso. Se considerarmos o passado como dono de seu próprio horizonte, a tarefa de interpretação seria o engajamento no horizonte “perdido”. Nesse sentido, o filósofo nos mostra como o entendimento não é a projeção de significado de um sujeito ativo sobre um objeto passivo, mas a fusão produtiva de horizontes.

Quando falamos de um texto antigo que possui um horizonte, nós falamos de uma visão global. A visão global do passado faz uma declaração, através do texto, no presente. O texto antigo, apesar de sua qualidade de obsoleto e antigo, ainda faz sua apresentação no seu horizonte. A ideia de fusão dos horizontes, de alguma forma, explica a natureza e justifica a existência do cânon filosófico e literário (LAWN, 2011, p. 94).

Dessa forma, Platão e Aristóteles têm a nos dizer algo ainda hoje, pois eles procuram colocar o presente em seus respectivos horizontes. Eles procuram nos levar ao diálogo e nos

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comunicar suas verdades. Em outras palavras, a linguagem através da qual nos articulamos no presente ressoa os significados do passado e continua sendo operativa. Isso faz com que a posição do intérprete não seja fixa, mas sim o efeito da interpretação prévia, ou seja, parte da tradição. “Não pode haver posição neutra, na qual a interpretação ou entendimento acontece, pois o local de interpretação é por si só o efeito do passado sobre o presente” (LAWN, 2011, p. 95). Logo, quando Gadamer fala de “consciência histórica efetiva”, ele está se referindo à consciência da tradição e de seus efeitos. Existe, conforme afirma Lawn, um constante diálogo entre o passado e o presente em funcionamento na interpretação. “De acordo com Gadamer, não existem significados externos à atual consciência, pois o significado em si é sempre produzido pela união do imediato e o ponto de tradição que procuramos entender” (LAWN, 2011, p. 96); O diálogo é central no entendimento do que Gadamer chama de “fusão de horizontes”. Isso porque, quando os horizontes fazem conexão eles se engajam em diálogo. Algumas pessoas veem a fusão de horizontes como a oportunidade de um embate gladiatório, onde o objeto do encontro é a supressão do Outro. Gadamer, contrariamente, defendia o entendimento como acomodação do Outro: “o ponto não é obscurecer e abolir o horizonte do passado (concebido como o outro), mas mostrar como aquele horizonte foi adotado expandido no presente” (LAWN, 2011, p. 96). Lawn recupera o modo como Gadamer ilustra suas hermenêuticas do diálogo por meio do exemplo de Sócrates. De acordo com o padrão conhecido, Sócrates representa o triunfo da lógica sobre o raciocínio espúrio, ao vencer o relativismo sofístico com a verdade absoluta. Gadamer apresenta sua visão, partindo da própria metáfora socrática do filósofo como “parteira”, para defender o verdadeiro conhecimento como aquele que aparece no dialogo genuíno, pois a parteira não é a figura central, mas sim uma facilitadora. “A verdade, qualquer que seja, somente pode emergir do diálogo (essencialmente uma conversação com, e dentro da tradição)” (LAWN, 2011, p. 97). Assim, ainda que sejamos incapazes de transformar nossos preconceitos em objeto de escrutínio, eles podem, por meio do diálogo, serem colocados em primeiro plano ao serem desafiados e surpreendidos nos encontros dialógicos. “Um diálogo produtivo tem, muitas vezes, o efeito de nos forçar a ver as coisas de maneira diferente e sob novas perspectivas” (LAWN, 2011, p. 98). O ponto central para o argumento desta tese é, porém, o modo como Gadamer apropria- se da contribuição de Collingwood e sua “lógica da pergunta e da resposta”. Collingwood é referência capital para os trabalhos de Skinner, que chega, conforme vimos, a denominar o próprio programa metodológico como um “enfoque collingwoodiano”. Collingwood defendeu,

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por sua vez, uma versão do historicismo contrário ao “realismo” anti-histórico dos seus contemporâneos. O historiador criou “a lógica da pergunta e da resposta”, não mais julgando os textos a partir de uma lógica universalmente válida, mas reforçando a natureza essencialmente histórica dos textos do passado. Assim, tais textos não deveriam mais ser avaliados conforme a validade ou não de seus argumentos, mas sim a partir do contexto no qual foram produzidos e suas consequentes questões específicas. Ainda que o historiador não tenha enfatizado este ponto, Lawn argumenta que ele recupera um importante elemento da hermenêutica de Gadamer, ao mostrar como a interpretação textual requer um engajamento no diálogo com o texto. Nos seus termos, Collingwood chamou a atenção para a necessidade do restabelecimento e recuperação como parte do processo de entendimento histórico: o significado de uma obra deve ser estabelecido em termos das questões que seu autor procurou levantar em seu texto e isso envolve a recuperação do contexto histórico envolvido na produção do trabalho. Nessa direção, um erro frequente é o de impor categorias contemporâneas num trabalho antigo. “Em termos gadamerianos, impor categorias exclusivamente contemporâneas a trabalhos antigos, é silenciar efetivamente o texto, recusando um engajamento em diálogo” (LAWN, 2011, p. 101). Neste ponto, Gadamer reconhece a importância de Collingwood, mas critica o não reconhecimento da historicidade do historiador.

Apesar de Collingwood reconhecer a importância da recuperação do texto antigo das deformações contemporâneas, ele não consegue perceber que o intérprete é também um efeito da tradição e da história, e nunca interpreta a partir de um ponto fixo. As questões que levantamos sobre um texto são sempre o resultado da tradição e, consequentemente, as questões mudam à medida que analisamos um trabalho e levantamos, propositalmente ou não, nossas próprias questões. O problema com esta abordagem, para todas suas orientações metodológicas, é uma falha no reconhecimento da historicidade do intérprete (LAWN, 2011, p. 101).

Dessa forma, Gadamer nos mostra como o significado do texto está mudando constantemente, tornando a interpretação e a re-interpretação tarefas incessantes. “Fazer sentido de um texto antigo é uma questão de engajar em diálogo com ele. O horizonte do texto apresenta questões ao intérprete e o intérprete, por sua vez, define as questões em relação àquilo que foi levantado no diálogo” (LAWN, 2011, p. 102). A noção de “fusão de horizontes” é, com efeito, central para o debate com a obra de Skinner. Gadamer entende que os textos do passado sempre têm algo a nos dizer pois são capazes de colocar o presente nos seus próprios “horizontes”, fazendo com que sejamos capazes de operar o entendimento por meio da linguagem da tradição. Conforme discutiremos na

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próxima seção, a associação entre a perspectiva hermenêutica de Gadamer com o lugar definido para a história das ideias política por Skinner, notadamente após sua reação aos críticos, permite com que pensemos de modo mais produtivo a teoria política normativa na ciência política contemporânea.

2.7 A contribuição se Skinner para a teoria política normativa

Em inventário sobre a história do pensamento político, Richard Tuck reforça a percepção compartilhada ao longo deste capítulo. Segundo o autor, ainda que a renovação da história das ideias não seja obra exclusiva de Quentin Skinner, este foi, sem dúvida, quem mais se dedicou à reflexão metodológica e, com isso, impactou decisivamente o campo de estudos (TUCK, 1992). Com o objetivo de situar a contribuição de Skinner no contexto intelectual do século XX, Tuck resgata algumas das mais conhecidas interpretações sobre o retorno aos clássicos, distanciando-se de boa parte delas. Nesse sentido, Tuck mostra como a crítica do historiador aos estudos que pretendiam encontrar ideias atemporais, com validade universal, nos autores do passado pode, por certo, ser aplicada ao trabalho de autores como Hannah Arendt e Leo Strauss, por exemplo, mas tinha como foco principal “figuras mundanas dos anos 60 que escreveram sobre a história do pensamento político, de um ponto de vista científico-político convencional” (TUCK, 1992, p. 279). Isso permite com que situemos Skinner de modo distinto ao que comumente é feito. Por certo, o historiador preocupou-se, notadamente nos seus ensaios inaugurais, com a prescrição de uma metodologia adequada para o estudo dos autores do passado. Com isso, Skinner não queria, e aqui defendo a leitura de Tuck, desqualificar a produção de autores da teoria política normativa, como o exemplo mencionado de Hannah Arendt. Ao lado disso, mesmo a reformulação substantiva de alguns dos seus argumentos pode, com efeito, ser acionada como a qualificação de um lugar específico para a história do pensamento político que não concorre, porém, com a teoria política normativa. Algo que nos permite razoável liberdade com relação aos “cuidados” que a historiografia requer. Ao discutir o debate entre liberais e republicanos a partir do recorte dos conceitos de liberdade e lei, Ricardo Silva promove uma interessante aproximação entre a historiografia de Quentin Skinner e os argumentos prescritivos formulados por Philip Pettit (SILVA 2008),

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conforme abordarei mais detidamente no próximo capítulo. Por ora, reforço o modo como Silva compreende as obras de Skinner e Pettit, tomando ambos como momentos exemplares na formulação de uma concepção neo-romana de liberdade, que rejeita, ao mesmo tempo, tanto a noção liberal – centrada na concepção negativa de liberdade –, quanto versões neo-atenienses do republicanismo, que optam pela noção positiva de liberdade. Silva defende que mesmo portando distintos pontos de vista metodológicos, as obras de Skinner e Pettit podem ser apreendidas a partir da colaboração entre ambos. Isso porque,

A história do pensamento político e a filosofia política são de fato disciplinas distintas, mas isso não nos deve levar a duvidar da legitimidade de uma em favor da outra. Acreditamos que uma análise do intercâmbio intelectual entre Skinner e Pettit nos ajuda a ver que as estórias são mais bem contadas e os conceitos abstratos mais dotados de significados quando historiadores e teóricos aprendem uns com os outros (SILVA, 2008, p. 153).

A defesa da possibilidade de colaboração entre o pensamento político e a filosofia política justifica, aqui, a extensa abordagem da obra de Quentin Skinner. Isso porque, ainda que Skinner seja lembrado como membro da “Escola de Cambridge”, responsável pela formulação de “uma metodologia da história intelectual que advoga que a compreensão do significado dos textos políticos do passado só é possível mediante a reconstituição dos contextos lingüísticos e normativos em que tais textos foram concebidos” (SILVA, 2008, p. 153-154), o modo como o próprio historiador esteve aberto para o debate, reformulando importantes contribuições ao longo da segunda metade do século XX, permite com que esta aproximação se dê de forma produtiva. Silva argumenta que Skinner, a partir da reação à crítica, teria percebido como o estudo da história do pensamento político é capaz de lançar luz na relação existente entre a teoria e a prática política. Tal percepção sugere a feliz colaboração entre história das ideias e teoria política, sem anular, contudo, a distinção entre ambas. Silva mostra como Skinner afirma ser perfeitamente possível a mesma pessoa praticar história intelectual e teoria política, ainda que seja impossível isso ocorrer simultaneamente. Não por acaso, ele próprio assume o papel de historiador, e não de teórico da política.

O que se depreende das propostas dos historiadores de Cambridge é antes a indispensabilidade da instrução mútua entre historiadores e teóricos. A história do pensamento político alcançará resultados tão mais satisfatórios, segundo seus próprios critérios, quanto mais bem informado for o historiador a respeito do debate teórico contemporâneo sobre temas e problemas análogos aos que estuda no passado. Por outro lado, a teoria política estará tão mais próxima da vida política, será tão mais eficaz da realidade política, quanto mais for capaz de tomar consciência de seu próprio passado (SILVA, 2008, p. 156-157).

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Isso permite com que Silva apreenda Skinner e Pettit como exemplos dessa possibilidade de instrução mútua: ao passo em que o primeiro parte dos debates teóricos contemporâneos sobre o conceito de liberdade para reconstruir a história desse conceito, o segundo mobiliza os achados historiográficos na construção de uma concepção de liberdade mais apropriada para o mundo atual. De acordo com Silva, ambos os autores assumiram, em trabalhos recentes, a influência que seus estudos tiveram um sobre o outro na reformulação do conceito de liberdade. Conforme mencionado anteriormente, isso não implica eliminarmos as substantivas distinções entre ambos os campos, sobretudo com relação ao que pretendem os autores com suas respectivas conclusões.

Por não serem disciplinas idênticas, a história intelectual e a teoria política normativa condicionam diferenciadamente os estilos e as metodologias empregadas por seus respectivos praticantes. É notável como a predisposição de Pettit para defender a atualidade e superioridade (moral e cognitiva) da liberdade republicana contrasta com a expressão mais cautelosa e desapaixonada de Skinner (SILVA, 2008, p. 159).

Silva nos lembra como Skinner elogia, inclusive, uma suposta neutralidade dos historiadores no exame do passado, afirmando que se ocupa do que julga “interessante”, e não do que julga “verdadeiro”. Tal como Weber havia sugerido, Skinner afirma que cabe ao historiador escolher seu objeto segundo a importância para o seu tempo, mas em seguida proceder suas pesquisas de maneira rigorosa, mantendo sua integridade e autoridade. Assim, Silva reforça que ao passo em que “Skinner volta-se primordialmente para o passado, ainda que motivado por problemas do presente, Pettit engaja-se diretamente com o presente, orientando explícita e declaradamente seus esforços para objetivos futuros” (SILVA, 2008, p. 160). Nessa direção, a lembrança de Silva das declarações recentes de Skinner acerca do seu imputado flerte com a filosofia política servem como ilustração da aproximação aqui defendida. Ao ser questionado, nos lembra Silva, sobre o “Skinner filósofo” estar eclipsando o “Skinner historiador”, o autor agradece ao alerta, e afirma viver um dilema próprio do “ofício”: “De um lado, queremos que nossos estudos sejam tão eruditos quanto possível. Do contrário, eles serão pouco melhores do que obras de propaganda. Mas, por outro lado, certamente queremos que nossos estudos sejam de algum valor para nossas sociedades” (SILVA, 2010a, p. 326). Ainda que recuse a “fusão de horizontes” nos termos de Gadamer, visto que continua reservando lugar de destaque para o método, Skinner reconhece que a própria escolha do objeto é conformada por preocupações contemporâneas. O que temos, a partir de então, é de nos ocupar com o máximo de esforço do controle, pelo método, para a produção estudos tão rigorosos quanto

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possível. Em suma, ao defender-se das críticas dirigidas à sua obra, o Skinner situa o papel da história das ideias política e o papel da teoria política normativa, libertando a última do rigor que apregoa para a primeira. O desfecho do seu “Liberdade ante do liberalismo” (SKINNER, 1999), obra que será discutida no próximo capítulo, resume, por certo, este propósito. Nos diz Skinner,

A história da filosofia, e talvez especialmente da filosofia moral, social e política, está aí para nos impedir de sermos muito facilmente enfeitiçados. O historiador do pensamento pode nos ajudar a apreciar até onde os valores incorporados em nosso atual modo de vida, e nossas atuais maneiras de pensar sobre esses valores, refletem uma série de escolhas feitas em épocas diferentes entre diferentes mundos possíveis. Essa coincidência pode ajudar a libertar-nos do domínio de qualquer uma das explicações hegemônicas desses valores e de como eles devem ser interpretados e compreendidos. Munidos de uma possibilidade mais ampla, podemos nos distanciar dos compromissos intelectuais herdados e exigir um novo princípio de investigação sobre esses valores. Isso não é sugerir que deveríamos usar o passado como um repositório de valores alheios a serem enxertados num presente sem suspeitas. [...] Pelo contrário, estou sugerindo que os historiadores do pensamento podem esperar fornecer aos seus leitores informação relevante para a elaboração de critérios sobre seus valores e crenças atuais, deixando-os então ruminar (SKINNER, 1999, p. 93-94).

Logo, se o próprio Skinner afirma, conforme discutimos ao longo do capítulo, que a “vida política coloca os principais problemas para o teórico da política, fazendo que um certo elenco de pontos pareça problemático, e um rol correspondente de questões se converta nos principais tópicos em discussão” (SKINNER, 2005b, p. 10), o argumento aqui avançado sustenta que podemos recorrer aos estudos históricos com aberta intenção normativa. Podemos, por certo, promover uma “fusão de horizontes”, onde os trabalhos historiográficos consubstanciem argumentos normativos sobre as questões presentes no mundo público. Lessa, em ensaio sobre a relação entre a filosofia política e a ciência política, cunhou uma expressão que bem exemplifica esta proposta: a realização de uma “etnografia de mundo imaginados” (LESSA, 2003a). Logo, sem rejeitar a história, seu rigor e método, mas ao mesmo tempo libertando-se dela, a teoria política pode, com efeito, prescrever.

3. A REPÚBLICA (1): ELEMENTOS PARA DEFINIÇÃO

Política diz respeito à coexistência e associação de homens diferentes. Os homens se organizam politicamente segundo certos atributos comuns essenciais existentes em, ou abstraídos de, um absoluto caos de diferenças. [...] Desde o começo, a política organiza os absolutamente diferentes, tendo em vista a sua relativa igualdade e em contraposição a suas relativas diferenças. Hannah Arendt – O que é política?

Nietzsche ou Aristóteles? A questão lançada por Alasdair MacIntyre após ampla exposição acerca do suposto declínio da filosofia moral contemporânea representa, de alguma forma, o mesmo mote do argumento aqui em curso. MacIntyre figura, por certo, como um dos mais influentes filósofos comunitaristas do presente, sendo foco de intensa crítica a partir dos anos 1980, após a publicação de “Depois da virtude” (MacINTYRE, 2001). Ainda que o argumento aqui desenvolvido conserve certo distanciamento com relação as conclusões do autor, o modo como ele constrói sua reflexão e, sobretudo, seu diagnóstico sobre a modernidade constituem importantes referências para a proposição de um ideal normativo de república, conforme sustento nesta tese. O objetivo desta apresentação é, portanto, discutir seu diagnóstico sobre a modernidade e sua proposição normativa de correção do estágio em que se encontra o diálogo moral contemporâneo. Isso porque, MacIntyre será aqui tomado como um argumento exemplar de retorno à tradição, sem que isso implique a adoção irrefletida dos conceitos do passado ou abandono das conquistas da modernidade. Em outras palavras, ao adotar formas de sociedade pré-modernas como ponto de inflexão sobre o estado presente, MacIntyre não descarta valores caros ao mundo moderno – a liberdade, por exemplo –, mas sim abre o diálogo sobre sua efetiva realização hoje, exercício análogo ao pretendido nesta tese. MacIntyre opera a defesa da retomada da ética aristotélica das virtudes como saída para os desafios da linguagem moral presente, defesa essa associada à recolocação da tradição da pesquisa racional como instrumento de crítica à modernidade iluminista e seu projeto ético universalista. Em seu diagnóstico, o autor aponta o “emotivismo” predominante nas sociedades

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liberais como responsável pela incapacidade de apreendermos o declínio da linguagem moral, sob o entendimento de que a situação presente pode, de alguma forma, ser identificada de maneira indistinta em toda história. Nessa direção, será com base no vínculo entre tradição e racionalidade, tomando como referência teórica central a epistemologia de Thomas Kuhn, que MacIntyre irá formular sua concepção de racionalidade enquanto um paradigma para a reflexão presente (CARVALHO, 2011). A menção ao argumento do autor se dá, conforme mencionado anteriromente, especialmente em razão do método e seu diagnóstico, e menos por suas conclusões. Isso porque, elejo aqui o mesmo “inimigo” apontado por MacIntyre em sua crítica ao mundo contemporâneo, conforme resume Carvalho:

Ao buscar devolver a racionalidade às teorias e julgamentos éticos, vilipendiados por teóricos contemporâneos e pelo modelo de vida cultural e social das sociedades capitalistas avançadas, nas quais tudo é transformado em mercadoria sujeita às determinações fetichistas do mercado, MacIntyre se volta para as tradições racionais como o único locus possível onde a racionalidade dos fins, portanto, das teorias e julgamentos éticos, pode reencontrar seu lugar genuíno sem ser dissolvida pela racionalidade dos meios ou reduzida à instrumentalidade de uma vontade arbitrária e alienada (CARVALHO, 2011, p. 14, grifo do autor).

O primeiro passo dado por MacIntyre na construção do argumento sobre o empobrecimento da linguagem moral contemporânea é a formulação de um diagnóstico assumidamente normativo (ou filosófico, nos seus termos) sobre a história. O modo como o autor articula a filosofia com o contexto sócio histórico parte, inclusive, de um mundo construído no plano hipotético. MacIntyre sugere imaginarmos que as ciências naturais viessem a sofrer as consequências de uma catástrofe, sendo responsabilizadas pela opinião pública em decorrência de eventuais calamidades ambientais e, posteriormente, banidas por um movimento político. Mais tarde, conforme avança na sua construção, uma reação contra esse movimento destrutivo tentaria ressuscitar a ciência, embora tivesse esquecido em grande parte o que ela havia sido, restando apenas alguns de seus fragmentos: experimentos isolados do contexto que os produziu; teorias desvinculadas de experimentos etc. Conforme sugere MacIntyre, as expressões mobilizadas a partir de então estariam perdidas, sugerindo um elemento de arbitrariedade em sua aplicação. Podemos descrever este mundo imaginário “como um mundo no qual a linguagem das ciências naturais, ou pelo menos partes dela, continua a ser usada, mas está num grave estado de desordem” (MacINTYRE, 2001, p. 14). O autor aponta como a filosofia analítica – predominante nos dias de hoje – seria incapaz de revelar o estado de desordem deste mundo imaginado, ocupando-se, com efeito, da mera

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descrição da linguagem presente. Isso porque, ela seria capaz apenas de elucidar as estruturas conceituais das ciências naturais como elas são, sem qualquer pretensão normativa sobre o mundo. A fenomenologia e o existencialismo seriam, segundo MacIntyre, igualmente incapazes de discernir o certo do errado. Essa “filosofia genuína”, conforme sustenta, conservaria razoável miopia com relação à perda da totalidade presente no mundo hipotético. Dito isso, MacIntyre questiona:

Por que inventar esse mundo imaginário habitado por pseudocientistas fictícios e filosofia real, genuína? A hipótese que quero apresentar é a de que no mundo real que habitamos a linguagem da moralidade está no estado grave de desordem, da mesma forma que a linguagem das ciências naturais no mundo imaginário que descrevi. O que possuímos, se essa teoria for verdadeira, são os fragmentos de um esquema conceitual, partes à quais atualmente faltam os contextos de onde derivavam seus significados. Temos, na verdade, simulacros da moralidade, continuamos a usar muitas das suas expressões principais. Mas perdemos – em grande parte, se não totalmente – nossa compreensão, tanto teórica quanto prática, da moralidade (MacINTYRE, 2001, p. 15).

Aceitar tal hipótese exige, todavia, uma mudança de perspectiva, visto que a filosofia predominante no mundo real – analítica e fenomenológica – não nos ajudará a detectar a desordem do pensamento, nem ao menos a história acadêmica, que teria sido, ainda mantendo os termos do autor, igualmente atingida pela fragmentação descrita. MacIntyre sugere, assim, que a narrativa histórica deve ser conformada por modelos que a aproximam do que Hegel definiu como “história filosófica”, e Collingwood apontou em todo relato histórico bem- sucedido. Apenas assim teríamos recursos para apreender a desordem presente. Nesse sentido, a história como hoje conhecemos é a história acadêmica, que data de dois séculos atrás, de modo que a desordem moral proposta permanece invisível aos seus praticantes, visto que estes figurariam entre os sintomas do desastre ocorrido. O objetivo do autor é, com efeito, mostrar o desalinho da linguagem da moralidade, para o que concorre o recurso aberto de instrumentos normativos em sua construção. MacIntyre aponta como característica decisiva da linguagem moral contemporânea “ser muito utilizada para expressar discordâncias; e a característica mais marcante dos debates que expressam essas discordâncias é seu caráter interminável. [...] Parece que não existe meio racional de garantir acordo moral em nossa cultura” (MacINTYRE, 2001, p. 21). Dessa forma, a fragmentação do esquema conceitual presente no discurso moral contemporâneo implica não podermos, em nossa época, apelar para os critérios morais da mesma forma que em outras épocas, visto que perdemos a concepção unificadora e ordenadora do espaço da moralidade.

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Parece não haver, assim, um modo racional de assegurar qualquer acordo moral em nossa cultura, como revelam as distintas respostas possíveis sobre o tema da justiça, por exemplo. Por seu turno, a filosofia acadêmica pode, no máximo, nos oferecer uma definição mais precisa da discordância moral presente – conforme ilustra sua crítica ao papel desempenhado pela filosofia analítica no mundo hipotético –, sem apresentar alternativas para sua superação. O diagnóstico apresentado por MacIntyre é especificado em três características que marcam o desacordo contemporâneo: (1) a primeira característica é a incomensurabilidade conceitual dos argumentos rivais (partindo de premissas incomunicáveis, os argumentos são logicamente construídos e alcançam conclusões discordantes), que resulta num cinismo generalizado acerca da possibilidade de reconhecermos os argumentos como expressão da racionalidade, convertendo-os em técnicas de dominação retórica. Isso faz com que questões morais tratadas no domínio público sejam situadas fora da pesquisa racional; (2) contrastando com a primeira característica, MacIntyre nos mostra como as discussões pretendem ser racionais e impessoais, algo que confere um ar paradoxal ao desacordo moral contemporâneo: de um lado, as discussões não passam de um choque de vontades antagonistas; de outro, temos a exigência de que a linguagem moral apresente padrões da racionalidade e impessoalidade; (3) A terceira característica do desacordo moral contemporâneo trata-se do modo como as premissas rivais envolvidas nos argumentos morais possuem uma heterogeneidade de origens históricas. Devemos perceber como os conceitos mobilizados foram forjados dentro de um contexto, com papel e função específicos, contexto esse agora perdido. É precisamente essa característica que explica o pluralismo moral no qual nos encontramos, não como um diálogo ordenado entre pontos de vista que se interseccionam, mas como uma mistura não harmoniosa de fragmentos. Em síntese, as três características denunciam como a abundância de meios teóricos disponíveis para justificar pontos de vista contrários convive com uma incapacidade de respondermos às questões colocadas. Ao apontar para a diversidade de origens históricas das premissas que embasam os argumentos nos debates morais, MacIntyre problematiza o que classifica como um “catálogo” de nomes e obras que são mobilizados pelos contemporâneos para a construção dos argumentos em disputa. O ponto é particularmente interessante, pois mesmo dentro de uma perspectiva assumidamente filosófica o autor não desfoca a contribuição dada pela história das ideias para a teoria política normativa. No seu entendimento,

Esse catálogo de grandes nomes é sugestivo; mas pode ser enganoso de duas formas. Citar nomes pode nos levar a subestimar a complexidade da história e a linguagem de tais argumentações; e pode levar-nos a procurar somente essa história e essa linhagem

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nos escritos de filósofos e teóricos, em vez de procura-las naqueles intricados corpos de teorias e práticas que constituem as culturas humanas, cujas crenças são expressas pelos filósofos e teóricos apenas de maneiras parcial e seletiva (MacINTYRE, 2001, p. 28).

Devemos conservar, alerta o autor, certa desconfiança com o uso de tais conceitos e fontes, visto que foram construídos em contextos específicos dos quais agora encontram-se privados. Ademais, insiste MacIntyre, os conceitos que empregamos mudam de caráter, as expressões normativas mudam de significado. Novamente, sua proposta de abordagem articula a filosofia e o contexto sócio histórico, buscando sempre uma “sociologia” para a “filosofia moral”, mas sem abandonar seu projeto de uma história narrativa que afirma a existência de estágios distintos. O argumento de MacIntyre se aproxima do diagnóstico skinneriano apresentado no capítulo anterior. Skinner critica a história das ideias políticas contada a partir de grandes nomes e obras, ocupando-se da descrição dos contextos linguísticos que embasam os argumentos normativos. Ainda que ambos destoem acerca dos propósitos, trata-se, todavia, de mais um flerte produtivo entre a história das ideias e a teoria política. Em outras palavras, o “catálogo” de autores e obras pode ser acionado sem, contudo, negligenciarmos os distintos contextos, nem abrirmos mão da perspectiva normativa. A questão que emerge a partir daí é a de como devemos escrever a história dessas transformações conceituais? A hipótese sustentada por MacIntyre é cara ao argumento aqui em curso: “Se estou correto, pois, ao presumir que a linguagem da moralidade passou de um estado de ordem para um estado de desordem, essa passagem certamente se refletirá justamente nessa mudança de significado – na verdade, consistirá nelas, em parte” (MacINTRE, 2001, p. 29). A própria incapacidade de construirmos narrativas históricas é, de acordo com o autor, um claro sintoma dessa desordem. Mais uma vez em consonância com as cobranças historicistas, MacIntyre afirma que:

Um obstáculo a isso tem sido o tratamento anti-histórico persistente que os filósofos contemporâneos vêm aplicando à filosofia moral, tanto ao escrever sobre o assunto quanto ao ensiná-lo. Com muita freqüência ainda tratamos filósofos morais do passado como contribuindo para um único debate com conteúdo relativamente invariável, tratando Platão, Hume e Mill como contemporâneos nossos e uns dos outros. Isso leva a abstrair esses filósofos do meio social e cultural no qual viveram e pensaram e, assim, a história de seu pensamento adquire uma falsa independência do resto da cultura (MacINTYRE, 2001, p. 29).

O artifício mobilizado pelo autor na construção do seu argumento é antecipar eventuais questionamentos direcionados contra sua hipótese. Assim, ainda que história empírica e a

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filosofia constituam, como vimos até aqui, dimensões distintas, uma questão pode ser colocada contra a hipótese que embasa o argumento presente em “Depois da virtude”: aquilo que é apresentado como contingente – no caso, o declínio do discurso moral –, como característica da nossa cultura, pode, na verdade, ser próprio a todas as culturas que possuem discursos valorativos. Logo, suspeita MacIntyre, se esta dúvida for pertinente, não podemos resolver os embates morais contemporâneos precisamente porque somos incapazes de resolver os embates dessa natureza em momento algum, passado, presente ou futuro. Nessa direção, o que está na base da fragmentação da moralidade e da perspectiva a-histórica da filosofia moral do século XX, conforme acima aventado, é o “emotivismo”. Nas palavras do autor:

Uma teoria filosófica que esse desafio nos convida especificamente a confrontar é o emotivismo. Emotivismo é a doutrina segundo a qual todos os juízos valorativos e, mais especificamente, todos os juízos morais não passam de expressões de preferência, expressões de sentimento ou atitudes, na medida que são de caráter moral ou valorativo. Os juízos particulares podem, naturalmente, reunir elementos morais factuais (MacINTYRE, 2001, p. 30, grifo do autor).

Nessa direção, ao passo em que os juízos factuais são verdadeiros ou falsos, pois no terreno do fato existem critérios racionais por meio dos quais podemos alcançar acordos, os juízos morais não obedecem aos mesmos critérios, manifestando a impossibilidade de produzirmos acordos recorrendo a métodos racionais. Nestes o acordo só é possível por meio de efeitos não-racionais sobre emoções e comportamentos. O emotivismo pretende, dessa forma, dar uma explicação da natureza de todos os juízos de valor, em todos os tempos e lugares. MacIntyre aponta como uma das razões do seu fracasso precisamente a eliminação da dimensão histórica dos conceitos morais, sustentando a inexistência de justificativas racionais válidas para os argumentos morais. O propósito do autor é sustentar precisamente o contrário, defendendo que padrões morais e impessoais podem ser racionalmente justificados. Assim, o autor sustenta que a construção de um diagnóstico para compreendermos esse cenário requer uma investigação histórica e comparativa. Tal como discutido nos capítulos anteriores, novamente a história é convidada para a reflexão sobre a política. Todavia, trata-se, aqui, de “uma história que não é valorativamente neutra, uma história que podemos genuinamente chamar de história filosófica” (CARVALHO, 2011, p. 22). Devemos, assim, empreender uma história narrativa, portadora de diferentes estágios, que pressupõe modelos de sucesso e fracasso. Sem isso, corremos o risco de pactuar com a linguagem fragmentada presente na história acadêmica, naturalizando os fenômenos presentes ao invés de problematiza-los.

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O problema do emotivismo é, como vimos anteriormente, ocupar-se da linguagem e dos conceitos morais enquanto tais, quando na verdade sua interpretação da moralidade restringe- se apenas à moralidade contemporânea. Além disso, “Essa cegueira é ainda mais agravada quando tenta ser uma filosofia moral de natureza valorativamente neutra, esquecendo-se de que a própria pesquisa filosófica, ao investigar sobre determinados conceitos morais, interfere e contribui para sua alteração” (CARVALHO, 2011, p. 23). Contrariamente, MacIntyre formula um diagnóstico da condição da moralidade contemporânea defendendo a existência de um declínio moral. Isso exige a construção de três estágios valorativamente embasados, numa perspectiva que o aproxima de Hegel e Collingwood, conforme referência explícita, abdicando, com efeito, de uma história “valorativamente neutra”. Nessa direção, o autor sugere (1) um primeiro estágio, onde teorias e práticas valorativas, e morais, encarnam padrões impessoais e objetivos, onde a justificação racional é possível; (2) um segundo estágio, no qual existem tentativas mal sucedidas de sustentar a objetividade e impessoalidade; e (3) um terceiro, no qual teorias de tipo emotivista asseguram a aceitação implícita de que justificativas racionais são impossíveis, e que nunca existiram. Segundo MacIntyre, estaríamos hoje no terceiro estágio. A narrativa proposta pelo autor defende, com efeito, a possibilidade de construção de padrões objetivos e impessoais para a moralidade do nosso tempo, sem, contudo, negar o aspecto normativo presente na sua defesa. O emotivismo concebe o eu como um agente moral capaz de afastar-se para emitir juízos de uma perspectiva universal e abstrata totalmente destacada de qualquer particularidade social. No domínio dos fatos há, por certo, métodos para eliminarmos as discordâncias. Porém, MacIntyre nos mostra como no plano da moral a supremacia da discordância é exaltada sob o rótulo do “pluralismo”. Esse eu democratizado, de acordo com sua denominação, pode ser qualquer coisa, porque em si e para si não é nada. Assim, esse eu desprovido de critérios fundamentais é tido como carente de qualquer identidade social necessária e, por conseguinte, é desprovido de um telos. A despeito da particularidade da prescrição de MacIntyre, é precisamente esta constatação que interessa ao argumento aqui desenvolvido, ao permitir que o projeto da modernidade seja questionado sem, contudo, cobrar seu completo abandono. Isso porque, de acordo com o autor, em muitas sociedades tradicionais pré-modernas o indivíduo é identificado por intermédio da associação, herdando determinado espaço no interior das relações sociais. A própria menção às sociedades tradicionais manifesta suas intenções valorativas, no momento em que o passado serve de contraponto crítico ao presente, o que não implica, por certo, adesão incondicional ao seu edifício teórico. Todavia,

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Essa concepção de uma vida humana inteira como objeto primordial de avaliação objetiva e impessoal, de um tipo de avaliação que proporciona o conteúdo para se julgar as ações ou projetos particulares de um determinado indivíduo, é algo que deixa de ser praticamente disponível no progresso – se é que podemos chamá-lo assim – rumo à modernidade. Passa, até certo ponto, despercebido, pois é celebrado historicamente, em grande parte, não como perda, mas como ganho autogratificante, como o surgimento do indivíduo liberto, por um lado, dos grilhões sociais das hierarquias repressoras que o mundo moderno rejeitou ao nascer e, por outro lado, do que a modernidade acredita serem superstições da teologia. [...] o eu moderno típico, o eu emotivista, ao alcançar a soberania em seu próprio domínio, perdeu seus limites tradicionais proporcionados por uma identidade social e uma visão da vida humana como ordenada a determinado fim (MacINTYRE, 2001, p. 69).

A ordem social que daí emerge encontra-se, de acordo com o autor, bifurcada entre um “domínio organizacional”, com fins dados como fatos consumados e indisponíveis a análise racional, e um domínio pessoal, no qual o debate sobre valores é fundamental, mas não encontra resolução racional79. Essa bifurcação constitui, com efeito, importante pista sobre a sociedade moderna e a oposição entre coletivismo e individualismo. Nas palavras do autor,

De um lado surgem os autoproclamados protagonistas da liberdade individual; do outro lado, os autoproclamados protagonistas do planejamento e da regulamentação, dos bens que estão disponíveis por intermédio da organização burocrática. Mas o que é fundamental de fato é o ponto em que as partes adversárias concordam, a saber, que só há dois modos alternativos de vida social abertos para nós, um dele é aquele em que as opções livres e arbitrárias dos indivíduos são soberanas, e outro em que a burocracia é soberana, precisamente de modo a poder limitar as opções livres e arbitrárias dos indivíduos. Dado essa profunda concordância cultural, não é de surpreender que a política das sociedades modernas oscile entre a liberdade que não passa de falta de regulamentação do comportamento individual e formas de controle coletivista destinados somente a limitar a anarquia do interesse próprio (MacINTYRE, 2001, p. 70).

MacIntyre sugere como as consequências de vitória de um ou de outro dos lados em disputa são igualmente intoleráveis a longo prazo. Isso porque, a burocracia e o individualismo são tanto parceiros quanto antagonistas, já que essa transformação das modalidades mais tradicionais para as formas emotivistas contemporâneas foi, por certo, precedida por um discurso moral. Um dos pressupostos metodológicos do autor é, assim, a defesa de que não podemos separar a história do eu e dos seus papéis da história da linguagem. MacIntyre chega a afirmar que:

Os principais episódios da história social que transformaram, fragmentaram e, se minha opinião radical estiver correta, deslocaram muito a moralidade – e, assim,

79 Este ponto é melhor trabalhado por MacIntyre no desenvolvimento do argumento, por meio da menção à figura do “burocrata” na obra de Weber como manifestação típico-ideal do eu emotivista moderno (o ator que dispõe de fartos meios para alcançar seus fins, mas incapaz de efetuar escolhas sobre os fins últimos). A discussão, entretanto, escapa aos propósitos da tese.

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geraram a possibilidade do eu emotivista, com sua forma característica de relacionamentos e modalidades de discurso – foram episódios da história da Filosofia, que é somente à luz dessa história que podemos entender como surgiram as idiossincrasias do discurso moral contemporâneo cotidiano e, assim, como o eu emotivista conseguiu encontrar um meio de expressão (MacINTYRE, 2001, p. 73).

É isso que o leva a buscar na história da filosofia explicações para o fracasso do projeto iluminista de produzir uma validação racional da moralidade. Conforme vimos, o que está na base da fragmentação da moralidade e da perspectiva a-histórica da filosofia moral do século XX, segundo MacIntyre, é o emotivismo. Para chegar até ele, o autor persegue suas origens históricas, novamente recorrendo à imagem do mundo hipotético fragmentado: o erro do projeto iluminista reside em herdar de maneira fragmentada o esquema moral presente do discurso ocidental desde a “Ética a Nicómaco” de Aristóteles. Aristóteles traça um esquema teleológico com base no contraste fundamental entre a “natureza-humana-tal-como-existe” (ou a natureza humana em seu estado não instruído), e uma “natureza-humana-tal-como-seria-se-realizasse-seu-telos (ou o homem após realização da sua essência). Segundo o autor, a “ética é precisamente a ciência que capacitaria os homens a transitar do seu estado não-instruído para aquele em que realiza plenamente sua essência de ser racional, o seu telos” (CARVALHO, 2011, p. 40). Conforme discutiremos na primeira seção deste capítulo. Aristóteles ocupa-se da investigação do “viver bem”, fundamentalmente centrado na finalidade da ação humana. Logo, são os preceitos morais que, segundo o filósofo, fornecem o correto caminho para sairmos da potencialidade ao ato, ou seja, para que o homem alcance seu verdadeiro fim. “Há, dessa forma, uma estrutura tríplice nesse esquema moral clássico, cujos termos estão articulados de tal maneira que não poderemos entender o status e as funções de cada um sem referência aos outros” (ibidem, p. 41). O inventário de MacIntyre caminha exatamente no sentido de mostrar como a modernidade perdeu um dos termos, a saber, a finalidade do homem ou seu telos, de modo que os demais tornaram-se sem sentido. Historicamente, o fracasso do projeto ético iluminista se explica pela rejeição secular tanto da teologia católica como da protestante – encerrando, com isso, o elemento teleológico clássico –, somada à rejeição científica e filosófica do aristotelismo. Isso teria feito com que os filósofos morais do século XVIII se engajassem num projeto natimorto, visto que teriam herdado fragmentos de uma teoria moral desprovidos do sentido e contexto originais. MacIntyre resume essa fragmentação de sentido por meio da incapacidade que esses filósofos manifestam de derivar o “deve” (perspectiva normativa) do “é” (perspectiva factual). Isso se deve à mudança dos termos fundamentais utilizados no debate moral durante os séculos

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XVII e XVIII, notadamente o abandono do uso de conceitos funcionais no âmbito da argumentação moral. Carvalho recupera a definição de MacIntyre acerca dos “conceitos funcionais”, mobilizando os exemplos do “relógio” e do “fazendeiro” para mostrar como somos plenamente capazes de derivar sentenças valorativas a partir de sentenças fatuais, no momento em que recorremos a um conceito funcional. Conforme seu exemplo, não podemos definir o relógio independentemente do conceito de um bom relógio, pois ele possui uma função, da mesma forma em que não podemos definir o fazendeiro descolado da concepção do bom fazendeiro. Os exemplos acionados mostram, sobretudo, como tanto o critério que define o que um objeto é, quanto o critério que define se ele é bom são fatuais.

Portanto, todo argumento que gira em torno de um conceito funcional será sempre um argumento que permite a passagem válida de premissas fatuais para conclusões valorativas. Daí que a validade do princípio geral, assumido em várias versões pelos principais protagonistas do Iluminismo, de que fato e valor são campos não intercambiáveis só pode ser sustentado com base na exclusão de qualquer argumento funcional do seu escopo. Quer dizer, aqueles que defendem tal princípio têm de fazê- lo afirmando que nenhum argumento moral envolve conceitos funcionais, isto é, não incorpora o elemento teleológico (CARVALHO, 2011, p. 43).

Assim como mencionado anteriormente, Aristóteles define o homem como um conceito funcional, pois aponta um telos para o seu bem viver: a natureza do homem implica a cidade, a vida coletiva, e apenas desse modo ele poderá se realizar plenamente. Contudo, na medida em que o homem passa a ser pensado como um indivíduo que existe antes da comunidade – o contratualismo é um exemplo notório desse movimento –, o conceito de homem deixar de ser um conceito funcional. Essa seria a origem do eu emotivista há pouco descrito. MacIntyre aponta como esse “eu” é, inclusive, apreendido como uma conquista da modernidade.

O que defini em termos de perda de estrutura e conteúdo tradicional foi encarado pelos mais eloqüentes de seus porta-vozes filósofos como a aquisição pelo eu da sua devida autonomia. O eu fora libertado de todas aquelas formas antiquadas de organização social que o aprisionavam simultaneamente dentro da crença numa ordem mundial teísta e teleológica e dentro daquelas estruturas hierárquicas que tentavam se legitimar como participantes de tal ordem mundial (MacINTRE, 2001, p. 113).

Uma provocação possível a partir da ideia de conceitos funcionais descrita por MacIntyre é pensar como a ciência política opera basicamente com tais conceitos – como a ideia de “governo” e “bom governo”, por exemplo. Isso explica sua inescapável normatividade, ou seja, a possibilidade de derivar, nos termos de MacIntyre, o “deve” a partir do “é”. O ponto foi discutido, com outros termos, no primeiro capítulo da tese, mas perpassa, de alguma forma,

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todo o argumento em curso. Conforme enunciei na abertura do capítulo, após traçar seu diagnóstico, MacIntyre conduz o leitor a uma encruzilhada: Nietzsche ou Aristóteles? A pergunta se justifica pela interpretação que o autor faz da obra do filósofo alemão. Para MacIntyre, Nietzsche representa o ápice do individualismo liberal ao conceber o indivíduo num solipsismo moral, um “super- homem” isolado da sociabilidade. Contrariamente, a ética aristotélica das virtudes é apresentada como uma alternativa para devolver coerência e racionalidade ao acordo moral. O retorno à Aristóteles não propõe sua retomada integral. MacIntyre abandona o que foi corroído pelo edifício do tempo e propõe a recuperação da tradição de pesquisa racional como estratégia para o enfrentamento da desordem moral contemporânea. A proposta é cara para os objetivos desta tese. De maneira análoga, recorro aos autores do passado em busca de uma tradição de pensamento que possa constituir contraponto crítico ao naturalismo do presente, sem que isso implique, todavia, o abandono das conquistas da modernidade. Nesse sentido, opto pela noção de “república” como norte de pesquisa, escapando, com isso, dos perigos que a proposta comunitarista de MacIntyre por vezes carrega80. Tal opção encontra respaldo no argumento de Michael Sandel, em parte antecipado na apresentação da tese, sobretudo em sua proposta de matizar o comunitarismo. Em outras palavras, o modo como Sandel enfoca o debate acerca dos limites do liberalismo aproxima-se da proposta aqui aventada ao adotar a defesa de um fim para a comunidade política que não almeja ser valorativamente neutro, assumindo abertamente uma perspectiva normativa sobre o mundo, notadamente na defesa do que é o “bem viver”. Assim, já no prefácio à segunda edição do seu clássico “O liberalismo e os limites da justiça”, o autor nega o rótulo “comunitarista”, por vezes aplicado à perspectiva promovida por seu trabalho, afirmando tratar-se de uma das formas possíveis de crítica ao liberalismo de John Rawls (SANDEL, 2005). De acordo com Sandel, assim como outros críticos contemporâneos do liberalismo, nomeadamente MacIntyre, Taylor e Walzer, seu trabalho foi identificado com a crítica “comunitarista” de um liberalismo orientado para os direitos individuais. O rótulo é, sustenta Sandel, em parte justo, visto que seu argumento aponta a inadequação da explicação da comunidade proposta pelo liberalismo. Todavia, em muitos aspectos tal rótulo é enganador. Sandel nos lembra como esse debate é por vezes apresentado

80 A separação entre o comunitarismo e o republicanismo constitui, seguramente, um exercício passível de questionamentos. Aqui retenho apenas o modo como Sandel enfoca a questão, definindo o republicanismo por meio da noção de uma forma “teleológica” de comunidade política (SANDEL, 2005). Uma discussão sobre alguns dos desafios enfrentados pelo comunitarismo em resposta aos questionamentos a partir do campo liberal pode ser encontrada em Walzer (2008).

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como uma discussão entre aqueles que prezam a liberdade individual e aquelas que defendem a prevalência dos valores comunitários (ou os “modernos” contra os “pré-modernos”, lançando mão do diagnóstico há pouco apresentado por meio da obra de MacIntyre); ou entre os que defendem os direitos humanos universais e os que insistem que as diferentes culturas e tradições se encontram acima de qualquer juízo (os librais kantianos, como Rawls, por exemplo, contra os hiper-relativistas morais). Sandel enfatiza que na medida em que o comunitarismo se apresenta como outro nome para o “maioritarismo” (ou jacobinismo), essa não é a perspectiva por ele defendida. Nessa direção, o cerne do debate promovido em “O liberalismo e os limites da justiça” acerca da obra de Rawls não é sobre a importância dos direitos, mas sim se os direitos podem anteceder uma discussão sobre concepções particulares de “vida boa”. Nas palavras do autor,

Não está em causa saber se são as exigências do indivíduo ou as exigências da comunidade que possuem maior peso, mas sim se os princípios da justiça que governam a estrutura básica da sociedade podem ser neutrais relativamente às distintas convicções morais e religiosas que os seus cidadãos apresentem. A questão fundamental, por outras palavras, é saber se o justo é anterior ao bem (SANDEL, 2005, p. 10).

Para Rawls e Kant a prioridade do justo sobre o bom apresenta, de acordo com Sandel, duas pretensões importantes e distintas: (1) a pretensão de que os direitos individuais podem sobrepor-se ao bem-estar geral; e (2) a pretensão de que os princípios de justiça não dependem de qualquer concepção de vida boa, ou, conforme afirma Rawls, qualquer concepção moral abrangente. Sandel pretende desafiar esta segunda prioridade do justo, e não a primeira. Em outras palavras, o autor endossa a defesa dos direitos individuais, mas elenca como prioritária a discussão sobre a finalidade da vida coletiva, sem a qual o justo torna-se incapaz de discernir entre o certo e o errado. Sandel aponta como das distintas versões da prioridade do bem sobre o justo apenas uma delas é “comunitarista” no sentido habitual. Assim teríamos (1)

Uma maneira de amarrar a justiça a concepções do bem sustenta que a força moral dos princípios de justiça deriva dos valores comumente abraçados ou amplamente partilhados numa comunidade ou numa tradição concretas. Esta maneira de associar a justiça ao bem é comunitária no sentido em que são os valores de uma comunidade que definem o que é justo ou injusto (SANDEL, 2005, p. 11).

Nessa perspectiva, o reconhecimento de um direito encontra-se implícito no entendimento compartilhado de uma comunidade, sendo que qualquer tentativa de reforma deve ser assumir a forma de um apelo à comunidade particular. Esta constitui a perspectiva

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comunitarista, conforme o autor classifica as contribuições de MacIntyre, Taylor e Walzer. De outra forma, teríamos (2)

Uma segunda maneira de amarrar a justiça a concepções do bem sustenta que, para a sua justificação, os princípios da justiça dependem do valor moral ou do bem intrínseco das finalidades que servem. Nesta perspectiva, o argumento para o reconhecimento de um direito depende da capacidade de se demonstrar que esse direito honra ou promove um bem humano importante. Não será decisivo saber se um tal bem é amplamente apreciado ou se encontra implícito nas tradições de uma comunidade. Esta segunda maneira de ligar a justiça a concepções do bem não é, portanto, e em sentido estrito, comunitarista (SANDEL, 2005, p. 11).

Sandel classifica essa forma como “teleológica” (ou perfeccionista, conforme entende a filosofia contemporânea), pois baseia-se na importância moral dos objetivos ou das finalidades para a definição do justo. A teoria política de Aristóteles, melhor trabalhada na primeira seção deste capítulo, é um bom exemplo dessa abordagem. Por ora é importante percebermos como desses dois modos o primeiro é insuficiente, pois eleva a justiça a condição de produto (sancionado por uma comunidade particular), retirando seu elemento crítico. Sandel sustenta, assim, que “Os argumentos acerca da justiça e dos direitos acarretam inevitavelmente um juízo de valor” (SANDEL, 2005, p. 12). Logo, tanto os liberais, que defendem a neutralidade, quanto os comunitarista, que defendem os valores sociais dominantes, comentem o mesmo erro: procuram evitar juízos de valor acerca do justo. Estas não são, porém, as únicas alternativas possíveis. Na mesma direção do autor, sustento aqui podermos justificar os direitos a partir da importância moral das finalidades que estes servem. Daí a relevância da tópica republicana para o debate contemporâneo. O caso da liberdade religiosa, quando apenas o reconhecimento da sua finalidade formativa permite com que sejamos capazes de discernir entre o mero direito individual e o dever religioso, e, mais ainda, o caso da liberdade de expressão são os exemplos mobilizados por Sandel na demarcação da distância entre o comunitarismo e a perspectiva teleológica por ele sustentada. O caso da liberdade de expressão manifesta exemplarmente os impasses gerados tanto pelo liberalismo, quanto pelo comunitarismo. Sandel convoca a discussão sobre o que devemos fazer com relação ao discurso de ódio nas sociedades contemporâneas.

Os liberais defendem que os governos têm de assumir uma posição de neutralidade perante as opiniões adoptadas pelos seus cidadãos. O governo poderá legislar sobre o momento, o local e o modo de expressão – poderá não permitir a realização de um comício barulhento a meio da noite –, mas não se poderá pronunciar sobre o seu conteúdo. Proibir expressões ofensivas ou impopulares equivale a impor os valores de uns sobre os outros, nesta medida constituindo uma falta de respeito pela capacidade

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de cada cidadão a escolher e exprimir as suas próprias opiniões (SANDEL, 2005, p. 15).

Os liberais impõem, assim, limites à liberdade de expressão apenas nos casos em que ela represente um mal importante (a promoção da violência, por exemplo). Sandel nos mostra como no discurso liberal minha capacidade de escolha é o que me confere dignidade, antes de qualquer identidade que eu possa assumir num grupo ou sociedade (Kant é o melhor argumento filosófico sobre este ponto). Logo, os discursos de ódio não são um mal em si, visto que o sujeito livre de encargos sociais é o que deve ser protegido (como na imagem do “véu da ignorância” de Rawls). Nessa direção, o discurso de ódio somente deve ser proibido no momento em que ocasionar violência, ainda que os limites para tanto permaneçam imprecisos. Por outro lado, o comunitarismo entende que essa concepção é demasiado estreita, justamente por ignorar as identidades que o sujeito pode portar. Em outras palavras, a identidade de sujeitos densamente construídos pode, conforme essa perspectiva, ser ofendida por determinados discursos, o que permite com que a liberdade de expressão seja limitada em alguns momentos. No exemplo acionado por Sandel, nazistas não podem expressar seu ódio contra sobreviventes do Holocausto. Contudo, se as comunidades segregacionistas do sul dos EUA nos anos 50 e 60 quisessem impedir que King Jr. expressasse sua indignação contra a violência presente no discurso segregacionista, como poderíamos distinguir seu direito à liberdade de expressão contra uma comunidade densamente construída? Sandel afirma que tanto o discurso liberal quanto o comunitarista são incapazes de oferecer respostas satisfatórias para essa questão, precisamente porque o “liberal defenderia a liberdade de expressão em ambos os casos, passando o comunitarista por cima dela. No entanto, a necessidade de decidir ambos os casos da mesma maneira evidencia a estultice de não se querer emitir juízos de valor, partilhada por liberais e comunitaristas” (SANDEL, 2005, p. 16). A diferença entre ambos os discursos reside, de acordo com Sandel, na natureza das causas que promovem. Nesse sentido, não podemos equiparar a memória dos sobreviventes do Holocausto com a solidariedade entre segregacionistas, precisamente porque “Distinções morais como estas correspondem ao bom senso, mas não à versão do liberalismo que afirma a prioridade do justo sobre o bom, nem à versão do comunitarismo que baseia o seu argumento quanto a direitos apenas nos valores comuns” (SANDEL, 2005, p. 17). Isso não significa, porém, que todos os casos devam ser lavados ao poder judicial para que sejam avaliados individualmente. O autor é consciente ao afirmar que

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Qualquer teoria de direitos exige certas regras e doutrinas gerais, de modo a poupar o juiz a tentar tratar todos os casos que lhe são presentes a partir da estaca zero. No entanto, em certos casos difíceis, o juiz mão pode aplicar estas regras gerais, tendo antes que apelar, desde logo, para os objectivos morais que justificam a prática em causa (SANDEL, 2005, p. 17).

No caso de Martin Luther King Jr. mencionado por Sandel, o juiz Johnson autorizou sua marcha contra o segregacionismo, recusando à época a ação movida pelo governador do Alabama. Sua decisão não foi, de forma alguma, neutra no seu conteúdo. Na mesma direção, este capítulo apresenta uma definição de república a partir do diálogo com a tradição do pensamento político sem pretensões de neutralidade. Isso não implica, porém, o retorno irrefletido ao passado, negligenciando os contextos específicos, por um lado, ou negando as conquistas da modernidade, por outro. A apresentação do modo como MacIntyre constrói seu diagnóstico sobre o debate moral contemporâneo e, ainda, sua proposta de intervenção, conforme realizada há pouco, teve o objetivo de situar ambas as preocupações. Todavia, assim como discutido nos capítulos anteriores, a proposta aqui é assumidamente normativa, o que não significa negligenciar a contribuição do programa historiográfico na montagem do argumento. Em outras palavras, busco no diálogo com a teoria política elementos para a definição da república como um ideal normativo, partindo da história, mas não restrito a ela. Ante à polifonia do termo já aludida, opto por construir um conceito próprio de república a partir de cinco elementos coligidos na tradição: (1) a noção de “bom governo” e “governo das leis”; (2) o debate sobre o nascimento da “autoridade” política; (3) a proposta de uma “liberdade” republicana não circunscrita à dicotomia entre liberdade positiva e liberdade negativa; (4) a existência de outras fontes de obrigação política que não o contrato racional e voluntário, como os laços de reciprocidade moral manifestam; e (5) a proposta de fundarmos a república num regime de “não violência” com vistas a sua durabilidade.

3.1 A República como o “bom governo”

Ainda que o retorno republicanismo conserve clivagens substantivas no seu interior, parte dos autores abrigados nesta perspectiva encontra em Aristóteles instrumentos para a montagem de uma tradição particular de pensamento republicano que será aqui mobilizada na busca por elementos para a definição de um ideal normativo de república. John Pocock figura,

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por certo, como o mais notável dentre estes. Em “O momento maquiaveliano” (POCOCK, 2008), o autor mapeia a influência da tradição clássica (aristotélica) no humanismo cívico, e o modo como Maquiavel foi conformado dentro desta tradição, manifestando uma forma de republicanismo centrada nas noções de governo misto e cidadania ativa. Ao defender a centralidade do humanismo cívico na cultura do Renascimento italiano, Pocock sustenta que o republicanismo ressurgiu no século XVII no argumento dos pensadores comprometidos com a causa da liberdade no processo da revolução inglesa. James Harrington pode, assim, ser apreendido como um discípulo de Maquiavel, que ainda exerceria, conforme argumenta Pocock, influência marcante do outro lado do Atlântico, no amplo movimento de ideias associado à revolução norte-americana. Contrariamente ao modo como Quentin Skinner e Philip Pettit apreendem a tradição republicana, centrados na forma como experiência da republicana romana forjou um determinado conceito de liberdade anterior ao liberalismo, Pocock pode ser classificado como um “neo-ateniense”, defensor da república a partir do exercício do cidadão ativo no mundo público (SILVA, 2008). Tal classificação, passível de questionamentos, não constitui, por certo, o centro do argumento aqui em curso. Basta, por ora, apreendermos a importância da obra de Aristóteles para determinada vertente do retorno ao republicanismo. Nessa direção, Ricardo Silva, ao discutir as distintas recepções da obra de Maquiavel no que define como “novo republicanismo” (SILVA, 2010b), mostra como Pocock enfatiza a inspiração aristotélica do conceito de virtude cívica encontrado no humanismo renascentista. Dessa forma, a partir de uma leitura própria da “Política” de Aristóteles, Pocock diz que “A virtude cívica é definida como a capacidade de cada cidadão agir em conformidade com o interesse público, ainda que em detrimento de seu interesse particular” (SILVA, 2010b, p. 42). Seguramente, os indivíduos não são idênticos, manifestando, contrariamente, grande diversidade no convívio coletivo. Logo, o autor admite que “A questão que se põe do ponto de vista constitucional é a de como fazer com que essa diversidade de concepções particulares de bem se harmoniza com o bem comum” (SILVA, 2010b, p. 42). Pocock enfatiza, assim, a importância do tema da fundação de uma república, tendo a constituição o papel de harmonizar o corpo político com vistas a promoção do bem comum. Conforme discutido amplamente nos capítulos anteriores, a pretensão aqui não é remontar historicamente uma suposta tradição de pensamento, mas sim forjar uma determinada ideia de república que possa constituir contraponto normativo para o andamento presente. Abdica-se, assim, da pretensão de construirmos uma história valorativamente neutra em prol de uma história filosófica, nos termos há pouco discutidos a partir do argumento de MacIntyre

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(2001). Nesse sentido, parto da sugestão de Pocock acerca da importância de Aristóteles para a tradição republicana, mas numa direção ligeiramente distinta da pesquisa historiográfica conduzida pelo autor: ao invés de rastrear seus passos na história, recorro, com razoável grau de liberdade, aos seus conceitos com uma finalidade abertamente analítica. Nessa tarefa, a interpretação de Francis Wolff sobre a obra de Aristóteles constitui, aqui, referência central (WOLFF, 1999). Wolff realiza uma competente sistematização da contribuição aristotélica para o plano da política, argumentando, ainda, que o filósofo formulou em sua obra uma defesa do regime “democrático” sem, no entanto, desqualificar outras formas de governo incluídas na chave geral do “bom governo”. Essa operação se baseia, conforme argumenta Wolff, em sua original tipologia das formas de governo, não mais ancorada na pergunta sobre “quantos” governam (um, poucos ou muitos), mas sim no questionamento acerca do “como” governam (bem ou mal), conforme veremos a seguir. O enfoque de Wolff se justifica por uma primeira lição geral depreendida a partir da obra de Aristóteles: “a de que só há política determinada por aqueles aos quais ela é destinada” (WOLFF, 1999, p. 6). Wolff situa Aristóteles dentro da inovação vivida pela história grega. Segundo o autor, o cruzamento entre um novo modo de pensar, fundado no livre exame e na interrogação do fundamento de todas as coisas, e um modo livre e novo de viver juntos, a polis, ensejou o nascimento da política. Esta, produto do livre pensamento de uma vida livre, conferiu novo significado ao sentido da organização da vida em comum. Ao passo em que antes os rumos coletivos dependiam de forças que ultrapassavam a ação dos indivíduos, a partir de então o pensamento racional produziria uma consciência reflexiva sobre a vida na polis, conferindo aos indivíduos o poder de reorganizar o mundo público. Logo, além da dimensão descritiva sobre o estado das coisas, a política fez emergir a inescapável dimensão prescritiva presente na ação humana. Dessa forma, Wolff afirma que “Se a política é aquilo que depende de nós, depende de nós também que ela seja outra, e, por que não?, perfeita. O pensamento político clássico se deu sempre esses três objetivos: pensar o que é a vida política, o que ela poderia ser o que ela deveria ser” (WOLFF, 1999, p. 09, grifo meu). Neste contexto, a política surge, em sentido estrito, relacionada à polis. Wolff argumenta que diferentemente do modo como os modernos apreendem o termo, para um grego a política é aquilo que concerne aos negócios da cidade. Logo, não viver na cidade é não viver politicamente. Isso levava os gregos a conceberem toda a esfera da vida pública como política, fazendo da “moral”, da religião e da educação das crianças, por exemplo, algo próprio do seu campo. Tal concepção criava um terreno de vida “comum” caro à organização da vida coletiva. “Assim, ‘fazer política’, isto é, participar da vida comum, não é, na época clássica, uma

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atividade entre outras possíveis: é a atividade nobre por excelência, a única que vale o sacrifício de sua vida” (WOLFF, 1999, p. 11). Ciente da distância entre esta forma de organização da vida e o modo como os modernos o farão, Wolff ressalta que o exercício da política era entendido como um “privilégio” do qual apenas aqueles que tinham poder gozariam. Não há, entre os gregos, sucesso na dimensão privada da vida. Daí a importância conferida ao mundo público, de acesso restrito àqueles que integram o conjunto da comunidade chamada cidade. Assim, “A política é, portanto, ocupação exclusiva daqueles que a priori já estão cheios de poderes: mais do que uma ocupação, trata-se de um privilégio, e, por isso, uma obrigação” (WOLFF, 1999, p. 13, grifo meu). Wolff nos lembra que o modo elevado com o qual se revesta a política para os gregos se deve, com efeito, ao fato de que seu exercício totaliza, de alguma forma, todas as outras excelências. A política representa, assim, a completude do cidadão. O autor nos mostra, todavia, como Sócrates foi o responsável por essa inflexão. Até o século V a.C. a preservação da cidade dependia apenas do exercício pragmático de velhos princípios morais que representam um obstáculo ao “livre-pensar”. Com Sócrates, porém, tudo muda. Wolff aponta como Sócrates era, ao mesmo tempo, o cidadão e o filósofo por excelência. Imerso na cidade, o filósofo escancarou a distância entre a filosofia e a vida ordinária, ao pretender não a adaptação às circunstâncias, mas sim a dedução do universalmente válido. Platão é, com efeito, quem melhor representa este encontro traumático entre o filósofo e a cidade (KOYRÉ, 1988). A solução por ele encontrada será, em parte, objeto da discussão da próxima seção. Por ora, porém, importa a defesa de Wolff sobre ter sido Aristóteles quem efetivamente inaugurou a filosofia política, em alguns sentidos específicos. Em primeiro lugar, com Aristóteles a expressão “filosofia política” deixa de ser tautológica ou contraditória. Para Platão, não existia filosofia política justamente porque as coisas ordinárias da cidade não competem ao filósofo. Platão concebia a “ciência da política” como a ciência da justiça, pois no seu entendimento a decisão deveria ser pautada pelo supremo Bem, imutável e eterno. Isso leva o filósofo a recusar qualquer concepção de autonomia da política, visto que uma ordem única – o Bem – regula e harmoniza o mundo a partir dos ensinamentos do filósofo, único capaz de contemplá-la. Wolff argumenta que no entendimento de Platão a autonomia do político significou, no limite, a derrota do pensamento ou a morte do filósofo (Sócrates), ao permitir que os assuntos ordinários dirimissem a reflexão filosófica. Aristóteles, porém, conferirá novo sentido ao termo, permitindo em sua filosofia pensarmos a autonomia recusada por Platão. Isso porque, Aristóteles

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Não subordina a prática à posse de um saber imutável, mas de qualidades particularmente rebeldes, a “prudência” e a “experiência”. Esta é apanágio daqueles que sabem não por terem aprendido, mas por terem vivido, pois ela não nasce da transmissão do universal, mas da repetição do particular. Ao contrário da ciência que concerne ao que é necessário e ao que não depende de nós, a “prudência” (isto é, a sabedoria na ordem da ação) concerne ao que é contingente, e se adapta à variabilidade de indivíduos e circunstância. [...] O acaso, a temporalidade, a circunstância não têm nela [política] lugar marginal, mas sim essencial, e, de certo modo, o mais elevado, pois são a condição de existência da liberdade deste mundo: este mundo que, na falta de ser divino, é humano; demasiado humano, sem dúvida, tendo em vista o ideal contemplativo, mas bem humano mesmo, para que se possa agir e escolher. É nesse mundo que a polis, a cidade real, não um sonho de cidade celeste, existe, e é ela que o filósofo poderá enfim estudar (WOLFF, 1999, p. 19, grifo do autor).

Aristóteles admite, assim, a especificidade das “coisas humanas” e insere nesta dimensão a política. Esta conserva, com efeito, autonomia em relação à ética, ainda que a política dependa da ética tanto em seu direcionamento, quanto em seus meios. Importa nesta relação percebermos como o filósofo separa o estudo da conduta dos indivíduos – matéria prima da ética –, do estudo das causas da grandeza e decadência dos diferentes regimes – a ciência da política –, este pensado como instrumento para auxiliar a salvaguardar a cidade. O modo como Aristóteles define a cidade é, dessa forma, central para sua filosofia. A cidade é, no seu entendimento, portadora de uma finalidade altamente moral: a vida boa. Na busca desta finalidade, a ciência da política desempenha um papel central. Logo, “Com a Política de Aristóteles, a filosofia pôs-se finalmente à altura da cidade, de seu lugar propriamente humano no mundo, e de seu lugar próprio no mundo das ‘coisas humanas’” (WOLFF, 1999, p. 21, grifo do autor). Wolff ressalta, ainda, como a filosofia política em Aristóteles assume um duplo caráter, sendo, ao mesmo tempo, descritiva e prescritiva. Há, conforme defende o autor, um caminho necessário entre a política que se faz e aquela que se deveria fazer, tornando ambas as preocupações – descrição e prescrição – solidárias entre si. Sendo assim, “é inegável que haja, em termo absolutos, duas grandes questões de ‘filosofia política’: ‘Como são as coisas da cidade?’ e ‘Como elas deveriam ser?’” (WOLFF, 1999, p. 22). Ainda que amplamente debatido nos capítulos anteriores, é oportuno recuperar, agora na definição do primeiro elemento em busca de um modelo normativo de república, o inescapável elemento prescritivo da reflexão sobre a política. Assim como Aristóteles sugere, o argumento desta tese é pautado pela dupla preocupação inerente à filosofia política. Conforme dito anteriormente, a definição do que é a cidade é central para os propósitos do autor. E é isso que Aristóteles faz logo no início da “Política”, descrevendo a cidade a partir de sua finalidade própria: o soberano bem. Wolff nos mostra como essa definição está

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previamente ancorada em três premissas: (1) “A cidade é uma (um certo tipo de) comunidade” (1252 a 1); (2) “Toda comunidade é constituída em vista de um certo bem” (1252 a 2); e (3) “De todas as comunidades, a cidade é a mais soberana e aquela que inclui todas as outras” (1252 a 3-5) (WOLFF, 1999, p. 35). A centralidade desta definição está, com efeito, associada ao modo como Aristóteles discutirá os diferentes regimes, ocupado, por certo, tanto da descrição de como as coisas são, como da prescrição de como elas devem ser. Isso porque, ao apontar uma finalidade para a vida coletiva derivada a partir da natureza humana, Aristóteles abre caminho para a construção de um argumento acerca da “vida boa” inevitavelmente contaminado pela dimensão normativa aqui sustentada. Em outras palavras, “se os homens vivem em cidades, não o fazem somente por não poderem evitá-lo; é para atingir o mais alto, o maior dos bens” (WOLFF, 1999, p. 36). A ciência da política é, segundo Aristóteles, a ciência prática que nos ajudará nesta tarefa.

Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam a algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas e que inclui todas as outras tem mais que todas este objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política (ARISTÓTELES, 1997, p. 13, 1252a).

Já na abertura, o filósofo manifesta um importante entendimento sobre a estatuto da cidade: uma comunidade natural. Aristóteles procederá, assim, um estudo rigoroso sobre a cidade, examinando, por um lado, analiticamente as partes que compõem o todo, e mostrando, por outro, geneticamente como essas partes conferem sentido ao todo. Nessa direção, o filósofo descreve as diferentes comunidades inferiores que compõem a comunidade superior, a cidade. O objetivo aqui não é esgotar a complexidade do argumento de Wolff sobre o modo como Aristóteles descreve a política. Importa, para os nossos propósitos, a definição aristotélica da cidade como “autárquica” e capaz de conferir sentido à vida, pois apenas ela como finalidade pode encerrar a busca infinita do desejo. A noção orgânica de comunidade política que daí advém mostra como o todo é o que confere, ao final, sentido às partes. Tal afirmação é importante para a tradição republicana posterior, conforme o referencial aqui mobilizado (POCOCK, 2008), que irá colocar a noção de bem comum acima dos interesses individuais. Nesse sentido, a mais elementar definição da cidade para Aristóteles repousa na noção de “autarquia”. Assim como em outros momentos de sua filosofia, a discussão sobre o “termo médio” surge na definição do tamanho ideal da cidade para a consecução do seu fim natural:

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Uma cidade constituída de um número muito pequeno de habitantes não será auto- suficiente (uma cidade deve ser auto-suficiente), e uma constituída de um número excessivamente grande, embora auto-suficiente para as necessidades básicas, será um amontoado de gente, e não uma cidade, pois não será fácil dotá-la de um governo constitucional [...]. Por via de conseqüência tem-se o limite mínimo de habitantes para constituir uma cidade quando esta é dotada de uma população com o número mínimo capaz de assegurar-lhe a auto-suficiência com vistas a uma vida melhor segundo as regras da comunidade política. [...] As atividades de uma cidade são as de seus governantes e governados, e a função de um governante é ordenar e julgar, mas para dividir questões judiciais e para distribuir as funções de governo de acordo com o mérito os cidadãos devem conhecer necessariamente o caráter uns dos outros, pois onde isto não acontece a escolha dos altos funcionários e os julgamentos são inevitavelmente mal feitos; uma decisão irrefletida em ambas as matérias é injusta, e isto aconteceria com certeza numa cidade excessivamente populosa. [...] É claro, então, que o melhor critério para limitar a população de uma cidade é permitir a sua expansão somente até o ponto em que, assegurada a auto-suficiência quanto às necessidades da vida, seja possível abranger a cidade com o olhar. Esta é nossa definição quanto ao tamanho da cidade (ARISTÓTELES, 1997, p. 230-231, 1326b).

Além da conceituação da cidade nos termos aristotélicos, o trecho acima será importante para a quarta definição de republica que farei a seguir, a saber, pensar a república como promotora de laços morais entre os cidadãos. Em Aristóteles, esse debate está presente por meio da noção de “amizade”, discutida com cuidado em sua “Ética a Nicómaco” (ARISTÓTELES, 2012). Na definição acima, o tamanho ideal da cidade é não ser pequena o bastante para independer das outras cidades, nem ser grande ao ponto em que seus cidadãos não teriam mais entre si a nobre faculdade humana da “amizade”. O ponto será melhor discutido a seguir. Por ora, importa retermos a “autarquia” como característica central na definição aristotélica da cidade. A cidade é para o filósofo a comunidade mais acabada, ou seja, aquela que não carece de nada. Ao passo em que as comunidades inferiores – família, vilarejo – se formam pela necessidade, a comunidade é marcada pela completude. Igualmente natural, a comunidade política pode ter em sua origem a necessidade, mas uma vez constituída ela torna-se um fim em si mesma. Somente nela o homem é plenamente. Somente nela o homem existe enquanto tal: “é na cidade que o homem é homem” (WOLFF, 1999, p. 71). Wolff deriva do desenvolvimento natural da cidade apontado por Aristóteles algumas consequências: (1) a cidade existe naturalmente. Como toda comunidade existe em para satisfazer certas necessidades naturais, as comunidades elementares (lar, vilarejo) são meios para a satisfação da comunidade máxima (cidade), que existe em si mesma: todas as comunidades tendem para a comunidade última (movimento natural); e (2) o homem é um “animal político”. Na conhecida passagem de Aristóteles, lemos:

Estas considerações deixam claro que a cidadã é uma criação natural, e que o homem

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é por natureza um animal social, e um homem que pode natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade [...]. Agora é evidente que o homem, muito mais que a abelha ou outro animal gregário, é um animal social. Como costumamos dizer, a natureza nada faz sem um propósito, e o homem é o único entre os animais que tem o dom da fala. Na verdade, a simples voz pode indicar a dor e o prazer, e outros animais a possuem [...], mas a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo, e portanto também o justo e o injusto; a característica específica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade. É claro, portanto, que a cidade tem precedência por natureza sobre o indivíduo. (ARISTÓTELES, 1997, p. 15, 1253a).

Dois elementos importantes surgem no trecho. Primeiro, a definição do homem como animal social (ou político) a partir de uma característica distintiva: a fala. Diferentemente dos outros animais, além da possibilidade de expressarmos sons de dor e prazer, somos capazes de significar sentimentos morais (bem e mal, justo e injusto). Em segundo, uma poderosa analogia operada tacitamente por Aristóteles: a despeito da cidade não ser uma comunidade original, ela é uma comunidade natural. Isso porque, a natureza de um ser não é necessariamente aquilo que aparece em primeiro lugar, conforme apreendermos a partir do exemplo da fala: os homens falam naturalmente, sem falar desde o seu nascimento. Logo, conclui Aristóteles, a cidade tem precedência sobre o indivíduo, mesmo não tendo surgido primeiro. Ambas as noções serão centrais para a montagem do conceito de república aqui em curso. Antes, porém, recupero um elemento adicional mobilizado por Wolff. Trata-se do modo como Aristóteles concebe a natureza humana como algo inacabado que requer, por conseguinte, da comunidade política para alcançar sua completude. Diferentemente do que Wolff define como “filósofos convencionalistas”, dentre estes Protágoras e Hobbes, por exemplo, Aristóteles descreve o indivíduo como um ser incompleto. Assim, “Ao esquema de Protágoras de um indivíduo humano acabado, rebelde por natureza à vida política e vivendo na cidade por interesse, opõe-se o esquema de Aristóteles de um indivíduo inacabado, tendendo por natureza à vida política e vivendo na cidade para além de todo interesse, para nela realizar a sua felicidade” (WOLFF, 1999, p. 85). Nessa direção, ao conceber uma incompletude natural, Aristóteles concebe a natureza humana como o meio termo entre a perfeição divina (completa, logo não carente), e a imperfeição animal (eternamente desejante). Logo, a conclusão derivada desta percepção é que ambos, deuses e animais, não fazem política. Apenas o homem o faz. Aristóteles concebe o homem como o animal mais político do que os demais, em razão da linguagem. O tema é conhecido na obra do filósofo, sobretudo em razão da complexidade da tradução da palavra

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grega Lógos. Sinteticamente, a palavra deriva do verbo légo, que comporta originalmente vários significados unidos, todavia, numa única expressão em português: “1) reunir, colher, contar, enumerar, calcular; 2) narrar, pronunciar, proferir, falar, dizer, declarar, anunciar, nomear claramente, discutir; 3) pesar, refletir, ordenar; 4) querer dizer, significar, falar como orador, contar, escolher; 5) ler em voz alta, recitar, fazer dizer” (CHAUI, 2002). Assim, ao definir o caráter político do homem pela posse da palavra (Lógos), Aristóteles associa a política e a palavra de modo definitivo. Na formulação de Wolff, “Pela língua saboreamos para viver, e, além disso, nos expressamos para bem viver” (WOLFF, 1999, p. 91). Caso o homem fosse simplesmente social, poderia contentar-se com a voz, tal como a abelha (um exemplo notório de animal gregário). Entretanto, na qualidade de animal político, o homem supera a necessidade ao colocar em comum as condições mesmas do bem comum (o justo). Assim, a linguagem é de essência política e a política de essência linguística. A partir daí, Aristóteles caminha para uma defesa conclusiva sobre a política, cara ao argumento republicano aqui em curso. Tal como Wolff interpreta, o filósofo, ao definir o homem como um animal político (que vive na cidade), o descreve como o melhor dos animais, visto que solidário a outros sob o teto de leis comuns e obrigado por regras comunitárias. Contrariamente, o homem a-político (aquele que vive fora da cidade) é o pior dos animais, pois dotado de intelecto e vivendo sem controle. O preâmbulo traçado por Wolff sobre a política no mundo grego, e, sobretudo, sua apresentação do método de estudos e dos pressupostos de Aristóteles acerca de finalidade da cidade, estão, no limite, condicionados pela extensa análise que o autor fará do Livro III da “Política”, onde encontramos a discussão sobre o justo regime. Se num primeiro momento o filósofo ocupa-se dos fundamentos da vida política, agora sua atenção está voltada para a “forma” dos diferentes regimes. Aristóteles manifesta o mesmo rigor que norteou a discussão nos dois livros iniciais. Nessa direção, antes mesmo de empreender uma classificação dos diferentes regimes, o filósofo se coloca um problema inicial: o que é realmente uma cidade e o que é um cidadão? A resposta para essas questões repousa na busca pela essência da cidade e do cidadão, estritamente ligadas às análises anteriores. Em outras palavras, Aristóteles define o regime pela divisão do poder e perguntar-se pelo regime justo envolve, por conseguinte, questionar o que é uma justa distribuição do poder. O regime (ou a “constituição”) é, dessa forma, definido pelo filósofo como a organização das diversas magistraturas e, em especial, daquela que é soberana na cidade: o governo. Nas palavras de Aristóteles,

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Uma constituição é o ordenamento de uma cidade quanto às suas diversas funções de governo, principalmente a função mais importante de todas. O governo em toda parte detém o poder soberano sobre a cidade, e a constituição é o governo. Quero dizer que em cidades democráticas, por exemplo, o povo é soberano, mas nas oligarquias, ao contrário, uns poucos o são, e dizemos que elas têm uma constituição diferente (ARISTÓTELES, 1997, p. 89, 1278b).

Desta definição, Aristóteles retira o (1) primeiro critério para a classificação dos diferentes regimes: a resposta à pergunta “quem governa?”. Wolff nos mostra como o critério do número de governantes (um, poucos ou muitos) surge nitidamente nesta passagem e será a partir de então admitido no pensamento clássico. A originalidade a Aristóteles, conforme defende o autor, está em fundá-lo a partir da própria definição do que é a essência de um regime. (2) O segundo critério, contudo, será formulado em consonância com sua discussão sobre a finalidade da comunidade política. Conforme discutido anteriormente, Aristóteles entende a cidade como dotada de um fim, a saber, a realização da natureza humana. Nesse sentido, a finalidade da cidade é a vida boa. Logo, o segundo critério de classificação dos regimes formulado pelo autor permite com que tracemos uma linha divisória entre aqueles regimes propriamente políticos, que correspondem à essência do poder político, e aqueles que não são “políticos”, mas sim “despóticos”, nos quais o exercício do poder visa primeiro a satisfação dos interesses de quem governa. Nas palavras de Aristóteles,

É óbvio, então, que as constituições cujo objetivo é o bem comum são corretamente estruturadas, de conformidade com os princípios essenciais da justiça, enquanto as que visam apenas ao bem dos próprios governantes são todas defeituosas e constituem desvios das constituições corretas; de fato, elas passam a ser despóticas, enquanto a cidade deve ser uma comunidade de homens livres (ARISTÓTELES, 1997, p. 90, 1279a).

O ponto essencial para o debate aqui em curso surge, precisamente, a partir da definição do segundo critério por Aristóteles. Isso porque, a discussão sobre a justiça dos regimes, tal como Wolff nos lembra, não depende do primeiro critério – “quem governa” –, mas sim do segundo critério – “com vistas a quem, ou a quê, se governa”. O cruzamento dos dois critérios – do número e da finalidade –, permitirá com quem Aristóteles classifique os diferentes regimes existentes em seis tipos (Ilustração 1).

Ilustração 1 – Tipologia das formas de governo para Aristóteles. Poder exercido por Um só Alguns A massa Para todos Realeza Aristocracia Regime “constitucional” Para si mesmo Tirania Oligarquia Democracia Fonte: WOLFF, 1999, p. 111.

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Importa para os nossos propósitos perceber como Aristóteles admite a existência de três regimes realmente políticos – a realeza, a aristocracia e o regime “constitucional” –, definidos pelo exercício do poder para todos (segundo critério), logo, capazes de alcançar a finalidade da cidade, ao passo em que existem três regimes pervertidos – a tirania, a oligarquia e a democracia –, definidos pelo exercício do poder para quem governa. A partir daí, Aristóteles está em condição de resolver o problema inicialmente posto: qual é a essência da cidade e qual é a essência do cidadão. Ao apontar como distinção fundamental entre os diferentes regimes o segundo critério descrito, o filósofo apresenta uma nova definição de regime, coerente com o que vinha fazendo até então: um regime só é político se todos os cidadãos tiverem relações de poder uns para com os outros. Por sua vez, o cidadão é aquele que participa dos poderes da cidade.

Uma cidade é uma comunidade na qual existem relações de poder ou de autoridade (arché) entre seus membros, mas a autoridade propriamente política distingue-se de todas as outras em ser ela uma relação de iguais; assim, um cidadão (o membro de uma comunidade política) é aquele que dispõe, como todos os outros, de um poder na cidade sobre todos os outros. Isso não significa que todos os poderes de que todos os cidadãos dispõem na cidade sejam necessariamente iguais; mas significa que, por definição, uma relação política somente é possível entre indivíduos que dispõem pelo menos uns em relação aos outros poderes iguais (WOLFF, 1999, p. 116, grifo do autor).

Wolff admite a dificuldade de identificarmos em Aristóteles uma clara definição de qual seria a forma mais justa de governo. Por certo, ao privilegiar o segundo critério no apontamento daquelas que seriam as formas verdadeiramente políticas, contra aquelas marcadas pelo exercício despótico do poder, Aristóteles reconhece a realeza, a aristocracia e o regime “constitucional” como boas formas. Todavia, conforme discutimos até aqui, para Aristóteles a forma justa requer atenção sobre como o poder será distribuído de maneira justa. Em resposta à essa questão, Wolff nos mostra como o filósofo desenvolve uma linha argumentativa nos capítulos seguintes que culminará na defesa da “soberania popular”: (1) de acordo com a lógica da justiça distributiva, as pretensões dos dois maiores “partidos” da cidade – oligarquia e democracia – em receber uma parte na divisão do poder por motivos próprios – seja a riqueza, no caso dos oligarcas, seja a igualdade, no caso dos adeptos da democracia –, fazem sentido; (2) no entanto, o poder não é uma propriedade como as demais para que possa ser dividido. Dessa forma, podemos responder com facilidade qual regime é politicamente justo: três entre os seis possíveis, a saber, realeza, aristocracia e o regime “constitucional”. Mas não há justa distribuição do poder, visto que o poder não é um bem a ser repartido; e (3) qual regime é mais

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capaz de tomar as melhores decisões para a cidade? É “o regime popular, isto é, aquele no qual as deliberações são efetuadas coletivamente pelo conjunto do povo” (WOLFF, 1999, p. 122, grifo do autor). É crucial para os propósitos do argumento desta tese a justificação que Aristóteles faz do justo regime, distante do modo como posteriormente o liberalismo o fará. Contrariamente ao que os modernos contratualistas conceberão, pensando a fundação do coletivo a partir do indivíduo, o filósofo recusa a concepção do todo como derivada das partes. Esta é, aliás, sua primeira grande crítica aos “partidários” da cidade que reivindicam a distribuição do poder conforme argumentos próprios. Segundo Aristóteles, “uns e outros confundem interesses próprios e aqueles da cidade como um todo, e sobretudo pretendem defender os últimos quando eles só defendem os primeiros” (WOLFF, 1999, p. 125). Logo, se a cidade é uma comunidade que tem por fim a vida boa, seu fundamento não é o interesse, mas sim a amizade, o verdadeiro fim não é o interesse individual, mas a felicidade de todos. Não podemos, com efeito, distribuir justamente o poder, pois este não é feito para defender as pessoas, mas sim para assegurar a felicidade de todos. Nas palavras de Aristóteles,

É evidente, portanto, que uma cidade não é apenas uma reunião de pessoas num mesmo lugar, com o propósito de evitar ofensas recíprocas e de intercambiar produtos. Estes propósitos são pré-requisitos para a existência de uma cidade, mas isto não obstante, ainda que todas estas condições se apresentem este conjunto de circunstância não constitui a cidade; esta é uma união de famílias e clãs para viverem melhor, com vistas a uma vida perfeita e independente. [...] Tudo isto é obra da amizade, pois a amizade é a motivação do convívio; [...] A comunidade política, então, deve existir para a prática de ações nobilitantes, e não somente para a convivência (ARISTÓTELES, 1997, p. 94, 1281a).

O debate sobre a virtude própria para o bom governo é, dessa forma, próprio da cidade. Nas comunidades inferiores – família, clã –, tal questão não se coloca. Mas será na cidade que a aptidão para governar pelo bem de todos constitui o critério para a demarcação dos regimes propriamente políticos frente aos regimes despóticos. O ponto, que será retomado a seguir, é que Aristóteles condena as formas pervertidas de regime, ou seja, aquelas nas quais o poder é exercido com base no interesse de quem governa, abrindo a possibilidade para identificarmos a defesa do bem comum mesmo no governo de um ou poucos. De fato, conforme sustenta Wolff, o filósofo apresentará uma defesa “aristocrática” da soberania popular, afirmando não que o melhor regime é aquele no qual o povo governa, mas sim que o povo é quem melhor governa. O debate foge aos propósitos do argumento aqui avançado. Interessa, apenas, o modo como Aristóteles define a natureza dos regimes verdadeiramente políticos:

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Devemos definir primeiro, porém, qual é a natureza do governo monárquico, qual a do aristocrático e qual a do constitucional. Um povo capaz por natureza de produzir uma estirpe excelente nas qualidades necessárias ao comando político é um povo feito para a monarquia; um povo cujos componentes se sujeitam, como homens livres, a ser governados por homens cujas qualidades os credenciam para o comando político é feito para a aristocracia, e o povo feito para o governo constitucional é aquele entre cujos componentes existe uma maioria combativa, constituída de homens capazes de mandar e obedecer alternadamente sob uma lei que distribui as funções de governo entre os homens de posses de acordo com seus méritos (ARISTÓTELES, 1997, p. 117, 1288a).

Dessa forma, ao associar o regime às qualidades do povo, Aristóteles admite, ainda que classifique como um caso idiossincrático, um povo no qual a monarquia se impõe como boa forma. O ponto será exemplificado no próximo capítulo. Resta, agora, apreendermos como a herança aristotélica foi recebida pela tradição de pensamento republicano subsequente. Nessa direção, o ensaio de Sergio Cardoso “Por que república? Notas sobre o ideário democrático e republicano” (CARDOSO, 2004), inserido no movimento contemporâneo de retorno ao republicanismo, manifesta preocupações semelhantes ao que venho desenvolvendo aqui, a saber, recuperar elementos da tradição do pensamento ocidental como contraponto para o andamento presente da democracia. Cardoso o faz respondendo à questão: o que a república tem a ensinar para a democracia? Na busca por respostas, o autor reconstrói o conceito clássico da politeia aristotélica, mostrando como este pode contribuir decisivamente para o debate democrático contemporâneo. A origem do termo república, conforme nos lembra o autor, refere- se ao domínio público, ao que é do interesse coletivo, por oposição aos assuntos privados, relativos aos particulares. Mas tal divisão não é espontânea, requerendo instrumentos que a assegurem. Assim, Cardoso afirma que

O termo república não designa apenas a existência de uma esfera de bens comuns a um certo conjunto de homens, mas também, de imediato, a constituição mesma de um povo, suas instituições, regras de convivência e agências de administração e governo, cujas orientações derivam de um momento de instituição ou fundação política. República se diz, então, sobretudo dos “regimes constitucionais”, daqueles em que as leis e regulações ordinárias, bem como as disposições do governo, derivam dos princípios que conferem sua forma à sociedade e em que tais estabelecimentos, postos acima de todos, a protegem de todo interesse particular ou transitório, de toda vontade caprichosa ou arbitrária (CARDOSO, 2004, p. 45).

Em consonância com a perspectiva aristotélica há pouco discutida, Cardoso enfatiza a importância das “leis” da definição da república. Ela deve, assim, ser pensada como o “governo de leis” e não o “governo de homens”, visto que neste último a possibilidade do exercício do poder em proveito daqueles que o exercem coloca em cheque mesmo o caráter político do regue. A preocupação de Cardoso, contudo, repousa sobre o modo empobrecido com o qual tratamos

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a ideia de república contemporaneamente. Isso porque, em geral nos referimos à república apenas como um governo eletivo, em oposição às formas autocráticas ou hereditárias, ignorando elementos importantes na definição do conceito. O movimento do autor será, assim, recuperar dois elementos centrais para essa apreendermos a república em toda a sua riqueza: participação e constitucionalismo. Ambos podem, segundo defende Cardoso, contribuir para o aprimoramento da democracia. Conforme discutimos até aqui, o conceito clássico de politeia utilizado por Aristóteles, descreve formas genéricas de associação entre homens livres – as comunidades de cidadãos –, definição contrária às formas despóticas, onde um ou alguns governam como senhores. Os regimes propriamente políticos na definição do autor, são precisamente aqueles em que cidadãos exercem poderes uns sobre os outros. Cardoso nos lembra que ainda que Aristóteles admita, na distribuição das magistraturas soberanas, a hegemonia de um cidadão ou grupo da cidade (como na monarquia ou na aristocracia), a politeia impede a concentração absoluta dos poderes que encerraria a liberdade dos homens. Hobbes seria, segundo o argumento do autor, um exemplo radicalmente contrário ao modelo aristotélico, ao defender que o soberano, uma vez constituído, passasse a ter direito absoluto no âmbito dos assuntos públicos, cabendo aos cidadãos apenas o dever da obediência. Logo, ao ser concebido como o depositário da autoridade de todos os contratantes, o soberano não apenas os representa, mas transcende o corpo que ele personifica. Cardoso argumenta que neste modelo os contratantes se veem reduzidos à passividade, privados do direito de interferir na vontade soberana. Dessa forma, no campo das teorias contratualistas modernas, apenas o contrato social rousseauniano será capaz de conferir ao Estado a universalização da participação política, requisito fundamental do ideário republicano. Isso porque, segundo a definição de Rousseau, os mesmos homens que se submetem às leis são responsáveis pela atividade legislativa. Isso faz com que o filósofo defina a república como o todo Estado regido por leis, afirmando, ainda, que apenas o governo republicano é legítimo. Em suma, “tanto a politeia dos antigos, quanto o estado rousseauniano reconhecem a extensão máxima à cidadania (todos os homens livres, todos os contratantes) e ainda seu exercício, por definição, ativo, imprimindo o traço popular participativo ao regime que denominam republicano” (CARDOSO, 2004, p. 50). Todavia, Cardoso afirma que a participação não esgota a definição do regime republicano, seja em Aristóteles, seja em Rousseau, faltando, para tanto, o debate sobre a engenharia política necessária ao regime, pois o termo república refere-se, sobretudo, aos “regimes constitucionais”. Assim como apresentando anteriormente a partir da interpretação de

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Francis Wolff, Aristóteles defende a soberania popular – participação, nos termos aqui tratados –, ao mesmo tempo em que sustenta a necessidade de erigirmos leis para que o governo não se curve perante o exercício despótico de quem governa – um, poucos ou muitos. O constitucionalismo será o segundo elemento trazido para a discussão por Cardos. Nesse sentido, Aristóteles emprega, conforme sua leitura, o termo politeia para designar a forma constitucional por excelência: (1) de um lado, é a forma capaz de incluir de maneira especial todos na organização do governo; (2) de outro, ela confere um papel especial à articulação constitucional, “enquanto objeto de inteligência e cálculo políticos, na realização dos fins da comunidade e, assim, na definição da própria legitimidade da ordem constituída” (CARDOSO, 2004, p. 51). Ao passo em que nos demais regimes são valorizados por princípios considerados mais adequados para a realização dos fins da associação (isonomia e liberdade de todos contra o domínio dos particulares, no caso da democracia, ou virtude para a promoção do comum e da felicidade, valorizando qualidades morais de indivíduos excepcionais, como na monarquia ou na aristocracia), na politeia trata-se, tão somente, de acomodar as partes por meio da engenharia política. Segundo Cardoso, a politeia (ou regime constitucional), tem por finalidade a preservação da cidade no tempo. Assim, ao passo em que a democracia faz prevalecer a vontade da maioria, sob a isonomia formal dos cidadãos, sem, contudo, defender toda a comunidade, o regime constitucional, por sua vez, ultrapassa a abstração do número levando em consideração o interesse efetivo das partes. Por isso, nos lembra Cardoso, ele busca a realização da totalização política, por meio da harmonização das partes segundo um princípio unificador do Bem. Nesse sentido, o autor argumenta que a politeia opõe-se à democracia, sublinhando o caráter constitucional do regime.

Ora, se a existência da cidade, sua capacidade de produzir-se como totalidade, não se deve mais, fundamentalmente, à virtude moral ou à sabedoria dos governantes ou mesmo à igualdade aritmética da participação dos cidadãos, mas deve-se à própria eficácia dos dispositivos criados em vista da integração real de suas partes, então, o fim visado por esse regime, como mostra Aristóteles, revela-se imanente à sua própria forma: a forma busca a si mesma, busca a permanência de sua virtude política ou da capacidade integradora atualizada na constituição, naquela determinada configuração da distribuição dos poderes capaz de produzir a acomodação e articulação dos interesses diversos, sua convivência possível (CARDOSO, 2004, p. 53).

Em outras palavras, a constituição é ela mesma o bem comum à cidade, enquanto origem e fundamento da vida da comunidade política. Cardoso sustenta que esse mesmo constitucionalismo presente na politeia aristotélica reaparece na retomada moderna da tradição

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republicana, mas a partir dos pressupostos individualistas da teoria do contrato e por uma formulação distinta do problema a ser resolvido com o estabelecimento das associações políticas. Aqui a obra de Rousseau é tomada pelo autor como exemplo, ao apontar a vontade geral como a renúncia das vontades particulares, momento em que os contratantes assumem a vontade coletiva como sua própria vontade. A vontade geral é, no argumento de Cardoso, afirmada como a vontade do “corpo moral e coletivo”, instituído como autoridade soberana e dirigido para o bem de toda a comunidade. Resta, contudo, uma questão: como fazer prevalecer o bem coletivo a partir dos indivíduos singulares? Rousseau coloca de maneira contundente o problema, mostrando a necessidade de passarmos da massa dos apetites e interesses particulares para a universalidade requerida pelas leis. Seu argumento defende, de acordo com Cardoso, que o povo nem sempre enxerga o bem comum, não por falta de vontade, mas sim em decorrência da insuficiência do entendimento. Assim, é preciso unir, no corpo social, a vontade ao entendimento, dando a ele “inteligência superior” e razão calculativa, tarefa para na qual o filósofo personifica a figura do “legislador”. Cabe a esse “homem extraordinário” formular lei, descobrir o que é melhor para o interesse de todos, sem ter o direito legislativo, que permanece no corpo dos cidadãos. Porém, nos lembra Cardoso, se a produção de leis supõe o povo elementarmente constituído pelo pacto, a missão do legislador é, sobretudo, a de criação do próprio corpo político. Ele produz cidadãos aos “conduzir os indivíduos independentes e egoístas à disciplina das leis” (CARODOS, 2004, p. 56). O autor nos mostra como o legislador é, no entendimento de Rousseau, o autêntico fundados político ao erigir o bem público que é a própria constituição que serve de fundamento para a vida comum. “Nessa república, o bem público não é, pois, um bem a que se aspira; é um bem que se frui, a própria convivência social proporcionada pelas leis estabelecidas” (CARDOSO, 2004, p. 57). Nesse sentido, tanto na politeia de Aristóteles, quanto na república de Rousseau, o bem comum se materializa na própria ordenação constitucional das partes da sociedade política. Conforme a expressão já mobilizada, república é o “governo das leis” e não o “governo dos homens”. Nesse sentido, “O bem da cidade são suas leis, enquanto responsáveis por sua existência e conservação, pela convivência dos interesses diversos, por ela limitados e ajustados” (CARDOSO, 2004, p. 57). Cardoso argumenta que a passagem da forma universal da vontade, que funda o corpo político, para a sua existência histórica efetiva é, dessa forma, concebida de modo bastante diverso nas repúblicas e nas democracias. Assim, ao passo em que nas democracias a vontade popular livre estabelece as leis, os objetos desta vontade, nas repúblicas a vontade popular “assume” as leis por consentimento, deixando-se moldar por elas como uma comunidade

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política. Nesse sentido, o autor afirma que as repúblicas não pensam o povo como livre para produzir suas leis, mas sim

Como livre por amor às leis, por seu consentimento e adesão às formas institucionais determinadas da concertação possível dos interesses, formuladas pelo legislador político. Desse modo, nas repúblicas, entre a vontade popular e as leis, há sempre a forma do direito (a vontade geral ou disposição necessária para a conciliação e integração dos interesses, bem como os procedimentos apropriados para a apuração do direito) e ainda a inteligência prática do legislador (qualquer que seja a figura histórica que ele assuma), encarregada de formular os enunciados destinados a obter a chancela da vontade coletiva, formalmente disposta para o bem do todo político, portadora da forma do direito (CARDOSO, 2004, p. 58-59).

Se nas democracias a vontade do povo mostra-se sempre transitiva – quer isso ou aquilo – e, portanto, busca naturalmente o terreno da economia, a vontade geral republicana visa, conforme defende Cardoso, o bem comum da comunidade política. Desse modo, enquanto a substancialização do povo introduz nas democracias uma inclinação fortemente plebicitária, nas repúblicas trata-se de construir a vontade como autenticamente coletiva, e de empreender a própria criação do povo, persuadindo-o pela autoridade das leis para, com isso, criar a comunidade política. O paradoxo das repúblicas, conforme aponta Cardoso, é que elas só podem existir pelas leis, e estas pela vida comum que as cria. Daí a importância da astúcia do legislador, que “forja a crença no coletivo para criar entre os homens a disposição cidadã para a harmonização de seus interesses e a regulação de seus conflitos” (CARDOSO, 2004, p. 60). O autor nos lembra, ainda, que esse caráter de “governo de leis” e não “do povo”, presente nas repúblicas, suscita, por certo, alguns questionamentos: se as democracias parecem inclinar-se na direção de um mero procedimentalismo, as repúblicas se limitariam ao reverencial institucionalismo, “absolutizando” as leis e adotando uma postura conservadora. O autor admite que não se pode negar seu elemento conservador, mas é importante frisar que ao abdicar da busca por fins que transcendam a comunidade política, pregando o respeito e o apego às leis, as repúblicas defendem a própria sobrevivência da vida social. “Não se trata, portanto, de buscar a conservação das próprias leis; trata-se de, por elas, buscar a conservação da vida política. Visto desta perspectiva, o conservadorismo republicano é pulsão de vida” (CARDOSO, 2004, p. 62). No entanto, a sustentação do ideário republicano não implica, conforme defende o autor, em recusa ou afastamento dos ideais da democracia. Ao contrário, a república incorpora afirmações centrais do regime popular: liberdade e igualdade política dos cidadãos, responsáveis pelo estabelecimento das leis; ausência de prerrogativas que elevem qualquer um a ter poder sobre os demais; admissão do caráter contingente das leis, desconhecendo qualquer

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paradigma suprapolítico. Assim, devemos, conforme sugere Cardoso, pensar a república como um ideal normativo para a democracia. Em parte, a proposta do autor assemelha-se ao argumento desta tese, buscando em Aristóteles e Rousseau elementos para interlocução com o presente. Em suas palavras,

O que a república quer lembrar à democracia é tão-somente a exigência da encarnação institucional (e não meramente procedimental – ou simbólica) e a dimensão social e histórica das formulações do direito. O que ela recorda ainda à democracia são as condições reais da produção e reprodução das leis, a exigência de que uma efetiva concertação ou acomodação dos interesses sustente a sua promulgação, visto que a democracia tende a tomá-las, nós vimos, como produzidas imediatamente pela universalidade da participação, pelo recurso ao voto e à regra numérica da maioria, ou ainda apenas pela negação da particularidade, pela contestação popular da ordem estabelecida (CARDOSO, 2004, p. 63-64, grifo meu).

A república, enfim, adverte a democracia dos riscos de uma universalidade meramente formal, sustentada na simples afirmação da liberdade de cada um dos cidadãos e garantida pela igual repartição dos poderes. Sua presença, nos termos que pretendo sustentar, faz emergir no debate público noções caras ao incremento da própria vida democracia, como autoridade política, liberdade (não na perspectiva liberal), reciprocidade moral e não violência, além da noção de “bom governo”, conforme venho discutindo nesta seção. Assim,

A democracia (nessa tradição de reflexão sobre a natureza, condições e méritos das diferentes formas constitucionais, que aqui consideramos), por fiar-se nas virtudes formais do regime, fixa-se sobretudo no presente dos interesses, e é mais instável e imediatista; frequentemente insolente e voluntarista. Já a república, por seu empenho constitucional e respeito pelas leis estabelecidas (pois, o que o povo, o universal político, exige aqui é o cumprimento das leis e a realização de seus princípios, vendo- se implicado em uma luta constante nesse sentido), mostra-se, talvez, mais modesta e realista. Ela exalta o engenho requerido pela empresa da concertação dos interesses e a regulação dos conflitos e celebra a prudência e a paciência exigidas pelas obras de construção política (CARDOSO, 2004, p. 64).

Não se trata, de acordo com Cardoso, de acusar os perigos da democracia popular e participativa, que concede poder a indivíduos anárquicos e guiados por paixões, mas sim interrogar os pensadores identificados com os princípios democráticos – Aristóteles e Rousseau –, para buscar as exigências que levam às reivindicações republicanas. Conforme afirmei há pouco, o movimento operado pelo autor assemelha-se ao que desenvolvo nesta tese. Tanto MacIntyre quanto Sandel (este último será melhor tratado na quarta seção deste capítulo), propõem o retorno ao pensamento político de Aristóteles como contraponto crítico ao andamento contemporâneo, sobretudo no que diz respeito ao “telos” presente na teoria política aristotélica, noção que teria se perdido na modernidade. O objetivo desta seção foi,

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contudo, mostrar como o filósofo grego fornece um dos elementos aqui convocado na definição de república, a saber, a noção de “bom governo”, ou seja, a definição da finalidade a partir da qual os meios podem ser corretamente pensados.

3.2 A República como “autoridade” política

Ao lado da noção de “bom governo”, o segundo elemento aqui mobilizado é a noção de “autoridade” política. Nesta seção, o ensaio “O que é autoridade?” de Hannah Arendt, será, assim, tomado como norte para a montagem do argumento (ARENDT, 2007). O objetivo é mostrar como Arendt defende o surgimento de uma noção específica de autoridade a partir do experimento da república romana, noção esta ausente na filosofia política de Platão e Aristóteles. Interessa para os nossos propósitos precisamente a separação que Arendt identifica entre “poder” e “autoridade”, permitindo com que pensamos a república a partir da sua tradição. Arendt inicia o ensaio indagando o que foi e não o que é autoridade, ante o diagnóstico da impossibilidade de recorrermos a experiências comuns. Tal quadro a permite falar em “crise da autoridade”. No seu entendimento, contudo, a crise do presente é política em sua origem e natureza, manifesta no declínio dos partidos políticos frente ao aparecimento de novos movimentos políticos, e no desenvolvimento de uma forma autoritária de governo. Para a autora, a quebra das autoridades tradicionais não foi resultado direto do aparecimento dos novos movimentos e dos regimes autoritários, mas sim estes tiraram proveito da perda de prestígio dos partidos e do não reconhecimento da autoridade dos governos. Sintoma mais significativo da profundeza dessa crise é, com efeito, ter ela se espalhado por áreas pré-políticas, como a criação dos filhos. Arendt argumenta que seja pela necessidade natural do desamparo da criança, ou pela necessidade política de conduzi-la por uma civilização estabelecida, essa forma simples e elementar de autoridade que serviu de exemplo para outras formas de autoridade política não mais exerce influência. Logo, “Tanto pratica como teoricamente, não estamos mais em posição de saber o que a autoridade realmente é” (ARENDT, 2007, p. 128, grifo da autora). Porém, a autora enfatiza não ser seu objetivo a discussão da “autoridade em geral”, mas sim de uma forma específica de autoridade que fora válida no mundo ocidental durante séculos. Isso exige, no seu entendimento, que reconsideremos historicamente a autoridade, buscando sua força e significação. A primeira aproximação de Arendt já traz elementos importantes para a discussão a ser desenvolvida: a autoridade exclui, por um lado, a violência, pois prescinde de

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meios externo de coerção, e, por outro, a persuasão, pois pressupõe uma ordem hierárquica que é incompatível com a igualdade na troca de argumentos. Sendo assim,

Se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sê-lo, então, tanto em contraposição à coerção pela força como à persuasão através de argumentos. (A relação autoritária entre o que manda e o que obedece não se assenta nem na razão comum nem no poder do que manda; o que eles possuem em comum é a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos têm seu lugar estável predeterminado.) (ARENDT, 2007, p. 129).

O modo como o termo começou a ser utilizado por Platão está, segundo Arendt, relacionado a busca de alternativas para o usual trato grego dos assuntos públicos na democracia, pautado pela persuasão. Assim, historicamente a perda da autoridade – que se mostrou o elemento mais estável até aqui – é a fase final do processo que durante séculos solapou a religião e a tradição. No argumento da autora, o que até então tinha significação espiritual apenas para alguns poucos – declínio da religião e da tradição –, invadiu, contudo, o domínio político tornando-se preocupação geral, fazendo com que a perda da tradição e da religião se tornem acontecimentos políticos de primeira ordem. Aqui, Arendt ocupa-se da demarcação entre as noções de passado e tradição, centrais para o argumento desta tese:

A perda inegável da tradição no mundo moderno não acarreta absolutamente uma perda do passado, pois tradição e passado não são a mesma coisa, como os que acreditam na tradição, de um lado, e os que acreditam no progresso, de outro, nos teriam feito crer – pelo que não faz muita diferença que os primeiros deplorem esse estado de coisas e os últimos estendam-lhe suas congratulações. Com a perda da tradição, perdemos o fio que nos guiou com segurança através dos vastos domínios do passado; esse fio, porém, foi também a cadeia que aguilhou cada sucessiva geração a um aspecto predeterminado do passado (ARENDT, 2007, p. 130).

Isso significa, conforme defende a autora, que teríamos nos privado da dimensão da profundidade, esta que só pode ser alcançada através da recordação, colocando em risco a própria existência do passado. Ocorre, no entender de Arendt, algo análogo com a perda da religião. Por certo, a crença tem sido alvo da dúvida desde os séculos XVII e XVIII. Contudo, apesar de crença e fé serem coisas distintas, a fé, protegida pela religião durante séculos, também tem sido ameaçada pele crise da religião institucional. A autoridade, assentando-se no passado, deu ao mundo a permanência e a durabilidade de que os seres humanos necessitam. Dessa forma, sua perda é equivalente à perda do fundamento do mundo, fazendo com que tudo se modifique rapidamente, “como se estivéssemos vivendo e lutando com um universo proteico” (ARENDT, 2007, p. 132). O papel atribuído por Arendt à tradição é central para o argumento aqui em curso. Trata-

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se da possibilidade de por meio desta conferirmos durabilidade à experiência política. A tradição não é, conforme defende a autora, o passado, mas sim aquilo que nos guia pelos seus domínios. Sendo assim, podemos, ao resgatar a tradição do pensamento político, recuperar elementos que permitam com que a experiência presente seja situa num quadro mais amplo, conferindo, assim, durabilidade à prática política. Todavia, segundo Arendt, “a perda da permanência e da segurança do mundo – que politicamente é idêntica à perda da autoridade – não acarreta, pelo menos não necessariamente, a perda da capacidade humana de construir, preservar e cuidar de um mundo que nos pode sobreviver e permanecer um lugar adequado à vida para os que vêm após” (ARENDT, 2007, p. 132). A autora reforça, na construção do seu argumento, que o exercício de fazer distinções parece, contudo, ter perdido a importância para alguns cientistas sociais e políticos, defensores da ideia de que nossos termos necessitam apenas de coerência interna aos nossos próprios argumentos. De acordo com Arendt, duas teorias que carregam implicitamente a problemática suposição de que distinções não são importantes. Ambas merecem destaque na reflexão em curso. (1) A primeira diz respeito ao modo como escritores liberais e conservadores têm tratado o problema da autoridade e, por implicação, o problema afim da liberdade no domínio da política. Em linhas gerais, Arendt argumenta que tem sido típico nas teorias liberais adotar o pressuposto da “constância do progresso”, percebendo a história como o avanço da liberdade. Tal perspectiva tende a negligenciar as diferenças entre a restrição da liberdade em regimes autoritários, a abolição da liberdade em tiranias e ditaduras, e a total eliminação da espontaneidade, a forma mais elementar de manifestação da liberdade humana, nos regimes totalitários. O escritor liberal é, segundo a autora, incapaz de prestar atenção aos traços distintivos entre tirania – quando um governa de acordo com seu próprio arbítrio –, e governo autoritário – quando o governo é submetido às leis, por mais draconiano que seja. Nesse sentido, “A origem da autoridade no governo autoritário é sempre uma força externa e superior a seu próprio poder” (ARENDT, 2007, p. 134). Esta pode advir de um código que não foi feito pelos homens, como o direito divino dos reis ou as ideias platônicas, ou não foi produzido pelos detentores do poder. Já os modernos defensores da autoridade são, nos lembra Arendt, pressurosos ao fazer a distinção entre tirania e autoridade.

Ali onde o escritor liberal vê um progresso essencialmente assegurado em direção à liberdade, apenas temporariamente interrompido por algumas forças sombrias do passado, o conservador vê um processo de ruína que começou com o definhamento da autoridade, de tal modo que a liberdade, após perder as limitações restritivas que protegiam seus limites, se desguarnece, indefesa e fadada a ser destruída (ARENDT,

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2007, p. 134).

Dessa forma, ao nos concentrarmos nas diferentes formas de estruturação do aparato governamental, podemos, de acordo com Arendt, melhor compreender as diferenças negligenciadas por liberais e conservadores. A autora exemplifica o ponto adotando uma imagem distinta para cada um dos três diferentes modelos representativos. (a) A imagem do governo autoritário é a pirâmide, bem conhecida no pensamento político tradicional. Trata-se de uma estrutura governamental onde a autoridade jaz externa a si mesma, mas sua sede encontra-se localizada no topo da pirâmide. Cada camada sucessiva entre o topo e a base possui alguma autoridade, menos que a imediatamente superior. A “forma autoritária de governo, com sua estrutura hierárquica, é a menos igualitária de todas as formas; ela incorpora a desigualdade e a distinção como princípios ubíquos” (ARENDT, 2007, p. 136). (b) A tirania, por sua vez, pertence às formas igualitárias de governo. Isso porque, na defesa de Arendt, o tirano governa como um contra todos, sendo todos igualmente desprovidos de poder. Seguindo a imagem da pirâmide, é como se todas as camadas intermediárias entre o topo e a base fossem destruídas, permanecendo o tirano acima de uma massa de indivíduos isolados, desintegrados e iguais. (c) Em contraposição aos regimes tirânicos e autoritários, a imagem que melhor representa a organização totalitárias é, segundo a autora, estrutura da cebola: no centro localiza-se o líder, capaz de atuar sobre de dentro para fora, e não de cima para baixo. Arendt defende que a grande vantagem dessa forma de organização é que as camadas não têm consciência da atuação do líder, permanecendo, porém, sobre sua influência com graus distintos de radicalismo. Logo, ao passo em que o liberalismo fala do refluxo da liberdade e o autoritarismo do declínio da autoridade, ambos pactuam do mesmo diagnóstico que aponta a necessidade de recuperarmos uma posição tradicional perdida. Como duas faces da mesma moeda, ambos, liberalismo e conservadorismo, aceitam, argumenta Arendt, a imagem da história como processo, tornando distinções inúteis, pois o próprio fluxo histórico tende a torna-las obsoletas. (2) A segunda e mais recente teoria que questiona implicitamente a importância das distinções é, aponta a autora, a funcionalização de quase todos os conceitos e ideias presente nas Ciências Sociais. O exemplo mobilizado por Arendt é o modo como essa teoria classifica o comunismo como uma nova “religião”, pois o mesmo desempenharia a mesma função. “É como se eu tivesse o direito de chamar o salto de meu sapato de martelo porque, como a maioria das mulheres, o utilizo para enfiar pregos na parede” (ARENDT, 2007, p. 139-140). Arendt nos mostra como os escritores conservadores diriam que, diante dessa constatação, devemos recuperar a verdadeira religião, pois se o “martelo” continua a ser importante, utilizemos um

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“martelo” de verdade. O mesmo argumento surge na discussão sobre autoridade e violência: se a violência preenche as mesmas funções que a autoridade, recuperemos a autoridade legítima. Assim, conclui a autora:

Em comparação com essas teorias, as distinções entre sistemas tirânicos, autoritários e totalitários que propus são a-históricas, caso se compreenda por história não o espaço histórico no qual determinadas formas de governo apareçam como entidades reconhecíveis, mas o processo histórico em que todas as coisas podem sempre se transformar em alguma outra coisa; e não antifuncionais, na medida em que se toma o conteúdo do fenômeno para determinar tanto a natureza do organismo político como sua função na sociedade, e não vice-versa. Politicamente falando, elas têm uma tendência a admitir que, no mundo moderno, a autoridade desapareceu quase até o ponto de fuga, e isso não menos nos chamados sistemas autoritários que no mundo livre, e que a liberdade – isto é, a liberdade de movimento de seres humanos – está sob ameaça em toda parte, mesmo nas sociedades livres, tendo sido, porém, abolida radicalmente apenas nos sistemas totalitários, e não nas tiranias e ditaduras (ARENDT, 2007, p. 141-142).

Após conceituar a autoridade que será alvo de sua reflexão, Arendt parte para a recuperação do conceito ao longo da tradição do pensamento ocidental. Conforme seu argumento podemos, assim, identificar tanto o surgimento, quanto as transformações pelas quais a autoridade passou. Isso porque que a autoridade nas comunidades humanas não existiu sempre, nem pode ser encontrada necessariamente em todos os organismos políticos. A palavra e o conceito são, segundo sua defesa, de origem romana, estando ausentes na experiência grega. A filosofia de Platão e Aristóteles expressa bem este ponto, ao tentar introduzir a autoridade na vida pública da polis grega. Ambos recorriam, de acordo com Arendt, a dois tipos de governo, um no âmbito político-público, e outro na esfera privada. Em geral, o governo absoluto na polis era conhecido como tirania, marcado pela violência no exercício do governo, privando os súditos da esfera pública. Ele poderia advir da necessidade em tempos guerra. De todo modo, tanto o tirano – o “lobo em figura humana” – quanto o comandante militar – ligado a emergências temporárias – não poderia, segundo a interpretação da autora, ser fonte de autoridade. Logo, em decorrência da ausência de um modelo público, Platão e Aristóteles, de modos distintos, basearam-se em experiências da vida privada na reivindicação de um governo autoritário. No universo grego, o déspota era aquele que dominava indiscutivelmente os membros da família e os escravos. Este, porém, não era livre. Isso porque, liberdade para os gregos significava a possibilidade de ultrapassar a esfera privada para conviver entre iguais. Tanto o déspota quanto o senhor não transitavam entre iguais, mas sim entre súditos ou escravos. A autoridade implica, dessa forma, uma obediência na qual os homens retêm sua liberdade. Arendt

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nos mostra como Platão esperava ter encontrado essa obediência quando outorgou às leis, na fase madura, a qualidade de governante inquestionável de todo domínio político. Os homens poderiam, com efeito, alimentar a esperança de não dependerem mais uns dos outros. Nesse sentido, as filosofias políticas de Platão e Aristóteles influenciaram, de acordo com o argumento de Arendt, mesmo as posteriores experiências políticas distintas, como o caso romano.

Em nenhum outro lugar o pensamento grego se acerca tão estreitamente do conceito de autoridade como na República, de Platão, onde ele confrontou a realidade da polis com um utópico governo da razão na figura do rei-filósofo. O motivo para o estabelecimento da razão como governante no âmbito da Política era exclusivamente de ordem política, embora as conseqüências de esperar que a razão se tornasse um instrumento de coerção tenha sido, talvez, não menos decisivas para a tradição da Filosofia Ocidental do que para a tradição política ocidental (ARENDT, 2007, p. 145, grifo da autora).

Nesse processo, Platão confere, no limite, um lugar para a própria razão no pensamento ocidental (CHAUI, 2002). Mesmo porque, o motivo para que Platão desejasse que os filósofos governassem a cidade assenta no conflito entre o filósofo e a polis, ou na hostilidade da polis para com a filosofia (KOYRÉ, 1988). No entender de Arendt, “Politicamente, a filosofia de Platão mostra a rebelião do filósofo contra a polis. O filósofo anuncia sua pretensão ao governo, mas não tanto por amor à polis e à política [...], como por amor à filosofia e à segurança do filósofo” (ARENDT, 2007, p. 146-147, grifo da autora). Assim, após a morte de Sócrates, Platão condena a persuasão e pretende colocar a verdade no seu lugar, através da coerção pela razão. O problema, porém, é que somente uma minoria está sujeita à coerção da razão, precisando o filósofo encontrar uma alternativa à violência para assegurar que a maioria, o povo que constitui a própria multiplicidade do organismo político, possa ser submetida à mesma verdade. Arendt aponta este como o principal desafio de Platão: encontrar um modelo legítimo de coerção que não descaracterize o modo de vida grego, ou seja, que não recorra à violência. Nessa busca, Platão é guiado por modelos baseados em relações existentes (o pastor e suas ovelhas, o timoneiro de um barco e seus passageiros, o médico e o paciente, o senhor e o escravo). Em todos esses exemplos, prevalece uma desigualdade natural entre o governante e o governado, e ainda que Platão soubesse que não poderia se guiar por eles para estabelecer a “autoridade” no mundo público, ele constantemente retorna aos seus exemplos. Arendt afirma ser importante ter em mente que espécie de coerção Platão pretendia ao mobilizar tais modelos de relação. O poder coercitivo por ele defendido, não repousava na pessoa do filósofo, mas sim nas ideias que podem servir de metro para o comportamento humano, ideias que transcendem todas as coisas cujo comprimento pode medir. Isso porque, na

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parábola da caverna, o filósofo não procura parâmetros para a ação, mas sim a contemplação das ideias puras, ou seja, contemplar a essências verdadeira do Ser. O ponto é central para compreendermos o modo como o filósofo estrutura sua noção de autoridade. Nas palavras de Arendt,

O elemento basicamente autoritário das idéias, isto é, a qualidade que as capacita governar e exercer coerção, não é, pois, de modo algum, algo de auto-evidente. As idéias tornaram-se padrões de medida somente depois que o filósofo deixou o céu límpido das idéias e retornou à escura caverna da existência humana. Nessa parte da estória Platão toca na mais profunda razão para o conflito entre o filósofo e a polis. Ele nos fala da perda de orientação do filósofo nos assuntos humanos, da cegueira que atinge seus olhos, da angustiosa situação de não ser mais capaz de comunicar o que ele viu e do verdadeiro perigo para a sua vida que daí surge. É nesse transe que o filósofo apela para o que ele viu, as idéias, como padrões e normas e, finalmente, temendo por sua vida, as utiliza como instrumentos de dominação” (ARENDT, 2007, p. 149, grifo da autora).

Nessa direção, para a transformação das ideias em normas, Platão vale-se de uma analogia com a vida prática: todas as artes e ofícios parecem ser guiados por ideias. Assim, não há grande diferença, no entendimento do filósofo, entre utilizar as ideias como modelos ou como “metros” para o comportamento humano. Aristóteles teria sido, conforme aponta Arendt, o primeiro a perceber isso, ao apontar a comparação entre a lei mais perfeita, aquela que se aproxima da ideia, com o prumo, a régua e o compasso. Aqui, a aplicabilidade das ideias de Platão ressurge quando pensamos na característica do governo autoritário em geral – a fonte da autoridade deve estar acima do poder –, que, no argumento do filósofo, encontra nas ideias a fonte da autoridade. Sua analogia com as artes e ofícios oferece, segundo Arendt, outra importante questão: a violência intrínseca ao processo de transformação. A construção do mundo humano envolve sempre alguma violência feita à natureza, como derrubar uma árvore para construir uma mesa, por exemplo. Hannah Arendt defende, assim, que Platão é levado ao extremo da preferência pela tirania por suas próprias analogias: “Se a república deve ser feita por alguém que é o equivalente político de um artesão ou de um artista, em conformidade com uma téchne estabelecida e com regras e medidas válidas nessa ‘arte’ particular, o tirano está, com efeito, na melhor posição para atingir o objetivo” (ARENDT, 2007, p. 152). Arendt lembra que no argumento de Platão quando o filósofo deixa a caverna em busca da verdadeira essência do Ser, somente mais tarde, confrontado com a hostilidade de seus semelhantes humanos, ele começa a pensar na “verdade” em termos de padrões aplicáveis ao comportamento de outras pessoas. Tal transformação se manifesta, com efeito, na discrepância entre as ideias enquanto essências verdadeiras a serem contempladas e enquanto medidas a

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serem aplicadas. De acordo com a interpretação de Arendt, “O Banquete”, “Fedro” ou mesmo nos primeiros livros de “A República”, observamos a função original das ideias não estava associada à política, mas sim ao “belo”, à sabedoria capaz de iluminar a escuridão. Platão descreve originalmente o filósofo como o amante da beleza e da sabedoria. Segundo Arendt, “São precisamente o governar, o medir, o subsumir e o regular que se alheiam inteiramente das experiências subjacentes à doutrina das idéias em sua concepção original” (ARENDT, 2007, p. 153). No entanto, e essa é a inflexão operada pelo filósofo na construção da noção de autoridade, ao converter a ideia suprema no “bem” – que no vocabulário grego sempre significou “bom para” “adequado” –, e não mais no “belo, Platão abre caminho para sua utilidade prática no domínio da política. Arendt argumenta que o filósofo, versado em ideias, surge como aquele capaz de torná-las regras e padrões de comportamento, e mais tarde em leis, como lemos em “Leis”. Não é mais o homem, como na assertiva protagórica, nem um deus, a medida de todas as coisas, mas sim as ideias. O ponto de Arendt é decisivo: o modelo de governo platônico pode ser encontrado, dessa forma, no conflito entre a Filosofia e a Política, e não apenas em experiências especificamente políticas. Dessa forma, a parábola da caverna é, de algum modo, uma biografia sintética do filósofo: a procura da melhor forma de governo se traduz na procura da melhor forma de governo para os filósofos, que se mostra um governo em que o filósofo possa governar a cidade. Assim como no argumento de Koyré, o encontro do filósofo com a cidade é, por certo, traumático (KOYRÉ, 1988).

Contudo, o governo do filósofo deve ser justificado, e somente poderia sê-lo se a verdade do filósofo possuísse validade para aquela mesma esfera dos assuntos humanos que o filósofo tivera que abandonar para percebê-la. Enquanto o filósofo nada mais é senão filósofo, sua procura termina com a contemplação da verdade suprema, que, visto iluminar a tudo mais, é também a beleza suprema; mas enquanto um homem entre homens, um mortal entre mortais e um cidadão entre cidadãos, o filósofo deve tomar sua verdade e transformá-la em um conjunto de regras, transformação esta em virtude da qual poderá então pretender tornar-se um verdadeiro governante – o rei filósofo (ARENDT, 2007, p. 155).

Aristóteles, por sua vez, endossa, no entendimento de Arendt, a concepção grega da filosofia como “espanto”, conforme lemos em sua famosa assertiva no início da “Metafísica”. Nesse sentido, mesmo repudiando o ideal platônico da doutrina das ideias, ele segue a separação entre um modo de vida teórico e uma vida devotada aos afazeres humanos, reforçando, ainda, a ordem hierárquica entre eles. Com isso, Aristóteles tenta, ao seu modo, estabelecer a autoridade no domínio político, mas distancia-se de Platão ao rejeitar o elemento tirânico das

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ideias presente em sua teoria do rei-filósofo. Segundo Arendt,

A razão que aduz para sustentar que “cada organismo político de compõe daqueles que governam e daquelas que são governados” decorre da superioridade do perito sobre o leigo, e ele é bastante cônscio da diferença existente entre o agir e o fazer para ir buscar seus exemplos na esfera da fabricação (ARENDT, 2007, p. 157).

Arendt nos mostra como Aristóteles toma o modelo de relação entre os mais jovens e os mais velhos para exemplificar a relação entre os que governam e os que são governados. Isso leva o filósofo a determinadas contradições, como definir a polis como uma “comunidade entre iguais”. A autora recupera em seu argumento o tratado “Economia”, texto apócrifo escrito por um dos mais próximos discípulos de Aristóteles, onde a comunidade política é descrita como sendo composta pelo “governo de muitos”, ao passo em que a casa privada (a oikía), seria constituída pela monarquia, o “governo de um”. Arendt enfatiza que, no contexto, monarquia e tirania eram sinônimos, distintos de realeza, porém, ao mesmo tempo em que o “governo de muitos” não significava formas de governo que se opunham ao “governo de um só”. Os “muitos” eram, relembra a autora, os patriarcas da casa que haviam adentrado ao domínio público como iguais. Assim,

O governar a si mesmo e a distinção entre governantes e governados pertencem a uma esfera que precede o domínio político, e o que distingue este da esfera “econômica” do lar é o fato de a polis basear-se no princípio da igualdade, não conhecendo diferenciação entre governantes e governados (ARENDT, 2007, p. 158, grifo da autora).

Aristóteles aponta a existência de uma esfera marcada pela necessidade, a esfera do lar, contra a qual devemos nos libertar para adentrar ao domínio político, definido como a “vida boa”. A liberdade para a “vida boa” assenta-se, assim, no domínio da necessidade. Nesse sentido, Arendt afirma que o homem livre, o cidadão da polis, não é coagido pela necessidade, nem tampouco é sujeito à dominação artificial de outros, fazendo emergir no debate a cara noção de liberdade que será tratada a seguir. Nas palavras da autora,

A liberdade no âmbito da política começa tão logo todas as necessidades elementares da vida tenham sido sujeitas ao governo, de modo tal que dominação e sujeição, mando e obediência, governo e ser governado, são pré-condições para o estabelecimento da esfera política precisamente por não fazerem parte de seu conteúdo (ARENDT, 2007, p. 159).

O ponto principal de argumento de Hannah Arendt é que assim como Platão, Aristóteles também teve que recorrer a uma espécie de solução improvisada para tornar plausível a

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distinção entre governantes e governados. O filósofo também extraiu seus exemplos do âmbito privado do lar, além de recorrer às experiências da economia escravista. Isso o conduz, de acordo com Arendt, a asserções contraditórias, pois Aristóteles sobrepõe à polis padrões de ação e comportamentos próprios da vida doméstica. O exemplo presente em “A Política”, que fundamenta o governo na relação entre os mais jovens e os mais velhos, manifesta, no argumento em curso, essa contradição: a relação geracional pode bem descrever a educação, pois os mais velhos educam os mais jovens; no entanto, ela não se adequa ao domínio da política, visto que apenas os adultos adentram nele. É precisamente neste ponto que Arendt traz para o debate a experiência de Roma, que será, no seu entendimento, quem efetivamente forjará o conceito de autoridade política perseguido sem sucesso pelos gregos. Isso porque, a autoridade só pode adquirir caráter educacional, conforme lemos na metáfora aristotélica, se admitirmos, como os romanos o fizeram, que os antepassados são fonte de exemplo para todas as questões. Do contrário, o uso do modelo da educação na política pode parecer querer educar, quando na verdade pretende dominar. Em suma,

As grandiosas tentativas da Filosofia grega para encontrar um conceito de autoridade que obstasse a deterioração da polis e salvaguardasse a vida do filósofo soçobraram devido ao fato de não existir, no âmbito da vida política grega, nenhuma consciência de autoridade que se baseasse em experiências políticas imediatas. Daí todos os protótipos mediante os quais as gerações posteriores compreenderam o conteúdo da autoridade terem sido extraídos de experiências de natureza especificamente não- política, brotando seja da esfera do “fazer” e das artes, onde devem existir peritos e onde a aptidão é o critério supremo, seja da comunidade familiar privada (ARENDT, 2007, p. 161, grifo da autora).

O fato recuperado pela autora é que os romanos já entendiam a importância da tradição e da autoridade na vida política da República romana. No âmago da política romana encontra- se, com efeito, a convicção do caráter sagrado da fundação: participar da política significava, antes de mais nada, preservar a fundação da cidade de Roma. Arendt nos mostra como os romanos, diferentemente dos gregos, estavam efetivamente enraizados no solo, atribuindo especial importância para o patriotismo. Assim, a experiência de fundar novos organismos políticos tornou-se central para sua história, tendo sempre como norte a própria fundação de Roma. A autora argumenta que em contraste com a Grécia, a religião em Roma significava literalmente re-ligare – ser ligado ao passado –, não dependendo a piedade da presença imediatamente revelada dos deuses. Os romanos consideravam, dessa forma, a religião e a atividade política como praticamente idênticas, conforme afirmava Cícero sobre a fundação de

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novas comunidades e a preservação das já fundadas. É precisamente aqui que a autora apresenta a distinção entre autoridade e poder, que será cara à montagem do argumento desta tese. Segundo Arendt,

Foi nesse contexto que a palavra e o conceito de autoridade apareceram originalmente. A palavra auctoritas é derivada do verbo augere, “aumentar”, e aquilo que a autoridade ou os de posse dela constantemente aumentam é a fundação. Aqueles que eram dotados de autoridade eram os anciãos, o Senado ou os patres, os quais obtinham por descendência e transmissão (tradição) daquelas que haviam lançado as fundações de todas as coisas futuras, os antepassados chamados pelos romanos de maiores. [...] A autoridade, em contraposição ao poder (potestas), tinha suas raízes no passado, mas esse passado não era menos presente na vida real da cidade que o poder e a força dos vivos” (p. 163-164).

Logo, a autoridade dos vivos era sempre derivativa, dependendo da autoridade dos fundadores que não mais se contavam no número dos vivos. A palavra auctores pode, com efeito, ser utilizada como antônimo de artífices: “O autor não é aqui o construtor, mas aquele que inspirou toda a empresa e cujo espírito, portanto, muito mais que o do efetivo construtor, se acha representado na própria construção” (ARENDT, 2007, p. 164). Arendt reforça que relação entre autor e artífice não é, porém, semelhante à relação entre senhor e escravo descrita por Platão (o que planeja e o que executa). Isso porque, nas palavras da autora, “A característica mais proeminente dos que detêm autoridade é não possuir poder” (ARENDT, 2007, p. 164). Sendo assim, o poder reside no povo, ao passo em que a autoridade repousa no Senado. O modelo de autoridade romano assemelha-se, conforme lembra Arendt, a descrição de Montesquieu sobre o ramo judiciário, como o poder “de certo modo nulo”. Algo que aponta para a existência de um caráter coercitivo na autoridade, intimamente ligado ao elemento religioso: os deuses aprovam ou desaprovam as ações humanas, mas não as guiam. Assim, o exemplo dos feitos do passado e o costume desenvolvido a partir deles eram sempre coercitivos, possuindo autoridade enquanto padrões políticos e morais. Eis porque a idade provecta continha, para os romanos, o clímax da vida humana. Arendt afirma que

Nesse contexto basicamente político é que o passado era santificado através da tradição. A tradição preservava o passado legando de uma geração a outra o testemunho dos antepassados que inicialmente presenciaram e criaram a sagrada fundação e, depois, a engrandeceram por sua autoridade no transcurso dos séculos. Enquanto essa tradição fosse ininterrupta, a autoridade estaria intata; e agir sem autoridade e tradição, sem padrões e modelos aceitos e consagrados pelo tempo, sem o préstimo da sabedoria dos pais fundadores, era inconcebível (ARENDT, 2007, p. 166).

Nessa direção, Arendt nos fornece o segundo importante elemento na montagem do

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ideal de república aqui em curso, a saber, a separação entre “poder” e “autoridade”. Ao lado da noção de “bom governo” tratada na seção anterior, podemos agora pensar a república como uma forma de governo pautada pelo “governo das leis”, onde a tradição pode ser convocada contra o exercício do poder presente. Na próxima seção discuto, com efeito, o terceiro elemento aqui proposto: a liberdade.

3.3 A República como um regime de “liberdade”

O chamado “retorno” ao republicanismo tem ocupado parte significativa dos debates contemporâneos acerca da democracia, notadamente seu esforço na problematização de alguns dos pressupostos básicos do pensamento liberal. Nesse sentido, a obra de autores como J. G. A. Pocock, Philip Pettit, Quentin Skinner, dentre outros, tem se dedicado, ainda que por caminhos distintos e com objetivos diversos, a recuperação de um conceito de liberdade não redutível aos termos propostos pelo liberalismo, especialmente na chave originalmente sugerida por Benjamin Constant, e posteriormente reformulada por Isaiah Berlin (BERLIN, 2002). Assim, a tópica republicana vem consubstanciando um tipo de liberdade que conserva características tanto da liberdade dos antigos/positiva, quanto da liberdade dos moderno/negativa, sem, contudo, incorrer no perigo que a emergência de formas anacrônicas de sociabilidade política manifesta, conforme lemos na crítica liberal (SANDEL, 2005). Em outras palavras, a liberdade republicana vem sendo mobilizada na tentativa repensar desafios não resolvidos pela teoria democrática contemporânea, capazes de oxigenar o debate por meio de elementos colhidos na tradição sem abandonar as conquistas da modernidade, exercício presente mesmo em formulações não-normativas – como é o caso dos trabalhos historiográficos de Skinner discutidos no capítulo anterior –, mas encontrado, sobretudo, na teoria política normativa – conforme observamos na obra de Pettit e sua defesa da “democracia contestatória” (PETTIT, 1999). Um dos primeiros movimentos nesta direção é o livro de Quentin Skinner, “Liberdade antes do liberalismo” (SKINNER, 1999). O livro discute, conforme enuncia Skinner, a ascensão e queda, dentro da teoria política anglófona, da compreensão “neo-romana” da liberdade civil. A própria conceituação dada pelo historiador à teoria da liberdade tratada – “neo-romana” –, é objeto de disputa, assim como constataremos em seus trabalhos posteriores. A teoria mapeada por Skinner teria, todavia, alcançando proeminência no decorrer da revolução inglesa de

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meados do século XVII, e sido utilizada mais tarde para atacar a oligarquia governante da Inglaterra do século seguinte. Skinner mostra, ainda, como a mesma concepção de liberdade “neo-romana” foi mobilizada para defender a revolução armada dos colonos americanos contra a coroa britânica. Entretanto, e este é o grande achado para os propósitos do argumento aqui desenvolvido, no século XIX a teoria discutida pelo historiador foi desaparecendo em razão do triunfo do liberalismo. A ambição do ensaio de Skinner é, com efeito, questionar a hegemonia liberal mediante a tentativa de rediscutir um mundo intelectual que perdemos. O historiador volta sua atenção para as disputas políticas na Inglaterra do século XVII, mostrando como o agravamento da crise constitucional no país, manifesto no embate entre o Parlamento e a Coroa, era embasado por teorias diversas sobre a relação entre liberdade e lei. Hobbes é, por certo, referência inescapável nesta discussão, ao alçar o Estado à condição de soberano sem qualquer ambiguidade, tornando seu poder legítimo em razão do consentimento dos próprios súditos. O argumento hobbesiano e o modo como o autor se situa nas disputas travadas à época será, com efeito, melhor discutido a seguir. Antes, porém, pretendo recuperar o que Skinner nomeou como ideias “neo-romanas” de liberdade, que seriam contestadas pelo edifício teórico erguido por Hobbes. A partir da metade do século XVII, conforme argumenta Skinner, a Inglaterra testemunha a emergência de uma teoria republicana da liberdade, marcadamente influenciada pela experiência romana. Os teóricos afeitos a esta teoria, enfatizavam tratar o conceito de liberdade civil de modo estritamente político, preocupados, assim, com discussão da relação entre a liberdade dos súditos e os poderes do Estado. Em geral, estes autores associam a liberdade com o gozo de um número de direitos civis específicos, apresentando um argumento que, em verdade, não pode ser encontrado nos autores antigos, nem ao mesmo nos neo-romanos. Em contraste, os autores ingleses – Harrington é o caso notório, segundo Skinner – trouxeram para o debate uma noção de estado de natureza até então ausente. No seu entendimento, tratava-se de identificar uma liberdade primitiva, concedida por Deus, que deveria ser resguardada. Skinner aponta, todavia, que a maioria dos autores neo-romanos ocupava-se da prescrição de que os governos deveriam resguardar a vida, o patrimônio, a liberdade e a propriedade. O ponto de Skinner, porém, é:

Minha principal razão é que a teoria da liberdade que eles esposam me parece constituir o cerne do que é específico em seu pensamento. Mais do que seu às vezes ambíguo republicanismo, mais até do que seu inquestionável compromisso com uma política de virtude, sua análise da liberdade civil assinala-os como os protagonistas de uma ideologia específica, e mesmo como os membros de uma única escola de pensamento (SKINNER, 1999, p. 30-31).

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Na demarcação dessa “ideologia específica”, Skinner apresenta algumas características como traços distintivos. O primeiro ponto é que mesmo a liberdade individual deve ser pensada no interior de uma associação civil. O autor nos mostra como esse conjunto de autores está próximo da antiga metáfora do corpo político, ao defender a liberdade da comunidade política como analogia para as liberdades individuais. Claramente influenciados pelos Discorsi de Maquiavel, os autores dirão:

Do mesmo modo que os corpos humanos individuais são livres, alegam eles, se e apenas se eles são capazes de agir ou eximir-se de agir à vontade, assim os corpos das nações e Estados são igualmente livres se e apenas se eles são similarmente desimpedidos de usar seus poderes de acordo com suas próprias vontades na busca de seus finas desejados. Estados livres, como pessoas livres, são assim definidos por sua capacidade de autogoverno. Um Estado livre é uma comunidade na qual as ações do corpo político são determinadas pela vontade dos membros como um todo (SKINNER, 1999, p. 32-33).

Uma das suposições presente nesta definição é a de que as leis que governam uma comunidade política devem ser decretadas com o consentimento de todos os seus cidadãos. Skinner enfatiza que apenas dessa forma o corpo político agiria conforme sua vontade, não sendo privado da liberdade. A despeito das críticas sobre o que seria esse almejado consentimento, os teóricos neo-romanos afirmam, sem maior elaboração, que a vontade do povo trata-se da soma das vontades individuais. De acordo com seu entendimento, não há como pensarmos numa regra melhor para capacitar a comunidade política para a ação. Resta, contudo, a discussão sobre o arranjo institucional onde se dará esse exercício, conforme aponta Skinner.

Uma implicação constitucional ulterior sugerida pela metáfora do corpo político é a de que o governo de um Estado livre deve idealmente ser tal que possibilite a cada cidadão individual exercer um direito igual de participação na elaboração de leis. Pois apenas isso pode assegurar que todos os atos de legislação reflitam adequadamente o consentimento explícito de todos os membros do corpo político como um todo (SKINNER, 1999, p. 35).

O debate não foi, por certo, simples. Skinner nos lembra como , por exemplo, defendia que uma autêntica república requer um arranjo federativo. De outra parte, alguns autores apresentaram a defesa da constituição de um necessário corpo representativo para que o autogoverno de dê sem “excessos”. Nessa direção, “A solução correta, eles geralmente concordam, é que a massa do povo seja representada por uma assembléia nacional dos mais virtuosos e ponderados, uma assembléia escolhida pelo povo para legislar em seu benefício” (SKINNER, 1999, p. 37). Daí em diante, tratava-se, de acordo com Skinner, da

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definição do formato dessa representação. Harrington defendia que “governar com apenas uma assembléia é colocar o direito de deliberar e o direito de decretar políticas nas mesmas mãos. [...] Isso tornar essencial governar com duas assembléias separadas, uma que delibera enquanto a outra executa o que foi acordado” (SKINNER, 1999, p. 38-39). O fato, enunciado por Skinner, é que este debate inscreve decisivamente o ideal da constituição mista “no cerne das propostas apresentadas pelos chamados comunitaristas no século XVII, e acabou sendo cultuado (com o elemento monárquico convertido em presidencial) na constituição dos Estados Unidos” (SKINNER, 1999, p. 39). Situada essa questão, o autor passa para a discussão do conceito de liberdade civil presente nos embates travados à época, ponto central para o argumento desta seção. Skinner nos mostra como a questão da liberdade surge associada à discussão sobre o autogoverno. Estados governados pela vontade de alguém externo ao corpo político seriam, conforme o argumento em questão, provas da perda da liberdade. Logo, “A questão do que significa para uma nação ou Estado possuir ou perder sua liberdade é dessa maneira analisada em termos do que significa cair numa condição de escravidão ou servidão” (SKINNER, 1999, p. 40). Em linhas gerais, os teóricos neo-romanos definem a liberdade em contraposição à escravidão, seguindo a discussão presente no Digesto. Daí a importância, segundo Skinner, de atentarmos para o entendimento da escravidão no contexto em que tais embates de davam. Contrariamente ao que se supõe, a essência da escravidão do Digesto não é a falta de liberdade imposta pela força física. Skinner recupera a definição, mostrando a centralidade de uma distinção operara no interior do corpo normativo em debate: pensar a escravidão envolver discutirmos sua essência, logo devemos estar atentos para a diferença entre os que “estão” e os que “são”. Logo, aponta o historiador, a ausência de liberdade deriva do fato de estarmos sujeitos à outra pessoa, ainda que num determinado momento tal sujeição não se traduza em ato. Nesse sentido, “A essência do que significa ser um escravo, e portanto a falta de liberdade pessoal, é assim estar in potestae, dentro do poder de alguém mais” (SKINNER, 1999, p. 43). Esta será, com efeito, a definição mobilizada pelos teóricos neo-romanos para a definição dos Estados livres.

Pode ser que a comunidade não seja, na verdade, governada tiranicamente; seus governantes podem optar por seguir os ditames da lei, de modo que o corpo político possa não ser na prática privado de nenhum de seus direitos constitucionais. Tal Estado será, não obstante, considerado como vivendo em escravidão se sua capacidade para ação for, de alguma maneira, dependente da vontade de alguém que não o corpo de seus próprios cidadãos.

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Diz-se haver duas maneiras distintas pelas quais esta segunda forma de servidão pública pode emergir. Uma é quando um corpo político se encontra sujeito à vontade de um outro Estado em conseqüência de colonização ou conquista. [...] A outra maneira pela qual esta forma de servidão pública pode emergir é quando a constituição interna de um Estado permite o exercício de quaisquer poderes discricionários ou privilegiados da parte daqueles que o governam (SKINNER, 1999, p. 49-50).

Alguns anos depois, porém, Skinner publicará um novo e decisivo trabalho sobre esta concepção alternativa de liberdade presente na tradição do pensamento político ocidental, mas perdida ante o triunfo do liberalismo. Será em “Hobbes e a liberdade republicana” (SKINNER, 2010), que Skinner apresentará o que agora conceitua como teoria republicana da liberdade, abrindo mão da definição inicial “neo-romana”. Logo no prefácio, Skinner apresente o que aponta como o propósito principal do ensaio: contrastar duas teorias rivais sobre a natureza da liberdade humana. Segundo o autor, estas seriam: (1) a republicana, que tem suas origens na antiguidade clássica e está no centro da tradição republicana romana da vida pública. Tal tradição foi conservada, de acordo com o historiador, no Digesto do direito romano, apontado a liberdade como o status do homem livre, aquele que não se encontra sob o poder de outro. “Assim, o nervo da teoria republicana é que a simples presença de um poder arbitrário é suficiente para subverter a liberdade no seio das associações civis, porque tem por efeito reduzir os membros de tais associações do status de homens livres ao de escravos” (SKINNER, 2010, p. 10, grifo do autor). Skinner anuncia como a distinção presente no Digesto foi bem acolhida pelo direito consuetudinário inglês, conforme lemos na obra “De legibus et consuetudinibus Angliae”, de Henry de Bracton, que parece ter sido conhecida por Hobbes. Bracton, na descrição de Skinner, reafirma a liberdade como uma condição natural, que pode ser subvertida pelas leis humanas, seja reduzindo o homem à condição de escravo, seja o fazendo entrar numa condição de vassalagem. Em consonância com o Digesto, a sujeição a um poder arbitrário basta para fazer o homem perder a liberdade. Logo, “Uma implicação crucial dessa proposição é que a liberdade pode ser perdida ou confiscada mesmo na ausência de qualquer ato de interferência” (SKINNER, 2010, p. 12). Nesse sentido, escravos podem nunca conflitar seus desejos com o desejo dos senhores, mas mesmo assim permanecerem despojados de sua liberdade por não serem agentes autênticos. Skinner lembra a discussão de James Harrington, em 1656, quando em sua exposição sobre a teoria republicana, no clássico “Oceana”, afirma que “a desgraça dos escravos é que eles não têm controle de sua vida, estando consequentemente forçados a viverem um estado de incessante ansiedade com relação ao que lhes pode ou não acontecer” (SKINNER, 2010, p.12).

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No argumento de Skinner, essa concepção ganhou importância dentro da teoria política de língua inglesa na eclosão da guerra civil, em 1642, quando os opositores da monarquia Stuart reclamaram seus direitos de liberdade, apontando a Coroa como um poder arbitrário que os confiscava por meio de sua política fiscal. Nesse sentido, a Coroa reduziria o povo nascido livre na Inglaterra à condição de sujeição e servidão. Por outro lado, (2) tal argumento foi combatido pelos defensores da soberania absoluta. “Hobbes é o mais formidável inimigo da teoria republicana da liberdade, e seus esforços para desacreditá-la constituem um momento que faz época na história do pensamento político de língua inglesa” (SKINNER, 2010, p. 13). Ainda que em seus primeiros escritos a concepção de liberdade não esteja sistematicamente formulada, Hobbes começou a elaborar uma versão antagônica definitiva ao que havia sido proposto pelos críticos da Coroa. Skinner reconhece que vários estudos já abordaram a concepção de liberdade em Hobbes. Contudo, no seu entendimento, o ensaio traz duas contribuições são inovadores: (1) perceber contra quem Hobbes estava argumentando, apontando assim os argumentos que o teórico sentiu a urgente necessidade de replicar em nome da paz; (2) mostrar como o autor reformulou parte substantiva de sua teoria ao longo do tempo, encontrando no “Leviatã” uma concepção de liberdade não só distinta, mas oposta ao que ele próprio havia afirmado inicialmente, com importantes implicações em sua filosofia moral. Nas palavras do historiador,

Como já deve estar evidente, eu abordo a teoria política de Hobbes não simplesmente como um sistema gral de ideias, mas também como uma intervenção polêmica nos conflitos ideológicos de seu tempo. [...] Meu objetivo no que segue é fornecer adequadamente uma avaliação não meramente do que Hobbes está dizendo, mas do que ele está fazendo ao propor seus argumentos. Minha suposição norteadora é que mesmo as mais abstratas obras de teoria política nunca estão acima da batalha; elas sempre são parte da própria batalha. Com isso em mente, tento fazer Hobbes descer das alturas filosóficas, decifrar suas alusões, identificar seus aliados e adversários, indicar seu posicionamento no espectro do debate político (SKINNER, 2010, p.14- 15).

No trecho, Skinner reforça seus pressupostos metodológicos discutidos no capítulo anterior: apreender a obra de Hobbes não como uma formulação abstrata de ideias, mas sim imersa em lutas política concretas. Um ponto curioso, porém, é que em suas conclusões, Skinner toma partido no debate teórico contemporâneo, mostrando como sua leitura da obra de Hobbes é produtiva para repensarmos o andamento atual das discussões sobre a liberdade. De alguma forma, o “historiador” é, ainda que sem querer, eclipsado pelo “filósofo” (SILVA, 2013). O ensaio parte da marcação do que Skinner nomeia como as origens humanistas de Hobbes. Por meio de uma bem informada pesquisa historiográfica, Hobbes é apresentado como

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tendo dedicado a atenção, nos anos iniciais de sua formação, aos studia humanitatis em seus três elementos: retórica, poesia e história clássica. Ao lado disso, Skinner mostra como o filósofo foi influenciado pelos emblemata, ou livros de emblemas, conforme observaríamos em suas obras posteriores. A técnica, desenvolvida principalmente pelo jurista humanista Andrea Alciato, consistia, de acordo com Skinner, em justapor imagens edificantes e versos para explicá-las. A biblioteca Hardwick, com a qual Hobbes entrou em contato quando a serviço de Lord Cavendisch, possuía vários exemplares de livros de emblemas. Posteriormente, o uso dos emblemata passou a influenciar a Inglaterra no fim do século XVI, com o aparecimento do que ficou mais tarde conhecido como “frontispício refinado”. Skinner nos lembra que quando Hobbes ornou sua tradução da obra de Tucídides, escolheu “um não menos elaborado frontispício, estava se inserindo assim em uma tradução humanista bem estabelecida de eloquência visual. Ele não demorou a aproveitar a oportunidade oferecida pelo estilo consagrado dos livros de emblemas para assinalara moral presumida na narrativa de Tucídides” (SKINNER, 2010, p. 31). Observando o frontispício, podemos, conforme sustenta Skinner, ver como Hobbes estrutura por meio da imagem o argumento que seria posteriormente explicado em “Os elementos da lei natural e política” (publicado como dois tratados separados em 1650), acerca da democracia ser, na verdade, uma aristocracia de oradores, interrompida em alguns momentos pelo governo de um só orador (monarquia). O historiador nos afirma que ao passo em que autores como Bodin, Vásquez, Suarez, Althusius ou Grotius nada nos oferecem em termos de imagens para resumir seus argumentos, Hobbes ainda apresentaria dois outros importantes frontispícios em “Do cidadão” (1642) e “Leviatã” (1651), tornando indispensável o exame dessas traduções visuais para a compreensão do seu argumento. No entender de Skinner, antes de desenvolver preocupações sobre os temas da filosofia política, Hobbes ainda iria direcionar sua atenção para as ciências naturais, formulando a tese de que o entendimento do mundo passa pelo entendimento do fenômeno do “movimento”, manifestando como sua indisfarçável formação humanista exerceria uma influência decisiva ao longo da vida. Isso o teria levado a elaborar um projeto original, posteriormente abandonado, de entender os vários tipos de movimento, dos “movimentos internos dos homens aos segredos do coração” e concluindo com “os benefícios do governo e da justiça” (SKINNER, 2010, p. 34- 35). Hobbes, de acordo com Skinner, abandonaria seu grande projeto para concentrar-se naquilo que seria a parte final, o estudo do governo e da justiça, em razão da eclosão da guerra civil e da emergência no debate das questões sobre o direito de soberania e o dever de obediência dos cidadãos.

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Entretanto, na obra “Os elementos da lei natural e política”, Hobbes assinala, já na introdução, que não teria abandonado suas preocupações científicas, afirmando a existência de dois corpos distintos com os quais a ciência deve se preocupar: os corpos naturais e os corpos políticos. Estes são estudados pela “política” ou “filosofia civil”. Skinner afirma que “O método que Hobbes adota para estudar as leis que governam os corpos políticos consiste em estabelecer as definições dos termos-chave implicados, depois dos quais se deduz as consequências” (SKINNER, 2010, p. 38). Surpreende, no entender do historiador, que Hobbes não utilize o método no exame do conceito de liberdade, não nos fornecendo qualquer definição formal. Seu procedimento é apenas apontar em quais situações faz sentido falar em liberdade humana. Ainda assim, o caminho adotado fornece importantes pistas para a discussão aqui em curso. Isso porque, sua primeira discussão sobre liberdade a associa à ação: a liberdade de fazer ou não fazer algo. Segundo o filósofo, quando deliberamos estamos dando curso a nossa vontade (aos nossos apetites ou medos). Mesmo ao analisar situações nas quais a ação se dá sob ameaça – como no exemplo do navio que atira ao mar seus bens para se salvar –, Hobbes afirmar que a ação é produto da vontade e deve ser classificada como voluntária. Ao associar a deliberação à liberdade de ação, Hobbes suscita uma questão sobre a qual nada diz em “Os elementos”: qual é a relação entre possuir liberdade de ação e possuir o poder para agir? No texto, o filósofo igualmente não resolve o contraste entre agir “sob coação” e agir “livremente”. Ainda assim, Skinner nos mostra como ele apresenta duas hipóteses poderosas sobre a etiologia da ação, confrontando-se com o pensamento da sua época: (1) a afirmação de que a vontade nada mais é do que o nome dado ao apetite último, refutando, assim, a escolástica; e (2) a afirmação de que os antecedentes da ação são sempre precedidos pelas paixões. Com essas afirmações, Hobbes refuta um consenso ainda maior sobre a ação livre, ancorado no pressuposto filosófico de que os agentes autenticamente livres eram movidos pela razão, e não pelas paixões. Skinner nos lembra que o pressuposto em questão fundamentava a própria distinção entre agir especificamente como homem e agir na pura licença ou bestialidade. À sua época, tais afirmações estavam impregnadas pela cultura literária humanista, fortemente inspirada pelo “Timeu” de Platão, conforme observamos na obra de Erasmo. Segundo ele, agir livremente é agir à luz da razão, refreando os desejos como quem controla um cavalo “escoiceador”. Esta metáfora, presente, de acordo com Skinner, nos livros de emblemas, apresentava as paixões como cavalos praticamente indomáveis. O historiador reforça que ainda mais importante é o conhecimento da discussão platônica em inglês no mesmo período, permitindo que a distinção entre liberdade e licença – esta entendida como agir dando livre vazão às paixões – se

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encontrasse igualmente presente nos livros de emblemas. Assim, na década de 1640, tal contraste foi mobilizado por aqueles que se opunham ao crescente estado de radicalização existente no momento. Nessa direção, a recusa de Hobbes em reconhecer a distinção entre liberdade e licença foi considerada um ultraje à época. Conforme argumenta Skinner, o filósofo insistiu no ponto em duas defesas:

Um agente livre, Hobbes reitera, é simplesmente alguém que “pode escrever ou se abster, falar ou silenciar, de acordo com sua vontade”. Ademais, dizer de um agente tal que ele age de acordo com sua vontade é o mesmo que dizer que ele foi levado a agir por seus apetites, porque “o apetite e a vontade nos homens e nos animais” são “a mesma coisa”. É com essas observações, escandalosamente reducionistas sobre a geografia da alma humana, que Hobbes concluir sua defesa (SKINNER, 2010, p. 50).

Hobbes fará, ainda em “Os elementos”, uma apresentação do estado de natureza, afirmando ser um estado de liberdade natural. Skinner mostra que ainda que os críticos tendam a afirmar sua definição de liberdade natural como a ausência de obrigação, ou seja, em termos puramente negativos, Hobbes geralmente a descreve como a capacidade de “usar nosso poder e habilidades naturais” e “de se governar por sua vontade e poder próprios”. Nessa direção, o filósofo descreve a liberdade natural em termos positivos. Entretanto, Skinner sustenta como ainda mais desafiador o modo como Hobbes estipula uma equivalência entre liberdade natural e direito natural. Conforme argumenta, a natureza humana é centrada na preservação da vida. Mais do que uma tendência, Hobbes nos mostra como o princípio fundamental dos homens é o direito a isso. Seu argumento parte, segundo o historiador, de uma apropriação inteligente da escolástica: tudo o que não é contra a razão pode ser descrito como direito. Sendo assim, nossa liberdade natural – descrita como a liberdade para utilizar nossos próprios poderes e habilidade naturais – deve equivaler ao direito de nos preservarmos em todas as circunstâncias. Dessa forma, Hobbes concorda com a ideia de que a liberdade de natureza outorga a todos o direito de agir como lhes apraz, contando com um lugar comum na literatura política da época: a defesa da liberdade natural era amplamente aceita. Contrariamente ao entendimento de Cícero, por exemplo, Hobbes, porém, defende que “é a nossa liberdade natural que constitui o principal e imediato obstáculo à nossa obtenção de qualquer uma das coisas que queremos da vida” (SKINNER, 2010, p. 55). Dessa forma, é uma contradição desejar o bem e, ao mesmo tempo, viver num estado de liberdade natural. Mesmo que a paz seja nossa necessidade básica, a guerra surge como uma tendência natural ante o fato de que os homens julgam o que é melhor para si. É precisamente neste ponto que Hobbes se

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distancia de Aristóteles, mostrando como a natureza nos condena a uma hostilidade infindável: (1) por um lado, nos encontramos competindo continuamente por recursos escassos; e, (2) por outro, nos encontramos em condição de igualdade. Skinner afirma que “O paradoxo desesperado no qual se funda a teoria política de Hobbes é que o maior inimigo da natureza humana é a própria natureza humana” (SKINNER, 2010, p. 56-57). Segundo o autor, será por meio dessa descrição que Hobbes apontará a questão central da sua teoria do Estado: todos desejamos a paz, mas nunca poderemos alcançá-la sem abrir mão da nossa liberdade natural. Assim,

Dado que nossa condição natural se caracteriza por possuirmos por inteiro essa liberdade, e por essa liberdade natural consistir no direito de agir inteiramente de acordo com nossa vontade de poderes, segue-se que deve haver dois caminhos diferentes pelos quais ela pode ser confiscada: podemos perder ou a capacidade ou o direito de agir segundo nossa vontade e poderes (SKINNER, 2010, p. 57).

Skinner enumera os modos pelos quais Hobbes aponta as possibilidades de perdermos ou a liberdade ou a capacidade a agir. Nessa direção, um meio de perdermos nossa capacidade repousa nos perigos decorrentes do estado de natureza. Outro meio, mais radical, é nos torarmos presas de guerra. Na outra ponta, uma maneira de perdermos nossa liberdade decorre não da perda da capacidade, mas do direito de agir conforme nossa vontade e poderes, “É o que acontece quando escolhemos limitar nossa própria liberdade pactuando de maneira tal a excluir ou proibir seu exercício” (SKINNER, 2010, p. 59). É precisamente aqui que surge o grande tema da reflexão hobbesiana: o pacto que limita a liberdade natural pela promessa de agir de acordo com os termos do seu pacto. Essa perda da liberdade não é decorrente da nossa mera decisão particular. Se assim o fosse, haveria a possibilidade de mudarmos de ideia. Contrariamente, reforça Skinner, no momento em que concordamos em estabelecer o contrato ou convenção nossa liberdade de executar ou não executar desaparece. Hobbes enfatiza que a convenção mais importante é aquela que restringe a nossa liberdade natural ao sujeitar-nos aos imperativos da lei e do governo: um grande número de pessoas pactua sua própria submissão, criando, assim, o “corpo composto”, sendo a “política” o nome escolhido pelo filósofo para descrever as leis necessárias para governar. Skinner argumento que Hobbes é um dos primeiros filósofos ingleses a conceber a “política” como a arte de governar as cidades, por ele concebida como “uma pessoa”, concepção não compreendida pelos teóricos que analisaram o tema da soberania. Nos capítulos 20 e 21 de “Os elementos”, Skinner mostra como Hobbes discutirá as convenções que estabelecem corpos políticos por instituição arbitrária – quando os membros

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de uma multidão reúnem-se e consentem abrir mão de sua liberdade para garantir a segurança e a paz –, para posteriormente considerar, no capítulo 22, a dominação por aquisição. Neste ponto, Hobbes recupera o que já havia afirmado anteriormente, ao entender a submissão neste caso como um pacto firmado entre aquele que subjuga e quem é subjugado. Logo, “Ao tratar o despotismo como uma forma legal de monarquia, Hobbes deixa bem claro que seu objetivo básico é justificar a soberania absoluta” (SKINNER, 2010, p. 64). O filósofo fala do direito de dominação absoluta do conquistador sobre o conquistado para mostrar como as diferentes maneiras de se perder a liberdade natural estabelecem Repúblicas distintas. No entendimento do autor,

Quando somos escravizados, perdemos nossa liberdade natural de agir segundo nossa vontade porque ficamos praticamente sem poder algum até mesmo de agir. Porém, se pactuamos, somente perdemos aqueles elementos de nossa liberdade natural que, se conservados, iriam solapar nossa própria segurança e o valor geral da paz (SKINNER, 2010, p. 65).

Segundo o historiador, essa é precisamente a distinção entre a condição do súdito e do escravo da qual nos fala Hobbes. Diferentemente do escravo, ao consentir a perda da liberdade natural, o súdito conserva a liberdade de movimento. Além disso, ele consente para obter a paz e seus benefícios, o que implica a conservação de certas liberdades específicas, como agir em defesa do seu próprio corpo e ter acesso a todas as condições necessárias para viver (água, fogo, ar libre, lugar para viver). Logo,

Seu objetivo fundamental é sublinhar que, quando estabelecemos como convenções submetermo-nos a uma cidade ou a um corpo político, basicamente renunciamos e abrimos mão da liberdade característica do estado de natureza. Se algum outro elemento da liberdade natural permanecer conosco, isso somente se deve à permissão daqueles que agora exercem o poder soberano. [...] Toda liberdade remanescente reflete simplesmente o fato de que nenhuma lei foi promulgada para limitar seu exercício. Mas está sempre dada ao soberano a possibilidade de fazer, quando quiser, uma tal lei, e nunca poderá haver apelo algum contra ela que o soberano não possa rejeitar. Aquilo de que agora gozamos nada mais é do que “a liberdade que a lei nos deixa” (SKINNER, 2010, p. 66).

Em consonância com sua proposta metodológica, Skinner recupera o debate intelectual à época para mostrar como Hobbes toma partido das discussões em voga. Segundo o historiador, haviam três diferentes correntes de pensamento sobre a relação entre liberdade, submissão e servidão. (1) Hobbes “preocupa-se particularmente com as concepções dos monarquistas moderados ou ‘constitucionais’, segundo os quais não é necessariamente incompatível viver como homens livres e submetidos ao governo de reis” (p. 70). As contendas

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entre os juristas da Coroa e a Câmara dos Comuns na primeira metade do século XVII manifestam, de acordo com Skinner, tais alegações. Conforme expressa o porta-voz da Câmara do Comuns, havia a preocupação de que a Coroa estivesse lançando mão de prerrogativas que reduziriam os súditos do status de homens livres à condição de servidão. O historiador nos situa no debate, mostrando como os desejosos em amenizar essa ansiedade, sem deixar de sustentar a autoridade do rei, tinham à mão os argumentos de , difundidos pela tradução de “République” para inglês, realizada por Richard Knolles em 1606. Bodin concede que se estamos falando de súditos sob uma monarquia “senhorial”, então não podemos falar de “liberi homines”, pois o príncipe torna-se senhor dos bens e dos seus súditos, assim como o senhor de uma família governa seus escravos.

Contudo, Bodin insiste que sob “uma monarquia legal ou régia” não há necessariamente colisão entre a soberania do governante e a liberdade de seus súditos. Isso porque, “um monarca régio ou rei, instalado na soberania, sujeita a si mesmo às leis da natureza”, e está, assim, obrigado a promover o bem comum. Em decorrência disso, seus súditos estão em condições de gozar da “liberdade natural, e da propriedade dos bens”, estando todos “educados em liberdade, e não abastardados pela servidão” (SKINNER, 2010, p. 71).

À medida que a disputa entre a Coroa inglesa e o Parlamento se agravava, Skinner relata como o governo procurou repetidamente acalmar as duas Câmaras com argumentos similares aos de Bodin, endossando a possibilidade de conciliarmos o direito do rei e a liberdade do povo. (2) A segunda corrente de pensamento sobre a relação entre liberdade, submissão e servidão constitui interesse maior de Hobbes. Tratava-se de um elemento mais radical da teoria constitucional de sua época, que afirmava que “somente é possível viver como homens livres sob reis se a monarquia toma uma forma constitucional específica, a de ‘governo que eles pensam como uma mistura das três espécies de soberania’” (SKINNER, 2010, p. 72). Skinner nos mostra como Hobbes cita o célebre ataque de Bodin aos Estado mistos, onde a concepção de Gasparo Contarini de um “quarto tipo” de constituição – definido pela mistura da monarquia, aristocracia e democracia – é defendido como garantidor da liberdade do cidadão. (3) A terceira corrente mobilizada por Hobbes ocupa, contudo, ainda mais sua atenção:

Hobbes também estava muito preocupado com a versão ainda mais radical da ideia de que somente é possível viver como um homem livre sob uma única forma particular de governo. De acordo com essa outra corrente da teoria constitucional de seu tempo, o único meio de preservar nossa liberdade é viver em um “Estado livre”, um estado no qual somente as leis imperam, e no qual todos dão seu consentimento ativo às leis que a todos obrigam. Em outras palavras, sustentava-se ser essencial viver em uma democracia ou em uma República que se autogoverna, em oposição a qualquer forma de regime monárquico ou mesmo misto (SKINNER, 2010, p. 75).

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Segundo Skinner, foi o prestígio da “Política” de Aristóteles que desempenhou papel mais importante na difusão dessa concepção de governo livre na Inglaterra do início do século XVII, por meio da sua tradução para o inglês em 1598. Aristóteles contrasta a condição de liberdade com a escravidão, afirmando que nos estados livre os homens vivem como desejam. Conforme Hobbes irá afirmar posteriormente no “Leviatã”, tal concepção sobreviveu entre os romanos, sendo o tirano e o rei nomes odiosos para os que “escreveram no Estado romano”, como o exemplo do historiador Tito Lívio. Skinner mostra como as celebrações nostálgicas do civitas libera tiveram um impacto considerável na teoria política inglesa na geração que antecede a guerra civil. Entretanto, ainda mais importante foi a tradução para o inglês dos Discorsi de Maquiavel, realizada por Edward Dacres no mesmo período, obra a qual Hobbes tinha acesso na biblioteca Hardwick. Nessa versão, fazia-se Maquiavel dizer que existem governos exercidos em benefício dos governados e governos exercidos apenas em benefício do governante. As Repúblicas seriam exemplos do primeiro tipo, ao passo em que os principados do último. Assim, nunca podemos esperar viver em liberdade sob o domínio de um príncipe. Isso significa, de acordo com Skinner, que Maquiavel está interessado em mostrar como os que caem na servidão podem tornar-se novamente livres, ou seja, como podemos passar de uma forma monárquica para uma República.

Pode-se, pois, dizer que, com sua tradução dos Discorsi, Edward Dacres forneceu às elites governantes inglesas – no momento em que elas já estavam profundamente descontentes com seu governo – uma exposição magistral da presentão mais explosiva associada aos protagonistas dos Estados livres: que, como Maquiavel o exprime, se, e somente se, um povo tem “em mãos as rédeas de seu governo ele pode ser descrito como vivendo livre da servidão” (SKINNER, 2010, p. 81).

Logo, uma das principais ambições de Hobbes em “Os elementos” é precisamente desacreditar as teorias constitucionais que campeavam o debate político à época. O inventário realizado por Skinner é poderoso. Por meio de uma acurada pesquisa história, o autor consegue situar o debate de Hobbes a partir de inimigos políticos concretos, além apresentar como o filósofo teria, ao longo de sua obra, reformulado o próprio conceito de liberdade. Skinner nos mostra, assim, como Hobbes constrói sua noção de liberdade fundamentalmente em reação à teoria republicana da liberdade, definindo a liberdade como ausência de impedimentos externos ao movimento, impedimentos que nos retirem a capacidade de agir conforme nossa vontade e poderes, contra a noção republicana de que a liberdade deve

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ser pensada como um status. Interessa, contudo, retermos o modo como Skinner conclui seu ensaio. O historiador enfatiza como os esforços de Hobbes à época foram duramente criticados, conforme lemos na manifestação exemplar a teoria republicana presente em Oceana, de James Harrington. De fato, lembra Skinner, a definição de Hobbes para a liberdade faz afirmações limitadas ao concentrar- se exclusivamente nos impedimentos externos, ignorando a coerção das vontades. É neste ponto, porém, que o historiador mobiliza o debate por ele traçado acerca da liberdade dentro da conjuntura contemporânea, mostrando como ele próprio se permite ir além dos contextos históricos particulares. Nas palavras de Skinner,

Contudo, ultimamente, mesmo a afirmação mais limitada de Hobbes tem gozado de uma voga considerável, pelo menos no pensamento jurídico e político de língua inglesa. Se, ademais, nos concentrarmos em sua convicção fundamental – que a liberdade é simplesmente ausência de interferência –, descobriremos que ela é tratada amplamente como um artigo de fé. Considere-se, por exemplo, a discussão sobre a liberdade, mais influente da teoria política de língua inglesa dos últimos cinquenta anos, o ensaio de Isaiah Berlin, “Os dois conceitos de liberdade”. Berlin toma como incontestável que o conceito de interferência deva ser central em qualquer explicação coerente da liberdade humana. Se vamos falar, como afirma, das restrições de nossa liberdade, devemos ser capazes de apontas para algum intruso, para algum ato de violação, algum impedimento ou obstáculo real que serve para inibir o exercício de nossos poderes (SKINNER, 2010, p. 194-195).

O historiador recupera como os teóricos republicanos diriam que essa tradição de pensamento negligenciou um amplo leque de impedimentos à ação livre, apontando a dependência como elemento que nos retira o status de homens livres. Tais teóricos também estão, de acordo com Skinner, preocupados com a condição de servidão que favorece o servilismo. Isso porque, “Se vive à mercê de outrem, você sempre terá os motivos mais fortes para não correr riscos. Em outras palavras, haverá muitas escolhas que você estará apto a tomar, e o efeito cumulativo será a imposição de restrições consideráveis à sua liberdade de ação” (SKINNER, 2010, p. 195). Tácito talvez tenha sido, segundo Skinner, o moralista clássico que exerceu maior influência entre os pensadores republicanos no debate sobre a conexão entre escravidão e submissão servil. Argumento que pode ser igualmente encontrado em : a defesa de que existem impedimentos à nossa liberdade que não procedem nem de impedimentos físicos, nem da coerção sobre a vontade, nem mesmo do medo de que essa coerção possa ser exercida, mas simplesmente da condição de dependência em que o escravo se encontra. O historiador acredita que Hobbes, contrariamente, reforça no Leviatã a defesa de que se nossa liberdade for solapada devemos ser capazes de apontar algum impedimento

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identificável. De fato, Hobbes venceu a batalha contra a teoria republicana. Skinner, porém, interroga: “Mas continua valendo a pena perguntar se ele venceu o argumento” (p. 197). Silva (2008) realiza, conforme discutido no capítulo anterior, uma interessante aproximação entre a perspectiva historiográfica de Skinner e o projeto normativo de Pettit. O autor recupera como em sua reconstrução histórica do conceito de liberdade, Skinner curiosamente identifica na obra de Hobbes – seguramente em muito distante do liberalismo contemporâneo –, a origem da noção de liberdade negativa, assim como debatemos acima. Nessa direção, de acordo com suas, Hobbes enfrentou os adeptos da teoria republicana do seu tempo (ou teoria “neo-romana”, como prefere Skinner), com o objetivo de forjar argumentos na defesa da coroa contra as pretensões do parlamento. A obra de Maquiavel foi, sem dúvida, a que mais influenciou as concepções de liberdade presentes no neo-republicanismo combatido por Hobbes, ao apontar o papel dos conflitos sociais na criação de leis e na manutenção da liberdade. Nas palavras de Silva,

Maquiavel não apenas rejeita a oposição entre lei e liberdade, tão cara à interpretação liberal da liberdade negativa, como também sugere que uma coisa não pode existir sem a outra. Para Maquiavel, como para os romanos antigos, a liberdade representava um status no âmbito do qual o cidadão poderia perseguir livremente os objetivos de sua escolha, inclusive aqueles que permaneciam distantes da vida pública, tais como usufruir de suas propriedades e cultivar suas relações com amigos e familiares (SILVA, 2008, p. 177, grifo do autor).

Silva entende que num certo sentido Maquiavel defende um tipo de “liberdade negativa” que será posteriormente retomado nas formulações de Skinner e Pettit. Assim, conforme aponta Skinner, a obra de Maquiavel nos mostra a necessidade da virtude cívica e da participação como meios para assegurar a liberdade, o que não nos permite aproximar o filósofo da concepção positiva de liberdade. Isso porque, virtude cívica e participação são necessários, mas continuam sendo apenas meios. Segundo Silva, Skinner teria sido, dessa forma, influenciado pela proposta de Pettit acerca da existência de um conceito de liberdade não redutível à contraposição entre liberdade positiva e liberdade negativa. Isso porque, Pettit define a liberdade tomando como foco a ausência, não de “interferência”, tal como na formulação liberal, mas de “domínio”. Em outras palavras, a liberdade seria pensada como “não-dominação”, concepção que possui tradição e status conceitual próprios. Ainda que beneficiado pelo neo-republicanismo e sua reconstrução histórica, o que está em jogo na proposição de Pettit é, alerta Silva, uma disputa conceitual com evidentes implicações normativas. O filósofo compartilha das preocupações liberais acerca da liberdade

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positiva, optando por uma definição do conceito centrada na ausência e não na presença de algo. Contudo, refere-se a algo distinto.

Enquanto o liberalismo de Berlin enfatiza a ausência de qualquer tipo de interferência intencional de terceiros como o critério da liberdade individual, Pettit destaca que não é qualquer forma de interferência intencional que se revela como incompatível com a liberdade republicana, mas exclusivamente aquelas formas de interferência que podem ser qualificadas como arbitrárias. E interferência arbitrária, para o autor, é uma expressão sinônima de dominação. Daí a fórmula sintética adotada por Pettit da liberdade como ausência de dominação, ou, simplesmente, liberdade como não- dominação” (SILVA, 2008, p. 181, grifo do autor).

É importante frisar, em consonância com Silva, que sua definição é dotada de maior riqueza do ponto de vista constitucional e sociológico. Isso porque, na defesa do seu argumento, Pettit mobiliza duas situações: (1) a relação entre o senhor benevolente e o escravo afortunado, imagem já utilizada pelo republicanismo clássico e presente no estudo de Skinner (1999). Nela Pettit aponta que mesmo não encontrando interferência “de fato”, tal como na definição liberal, encontramos a ausência de um status de liberdade; e (2) a existência de leis que condicionam a escolha dos cidadãos, mas de forma consentida. Logo, ainda que representem interferência na ação, Pettit defende que tais leis não representariam uma interferência arbitrária, pois dizem respeito aos “interesses comuns assumidos” por uma comunidade. O ponto é particularmente interessante, sobretudo quando pensamos na sua relação com os outros dois elementos mobilizados anteriormente na definição de república: o “governo das leis” e a “autoridade”. Em consonância com o debate aqui em curso, tal definição de liberdade não é incompatível com a existência de leis e a autoridade política. Dessa forma, Pettit aponta a manutenção do status de liberdade como o problema central da política republicana, recusando, de acordo com Silva, o enquadramento de toda e qualquer forma de interferência como restrição, visto que a lei pode atuar como garantidora da liberdade. Em defesa do seu argumento, Pettit aponta duas modalidades de interferência arbitrária: (1) o dominium, que refere-se à presença da dominação entre concidadãos; e (2) o imperium, que refere-se à interferência arbitrária dos detentores do poder sobre os cidadãos. Ambas são perniciosas, mas Pettit admite que no dominium os cidadãos podem recorrer ao próprio Estado em sua defesa – seja reivindicando que a lei atribua poder ao dominado, seja aumentando os custos das escolhas do agente dominante –, ao passo em que no imperium os cidadãos encontram uma ameaça maior. Surge, assim, uma importante questão:

Como evitar que o Estado e a lei, pretensos guardiões da liberdade, tornem-se fontes de dominação e de redução da liberdade dos cidadãos? A resposta de Pettit articula-se

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em torno da defesa do constitucionalismo e da democracia contestatória como as formas típicas do Estado republicano (SILVA, 2008, p. 185).

Mais uma vez, a proposta de Pettit aciona elementos já discutidos aqui na definição do ideal de república, como o caso do constitucionalismo e da participação. Sua definição de regime constitucional repousa, todavia, em três elementos: (1) a manutenção de um “império de lei e não de homens”, tal como na frase de Harrington. Característica que cobra a existência de leis com aplicabilidade universal, inclusive sobre os próprios legisladores e governantes, ponto debatido na primeira seção do capítulo a partir da definição aristotélica de “bom governo”. Ou seja, mesmo admitindo que num governo deve existir margem para a ação do governante, Pettit reconhece que a república estará mais protegida da interferência arbitrária quando submeter seus governantes ao processo legal; (2) os poderes legais devem ser distribuídos entre diferentes partidos. Aqui emerge, conforme destaca Silva, uma discussão fortemente presente na tradição republicana acerca da “Constituição mista” e da separação dos poderes81; e (3) deve existir uma lei relativamente resistente à vontade da maioria. Trata-se, segundo Pettit, da construção de leis contra-majoritárias, impedindo excessivas e facilitadas mudanças na lei decorrentes dos humores da maioria. Conforme destaca Silva, “O autor sugere ainda que a boa jurisprudência, ao recusar as imposições das maiorias circunstanciais, deveria buscar legitimidade recorrendo às leis que os costumes de determinadas comunidades consolidaram ao longo de sua história” (SILVA, 2008, p. 187). A aproximação entre Skinner e Pettit é proveitosa para os propósitos aqui em curso, notadamente por dois motivos: (1) por um lado, ambos os autores manifestam a retomada de um conceito de liberdade caro aos propósitos desta tese, precisamente porque seu exercício não se mostra incompatível com a existência de leis e da autoridade, contanto que ambas não atuem de maneira arbitrária no controle das ações; (2) por outro, flerte entre seus estudos manifesta o diálogo proveitoso entre a perspectiva historiográfica e a pretensão normativa. Na próxima seção avanço no argumento apresentando o quarto elemento para a definição de república, a saber, uma forma de governo que deriva a obrigação política não apenas de decisões racionais e voluntárias, tal como na perspectiva contratualista, mas sim da existência de laços de reciprocidade moral.

81 O tema da “constituição mista” figura, por certo, como inescapável a qualquer reflexão sobre a república. Aqui, contudo, optei por incluir apenas o “governo das leis” como elemento definidor, dada a pluralidade de concepções presentes nesta tradição. Para um exame mais aprofundado, ver: Araujo, 2013.

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3.4 A República como “reciprocidade moral”

Ao lado do governo das leis, da autoridade política e da liberdade como não-dominação, o quarto elemento para a definição de um ideal normativo de república aponta a existência de outras fontes de obrigação moral que não o contratualismo. Em linhas gerais, o modo como Michael Sandel constrói sua crítica ao projeto liberal originalmente formulado por Locke, mas posteriormente elaborado por Kant, e mais especificamente por Rawls, fornece preciosa pista para pensarmos a república como uma forma de governo pautada nas obrigações de solidariedade, e não no consentimento racional (SANDEL, 2005; 2012a; 2012b). Sandel compreende o liberalismo na sua versão dominante como aquele no qual as noções de justiça, equidade e direitos desempenham um papel nuclear e que encontra em Kant sua fundamentação filosófica. Sua ética defende o primado do justo sobre o bom, opondo-se, por conseguinte, ao utilitarismo de Mill. De acordo com Sandel, esse “liberalismo deontológico” é, acima de tudo, uma doutrina acerca da justiça e sua tese principal pode ser assim definida: “sendo a sociedade composta por uma pluralidade de pessoas, cada uma com os seus objectivos, interesses e concepções do bem, estará mais bem organizada quando for governada segundo princípios que, em si mesmos, não pressupõem uma qualquer concepção do bem” (SANDEL, 2005, p. 21). A justiça no liberalismo não surge da maximização do bem-estar social – conforme defende o utilitarismo –, mas do primado do justo sobre o bem. É precisamente contra este liberalismo e sua concepção de justiça que Sandel dirige sua crítica, preocupado em mostrar seus limites conceituais e não práticos. Em outras palavras, o problema posto pela concepção liberal de justiça não reside, segundo Sandel, apenas na sua incompletude prática – a defesa de que a justiça está por se realizar –, mas sim na visão defeituosa de justiça que sustenta. Kant sustenta que a justiça é um valor primário que antecede os demais interesses. Sendo assim, o primado da justiça resume-se, segundo o filósofo, ao entendimento de que “a virtude da lei moral não reside no facto de promover um objectivo ou um fim qualquer que se presume ser bom. Ela é, pelo contrário, um bem em si mesma, que precede todos os demais objectivos ou fins, sendo igualmente responsável pela sua regulamentação” (SANDEL, 2005, p. 23). A partir daí, Sandel sugere dois sentidos diferentes de deontologia: (1) um sentido moral (oposto ao consequencialismo), descrevendo uma ética que comporta deveres e proibições categóricos que assumem precedência incondicional sobre as demais preocupações morais e práticas; (2) um sentido fundacional (oposto a teleologia), descrevendo um tipo de justificação

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que não pressupõe qualquer finalidade ou propósito humanos, nem é determinada por qualquer concepção de bem para o homem. Sandel nos mostra como Mill defendia a separação de ambos os aspectos, ao afirmar que o direito é uma obrigação da sociedade para com os indivíduos. Dessa forma, a justiça emerge como mais importante obrigação moral da sociedade, não com base num direito abstrato, mas de acordo com a escala de utilidade social. Logo, “A importância primordial da justiça e dos direitos torna estes últimos ‘mais absolutos e mais imperativos’ do que quaisquer outras reivindicações. Contudo, aquilo que faz com que sejam importantes é, em primeiro lugar, o serviço que prestam à utilidade social” (SANDEL, 2005, p. 24). Kant, ao contrário, entende os dois aspectos da deontologia como interligados e aponta pelos menos duas objeções ao utilitarismo de Mill: (1) seus alicerces não são fiáveis; e (2) em matéria de justiça, alicerces não fiáveis podem ser coercitivos e injustos. Nessa direção,

O utilitarismo não é fiável na medida em que nenhum fundamento meramente empírico, seja ele utilitário ou outro, é capaz de assegurar o primado da justiça e a inviolabilidade dos direitos individuais. Um princípio que tenha de pressupor certos desejos e inclinações não pode deixar de se encontrar tão condicionados quanto esses mesmos desejos. No entanto, uma das características dos nossos desejos e dos meios de que dispomos para os satisfazer é o facto de variarem, quer de pessoas para pessoa, quer, na mesma pessoa, de um momento para outro (SANDEL, 2005, p. 25).

Dessa forma, sempre existirão casos em que o bem-estar geral se sobreponha à justiça, ao invés de assegurá-la. Sandel reforça como Mill questionará tal concepção demasiadamente incondicionada de justiça, apontando a possibilidade de casos particulares assumirem uma tal importância a ponto de se sobreporem a qualquer das máximas gerais da justiça. Para Kant, porém, qualquer não-afirmação do primado da justiça conduz à injustiça e à opressão.

Ainda que fosse partilhado universalmente, o desejo de felicidade não poderia constituir o fundamento da lei moral. As pessoas continuariam a ter concepções diferentes acerca da natureza da felicidade. Instaurar como regra geral uma destas concepções particulares significaria impor a alguns as concepções de outros. O que equivaleria a negar-lhes a liberdade de promoverem as suas concepções próprias. Conduziria à criação de uma sociedade na qual algumas pessoas se veriam coagidas a adoptar os valores de outras, em vez de uma outra na qual as necessidades de cada um se harmonizam com os objectivos de todos (SANDEL, 2005, p. 26).

Sandel assim resume a proposta de Kant: o princípio da justiça exige um fundamento anterior a todas as finalidades empírica, não podendo inclusive ser alicerçado em qualquer espécie de união fundada num objetivo comum. Segundo o filósofo, “Só quando eu me governar por princípios que não pressupõem quaisquer fins particulares é que eu serei livre para perseguir

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os meus próprios fins, desde que igual liberdade seja assegurada para todos” (SANDEL, 2005, p. 27). Nessa direção, Kant entende que a prioridade moral da justiça é viabilizada pela prioridade fundacional, mostrando como a justiça deve erguer-se numa posição privilegiada face ao bem, estabelecendo, inclusive, os seus limites. A questão a partir daí é, enfatiza Sandel, apontar precisamente o fundamento da justiça, o que Kant fará recorrendo ao seu conceito de sujeito racional: o fundamento da lei moral encontra-se no sujeito, racional e autônomo, e não no objeto da razão prática. Logo, “Na perspectiva deontológica, o que importa, acima de tudo, não são os fins que escolhemos, mas a nossa capacidade de os eleger. E, sendo anterior a qualquer fim particular, é no sujeito que reside esta capacidade” (SANDEL, 2005, p. 28). Esse sujeito é anterior e independente de seus atributos, visão que independe da teleologia e da psicologia. Ou seja, “Do mesmo modo que o justo é anterior ao bom, assim também o sujeito é anterior aos seus fins” (ibidem, p. 29). Sandel descreve como Kant apresenta, em defesa da sua concepção de sujeito, um argumento prático que aponta o a distinção entre o eu enquanto sujeito da experiência que habita o mundo inteligível ou suprassensível, e o eu quanto objeto da experiência, determinado pelas leis da natureza. O sujeito é, conforme defende Kant, autônomo e capaz de definir suas próprias leis, ao passo em que no mundo empírico ele é fruto de uma série de determinações prévias. A deontologia kantiana afirma, assim, a existência de um sujeito anterior e independente da experiência, portador de uma vontade livre.

O seu fundamento radica no conceito de um sujeito que é dado antes dos seus fins, considerado indispensável para o nosso conhecimento e nós próprios enquanto seres capazes de fazerem opções livres. E a sociedade encontrar-se-á melhor organizada quando for governada por princípios que não pressupõe uma concepção particular do bem, uma vez que qualquer outro ordenamento seria incapaz de respeitar as pessoas enquanto seres capazes de escolher. Em qualquer outro ordenamento, as pessoas seriam tratadas como objectos, em vez de sujeitos, como meios, em vez de fins em si mesmos (SANDEL, 2005, p.31).

Sandel entende que os mesmos temas deontológicos estão presente em grande parte do pensamento liberal contemporâneo, como em Rawls e Dworkin. Em linhas gerais, esses autores apreendem os direitos como garantias contra eventuais imposições dos governos, fazendo com que o liberalismo declare sua independência com relação a controvérsias tradicionais da teoria política, notadamente no debate sobre a natureza humana e o significado da vida boa. Tal defesa foi apresentada na introdução deste capítulo, por meio do diagnóstico sobre a modernidade construído por MacIntyre. No entanto, Sandel alerta para o fato de que o liberalismo depende, igualmente, de uma concepção de sujeito e do modo como ele se constitui.

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Nesse sentido, o liberalismo deontológico pressupõe que somos capazes de – ou, melhor, que temos de – nos perspectivar como independentes. Pela minha parte, defenderei que não somos capazes e que, é no carácter parcial desta auto-imagem que se poderão encontrar os limites da justiça. Neste contexto, são duas as questões que se colocam: identificar como é que estas falhas arruínam o primado da justiça e que virtude alternativa emerge quando nos deparamos com os seus limites? (SANDEL, 2005, p. 32-33).

Um dos desafios que se ergue contra a perspectiva kantiana aponta a impossibilidade do sujeito neutro, afirmando jamais sermos capazes de escapar por inteiro dos nossos condicionantes. Dessa forma, a prioridade do sujeito só pode significar a prioridade do indivíduo da tradição liberal, colocando como limites da justiça a possibilidade de cultivar valores subjacentes à cooperação que tornem o conflito menos dramático. “Em resumo, a falsa promessa do liberalismo é o ideal de uma sociedade governada por princípios neutros. Afirma valores individualistas, ao mesmo tempo em procura uma neutralidade que jamais poderá alcançar” (SANDEL, 2005, p. 33-34). Porém, Sandel entende que em muitos aspectos a objeção sociológica não compreende a força do argumento deontológico. (1) Em primeiro lugar, a neutralidade apregoada pelo liberalismo não pretende dirimir todos os valores e todos os fins possíveis, mas sim derivar princípios independentemente de valores ou fins quaisquer. Logo, a neutralidade descreve o fundamento e não o efeito. (2) Em segundo, a prioridade do sujeito não significa que sejamos governados pelo egoísmo. “Na perspectiva da justiça, eu sou livre de procurar o meu próprio bem, ou o bem de outros, desde que não pratique a injustiça” (SANDEL, 2005, p. 24). (3) E por fim, a independência do sujeito não afirma que eu possa a qualquer momento distanciar-se das minhas determinações, mas sim que meus valores e fins não definem a minha identidade, sejam eles quais forem. Ainda que o sujeito transcendental kantiano seja problemático, a objeção sociológica não parece, todavia, capaz de superá-lo. Uma segunda objeção ao sujeito transcendental kantiano pretende reformulá-lo sem, contudo, incorrer no idealismo transcendental. Sandel aponta como essa deontologia revisionista está presente na obra de John Rawls, que apesar de identificar vantagens morais e política na proposta kantiana, entende que a metafísica idealista acaba por fazer com que a conquista da justiça negue a condição humana. Assim, Rawls preserva os ensinamentos deontológicos, mas substitui as obscuridades germânicas por uma metafísica domesticada. A proposta de Sandel é, precisamente, encontrar saídas para o sofisticado projeto de Rawls. Sandel defende a conexão da reflexão filosófica com os problemas que radicam nas paredes da “caverna” (2012a). Em clara alusão ao modo como Platão rejeita o conhecimento

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sensível na montagem do seu argumento, tal como discutimos no primeiro capítulo, Sandel ocupa-se da apresentação de exemplos a partir de dilemas morais concretos. Nessa direção, em “Justiça: o que é fazer a coisa certa” (SANDEL, 2012a), o autor ampliará o debate sobre a importância de desenvolvermos vínculos outros que não o contrato liberal clássico. Ao discutir a questão das ações afirmativas para o ingresso no ensino superior, Sandel nos lembra como em geral os argumentos apresentados contra a política questionam sua violação da garantia constitucional de proteção igual para todos (SANDEL, 2012a). Para além desse argumento, o autor nos pergunta: “é injusto considerar raça e etnia fatores prioritários no mercado de trabalho e na admissão à universidade?” (ibidem, p. 210). Conforme apresenta, os defensores da ação afirmativa sustentam três razões: (1) a correção de distorções em testes padronizados; (2) a compensação por erros do passado; e (3) a promoção da diversidade. É por meio do exame dessas razões que o autor sustentará uma visão de justiça em consonância com o debate aqui em curso. (1) Sobre o primeiro argumento, Sandel é sucinto ao afirmar que a adoção de testes padronizados deve levar em consideração os antecedentes históricos e familiares dos indivíduos, com o objetivo de auferir com maior acerto as potencialidades individuais de cada estudante. Este não é, segundo o autor, o principal debate por trás da adoção das políticas de ação afirmativa. (2) Já de acordo com o segundo argumento, sobre a compensação dos erros do passado, indivíduos que pertencem às minorias devem, reforça o autor, ter preferência para que possamos compensar o histórico de discriminação que os coloca em posição de inferioridade. Sandel aponta como os críticos objetam que os beneficiados no presente não são necessariamente os que sofreram no passado, além do que os que acabam pagando pela compensação raramente são os responsáveis pelos erros que estão sendo corrigidos. Logo, se a questão for ajudar pessoas em desvantagem, argumentam os críticos, o critério deveria basear- se na classe social e não na raça. Assim,

A resposta a essa objeção depende do difícil conceito de responsabilidade coletiva: temos a responsabilidade moral de corrigir erros cometidos por uma geração anterior à nossa? Para responder a essa pergunta, precisamos entender melhor a origem das obrigações morais. Temos obrigações apenas como indivíduos ou algumas obrigações nos são impostas como membros de comunidades com identidades históricas? (SANDEL, 2012a, p. 212).

A questão da origem das obrigações morais será melhor trabalhada pelo autor adiante e constitui, com efeito, o núcleo do argumento desenvolvido nesta seção. (3) Por outro lado, o terceiro argumento, sobre a promoção da diversidade, não trata, afirma Sandel, a admissão do

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beneficiado como uma recompensa, mas sim como um meio de atingir um objetivo socialmente mais importante. A perspectiva traz para a discussão a noção de telos há pouco debatida. Nas palavras do autor,

O princípio da diversidade se justifica em nome do bem comum – o bem comum da própria faculdade e também da sociedade em geral. Primeiro, defende que um corpo estudantil com diversidade racial permite que os estudantes aprendam mais entre si do que se todos tivessem antecedentes semelhantes. Assim como um corpo discente cujos componentes pertencessem a uma só área do país limitaria o alcance das perspectivas intelectuais e culturais, o mesmo aconteceria com um corpo estudantil que refletisse homogeneidade de raça, etnia e classe social. Em segundo lugar, o argumento da diversidade considera que as minorias deveriam assumir posições de liderança na vida pública e profissional, porque isso viria ao encontro do propósito cívico da universidade e contribuiria para o bem comum (SANDEL, 2012a, p. 213).

Sandel aponta como uma objeção prática ao argumento da diversidade o questionamento acerca da eficiência da ação afirmativa, afirmando que a política tenderá a afetar a autoestima dos estudantes de grupos minoritários – debate presente entre nós –, além de acirrar a insatisfação dos grupos étnicos brancos que se consideram injustiçados – conforme o exemplo mobilizado pelo autor a partir da experiência norte-americana. Daí, portanto, emerge uma questão importante: as preferências raciais violam os direitos? A objeção ideológica listada por Sandel parte do princípio de que mesmo sendo importante a diversidade e que a ação afirmativa seja capaz de promovê-la, utilizar raça ou etnia como fator de admissão é injusto. O autor nos lembra como aborda a questão contra-argumentando que a ação afirmativa não viola nenhum direito individual. Isso porque, devemos perceber como a maioria dos critérios tradicionais para a admissão à universidade envolve fatores que os indivíduos não podem controlar. As universidades definem a sua missão e elegem um conjunto de aptidões que pretendem valorizas nos processos de admissão – seja a aptidão acadêmica, atlética ou qualquer outra. Uma vez definida a sua missão e estabelecidos os critérios, os candidatos têm legítima expectativa de serem admitidos caso preencham o que foi estabelecido.

Eis um argumento profundo, embora contestado, no cerne da discussão da diversidade para a ação afirmativa: a admissão não é uma honraria destinada a premiar o mérito ou virtudes superiores. Nem o aluno com as mais altas notas nos testes nem aquele que vem de uma minoria merecem moralmente ser admitidos por esses motivos. A admissão é aceitável na medida em que contribui para o propósito social ao qual a universidade serve, e não porque recompense o aluno por seu mérito ou sua virtude, considerados de forma independente (SANDEL, 2012a, p. 216).

A justiça aqui não é, portanto, uma questão de mérito moral. No desenvolvimento do

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argumento, Sandel relembra um caso da segregação racial e étnica nos EUA para exemplificar o debate. Em 1946, a Faculdade de Direito da Universidade do Texas rejeitou a matrícula de um estudante negro sob a alegação de que a universidade não admitia negros. A partir do fato, o autor questiona: se o único teste de equidade em uma política de admissão for a missão da instituição, como lidar com esses casos? Apesar das instituições públicas sofrerem maior pressão neste debate, Sandel nos lembra que quando a questão é pensarmos em dilemas morais, tanto instituições públicas quanto privadas se enquadram nos mesmos questionamentos: se universidades têm liberdade para estabelecer a promoção da diversidade como sua missão e adotar critérios de admissão que favoreçam sua missão, o que impediria que instituições adotassem missões que envolvessem critérios de exclusão racial ou restrições antissemitas? A resposta do autor é simples e óbvia: o favorecimento racial hoje em debate não insulta ninguém, como no passado insultava. Aliás,

Essa é a resposta de Dworkin: a exclusão racial da era segregacionista baseava-se na “ideia desprezível de que uma raça pode ser inerentemente mais digna do que outra”, enquanto a ação afirmativa não expressa tal preconceito. Ela afirma simplesmente que, dada a importância de promover a diversidade nas principais carreiras, ser negro ou hispânico “pode ser uma característica socialmente útil” (SANDEL, 2012a, p. 219).

Nessa direção, Sandel defende que “Se a diversidade servir ao bem comum e se ninguém for discriminado com base no ódio ou no desprezo, as preferências raciais não estarão violando nenhum direito” (SANDEL, 2012a, p. 220). Logo, ao dissociarmos justiça e mérito moral, devemos, de acordo com sua defesa, perceber que o mérito só pode ser determinado quando as instituições estabelecem a sua missão. A partir da obra de Rawls, Sandel questiona se justiça pode ser dissociada do mérito moral. Segundo o autor, existe hoje uma crença generalizada de que as oportunidades conquistadas são recompensas para aqueles que merecem. Todavia, “Essa ideia é, na melhor das hipóteses, um pouco confusa. Sua persistência cria um obstáculo à solidariedade social; quanto mais considerarmos nossas conquistas frutos do mérito próprio, menos responsabilidade sentiremos em relação aos que ficam para trás” (SANDEL, 2012a, p. 221). Assim, malgrado o debate de Rawls sobre a arbitrariedade moral, ainda parece difícil dissociar justiça de mérito moral, por duas razões centrais. (1) Primeiro, porque a justiça tem um aspecto honorífico: além de questionar quem deve merecer o que, a justiça aponta as qualidades que são merecedoras de honrarias e prêmios. (2) Em segundo, a ideia de que o mérito só existe depois que a instituição define sua missão esbarra na constatação de que as instituições

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não podem definir livremente sua missão. Isso porque, “Essas instituições são definidas, pelo menos em parte, pelos benefícios característicos que proporcionam. [...] Alguns benefícios adequam-se a determinadas instituições sociais, e ignorá-los na distribuição dos papéis seria um tipo de corrupção” (p. 222). Instituições de ensino, por exemplo, não estão preocupadas exclusivamente em promover certos fins, mas também em louvar e premiar determinadas virtudes. Seu exemplo final é assumidamente provocativo: por que não leiloar vagas em universidades? Sandel recupera o exemplo de algumas universidades norte-americanas que, pensando em promover seu desenvolvimento, admitem estudantes que tenham pais abastados que possam fazer doações consideráveis à faculdade. Levando essa ideia ao extremo, o autor propõe a hipótese de uma universidade leiloar 10% das suas vagas. Na prática, essa medida ajudaria a instituição a cumprir a sua missão, seja lá qual for, pois instituições de ensino carecem de recursos para o seu funcionamento. Sandel mostra como a resposta de Dworkin sobre a questão também não nos permite distinguir o dilema que ela envolve, pois a equidade exige apenas que ninguém seja rejeitado, discriminado. Sandel defende que a causa do desconforto, porém, tem a ver com a natureza do bem em questão: o ensino. Ainda que a educação superior tenha o objetivo de preparar os estudantes para o sucesso profissional, seu objetivo primordial não é comercial. “Portanto, vender educação como se ela não passasse de um bem de consumo é um tipo de corrupção” (SANDEL, 2012a, p. 275). Nessa direção, o diploma concedido por uma universidade é um diploma por mérito, ele está associado a uma noção de virtude. A grande divergência nessa matéria se explica pelo fato de que as pessoas têm concepções diferentes de honra e virtude, o que teria levado o pensamento moderno a abdicar de qualquer discussão sobre o telos da comunidade política. Nas palavras do autor,

A missão que devem ter as instituições sociais – sejam universidades. Corporações, exército, profissões ou comunidade política em geral – é contestável e conflituosa. Assim, é tentador procurar uma base para a justiça e para os direitos que mantenha distância dessas controvérsias. Grande parte da filosofia política moderna tenha fazer precisamente isso. [...] as filosofias de Kant e de Rawls são audaciosas tentativas de encontrar um fundamento para a justiça e para os direitos que seja neutro em relação às diferentes concepções do que venha a ser uma vida boa. É hora de ver se os projetos de ambos serão bem- sucedidos (SANDEL, 2012a, p. 226).

O debate sobre a origem das obrigações morais, manifesto no segundo argumento favorável à adoção da política de ação afirmativa debatida por Sandel, constitui, por sua vez, o objeto central desta seção. Ao lembrar dos pedidos públicos de desculpa em razão dos crimes

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cometidos durante a Segunda Guerra Mundial, o sequestro de crianças aborígenes na Austrália, ou a discussão sobre a herança da escravidão nos EUA, Sandel mostra como os três casos envolvem uma discussão sobre a responsabilidade coletiva e as reivindicações da comunidade. Segundo o autor, As principais justificativas para que se façam pedidos públicos de desculpas são honrar a memória dos que sofreram injustiças pelas mãos (ou em nome) da comunidade política, reconhecer os efeitos em longo prazo da injustiça com as vítimas e seus descendentes e reparar os erros cometidos por aqueles que infligiram a injustiça ou nada fizeram para evita-la (SANDEL, 2012a, p. 261-262).

Aqui importa, todavia, o argumento dos críticos aos pedidos de desculpas de que a geração atual não deveria desculpar-se por erros cometidos pelas gerações anteriores. Será a partir dele que Sandel apresentará uma alternativa ao individualismo moral presente no liberalismo. Segundo esta perspectiva, uma pessoa não pode pedir desculpas por algo que não fez. Independentemente do perdão envolver ou não uma indenização – pois taxar os cidadãos de hoje para recompensar financeiramente erros do passado pode ocasionar problemas adicionais –, a ideia dos críticos é, de acordo com Sandel, a mesma: a geração atual não pode ser responsabilizada moralmente pelos pecados de seus antepassados. A objeção ao pedido de desculpas se baseia em uma ideia moral interessante e convincente. Sandel assim a define:

A doutrina do individualismo moral não presume que o indivíduo seja egoísta. Na verdade, é uma declaração sobre o que significa ser livre. Para o individualista moral, ser livre é submeter-se apenas às obrigações assumidas voluntariamente; seja o que for que se deva a alguém, deve-se em virtude de algum ato de consentimento – uma escolha, uma promessa ou um acordo que se tenha feito, seja ele tácito ou explícito (SANDEL, 2012a, p. 264).

Essa concepção é, de acordo com o autor, libertadora, pois presume que somos seres livres e independentes, capazes de estabelecer nossas obrigações morais sem restrições preestabelecidas. Conforme debatemos na seção anterior, o liberalismo é responsável por uma concepção estreita de liberdade. Ainda assim, é inegável seu sucesso na conformação do imaginário moderno, conferindo uma suposta liberdade ao agir, inexistente nas sociedades tradicionais. Em razão dessa concepção, “A origem das únicas obrigações morais a que devemos obedecer é a livre escolha de cada indivíduo, e não o hábito, a tradição ou a condição que herdamos” (SANDEL, 2012a, p. 264). Nesse sentido, apenas o consentimento pode me obrigar a assumir responsabilidades, conforme observamos na concepção contratualista. Sandel entende que se o individualismo moral estiver correto, não devemos, por conseguinte, nos responsabilizar por erros do passado.

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A concepção de liberdade que alimenta essa perspectiva é responsável pelas teorias da justiça correntes nos nossos dias. Por outro lado, afirma Sandel, “Se essa concepção estiver equivocada, como acredito que esteja, então precisamos repensar alguns dos aspectos fundamentais de nossa vida pública” (SANDEL, 2012a, p. 265). O autor entende que foi quem apresentou uma das primeiras versões da livre escolha dos indivíduos como fundamento da obediência política. Segundo essa perspectiva, é porque somos livres e independentes, e não sujeitos à autoridade paternalista ou ao direito divino dos reis, que somos capazes de nos submeter ao poder político por consentimento. Kant, por sua vez, apresentou uma versão mais consistente dessa perspectiva. Confirme discutimos acima, segundo o filósofo, ser livre é ser autônomo, e ser autônomo é ser governado por uma lei que outorgamos a nós mesmos. A autonomia exige, assim, mais do que o consentimento, pressupondo uma lei moral que coloque de lado desejos e ligações particulares. Rawls é responsável pela versão mais elaborada dessa perspectiva. O autor observou como as escolhas que fazemos frequentemente refletem contingências moralmente arbitrárias, mostrando a necessidade de optarmos pelos princípios de justiça que regularão a vida política sob o que denomina um “véu de ignorância”. Conforme há pouco apresentado, Kant e Rawls concebem, assim, o “agente moral independente de seus objetivos e suas ligações particulares” (SANDEL, 2012a, p. 266). Sandel reconhece que se pensarmos a justiça desse modo, será difícil defender o pedido de desculpas ou a concessão de indenizações em reparação aos crimes do passado. Isso porque, ao abstrair minha identidade encontro-me liberto, e como eu livre e independente não há fundamento para que minha obrigação seja maior do que qualquer outra pessoa. Logo,

A noção de que somos livres e independentes reforça a ideia de que os princípios de justiça que definem nossos direitos não devem ser fundamentados em nenhuma concepção moral ou religiosa específica; ao contrário, eles devem tentar ser neutros em relação às diferentes noções do que possa ser uma vida boa (SANDEL, 2012a, p. 267.

Contrariamente, a proposta de Sandel é, conforme vimos, questionar a neutralidade da ação política. O autor nos lembra que a ideia de que o governo deve manter-se moralmente neutro diverge de concepções antigas de política. Aristóteles, tal como debatido na primeira seção deste capítulo, defendia que o objetivo da política era cultivar o bom caráter e formar bons cidadãos. Nessa direção, segundo o filósofo a definição do que é a vida boa precede a construção das leis. Todavia, atualmente a defesa de que a política deve cultivar virtudes é estranha para muitos. Isso porque, a ausência de consenso sobre o que é a vida boa pode abrir

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caminho para a intolerância e para a coerção. Kant e Rawls afirmam, com efeito, que teorias da justiça baseadas em concepções de vida boa, sejam elas religiosas ou seculares, entram em conflito com a liberdade. Isso porque, ao impor aos indivíduos valores, o Estado anula a independência e a liberdade. Sandel sustenta que até certo ponto, mesmo Kant e Rawls não são neutros. Ambos não defendem o relativismo moral, mas sim uma estrutura neutra na qual os indivíduos possam perseguir livremente suas finalidades. Logo, “A ideia de que as pessoas devem ser livres para escolher os próprios objetivos na vida já é, por si só, um poderoso conceito moral” (SANDEL, 2012a, p. 268). Contudo, Kant e Rawls opõem-se centralmente ao utilitarismo, ao pensamento libertário e ao raciocínio teleológico de Aristóteles, conforme Sandel estrutura sua argumentação. Isso porque, “Eles argumentam que o que é correto tem primazia sobre o que é bom. Os princípios que especificam nossos deveres e direitos não devem basear-se em nenhuma concepção particular do que seja a vida boa” (SANDEL, 2012a, p. 268). Assim, ao passo em que Aristóteles defende que a vida justa depende a definição do que é a vida boa, Kant e Rawls argumentam que não podemos sobrepor qualquer noção de bem à lei moral ou aos princípios de justiça. Sandel reconhece a prevalência nos dias de hoje da concepção de justiça presente em Kant e Rawls, contra o modo como Aristóteles concebe a matéria. Nesse sentido, “A noção de que a justiça deve manter-se neutra em relação às concepções da vida boa reflete um conceito das pessoas como seres dotados de livre escolha e sem amarras morais preexistentes” (SANDEL, 2012a, p. 270). Seguindo sua linha argumentativa, o autor assim resume as concepções em disputa: os liberais igualitários defendem liberdades civis básicas e a concessão de direitos sociais e econômicos básicos como requisitos necessários ao exercício de uma verdadeira escolha livre; os libertários, por sua vez, são contrários ao Estado de bem-estar social, afirmando que o mesmo constrange os indivíduos, anulando sua liberdade. Ambos defendem, contudo, a neutralidade do Estado de maneiras distintas e expressam uma concepção profunda de liberdade humana que nos transforma em autores das obrigações morais que nos restringem. A partir daí, a conclusão do autor é, com efeito, decisiva:

Depois de debater comigo mesmo os argumentos filosóficos que apresentei a vocês, e tendo observado como esses argumentos são postos em prática na vida pública, não acredito que a liberdade de escolha – mesmo a liberdade de escolha em condições justas – seja uma base adequada para uma sociedade justa. Além disso, a tentativa de encontrar princípios de justiça neutros parece-me um equívoco. Nem sempre é possível definir nossos direitos e deveres sem se aprofundar em alguns questionamentos morais; e mesmo quando isso é possível, pode não ser desejável (SANDEL, 2012a, p. 272).

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Novamente, seu ponto caminha na defesa de sujeitos densamente construídos, proposta claramente distinta do eu apregoado pelo liberalismo. Isso porque, “Se nos considerarmos seres livres e independentes, sem as amarras morais de valores que não escolhemos, não terão sentido para nós as muitas obrigações morais e políticas que normalmente aceitamos e até mesmo valorizamos” (SANDEL, 2012a, p. 272). São precisamente as reivindicações morais oriundas das comunidades e tradições que constroem nossa identidade. A crítica em questão está dirigida contra o ideal do “eu” desimpedido presente na filosofia de Rawls, rejeitando a prioridade do justo sobre o bom. Nesse sentido, devemos pensar a questão da liberdade, mas sem descartar o peso moral da comunidade. Isso porque, ainda que a vida em comunidade pode ser opressiva, e a proposta liberal tenha surgido como um antídoto às teorias políticas que consignavam os indivíduos a determinados destinos definidos pela comunidade, a concepção voluntarista do indivíduo não se sustenta, visto que não são todas as nossas obrigações produto da nossa vontade. Resta, assim uma questão: como podemos nos sentir inseridos na sociedade e ainda assim livres? Sandel reconhece sua dívida para com Alasdair MacIntyre e seu livro “Depois da virtude” (1981), em parte debatido na apresentação deste capítulo. MacIntyre desenvolve uma concepção narrativa de indivíduo como alternativa à concepção individualista. No seu entendimento, seres humanos contam histórias e só são capazes de responder a questão “o que fazer?”, se antes puderem responder a questão “De que história ou histórias faço parte?”. As narrativas vividas, aponta MacIntyre, têm uma certa característica teleológica, ainda que não tenham propósitos determinados. Logo,

Viver a vida é representar um papel em uma jornada narrativa que aspira a uma certa unidade ou coerência. Quando me vejo diante de vários caminhos a seguir e devo escolher um deles, tento descobrir qual dará mais sentido à minha vida como um todo e a tudo aquilo que é importante para mim. A deliberação moral tem mais a ver com a interpretação da história da minha vida do que como exercício da minha vontade (SANDEL, 2012a, p. 274).

Nesse sentido, a escolha resulta, conforme descreve Sandel, da interpretação da minha história e não do ato soberano da minha vontade. A “intepretação narrativa” traz a possibilidade de outras pessoas conseguirem ver qual caminho condiz melhor com a minha trajetória de vida, assim como mostra o modo como a deliberação moral envolve reflexões que abrangem um escopo maior de histórias do qual a minha é parte. Essa perspectiva está em aberto conflito com o individualismo moderno, abrindo caminho para uma importante questão: “Estamos atados

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por laços morais que não escolhemos e que não estão associados a um contrato social?” (SANDEL, 2012a, p. 275). Conforme vimos, na concepção liberal as obrigações só surgem de duas maneiras: (1) como deveres naturais e universais que temos em relação aos seres humanos como tais (Kant é o exemplo notório); e (2) como obrigações voluntárias particulares nas quais incorremos por consentimento (Hobbes pode ilustrar este ponto). A justiça liberal exige, assim, que respeitemos os direitos das pessoas, mas não que promovamos o seu bem. Sandel nos mostra como a noção de obrigação política que deriva daí é restrita: a não ser que eu deliberadamente me candidate para algum cargo político, na qualidade de cidadão comum não tenho obrigações para com a comunidade política. Contrariamente, do ponto de vista da concepção narrativa a descrição liberal é frágil, justamente por não levar em conta as responsabilidades especiais que temos para com nossos compatriotas, ou seja, os deveres que temos como cidadãos dessa república. Nesse sentido, Sandel defende que devemos pensar numa terceira categoria de obrigações, a saber, as obrigações de solidariedade. Segundo o autor, estas são particulares, pois não se trata de uma obrigação para com seres racionais, mas sim para com aqueles com quem compartilhamos uma determinada história; e não se firmam por consentimento, pois seu valor moral se firma no reconhecimento de que minha história de vida está implicada na história dos demais indivíduos. Na tentativa de ilustrar seu raciocínio, Sandel nos lembra que o patriotismo é um sentimento moral muito contestado. Ao mobilizar o exemplo, porém, sua questão é mais específica: “Os cidadãos têm obrigações para com seus compatriotas que vão além dos deveres que têm para com os demais indivíduos do mundo? E se as tiverem, será que essas obrigações existem tendo como base apenas o consentimento?” (SANDEL,2012a, p. 281). Rousseau defendia, segundo o autor, o patriotismo como um princípio limitador que torna mais forte o sentimento entre os patriotas: ligados pela lealdade e pela vida comum, os compatriotas devem mais uns aos outros do que aos estrangeiros. Logo, o fundamento moral dessa defesa é a aceitação de que temos uma obrigação especial com o bem-estar dos nossos compatriotas em virtude da vida comum e da história que compartilhamos. “E isso depende de aceitarmos a concepção narrativa da condição de ser humano, de acordo com a qual nossa identidade como agentes morais está ligada à comunidade da qual fazemos parte” (SANDEL, 2012a, p. 285). Dessa forma, o patriotismo tem um fundamento moral que não se reduz ao modo como o liberalismo concebe as obrigações morais, sendo explicado pelas “obrigações de solidariedade ou da condição de membros de uma sociedade que não podem ser reduzidas a um ato de consentimento” (ibidem, p. 287).

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Sandel reconhece como os críticos das obrigações de solidariedade apontam uma suposta tendência ao isolamento, pois a parcialidade tenderia a favorecer apenas o grupo ou sociedade a que pertencemos. Contra isso, o autor acredita que devemos perceber como as obrigações de solidariedade e sociedade apontam em duas direções: (1) de dentro para fora, posso ter algumas responsabilidades especiais para com meus companheiros por pertencermos à mesma comunidade; e (2) de fora para dentro, posso ter outras tantas responsabilidades para com aqueles com os quais minha comunidade tem uma dívida moral, como no caso dos pedidos de desculpas e das indenizações. É importante, contudo, percebermos como orgulho e vergonha são sentimentos morais que pressupõe uma identidade comum, estando intimamente associados. Assim,

A capacidade de sentir orgulho e vergonha pelos atos de membros de nossa família e de nossos concidadãos tem a ver com a responsabilidade coletiva. Ambos requerem que nos vejamos como pessoas inseridas em um grupo – presas a vínculos morais que não escolhemos e implicadas nas narrativas que moldam nossa identidade como agente morais (SANDEL, 2012a, p. 288).

Ao analisar os casos de obrigações de solidariedade, questionando a concepção contratualista de que somos os autores das únicas obrigações morais às quais estamos sujeitos, Sandel toca na questão da liberdade. Segundo o autor, é tentador rejeitar ou reformular apelos de solidariedade, patriotismo e responsabilidade coletiva, pois assim nos aproximamos de uma ideia familiar de liberdade, onde não estamos atados a nenhum laço moral que não tenhamos escolhido: “ser livre é ser o autor das únicas obrigações que nos compelem” (SANDEL, 2012a, p. 295). Kant e Rawls apontaram, conforme vimos, a primazia do certo sobre o bom, manifestando uma concepção de justiça ancorada nessa ideia de liberdade. A forma de justiça daí derivada está em desacordo com o pensamento de Aristóteles, para quem a neutralidade cederia lugar ao debate sobre vida boa: o propósito da Constituição é formar bons cidadãos e cultivar o bom caráter. Assim,

Uma das razões pelas quais Kant e Rawls repudiam a concepção de justiça de Aristóteles é, segundo eles, o fato de ela não dar margem à liberdade. A Constituição que tente cultivar o bom caráter ou afirmar uma concepção particular de vida boa corre o risco de impor a alguns indivíduos os valores de outros. Ela não respeita as pessoas como seres livre e independentes, capazes de escolher sozinhos os próprios objetivos (SANDEL, 2012a, p. 295).

Na concepção narrativa de indivíduos, porém, a noção aristotélica de justiça recupera sua importância: deliberar o que é bom para mim envolve refletir sobre o que é bom para a

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comunidade a qual faço parte. A suposta neutralidade perseguida pelo projeto liberal pode, de acordo com Sandel, não ser nem possível nem desejável. Por certo, as sociedades cada vez mais plurais apresentam concepções diferentes sobre a melhor maneira de viver, tornando a associação entre justiça e vida boa em parte assustadora. O autor nos mostra como a teoria política liberal nasceu de uma tentativa de dissociar a política e a lei de controvérsias morais, conforme observamos exemplarmente nas obras de Kant e Rawls. No entanto, Sandel acredita que essa pode não ser uma tentativa bem-sucedida.

Pedir aos cidadãos democráticos que abandonem suas convicções morais e religiosas ao entrar na esfera pública pode parecer uma forma de garantir a tolerância e o respeito mútuo. Na prática, entretanto, pode acontecer justamente o contrário. Decidir sobre importantes questões públicas fingindo uma neutralidade que não pode ser alcançada é uma receita para o retrocesso e o ressentimento. Uma política sem um comprometimento moral substancial resulta em uma vida cívica pobre. É também um convite aberto a moralismos limitados e intolerantes. Os fundamentalistas ocupam rapidamente os espaços que os liberais têm receio de explorar (SANDEL, 2012a, p. 296-297).

Novamente, em clara retomada do pensamento aristotélico como contraponto crítico ao presente, Sandel abre caminho para tematizar a amizade como um elemento caro ao andamento da comunidade política. Em consonância com a defesa de Aristóteles na “Ética a Nicómaco”, Sandel entende que devemos conservar sentimentos outros que não apenas o restrito vínculo contratual. Uma “república de amigos” seria, no entendimento do autor, mais apta para o enfrentamento dos problemas concretos da vida coletiva. Nas palavras do autor,

A amizade transforma-se numa maneira de conhecer, para além de uma maneira de gostar. Sem ter a certeza sobre o caminho a tomar, eu consulto um amigo que me conhece bem, e juntos deliberamos, oferecendo e aferindo por turnos descrições diferentes da pessoa que sou, das alternativas com que me deparo, e do seu impacto sobre a minha identidade. Levar a sério estas deliberações equivale a permitir que o meu amigo possa apanhar o significado de algo que me tenha escapado, me possa oferecer uma explicação mais apropriada do modo como as alternativas com que me deparo afectarão a minha identidade (SANDEL, 2005, p. 238).

Nesta “república de amigos” a possibilidade de discussão acerca da finalidade da comunidade política se explicaria, com efeito, pela assumpção da impossibilidade de emitirmos decisões neutras. É proveitoso o modo como Sandel aponta mesmo a defesa da laicidade do Estado e da suposta neutralidade das leis como uma defesa embasa por valores, no caso, aqueles presentes no projeto liberal. Sua proposta é claramente oposta ao naturalismo presente em parte dos estudos sobre a política hoje, sendo capaz de enfrentar corajosamente temas caros ao convívio coletivo.

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3.5 A República como “não violência”

Assim como na segunda seção deste capítulo, aqui novamente o argumento forjado por Hannah Arendt em “O que é autoridade?” serve de mote para definição do ideal normativo de república. Mais especificamente, busco o modo como a autora justifica a experiência duradoura da república norte-americana, em contraste com a república francesa, por meio da ausência da violência em sua fundação. Conforme descreve Fry, boa parte da obra de Hannah Arendt lida com o que ela julgava faltar na cena política contemporânea, sempre mobilizando temas e conceitos centrais da tradição do pensamento político (FRY, 2010). A liberdade é, assim, uma categoria decisiva para Arendt, precisamente porque é através de palavras e ações que ela confere o sentido da política. Diferentemente do liberalismo deontológico discutido na seção anterior, que deriva a liberdade do interior – como Kant, por exemplo –, Arendt acredita que sua manifestação exige a comunicação numa comunidade política. Em geral, os filósofos ligam a liberdade à ideia de soberania e a habilidade de tornar manifestas no mundo as escolhas da vontade. Arendt, por sua vez, concebe a liberdade como uma categoria política que renuncia à soberania, pois sua ação não pode ser controlada exclusivamente pelo ator, dependendo do auditório na significação do ato. Assim, a “liberdade aparece no mundo quando os seres humanos atuam na presença de outros” (FRY, 2010, p. 91). Por mais lisonjeira que tenha sido em relação à Revolução Americana, Fry nos mostra como a autora aponta a ausência de espaços públicos de discussão, negligenciados pela Constituição americana, como um problema para a manutenção de um autêntico sentimento de liberdade. Isso porque, sem um espaço para a genuína troca de opiniões e liberdade foi progressivamente passando para a esfera privada. Daí sua defesa da assembleia como um fórum apropriado para recuperar o sentimento de liberdade que teria esmorecido entre os americanos. Subsiste, assim, no seu argumento, a defesa de um modelo participativo de democracia, onde diferentes opiniões pudessem ser vocalizadas. “Para Arendt, a cabine de votação é excessivamente acanhada para funcionar como espaço de liberdade plena, pois não consegue proporcionar nenhuma discussão direta dos temas, e transforma a política numa atividade de reflexão interiorizada” (FRY, 2010, p. 95). O direito de participar, no entanto, não implica obrigatoriedade de participação. Seu modelo é acima de tudo pensado em contraste com o modelo totalitário, que desencoraja a participação das pessoas.

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Fry nos mostra como Arendt entende a Revolução Americana sob uma luz positiva, afirmando representar “os meios que podem ser necessários para assegurar a liberdade pública do povo numa comunidade oprimida” (FRY, 2010, p. 97). Sua leitura foi criticada ao admitir, de certa forma, o uso da violência num processo revolucionário, ou na instituição de “novos começos”. Em geral, a autora sustenta que “a violência é sempre exterior à esfera política e, no caso da revolução, é pré-política” (FRY, 2010, p. 97). Logo, a violência pode ser necessária no combate a formas totalitárias e na pavimentação do caminho para o surgimento da liberdade, mas não deve nunca ser glorificada. Arendt compreende, assim, a violência como o oposto da liberdade, visto que seu uso em geral significa o silêncio das opiniões, sendo mobilizada para obter determinados fins mediante a força. Nesse sentido, a violência seria incapaz de produzir ordenamentos estáveis, promovendo um mundo mais violento. Fry percebe como Arendt dissocia as noções de violência e poder, afirmando que o poder não implica o uso da violência e sim o consentimento. Nessa direção, governos tirânicos e despóticos carecem de poder exatamente porque neles as pessoas não agem em conjuntos, em harmonia, na produção consensual do poder. “A visão arendtiana de poder é relacional, de modo que o poder surge entre agentes e não pode ser considerado como algo que opera de acordo com as categorias tecnológicas de meios/fins” (FRY, 2010, p. 99) Todo governo precisa, de acordo com a filósofa, de uma base de crenças na qual se apoiar, não podendo, dessa forma, se sustentar exclusivamente pela violência. A intimidação e o medo não são capazes de gerar apoio, sendo o terror precisamente o resultado da dissolução do poder em uma comunidade política, tal como observado no totalitarismo. Fry aponta como Arendt admite a eficácia da violência para interromper processos políticos totalitários com fins humanitários, mas afirma que somente a ação é capaz de começar algo verdadeiramente novo. Dessa forma, a autora admite a violência como recurso necessário em momentos revolucionários, mas nega sua capacidade de produzir ordenamentos estáveis. Conforme discutimos na segunda seção deste capítulo, a influência das categorias política da antiga Roma no pensamento de Arendt manifesta na sua ênfase na tríade religião, tradição e autoridade como responsável pela estabilidade e legitimidade do Estado. O enfraquecimento de uma dessas esferas teria rompido com a continuidade do passado, tornando- o fragmentado. Fry relembra como Arendt aponta a fundação como um importante recurso na recuperação da tradição, preenchendo os vazios deixados pela secularização que enfraqueceu a dimensão religiosa. Aqui, precisamente, surge o ponto de aproximação entre o debate sobre a autoridade e sobre a violência.

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Isso porque, entre os romanos a fundação foi política e baseada na legitimidade do Senado, ao passo em que entre os americanos ela teria sido legal e baseada na Constituição. O tema da fundação aparece associado a necessidade de reforçar a tradição após a revolução, conforme interpreta Fry: “A fundação propicia um começo para um novo tipo de sistema político, e enquanto a fundação for lembrada e respeitada, o novo sistema pode sobreviver” (FRY, 2010, p. 104). A inovação institucional do mundo romano, quando comparado ao mundo grego, foi, conforme vimos, a separação entre poder e autoridade. Lá o poder estava no povo e a autoridade, advinda do povo, nos senadores. Fry aponta como, segundo a filósofa, os americanos também foram capazes de separar poder e autoridade, centrando, por sua vez, a autoridade na Corte Suprema, capaz de reinterpretar a Constituição. No momento em que verdadeira autoridade requer consentimento, é impossível impingi-la por meio da violência. Fundação e autoridade seriam de acordo com a interpretação de Fry, responsáveis por um governo que perdurará e garantirá um espaço para a expressão da liberdade. Assim, Arendt aponta como um ponto notável nessa discussão o fato de que enquanto todos os modelos e protótipos de relações autoritárias gregos prevaleceram – o paciente e o médico, o timoneiro e o barco, o pastor e as ovelhas, o senhor e o escravo, o perito, o sábio –, a experiência romana da fundação, única a trazer a autoridade como vocábulo afeito a nossa realidade, parece ter sido completamente esquecida. Segundo a filósofa,

Existe em nossa história política uma espécie de acontecimento para o qual a noção de fundação é decisiva, e há na história do nosso pensamento um pensador político em cuja obra o conceito de fundação é central, se não o mais importante. Os acontecimentos são as revoluções da idade moderna, e o pensador é Maquiavel, situado na soleira de nossa era e que, embora nunca tenha usado a palavra, foi o primeiro a conceber uma revolução (ARENDT, 2007, p. 181).

A posição privilegiada de Maquiavel na história do pensamento político pouco tem a ver com seu propalado realismo. Maquiavel, afirma Arendt, não é o pai da teoria política, mas sim Platão, e mesmo o suposto caráter científico das teorias de Maquiavel é frequentemente muito exagerado. Seu descaso com julgamentos morais, que chocou muito de seus leitores, também impede que cheguemos ao âmago do seu pensamento. Nas palavras de Arendt,

A verdade é, somente, que ele se opôs a ambos os conceitos de bem que encontramos em nossa tradição: o conceito grego de “bom para”, ou adequação, e o conceito cristão de uma bondade absoluta que não é deste mundo. Em sua opinião, ambos os conceitos eram válidos, mas apenas na esfera privada da vida humana; no âmbito público da política não tinham mais lugar que seus contrários, inadequação ou incompetência e maldade. A virtù, por outro lado, que é segundo Maquiavel a qualidade humana

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especificamente política, não possui a conotação de caráter moral da virtus romana, e também pouco a de uma excelência moralmente neutra à maneira da areté grega. A virtù é a resposta que o homem dá ao mundo, ou, antes, à constelação da fortuna em que o mundo se abre, se apresenta e se oferece a ele, à sua virtù. Não há virtù sem fortuna e não há fortuna sem virtù; a interação entre elas indica uma harmonia entre o homem e o mundo – agindo um sobre o outro e realizando conjuntamente – tão remota da sabedoria do político como da excelência moral (ou de outra espécie) do indivíduo e da competência dos peritos (ARENDT, 2007, p. 182, grifos da autora).

Arendt nos lembra que Maquiavel respeitava as forças religiosas dos Franciscanos e Dominicanos, ao passo em que desprezada a Igreja, mostrando como o contato entre a religião e a política corrompe ambas. A grandeza de sua descoberta está, contudo, em estruturar a experiência romana de um modo que os romanos não haviam conceitualizado, lançando mão dos termos da filosofia grega vulgarizada para este fim. Nesse sentido, Arendt aponta uma grande proximidade entre Maquiavel e Robespierre. Ambos parecem falar a mesma linguagem quando defende a violência como arma para a garantia da liberdade, o que será, aos olhos da filósofa, alvo de crítica.

Assim como os romanos, Maquiavel e Robespierre viram na fundação a ação política central, o único grande feito que estabelecia o domínio público-político e que tornava possível a política; contudo, ao contrário dos romanos, para os quais esta era um evento do passado, eles achavam que para esse “fim” supremo todos os “meios”, e principalmente os meios da violência, eram justificados. Compreendiam o ato de fundar inteiramente à imagem do fazer; a questão para eles era, literalmente, “fazer” uma Itália unificada ou uma república francesa, e sua justificação da violência guiava- se pelo seguinte argumento, que lhe conferia sua inerente plausibilidade: não se pode fazer uma mesa sem abater árvores, nem fazer uma omelete sem quebrar ovos; não é possível fazer uma república sem matar gente (ARENDT, 2007, p. 184).

Por ter redescoberto a experiência da fundação e por tê-la revestido do elemento violento, Maquiavel pode ser considerado, de acordo com Arendt, o precursor das modernas revoluções. Se a crise do mundo moderno é, conforme vimo, a crise da trindade romana – religião, tradição e autoridade –, as tentativas de fundação por meio das revoluções da época moderna parecem tentativas de recuperação dos laços rompidos com a tradição. Arendt afirma que dessas tentativas, contudo, somente a Revolução Americana foi bem sucedida. Isso porque, seus pais fundadores foram capazes de fundar um novo organismo político prescindindo da violência e com o auxílio de uma Constituição. Arendt afirma suspeita ter sido seu caráter não-violento, sendo a violência restrita apenas às atividades bélicas regulares, o fator para o sucesso da Revolução. O mais importante aos olhos da filósofa foi que o ato de fundação – a colonização do continente –, antecedeu a Declaração de Independência, tendo a Constituição apenas confirmado o legado de um organismo político já existente. De qualquer modo, as revoluções

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que conhecemos como rupturas com a tradição surgem como ações humanas inspiradas na tradição romano-ocidental. Logo,

A autoridade tal como a conhecemos outrora, e que se desenvolveu a partir da experiência romana e foi entendida à luz da Filosofia Política grega, não se restabeleceu em lugar nenhum, quer por meio de revoluções ou pelos meios ainda menos promissores de restauração, e muito menos através do clima e tendência conservadores que vez por outra se apossam da opinião pública. Pois viver em uma esfera política sem autoridade nem a consciência concomitante de que a fonte desta transcende o poder e os que o detêm, significa ser confrontado de novo, sem a confiança religiosa em um começo sagrado e sem a proteção dos padrões de conduta tradicionais e portanto auto-evidentes, com os problemas elementares da convivência humana (ARENDT, 2007, p. 187).

O quinto elemento na definição do ideal de república aqui construído encerra, assim, um desafio: como restabelecer a autoridade perdida, sem violência? Isso porque, Arendt sustenta que a fundação não violenta é mais capaz de conferir durabilidade à república. Conforme afirmei anteriormente, o objetivo aqui não foi remontar historicamente uma tradição de pensamento, buscando coerência e uniformidade entre os referenciais mobilizados, mas sim eleger analiticamente elementos capazes de forjar um ideal de república como contraponto crítico ao andamento presente. No próximo capítulo, a proposta será erguer o mesmo ideal a partir de exemplo extraídos da nossa tradição de pensamento.

4. A REPÚBLICA (2): EM BUSCA DA NOSSA TRADIÇÃO

Que dia mais adequado à solenidade da aclamação de sua Majestade em imperador Constitucional do Brasil? Sua Majestade, aquele príncipe justo, magnânimo, incomparável, que tocado dos nossos males passados e das injustiças presentes do congresso lisboense, a nosso respeito, e querendo colocar-nos naquela graduação, para que nos destinou a Providência, no meio das nações e do orbe, quebrou de uma vez os infames grilhões, que o velho e estonteado Tejo, no seu mais exaltado orgulho, forjava ao colossal Amazonas e ao rico Prata; e não dando tempo aos inimigos da justiça, os déspotas constitucionais do congresso, a urdirem novas tramas, com a rapidez do raio, tocou aquele último termo político, que nos dá a liberdade, afiança a reintegração dos nossos direitos postergados, assegura a nossa felicidade e preconiza a nossa glória. Frei Caneca – Discurso de aclamação de Pedro I como imperador do Brasil (1822).

A crescente atenção dedicada ao estudo do pensamento social e político brasileiro, manifesta não apenas no aumento quantitativo de teses e publicações, mas na pluralidade dos estudos desenvolvidos, vem mostrando a potencialidade dessa agenda de pesquisa no andamento das ciências sociais como um todo. Malgrado a persistência de visões simplificadoras ou equivocadas acerca da relevância e atualidade do olhar sobre o passado reflexivo do país, o incremento do campo de estudos sobre nossos intérpretes, suas questões, temas e abordagens atesta a existência de continuidades e descontinuidades entre os denominados “ensaios de interpretação do Brasil” e as “ciências sociais institucionalizadas”, sobretudo depois de década de 1930. Tais pesquisas vêm incorporando à agenda atual o arsenal reflexivo desenvolvido no período anterior à consolidação das Ciências Sociais nos círculos universitários, além de mostrar como ideias do passado conformaram a imaginação do presente (BOTELHO, 2007; BRANDÃO, 2007; MICELI, 2001). Algo que aponta, sem desconhecer questões de método, a busca pela nossa formação

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intelectual como estratégia virtuosa também na compreensão do presente, visto que o campo do pensamento social tem se ocupado “de mostrar, diferentemente de grande parte das teses sobre o assunto, a não existência de rupturas essenciais (ou de natureza?) entre os denominados ensaios de interpretação do Brasil e os estudos científicos sobre a sociedade, produtos da reflexão que se dará na universidade” (BASTOS; BOTELHO, 2010, p. 478). Nessa direção, o incremento das pesquisas sobre o pensamento social no Brasil começa a interessar não somente aos trabalhos inseridos no campo, mas aos cientistas sociais em geral, interpelados pela necessidade de refazer o percurso dos “clássicos” nacionais em busca da apreensão de fenômenos contemporâneos, tal como antecipado no primeiro capítulo desta tese. Dessa forma, ao contrário do que o processo de institucionalização da disciplina nos círculos universitários havia apregoado, a saber, a condenação dos referidos “ensaios” ao passado literário ou ideológico, desqualificando seus argumentos em prol de um pretenso cientificismo, os estudos recentes apontam a permanência de questões na agenda das ciências sociais contemporânea, gestadas numa tradição de longa duração, mesmo com o advento dos ditos “modernos métodos de pesquisa” (BRANDÃO, 2007; MICELI, 2001). Fato que sugere, como discutido com mais vagar no primeiro capítulo, o permanente retorno aos “clássicos”, nossos “intérpretes”, como percurso necessário ao desenvolvimento das ciências sociais, não só no Brasil (ALEXANDER, 1999). Constatação que reabre, ainda, a discussão sobre as marcações tradicionais das ciências sociais e seus campos, permitindo que repensemos o estatuto da ciência política, em particular, e sua eventual originalidade na produção de teorias e conceitos. Conforme sugere Renato Lessa em artigo amplamente debatido ao longo desta tese, o “exame do calendário ‘oficial’ de fixação da ciência política no Brasil, e as demarcações implicadas nessa fixação, com efeitos sobre a distinção entre ‘intérpretes do Brasil’ e ‘cientistas’, ou praticantes de um corpo de conhecimento cientificamente constituído” (LESSA, 2011, p. 18), se apresenta como o primeiro passo para recuperarmos um momento perdido, mas fecundo, do conhecimento político no país, por vezes negligenciado. Nessa direção, a tentativa de mapeamento da existência de continuidades e descontinuidades possíveis entre os autores e argumentos da nossa tradição, constitui momento exemplar dos recentes estudos acima mencionados, e base do argumento aqui em curso. Novamente, segundo Lessa, essa postura representa justo reconhecimento do passado intelectual,

Pois nos primórdios do processo de configuração do Estado nacional brasileiro é já

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possível detectar os ecos de um intenso debate a respeito do experimento social e institucional a ser desenvolvido no país. Trata-se, por certo, de uma reflexão – que no campo liberal radical, já nas primeiras décadas do século XIX, pode ser encontrada em gente como Cipriano Barata de Almeida, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, João Soares Lisboa e Gonçalves Ledo e no campo mais conservador em José da Silva Lisboa (Visconde de Cairu) e, mesmo, José Bonifácio – voltada para a intervenção direta na conjuntura imediata dos conturbados anos do processo de independência (LESSA, 2011, p. 21-22).

Entretanto, esse exercício não foi consensual durante a consolidação das grandes interpretações sobre o Brasil, tendo a própria existência de um pensamento político, enquanto categoria que pressupõe a presença de um quadro cultural autônomo capaz de gerá-lo, como ponto de disputa. A defesa de que somos, no Brasil, filhos de “irrealizações”, herdeiros de “revoluções perdidas”, ou, em outras palavras, emanações imperfeitas de Portugal, suspendeu a percepção de que seríamos capazes de criar uma teoria que pudesse dar conta de nossas condições particulares, conforme lemos na conhecida tese de Raymundo Faoro sobre a intelectualidade nacional (FAORO, 2007). A pergunta de Faoro sobre a "existência de um pensamento político brasileiro" – com sua resposta negativa – trouxe consigo a assertiva de que mesmo a “modernização” não amadureceu a “modernidade” entre nós, reforçando a situação de subordinação reflexiva existente no Brasil desde a Colônia. Há, todavia, a possibilidade contrária de percebermos como a colisão entre referências intelectuais importadas e as condições particulares do país, motivou o andamento "moderno" e reflexivo da nação. Exercício que pode recuperar o elemento normativo do pensamento político, negligenciado em determinados momentos, ao assimilar nosso passado interpretativo à construção de uma teoria política própria, e repondo, de modo diverso, a questão de termos ou não um pensamento político brasileiro hoje, conforme observamos nos recentes estudos deste campo de pesquisas. Em sua discussão sobre a particular apropriação do conservadorismo, operada pela elite política brasileira em meio ao processo de construção do Estado nacional, Christian Lynch mostra como uma ideologia – em parte marcada pelas transformações decorrentes da Revolução Francesa – ganhou novas “versões” em solo nacional. Segundo o autor, “os diferentes processos de construção estatal, nacional, liberal e democrática de cada sociedade conferem às suas experiências cores próprias em relação àqueles arquétipos ‘universais’, sem deixarem, porém, de integrá-los” (LYNCH, 2010, p. 25). Lynch realiza, com efeito, um retorno ao nosso passado reflexivo pautado pela originalidade na criação de novos modelos, a partir de uma seletiva apropriação do quadro teórico ocidental, sem, contudo, sucumbir ao argumento da “cópia” apontado por Faoro (2007).

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Tal retorno apresenta, ainda, uma interessante singularidade quando comparado aos demais estudos sobre a história das ideias e das tradições nacionais de teorização. Assim como anunciado na introdução desta tese, João Marcelo Maia, ao discutir o campo de pesquisa em perspectiva comparada, aponta a distinção nas interpretações:

No caso brasileiro, essa incessante hermenêutica parece guardar sentido especial, descolando-se do simples inventário sobre matrizes formadoras e assumindo pretensões teóricas maiores. [Com isso] O campo intitulado “interpretações do Brasil” não reúne apenas profissionais interessados na história do ensaísmo nacional, mas também alguns dos mais produtivos estudiosos interessados na explicação da modernidade brasileira (MAIA, 2009, p. 155-156).

Característica que permite, segundo o autor, identificarmos uma forma de imaginação teórica entre nossas matrizes intelectuais capaz refletir sobre os dilemas modernos globais a partir de um ponto de vista distinto daquele construído no mundo europeu e anglo saxão, assim como nos chamados estudos pós-coloniais. Seu objetivo é, em linhas gerais, salientar a relevância do estudo do pensamento brasileiro para a produção da teoria social, ampliando o interesse sobre os clássicos da disciplina para além do seu campo específico de reflexão, ao identificar similitudes e particularidades na tradição reflexiva nacional quando comparada, por exemplo, a fabulações teóricas em contextos geográficos semelhantes. Nessa direção, o trabalho de Gildo Marçal Brandão, “Linhagens do Pensamento Político Brasileiro”, inscreve-se nos estudos sobre nossa tradição intelectual como momento exemplar, tanto de reconstituição genética do nosso passado interpretativo, como de exercício normativo para construção da “boa teoria”, ao identificar “um estoque teórico e metodológico” na discussão de problemas e proposição de soluções intelectuais pela imaginação nacional pré- 1930 (BRANDÃO, 2007). Trata-se de reconhecer afinidades e distanciamentos entre autores dispersos no tempo, construindo famílias intelectuais ou matrizes de interpretação, elaborando, assim, hipóteses de investigação capazes de jogar luz na relação entre a “constelação de idéias” que povoou o imaginário nacional passado, mas que ainda habita os exercícios interpretativos do presente, e seus problemas históricos específicos. Ademais, o mapeamento proposto pelo autor pode, no limite, mostrar como ideias conformaram o modo como o Brasil se transformou, pautando o mundo público e propondo modelos de país a serem perseguidos (SOUSA, 2010b). Segundo Brandão, podemos identificar, por um lado, no liberalismo atual uma continuidade entre autores – como Tavares Bastos, Raymundo Faoro e Simon Schwartzman85

85 Brandão aponta como igualmente significativos os trabalhos de Carvalho (1999), Mercadante (1972), Santos (1978) e Werneck Vianna (2004) no sentido de reconhecer a existência de tais linhagens intelectuais associadas a um programa “liberal” ou “conservador” de pesquisa.

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–, que mesmo guardadas as suas especificidades teóricas e contextuais, coincidem no diagnóstico comum sobre os problemas do país e sua solução possível, compondo um programa de pesquisa amplamente conhecido na defesa da democracia liberal e adoção de práticas próximas ao liberalismo econômico na consolidação do seu “projeto”: a “proposta de (des)construção de um Estado que rompa com sua tradição ‘ibérica’ e imponha o predomínio do mercado, ou da sociedade civil, e dos mecanismos de representação sobre os de cooptação, populismo e ‘delegação’” (BRANDÃO, 2007, p. 33-34). Por outro lado, encontramos argumentos contrários ao programa liberal acima mencionado, também inseridos numa corrente de ideias de longa duração na história brasileira, defendidos por autores dispersos em nossa formação e com graus significativos de influência sobre a dimensão estatal – como Visconde do Uruguai, Alberto Torres, Oliveira Vianna e Francisco Campos –, que compactuam de um programa de pesquisa comumente denominado conservador, franco em atribuir um papel distinto ao Estado no desenvolvimento da política brasileira, conferindo predominância à autoridade sobre a liberdade: a partir da imagem de um Brasil fragmentado, povoado por indivíduos atomizados, amorfo e inorgânico, o diagnóstico encontra uma sociedade desprovida de solidariedade que depende do Estado para manter-se unida. No contexto específico da nossa relação entre Estado e sociedade, a liberdade não sobreviveria sem um Estado forte e tecnicamente qualificado, soberano ao localismo das “facções”, capaz de subordinar o interesse privado ao nacional, controlando os efeitos perniciosos do individualismo possessivo, próprios do funcionamento do mercado, ao adaptar a democracia “importada” ao contexto local adverso (BRANDÃO, 2007). Ao sugerir a constância de uma linhagem liberal, que afirma a prevalência da livre- iniciativa da sociedade civil e a manifestação dos seus interesses contra a opressão de um Estado “asiático”, parasitário, patrimonial; e de uma linhagem conservadora, defensora do Estado como garantidor da ordem e dos direitos contra o arbítrio dos particulares em meio a uma sociedade amorfa e inorgânica, Brandão abre caminho para pensarmos proximidades de distanciamentos entre autores sem, contudo, a pretensão de esgotar, nas linhagens apontadas, o grande matiz de interpretações existentes entre nós. Elide Rugai Basto e André Botelho ressaltam, em recente inventário sobre o campo, tal característica: “um dos aspectos mais produtivos da proposta é justamente o de, cruzando diferentes linhagens, surpreender afinidades eletivas e escolhas pragmáticas onde elas não são evidentes, esperadas, intencionais – seja em termos cognitivos ou normativos” (BASTOS; BOTELHO, 2010, p. 484). Nesse sentido, o objetivo aqui é recuperar elementos de uma suposta tradição republicana de pensamento, ou, nos termos há pouco mobilizados, uma família republicana

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entre os “clássicos” nacionais, a partir da discussão de alguns conceitos-chave como afinidades eletivas e escolhas pragmáticas não evidentes na classificação operada por Brandão – liberais ou conservadores –, ou mesmo em classificações similares – ibéricos e americanos, tal como encontramos em Werneck Vianna (2004). Em especial, o modo com Newton Bignotto vem discutindo o que ele classifica como “novo republicanismo”, a partir da recuperação da tradição do humanismo cívico, constitui importante norte teórico e metodológico deste trabalho ao propor uma arguta interpelação do presente segundo elementos extraídos da tradição republicana (BIGNOTTO, 2000b; 2004). Ponto seguramente não consensual entre os estudos desenvolvidos no campo. Porém, conforme discutido no primeiro capítulo, o argumento aqui defendido aponta a existência de uma tradição republicana que logrou ser apropriada de diferentes maneiras e por diversos autores a partir dos embates políticos concretos que se processaram no país. A tese recorre, dessa forma, a um conceito de tradição que não negligencia os contextos históricos particulares, mas persegue a possibilidade de entrelaçarmos diferentes momentos da imaginação nacional com aportes reflexivos sobre o presente, cruzando linhagens em busca de uma agenda republicana dotada, talvez, de elementos progressistas alternativos aos modelos vigentes (SOUSA; PERLATTO, 2010a). Perspectiva, analítica nos fins, mas sem descuidar dos procedimentos contextuais nos métodos (BOTELHO, 2009). No capítulo anterior construí, por meio de elementos coligidos na tradição do pensamento político, um ideal normativo de república. A proposta agora é, com efeito, identificar em alguns episódios da história do país elementos análogos ao ideal forjado anteriormente. Espera-se, com isso, que possamos, ainda que de maneira instrumental e em parte fragmentada – dada a ausência de maiores pretensões historiográficas –, abrir caminho para a construção de uma tradição republicana própria. A narrativa que se segue pretende, assim, ilustrar como tal tradição se processou por meio de lutas políticas concretas. Ainda que a “república” não esteja presente no léxico de boa parte dessas disputas, como não esteve em vários dos momentos do pensamento políticos ocidental, pretendo identificar os mesmos cinco elementos definidores outrora debatidos. A proposta soa, por certo, incômoda ao projeto da história das ideias tal como discutido no segundo capítulo. Todavia, sigo a senda aberta pelo projeto normativo de Philip Pettit, já antecipado no capítulo anterior. Conforme apresentado, Pettit ocupa-se da discussão de um conceito de liberdade específico – a liberdade como não-dominação –, para a partir de então apresentar um projeto normativo próprio – a defesa da democracia contestatória (SILVA, 2008). Contudo, sua

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“amarra” do que seria a tradição republicana é sugestiva para o modo como aqui apresento o argumento. Nas palavras do autor,

La tradicón republicana fue unificándose con el transcurso del tiempo, en parte por deferencia a las mismas autoridades textuales, en parte por un entusiasmo compartido por los ideales y las lecciones de la República romana, en parte por el énfasis puesto en la importancia de disponer de ciertas instituciones: por ejemplo, un imperio de la ley, como se dijo a menudo, en vez de un imperio de los hombres; una constitución mixta, en la que diferentes poderes se frenan y contrapesan mutuamente, y un régimen de virtud cívica, régimen bajo el cual las personas se muestran dispuestas a servir, y a servir honradamente, en los cargos públicos. Al final, el elemento unificador más importante de la tradición puede haber sido el hábito de conceptualizar la libertad de un modo característicamente distinto. [...] El antimonarquismo fue a menudo un rasgo de la tradición republicana, sobre todo durante la Guerra Civil inglesa, y de nuevo, tras las Revoluciones Norteamericana y Francesa. Pero los republicanos eran antimonárquicos sólo en la medida en que consideraban que un monarca buscaría inevitablemente el poder absoluto y arremetería contra el tipo de libertad que ellos estimaban. Así, se contentaron con la monarquía constitucional que hallaron en la Inglaterra del XVIII: "una nación", en la inconfundible cita de Montesquieu, "en la que la república se amaga bajo la forma de monarquía". Y no sólo eso. Muchos de los que yo calificaría como republicanos no se describen a sí mismos, ya sea por razones estratégicas, o por otras, en esos términos. Como Monstesquieu mismo, prefieren afeites y colores menos radicales86 (PETTIT, 1999, p. 38-39).

Em consonância com o modo como Pettit descreve a “unificação” da tradição republicana por ele tratada, ou seja, pelo entusiasmo com ideias e lições ou pela valorização de determinadas instituições, a proposta aqui é identificar a relevância conferida aos três primeiros elementos definidores apresentados no capítulo anterior, a saber: (1) governo das leis; (2) autoridade; e (3) liberdade como não-dominação. Nessa direção, elejo como pontos de discussão: (1) a defesa da monarquia constitucional no Primeiro Reinado; (2) a estabilidade institucional conferida pela Carta de 1824; e (3) a defesa do Estado como ator “civilizador” da “barbaridade” dos “sertões”. Ao final, apenas enuncio a possibilidade de identificarmos os elementos da reciprocidade moral e da não violência.

86 “A tradição republicana unificou-se ao longo do tempo, seja pela deferência às mesmas autoridades textuais, seja pelo entusiasmo compartilhado acerca dos ideias e lições da República romana, ou pela ênfase na importância de determinadas instituições: por exemplo, o império da lei, como se costuma dizer, ao invés do império dos homens; uma constituição mista, em que os diferentes poderes de controlam mutuamente, e um regime de virtude cívica, no qual as pessoas se mostram dispostas a servir, e a servir honradamente, nos cargos públicos. No final, o elemento unificador mais importante da tradição pode ter sido o hábito de conceituar a liberdade de um modo particularmente distinto. [...] O antimonarquismo foi muitas vezes o traço característico da tradição republicana, sobretudo durante a Guerra Civil Inglesa, e novamente, após as revoluções norte- americana e francesa. Contudo, os republicanos eram antimonárquicos somente na medida em que consideravam que o monarca buscaria o poder absoluto e pudesse atentar contra o tipo de liberdade por eles defendida. Nesse sentido, eles se contentavam com a monárquica constitucional existente na Inglaterra do século XVIII: ‘uma nação’, na inconfundível passagem de Montesquieu, ‘na qual a república se oculta na forma de monarquia’. E não só. Muitos do que eu qualificaria como republicanos não se descrevem si mesmo, seja por razões estratégicas, ou por outras, nestes termos. Como Montesquieu mesmo, preferem cores menos radicais”.

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4.1 Governo das leis? Uma Constituição própria

O particular desenvolvimento da Inglaterra no século XVII, forçado pelo conflito entre a monarquia absoluta e o Parlamento, culminou com a chegada da burguesia ao poder após Jaime II ser apeado do trono de maneira relativamente pacífica no final da década de 1680. O episódio, conhecido como a Revolução Gloriosa, conduziu Guilherme de Orange ao governo, ao mesmo tempo em que proclamou a declaração de direitos (Bill of ), que garantiu maior autonomia para o Parlamento ao impedir a possibilidade da sua dissolução, proporcionando liberdade nas eleições e no próprio exercício de legislar. Com isso, a contraposição entre o governo real e o governo parlamentar, responsável por conflitos de longa duração no país, encontraria termos aparentemente finais com o triunfo do Parlamento sobre o absolutismo, dando um duro golpe na doutrina do direito divino governar (VÁRNAGY, 2006). Tais acontecimentos influenciaram de maneira inequívoca o debate intelectual da época, encontrando campos ideológicos distintos acerca dos limites do governo monárquico e da possibilidade da contra-soberania. A obra de John Locke pode, em alguma medida, ser tomada como uma formulação exemplar dos argumentos bem-sucedidos no triunfo do Parlamento, ao colocar o tema do “direito de resistência” como um dos direitos fundamentais no exercício da política. Seguramente, Locke não convocava a constante sublevação popular, ciente do desafio da ordem caro ao pensamento político como um todo (BOBBIO, 1980). Entretanto, ao conceber a sociedade e o direito de propriedade como anteriores ao ordenamento jurídico, o autor acreditava que os homens eram portadores de direitos antes mesmo do “pacto” que forjaria a sociedade política, esta não autorizada a negar a natureza exatamente por ser ela um artifício criado para a sua proteção (LASLETT, 2003). A lei natural seria, assim, eterna e imperativa sobre as leis positivas construídas a partir dela. A sofisticada teoria de Locke sobre a propriedade abre caminho para a formulação de uma noção de política com base na ideia de contrato, permissiva em relação ao “direito de resistir” ao abuso do poder, caso este desrespeite as “cláusulas” do acordo que inventa o público. Ainda que a visão do autor seja um tanto otimista em relação ao homem e sua condição no mundo burguês, acreditando, por exemplo, na possibilidade de limitação do acúmulo pela razoabilidade da lei natural, o argumento contido nos “Dois tratados sobre o governo” terá forte influência nos ideais revolucionários do século seguinte, abrindo caminho para concepções mais democráticas do ordenamento político (VÁRNAGY, 2006).

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Dessa forma, as revoluções democráticas no século XVIII instauraram as primeiras grandes repúblicas modernas em 1776 nos Estados Unidos da América e em 1792 na República Francesa, recolocando o conceito de soberania popular em termos democráticos (BOBBIO et al. 2007). A partir de então, as noções de igualdade de participação e liberdade invadiram o imaginário ocidental apresentando-se como princípios inescapáveis para a realização de qualquer ideia abstrata de democracia, exemplarmente identificada por Tocqueville na experiência americana, fato que colocaria um problema para a teoria política no século XIX ensejando algumas das formulações mais importantes para a democracia moderna87. Em especial, aqueles que se ocuparam com a reflexão sobre a democracia enquanto forma de governo adequada, ou mesmo inevitável ante as transformações do mundo moderno, se depararam com o problema das massas e da participação política pouco qualificada na arena pública como um desafio a ser superado ou, no limite, controlado pela engenharia institucional em construção. Em outras palavras, a marcha inexorável da igualdade de que nos falava Tocqueville (JASMIN, 2005a), impunha a necessidade da construção de arranjos capazes de gerir o mundo em transformação. Não por acaso, o tema da Constituição ganharia, nesse contexto, destaque no pensamento político, ainda que sua significação não tenham sido homogênea e outros sentidos não democráticos possam ser encontrados nos debates, especialmente no mundo luso-brasileiro, objeto aqui trabalhado88 (NEVES; NEVES, 2009). Mesmo Locke, há pouco mencionado, já havia identificado dois séculos antes a presença dos “irracionais”, os “pobres” desprovidos de propriedade e que atentavam contra ela, como um desafio para a política instituída por meio do contrato (VÁRNAGY, 2006). Tal questão, a de como solucionar problemas decorrentes do aparecimento de uma diversidade de “vozes” que adentravam a cena contemporânea, pressionando as instâncias de decisão – de forma legítima ou não –, em nome da contemplação dos seus próprios interesses, foi central para o pensamento político do século XIX, responsável por conciliar os ideais de igualdade e liberdade impostos pela Revolução de 1789. Na ausência de indivíduos virtuosos, requisito presente nas formações republicanas antigas, as Constituições modernas deveriam antecipar possíveis imprevistos no funcionamento democrático depositando a virtude nas instituições que regulariam o perigoso

87 A inclusão das massas no mundo público ensejou, ainda, formulações aparentemente contraditórias no pensamento político ocidental. Thais Aguiar vem mostrando como o “medo das massas” foi uma categoria amplamente utilizada na construção da democracia moderna por diversos autores, contexto descrito por meio do conceito de “demofobia” (AGUIAR, 2009).

88 Lúcia Neves e Guilherme Neves apontam, no período entre 1750 e 1850, pelo menos quatro significados distintos para o conceito de Constituição no mundo luso-brasileiro: (1) o constitucionalismo histórico; (2) um conceito associado ao pensamento de Montesquieu; (3) outro associado à obra de Benjamin Constant; e (4) uma versão democrática (NEVES; NEVES, 2009).

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jogo de interesses, tal como observamos em Benjamin Constant, Stuart Mill ou mesmo em Tocqueville e na sua admiração pelo corpo de magistrados americano, portador de características quase aristocráticas, eficiente no controle de possíveis “anacronismos” (ARANTES, 2007; JASMIN, 2005a). Tocqueville teria elogiado a organização liberal americana, mostrando como seu arranjo evitou a ameaça que o republicanismo radical do movimento revolucionário francês consolidou, destituindo por completo a liberdade em nome do ideal igualitário (WERNECK VIANNA, 2004). Parte das disputas que envolveram a construção das instituições políticas brasileiras na época da independência encontrou, contundo, no “movimento republicano” uma importante arma contra o absolutismo monárquico a ser combatido, comprando os argumentos que antecederam as revoluções democráticas do século XVIII na defesa do primado da lei para o funcionamento do “bom governo” e controle dos abusos cometidos pelo poder absoluto (LEITE, 2008; LUSTOSA, 2004; NEVES, 2001). Ao entender o republicanismo como um tipo de governo que reunia os elementos do equilíbrio demonstrado pela monarquia inglesa, de forte inspiração lockeana (LASLETT, 2003), com as características do governo misto defendido pelo republicanismo clássico da antiguidade, tal como lido na tradição aristotélica (CARDOSO, 2000; WOLFF, 1999), personagens como Frei Caneca, Cipriano Barata e João Soares Lisboa defenderam uma forma de governo representativo, por eles denominada “Monarquia Constitucional Representativa”, enfatizando a importância da Constituição promulgada pela soberania popular e manifestando um particular conceito de república associado à liberdade tutelada pela lei (LEITE, 2000; 2008; STARLING; LYNCH, 2009). Certamente, a apropriação do ferramental teórico produzido fora do país se deu, em grande parte, de maneira seletiva e intencionada. Isso por vezes sugere que o modo como autores da tradição teórica ocidental eram utilizados na leitura da política brasileira não nos permite identificar uma clara influência. Contudo, como nos mostra Lúcia Neves e Guilherme Neves, a presença de determinadas ideias remonta uma tradição de longa duração na reflexão nacional, inequivocamente tributária de momentos mais amplos do pensamento político moderno.

Conhecido no mundo luso-brasileiro pelo menos desde 1793, quando foi citado por Martinho de Pina e de Proença, em Apontamentos para a educação de um menino pobre, e tendo posteriormente servido, em 1746, de base para muitas das reflexões de Luís Antônio Vernei em o Verdadeiro método de estudar, não é difícil supor que também algo de os Dois tratados sobre o governo do autor inglês tenha alcançado a elite intelectual do Brasil da Independência. É verdade que na época, os “grandes autores foram mal lidos, mal entendidos, mal citados, truncados e falsificados”. Apesar disso, não deixa de haver uma forte semelhança entre a constituição de que

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falam [Joaquim Gonçalves] Ledo, Januário [da Cunha Barbosa] e [Frei] Caneca e a concepção de Locke de que somente “ao povo é facultado designar a forma da sociedade política”, por meio daquele acordo ou pacto que, de maneira pouco definida, distingue a condição natural da condição política e que “torna possível governar por consentimento” (NEVES; NEVES, 2009, p. 74, grifo dos autores).

No período que antecedeu a independência em 1822 o país abrigou um verdadeiro laboratório de experimentos políticos e institucionais, assimilando o debate republicano e sua contraposição ao absolutismo como forma de governo. Tais experiências podem, de alguma forma, serem percebida na variação de significados que conceitos clássicos do pensamento político moderno – como constituição, liberdade, federalismo, república, dentre outros – apresentam, atestando a maturidade da reflexão nacional na apropriação e criação de fórmulas para interpelar a realidade do país (FERES JÚNIOR, 2009; WERNECK VIANNA, 2004). A presença de um conjunto de ativistas – jornalistas, padres, políticos, juristas – associados a uma forma de propaganda republicana de corte radical foi examinada por Renato Lopes Leite (2000), mostrando como a passagem do regime colonial para o Império não ocorreu sem disputas em relação a princípios fundamentais que sustentariam o novo governo, decantando um forte imaginário republicano no país muito antes da “efetiva” consolidação da República em 1889. Aliás, recentes estudos historiográficos têm mostrado inclusive a diminuição da vocação radical que o republicanismo do início do dezenove demonstrava, com a redução das demandas em torno da simples substituição do regime monárquico pelo republicano (CARVALHO, 2009). No entanto, mesmo que o imaginário republicano tenha “silenciado” na discussão e defesa do conceito de “república” durante a maior parte do século, subsiste a possibilidade de identificarmos uma linha de continuidade entre manifestações contrárias ao absolutismo do governo Imperial, incorporando reivindicações constitucionalistas, como o exemplo dos “radicais” fluminenses e da Confederação do Equador em 1824 (LEITE, 2000; MELLO 2004), sua posterior retomada na década de 1860 com as “conferências radicais” (CARVALHO, 2009), e a “aventura” republicana do final do século (LESSA, 1999). Seguramente, não há no pensamento social brasileiro um conceito de república bem demarcado em relação às noções de federalismo e liberalismo (COSER, 2009; NEVES, 2001; STARLING; LYNCH, 2009), nem sua efetiva consolidação institucional comporta o as reivindicações presentes nos momentos de maior “radicalismo”. Ainda assim, Leite abre um importante caminho ao analisar a atuação de um conjunto de pensadores radicais, classificados pelo conservador Visconde de Cairú como “perturbadores públicos”, responsáveis pela confecção da “Representação ao Povo do Rio de Janeiro” que

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exigia a convocação de uma “Assembleia Geral Representativa”, indicando uma nova sede para a soberania do povo brasileiro e defendendo, ainda, uma clara opção federalista associada ao voto direto. A existência dessa noção de república na conjuntura pré-Indenpendência levanta novos questionamentos sobre seu sentido e, acima de tudo, sua realização no final do dezenove brasileiro. Conforme sugerido por Renato Lessa em resenha ao livro, o sucesso de João Soares Lisboa – redator do Correio do Rio de Janeiro difusor de ideias libertárias –, Cipriano Barata e Frei Caneca, derrotados em 1822 e 1824 por homens como Cairú e José Bonifácio, faria com que a República reverenciasse hoje outros “pais fundadores”, venerando uma espécie de “primeira esquerda brasileira” (LESSA, 2000). Algo que não nos impede, entretanto, de inserir o movimento derrotado numa tradição de longa duração na teoria política brasileira. A despeito da derrota da Confederação do Equador em 1824, fato marcante no triunfo do governo imperial sobre as forças descentralizantes no Primeiro Reinado, as reivindicações liberais e republicanas não cessaram (MELLO, 2004; NEVES, 2001). Isso porque, se o republicanismo moderno pode ser apreendido, em um dos seus significados, como uma forma democrática de exercício da soberania popular, momento em que a coisa pública torna-se responsabilidade de todos, as reivindicações de Lisboa e seus pares presentes no momento da Independência do país atestam a existência de um imaginário republicano no cenário nacional, decerto distinto do movimento bem-sucedido na “derrubada” do Império (LEITE, 2008; LESSA, 1999). Ainda assim, esse movimento republicano já demonstrava a existência de um conjunto compartilhado de crenças normativas, baseadas em determinados valores como federação e voto direto, que seriam combatidas pelos construtores do Estado Imperial (COSER, 2009), defensores da centralização política e administrativa numa apropriação seletiva de Tocqueville (FERREIRA, 1999), sem, no entanto, ignorar algumas de suas ideias. O “tempo saquarema”, conforme conhecida descrição de Ilmar Mattos (2004), marcou a consolidação do Estado Imperial e o sucesso dos conservadores na eliminação desse imaginário republicano da agenda pública. A durabilidade do governo monárquico a partir de então pode ser elencada, inclusive, como explicação para o silêncio acerca da tradição republicana brasileira na historiografia nacional (LEITE, 2008). Porém, o processo de construção do Estado imperial não silenciou por completo as reivindicações presentes na conjuntura pré-independência, nem cumpriu um caminho linear até a maioridade de Pedro II, enfrentando manifestações como a já mencionada Confederação do Equador em 1824, e outros movimentos de caráter separatista no período regencial, experiência dolorosa para os homens do Império envoltos no desafio de “inventar” o país (CARVALHO, 1999; 2009; MELLO 2004).

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Com efeito, o imaginário republicano surgido no final do século XVIII e início do XIX trouxe consigo a cobrança de uma nova forma de governo que fosse capaz de incorporar cidadãos e não súditos, debate que seria fortemente marcado, é certo, pelo liberalismo vintista à época da primeira Assembleia Constituinte no país (LUSTOSA, 2004). Importa percebermos, contudo, como os “republicanos brasílicos”, inserindo a noção de público no pensamento social brasileiro, inauguraram, em alguma medida, linhagens distintas na interpretação da realidade nacional a partir da leitura do passado e consequente discussão sobre as instituições que melhor se enquadrariam ao contexto local para a defesa da liberdade (BRANDÃO, 2007). As disputas ocorridas no início do dezenove brasileiro configuraram, assim, um cenário propício para o surgimento de uma imaginação em compasso com a moderna reflexão política ocidental. Ainda que a constituição do novo Império no Brasil a partir de 1822 contasse com a elaboração conceitual de intelectuais presos a um campo regido pelo Absolutismo ilustrado, onde o conhecimento era entendido como arma de poder, a passagem para o moderno no oitocentos marca o início de uma nova inflexão da vida social (NEVES, 1999). Algo que possibilita, no limite, pensarmos numa teoria política brasileira. A percepção, a partir do discurso de Cipriano Barata nas Cortes de Lisboa em 1822, de que no início do século XIX o debate político no Brasil era marcado por uma profunda ausência de discussões públicas sobre o sentido da cidadania, mostra como desse momento em diante uma nova cultura política, inspirada nas ideias liberais vintistas começava a ganhar espaço no vocabulário político do Império (CARVALHO, 2009). Assim, a recepção da tradição do pensamento político ocidental entre nós pode ser buscada, ainda que sem uma precisa correspondência conceitual, em alguns episódios cruciais para a consolidação do país independente. O itinerário aqui inicialmente sugerido começa pela reconstrução dos episódios que antecedem a independência a partir de outras vertentes da historiografia nacional, tomando agora a figura de frei Caneca como personagem principal na montagem do argumento. Nascido em 1779, Caneca era filho de um tanoeiro português e ordenou-se em 1801. Logo entrou em contato com a fértil biblioteca do Seminário de Olinda, tornando-se professor de retórica e geometria, e portador de grande erudição. Pernambuco, sua província natal, capitaneou anos depois, em 1817, um movimento de resistência ao governo central, instalado no Rio de Janeiro, sede da Coroa. Movimento duramente reprimido por D. João VI, sendo seus personagens, frei Caneca entre eles, presos. Posteriormente, na década de 1820, vários foram libertados, no momento em que o país passava por significativas transformações, em grande parte influenciadas por Portugal e as mudanças política vividas no mundo europeu. A derrocada de Napoleão em 1815, a Revolução Liberal do Porto em 1820, o retorno de

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D. João VI a Portugal em 1821 e, por fim, a Independência do Brasil em 1822, constituem apenas alguns marcos de uma série de fatores que concorrem para a construção do Estado brasileiro na primeira metade do século XIX. Fundamentalmente, a saída de D. João arrefeceu os ânimos revolucionários em Pernambuco, sobretudo porque ele representava, aos olhos de Caneca e seu pares, os princípios do Antigo Regime português. Já seu filho e herdeiro do trono no país, D. Pedro I, assinalava aceitar os princípios apregoados pelo liberalismo vintista reverberado no Porto, anunciando a instalação de um regime constitucional do Brasil. No entanto, dois anos depois da Independência a promessa que havia acalmado os revoltosos pernambucanos tornara-se um triste pesadelo que culminaria na Confederação do Equador, proclamada em 1824, movimento ainda mais intenso do que o ocorrido em 1817, na mesma província, e que terminaria com a execução de boa parte dos seus protagonistas, Caneca entre eles, encerrando suas demandas autointituladas “republicanas”. O contexto que cerca a Revolução de 1817 e a Confederação do Equador em 1824 é marcado, dessa forma, por profundas animosidades em relação à postura assumida, primeiro por D. João VI, e, posteriormente, pelo imperador (MELLO, 2001). Mesmo que D. Pedro I tenha, fato que inclusive agradou grande parte da elite política à época (LUSTOSA, 2004), posicionando-se ao lado do Brasil, recusando as imposições das Cortes de Lisboa e declarando a Independência em 1822, a quebra do pacto constitucional, com a outorga da Carta de 1824, criou arestas contornadas apenas pontualmente e por meio da força (MELLO, 2004). Ainda assim, alguns pontos carecem de maior aprofundamento na compreensão da formação do Estado nacional. Tanto o processo de dissolução da Assembleia e consequente outorga da Carta, quanto o que posteriormente se caracterizará como o Regresso conservador a partir de 1840, constituem momentos significativos para a compreensão do que aqui denominamos tradição republicana (DANTAS, 2009; LYNCH, 2010). Em outras palavras, as transformações ocorridas no intervalo entre a primeira prisão de Caneca, em 1817, e a ascensão de Uruguai ao poder durante o Regresso Conservador de 1840, manifestam uma singular apropriação do quadro conceitual presente na teoria política do Ocidente, conforme discutido há pouco. O interregno reforça, de alguma forma, o argumento que venho sustentando sobre a existência de uma tradição republicana entre nós. Isso porque, quando frei Caneca é preso em 1817, o Brasil vivia um contexto bem distinto do que aquele que ocasionou sua execução, depois da Confederação de 1824. Num primeiro momento, D. João VI ainda era o regente e, por mais que o país tivesse sido alçado ao posto de sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, ainda nos assombrava a situação de colônia que poderia, como de fato se anunciou, voltar à tona. Caneca é um defensor da liberdade em 17 e, quando

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solto em fevereiro de 1821 seus inimigos haviam tornando-se outros. Depois da Revolução do Porto em 1820, foram instaladas as Cortes Constitucionais, sob os auspícios da Constituição de Cádis, que terminaram por cobrar o retorno de D. João VI, num primeiro momento, e depois de D. Pedro I, que se recusou. Sua recusa, de alguma forma, sinalizava o apoio ao Brasil e sua causa – tornar-se livre e não recuar novamente para a posição de colônia –, inclusive com a convocação de uma Assembleia para a confecção de uma Constituição legitimamente brasileira, postura bem vista mesmo pelos revoltosos pernambucanos. É emblemático o discurso do próprio Caneca na ocasião da celebração da missa de aclamação de D. Pedro como primeiro imperador do Brasil, ocorrida na Matriz do Corpo do Santo em Recife, em 8 de dezembro de 1822, quando refere-se ao herdeiro como o “imperador constitucional” do Brasil (BERNADES, 1999). Contudo, no ano seguinte a promessa já havia se convertido em pesadelo e os pendores despóticos do jovem D. Pedro I, conforme interpretação de Caneca, se manifestavam na dissolução da Assembleia Constituinte que terminaria fomentando a Confederação do Equador em 24. Denis Bernardes, grande intérprete e divulgador do pensamento de Caneca, salienta que a luta pernambucana era contra aquilo que classificavam como “absolutismo monárquico”, muito além de demandas exclusivamente regionalistas (BERNARDES, 1999). Segundo o autor, tratava-se da defesa de um governo constitucional, prometido depois da Revolução do Porto, mas negado pouco tempo depois. Ao final, D. Pedro tornava-se, novamente, um inimigo e Caneca seria derrotado e fuzilado em dezembro de 1824. Na abordagem contextualista acima mencionada, Heloisa Starling e Christian Lynch mostram como o conceito de república assumiu sentidos diferentes entre 1750 e 1850 no país. Os autores apontam como se fixa no Brasil dos anos 1820 um sentido de república identificado com a ideia de democracia, devido aos ecos da Revolução Francesa. Dessa forma, surgia “uma linguagem do republicanismo que permitia vincular a noção da política como atividade pública” (STARLING; LYNCH, 2009, p. 229), sem, no entanto, incorporar o povo e questionar a escravidão (SOUSA; PERLATTO, 2010b). Ainda de acordo com os autores, o republicanismo será posteriormente influenciado pelo constitucionalismo oriundo do liberalismo vintista que eclode na Revolução do Porto, associando república à democracia e ao governo do povo. Tratava-se, nesse contexto, de operar a transição do Antigo Regime para um regime constitucional. Nessa direção, a dissolução da Assembleia Constituinte de 1823 marcou profundamente os críticos de D. Pedro I, conforme discutimos acima, que se apegarão ao tema do constitucionalismo presente, também, no conceito de república (NEVES; NEVES, 2009;

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STARLING; LYNCH, 2009), como tábua de salvação para evitar os abusos de uma monarquia que parecia ganhar cada vez mais a feição de um poder absoluto. Além disso, surgia a defesa da livre iniciativa e da dimensão do interesse – ainda que estes devessem estar sob o comando da dimensão do público e do bem comum –, bem como da descentralização, do aumento do poder local e da autonomia provincial, a despeito da manutenção da unidade territorial não ser, na maioria das vezes, questionada (SOUSA; PERLATTO, 2010b). O elemento que aqui importa é percebermos como o republicanismo de Caneca clamava, sobretudo, pela existência de um regime constitucional capaz de assegurar a liberdade. Basta observarmos como ele recebe positivamente a notícia da aclamação de D. Pedro I como imperador do Brasil, em razão da expectativa acerca da convocação da Assembleia Constituinte, bem como, posteriormente, ele o condenará pela dissolução da mesma. Ainda que seu conceito de liberdade seja distinto daquilo que o pensamento conservador entenderá por, sobretudo Visconde do Uruguai, podemos, a partir dessa constatação, problematizar os elementos “libertadores” presentes tanto na Carta de 1824 (DANTAS, 2009) – responsável pela cisma que culminará na morte do próprio Caneca após a Confederação do Equador –, quanto no Regresso depois de 1940 (LYNCH, 2010). O argumento aqui defendido sustentará, nas próximas seções, que o pensamento conservador conseguiu, em parte, assegurar maior “liberdade” para o país, por meio da tutela e garantia dos direitos, do que o republicanismo de Caneca teria, em raciocínio assumidamente contrafactual, sido capaz. Ou seja, o pensamento conservador no Brasil mostrou-se mais “republicano” do que o pensamento liberal, ao possibilitar, por meio da confecção de um regime constitucional, o ordenamento do mundo público para o desenrolar “controlado” dos interesses. Sobrepôs, com efeito, um “ponto de vista mais geral” (LESSA, 2009) ao facciosismo das partes. Permanecendo intocado, por certo, o problema da escravidão. Tal questão, contudo, também não havia sido debatida pelo republicanismo pernambucano, nem pela Assembleia de 1823 (DANTAS, 2009), nem mesmo por aquilo que Brandão denomina pensamento liberal (2007).

4.2 A Carta de 24 como fonte de “autoridade”

Monica Duarte Dantas parte, em interessante artigo sobre a formação do Estado- nacional brasileiro (2009), precisamente do manifesto de frei Caneca de 1824, negando sanção

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à Constituição outorgada pelo imperador D. Pedro I, para mostrar como, a despeito de algumas poucas manifestações de oposição, a Carta logrou êxito na organização do país. Segundo a autora,

Uma vez outorgada, colocava-se como efetivação de um contrato que permitia a formação de um governo com normas legais instituídas e como fundamento da união das províncias brasileiras. Tratava-se de uma constituição que, se não ganhava sua legitimidade pela participação direta do povo na sua elaboração, por meio dos seus representantes eleitos, não deixava de se validar mediante o reconhecimento das câmaras municipais de quase todo o país. Porém, mais do que isso, se em certas questões, ainda que centrais, diferenciava-se do que estava sendo discutido em 1823, em vários outros artigos mantinha as propostas da Assembléia ou dos autores do projeto (DANTAS, 2009, p. 20).

A Assembleia Constituinte de 1823 deixou, antes da sua dissolução em novembro daquele ano, um projeto de constituição onde já constava sua concepção acerca de questões centrais para a organização política do país, manifesta em 24 artigos. Ao dissolver a Assembleia, entretanto, D. Pedro I nomeou uma comissão encarregada da redação de um novo projeto que resultaria, no ano seguinte, na Carta outorgada em 1824, que guarda semelhanças, diferenças e, o que mais surpreende, o aprimoramento de algumas questões, na contracorrente do que usualmente supomos a partir das críticas oriundas do movimento pernambucano. Dantas analisa comparativamente o Projeto de 23 e a Carta de 24, mostrando como a mais longeva das nossas constituições merece melhor compreensão, sem negar, porém, seu elemento imposto. Diferentemente do Projeto, a Carta institui o Poder Moderador como um dos poderes políticos reconhecidos – ao lado do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. Ponto de disputa ao longo de todo o período imperial, o Poder Moderador era considerado por seus críticos como um falseamento da representação, ou, em tom mais cáustico, uma “nova invenção maquiaveliana” que trazia resquícios do Antigo Regime, conforme definição do próprio Caneca. Ao debruçar-se sobre o texto constitucional, no entanto, Dantas mostra a singularidade da concepção desse Poder em Portugal e no Brasil, pensado como instrumento de equilíbrio dos poderes. Sem falar, é claro, dos requisitos legais previstos no texto para o seu exercício, especialmente na dissolução da câmara, principal ponto de crítica. Alegava-se, na chave liberal, que a prerrogativa de dissolução da Câmara conferiria ao Moderador demasiado poder, sendo capaz de se sobrepor à vontade popular. Segundo a autora,

Era justamente essa última atribuição, a de dissolver a câmara temporária, que durante todo Império mais mereceu ataques por parte dos críticos da Carta de 1824 e da atuação dos monarcas. Contudo, é necessário lembrar que ao imperador só era,

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supostamente, facultado dissolver a Câmara, se acionado pelo ministério nas situações de conflito entre ambos, e somente nas situações em que o ministério transformava o confronto em questão de gabinete. Nesses casos, o imperador podia ou bem demitir seus ministros, ou então dissolver a Câmara. Mais do que isso, nessas situações de embate entre o Executivo e o Legislativo, não era incomum que os políticos brasileiros entendessem a dissolução da Câmara como um meio lícito de, em se tratando de um governo representativo, deixar a decisão final para o eleitor (DANTAS, 2009, p. 22).

Nesse sentido, a dissolução da Câmara pelo Moderador poderia ocasionar duas situações distintas: ou os deputados que lá estavam seriam eleitos novamente, dano sinais de que os eleitores desejavam a continuidade da política adotada pelo Legislativo, ou a Câmara passaria por um processo de renovação, o que manifestaria claro apoio à política do gabinete. Em ambos os cenários, prevaleceria, com efeito, a soberania da vontade dos eleitores. Além disso, a obrigatoriedade da convocação do Conselho de Estado – não prevista no Projeto de 23, mesmo porque não era firmado o Moderador enquanto poder legítimo –, conferia um caráter menos “despótico” e mais colegiado às suas decisões (CARVALHO, 2006). Obrigatoriedade que desaparece depois do Regresso de 1840. A responsabilização do Moderador sobre suas decisões foi igualmente responsável por um acalorado debate durante o período imperial. Ao passo em que seus críticos defendiam que a responsabilidade por suas decisões deveria incidir sobre seu titular, o imperador, Visconde do Uruguai, um dos seus defensores, sustentava a necessidade de isenção precisamente porque o Moderador seria o lugar do interesse geral, ou da nação, e não dos interesses particulares (COSER, 2008). A organização e as prerrogativas do Poder Legislativo, por sua vez, também encontraram definições interessantes na Carta de 24. Se o Projeto de 23 estreitava, por exemplo, a possibilidade de reforma constitucional, a Carta facultava, desde que respeitado o trâmite legislativo, a prerrogativa da alteração ou reforma do texto (DANTAS, 2009, p. 26). Entretanto, são seus artigos sobre a representação e a cidadania que mais acirram a distinção e conferem um caráter positivo à Carta outorgada, em detrimento do Projeto então discutido pela Assembleia de 23. Ao estabelecer uma diferença fundamental entre cidadãos politicamente ativos – aqueles que poderiam votar, mas não necessariamente serem votados –, e passivos – aqueles que não participariam das instâncias de representação ou mesmo do processo eleitoral –, o Projeto restringia fortemente o acesso à participação política. Sem falar, é claro, no seu elemento censitário estipulado em alqueires de farinha – uma clara oposição aos portugueses comerciantes que obtinham rendimento não da lavoura –, o que lhe rendeu o apelido de “Constituição da Mandioca” (LUSTOSA, 2004). A Carta de 24 mantém o elemento censitário, mas retira sua comprovação em alqueires

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de farinha, estipulando uma renda considerada pequena para a época. Não por acaso, o número de votantes ao longo do Império foi significativo, tornando-se restrito apenas ao final do regime, após a implementação da Lei Saraiva em 1881.

Em suma, pelo Projeto de 1823 previa-se maior restrição à representação, tendendo a concentrá-la nas mãos das velhas ou novas elites que tiravam seu sustento basicamente da propriedade; enquanto que, em 1824, pouco importava a proveniência do rendimento (fosse para a qualificação do votante, do eleitor, do deputado ou senador). Nesse sentido, apesar de todas as justificadas reclamações em relação à Carta outorgada, é necessário reconhecer que ela possibilitava uma participação popular mais ampla do que aquela prevista pelos autores do Projeto de 1823 (DANTAS, 2009, p. 32).

Dantas destaca, ainda, que mesmo a Constituição da República Rio-Grandense de 1843 era mais restritiva do ponto de vista da participação eleitoral, quando comparada à Carta de 24. Além desses aspectos, o Projeto de 23 ainda mencionava, explicitamente, o direito sobre escravos, negava totalmente os direitos políticos àqueles que não professassem a religião do Estado, constituindo maiores obstáculos para o fim da escravidão e mostrando-se menos afeita ao pluralismo religioso (DANTAS, 2009). Sendo assim, a autora conclui que,

Considerando-se a longevidade da Constituição de 1824 é forçoso reconhecer sua importância e adequação (o que pressupunha a própria possibilidade de reforma) aos princípios e propósitos de construção do novo Estado o que, por um lado, implicava superar heranças do Antigo Regime e, por outro, assentar bases institucionais nos moldes dos estados modernos de então, no caso brasileiro, de uma monarquia constitucional representativa. [...] Disso não se pode concluir que a esfera normativa pudesse constituir unilateralmente a sociedade, como ainda não se deve deixar de reconhecer seu significado para aqueles envolvidos diretamente ou indiretamente, tanto na proposição das leis como em sua aplicação (DANTAS, 2009, p. 46).

Dantas, dessa forma, problematiza a acusação de despotismo desferida contra a Constituição de 1824 pelo movimento pernambucano. Mais do que isso, ao comprar o Projeto legado pela Assembleia de 23 com a Carta outorgada pelo imperador, a autora abre a possibilidade de identificarmos elementos, até então negligenciados, que aproximam o pensamento conservador do que venho aqui definindo como uma tradição republicana brasileira. Algo que não impediu, como há pouco mencionado, o surgimento de resistências ao regime, como a Confederação do Equador, por exemplo, e as inúmeras revoltas regenciais que jogaram o país num dos períodos mais conturbados de sua história. Falta, contudo, pensarmos como os desdobramentos desse processo culminaram no apogeu do conservadorismo no país, com o Regresso. A explosão de inúmeras revoltas após a promulgação do Ato Adicional, sob o comando

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de lideranças regionais descompromissadas com os princípios de unidade nacional e de “razão de Estado” ocasionou, menos de uma década depois, uma forte reação do pensamento conservador (MOREL, 2003). A experiência das Regências assustou mesmo os liberais, sendo repensada já 1837 com a reforma das leis descentralizantes. A Interpretação do Ato Adicional de 1834, que significou mais a promulgação de uma nova lei contrária ao Ato original do que uma simples “interpretação”, atacando a autonomia das Assembleias Provinciais especialmente na sua capacidade de criação de empregos (COSER, 2008; FERREIRA, 1999), iniciou o Regresso definitivamente concluído em 1841 com a volta dos conservadores ao poder (CARVALHO, 1999). Nesse cenário, a capacidade da monarquia de servir de árbitro aos conflitos entre facções locais e a coincidência entre o centro político do país com o centro econômico – o café tornava- se o principal produto de exportação a partir de 1830 e tinha o Rio de Janeiro como principal produtor –, facilitou a retomada da centralização política e administrativa do país na década de 1840, com a volta das atribuições do Poder Moderador e do Senado vitalício, bem como a concentração do aparelho judicial nas mãos do Ministro da Justiça (CARVALHO, 1999). Isso significou menos o “esmagamento” dos poderes locais do que a instauração do governo central enquanto árbitro dos conflitos, trazendo para a dimensão pública o processamento das lutas e redimensionando o papel das lideranças partidárias (CARVALHO, 2006). Christian Lynch, em estudo sobre a formação e atuação do pensamento conservador no país (2010), adotará a expressão “saquarema” para descrever as ideias responsáveis pelo Regresso, evitando, com isso, questionamentos a partir da teoria política. O autor aponta as origens dos partidos que viriam a florescer na cena política imperial a partir do final dos anos 1830 – Liberal e Conservador –, a partir da cisão entre coimbrãos ou realistas e brasilienses ou liberais, mostrando como em diversos momentos os conservadores, ou saquaremas, foram capazes de tomar decisões contra os interesses particulares radicados na grande propriedade rural. A abolição do tráfico de escravos, ainda em 1850, bem como a lei do ventre livre, de 1871, além da demarcação das terras custeada pelos proprietários para consequente taxação, configuram exemplos dessa postura. Segundo Lynch,

O estatocentrismo saquarema impunha à própria aristocracia rural a incorporação do mundo do campo ao mundo da civilização, isto é, da regulação de suas atividades pelo Estado. Daí que, como os coimbrãos e realistas, entre os interesses da lavoura e do Estado, os saquaremas ficavam com este – como em 1850 e 1871, quando a razão de Estado saquarema sacrificou o interesse da aristocracia rural (LYNCH, 2010, p. 43).

Na direção de defender as medidas levadas a cabo pelo Regresso, os saquaremas

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corroboraram com a dissolução da Assembleia de 23, defendendo, sobretudo, o centralismo monárquico em sua capacidade de sobrepor o interesse geral aos interesses particulares, essencialmente facciosos. Paulino José Soares de Souza, o Visconde do Uruguai, atuou como um dos principais artífices do Regresso, reformulando os temas da liberdade e da civilização a partir de uma agenda comumente denominada conservadora (BRANDÃO, 2007), ou saquarema, nos termos há pouco mencionados. Uruguai acreditava que o conflito entre diferentes “facções” locais representava uma ameaça ao governo “civilizado”, identificando nas “inovações americanas”, consolidadas na legislação regencial, evidentes ameaças ao sistema jurídico brasileiro: ao descentralizar a administração da justiça, delegando à esfera local a possibilidade de “julgar”, a Regência teria inaugurado o “reino da impunidade”. Com isso, o autor defendia a necessidade de concebermos o Estado como o fator de garantia da liberdade contra o arbítrio do particular. Será a partir da leitura seletiva de que Uruguai afirmará “o poder distante [como] menos despótico”, por representar um elemento de civilização e garantia de direitos, devendo o Estado exercer o papel de pedagogo da liberdade ao educar o povo para o autogoverno, ponto que marca inclusive uma tênue revisão do movimento levado a cabo pelo Regresso89. Ainda que conservador, ele defenderá a diminuição da “cabeça do governo” – o poder político –, e o aumento dos seus “braços e pernas” – o poder administrativo –, garantindo os direitos civis e preparando o povo para o exercício dos direitos políticos (Uruguai, 2002). Acima de tudo, o direito administrativo francês e sua organização hierarquizada da administração pública representavam para Uruguai o modelo mais adequado à realidade brasileira, permitindo à elite forjar um sistema representativo que combatesse os ataques à liberdade individual: o self-government, tema louvado no modelo americano, seria alcançado apenas por meio da tutela bem-sucedida do Estado. Ao valorizar a liberdade contra o arbítrio do particular, Uruguai recupera temas caros à família republicana, tal como venho discutindo aqui, como a noção de bem comum. Sem dúvida, o autor integrava a agenda conservadora e recorria às repúblicas vizinhas como exemplos de desordem a serem combatidos. No entanto, uma das grandes sofisticações do seu argumento é mobilizar seletivamente Tocqueville na defesa do Estado como um agente promotor da liberdade, ainda que sob a tutela da lei, contra o despotismo do mundo privado, conferindo “novas cores” aos conceitos apropriados da teoria política. A ausência de freios ao apetite do particular, tema presente no pensamento republicano como um todo (RIBEIRO,

89 Um interessante estudo sobre a apropriação seletiva do pensamento de Tocqueville por diferentes argumentos no debate político imperial pode ser encontrado em Ferreira (1999).

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2000), surge aqui como ponto de aproximação e recriação entre Visconde do Uruguai e a linhagem intelectual sugerida. Contudo, o sucesso da empresa conservadora, ou saquarema, em ordenar o mundo público, a partir de uma constituição e seu sistema de regras e leis estabelecidas, a aproxima da tradição republicana, e, ao mesmo tempo, tenciona os interesses modernizadores do Estado com a base atrasada sobre a qual se assentava. Conforme descreve Lynch,

Na forma de um governo parlamentar e centrípeta tutelado pela Coroa, portanto, a engenharia institucional proposta pelos conservadores lograva, assim, a proeza de prevenir no âmbito parlamentar o risco de desordem provocado pela divergência das aristocracias provinciais, sem comprometer, pelo facciosismo, o único projeto nacional em torno do qual era possível consenso; e que passava pela conciliação do ideal civilizador coimbrão de um poderoso Império unitário com o incremento do negócio agroexportador ancorado na grande propriedade rural, monocultora e escravista (LYNCH, 2010, p. 52).

Assim como discutido no capítulo anterior, a Carta de 24 teria representado a fonte de um modelo de autoridade política, capaz de ser acionado contra o poder em determinadas situações. O caso da escravidão e do enfrentamento dos interesses latifundiários constituem dois exemplos desse processo. No primeiro, conforme Dantas (2009), a Carta outorgada trazia elementos mais “permissivos” com a abolição. Em momento algum, é importante que se enfatiza, a historiadora defende a Constituição de 1824 como abolicionista. A autora apenas nos mostra, por meio de arguta comparação entre a Carta de 24 e o projeto deixado inconcluso pela Assembleia de 23, que, no plano contrafactual, caso nossa primeira constituinte tivesse “vencido”, seria necessária uma reforma da constituição para que a abolição fosse possível. Sobre os interesses dos grandes proprietários de terra, além do debate já mencionado acerca do fim da escravidão (CARVALHO, 2006), Lynch apresenta a discussão sobre a demarcação e taxação das terras. Segundo o autor, os proprietários deveriam arcar com os custos, com vistas a fortalecer a arrecadação de impostos do Estado. Ambos os casos, ao seu modo, ilustram a possibilidade de mobilizarmos a autoridade contra o poder.

4.3 O Estado como o “lugar” da liberdade

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O caráter distinto da aventura colonial portuguesa em comparação com o processo observado na América espanhola constitui hoje ponto relativamente pacífico entre os historiadores (LUSTOSA, 2004). No Brasil, segundo tais estudos, a colonização assumiu desde o início características responsáveis – mesmo que não suficientes – pela manutenção da unidade nacional num território notadamente vasto, como o estabelecimento do Governo Geral da Colônia já no primeiro século, a permanente manutenção do monopólio do comércio com a metrópole, a constituição das Capitanias Hereditárias ainda em 1534 – primeiro ensaio de administração no país e fonte de um padrão de relacionamento talvez ainda presente nos séculos subseqüentes –, até a transferência da coroa portuguesa para a colônia em 1808, momento de grande importância para a “invenção” do país e alteração da sua condição “dependente”, fatores que explicam inclusive a unidade lingüística aqui alcançada. Prova da incapacidade da coroa portuguesa em administrar e manter os territórios conquistados, as Capitanias instituídas por D. João III marcam um formato organizacional no qual a metrópole recorreu ao poder privado sob a forma de donatários buscando uma saída para o problema da ocupação e administração do território. A despeito da algumas tentativas, o resumo da herança colonial apresenta um quadro avesso ao projeto de unidade nacional que será levado a cabo com eficiência pela elite política no Império. Assim, até a independência o que vimos foi um poder metropolitano fraco, incapaz de exercer administração centralizada e que por isso recorria à cooperação da iniciativa privada e à descentralização política e administrativa; um poder político forte, mas oligárquico; e, uma colônia que era um ajuntamento de capitanias frouxamente unidas entre si, para as quais o poder do vice-rei era pouco mais que nominal (CARVALHO, 1999: 158). No entanto, a invasão da Península Ibérica pelas tropas francesas em 1807 e a decisão de D. João VI de transferir a corte portuguesa para o Brasil em 1808, com o objetivo de não ter o mesmo destino da coroa da Espanha, acabou por disponibilizar uma solução monárquica para a elite nacional como a saída para os distúrbios observados na América espanhola, permanente fonte de exemplos na imediata retórica conservadora formada à época do Regresso90. Entre a elite da primeira metade do século XIX subsistia um medo latente de que a República levasse a fragmentação do país, medo que aumentou com a “solução da independência” e o problema posto de criar o Estado brasileiro “do nada”. Isso fez com que a monarquia fosse vista como um fator de unidade política e moral, tema que será recuperado posteriormente por Oliveira

90 A reconstrução do período monárquico deve, sem dúvida, anteceder 1808 incluindo momentos importantes da história de Portugal nos séculos XVII e XVIII, como a atuação de Pombal pode exemplo, algo que escapa aos limites propostos no presente trabalho.

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Vianna, centro de um movimento de retomada do projeto do Estado centralizador observado no Império (LAMOUNIER, 1985; RICUPERO, 2007). Mesmo convivendo com o espírito localista apresentado pelos deputados brasileiros, sobretudo por aqueles que não pertenciam à elite de magistrados treinada na Universidade de Coimbra (CARVALHO, 2006), a solução monárquica não significou uma usurpação da soberania, como posteriormente afirmará a crítica republicana, mas sim a opção consciente de uma elite que temia a “guerra civil” associada à ameaça de fragmentação. Temor que ultrapassava mesmo os interesses escravocratas existentes à época, colocando abolicionistas notórios como José Bonifácio em defesa, antes, da unidade da colônia. Essa constatação abre caminho para entendermos como o Estado brasileiro, por meio de uma burocracia conformada segundo padrões ideológicos e de treinamento homogêneos, desempenhou um papel central no processo de “forjar a nação” ante o contexto adverso onde inexistia uma classe burguesa capaz de regular as relações sociais e o mercado. A burocracia a frente do governo, sobretudo magistrados, constituía uma elite totalmente não-representativa da população do país na primeira metade do século XIX – uma “ilha de letrados” –, tendo sido socializada nas tradições do mercantilismo e absolutismo português, característica que lhe facultava a possibilidade de defender os interesses da nação sem, no entanto, se afastar dos interesses agrícolas que sustentavam economicamente o Estado.

O núcleo da elite brasileira, pelo menos até um pouco além da metade do século [XIX], era formado de burocratas – sobretudo magistrados – treinados nas tradições do mercantilismo e absolutismo portugueses. A educação em Coimbra, a influência do direito romano, a ocupação burocrática, os mecanismos de treinamento, tudo contribuía para dar à elite que presidiu à consolidação do Estado imperial um consenso básico em torno de algumas opções políticas fundamentais. Por sua educação, pela ocupação, pelo treinamento, e elite brasileira era totalmente não-representativa das divergências ou da ausência de articulação dos diversos setores da classe dominante, embora não representasse interesses que fossem a eles radicalmente opostos (CARVALHO, 2006, p. 230-231).

Era precisamente seu caráter não-representativo, aliado aos mecanismos de funcionamento próprios, como a alta rotatividade da burocracia nos diferentes níveis da administração, que permitiam a elite se colocar acima dos conflitos locais e dos interesses particulares, mantendo-se forte na defesa da unidade nacional, como se os ideais associados à “nação” existissem apenas na cabeça dos dirigentes e fossem induzidos “por cima” no restante da população. Esse mundo “esotérico” foi, entretanto, capaz de “decantar” conflituosamente formatando a estrutura institucional do país, processo no qual couberam reformulações diversas. Foi precisamente o fato de que a elite política tornou-se paulatinamente mais

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representativa da sociedade fez com que interesses regionais antes afastados penetrassem na organização republicana, comprometendo a “razão nacional” ao refletir a desigualdade e dominação existentes na sociedade brasileira com mais crueza na esfera política (CARVALHO, 2006). A tentativa de implementação da ordem federativa no país por meio das transformações legais efetuadas na década de 1830 – tendo como carro-chefe a descentralização da administração judicial, acompanhada da extinção do Conselho de Estado e a atribuição de uma maior autonomia política as províncias –, instituíram um princípio de organização bem distante do absolutismo português sem, no entanto, comprometer o ideal monárquico: o debate era polarizado entre federalismo e centralização, mas a monarquia, enquanto ideal de unidade e ordem, permanecia intocada (COSER, 2008). Entretanto, a explosão de inúmeras revoltas após a promulgação do Ato Adicional, sob o comando de lideranças regionais descompromissadas com os princípios de unidade nacional e de “razão de Estado” ocasionou, menos de uma década depois, uma forte reação ao que foi classificado pelo pensamento conservador como um “excesso” da parte dos liberais ao imprimirem suas mudanças91. Isso fez com que a experiência da Regência assustasse mesmo os liberais e apontasse seu fim já em 1837 com a reforma das leis descentralizantes – a Interpretação do Ato Adicional de 1834, que significou mais a promulgação de uma nova lei contrária ao Ato original do que uma simples “interpretação”, atacando a autonomia das Assembleias Provinciais especialmente na sua capacidade de criação de empregos (COSER, 2008; FERREIRA, 1999) –, sendo definitivamente sepultada em 1841 com a volta dos conservadores ao poder: chegava, com isso, ao fim a experiência republicana semifederal (CARVALHO, 1999: 167). A capacidade da monarquia de servir de árbitro aos conflitos entre facções locais e a coincidência entre o centro político do país com o centro econômico – o café tornava-se o principal produto de exportação a partir de 1830 e tinha o Rio de Janeiro como principal produtor –, facilitou a retomada da centralização política e administrativa do país na década de 1840, com a volta das atribuições do Poder Moderador e do Senado vitalício, bem como a concentração do aparelho judicial nas mãos do Ministro da Justiça. Isso significou menos o “esmagamento” dos poderes locais do que a instauração do governo central enquanto árbitro

91 Curioso notarmos como o tema compõe um campo semântico quase contínuo na crítica às transformações em curso em diferentes momentos da história do país, presente também no ataque de Oliveira Vianna aos liberais de 1891, retomado de alguma forma na Revolução 1930 e no Estado Novo em 1937 (REZENDE DE CARVALHO, Maria Alice, 2001; WERNECK VIANNA, 2001).

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dos conflitos, trazendo para a dimensão pública o processamento das lutas e redimensionando o papel das lideranças partidárias (CARVALHO, 2006). O próprio Imperador concebia assim sua colocação frente aos dissensos particulares, demonstrando uma defesa dos interesses nacionais acima dos seus e de todos os demais: “Não sou de nenhum dos partidos para que todos apóiem nossas instituições; apenas os modero, como permitem as circunstâncias, julgando-os até indispensáveis para o regular andamento do sistema constitucional, quando, como verdadeiros partidos e não facções, respeitam o que é justo” (D. Pedro II, apud. CARVALHO, 2007). Visconde do Uruguai, Ministro do Império e personagem influente no Partido Conservador, foi quem melhor reformulou os temas da liberdade e da civilização – tão alardeados pela crítica liberal como princípios seriamente ofendidos pelo despotismo do poder central –, nos termos que povoaram a agenda de reformas do Regresso. Conforme discutiremos a seguir, Uruguai acreditava que o conflito entre diferentes “facções” locais representava uma ameaça ao governo “civilizado”, identificando nas “inovações americanas” evidentes ameaças ao sistema jurídico brasileiro – ao descentralizar a administração da justiça, delegando à esfera local a possibilidade de “julgar”, a Regência inaugurou o “reino da impunidade” –, defendendo, com isso, a necessidade de concebermos o “Estado como o fator de garantia da liberdade contra o arbítrio do particular” (COSER, 2008). A partir da leitura seletiva de Tocqueville, Uruguai acreditava que “o poder distante seria menos despótico” ao representar um elemento de civilização e garantia de direitos (FERREIRA, 1999), devendo o Estado exercer o papel de pedagogo da liberdade, educando o povo para o autogoverno, ponto que marca inclusive uma tênue revisão do movimento levado a cabo pelo Regresso: deveríamos diminuir a cabeça do governo, seu poder político, e aumentar seus braços e pernas, seu poder administrativo, garantindo os direitos civis e preparando o povo para o exercício dos direitos políticos (URUGUAI, 1962). Acima de tudo, o direito administrativo francês e sua organização hierarquizada da administração pública representavam para Uruguai o modelo mais adequado à realidade brasileira, permitindo à elite forjar um sistema representativo que combatesse os ataques a liberdade individual (COSER, 2008): o selfgovernment, tema louvado no modelo americano, seria alcançado apenas por meio da tutela bem-sucedida do Estado. Mesmo não alcançando os objetivos finais imaginados no “Ensaio sobre o Direito Administrativo”, livro escrito no momento em que Uruguai já se retirava do cenário político nacional, o Ministério Conservador que sobe ao poder na década de 1840 é feliz nos seus objetivos de consolidação de ordem, lançando o Brasil num estágio de relativa tranquilidade interna, com revoltas separatistas

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controladas, bem como fazendo com que o país ocupe uma importante posição na política com os países vizinhos. Conforme a interpretação aqui proposta, ao valorizar a liberdade contra o arbítrio do particular, Uruguai recupera um dos temas caros à família republicana, tal como venho discutindo aqui, além de introduzir uma espécie de defesa do “bem comum”. Sem dúvida, o autor integrava a agenda conservadora e recorria às repúblicas vizinhas como exemplos de desordem a serem combatidos. No entanto, uma das grandes sofisticações do seu argumento é, conforme discutimos acima, mobilizar seletivamente Tocqueville na defesa do Estado como um agente promotor da liberdade, ainda que sob a tutela da lei, contra o despotismo do mundo privado, conferindo “novas cores” aos conceitos apropriados da teoria política. O modo como Coser (2008) descreve a relação entre “civilização” e “sertão” na obra de Uruguai ilustra o ponto aqui em questão. Segundo o autor, a ideia de federalismo esteve, inicialmente, associada à descentralização do poder no país, colocando-o ao alcance do cidadão ativo no município, tal como a eleição do juiz de paz e a composição do júri popular no Código do Processo manifestam. No entanto, mesmo a corrente federalista percebeu, nos lembra Coser, a necessidade de matizar a política descentralizadora, dado o grau desigual de distribuição da civilização no Brasil, conforme observamos nas transformações operadas pelo Ato Adicional. Dessa forma, os termos “civilização” e “sertão” se impõem no ideário político da época como imagens fortes, marcando a interpretação do Brasil por essa dualidade. Coser aponta como a questão central entender por que Visconde do Uruguai via as localidades sob uma ótica exclusivamente negativa. Em outras palavras, por que das localidades emergia uma prática política incapaz de implementar no aparelho judicial uma ordem impessoal. Decerto, das localidades não brotou uma cidadania ativa capaz de proporcionar a liberdade, o que levava Uruguai defender que a formação do Estado-nação não poderia emergir das localidades. Em sua visão, nos lembra Coser, as localidades eram bárbaras, divididas em facções, sendo o poder central ilustrado e o único capaz de oferecer garantias aos cidadãos. O autor afirma que tal percepção, de um país marcado pela dualidade sertão/civilização, não se altera ao longo de sua trajetória, seja nos conturbados anos da Regência, seja no período pacificado do Segundo Reinado. Sua hipótese, com efeito, é a de que o termo civilização confere, na leitura de Uruguai, o conteúdo para se pensar a evolução da sociedade brasileira, tendo como meta a instalação da ordem liberal pela superação da dicotomia em favor da civilização. Nas palavras do autor,

O projeto político de Uruguai para a sociedade brasileira apontava para a implantação

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desse padrão de civilização, e não existia no seu argumento uma tentativa de preservar o exótico presente na barbárie; o sertão, com seus conteúdos particularistas, deveria ser superado. Existe uma clara percepção de que o sertão era um elemento estranho à ordem liberal que estava em construção no Brasil (COSER, 2008, p. 151).

Segundo Coser, o relatório ministerial redigido por Uruguai em 1841 traduz o modo como os termos civilização e sertão eram mobilizados no debate político da época: o espaço no qual um deles está presente afasta e mesmo repele o outro. Importante notarmos, enfatiza o autor, o momento histórico no qual Uruguai escreve: o Regresso Conservador e a necessidade de confrontar o funcionamento das leis com o estado social do país, o que mostra como a utilização dos termos civilização e sertão não era uma novidade no debate da época. A existência de pequenas revoltas armadas no interior do Império, motivadas, sobretudo, pela eleição dos juízes de paz e promotores, que constituíram, para além das grandes revoltas regenciais, matéria sobre a qual a reflexão política vai se debruçar a fim de propor medidas capazes de frear seu potencial ameaçador. Dessa forma,

Há uma contraposição entre uma civilização ainda frágil e localizada em alguns pontos e um sertão vasto que se estende por dentro do país, circundando e ameaçando tragar a nascente civilização. Dentro dessa heterogeneidade, Uruguai assinala claramente que a parte bárbara do país constitui-se em região distinta, separada, sem vínculos com as regiões civilizadas (COSER, 2008, p. 153, grifo do autor).

Na metáfora mobilizada pelo autor no “Ensaio”, tratava-se de um Estado portador de uma enorme cabeça, mas com braços curtos. Logo, a reforma deveria fazer com que os braços do estado alcançassem os sertões. Ao passo em que estes eram marcados pela barbárie e por indivíduos que agiam conforme deus “caprichos” e não de acordo com a lei, a nascente civilização caracterizava-se pela existência de cidadãos portadores de laços de interesse entre si, amor à propriedade e ao trabalho, sentimento de afeição para com a ordem. Cidadãos dotados, sobretudo, de educação. O interesse, ausente nos sertões e presente a civilização, seria responsável por vincular os cidadãos entre si e apara com a ordem social e política. O relatório citado mobiliza, ainda, a ideia de que os sertões eram pouco povoados, denunciando um desequilíbrio entre a quantidade de indivíduos e o tamanho território. Coser aponta, por meio da história dos conceitos empregados, a associação do termo civilidade à polidez dos costumes e educação. Esta que, por sua vez, significava educar o indivíduo no sentido de orientar suas paixões e intelecto. Ainda na mesma linha, educar era doutrinar para que o indivíduo fosse capaz de dirigir sua vontade. Agir “urbanamente” era, dessa forma, agir de maneira polida, educada. Por último, a ideia de despotismo surge na pesquisa de Coser associada à barbaria que ocupava o debate político da época. A menção aos

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cuidados de “deus” contra ações despóticas remete a Montesquieu e sua definição de despotismo: a vontade sem limites de um só, para a qual apenas a bondade de deus pode nos salvar. Despotismo significava, assim, um governo sem leis. Assim,

Na reflexão de Uruguai, o sertão bárbaro seria marcado pela irrupção imprevisível da violência, conferindo ao cidadão um sentimento de permanente insegurança. No sertão, a lei como um espaço marcado pela previsibilidade estaria em constante perigo. Porém, há uma mudança fundamental na reflexão de Uruguai, quando comparada com o sentido mencionado acima: a origem da violência não provém do poder, mas da sociedade (COSER, 2008, p. 157).

A conhecida descrição feita por Montesquieu do “despotismo”, como a existência de um poder sem os limites da lei, contra o qual os cidadãos poderiam contar apenas com a religião, constitui aqui interessante ponto de aproximação com o ideal de república em discussão (ARON, 2002). Isso porque, no texto de Coser: “Na barbárie, a esfera pública é inexistente, pois está marcada não por esses limites, mas pela irrupção sempre imprevisível da violência proveniente da pessoa do monarca” (COSER, 2008, p. 157). Assim, o despotismo é o governo segundo o capricho, sem lei. Segundo Coser, Uruguai utiliza a mesma ideia de “capricho” na descrição dos “sertões”, aproximando-se, assim, do modo como Montesquieu trabalha o tema. O diagnóstico de Uruguai assemelha-se ao entendimento de Pettit sobre a liberdade republicana como não-dominação. Conforme vimos, Pettit opera uma importante distinção entre as formas possíveis de interferência arbitrária: (1) por um lado, o dominium, que refere- se à presença da dominação entre concidadãos; e (2) por outro, o imperium, que refere-se à interferência arbitrária dos detentores do poder sobre os cidadãos. Logo, Visconde do Uruguai e Pettit não entendem o Estado como necessariamente a fonte do ataque à liberdade, apreendendo o papel do Estado e da lei na proteção dos cidadãos contra interferências arbitrárias oriundas da sociedade civil, ou do mundo dos “sertões” no entendimento de Uruguai. Ainda que suas propostas normativas destoem – Uruguai, por certo, não pactua da defesa da “democracia contestatória”, nos termos apresentados por Pettit –, ambos transparecem a defesa de uma forma de liberdade – a liberdade como não-dominação – contra a interferência arbitrária. Tal como nas seções anteriores, onde apresentei a possibilidade de uma forma de governo livre por meio das leis e do exercício da autoridade, aqui liberdade e lei não são mutuamente excludentes. Na próxima seção, conforme anunciado anteriormente, trago para discussão os elementos da reciprocidade moral de da não violência apenas como provocação para pensarmos a incompletude do ideal de república aqui discutido.

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4.4 Um ideal incompleto?

José Murilo de Carvalho analisa a singularidade da República brasileira a partir de uma interessante provocação: se podemos pensar a república como uma forma de governo pautada pela defesa da liberdade, qual tipo de liberdade presidiu a fundação da república no Brasil? (CARVALHO, 1999). Seguramente o autor restringe sua discussão ao modo como Isaiah Berlin apresenta o tema (BERLIN, 2002), a partir da reformulação da célebre conferência de Benjamin Constant (CONSTANT, 1985), não incorporando a possibilidade de uma terceira forma de liberdade, tal como apresentado nesta tese a partir das pesquisas historiográficas de Quentin Skinner e do projeto normativo de Philip Pettit. O fato é que, ao cotejar as “liberdades” sugeridas por Constant com o debate nacional, Carvalho é peremptório:

As dificuldades de implantação seja de uma república à antiga, seja de uma república moderna no Brasil preocupavam os intelectuais da época, sobretudo os republicanos. O ponto central do debate era ela relação entre o privado e o público, o indivíduo e a comunidade. Vários pensadores identificavam como fator explicativo da incapacidade brasileira para organizar a sociedade política a ausência do individualismo anglo- saxão (CARVALHO, 1999, p. 98)

Essa percepção da falta teria levado a intelectualidade nacional a formular propostas de intervenção que, por vezes, tomavam o Estado como ator privilegiado. Não por acaso, Carvalho nos mostra como a concepção de “ditadura republicana”, extraída da obra de Comte, esteve presente na cabeça de parte dos atores envolvidos no processo de fundação da República no Brasil. Todavia, o diagnóstico do autor é que

Para que funcionasse a república antiga, para que os cidadãos aceitassem a liberdade pública em troca da liberdade individual, assim como para que funcionasse a república moderna, para que os cidadãos renunciassem em boa parte à influência sobre os negócios públicos em favor da liberdade individual, talvez fosse necessária a existência anterior do sentimento de comunidade, de identidade coletiva, que antigamente podia ser o de pertencer a uma cidade e que modernamente é o de pertencer a uma nação. [...] No Brasil do início da República inexistia tal sentimento. Havia, sem dúvida, alguns elementos que em geral fazer parte de uma identidade nacional, como a unidade de língua, da religião e mesmo a unidade política (CARVALHO, 1999, p. 100-101).

Nessa direção, Carvalho nos mostra como o próximo passo foi precisamente a invenção

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da “nação”, sentimento até então ausente. Tratava-se de encontrar uma identidade coletiva para o Brasil, processo iniciado no romantismo de José de Alencar (com a integração do índio), continuado em “Os Sertões” de Euclides da Cunha (que denuncia a persistência da dicotomia presente em Visconde do Uruguai, mas agora não mais no sentido da superação, e sim da integração), presente em Monteiro Lobato (com a integração, por meio das políticas estatais de saúde pública, do habitante do interior), e que encontra, já no século XX, a obra de Gilberto Freyre como um marco (agora encarregado da integração do negro). A partir daí, o autor conclui que mesmo ante a incapacidade de efetivarmos tanto a república dos antigos quanto a dos modernos, algo de positivo aconteceu: o surgimento da identidade coletiva que nos faltava. É isso que o permite, num ensaio onde discute a origem do nome “Brasil”, dizer que malgrado a incompletude a cidadania no país, algo nos une: um nome (CARVALHO, 2007b). Assim como discutido no capítulo anterior, este sentimento descrito por Carvalho pode representar o elemento de reciprocidade moral caro ao funcionamento da república. Sandel mobiliza a ideia de “amizade” presente em Aristóteles. Boa parte da literatura de interpretação do país sugere, contudo, a existência de laços de reciprocidade que, todavia, encontram-se ainda restritos. Esta é, por exemplo, a crítica de Oliveira Vianna ao modo como a solidariedade no país permanece restrita ao clã. Algo que não impede, com efeito, que pensemos na possibilidade de generalizar os laços de solidariedade hoje existentes, visando o fortalecimento da comunidade política (WERNECK VIANNA, 2004). O que é digno de elogio pode, ao mesmo tempo, ser alvo de crítica. Nessa direção, o mesmo sentimento de solidariedade abrigado no nome “Brasil”, tal como Carvalho descreve, pode ser denunciado como a máscara para uma sociedade abertamente desigual e autoritária. Este é, por sua vez, o propósito de Marilena Chaui em “Brasil: mito fundador e sociedade autoritária” (CHAUI, 2000). A partir de dados sobre a autoimagem do brasileiro, a autor afirma que padecemos de uma representação persuasiva: um povo alegre, humilde, não-violento etc.

A força persuasiva dessa representação transparece quando a vemos em ação, isto é, quando resolve imaginariamente uma tensão real e produz uma contradição que passa despercebida. É assim, por exemplo, que alguém pode afirmar que os índios são ignorantes, os negros são indolentes, os nordestinos são atrasados, os portugueses são burros, as mulheres são naturalmente inferiores, mas, simultaneamente declarar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo ser preconceitos e uma nação nascida da mistura de raças. Alguém pode dizer-se indignado com a existência de crianças de rua, com as chacinas dessas crianças ou com o desperdício de terras não cultivadas e os massacres dos sem-terra, mas, ao mesmo tempo, afirmar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo pacífico, ordeiro e inimigo da violência. Em suma, essa representação permite que uma sociedade que tolera a existência de milhões de crianças sem infância e que, desde seu surgimento, pratica o apartheid

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social possa ter de si mesma a imagem positiva de sua unidade fraterna (CAHUI, 2000, p. 08).

A denúncia de Chaui sobre as mazelas profundas da sociedade brasileira serve, com efeito, de alerta para que o elogio da nossa tradição não implique negligência acerca dos desafios a serem superados. Todavia, ao apontar a não violência como um dos elementos definidores do ideal de república aqui construído, o fiz ciente do seu elemento normativo. Em outras palavras, defendo a não violência como um princípio a ser perseguido, e não como um dado de nossa história. Ainda assim, a descrição de Rubem Barboza Filho sobre nossa fundação abre caminho para a provocação aqui em curso (BARBOZA FILHO, 2000). Ao analisar a tela de Pedro Américo “Independência ou Morte” ou “Proclamação da independência”, óleo sobre tela pintado em 1888, e hoje exposto no Museu Paulista/USP, São Paulo-SP, o autor aponta precisamente o elemento não violento que regeu a fundação do Brasil no dezenove. Segundo ele,

O quadro fixou no imaginário nacional a imagem do grito do Ipiranga: d. Pedro e poucos cavalarianos de sabres erguidos, cercados pelo mato, contemplados com absoluta perplexidade por um matuto conduzindo um carro de boi. Há algo de aparentemente perturbador nessa visão pictórica da fundação do Brasil. Parece faltar- lhe o elemento épico, o heroísmo banhado em sangue, exercido num cenário grandioso e terrível, próprio das forças titânicas que freqüentam os poderosos mitos de fundação de outros países e nações. Tudo o que salta da tela é apenas isto: um grito do rei. Todo o ambiente e os personagens que envolvem este grito e o rei são irrelevantes, são nada. Os cavalarianos são cópias do rei, a natureza é indiferente e o matuto é puro susto, momento em que algo novo e repentino suspende a vida e sua inércia. O cenário é nada, porque é do nada que o rei começava a inventar o Brasil, projetando-o como obra sua, como totalidade emanada de sua vontade. O Brasil não se ergue sobre cadáveres de heróis, não se planta regado pelo sangue do povo em armas, não se instaura dependente de generais, mas como ato de um rei, que também se plenifica ao deliberar. O quadro é apenas isto: o rei decidindo e criando (BARBOZA FILHO, 2000, p. 431).

Dessa forma, sem mascarar nossos desafios, sugiro a defesa da reciprocidade moral e da não violência como fonte de obrigação política e defesa da comunidade política. Elementos, por certo, faltosos. Todavia, assim como Euclides da Cunha enunciou, este país foi gestado pela teoria política. Dela é filho. Algo que nos permite imaginar outras possibilidades de intervenção no presente, como aqui se fez.

CONCLUSÃO

Quem quiser realizar de maneira conveniente uma investigação sobre a melhor forma de governo, deverá necessariamente decidir primeiro qual é o modo de vida mais desejável para os habitantes da cidade, pois enquanto houver incerteza a propósito deste ponto também haverá incerteza quanto à melhor forma de governo. [...] Logo, cumpre-nos chegar primeiro a um acordo, digamos assim, quanto à vida mais desejável para todos; depois decidiremos se a mesma vida, ou outra, é mais desejável tanto para a comunidade quanto para os indivíduos que a constituem. Aristóteles – Política

Segundo Pettit, seria utópico pensar que o que ocorre na política é fruto das ideias normativas que circulam no mundo político. O autor afirma que as decisões políticas estão pautadas por interesses e questões empíricas – como o que é eleitoralmente viável, por exemplo –, como também por concepções acerca do que idealmente deveria ser. Entretanto, as ideias normativas são da maior importância na vida política, visto que decisões precisam ser apresentadas como legítimas caso almejem apoio. Pettit sugere como no presente correntes facilmente identificáveis alimentam as decisões políticas em disputa. Uma corrente de ideias econômicas, centrada na satisfação de preferências individuais; outra sobre os direitos universais das pessoas e sobre as instituições de defesa desses direitos; outra corrente, ocupada da discussão sobre o bem-estar, a equidade e a igualdade; e ainda uma outra corrente de ideias democrática, que outorga legitimidade a quaisquer decisões que sejam fruto da vontade da maioria. Tais correntes são apresentadas como linguagens e discursos – e não teorias ou ideologias – rivais de legitimação. Isso porque, consistem em pressupostos compartilhados, suficientemente abstratos para permitir diferenciação, que possibilitam o diálogo sem predeterminar sua direção. Possuem, ainda, jargões comuns – como a liberdade – que nos permitem agrupá-las em sistemas rivais de crítica e legitimação das instituições políticas. Dito isso, Pettit formula uma importante questão para os propósitos desta tese: uma vez estabelecido que a política se conduz pela linguagem normativa, qual é a função do filósofo

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político? Seu papel é, segundo o autor, o do exame das linguagens de legitimação e discussão política, criticando seus pressupostos e explorando sua relação com outras linguagens, em outras épocas e lugares. Tarefa que é, por um lado, estimulante, pois o filósofo político nos mostra o caminho para dominarmos ideias e pensamentos que, do contrário, nos dominariam, introduzindo nas nossas vidas pressupostos irrefletidos; mas, por outro, é também uma tarefa chata, pois o filósofo político é alguém inserido numa corrente de debates que tende a ser superada. Pettit entende que o filósofo político é ouvido por uma audiência restrita, constituindo apenas uma parte do amplo debate. Conforme alerta, os filósofos devem reconhecer essa limitação, sob pena de se desenganarem: ao constatar que a vida política se faz por razões outras que não as suas, ele pode incorrer no ceticismo de supor que a política se faz sem razão alguma, apenas por mero jogo do poder. Contrariamente, os debates sobre as questões mais diversas atestam a importância da reflexão filosófica, sobretudo pela forma como estes nos tornam menos “dogmáticos” (PETTIT, 1999). A tentativa aqui não foi, conforme venho afirmando, reconstruir historicamente uma tradição de pensamento, mas sim colher, analiticamente, argumentos presentes na teoria política. Por certo, tal tarefa conserva um alto grau de interpretação. Ainda assim, acredito que dessa forma tenha, ao menos em parte, me aproximado da postura descrita por Pettit. A retomada da tradição republicana deve muito aos trabalhos oriundos do campo da história das ideias e da história conceitual, como afirmei ao longo da tese. Todavia, não se limita a ela. O ensaio inspirador de Werneck Vianna e Rezende de Carvalho, “República e civilização brasileira”, é prova disso (WERNECK VIANNA; REZENDE DE CARVALHO, 2000). No texto, os autores afirmam pensar a república não por meio do tratamento conceitual, restrito, portanto, à “arqueologia” do conceito e suas sucessivas transformações, mas sim a república em ato. Nessa direção,

Tem-se, pois, como ponto de partida a experiência republicana tal como se apresenta no mundo, e não a sua organização modelar. Assim, sendo, o tema da república remete a uma construção histórico-processual, sendo percebida como resultado de um longo caminho de democratização da esfera pública, que a tornou permeável à vontade dos indivíduos, sem que esses se vissem obrigados a uma sobrepolitização dos respectivos selves (WERNECK VIANNA; REZENDE DE CARVALHO, 2000, p. 131).

A partir desse ângulo, pouco importa se a comunidade está fragmentada por um intenso processo de individuação, assim como na crítica comunitarista. Werneck Vianna e Rezende de

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Carvalho mostram como mesmo na moderna sociedade norte-americana persistem práticas de cooperação social, malgrado o estiolamento por eles denunciado das identidades tradicionais. Isso porque, o “interesse bem-compreendido” vem encontrando novas formas de reprodução que reforçam a luta pela ampliação dos direitos clássicos – civis, sociais e políticos –, além da defesa de novos direitos – relativos às questões ambientais, às mulheres e aos diferentes grupos étnicos. Os autores recuperam o caso de países centrais para a moderna vida europeia, como França, Inglaterra e Alemanha, mostrando como a defesa dos direitos dos imigrantes vem encontrando canais de comunicação com a esfera pública.

Desse modo, o estado real das coisas nas sociedades contemporâneas, caso se admita a direção aqui apontada, sem guardar qualquer relação com a virtude da Polis ou com a normatividade derivada do douce commerce – ou seja, sem estar referido que a uma compreensão de comunidade que, no limite, anule o indivíduo, conduzindo à hiperpolitização da vida social, quer a uma perspectiva oposta, que consagre o individualismo do estrito interesse –, aponta para uma república em ato, resultado de uma história acumulativa em que ela foi como que naturalizada pelas instituições, sendo o Estado democrático de direito a sua expressão contemporânea (WERNECK VIANNA; REZENDE DE CARVALHO, 2000, p. 133).

Dessa forma, nas sociedades urbano-industriais de massa, o Estado democrático de direito é, segundo os autores, republicano na medida em que se apresenta como o resultado de ações virtuosas das gerações precedentes. “A sua reprodução, por isso, não requer, como condição necessária, a carga heróica que, em geral, se atribui às repúblicas antigas ou a um suposta república-modelo – como o previsível corolário de uma concepção exaltada de valores comuns –, uma vez que se encontra, de algum modo, internalizada nas instituições” (WERNECK VIANNA; REZENDE DE CARVALHO, 2000, p. 133). No seu entendimento a república não figura, porém, como mera afirmação abstrata de direitos, mas exige uma cidadania ativa, incidindo sobre a vida republicana na transformação das formas institucionais, sempre aberta a novos “jogadores”. Daí a persuasiva formulação de Habermas por eles recuperada, a despeito de sua recusa em admitir a ação das minorias contra a vontade da maioria no contexto do judicial review, e do seu modelo de ação comunicativa pura que prescinde da política. É precisamente porque a república encontra-se naturalizada no Estado democrático de direito que sua reprodução tende a buscar a contínua institucionalização, distanciando-se de uma base social efetiva e dos setores subalternos. Considerado como instituição, portanto, o Estado democrático de direito não pode sobreviver sem alguma forma de mobilização social e política, de acordo com Werneck Vianna e Rezende de Carvalho.

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Nesse sentido, a república não consiste num movimento remissivo, voltando ao restabelecimento de uma “idade do ouro” perdida – seja a Polis ou o Estado-nação do século XIX e início do XX. A recepção contemporânea da ideia realiza-se num contexto de vastas transformações. Logo, os autores apontam como a república contemporânea supõe: (1) um processo de individuação que extrai os indivíduos das comunidades exclusivas e auto-referidas, integrando-os numa vasta cadeia humana de funções, tornando-os mais expostos à interação social; (2) conforme aponta Habermas, a autodeterminação democrática não tem mais o sentido de independência nacional e realização particular. A ordem política deve, com efeito, permanecer aberta à inclusão dos seres marginalizados, sem os encerrar numa comunidade homogênea. Logo, a afirmação substacialista, nacional popular de república, cede lugar a sua concepção procedimentalista: “A afirmação de que a república se encontra naturalizada nas instituições não significa que se esteja diante de um processo que se substitui ao ator” (WERNECK VIANNA; REZENDE DE CARVALHO, 2000, p. 135). Os autores lembram como para Habermas o papel do cidadão deve estar ancorado numa cultura política fundada sobre a liberdade. Daí a reemergência desse tema nos anos recentes.

Resulta daí um problema de natureza empírica: as sociedades retardatárias, objetos de processos de modernização conduzidos pela ação coercitiva do Estado e caracterizadas pela ausência de um estatuto de liberdade e igualdade comum a todos os seus indivíduos, quando institucionalizam os modernos institutos da democracia política o fazem desencontradas de uma cultura cívica que possa ancorá-la (WERNECK VIANNA; REZENDE DE CARVALHO, 2000, p. 136).

Werneck Vianna e Rezende de Carvalho mostram como a vida republicana encontra, assim, uma “sociologia adversa” que requer correções do plano da política, num processo onde o ator desempenha um papel decisivo – seja ela um partido, uma associação, uma fração da intelligentzia, uma instituição, ou mesmo setores da administração pública –, a saber, fazer emergir o público em meio ao particularismo privatista. Não bastam as instituições do Estado democrático de direito. Falta-lhes a anima capaz de conferir vitalidade dialética ao processo de inclusão dos marginalizados. Ainda que por caminhos diversos, creio ter sido este o objetivo desta tese: enfrentar, por meio da teoria política, uma “sociologia adversa”. As armas mobilizadas foram, por certo, distantes do ferramental presente no argumento há pouco citado. Isso porque, aqui o retorno a tradição foi assumidamente privilegiado. Não um retorno irrefletido, mas sim a busca de elementos na definição de um ideal de república como

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contraponto ao andamento presente. Por certo, muito foi corroído pelo edifício do tempo. Mas a república ainda permanece como possibilidade de discussão sobre a vida democrática, conforme a apropriação de Werneck Vianna e Rezende de Carvalho manifesta. Os elementos aqui mobilizados compõe um conceito particular de república. Todavia, creio serem todos instrumentos promissores para a discussão da vida política. Uma discussão que não se pretende neutra. Conforme aponta Sandel, em arguta apropriação da filosofia política de Aristóteles, sem a discussão sobre a finalidade da vida política, não seremos capazes de acertadamente escolher os meios adequados. A defesa do império das leis, da possibilidade de interpelarmos o poder presente por meio da autoridade da tradição, da não interferência arbitrária na liberdade dos indivíduos, da reciprocidade moral como fonte de obrigação política, e da não violência como fundamento da vida coletiva compõem, por certo, uma postura valorativa. O valor aqui defendido é, todavia, uma ideia particular de república. O movimento avançado nesta tese não destoa de manifestações normativas presente na reflexão intelectual contemporânea. Este é o caso, como exemplo digno de nota, do “Manifesto Convivialista”, do qual intelectuais de vários países, inclusive do Brasil, são signatários. O grupo, alimentado pela crítica aos pressupostos do economicismo reinante nas ciências sociais a partir da recuperação da obra de Marcel Mauss, “Ensaio sobre a dádiva”, numa perspectiva não-estruturalista, toma o tema da reciprocidade moral como mote na defesa normativa de caminhos alternativos ao presente. Assim, no texto do manifesto lemos que “A única política legítima é aquela que se inspira em um princípio de comum humanidade, de comum socialidade, de individuação e de oposição controlada”. Creio ser este um exemplo virtuoso de uma possibilidade análoga ao que aqui foi pretendido.

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