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dez. 2017. ISSN 2175 ISSN 2017. dez.

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Universidade Federal de Uberlândia Federal Universidade

A MARgem A

Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes e CiênciasLetras Humanas, de Eletrônica Revista

Revista

Universidade Federal de Uberlândia Reitor: Valder Steffen Júnior | Vice-reitor: Orlando César Mantese

Instituto de Letras e Linguística (ILEEL) Diretor: Ariel Novodvorski

Programa de Educação Tutorial dos Cursos de Letras da UFU (PET Letras/UFU) Tutor: José Sueli de Magalhães

Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes - A MARgem Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/amargem/index ISSN 2175-2516

Comissão editorial: Bianca Fernandes Santos Bruno Driguetti Camila Severino José Sueli de Magalhães (coordenador) Rafaela Cristina de Souza Silva Renan William de Santana

Contato: Av. João Naves de Ávila, 2121 - Santa Mônica, Uberlândia - MG, 38408-100 - Bloco 1G - Sala 1G60 | (34) 3291-8334 | [email protected]

Publicação: V.13, ago-dez. 2017, Uberlândia – MG. 247p.

Capa: SEVERINO, C. Heterocromia. 2017. Arte gráfica. 25,93 cm x 10,98 cm.

Todos os trabalhos são de responsabilidade dos autores, não cabendo qualquer responsabilidade legal sobre seu conteúdo à Revista A MARgem.

SUMÁRIO

Apresentação V.13 – Revista A MARgem 4 Do divino ao civilizado: o processo de legitimação de governos que surge na Antiguidade e suas projeções na França do início do século XIX 9 A construção de uma memória coletiva no Brasil oitocentista: a “Cabanagem” na imprensa 28 William Blake: um ensaio biográfico 41 Murilo Rubião e o descrédito da memória: constituição e funções de uma memória utópica em Ofélia, meu cachimbo e o mar 65 O espaço como causador do medo em William Wilson, de Edgar Allan Poe 85 A representação dos negros em Aventuras de Huck de Mark Twain 97 A personagem Gregor Samsa na obra A metamorfose, de Franz Kafka 107 Imposições patriarcais e subversões femininas na poesia de Diva Cunha 118 Convergências éticas e morais na crônica Sonho de lesma, de Moacyr Scliar 130 Formações da literatura brasileira de 1826 a 1989: uma breve retomada 143 A importância da literatura na escola para a construção de uma sociedade mais humanizada 151 Raul Seixas como leitor de Schopenhauer: considerações sobre as Coisas do coração 158 Porta dos Fundos: uma noção transgressiva nos vídeos politicamente incorretos 173 A estilística léxica: um retrato da expressividade linguística na canção Sangrando de Gonzaguinha 297 As questões de adstratos em regiões de fronteira de língua portuguesa e espanhola na América do Sul 210 A homília sob a perspectiva dos gêneros discursivos 220 Vazio 233 Meia saudade 235 Retrato de família 238 O canto da sereia 243 Duas matérias 245

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APRESENTAÇÃO V.13 - REVISTA A MARgem

A 13º edição da Revista A MARgem teve sua produção estendida entre os meses de agosto e dezembro de 2017. Durante o processo, a comissão editorial se despediu de Luis Felipe, que se enveredou por outros caminhos acadêmicos, e deu as boas-vindas aos graduandos Bruno e Rafaela. Na esteira das boas-vindas também recebemos os novos(as) autores(as) e pareceristas cadastrados em nosso sistema. A convergência de nosso fraterno contato fica representada pelo volume agora publicado, atravessado pela tentativa de realização de um trabalho de máxima qualidade. Em primeiro lugar, agradecemos nossos(as) autores(as) pela confiança, compreensão e colaboração durante o processo editorial. Esperamos que tenham sido a contento nossos esforços em estabelecer uma comunicação ágil, informativa e útil. Ao corpo de pareceristas, nossa gratidão pela prontidão e qualidade dos pareceres prestados. Enquanto editores, temos ciência da crescente demanda pela maior humanização da avaliação, imprescindível para o estabelecimento de uma atmosfera acolhedora na qual o(a) autor(a) possa se sentir fraternalmente orientado(a). Na edição aqui apresentada, reunimos vinte e um (21) textos. Desses, dezesseis (16) constituem a seção Estudos e cinco (05) compõem a seção Verbare. Dentre as instituições de origem dos(as) autores(as), encontramos a Universidade Estadual do Amapá (UEAP), Universidade Federal do Acre (UFAC), Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Potiguar (UnP), Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Universidade Federal do Paraná e Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

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Na abertura da seção Estudos, retornamos à Antiguidade para compreender os governos da Modernidade. A prática de legitimação de governos autoritários e opressores a partir das estruturas mitológicas presente no mundo antigo se atualiza nos Estados Modernos, como na França do século XIX. Para apresentar esse fenômeno político, Luiz Felipe Florentino e Hudson Louback Coutinho da Silva (UFSC) nos falam Do divino ao civilizado: o processo de legitimação de governos que surge na Antiguidade e suas projeções na França no início do século XIX. Ainda na Era Moderna, estacionamos no Brasil do século XIX para identificar os aspectos envolvidos n’A construção de uma memória coletiva no Brasil oitocentista: a “Cabanagem” na imprensa. Nesse estudo, Rafaella Schmitz dos Santos (UFSC) investiga a repercussão midiática pelos jornais da época acerca da Cabanagem. A autora aponta como os noticiosos contribuíram para a sobredeterminação do acontecimento cabano e influenciaram na memória coletiva instaurada sobre o movimento social ocorrido na província do Grão-Pará na época do Império. Por falar na determinação do real pela discursividade, em William Blake: um ensaio biográfico, Thais de Sousa Corsino (UFU) realiza uma revisão bibliográfica dos discursos sobre a vida do poeta, desenhista e gravurista William Blake. A estudiosa busca se aproximar do pensamento do artista londrino e compreender o papel desse pré- romântico na vida intelectual de Londres no fim do século XVIII e início do XIX. Na esteira dos discursos e das memórias, transitamos da memória sobre o outro para a memória de si. Nessa empreitada, Marcos Vinícius Lessa de Lima (UFU) busca na literatura de Murilo Rubião a evidenciação do papel da memória histórica de si no discurso do narrador e na constituição dessa figura enquanto sujeito. Em Murilo Rubião e o descrédito da memória: constituição e funções de uma memória utópica em Ofélia, meu cachimbo e o mar, acompanhamos o desnudamento da constituição da memória utópica de uma instância sujeitudinal da esfera literária a partir do entrecruzamento de memórias e do funcionamento de discursos heterotópicos concorrentes. Fiquemos um pouco mais na companhia da Literatura. Compreender O espaço como causador do medo em William Wilson, de Edgar Allan Poe, isto é, buscar a compreensão sobre a espacialidade gótica de Poe e a instauração de seu insólito ficcional, conduz-nos ao encontro do... medo. Nesse contexto, o autor Vitor Rodrigues Soares (UFU), analisa o conto “William Wilson” e os procedimentos narrativos que fazem da

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v aparição do duplo da personagem principal e do consequente confronto identitário elementos constitutivos da circunscrição fechada do espaço. Adiante no universo da Literatura estadunidense, Pedro Felipe de Lima (UFPR) oferece o trabalho intitulado A representação dos negros em Aventuras de Huck de Mark Twain. Nesse estudo, a partir das falas das personagens brancas, o estudioso apreende o modo como os negros são representados na obra Aventuras de Huck, de Mark Twain. Tal representação se dá por meio de valoração negativa e contribui para que se forje até mesmo uma humanidade reduzida para os negros. Trata-se de um retrato literário correspondente a um triste período da história dos Estados Unidos. Kafka também não pode ser deixado de fora quando se trata de literatura estrangeira. Em A personagem Gregor Samsa na obra A Metamorfose, de Franz Kafka, contexto sóciohistórico, aspirações do autor e imersão no texto literário são a tríade correspondente ao objeto de estudo de Alessandra Leles Rocha (UFU), autora convidada. Sob o pressuposto de que um texto nunca é só um texto, a articulista destrincha os caminhos psicológicos passados pelo personagem Gregor com a finalidade de discutir princípios teóricos fundamentais do texto literário. A fundamentação teórica contou com Schøllhammer (2012), Foster (1974), Hübner (2016) e Franco Junior (2003). Em Imposições patriarcais e subversões femininas na poesia de Diva Cunha, Lucas Jose de Mello Lopes e Sarah Cavalcanti Josuá (UnP) propõem uma análise de caráter bibliográfico articulada a conceitos da crítica feminista sobre três poemas de Diva Cunha. A poetisa potiguar focaliza em sua escrita o universo da mulher e, desse modo, aborda liricamente as imposições patriarcais sobre o sujeito poético feminino subversivo e insubmisso. Assim, esse estudo nos oferece a oportunidade de mergulhar na poesia de autoria feminina e de refletir sobre esse tema tão latente nessa manifestação literária. Convergências éticas e morais na crônica Sonho de lesma, de Moacyr Scliar propicia uma leitura sobre Literatura e Filosofia Moral. Nesse texto, Fabrício Lemos Costa (UEAP) investiga o procedimento de Scliar na composição da personagem de uma lesma dotada de consciência moral e ética. O estudo aborda a questão da metáfora e se apóia em autores como Aristóteles (1405), Chklovski (1976), Cortina e Martínez (2005 e Jauss (1994). Em Formações da literatura brasileira de 1826 a 1989: uma breve retomada, Edson José Rodrigues Júnior (UFPE) realiza um levantamento das possíveis origens da Literatura brasileira. Em seu trabalho há uma tentativa de mapeamento da gênese da literatura brasileira com base em Vilalva (2008), Machado de Assis (1994), Candido

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(1971), dentre outros. O autor sustenta que a literatura nacional constituiu grande passo em relação à independência da ex-colônia de Portugal. Falando de Literatura, não podemos deixar de refletir sobre A importância da literatura na escola para a construção de uma sociedade mais humanizada. Nesse escrito, Carolina Salvino Corrêa (UFU) reúne e discute definições e funções da Literatura determinadas por Candido (1989) e Culler (1999) orientada por dois objetivos: observar como o ensino de literatura se tornou algo mecânico e fordiano e problematizar o papel dessa arte como âncora para uma sociedade com maior sensibilidade e tato para as relações humanas. No texto Raul Seixas como leitor de Schopenhauer: considerações sobre as Coisas do coração, George Felipe Bernardes Barbosa Borges (UFG) se propõe a pensar as maneiras com as quais Arthur Schopenhauer possa ter influenciado a composição de Raul Seixas, especialmente sua canção intitulada “Coisas do Coração”. Para sustentar a hipótese de relação autor-leitor entre o filósofo e o artista, o articulista do estudo recorre à teoria da indestrutibilidade da espécie, de modo a conseguir explicitar as aproximações entre a composição da canção e a filosofia schopenhauriana. Em Porta dos Fundos: uma noção transgressiva nos vídeos politicamente incorretos, Thiago Henrique Fernandes Coelho (UFU), sob orientação da Profª. Drª. Ana Elvira Wuo (UFU), realiza um estudo do conteúdo dos vídeos do canal do Youtube Porta dos Fundos, de modo a tentar verificar se sua proposta depreende de uma noção transgressiva. Para embasar a análise do corpus de vídeos selecionados, o articulista se apoia em teorias de estudiosos sobre o riso, dentre eles Henry Bergson (2001) e Vladimir Propp (1992). Além disso, o autor também problematiza a internet enquanto um espaço inovador para a atuação de artistas teatrais. Airton Santos de Sousa Júnior (UFAC), em A estilística léxica: um retrato da expressividade linguística na canção Sangrando de Gonzaguinha, investiga o modo como o estilo da articulação lexical se realiza na canção “Sangrando”, de Gonzaguinha. Para atender seus objetivos, o autor recorre a teorias de Martins (2008) e Coseriu (1978), que fornecem um suporte teórico-metodológico adequado para a realização de sua pesquisa. Com isso, Sousa Júnior apresenta as escolhas de Gonzaguinha que contribuíram para a expressividade desejada na canção, evidenciando o estilo do autor. O contato entra as línguas espanhola e portuguesa é abordado em As questões de adstratos em regiões de fronteira de língua portuguesa e esponhola na américa do sul. Bianca Rodrigues Cabral (UFU), apoiada em Resnick (1981), Elizaincín (2008),

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Garcia (2010) e outros autores, descreve o percurso das duas línguas neolatinas desde o Latim Vulgar até o atual compartilhamento de itens vocabulares. Um dos pressupostos da autora é de que a fronteira geográfica não delimita a troca cultural e linguística, principalmente em regiões de comércio. Com A homília sob a perspectiva dos gêneros discursivos, fechamos a seção Estudos. Nesse escrito, Lindomar Castilho Teodoro e a Profª. Drª. Marilúcia dos Santos Domingos Striquer (UENP) investigam as características sócio-comunicativas, discursivas e linguísticas do gênero do discurso homília. Para tanto, baseiam-se em teorias de Bakhtin (1997), bem como em outros autores que abordam especificamente os gêneros discursivos. Na inauguração da seção Verbare, Thaís B Ribeiro (UFU) oferece o Vazio que nos preenche de incontáveis interpelações. Nesse poema, o intimismo sugestivo algema o leitor à mais profunda sensação de angústia. As inquietações do sujeito poético crescem ao ritmo dos versos, atinge-nos com força e mergulha-nos no espaço estreito que vai do início do poema ao abismo de nosso mundo interior. Quer colocar a saudade em uma caixa? Em Meia Saudade você descobre como. O texto de Larissa Ferreira da Silva (UFU) nos apresenta Catarina, que embora possa ser considerada saudosista por muitos, trata-se apenas de uma mulher com o hábito de abrir seu guarda-roupa, espanar o pó e confrontar a saudade. Essa aparente ritualização do momento da nostalgia seria capaz de cristalizar o sabor da saudade? Bem, só alertamos uma coisa: se tiver gosto de cappuccino, não a deixe esfriar! E enquanto saboreia sua bebida, não deixe de observar o Retrato de família. Antes, prepare seu psicológico para imergir nesse conto policial. Helvécio Ferreira Furtado Junior (UFSC) brilhantemente nos revela Neander, um presunçoso ex-político e traficante que se encontra sob interrogatório policial. A personagem ironiza seus interrogadores: “o que podem fazer quando finalmente estão amparados pela lei para lidar com ele como criminoso, e não como político, é jogar Máquina Mortífera?”, e institui um jogo instigante do qual, ao contrário do que se pode pensar, é o melhor jogador. Adiante, se chegar mais próximo poderá escutar O canto da sereia. Mas cuidado para não se afogar. Kathleen Loureiro (UFU) apresenta de maneira meticulosa o eu lírico embriagado de paixão. O sentimento passional é transposto para a estrutura do poema, mimética aos movimentos que evoca com as palavras. Faz com que nos aproximemos para ler mais de perto, como o marujo que achega nas águas para escutar mais suavemente a voz da sereia.

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Para fechar a seção Verbare, ainda precisamos de Duas Matérias criadas por Leidijane Rolim da Silva (UNIR). Nesse texto de visualidade e narrativa autobiográfica inovadoras, eis que surge a necessidade de saltar da pintura e se fundir ao emaranhado concreto de fios da vida. Trata-se de corpo e movimento, nódulos e enfrentamento. Caixa e corpo, pedras e nódulos, linhas e vidas, embaraçados em uma trama que se condensa na fotografia da existência do ser-humano e do ser-objeto. Eis a 13ª edição da Revista A MARgem, fruto com o qual nos despedimos de 2017. Constantemente nos importa ressaltar a força motriz d’A MARgem: a profunda crença no fomento à arte e à pesquisa enquanto propulsoras de melhorias no quadro cultural e educacional de nosso país. Numa época em que o materialismo distorce o significado e a utilidade fundamentais da arte e da ciência e, com os dentes escancarados, devora o afeto e a cooperação essenciais a essas atividades humanas, convém clamar por amorosidade, respeito e tolerância no fazer artístico e científico. Esperamos, com toda a esperança que couber nesse verbo, que nossas margens abracem os clamores desses rios – rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – rios de gente sedenta por produzir formas de conhecimentos mais humanizadas. Que 2018 seja um ano de retorno do homem à sua humanidade. Ótimas leituras!

Bianca Fernandes Santos Bruno Drighetti Camila Severino Rafaela Cristina de Souza Silva Renan William Prof. Dr. José Sueli de Magalhães

Uberlândia, dezembro de 2017.

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DO DIVINO AO CIVILIZADO: O PROCESSO DE LEGITIMAÇÃO DE GOVERNOS QUE SURGE NA ANTIGUIDADE E SUAS PROJEÇÕES NA FRANÇA DO INÍCIO DO SÉCULO XIX

Luiz Felipe Florentino Hudson Louback Coutinho da Silva Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC

RESUMO: Este texto tem por objetivo principal abordar as buscas que foram realizadas nas estruturas políticas e mitológicas na Antiguidade com o intuito de legitimar diferentes governos durante tal época e os reflexos dessas mesmas buscas na Modernidade. Sendo assim, foi abordada a utilização dos mitos e a reafirmação da civilidade nesse processo de legitimação no mundo antigo. Também foi analisado o contexto em que a França do início do século XIX estava inserida, período em que seus governos distintos tiveram a necessidade de legitimar suas diferentes formas, para ilustrar o modo com que essas buscas se deram na Era Moderna. PALAVRAS-CHAVE: Antiguidade. França. Mitos. Século XIX.

From divine to civilized: the government legitimation process during the Antiquity and its projections in France from the beginning of XIX century

ABSTRACT: This work mainly intends to approach researches that have been made about political and mythological structures during the Antiquity, intending to legitimize different kinds of governments at the time. Therefore, the usage of these myths and the reaffirmation of civility during this process of legitimization in ancient world was approached. There’s also been analyzed the context in which beginning of XIX century France was in - its diverse governments and their need to affirm its formats, to show how these researches were developed in Modern Age. KEYWORDS: Antiquity. France. Myths. XIX Century.

O domínio da fala adquirida pelos homens possibilitou que as experiências fossem passadas de geração em geração. Isso fomentou o surgimento de diferentes culturas as quais, juntamente com o processo de sedentarizarão dos povos no neolítico, deu origem a divisão do trabalho e a novas formas de administração das aldeias que, grosso modo, forneceram as bases para o surgimento de grandes civilizações. No decorrer do tempo, os diferentes povos criaram para si várias formas de expressar suas mais diferentes ideias, variando entre símbolos, gestos e elementos da fala. Essas diferentes formas de expressar- se estão intimamente vinculadas ao fato de que a humanidade, desde os primórdios, esteve

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à procura constante da identificação individual com algo, de certa forma, incompreensível, além do mundo material. Assim, nas primeiras civilizações já está presente a necessidade de compreender as suas origens, e advém dessa necessidade a tentativa de justificar os motivos pelos quais os diferentes homens assumem posições e funções distintas dentro de seus meios e sociedades. Dessa forma, são extremamente compreensíveis as estratégias de vinculação propostas pelos administradores estatais já nas formas primitivas de Estado, com o mitológico, com os deuses. Tais justificativas tinham por finalidade solidificar a estrutura institucional em formação, ajudando no processo de divisão entre o povo, atribuindo-lhes os diferentes papéis sociais. Ao mesmo tempo, também tentavam incutir nas massas os motivos dessa divisão ao alegarem possuir base no direito divino, para justificar os sistemas opressores resultantes desses processos. Pode-se afirmar que as civilizações da Antiguidade tinham por base um sistema político imperial, opressor e desigual. Tal perspectiva muitas vezes é ofuscada por fatores memoráveis como o surgimento da escrita, o avanço nas mais diversas áreas da matemática e astronomia, o surgimento da democracia; mas que, se analisada de perto, conduz à conclusão de que era um sistema excludente ao extremo. Curiosamente, o início dos estudos das civilizações da Antiguidade se dá durante o século XIX, financiados por países europeus enriquecidos, sobretudo, pela revolução industrial. Essas nações ignoravam quase que por completo os aspectos sociais voltados à massa. Elas davam ênfase à política imperialista da Antiguidade, tendo por objetivo identificarem-se com essas mesmas políticas através de diferentes buscas. Ao se declararem herdeiras desses modelos de civilizações, tinham o intuito de justificar os seus novos sistemas de governo e ressaltar os aspectos semelhantes das estruturas do Mundo Antigo que lhes convinham. No século XIX, o homem não volve seu olhar para o passado simplesmente à procura das origens divinas como no início da Antiguidade, mas sim das origens das civilizações, do fator civilizatório. O mundo intelectual pós Revolução Francesa está preocupado em estabelecer ligações de origens que possam ser comprovadas cientificamente, pela arqueologia e outras ciências. Assim, essas buscas são utilizadas para dar forma ao sistema em que os pesquisadores estão introduzidos e, mais uma vez, a necessidade do homem em compreender suas origens é utilizada para legitimar sistemas políticos como, por exemplo, o Império Napoleônico, que vasculhou nas sociedades do

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Mundo Antigo aspectos políticos e sociais que lhes eram apropriados, com o objetivo de projetá-los em seu próprio contexto.

MITOS ENQUANTO BASES ESTATAIS É equivocado pensar que a História surgiu na Grécia Antiga simplesmente sem nenhuma base anterior, quando nas sociedades mesopotâmicas, por exemplo, os mitos eram elaborados e conservados pelos escribas, bem como as tradições orais já eram difundidas. De certa forma, os relatos mesopotâmicos não podem ser considerados relatos históricos em sua totalidade, porém, assim como os surgidos na Grécia Antiga, sua principal função, segundo Josep Fontana (1998), era a de papel social. Enquanto função social, tinha por objetivo principal legitimar uma ordem já pré-estabelecida, resultando em efeitos semelhantes nas mais diferentes sociedades, e, mesmo aquelas que não conheciam a escrita, utilizavam suas tradições orais na busca da manutenção e estabilidade do sistema vigente (FONTANA, 1998, p. 15). Todavia, essa função não está explícita nos mitos escritos e tradições oraisCaso seja analisada, porém, sua presença não passará despercebida “ainda que tenham tendido a mascará-la, apresentando-se com a aparência de uma narração objetiva de acontecimentos concretos.” (FONTANA, 1998, p. 15). Sendo assim, independente dos métodos utilizados pelos diferentes povos serem considerados ou não o início do estudo da História, podemos observar as tentativas das sociedades, ainda no Mundo Antigo, de utilizar os meios que estavam ao alcance de suas culturas para dar forma às tradições e garantir a estabilidade política. Nesse processo, a criação e a difusão dos mitos nas diferentes sociedades foram fundamentais, pois além de alimentar o imaginário, fornecendo certo entretenimento, ajudaram também a dar forma ao contexto social ao serem utilizados como metáforas e lições explicativas sobre as origens monárquicas. Cabe ressaltar que os “mais antigos textos históricos conhecidos são as listas de reis, como as que os sacerdotes sumérios guardavam nos templos, onde se contava como a realeza descendeu dos céus, no começo de uma etapa de reis divinos, seguida por outra de monarcas sobre-humanos.” (FONTANA, 1998, p. 16). Tomamos por exemplo de mito à epopeia de Gilgamesh, composta por uma série de doze tabuletas intituladas “Sha Nagbu Imuru”, que significa “aquele que tudo viu” (BUDGE, 2004, p. 21). Esse texto tem por objetivo dar forma a uma narrativa que dá vida a uma monarquia mesopotâmica associada às divindades e glorifica, em particular, o

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12 soberano Gilgamesh, atribuindo-lhe inúmeros poderes e direitos divinos. As tabuletas estavam entre as encontradas por Sir Henry Layard e pelo Sr. Hormuzd Rassam em 1850, em escavações entre as ruínas da antiga cidade de Nínive na região da Mesopotâmia, no Templo de Nebo. Posteriormente, foram enviadas ao Museu Britânico e hoje formam a Coleção Kuyûnjik, com o número aproximado de 250.073 peças, sendo um marco para o desenvolvimento da Assiriologia. (BUDGE, 2004, p. 56). Os mitos como fatores de consolidação de políticas estatais são utilizados desde o surgimento do próprio Estado. Um bom exemplo é o primeiro império centralizado da Mesopotâmia, o império acádico que data de 2350 a.C. aproximadamente. Após várias disputas sangrentas, Sargão, rei de Kish, é intitulado Sargão I e seu império chega ao ponto de abranger do norte ao sul de toda Mesopotâmia. Destaca-se que para manter e/ou conceder estabilidade a seu império, Sargão decretou que a deusa Ishtar, a Inana suméria, além de adorada pelo povo seria elevada à categoria de sua deusa pessoal, ao passo que difundiu também a lenda de seu próprio nascimento, supostamente dotado de vários elementos associados à deusa. (OTTERMANN, 2005, p. 45). Cabe lembrar que a deusa Ishtar já era adorada e tinha grande aprovação em todas as principais cidades da Mesopotâmia. Dessa forma, podemos ver claramente que os idealizadores desse império se utilizaram de um mito, um costume já estabelecido, para legitimar e ornar seu governo. Ainda durante o reinado de Sargão I, podemos observar mais estratégias advindas do governo, que não se limitam simplesmente à apoderação de um mito. O próprio governante vai além ao nomear sua filha Enheduana como sacerdotisa do templo central de Ur, já que o “fato de saber ler e escrever, no Oriente Antigo, era considerado não somente um privilégio, mas, sobretudo, uma superioridade social”. (POZZER, 2004, p. 72). E a partir desse local social que sua filha passou a ocupar, ela também pôde exercer um papel peculiar, dando forma a uma espécie de propaganda governamental, cuja “parte dessa propaganda é registrada em vários hinos a Inana-Ishtar que Enheduana compôs”. (OTTERMANN, 2005, p. 45). Assim foram utilizados privilégios do Estado, como a escrita, por exemplo, para alimentar a manutenção da unidade religiosa, além da consolidação de seu governo. É possível identificar durante toda a Antiguidade a valorização da escrita e a utilização dela por parte dos soberanos e outros setores de classes dominantes do Estado, com o intuito de empregá-la como ferramenta de opressão das massas. Para se ter uma

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13 visão melhor, basta analisar a origem social da maioria dos escribas e o contexto em que estavam inseridos. Somente famílias abastadas podiam assegurar a instrução de um futuro escriba, pois o custo dessa educação era muito elevado [...] Os escribas geralmente provinham de grandes famílias que abrigavam funcionários, responsáveis por grandes extensões de terra, governadores, sacerdotes, ricos mercadores. (POZZER, 2004, p. 72-73).

A escrita então se torna um meio culto e digno de credibilidade, por perpassar os elementos culturais de uma sociedade para a posterioridade. Assim, ao atribuir poderes à escrita, o Estado automaticamente se elevava, por ser seu detentor oficial. A prova disso é a biblioteca do Templo de Nebo, escavada por Sir Henry Layard e Hormuzd Rassam no séc. XIX, que teve seu apogeu no reinado de Assurbanipal, sucessor de seu pai Esarhaddon, por volta de 669 a.C. Assurbanipal, ao assubir ao trono, decidiu criar a biblioteca em questão (BUDGE, 2004, p. 22) e ordenou que fossem coletadas obras literárias nas mais diversas cidades de seu reino, as quais seriam copiadas e catalogadas com a finalidade de serem preservadas. Dessa forma, erroneamente a imagem de Assurbanipal está, de modo geral,relacionada à de patrono do aprendizado: exemplo desse pensamento é a obra de Wallis Budge, curador do Museu Britânico de Antiguidades Egípcias e Assírias entre os anos de 1894 a 1924: Em um período relativamente inicial de seu reinado pareceu devotar-se ao estudo da história de seu país e a preparação de uma grande biblioteca particular. As tabuletas que chegaram até nós provam não apenas também o homem educado, mas o amante do aprendizado e o patrono do saber literário de seu tempo. (BUDGE, 2004, p. 22).

Ao considerarmos a escrita como um elemento de dominação no Mundo Antigo, sobretudo na Mesopotâmia, a imagem de patrono do aprendizado atribuída a Assurbanipal pode ser substituída pela de governante estrategista e manipulador. O simples fato de as obras serem selecionadas antes de fazerem parte definitiva do acervo de sua biblioteca é extremamente significante: “ele mesmo examinava os textos e os revisava antes de colocá-los em sua Biblioteca” (BUDGE, 2004, p. 23), certamente selecionando o que lhe convinha e também a seu governo. Assim, o fato de a epopeia de Gilgamesh estar presente entre as obras do acervo de Assurbanipal é muito revelador, pode inclusive ser considerada uma ferramenta de consolidação do regime político da época em que lá foi inserida. Essa série de tabuletas que compõe a epopeia mostra uma narrativa bem elaborada que dá forma às aventuras de ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Gilgamesh, rei de Erech, suposto soberano dos primórdios mesopotâmicos. As tabuletas também trazem relatos sobre o dilúvio e o mito da criação pela perspectiva da mitologia mesopotâmica (BUDGE, 2004, p. 59). Já no início da narrativa do mito, o rei de Erech é descrito como detentor de grande conhecimento e sabedoria, autor de grandes feitos, constituído fisicamente de carne dos deuses, sendo dois terços divinos e um terço humano. A Epopeia de Gilgamesh, como o próprio nome indica, narra a vida de um herói mítico que se distinguiu pela coragem e sucesso nas suas iniciativas. O seu nome é Gilgamesh e significa “o velho que rejuvenesce”, numa dupla dimensão: (i) filosófica, como soberano invencível e poderoso; (ii) e intrinsecamente política, respeitando os regulamentos, as normas, os deveres, e mantendo o equilíbrio governativo. Este herói foi referido como alguém arrogante, abusador, que granjeava a antipatia dos deuses. (SANTOS, 2014, p. 111). (grifos do autor).

No decorrer da narrativa, também é descrito o descontentamento do povo com seu soberano, devido ao excesso de trabalho a que lhe fora atribuído. Ao pedirem aos deuses um novo rei que controlasse Gilgamesh, os habitantes foram atendidos pela deusa Aruru que então criou Enkidu, uma fera para essa finalidade. Contudo, no desenrolar da trama, Gilgamesh e Enkidu tornam-se amigos e realizam inúmeros feitos que, por fim, acabam por alegrar o povo, dando-lhes motivos para comemorar ao invés de sofrer. Também há incontáveis passagens que nos mostram como deveria ser a conduta do rei diante do povo, e a conduta do povo diante seu soberano, ou seja, esse mito certamente foi utilizado como ilustração, ajudando a dar forma e a perpetuar governos mesopotâmicos, inclusive o de Assurbanipal, ou simplesmente refletia suas estruturas opressoras. O papel dos mitos, no Mundo Antigo tornado claro, assim como os modos como eram utilizados. Ao passo que supostamente remontava ao passado, ele também glorificava os governantes, como mostra a própria denominação das tabuletas da epopeia, que fazem referência às proezas e viagens do soberano Gilgamesh. Destaca-se que o “período exato do reinado desse rei é incerto, mas na lista dos reinados sumérios ele é o quinto a reinar na Dinastia de Erech, que era considerada a segunda dinastia a reinar após o Dilúvio” (BUDGE, 2004, p. 59). Nesse contexto, então, que o “mito se fundia com a história e completava a genealogia do Estado monárquico: associava aos reis as divindades, reforçava os prestígios da casta sacerdotal e contribuía para explicar as formas de organização do presente.” (FONTANA, 1998, p. 16). Em outras palavras, os mitos, principalmente associados à escrita, foram meios utilizados pelos principais Estados da Antiguidade para perpetuar suas formas

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15 semelhantes de governo e manter a divisão social. As classes dominantes volveram o olhar para um passado supostamente mítico com o intuito de melhor explicar o presente, procurando justificar ao povo os motivos de este ser submetido aos mais diversos tipos de exploração e a ocupação das camadas economicamente inferiores da sociedade.

CIVILIDADE EM FOCO Próximo ao fim da Antiguidade, na Grécia e, sobretudo em Roma, o foco consolidador estatal apresenta mudanças no seu eixo. Anteriormente, a herança divina predominava como a principal ferramenta das camadas dominantes na manutenção do poder e na estratificação social. Já nesse momento, todo um simbolismo relacionado aos termos “civilidade” e “politizado” são evocados concomitantemente ao divino, revelando-nos muito sobre a fluidez e assimilação nas relações político-culturais entre o que posteriormente veio a se tornar a Europa e o Oriente Próximo. Na Grécia Antiga do século V a.C., essa mudança de foco já é perceptível nas reinvindicações pregadas pelos sofistas e por Sócrates quanto à disseminação e direção da educação, que visava atender às necessidades de uma Atenas em transformação. Ao refletir sobre a necessidade de uma nova Educação cuja meta fosse a reinvenção da pólis, Sócrates ensaiou uma ruptura com um modelo de Educação que havia predominado até, ao menos, o século IV e que se baseava na concepção aristocrática da areté, isto é, da virtude ou da excelência intelectual e moral, acessível somente aos que tinham sangue divino.” (PAGNI e SILVA, 2007, p. 20-21).

A educação na Grécia Antiga até então estava estritamente relacionada à vida pública e as relações de poder, e até o século IV a.C. era acessível a uma determinada aristocracia. Isso, pela óptica sofista, já não era suficiente para atender as variadas necessidades da pólis.

Á medida que Atenas vai se transformando em uma sociedade urbana, artesanal, comercial e democrática, a antiga areté perde sentido, já não basta mais formar cidadãos belos e bons dispostos a morrer pela cidade, antes é preciso formar bons cidadãos, que participem ativamente da vida pública. Neste caso, a areté aristocrática não é mais suficiente e aceitável, pois está fundada nos privilégios de sangue. (PAGNI e SILVA, 2007, p. 21).

Nessas reinvindicações vemos que os próprios sofistas e filósofos se enquadram em seu núcleo, ou seja, encabeçam a defesa de uma maior participação na vida política, ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

16 com o intuito de que o poder de mando vá aos poucos migrando das mãos dos supostos descendentes dos deuses (nobres) para os supostamente mais capacitados intelectualmente e abastados. Dessa forma, a herança divina entra em xeque e não é mais por si só uma garantia para se manter ou chegar ao poder. Os filósofos, ao exigirem sua participação, evocam um pensamento civilizatório que exalta uma capacidade de governar fundamentada na civilidade, que seria mais um fator a ser considerado para o exercício do poder. Em Roma, durante o principado de Augusto, poucos séculos mais tarde, é perceptível uma postura semelhante a dos filósofos da Grécia Antiga, principalmente nos escritos e obras públicas direcionadas a legitimação do governo romano. Não é de se espantar que a semelhança seja extrema, e nem fruto do acaso, pois: Roma, que tomou pelas armas o mundo helenístico, proclamou- se sua continuadora, com base em argumentos como o de afirmar o latim como um dialeto grego, a introdução de Enéias na genealogia de Rômulo e a assunção da tradição homérica, adequadamente adaptada por Virgílio, como sua própria história. (FONTANA, 2005, p. 17).

É dessa forma que a história de Roma se confunde com a da Grécia: quando Roma se auto intitula sua legítima herdeira, vasculhando incansavelmente num passado já esquecido elementos em comum, para que posam ser associados e confundidos na forma de intersecção, com o intuito de se projetar para a posterioridade como uma civilização ornada pela “civilidade” grega e devidamente “politizada”. Mas essa projeção não se limita a uma simples construção de imagem para o futuro: ela também ajuda a dar forma ao principado presente, governo romano estabelecido após a decadência da República. Dessa vez, não apenas resgatando elementos relacionados a um passado que estabelecesse ligações com o divino, mas também com o elemento politizador, atribuindo mais substância ao governo recém-adotado. Isso pode ser facilmente ilustrado com os escritos de Dionísio de Halicarnasso, historiador grego do século I, submetido às leis de Roma e contemporâneo de Augusto, que ao escrever sobre a Monarquia romana anterior a República, deixou transparecer vários aspectos do seu próprio contexto político. Sua organização foi a seguinte: Rômulo distribuiu todo o povo em três grupos, colocando na chefia de cada um deles o indivíduo mais ilustre. Em seguida, dividiu novamente cada um dos grupos em dez, à frente dos quais colocou os mais corajosos. Chamou de tribos as divisões maiores e de cúrias as menores, nomes que

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permanecem até hoje. (BELTRÃO e DAVIDSON, 2010, p. 204- 205).

Dionísio, propositalmente ou não, ao tentar descrever o sistema político anterior à República, acaba projetando diversos elementos do seu contexto. Talvez com o intuito de disseminar uma melhor aceitação do principado de Augusto, mostrando que a política adotada e empreendida na sua época já possui raízes seculares, não apenas relacionadas a Rômulo e toda a sua lenda, mas a elementos políticos e suas formalidades, como as nomenclaturas das divisões e cúrias, que segundo afirmava, advinha desde os primórdios de Roma, datando do governo mitológico de Rômulo. Também há mais evocações políticas e religiosas que, segundo Dionísio, foram inauguradas ainda por este soberano lendário. Rômulo reservou ao rei as seguintes prerrogativas: em primeiro lugar presidir às cerimônias sagradas e aos sacrifícios e realizar tudo aquilo que tinha sido previsto pela vontade dos deuses; em seguida, como guardião das leis e dos costumes dos antepassados, provar a justiça segundo o direito natural e o direito estabelecido; julgar os crimes maiores, relegando os menores aos senadores, impedir todos os erros nos processos e executar as decisões da maioria. Estes foram os poderes concedidos aos reis; além disso, o mesmo era o chefe supremo da guerra. (BELTRÃO e DAVIDSON, 2010, p. 205).

Aqui podemos observar que Dionísio ajuda a legitimar o poder de Augusto ao resgatar do passado elementos que lhe atribuem direitos e deveres que, segundo ele, têm raízes desde a gênese da civilização romana, desde sua primeira Monarquia, diferentemente da República que acabara de ruir, mas que ainda estava presente vivamente na lembrança dos seus contemporâneos. Nesse outro fragmento, Dionísio continua a resgatar do passado elementos que dão forma a seu presente. À assembléia do Senado atribuiu a honra e o poder de decidir sobre todas as questões que o rei lhe submetesse e de fazê-lo por meio de voto. Ela deveria ser guiada pela maioria. Ao povo em geral, concedeu os seguintes três poderes: eleger os magistrados, sancionar as leis, decidir sobre a paz e a guerra, se o rei assim o desejasse. No entanto, mesmo assim, a autoridade do povo não estava fora do controle, pois a aquiescência do Senado era necessária. O povo não votava em massa, mas era convocado pelas cúrias, e aquilo que parecesse bom para a maioria das cúrias era em seguida deferido ao Senado. (BELTRÃO e DAVIDSON, 2010, p. 205).

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Não se trata de uma simples evocação do passado que destaca as semelhanças com seu contexto. Contudo, também não nos cabe afirmar que se trata de pura imaginação, haja vista as evidências de uma tentativa de disseminação ideológica que pretende legitimar interesses, assim como nos primeiros Estados Mesopotâmicos em que lendas e entidades mitológicas eram evocadas para melhor dar forma à hierarquia social, , agora, podemos observar a evocação de características atribuídas a Grécia Antiga. Outro setor desse período que pode ser extremamente esclarecedor é o das obras públicas. Obviamente a utilização de edificações em uma espécie de propaganda governamental em Roma data de muito antes do governo de Augusto. No entanto, em seu governo, essas obras ganharam lugar de destaque. Augusto percebeu a importância das obras públicas para o seu governo, pois através delas ele criava na paisagem da Urbs diversos “lugares de memória”, de modo que através das restaurações das antigas construções republicanas ele mantinha viva a memória que se tinha do passado, ligando seu nome a um passado glorioso de deuses e heróis, propagando a crença de sua descendência ligada a Marte e Vênus, bem como às origens de Roma. (CUNHA, 2013, p. 246).

Das obras públicas, podemos destacar como sendo o melhor exemplo o Fórum de Augusto. Nessa obra em particular, que chamava a atenção por sua beleza e monumentalidade e estava localizada no coração de Roma, houve todo um jogo com a disposição das imagens que buscavam enaltecer o soberano, estabelecendo ligações com os deuses. Augusto se apropriou do passado de modo a recriar uma história na qual o seu nome e o de sua família estivessem diretamente ligados a uma linhagem de origem heroica, se ligando a Marte e Vênus, a Enéias, Rômulo e Remo, dentre outros. [...] Augusto usou a iconografia de seu Fórum como um caminho para recriar uma história de Roma que respondesse a suas necessidades políticas. (CUNHA, 2013, p. 248).

Assim, como já destacado anteriormente, podemos observar nesse período uma espécie de mudança de eixo. O apelo às origens divinas ainda está presente fortemente, no entanto, não é o suficiente. Ademais, elementos que remetem à civilização grega também entram em cena. Percebe-se, portanto, a estreita relação da construção do Fórum de Augusto com sua política que sabia unir o engrandecimento do império através das obras públicas, com a valorização do passado e das tradições dos antepassados, o mos maiorum, manipulando a memória e as representações imagéticas desta ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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memória e do imaginário de sua época, conseguindo com isso ligar a sua história com o passado mítico de Roma, estabelecendo um elo entre presente, passado e futuro, além de fazer alusões diretas às construções gregas. (CUNHA, 2013, p. 248).

Desse modo, na Roma desse período, o resgate da suposta civilidade grega, conjuntamente com elementos mitológicos, era utilizado para constituir princípios e garantir a manutenção do status quo no que tange à estratificação social. Uma ferramenta das classes dominantes para fortalecer e manter firmemente arraigada a hierarquia e estabilidade no recém-criado principado de Augusto, que dessa forma tinha o objetivo de ser visto como o exemplo de organização social, o herdeiro coroado de um governo romano lendário, bem como da civilidade grega e de todas as consequências benéficas que pudessem trazer tais evocações.

BUSCAS MODERNAS NA ANTIGUIDADE Com a ascensão do Renascimento, no século XV, surge à ideia de Idade Média advinda de seus elaboradores: um período de tempo, que supostamente estava localizado entre o declínio e a renovação, entre a decadência e a ressurgimento das virtudes republicanas. A Idade Média carrega até mesmo em seu nome os estigmas de sua desvalorização. Media aetas, medium aevum, em latim, e as expressões equivalentes nas línguas europeias significam a idade do meio, um intervalo que não poderia ser nomeado positivamente, um longo parêntese entre a Antiguidade prestigiosa e uma época nova, enfim, moderna. Foram os humanistas italianos da segunda metade do século XV – como Giovanni Andrea, bibliotecário do papa, em 1469 – que começaram a utilizar tais expressões para glorificar seu próprio tempo, ornando-o com prestígios literários e artísticos da Antiguidade e diferenciando-o dos séculos imediatamente anteriores. (BASCHÊT, 2006, p. 24-25).

Dessa forma, os intelectuais da segunda metade do século XV, sobretudo os italianos, lançam trevas intencionalmente no período que batizaram de Idade Média, com o propósito de realçar a suposta luz do longínquo Império Romano, visto como um exemplo de civilização. Devido à consolidação do Renascimento e os benefícios que trouxe para diversas áreas do conhecimento humano, esse foi concretizado e projetado para o futuro juntamente com toda sua ideologia e conceitos, como um detentor da verdade. Mais um modelo a ser seguido por ser resultado do resgate de elementos da

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Antiguidade, como aspectos políticos, tecnológicos, científicos, para então serem incorporados de maneira bem-sucedida em sociedades ocidentais da Era Moderna. Portanto, não é de causar estranheza que em meados do século XVIII e durante todo o século XIX, tenha sido feito o resgate de elementos das civilizações do Mundo Antigo. Escusado lembrar que é justamente em meados do século XVIII que as palavras civilisation e civilization surgem pela primeira vez em publicações francesas e inglesas, respectivamente, assim como todo um debate sobre o real significado da palavra. (PIMENTA, 2013, p. 121). Todo esse contexto serviu de combustível para os propósitos nacionalistas que estavam se estabelecendo, tornando-se um dos principais motivos para a propagação e promoção da ideia de nação, influenciando diretamente na formação de novos Estados europeus. Pois sem dúvida, havia muito, havia pelo mundo, havia pela Europa grupos humanos que, não tendo ainda atingido o estágio de nação, aspiravam ou a se fundir numa unidade de nação já existente, ou a construir por si mesmos uma nação autônoma, a dotar-se ou a serem dotados de um Estado. (FEBVRE, 2004, p. 259).

Também cabe lembrar que o nacionalismo está intimamente ligado à construção de um “Outro”, uma polarização. Sendo assim, foi muito proveitoso para o Estado francês, que estava se reformulando durante a Revolução, reafirmar suas supostas e almejadas origens clássicas ao contrastar com o Oriente, que a visão europeia da época rapidamente associava ao Oriente Próximo ou ao mítico Antigo Egito. O Oriente não é apenas adjacente à Europa; é também o lugar das maiores, mais ricas e mais antigas colônias européias, a fonte de suas civilizações e línguas, seu rival cultural e uma de suas imagens mais profundas e mais recorrentes do Outro. Além disso, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem, idéia, personalidade, experiência contrastantes. (SAID, 2007, p. 28).

O choque entre culturas tão diferentes quanto à francesa do final do século XVIII e a egípcia do mesmo período serviu para realçar as diferenças entre ambas. Assentou-se a França numa posição de resgatadora da estrutura estatal que teve origem ainda no Oriente e atribui-se ao Ocidente esses elementos, ou pelo menos esse era um dos aspectos que permaneceram da Expedição Egípcia de 1798, encabeçada por Napoleão Bonaparte. Ainda se deleitando na glória das vitórias na Itália e influenciado pela leitura dos filósofos e grandes viajantes, Bonaparte queria aparecer como um ‘herói civilizador’ através de uma nova

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campanha. Ele fora informado que devia espalhar o ‘Iluminismo da Europa’ no Leste; e recuperar o poder passado com a ajuda de avanços tecnológicos e através da arte. (CHANTERANNE e PAPOT, 2012, p. 42).

Napoleão, ao invadir o Egito, busca apoderar-se rapidamente de elementos provindos do Oriente para ornar a nação que viria a consolidar, ressaltando aspectos do Ocidente. O mítico Oriente que contribuiu para humanidade com a criação da escrita, desenvolvimento de diversas áreas científicas e o surgimento do modelo de Estado, viu no final do século XVIII esses elementos serem transferidos ao Ocidente, que supostamente herdara a civilidade do Império Romano e sua suposta superioridade. Uma fonte riquíssima para analisarmos como o próprio Estado francês se contemplava é a iconografia presente em medalhas comemorativas emitidas por ele. Em A fabricação do rei, o historiador Peter Burke realizou um vasto estudo para analisar como foi dada a criação da imagem pública do Rei Sol, e além de pinturas a óleo, estátuas, tapeçarias, arcos de triunfo etc. que exaltavam a figura do monarca, levou em consideração também as centenas de medalhas produzidas durante o reinado de Luís XIV e posterior a ele, que exaltavam os feitos do soberano (BURKE, 2009, p. 217). Vemos que a produção de medalhas comemorativas por governos franceses data de muito antes do reinado de Napoleão e mesmo de Luís XIV, mas uma breve análise sobre a forma com que essa produção foi utilizada durante o governo napoleônico pode nos revelar muito sobre a visão do Estado francês em relação à Conquista do Egito. A obra do capitão C. J. Laskey (1818), publicada em Londres no início do século XIX, onde o autor se propôs a descrever cada medalha emitida durante o reinado de Napoleão, mostrou-se uma fonte essencial para termos acesso à produção de medalhas comemorativas emitidas durante esse governo. De acordo com essa obra, podemos observar que, nesse período, centro e trinta e seis medalhas foram cunhadas para exaltar feitos ou chamar atenção para ocasiões especiais (visita do papa, por exemplo), ocorridos entre os anos de 1796 a 1815. Além das descrições feitas por Laskey, é possível vislumbrar as próprias medalhas na obra de Michel Hennin, publicada em Paris no mesmo período (HENNIN, 1826). Através desses trabalhos, podemos afirmar que a produção de medalhas durante o governo napoleônico deu toda uma atenção especial à Conquista do Egito, já que foram cunhadas uma série cujo tema central era esse. Vejamos a descrição de Laskey sobre a medalha intitulada L’e gypt Conquise, que utilizaremos a título de exemplo:

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Obverse - bust of General Bonaparte, three-quarter face, crowned with a wreath of the floivers of the lótus [...]. Reverse - a triumphal chariot, on the side of which are suspended two Egyptian quivers with arrows ; one full, the other nearly empty. The conqueror stands erect in the chariot, cloathed in Roman costume. Victory on wing, is approaching with a palm branch in one hand, and in the other an olive wreath, which she holds out towards him. The car is drawn by two camels, richly caparisoned, with Egyptian ornaments; they appear to be passing between Cleopatra’s needle in the fore, and Pompey’s pillar in the back- ground. (LASKEY, 1818, p. 19).

Nesta imagem, podemos ver claramente que a figura de Napoleão encarna o Ocidente. Além de seu busto trazer traços greco-romanos, o então general é retratado em trajes típicos da nobreza romana, enquanto alegoricamente adentra o Oriente, aqui representado pelas colunas egípcias. Podemos observar que a entrada triunfal evoca mais elementos que denotam a conjecturada superioridade do Ocidente frente ao Oriente, pois o general aparece sobrepujando dois dromedários, que fazem alusão ao Oriente nas mãos do Ocidente, um Oriente que, além de resgatado, também está controlado.

Fig 1. Medalha comemorativa em bronze – 1809.1

1 Medalha disponível em: . Acesso em: 18 jan. 2017. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Podemos perceber mais aspectos dos resgates do Mundo Antigo empreendidos por Napoleão e sua expedição no discurso que o general faz às suas tropas ao desembarcarem no cais de Toulon em maio de 1798: As legiões romanas protegiam todas as religiões. Vocês encontraram hábitos aqui que são diferentes daqueles da Europa: vocês terão que se acostumar com eles. A primeira cidade que encontraremos foi construída por Alexandre. A cada passo que dermos, encontraremos relíquias que são dignas de inspirar os franceses a copiá-las. (CHANTERANNE e PAPOT, 2012, p. 43).

Mais uma vez, vemos claramente as buscas empreendias na Antiguidade para legitimar novas propostas políticas. No caso da expedição egípcia, além de um golpe contra a economia inglesa2, também está presente o resgate de elementos do Mundo Antigo Oriental e a reafirmação dos elementos ocidentais. Para isso, a expedição contou com mais de 160 cientistas, artistas e engenheiros que, através de suas buscas e pesquisas somados ao poderio bélico francês, permitiram a Napoleão atingir um de seus objetivos de campanha: “tornara-se o novo faraó de uma terra sem idade, lembrança dos Alexandres e Césares, e também um modelo de chefe de estado, trazendo consigo os ensinamentos dos filósofos do Iluminismo.” (CHANTERANNE e PAPOT, 2012, p. 44). Mas o Império Napoleônico não foi o único sistema político francês a utilizar expedições científicas para elaborar um autorretrato civilizado, a fim de beneficiar-se. Após a queda definitiva de Napoleão e a restauração dos Bourbon no trono com Luís XVIII, também foi necessário a este novo governo vincular-se ao que aqui chamamos de fator civilizatório, que a França do início do século XIX relacionava tão intimamente com a realização de expedições científicas. Ao analisarmos uma segunda medalha comemorativa, também emitida pelo Estado francês, em 1826, correspondendo ao reinado de Carlos X, irmão do já falecido rei Luís XVIII (ARRUDA, 1981, p. 197), podemos analisar as semelhanças e diferenças entre a Monarquia Restaurada e o Império Napoleônico:

2 A expedição egípcia foi organizada durante a Revolução Francesa com a finalidade de minar o contato via Mediterrâneo entre a Inglaterra e suas possessões territoriais na Índia. Esta expedição tinha por objetivo principal um golpe na economia inglesa, além de ser uma tentativa de forjar a hegemonia marítima francesa no Mediterrâneo. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Fig 2. Medalha comemorativa em bronze – 1826.3

Caso contrastarmos ambas as medalhas, torna-se explícito que há elementos que permaneceram, bem como outros que foram retirados intencionalmente para atender as diferentes necessidades dos governos distintos. Obviamente, a figura de Napoleão foi rigorosamente removida, pois em hipótese alguma a evocação de sua efígie carregada de significados ainda recentes na mentalidade francesa da época poderia trazer elementos positivos, ou que pudessem ser utilizados eficazmente no que diz respeito à legitimação, ainda mais num governo tão antagônico ao napoleônico quanto o representado pela monarquia Bourbon recém-restaurada. Mas há a permanência da evocação de elementos que fazem alusão à civilidade francesa e à suposta superioridade do Ocidente frente ao Oriente. Basta analisar a postura do romano-gaulês, que na medalha faz clara referência aos franceses, pois porta um estandarte com a figura de um galo, símbolo absoluto da França, e a sua postura impositiva de desbravador, que ao retirar o véu desnuda, descobre o Oriente. Este, nesse caso, está claramente representado pela figura da mulher que se apoia no crocodilo, numa posição alusiva ao controle da natureza selvagem, sustentando a coroa egípcia, assim como instrumentos do saber de origem oriental, passiva frente ao Ocidente todo- poderoso. Mais uma vez, vemos a evocação de elementos da antiguidade para ornar um

3 Medalha disponível em: . Acesso em: 18 jan. 2017. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

25 governo de civilidade, ao passo que contrasta com a figura do Outro, que é representado como sendo o exótico, o sexo dito frágil, numa posição submissa as vontades do seu suposto resgatador. Dessa forma, podemos ver que as buscas na Antiguidade não se limitam aos planos de Napoleão de construção do seu império no fim do século XVIII, que tomaram formas definidas no início do século XIX. Durante todo esse século, é perceptível o resgate de elementos do Mundo Antigo para ajudar a dar forma às estruturas políticas das nações que estavam se formando após o redesenhar do mapa político europeu, consequência da política externa de Napoleão que resultou no Congresso de Viena. Durante o século XIX, paira sobre a Europa uma ideia coletiva de superioridade do mundo Ocidental frente ao Oriental, associadas às teorias da superioridade racial. Podemos ver que o contexto imperialista que de certa maneira inventou, realçou as diferenças entre os povos com o intuito de justificar a sua superioridade, destacando sempre as diversidades, ganhou força e criou raízes durante esse século, fornecendo as bases para o imperialismo moderno. Assim, é possível ainda analisar com cuidado os elementos específicos resgatados para o contexto imperialista e, ainda mais importante, refletir sobre o que era negligenciado intencionalmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante toda a História da humanidade, vemos o homem elaborar buscas e tentativas de resgatar um passado mitológico ou civilizado para projetar em seu presente, a fim de legitimar a estrutura política do seu tempo. Como podemos observar, na Antiguidade pré-clássica, essas estratégias giravam em torno de um resgate mitológico e religioso, iniciativas de vincular os governos aos deuses com o intuito de melhor conter o povo e solidificar a aceitação da monarquia. Já na Antiguidade clássica, há uma leve mudança de eixo, pois além de elementos mitológicos que ainda são evocados, apenas eles, contudo, já não garantem a legitimação numa sociedade em que a filosofia está se desenvolvendo. Assim, a civilidade passa a atuar em conjunto para atingir propósitos políticos. Na modernidade, as buscas na Antiguidade não incluem resgates religiosos ou mitológicos, pois para as sociedades ocidentais pós-Revolução Francesa de cunho iluminista, não convinha estabelecer ligações com o divino - por mais que as práticas religiosas ainda estivessem arraigadas e postas em prática - mas ligações que pudessem

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26 ser comprovadas cientificamente. Estas, por sua vez, tampouco se limitam apenas ao resgate da civilidade por si só, que tem por objetivo ser projetada em seu contexto; ela também é utilizada para realçar as diferenças culturais. Assim, na Era Moderna não ocorre a simples evocação da Antiguidade e seu modelo de civilização para a assimilação e um processo de identificação, mas também para a polarização de diversos povos e culturas, num pano de fundo de teorias de superioridade racial. O nacionalismo emergente do século XIX polariza os diferentes povos na tentativa de estabeleceram as bases de suas nações. Um dos principais motivos são as diversas tentativas de se legitimarem na posição de herdeiros do Ocidente e todas as consequências da civilidade, ao contrastar com o Oriente num processo que, por vezes, é baseado em simples alusões, construções de imagens. De modo abrangente, podemos observar que, nas diferentes épocas, houve camadas sociais dominantes que decidiam quais os elementos deveriam ser resgatados do passado, e o que deveria ser preservado para a posterioridade. Partindo dessa premissa, podemos perceber que as estruturas imperiais do passado e do presente não sofreram alterações significantes no que diz respeito a sua essência, que a história por vezes foi reinventada para atender às necessidades das políticas vigentes dos diferentes períodos e épocas.

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RECEBIDO EM: 07/10/2017 | APROVADO EM: 31/10/2017

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A CONSTRUÇÃO DE UMA MEMÓRIA COLETIVA NO BRASIL OITOCENTISTA: A “CABANAGEM” NA IMPRENSA

Rafaella Schmitz dos Santos Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

RESUMO: No intuito de identificar aspectos da construção da memória coletiva no Brasil para com os movimentos sociais, é preciso mencionar a atuação dos diversos agentes envolvidos no processo histórico de construção de uma memória. Através da análise do início da Cabanagem e de sua repercussão midiática pelos jornais “O Correio Official” e “O Sete d’Abril”, o presente trabalho busca questionar através da crítica documental os juízos de valores consolidados no ato de veiculação do levante entre as décadas de 1830 a 1850. Ao analisar os anos que sucedem o levante, utilizaremos os jornais “Diario de Belem”, “O Liberal” e “O Treze de Maio” para verificar como se consolida o termo “Cabanagem” na imprensa brasileira ao final do século XIX, sempre veiculada com tom de desprezo e caracterizando os rebelados como maus exemplos. Sob uma perspectiva de progresso e civilização, categorias que não contemplavam grupos historicamente marginalizados – livres e pobres, mestiços e indígenas – a imprensa promove inicialmente a formação de uma opinião pública acerca do levante que posteriormente acarreta na construção intencionada de uma memória histórica e coletiva. Buscou-se aplicar o conceito de “memória coletiva” na presente análise através da forma de memória construtiva de Jörn Rüsen (2009), quando o passado rememorado é matéria para discursos e narrativas e se caracteriza enquanto uma memória de considerável permanência institucional. PALAVRAS-CHAVE: Cabanagem. Imprensa. Memória. Brasil Oitocentista.

The construction of the collective memory in Brazil of the nineteenth century: Cabanagem in press

ABSTRACT: In order to identify aspects about the construction of the collective memory in Brazil about the social movements, it is necessary to mention the agency of several groups involved in the historical process of building a memory. Through the analysis of the “Cabanagem’s” beggining and its media repercussion in the newspapers "O Correio Oficial" and "O Sete d'Abril", this paper seeks to question through the documentary criticism the value judgments that were consolidated in the act of uprising's, propagated between 1830’s and 1850’s. The analisys about the years that followed the “Cabanagem” will be done with the newspapers "Diario de Belem", "O Liberal" and "O Treze de Maio" to verify how the term "Cabanagem" is consolidated in the Brazilian end of the nineteenth century, always conveyed with the tone of contempt and characterization the rebels as bad examples. From a perspective of progress and civilization, categories that did not include historically marginalized groups – free and poor, mestizos and indigenous – the press initially promotes the formation of a public opinion about the uprising that later entails in the intentional construction of a historical and collective memory. It was sought to apply the concept of "collective memory" in the present analysis through the constructive memory form of Jorn Rüsen (2009), when the past is a matter for speeches and narratives being characterized as a memory of considerable institutional permanence. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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KEYWORDS: Cabanagem. Press. Memory. Brazil of the nineteenth century.

A CABANAGEM NA IMPRENSA ENTRE OS ANOS 1830–40 A Cabanagem ou Guerra dos Cabanos foi um movimento social que ganhou profundo destaque nos assuntos do Império a partir da tomada da capital de Belém em 7 de Janeiro de 1835 pelos grupos descontentes com o destino social, econômico e político da província do Grão-Pará. É necessário, entretanto, salientar que a importância de entender o movimento cabano para além da tomada de Belém se dá no sentido de compreender a revolta dentro dos seus diferentes estratos sociais e culturais, fugindo da interpretação de que os cabanos formavam uma massa homogênea. O entendimento de que eram pessoas provindas de diferentes grupos sociais com diferentes interesses sociais e políticos deve ser levado em consideração para que se possa pensar numa inserção mais ampla do movimento nas mais variadas partes da província, tendo repercussão em diferentes partes do recém Império brasileiro.4 Se faz ainda essencial demonstrar como, a partir deste acontecimento, as notícias se acentuaram e os interesses em retratar os episódios contemporâneos deste foram intensos por parte da imprensa brasileira. No dia 5 de Fevereiro de 1835, um mês após a eclosão da revolta na capital de Belém e a tomada do poder pelas tropas cabanas, o jornal Correio Official do Rio de Janeiro já escrevia: Não sabemos que mau fado persegue desde 1822 a bela Província do Pará! Presa de comoções intestinas, longe do Governo Central, que lhe poderia dar lenitivo a seus males, castigando os culpados, a Província do Pará ainda não pôde colher as vantagens com que prodigamente a mimoseou a natureza! (...) um bando de facciosos tem desolado a Província do Pará desde 1822, e ainda agora se atreveu a levantar a altaneira cerviz. Esta facção que tantos males tem causado ao Pará, ainda não sofreu o justo castigo imposto pela Lei, mas no animo dos Brasileiros sensatos acha o sentimento de reprovação, que merecem homens, que, levados por paixões ignóbeis e vis, cravão o punhal no coração dos amantes do Brasil, empecendo o seu adiantamento. Que horrores não se têm cometido na Província do Pará! (Correio Official, nº 27, 05/02/1835. p. 3, grifos nossos).

4 As discussões historiográficas acerca das diferentes possibilidades de se analisar o movimento da cabanagem foram melhor analisadas em MOTTA, Márcia M. e Zarth, Paulo (orgs.). Formas de Resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história. Vol. 1. São Paulo/Brasília: Ed. UNESP/Min. Desenvolvimento Agrário, 2008. Além disso, também discutidas em PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. Visões da Cabanagem: uma revolta popular e suas representações na historiografia. Manaus, Valer, 2001.

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Juntamente da descrição negativa dos atuais acontecimentos do Pará através de adjetivos pejorativos, o Correio Official analisa o contexto da província desde os movimentos sociais e políticos pela Independência, o que pode trazer à luz o fato de que diferentes grupos sociais encontravam-se descontentes por motivos que não eram tão recentes assim. O Grão-Pará era uma província com comerciantes e fazendeiros que, buscavam maior controle político e econômico por contribuírem tanto com grande parte da exportação de “madeiras, a castanha, o cacau ou o látex quanto variados produtos que serviam de abastecimento e subsistência em todo o interior da Amazônia e nas grandes cidades” (RICCI, 2008, p. 158). Ocorre, entretanto, que em sua maioria e no movimento mais amplo, os cabanos eram trabalhadores atrelados a terra por meio de pequenas plantações ou do gado, bem como coletores dos rios, das matas e das florestas para sua própria subsistência. Estes, em número considerável, eram os grupos mestiços e indígenas, grupos historicamente marginalizados na sociedade, os quais se encontravam em péssimas condições de vida, por vezes sem trabalho, moradia e sem perspectivas futuras. O próprio nome “cabanagem” se remete à forma de moradia das populações majoritariamente ribeirinhas que se abrigavam em cabanas. Esta era, portanto, a situação geral da província. É possível entender o movimento cabano e seus desdobramentos dentro de uma concepção de “justiça popular”, quando por parte dos grupos marginalizados. Esse interesse de justiça é também manifesto no Correio Official, quando o jornal demonstra a vontade de aplicação do “justo castigo imposto pela lei”. A diferença, é que o castigo da lei manifesta-se como na forma de um tribunal, e o tribunal não é a via revolucionária de justiça dos cabanos, porque “o tribunal não é a expressão natural da justiça popular, [...] tem por função histórica reduzi-la, dominá-la, sufoca-la, reinscrevendo-a no interior de instituições características do aparelho de Estado.” (FOUCAULT, 2008, p. 87). A justiça popular, de parte dos cabanos, deve ser entendida na tomada dos principais elementos de base do Estado, na tomada de espaços que historicamente simbolizavam o poder político da elite sobre o povo sem perspectivas. Estes espaços, além do aparelho burocrático da província na capital de Belém também compunham engenhos e fazendas, caracterizados enquanto grandes monopólios agrícolas por parte dos senhores. Dessa forma, o movimento cabano encontra espaço em diferentes estratos sociais que por se encontrarem em condições subalternas sentiam-se, de alguma forma, abandonados pelo governo central do Rio de Janeiro. Contudo, o modo pelo qual a

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31 imprensa encontrou para retratar essa situação e as proporções que tomaram a difusão do discurso midiático torna essencial salientar a importância de se ouvir também os silêncios da história a partir da crítica documental. Caso se considere a história da imprensa brasileira como “a história dos subsídios, numa extensão muito maior do que tem sido reconhecido” (MOLINA, 2015, p. 453), dá- se a ela nomes específicos. Estes nomes pertencem aos indivíduos dos grupos hegemônicos brasileiros, dos estratos sociais com maior poder econômico, pois são eles os únicos capazes de subsidiar e financiar um grande veículo de caráter informativo. A cultura política da elite brasileira se manifesta na atividade jornalística, porque esta “era o complemento indispensável da atuação política” (CARVALHO, 1999, p. 12). Ou seja, grupos políticos hegemônicos podiam disputar a opinião popular através do mecanismo da imprensa. É deste modo que se verifica um grande interesse político na tentativa de manter a ordem do sistema vigente. As tropas cabanas ameaçavam a estabilidade da elite brasileira e, portanto, era necessário demonstrar que os rebelados cabanos estavam subvertendo a ordem, ordem essa que representava os interesses única e exclusivamente de uma elite. Tanto é verdade que em 1838, já no período de dispersão das tropas cabanas ao interior da província do Grão-Pará, num discurso para a Assembleia Provincial do Pará, o presidente da província, Soares D’Andrea, utilizou-se dos termos “subversão da ordem” para se referir aos acontecimentos relacionados aos cabanos: “Vós sabeis Senhores a que estado de furioza anarquia chegou esta malfadada Provincia arrastada ao abismo pela liberdade, ou antes licença da Imprensa; pela impunidade seguida e systematica de todos os crimes, especialmente dos que se encaminhavao a subversão da Ordem [...]” 5. Evidentemente, o tom da elite brasileira da época não era o tom do diálogo com a população descontente, o que torna possível compreender porque a ordem vigente não representava o povo. Pouco mais de dois meses após a tomada de Belém, o jornal O Sete d’Abril escreve uma descrição mais completa se comparada ao Correio Official sobre o acontecimento:

Das folhas do Maranhão consta que o infeliz Pará houvera uma insurreição, e foram barbaramente assassinados o Presidente

5 Discurso do Presidente Soares D’Andrea da Província do Pará para a Assembleia Provincial no dia 2 de Março 1838. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u987/000003.html ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Bernardo Lobo de Souza, o comandante das Armas, Santiago, o comandante da Fragata Defensora, Inglis, e vários oficiais de patente, além de muitas outras pessoas que não poderão fugir. O povo e a tropa aclamaram Presidente ao bem conhecido Felix Antônio Clemente Malcher, e requererão que se desse conta á Regência, pedindo-lhes que não nomeasse mais Presidentes para aquela província até que S. M. o Imperador chegasse á idade marcada pela Constituição, para dirigir as rédeas do Império. (...) Nós lamentamos a triste sorte daquela malfadada província, e pedimos a todos os Fluminenses, amigos da felicidade de sua Pátria, que meditem sobre os factos ali acontecidos, e busquem fugir das artimanhas dos perversos 81 consistoriais, que desejam ver esta bela província envolta em tais desgraças para satisfação de suas rancorosas vinganças (O Sete d’ Abril, nº 232, 28/03/1835, p. 4).

Dentre as duas últimas notícias trazidas dos periódicos de O Sete d’Abril e do Correio Official, as duas tem em comum o tom no tratamento dos revoltosos cabanos: “facciosos” e “perversos”. Além disso, suas ações também são sempre retratadas enquanto “desgraças” e “males”, além de outros termos pejorativos. Em relação a estes termos, todos os jornais que repercutiram o levante têm em comum a difamação do mesmo através da alusão à “barbárie”, termo oposto ao ideal de civilização que edificava o início do processo de construção de uma nação brasileira. Nesse sentido, poderíamos dizer que os dois jornais citados acima tem grandes contribuições nessa pesquisa, por exaustivamente relatarem muitos dos episódios de acordo com as cartas provenientes da província do Pará que aportavam aos cais do Rio de Janeiro, mesmo que com certa demora. A atividade jornalística é analisada na presente pesquisa principalmente por sua veiculação substancialmente realizada pelos jornais do estado do Rio de Janeiro pois no Belém, capital da província do Grão-Pará, enquanto “durou a luta armada, na sucessão de choques de extrema violência, a atividade da imprensa quase desapareceu” (SODRÉ, 1999, p. 132) em detrimento do controle, por parte dos cabanos, do aparato político administrativo. Por este motivo, sua repercussão deve ser avaliada fora do alcance específico e regional da revolta. Ainda, é importante ressaltar que a Cabanagem “foi apenas um dos vários movimentos que convulsionaram o Oitocentos brasileiro” (DANTAS, 2011, p. 516) e por ser substancialmente veiculada fora da província do Pará, era retratada tal qual eram retratadas outras revoltas de mesmo cunho que também eclodiam no Império. Por isso, o tom através do qual a Imprensa se utilizava ao falar da eclosão e do desenrolar da

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Cabanagem era igualmente utilizado para tratar de outros levantes sociais e políticos que ocorriam também na década de 30. O período regencial a partir da década de 30 foi palco de outras insatisfações populares duramente reprimidas por parte da elite, como também é o caso da Sabinada, na Bahia. Os termos usados pela imprensa para se referir aos grupos que instauraram o levante social contra o recrutamento forçado na Sabinada também fazem alusão a uma “degeneração” social por parte dos sabinos. Ao tratar do contexto baiano no ano de 1838 e falar da incompatibilidade da Providência com a Liberdade, o jornal O Sete d’Abril comenta: “Sim, ella é incompatível, mas é com a liberdade do roubo, com a liberdade do assassinio, com a liberdade da calumnia, com a liberdade da blasfêmia, com a liberdade, enfim, das paixões anti- sociaes! liberdade funesta, que, longe de acelerar os processos da civilisação, só pode fazer-nos retrogradar a uma barbaridade mais temivel que a dos selvagens, porque é mais reflectida e calculada e mais feroz que a dos Vandalos e dos Hunos, porque estes, ao menos, não incendiavão nem devastavão o seu próprio Paiz natal!” (O Sete d’Abril, nº 555, 07/05/1838).

Embora, segundo Lúcia Santaella, os jornais tenham tentado se inserir socialmente dentro de uma perspectiva de “objetividade [...] e imparcialidade que o mosaico jornalístico parecia realizar” (1996, p. 53) é possível perceber que a imprensa não era um meio imparcial de divulgar as revoltas, ela tinha lado e posição político-sociais. Além disso, ao fazer uso do passado medieval citando Hunos e Vândalos, esse tipo de discurso busca legitimar o presente através do uso - ou abuso - do passado, utilizando a história como objeto de produção de sentido ao presente, sem a preocupação compromissada com os vieses de historicidade. Ainda, com o agravamento da revolta preocupando as autoridades Imperiais, o medo e os sentimentos de instabilidade também se agravaram na imprensa, sendo possível sintetizar bem os termos que esta utilizava para retratar os cabanos. A sensação de medo e inconstância crescia e fazia com que a elite imperial se preocupasse com a possibilidade de o movimento se alastrar cada vez mais, mesmo com a ação em massa das tropas anticabanas: O lugar onde existia a Cidade de Belém é hoje o reparo de algumas centenas de facinorosos que se estrangulam mutuamente, e o assento das aves carnívoras que aí acham pasto diário em que se cevem abundantemente! Perto de 3.000 homens, índios ferozes e gente de cor do centro da província, assaltaram a Cidade indefesa, e levarão tudo a ferro e fogo, depois de oito dias de aturado combate. Nada escapou á barbaridade das feras: - mais de 200 pessoas de ambos os sexos e até inocentes de peito

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foram sacrificados à fúria indômita dos monstros [...] vândalos da cidade. (O Sete d’ abril, nº 290, 31/10/1835. p. 4, grifos nossos). Assim, o medo se caracteriza também enquanto elemento importante na construção do discurso da imprensa, pois o êxito na transmissão do medo ao leitor também é um aspecto fundamental na consolidação de uma opinião pública contrária às reivindicações da revolta, opinião essa que é construída sem refletir efetivamente acerca das causalidades históricas que culminaram na eclosão dos embates entre os grupos sociais e políticos envolvidos. Para disseminar na opinião pública determinados valores sociais e para legitimar as regras de poder comuns à elite brasileira, a produção do discurso da imprensa pode ser analisada dentro de uma perspectiva controlada e intencionada. Ainda, a produção do discurso se dá enquanto ferramenta estratégica na estruturação de um imaginário social sobre o levante através da opinião pública, sem compromisso absoluto com a transmissão da complexidade dos fatos. Além de ser controlada e intencional, o discurso da imprensa se caracteriza dentro daquilo que Foucault entende enquanto produção “selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 2012, p. 8-9). A “verdade dos fatos” oferecida pelo discurso da imprensa não fere o interesse do status quo social, ao passo que a proposta de reestruturação social por parte dos Cabanos propõe mudanças estruturais nas condições de vida dos grupos marginalizados e consequentemente, mudanças nos projetos políticos até então vigentes.

A CONSOLIDAÇÃO DE UMA MEMÓRIA HISTÓRICA COLETIVA SOBRE A CABANAGEM AO FIM DO SÉCULO XIX Apesar de se ter analisado aqui a repercussão do início da Cabanagem, ela foi retratada até o final, quando já se encontravam inseridos nas matas interioranas da província os grupos cabanos, enquanto um movimento que é fruto da “ignorância do povo” (Correio Official, nº 106, 04/11/1835, p. 3) pobre e mestiço, fruto da “perversidade de arteiros ambiciosos” (Id. Ibid.). A imprensa, por sua vez, não poderia coagir com tais atitudes, pois tais “cenas de ferocidade” (Id. Ibid.) só poderiam ser defendidas “por discursos incendiários de interesseiros facciosos” (Id. Ibid.). A grande repercussão de tais atos é ainda justificada, no Correio Official, enquanto necessária: “Insistiremos sempre

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35 sobre esta matéria, e desculpem os nossos leitores, porque estamos bem persuadidos que as principais raízes da anarquia são o desprezo da Lei” (Id. Ibid.) Portanto, tudo que fosse contra lei, encontrava lugar numa suposta anarquia, na qual os grupos cabanos eram enquadrados. Esta “anarquia devora costumes, prosperidades, vidas e liberdades” (Id. Ibid.) para a imprensa, por isso era imprescindível estar estampada nas folhas dos jornais que apoiavam a construção de uma nação civilizada. Assim, podemos nos perguntar que tipo de projeto político estava sendo construído por parte da imprensa, uma vez que esta representava determinados grupos sociais. Os jornais do período certamente almejavam disputar uma opinião pública para a construção de um projeto político futuro. Nos termos de Reinhart Koselleck, o “horizonte de expectativa” destes grupos materializava-se nas intenções políticas intrínsecas na descrição das revoltas veiculadas.6 Esse projeto político não envolvia a fragmentação da nação, mas sim, a centralização política pautada na civilização dos grupos considerados ignorantes. Se a intenção era moldar uma opinião pública homogênea através da desqualificação dos grupos que compunham a cabanagem, a intenção de ir moldando e também construindo desde cedo, uma “memória coletiva” sobre estes grupos, também não deve estar dissociada desta análise. Segundo Jörn Rüsen, a memória histórica pode ser classificada de diferentes maneiras e dentre elas, enquanto o “modo pelo qual o passado é representado” (RÜSEN, 2009, p. 167). Rüsen ao discutir as formas da memória a partir de uma perspectiva tipológica, salienta que “No modo construtivo, o passado rememorado é matéria para discursos, narrativas e uma comunicação contínua.” (Id. Ibid.) Discursos e narrativas tem o propósito de atingir grupos sociais, não somente um indivíduo, o que faz com que haja efetiva preocupação até mesmo na construção linguística e narrativa das informações que os discursos contêm, de modo que possa atingir com êxito a massa orgânica de indivíduos que espera atingir. Na análise anterior sobre a repercussão midiática inicial da Cabanagem, foi possível identificar que as faces desse passado não foram dadas através de fatos, mas sim igualmente construídas no presente do acontecimento sob a forma de discursos que serviam a determinados propósitos. Portanto, de um modo construtivo, a memória se

6 Sobre as categorias universais de análise metodológica do autor, cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

36 edifica e se sustenta substancialmente através dos pilares da legitimidade coletiva, isto é, da validação da opinião pública que a imprensa pretende conquistar, atingir. No caso da Cabanagem e para a presente análise, o esforço midiático em consolidar um senso comum sobre a revolta modula e constrói uma “memória coletiva” específica, que condenou politicamente e moralmente a Cabanagem em seu período inicial e continuará condenando ao fim do século XIX, como veremos adiante. Numa espécie de “comunicação contínua” com o passado enquanto formulador de sentido do presente, no “nível de uma atividade claramente intencional pode-se, e.g., recorrer-se a “métodos” políticos para moldar a memória coletiva de modo a servir de legitimação de um sistema político” (RÜSEN, 2009, p. 187). É nesse sentido, portanto, que a imprensa age ao transmitir os seus juízos específicos de valor à revolta e ainda, para assegurar que eles sejam legitimados socialmente. A “memória coletiva”, para o autor, é entendida enquanto “um importante elemento de estabilidade para uma ampla variedade de unidades sociais, tais como partidos, movimentos sociais, escolas de pensamento no campo acadêmico, interesses de grupo, etc.” (Id. Ibid., grifos nossos). Assim, o “modo construtivo” de Rüsen é utilizado na presente análise na medida em que serve de aporte para entender como se constrói uma memória coletiva sobre determinado acontecimento também através de práticas discursivas. Ainda para o autor, a memória coletiva se solidifica quando “mostra os primeiros sinais de permanência institucional ou organizacional” (Id. Ibid.), fazendo com que determinados grupos sociais com ela se identifiquem no que diz respeito aos aspectos que fazem parte de seu passado histórico, um passado que deve ser substancialmente coletivo, ou seja, comum. Para que um passado seja coletivo ou comum, deve ser validado por uma gama de indivíduos que o aceita enquanto herança de seu presente. Essa memória institucionalmente consolidada, caso se considere a imprensa enquanto instituição se mostra já nos acontecimentos contemporâneos do fim da revolta, com a criação do Jornal Treze de Maio, se perpetuando ainda na veiculação de movimentos sociais posteriores – os da década de 1850 como a conhecida Guerra dos Marimbondos. Ainda, essa memória se manifesta posteriormente a partir das notícias veiculadas pelo jornal Diário de Belém e pelo jornal O Liberal, entre 1868 e 1892. Em 1840 quando a cabanagem já se encontrava praticamente dizimada com o triunfo das tropas anticabanas e poucos cabanos ainda dispersos pelo interior, foi criado

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37 o jornal O Treze de Maio como veículo de informação da província do Pará.7 O nome do jornal já faz alusão ao próprio dia 13 de Maio de 1836, quando ocorreu a ocupação de Belém pelas “forças legais” do general Soares de Andréa reestabelecendo o controle político por parte da elite anticabana na capital da província, forçando os cabanos a continuarem com a luta no interior da província: “Nem um título nos pareceu mais adequado de que o de = Treze de Maio = d’esse dia memoravel nos faustos da historia Paráense, - dia de doces recordações, em que a Legalidade conseguio triumphar dos desastrozos feitos e negros planos da rebeldia – apoderando-se da Capital da Provincia.” (O Treze de Maio, nº 1, 13/05/1840, p. 1). Nesse sentido, é perceptível que apesar do movimento ter sido vencido e chegado ao fim, ainda era um elemento vivo nas páginas da imprensa. Tornava-se necessário manter na memória pública tais acontecimentos tão “repugnantes” e simbolizantes de “atraso” para que o projeto político de construção da civilização tivesse respaldo. Mas não parou por aí. A Cabanagem além de estar viva na memória da imprensa, se tornou adjetivo pejorativo para descrever atos “desordeiros” nas páginas dos jornais Diario de Belem e O Liberal, jornais que se mantiveram ativos entre 1869 a 1892. Ao tratar da disputa partidária entre liberais e conservadores numa eleição em Salvaterra, o Diario de Belem, quase 50 anos após a eclosão da Cabanagem, retratou o descontentamento do major liberal Francisco Bezerra com os resultados da eleição, explicitando seus atos violentos na tentativa de convencer os mesários a alterarem as atas da eleição e extraírem novas cópias, utiliza-se do termo “cabanagem” para caracterizar Francisco Bezerra enquanto desordeiro e criminoso: “Aquelle individuo, porém, que só procurava um pretexto para inutilisar a eleição, que dava ao partido conservador cinco votos de maioria; aquelle individuo, que de Saure fôra a Salvador com o fim deliberado de fazer cabanagem, pois levou consigo todos os seus vaqueiros, famulos e capangas, eleitores e não eleitores [...] insolente e acoroçoado pela impunidade de seus crimes [...]” (Diario de Belem, nº 286, 14/12/1884, grifos nossos).

Aí, portanto, a presença da cabanagem na memória associada aos crimes do indivíduo. Dez anos antes, em 1874, numa coluna do jornal O Liberal, a cabanagem é usada como metáfora para desconfiar das atitudes de todos, inclusive dos religiosos: “Cuidado!...

7 Em 1839 o Discurso recitado pelo Exmo. Snr. Doutor Bernardo de Souza Franco, Presidente da Província do Pará – Assembleia Legislativa Provincial no dia 15 de Agosto de 1839 demonstra a dispersão das tropas cabanas e o controle da situação por parte do governo provincial, cf. http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/498/000003.html, p. 01-03. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

38 cuidado, compadre: não te fies muito na carolice da cabanagem, há homens que usam do rosário assim como o bandido do punhal – para agredir e defender-se.” (O Liberal, nº 190, 23/08/1874, p. 3). Podemos tratar ainda da publicação em 1876 do mesmo jornal, referindo-se a “cabanagem da assembleia” (O Liberal, nº 47, 27/02/1876, p. 1), num acontecimento “desordeiro” onde praças da polícia tiveram que conter os ânimos nas galerias da Assembleia Provincial. Essa memória da cabanagem também é constante na imprensa por conta do medo entre as disputas políticas. A província do Grão-Pará continuou sendo palco de disputas entre conservadores e liberais, e constantemente o termo “cabanagem” empregava num jornal, as ações de partidários contrários aos interesses dos grupos que controlavam tal veículo de informação. Ainda em O Liberal, em 1886, os redatores acusam Demetrio Bezerra, um conservador, de um “plano de cabanagem” (O Liberal, nº 260, 17/11/1886, p. 2), através da “imoralidade das leis” (Ibidem, p. 2) Esse plano nada tem a ver com a possibilidade de uma próxima Cabanagem, na interpretação literal da palavra, mas sim, com os planos políticos conservadores que os liberais não concordavam e consideravam “desordeiros” através do “desassossego de espírito” (Ibidem, p. 2) que era capaz de “provocar as iras da população” (Ibidem, p. 2). Segundo ainda o jornal alguns anos antes, o “órgão do partido conservador, [...] apegado a velha [...] política reacionária dos ódios, da vingança, animosidades e violências, não afasta-se dos torpes princípios que eram moda nos tempos passados da cabanagem” (O Liberal, nº 48, 01/03/1882, p. 2). Portanto, o termo continuou na memória da imprensa, sendo utilizado tanto por conservadores do Diario do Belem, quanto por liberais de O Liberal para a representação negativa das mais variadas atitudes políticas que estes discordavam. A condição de vida da população mais pobre e historicamente marginalizada continuou, entretanto, tendo pouco lugar nas páginas dos jornais, onde aparentemente, a disputa política sempre importou mais do que a segregação social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS É importante questionar, portanto, no que essas atribuições acarretaram nas próprias memórias destes grupos para consigo mesmos e no entendimento da história dos movimentos sociais do Brasil, que compõem, fundamentalmente, um dos pontos principais da nossa história. É fato que a Cabanagem persistiu na memória da imprensa, mas é necessário avaliar a construção desta “memória coletiva” num todo através de

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39 discursos substancialmente intencionados. Avaliar a narrativa da história pela imprensa significa observar a narração da história pelos vencedores, e nas suas entrelinhas, identificar a “narrativa histórica dos derrotados” (KOSELLECK, 2006, p. 63), porque a “história – de curto prazo – pode ser escrita pelos vencedores, mas as aquisições de conhecimento histórico provêm – em longo prazo – dos derrotados” (Ibidem, p. 64) e emergem do seu silêncio. São nos fragmentos da história, nas particularidades e nas heterogeneidades do todo que se reconstroem as versões da história que se tentaram apagar e silenciar. Com isso, se sugere que a História da Cabanagem não deva ser estudada somente pelo viés midiático, mas que, a partir dele da análise de seu discurso, possa haver o interesse do estudo mais profundo sobre o movimento. É nas entrelinhas da história contada pela imprensa que se faz presente a necessidade de se ouvir também o lado cabano. A atitude da imprensa no oitocentos ao desqualificar os grupos cabanos e reservar a eles um local obscuro na memória coletiva significa, para o presente trabalho, uma tentativa retirá-los da condição de agentes da sua própria história. Deixando-os a margem de um ideal civilizatório e reservando a eles o lugar da degeneração, o extermínio da sua versão da história se apresenta através do descrédito moral que estes grupos terão perante a sociedade após a difusão de um discurso parcial e intencionado. Eis, portanto, o projeto de construção de uma memória histórica por parte de uma elite no Oitocentos brasileiro. Por fim, propomos aqui um salto anacrônico, mas conveniente: Não seria a imprensa nos dias de hoje, ainda um instrumento de controle por parte de determinados grupos sociais que disputam a opinião pública transformando-a em mercadoria a partir de interesses particulares? Como a luta pelos direitos de existência são retratados? Seria possível observar ainda hoje a formulação de um discurso que visa (re)produzir uma memória seletiva? Talvez, um Oitocentos que pareça tão distante, mostre suas marcas até os dias atuais.

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KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo: Estudos sobre História. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. LIMA, Luciano Demetrius Barbosa. ENTRE BATALHAS E PAPÉIS: A cabanagem e a imprensa brasileira na Menoridade (1835 – 1840). Belém: Universidade Federal do Pará, 2016. MOLINA, Matias M. História dos jornais no Brasil: Da era colonial à Regência (1500- 1840). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. MOTTA, Márcia M. e Zarth, Paulo (orgs.). Formas de Resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história. Vol. 1. São Paulo/Brasília: UNESP/Min. Desenvolvimento Agrário, 2008. PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. Visões da Cabanagem: uma revolta popular e suas representações na historiografia. Manaus, Valer, 2001. RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. História da Historiografica, n. 2, pp. 163-209, 2009. SANTAELLA, Lúcia. Cultura das mídias. 2 ed. São Paulo: Experimento, 1996. SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.

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- Relatórios dos Presidentes da Província do Pará Discurso do Presidente Soares D’Andrea da Província do Pará – Assembleia Provincial, 2 de Março 1838. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u987/000003.html Acesso em: 18/05/2017. Discurso recitado pelo Exmo. Snr. Doutor Bernardo de Souza Franco, Presidente da Província do Pará – Assembleia Legislativa Provincial, 15 de Agosto de 1839. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/498/000003.html Acesso em 18/05/2017.

RECEBIDO EM: 19/10/2017 | APROVADO EM: 19/11/2017

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WILLIAM BLAKE: UM ENSAIO BIOGRÁFICO

Thais de Sousa Corsino Universidade Federal de Uberlândia – UFU

RESUMO: O presente artigo busca compreender como William Blake, poeta que se inscreve no movimento romântico na Inglaterra oitocentista, insere-se na vida social e intelectual de Londres. Para tanto, realizamos extensa pesquisa bibliográfica e traçamos um panorama com as principais interpretações correntes acerca desse homem. Após o estudo biográfico, discutimos mais profundamente a influência de grupos radicais no pensamento de Blake, sobretudo o antinomismo, que acreditava que a obediência às leis da igreja corrompia e destruía a verdadeira fé. Analisamos como essas discussões religiosas aparecem em seus poemas mais representativos. Para completar a análise acerca da produção de Blake, realizamos uma breve apresentação sobre as gravuras produzidas por ele, na intenção de ilustrar a conexão entre todas as faces de sua produção artística e dimensionar a representação espiritual presente em sua obra. Tentamos ainda, durante nossa revisão bibliográfica, entender qual papel Blake teve na vida intelectual londrina no fim do século XVIII e início do XIX. PALAVRAS-CHAVE: Romantismo. William Blake. Antinomismo.

William Blake: un ensayo biográfico

RESUMEN: El presente artículo busca comprender cómo William Blake, poeta que se inscribe en el movimiento romántico en la Inglaterra del siglo dieciocho, se inserta en la vida social e intelectual de Londres. Para ello, realizamos una extensa investigación bibliográfica y trazamos un panorama con las principales interpretaciones corrientes acerca de este hombre. Después del estudio biográfico, discutimos más profundamente la influencia de grupos radicales en el pensamiento de Blake, sobre todo el antinomismo, que creía que la obediencia a las leyes de la iglesia corrompía y destruía la verdadera fe. Analizamos cómo estas discusiones religiosas aparecen en sus poemas más representativos. Para completar el análisis sobre la producción de Blake, realizamos una breve presentación sobre los grabados producidos por él, con la intención de ilustrar la conexión entre todas las caras de su producción artística y dimensionar la representación espiritual presentes en su obra. En nuestra revisión bibliográfica, intentamos entender el papel que Blake tuvo en la vida intelectual a finales del siglo XVIII y principios del XIX. PALABRAS CLAVES: Romanticismo. William Blake. Antinomismo.

POETA, DESENHISTA, GRAVURISTA; são várias as facetas de William Blake. Considerado, cronologicamente, como um pré-romântico, num período em que predominava as tendências clássicas, movimento cultural que ficou conhecido como Neoclassicismo, Blake sempre teve um posicionamento crítico frente à razão e à religião. Nasceu em 1757, no dia 28 de novembro, na região Soho da cidade de Londres, capital da Inglaterra. Desde criança foi um ávido leitor e mostrou talento para as artes,

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42 sobretudo por meio de desenhos, o que fez com que recebesse grande incentivo do pai, um rico comerciante. Ainda muito jovem, aos quatro anos de idade, já relatava ter visões. Tais experiências paranormais/espirituais foram frequentes durante toda sua vida e, como veremos, tiveram grande influência em sua obra como poeta e gravurista. Aos nove anos, relatou ter se encontrado com o profeta Ezequiel debaixo de uma das árvores do jardim familiar e, aos dez afirmou ter visto com seus próprios olhos a alma de seu irmão sair do corpo e subir ao céu, exultante de alegria.8 Para compreender Blake, homem – escreve Eliot – temos que nos perguntar sobre as circunstâncias que permitiram a peculiar honestidade de sua obra, e as circunstancias que condicionaram suas limitações. Entre as condições favoráveis devemos contar provavelmente com as duas seguintes: que ao se dedicar desde muito jovem a aprender um ofício manual, não se viu obrigado a adquirir mais instrução literária que a que ele pessoalmente requereu, nem adquirir por mais razão que o mero desejo pessoal; e que como humilde gravador, não foram fornecidas nenhuma classe de oportunidades para uma carreira jornalística e social.9

Na infância foi educado em casa pela mãe, Catherine, por isso pode ser considerado quase um autodidata. Talvez isso justifique os inúmeros erros de ortografia e gramática encontrados em seus primeiros manuscritos, os poemas que escrevia desde os onze anos de idade. Com essa idade, devido ao empenho do pai em fazer com que o filho seguisse o caminho de artista, Blake começou a frequentar aulas de desenho na escola de artes de Henry Pars. Ainda nessa época, teve seus primeiros poemas impressos sob título de “Poetical Sketches”. A métrica empregada por ele recorre em grande parte ao verso em branco, característica da era Elizabetana. Sobre sua forma de fazer poesia, T.S. Eliot comenta: A poesia de Blake tem a antipatia da alta poesia, daquela que, por um extraordinário trabalho de simplificação, exibe a enfermidade essencial ou a intensidade da alma humana, e cuja honestidade nunca existe sem uma grande realização técnica, descobridora de novas formas

8 Cf. ANGRILL, A. William Blake: Grandes Maestros de la Pintura. Barcelona: Altaya, 2002. 9 BLAKE, William. Erasmo textos bilingües: Cantos de inocencia y Cantos de experiencia. Barcelona: Bosch / Casa Editorial, 1977, p. 21. Tradução minha para: “Para comprender a Blake, hombre – escribe Eliot – nos tenemos que preguntar sobre las circunstancias que permitieron la peculiar honestidad de su obra, y las circunstancias que condicionaron sus limitaciones. Entre las condiciones favorables hay que contar probablemente con las dos siguientes: que al dedicarse desde muy joven a aprender un oficio manual, no se vio obligado a adquirir más instrucción literaria que la que él personalmente requirió, ni adquirirla por más razón que el mero deseo personal; y que como humilde grabador, no se le brindó ninguna clase de oportunidades para una carrera periodística y social”. (Paulo Vizioli)

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expressivas para o aglomerado de ideias novas através das quais o poeta propõe uma releitura do universo e da própria poesia”.10

Alguns anos mais tarde, finalizado os estudos de desenho, William começou suas primeiras experiências como aprendiz de gravurista no ateliê de William Ryland e, posteriormente, no estúdio de James Basire, um famoso gravurista. Entretanto, devido a problemas de relacionamento, e isso marcou toda a trajetória de Blake, que ficou conhecido como uma pessoa de gênio difícil e de poucos amigos e companheiros de trabalho, este resolveu seguir seu caminho sozinho. Apelidado como “Bad Blake”, o Louco Blake, foi considerado, pela maioria de seus contemporâneos, um esquizofrênico. Não só devido às suas visões, que para ele eram totalmente naturais, mas também devido ao caráter místico de sua obra. Há relatos de que Blake passou alguns meses frequentando diariamente a Abadia de Westminster, a fim de copiar e desenhar formas góticas da arquitetura local. Também nesse período de reclusão, relatou ter tido inúmeros visões em que apareceram Cristo e seus discípulos, alertando-o em relação ao trabalho que deveria realizar, ou seja, sua missão espiritual. Acerca dessa missão, Pablo Garzón afirmou que Blake Acreditou sempre (era homem pertinaz) que seu dever consistia em corrigir erros, assim tivesse que discrepar com quem oficialmente os administravam e restaurar a concepção, que ele acreditava autêntica de princípios julgava adulterados por obra de práticas religiosas e políticas viciadas pelo dilatado abuso de insensíveis burocracias.11

Tais fenômenos sobrenaturais eram ignorados por sua família12, mas Blake quis compreender mais a fundo o que se passava com ele e, por isso, buscou trabalhos sobre clarividência e hermetismo, temas que sempre foram recorrentes em suas leituras e que de alguma forma influenciaram sua forma de ver o mundo e sua produção como artista e

10 CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha – Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em: . Acesso em: 21 Ago. 2014. Tradução minha para: La poesía de Blake tiene la antipatía de la alta poesía, de aquella que, por una extraordinaria labor de simplificación, exhibe la enfermedad esencial o la intensidad del alma humana, y cuya honestidad nunca existe sin una gran realización técnica, descubridora de nuevas formas expresivas para el cúmulo de ideas nuevas a través de las cuales el poeta propone una relectura del universo y de la propia poesía. 11 BLAKE, William. Obra Completa en Poesía. Barcelona: Libros Río Nuevo, 1980, p. 9. Tradução minha para: Creyó siempre (era hombre pertinaz) que su deber consistía en corregir errores, así tuviese que discrepar con quienes oficialmente los administraban y restaurar la concepción, que él creía auténtica de principios que juzgaba adulterados por obra de prácticas religiosas y políticas viciadas por el dilatado abuso de insensibles burocracias. 12 SARRIUGARTE, Iñigo. Las alucinaciones mentales de William Blake como Base de su Obra Literaria y Artística: ¿Genialidad o Locura? Razon y Plabra, n. 40, Agosto/Septiembre 2004. Disponível em: . Acesso em: 21 Ago. 2014. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

44 escritor. Definitivamente, os momentos mais produtivos, em relação às suas experiências sobrenaturais, foram os que se encontrava em contato com a natureza, seja em suas caminhadas pelo campo ou no período em que viveu em uma estância de Felphan, Sussex (1800-1803), em recolhimento interior, enquanto era subvencionado por vários mecenas. Simplesmente teve numerosas visões: aos quatro anos Deus Pai aproximou a cabeça pela janela de seu quarto e pouco mais tarde foi testemunha do funeral de uma fada, cujo corpo jazia sobre uma pétala de rosa. Costumava conversar livremente com os espíritos (em especial os de Voltaire e Milton) e não resultava raro que perdesse contato com as coisas terrenas. , dizia sua mulher.13

Mais tarde, decidido sobre o caminho que queria tomar, matriculou-se na “Royal Academy of Arts” onde foi considerado pelo diretor, Sir Joshua Reynolds, como uma aberração. Foi nesta época que Blake começaria duas amizades que perdurariam, o escultor e ilustrador John Flaxman e Henry Fuseli. Os três artistas e amigos tinham uma característica comum, a predileção pelos temas da imaginação, o que contrariava a arte inglesa dominante, ou seja, o retrato e a paisagem. Assim como Blake, Fuseli também se sentia inspirado pelo poeta inglês John Milton e realizou obras pictóricas, marcadas por uma visão fantástica. Sobre a imaginação e seu poder libertador, Blake escreve: Se o espectador pudesse entrar no interior de uma dessas imagens de sua imaginação, se aproximando a elas no carro de fogo de seu pensamento contemplativo… poderia converter em amiga e companheira sua a uma daquelas imagens maravilhosas, que não cessam de lhe suplicar que abandone as coisas mortais (como deve fazer); então seria capaz de ir ao encontro do Senhor dos ares, e então se sentiria desfrutando da felicidade. [...] O mundo da imaginação é o mundo da eternidade. É o seio divino ao qual todos nós iremos depois da morte deste corpo vegetativo. O mundo da imaginação é infinito e eterno, enquanto que o mundo da geração e da vegetação é finito e temporal. Naquele mundo eterno existem as realidades eternas de tudo, que nós vemos refletidas no espelho vegetal da natureza. Todas as coisas, em suas formas eternas, estão compreendidas no corpo divino do Salvador, o verdadeiro veio da eternidade, a imaginação humana.14

13 BLAKE, 1980, op. cit., p. 8. Tradução minha para: Simplemente tuvo numerosas visiones: a los cuatro años Dios Padre asomó la cabeza por la ventana de su dormitorio y algo más tarde fue testigo del funeral de un hada, cuyo cuerpo yacía sobre un pétalo de rosa. Solía conversar libremente con los espíritus (en especial con los de Voltaire y Milton) y no resultaba raro que perdiera contacto con las cosas terrenales. , decía su mujer. 14 CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha – Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em: . Acesso em: 21 Ago. 2014. Tradução minha para: Si el espectador pudiera entrar en el interior de una de esas imágenes de su imaginación, acercándose a en el carro de fuego de su pensamiento contemplativo… podría convertir en amiga y compañera suya a una de aquellas imágenes maravillosas, que no cesan de suplicarle que abandone las cosas ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Aos 25 anos, por meio do trabalho como gravador, Blake começou a ter uma fonte de renda própria, o que permitiu com que se casasse com Catherine Boucher, filha de um florista ambulante, em 1782. Catherine era analfabeta, mas Blake se dedicou a ensiná-la. Além de instruí-la na leitura e escrita, ensinou-lhe a arte da gravura e o domínio de cor e, assim, aos poucos a transformou em sua colaboradora profissional. Apesar da diferença intelectual existente entre os dois, a união duraria até sua morte. Blake era partidário da poligamia, assim como Milton, mas em respeito à sua esposa, não a praticou. Para Blake, as distintas revoluções que se produziram em sua época, a Revolução Americana (1775) e a Revolução Francesa (1789) foram geradas por força de inspiração, sendo reflexo de um dos desejos intensos do gênero humano: a liberdade e a liberação do coração, com a chegada de uma nova ordem baseada na virtude e na paz. Essa liberdade estaria marcada pelo individualismo absoluto e pela anarquia moral. Em 1818, conheceu o mecenas e retratista John Linnel, que o apresentou a um círculo de jovens pintores idealistas que o consideravam o único praticante de uma arte espiritual. Segundo os diversos biógrafos de Blake, este tinha contato com anjos, arcanjos e personagens históricos, especialmente Voltaire e Milton, que apareciam para ele durante suas experiências paranormais e, assim, no papel de um intermediário entre o mundo dos homens e o mundo dos espíritos, Blake transmitia seus pensamentos (dos espíritos) por meio de suas poesias e obras artísticas. A capacidade visionária de Blake pertence seguramente ao mesmo tipo de estado espiritual que o da experiência mística que toma contato com a Unidade que existe sob a aparente diversidade de todas as coisas. A tradicional via mística se converte, no caso de Blake, em atividade criadora, resultando tão sagrada e inevitável como resultou aquela para os místicos religiosos. Energia, Imaginação e Natureza constituem com uma trindade na que cada um dos três elementos são manifestação dos outros, enquanto a Razão ofusca a faculdade visionária dos homens que em seu racionalismo não alcançam ver além do mundo das aparências. [...] A árvore que faz saltar lágrimas de felicidade dos olhos de alguns, não é para outros mais que um objeto verde no meio do caminho.15

mortales (como debe hacerlo); entonces sería capaz de ir al encuentro del Señor de los aires, y entonces se sentiría rebosar de felicidad. […] El mundo de la imaginación es el mundo de la eternidad. Es el seno divino al que todos iremos después de la muerte de este cuerpo vegetativo. El mundo de la imaginación es infinito y eterno, en tanto que el mundo de la generación y de la vegetación es finito y temporal. En aquel mundo eterno existen las realidades eternas de todo, que nosotros vemos reflejadas en el espejo vegetal de la naturaleza. Todas las cosas, en sus formas eternas, están comprendidas en el cuerpo divino del Salvador, el verdadero vino de la eternidad, la imaginación humana. 15 BLAKE, William. Erasmo textos bilingües: Cantos de inocencia y Cantos de experiencia. Barcelona: Bosch / Casa Editorial, 1977, p. 23. Tradução minha para: La capacidad visionaria de Blake pertenece seguramente al mismo tipo de estado espiritual que el de la experiencia mística que toma contacto con la Unidad que existe tras la aparente diversidad de todas las cosas. La tradicional vía mística se ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Dentre sua obra literária podemos destacar seus livros mais proféticos: Urizen; O livro de Athania; O livro de Los; O canto de Los; Vala ou os quatro Zoas; e Milton. O penúltimo é, talvez, o que carrega um tom mais dramático, não chegou a ser gravado e seu manuscrito permaneceu perdido por longo tempo. O livro tem notável influência da filosofia oriental e trata do destino do homem. Acredita-se que o homem deve distanciar- se de sua angústia contínua que o faz encarnar em distintos estados até encontrar sua verdadeira unidade interior. Blake acreditava que levávamos o Universo em nós. Possuir a visão profética significa ver com o “Olho Imaginativo”, que, como o terceiro olho dos místicos, é capaz de perceber além das dimensões do conhecimento humano, o que, para Blake, implicava ver além das possibilidades expressivas de sua época e de formas de conhecimento e de produção e recepção de arte que tinham por base a separação entre pensamento lógico e poético, racionalidade e sentimento, razão e intuição, humanidade e divindade, existência material e eterna.16

Blake discordava do pintor Reynalds por este acreditar ser necessário aos pintores e desenhistas copiar modelos. Sendo assim, afirmou: Para Reynalds, o mundo é um deserto, um deserto que deve ser semeado pela observação. Mas para mim, não. Para mim, o Universo já está em minha mente, e o que vejo é muito pálido e muito pobre comparado com o mundo da minha imaginação.17

Apesar de toda sua extensa obra, Blake sempre se sentiu incomodado pela pobreza e pela falta de reconhecimento de seu trabalho. Seu pouco sucesso quando vivo está relacionado, segundo seus biógrafos, à sua personalidade e à forma como era visto: um lunático que conversava com árvores e que havia sido encontrado brincando de Adão e Eva com sua esposa, ambos nus correndo pelo jardim. Contudo, seu pequeno círculo de amizade o ajudava com as questões econômicas. Paulo Vizioli, ao comentar sobre os “livros proféticos” de Blake, destaca que sua obscuridade e seu estilo afastam o leitor comum, mas não tira seu mérito como escritor e

convierte, en el caso de Blake, en actividad creadora, resultándole tan sagrada e ineludible como lo resultó aquella para los místicos religiosos. Energía, Imaginación y Naturaleza constituyen como una trinidad en la que cada uno de los tres elementos son manifestación de los otros, mientras que la Razón empaña la facultad visionaria de los hombres que en su racionalismo no alcanzan a ver más allá del mundo de las apariencias. […] El árbol que hacer saltar lágrimas de júbilo de los ojos de unos, no es a los de otros más que un objeto Verde en medio del camino. 16 SANTOS, Alcides Cardoso dos. Visões de William Blake – Imagens e palavras em Jerusalém a Emanação do Gigante Albion. Campinas: Editora Unicamp, 2009, p. 153. 17 BORGES, Jorge Luis. Curso de literatura inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 224. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

47 artista, sobretudo pela influência que sua obra teve posteriormente entre reconhecidos autores, entre eles: Whitman, Ezra Pound, Yeats, T. S. Eliot, Lawrance e James Joyce. Whitman, por exemplo, se deixou empolgar pela romântica identificação do poeta com o profeta, e seus versos livres devem algo ao modelo de Blake; Ezra Pound, em seu anseio de objetividade, se inspirou parcialmente nos poemas líricos do primeiro período, para desenvolver a técnica das “máscaras poéticas” ou “personae”; Yeats o seguiu com as suas “visões”; T. S. Eliot extraiu dele alguns dos símbolos centrais de sua poesia; D. H. Lawrence recriou, com os seus conceitos de “consciência mental” e “consciência do sangue”, a oposição entre a Razão e a Energia; e James Joyce pode ter recebido das personagens metamórficas de Jerusalém a sugestão e o estímulo para o sonho fantástico de Finnegans Wake.18

Ao relacionar a obra de Blake com a de outros autores, é possível notar que ele compartilhou várias ideias de seus autores favoritos. Vale ressaltar que Blake mantinha uma grande biblioteca em sua casa e dedicava a maior parte de seu tempo à leitura. Entre suas fontes de inspiração estão Shakespeare, Dante, Milton (por mais que não compartilhasse de sua atitude puritana e moralista), Jacob Boehme, Paracelso e Emannuel Swedenborg. Este último, poeta e filósofo sueco, não atraiu a atenção de Blake somente por sua capacidade científica e filosófica, mas também por seu poder imaginativo e sua doutrina espiritual baseada na manifestação de Deus e em sua suposta capacidade de se comunicar com espíritos e anjos. Swedenborg foi responsável pela criação da “Nova Igreja de Jerusalém”. Essa ramificação cristã da Igreja Católica se inspira nas obras místicas de Swedenborg e tem como principal característica a afirmação da existência de um mundo espiritual que penetra na matéria. Ao introduzir a obra de William Blake aos seus alunos de Literatura Inglesa, Jorge Luis Borges afirma que este não pertence à corrente pseudoclássica e tão pouco ao movimento romântico, como considera grande parte dos estudiosos. Desse modo, Borges o interpreta da seguinte forma: É um poeta individual, e, se pudéssemos vinculá-lo a algo – já que, como disse Rubén Darío, não existe o Adão literário -, teríamos de vinculá-lo a tradições muito mais antigas, aos hereges cátaros do Sul da França, aos gnósticos da Ásia Menor e de Alexandria dos primeiros séculos da era cristã e, claro, ao pensador sueco, grande e visionário, Emmanuel Swedenborg.19

18 VIZIOLI, Paulo. (Org.). William Blake: Poesia e Prosa Selecionadas. São Paulo: J. C. Ismael, 1986, p. 10. 19 BORGES, Jorge Luis. Curso de literatura inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 214. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Dentre as ideias presentes na doutrina de Swedenborg que Blake compartilha em seus escritos está o conceito original de céu e de inferno, que foi bem elucidado por Borges: O céu e o inferno de sua doutrina não são lugares, ainda que as almas dos mortos que os habitam, e de alguma maneira os criam, os veem como situados no espaço. São condições das almas, determinadas por sua vida anterior. A ninguém está vedado o paraíso, a ninguém está imposto o inferno. As portas, para dizer assim, estão abertas. [...] O Inferno é a outra cara do Céu. Seu inverso preciso é necessário para o equilíbrio das duas esferas é requerido para o livre arbítrio, que sem trégua deve escolher entre o bem, que emana do céu, e o mal que emana do inferno. Cada dia, cada instante de cada dia, o homem trabalha sua perdição eterna ou sua salvação.20

Em relação aos escritos de Paracelso, astrólogo e alquimista alemão, foi daí que Blake extraiu a doutrina da existência de dois corpos em toda criação, o visível e o invisível. Tal conceito está presente na publicação “Matrimônio do Céu e do Inferno”, de 1793. Vizioli considera que talvez esse tenha sido um de seus trabalhos mais acessíveis entre seus “livros proféticos”, por expor com maior clareza os conceitos que desenvolve de forma poética nas Canções da Experiência. É ainda nessa obra que Blake se opõe de forma irônica a algumas ideias de Swedenborg e também ao cristianismo tradicional, que, segundo ele, seria uma falsificação dos princípios de Cristo. É esse cristianismo tradicional, que para ele não passa de uma maldosa falsificação dos princípios de Cristo. É esse cristianismo tradicional que ensina, - como lemos em “A Voz do Demônio”, - que o homem possui uma alma e um corpo completamente distintos e separados; e que a alma se relaciona com o Bem e o Céu, enquanto o corpo se associa ao Mal e ao Inferno. Blake agora vê essa separação como uma ruptura da integridade do homem, como a sua verdadeira “queda” do paraíso, posto que ele só pode ser feliz quando as duas partes são aceitas e agem simultaneamente.21

20 BORGES, Jorge Luis. Un ensayo por Borges acerca de Swedenborg. Wedenborg. Disponível em: . Acesso em: 21 Ago. 2014. Tradução minha para: El cielo y el infierno de su doctrina no son lugares, aunque las almas de los muertos que los habitan, y de alguna manera los crean, los ven como situados en el espacio. Son condiciones de las almas, determinadas por su vida anterior. A nadie le está vedado el paraíso, a nadie le está impuesto el Infierno. Las puertas, por decirlo así, están abiertas. […] El Infierno es la otra cara del Cielo. Su reverso preciso es necesario para el equilibrio de las dos esferas es requerido para el libre albedrío, que sin tregua debe elegir entre el bien, que mana del cielo, y el mal que mana del infierno. Cada día, cada instante de cada día, el hombre labra su perdición eterna o su salvación. 21 VIZIOLI, Paulo. (Org.). William Blake: Poesia e Prosa Selecionadas. São Paulo: J. C. Ismael, 1986, p. 6. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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O pensamento de Blake foi muito contestado e considerado peculiar, visto que ele pertenceu a uma sociedade marcada pelo puritanismo e pela repressão sexual. O poeta defendia o prazer do sexo, como podemos notar no verso de Provérbios do Inferno “A satisfação do desejo, engendra as frutas da vida e da beleza”, e sua visão religiosa era profundamente individual, tendo ele apresentado uma nova visão das figuras de Satanás e Jesus. Daí sua condenação de todas as religiões autoritárias. Entretanto, ao contrário do que se pode imaginar, Blake era um ávido leitor da Bíblia, mas, aliado às mensagens bíblicas, acreditava que a imaginação desempenhava papel indispensável à abertura da percepção espiritual. Sua concepção de imaginação, diferentemente da de Wordsworth e Coleridge, não implica o fluir espontâneo dos sentimentos ou a capacidade de tornar consciente o que transcende a compreensão, mas a capacidade de alargar a compreensão para além das divisões impostas às formas do saber (ciência, arte, religião).22

Dentre suas polêmicas afirmações estão as de que “a Bíblia tem uma interpretação diabólica que o mundo conhecerá se portar bem” e “a inspiração profética ou a imaginação arrancam a Humanidade da morte e da perdição”, ambas presentes na obra “O casamento do céu e do inferno”. Segundo o estudioso Iñigo Sarritugarte, para Blake: O objetivo de toda mudança política e religiosa consiste na busca de um novo mundo baseado da felicidade universal, cósmica e mística. De fato, participou em um círculo de políticos radicais entre os quais figuravam William Godwin, Tom Paine e a primeira escritora feminista Mary Wollstonecraft.23

Esse seu lado radical e revolucionário pode ser percebido em muitos de seus trabalhados, inspirados na Revolução Francesa. Blake usou sua arte para combater o Estado e a Igreja, que via como os símbolos da repressão e da corrupção. Os ideais de liberdade e igualdade o atraíram e ele interpretou a luta revolucionária como um dos

22 SANTOS, Alcides Cardoso dos. Visões de William Blake – Imagens e palavras em Jerusalém a Emanação do Gigante Albion. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, p. 153. 23 SARRIUGARTE, Iñigo. Las alucinaciones mentales de William Blake como Base de su Obra Literaria y Artística: ¿Genialidad o Locura? Razon y Plabra, n. 40, Agosto/Septiembre 2004. Disponível em: . Acesso em: 21 Ago. 2014. Tradução minha para: El objetivo de todo cambio político y religiosos consiste en la búsqueda de un nuevo mundo basado en la felicidad universal, cósmica y mística. De hecho, participó en un círculo de políticos radicales, entre los que figuraban William Godwin, Tom Paine y la primera escritora feminista Mary Wollstonecraft.

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50 meios de alcançar a libertação humana. Inclusive, no ano de 1780, enfrentou um julgamento por sedição, ao participar de um motim que resultou no incêndio da prisão de Newgate Gaol e na libertação de prisioneiros. Por outro lado, há de se considerar a dificuldade em encaixar o pensamento de Blake em alguma categoria ou escola, visto que escritores radicais como Thomas Paine e Mary Woolstonecraft partilhavam das ideias racionalistas que Blake fazia questão de combater em sua arte. Apesar disso, todos esses autores lutavam pela democracia e por direitos iguais entre os cidadãos. Por mais que tenha vivido na Idade da Razão, Blake contradiz o espírito de sua época ao buscar outros meios, que não a ciência e o racionalismo. Ao invés disso, opta por figuras bíblicas e deuses míticos. Blake se opunha às ideias racionalistas de sua época, para ele, os pensadores Locke, Newton e Bacon, assim como todo o racionalismo e empirismo, representavam os grandes inimigos da verdade mística, pois eram responsáveis pela limitação da percepção e da capacidade criativa. Daí sua defesa da imaginação e o distanciamento do modelo racional. Alcides Cardoso dos Santos, estudioso da obra de Blake no Brasil, afirma que A crítica de Blake ao princípio setecentista da “bela natureza” tem por fundamento sua crítica à separação entre o homem e sua percepção do mundo, divisão que gera a crença na natureza como realidade objetiva e independente de sua percepção pelo ser humano. [...] A cultura letrada é outro dos pilares do pensamento setecentista criticados por Blake, sobretudo na concepção um tanto aporética da superioridade do signo natural em relação ao signo verbal e a contrapartida da superioridade do produto da inteligência humana. [...] Além da ‘naturalidade’ da imagem e da artificialidade do signo verbal, Blake também é crítico em relação ao valor atribuído à cultura do livro pelos neoclássicos, considerando essa forma de materialização da expressão um símbolo da dominação dos sistemas totalizadores. Ao impor formas dominantes de pensamento, os livros, escritos, lidos, comentados e criticados pelas elites culturais, se distanciaram da sua função profética, segundo Blake, de abrir os mundos eternos e os olhos imortais do homem aos mundos do pensamento e da imaginação humanas.24

Ainda considerando o universo intelectual pelo qual Blake transitava por meio de suas leituras, e que E. P. Thompson (1993) julgou ser de grande relevância para o entendimento do poeta, vale ressaltar os movimentos como o agnosticismo, a alquimia, a

24 SANTOS, Alcides Cardoso dos. Visões de William Blake – Imagens e palavras em Jerusalém a Emanação do Gigante Albion. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, p. 145-146.

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51 cabala hebraica e a astrologia que perpassaram de maneira intensa o trabalho de Blake. Jesús Curbelo comenta a relação de Blake com a cabala: No caso da cabala, Blake parece ter herdado dela sua predileção pelas palavras-símbolos, dotadas de poder místico e representante de uma potência imaterial. Saurat argumenta que Blake devia conhecer a Cabala hebraica, muito difundida na Inglaterra através da publicação latina da Kabbala Denudata, entre 1677 e 1684, e acrescenta como o indício mais notável a inclusão da chamada “Aos judeus” entre os capítulos I e II de Jerusalém, onde há alusões evidentes a Adam Kadmon, o primeiro homem dos cabalistas. Blake e a cabala coincidem, em primeiro lugar, na unidade originária do Homem e o Universo, representada na Cabala por adam Kadmon e em Blake por Albión e por Jesus.25

Em relação aos clássicos, gregos e latinos, Blake manteve uma relação contraditória, em que ora se opunha e ora coincidia. Homero, Virgílio, Platão e Cícero são citados em sua obra com admiração e mais tarde, são associados com a imagem do Anticristo. Por outro lado, Blake faz um paralelismo entre Sócrates e Jesus: “Anito, Meleto y Licón creyeron o pensaron que Sócrates era un hombre muy pernicioso. Lo mismo pensó Caifás de Jesús.” Ao contrário de outros estudiosos, o historiador marxista Thompson, se dedicou a explorar como as tradições de pensamento radical influenciaram o poeta e como ele fez uso de imagens de devoção religiosa e as reinterpretou a fim de atacar a hipocrisia e a corrupção: Eu estou perseguindo um inquérito sobre a estrutura do pensamento de Blake e do caráter de sua sensibilidade. Meu objetivo é identificar, mais uma vez, a tradição de Blake, particularmente sua situação interior, e as evidências, motivos e pontos nodais de conflito, o que indica sua posição e a forma como o mundo se encontra em sua mente. Para tanto, isso envolve alguma recuperação histórica, e atenção às fontes externas de Blake - fontes que, muitas vezes, podem ter sido não conscientes para ele. Portanto, é necessário definir, em primeiro lugar, uma tradição antinomista obscura; e, em seguida, definir a incomum, e provavelmente única, a posição de Blake dentro dele.26

25 CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha – Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em: . Acesso em: 21 Ago. 2014. Tradução minha para: En el caso de la cábala, Blake parece haber heredado de ella su predilección por las palabras-símbolos, dotadas de poder místico y representantes de una potencia inmaterial. Saurat argumenta que Blake debió conocer la Cábala hebraica, muy difundida en Inglaterra a través de la publicación latina de la Kabbala Denudata, entre 1677 y 1684, y añade como el indicio más notable la inclusión de la llamada “A los judíos” entre los capítulos I y II de Jerusalem, donde hay alusiones evidentes a Adam Kadmon, el primer hombre de los cabalistas. Blake y la cábala coinciden, en primer término, en la unidad originaria del Hombre y el Universo, representada en la Cábala por Adam Kadmon y en Blake por Albión y por Jesús. 26 THOMPSON, E. P. Witness Against the Beast: Willian Blake and the moral Law. New York: The New Press, 1993, p. XIX. Tradução minha para: I am pursuing an enquiry into the structure of Blake’s ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Thompson relacionou a obra de Blake, suas ideias e linguagem, com grupos radicais que fizeram parte da Revolução Inglesa de meados do século XVII e que rejeitaram a igreja oficial, em favor da consciência individual, ou “luz interior”. Uma das características mais marcantes dessas seitas é a negação de qualquer figura de autoridade: para eles, o que comandava era a consciência de cada um. Dentre todas essas seitas, uma delas se destacou pelo radicalismo extremo: o antinomismo. Os antinomianos acreditavam que qualquer obediência às leis da igreja e do Estado iria corromper e destruir a verdadeira fé. Sendo assim, consideravam ser como dever rejeitar qualquer restrição sobre a capacidade do indivíduo e sua consciência, pois isso configuraria um obstáculo à fé. 'Antinomismo' foi, no século XVIII, tanto um termo de abuso como de precisão. Os ortodoxos lançaram a acusação de antinomismo em seus adversários, muito mais que em outros tempos e lugares, acusações de heresia, anarquismo, terrorismo ou libertinagem. E os objetos de abuso, muitas vezes acabaram por ser inocente de tais intenções subversivas.27

Outro aspecto importante dos antinomianos era a recusa do direito de julgar da Igreja, pois essa não deveria condenar ou punir ninguém. Para eles, o pecado não era de todo ruim, uma vez que Deus nos dá a chance de perdoar as pessoas e seus erros. Assim como fez Blake anos mais tarde, os seguidores dessa corrente radical faziam uso da linguagem religiosa para expressar crenças subversivas. Além disso, sua devoção religiosa, e nisso também coincide Blake, contradiz todas as crenças religiosas uma vez que afirma ser a Igreja e o Estado “fonte de toda crueldade”. A visão de Cristo que vires É o maior inimigo de minha visão ... Ambos leem a Bíblia dia e noite Mas tu lês negro onde eu leio branco.28

thought and the character of his sensibility. My object is to identify, once again, Blake’s tradition, his particular situation within it, and the repeated evidences, motifs and nodal points of conflict, which indicate his stance and the way his mind meets the world. To do this involves some historical recovery, and attention to sources external to Blake – sources which, very often, he may not have been aware of himself. For it is necessary to define, first of all, an obscure antinomian tradition; and then to define Blake’s very unusual, and probably unique, position within it. 27 Ibid., p. 10. Tradução minha para: ‘Antinomian’ was, in the eighteenth century, as often a term of abuse as of precision. The orthodox hurled the accusation of Antinomianism at their opponents, very much as, in other times and places, accusations might be hurled of heresy, anarchism, terrorism or libertinism. And the objects of such abuse often turn out to be innocent of any such subversive intentions 28 THOMPSON, E. P. Witness Against the Beast: Willian Blake and the moral Law. New York: The New Press, 1993, p. 61. Tradução minha para: The Vision of Christ that thou dost see Is my Vision’s Greatest Enemy…Both read the Bible day & night, But thou read’st black where I read white. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Ainda que a segunda metade do século XVII tenha visto as aspirações das seitas radicais serem derrotadas, suas crenças foram preservadas e passadas de uma geração para outra, mantendo os debates e discussões acerca da salvação da alma por meio do exercício da consciência. Outras seitas radicais, como os Behmenists, desenvolveram uma tradição literária, e, seguramente, Blake teve acesso a esses impressos, visto que toma emprestados os mesmos símbolos para manifestar sua visão radical. Outro fenômeno importante, destacado por Thompson, foram os dissidentes desses grupos radicais que, de forma dispersa, deram origem a diferentes grupos e pequenas igrejas. Em comum, eles carregavam o compromisso com a democracia; podemos destacar os Quakers, Muggletonians e Tryonist que seguem ativos até o presente momento. Todavia, há vários outros grupos menores que sucumbiram à perseguição. De modo geral, essas seitas se propagaram com maior veemência entre imigrantes, comerciantes e artesãos de Londres, ou seja, fora da sociedade educada dentro do moralismo da Igreja. Blake, sendo um gravurista, encaixava-se nesse perfil. Comerciantes e artesãos, segundo Thompson, eram mais suscetíveis a se tornarem republicanos e odiar as instituições da classe dominante29. Se refletirmos acerca do movimento que o historiador fez, ao buscar compreender o contexto imediato de Blake, ou seja, o ambiente em que ele vivia, percebemos que, ao contrário da visão que nos foi apresentada pelos biógrafos e estudiosos, William Blake não foi um homem solitário em sua forma de pensar e expressar sua arte. O Blake que nos é apresentado por Thompson está integrado a um círculo de pessoas que partilhava das mesmas crenças e rejeitavam os privilégios e a autoridade, sobretudo da Igreja e do Estado. Contra o pano de fundo da Dissidência londrina, com sua franja de deístas e místicos exaltados, William Blake não mais se apresenta como aquele gênio inculto e excêntrico que deve parecer àqueles que conhecem apenas a cultura refinada da época. Pelo contrário, ele é a voz original e autêntica de uma longa tradição popular.30

Nas décadas de 1780 e 1790, essas seitas radicais, que estavam praticamente escondidas devido à repressão desde a Revolução Inglesa, floresceram novamente devido à efervescência da Revolução Francesa e seu ideário de liberdade, igualdade e

29 Entendemos o conceito de classe conforme Thompson (1993): um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. 30 THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa – A árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 53. V. 1. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

54 fraternidade. Com a crise política, a dissidência religiosa passa a se tornar a base da política revolucionária. O desejo de tomar parte no debate e na ação ardia nas pessoas. Thompson argumenta que a seita Muggletonian também teve especial influência sobre Blake. A principal particularidade desse grupo é a crença de que, no Jardim do Éden, a serpente tenha engravidado Eva e assim plantado o mal na raça humana. Tal ideia pode parecer tola, porém está presente em gravuras e poemas de Blake. Talvez o mais importante para os Muggletonians fosse a preocupação em rejeitar a razão, visto que para eles a razão era considerada a arma de Satanás, sendo pior que o orgulho, a luxúria e a cobiça. Blake proclamou em um de seus provérbios que “Satanás é o Deus da Razão”. Símbolos como a ‘árvore do conhecimento’ e ‘a queda no Jardim do Éden’ aparecem na obra dos Muggletonians e de Blake, todavia, não estão associados à ideia de desobediência ou sexualidade, como no discurso religioso tradicional. Ao contrário, para os radicais, a tentação de Eva e a queda são símbolos de conhecimento. Em 1790, essas ideias eram consideradas extremamente subversivas. O antinomismo rechaçava a lei, enquanto a classe dominante buscava sua legitimidade por meio das leis; os Muggletonians negavam a Razão, quando os principais pilares da sociedade educada se pautavam na ciência e no racionalismo. No final do século XVIII alguns desses grupos, como foi o caso dos Quakers, aceitaram esses princípios a fim de serem aceitos; porém, outros preferiram se rebelar. Nesse contexto, rebelião significa rejeitar o Iluminismo, ou seja, a ciência e a razão. Para Blake, o Iluminismo – o poder da razão, escudada na tríade profana de Bacon, Newton e Locke (deísmo, cientificismo, racionalismo), aos que se somavam outros apóstolos deste pensamento como Descartes, Voltaire e Rousseau – constituía um desvio original, consistia em restabelecê-la mediante a visão.31

Ao detalhar a forma de pensamento dessas seitas radicais, Thompson deixa claro que a rejeição aos valores iluministas, não era, de forma alguma, uma negação do conhecimento. Ao se rebelar contra o racionalismo, os rebeldes visavam combater a

31 CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha – Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em: . Acesso em: 21 Ago. 2014. Tradução minha para: Para Blake, el Iluminismo – el poderío de la razón, escudado en la trinidad profana de Bacon, Newton y Locke (deísmo, cientificismo, racionalismo), a los que se sumaban otros apóstolos de este pensamiento como Descartes, Voltaire y Rousseau – constituía una desviación de la palabra original, consistía en restablecerla mediante la visión.

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55 hipocrisia, a corrupção e a ganância, em outras palavras, eles rejeitavam a ordem social. Blake, por exemplo, colocava-se contra a lei moral porque acreditava que as pessoas eram capazes de desenvolver grandes coisas, tinham potencialidades se não fossem reprimidas. A libertação para Blake era sexual, artística e criativa, diferente de seus contemporâneos radicais, que em sua maioria desejavam um governo do povo pelo povo, de forma racional. Blake entendia a liberdade de forma mais ampla e acreditava que somente a mudança política e social não seria suficiente para operar essa libertação. Mesmo não estando de acordo com as instituições repressivas e as desigualdades, Blake enxergava a necessidade de a Humanidade experimentar uma revelação religiosa e/ou espiritual, a fim de ser verdadeiramente livre. Assim, no trabalho de Blake, Thompson chega à conclusão de que há uma junção entre as ideias revolucionárias e o radicalismo racional de Paine e Wollstonecraft, e também as tradições mais antigas que remontam à Revolução Inglesa. Há relatos que comprovam que um membro da família de Blake era membro praticante da Igreja Muggletonian, assim como também se sabe que o poeta e sua esposa Catherine eram simpatizantes da igreja fundada por Swedenborg, a Nova Jerusalém. Um dos grandes debates que eram colocados nessas seitas e que também influenciou Blake é a forma que se entendia a divindade de Cristo. Teria Deus concedido a sua divindade ou toda a humanidade era divina? Sobre essa questão Blake afirmou: “Ele é o único Deus, e assim sou eu e você também”. Também encontramos esse tema no poema “The Divine Image”: Compaixão, Pena, Paz & Amor,/Todos lhes rezam no seu sofrimento;/E a estas virtudes de tanto fulgor/Entregam o seu agradecimento./Compaixão, Pena, Paz & Amor/É Deus, nosso pai adorado,/Compaixão, Pena, Paz & Amor/É o Homem, seu filho amado./Tem Compaixão humano coração,/E tem a Pena uma face humana,/Amor, a forma divina de eleição/E a Paz, o traje que irmana./Todo o homem, em todo o clima,/Que, com dor, reza como é capaz,/Reza à forma humana divina,/Amor, Compaixão, Pena & Paz./A humana forma amar é um dever,/Para os ateus, os turcos, os judeus;/Compaixão, Amor & Pena, haja onde houver,/Também é lá que encontrareis Deus.32

32 THOMPSON, E. P. Witness Against the Beast: Willian Blake and the moral Law. New York: The New Press, 1993, p. 150. Tradução minha para: To Mercy Pity Peace and Love/All pray in their distress: /And to these virtues of delight/Return their thankfulness. /For Mercy Pity Peace and Love, /Is God, our father dear: /And Mercy Pity Peace and Love, /Is Man his child and care. /For Mercy has a human heart/Pity, a human face: /And Love, the human form divine, /And Peace, the human dress. /Then every man, of every clime, /That prays in his distress, /Prays to the human form divine/Love Mercy Pity Peace. /And all must love the human form, /In heathen, turk, or jew. /Where Mercy, Love & Pity dwell/There God is dwelling too. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Com o desaparecimento do otimismo revolucionário da década de 1790 e a repressão desencadeada pela classe dominante contra seus inimigos, os escritos de Blake se tornaram obscuro e místico, mas vemos que ele conseguiu manter viva a sua visão divina, mesmo em momentos de dificuldade. Ademais, Blake acreditava que aqueles que aceitavam o racionalismo e a ciência, mesmo se combinados com as aspirações revolucionárias, estavam de alguma forma colaborando com o “Reino de Satanás”. Isso explica a crítica feita a Tom Paine, devido ao seu ateísmo e pontos de vista materialista; mesmo que ele tenha sido um dos principais responsáveis por fornecer uma visão de que só a ação humana aliada à liderança revolucionária poderia mudar o mundo e libertá-lo. E muitos, como Blake, sentiam-se divididos entre um deísmo racional e os valores espirituais nutridos por um século no ‘reino interior’. Quanto, nos anos de repressão, foi publicada A Idade da Razão, de Paine, muitos devem ter concordado com a anotação de Blake, na última página do Apologia da Bíblia, do bispo de Llandaff, escrito em réplica a Paine: ‘Tenho a impressão agora de que Tom Paine é um melhor cristão do que o bispo.’ Quando encaramos desta forma a Dissidência33, vemo-la como uma tradição intelectual: desta tradição, saíram muitas ideias e homens originais. Mas não poderíamos afirmar que os ‘antigos dissidentes’ estivessem todos dispostos a assumir o lado popular.34

Em suma, ao lermos o trabalho de Thompson (1993), Witness Against the Beast – William Blake and the moral Law, distanciamos a imagem de excêntrico religioso e místico totalmente isolado do mundo real que foi, ao longo dos anos, construída em relação à Blake. Pelo contrário, enxergamos a coragem e o enfrentamento das pessoas comuns em resistir à opressão que lhe era imposta pelas instituições, sobretudo pelo Estado e pela Igreja com suas leis morais. Por mais que Blake tenha compartilhado do pensamento das tradições estabelecidas no período da Revolução Inglesa, conforme já discutimos, ele foi um artista que não lutou para defender uma determinada igreja ou seita. Sua oposição era à classe dominante e à opressão. Podemos afirmar que a defesa e luta de Blake era por liberdade, igualdade e fraternidade.

33 Ao fazer uso do termo Dissidência, Thompson se refere ao conjunto de seitas religiosas desvinculadas da Igreja Anglicana. 34 THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa – A árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 53-54. V. 1. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Em seus últimos anos, Blake se dedicou ao término de duas obras de caráter espiritual, “Milton” e “Jerusalém”. Em 1821, começou a elaboração de dois grandes projetos: vinte e duas gravuras para ilustrar o “Livro de Jó” e várias aquarelas para a “Divina Comédia”, de Dante Alighieri; porém, surpreendido pela morte em agosto de 1827, devido a uma icterícia grave, este último trabalho ficou incompleto. Esse lhe rendeu muito esforço e dedicação, visto que Blake aprendeu a língua italiana a fim de aprofundar melhor no universo de Dante. […] a heterodoxia blakiana está bem distante do catolicismo dantesco (não tão ortodoxo como pode parecer a simples vista, se recordarmos que em várias ocasiões Dante reformulou dogmas teológicos e noções políticas para acomodá-los a sua cosmovisão particular). Não obstante, Blake foi um forte admirador de Dante, ao grau de aprender italiano para poder lê-lo no original e conseguir indagar melhor na essência da Divina Comédia, que teria de ilustrar de maneira peculiar durante os últimos anos de sua vida. Isso obedece, seguramente, ao detalhe de ter observado nele e em sua obra a dramática visão das paixões humanas e uma representação também visionária dos mundos espirituais, tão familiar com a sua que Eliot denominou uma estrutura de mitologia, teologia e filosofia.35

Conforme mencionamos, Blake não alcançou grande popularidade entre seus contemporâneos, mas os pré-rafaelitas, dentre eles Dante Gabriel Rossetti, foram os primeiros cultores de sua arte. Mais tarde, também ganharia destaque entre os simbolistas e os surrealistas, que admiraram a relação entre erotismo e misticismo contida em sua obra. Vale ressaltar que atualmente há uma grande bibliografia sobre a vida e a obra de Blake. Em 1863 foi publicada sua primeira biografia, por Alexander Gilchrist, entitulada “Vida de William Blake”. Mais tarde, autores consagrados como Algernon Charles Swinburne, W. B. Yeats e T. S. Eliot também se dedicariam a escrever sobre o poeta. Este último afirmou, em The Sacred Wood, que A concentração resultante de um quadro de mitologia, teologia e filosofia é uma das razões pelas quais Dante é um clássico e Blake só um poeta de gênio. [...] Blake estava dotado de uma capacidade

35 CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha – Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em: . Acesso em: 21 Ago. 2014. Tradução minha para: [...] la heterodoxia blakeana está bien distante del catolicismo dantesco (no tan ortodoxo como puede parecer a simple vista, si recordamos que en varias ocasiones Dante reformuló dogmas teológicos y nociones políticas para acomodarlos a su cosmovisión particular). No obstante, Blake fue un fuerte admirador de Dante, al grado de aprender italiano para poder leerlo en el original y conseguir indagar mejor en la esencia de la Divina Comedia, que habría de ilustrar de manera peculiar durante los últimos años de su vida. Esto obedece, de seguro, al detalle de haber observado en él y en su obra la dramática visión de las pasiones humanas y una representación también visionaria de los mundos espirituales, tan familiar con la suya en lo que Eliot denominó una armazón de mitología, teología y filosofía. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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considerável para compreensão da natureza humana, com um apreciável e original sentido da linguagem e da música da linguagem e com o dom de uma visão alucinada.36

Outra referência marcante à obra de Blake veio do vocalista norte-americano Jim Morrison, que foi um ávido leitor do poeta e escolheu o nome de sua banda, “The Doors”, inspirado no verso: “If the doors of perception were cleansed, every thing would appear to man as it is, infinite”. Já Harold Bloom, crítico literário americano, considera que o poeta é um visionário e explica: Por “visionário” entendo um modo de percepção pelo qual objetos e pessoas são vistos com uma intensidade amplificada com indícios proféticos. Com frequência visionária, a poesia tenta domesticar ao leitor para leva-lo a um mundo onde tudo o que olha tem uma aura transcendental.37

Não é possível dissociar a poesia de Blake de sua obra como artista gráfico e plástico, pois ambas as coisas são complementares. As imagens elaboradas para acompanhar seus textos não devem ser consideradas como meras ilustrações. Suas palavras não são escritas e dispostas na chapa tipográfica; antes, reconstituem o traço autoral do seu criador, evidenciando o esforço de registrar sua letra, sua inusitada pontuação, sua grafia ora cursiva ora romana. Por outro lado, não se trata apenas de imagem inscrita e gravada na chapa de cobre, uma vez que as palavras registram, alteram, modificam e corrigem a informação visual de modos sempre desafiadores, dificilmente previsíveis. Em vista disso, tem-se nas lâminas iluminadas um conjunto semiótico múltiplo, em que palavra e imagem são pares de uma dança de significações que se alteram, que se modificam, em cada ato de leitura, diante do olhar de cada espectador/leitor.38

A maioria de suas pinturas, muitas delas criadas para ilustrar seus próprios poemas, eram impressões feitas de placas de cobre que ele cauterizava por meio de um

36 CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha – Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em: . Acesso em: 21 Ago. 2014. Tradução minha para: La concentración resultante de una armazón de mitología, teología y filosofía es una de las razones por las que Dante es un clásico y Blake sólo un poeta de genio. […] Blake estaba dotado de una capacidad considerable para la comprensión de la naturaleza humana, con un apreciable y original sentido del lenguaje y de la música del lenguaje y con el don de una visión alucinada. 37 BLOOM, Harold. Cómo leer y por qué. Colômbia: Norma, 2000, p. 89. Tradução mina para: Por “visionario” entiendo un modo de percepción por el cual objetos y personas son vistos con una intensidad amplificado con dejos proféticos. Con frecuencia visionaria, la poesía intenta domesticar al lector para llevarlo a un mundo donde todo lo que mira tiene un aura trascendental. 38 TAVARES, Enéias Farias. “The William Blake archive”: repensando o acervo físico e o arquivo digital. Letras, Santa Maria, n. 46, Jun. 2013. Disponível em: . Acesso em: 01 Ago. 2014. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

59 método que lhe havia sido revelado através de um sonho e que ele denominou como “gravura iluminada”. Ele e Catherine coloriam todas as impressões com aquarela, o que fazia de cada impressão uma obra de arte única. A técnica se baseia em gravar na mesma placa o texto e as ilustrações. Em essência, era uma variante da água-forte, porém, nesta técnica a impressão se realiza graças ao ácido que grava uma placa metálica, na de Blake o procedimento de invertia e se empregava o ácido para gravar as partes vazias e deixar o desenho em relevo. Posteriormente, as páginas eram retocadas a mão, com pincel e aquarela, por isso cada cópia podia ter algumas diferenças com o resto.39

Segundo Alcides Santos, o uso das placas de cobre também era uma forma encontrada por Blake para manter o potencial desestabilizador de seus poemas iluminados e também sua materialidade. Longe de querer controlar a leitura que seus poemas teriam, a manutenção da materialidade dos poemas iluminados garante a perpetuação da força desconcertante dessa forma de textualidade que utiliza letras manuscritas, arabescos, microdesenhos, pontuação avessa à sintaxe, estrutura centrípeta, iluminuras, texto escrito e imagem em proporções diferentes em cada placa/página. O fato de a grande maioria das edições e traduções de seus poemas iluminados simplesmente desconsiderar essa complexidade formal, não levando em conta as múltiplas relações dessas inovações formais com as instâncias simbólica e estrutural do poema, traduz, a nosso ver, uma forma de leitura de sua poesia iluminada que contradiz princípios básicos de sua poesia.40

Os temas de suas gravuras e pinturas giravam em torno de anjos, arcanjos, apóstolos, profetas; tudo isso interpretado por meio de suas visões. As figuras de inspiração cristã não eram como na iconografia tradicional. Ademais, também encontramos imagens relacionadas às lendas e mitos da antiguidade clássica. No geral, estas imagens são consideradas pelos estudiosos como ocultas e de difícil interpretação. Um dos objetivos de Blake era romper a aparência enganosa do mundo e alcançar a autêntica verdade por meio de sua arte.

39 SARRIUGARTE, Iñigo. Las alucinaciones mentales de William Blake como Base de su Obra Literaria y Artística: ¿Genialidad o Locura? Razon y Plabra, n. 40, Agosto/Septiembre 2004. Disponível em: . Acesso em: 21 Ago. 2014. Tradução minha para: La técnica se basa en grabar en la misma plancha el texto y las ilustraciones. En esencia, era una variante del aguafuerte, pero mientras que en esta técnica la estampación se realiza gracias al ácido que graba una plancha metálica, en la de Blake se invertía el procedimiento y se empleaba el ácido para grabar las partes vacías y dejar el dibujo en relieve. Posteriormente, las páginas eran retocadas a mano, con pincel y acuarela, por lo que cada copia podía tener algunas diferencias con el resto. 40 SANTOS, Alcides Cardoso dos. Visões de William Blake – Imagens e palavras em Jerusalém a Emanação do Gigante Albion. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, p. 24-25. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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A principal exposição de seu trabalho ocorreu em Londres, no ano de 1978, em ocasião de seu aniversário de morte de 150 anos. Essa foi uma das únicas exposições dedicadas exclusivamente a Blake, e sem dúvida, a maior delas. Em abril de 1978, a Tate Gallery de Londre expôs (em comemoração aos 150 anos de sua morte) uma mostra integrada por mais de trezentas obras, entre elas se incluíam pinturas, gravuras, xilogravuras, impressões em cor e ilustrações para livros próprios e alheios. A oportunidade, que pode aproveitar, se prestava para seguir os esforços de Blake sob uma espécie nova de expressão que, ainda que parcialmente falida e incapaz de gerar uma corrente série de seguidores, impressiona por sua variedade e chama a atenção sobre as múltiplas tentativas do gênio para encontrar o meio adequado a um modo pessoal de sentir.41

Uma de suas principais pinturas, reproduzida posteriormente por vários artistas, é “The Ancient of Days” ou em português, O Ancião dos Dias. Foi, originalmente, publicado como o frontispício de seu trabalho Europe a Prophecy, em 1794. A imagem mostra Urizen, o Ancião dos Dias, agachado entre nuvens e sua mão estendida carrega um compasso em direção à escuridão. Como Blake criou seu próprio sistema teológico, inventou uma metodologia para que pudesse ser mais bem compreendido. Urizen, por exemplo, é o tempo.

41 BLAKE, William. Obra Completa en Poesía. Barcelona: Libros Río Nuevo, 1980, p. 11. Tradução minha para: En abril de 1978, la Tate Gallery de Londres expuso (con motivo del 150 aniversario de su muerte) una muestra integrada por más de trescientas obras, entre las que se incluían pinturas, grabados, xilografías, impresiones en color e ilustraciones para libros propios y ajenos. La oportunidad, que pudo aprovechar, se prestaba para seguir los esfuerzos de Blake tras una especie nueva de expresión que, aunque parcialmente fallida e incapaz de generar una corriente seria de seguidores, impresiona por su variedad y llama la atención sobre las múltiples tentativas del genio para hallar el medio adecuado a un modo personal de sentir.

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Europe a Prophecy, object 1 (Bentley 1, Erdman i, Keynes i) “Europe a Prophecy”. Disponível em:

Sobre a relação entre poema e pintura, Jesús Curbelo comentou: […] a meu juízo, a dupla condição de poeta e pintor da qual gozava o cantor da inocência e da experiência, antecessor em anos dos imaginistas e da grande relevância conferida por eles ao elemento pictórico na lírica, pois seus poemas estão muito concentrados na imagem visual, e chegam, algumas vezes a funcionar como sua própria ilustração.42

Atualmente quem deseja pesquisar acerca de Blake e sua vasta obra, seja como escritor, gravador ou pintor, conta com um arquivo digital completo, fruto de um projeto acadêmico pioneiro. Os idealizadores desse projeto foram os acadêmicos Morris Eaves, Joseph Viscomi e Robert Essick. O objetivo foi reunir toda a produção que estava dispersa em inúmeras publicações, que muitas vezes dissociavam o trabalho do poeta e do artista. Além disso, foi feito um esforço no sentido de disponibilizar os textos originais de Blake, sem as alterações que foram feitas na maioria das publicações.

42 CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha – Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em: . Acesso em: 21 Ago. 2014. Tradução minha para: [...] a mi juicio, la doble condición de poeta y pintor de la cual gozaba el cantor de la inocencia y de la experiencia, antecesor en años de los imaginistas y de la gran relevancia conferida por ellos al elemento pictórico en la lírica, pues sus poemas están muy concentrados en la imagen visual, y llegan, algunas veces a funcionar como su propia ilustración. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Na dimensão textual, também há um esforço de correção gramatical, estabelecendo pontos em vez de vírgulas, aspas para indicar falas de personagens, e também a utilização de letras maiúsculas no início de períodos, todos elementos problematizados por Blake em sua escrita iluminada.43

CONSIDERAÇÕES FINAIS Tentamos, por meio de desse estudo biográfico, responder as mesmas perguntas que Thompson se colocou ao escrever sobre Blake: “Quem era Blake? Onde é que vamos colocá-lo na vida intelectual e social de Londres entre 1780 e 1820? Quais tradições particulares estavam em seu trabalho e dentro de sua mente?”44 Entendemos que sem esses esclarecimentos não é possível analisar sua obra, pois ela reflete o universo do autor, como sujeito histórico, inserido em um determinado contexto. Atualmente encontramos um número vertiginoso de estudos sobre William Blake, seja sobre sua obra como poeta, pintor, gravurista ou mesmo sobre sua personalidade. Por mais que seu nome tenha se mantido fora dos holofotes por largo tempo e seus contemporâneos não tenham dado muita importância ao seu trabalho, agora a situação é inversa. A quantidade de publicações só cresce e percebemos que isso não é só na Inglaterra, mas em vários lugares do mundo. Com tantas interpretações e caminhos de investigação sendo traçados por pesquisadores de diferentes áreas, julgamos complicada a tarefa de compreender esse homem, assim como sua obra. Ao selecionarmos alguns autores específicos, por acreditar que vinham de encontro às nossas escolhas, percebemos o quão divergente são algumas imagens que foram construídas sobre o poeta. De louco esquizofrênico a místico e gênio, a figura de William Blake foi sendo interpretada por diferentes ângulos e alguns dos estereótipos criados foram reproduzidos sem muito critério. Sendo assim, um de nossos cuidados foi mostrar esse homem em sua complexidade, ou seja, olhando para o seu entorno e considerando sua própria historicidade.

43 TAVARES, Enéias Farias. “The William Blake archive”: repensando o acervo físico e o arquivo digital. Letras, Santa Maria, n. 46, Jun. 2013. Disponível em: . Acesso em: 01 Ago. 2014. 44 THOMPSON, E. P. Witness Against the Beast: Willian Blake and the moral Law. New York: The New Press, 1993, p. XII. Tradução minha para: Who was Blake? Where do we place him in the intellectual and social life of London between 1780 and 1820? What particular traditions were at work within his mind?

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Acreditamos que o estudo a seu respeito, sobretudo de sua obra como escritor e poeta, é de grande contribuição para os estudos históricos e literários no que se refere à “dupla revolução inglesa”, as transformações em decorrência da Revolução Industrial. A leitura crítica de “Canções da Inocência e da Experiência” nos fornece uma ferramenta mais para compreender o impacto político, econômico e, principalmente, social. Não somos capazes de responder a todas as questões que a leitura de William Blake nos sugere, entretanto, ela nos mostra caminhos para uma possível interpretação; permite-nos formular hipóteses. O trabalho de E. P. Thompson, por exemplo, é relevante por não apresentar uma interpretação simplista do poeta. Thompson se preocupa em dar a devida atenção à experiência histórica vivida, e assim contribui para que tenhamos uma visão mais ampla – que leva em consideração as tensões e os conflitos que estavam postos naquele momento.

REFERÊNCIAS ANGRILL, A. William Blake: Grandes Maestros de la Pintura. Barcelona: Altaya, 2002. BLAKE, William. Erasmo textos bilingües: Cantos de inocencia y Cantos de experiencia. Barcelona: Bosch / Casa Editorial, 1977. BLAKE, William. Obra Completa en Poesía. Barcelona: Libros Río Nuevo, 1980. BLOOM, Harold. Cómo leer y por qué. Colômbia: Norma, 2000. BORGES, Jorge Luis. Curso de literatura inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BORGES, Jorge Luis. Un ensayo por Borges acerca de Swedenborg. Wedenborg. Disponível em: . Acesso em: Fev. 2017. CURBELO, Jesús David. William Blake: apuntes para tratar de visionar la voz del bardo. Agulha Revista de cultura, Fortaleza / São Paulo, n. 67, Janeiro/ Fevereiro de 2009. Disponível em: . Acesso em: Ago. 2014. SANTOS, Alcides Cardoso dos. Visões de William Blake – Imagens e palavras em Jerusalém a Emanação do Gigante Albion. Campinas: Editora Unicamp, 2009. SARRIUGARTE, Iñigo. Las alucinaciones mentales de William Blake como Base de su Obra Literaria y Artística: ¿Genialidad o Locura? Razon y Plabra, n. 40, Agosto/Septiembre 2004. Disponível em: . Acesso em: jan. 2017. TAVARES, Enéias Farias. “The William Blake archive”: repensando o acervo físico e o arquivo digital. Letras, Santa Maria, n. 46, Jun. 2013. Disponível em: . Acesso em: jan. 2017. THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa – A árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. THOMPSON, E. P. Witness Against the Beast: Willian Blake and the moral Law. New York: The New Press, 1993.

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VIZIOLI, Paulo. (Org.). William Blake: Poesia e Prosa Selecionadas. São Paulo: J. C. Ismael, 1986.

RECEBIDO EM: 29/06/2017 | APROVADO EM: 13/10/2017

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MURILO RUBIÃO E O DESCRÉDITO DA MEMÓRIA: CONSTITUIÇÃO E FUNÇÕES DE UMA MEMÓRIA UTÓPICA EM OFÉLIA, MEU CACHIMBO E O MAR

Marcus Vinícius Lessa de Lima Universidade Federal de Uberlândia - UFU

RESUMO: Se a epígrafe de Ofélia, meu cachimbo e o mar já possibilitaria analisar a atualização de uma memória histórico-literária nesse conto, há muito mais para se observar ali acerca da produção e das funções de uma memória histórica de si no discurso do narrador. Para tanto, nos valemos das observações de Pierre Achard acerca dos implícitos discursivos e dos processos de regularização e repetição; daquelas de Michel Foucault acerca dos espaços heterotópicos e utópicos; e daquelas de Michel Pechêux acerca da memória. Buscamos evidenciar como essa última, sob um aparente processo de repetição, opera a reatualização e contestação de elementos já-ditos. Enquanto o narrador rememora sua história e a de sua família, encontramos o entrecruzamento de uma memória familiar e de uma memória mítico-marítima, apontando ambas a uma função consoladora que tende a se registrar como acontecimento recuperável no exterior imediato das personagens por meio de discursos heterotópicos, ora inscritos em suas reminiscências ora em seus corpos, ora em objetos, buscando sanar ausências e impossibilidades por meio do evidenciamento da memória. Observamos a constituição exterior e heterogênea do sujeito-narrador e de sua memória, bem como os procedimentos de atualização discursiva dela. Esses irromperão paulatinamente como cesuras no discurso e culminando, pelo intermédio de um outro-interlocutor, no descrédito das heterotopias rememoradas, o que tanto deslocará a memória do narrador para um terreno completamente utópico, quanto lhe atribuirá uma outra função além daquela consoladora, qual seja, a de evidenciar a opacidade do que é silenciado e não mais encontra lugar na memória. PALAVRAS-CHAVE: Murilo Rubião. Memória. Discurso. Murilo Rubião and the discredit of memory: production and functions of a utopic memory in Ofélia, meu cachimbo e o mar ABSTRACT: If only the epigraph of Ofélia, meu cachimbo e o mar would enable us to analyze the updating of a historical-literary memory, there is much more to observe in this shot story, such as what concerns the production and the functions of a self-historical memory on the discourse of the narrator. We recall Pierre Achard’s notes on the implicits of discourse and the processes of regularization and repetition; Michel Foucault’s notes on the utopia and heterotopia; and Michel Pechêux’s notes on the memory seeking to evince how memory, through a seeming process of repetition, operates the updating and denial of already-said elements. As the narrator rememorates his history and that of his family, we notice historical-familial and mythic-maritime memories interweave, pointing towards a comforting function that tends to register itself as an event possible to be re- established on the immediate exterior of the characters. This by means of heterotopia inscribed in their reminiscences, on their bodies or in objects, but always aiming to evidence memory as a sort of aid from absences and impossibilities. We also notice the exterior and heterogeneous constitution of the subject-narrator and his memory, as well ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

66 as its procedures of discoursive updating. Those erupt as breaches on the discourse, gradually causing, through the mediation of an other-interlocutor, the demerit of all memorial heterotopia, displacing the narrator’s memory to an all-utopia territory, where its function will become that of highlighting the opacity of what is silenced, no longer finding place in memory. KEYWORDS: Murilo Rubião. Memory. Discourse.

“Yo creo que la memoria tiene fuerza de gravedad. Siempre nos atrae. Los que tienen memoria son capaces de vivir en el frágil tiempo presente. Los que no la tienen, no viven en ninguna parte.” (NOSTALGIA DE LA LUZ, 2010)

1 PELO ESPAÇO DA MEMÓRIA No horizonte da Análise do Discurso, mais particularmente na esteira de Michel Pêcheux (1999, p. 53), caracterizaremos o signo linguístico por sua opacidade, à medida que ele não apresenta inscrita em si uma trajetória de recuperação de sentido capaz de nos guiar às imanências semânticas vinculadas a cada significante. Conforme a noção de implícitos discursivos, atualizada por Pierre Achard (1999, p. 13), consideraremos esses como um corpo de representações que “trabalha […] sobre a base de um imaginário que o representa como memorizado, enquanto cada discurso, ao pressupô-lo, vai fazer apelo a sua (re)construção, sob a restrição ‘no vazio’ de que eles respeitem as formas que permitem sua inserção por paráfrase”. Contudo, não será possível estabelecer seguramente, em alguma fonte prévia ao discurso materializado, a existência autônoma dessas paráfrases, de modo que o signo linguístico se torna opaco, justamente devido à impossibilidade de fundarmos seus implícitos discursivos, reconstruídos, em qualquer materialidade anterior (PECHÊUX, 1999, p. 53). Implícitos que, a um só tempo, são pressupostos pelo signo e o pressupõe, sendo os próprios sentidos das unidades léxicas significados por um jogo de implícitos e explicitações na materialidade do acontecimento discursivo. Seguimos a proposta de Pierre Achard, segundo a qual a regularização de um sentido, isto é, a sedimentação semântica deste ou daquele lexema se baseia num jogo de forças que tem lugar na circulação histórico-social dos discursos e nos consensos linguísticos daí estabelecidos, envolvidos com formações ideológicas e nelas inseridos, não derivando da mera repetição de um enunciado (ACHARD, 1999, p. 15-16), ainda que ela remeta a uma força fundadora: aquela do reconhecimento de um enunciado como um

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67 mesmo anteriormente veiculado noutro lugar irrecuperável. Depreendemos daí que engendrar os significados decorre da ordem da interpretação, não da ordem de um texto que fala por si: a significação decorre da enunciação. Uma complementação necessária a esses apontamentos pode vir de Pêcheux (1999, p. 53), quando, ao discorrer acerca da regularização dos enunciados, ele propõe: todo enunciado repetido se inscreve num duplo jogo de forças; de um lado, a força de manutenção de implícitos regularizados anteriormente, que tende a absorver novos acontecimentos discursivos sob o mesmo enunciado e neutralizá-los; de outro, a força de uma desregulação da rede de implícitos, que vem apontar para novos significados possíveis, demovendo os limites e abrangendo o alcance de uma dada relação sígnica. Ao debatermos o discurso literário, é imprescindível que nos atentemos para sua polissemia constitutiva. Roland Barthes (2015, p. 28-29) ressalta que uma das forças desse discurso consiste “em jogar com os signos em vez de destruí-los, em colocá-los numa maquinaria de linguagem cujos breques e travas de segurança arrebentaram”. Ou seja, uma das forças do discurso literário consiste em possibilitar, em sua emergência como acontecimento discursivo, a desregulação de significados sedimentados noutros lugares, precisamente naquelas fontes irrecuperáveis observadas por Pechêux. Esse discurso inscreve-se, portanto, mais na ordem daquela segunda força atuante no jogo entre regulação e desregulação do sentido: ele aponta para novos possíveis semânticos e expandindo as relações sígnicas. Nas páginas seguintes, nos interessará evidenciar quais mecanismos (con)formam discursivamente essa força desreguladora, tomando por base a narrativa de Murilo Rubião eleita como objeto de estudo. Observaremos como, ali, enunciados anteriores são mobilizados e inscritos em um corpo linguístico outro, distinto e exterior às ordens discursivas precedentes, ora repetindo os enunciados (mas só até certo ponto), ora engendrando opacidades semânticas que possibilitam, conforme Barthes (2015, p. 16), “com a língua, trapacear a língua”, impulsionando-a para além das forças reguladoras do significado. Enfim, objetivamos analisar formas de organização discursiva que permitem – e, novamente, Barthes – “instituir no próprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronímia das coisas” (BARTHES, 2015, p. 29).

2 DO ESPAÇO DA MEMÓRIA AO ESPAÇO DA UTOPIA

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O conto escolhido é Ofélia, meu cachimbo e o mar, assinado por Murilo Rubião. Observaremos como seu discurso se constitui, mais particularmente no que diz respeito à(s) memória(s) que se entrecruzarão em sua materialidade, compondo um amplo corpo de representações heterogêneas operado ao longo do enredo. No conto, um narrador inominado, nosso sujeito discursivo45, em uma varanda de frente para o oceano, tece a Ofélia, desinteressada ouvinte, relatos de momentos de sua história familiar, da história do mar e da história da relação entre ambos, até notar esmorecer o diálogo. Leiamos algumas das linhas iniciais: “Conto-lhe [a Ofélia] episódios da crônica de minha família ou do mar, esquecendo-me frequentemente de que ela só se interessa por histórias de caçadas” (RUBIÃO, 2015, p. 39, grifo nosso). Essa sentença descortina de uma só vez o desinteresse de Ofélia nas palavras narradas e o cruzamento indefinido (adiante esclarecido tanto no conto quanto em nossa análise) entre relatos acerca do mar e acerca da família do narrador, indefinição, ou opacidade, se melhor nos cabe, que remonta à estrutura frasal, nos permitindo gerar, ao menos, o seguinte conjunto de paráfrases: o narrador conta a Ofélia episódios da crônica de sua família ou episódios da crônica do mar, ou conta episódios da crônica de sua família que é / que também é / que também pode ser / que também pode ser nomeada por crônica do mar. Diante do desinteresse de Ofélia, o narrador questiona: “o que posso fazer, além de lastimar?” (RUBIÃO, 2010, p. 39), e, enfim, após perceber que sua ouvinte se distancia do diálogo e lhe atribuir a atitude a um devanear, ele, por seu turno, se cala, e remete sua atenção às impressões suscitadas pelo espaço: “Se noto que a conversa vai morrendo por culpa de Ofélia, que cerrou os olhos para melhor sonhar com selvas e tiros, calo-me por instantes e me ponho a ouvir vozes soturnas que vêm do mar.” (RUBIÃO, 2010, p. 39). Desse momento em diante, o narrador se entregará à continuidade interna de um monólogo em que rememora as referidas histórias, enredando-as entre si: a de sua família e a de sua família em relação ao mar, que, como vimos, também poderia ser nomeada por história do mar. Colocando-nos no plano do discurso desse narrador, poderíamos considerar que devassamos uma memória individual, risco já apontado por Pêcheux (1999, p. 50) e por

45 Para nos posicionarmos o mais possível no espaço imediato do discurso que analisamos, o narrador constituirá nosso sujeito discursivo. Já o autor corresponderá a uma função (FOUCAULT, 2006a) que pode ser considerada a posteriori dos discursos vinculados às personagens, função que não privilegiaremos tanto no presente texto. Por expediente, após repousarem as palavras na página, as consideraremos autônomas em relação ao sujeito que ali as colocou. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Achard (1999, p. 11-12): é necessário que evitemos interpretar a memória “em termos de ‘realmente-já-ouvido’, memória fono-magnética ou registro mecânico”, aponta o último autor. Evitaremos, pois, atribuir à memória uma integridade constitutiva ou uma coerência infalível que permitiria, respondendo ao chamado do momento, acessar um passado individual tal qual decorrido, com a mesma seguridade de quem acessa um imenso arquivo virtual à distância de um clique. Escapamos, assim, da armadilha do indivíduo e poderemos observar como as representações memoriais se constituem através e por meio do discurso. Sumarizado o enredo, contornado o engano possível, um parêntese em relação à epígrafe bíblica que precede o conto. Retirando-nos do plano que corresponde aos enunciados do narrador para um plano paratextual em que nos referiremos a Murilo Rubião como uma função-autor, funcionando aqui como uma maquinaria discursiva à parte da voz de seus personagens, mas que encontra neles um de seus elementos constitutivos. Compreendemos a função-autor conforme Michel Foucault (2006a), inicialmente considerando que a assinatura de um autor empírico corresponderá a um nó de coerência exterior e interior aos enunciados que acompanha, regulando a circulação desses, sua recepção e interpretação, bem como a co-presença e co-referencialidade desse discurso em relação aos demais que formam a figura comumente conhecida pelo nome de “obra”. A inserção de uma epígrafe exterior e anterior ao conto constitui um acontecimento em que o exterior / anterior é apontado a partir do interior / imediato do discurso e vice-versa. Isso se dá tanto no que diz respeito à fonte dessa recitação, no caso, a Bíblia, reacessável pois explicitamente referenciada, quanto no que diz respeito à posição desses versículos na materialidade do conto, mantendo uma relação com o discurso que a segue semelhante àquela que o próprio título mantêm com o restante do conto: a epígrafe se encontra imediatamente antecedente e exterior ao enredo, porém irrompe na leitura, influindo na produção discursiva dos sentidos. Detenhamo-nos nesse ponto. A epígrafe em questão, os versículos 25 e 26 do 103º salmo bíblico, “Este mar amplo, largo de braços, nele sulcam as naus, o dragão que formaste para zombar no mar” (RUBIÃO, 2010, p. 39. grifos do autor), manipula uma memória discursiva formada por implícitos de natureza que aqui nomearemos histórico-literária, pressupondo a representação do que seja historicamente Bíblia e do que sejam seus Salmos como parte

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70 de suas materialidades literárias constituintes. Além dessa manipulação, a epígrafe, ao referenciar sua fonte, explicitamente a retoma. Em contrapartida, negando a primeira impressão sugerida, esse acontecimento não contradiz nossas menções a Pierre Achard, acerca da impossibilidade de se recuperar parafrasticamente os implícitos discursivos em jogo: aqui estão os versículos, podemos alcançá-los em sua materialidade primeira (relativamente, é claro, ao quanto se pode atribuir essa primicidade à deriva conflituosa das traduções bíblicas); sua repetição, porém, como enunciado operador de sentidos no conto assinado por Rubião, abre espaços semânticos bastante distintos daqueles apontados pelo mesmo acontecimento no 104º salmo, Louvor ao Deus criador, no qual a proposta laudatória do título é cumprida à risca e os versículos em questão funcionam para inscrever o mar em uma extensa lista de obras divinas que fundamentam a geografia terrestre. A leitura da epígrafe de Rubião não nos obriga a enxertar automaticamente os versículos anteriores ou posteriores do salmo bíblico, e sequer necessitaria fazê-lo. Estamos diante de uma repetição ipsis literis, que responde à força primeira de seu reconhecimento como uma repetição, mas que em nada contribui para a manutenção de um sentido regulado no e pelo discurso bíblico: a epígrafe funda, junto ao enredo que a segue, uma possibilidade de atualização semântica do recorte sálmico apresentado. A epígrafe, tal qual o comentário, um dos procedimentos e mecanismos que agem para a delimitação discursiva segundo Foucault (2014, p. 24), paradoxalmente aparece para “dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito”, transferindo do enunciado para o acontecimento discursivo a potência polissêmica, a “multiplicidade aberta” (FOUCAULT, 2014, p. 25) dos signos. Um retorno à epígrafe, após (e durante) a leitura do conto, permitirá, à medida que esta influi nos sentidos daquele, o processo inverso: os efeitos de sentidos suscitados pela narrativa serão agora passíveis de influência naquela materialidade linguística. A regularização pela mera repetição é apenas aparente. Agora, retornemos ao percurso de nosso sujeito discursivo. Ao iniciar a rememoração das histórias de sua família ou do mar, ele afirma: “Ouço as sirenes que cortam a noite como gemidos de homens que se perderam em águas distantes” (RUBIÃO, 2010, p. 39). Aqui, vinculada a uma formação discursiva associada a representações mitológicas do mar, é colocada em jogo a memória social, conforme a caracteriza Pierre Achard (1999): a partir de suas observações, entendemos essa memória social como um

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71 conjunto de representações e práticas condicionadas sócio-cultural-historicamente, dispersas no imaginário social, não-localizáveis e não-circunscritíveis senão quando de enunciações que as manipulem. Sendo o mar e o marítimo uma unidade do discurso em análise, a caracterização do oceano ora como um espaço hostil povoado por perigos conhecidos e misteriosos (como na epígrafe e no início do conto), ora como um espaço a ser descoberto, seduzindo a seu desbravamento aqueles suficientemente corajosos para tal (como em outras ocorrências no conto), ambos discursos dispersos e sedimentados ao longo das mitologias, das literaturas e das artes em geral, constituirá o domínio discursivo que nomearemos por memória mítico-marítima, da qual o último segmento que apontamos no conto é um índice e, por sê-lo, um enunciado constitutivo dessa formação no escopo mesmo do conto. Estamos, portanto, diante de um exterior constitutivo da memória manipulada no / pelo discurso do sujeito: como afirma Pêcheux (1999, p. 56), “o fato de que exista assim o outro interno em toda memória é […] a marca do real histórico como remissão necessária ao outro exterior”. Na voz de nosso narrador, logo em seguida, será enquadrada pela primeira vez uma voz exterior explicitada: Os sons emitidos pelas naves, procurando ou se afastando do porto, podem simbolizar, para outros, coisa bem diferente. A Pedro, um velho marinheiro sardento, eles lembram apenas tabernas inglesas. Não sei de onde tirou tão estranha ligação, pois nunca toma o trabalho de explicá- la. Contenta, quando instado a esclarecer o motivo, em levar os olhos em direção ao oceano, como se quisesse enxergar algo encoberto pelas enormes moles d’água. (RUBIÃO 2010, p. 39)

Após considerar que uma mesma sequência de significantes (“os sons emitidos pelas naves”) pode compor, no discurso memorial de distintos sujeitos, distintos signos, a memória mítico-marítima é recolocada em movimento, agora com um índice referente a representações culturais associadas à figura do marinheiro, a taberna46, aqui, mais particularmente, as inglesas. Contudo, o elo estabelecido é considerado estranho pelo narrador, e não nos é possível senão sugerir que essa estranheza paire na relação de necessidade entre a reminiscência e a inscrição nacional específica, e não em uma não- conectabilidade entre os “sons emitidos pelas naves” e a representação menos específica de uma taberna qualquer, constituindo uma contestação de um dos índices culturalmente

46 Remetemos, a cargo de exemplo, a The Long Voyage Home, filme de 1940, dirigido por John Ford, em que as cenas dos marujos em seus recessos em terra transcorrem quase unicamente no espaço das tabernas nas imediações portuárias. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

72 dispersos da memória mítico-marítima (o que, no entanto, não seria menos aceitável quando falamos do funcionamento dos discursos): aqui, sem imanências sondáveis, se indagada com maior insistência, a materialidade histórico-linguística não se oferece a nós mais do que em opacidade. Logo adiante, uma segunda voz exterior é inserida e explicitada, em sucessão não apenas espacial, como também temática em relação à passagem anterior: “O botequineiro, que ostenta no corpo diversas tatuagens – todas alusivas a amores passados –, diz que são ‘artes de rabo de saia’” (RUBIÃO, 2010, p. 39-40). A figura do botequineiro (que parafrasearemos, doravante, como taberneiro) também é índice da rede de implícitos discursivos referente às práticas e aos atores da navegação, assim como um corpo coberto de tatuagens é representação também regular nesses discursos, bem como os amores efêmeros abandonados a cada porto (os “amores passados”)47. Este último sentido tenderá a melhor sedimentar-se por meio da próxima fala do narrador, permanecendo apenas possível até o presente momento da leitura. Convocado o taberneiro, o narrador então comenta acerca das “artes de rabo de saia”, materializando uma nova representação vinculada aos marinheiros: “marinheiro velho se lembra de mulher somente para ter saudades do mar” (RUBIÃO, 2010, p. 40). Com essa materialização, colabora para a associação entre os “amores passados” e os amores portuários e efêmeros, valendo-se, no entanto, de um novo índice cultural (a “saudade do mar”48) para possibilitar a expansão de um implícito regularizado na voz discursiva de um sujeito outro, agindo à semelhança da força de desregularização apontada por Pêcheux (1999, p. 53). E valendo-se para tal de uma paráfrase interveniente sob a forma de um comentário posterior, comportamento concordante também com Achard (1999, p. 15-16), quando esse menciona que a regularização do sentido é uma atividade vinculada à enunciação e a forças que agem na posterioridade dos significantes. Assim, nos defrontamos simultaneamente com o exterior constituindo a memória discursiva do sujeito através de índices sócio-histórico-culturais, e também com uma clara explicitação da constituição heterogênea dessa memória, conforme apontado por Pêcheux (1999, p. 56):

47 Podemos encontrar um conjunto semântico de elementos bastante afim aos que nos referimos, por exemplo, nas estrofes iniciais da canção Minha história, de Chico Buarque. 48 Que localizaremos, por exemplo, em algumas passagens de O velho e o mar, de Ernest Hemingway, ou em peças de fado, como numa leitura literal (não-metafórica) d’O navio, do grupo Madredeus, ou numa leitura a contrario de É doce morrer no mar, de Dorival Caymmi. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização… Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos.

Adiante, observaremos funções que o discurso do narrador (e das vozes que o permeiam) opera sobre a memória dos sujeitos em cena. Para tal, de início, compreendemos o espaço, partindo de reflexões de Foucault (2006b, p. 412), não como um locus físico no qual se distribuem unidades também físicas, mas como um conjunto heterogêneo de relações de posicionamentos, “relações de vizinhança entre pontos ou elementos”, isto é, relações de afinidade e contraste, de fluxos e contrafluxos, de circulações e assentamentos, de dispersões e localizações etc., engendradas segundo diversas configurações historicamente condicionadas, porém igualmente diversas se observadas nos limites de sincronias específicas. No ensaio citado, Outros espaços49, o interesse de Foucault é a análise das propriedades de certos espaços físicos; entretanto, ao mencionar a possibilidade fundada pela obra de Bachelard e pelas descrições fenomenológicas de que o espaço também seja “o espaço de nossa percepção primeira, o de nossos devaneios, o de nossas paixões”, um espaço “povoado de fantasma”, passível de ser descrito em termos de metáforas físicas (FOUCAULT, 2006b, p. 413), torna-se possível, sem prejuízos epistemológicos, descrever a memória como um espaço. Partindo dessas considerações, relacionaremos as noções foucaultianas de utopia e heterotopia ao espaço da memória. A utopia diz respeito a “posicionamentos sem lugar real […][,] que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa.” (FOUCAULT, 2006b, p. 414-415), conjuntos de posicionamentos idealizados, não localizáveis, nos quais a sociedade encontra-se aperfeiçoada segundo uma vontade particular. Por ora, essa descrição é suficiente e não nos delongaremos. Por seu turno, as heterotopias dizem respeito a posicionamentos efetivamente localizáveis, porém que, a partir da representação de outros posicionamentos encontrados em uma cultura, contrapõe, neutralizam, invertem ou suspendem as relações às quais apontam (FOUCAULT, 2006b, p. 415).

49 Remetemos também a uma versão distinta desse ensaio, As heterotopias, no volume O corpo utópico; As heterotopias (FOUCAULT, 2013). ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Um primeiro espaço heterotópico que localizaremos em Ofélia, meu cachimbo e o mar, é o corpo marcado por tatuagens do taberneiro: por meio da materialidade efetivamente localizável da tatuagem, constitui-se um espaço de memória temporalmente e fisicamente inacessível, um entre-lugares fundado em um lugar, um lugar que suspende a própria noção de localização, que, se conforme propõe nosso narrador, objetiva “rememorar o mar”, funda do aqui e agora de “artes de rabo de saia”, artes ao alcance das mãos e do olhar, um conjunto de posicionamentos que apenas resiste ao apagamento devido à inscrição na pele. De fato, se seguirmos ainda Foucault (2013, p. 12, grifo nosso), “a máscara, a tatuagem, a pintura são operações pelas quais o corpo é arrancado de seu espaço próprio e projetado em um espaço outro”, traçando o movimento de via dupla desse espaço heterotópico da tatuagem: somos lançados, a partir do corpo, a um espaço outro, lançando, ao mesmo tempo, a materialidade localizável do corpo a um espaço outro. O corpo é, portanto, lugar de inscrição da memória. De agora em diante, transitaremos entre apontar as múltiplas redes de implícitos e vozes constituindo o discurso de nosso narrador, identificando ali a materialização de espaços heterotópicos vinculados à memória. A partir do ponto em que nos detivemos, a narração prossegue: Seja qual for a razão, o meu amor pelas mulheres veio do mar. Não que eu seja ou tenha sido marinheiro. Nem ao menos nasci numa cidade litorânea. Sou de um vilarejo de Minas, agoniado nas fraldas da Mantiqueira. Nas minhas veias, porém, corre o melhor sangue de uma geração de valentes marujos. Na minha infância, enquanto meus companheiros subiam nas árvores, ou caçavam passarinhos eu me debruçava na banheira e me divertia fazendo navegar pequenos barcos de papel. Com os anos, as minúsculas embarcações passaram a não me entreter mais, nem me contentava em imaginar, de longe, a beleza dos veleiros singrando verdes águas. (RUBIÃO, 2010, p. 40)

Este trecho concatena-se aos anteriores transportando os índices culturais já apontados (a relação entre o amor às mulheres e o mar, ou entre o amor às mulheres e a saudade do mar) para a experiência subjetiva. Porém, e o que constituirá uma constante daqui ao fim do conto, diversos operadores enunciativos influirão para instilar dúvida nessa transposição da memória mítico-marítima para as reminiscências experienciais: é o caso de “seja qual for a razão”, “não que eu seja ou tenha sido marinheiro”, “nem ao menos nasci em uma cidade litorânea”. Ao afirmar-se, contudo, descendente de uma geração valorosa de marinheiros, o narrador escapa momentaneamente à dúvida e

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75 estabelece a ligação, que havíamos anteriormente notado opaca, entre o mar e a história de sua família. Já os dois parágrafos finais do trecho citado, em inscrições temporais tão imprecisas como a “infância” e “o passar dos anos”, correspondem, para nós, a reminiscências da experiência do sujeito reorganizadas segundo o contexto discursivo: notemos, no caso, as sutis oposições entre exploração terrestre e exploração marítima, e entre a caça, antes atribuída às preferências de Ofélia, e a navegação. Notemos também uma primeira presença de um devaneio passado na constituição memorial de nosso sujeito discursivo. Em seguida, após rememorar que, logo ao desembarcar no litoral, uma fratura em um dos pés inutilizou-o para a carreira marinheira, o narrador irá se referir à rememoração de seus devaneios juvenis. Ao convocar a representação de piratas da Malásia a infestar os oceanos, convocará novamente aquela memória mítico-marítima, ressaltando as contribuições dela para a conformação do próprio domínio imaginativo manipulado durante esses devaneios, emergindo aqui, assim como no trecho que destacamos no parágrafo anterior, na forma de uma rememoração do imaginado e do ato de imaginar: Conversava com pescadores ou simplesmente observava os navios, a me sugerirem longos cruzeiros por oceanos infestados de piratas malaios, semelhantes àqueles que, na adolescência, povoavam minha imaginação. E pouco faltou para convencer-me de ter sido em outros tempos experimentado marinheiro. (RUBIÃO, 2010, p. 40)

Interessa-nos também ressaltar um novo procedimento discursivo que aponta para o descrédito da veia marinheira anteriormente afirmada pelo narrador. Por meio do aporte semântico sugerido pela concatenação do verbo “convencer” e da forma infinitiva pessoal composta “ter sido”, vemos denotada a necessidade de que, por intermédio de uma auto persuasão, se aquiesça ao caráter marinheiro afirmado, dada sua possível não-veracidade. Essa última sequência contribui particularmente para a reincidência da dúvida que se vêm assomando em torno (e a partir) do discurso em questão. Contudo, ao mesmo tempo que influi nesse procedimento de descrédito, é de modo distinto que o trecho apontará para a projeção de desejos do sujeito discursivo, para a constituição de um espaço de consolo perante o não-realizado, operação que observaremos materializar-se no trecho logo seguinte: “O que poderia fazer um aleijado com a vocação de navegante, depois que lhe roubaram o mar?” (RUBIÃO, 2010, p. 41). De “vocação” irrompe o desejo, e do roubo, a impossibilidade.

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Adiante, encontraremos um triplo movimento discursivo: Do meu bisavô também roubaram o mar. José Henrique Ruivães era capitão de navio negreiro. Estatura gigantesca, ombros largos, desde menino navegava em veleiros que buscavam na África escravos para as lavouras do Brasil. Fisionomia dura, barba negra, a boca sem os dentes da frente compunham a sua figura bastante temida pelos marujos e escravos. (RUBIÃO, 2010, p. 41)

Na primeira sentença, a referência ao bisavô inicia o descortinar de uma memória histórico-familiar (ou histórico-geracional) na memória do narrador, que, por ora, vem responder à ligação já mencionada entre sua família e o mar, responsável pela propensão marinheira de nosso sujeito. Em seguida, a memória histórica-social referente à escravidão é invocada pelos implícitos discursivos relacionados ao segmento “capitão de navio negreiro”, logo complementados por “navegava em veleiros que buscavam na África escravos para as lavouras do Brasil”. São paráfrases explicitadas que tanto oferecem uma descrição geral para navios negreiros (“veleiros” dotados de um capitão), quanto atribuem a eles uma atividade vinculada a um passado histórico inscrito no espaço marítimo entre Brasil e África. Por fim, a descrição de José Henrique Ruivães nos remete àquela de certas figuras culturalmente sedimentadas, os navegadores imponentes por sua compleição física e por suas ações. Nesse ponto, seria inevitável a remissão a um Barba Ruiva ou a um Barba Negra. Imediatamente, deparamos o seguinte trecho: Para demonstrar a força e a coragem de meu bisavô contavam que, certa vez, quando uma tempestade ameaçava afundar o seu barco e depois de terem caído ao mar vários marinheiros, na tentativa de baixar as velas, ele subiu sozinho, mastro acima, e as arriou. A façanha lhe custou boa parte da dentadura, pois teve que se agarrar com as mãos e dentes a panos e cordas, para evitar uma desastrosa queda. (RUBIÃO, 2010, p. 41)

É de interesse destacar que, aqui, a voz memorial do narrador movimenta aqui uma multiplicidade inominada de vozes (notemos a indefinição dos sujeitos discursivos de “contavam”), realizando a (re)produção discursiva da(s) memória(s) dessas vozes. Conta-se um caso já transcorrido mas não localizado temporalmente, o que notamos pela mobilização dos tempos pretéritos junto a índices discursivos como “certa vez”, “quando”, “depois de”, respondendo o conjunto pela inscrição do relato em uma cronologia indefinida e não veridificável.

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Adiante, o narrador, reporta-se a implícitos de uma memória histórico-política- social referente à inscrição do tráfico negreiro no Brasil Colônia derradeiro, reportando- se também, sem referência explícita, aos agentes múltiplos da abolição: “Com a abolição da escravatura, José Henrique retirou-se para uma fazenda” (RUBIÃO, 2010, p. 41). Isso se dá em conjunção com um trecho anterior (“Do meu bisavô também roubaram o mar”), no qual estão presentes e ausentes aqueles que o “roubaram”. Então, tendo em vista esse “roubo”, nosso sujeito discursivo invocará uma outra figuração heterotópica da memória: Em alguns momentos, no embalo da nostalgia, decidia-se a retornar ao comando de uma nave qualquer. Agitado, compulsava mapas, ou pegava uma velha roda de leme e ia para o alto de um morro para simular ordens de comando. Depois, os altos cumes da Mantiqueira, escondendo-lhe o oceano, e a certeza de que jamais comandaria navios negreiros, faziam com que ele retornasse à rede. Raramente de bom humor, apenas sentia-se feliz quando, de porta-voz em punho, comandava subordinados imaginários. (RUBIÃO, 2010, p. 41)

Examinar mapas; manipular uma roda de leme simulando, do alto, como ao topo da proa de uma nave, ordens de comando; coordenar subordinados imaginados, valendo- se de um porta-voz50 para tal: por meio desses rituais específicos, vinculados a objetos presentes na atividade naval, todos correspondentes às práticas de capitaneio, uma função da memória se exerce em dois atos: de início, a percepção de que o real imediato não corresponde ao espaço imaginado (de um passado irrecuperável), passando pelo contraste entre o ritual de memória e o espaço que já não o aceita, ao menos, não como um ritual dotado de sua funcionalidade anterior (tornada inacessível); em seguida, nesse espaço hostil aos desejos, é o devaneio intermediado pelos objetos (e “apenas” ele) que permite o acesso à felicidade momentânea, que consola, enfim, perante a realidade não- correspondente ao(s) desejo(s). Os objetos, aqui, à semelhança das tatuagens às quais já nos atentamos, agem como espacialidades heterotópicas ao alocar / invocar / possibilitar invocar um espaço memorial intangível ao alcance das mãos. A recuperação memorial por intermédio de objetos e dos rituais de memória conforme observados acima, será retomada quando o narrador se refere também a seu avô e a seu pai: Já o meu avô que nascera em Minas contentava-se em fazer barcos de madeira e colecionar estampas de navios. Desculpava-se

50 Instrumento de forma semelhante à da trombeta, utilizado para a ampliação da voz de quem o utiliza. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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frequentemente de não ter seguido a vocação ancestral, repetindo o velho José Henrique: — Mar? Só em navio negreiro. Talvez desculpasse seu horror por qualquer espécie de água: em seus oitenta anos de vida conheceu somente a que o padre lhe ministrou na cerimônia de batismo. Ante o exemplo paterno, meu pai jamais externou o desejo de ser navegador, nem tampouco abusou dos banhos. (RUBIÃO, 2010, p. 42)

Aqui, as práticas memoriais intermediadas por objetos retornam na fabricação dos barcos de madeira e na coleção das estampas de navios, que vêm responder e recuperar mais a memória familiar relacionada àquela “vocação ancestral” – até o momento, e também adiante, permanecendo relacionada a um único antepassado – do que reminiscências experienciais subjetivas. Esse efeito de sentido é suscitado pela última sentença do primeiro parágrafo, em conjunção com o discurso direto que a segue. Então, um duplo movimento ocorre para contribuir ao processo de descrédito anteriormente iniciado: do avô, nosso narrador relata “seu horror por qualquer espécie de água”, e do pai, a ausência de manifestações do “desejo de ser navegador”, além de uma sugerida aversão por água, relacionando ambos elementos ao exemplo do avô. Na sequência, observaremos a reinscrição do discurso no espaço imediato (“este porto”), além de uma explicitação de que nosso narrador reconhece a intangibilidade do “sonho marinheiro” para seus antepassados, intangibilidade que, como viemos destacando, é apresentada de modo crescente ao longo do conto: “Todavia os insucessos navais de minha família não evitaram que eu viesse para este porto e chegasse um dia a passar fome” (RUBIÃO, 2010, p. 42). No que diz respeito aos “insucessos navais” da família, atentemos ao fato de que o bisavô passa pela experiência naval e é dela apartado, enquanto o avô e o pai sequer o fazem, sendo destacados seus “insucessos” mediante um discurso cujo horizonte visa a navegação como realização quase obrigatória de uma potência ancestral, discurso que também é exterior ao discurso de ambos acerca da matéria (de fato, a voz de ambos é, a rigor, sempre mediada pela voz do narrador). Do avô, nos é dito que ainda reconhece a validade desse discurso e dessa “vocação ancestral”, manipulando um já-dito (“Mar? Só em navio negreiro”), e ressignificando-o como operador de esquiva perante a temida realização da vocação. Já do pai, conforme sua disposição no discurso do narrador, não conheceremos nada além de que “jamais externou o desejo de ser navegador”. A partir daí, nos é narrado como o sujeito discursivo, naquele porto ao qual veio, conhece Alzira, sua futura esposa: ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Devo esclarecer que não a pedi em casamento por causa de sua fortuna e ainda menos pela sua beleza um tanto equívoca: tinha a cara de tainha e o odor de lagostas. Foi pelo odor e não pelo rosto que a escolhi para minha mulher. O nosso casamento durou pouco mais de um ano e terminou com a morte de Alzira, intoxicada por umas sardinhas deterioradas que ela comera no jantar. (RUBIÃO, 2010, p. 42)

Também a escolha da esposa se dá permeada por uma função heterotópica, passível de ser ligada aos discursos anteriores que vinculam a presença feminina às saudades do mar: ele desposa Alzira pelo odor marítimo, não pela beleza ou pelo dote, como sugere que seria o esperado, ao afirmar que “deve esclarecer” suas razões. O corpo da esposa, localizável e tangível, permite, como nos casos anteriores, a recuperação memorial de um espaço (já-)intangível: novamente, o espaço das águas marinhas. Quanto ao relato da morte de sua esposa, ele estrutura-se de modo paralelo ao breve relato da morte do pai do narrador: “Esperei que meu pai fizesse sua última viagem, que, aliás, por pouco não foi marítima – morreu engasgado com uma espinha de peixe – para ir morar no litoral” (RUBIÃO, 2010, p. 40). Se do segundo acontecimento, percebemos a repetição e atualização de sentidos para o léxico “viagem”, do conjunto formado pelos dois acontecimentos podemos apontar a gestação de certos índices discursivos de ironia (manifestadamente, as duas mortes vinculadas ao consumo alimentício de peixes51), em que o mar, figurando como unidade temática, responde indiretamente, por acontecimentos-limite na vida do sujeito discursivo. Afigura-nos que, nesse conto, tantas espacialidades heterotópicas engendradas pela memória, sempre alcançando uma função consoladora (compreendida como a recuperação virtual do que é irrecuperável fisicamente), apontam para uma constituição heterotópica da própria memória como acontecimento discursivo. Adotaremos esse pressuposto para, a partir dele, depreender do trecho seguinte o ápice do processo de descrédito da(s) memória(s) de nosso narrador. Na sequência final do conto, ao notar-se interpelado gestualmente por Ofélia, leremos de nosso sujeito discursivo: vou reiniciar a mesma história do mar, interrompida instantes atrás, porém me detenho diante do seu olhar desaprovador. Sei que ela espera por uma das minhas habituais fantasias e me revolto com a sua incompreensão. — Não, Ofélia. Você podia ser mais tolerante com os meus inofensivos devaneios. Neste lugarejo, espremido entre montanhas, sem

51 Por que não nos lembrarmos do ditado popular que diz: “O peixe morre pela boca”? ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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divertimentos, detestando caçadas e tendo herdado a vocação de meu bisavô marinheiro… Sinto que não fui convincente e insisto com mais vigor: — Ele existiu, juro. Vendo que ela deixou de prestar atenção no que estou falando, desisto: — Perdoe-me, Ofélia, não sei porque insisto em proceder desta maneira. Mas gostaria tanto se aquele meu bisavô marinheiro tivesse existido. (RUBIÃO, 2010, p. 42-43)

Transitando entre o discurso monológico não pronunciado e o discurso direto não- respondido por Ofélia, nosso sujeito discursivo inicialmente não atribui um total descrédito aos relatos memoriais transcorridos até então: ainda que a “mesma história do mar” constitua suas “habituais fantasias”, seus “inofensivos devaneios”, a herança de uma “vocação marinheira” é reafirmada, agora assumida como advinda (unicamente) de seu bisavô. Esse procedimento continua a satisfazer nossa interpretação da memória como espaço heterotópico, coadunando-se com as passagens anteriores do conto e atribuindo aquela função consoladora ao rememorar discursivo, função que, aqui, segue ainda vinculada a uma vocação marinheira familiar. Entretanto, perante a má recepção de Ofélia a esse discurso, ocorre a afirmação / jura de que o bisavô de fato existiu. E o implícito mais facilmente invocável e passível de ser reconstruído para esse enunciado é o questionamento (ou mesmo a negação) dessa existência, uma existência que necessita ser afirmada para ser reconhecida. À necessidade de autoconvencimento (a qual nos referimos em trecho anterior), segue-se a necessidade de convencimento externo: é de outro sujeito social, do outro-interlocutor, que o descrédito agora parte. O relato é, por fim, afirmado completamente fantasioso desde sua pedra basilar: a existência do bisavô, condição de possibilidade de toda a memória familiar manipulada no discurso do narrador, é cercada por um caráter de possibilidade não cumprida e fantasiada. Está descreditado de sua historicidade fundadora o discurso de nosso sujeito. Sua memória, que mantém aquela função consoladora (“gostaria tanto se”), é destituída de qualquer lugar no real histórico, sendo atribuída ao plano da utopia. A utopia, aqui, interpretando Foucault (2006b; 2013), se encontra condicionada por uma idealidade instituída no discurso do sujeito, dada a vinculação desse a territórios discursivos específicos (em outra terminologia, a formações ideológicas) que tanto condicionam a existência dessa idealidade almejada, quanto suas modalidades de manifestação. No caso, funcionando como o domínio condicionante da utopia, a memória mítico-marítima à qual aludimos não é descreditada, permanecendo até certo ponto ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

81 perceptível em sua dispersão social e respondendo, em relação a nosso sujeito narrador, por sua vontade de verdade. Vontade de verdade, isto é, “a oposição do verdadeiro e do falso” como um “sistema de exclusão […] histórico, institucionalmente constrangedor”, sistema que exerce, sobre outros discursos, “uma espécie de pressão e como que um poder de coerção” (FOUCAULT, 2014, p. 13-14; 17). Para o narrador, é a atestação de sua “vocação familiar” e a produção de um caráter de verdade para a história de seu bisavô que modulará e condicionará todo o discurso, inicialmente invocando a memória mítico- maritíma para atestá-lo, por fim invalidando-o por completo ao frustrar sua condição de verdade. Neste ponto, podemos mencionar uma dupla função paradoxal da utopia. Conforme Jacques Rancière (2015, p. 61), ela é o não-lugar, o ponto extremo de uma reconfiguração polêmica do sensível, que rompe com as categorias da evidência. Mas também é a configuração de um bom lugar, de uma partilha não polêmica do universo sensível, onde o que se faz, se vê e se diz se ajustam perfeitamente.

A memória mítico-marítima somente aplica-se sobre o contexto social de nosso sujeito discursivo ao ser invocada por via onírica, sob o signo da quimera utópica (GAMA-KHALIL, 2009, p. 70), o que evidencia a instituição de uma silenciosa opacidade não mais alocada na memória ou a partir dela. De fato, como “o não-lugar” por excelência, a utopia será sempre “um lugar fora de todos os lugares” (FOUCAULT, 2013, p. 8); aqui, fora da memória inclusive, já que, para manifestar-se, essa utopia deve produzir a memória histórico-familiar. Porém, a utopia, dotada de seu caráter de “montagem de palavras e de imagens”, prontifica-se “para reconfigurar o território do visível, do pensável e do possível” (RANCIÈRE, 2015, p. 62). Ao configurar uma idealidade que pressupõe outros modos de ver, ser e fazer, a utopia agirá, com alcances variados, sobre o que é efetivamente localizável. Retornando a Ofélia, meu cachimbo e o mar, afirmaremos que, nesse conto, a utopia precede e regula a memória.

3 POR OUTROS ESPAÇOS Ao nos valermos da possibilidade de tratar dos espaços de (des)continuidade internos do sujeito (sonho, devaneio, memória etc.) em analogia aos espaços físicos, também podemos tratá-los como espaços constitutivamente heterotópicos, dada sua circunscrição localizável (limitados a um corpo posicionado no espaço e mobilizados por

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82 meio do discurso agenciado a partir desse corpo), circunscrição aliada a sua capacidade de suspensão da espacialidade e temporalidade imediatas, responsável por sua função consoladora. Movendo-nos, por fim, da tessitura múltipla do sujeito materializado em discurso rumo às abstrações conceituais, acreditamos ser possível analisar a própria memória discursiva e os implícitos socialmente dispersos como operações ou operadores de um amplo espaço heterotópico. Seriam, portanto, os posicionamentos engendrados pelos implícitos uma materialidade discursiva efetivamente localizável, enquanto às paráfrases e à opacidade dos enunciados caberá, a uma só vez, apontar, desde sua virtualidade, tanto para o passado quanto para o futuro, mas sempre para além. Considerando, a cargo de hipótese, que a leitura de um conto que tematiza a memória pode nos oferecer um ponto de partida para tecer observações acerca da memória em geral, consideraremos, para além do discurso estético, o caráter discursivo da memória fundado em uma composição enunciativa. Ao tratarmos os enunciados como materialidades que “se apropriam dos corpos e os desviam de sua destinação na medida em que não são corpos no sentido de organismos, mas quase-corpos”, isto é, “blocos de palavras circulando sem pai legítimo que os acompanhe até um destinatário autorizado” (RANCIÈRE, 2015, p. 60), ressaltamos o caráter heterotópico desses espaços. Fundados sempre em outro-lugar (“sem pai legítimo”), em seus implícitos discursivos irrecuperáveis, esses “blocos de palavras” agem sobre os corpos desviando programas de ação, inaugurando novos possíveis e apontando a outras partilhas dos modos de ser, ver e fazer: funcionamento no qual estaria baseada aquela função consoladora da memória, conforme a destacamos. Contudo, do caráter desses espaços, o salto completo da heterotopia para a utopia e a demoção de qualquer “realidade” (por mais hostil que nos seja essa palavra) pairam em suas vizinhanças, mantidos tenuemente à distância de um acontecimento discursivo que os imponha como tal, conforme o fim de Ofélia, meu cachimbo e o mar. Para evitar esse procedimento de irrealização, no nosso caso, da memória, uma última consideração é que uma analogia mais precisa, reportando-nos a uma análise de Foucault, talvez consistiria em tratar a memória como um espaço mediano entre a utopia e a heterotopia tal qual o pensador se refere ao espaço físico do espelho (2006b, p. 415): um lugar sem lugar, um espaço real-irreal, que, ao ser acessado pelo sujeito em seus discursos, até certo ponto localizáveis desde sua materialidade, institui, retroativamente,

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83 a percepção do acontecimento como presente, mas também a percepção de suas fundações virtuais. Percepções cujo jogo de dupla delimitação, possibilitariam a introdução de “linhas de fratura, de desincorporação” nos “corpos coletivos imaginários”, tal qual Rancière (2015, p. 60) observa no caso dos discursos ficcionais. Do inalcançável, se estabelece a relação com o presente discursivo, tanto definindo o acontecimento e o explícito como tais, quanto definindo o implícito como memorial e intangível. Assim, a memória discursiva funcionaria, como o espelho, no sentido em que […] torna esse lugar que ocupo [ocupamos], no momento em que me olho no espelho[, ou em que mobilizamos implícitos em nosso discurso], ao mesmo tempo absolutamente real, em relação com todo o espaço que o envolve, e absolutamente irreal, já que ela é obrigada, para ser percebida, a passar por aquele ponto virtual que está lá longe. (FOUCAULT, 2006b, p. 415, grifos nossos)

A memória, desta maneira, como em nossa epígrafe, nos possibilitaria viver no frágil tempo presente, justamente produzindo-o, mas, para tal, negando que ele se fundamente – ao menos como discurso – em si próprio. Daí a potência utópica da memória agir sobre o real, de modo análogo ao que Rancière (2015, p. 59) atribui aos enunciados literários: a memória define “modelos de palavra ou de ação, mas também regimes de intensidade visível”; ela traça “mapas do visível, trajetórias entre o visível e o dizível, relações entre modos do ser, modos do fazer e modos do dizer”; ela define “variações das intensidades sensíveis, das percepções e capacidades dos corpos”. É assim que, como os discursos literários, nossas memórias, apropriando-se de nossos corpos cavam distâncias, abrem derivações, modificam as maneiras, as velocidades e os trajetos segundo os quais [nossos corpos] aderem a uma condição, reagem a situações, reconhecem suas imagens. Reconfiguram o mapa do sensível confundindo a funcionalidade dos gestos e dos ritmos adaptados aos ciclos naturais da produção, reprodução e submissão. (RANCIÈRE, 2015, p. 59)

E essa similitude de funcionamento àquele do discurso literário, talvez, ainda que fragilmente, justifique especularmos, a partir do espaço delimitado de um conto, acerca do espaço jamais circunscritível da memória e de sua função utópica. Função nunca realizada exatamente como idealizada, porém, sempre capaz de instituir no real, seja na tênue duração de uma reminiscência, seja numa inscrição sobre a pele, seja nos rituais e nos objetos do relembrar, aquela “verdadeira heteronímia das coisas” da qual Barthes nos falava.

REFERÊNCIAS ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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RECEBIDO EM: 12/10/2017 | APROVADO EM: 30/10/2017

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O ESPAÇO COMO CAUSADOR DO MEDO EM WILLIAM WILSON, DE EDGAR ALLAN POE

Vitor Rodrigues Soares Universidade Federal de Uberlândia - UFU

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar o conto “William Wilson” (2012), de Edgar Allan Poe, a fim de identificar como o espaço ficcional é responsável por desencadear, dentre outros efeitos, o medo nessa narrativa do autor norte-americano. O conto tem como tema central a aparição sobrenatural do duplo, uma réplica exata da personagem principal que funciona como uma exteriorização de sua consciência, capaz de originar reflexões e questionamentos acerca de sua identidade. A espacialidade gótica de Poe, construída com base na circunscrição fechada do espaço que ele defendia, encurrala a personagem ao situá-la frente ao seu duplo, e possibilita a manifestação do insólito ficcional. A partir de teorias a respeito da Literatura Fantástica e do Espaço Ficcional, desenvolvidas por teóricos como Filipe Furtado, Remo Ceserani, Gama-Khalil e o próprio Poe, este estudo estabelece uma ponte entre o medo e a fenomenologia meta- empírica para averiguar os procedimentos narrativos utilizados tão comuns à controversa Literatura Gótica de Edgar Allan Poe. PALAVRAS-CHAVE: William Wilson. O Duplo; Espaço. Literatura fantástica. Edgar Allan Poe.

Space as cause of fear in William Wilson, by Edgar Allan Poe

ABSTRACT: The presente work aims to analyze Edgar Allan Poe’s tale, “William Wilson” (2012), in order to identify how the fictional space is responsible for causing, among other effects, fear in the north-american author’s narrative. The tale has as its central theme the supernatural apparition of the double, an exact replica of the main character that works as an exteriorization of his consciousness, capable of originating questions about his own identity. Poe’s gothic spaciality, built upon his conception of a close circumscription of space, corners the protagonist by placing him in front of his double, enabling the manifestation of the uncanny. From the theories on Fantastic Literature and Fictional space, developed by theoreticians such as Filipe Furtado, Remo Ceserani, Gama-Khalil and Poe himself, this study links fear and the meta-empirical phenomenology to verify the commonly used narrative procedures in Edgar Allan Poe’s Gothic Literature. KEYWORDS: William Wilson. The Double. Space. Fantastic Literature. Edgar Allan Poe.

A influência exercida por Edgar Allan Poe na produção artística moderna é inegável, começando com a literatura e atingindo outras áreas do conhecimento, como a psicanálise, através de sua produção transgressora, incomum e atemporal. Sua obra literária é amplamente reconhecida tanto por grandes nomes do cânone da literatura mundial, como Charles Baudelaire, Fiodor Dostoiévski e Julio Cortázar, quanto por ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

86 artistas da atualidade como Stephen King, Neil Gaiman e Tim Burton. A produção artística de Poe é conhecida pela capacidade de causar inquietações perturbadoras no leitor, abarcando tópicos como loucura, medo, ódio, assassinatos, vinganças e manias, de forma a trabalhar com o mais obscuro da alma humana. De acordo com Colucci (2008), o objetivo de Poe com seus temas escabrosos era justamente refugar o óbvio, através de elementos grotescos e estranhos trazer a ‘’beleza dupla, noturna, meduséia, além-túmulo e decadente’’ (COLUCCI, 2008, p. 3). Característica de seus trabalhos permeados por esses temas góticos, o esmero de Poe na construção dos elementos narrativos é outro destaque de sua grande habilidade como contador de histórias. Nenhuma de suas palavras é escolhida aleatoriamente, de forma que o conjunto de sua obra seja arquitetado para causar o efeito desejado. A atenção de Poe aos detalhes se reflete em sua minuciosa construção do espaço ficcional, elemento narrativo que é foco direto ou indireto em seus ensaios Filosofia do Mobiliário e Filosofia da Composição. Os ensaios são importantes para que reconheçamos Poe não apenas pela sua ficção, mas também pela perspectiva teórica (COLUCCI, 2017, p.76) e suas contribuições no estudo estético da literatura gótica. A natureza não convencional de seus trabalhos, no entanto, foi responsável por afastar o autor norte-americano do cenário literário da época, obtendo sua estima tardiamente. Nas palavras de Luciana Colucci (2008, p. 2), a exclusão do autor “ocorre em virtude de Poe não apresentar uma literatura que fosse conveniente aos rígidos padrões morais e à estrutura familiar puritana que certamente não aceitava a presença de temas polêmicos e de personagens peculiares”. É através das peculiaridades da obra do autor que estabelecemos aqui uma relação entre o gótico de Poe e as teorias sobre a literatura fantástica, a fim de compreender como o espaço ficcional é responsável por causar o medo no conto ‘’William Wilson’’ (2012). Notamos a importância do espaço ficcional pela compreensão de como este atua na manifestação e construção de uma multiplicidade de sentidos nas narrativas literárias. É através do espaço que a literatura se estabelece e se organiza em sua rede de sentidos. Gama-Khalil define que ‘’O espaço ficcional possui admirável relevância na constituição de sentidos da narrativa literária, uma vez que os acontecimentos ficcionais só conseguem edificar-se por intermédio de uma localização que lhes dê suporte e sentido.’’ (2012, p. 29). Compreender a função do espaço na obra de Poe pelo viés da Literatura Fantástica revela-se de grande importância, visto que a natureza da literatura gótica está diretamente relacionada àquela, uma vez que ‘’o mundo soturno e inquietante do gótico é o espaço

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87 ideal para a encenação de narrativas em que algum elemento fantástico, sobrenatural ou meta-empírico irrompe’’ (GAMA-KHALIL, 2017 p. 186). Utilizamos, neste artigo, os conceitos desse campo de estudo pelas óticas de Filipe Furtado, Remo Ceserani e David Roas a respeito da natureza dos acontecimentos insólitos na narrativa literária. Relacionando-se às postulações de Todorov (2004) de que a hesitação é primordial para instauração do fantástico, Filipe Furtado sugere que o fantástico irrompe na literatura através da ambiguidade. Para o teórico: De facto, a essência do fantástico reside na sua capacidade de expressar o sobrenatural de uma forma convincente e de manter uma constante e nunca resolvida dialética entre ele e o mundo natural em que irrompe, sem que o texto alguma vez explicite se aceita ou exclui inteiramente a existência de qualquer deles. Em consequência, a primeira condição para que o fantástico seja construído é a de o discurso evocar a fenomenologia meta-empírica de uma forma ambígua e manter até ao fim uma total indefinição sobre ela. (FURTADO, 1980, p. 36)

Furtado define também que essa fenomenologia meta-empírica se manifesta de duas formas: o sobrenatural positivo e o sobrenatural negativo. Os conceitos opostos referem-se às ideias de Bem e Mal e, para o autor, apenas o sobrenatural negativo é de interesse ao gênero fantástico. É por meio do sobrenatural negativo, transgressor da ordem natural, que o confronto entre o real e o irreal acontece. As manifestações extranaturais que entram em conflito com o ser humano ou as forças da natureza normalmente estão relacionadas às forças do Mal. Relacionando-se a essa ideia do sobrenatural negativo, os conceitos de Roas se assemelham na medida em que defende que a Literatura Fantástica depende do confronto com o ameaçador, o incompreensível que rompe o familiar e causa medo no receptor. Todorov recusa a ideia de que o medo seja essencial para o fantástico, recorrendo à justificativa de que essa é uma característica que depende da recepção do leitor. Como aponta García (2013), isso seria uma forma de Todorov se afastar de conceitos que poderiam desestruturar suas definições exatas acerca da Literatura Fantástica. Contrariando o teórico búlgaro, Roas afirma que ‘’el miedo es una condición necesaria para la creación de lo fantástico, porque es su efecto fundamental, producto de esa transgreción de nuestra idea de lo real’’ (apud GARCÍA, 2013, p. 12). O autor ainda esclarece que o fantástico não depende exatamente ‘’[d]a aparição de um fenômeno sobrenatural (em seu sentido mais tradicional), porque a transgressão se gera mediante a irresolúvel falta de nexos entre os diversos elementos do real’’ (ROAS apud GARCÍA, 2013, p. 18). Tal definição pode ser aplicada ao trabalho de Poe, cujos temas e

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88 personagens, em sua maioria, podem ser localizáveis no mundo prosaico, mas sofrem essa reorganização do real que transforma o familiar em estranho e ameaçador. Ceserani (2006), em O Fantástico, elenca esquematicamente o que define como ‘’Procedimentos formais e Sistemas temáticos do Fantástico’’ a fim de reunir as diferentes combinações de ‘’estratégias retóricas e narrativas, artifícios formais e núcleos temáticos’’ (2006 p. 67) que aparecem com frequência nessa modalidade literária. Mas o autor ressalta que ‘’Não existem procedimentos formais e nem mesmo temas que possam ser isolados e considerados exclusivos e caracterizadores de uma modalidade específica. Isso vale para o fantástico mas também para todos os outros possíveis modos de produção literária.’’ (2006, p. 67). Ele ainda explicita que cada um desses artifícios retóricos e narrativos pode constituir diversos modos literários. Ceserani justifica sua esquematização devido ao grande volume de textos homogêneos dentro do modo fantástico, abarcando diversas das características que ele estabelece. Desse modo, utilizaremos aqui algumas definições de Ceserani pertinentes para orientação de nossa análise, assim como alguns conceitos dos teóricos expostos acima, no que concerne às diferentes formas de estudar e teorizar a Literatura Fantástica. Para os Procedimentos formais, nos orientamos pelos seguintes tópicos: 1) A narração em primeira pessoa, procedimento narrativo da enunciação potencializado pelo modo fantástico, amplamente utilizado pela literatura de confissão nos romances epistolares do século XVIII; 2) Um forte interesse pela capacidade projetiva e criativa da linguagem, que é aproveitada pelo modo fantástico graças a suas potencialidades criativas da linguagem. Ceserani exemplifica esse procedimento mencionando E. T. A. Hoffmann: Hoffmann, como vimos, constrói toda uma novela, ‘’As aventuras da noite de São Silvestre’’, em torno do núcleo semântico gerado pela palavra alemã der Haken, trazendo as imagens perturbadoras dos perigos e armadilhas que fragmentam o nosso eu. [...] O modo fantástico utiliza profundamente as potencialidades fantasiosas da linguagem, a sua capacidade de carregar de valores plásticos as palavras e formar delas uma realidade. (2006, p. 70)

3) Envolvimento do leitor: surpresa, terror, humor. Através do envolvimento do leitor pelo conto fantástico, ele é levado de um mundo familiar que o surpreende, disparando ‘’os mecanismos da surpresa, da desorientação, do medo’’ (2006, p.71); 4) Passagem de limite e de fronteira, que explica a comum ocorrência em contos fantásticos da passagem de uma dimensão para outra: normalmente do cotidiano e familiar para o perturbador; 5) Objeto mediador. Esse objeto, ligado à passagem de limite, seria a prova

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89 concreta de que o personagem realmente realizou uma viagem entre dimensões, quando o real e o imaginário se cruzam. Para os Sistemas temáticos, os tópicos considerados relevantes foram: 1) A noite, a escuridão, o mundo obscuro e as almas do outro mundo. Ceserani diz que ‘’A ambientação preferida pelo fantástico é aquela que remete ao mundo noturno’’ (2006, p. 77) e aborda como o contraste entre luz e escuridão, racionalidade e loucura, são aspectos bastante utilizados no fantástico. Tais aspectos são notáveis na obra de Poe, e presentes nos momentos cruciais do conto aqui analisado; 3) O duplo, tema principal de ‘’William Wilson’’ (2012). O tema é antigo e já amplamente desenvolvido na literatura, rompendo a unidade do ser e manifestando sua consciência. O duplo, nos textos fantásticos, ‘’se torna mais complexo e se enriquece, por meio de uma profunda aplicação dos motivos do retrato, do espelho, das muitas refrações da imagem humana’’ (CESERANI, 2006, p. 83); 4) A aparição do estranho, do monstruoso, do irreconhecível. O duplo no conto de Poe aparece tanto como um retrato exato do protagonista, quanto como um estrangeiro, quase que irreconhecível aos olhos de seu original. Como evidenciado, a relevância do medo e das forças do mal como uma das possíveis características da manifestação do fantástico, as fontes citadas nesse estudo endossam a análise que aqui estabelecemos sobre o conto ‘’William Wilson’’(2012), de Poe. O conto, lançado originalmente em 1839, tem como foco principal as manifestações do duplo do protagonista na narrativa. De acordo com Otto Rank (2013), o duplo normalmente se manifesta através da projeção de um conflito interno, mas que traz consigo o medo de confrontar essa figura. Esse Eu duplicado se torna uma aparição assustadora como uma forma diabólica, com o propósito de atormentar a personagem. Através da ótica da personagem William Wilson, o duplo (detentor de mesmo nome, aparência e nascimento) apresenta-se como seu arqui-inimigo, rival intelectual que William desde sua chegada no internato de Dr. Bransby. Seu sósia intriga William através de manifestações que vão além do que entendemos como real, revelando ser para a personagem um monstro temido, assumindo essa visão de Furtado do sobrenatural negativo. Sua natureza, no entanto, é benéfica quando, em todos os confrontos com a personagem, aparece para impedir William de cometer atos imorais como trapacear num jogo de cartas ou cortejar a esposa de seu anfitrião. Apesar disso, William o vê como uma ameaça, atribuindo ao sósia um caráter negativo típico de diversos outros duplos em narrativas literárias.

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No começo do conto, a personagem William Wilson começa narrando a respeito de sua vil índole, causadora de indizível sofrimento e horror, advinda de sua forte e incontrolável personalidade. Ao iniciar a narração a respeito das lembranças de sua vida juvenil, o primeiro elemento a ser descrito pela personagem é a estrutura do prédio elisabetano, situado em um vilarejo na Inglaterra, em que estudava: antigo, grande, irregular, com inúmeras árvores gigantes e contorcidas, muros de tijolos altos encimados por cimento com cacos de vidro e um portão pesado que inspirava temor. Ironicamente, William descreve que esse lugar soturno como: [...] um lugar onírico e que trazia paz ao espírito, esse antigo e venerável povoado. Nesse exato momento, em minha imaginação, sinto o revigorante frescor de suas alamedas profundamente sombreadas, inspiro a fragrância de seus incontáveis absurdos e torno a estremecer com indefinível deleite sob o repique profundo e cavernoso do sino da igreja rompendo, de hora em hora, com seu troar repentino e taciturno, a quietude da fusca atmosfera em que se encrava serenamente o dilapidado campanário gótico. (POE, 2012, p. 26-27)

O ambiente escolar que funciona como ‘’um lugar onírico e que trazia paz ao espírito’’ para o narrador-personagem é constituído justamente por elementos que teoricamente se opõem ao efeito de alívio que o prédio traz: o campanário gótico; os altos muros de tijolos cobertos de cacos de vidro; o portão pesado, que inspirava temor; e, principalmente, o prédio irregular e excêntrico. A descrição de William para o edifício em que vivia e estudava beira o irreal. Sua estrutura é deveras complexa para que uma mente humana consiga conceber sua totalidade, de tal modo comparável a um labirinto. A ambiguidade desse prédio insólito encaixa-se perfeitamente na transformação da conduta da personagem, instaurando esse espaço de conflito que ‘’sugere uma preparação para a chegada do duplo de William Wilson‘' (PEREIRA, 2008, p. 284). O outro Wilson surge para William como forma de desarranjar seus espaços familiares. O estabelecimento dessa ambiguidade, pelo conceito de Furtado (1980), evoca o sobrenatural negativo que se sobrepõe a esse espaço e o destitui sua capacidade de trazer alívio, graças a presença do duplo. Mas os efeitos desse duplo, no entanto, contrastam com o motivo de sua aparição que, retomando Rank (2013), funciona como um alerta benéfico. A própria personagem reconhece esse fato e faz notar: Já falei mais de uma vez dos repulsivos ares protetores que assumia em relação a mim, e da interferência frequente e obsequiosa com minha vontade. Essa interferência muitas vezes ganhava o caráter indesejável de um conselho; conselho não abertamente dado, mas sugerido ou insinuado. Eu recebia isso com uma aversão que ficava mais forte a cada ano que passava. E contudo, nesse dia distante, que me seja

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permitido lhe fazer a pura justiça de admitir que não consigo me recordar de uma ocasião sequer em que as sugestões de meu rival tenderam pelo lado desses erros ou tolices tão comuns a sua idade imatura e aparente inexperiência; que seu senso moral, no mínimo, quando não seus talentos gerais e sabedoria mundana, eram de longe muito mais penetrantes que os meus; e que eu poderia, hoje, ter me constituído num homem melhor e, desse modo, mais feliz, houvesse com menos frequência rejeitado os conselhos manifestados naqueles sussurros significativos que na época com tanta veemência odiei e com tanta amargura desprezei (POE, 2012, p. 34)

A invasão do duplo é de tamanho tormento para William que sua presença se torna intolerável. Seu semelhante, cujos atos ao mesmo tempo imitam e contradizem os de William, perturbam sua existência num ponto em que a personagem decide pregar uma peça para que Wilson sinta ‘’toda a extensão da malevolência de que estava imbuído’’ (POE, 2012, p. 35). É nesse momento que se inicia uma sequência de grandes conflitos durante o conto: o confronto direto com sua imagem espelhada que desestabiliza completamente as percepções de William, levando-o a extremo terror. Resgatando a definição de passagem de limite por Ceserani (2006), os momentos de encontro com o duplo representam com mais exatidão ‘’a passagem da dimensão do cotidiano, do familiar e do costumeiro para a do inexplicável e do perturbador’’ (CESERANI, 2006, p. 73). A alteração da atmosfera espacial também pode ser explicada através dos conceitos de espaços topofílicos e topofóbicos. Com base em autores como Bachelard (1998), Colucci define que: Do castelo de Drácula para A Casa de Usher, de um castelo para uma casa, de uma casa para uma câmara, de um espaço para um contra espaço, a espacialidade gótica é apresentada como um lugar topofílico que se transforma em um topofóbico, uma arquitetura hostil e intrincada que utiliza de locais circunscritos e misteriosos e ornamentos para invocar medo e ansiedade (2017, p. 3, tradução nossa)

A partir da decisão de William de enfrentar Wilson para pregar uma de suas peças, a atmosfera soturna e aterrorizante de Poe mostra sua força, quando seus ‘’mecanismos de surpresa’’ (CESERANI, 2006, p. 71) atuam sobre a personagem e o leitor. Dividimos aqui, para efeito dessa análise, quatro situações específicas do conto que nos permite averiguar os elementos utilizados por Poe na construção espacial e que colaboram para que a personagem William seja encurralada por sua imagem psíquica. O primeiro momento acontece quando William, já ameaçado pela presença de Wilson, decide encontrá-lo em seus aposentos para confrontá-lo. O quarto de Wilson já denota o caráter fantástico de tal acontecimento, visto que, enquanto a maioria dos

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92 aposentos dos alunos são compartilhados, o de Wilson é um mero cubículo ocupado por apenas ele mesmo. O isolamento de seu dormitório possibilita o confronto isolado que William planeja, de modo que fique a sós com essa figura que tanto insiste em imitar seu ser. William adentra o quarto sem fazer algum barulho, coloca sua lamparina de fora do quarto como um quebra-luz e, após verificar que Wilson dormia, através das cortinas que cobriam sua cama, revela seu rosto com a lamparina. ‘’Eram aquelas – aquelas as feições de William Wilson?’’ (POE, 2012, p. 36) indaga-se a personagem, que demora a assimilar a possibilidade de Wilson possuir, além de todas as outras características, o mesmo contorno de sua figura. O efeito que sofre de sua descoberta é estarrecedor: Olhei; - e um entorpecimento, uma gelidez de sensações instantaneamente invadiu meu corpo. Meu peito arfou, meus joelhos vacilaram, todo o meu espírito ficou possuído de um horror inapreensível, e contudo intolerável. [...] Tomado de terror, e tremendo convulsivamente, apaguei a luminária, saí silenciosamente da alcova e deixei, incontinente, as dependências do antigo ateneu para nunca mais voltar. (POE, 2012, p. 35-36)

A cena descrita estabelece alguns padrões para os acontecimentos que se sucedem. A começar, o espaço fechado do dormitório é responsável por encurralar a personagem pela sua imagem psíquica. Isso é notado desde o começo pela irregularidade do prédio escolar até os momentos finais nos encontros com o duplo. Poe, inclusive, retrata em A Filosofia da Composição (1999) a importância que deu a esse fato no poema O Corvo, já que não considerava o espaço como mera unidade de lugar: O ponto seguinte, a ser considerado, era o modo de juntar o amante e o Corvo: e o primeiro ramo dessa consideração era o local. Para isso, a sugestão mais natural seria a de uma floresta, ou a dos campos; mas sempre me pareceu que uma circunscrição fechada do espaço é absolutamente necessária para o efeito do incidente insulado e tem a força de uma moldura para um quadro. Tem indiscutível força moral para conservar concentrada a atenção e, naturalmente, não deve ser confundida com a mera unidade de lugar. (POE, 1999, p. 5-6)

O quarto isolado de Wilson, parte da organização insólita do prédio, a escuridão completa do ambiente e a fraca luz como contraste ao ambiente noturno direcionam William para os primeiros indícios de que Wilson é, na verdade, ele mesmo. Dialogando com um dos temas propostos por Ceserani (2006), Colucci afirma que, através do jogo e luz em seus contos, ‘’Poe esboça uma atmosfera noturna em que uma personagem está constantemente em luta com algo que está além de uma realidade racional.’’ (2017, p. 170, tradução nossa). Dessa forma, a personagem sucumbe ao medo e, hesitando frente ao invasor, decide fugir.

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Na sequência, depois de alguns meses transcorridos, suficientes para que os acontecimentos supracitados tenham enfraquecido na memória de William, este se encontra estudando em Eton, onde desenvolve seu vício pelo vinho e por ‘’outras e talvez mais perigosas seduções’’ (2012, p. 37). Em um dos momentos regidos pelo vício, William convida a seus aposentos colegas de Eton para uma bebedeira sigilosa. Quando a aurora despontava, com o céu ainda cinza, um dos criados chama William informando que há alguém que deseja falar-lhe com urgência. A personagem desce para receber a visita no cômodo baixo e escuro, iluminado apenas pelas fracas luzes da aurora que surgem através de uma janela semicircular, quando se depara com seu duplo. Réplica perfeita, esse estranho não é reconhecido pela ótica embriagada de William, cujo rosto não distingue. É nesse momento que o duplo agarra o braço de William que, ao ouvir o sussurro de seu nome, fica sóbrio instantaneamente. Previamente, no conto, William narra que Wilson possuía uma deficiência em seu aparelho faucal, fazendo com que ele falasse em tons baixos, como sussurros. Esses sussurros, como ecos da voz de William, são um elemento da construção deste personagem que Poe utiliza para evocar absoluto terror na personagem. Essa característica do conto retoma o que Ceserani (2006) define como capacidade projetiva da linguagem, onde se concentra as potencialidades fantasiosas da linguagem na literatura. O termo sussurro, dotado de significado, aparece em todos os confrontos entre o eu e seu duplo de forma a completar a imagem refletida do eu, fragmentando-o. O terceiro momento acontece após a transferência de William para Oxford, onde seu temperamento e vícios são catalisados, a ponto de se tornar um jogador por profissão, que reconhece como sendo uma posição muito abaixo de seu nível. William revela sua dissimulação ao assumir o perfil de jovem franco e generoso enquanto aumenta sua fortuna habilmente derrotando seus colegas nos jogos. Dois anos após os proveitos de sua tática, a personagem marca um jogo de cartas com um novo aluno chamado Glendinning, também detentor de vasta riqueza. Fazendo com que Glendinning beba com fartura, William encurrala-o de modo que seu adversário acumule uma dívida exorbitante. Somado ao desespero do novo aluno e aos olhos de piedade dos espectadores, William sente-se embaraçado e angustiado. Nesse momento, quando os sentimentos de uma culpa dormente emergem, as portas duplas do aposento são abertas por um estranho. Todas as velas do quarto são apagadas, e a escuridão se instaura. O silêncio permanece até que o intruso se pronuncia, com uma voz baixa como um sussurro. Ele alerta a todos a respeito

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94 da trapaça de William, revelando sua tática desonesta de esconder as cartas dentro de seu manto para vencer as disputas. Após denunciar o desvio moral de William, a figura misteriosa desaparece. Os colegas de William descobrem seus planos e o convidam a retirar-se de Oxford. Antes de retirar-se, porém, um fato o surpreende: um de seus colegas o entrega na porta do aposento seu manto de pele, de alta qualidade. William é tomado pelo horror quando percebe que o manto que pensava já estar usando estava agora dobrado em seu braço e, curiosamente, um manto exatamente igual era usado apenas pela criatura que invadiu o quarto. Esse espelhamento através da vestimenta, também presente nos outros momentos do conto, alerta William com veemência, e ele começa sua fuga. Ele, no entanto, foge em vão, visto que todos seus objetivos são frustrados por Wilson. Até que, em um momento de realização, William se dá conta da verdadeira identidade de Wilson, cujo rosto ainda era indeterminado: Fosse quem fosse Wilson, isso, ao menos, era a mais extrema das afetações, ou das tolices. Seria possível ele supor, por um instante, que em meu admoestador de Eton – no destruidor de minha honra em Oxford – naquele que frustrara minha ambição em Roma, minha vingança em Paris, meu amor apaixonado em Nápoles, ou no que ele falsamente chamou de minha avareza no Egito – que nele, meu arqui- inimigo e gênio do mal, eu pudesse deixar de reconhecer o William Wilson de meus dias escolares – o homônimo, o companheiro, o rival – o odiado e temido rival na instituição do dr. Bransby? (POE, 2012, p. 43-44)

William decide então não se submeter aos domínios de seu duplo, que intervinha sempre que aquele estivesse próximo de executar ações que causariam danos a si mesmo. O quarto momento acontece em Roma, em uma festa mascarada do Carnaval de 18, no palácio do duque napolitano Di Broglio. Enquanto William tentava abrir caminho pela multidão para seduzir a esposa de seu anfitrião, uma mão toca seu ombro, e sussurra em seu ouvido. Era Wilson, com a mesma fantasia e o rosto mascarado. Consumido pelo ódio, William o arrasta para dentro de uma antecâmara escura dentro do salão, invertendo as situações anteriores, onde ele é encurralado pelo duplo. William, tomado por uma força selvagem, crava sua espada no peito de Wilson. Ao cometer o assassinato, William nota, sem muita certeza do que vê, um grande espelho do outro lado da sala. Esse espelho reflete sua própria imagem que anda cambaleante em sua direção. William reconhece, nos últimos momentos, que se tratava Wilson, quando este revela que William matou a si mesmo.

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A importância desse vislumbre do objeto espelho é muito importante para narrativa fantástica, devido sua capacidade de suscitar acontecimentos insólitos através da duplicação do corpo e dos reflexos da alma. Gama-Khalil (2015) atesta que os objetos na literatura não podem ser tomados como meros acessórios do cotidiano, graças a sua potencialidade de transformação de nossas identidades adquirida no texto literário. A figura do duplo, espelhada através de toda a narrativa pelas roupas idênticas, pelos maneirismos copiados e pelos sussurros, finalmente encontra seu lugar no espelho, quando William Wilson olha diretamente para seu eu dobrado, e se reconhece nesse lugar. Com base em seus conceitos de utopia e heterotopia, Foucault define os espelhos da seguinte forma: O espelho, afinal, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho, eu me vejo lá onde eu não estou, em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da superfície, eu estou lá longe, lá onde não estou, uma espécie de sombra que dá a mim mesmo minha própria visibilidade, que me permite olhar lá onde estou ausente: utopia do espelho. Mas é igualmente uma heterotopia, na medida em que o espelho existe realmente, e que tem, no lugar que ocupo, uma espécie de efeito retroativo; é a partir do espelho que me descubro ausente no lugar em que estou porque eu me vejo lá longe. (2001, p. 415)

É por esse deslocamento do sujeito de onde se encontra para se encontrar ‘’lá longe’’ que William se dá conta do ato que cometeu. A incerteza da personagem frente a imagem que vê nos faz questionar a veracidade dos fatos. Mas a insistência de William em afirmar que era realmente Wilson em sua frente, e não ele mesmo, revela sua necessidade imperativa de externar sua consciência para fora de si, que ameaçava a execução de seus planos. O espelho funciona como um meio de William realocar seu sósia, para que possa cometer o assassinato, uma vez que o suicídio é uma ideia inconcebível. Como afirma Rank: O suicida não é capaz de eliminar o medo da morte decorrente da ameaça ao seu narcisismo através de uma anulação direta. Ele recorre apenas a uma possível libertação, o suicídio, mas é incapaz de realiza- lo de outra forma que não a do fantasma de um temido e odiado duplo, porque ele ama demais o seu Eu para causar-lhe dor, ou para admitir a ideia de sua eliminação na prática. (2013, p. 133)

Concluímos a análise desse conto ressaltando a importância do recorte de momentos específicos do conto de Poe que revelam um padrão utilizado pelo autor que, atenciosamente se atendo aos detalhes do espaço e seus objetos, cria uma atmosfera perfeita para o surgimento do insólito em sua narrativa. A circunscrição fechada do espaço, a noite e a escuridão, a quebra luz, os objetos e vestimentas espelhando a

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96 personagem e os sussurros aterrorizantes são elementos fantásticos e espaciais que fomentam a força da história do escritor norte-americano para desenvolver a subjetividade de uma personagem por si mesma. Através de temas obscuros e inquietantes, a narrativa fantástica de Poe é um poderoso veículo para compartilhar seu brilhantismo ao lidar com a natureza humana.

REFERÊNCIAS CESERANI, Remo. O fantástico. Curitiba: Ed. UFPR, 2006. COLUCCI, Luciana. From the Philosophy of Furniture to Topoanalysis: For a Poetic of Space in Gothic Literature. In: As nuances do Gótico: dos Setecentos à atualidade. Rio de Janeiro: Bonecker Ltda, 2017. p. 145-184. ______. A filosofia do mobiliário: por uma poética do espaço gótico. In: Anais do XI Congresso Internacional da ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências. São Paulo: USP, 2008. Disponível em http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/067/LUCIAN A_CAMARGO.pdf. Acesso em 13 de outubro de 2017. FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. FURTADO, Filipe. A Construção do Fantástico na Narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980. GAMA-KHALIL, Marisa M. As teorias do fantástico e a sua relação com a construção do espaço ficcional. In: Vertentes teóricas e ficcionais do Insólito. Rio de Janeiro: Caetés, 2012. p. 29-37. ______. J.J. Veiga e seus turbulentos objetos: espaços de inquietação e de medo. In: Vertentes do Fantástico no Brasil, tendências da ficção e da crítica. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2015. p. 173-187. ______. Projeções do medo e da morte no gótico revisitado por Lygia Fagundes Telles. In: As nuances do Gótico: dos Setecentos à atualidade. Rio de Janeiro: Bonecker Ltda, 2017. p. 145-184. GARCÍA, Flavio. Sem o medo, não há o fantástico. Mas que medo(s)? In: As arquiteturas do medo e o insólito ficcional. Rio de Janeiro: Caetés, 2013. p. 11-22. PEREIRA, Aline B. O espaço fantástico nos contos O gato preto, O retrato oval e William Wilson, de Edgar Allan Poe. In: O espaço (en)cena. São Carlos: Claraluz, 2008. p. 273-288. POE, Edgar A. A Filosofia da Composição. In: Ficcção completa, poesia & ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001. p. 911-920. ______. William Wilson. In: Contos de Imaginação e Mistério. São Paulo: Tordesilhas, 2012. p. 25-47. RANK, Otto. O duplo: um estudo psicanalítico. Rio Grande do Sul: Dublinense, 2013. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.

RECEBIDO EM: 20/10/2017 | APROVADO EM: 22/12/2017

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A REPRESENTAÇÃO DOS NEGROS EM AVENTURAS DE HUCK DE MARK TWAIN

Pedro Felipe de Lima Universidade Federal do Paraná - UFPR

RESUMO: Este artigo discute, a partir de uma perspectiva e abordagem histórica, o modo como os personagens brancos retratam os negros em Aventuras de Huck (1885), romance do estadunidense Mark Twain, com ênfase nos personagens negros que foram escravizados. A história gira em torno da amizade entre Huck, um garoto que foge dos maus-tratos do pai e da criação de uma viúva que o adotara, e Jim, negro escravo que fugira da fazenda em que trabalhava sob regime da escravidão – ambos se unem graças aos seus desejos por liberdade e fogem com o auxílio de uma jangada pelo rio Mississipi, onde viverão muitas aventuras e conhecerão outras regiões dos Estados Unidos. Através das falas de Huck, seu pai e outros personagens, vemos como os negros eram vistos de modo pejorativo e como a humanidade deles era reduzida e até mesmo questionada. O único que consegue, em partes, superar essa visão é Huck, através de sua amizade com Jim. PALAVRAS-CHAVE: Huck Finn. Representações na literatura. Literatura estadunidense.

Representaciones de los negros en Aventuras de Huck, de Mark Twain

RESUMEN: Este ensayo discute, desde un punto de vista basado en una perspectiva y abordaje históricos, la manera como los personajes blancos retratan a los negros en Aventuras de Huck (1885), novela del estadounidense Mark Twain, con énfasis en los personajes negros que estuvieron esclavizados. La historia gira en torno a la amistad entre Huck, un chico que huye de los malos tratos de su padre y de una viuda que lo adoptara, y Jim, negro esclavo que había huido de la hacienda en que trabajaba bajo el regímen de la esclavitud – los dos se unen gracias a sus deseos por la libertad y huyen con el auxilio de una balsa por el río Mississipi, donde viverán muchas aventuras y conocerán otras regiones de los Estados Unidos. A través de algunas citaciones de Huck, su padre y otros personajes, vemos como los negros eran vistos de una manera peyorativa e como su humanidad era reducida e incluso cuestionada. El único que logra, en parte, superar esta visión es Huck, a través de su amistad con Jim. PALABRAS CLAVE: Huck Finn. Representaciones en la literatura. Literatura estadounidense.

INTRODUÇÃO Mark Twain (1835-1910), pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, é considerado por muitos literatos como um dos grandes fundadores da literatura estadunidense, devido ao seu olhar apurado sobre a sociedade de sua época, que se manifesta em seus romances e contos. Sendo assim, ao olharmos para a sua produção ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

98 literária, podemos encontrar dados que nos ajudam a entender os Estados Unidos em que ele viveu – obviamente, devemos ter o discernimento de que as intersecções feitas entre literatura e história devem ser desenvolvidas com cautela, para que não caiamos no lugar- comum de crer que a literatura é uma prova irrefutável de determinados fatos históricos, mas sim compreender que ela é (…) uma forma de ler, interpretar, dizer e representar o mundo e o tempo, possuindo regras próprias de produção e guardando modos peculiares de aproximação com o real, de criar um mundo possível por meio da narrativa, ela (a literatura) dialoga com a realidade a que refere de modos múltiplos, como a confirmar o que existe ou propor algo novo, a negar o real ou reafirmá-lo, a ultrapassar o que há ou mantê-lo. Ela é uma reflexão sobre o que existe e projeção do que poderá vir a existir; registra e interpreta o presente, reconstrói o passado e inventa o futuro por meio de uma narrativa pautada no critério de ser verossímil, da estética clássica, ou nas notações da realidade para produzir uma ilusão de real. Como tal é uma prova, um registro, uma leitura das dimensões da experiência social e da invenção desse social, sendo fonte histórica das práticas sociais, de modo geral, e das práticas e fazeres literários em si mesmos, de forma particular. (BORGES, 2010, p. 98- 99)

Neste ensaio, buscaremos discutir o modo como os personagens brancos retratam os negros no romance Huck Finn52 (1885), do autor supracitado, partindo de um recorte histórico da época em que Twain concebeu que ela deveria se passar – em algum ano entre os primeiros 60 anos do século XIX. Num primeiro momento, traremos algumas informações históricas, para elucidar a discussão sobre o texto que será feita logo em seguida.

OS NEGROS NOS ESTADOS UNIDOS: ALGUNS DADOS HISTÓRICOS É impossível falar sobre a história da população negra dos EUA sem mencionar a escravidão: os negros foram trazidos da África a partir do século XVII para viverem no país como escravos. Vinham, pois, em navios negreiros onde estavam constantemente expostos a situações precárias: água, comida e outros recursos básicos eram sempre escassos, seja pela falta de condições financeiras para mantê-los ou pelos traficantes de escravos crerem que não eram necessários aos indivíduos que ali eram mantidos. E já naquela época os imigrantes europeus, bem como os seus descendentes, iniciaram a

52 Há muitas traduções para o título dessa obra na língua portuguesa, como As Aventures de Huckleberry Finn ou Huckleberry Finn. A que utilizamos para este artigo se chama Aventuras de Huck. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

99 construção da ideia de que os negros não eram cidadãos que podiam ser igualados de nenhuma forma aos brancos vindos da Europa: A distinção entre servos brancos e negros estava ficando bem estabelecida. Naquele ano (1640), quando três servos fugidos, dois brancos e um negro, foram recapturados, o tribunal ordenou que os brancos servissem a seu senhor por mais um ano. Enquanto isso, o negro recebeu a ordem de “servir ao dito senhor ou a seus concessionários pela duração de sua vida natural aqui ou em outro lugar.” (FRANKLIN; MOSS JR, 1989, p. 67 – aspas no original)

Mais de um século depois, quando os Estados Unidos lutavam pela sua independência, tal assimetria entre as duas populações continuava existindo naquele país: O soldado negro não havia, de modo algum, conquistado o direito de lutar pela independência dos Estados Unidos. Na formulação de uma política geral para o serviço militar, pouco depois que o General Washington assumiu o comando, ficou decidido que não era necessário o serviço dos negros. Do conselho de guerra que Washington realizou em 9 de julho de 1775, foi emitida uma ordem aos oficiais de recrutamento para que não alistassem “qualquer desertor das fileiras do clero, vadio, negro ou vagabundo ou qualquer pessoa suspeita de ser inimiga da liberdade da América e nem qualquer um com menos de 18 anos de idade.” (FRANKLIN; MOSS JR, 1989, p. 84 – aspas no original)

Em ambas as citações acima, vemos que a segregação entre negros e brancos, como vários fatos históricos, não aconteceu através de um percurso natural da história, como alguns poderiam ingenuamente afirmar. Ela foi construída de modo arbitrário e consciente, durante muitos episódios e eventos distintos da história dos EUA. No século XIX, com a propagação de ideias pretensamente cientificistas por todo o Ocidente, houve mais um fator que contribuiu para a construção dessa imagem dos negros como pessoas que deveriam viver sob a margem: a disseminação da ideia de que eles eram biologicamente inferiores aos brancos, o que justificaria a sua subalternidade (BRITO, 2014, p. 20). No entanto, tais juízos de valor estavam deixando de ser hegemônicos nos EUA, visto que, a partir do final do século XVIII, vários estados do norte já haviam extinguido a escravidão em seus territórios e concedido alguns direitos políticos às suas populações negras – tal fato só foi possível porque, nos EUA, os estados gozam de maior autonomia política do que em países como o Brasil, por exemplo. Dessa forma, ambas as práticas (de defesa de seus direitos em concomitância à escravidão) geraram um imenso tensionamento no país: A alforria e as sociedades anti-escravistas propagaram-se mais e mais depois da guerra (pela independência dos EUA). Os quakers, que ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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haviam organizado a primeira sociedade em 1775, recebiam agora a adesão de muitos outros grupos nesta e em outras organizações. Em 1785, foi organizada a Sociedade de Nova York para a Promoção da Alforria dos Escravos com John Jay como presidente. Em Delaware, foi criada uma sociedade similar em 1788 e já em 1792 havia sociedades anti-escravistas em todos os estados, de Massachusetts a Virgínia. (FRANKLIN; MOSS JR, 1989, p. 91 – ênfase no original)

Contudo, apenas em 1808 o tráfico de escravos foi proibido nos EUA, de modo que, legalmente, só era permitido ter escravos desde que eles já estivessem no país. Todavia, tal proibição foi pouco eficiente na época, uma vez que os traficantes de escravos continuaram trabalhando clandestinamente, ainda que em menor medida. E mesmo nos estados em que os negros eram vistos como homens livres havia discriminações: em Massachusetts, onde a escravidão acabara no fim do século XVIII, uma lei foi criada em 1862 com o intuito de diferenciar os salários dos soldados negros e brancos, em que estes ganhavam menos que aqueles. Apenas em 1865, graças ao então presidente Abraham Lincoln, a escravidão foi de fato proibida no país inteiro, com a adoção da 13ª emenda criada naquele mesmo ano. Três anos antes, porém, houve o início de um conflito civil entre os estados do sul e do norte chamado Guerra de secessão, que terminou também em 1865. A permanência da escravidão no país foi um de seus temas centrais, o que evidencia que o fim da escravidão não ocorreu sob um clima amistoso e consensual, mas sim em torno de vários conflitos. Cabe observar, com essas breves informações, que a disparidade entre negros e brancos nos EUA existente ainda hoje está calcada em fatos e discursos construídos ao longo da história como os aqui expostos e que ecoam até os dias atuais: para se ter uma ideia, 40% da população carcerária estadunidense é constituída de negros, ainda que eles sejam apenas 12% da população total do país (BBC, 2014). Mesmo diante do fato de que o país já teve um presidente negro, os dados aqui apresentados nos ajudam a visualizar a desigualdade econômica e social que ainda existe em ambos os grupos.

O ROMANCE DE TWAIN Não há marcas explícitas em Aventuras de Huck da época em que a história se passa. Contudo, algumas informações presentes na trama evidenciam que ela provavelmente está situada entre os primeiros 60 anos do século XIX, como, por exemplo, quando personagens comentam que, em vários estados do norte, a escravidão não existe mais, enquanto que tal prática persiste no sul, onde a história se passa. Só é possível, pois,

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101 situá-la mais pontualmente recorrendo a outras obras de Twain: o romance Tom Sawyer (1876) ocorre no mesmo universo de Aventuras de Huck, com vários personagens em comum e se trata de uma história temporalmente anterior a ela. Como parte de seu paratexto, há uma carta ao leitor em que Twain afirma que a trama de Tom Sawyer ocorre “trinta ou quarenta anos antes da época em que foi escrita.” (TWAIN, 2011, p. 5). Dessa forma, Aventuras de Huck provavelmente está inserida na mesma década: entre 1836 e 1846. O enredo do romance gira em torno da amizade entre dois indivíduos que fugiram de onde viviam: o primeiro deles, Huck Finn, que intitula o romance em questão, fugiu da casa de seu pai que o explorava com infinitos afazeres domésticos e que o sequestrou da casa da viúva Douglas, uma rica aristocrata que decidira criar o garoto pois ele não tinha mais com quem mais viver, visto que o pai era uma pessoa de má índole. O segundo, Jim, um negro escravizado, fugira da família que o comprara, já que desejava viver em liberdade. Num dado momento da trama, os dois decidem então partirem juntos numa jangada pelo rio Mississipi – o estado em que moravam e onde a maior parte da história se passa tem esse mesmo nome – rumo a novas aventuras. Vemos, a seguir, uma fala do pai de Huck em que é possível observar de que modo os personagens brancos retratam os negros na obra: — [..] Acabo de ver um negro livre, do Ohio. Era um mulato, quase tão branco como qualquer homem. Usava camisa limpa e chapéu escovado. Não há na cidade quem se vista melhor. Traz relógio de ouro e bengala de castão de prata — a importância personificada! E, mais, dizem que é professor, que sabe o diabo a quatro e fala várias línguas. E isto não é nada. Dizem ainda que pode votar, lá no seu Estado! Parece incrível, mas é a pura verdade. Onde irá parar este país? Era dia de eleições e eu teria votado, se não estivesse tão bêbado; mas quando soube que havia um Estado onde os negros podem votar, gritei bem alto que nunca mais exerceria o meu direito de voto. E todos me ouviram perfeitamente. O país que faça o que bem entender, mas não tornarei a votar. Era de ver a rompância do negro, quando passei por ele. Foi preciso empurrá-lo, pois não me queria dar caminho. Perguntei por que não vendiam aquele negro em leilão — e sabe o que me responderam? Que só poderiam fazer isso, depois que ele tivesse seis meses de residência no Estado. Sim, senhor! Temos um governo que não pode vender um preto antes que ele more seis meses em um lugar! Aqui temos um governo que se intitula governo, pensa que é governo e precisa esperar meio ano para vender um negro vagabundo, ladrão, que anda de camisa branca e… (TWAIN, 1976, p. 24-25)

É nítido que o pai de Huck carrega uma visão preconceituosa e pejorativa dos negros e que está bastante embasada no contexto histórico em que a trama ocorre: para

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102 ele, é absurdo que negros não sejam escravos e tenham o direito ao voto e à instrução intelectual, o que faz com que ele próprio se recuse a votar e, por conseguinte, realiza um protesto individual contra o seu país, recusando-se a tomar decisões por ele. Seu filho, contudo, não partilha da mesma visão do pai e ainda no começo da história o autor nos fornece pistas para que cheguemos a tal conclusão: Huck se opõe quando Tom Sawyer arquiteta uma travessura contra Jim e, ao vê-lo se aprontando para tal, descreve como Tom foi “armar uma das suas contra o pobre Jim.” (TWAIN, 1976, p. 8, grifo nosso) Ou seja, Huck enxerga Jim como um sujeito digno de pena, diferentemente do pai. Mais adiante, vemos também que o garoto não sente ojeriza alguma em relação aos escravos. Tal fato pode ser constatado quando Huck foge e encontra Jim escondido, pois ele também está foragido: Imaginem qual não foi a minha surpresa quando vi Jim, o negro de Miss Watson, levantar-se e espreguiçar-se sonolentamente! Um grito escapou-me: — Helo, Jim! e saltei à sua frente. (…) Disse-lhe depois da minha satisfação em tornar a vê-lo, pois estava certo de que ele não revelaria a ninguém o meu paradeiro. (TWAIN, 1976, p. 34, grifos meus)

O fato de Huck ser criado longe do pai, tão racista e preconceituoso, é talvez o principal fator para que ele não partilhe da mesma visão. Ele não apenas cumprimenta Jim naturalmente como se sente satisfeito em vê-lo – e, pouco depois, decide partir junto com o escravizado numa jangada. É interessante observar como a liberdade é um sonho que os une e que perpassa toda a trama, sendo, pois, um de seus temas centrais. Posteriormente, dois homens se unem à dupla e afirmam ser um rei e um duque vindos da Europa, mas há algumas evidências no texto que mostram que os dois estão, na verdade, mentindo e não passam de charlatões oportunistas – os protagonistas descobrem quem eles de fato são apenas quando a história já está se encaminhando para o seu fim. Vejamos o que o duque diz quando tem alguns de seus bens roubados e pensa que um grupo de escravos o fez: — Os negros nos embrulharam como verdadeiros mestres! disse ele. E eu, como todo o mundo, acreditei na choradeira que fizeram quando foram vendidos! Que nunca mais me digam que essa gente não tem jeito para o palco! Representaram como mestres consumados, os ladrões! (TWAIN, 1976, p. 129, grifos meus)

A citação acima nos mostra que o pai de Huck, que os demais personagens costumam chamar de Velho Finn, não é o único a ter opiniões pejorativas acerca dos

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103 negros. Ainda que o duque não as manifeste com tanta veemência quanto, pois não o dirige diretamente a eles, é perceptível que ele também tem valores racistas e, assim como o pai de Huck Finn, tende a ver os negros sempre como um grupo coletivo e não tem o hábito de individualizá-los. Os farsantes naturalmente se aproveitam da condição vulnerável da dupla que protagoniza esse romance e os exploram diversas vezes sem pudor algum. Huck e Jim tentam se livrar deles em algumas ocasiões, mas nunca obtêm sucesso. Num dado momento, eles chegam ao ponto de vender o escravo por apenas 40 dólares, sendo que Jim disse pouco antes que sabia valer 800: novamente, vemos os negros sendo tratados não somente como mercadoria, mas sendo subvalorizados também sob esse aspecto. Contudo, o fato de conviver com Jim faz com que o Huck seja capaz de repensar esses valores de sua época e analisá-los com maior criticidade, de modo que a constatação de que as ideias expressas por seu pai e pelo duque estejam equivocadas o faça viver um conflito moral. Vejamos a seguinte cena em que, pouco antes de Jim ser feito prisioneiro e escravizado mais uma vez, os dois estão escondidos à noite: Fui dormir, e Jim, como muitas vezes fazia, não me despertou para render a guarda. Quando isto acontecia, ao acordar de manhãzinha eu o encontrava sentado de cabeça entre os joelhos, lamentando seu destino. Eu já sabia que ele pensava na mulher e nos filhos, acabrunhado das saudades que o torturavam, pois era a primeira vez que se separava dos seus. E atrevo-me a afirmar que Jim se preocupava tanto com a sua família como se fosse um branco. Não parece natural, mas garanto que era assim. Durante certas horas da noite, quando me julgava adormecido, ele se punha a lastimar em tom choroso, falando consigo mesmo: “Minha pobre Isabel! Meu pobre Johnny. Acho que nunca mais voltarei a ver vocês! Ai, meu Deus!” (TWAIN, 1976, p. 128-129, aspas no original, grifos meus)

O único modo pelo qual Huck consegue reconhecer a humanidade e os sentimentos de Jim é comparando-o a um branco, conforme podemos observar na citação acima. Além disso, o fato do amigo demonstrar saudades é algo que lhe causa espanto a ponto do protagonista pedir ao leitor que este confie em sua palavra, como podemos constatar no trecho “Não parece natural, mas garanto que era assim.” - (TWAIN, 1976, p.129) Outro possível fator que faz com que Huck se identifique com o Jim é o fato dele próprio se enxergar como alguém inferior. São constantes os seus comentários, ao longo da obra, em que ele se compara a Tom Sawyer e se pergunta se está vivendo alguma aventura que seja tão ou até mais instigante do que as que o amigo vivera no romance que

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104 leva o seu nome. Nesse sentido, há uma clara dicotomia entre os dois: Tom é criado por uma família relativamente estável – ele vive com sua tia e dois primos – e recebe instrução moral e cultural da família, e podemos averiguar tais fatos ao longo da trama quando o vemos citar os inúmeros livros que lera, enquanto a criação e formação de Huck se torna um processo híbrido, uma vez que sua educação é influenciada pela viúva Douglas, seu pai e Jim, que também o aconselha e orienta constantemente ao longo da narrativa. No entanto, os dois também têm algo em comum, que se trata, conforme observado por MARQUES (2009, p. 69), da (...) beleza e a ingenuidade que só uma criança pode ter. Deste modo, Tom Sawyer, tal como o seu amigo Huck Finn, encarnam na perfeição essa ingenuidade: neles tudo é puro e espontâneo. Dos sentimentos que transparecem das suas atitudes, sempre repletas de nobreza e humanidade, até às suas crenças e superstições, algumas delas simplesmente hilariantes, os dois amigos transformam-se em seres humanos ideais. No entanto, em Adventures of Huckleberry Finn (1885), Samuel L. Clemens (nome real de Mark Twain) transporta, desta vez, Huck para uma série de situações probatórias que o conduzirão a um processo de aprendizagem e de questionação da realidade que o rodeia.

É justamente essa conexão entre os dois que faz com que Huck recorra ao seu amigo para que ele o ajude a libertar Jim quando este se encontra aprisionado – não antes, porém, de viver sérios conflitos morais por isso: ao mesmo tempo em que Huck enquanto indivíduo reconhece a humanidade do amigo e quer libertá-lo, ele sabe que vive numa sociedade em que negros são vistos como uma propriedade e, portanto, libertar o escravo seria uma espécie de roubo. Todavia, ele supera tais dilemas, embora não consiga se desvincular da ideia de que negros tenham a sua humanidade diminuída em comparação a dos brancos: (...) Quanto a mim pouco importa a imoralidade do nosso trabalho. Quando me proponho a roubar um negro, uma melancia, ou livro da escola, não me preocupa como o faça, contanto que venha a obter o objeto desejado. O que quero é o negro, a melancia ou o livro; e se com uma picareta posso libertar o negro, ou conseguir a melancia ou o livro, é claro que irei lançar mão de tal instrumento, pouco se me dando o que pensem de mim as autoridades. Que se danem! (TWAIN, 1976, p. 174)

Tom Sawyer, por sua vez, aceita o desafio, o qual encara como mais uma de suas peripécias: o ato de roubar Jim se torna outra de suas façanhas que é teatralmente planejada por dias. Como ele quer se tornar famoso e fazer da fuga do escravo algo digno das aventuras do livro que lia, as ferramentas são escolhidas após exaustivas discussões

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105 com Jim e Huck, além do fato de que Tom insiste para que os dois ponham cobras, escorpiões e aranhas dentro do cativeiro, para que a fuga se torne mais heroica. Ao final da trama, quando Jim já se encontra livre e Tom está acamado por ter levado um tiro, o escravo ajuda o médico que está cuidando do garoto, que também expõe suas opiniões sobre o negro, e Huck as relata: Eu não sabia como agradecer ao médico os elogios que fizera ao pobre negro; e me alegrava por ver que as suas considerações coincidiam com as minhas — pois sempre tive Jim na conta de um bom homem, de um preto com alma branca. Por fim todos concordaram que ele se portara dignamente e merecia recompensa. Prometeram, então, deixá-lo em paz. (TWAIN, 1976, p. 200 - grifos meus)

Mesmo ao final de suas aventuras, Huck não consegue se desvencilhar da dicotomia entre negros e brancos presente ao longo de toda a trama através das vozes dele e dos demais personagens. Levando tal fato em consideração, percebemos que o único negro que eles conseguem ver com outros olhos é Jim, que precisa o tempo todo provar o seu valor apenas por ser quem é. Podemos ver a sua alforria, recebida no final da trama quando verificam o testamento de sua proprietária que faleceu, como uma espécie de recompensa de Twain pelas provações as quais o seu personagem passa, bem como o fato de que, após recebê-la, ele passou a “levar um vidão, sem precisar trabalhar” (TWAIN, 1976, p. 207). O espaço é fundamental para que possamos compreender por que os brancos viam os negros dessa forma, pois Aventuras de Huck é uma trama que se passa num lugar em que “Como os reinos encantados das narrativas folclóricas, o Sul dos Estados Unidos é um lugar de regras próprias onde os homens são reduzidos a estereótipos. Esta é a terra retratada criticamente por Mark Twain em seu romance (Aventuras de Huck) (…)” (SILVA, 2007, p. 8). Dessa forma, negros também estão sujeitos a se verem reduzidos a estereótipos, que no caso são escravos de humanidade questionável e que podem, a qualquer momento, tentar se aproveitar de outrem de quaisquer maneiras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Pudemos observar, ao longo deste ensaio, que o modo como os brancos viam os negros em Aventuras de Huck dialoga com precisão com o contexto histórico em que a história se passa. Na primeira metade do século XIX, o estado de Mississipi era uma das regiões dos EUA que mais tinham escravos (FRANKLIN; MOSS JR, 1989, p. 132), o que ajuda a explicar o modo racista e abjeto como os negros eram tratados. Mesmo o ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

106 próprio Huck só consegue desconstruir essas ideias até certo ponto, devido a força da cultura em que ele está inserido. Não pretendemos de forma alguma, através desse ensaio, endossar a ideia de que esse livro deve ser censurado por conter tais aspectos. Em primeiro lugar, porque se trata de uma obra canônica da literatura estadunidense fundamental para quem queira compreender o passado e presente desse país. Também precisamos lembrar que há outros temas que atravessam a história e merecem a nossa atenção: Twain conseguiu, em Aventuras de Huck, explorar com êxito questões como a infância, o amadurecimento e a alteridade. Por fim, trata-se de um texto literário e a literatura sempre (…) se apresenta com um verdadeiro poder de contágio intelectual que a faz fàcilmente passar de simples capricho individual, para traço de união, em fôrça da ligação entre os homens, sendo capaz portanto, de concorrer para o estabelecimento de uma harmonia entre eles, orientada para um ideal imenso em que se soldem as almas, aparentemente mais diferentes, reveladas, porém, por ela, como semelhantes no sofrimento da imensa dor de serem humanos. (BARRETO, 1956, p. 62)

REFERÊNCIAS BARRETO, Lima. Impressões de Leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956. BBC. Cinco números para ajudar a entender a desigualdade racial nos EUA. 17 ago. 2014. Disponível em: . Acesso em: 08/06/2017. BORGES, Valdeci Rezende. História e Literatura: algumas considerações. Revista de Teoria da história. Goiânia, n. 3, p. 94-109. BRITO, Luciana da Cruz. Impressões norte-americanas sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil escravista. 223 p. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo. FRANKLIN, John Hope.; MOSS JR, Alfred A. Da escravidão à liberdade – A história do negro americano. Tradução de Élcio Gomes de Cerqueira. Rio de Janeiro: Nórdica, 1989. MARQUES, Raquel Tavares Gonçalves Branco. Anatomia da América em Adventures of Huckleberry Finn de Mark Twain: representações urbanas na demanda do ideal pastoril. 140 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Anglo- americanos). Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2009. SILVA, Alexander Meireles da. A subversão pela trapaça: o mito do trickster em Hucleberry Finn. Revista eletrônica do instituto de humanidades. v. VII, Rio de Janeiro, 2007, p. 1-13. TWAIN, Mark. Aventuras de Huck. Tradução de Monteiro Lobato. São Paulo: Brasiliense, 1976. ______. Tom Sawyer. Tradução de William Lagos. Porto Alegre: LP&M, 2011.

RECEBIDO EM: 30/06/2017 | APROVADO EM:06/12/2017

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A PERSONAGEM GREGOR SAMSA NA OBRA A METAMORFOSE, DE FRANZ KAFKA

Alessandra Leles Rocha Universidade Federal de Uberlândia - UFU

RESUMO: A leitura de um texto é sempre um caminho particular. Desse modo, as pessoas podem ler no intuito de obter um mero entretenimento, enquanto satisfação das próprias expectativas, ou no intuito de ir além das linhas e sorver o que se esconde nas entrelinhas, a partir de ferramentas técnicas, conhecidas como operadores de leitura; ou seja, “conceitos-chave para o desenvolvimento de uma análise e interpretação do texto narrativo pautada pela tradição dos estudos acadêmicos” (FRANCO JUNIOR, 2003, p.33). Assim, com o intuito de discutir os princípios teóricos fundamentais do texto literário, essa resenha propõe uma análise da obra A Metamorfose, de Franz Kafka, com foco na personagem principal, Gregor Samsa, a partir da contextualização histórica em que obra foi escrita. PALAVRAS-CHAVE: Operadores de leitura. Personagem. A Metamorfose.

Gregor Samsa in The Metamorphosis, by Franz Kafka

ABSTRACT: Reading a text is always a particular path. In this way, people can read in order to get a mere entertainment, while satisfying one's expectations, or in order to go beyond the lines and sip what is hidden between the lines, from technical tools known as reading operators; in other words, "key concepts for the development of an analysis and interpretation of the narrative text guided by the tradition of academic studies” (FRANCO JUNIOR, 2003, p.33). Thus, in order to discuss the fundamental theoretical principles of the literary text, this review proposes an analysis of The Metamorphosis, by Franz Kafka, focusing on the main character, Gregor Samsa, from the historical context in which the work was written. KEYWORDS: Reading operators. Character. The Metamorphosis.

INTRODUÇÃO Ler para abrir todas as janelas e portas, arejar, para escolher e descobrir os caminhos que nos conduzirão a quem de fato queremos e podemos ser. A leitura de um texto sempre descortina um universo infinito de possibilidades. Mas, para que esse processo seja capaz de proporcionar ao leitor mais do que simples entretenimento e informação, há “conceitos—chave para o desenvolvimento de uma análise e interpretação do texto narrativo pautada pela tradição dos estudos acadêmicos” (FRANCO JUNIOR, 2003, p.33). Tratam-se dos Operadores de Leitura da Narrativa, os quais contemplam os seguintes conceitos: Fábula, Trama, Intriga, Estória,

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Enredo, Personagem, Autor, Narrador, Narratário, Focalização, Tema, Motivos, Motivação, Tempo e Recursos de Subjetivação da Personagem. Assim, tendo em vista todas essas possibilidades de análise e interpretação, este artigo se deterá apenas à Personagem e aos Recursos de Subjetivação da mesma, na obra A Metamorfose, de Franz Kafka, em um recorte do primeiro capítulo. Escrita em 1912, dois anos antes do início da Primeira Guerra Mundial, a referida obra possui uma riqueza contextual imersa nas suas entrelinhas. Naquele momento o mundo aparentava um sentimento esperançoso e de profunda transformação social caracterizado pelo que ficou conhecido como Belle Époque (Bela Época), e a prosperidade econômica, científica e tecnológica já causavam desconforto à sociedade. Nesse contexto emerge o movimento literário Realista, fazendo oposição ao Romantismo1 a partir de uma visão de mundo capaz de retratar de modo crítico a sociedade, os problemas e os costumes da época (ORMUNDO; SCORSAFAVA, 2012; TUFANO, 2012). O Realismo buscou apresentar os fatos pautando-se na descrição da realidade das personagens, sem constituir heróis, sem mascarar seus defeitos2, por meio de uma linguagem simples, próxima do coloquial, que evitasse quaisquer traços de artificialidade no tratamento das relações humanas e das emoções e sentimentos. Desse modo, A Metamorfose consegue retratar muito bem a ansiedade, a opressão e a alienação do homem do século XX. Diante do realismo que experimentava as sensações e comportamentos da sociedade no início do século XX, inevitavelmente A Metamorfose fez surgir um estranhamento literário, o qual transita desde a incômoda repulsa pela personagem até

1 Compreendido entre as duas últimas décadas do século XVIII e os fins da primeira metade do século XIX, a visão romântica do mundo se desenvolveu no preâmbulo das mudanças estruturais da sociedade europeia, concomitantemente ao surgimento do capitalismo. Portanto, condicionada a um contexto sócio histórico e cultural determinado, o qual possibilitou a ascendência da forma conflitiva da sensibilidade enquanto comportamento espiritual definido. A grande ruptura dos padrões clássicos foi o feito mais exterior e concentrado de um rompimento, interior e difuso, no âmago das correlações significativas da cultura. Isso significa uma concepção do mundo relativa a um período de transição, entre o Antigo Regime e o Liberalismo, entre o modo de vida da sociedade pré-industrial e o ethos nascente da civilização urbana sob a economia de mercado entre o momento das aspirações libertárias renovadoras das minorias intelectuais e o momento de conversão ideológica do ideal de liberdade que essas minorias defenderam. (NUNES, 1978; ROSENFELD; GUINSBURG, 1978). 2 Mimese ou mimésis – trata-se da capacidade de imitação o mais próximo da realidade que constitui, segundo a filosofia aristotélica, o fundamento de toda a arte.

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109 certa identificação com a contraditória tessitura das relações humanas. Por meio de uma narrativa metafórica a obra se inicia com a personagem, Gregor Samsa, um caixeiro viajante, explorado pela família e no trabalho, e profundamente infeliz com a própria vida, desperta “de sonhos inquietantes” metamorfoseado em um “gigantesco inseto”; algo impensado para o mundo real. Isso significa que Franz Kafka colocou o leitor diante da chamada Literatura Fantástica3, cujas principais características, nem sempre presentes na sua totalidade em uma obra, são: a existência de elementos mágicos ou fantásticos percebidos com “naturalidade” pelas personagens; a existência de elementos mágicos ou fantásticos dentro de um contexto intuitivo, mas sem maiores explicações ou justificativas; aspectos sensoriais como elementos da percepção da realidade; a realidade dos acontecimentos fantásticos nem sempre são explicáveis ou são prováveis de acontecer; a percepção de tempo é cíclica; distorção do tempo; transformação do cotidiano em uma experiência sobrenatural ou fantástica; e, a existência de preocupação estilística. Segundo Schøllhammer (2012) explica, Na contramão do distanciamento autorreferencial e autorreflexivo, certa literatura procurava, durante o século XX, um sentido mais radical de semelhança liberado do mimetismo referencial. Surgiu uma literatura e uma arte com a utopia de expressar e dar conta da realidade diretamente, em sua consequência, rompendo as fronteiras da representação mimética sem por esse motivo se encerrar na reflexividade sobre seus próprios meios. (SCHØLLHAMMER, 2012, p.132)

Desenrolando-se a partir da trágica e inexplicada transformação da personagem, a narrativa é composta por três capítulos, os quais exploram questões como a crise existencial, a depressão, a solidão, a fuga, a impotência diante dos fatos, pela ótica de Gregor Samsa. O primeiro capítulo narra a metamorfose de Gregor Samsa e seu encontro com a família, o segundo irá narrar o cotidiano de isolamento e rejeição da personagem e o terceiro, o seu fim. Como fundamentação teórica para a análise desse breve recorte, os textos Operadores de Leitura da Narrativa (Arnaldo Franco Junior), A Metamorfose possíveis leituras (Beatriz Hübner) e O parasita da família (sobre "A Metamorfose" de Kafka) (Modesto Carone), serão utilizados.

3 Segundo Todorov (1981), “o fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (p. 16). ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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DESENVOLVIMENTO A leitura e análise interpretativa do primeiro capítulo da obra A Metamorfose, utilizará os seguintes Operadores de Leitura da Narrativa: Personagem e os Recursos de Subjetivação da mesma. Por essa razão, é importante destacar que a narrativa se dá a partir de um narrador onisciente neutro, caracterizado pelo uso de 3ª pessoa; o qual, segundo Franco Junior: Tende ao uso do sumário, embora não seja incomum que use a cena para a inserção de diálogos e para a dinamização da ação e, consequentemente, do conflito dramático. Reserva-se, normalmente, o direito à caracterização das personagens, descrevendo-as e explicando- as para o leitor. (FRANCO JUNIOR, 2003, p.43)

É esse narrador quem apresenta a personagem Gregor Samsa ao leitor: Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos. (KAFKA, 2014, p.1)

Já a personagem Gregor Samsa pode ser definida como de caráter principal, reivindicando para si a atenção e o interesse do leitor, e com tipologia Redonda, ou seja, “[...] aquela que apresenta um alto grau de densidade psicológica, ou seja, marca-se pela alinearidade no que se refere à relação entre os atributos que caracterizam o seu ser (a sua psicologia) e o seu fazer (as suas ações). Noutros termos: apresenta maior complexidade no que se refere às tensões e contradições que caracterizam a sua psicologia e as suas ações”. (FOSTER, 1974 apud FRANCO JUNIOR, 2003, p.39)

Dentro desses princípios, a narrativa de Franz Kafka foi construída apontando para uma ruptura com o padrão mimético proposto pelo Realismo, ou seja, apresentar os fatos pautando-se na descrição da realidade; na medida em que, promove da noite para o dia a metamorfose de um ser humano em um inseto, embora guardando nesse a capacidade cognitiva, “Que me aconteceu? – pensou” (KAFKA, 2014, p.1). O que segundo Hübner (2016) significa que a metamorfose de Gregor vai além da modificação física e cognitiva: embora não seja mais capaz de se comunicar pela linguagem, exilado em seu silêncio, seus pensamentos, raciocínios e sentimentos continuam sendo humanos. Gregor passa também a analisar as coisas que o rodeiam com muito mais atenção. (HÜBNER, 2016, p.2)

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Até perceber-se naquela situação metamórfica, a personagem Gregor Samsa era um simples e infeliz caixeiro viajante, cuja vida limitava-se a um trabalho exaustivo e enfadonho, mas necessário para suprir as necessidades de toda a família. Se ele tinha aspirações de mudança em relação ao quadro de sua vida, o trecho abaixo demonstra a sua imensa dificuldade de ruptura com tais paradigmas. Mesmo agora, na condição metamorfoseada de inseto, Gregor permanece automatizado pela sua rotina social e certo da impossibilidade de se fazer compreendido pelos que o cercam. Isto de levantar cedo, pensou, deixa a pessoa estúpida. Um homem necessita de sono. Há outros comerciantes que vivem como mulheres de harém. Por exemplo, quando volto para o hotel, de manhã, para tomar nota das encomendas que tenho, esses se limitam a sentar-se à mesa para o pequeno almoço. Eu que tentasse sequer fazer isso com meu patrão: era logo despedido. De qualquer maneira, era capaz de ser bom para mim – quem sabe? Se não tivesse de me aguentar, por causa dos meus pais, há muito tempo que me teria despedido; iria ter com o patrão e lhe falar exatamente o que penso dele. Havia de cair ao comprido em cima da secretária! Também é um hábito esquisito, esse de se sentar a uma secretária em plano elevado e falar para baixo para os empregados, tanto mais que eles têm de aproximar-se o bastante, porque o patrão é ruim de ouvido. Bem, ainda há uma esperança; depois de ter economizado o suficiente para pagar o que os meus pais lhe devem – o que deve levar outros cinco ou seis anos – faço-o, com certeza. Nessa altura, vou me libertar completamente. Mas, para agora, o melhor é me levantar, porque o meu trem parte às cinco. (KAFKA, 2014, p.1-2)

E com vistas a realçar essas características da personagem, Franz Kafka também se vale dos chamados Recursos de Subjetivação, vinculados à construção de um tempo psicológico na narrativa, é possível observar como a personagem é descrita em momentos de intensa análise mental, ou seja, “trata-se da representação de um processo mental no qual a personagem dá vazão aos seus pensamentos sem perder de vista a sua posição numa dada situação dramática” (FRANCO JUNIOR, 2003, p.48). Aquela voz suave! Gregor teve um choque ao ouvir a sua própria voz responder-lhe, inequivocamente a sua voz, é certo, mas com um horrível e persistente guincho chilreante como fundo sonoro, que apenas conservava a forma distinta das palavras no primeiro momento, após o que subia de tom, ecoando em torno delas, até destruir-lhes o sentido, de tal modo que não podia ter-se a certeza de tê-las ouvido corretamente. Gregor queria dar uma resposta longa, explicando tudo, mas, em tais circunstâncias, limitou-se a dizer: - Sim, sim, obrigado, mãe, já vou levantar. (KAFKA, 2014, p.2-3)

Todos esses recursos são extremamente válidos na medida em que auxiliam a narrativa desse indivíduo recém-metamorfoseado. Os aspectos psicológicos da

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112 personagem estabelecem uma conexão fundamental com o leitor, para que este consiga perceber todos os vieses dessa tensão dramática resultante de um processo fora do real. Daí, a constante reafirmação da dificuldade de aceitar tamanha transformação, por parte da personagem. Mesclando o tempo cronológico ao tempo subjetivo, Kafka faz bom uso desses recursos para narrar que, embora, o tempo, através do despertador sobre a cômoda do quarto, trouxesse a Gregor Samsa plena consciência de que tudo não era fruto de um pesadelo, a personagem por meio do uso de um jogo psicológico individual ainda sim continuava presa às obrigações cotidianas e sofria com a impossibilidade de agir naturalmente, por conta daquele corpo disforme. A seguir disse a si mesmo: Antes de baterem as sete e quinze, tenho que estar fora desta cama. De qualquer maneira, a essa hora já terá vindo alguém do escritório perguntar por mim, visto que abre antes das sete horas. E pôs-se a balouçar todo o corpo ao mesmo tempo, num ritmo regular, no intuito de rebocá-lo para fora da cama. (KAFKA, 2014, p.4)

Metaforicamente, Kafka revelava como Gregor estava preso ao círculo vicioso e opressor do século XX; já que a importância fundamental do capital na vida das pessoas trazia-lhes o senso do prejuízo financeiro que o não trabalhar ocasiona. No caso de Gregor isso significava romper com a condição de arrimo de família, ou seja, ele não poderia deixar de exercer um trabalho, o qual não lhe despertava interesse e nem maiores retornos profissionais, por conta da pressão familiar que seria exercida sobre ele. - Senhor Samsa – clamou então o chefe do escritório, em voz mais alta -, que se passa consigo? Fica aí enclausurado no quarto, respondendo só por sins e nãos, a dar uma serie de preocupações desnecessárias aos seus pais e – diga-se de passagem – a negligenciar as suas obrigações profissionais de uma maneira incrível! Estou a falar em nome dos seus pais e do seu patrão e peço-lhe muito a sério uma explicação precisa e imediata. O senhor me espanta, me espanta. Julgava que o senhor era uma pessoa sossegada, em quem se podia ter confiança, e de repente parece apostado em fazer uma cena vergonhosa. Realmente, o patrão sugeriu-me esta manhã uma explicação possível para o seu desaparecimento – relacionada com o dinheiro dos pagamentos que recentemente lhe foi confiado – mas eu quase dei a minha solene palavra de honra de que não podia ser isso. (KAFKA, 2014, p.7)

Não bastasse isso, Kafka reforça no trecho acima o fato de que para o patrão, Gregor não passava de mais um funcionário, uma peça qualquer dos meios de produção que poderia facilmente ser substituída e, portanto, qualquer prejuízo não seria dele; mas, do funcionário, que tinha muito mais a perder.

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Desse modo, a inquietude diante daquela situação absurda era tamanha que Kafka não se limita a descrever essa angústia de Gregor em busca de aprender a se locomover dentro daquele novo corpo e ter controle de si mesmo, o que de certa forma, significava saber que não seria possível esconder a verdade da sua nova realidade cotidiana. Ao mesmo tempo em que tudo isso lhe saía tão desordenadamente de jacto que Gregor mal sabia o que estava a dizer, havia chegado facilmente à cômoda, talvez devido à prática que tinha tido na cama, e tentava agora erguer-se em pé, socorrendo-se dela. Tencionava, efetivamente, abrir a porta, mostrar-se realmente e falar com o chefe de escritório; estava ansioso por saber, depois de todas as insistências, o que diriam os outros ao vê-lo à sua frente. Se ficassem horrorizados, a responsabilidade já não era dele e podia ficar quieto. Mas, se o aceitassem calmamente, também não teria razão para preocupar-se, e podia realmente chegar à estação a tempo de apanhar o trem das oito, se andasse depressa. A princípio escorregou algumas vezes pela superfície envernizada da cômoda, mas, aos poucos, com uma última elevação, pôs-se de pé; embora o atormentassem, deixou de ligar importância às dores na parte inferior do corpo. Depois deixou-se cair contra as costas de uma cadeira próxima e agarrou-se às suas bordas com as pequenas pernas. Isto devolveu-lhe o controle sobre si mesmo e parou de falar, porque agora podia prestar atenção ao que o chefe de escritório estava a dizer. (KAFKA, 2014, p.8)

Então, vencido o imobilismo que a metamorfose lhe trouxera, o novo desafio de Gregor era o temor em relação à reação de todos os presentes na casa naquela manhã, ao verem no que ele havia se transformado. Ao contrário de se deixar descobrir pelas outras personagens, Gregor Samsa assume seu protagonismo e diante do inevitável, não permite que o medo seja suficiente para contê-lo. Ele, então, valendo-se da estrutura física de inseto, utiliza os recursos disponíveis para abrir a porta. [...] E, na crença de que estavam todos a seguir atentamente os seus esforços, cerrou imprudentemente as mandíbulas na chave com todas as forças de que dispunha. À medida que a rotação da chave progredia, ele torneava a fechadura, segurando-a agora só com a boca, empurrando a chave, ou puxando-a para baixo com todo o peso do corpo, consoante era necessário. O estalido mais sonoro da fechadura, finalmente a ceder, apressou literalmente Gregor. Com um fundo suspiro de alívio, disse, de si para si: Afinal, não precisei do serralheiro, e encostou a cabeça ao puxador, para abrir completamente a porta. (KAFKA, 2014, p.9)

Devido à complexidade da situação, a personagem a princípio não entra na sala onde se encontravam os demais. Todas as sensações coesão emoções despertadas em Gregor a partir da metamorfose lhe conferem, ao menos, a possibilidade de expressão, ainda que os outros não pudessem compreendê-lo, em razão da sua nova condição física. A metamorfose foi de certo modo libertadora para Gregor, que pode olhar sua existência

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114 de modo claro e objetivo, com uma consciência capaz de romper com anos de automatismo; sobretudo, quanto às relações de trabalho. Os anos exaustivos, como caixeiro viajante, isentos de quaisquer reconhecimentos por parte do chefe, pareciam aguardar ansiosos, ao menos, por uma palavra de solidariedade. Entretanto, o desabafo de Gregor não poderia ser entendido, já que ele não fisicamente humano e, por essa razão, não poderia falar. Como se vê, não sou obstinado e tenho vontade de trabalhar. A profissão de caixeiro – viajante é dura, mas não posso viver sem ela. Para onde vai o senhor? Para o escritório? Sim? Não se importa de contar lá exatamente o que aconteceu? Uma pessoa pode estar temporariamente incapacitada, mas essa é a altura indicada para recordar os seus serviços anteriores e ter em mente que mais tarde, vencida a incapacidade, a pessoa certamente trabalhará com mais diligencia e concentração. Tenho uma dívida de lealdade para com o patrão, como o senhor bem sabe. Além disso, tenho de olhar pelos meus pais e pela minha irmã. Estou a passar por uma situação difícil, mas acabarei vencendo. Não me torne as coisas mais complicadas do que elas já são. Eu bem sei que os caixeiros-viajantes não são muito bem visto nos escritório. As pessoas pensam que eles levam uma vida estupenda e ganham rios de dinheiro. Trata-se de um preconceito que nenhuma razão especial leva a considerar. Mas o senhor vê as coisas profissionais de uma maneira mais compreensiva do que o resto do pessoal, isso vê, aqui para nós, deixe que lhe diga, mais compreensiva do que o próprio patrão, que, sendo o proprietário, facilmente se deixa influenciar contra qualquer dos empregados. E o senhor bem sabe que o caixeiro-viajante, que durante todo o ano raramente está no escritório, é muitas vezes vítima de injustiças, do azar e das queixas injustificadas, das quais normalmente nada sabe, a não ser quando regressa, exausto das suas deslocações, e só nessa altura sofre pessoalmente as suas funestas consequências; para elas, não consegue descobrir as causas originais. Peço-lhe, por favor, que não se vá embora sem nem uma palavra sequer que mostre que me dá razão, pelo menos em parte! (KAFKA, 2014, p.10-11)

Assim, apesar das palavras de Gregor, foi a aparição dele o que de fato instalou um clima de total perplexidade entre todos. Ele percebe, então, que era preciso retornar ao quarto o mais depressa possível; afinal, assim como os demais, ele também precisava ‘se recuperar’ dos acontecimentos daquela manhã. A velocidade com que tudo aconteceu carecia de tempo para ser compreendido e aceito.

CONCLUSÃO Franz Kafka cumpre com maestria o papel desmistificador das hipocrisias sociais do século XX, por meio da complexa, e porque não dizer fantástica, personagem Gregor Samsa. Sem a vestimenta heroica, a personagem figura como pessoa comum; por isso,

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115 pela irrealidade do fato de um ser humano transformar-se em um inseto, uma série de questionamentos passa a rondar o imaginário das pessoas – Como? Por que isso aconteceu? - sem que, na verdade a obra se comprometa em trazer todas essas explicações. Apesar da criatividade do autor ser rigorosamente cruel, produzindo um estranhamento ou rompimento com a realidade habitual, traços da literatura fantástica, isso não faz com que essa figura esteticamente repugnante impeça o leitor de se interessar pela obra. Desse modo, segundo as palavras de Todorov (1981), “O fantástico nos põe ante um dilema: acreditar ou não acreditar? O maravilhoso leva a cabo esta união impossível, propondo ao leitor acreditar sem acreditar verdadeiramente” (p.45). Gregor Samsa é, na verdade, um convite a olhar a vida pelo prisma das impossibilidades ditadas por ela. Primeiro, porque na medida em que a personagem foi concebida a partir da realidade configurada pelas transformações sociais do final do século XIX e o início do século XX, as pessoas passaram a estar presas aos diversos modelos de automatismo social, ou seja, uma vida regida pelos interesses do capital e sem grandes questionamentos sobre isso. Depois, em razão da própria metamorfose que é um processo irreversível. Como argumenta Carone (1992), Dito de outro modo, a metamorfose em um inseto é postulada pela novela como algo definitivo: ela não é um pesadelo do qual se pudesse acordar. Pelo contrário, no registro costumeiro das inversões kafkianas, é o próprio metamorfoseado quem desperta para este pesadelo. Portanto, a metamorfose não está aí como um disparate, mas como uma licença poética transformada em fato – com o qual, aliás, tanto o herói como o leitor tem que se conformar. Nesse sentido, o narrador não procura nem esclarecer, nem ironizar a metamorfose, limitando-se (digamos assim) a constatá-la com a maior cara de pau. Para ele, ela tem o caráter impositivo de um sucesso natural com o qual não há como protestar. Mesmo a sua comparação com uma catástrofe natural só tem valor relativo, porque esta de alguma maneira se encaixa num contexto inteligível do mundo. Isto é: mesmo quando a catástrofe natural ocorre de um modo irregular, não previsto, pode-se indagar sem constrangimentos pelas suas origens. A metamorfose de um único homem num inseto monstruoso é, nessa direção, algo incomparável, é um caso singular – ainda que se conceda que uma transfiguração similar pudesse acontecer a outras pessoas. Por sinal que essa possibilidade é aventada pelo próprio Gregor em relação ao gerente da firma que o vem buscar em casa. (CARONE, 1992, p.132-133)

No entanto, a realidade adversa da personagem lhe oportuniza a reflexão sobre o seu cotidiano, as suas relações familiares e de trabalho, a sua vida pessoal; Gregor não

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116 passava de um provedor, pois provia à família e o sistema capitalista através de um trabalho que não lhe despertava nenhum sentimento além de obrigação. Então, de repente, o silêncio da inconsciência que o impedia de manifestar-se contra todos os incômodos que aquela opressão lhe causava, depois da metamorfose transformou-se em um silêncio consciente. Ele já não podia contar com a clareza e a possibilidade do exercício da voz humana; mas, sua consciência manifestava o seu falar. Muito embora, naquele primeiro momento fosse impossível romper com a lógica que sua vida se desenvolvia; mesmo metamorfoseado, Gregor se preocupava com a perda do trabalho, o sustento da família e só. Ele não pensava em si mesmo, como indivíduo, com suas vontades e desejos. Por certo, a única outra razão a lhe perturbar era como seria apresentar-se naquelas condições aos outros. No fundo, Gregor tinha consciência da sua invisibilidade social, visto que todas as suas relações estavam situadas num extremo de interesses econômicos; mas, a condição metamórfica certamente iria potencializar essa rejeição, porque ele na condição de um inseto se tornara improdutivo, apenas iria consumir e não produzir nada. Desse modo, ele se transformaria rapidamente num estorvo à sobrevivência daquela família e em uma peça de reposição imediata pelos meios de produção. De volta ao quarto, após a sua aparição na figura de inseto, Gregor estava novamente exilado à sua insignificância, rejeitado por todos e fadado a viver no contexto que às novas impossibilidades da metamorfose lhe trouxera.

REFERÊNCIAS

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RECEBIDO EM: 22/09/2017 | APROVADO EM: 07/11/2017

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IMPOSIÇÕES PATRIARCAIS E SUBVERSÕES FEMININAS NA POESIA DE DIVA CUNHA

Lucas Jose de Mello Lopes Sarah Cavalcanti Josuá Universidade Potiguar - UnP

RESUMO: Diva Cunha nasceu em Natal, em 10 de dezembro de 1947. Formou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e foi professora de Literatura Portuguesa. Imortal da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, é um dos grandes destaques da literatura feminina potiguar e uma ávida pesquisadora da produção literária do estado. Sua obra poética focaliza questões sobre o universo da mulher. O presente trabalho tem como corpus os poemas “Minha mãe diz”, “A minha tia” e “A minha avó”, que, de forma crítica, relatam as expectativas que tais familiares tinham em relação ao eu lírico, o qual se mostra subversivo e insubmisso e objetiva não só identificar traços do patriarcado na educação familiar das mulheres, mas também a subversão do eu lírico feminino. Trata-se de uma pesquisa analítica de caráter bibliográfico, com base em conceitos da crítica feminista, tais como patriarcado, mulher-sujeito, mulher-objeto, estereótipo, fada do lar (AMARAL, 2005) e de corpo (GROSZ, 2000). Ao final do trabalho, percebe-se que as imposições de estereótipos femininos perpassam fortemente pela negação à sexualidade e ao cumprimento da missão da maternidade, fomentando a submissão ao modelo familiar patriarcal. Às mulheres que tentam fugir desse “destino”, são dados os títulos de bicho, torta, pá virada. Portanto, o questionamento, a discussão e a reflexão sobre o tema fazem-se necessários para a conscientização dos indivíduos na busca por uma sociedade mais igualitária e justa. PALAVRAS-CHAVE: Diva Cunha. Literatura. Educação feminina. Patriarcado.

Patriarchal impositions and female subversions in poetry of Diva Cunha

ABSTRACT: Diva Cunha was born in Natal in December 10th 1947. She graduated from Universidade Federal do Rio Grande do Norte, where she teached Portuguese Literature. Imortal from the Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, she is one of the main female authors from Natal, plus, an avid researcher of literature production within the state. Her poetic work focus on the questions of the woman’s universe. The present paper studies the poems “Minha mãe diz” (my mother says), “A minha tia” (my aunt) and “A minha avó” (my grandmother) that, in a critical way, put a spotlight on the family expectations about the persona - who is subversive and insubmissive, and aims not only to identify traces of patriarchy in the family education for women, but also the persona’s subversiveness. The paper is an analytical research of the bibliography based on the feminist literary criticism, such as patriarchy, woman-subject and woman-object, stereotype, angel in the house (AMARAL, 2005) and the concept of body (GROSZ, 2000). Finally, it’s understood that the imposition of stereotypes for women are strongly connected to the denial of sexuality and the mission of motherhood, which promotes the submission to the patriarchal family model. The women who tries to escape this “destiny” are labeled as beast, devious or crazy. Therefore, the questioning, discussion and

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119 reflection on the theme are made necessary for awareness in the search of a more equal and fair society. KEYWORDS: Diva Cunha. Literature. Women’s education. Patriarchy.

INTRODUÇÃO A educação da mulher dentro da sociedade patriarcal pressupõe a construção de uma série de estereótipos a fim de confirmar a superioridade masculina nas mais diversas relações sociais. Sendo assim, “[...] ao contê-las [as mulheres] no interior de corpos que são representados, até construídos, como frágeis, imperfeitos, desregrados [...]” (GROSZ, 2000, p. 67), impõe-se uma série de papéis ao gênero feminino, que foram/são limitados, na maioria das vezes, à vida privada - gestão do lar, maternidade, economia doméstica. Como forma de refletir e repensar essa temática, a Literatura assume um papel primordial: ao ter a liberdade de utilizar a linguagem sem as amarras da ordem simbólica, ou seja, livre de estruturas gramaticais e mesmo de imposições culturais intrínsecas à língua, como o próprio machismo, autores criam novas possibilidades de expressão, não apenas refletindo a realidade, mas também refratando-a. A Literatura é, portanto, “a trapaça salutar [....] que permite ouvir a língua fora do poder” (BARTHES, 1978, p. 16) Tendo isso em mente, o presente artigo aborda questões relacionadas à educação feminina a partir de três poemas da poetisa potiguar Diva Cunha: “A minha avó”, “A minha tia” e “Minha mãe diz”. Partindo de conceitos da crítica feminista, tais como patriarcado, estereótipo, corpo, fada do lar, mulher sujeito e mulher objeto, analisa-se não apenas as imposições patriarcais dentro da educação familiar feminina, mas também a subversão do eu lírico ao assumir os seus verdadeiros desejos à revelia das determinações familiares. O artigo divide-se em três tópicos: o primeiro, traz informações sobre a autora; em seguida, discutem-se os conceitos utilizados como base teórica; por fim, analisam-se os poemas escolhidos como corpus à luz da teoria.

DIVA CUNHA: VIDA E OBRA Diva Cunha nasceu em Natal, no dia 10 de dezembro de 1947. Formou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e foi professora de Literatura Portuguesa nessa instituição. Sua trajetória acadêmica inclui um mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC), o qual teve como fruto a

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120 dissertação Dom Sebastião: a metáfora de uma espera. Pouco tempo após se aposentar da UFRN, assumiu o ensino de Literatura do Rio Grande do Norte na Universidade Potiguar (UnP), de 1994 a 2001. Imortal da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, Cunha é um dos grandes destaques da literatura feminina potiguar, além de ser uma reconhecida pesquisadora da produção literária do estado. Estreou sua carreira literária com o livro Canto de Página, de 1986, o qual já mostrava uma poesia madura e com forte personalidade, versando, principalmente, sobre questões do universo feminino. Ao Canto de Página, seguiram-se A Palavra Estampada (1993), Coração de Lata (1996), Armadilha de Vidro (2004) e Resina (2009). Em um de seus textos acadêmicos, denominado “Poesia: um caso pessoal” (CUNHA, 2013), a autora conta que os poemas analisados neste trabalho constituem, além de uma resposta dolorosa à impossibilidade de se adequar aos padrões outorgados por sua família, uma reflexão sobre a história das mulheres, englobando derrotas e vitórias dessa trajetória de luta contra o patriarcado.

CRÍTICA FEMINISTA EM PAUTA: UMA DISCUSSÃO INDISPENSÁVEL A nossa sociedade foi e continua sendo formada baseada nos valores patriarcais; a nossa constituição se deu já nessa estrutura social e, por isso, pode ser desafiador olhar além do que já está socialmente estabelecido, de forma a questionar e buscar a desconstrução dos nossos ideais. Sendo assim, para analisar os poemas de forma adequada, faz-se necessário compreender alguns conceitos trabalhados pela crítica literária feminista, tais como a definição de estereótipo, fada do lar, mulher-sujeito e mulher-objeto, patriarcado, e conceitos que permeiam as discussões de gênero, como a definição de corpo relacionado à Filosofia. O primeiro de tais conceitos, essencial para uma compreensão de todos os outros a seguir, é o de patriarcado. De acordo com Zolin (2009), consiste no tipo de organização de instituição social na qual a autoridade é concentrada na figura masculina, sendo ele o chefe ou o patriarca de um grupo. Seu poder de decisão é preponderante e incontestável. As origens dessa forma de organização é originária dos povos antigos, entretanto, é ainda bastante presente na sociedade do século XXI. Para se manter estável, o patriarcado fomenta a determinação de funções e tarefas de acordo com cada gênero, estabelecendo que “as posições de poder, privilégio e

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121 autoridade pertencem aos elementos masculinos, quer ao nível familiar, quer ao nível mais lato da sociedade no seu todo” (AMARAL, 2005, p.145), enquanto às mulheres, atribui-se papéis restritos ao lar, à vida privada. Esse tipo de organização possui vigor na sociedade pois apoia-se na força dos estereótipos; segundo Tajfel (1982 apud MACEDO, 2012, p. 54), estereótipos são categorias sociais que possuem significados na sociedade e que possuem alguns requisitos de funções desempenhadas nas relações intergrupo. Alguns exemplos de categorias sociais são homens, mulheres, crianças, velhos, negros, brancos etc. O estereótipo feminino, por exemplo, segundo Macedo (2012), está ligado à passividade, submissão e dependência; o masculino, entretanto, está ligado à dominância, dinamismo e autonomia. Tais valores estão presentes de forma intensa na vida dos indivíduos, de modo a categorizar quem está dentro do estereótipo de forma positiva, e quem foge ao padrão, de forma negativa. Essas imposições às categorias feminina e masculina diferem de forma quase antagônica; e esse antagonismo existe também nas funções que se esperam desempenhar. Das mulheres, segundo Amâncio (1992 apud MACEDO, 2012, p.55), espera-se o desempenho do papel da maternidade e de uma postura de dependência afetiva e sexual masculina; ao contrário dos homens, dos quais espera-se a independência, autonomia e liberdade individual. A assimetria entre as expectativas dessas duas categorias sociais é notória, pois à mulher impõe-se funções e atitudes específicas, e ao homem, é garantida a sua liberdade. Um estereótipo específico imposto à mulher é o de fada do lar. De acordo com Amaral (2005), tal conceito teve origem na sociedade industrial e burguesa do século XIX, a qual buscava valorizar as tarefas domésticas exercidas pelas mulheres - não por acaso, mas por designação por gênero. Esse estereótipo, portanto, é retratado como o ideal - e até visto como algo natural - para o gênero feminino; propaga-se o papel da mulher como gestora da harmonia do lar, limitando-a ao ambiente privado, no qual ela se autoanula e assume um modelo de passividade, dedicação e abnegação. No âmbito da literatura, categoriza-se as vozes femininas de acordo com a sua submissão ou não aos estereótipos impostos. De acordo com Zolin (2009), as mulheres que se submetem ao esperado e imposto são as mulheres-objeto, marcadas pela submissão, resignação e pela falta de voz; ao contrário destas, as mulheres que não se submetem são as mulheres-sujeito, caracterizadas pela insubordinação e pelo poder de

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122 decisão, dominação e imposição. As oposições binárias, comuns ao se tratar de questões de gênero, estão associadas a esses conceitos: subversão/aceitação, inconformismo/resignação, atividade/passividade e transcendência/imanência são alguns exemplos. Essas oposições binárias estão presentes também na conceituação de corpo de alguns filósofos ao longo da história, que foram responsáveis por influenciar e formar a nossa maneira de categorizar o conhecimento científico. Ainda hoje, a nossa concepção de corpo possui bastante semelhança com a proposta por filósofos como Platão, Aristóteles e Descartes. Platão via o homem como um ser espiritual ou incorpóreo preso no corpo como numa cela; por isso, via o corpo como uma traição da alma, da razão e da mente, e sua prisão. Segundo Grosz, para o filósofo: “[...] era evidente que a razão devia comandar o corpo e as funções irracionais ou sensíveis da alma. Só uma espécie de hierarquia natural, uma relação auto-evidente entre dominador - dominado, torna possível a harmonia interna ao Estado, à família e ao indivíduo.” (GROSZ, 1994, p. 52).

Seguindo os passos de Platão, Aristóteles, com a distinção da matéria (a alma) da forma (o corpo), construiu seu ponto de vista da maternidade como sendo uma forma de fornecer apenas um abrigo ao bebê; a mãe seria apenas uma guardiã do pequeno ser, e não sua co-produtora. O filósofo acreditava, portanto, que “a mãe oferecia a matéria sem forma, passiva, indefinida, a qual, através do pai, recebia forma, definição e contorno, características e atributos específicos que lhe faltavam” (GROSZ, 1994, p. 52). Essa distinção de matéria e forma foi influenciada posteriormente pela doutrina cristã; a separação entre corpo e mente foi relacionada à separação entre o que é mortal e o que é imortal, como o corpo e a alma, a alma derivando de Deus e o corpo, dos humanos, da carnalidade. Descartes, por sua vez, fez uma separação entre alma e natureza; em seus escritos, distingue dois tipos de substância, a substância pensante (res cogitans, a mente) e a substância estendida (res extensa, o corpo). O filósofo acreditava que o corpo poderia ser considerado como parte da natureza e, portanto, estaria sujeito às suas leis físicas. A mente, entretanto, não teria lugar no natural; devido a isso, a mente não estaria sujeita às leis físicas. Essa exclusão serviu de fundamento para a formação de uma ciência dos princípios que governam a natureza, de modo a excluir o sujeito e negar as influências da

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123 subjetividade; essa visão perdura até hoje na comunidade científica, a qual desvaloriza a subjetividade e valoriza a objetividade e a impessoalidade. Sendo assim, os fundamentos do conhecimento foram construídos na vinculação da oposição de Descartes de mente e corpo, a qual coloca a mente em uma posição superior ao corpo. É importante salientar que a oposição mente/corpo foi relacionada com vários outros pares de oposição, como a razão/emoção, cultura/biologia, fora/dentro, profundidade/superfície, psicologia/fisiologia, forma/matéria, e a principal para este trabalho, macho/fêmea. Toda a construção dessas dicotomias se baseou na separação entre um conceito e “o outro lado”, o qual seria subordinado ao conceito principal (o corpo subordinado à mente, a emoção subordinada à razão, a fêmea subordinada ao macho). Uma das linhas de pesquisa do cartesianismo, segundo Grosz (1994), vê o corpo como um instrumento, ferramenta ou máquina à disposição da consciência; uma forma oca (corpo) preenchida por uma subjetividade animada, com vontade própria (mente). “Para Locke e a tradição política liberal de modo geral, o corpo é visto como uma posse, propriedade de um sujeito, que, dissociado da carnalidade, toma decisões e faz escolhas sobre como dispor do corpo e de seus poderes.” (GROSZ, 1994, p. 58). Segundo a autora: “(...) o corpo é tipicamente visto como passivo e reprodutivo, mas amplamente improdutivo, um objeto sobre o qual podem existir disputas entre seus “habitantes” e outros/exploradores. Seja qual for a atuação ou a vontade que ele tenha, elas são consequência direta de intenções animadas, psíquicas. Sua inércia significa que se pode atuar sobre ele, coagi-lo ou constrangê-lo através de forças externas. [...] Como instrumento ou ferramenta, ele pede disciplina e treinamento cuidadosos e, como objeto passivo, requer conquista e ocupação.” (GROSZ, 1994, p. 59)

Essas visões acerca do conceito de corpo o caracterizam como algo passivo, uma forma sem matéria, algo relacionado à biologia e à natureza, à irracionalidade, sentimentos, paixões, impulsividade; o corpo, também, é fortemente relacionado ao gênero feminino, e faz oposição à mente, relacionada ao gênero masculino: razão, objetividade, decisão, cultura, racionalidade, sensatez. Entende-se que a mente (o homem) deve dominar o corpo (a mulher). Tal raciocínio afetou fortemente a forma de constituição do pensamento científico, pois sua estrutura pressupõe linguagem objetiva e racional, sem nenhuma interferência de emoções e impressões pessoais; e de acordo com as dicotomias razão/emoção, mente/corpo, macho/fêmea, por muito tempo, entendeu-se

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124 que a mulher não poderia fazer ciência, deveria se retrair e ocupar apenas o espaço privado do lar.

MULHERES SUBMISSAS X MULHERES SUBVERSIVAS Tendo em vista a teoria feminista literária e o conceito de corpo, é possível analisar os poemas de forma crítica e embasada. 1) Mãe O primeiro poema a ser analisado, reproduzido abaixo, versa sobre as expectativas da mãe sobre a filha: Minha mãe diz que eu sou da pá virada da vida torta

os modelos dela são outros: santa Terezinha do menino Jesus santa Rita de Cássia, santas

fora as santas domésticas que foram sacrificadas no dia-a-dia e ninguém viu sangradas como galinhas maceradas em vinha d’alhos postas a dormir no sereno para secar odores enfurnadas como bananas verdes esfregadas nos ladrilhos claros dos banheiros costuradas em botões de quatro furos esbofeteadas e sacudidas como colchões e almofadas para desprender o pó das horas secaram todas nos linhos brancos dos lençóis bordados ao morrer, não morreram entregaram a alma a Deus, que provavelmente não as perdoou pelo gasto inútil que fizeram dos seus talentos. (CUNHA, 1986, p.76)

Logo na primeira estrofe, percebe-se a maneira como o eu lírico é visto pela mãe, que considera que a filha é: “da pá virada/ da vida torta”. A razão para tais associações é

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125 explicada nas próximas estrofes: a filha não se adequa aos modelos maternos - das santas religiosas e das mulheres submissas. Constata-se, em primeiro lugar, a represália feita à mulher que assume o papel de sujeito e tenta fugir dos padrões impostos, que logo é vista como louca; em segundo lugar, constata-se também a função da mulher-objeto de duplicar os valores patriarcais. Não há no poema a figura de um homem ditando padrões ao eu lírico, mas sim uma mulher, que foi, por sua vez, construída por valores criados por homens e os reproduz na criação de sua filha. Ao descrever a rotina das santas domésticas, Cunha evidencia o sacrifício das fadas do lar, que, ao se autoanularem em função da gestão da casa, são violentadas sem ninguém ver. Os verbos utilizados nessa descrição revelam tal autoanulação ao associarem as atividades domésticas à violência sofrida pela mulher: “sangradas como galinhas/ maceradas em vinhas d’alhos/ esfregadas nos ladrilhos/ esbofeteadas e sacudidas/ como colchões e almofadas”. As santas domésticas são, portanto, mimetizadas em seus afazeres e a violência doméstica ocorre de forma velada. Talvez até haja pessoas que a vejam, mas o fato de ela ser naturalizada impede que exista uma repressão. Ao final desse poema, tem-se uma desconstrução do discurso religioso: ao supor que Deus não tenha perdoado as santas domésticas pelo gasto inútil que fizeram dos seus talentos, o eu lírico subverte a noção propagada pela religiões cristãs de que a mulher precisa ser submissa, passiva e doméstica. Afinal, tal discurso é uma criação humana utilizada pela sociedade patriarcal para justificar a dominação masculina e não uma verdade proposta por uma divindade superior. 2) Avó Enquanto o poema analisado anteriormente aborda questões relacionadas à domesticidade sugerida pela mãe ao eu lírico, o poema “a minha avó” versa sobre as marcas deixadas pela avó na educação da neta. A minha avó não sabe a culpa que lhe cabe eu ser assim um bicho com outro bicho atrás de mim

a minha avó não sabe

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o preço do desejo preso flor sufocada em cambraias estampadas

nas mãos de minha avó um terço terça armas contra meus demônios

por minha avó padeço e gozo duplamente na carne magoada. (CUNHA, 1986, p. 82)

Nesse poema, Cunha focaliza a negação do corpo feminino propagada pela educação feminina. No início, há, novamente, a repressão da mulher sujeito, exposta aqui pela associação de sua imagem a um bicho. Atrás desse bicho, há um outro bicho que a persegue. Esse outro bicho representa os desejos castrados vindo constantemente à tona, que são contrapostos às expectativas da avó. Na segunda estrofe, o eu lírico afirma que a avó não sabe o que é ter um desejo preso, pois a sua “flor” (vagina) foi sufocada pelas cambraias estampadas, que, metaforicamente, representam a ordem simbólica, sempre abafando e escondendo o prazer, o sexo e o corpo da mulher. Afinal, “o pensamento misógino confina as mulheres às exigências biológicas da reprodução” (GROSZ, 2000, p.68), restringindo, assim, a corporalidade da mulher à esfera reprodutiva. Tal noção permite aos homens “satisfazer sua necessidade de contato corporal através de seu acesso aos corpos e aos serviços das mulheres” (GROSZ, 2000, p.68). Portanto, o uso do corpo feminino para fins além do reprodutivo ou do prazer masculino é repreendido pelo patriarcado, cabendo à mulher sufocar a sua “flor” e prender o seu desejo. Na terceira estrofe, há mais uma referência ao discurso religioso: “nas mãos de minha avó/ um terço/ terça armas/ contra meus demônios”. A fala da avó é pautada, assim como a da mãe, pelo discurso religioso. O terço representa metonimicamente a religião. E é por meio dela que surgem armas contra os demônios do eu lírico, que representam o seu desejo de assumir o corpo. A religião, nesse sentido, impõe a negação à sexualidade e ao prazer feminino, sendo utilizada como um instrumento para fomentar o pensamento misógino e ratificar o uso do corpo feminino apenas para a reprodução. Essa estrofe impressiona pela associação entre as palavras “terço” e “armas”: como uma religião que

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127 prega a paz aponta armas para uma mulher pelo simples fato de ela assumir autonomia daquilo que é dela? Por fim, na última estrofe, o eu lírico afirma autonomia sobre o seu corpo, mesmo sofrendo pelas represálias da avó: “por minha avó/ padeço e gozo/ duplamente/ na carne magoada”. A conjunção “e” assume um caráter adversativo, nesse sentido, por mais que se sinta culpada, a neta não deixa de ser dona de si: revolta-se e regozija-se. 3) Tia Diferentemente dos outros, o terceiro poema retrata um membro da família que não possui expectativas diretas sobre o eu lírico: a tia sequer teve voz ou algum relato de ação. a minha tia guardava entre as pernas uma flor que ninguém desfolhava porque ainda era cedo porque já era tarde porque não deixavam minha tia morreu sua flor seca e sem uso são pétalas nas bocas vizinhas que colhiam e não cheiravam. (CUNHA, 1986, p. 78)

A tia representa a mulher-objeto; morreu virgem, sem direito a tomar decisões sobre sua vida: sua virgindade (expressa sob a metáfora da flor - “guardava entre as pernas uma flor que ninguém desfolhava”) foi mantida até o final da sua vida por vontade de terceiros, pois ou era muito cedo, ou já estava tarde, ou porque não deixavam. Tais explicações fazem alusão à submissão como valor feminino e a maternidade como destino: o sexo não era fonte de prazer para a mulher, era um meio pelo qual ela se sujeitaria para satisfazer os desejos de seu marido (submissão) ou almejando a reprodução (maternidade). Além disso, a idade é um fator importante: quando nova, a moça ainda está sob a autoridade do pai, que recusa-se a entregá-la a um outro homem; quando velha, seu valor como mulher é reduzido, já que deixa de ser vista como um objeto sexual e não serve mais como fonte de prazer e tem seu potencial reprodutivo reduzido ou extinto. Em todas as hipóteses, a decisão de se relacionar afetivamente e sexualmente não foi tomada pela tia, e sim, por outros.

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A tia morreu e sua flor, seca e sem uso, virou “pétalas nas bocas vizinhas que colhiam e não cheiravam”; ou seja, virou assunto a ser discutido e falado entre as pessoas próximas ou conhecidas. A virgindade é o tema central deste poema; trata-se de uma virtude atribuída ao feminino pelos valores patriarcais, que decidem e comentam como e quando a mulher deve perder a virgindade - além dos casos em que a família decide pela mulher pela não-perda da virgindade, como é retratado no poema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise dos poemas sob a luz das teorias e conceitos da crítica literária feminista mostra diversas marcas do patriarcado nas relações familiares, e no caso dos poemas escolhidos como corpus, entre mulheres. O corpo feminino é visto como um objeto que serve apenas para a utilização do outro: sua sexualidade existe para servir à masculina, e seu ventre serve para “produzir” a descendência dos homens. O desejo e a sexualidade que visa agradar a si mesma deve ser negado e silenciado. Tal educação forma a mulher- objeto: sem voz e sem vontade, molda-se às vontades e imposições do patriarcado. Difere grandemente da mulher-sujeito: assume uma postura insubmissa e inconformada, que questiona as regras estabelecidas, toma as rédeas da sua vida e faz suas próprias escolhas. Nos poemas, é perceptível a presença de três mulheres-objeto (a mãe, a tia e a avó) e uma mulher-sujeito (o eu lírico), a qual foi criticada duramente por suas atitudes. Apesar de não haver explicitamente um personagem masculino, sua influência é latente na forma do patriarcalismo; através da mãe, que valoriza a mulher fada do lar, a qual sacrifica a si mesma em prol do marido, dos filhos e da harmonia da casa; da avó, que valoriza a mulher casta, a qual nega e sufoca a sua sexualidade; e da tia, que foi tratada como objeto e teve seu destino escolhido por outros. Em que pese esse poder patriarcal que permeia os poemas analisados, tem-se a força do presente: o eu lírico representa as mulheres que, dentro de um contexto em que se conscientizam sobre o seu estado de opressão, rebelam-se contra o sistema e lutam para derrubar uma lógica machista enraizada que, na realidade, é constituída apenas de construções ideológicas, passíveis de mudança em suas estruturas e funcionamentos, uma vez que não são verdades absolutas, naturais ou inevitáveis (ZOLIN, 2009). Assim, ao se desconstruir essas ilusões agora, cria-se a esperança de um futuro justo, no qual as mulheres poderão, enfim, fazer uso de seus talentos da maneira que quiser.

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RECEBIDO EM: 20/10/2017 | APROVADO EM: 05/12/2017

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CONVERGÊNCIAS ÉTICAS E MORAIS NA CRÔNICA SONHO DE LESMA, DE MOACYR SCLIAR

Fabrício Lemos Costa Universidade Estadual do Amapá – UEAP

RESUMO: Este artigo busca abordar questões de convergência Moral e Ética na crônica “Sonho de lesma”, de Moacyr Scliar, sobretudo na perspectiva dos traços marcadores de comunhão entre finalidades discursivas de alcance reflexivo-filosófico, principalmente sob a temática da Filosofia Moral, assim como mostrar os aspectos que colocam o gênero em finalidades comunicativas distintas, como a marca do estranhamento literário. PALAVRAS-CHAVE: Crônica. Filosofia Moral. Estranhamento literário.

Convergences morales et éthiques dans la chronique Sonho de Lemas, de Moacyr Scliar

RÉSUMÉ: Cet article fait un abordage sur quelques questions de convergences morales et éthiques dans la chronique “Sonho de lesma”, de Moacyr Scliar, surtout, à la perspective de traits de la communion entre les buts discursifs à l’approche réflexif- philosophique, particulièrement sous le thème de la philosophie Morale, c’est pourquoi on montrera aussi des traces qui mettent le genre en objectifs différents de communication, comme la marque d’un étrangement littéraire. MOTS-CLÉS: Chronique. Philosophie morale. Étrangement littéraire.

No dia 08 de janeiro de 2001, o jornal Folha de S. Paulo trouxe a lume em sua coluna jornalística uma narrativa intitulada “Sonho de lesma”, do cronista Moacyr Scliar53, mostrando-se para o leitor como um título estranho, pois se tratava da existência de uma humanidade presente em uma lesma, Classe Gastropa, que era dona de sonhos e expectativas de sucesso individual. Trata-se de uma lesma que tem o sonho de tornar-se semelhante ao seu parente distante, o escargot. Assim, insatisfeita com sua condição desprezível, resolve viajar de carona “em certas alfaces”, mas antes é obrigada a traçar e executar um plano, ou seja, envolver-se no interior de um lanche globalizado, o sanduíche. A personagem justificar- se-á em suas ações, como podemos perceber na seguinte passagem: “Assim como o mar é o único túmulo digno de um almirante batavo, respondia, a travessa de porcelana é a única lápide digna dos meus sonhos.” (SCLIAR, 2001, on-line).

53 Moacyr Scliar (1937- 2011), cronista de Porto Alegre, foi colunista da Folha de São Paulo, de 1993 a 2011. O autor escrevia às segundas-feiras, na coluna da Folha, textos ficcionais baseados em matérias publicadas no próprio jornal. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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O leitor da crônica54 “Sonho de lesma”, de Moacyr Scliar, não excluirá a existência de um fato estranho no interior da narrativa: uma lesma e seus traços de vontade e reflexão em relação à moral, desenvolvida, ironicamente, ao decorrer do texto, porque a lesma é possuidora de desejos humanos e objetivos que poderiam levá-la ao reconhecimento. O efeito estranho referente à linguagem literária é levado ao discurso filosófico pelo pensador Aristóteles, em sua Arte Retórica, ao explicar o fenômeno da metáfora, espécie de transferência do significado de uma palavra para outra, na qual gera enigmas ou estranhamento. Segundo Aristóteles: “É, com efeito, a partir de bons enigmas que se constituem geralmente metáforas apropriadas. Ora, metáforas implicam enigmas e, por conseguinte, é evidente que são bons métodos de transposição.” (ARISTÓTELES, Retórica, III, II, 1405 b). O estranhamento, de acordo com os Formalistas Russos55, é um processo de desenvolvimento de singularização no interior do texto literário, ou seja, fatos banais e ordinários são retirados do automatismo do cotidiano e oferecidos ao público como novidade, como era habitual no autor Russo L. Tolstoi, por exemplo, ao singularizar cavalos como personagens, carregados de vontade moral. No ensaio A arte como procedimento, V. Chklovski argumenta: O procedimento de singularização em L Tolstoi consiste no fato de que ele não chama o objeto por seu nome, mas o descreve como se o visse pela primeira vez e trata cada incidente como se acontecesse pela primeira vez; além disso, emprega na descrição do objeto, não os nomes geralmente dados às partes, mas outras palavras tomadas emprestadas da descrição das partes correspondentes em outros objetos. (CHKLOVSKI, 1976, p.46)

É possível afirmar que o procedimento empregado por Moacyr Scliar ao decorrer da crônica é uma singularidade, no que tange ao desenvolvimento de traços psicológicos e morais em espécies amorais56 da natureza. Assim, tal singularidade dá-se pelo resgate

54 “Do grego Chronikós, relativo a tempo (chrónos), pelo latim chronica, o vocabulário ‘crônica’ designava, no início da era cristã, uma lista ou relação de acontecimentos ordenados segundo a marcha do tempo, isto é, em sequência cronológica”. ( MOISÉS, 1978, p.245). 55 “O assim chamado formalismo russo procurou na literatura viva e não apenas nos monumentos do passado aquilo que podia caracterizar a linguagem da obra literária. Ele estudou o específico, o inerente à literatura. Mas, ao mesmo tempo, as novas correntes artísticas afirmavam a necessidade de fundir a arte na vida cotidiana. ‘abaixo a arte, viva a vida!’-Foi o título de uma conferência de Maiakovski”. (SCHNAIDERMAN, Boris. Prefácio, 1976, p. XII). 56 “Moral como oposto a amoral. Por exemplo, a conduta dos animais é amoral, isto é, não tem nenhuma relação com a moralidade, pois que os animais não são responsáveis por seus atos”. (CORTINA e MARTÍNEZ, 2005, p.17). ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

132 de criaturas ou situações do automatismo não moral. A manifestação de perspectivas morais em criaturas amorais, assim como dogmas e preceitos religiosos, fazia parte do procedimento de L. Tolstoi. De acordo com V. Chklovski: Todos os que conhecem bem Tolstoi podem achar nele centenas de exemplos deste tipo. Esta maneira de ver os objetos fora de seu contexto o conduziu, nas suas últimas obras, a aplicar o método de singularização na descrição de dogmas e ritos, métodos segundo o qual ele substituía as palavras da linguagem corrente pelas palavras habituais de uso religioso; resultou daí qualquer coisa de estranho, de monstruoso. (CHKLOVSKI, 1976, p.50)

Dessa forma, a moral é uma possibilidade de reflexão na crônica, direcionando comportamentos da personagem em relação ao outro e consigo mesma, ao decidir caminhos e atitudes diante de fatos do cotidiano. A moral, portanto, é uma ferramenta importante para a interpretação do texto ficcional, pois a lesma, uma espécie de protótipo humano, é levada ao processo de escolha pela liberdade. Assim, argumenta a personagem: “Uma dessas alfaces, raciocinou a lesma, me levará ao destino que almejo. Foi até a horta, à doida velocidade de meio quilômetro por hora e ocultou-se no vegetal”. (SCLIAR, 2001, on-line). A moralidade é uma temática comum à literatura, presente entre os mais diversos gêneros literários, como a fábula, por exemplo, a qual redimensiona a discussão moral para o interior do discurso de animais, os quais são dotados de virtudes humanas e vícios, temas de preocupação da Ética. Então, na história do gênero, selecionamos um texto de Jean de La Fontaine, fabulista francês, como um excelente exemplo de fim moral no conjunto temático do gênero: La Cigale et la Fourmi

La cigale, ayant chanté Tout l’été, Se trouva fort dépourvue Quando la bise fut venue: Pas un seul petit morceau De mouche ou de vermisseau. Elle alla crier famine Chez la Fourmi sa voisine, La priant de lui prêter Quelque grain pour subsister Jusqu’à la saison nouvelle. “Je vous paierai, lui dit-elle, Avant l’août, foi d’animal, Intérêt et principal.” La Fourmi n’est pas prêteuse: C’est là son moindre défaut.

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“Que faisiez-vous au temps chaud? Dit-elle à cette emprunteuse. -nuit et jour à tout venant Je chantais, ne vous déplaise. -Vous chantiez? j’en suis fort aise. Eh bien! dansez maintenant.”

A perspectiva moral está presente na fábula La Cigale et la Fourmi. Entretanto, é possível afirmar que o pressuposto moralizador deste gênero é mais universal, pois não nasce, necessariamente, do cotidiano, como a crônica, a qual tem interesse pelo corriqueiro e o fugaz das relações sociais. O texto do fabulista francês direciona o leitor a pensar um fim moral mais universal como proposta educativa, ao passo que a narrativa Sonho de lesma é mais particular. Portanto, no plano ético, a moral é mais prática, já que o gênero crônica nasce de acontecimentos reais, como animais e objetos indesejáveis encontrados no interior de alimentos e bebidas, propagadas, sobretudo pelos noticiários. Na situação específica da coluna de Moacyr Scliar, por exemplo, o cotidiano é primordial, pois o cronista escrevia textos ficcionais como uma releitura de notícias que apareciam diariamente na Folha de São Paulo. Portanto, a trajetória do gênero comprova o seu compromisso ao tratar de fatos demasiadamente relacionados à realidade, entretanto, como já foi dito, à luz da singularidade ou estranhamento, comum em textos literários. Percebemos, dessa forma, um ponto de convergência moral no interior da crônica, em que o leitor é convidado a pensar no plano ético, conforme a filosofia moral e segundo o agir prático em situações de relações sociais ou em uma comunidade moral, justificando-se a discussão da filosofia moral, pois a questão que se coloca tem relação com o cerne da disciplina filosófica, como a temática da felicidade individual e coletiva e as premissas da honra e desonra moral. Então, faz-se necessária uma breve discussão no que tange aos pressupostos filosóficos da Ética e da Moral. Marilena Chauí, filósofa brasileira, desenvolve uma longa reflexão em torno de uma existência Ética entre nós, seres humanos, em seu livro Convite à Filosofia, em que redimensiona um comportamento moral, ação moral, e uma reflexão em torno das atitudes humanas diante de situações complexas, como o aborto na adolescência ou o roubo por uma criança que se sente faminta e resolve furtar para alimentar-se. De acordo com a filósofa, os humanos agem, arrependem-se e refletem por meio de uma existência Ética, ou seja, uma espécie de responsabilidade que nos guia e nos coloca, muitas vezes, como juízes de atitudes que julgamos desejáveis ou reprováveis, ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

134 como os fatos mencionados anteriormente. Assim, nosso senso moral ou consciência moral instrumentaliza e exprime valores, como o bem, a justiça, honestidade, virtude e grandeza. O agir e o avaliar são reflexões válidas ao interpretar a breve narrativa. No entanto, realizadas à luz da filosofia ética, principalmente no que diz respeito à liberdade (i)moral da personagem. A análise moral do leitor, sujeito detentor de juízo e consciência moral, realiza-se, na maioria das vezes, inconscientemente, tamanho é seu enraizamento no coletivo. Dessa forma, nossos valores são avaliados por meio de um juízo de valor, os quais determinam comportamentos e julgam obrigações enunciadas por juízos éticos normativos, determinando, pois, “o dever” ou o caminho de certos juízos de valor, colocando-os, no ponto de vista Ético, na direção do correto e do bem. No entanto, é necessário recorrermos, inicialmente, ao conceito do termo Ética, inserindo-a na perspectiva do plano orientador das ações humanas, o qual dirige nossa reflexão em torno dos pressupostos, sobretudo, dos valores. Aristóteles, filósofo estagirense, é responsável, na Antiguidade Grega, por uma sistematização do estudo da Filosofia Moral. No tratado Ética a Nicômaco57, Aristóteles menciona que o termo Ética deriva de hábito. Portanto, reflexões éticas são pensadas do ponto de visto do costume, diferenciando-se de ações naturais, já que não são passíveis de mudança, ao passo que ações virtuosas são lançadas ao plano da aprendizagem ou exercício moral. Assim, de acordo com Aristóteles: Fica evidente que nenhuma das virtudes morais é em nós engendrada pela natureza, uma vez que nenhuma propriedade natural é passível de ser alterada pelo hábito. Por exemplo, é da natureza mover-se para baixo, sendo impossível treiná-la para que se mova para cima, ainda que nos dispuséssemos a tentar treiná-la a fazê-lo lançando-a para cima ao ar dez mil vezes. (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, II, I, 1103 a 15-20).

O plano da aprendizagem pressupõe que o caminho da virtude58 é dado pela prática, ou seja, por repetição de atitudes que nos levam a decidir comportamentos. Assim, “nos tornamos justos realizando atos justos, moderados realizando atos

57 O Tratado Ética a Nicômaco, de Aristóteles, é dividido em 10 (dez) livros, os quais desenvolvem questões do Bem, Virtude Moral, Amizade, Justiça, Felicidade, etc. 58 É importante mencionar que o termo Virtude é bastante complexo em relação à tradução da língua Grega, pois seu sentido na Antiguidade tem conotação de excelência, ou seja, fazer bem feito determinada ação ou na justa medida. Na modernidade o termo Virtude apresenta influência do cristianismo e seus dogmas. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

135 moderados” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, II, II, 1103 b 30). Portanto, o estudo da Ética tem compromisso com a prática, já que a reflexão é levada ao juízo de condutas em que a base é “o agir de acordo com a justa razão” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, II, II, 1103 b 30). Portanto, nós, leitores, olhamos com desconfiança as atitudes da lesma, que está decidindo por estratégias imorais com o fim de alcançar o sucesso, espécie de honra pessoal. Todavia, é relacionada no plano ético como uma falsa felicidade, como Aristóteles menciona no livro VI de sua Ética a Nicômaco, já que alcançar a felicidade está intrinsicamente ligada à prudência: Também a prudência, tal como acontece com a virtude moral, determina o desempenho completo da função própria do homem. A virtude [moral] assegura a retidão do fim a que visamos, enquanto a prudência garante a retidão dos meios a serem utilizados para atingir esse fim. (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, VI, XII, 1144 a 5).

Outras vozes colocar-se-ão na crônica em análise, “as outras lesmas”, cuja importância é esclarecer a vantagem em ser uma simples lesma: “Mas, lembravam as outras lesmas, os escargots são comidos, enquanto nós pelo menos temos a chance de sobreviver”. (SCLIAR, 2001, on-line). Dessa forma, essas vozes de alerta são representativas de uma consciência coletiva, ou seja, uma moral compartilhada com o grupo, a qual se deve considerar em nossas ações, caso tenhamos a prudência como meio. Contudo, mesmo com a alerta coletiva, a sonhadora lesma não desistira de seus objetivos, argumentando que “preferiria exatamente terminar sua vida desta maneira, numa mesa de toalha adamascada, entre talheres de prata e cálices de cristal”. (SCLIAR, 2001, on-line). Por outro lado, sabemos o trágico final da personagem, pois fora atingida em sua honra, porque não se mostrou prudente, assim como não calculou os meios que a levariam ao desejado sucesso.

Entretanto, não é possível refletir sobre as ações da personagem a partir da lei, já que a lesma não usa meios fora dos códigos legais. Além disso, nossa consciência moral condena a insatisfeita lesma no que diz respeito aos meios imorais, porque muitas práticas consideradas não morais são legais no que tange às leis. Portanto, a Ética é um instrumento reflexivo e normativo para atitudes morais ou práticas morais do homem em sociedade, guiando-o em direção às normas ou ações corretas em relação à virtude, ao bem e à honestidade. Aristóteles, sistematizador da Filosofia Moral, orienta-nos a pensar sobre o valor e as escolhas dos homens no interior de códigos morais. Vale ressaltar, além disso, que a Ética é indiretamente normativa, pois ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

136 sua pretensão é reflexiva, refletindo ações concretas a partir de diferentes morais, levando os homens a pensar qual ação é mais correta, como argumenta Cortina e Martínez: Portanto, em princípio, a filosofia moral ou Ética não tem motivos para ter uma incidência imediata na vida cotidiana, pois seu objetivo último é esclarecer reflexivamente o campo da moral. No entanto, esse esclarecimento certamente pode servir de modo indireto como orientação moral para os que pretendam agir racionalmente no conjunto da sua vida (CORTINA e MARTÍNEZ, 2005, p.09).

No contexto da narrativa, falar-se-á em questões fundamentais à filosofia moral, como escolha, liberdade e a prática de ação moral, entretanto, como foi dito anteriormente, apenas no campo reflexivo e nunca impositivo, base da liberdade moral em Aristóteles. Portanto, a personagem é livre para galgar novos rumos. Por outro lado, a forma pensada e executada não a coloca em uma situação positiva do ponto de vista ético, já que a realiza pelo caminho mais fácil, o qual os leitores, sujeitos morais, consideram como sintoma de “moral baixa”, cujo pensamento dá-se pelo viés da prática.

O pressuposto da prática na teoria Ética pode ser explicado pela distinção aristotélica da finalidade dos saberes, os quais o pensador grego separa a partir dos conhecimentos teóricos59, poiéticos e práticos. A Ética, pois, estaria incluída no saber da prática, a qual é crucial para uma excelente virtude. Entretanto, os fins normativos da Ética não podem ser assimilados na compreensão das normas poéticas, explicados na Ética a Nicômaco, já que os objetivos da poiesis60, produção ou construção, é a tentativa de um alcance último que é a própria arte, ao passo que a norma Ética fundamentar-se-á nos pressupostos do bem viver em comunidade. Assim, ao lado da Economia e da Política, a Ética está incluída e encarregada dos saberes que levam aos comportamentos prudentes da boa administração da cidade, orientando, pois, decisões para o coletivo, ou seja, práticas que são necessárias com a finalidade de alcançar uma harmonia61 social. É importante ressaltar que a preocupação Ética na Grécia Antiga estava centrada na questão da busca da Felicidade individual e coletiva, como é relatado no Tratado Ética a Nicômaco, o qual detalha os vários pressupostos para uma existência feliz, como a

59 Os saberes teóricos, theorein, segundo Aristóteles, dizem respeito aos acontecimentos “que não pode ser de outra maneira”, ou seja, fatos naturais, físicos, químicos, etc. 60 Aristóteles, discípulo de Platão, sistematizou e desenvolveu princípios normativos para a produção de dramas trágicos e Poemas Épicos em sua Arte Poética. 61 A Harmonia entre os Gregos está relacionada a uma vida longe dos excessos, hybris. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Amizade, a Virtude, a Generosidade, etc. Na modernidade, a questão da Filosofia Moral está centrada mais nas reflexões de Justiça, ao lado do grande Pluralismo moderno, principalmente, no que tange à Felicidade. De acordo com Cortina e Martínez: Se a pergunta ética para Aristóteles era “quais virtudes morais temos de praticar para conseguir uma vida feliz, tanto individual como comunitária?”, na era moderna, em contrapartida , a pergunta ética seria esta outra: “ quais deveres morais básicos têm de reger a vida dos homens para que seja possível uma convivência justa, em paz e em liberdade, dado o pluralismo existente quanto às maneiras de ser feliz?” (CORTINA e MARTÍNEZ, 2005, p.12)

Portanto, a Filosofia Moral ou Ética é de interesse primordial para a sociedade, muitas vezes orientando até o nascimento de leis para a comunidade. No entanto, como foi dito anteriormente, a Ética é uma disciplina reflexiva e ao mesmo tempo orienta várias práticas ou ações morais, sobretudo no que diz respeito à Felicidade. Há um pressuposto importante no interior das teorias Éticas e que será a clave interpretativa na narrativa, porque esta traça um fundamento essencial à reflexão da Filosofia Moral: a Liberdade. A personagem lesma, dotada de (i)moralidade, pensa e escolhe o seu caminho, como fica evidente no seguinte trecho: “Assim pensando, resolveu sacrificar a vida por seu ideal. Para isso, traçou um plano: tinha de dar um jeito de acabar em uma cozinha refinada.” (SCLIAR, 2001, on-line). O poder da liberdade é a própria existência da Ética entre nós, pois julgaremos os comportamentos da personagem ao decorrer de suas escolhas (i)morais. Assim, sem a liberdade não poderíamos julgar determinada atitude da lesma diante de situações simples ou mais complexas. A escolha moral abarca, dessa forma, a própria individualidade do sujeito na sua dimensão emocional, subjetiva e conhecedora da moral comunitária, esta última como a clave para entender a existência Ética, já que o sujeito precisa conhecer a moral do grupo com o fim agir de acordo com os costumes criados pela própria comunidade. Assim, Cortina e Martínez, argumentam: A partir dessa perspectiva, a moral não é apenas um saber, nem um dever, mas sobretudo uma atitude e um caráter, uma disposição da pessoa inteira que abarca o cognitivo e o emocional, as crenças e os sentimentos, a razão e a paixão, em suma, uma disposição de espírito ( individual e comunitária) que surge do caráter que se tenha forjado previamente (CORTINA e MARTÍNEZ, 2005, p.16)

Portanto, a decisão prática e a liberdade são peças de possibilidades para nós, leitores, pensarmos um juízo ético ao decorrer da narrativa, guiando e formando a

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138 recepção aos leitores no que tange ao “horizonte de expectativa” e orientando, fundamento da Ética, nossas próprias vontades, sendo comum à literatura, pois esta tem o objetivo de “expandir o espaço limitado do comportamento social rumo a novos desejos, pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experiência futura” (JAUSS, 1994, p. 52). Entretanto, outro pressuposto interessante e necessário nesta leitura pelas “lentes” da filosofia moral no interior da narrativa é a questão da moralidade e imoralidade no comportamento da personagem, sobretudo quando resolve abdicar de sua condição de animal inerte às atitudes nada passivas diante da vida. O leitor, detentor de juízos éticos, é levado ao julgamento moral da lesma, porque a personagem, ao decidir o caminho, não se mostra nada interessada quanto às formas adotadas para atingir o seu ideal: “ser como aquele parente distante, o escargot”. Assim, a pobre lesma, ao utilizar de sua liberdade moral, acaba ocultando-se em alfaces, imaginando o final de glamour que este poderia levá-la. A velha máxima de “os fins justificam os meios” parece ser o sentido de possíveis leituras a partir desta breve crônica, colocando-a em conformidade com temáticas atuais e legitimamente humanas, pois a moral, a escolha e as virtudes pelos hábitos são primordiais em nossas discussões individuais e comunitárias, principalmente quando certos percursos levam o homem ao aprisionamento por meio de vícios ou paixões. Marcelo Perine, doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, no livro Quatro lições Sobre a Ética de Aristóteles, aponta que: A questão posta a nós, isto é, levar inteligência às nossas emoções, civilidade às nossas ruas e envolvimento à nossa vida comunitária, seria a mesma subjacente à inquirição filosófica de Aristóteles sobre a virtude, o caráter e a vida justa, na qual está implícito o desafio de equilibrar razão e emoção. (PERINE, 2006, p.94). A dimensão Moral e Ética na crônica, então, dá-se à luz dos argumentos de Aristóteles, principalmente em relação à felicidade individual e aos vícios que se colocam como barreiras para alcançar a virtude, como a escravidão das paixões e do excesso, falta de medida ou meio termo entre a razão e a emoção ou vontade, sendo impregnadas de erro e responsáveis pela queda do ponto de vista moral, como podemos verificar nos trechos finais da narrativa: “Foi ignominiosamente jogada no lixo, junto com suas ilusões de grandeza.” (SCLIAR, 2001, on-line). Além disso, a personagem escolhe a forma mais fácil, uma espécie de “jeitinho” ou estratégia imoral que a leva ao perigo e à irônica comparação com o “óleo queimado”,

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139 em que podemos analisar como uma ausência de exercício moral, cujo cerne encontrar- se-á no tempo de aprendizagem, como o termo “exercício” evoca nas questões aristotélicas da ética, o qual confirmamos pela voz ficcional da narrativa: “Viajando de carona em certas alfaces, principalmente viajando de carona em certas alfaces.” (SCLIAR, 2001, on-line). No entanto, o texto literário é plurissignificativo, podendo assumir várias posturas ou interpretações por parte do sujeito leitor, como pela via ética, por exemplo, que traça a imoralidade no caráter da personagem lesma, ou seja, aprovaremos ou reprovaremos as ações da criatura que não aceitava o “desprezível”. Ainda de acordo com Cortina e Martínez: Diz-se que este ou aquele comportamento é imoral, ao passo que aquele outro é um comportamento realmente moral. Nesse sentido é usado como termo valorativo, porque significa que uma determinada conduta é aprovada ou reprovada; aqui se está utilizando “moral” e “imoral” como sinônimo de moralmente “correto” e “incorreto”. ( CORTINA e MARTÍNEZ, 2005, p.17).

A crônica dá-se no estranhamento, porque coloca aspectos humanos aos nossos olhos, assim como nos faz julgadores éticos de comportamentos individuais em seres amorais, como apontam as análises dos Formalistas Russos. O estranhamento apresentar- se-á no desenvolvimento de singularização no interior do texto literário, sobretudo a partir da ausência de automatismo do cotidiano, por exemplo, na humanização da lesma, ser naturalmente amoral: “Ela nasceu lesma, vivia no meio de lesmas, mas não estava satisfeita com sua condição. Não passamos de criaturas desprezadas, queixava-se. Só somos conhecidas por nossa lentidão.” (SCLIAR, 2001, on-line).

CONCLUSÃO Estamos, portanto, no cerne da questão moral, já que certas escolhas poderão ser julgadas como acertadas ou erradas, pois “o indivíduo provavelmente se sentirá mais satisfeito do que se aplicou uma solução técnica ‘imoral’, pois a menos no longo prazo, as soluções moralmente acertadas proporcionam mais felicidade que as moralmente errôneas.” (CORTINA e MARTÍNEZ, 2005, p.32). A filosofia moral é a mola propulsora de nossa interpretação ao longo da crônica de Moacyr Scliar, na qual tentamos abordar os pressupostos norteadores da discussão Ética e Moral ao desenrolar da narrativa. Entretanto, há muitas possibilidades de leituras, como foi dito anteriormente. Dessa forma, o leitor da Folha de S. Paulo, edição de 08 de

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140 janeiro de 2001, teve esse compromisso, ou seja, julgar, conforme a filosofia moral, a criatura sedenta de reconhecimento, atualizando-a nas discussões daquele ano e por que não dizer até hoje, pois tamanha é sua dimensão humana.

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ANEXO

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RECEBIDO EM: 14/10/2017 | APROVADO EM: 27/11/2017

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FORMAÇÕES DA LITERATURA BRASILEIRA DE 1826 A 1989: UMA BREVE RETOMADA Edson José Rodrigues Júnior Universidade Federal de Pernambuco - UFPE

RESUMO: A “questão da origem” (termo emprestado de Haroldo de Campos) da literatura brasileira inicia-se no século XIX. Nesta época, com o rompimento da relação colônia-Metrópole entre Brasil e Portugal e o surgimento de um Estado nacional brasileiro, surgiu também a necessidade de se construir um conceito coeso de literatura nacional. É neste panorama que começam a surgir as primeiras tentativas de esquematização da nossa historiografia literária, mas, ainda hoje, o ponto de partida da literatura brasileira permanece uma questão em aberto. Este trabalho objetiva pôr em debate as diversas perspectivas de consagrados críticos e teóricos acerca da formação da literatura brasileira, desde Ferdinand Denis com sua obra Resumo da História Literária do Brasil, de 1826, até a polêmica do suposto “sequestro” do barroco de Campos (1989). Neste percurso, passaremos pelas importantes contribuições de Machado de Assis (1994), Candido (1971) e Coutinho (1981). Os quase duzentos anos de discussões, revisões e polêmicas trouxeram significativos avanços para nossa historiografia literária, mas a questão da origem permanece, ainda hoje, sem resolução. PALAVRAS-CHAVE: Literatura brasileira. Questão da origem. Historiografia literária.

Formations in brazilian literature from 1826 to 1989: a brief return

ABSTRACT: The “issue of origin” (term borrowed from Haroldo de Campos) of the brazilian literature begins in the XIX century. When Brazil became independent of Portugal, emerged a need of a consistent national literature. In this background, the first tentative works of brazilian literary historiography rose, but, as of today, this issue of origin remains unsolved. The main objective of this paper is to discuss the diverse perspectives of many great critics ant theorics about the formation of brazilian literature. Beginning with Ferdinand Denis’ work Resumo da História Literária no Brasil, published in 1826, going all the way to the controverse “hijack” of barroco theorized by Campos (1989). In this course, we’re gonna pass through very important contributions made by Machado de Assis (1994), Candido (1971) and Coutinho (1981). Almost two- hundred years of discussion and controversy brought several progress to our literary historiography, but the issue of origin remains yet to be concluded. KEYWORDS: Brazilian literature. Issue of origin. Literary historiograpy.

INTRODUÇÃO Como bem diz Haroldo de Campos (1989), a “questão da origem” é um problema insistente na historiografia da literatura brasileira. Esta problemática, ainda de grande relevância nos dias de hoje, vem desde o século XIX, embora tenha ganhado destaque com estudos e publicações feitos no século seguinte. É desde os oitocentos, mais precisamente em paralelo ao rompimento da colônia Brasil com a Metrópole, que se busca ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

144 traçar um ponto de partida para a literatura brasileira. Estando em plena voga a construção de um Estado nacional brasileiro, fazia-se necessário também construir-se um conceito de literatura nacional que fosse puramente tupiniquim, livre das influências – e das amarras – portuguesas. Começava então a articulação de uma historiografia literária do Brasil, mas ainda nem sempre escrita por brasileiros. Foi na França que se deu início ao burburinho acerca da nossa literatura. Como aponta Vilalva (2008), a Revista de Niterói, publicada em Paris em 1836, espalhava pela Europa a notícia de que literatura de qualidade estava sendo produzida nas terras tropicais do Brasil. É nela que, segundo a autora, um grupo de jovens brasileiros publicou um ensaio intitulado História da Literatura no Brasil, assinado por Gonçalves de Magalhães, configurando uma das primeiras tentativas de esquematização historiográfica da literatura brasileira. Estes jovens autores se denominavam Grupo de Paris, formado pelo próprio Magalhães, Torres Homem e Araújo Porto Alegre. Ainda segundo Vilalva (2008), a importância da França para estes primeiros passos da nossa historiografia literária foi muito além da Revista de Niterói. As intrincadas relações político-culturais entre os dois países no século XIX deram espaço a um bom número do que a autora chama de “agentes de ligação”, destacando como o principal deles Ferninand Denis. Este escritor francês, especialista em estudos da História do Brasil, publicou em 1826, dez anos antes do Grupo de Paris, o Resumo da História Literária do Brasil, a primeiríssima tentativa de sistematização de nossa literatura. Três décadas depois da Revista de Niterói, tivemos mais uma importante publicação para esta fase inicial: em 1953, Francisco Adolfo Vernhagen lança seu livro Florilégio da Poesia Brasileira, uma antologia de poemas nacionais. Dez anos depois, é a vez de Ferdinand Wolf com O Brasil literário. Na visão de Vilalva (2008), o que unia todas estas obras em comum em suas contribuições para o nascimento de uma história literária brasileira era o desejo de unidade e integração nacional, só possível de ser alcançada pela integração literária.

FORMAÇÕES EM PERSPECTIVA A primeira periodização propriamente dita da nossa literatura veio com Silvio Romero em sua obra História da Literatura Brasileira, de 1888. A metodologia de pesquisa de Romero não se limitava apenas às obras, mas perpassava o momento histórico de escrita, a vida do autor e suas influências, até chegar finalmente à obra literária

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(VILALVA, 2008). Em contrapartida ao trabalho de Romero e já entrando no século XX, José Veríssimo publica História da Literatura Brasileira, com uma abordagem que valorava muito mais a estética das obras em sua análise, deixando em segundo plano o contexto histórico e as circunstâncias do autor. Esta dualidade entre contexto e estética viria a alimentar as discussões acerca do assunto no decorrer deste século. É nele, mais precisamente na década de 50, que a historiografia da literatura brasileira sofre uma grande revolução metodológica a partir dos trabalhos de Antônio Candido, Afrânio Coutinho e Haroldo de Campos. Todos estes importantes teóricos da nossa literatura serão devidamente abordados no decorrer deste ensaio, mas, por enquanto, voltemos aos oitocentos. Em 1873, Machado de Assis publicou um artigo denominado Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade, em que aborda a situação da literatura brasileira na época, bem como os desdobramentos da fase ainda inicial da historiografia feita acerca desta literatura. O parágrafo inicial deste artigo é tão fantástico e resume tão bem toda a questão oitocentista da literatura brasileira, que não vejo outra forma de destrinchar aqui sobre ele sem trazê-lo na íntegra: Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro. As tradições de Gonçalves Dias, Porto-Alegre e Magalhães são assim continuadas pela geração já feita e pela que ainda agora madruga, como aqueles continuaram as de José Basílio da Gama e Santa Rita Durão. [...] Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo. (MACHADO DE ASSIS, 1994)

Machado de Assis (1994) traz um conceito que será bastante abordado daqui para frente neste ensaio: a cor local. Segundo ele, o consenso geral da época jazia em produzir uma literatura mais independente, logo, mais brasileira. Esta cor local passava a fazer-se presente em todas as esferas da literatura: no romance, na poesia e também na própria opinião. Escritores buscavam mostrar em suas obras o que ele conceitua como os primeiros traços de nossa “fisionomia literária”. Um proeminente assunto, que por muito tempo, foi sinônimo de nossa cor local, fera o índio e a vida nas tribos. Machado (1994) cita O Uraguai de Basílio da Gama e Caramuru de Santa Rita Durão como precursores do que viria a ser, futuramente, a literatura brasileira, embora reconheça que o objetivo

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146 de ambos os escritores fosse muito mais exaltar a cor local que de fato promover uma literatura independente da Metrópole. O autor isenta, inclusive, estes escritores a quem chama “coloniais” de não terem contribuído para a independência literária do Brasil. Ora, numa época em que mesmo a independência política ainda era um brilho longínquo no futuro, em que a cultura e a educação da colônia ainda seguiam à risca os moldes de Portugal, seria injusto censurar Santa Rita Durão por descrever o Brasil tal como via, ou, em verdade, como o Brasil era visto por todos. Mas, resumir o Brasil aos indígenas não durou para sempre. Machado aponta ainda uma virada na representação da cor local que se deu posteriormente nos romances. Quando passaram a ser ambientados no interior do país, estas obras traziam costumes tradicionais brasileiros; já quando se passavam nas grandes capitais, exibiam os costumes pontuados por características europeias, sobretudo francesas, muito presentes na sociedade do Brasil colônia. Se por um lado Machado de Assis (1994) compreende a importância da cor local e exalta sua representação pelos poetas precursores da literatura brasileira, por outro, ele apresenta um contraponto, como já espera-se de um escritor tão crítico e consciente dos seus arredores. Para ele, não se pode reconhecer como nacional, apenas obras que apresentem a cor local, do contrário, a criatividade e a inspiração dos autores seria brutalmente limitada. A literatura de um país não pode ser limitada por suas fronteiras, a exemplo de Shakespeare que, com Hamlet, Otelo, Romeu e Julieta e principalmente Júlio César, não deixou de ser um escritor genioso por não retratar as cores de seu país. É literatura mundial, sim, mas antes, é literatura inglesa. Machado não nega, apesar disso, a importância de uma literatura se alimentar dos assuntos decorrentes de seu território, principalmente uma literatura nova, que está dando seus primeiros passos sozinha, como o caso da brasileira. Ele prefere exigir do escritor, primeiramente, um sentimento íntimo que o torne homem de seu tempo e de seu país, mesmo que trate de assuntos longínquos no tempo e no espaço. “Um poeta não é nacional só porque insere nos seus versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário e nada mais” (MACHADO DE ASSIS, 1994). Deixando para trás Machado e avançando para o século XX, temos um grande marco na historiografia de nossa literatura com a publicação de Formação da literatura brasileira do crítico Antônio Candido. A obra trouxe uma nova perspectiva historiográfica para o estudo da literatura brasileira, pautada na imprescindibilidade dos

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147 fatores externos para se entender qualquer realização literária, como o contexto sociopolítico, histórico e o público leitor; fatores caracterizados por Candido (1971) como “elementos sociais e psíquicos”. Os estudos de Candido (1971) foram revolucionários, não apenas por sua proposta metodológica mais atenta ao contexto, mas, por trazerem conceitos e proposições até então inéditos em nossa historiografia literária, como: a noção de continuidade e tradição literária, a importância do público para a literatura e a diferenciação entre literatura propriamente dita e manifestações literárias. Visto isso, comecemos pelos dois últimos conceitos apresentados. A obra de Candido foi um divisor de águas para a já mencionada “questão da origem” da literatura brasileira. Para o autor, o que tivemos no Brasil, de 1500 a meados do século XVIII, não fora literatura, mas uma sucessão de produções esparsas, rarefeitas, isoladas, sem continuidade e organicidade, ou seja, apenas manifestações literárias. A literatura só se torna propriamente literatura quando configura um conjunto coeso de obras, seguindo uma tradição pautada nas características e nos autores afins. Ainda segundo ele, só a partir da segunda metade do século XVIII, com o arcadismo, o Brasil passaria a ter uma literatura sistematizada e contígua (CANDIDO, 1971, p. 22). Este conceito de literatura enquanto sistema é crucial para a historiografia literária de Antônio Candido. Na visão dele, a literatura propriamente dita é um “sistema de obras ligadas por denominadores comuns” (CANDIDO, 1971, p. 23). Mas o que seriam estes denominadores comuns? A genialidade do crítico desponta em não olhar para apenas uma classe de características de uma obra, mas sim analisá-la em sua totalidade, interna e externamente. Candido (1971) valora tanto os elementos internos do sistema, como a língua, os temas abordados e a representação da cor local, bem como vai além, passando a dar conta também dos supracitados elementos de natureza social e psíquicas, o público leitor e a sociedade da época; elementos que se manifestam historicamente e fazem da literatura um aspecto orgânico da civilização. Estes elementos externos, novos para a historiografia literária no Brasil, vão desde a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel ao grupo heterogêneo dos receptores, fornecendo os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive (CANDIDO, 1971, p. 23). Para o autor, no Brasil, todos estes elementos só passam a convergir para o surgimento de uma literatura brasileira na fase neoclássica, com as academias, com a formação de grupos de escritores árcades e

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148 com a tomada de consciência por parte dos autores acerca de seu papel na literatura brasileira. Esta noção de literatura como sistema, como convergência de fatores externos e internos, deságua em outro conceito também cunhado por Candido (1971), o de continuidade literária. Isto é, a manutenção de tradição, como processo acumulativo, de seguimento de autores e obras pautados nos mesmos denominadores comuns. Para o crítico, é a partir dos anos 30 do século XIX que esta tradição se consolida e se consubstancia na literatura brasileira através do movimento romântico, desencadeado em Paris pelo Grupo de Paris, pela Revista de Niterói e por Gonçalves de Magalhães, todos estes já abordados no início deste ensaio. A importância de Formação da literatura brasileira atravessou décadas, não só por sua abordagem inovadora, mas também pelas objeções críticas às suas propostas inovadoras. Duas destas respostas, se é que assim podem ser chamadas, elevaram ainda mais o patamar da discussão sobre o início da literatura brasileira, na segunda metade do século XX, foram elas: Conceito de literatura brasileira, publicado por Afrânio Coutinho em 1960, e O sequestro do Barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos, de Haroldo de Campos, publicada em 1989. Apenas um ano depois da publicação de Formação, Coutinho (1981) tece sua crítica à metodologia sócio-histórica da historiografia de Candido, enfatizando, principalmente, a necessidade de pensar a história da literatura como uma história propriamente literária, em que, categorias, fases e periodizações fossem formuladas, não por critérios políticos como fizera Candido, mas puramente estéticos, voltados para os elementos internos da obra – os já mencionados cor local, temática e língua. O autor exaltava ainda a contribuição do Barroco para a gênese da literatura brasileira, defendendo a tese de que o barroco provocou a aproximação entre os valores da cultura europeia e os elementos indígenas, em que o processo de mestiçagem é a base de um americanismo embrionário. Assim, situava o início do barroco na literatura jesuítica do século XVI, argumentando que a produção voltada para a catequese procurava propor uma visão pessimista da vida terrena, e por isso exaltava os nomes de proeminentes escritores desta época, tais como Gregório de Matos, Padre Antônio Vieira e Padre Anchieta. Para ele, a literatura brasileira não teve início no arcadismo, tampouco no romantismo, mas sim no momento em que o primeiro homem europeu pôs os pés aqui,

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“iniciando uma nova realidade histórica, criando novas vivências que traduziu em cantos e contos populares, germinando uma nova literatura” (COUTINHO, 1981, p. 37-38). Já a crítica de Haroldo de Campos é um tanto mais pungente. Como o próprio título de seu livro indica, O sequestro do Barroco. Campos (1989) critica a linearidade da perspectiva histórica adotada por Antônio Candido, caracterizando-a como “um ideal metafísico de entificação do nacional” (p. 12) – seja lá o que isso queira dizer, seu modelo evolutivo e principalmente o fato de não considerar o Barroco como parte da literatura brasileira propriamente dita. Talvez o maior descontentamento de Campos para com Candido seja o fato de este “ignorar” a obra de Gregório de Mattos, poeta que o autor do Sequestro cita como um dos maiores da nossa literatura e que foi relegado por Candido ao status de mera manifestação artística, não sendo nem literatura propriamente dita. Talvez o maior acerto da crítica de Campos (1989) seja afirmar que a perspectiva histórica – termo que é posto entre aspas durante todo o livro – de Antônio Candido nunca foi desatrelada de ideologia. Segundo ele, traçar uma historiografia linear e evolutiva da literatura brasileira pressupunha que Candido delimitasse um ponto de partida para a nossa literatura, um “quando e como se definiu uma continuidade ininterrupta de obras e autores” (p. 15), e ao fazê-lo, Candido deliberadamente tomou escolhas ideológicas. Separando o que seria literatura brasileira e o que não seria, incluíram as seletas academias árcades e românticas, o resto, deixou de fora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS É difícil discordar que a escolha de Antônio Candido foi, de fato, ideológica, mas isso invalida sua relevância? Afinal, seus bem construídos conceitos de literatura como sistema, manifestações literárias e continuidade literária, formam um forte alicerce para sua escolha de fincar o ponto inicial da nossa literatura nos anos 1700. O que foi feito antes não é estritamente ignorado, mas sim recebe outra categoria, de acordo com os parâmetros de análise estabelecidos por Candido (1971). Dessa forma, entramos em uma outra discussão, que não surgiu nos dias atuais e cuja promessa é perdurar por mais algumas boas décadas: Gregório de Mattos, Antônio Vieira, Anchieta, devemos considerá-los literatura brasileira apenas por ser literatura de boa qualidade, ignorando sua ideologia colonial? Antes da formação do Estado brasileiro, a literatura era feita no Brasil, mas não para o Brasil. Se não era para a colônia, era para a Metrópole. Não seria então apenas

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150 mais um ramo da literatura portuguesa, apenas escrita ultramar? Avanços foram feitos através dos séculos, isto é inegável, mas a “questão da origem” da nossa literatura permanece em aberto.

REFERÊNCIAS CAMPOS, H de. O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos. Salvador: Casa de Palavras, 1989. CANDIDO, A. A formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 4. ed. São Paulo: Martins, 1971. COUTINHO, A. Conceito de literatura brasileira. Petrópolis: Vozes, 1981. LEONEL, M. C.; SEGATTO, J. A. Organização do Estado e formação da literatura. Disponível em: < http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1042>. Acesso em: 27 de Maio de 2017. MACHADO DE ASSIS, J. M. Literatura brasileira: instinto de nacionalidade. In: O Novo Mundo. Obra completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. VILALVA, W. M. Identidade e nacionalismo: caminhos da historiografia literária brasileira. In: Revista Alere, Universidade do Estado de Mato Grosso, v.1, n.1, 2008.

RECEBIDO EM: 13/10/2017 | APROVADO EM: 03/11/2017

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A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA NA ESCOLA PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE MAIS HUMANIZADA

Carolina Salvino Corrêa Universidade Federal de Uberlândia – UFU

RESUMO: A literatura possui um espaço reduzido nas escolas, sendo pouco abordada e raramente trabalhada em sua plenitude. Para (re)pensar o trabalho com a literatura nas escolas, é necessário entender qual sua função, como pode ser explorada e, acima de tudo, ter a consciência sobre como o texto literário pode influenciar as pessoas, tornando-as mais sensíveis e humanizadas. Atualmente, muito tem se falado sobre o letramento literário; estudiosos como Rildo Cosson (2006) e Rosemar Coenga (2010) iniciaram os trabalhos nessa área, problematizando e teorizando sobre novas abordagens de ensino e de formação de leitores. Assim, é de suma importância ter conhecimento sobre outras formas de ensino do texto literário, visando proporcionar, acima de tudo, prazer, autoconhecimento, criticidade e, consequentemente, leitores e cidadãos mais humanizados. PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Letramento literário. Ensino.

The importance of Literature in school for the building of a more humanized society

ABSTRACT: Literature presents a limited space in schools, being very little approached and rarely explored in its totality. To (re)consider work of literature in schools, it is necessary to understand what's its function, how it can be explored and, most of all, to be aware of how literary texts can impact on people, making them more sensitive and humanized. Currently, there has been much talk about literary literacy; researchers such as Rildo Cosson (2006) and Rosemar Coenga (2010) initiated work in this field, questioning and theorizing new approaches for teaching and readers' formation. Thus, it is extremely important to have knowledge about other manners of teaching literary texts, aiming to provide, foremost, pleasure, self-awareness, criticality and, consequently, more humanized readers and citizens. KEYWORDS: Literature. Literary literacy. Teaching.

INTRODUÇÃO Este artigo é fruto das discussões e reflexões da leitura de textos teóricos sobre o ensino de literatura nas escolas, realizada na disciplina de Estágio Supervisionado de Literatura 1, ministrado pela Professora Doutora Marisa Martins Gama-Khalil, da Universidade Federal de Uberlândia. As principais discussões realizadas aqui pertencem ao universo da educação, mais especificamente à escolarização da literatura, ao ensino de literatura e à importância da literatura para a sociedade.

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Dessa forma, será feito um apanhado teórico sobre o(s) conceito(s) de literatura e da noção de letramento literário, procurando justificar sua necessidade no espaço escolar e, posteriormente, na sociedade. Ademais, será discutido o ensino de literatura propriamente dito juntamente com a questão de formação de leitores, refletindo sobre o atual ensino de literatura e como ele se encontra defasado. Por fim, destacaremos o quão essencial é a presença da literatura nas escolas, atuando na vida das pessoas e refletindo no social.

O(S) CONCEITO(S) DE LITERATURA E O LETRAMENTO LITERÁRIO Muito se fala sobre literatura, uma vez que essa palavra está relacionada diretamente aos livros. Porém, dentro dos espaços escolares, pouco se fala sobre o que é de fato literatura e principalmente para quê ela serve. Não existe uma definição pronta e acabada sobre o que vem a ser a literatura, assim como não há uma única definição. Há muitas definições do que é literatura e de suas funções, como defendeu Antonio Candido em A Literatura e a Formação do Homem (1972) e em seu texto Direitos Humanos e Literatura (1989). Neste último, o escritor conceitua literatura como sendo todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de uma cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. Vista desse modo, a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Sabe-se que toda sociedade possui sua cultura, e essa cultura é ou pode ser representada na literatura, e a literatura também faz parte da cultura. Ao questionar para quê serve a literatura, Antonio Candido diz: “A função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza, que explica inclusive o papel contraditório mas humanizador (talvez humanizador porque contraditório) (1995, p. 176). Assim, a função humanizadora da literatura, além de exprimir o homem, também ajuda na construção de sua formação. De acordo com Candido (1972), há duas funções voltadas à literatura, trata-se da função psicológica e da função formadora. A primeira está relacionada com uma característica própria do ser humano, se baseia numa espécie de necessidade universal de ficção e de fantasia. A segunda é mais complexa do que pressupõe a visão da pedagogia tradicional. A obra literária merece um enfoque que ultrapasse seus limites estruturais, mostrando que a literatura tem uma força capaz de tornar o homem mais humano.

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A literatura é um direito humano e há duas formas de relacioná-la com os direitos humanos, ainda de acordo com Candido (1989). A primeira se dá através de seu intrínseco caráter humanizador, nessas três funções: caráter estético (a obra como construção); caráter subjetivo (a obra como tradutora se sentimento) e caráter informativo (a obra como transmissora de conhecimento). A segunda é servir como crítica social e explícito questionamento sobre os próprios direitos humanos. Cada caráter referente à literatura, defendido pelo autor, diz respeito ao texto literário e o fazer literário. Para ser literatura, é necessário um trabalho estético com a linguagem, essa que irá representar a vida, ser o reflexo de uma sociedade com uma crítica implícita. Uma outra definição de literatura é feita por Jonathan Culler (1999), segundo o qual ele afirma que: A literatura é o ruído da cultura assim como sua informação. É uma força entrópica assim como um capital cultural. É uma escrita que exige uma leitura e envolve os leitores nos problemas de sentido. A literatura é uma instituição paradoxal porque criar literatura é escrever de acordo com fórmulas existentes - produzir algo que parece um soneto ou que segue as convenções do romance - mas também é zombar dessas convenções, ir além delas. A literatura é uma instituição que vive de expor e criticar seus próprios limites de testar o que acontecerá se escrevermos de modo diferente. Assim, a literatura é ao mesmo tempo o nome do absolutamente convencional e do absolutamente demolidor, em que os leitores têm de lutar para captar o sentido. (1999, p. 47)

Como afirma Culler (1999), novamente, literatura é a cultura de um povo. A escrita pode ser a transcrição de um sentimento, a fuga daqueles que não têm voz, o registro de uma época, a estética, a história. Tudo pode acontecer no universo da literatura e essa liberdade traz a sensação de independência. Literatura é, então, acima de tudo, representatividade. De acordo com Cosson (2006, p. 47), a literatura é uma linguagem que compreende três tipos de aprendizagem, sendo elas a aprendizagem da literatura, que consiste fundamentalmente em experienciar o mundo por meio da palavra; a aprendizagem sobre a literatura, que envolve conhecimentos de história, teoria e crítica; e a aprendizagem por meio da literatura, nesse caso, os saberes e as habilidades que a prática da literatura proporciona aos seus usuários. A escola é responsável por transmitir, também, conhecimentos culturais aos alunos e a literatura é um dos - senão o - principais meios para tornar esse ensino completo. Dessa forma, é necessário pensar a escolarização da literatura, para que ela não

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154 se torne mecânica, sem finalidade e mero instrumento de avaliação. Assim, começa-se a pensar no que conceitua-se hoje como letramento literário. O conceito de letramento literário surgiu a partir das reflexões feitas sobre o ensino de literatura nas escolas, nas quais (ainda hoje) questiona-se “a leitura é fonte de prazer ou avaliação?”; “os alunos têm voz sobre suas leituras do texto?”; “a escola tem feito seu papel para expandir o envolvimento com a literatura?” (COENGA, 2010). A autora Rosemar Coenga, em Margeando o conceito de letramento literário (2010), faz essas indagações, além de “qual o desafio imposto aos professores de Língua Portuguesa para formar o leitor?”. Esse último questionamento se dá devido ao atual modelo de ensino e à necessidade do professor ter bagagem de leitura. O modelo atual de ensino, mais conhecido como ensino tradicional, transformou o ensino de literatura em algo utilitário, com um motivo funcional em resposta à uma sociedade imediatista a qual a nossa se encontra. A falta de informação por parte do professor leva à repetição de modelos de ensino para o Ensino Fundamental (doravante EF) e à predominância da abordagem historicista da literatura com foco em livros que caem no vestibular para o Ensino Médio (doravante EM). Isso remete a um ensino tecnicista e tradicionalista, o qual vê a literatura como um objeto de estudo limitado, com poucas reflexões das práticas sociais que a constitui. De acordo com Kleiman (1995), o letramento é um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos. Coenga (2010) acrescenta à definição de Kleiman (1995), dizendo que na aplicação desse termo aos estudos literários, acrescenta-se ao termo letramento o adjetivo literário, assumindo, dessa maneira, a seguinte conceituação: (...) conjunto de práticas sociais que usam a escrita literária, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos (COENGA, 2010, p. 55). De acordo com Cosson (2006), o letramento literário pode ser efetivado de várias maneiras, mas há quatro características que são fundamentais. A primeira é que não há letramento literário sem o contato direto do leitor com a obra, ou seja, é preciso dar ao aluno a oportunidade de interagir ele mesmo com as obras literárias. Dessa forma, a melhor maneira de ensinar literatura é fazer com que o aluno se aproxime com o texto literário. A segunda é o processo do letramento literário passar necessariamente pela construção de uma comunidade de leitores, isto é, um espaço de compartilhamento de

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155 leituras no qual há circulação de textos e respeito pelo interesse e pelo grau de dificuldade que o aluno possa ter em relação à leitura das obras. Também precisa ter como objetivo a ampliação do repertório literário, no qual cabe ao professor acolher no espaço escolar as mais diversas manifestações culturais, reconhecendo que a literatura se faz presente não apenas nos textos escritos, mas também em outros tantos suportes e meios. Finalmente, o objetivo é atingido quando se oferecem atividades sistematizadas e contínuas direcionadas ao desenvolvimento da competência literária, cumprindo-se, assim, o papel da escola de formar o leitor literário. Dessa maneira, Cosson (2006) diz devemos compreender que o letramento literário é uma prática social e, como tal, responsabilidade da escola. A questão a ser enfrentada não é se a escola deve ou não escolarizar a literatura, mas sim como fazer essa escolarização sem descaracterizá-la, sem transformá-la em uma simulacro de si mesma que mais nega do que confirma seu poder de humanização.

ENSINO DE LITERATURA E FORMAÇÃO DE LEITORES De acordo com Perrone-Moisés (2016), a discussão sobre o ensino da literatura no Brasil tem se prolongado há mais de uma década. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) têm sido criticados e refeitos sem que se chegue a uma conclusão. Incluída na área de “Linguagens, códigos e suas tecnologias”, a literatura é vista como uma técnica de linguagem verbal, e a linguagem verbal é apenas uma entre outras linguagens. De fato, a literatura é um trabalho com a linguagem, do ponto de vista estético, mas não pode ser reduzida apenas a essa visão simplista, como se a linguagem literária fosse só uma variante da nossa língua. A linguagem literária deve ser vista por seu caráter poético, crítico e enriquecedor. Barthes (1977) diz que a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhe dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso. Perrone-Moisés (2016) completa a afirmativa anterior, dizendo que para lidar com as formas que produzem esses significados, o estudo da literatura exige uma base teórica e uma terminologia específica, que também não deve ser fetichizada. Uma das alegações que a autora traz sobre o ensino tradicional de língua se refere ao pretenso elitismo desse ensino. O que acontece nas escolas é uma certa subestimação dos alunos no contato com o texto literário, julgando ser difícil. De fato, a linguagem literária possui certa complexidade, mas a complexidade é uma questão de nível, defende Perrone-Moisés (2016). Dessa

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156 forma, o ensino da literatura deve ser gradual e começar desde o EF. Uma vez que o trabalho com a literatura faça os alunos construírem pontes de aproximação com o texto literário, seu ensino não será dificultado nos anos finais do EM. Antoine Compagnon (apud PERRONE-MOISÉS, 2016) pergunta: Literatura para quê? E responde: A literatura deve, portanto, ser lida e estudada porque oferece um meio - alguns dirão até mesmo único - de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distante de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida. Ela nos torna sensíveis ao fato de que os outro são muito diversos e que seus valores se distanciam dos nossos. (2016, p. 79).

LITERATURA IMPORTA: SOBRE O MOVIMENTO DA LEITURA Antonio Candido, em Direito à Literatura (1995), defende que: (...) talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. Neste sentido, ela pode ter importância equivalente à das formas conscientes de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou escolar. Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e a atuação deles. (1995, p. 175).

Logo, para atingir certo equilíbrio social, é necessário que a literatura esteja presente na vida das pessoas, e ela só se tornará presente se as escolas apostarem na formação do leitor crítico, que tenha competência literária e se a sociedade cultivar a cultura da leitura. A literatura nos faz conhecer a nós mesmos, abre um leque de experiências e contextos que nos põe a pensar e refletir sobre quem somos. Uma sociedade que tem essa maturidade e essa consciência de conhecer e criticar para se auto conhecer será um sociedade mais humanizada. Cosson (2006) afirma, complementando Candido, que a literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada. Logo, a experiência literária não só ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

157 nos permite saber da vida por meio da experiência do outro, como também vivenciar essa experiência. Larrosa (2000) reforça a importância da leitura, dizendo que ler não é um dever no sentido de uma obrigação, mas no sentido de uma dívida ou tarefa. Uma dívida é a responsabilidade que temos para com aquilo que nos foi dado ou enviado. Já uma tarefa é algo que nos põe em movimento. É justamente essa definição de tarefa que caracteriza a leitura, esse movimento entre saberes é o que nos põe no caminho da aprendizagem e do autoconhecimento. O movimento de pensar é um movimento de descoberta, pois nossos pensamentos são estimulados por situações que temos conhecimento, só pensaríamos em determinada situação, por exemplo, se tivermos contato com essa situação. Nem sempre a vivência é capaz nos colocar em contextos em que precisamos pensar e refletir e, na leitura, é possível extrapolar fronteiras, porque o texto não tem limites, não tem um ponto final, uma resposta certa por detrás das palavras. Por isso, a literatura e a formação de leitores competentes são importantes para a (des)construção de uma sociedade plural e humanizada.

REFERÊNCIAS BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Língua Portuguesa. Ensino Fundamental. Terceiro e quartos ciclos. Brasília: MEC/SEF, 1998. CÂNDIDO, Antônio. A literatura e a formação do homem. Ciência e cultura. São Paulo, 1972. CÂNDIDO, Antônio. Direitos Humanos e literatura. In: A.C.R. Fester (Org.) Direitos humanos E… Cjp / Ed. Brasiliense, 1989. CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: A.C.R. Fester (Org.). Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 1995. BARTHES, Roland. Aula. Tradução e Posfácio Leyla Perrone-Moisés, 1997. COENGA, Rosemar. Letramento Literário: diálogos. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2010. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. São Paulo: Beca produções culturais Ltda, 1999. KLEIMAN, Angela B. (1995). “Introdução: Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola”, in: KLEIMAN, Angela B. (org.) Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras. LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Trad. Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. - 1ª edição - São Paulo: Companhia das Letras, 2016).

RECEBIDO EM: 07/10/2017 | APROVADO EM: 20/10/2017

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RAUL SEIXAS COMO LEITOR DE SCHOPENHAUER: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS COISAS DO CORAÇÃO

George Felipe Bernardes Barbosa Borges Universidade Federal de Goiás – UFG

RESUMO: “O anelo do amor, que os poetas de todos os tempos estão continuamente ocupados em expressar de mil formas, sem esgotar o seu objeto e mesmo sem poder dar conta dele de modo extenuante (...)”. A frase pertence a Arthur Schopenhauer, filósofo alemão que em sua Metafísica do Amor analisa a manifestação do amor entre seres humanos, e sua relação com a Vontade, cerne de todo seu sistema. O presente artigo se trata da interpretação de uma das milhares de poesias elaboradas – como denunciou Schopenhauer – ao longo dos tempos sobre o amor, – mais precisamente de uma canção de Raul Santos Seixas intitulada “Coisas do Coração”. Nas páginas subsequentes, a partir da teoria da indestrutibilidade da espécie, pretendo fazer uma análise da música com o objetivo de estreitar a relação entre a música de Raul Seixas e a filosofia schopenhauriana; mostrar como o compositor, que se enxergava um estudioso da área, se apoderou da filosofia do pessimista alemão para compor uma das mais belas músicas de sua discografia. PALAVRAS-CHAVE: Raul. Seixas. Schopenhauer. Interpretação. Filosofia.

Raul Seixas reads Schopenhauer: considerations about Coisas do Coração

ABSTRACT: “The longing of love, the illepoq, that the poets of all ages are for ever concerned to express in innumerable forms, a subject which they do not exhaust, in fact to which they cannot do justice (...)”. The phrase belongs to Arthur Schopenhauer, german philosopher que in your Metaphysics of Sexual Love analyzes love manifestation among human beings, is his relationship with will, the heart of all his system. The presence this article if the a interpretation of thousands of poetry elaborate - as reported Schopenhauer - along times about love. More precisely from a song of Raul Santos Seixas entitled "Coisas do Coração". On subsequent pages, the from the kind of indestructibility theory I intend to make a music analysis with the objective of strengthening the relationship between the music of Raul Seixas and philosophy of Schopenhauer; Show as the composer, which it saw hum scholar area, seized the german pessimist philosophy to compose one of the most beautiful songs of your discography. Keywords: Raul. Seixas. Schopenhauer. Interpretation. Philosophy.

INTRODUÇÃO Raul Santos Seixas (1945-1989) é o grande nome deste artigo em conjunto com o filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860), – o que logo deve suscitar dúvidas nos leitores: qual a relação entre o rockeiro baiano e um dos mais notáveis seguidores de

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Kant? Pois bem, – é precisamente a genialidade de suas obras que consegue unificá-los no decurso do tempo. Na canção “Senhora Dona Persona”62, Raul faz uma referência direta a Schopenhuaer, quando canta na música: “os homens passam, as músicas ficam”. Este filósofo, ao diferenciar honra de glória, dividiu ainda a categoria glória em duas modalidades – os feitos e as obras63. Raul Seixas segue essa trilha na frase da última estrofe da música, em que se coloca como um homem de glória e suas músicas como obras, com arranjo similar com que Schopenhauer elaborou sua teoria64. Este foi apenas um dos vários pontos de convergência que pode-se observar entre Raul e Schopenhauer, – perceptível na própria confecção das músicas, no processo de composição, gravação e de veiculação. Raul Seixas, ao compô-las, deu material permanente para devaneio e reflexão. Esse mérito, por assim dizer, é totalmente dele. Na outra ponta da história está a contribuição de Schopenhauer, que muniu muito bem Raul com belíssimos escritos metafísicos acerca da morte (tema tão caro em toda discografia do Maluco Beleza), liberdade, estética, mas sobretudo, no caso do presente artigo, sobre o amor. Na filosofia de Schopenhauer, podemos especular algumas respostas e intepretações para muitas músicas de Raul. E, por conseguinte, ao fazer isso, tracei um elo mais firme entre a relação de Raul Seixas com a filosofia. Aqui se finda a proposta do presente artigo: explicitar o movimento de apropriação do músico brasileiro pelo pessimista alemão, particularmente por meio da música “Coisas do Coração”65, lançada no álbum “Raul Seixas” pela gravadora Eldorado em 1983.

62 “Senhora Dona Persona (Pesadelo Mitológico n º 3)”. A Pedra do Gênesis. Philips e Copacabana Polygram, 1988. 63 Para mais sobre a discussão entre a honra e a glória em Schopenhauer a bibliografia recomendada são Aforismos para sabedoria de vida, 2009, Trad. Jair Barboza, Martins Fontes; e A arte de se fazer respeitar, 2004, Trad. Mária Lúcia Cacciola, Martins Fontes. 64 “[...] os feitos passam, as obras permanecem. Dos feitos, permanece apenas a lembrança, que se torna cada vez mais fraca, desfigurada e indiferente, e que está até mesmo fadada a extinguir-se gradualmente, caso a história não a recolha e transmita para a posteridade em estado petrificado. As obras, ao contrário, são imortais e podem, pelo menos as escritas, sobreviver em todos os tempos.” (Schopenhauer, 2009, p.117) 65 “Quando o navio finalmente alcançar a terra/ E o mastro da nossa bandeira se enterrar no chão/ Eu vou poder pegar em sua mão/ Falar de coisas que eu não disse ainda não/ Coisas do coração!/ Coisas do coração!/ Quando a gente se tornar rima perfeita/ E assim virarmos de repente uma palavra só/ Igual a um nó que nunca se desfaz/ Famintos um do outro como canibais/ Paixão e nada mais!/ Paixão e nada mais!/ Somos a resposta exata do que a gente perguntou/ Entregues num abraço que sufoca o próprio amor/ Cada um de nós é o resultado da união/ De duas mãos coladas numa mesma oração!/ Coisas do coração!/ Coisas do coração!”, Raul Seixas. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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A MÚSICA EM SCHOPENHAUER A relação entre Schopenhauer e a música ficou registrada nas preleções lidas na Universidade de Berlim em 1820. Depois, em 1859, quando foi lançado o livro que o deixou famoso, Parerga e Paralipomena, essa preleção foi publicada no capítulo 19 do Tomo Dois da obra, entre os parágrafos 205 e 234. Nesse pequeno capítulo, intitulado Metafísica do Belo e Estética66, o filósofo alemão descreve com mais detalhes e faz a análise de como a estética pode ser assimilada em seu sistema filosófico. Ele parte do ponto de que o Belo, seja qual for sua categoria artística apreende a Ideia do mundo e a descreve, e todo esse processo é feito com a completa destituição de interesse. “Se devemos conceber a essência íntima de alguma coisa, a Ideia que nela se expressa, não podemos ter o mínimo de interesse por essa coisa, isto é, ela não pode ter relação alguma com a nossa vontade” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 450). No fundo, para um artista fazer arte, segundo Schopenhauer, ele precisa perder sua individualidade – nisto consiste a destituição de interesse – e apreender a coisa-em-si do objeto que lhe serve de inspiração. Por exemplo, quando Degas pintava as bailarinas, ele não estaria pintando-as como “fenômeno” ou “representação” da Vontade no mundo, e sim captava a essência contida nelas e, através da ponta de seus pincéis eternizava essa essência apreendida. Pois bem, esse modelo estético funciona em graus de abstração da Ideia. No nível mais baixo está a arquitetura e a hidráulica; num segundo nível, a jardinagem e a pintura de paisagem; acima destes, a pintura dos animais; depois, a escultura; e em penúltimo grau está a poesia; por fim, a música é o mais alto e mais belo meio da arte. Todas as outras artes são a cópia da Ideia da essência das coisas; a música, não. Segundo Schopenhauer, a música é a própria Ideia, ou seja, expressão direta da Vontade. De fato, a música é uma cópia e objetidade67 tão imediata de toda Vontade como o mundo o é, até mesmo como o são as Ideias, cujo fenômenos variados constituem o mundo das coisas singulares. A música, portanto, não é de modo algum, como as outras artes, cópia de Ideias, mas cópia da própria Vontade, da qual as Ideias também são objetidade. (SCHOPENHAUER, 2003, p. 230)

66 Para mais sobre este tema a bibliografia recomendada é Metafísica do Belo, 2003, trad. Jair Barboza, Martins Fontes. 67 Objetidade é um conceito traduzido por Jair Barboza. Segundo ele “o termo Objektität, neologismo de Schopenhauer costuma provocar confusão entre tradutores, que às vezes o vertem por ‘objetividade’, termo inadequado, pois faz perder de vista o caráter inconsciente de imediatez do ato da vontade, anterior ao seu tornar-se fenômeno consciente na intuição do entendimento”. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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É nesse patamar que se situa a música no sistema filosófico schopenhauriano. Como uma entidade metafísica, ela subordina a matemática e a razão em seus domínios para fazer lograr a melodia e submete os conceitos para que as letras sejam criadas e cantadas. Por isso, Schopenhauer afirma que “a música em seu todo é a melodia da qual o mundo é o texto” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 235). A partir desta pequena introdução, percebe-se que Raul e Schopenhauer não estão tão distantes um do outro, pois conservam alguns interesses em comum, em especial a música. A música, como já supracitado, pretendida como objeto de estudo para o presente artigo é a “Coisas do Coração”. Pode-se enxergar uma relação plausível no processo de composição da música por Raul, Cláudio Roberto e Kika Seixas e a filosofia exposta em Metafísica do Amor. Sob a luz deste livro, tentarei dar uma interpretação mais sólida para a música. Para cumprir tal intento, primeiramente irei expor nos parágrafos subsequentes informações básicas, a fim de suprir o leitor menos familiarizado com a construção filosófica de Schopenhauer.

A FILOSOFIA DE SCHOPENHAUER Schopenhauer, em sua obra magna, O Mundo como Vontade e como Representação, divide o mundo em dois espectros: Vontade e Representação. O primeiro espectro é a forma que o filósofo vê a coisa-em-si kantiana. A vontade é um ímpeto cego, eterno que está no cerne do mundo. A Representação, no entanto, é o que o sujeito cognoscente68, isto é, o sujeito que conhece o mundo, que é capaz de enxergar objetidades dessa Vontade, o faz segundo o princípio de razão69. Em resumo, Schopenhauer acredita que o mundo é a Representação dos fenômenos que se expressa em diferentes graus, regida sempre pela Vontade. Tudo que Schopenhauer escreveu após O Mundo... foi a partir desse pensamento fundamental. Toda sua filosofia está em perfeita harmonia com as teses de sua obra-prima publicada no ano de 1819. A partir disto, pode-se entender com mais facilidade as ideias que ele postulou na Metafísica do Amor.

68 “Aquele que tudo conhece mas não é conhecido por ninguém é o SUJEITO. Este é, por conseguinte, o sustentáculo do mundo, a condição universal e sempre pressuposta de que tudo oque aparece, de todo objeto, pois tudo que existe, existe para o sujeito” (Schopenhauer, 2006, p.45). 69 Sobre o princípio de razão suficiente consultar a nota de Jair Barboza em O Mundo como Vontade e como Representação, 2005, p. 48, Editora Unesp. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Basicamente, este capítulo, publicado como livro no Brasil70, trata acerca da indestrutibilidade da espécie. Como o que governa o mundo é a Vontade, o impulso do enamorar-se presente nos menores e nos maiores amores nada mais é que a expressão orgânica do ímpeto irracional schopenhauriano. In summa, “o que aí é decidido não é nada menos do que a composição da próxima geração” (SCHOPENHAUER, 2000, p. 8). Segue-se disso que todo romance é na verdade um vislumbramento da procriação perfeita de um determinado indivíduo. “Que esta criança determinada seja procriada, eis o verdadeiro fim de todo romance de amor, apesar de ser inconsciente para seus participantes: a maneira de atingi-lo é secundário.” (SCHOPENHAUER, 2000, p. 10). Schopenhauer, assim, conclui que como os homens são a objetidade da Vontade e o enamorar-se um impulso desta em se perpetuar, tão logo o amor se baseará em amor sexual. Esse amor sexual pode se manifestar de vários modos – por exemplo, de maneira bela, como dois indivíduos que se apaixonam à primeira vista e permanecem juntos até findarem; de maneira trágica, tal como conta Shakespeare em Romeu e Julieta; e de maneira violenta, como os casos de estupros presentes em todos os tempos. Essa é a primeira lição dada na Metafísica do Amor – a espécie faz com que os homens se impulsionem a procriar para sua própria autoconservação, independente das circunstâncias ou das consequências. O arrebatamento vertiginoso que toma o homem quando ele vê uma mulher cuja beleza é para ele das mais adequadas, e lhe preludia a união com ela como o sumo bem, é justamente o sentido da espécie, que, reconhecendo sua estampa nitidamente expressa, gostaria de perpetuar- se com ela. (...) O que, portanto guia aqui o homem é realmente um instinto, orientado para o melhor da espécie, enquanto ele imagina procurar apenas o supremo gozo pessoal. (Schopenhauer, 2000, p. 17).

Esse “instinto” do qual fala o pessimista alemão é a ilusão de que o homem em questão está fazendo uma escolha deliberada e livre ao procurar uma mulher que julga lhe apetecer. Todavia, o que realmente acontece é a espécie se fazendo imperativa e impondo-se diante do homem. Por conta desse apoderamento que a Vontade, na roupagem de espécie, faz do indivíduo, Schopenhauer afirma: [...] a perda da amada para um rival, ou para a morte, é também sentido pelo amante apaixonado como uma dor que supera qualquer outra, justamente porque é de tipo transcendente, já que afeta não apenas o indivíduo, mas o atinge em sua essentie aerterna [essência eterna], na vida da espécie, para cuja vontade especial e missão ele estava aqui ocupado. (SCHOPENHAUER, 2000, p. 40).

70 O capítulo 44 do Tomo II de O mundo como Vontade e como Representação, recentemente traduzido por Jair Barboza, antes foi publicado pela Martins Fontes em 2000 com tradução de Cacciola. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Para comprovar a tese de que esse arrebatamento que afeta todos tem fundamento, o autor lança mão de argumentos que irão ressoar, mais tarde, na teoria de Freud. Em primeiro caso, ele dividirá o amor em duas ordens: o amor sexual, como já falado anteriormente e o amor apaixonado, que será apresentado logo mais. O amor sexual é alicerçado nas considerações absolutas. Essas considerações são os elementos básicos que fazem com que dois seres humanos se unam. A maioria esmagadora dos relacionamentos é baseada nesse princípio. Atributos vitais como saúde, força e beleza são levados em contam preliminarmente porque garantem à espécie maior longevidade. Num segundo nível, quando o enamorar-se se torna amor apaixonado entra em cena a ideia de neutralização: Para que nasça uma tal inclinação realmente apaixonada exige-se algo que só se deixa expressar mediante uma metáfora química: ambas as pessoas têm de se neutralizar mutuamente, como ácido e álcali num sal neutro. (SCHOPENHAUER, 2000, p. 29).

A neutralização se justifica porque o que se tem em mente em um relacionamento é a espécie vindoura, ou seja, os filhos. O que influencia no processo do amor sexual ao apaixonado é a necessidade de se ter o oposto de si. “Aqui, pois, cada um ama o que lhe falta” (SCHOPENHAUER, 2000, p. 29). Assim, segundo Schopenhauer, o indivíduo busca em seu parceiro as perfeições que ele não tem. Essas perfeições singulares que o indivíduo percebe que não tem em si e se esforça em achar em outrem são chamadas de considerações relativas. O filósofo foi minucioso ao listar no livro e explicar observações referentes à altura, ao cabelo, à idade, ao esqueleto, beleza do rosto etc. Notações como estas têm como objetivo retificar a espécie, corrigindo as imperfeições presentes nos indivíduos que agora são e logo deixaram de ser para que os indivíduos que virão venham melhores. Manifestando-se nos dois tipos de amor que apresentei acima (sexual e apaixonado), a espécie se torna indestrutível. Por conta de tudo isso, é-me lícito concluir que a espécie toma-nos de uma ilusão para que possa se perpetuar, ilusão esta chamada pelo filósofo alemão de amor, paixão.

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Ao final do livreto, Schopenhauer faz um resumo do tema e nomeia como “assuntos do coração71” (SCHOPENHAUER, 2000, p. 53), que serve de ensejo para uma aproximação com Raul Seixas, já que, além da música em questão72 ter praticamente o mesmo nome, o seu conteúdo apresenta, ao menos nesta interpretação, como irei expor a seguir, um traçado bem schopenhauriano.

RAUL SEIXAS E A FILOSOFIA Não é possível estabelecer com absoluta certeza se Raul leu de fato a Metafísica do Amor e se o que influenciou o trio a compor a música foi o conteúdo trazido nessas páginas, mas tampouco minha tarefa aqui é determinar isso. Este artigo não trata de um empreendimento biográfico e sim interpretativo. Todavia, para fins de harmonização e uma maior consistência no diagnóstico tentarei expor alguns elementos que levantam uma suspeita, para dizer o mínimo, de que Raul era um conhecedor de filosofia e de Schopenhauer. Eu sou muito dado a filosofias, eu estudei muito filosofia, principalmente a metafísica, a ontologia, essa coisa toda. Sempre gostei muito, me interessei. Minha infância foi formada, vamos dizer, por um pessimismo incrível, de Augusto dos Anjos, de Kafka, Schopenhauer. (SEIXAS, 1990, p. 86)

Raul gostava de se enxergar como um estudioso de filosofia. Existem no imaginário popular algumas histórias sobre isso que o próprio incitou. Em uma entrevista, Raul afirmou que havia ido ao Rio de Janeiro para lançar seu tratado de metafísica73. Chegando lá, segundo ele, percebeu que ninguém gostava de ler e passou a se dedicar à música. A história real não é bem essa. Ele teria ido ao Rio em 67 junto com a família, os Panteras e Jerry Adriani em busca de um lugar na capital cultural do país. Raul havia preterido a filosofia em virtude do Rock n’ Roll há muito tempo. Como conta ele, quando conheceu Elvis Presley por intermédio de seus vizinhos americanos sua vida adquiriu um novo significado. A música e a literatura se misturaram; poderia ter sido escritor, mas canalizei para o rock. Troquei a filosofia pela música porque um

71 Em inglês o termo foi traduzido como “affair of the heart” por Payne. Em alemão o próprio Schopenhauer descreve o tema como “Die Herzensangelegenheit wird”. 72 “Coisas do Coração”. Raul Seixas. Eldorado, 1988. 73 “É, eu sou professor de filosofia. Não, quando eu vim pro Rio de Janeiro em 67, eu vim com aquele idealismo todo, eu vim lançar um tratado de metafísica, chamado o Verbalóide, que é assim uma visão do ser humano olhada por uma entidade de outro planeta. É a maneira que eu coloquei a coisa, onde se usa o verbo ser, eu sou, nós somos né!”. Raul Santos Seixas em entrevista concedida à Rádio Cultura AM de São Paulo. Programa Música Popular Brasileira, 19/01/1976. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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microfone é mais importante do que qualquer outra coisa. (...) É isso: eu uso a minha música para passar minhas ideias, para colocar adiante o que eu aprendi com a filosofia. (SEIXAS, 1995, p. 59)

Raul se enxergava e se colocava como um estudioso de filosofia, um intelectual. No livro A trajetória social de Raul Seixas, Lucas Souza faz uma análise bem interessante desse comportamento. De acordo com ele, Raul teve que aceitar e entrar nos personagens para conseguir atender as exigências da época; era uma necessidade que o mercado musical de 1970, com o movimento intelectual da tropicália, e de 1980, com a profissionalização do Rock no Brasil, impunham sobre ele74. Entretanto, mesmo levando em conta essa tese da subserviência da cultura, da filosofia e da erudição, que, de fato, é bastante razoável, Raul tinha certa familiaridade com esse campo do saber. Talvez tenha sido muito influenciado por seu pai neste ponto. Raul Varella Seixas era um homem de família rica, portanto, tinha acesso à cultura e educação que poucos tinham em sua época. E a partir dos próprios relatos de Raul, seu pai era dono de um acervo de livros aos quais pôde ter acesso ainda muito jovem. Meu pai sempre teve uma influência muito grande sobre mim. Ele era engenheiro. Sempre foi um cara muito lido, tinha muitos livros e lia para mim desde que eu era pequeno. Me impressionei com Dom Quixote de La Mancha, o Tesouro da Juventude, O Livro dos Porquês. Muitos livros de astronomia, sobre o universo, que me fascinavam. Meu pai sempre gostou de mistérios, de coisas estranhas, e me meteu nesse mundo estranho, de tudo que é inexplicável na face da Terra, debaixo do mar, no céu. (SEIXAS, 1990, p. 14)

Em razão desses apontamentos é que tento fundar os alicerces da minha interpretação. Saliento novamente, o caráter do artigo não é biográfico, mas as informações que trazem delimitações mais claras entre a relação de Raul com a filosofia ajudam a traçar com mais confiança interpretações de viés mais filosófico. Ao longo de toda discografia de Raul aparecem menções muito explícitas a livros de filosofia e poesia. Na música “Mosca na Sopa”75, feita no primeiro LP solo, Raul certamente busca inspiração em Schopenhauer. O compositor brasileiro cantou: E não adianta vir me dedetizar Pois nem o DDT pode assim me exterminar Porque 'cê mata uma e vem outra em meu lugar76

74 “A fama de contraventor, incompreendido e excêntrico que nutriu a construção imagética do cantor durante toda sua trajetória artística, e também após sua morte, não é, portanto, mero produto de suas escolhas deliberadas, ou marcas de uma “genialidade” artística que o caracterizava. Essas rupturas foram, na realidade, moldadas pelas exigências que sobre ele recaíam ao longo de sua trajetória”. (Souza, 2013, p. 79). 75 “Mosca na Sopa”. Krig-há, Bandolo!. Philips Records, 1973. 76 Ibidem. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Já Schopenhauer escreveu sobre a mosca em duas oportunidades com contexto muito semelhante. Primeiro, na Metafísica da Morte – sobre a morte e sua relação com a indestrutibilidade de nosso ser em si77: Se a mosca, que agora zumbe em torno de mim, adormece esta noite e amanhã de novo zumbe, ou se morre à noite, e na primavera zumbe uma outra mosca nascida do seu ovo; isso é em si a mesma coisa. Daí que o conhecimento, que apresenta tudo isso como duas coisas fundamentalmente diversas, não é incondicionado, mas relativo; é um conhecimento do fenômeno, não da coisa-em-si. A mosca existe de novo pela manhã; ela também existe de novo na primavera. Na fisiologia de Burdach, v.1, § 275, lemos: “Até 10 horas da manhã ainda não se vê (na infusão) nenhuma Cercaria efemera (um infusório): e às 12 horas toda água formiga delas. À noite morrem, e na outra manhã nascem outras de novo. Assim observou Nietzsche seis dias seguidos. (SCHOPENHAUER, 2000, p. 86)

Também em Senilia78, livro que contém as meditações do filósofo: “Quando apanho uma mosca, é óbvio que não mato a coisa em si, mas apenas sua aparência” (SCHOPENHAUER, 2012, p. 59). Schopenhauer, quando diz que a mosca nunca morre porque se mata apenas a aparência, remete àquela teoria exposta mais acima acerca da indestrutibilidade da espécie. Você pode matar apenas o fenômeno, mas jamais conseguirá aniquilar completamente a espécie, porque esta é a própria expressão da Vontade no mundo – e está em constante renovação.

COISAS DO CORAÇÃO Começarei, pois, então, a analisar a música que foi o motor de todo esclarecimento preambular. Não há como definir com precisão quando a música foi composta, todavia, como Raul a compôs com a dupla Cláudio Roberto e Kika Seixas, pode-se ter noção de ao menos um período de tempo em que ela aflorou – entre 1979 e 1982. Kika foi a quarta mulher que Raul teve ao longo de sua vida. Esteve com ela entre 1979, ano em que a conheceu, e 1984. Com ela, teve a terceira filha, Vivian. Sylvio Passos

77 Para mais sobre este tema a bibliografia recomendada é Metafísica do Amor e Metafísica da Morte, 2000, trad. Jair Barboza, Martins Fontes. 78 As meditações contidas neste livro foram publicadas no Brasil pela Martins Fontes com o título Arte de envelhecer, Trad. Karina Jannini, 2012. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

167 e Toninho Buda contam que o casal compôs junto quatro músicas: “Geração da Luz”79, “DDI”80, “Quero mais”81 e, por fim, o nosso objeto de estudo – “Coisas do Coração”82. Já com Cláudio Roberto, sua parceria se inicia em 1977, após romper com Paulo Coelho. Raul com “o rosto sem barba nem bigode”, com “um novo parceiro e antigo vizinho dos tempos do Rio” (PASSOS e BUDA, 1974, p. 84) lança o LP O Dia em que a Terra Parou83. No álbum Abre-te Sésamo84 Raul segue a parceria com o professor de ginástica. Juntos neste disco fizeram oito das doze músicas. Em 1983, Raul ganha o disco de ouro pela tiragem de 100 mil vendas. Neste álbum, além de “Coisas do Coração”, a dupla também compôs mais duas músicas. E nos próximos três discos lançados, Cláudio, juntamente com Raul, compuseram oito músicas. Ainda sobre o LP de 83, Raul afirma: Coloquei o nome do disco apenas de Raul Seixas porque quase todos os meus trabalhos são feitos dentro de um ponto de vista filosófico, algo como se fosse uma faixa única, com todas as músicas concebidas de dentro de um certo prisma. Este já é uma coleção de momentos diversos que não fogem ao meu estilo, mas também não fecham uma concepção filosófica. (SEIXAS, 1974, p. 86)

Ao explicar o nome do novo disco Raul afirma implicitamente o teor filosófico deste álbum. “Aquela Coisa” composta pelo mesmo trio pode ser vista como uma dessas músicas que “não fogem” do seu estilo. A outra música que emana uma concepção filosófica seria a “Coisas do Coração”. Quando o navio finalmente alcançar a terra E o mastro da nossa bandeira se enterrar no chão Eu vou poder pegar em sua mão Falar de coisas que eu não disse ainda não85

É possível que na primeira estrofe da música haja uma referência direta à noção de Schopenhauer de amor sexual. A menção do navio alcançar a terra e do mastro fincar no chão pode ser lida como uma metáfora alusiva à proposição orgânica schopenhauriana. Mas que proposição seria esta? A de que a espécie sempre, ao possuir determinado indivíduo, e este indivíduo, imbuído da ilusão, chamada pelo autor alemão de “Véu de

79 “Geração da Luz”. Metrô linha 743. Som Livre, 1984. 80 “D.D.I. (Discagem Direta Intestrelar)”. Raul Seixas. Eldorado, 1988. 81 “Quero mais”. Raul Seixas. Eldorado, 1988. 82 “Coisas do Coração”. Raul Seixas. Eldorado, 1988. 83 LP lançado pela gravadora WEA em 1977. 84 LP lançado pela gravado Discos CBS em 1980. 85 “Coisas do Coração”. Raul Seixas. Eldorado, 1988. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Maia”86, buscará a melhor correspondência que estiver ao seu alcance. Tal correspondência visa primeiramente atender às considerações absolutas da natureza com o intuito de perpetuar a espécie. Tanto Raul como Schopenhauer quase resgataram o “telos” aristotélico, de que cada coisa busca seu lugar natural e se empenha em atingir sua “causa final”. Da mesma forma que o objetivo do navio quando está no mar é chegar a terra, que o mastro, ao ter como finalidade a garantia da bandeira tremular exige um ponto fixo, a espécie suplica ao indivíduo a máxima satisfação dos critérios a priori das considerações absolutas. Todo enamorar-se, por mais etéreo que possa parecer, enraíza-se unicamente no impulso sexual, e é apenas um impulso sexual mais bem determinado, mais bem especializado e mais bem individualizado no sentido rigoroso do termo. [...] O que, por fim, atrai com tal força e exclusividade dois indivíduos de sexos diferentes, um para o outro, é a vontade de vida que se expõe em toda a espécie, e que, aqui, por uma objetivação de acordo com seus fins, antecipa sua essência no indivíduo que ambos podem procriar. (SCHOPENHAUER, 2000, p. 12)

No mais, como afere a citação acima, esta primeira estrofe, principalmente as duas primeiras linhas, sugere apenas uma correspondência de Raul com o amor sexual, tão importante para a estruturação que Schopenhauer faz a fim de sustentar que a espécie é indestrutível. Já os outros dois versos são uma preparação para a estrofe seguinte, em que Raul anuncia, em conformidade com a filosofia exposta na Metafísica do Amor, a segunda etapa que o indivíduo galga visando a perdurar em um novo ser. Quando a gente se tornar rima perfeita E assim virarmos de repente uma palavra só Igual a um nó que nunca se desfaz Famintos um do outro como canibais87

No início da segunda estrofe, logo no primeiro verso, vislumbrei o Raul usando todo seu talento poético de maneira admirável para simbolizar o outro patamar que o relacionamento daqueles dois indivíduos conduzidos pela espécie chegou – o amor apaixonado. Ao falar de uma “rima perfeita”, a ideia que o cantor de Salvador passa é de harmonia, equilíbrio, cadência, conciliação e, principalmente, neutralização. Quanto mais perfeita, então, é a adequação mútua de dois indivíduos em cada um dos vários aspectos a serem considerados mais adiante, mais forte será a sua paixão mútua. Como não há dois indivíduos

86 “Trata-se de MAIA, o véu da ilusão, que envolve os olhos dos mortais, deixando-lhes ver um mundo do qual não se pode falar que é nem que não é, pois assemelha-se ao sonho, ou ao reflexo do sol sobre a areia tomado a distância pelo andarilho como água, ou ao pedaço de corda no chão que ele toma como uma serpente.” (Schopenhauer, 2005, p.49) 87 “Coisas do Coração”. Raul Seixas. Eldorado, 1988. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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totalmente iguais, é preciso que cada homem determinado corresponda, do modo o mais perfeito, uma mulher determinada – sempre tendo em vista a criança a ser procriada. (SCHOPENHAUER, 2000, p. 14)

Depois dessa “adequação mútua”, que seria justamente a satisfação das considerações relativas, Schopenhauer salienta qual é o verdadeiro objetivo deste enamorar-se – a criança, a próxima geração. E Raul segue o pensamento do filósofo religiosamente. No segundo verso da estrofe, diz: “E assim virarmos de repente uma palavra só”. Em toda música, mas principalmente aqui, Raul mostra sua genialidade e a capacidade de sintetizar e poetizar o que lhe salta aos olhos. A “criança a ser procriada” da qual fala Schopenhauer foi reduzida a essa única palavra que o casal irá virar. Ora, quando os indivíduos têm um filho, colocam um nome nele – é rigorosamente disto que Raul está falando – a “palavra só” pode ser interpretada aqui como o nome da nova criança. Ulteriormente da passagem dos estágios de amor sexual, e agora no amor apaixonado, a espécie se perpetua em um novo nome, em um novo ser; ou, se melhor, nas palavras de Raul: “Igual a um nó que nunca se desfaz”. E, por fim, o último verso possivelmente representa de forma poética o método que os dois indivíduos irão recorrer para alcançar tal intento. “Famintos um do outro como canibais” mostra a embriaguez e a incandescência que estes dois seres têm um por outro. Advindo da ideia de Raul, de que o sexo é um ritual simbólico, pode-se pensar aqui que envolve não apenas o ato físico, mas todo um cortejo, jogo de olhares e estímulos que precedem, durante e após a ocasião carnal voluptuosa. Da mesma forma acontece principalmente nas tribos indígenas, onde a antropofagia é uma forma ritualística, simbolizando elementos da cultura da tribo. O exemplo disso é história de Gonçalves Dias, em que as tribos rivais comiam os guerreiros mais fortes do inimigo a fim de ficarem com suas forças88. Em suma, pode-se entender este trecho como uma referência à convenção que foi estabelecida pela civilidade ao longo dos tempos entre os cortejos de mulher e homem. Também há outro possível prisma para interpretar o último verso da segunda estrofe. Partindo do ponto de vista fisiológico, a espécie engole a individualidade do casal. O fato de um homem estar enamorado produz frequentemente fenômenos tão cômicos, e às vezes trágicos; em ambos os casos porque ele, possuído pelo espírito da espécie, é agora dominado por este e não mais se pertence: assim, sua ação é inadequada à do indivíduo. (SCHOPENHAUER, 2000, p. 44)

88 Juca Pirama, 1997, L&PM POCKET. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Desse modo, pude fazer a leitura de que tanto o amor apaixonado, em que o indivíduo é dominado e subjugado pela espécie, quanto o canibalismo89, podem ser colocados no mesmo estatuto – como uma doença. Partindo do ponto de vista do expectador, o homem moderno não entenderia as razões do ritual antropofágico, da mesma maneira ocorre com a visão exterior em relação ao amor apaixonado; quem não é possuído pela espécie jamais compreenderá as loucuras de amor e, não as entendendo, chegará a taxá-las de doença. Evidentemente, é uma interpretação mais radical e problemática; no entanto, nem mesmo Schopenhauer, quando postulou e escreveu essas ideias acerca da manifestação do amor, deixou de lado a face perversa, que pode culminar até em suicídio90, estupro e assassinato. Somos a resposta exata do que a gente perguntou Entregues num abraço que sufoca o próprio amor Cada um de nós é o resultado da união De duas mãos coladas numa mesma oração!91

Finalmente, é chegada à última parte da música. Esse trecho sugere um reforço por parte de Raul à tese de Schopenhauer do amor apaixonado. Em a toda estrofe, nota-se que Raul abandona os elementos eróticos e foca, sobretudo, em palavras mais afetuosas e espirituais, como “abraço”, “união” e “oração”, em contraposição nítida às primeiras duas estrofes. Pude entender, a partir disso, que Raul estaria falando do casamento daqueles dois indivíduos. A forma como ele coloca a “resposta exata” sugere o “sim” respondido por ambas as partes ao padre ao pactuarem com o sagrado matrimônio. O último verso da música parece reforçar isso. Raul insere elementos religiosos para falar do amor, e este só pode ser concretizado na religião mediante o casamento. Já no tocante a Schopenhauer, ainda o que está em jogo aqui é a espécie: Os casamentos de amor são contraídos no interesse da espécie, não dos indivíduos. Os envolvidos presumem promover sua própria felicidade, mas o seu verdadeiro alvo é alheio a eles mesmos, na medida em que reside na produção de um indivíduo apenas possível por meio deles. (SCHOPENHAUER, 2000, p. 50)

89 Segundo Freud, a antropofagia pode ser categorizada como uma psicose. Trata-se de uma manifestação patogênica na fase oral. Para mais sobre o assunto a bibliografia recomendada é História de uma neurose infantil e outros trabalhos, V.XVII, 1917-1919, Rio de Janeiro, Imago, 1996. 90 “Nos graus supremos da paixão essa quimera é tão radiante que, se ela não pode ser realizada, a própria vida perde todo encanto, parecendo tão vazia de alegria, insossa e intragável que o desgosto ultrapassa os terrores da morte; por isso às vezes é voluntariamente abreviada”. (Schopenhauer, 2000, p. 45) 91 “Coisas do Coração”. Raul Seixas. Eldorado, 1988. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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De certa forma, Raul segue essa linha, pois da forma como organizou a música, colocou primeiro a constituição da criança para perpetuar a espécie e depois o casamento. O “abraço” que está presente no segundo verso sugere uma amizade que possa surgir mediante a esse casamento: [...] ao amor apaixonado se associa um sentimento de origem bem outra, a saber, uma amizade efetiva, baseada na concordância de mentalidades, que, todavia, na maioria das vezes só aparece quando o amor sexual propriamente dito se extinguiu na satisfação. (SCHOPENHAUER, 2000, p. 52)

Ou, simplesmente, nos moldes de Raul, pode-se dizer que o abraço sufocou o próprio amor – a amizade sufocou o próprio amor. Aqueles dois indivíduos de outrora, que se corresponderam entre si apenas por força da espécie, agora são unidos com “traços espirituais em relação de complementariedade mútua, fundando assim uma harmonia de ânimos” (SCHOPENHAUER, 2000, p. 52), ou se optarem pela linguagem a música de Raul, o casal se tornou “duas mãos coladas numa mesma oração”.

CONCLUSÃO A proposta do artigo era fornecer uma interpretação sólida da música “Coisas do Coração” de Raul Seixas sob a luz da filosofia de Schopenhauer. Pude chegar com mais clareza e precisão até a interpretação da música, por meio de três movimentos distintos: aproximação da música por Schopenhauer pela sua estética; explicitação da teoria geral schopenhauriana e da sua Metafísica do Amor; e, por fim, as demonstrações de correspondência de Raul com a filosofia e com o próprio filósofo alemão. As hipóteses sugerem fortemente a conclusão da afluência de apropriação de Schopenhauer por Raul e o grau de penetrabilidade que a filosofia teve no cenário musical brasileiro dos anos 70, especialmente por intermédio da dupla retratada aqui, que muitos estudiosos de comunicação atribuem ao boom intelectual gerado pela tropicália, liberados por Caetano Veloso e Gilberto Gil.

REFERÊNCIAS DIAS, Gonçalves. Juca Pirama. São Paulo: L&PM POCKET,1997. ESSINGGER, Sylvio (org). O baú do Raul revirado. São Paulo: Globo, 2005. FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil e outros trabalhos V.XVII/ (1917-1919). Rio de Janeiro: Imago, 1996. LUCENA, Mário. A verdade absoluta: filosofias, políticas e lutas. São Paulo: MacBel Oficina de Letras, 2002.

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LUCENA, Mário. Metamorfose Ambulante: vida alguma coisa acontece, morte alguma coisa pode acontecer. São Paulo: Editora B&A, 2009. PASSOS, Sylvio (org). Raul Seixas por ele mesmo. São Paulo: Martin Claret, 2012. PASSOS, Sylvio; BUDA, Toninho (org). Raul Seixas: uma antologia. São Paulo: Martin Claret, 1974. SAFRANSKI, Rüdiger. Schopenhuaer e os anos mais selvagens da filosofia. São Paulo, Geração Editorial, 2011. SEIXAS, Kika (org). O baú do Raul. São Paulo: Globo, 1993. SEIXAS, Kika (org). Raul Rock Seixas. São Paulo: Globo, 1995. SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de envelhecer. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2012. SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria de vida. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Martins Fontes, 2009. SCHOPENHAUER, Arthur. Die welt als wille und vorstellung. Leipzig: F.A. Brockhaus, 1859. SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Amor e Metafísica da Morte. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Martins Fontes, 2000. SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Martins Fontes, 2003. SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora Unesp, 2005. SCHOPENHAUER, Arthur. The World as Will and Representation. Trad. E. F. J. Payne. New York: Dover Publications, Inc, 1958. SOUZA, Lucas. M. T. A trajetória social de Raul Seixas: uma metamorfose ambulante no rock brasileiro. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2013.

Fontes audiovisuais Discografia Raul Seixas. Abre-te Sésamo LP, vinil, estéreo, 78 rpm. Rio de Janeiro: CBS, 1980, 138.194. Raul Seixas. Krig-há, bandolo! LP, vinil, estéreo, 78 rpm. Rio de Janeiro: Philips/Phonogram, 1973, 6349.078. Raul Seixas. Metrô linha 743 LP, vinil, estéreo, 78 rpm. São Paulo: Som Livre/SIGLA, 1984, 403.6307. Raul Seixas. O dia em que a terra parou LP, vinil, estéreo, 78 rpm. Rio de Janeiro: WEA/Warner., 1977, BR. 36.129. Raul Seixas. Raul Seixas LP, vinil, estéreo, 78 rpm. São Paulo: Estúdio Eldorado, 1983, 74.83.0410.

RECEBIDO EM: 19/10/2017 | APROVADO EM: 04/12/2017

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PORTA DOS FUNDOS: UMA NOÇÃO TRANSGRESSIVA NOS VÍDEOS POLITICAMENTE INCORRETOS

Thiago Henrique Fernandes Coelho Profª. Drª. Ana Elvira Wuo (orientadora) Universidade Federal de Uberlândia – UFU RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo tecer uma análise de conteúdo dos vídeos do canal de humor Porta dos Fundos, localizado na rede social YouTube, partindo do hipótese de que a proposta dos mesmos pressupõe uma noção transgressiva. Para contextualizar o assunto, elaborou-se breve histórico da comédia em diferentes contextos até as redes sociais. A partir do objetivo, teceu-se uma análise descritiva dos vídeos, com embasamento nos teóricos e estudiosos sobre o riso Henry Bergson (2001) e Vladimir Propp (1992) e tendo como foco observar como o tema transgressão está presente na construção do humor dos vídeos do canal. A seleção do corpus de análise ocorreu a partir da contribuição de ferramenta do Youtube que realiza o rankeamento dos vídeos do canal segundo critério de número de visualizações. Considerou-se, nesse trabalho, que o canal de humor Porta dos Fundos faz uma crítica aberta ao comportamento humano nos mais diversos espaços e temas, através de um olhar crítico debochado, evidenciando o quanto o cotidiano é cômico e os comportamentos, vícios e desejos humanos, risíveis. O estudo dos temas comédia e humor, na graduação de teatro da UFU trouxe grande contribuição para minha formação no que concerne à ampliação do ponto de vista transgressivo sobre o universo teórico-prático relacionado a temática comicidade. Nele, o ator também se torna um ser mais flexível e aberto à forma de ver o mundo e o espectador a sua volta. PALAVRAS-CHAVE: Porta dos Fundos. Transgressão. Comicidade. YouTube.

Porta dos Fundos: a transgressive notion in politically incorrect videos

ABSTRACT: The present work aims to make a content analysis of the videos of humor channel Porta dos Fundos, located in the social network YouTube, starting from the hypothesis that the proposal of the same presupposes a transgressive notion. To contextualize the subject, a brief history of the comedy was elaborated in different contexts until the social networks. From the objective, a descriptive analysis of the videos was made, based on the theorists and scholars about the laughter Henry Bergson (2001) and Vladimir Propp (1992) and having as a focus to observe how the transgression theme is present in the construction of the humor of the videos from the channel. The selection of the analysis corpus was based on the YouTube tool contribution that ranks the channel videos according to the number of views criterion. It was considered, in this work, that the humor channel Door of the Funds makes an open critic to the human behavior in the most diverse spaces and themes, through a critical look debauchery, evidencing how much the everyday is comic and the behaviors, vices and desires human, laughable. The study of the comedy and humor themes in UFU theater graduation brought a great contribution to my training regarding the expansion of the transgressive point of view about the theoretical-practical universe related to comic themes. In it, the actor also becomes a more flexible and open being to the way of seeing the world and the spectator around him. KEYWORDS: Porta dos Fundos. Transgression. Comedy. Youtube.

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INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo tecer uma análise de conteúdo dos vídeos do canal de humor Porta dos Fundos, localizado na rede social YouTube, partindo do pressuposto de que sua proposta tem uma noção transgressiva. A análise descritiva foi embasada nos teóricos e estudiosos sobre o riso: Henry Bergson (2001) e Vladimir Propp (1992), tendo como foco observar como o tema transgressão está presente na construção do humor dos vídeos do canal. A seleção do corpus de análise ocorreu a partir da contribuição de ferramenta do Youtube que realiza o rankeamento dos vídeos do canal segundo critério de número de visualizações. A partir disso, o autor da presente pesquisa seguiu o ranking dos vídeos para assisti-los e selecionou os vídeos que mais tinham elementos transgressivos. O termo transgressão será explicado mais adiante no trabalho. Em resumo, trata-se de uma quebra de modelo, ultrapassar um limite. Diante disso, foram observados nos vídeos elementos cômicos que levam à transgressão, como escárnio, ironia, trocadilhos, paródia etc. Foram selecionados vídeos que lidavam com temas como a procura por academias, a relação entre casais, e uma personalidade como a Xuxa, em que se faziam a sua desconstrução propondo um olhar irônico sobre ela. Uma desconstrução de paradigmas, de modelos, é algo que o Porta dos Fundos promove por meio da ironia, que consiste em dizer algo diferente do que se pensa. Os vídeos escolhidos foram Academia, Sobre a Mesa e Xuxa Meneghel. Cada um ironiza e desconstrói as imagens que o próprio título do vídeo resume, ou seja, o conteúdo abordado no mesmo traz no título um resumo, ou melhor, uma palavra-chave. O vídeo Academia aborda satiricamente o ato de se matricular na mesma; Sobre a Mesa aborda a relação conjugal, dando voz à dona de casa; e o vídeo da Xuxa, ironiza a questão da baixa audiência que a apresentadora vem tendo e o fato de ela ter ido para a emissora Record. O que motiva o pesquisador neste trabalho é o fato do tema sobre a comédia ser uma linguagem em que ele pretende trabalhar futuramente, desenvolvendo vídeos com essa temática, seja na internet ou na televisão, pretendendo atuar nessas áreas, trabalhar como ator na televisão e na internet. Como pesquisador deste tema, houve interesse pelo humor produzido pelo Porta dos Fundos, almejando-se entender, por meio da análise, como ocorre a construção dessa linha humorística. A internet é uma nova opção, além da televisão, para quem tem interesse em atuar nessa área. Ainda, há o fato de o canal ser um grande fenômeno, pois é “[...] o canal brasileiro do Youtube mais assistido, é mundialmente o 5º canal de comédia mais influente e o 18º mais clicado em todo o mundo” (GUIMARÃES, s/d, p. 3).

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Observando o exemplo canal, o pesquisador vê a internet como um caminho profissional. O que interessa ao pesquisador é a atuação para as câmeras. Uma atuação verossímil, que se aproxima do modo de falar do cotidiano, com a criação de personagens, a presença do enredo e da história. Interessa ao pesquisador contar uma história realista, com começo, meio e fim, uma atuação como a que é feita na tv e no cinema e, agora, também na internet; ter uma realidade cênica onde o público é convencido de que o ator é outra pessoa e está vivendo o mundo que a história retrata, independente da forma como a história é contada. Deve se encontrar veracidade e presença no trabalho do ator. Tudo isso pode ser percebido nos vídeos do canal Porta dos Fundos. É possível ver um personagem em cada ator, com sua própria energia, deixando claro para o público qual personagem cada um representa.

JUSTIFICATIVA O trabalho investigativo sobre como a noção de transgressão está presente nos vídeos do canal Porta dos Fundos se justifica, no sentido de validade/importância, pela enorme abrangência que o canal tem no Brasil e no mundo: milhões de visualizações, milhares de comentários nos seus vídeos, um público jovem se identificando com as temáticas, o alcance de diversas faixas etárias, e uma relevante proporção no cenário de produção de conteúdo. O canal se tornou referência na produção de conteúdo para essa área, despertando a atenção do mundo todo e protagonizando reportagem do jornal estadunidense The New York Times. O grupo Porta dos Fundos possui 7 canais, somando as várias redes sociais em que estão presentes, com 1480 vídeos, 13.623.797 inscritos e 2.795.617.665 visualizações até o momento de redação deste trabalho. No canal principal do YouTube, eles possuem 12.489.793 inscritos e 2.704.751.460 visualizações.92 O canal se mostra uma opção de trabalho para diversos atores. Vários já passaram pelo grupo e, atualmente, ingressam e atuam na televisão. Dessa forma, o canal virou um espaço de revelação de novos atores, que passam a ser absorvidos pelos programas televisivos. O Porta dos Fundos evidenciou que, além da televisão, a internet também pode ser uma forma de trabalho, e pode-se ganhar algum dinheiro com isso. Ademais, o grupo relata a independência que a internet confere: produzir conteúdo e disponibilizar nas redes sociais,

92 Disponível em . Acesso em: 1 set. 2016. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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como o YouTube, permite fazer o que te motiva, com a sua cara e gosto (CARVALHO, 2014, p.39). A proposta do Porta dos Fundos é de uma dramaturgia acessível, em que a atuação realista dos personagens dos vídeos é vista na vida real, no nosso cotidiano. É possível enxergar o personagem dentro de uma história, o contexto é estabelecido e somos convencidos do que assistimos. Os vídeos do canal são curtos, geralmente de, no máximo, quatro minutos e, nesse tempo, conseguem estabelecer uma história de fácil compreensão em todo o contexto.

PORTA DOS FUNDOS “Porta dos Fundos é uma produtora de vídeos de comédia veiculados na internet, em parceria com o site de humor KibeLoco e a produtora Fondo Filmes” (CARVALHO, 2014, p.40). Segundo Guimarães (s/d), o canal Porta dos Fundos foi criado em março de 2012, tendo o primeiro vídeo publicado em agosto daquele ano. A ideia inicial dos fundadores do canal foi trazer um humor de qualidade e com liberdade para a internet. O canal surgiu de um grupo de jovens atores e amigos, que buscam nos seus vídeos um humor crítico, livre de censuras. A ideia foi um sucesso e, no primeiro semestre de exibição, o canal teve mais de 30 milhões de visualizações registradas. Antonio Tabet, um dos integrantes do Porta dos Fundos, explica que começou com o site Kibeloco e então conheceu Ian SBF, responsável pelo canal Anões em Chamas. Conheceram-se porque tinham amigos em comum. Tabet possuía alguns roteiros e tentava produzir vídeos para colocar no seu canal do YouTube – Kibeloco e, para isso, gostaria que Ian SBF fosse o diretor. Entretanto, o projeto não deu certo. Em 2011, eles se encontraram e Tabet propôs o CSI Nova Iguaçu, um piloto de série feito por Ian SBF no canal “Anões em Chamas” e que não teve continuidade. Ian SBF93 aceitou o trabalho com a condição de Tabet atuar como uma das personagens policiais, porque o achava com “cara de policial corrupto”. Produziram a série e obtiveram boa repercussão, contando, inclusive, com a atriz Cléo Pires em um dos episódios. A partir disso, começaram a planejar outras esquetes94 com o objetivo de também convidar atores (CARVALHO, 2014). Assim foi um dos princípios do Porta dos Fundos. O canal é uma iniciativa independente de produção audiovisual em comédia. O objetivo do grupo foi reunir pessoas que já eram conhecidas ou tinham algum destaque, diz a atriz do

93 Diretor das esquetes do canal Porta dos Fundos. 94 Cenas curtas. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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grupo Clarice Falcão, para aproveitar a liberdade do YouTube (Apud WEBER, 2014). “Ao auto definir-se em seu site, o Porta dos Fundos se diz um coletivo criativo que produz conteúdo audiovisual voltado para Web, embora com qualidade de TV e liberdade editorial de Internet” (PORTA DOS FUNDOS, 2014 APUD WEBER, 2014, p. 59). Em entrevista ao pesquisador, a atriz do canal, Karina Ramil, também aponta a questão da liberdade editorial: Acho que o Porta tem mais liberdade pra falar de assuntos que ainda podem ser tabu pra TV, eu vejo que as coisas têm avançado pra todos os lados, mas mesmo assim ainda existe essa diferença. Por serem os próprios donos e estar numa plataforma da internet podemos falar diretamente o que queremos falar, sem ter que "pisar em ovos". Citar nomes, falar de situações que são delicadas e ter tantas opiniões diferentes no mesmo espaço sendo respeitadas e representadas no mesmo espaço, fazem com que o Porta tenha um diferencial. (RAMIL, 2017)95

Em entrevista ao Programa do Jô, Fábio Porchat conta que, antes de fundar o grupo, a equipe já possuía laços de amizade, e que o nome do canal veio de uma brincadeira de mímica que eles faziam. Numa das ocasiões, o diretor Ian SBF fez uma mímica de uma porta dos fundos considerada “muito ruim” pelo grupo . Posteriormente, quando pensavam no nome, lembraram- se da brincadeira e decidiram colocá-lo.96 O canal Porta dos Fundos possui cinco proprietários: Fábio Porchat, Gregório Duvivier, João Vicente de Castro, Antônio Tabet e Ian SBF. São pessoas com experiência no ramo das comunicações, sendo atores, diretores ou roteiristas (CARVALHO, 2014). Na sua origem, o grupo possuía o seguinte elenco fixo: Antonio Tabet, Fábio Porchat, Gregório Duvivier, João Vicente de Castro, Luis Lobianco, Clarice Falcão, Gabriel Totoro, Júlia Rabello, Letícia Lima, Marcos Veras, Marcus Majella e Rafael Infante. No decorrer do tempo, alguns integrantes abandonaram o grupo e outros ingressaram (UOL, TVEFAMOSOS, 2016)97. No Brasil, o Porta dos Fundos é o canal com maior número de inscritos. Em 2015, o Youtube deu o Play de Diamante 98 para o grupo, que é uma premiação para os criadores de conteúdo que chegam a 10 milhões de inscritos. No Brasil, foi o primeiro canal a receber essa

95 Entrevista concedida por e-mail ao pesquisador em 20 de junho de 2017. 96 Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2016. 97 Disponível em: . Acesso em: 1 set. 2016. 98 “O YouTube possui três níveis de premiação para seus canais. O Play de Prata é concedido para todos os canais que ultrapassam o número de 100 mil inscritos. Acima dele, está o Play de Ouro, conquistado pelos canais com 1 milhão de assinantes. Por último, a premiação máxima, o Play de Diamante que o Porta dos Fundos conseguiu ao cruzar a marca de 10 milhões de inscritos” (UOL, CODIGOFONTE, 2016, s/p). ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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premiação. No mundo, o é o 18º canal com mais inscrições e, na categoria canais de comédia, é o 5º. Em novembro do mesmo ano, o canal bateu recorde de visualizações, chegando a 2 bilhões em todos os vídeos do Youtube (UOL, CODIGOFONTE, 2016)99. Os vídeos da trupe são classificados no gênero humor e no formato websérie. De acordo com Machado (2013) são assim classificados por existirem poucos pontos em comum entre os episódios, no caso apenas a autoria, representada pela pessoa jurídica da empresa e o gênero são compartilhados, já que os atores, roteiristas e a direção são aleatórios. Quanto a serialização as narrativas podem assumir três categorias, a primeira se define por uma única história, ou várias partes que se entrelaçam, que se alternam de forma quase linear. A segunda é composta por histórias com enredos autônomos, cada um apresenta começo, meio e fim, repetindo nos episódios seguintes apenas os mesmos protagonistas inseridos em situações diferentes (ZANETTI, 2013). O Porta dos Fundos se encaixa na terceira categoria, com histórias completas em quadros unitários (CARVALHO, 2014, p. 23-24).

De acordo com Carvalho (2014) o canal Porta dos Fundos publica no Youtube dois vídeos por semana, sempre às 11 horas nas segundas-feiras e quintas-feiras. A duração dos vídeos é de aproximadamente 3 minutos, mas ainda há os vídeos especiais que possuem 15 minutos de duração. Em 2014, também começou a publicar vídeos no sábado, no mesmo horário dos outros dias (WEBER, 2014). A produtora Porta dos Fundos possui, além do canal principal, mais dois canais, o Fundos da Porta – onde é disponibilizado o making-off, bastidores e erros de gravação dos vídeos do canal principal, que entrou no ar em janeiro de 2013. Já o terceiro canal é o Portaria, cujo objetivo consiste no elenco do Porta comentar os comentários feitos pelos internautas nos vídeos. São escolhidos, pela equipe, alguns comentários dos vídeos publicados na semana (CARVALHO, 2014). Com menos de um ano de existência, o Porta dos Fundos chegou a 1 milhão de inscritos. Em 2012, o canal, estando na internet, levou o prêmio APCA100 como Melhor Programa de Humor para TV, fato que seus integrantes até ironizam. É uma das premiações com maior tradição em São Paulo e. pela primeira vez, destinou-se para um programa na internet (WEBER, 2014). Em 2016, o canal no YouTube do Porta dos Fundos está com mais de 12 milhões de inscritos. O grupo, além dos vídeos curtos de humor, já produziu três séries com vários episódios: O Grande Gonzalez, Refém e Viral.101

99 Disponível em: . Acesso em: 1 set. 2016.. 100 Associação Paulista de Críticos de Arte. 101 Disponível em: . Acesso em: 16 ago. 2016. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Carvalho (2014) salienta que a independência que o Youtube dá aos canais, causa autonomia e liberdade de criação para o grupo. Não tendo necessariamente que se preocupar com compromissos comerciais, o grupo pode experimentar a construção de um estilo próprio, que foi conquistando público na internet, tornando-o referência para o humor do século XXI. O ator Rafael Portugal aponta que uma das características do humor produzido pelo Porta dos Fundos é “[...] falar de tudo sem se importar com a censura (dentro de um determinado limite) e fazer as pessoas refletirem com coisas bobas que nunca ninguém tinha falado antes.”102 “Os vídeos do grupo foram inspirados em produtos já existentes e com formato consolidado na rede. O tipo de humor que produzem foi baseado em outros canais do Youtube, como o College Humor” (CARVALHO, 2014, p. 41). No Brasil, também já havia canais semelhantes ao estilo do Porta dos Fundos, tais como, Parafernalha, Mundo Canibal, Galo Frito e outros. Contudo, o Porta conseguiu um grande destaque em pouco tempo (CARVALHO, 2014). Weber (2014) salienta que outros canais também já faziam sucesso no Youtube antes do Porta, cita o exemplo do Comicozinho, que publicava vídeos de humor desde 2010. Também desde 2009, a TV Quase publicava seus vídeos humorísticos. Contudo, ressalta- se que esses vídeos não possuíam as qualidades técnicas do material publicado pelo Porta dos Fundos. Além dos atores que compõem o núcleo e se revezam nos episódios, o humor é o principal elemento agregador dos unitários. O formato também é similar: esquetes com ações que se passam em geral num único espaço e tempo, retratando eventos cotidianos, por vezes com diálogos inusitados e situações surreais. O humor sarcástico, característico das comédias stand-up, transforma eventos do cotidiano em cenas absurdas ou extremamente exageradas. Uma pequena vinheta com a logomarca do programa, seguida de uma cena que funciona como um “posfácio” finalizam a esquete. No lado esquerdo da tela, durante essa cena final, surgem janelas pequenas que são hiperlinks para os outros episódios já exibidos (ZANETTI, 2013 apud CARVALHO, 2014, p. 25-26).

O ator Rafael Portugal aponta a diferença entre o humor de hoje e o antigo, cujos comediantes inclusive foram fonte de inspiração. Ele diz: “Hoje falamos mais abertamente sobre assuntos velados, sacaneamos nós mesmos, improvisamos, criamos música na hora... a agilidade do dia a dia entrou na comédia também.”103 O Porta dos Fundos traz em seus vídeos situações do cotidiano, que ora vão para um humor inteligente com pitadas de nonsense e ora chegam a um humor com proximidade do

102 Entrevista concedida pelo ator do Porta dos Fundos, Rafael Portugal, em 12 de junho de 2017. 103Idem. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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grotesco sexual (VALE, 2015). Segundo o ator Rafael Portugal, “é um humor que fala o que muita gente tinha medo de falar, falamos de política, religião e futebol fazendo a galera rir e isso é o que importa no final”104. Como, por exemplo, no vídeo Quem manda105, em que a filha traz o namorado para conhecer o pai, enquanto fica só o pai com o cara. Esse pai, para amedrontar o futuro genro, masturba-se na sua frente querendo, inclusive, que este o ajude. Para Fábio Porchat (2012 apud OAKES, 2012), o sucesso do Porta dos Fundos se dá principalmente pela insatisfação das pessoas perante as limitações que a TV impõe: "Na Internet tudo pode, na TV não. Palavrões, nome próprio e marcas são assuntos que são tratados com muita cautela na TV aberta" Dessa forma, a liberdade da Internet permite que o Porta dos Fundos aborde temas de sua preferência, rotineiros ou polêmicos, de forma descompromissada perante a censura habitual dos meios de comunicação fora da grande rede mundial de computadores (WEBER, 2014, p. 61).

Antônio Tabet aponta que umas das características do Porta dos Fundos é o fato de, mesmo com tamanha liberdade na internet, não produzir um humor ácido demais e nem escrachado. Pondera que é uma comédia com liberdade, mas também com bom senso (WEBER, 2014). O ator Rafael Portugal106 aponta que : “[...] no Porta nós decidimos o que vamos fazer, não existe um diretor para colocar um PIIII no que a gente fala. Na TV você não pode falar sobre 90% dos assuntos que falamos no Porta e nem da forma que falamos”.

“Não temos rabo preso e não temos receio de falar de certos tabus, mas não derrapamos porque temos bom senso. A gente entende que precisa, eventualmente, fincar bandeiras onde a mídia tradicional não chega, mas com bom gosto” (TABET, 2012 apud OAKES, 2012 apud WEBER, 2014, p. 61).

De acordo com Gregório Duvivier, a inspiração dos vídeos vem de fatos do cotidiano. Os esquetes trazem temas do dia-a-dia, como a relação cliente e consumidor – por exemplo, o vídeo Spoleto107 – ou a briga de casais, como no vídeo Pra Mim Chega108. Como diz o próprio Duvivier, “A vida é um grande material para o humor e a poesia” (DUVIVIER, 2012 apud WEBER, 2014).

104 Idem. 105 Disponível em: . Acesso em: 11 ago. 2016. 106 Entrevista concedida por e-mail ao pesquisador. 107 Disponível em: . Acesso em: 11 ago. 2016. O vídeo mostra como é o atendimento nos estabelecimentos da marca, de forma cômica. 108 Disponível em: . Acesso em: 11 ago 2016. O vídeo retrata os ciúmes de um casal. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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O canal já gerou polêmicas com os seus vídeos, por exemplo, no fim do ano de 2013, quando publicou um vídeo intitulado Especial de Natal, que despertou a ira de cristãos (CATÓLICOS E EVANGÉLICOS). No vídeo, são retratadas paródias de passagens bíblicas, com Jesus negociando com os soldados que o pregaram na cruz e o anjo Gabriel visitando Maria e convencendo José a aceitar que ela tenha um filho de Deus. Os cristãos protestaram contra o canal e as marcas de que eles fazem merchandising (WEBER, 2014).

A TRANSGRESSÃO NOS VÍDEOS DO PORTA DOS FUNDOS O ato de transgredir é passar além de alguma coisa, atravessar, desobedecer, infringir, violar, quebrar. A transgressão é quando ocorrem ações que contrariam uma regra ou um padrão de uma sociedade. Isso pode ocorrer pelo desejo de romper essas normas ou pelo desconhecimento delas (FERREIRA, 2013). O Porta dos Fundos faz isso nos vídeos ao propor outro olhar para os fatos, muitas vezes, desconstruindo imagens e mitos. Como, por exemplo, no caso do vídeo Deus109, que apresenta como verdadeiro Deus o de uma tribo da Polinésia. O ator que representa esse Deus vem com um figurino tribal, sendo muito irônico, principalmente com os princípios da igreja católica. Na história, a moça que morreu não seguia a religião dos polinésios e, portanto,não poderia entrar no paraíso. Mas ao final, a moça faz um pedido: se quando o Malafaia (Pastor) morrer, ela pode contar isso para ele. Nisso, temos a crítica ao que prega o catolicismo e também a uma figura pública, que é o Pastor Silas Malafaia. O vídeo, ao tocar em temas sagrados para essas religiões, faz um deboche irônico desses princípios, através da desconstrução da figura do Deus cristão. A noção de transgressão pressupõe desobediência, seja em relação a qualquer tema - preceitos morais, religiosos, quebra de costumes e padrões sociais. É uma ruptura com o espaço social, cerceado por regras seguidas pelos membros dessa sociedade (FERREIRA, 2013). É como se enquanto toda aquela sociedade seguisse uma linha reta, viesse um indivíduo e fizesse uma curva, um desvio, no padrão comportamental que predomina, mostrando outras possibilidades de se enxergar os fatos, comportamentos, entidades religiosas, políticas e econômicas, entre outras coisas.

109 Disponível em: . Acesso em: 1 set. 2016. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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ANÁLISE DOS VÍDEOS DO CANAL PORTA DOS FUNDOS O critério de escolha dos vídeos, como dito inicialmente, ocorreu a partir de apreciação e identificação da noção transgressiva presente neles, isto é, vídeos com uma qualidade de humor que propunham criticar especificamente o comportamento social das pessoas e de uma celebridade, promovendo um rompimento aos padrões convencionais estabelecidos. Os vídeos selecionados foram: Sobre a mesa, Academia e Xuxa Meneghel. A análise descritiva dos vídeos acima, tenta demonstrar a noção transgressiva com base nos teóricos e estudiosos sobre o riso: Bergson e Propp.

Sobre a Mesa110 Antes de ler a transcrição do vídeo e a sua análise, recomenda-se que o leitor entre no link na nota de rodapé e veja o vídeo na íntegra, para formar sua opinião, e depois ver a opinião do autor da pesquisa sobre o mesmo vídeo e, com isso, poder também se posicionar a partir da comparação entre ambas. O texto que reproduzimos abaixo é uma transcrição do vídeo. A personagem Odete é representada por Júlia Rabello e, Mario Alberto, pelo ator Antônio Tabet. A publicação do vídeo é de 10 de setembro de 2012. O vídeo começa com um casal sentado à mesa, comendo. O homem está mexendo no celular. Homem: O que tem de sobremesa, Odete?111 Odete: Abacaxi. Homem (Para de mexer no celular): Abacaxi? Odete: Ah, tem tangerina também. Homem: Oh, Odete... Do jeito que tá pra mim não dá. Eu saio dessa casa às 6 da manhã, todo dia, e vou trabalhar igual a um condenado, e tudo que eu espero, quando eu volto pra jantar em casa é que tenha uma porcaria de uma sobremesa. Pode ser um pudim. Uma porcaria de um pudim. Não dois, um pudim. Não precisa ser um pudim, se você não gostar de um pudim. Pode ser outra coisa. Você gosta de outra coisa? Sei lá... Quer um sorvete, o que você quer?

110 Disponível em: . Acesso em: 1 set. 2016. 111 Diálogo do vídeo está em negrito. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Odete: O que eu quero, Mario Alberto? Mario Alberto: É, Odete. O que você quer? Até aqui pensamos que será uma conversa de casal normal, do cotidiano, pois, pelo contexto que percebemos, é de um casal na hora do jantar conversando depois de um dia de trabalho. Contudo, com a resposta da Odete, temos uma quebra, uma surpresa inusitada na linguagem verbal, o discurso verbal exagerado que produz o elemento cômico transgressor de conteúdo do vídeo, pois ocorre uma quebra de padrão social imposto à figura da mulher casada e dona de casa, produzindo inesperadamente um discurso verbal inapropriado para a mulher, submissa e “recatada do lar”. Bergson (2001) explica que a comicidade é como uma reta transversal que passa sobre uma horizontal, ou seja, temos um corte do padrão de normalidade. Propp (1992) também salienta que a piada funciona pelo seu conteúdo inesperado. Odete: Bom, o que eu quero é... Foder, Mario Alberto. Eu quero foder. Agora você repara que eu não falei “fazer amor”, eu não falei “transar”. Eu não falei fazer “nheco nheco”... Eu falei foder. Foder. Agora, eu não quero foder só com você. Eu quero foder com seu chefe, com o meu personal trainer. Eu quero foder com o Malvino Salvador. Eu quero foder com o George Clooney. Eu quero foder com aquele menino que faz piadas na internet. Eu quero foder com o time da Nigéria, com o exército de Israel, até com o Toinho, o porteiro. Quem sabe até com o seu irmão, Mario Alberto! Mas eu não quero um de cada vez. Eu quero todos ao mesmo tempo. Eu quero levar surra de piroca até semana que vem. Eu quero ficar com o queixo pra dentro que nem Noel Rosa, sabe? De tanto levar saco aqui no queixo sem conseguir falar... Eu quero ficar tão larga que... Qual é mesmo o nome daquele nadador? Aquele menino comprido? Mário Alberto: O Phelps? Odete: Isso, o Phelps! Eu quero ficar tão larga que o Phelps vai enfiar o cotovelo assim, dobrado dentro de mim, e eu não vou nem sentir, porque eu vou tá o quê... Extasiada, entendeu? E eu quero tudo de luz acesa. Porque eu quero ver aquele banho de sêmen. Sêmen é o caralho, né, Mario Alberto? É porra, banho de porra mesmo. Você sabe, bukkake? Coloca no Google que você vai saber o que é. Eu quero levantar que nem um boneco de cera, sabe? Pingando, assim, derretendo... Depois eu vou querer um repeteco. Eu quero escalavrar a buceta. Eu quero levar cutucada no colo do útero, entendeu? E depois eu vou querer dar o troco, passar recibo. Eu vou querer que me chame de putinha, de vaca, de vadia, de cachorra, e depois de putinha de novo. E, por fim, para terminar com tudo isso, eu vou esmerilhar a chapeleta de geral para limpar a bagunça e, no dia seguinte, eu vou acordar puída, assada que nem um fantoche velho. É isso que eu quero, Mario Alberto. E você? Mario Alberto: (Sem graça) Eu quero a tangerina. Odete: (Comendo) Hum... Só não tá gelada, tá? (Vem a vinheta do programa, que está em todos os vídeos do canal).

Ao longo do que ela vai falando a respeito dos seus desejos, o marido vai ficando sem reação. Ao final, traz a sensação ao marido de ficar sem saber o que dizer. Ela o surpreende, pois, na nossa sociedade, a mulher, principalmente a casada e dona de casa, é tida como “santa”,

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a intocada. O vídeo pode ser visto como uma crítica a esse comportamento esperado da mulher, de exemplar, boa mãe, boa esposa, símbolo da família feliz. A questão da acumulação, a bola de neve112 apontada por Bergson (2001), ou seja, o efeito dominó – “um visitante entra precipitadamente num salão, empurra uma senhora, que derruba sua xícara de chá sobre um velho senhor...” e assim continua o movimento. Isso também está presente no desejo sexual da personagem Odete, que vai aumentando até chegar ao ápice, que é o Phelps enfiar o cotovelo dentro dela. Enquanto o exemplo de Bergson está na ação física, o da personagem Odete está na narrativa e na construção imaginativa que o marido e o público fazem. Ocorre o riso pelas partes do corpo, somado com a criação de uma história fantástica que quebra com uma ordem social (PROPP, 1992), pois a personagem Odete começa a contar seu desejo sexual em gradação e chega a um ponto em que a história fica fantástica, ou seja, praticamente impossível na vida real. As transformações corporais desejantes, como o queixo ficar parecido com o Noel Rosa, de tanto transar, e o ato sexual com todos ao mesmo tempo engendram a quebra da ordem social: trata-se de uma mulher falando de sexo como se fosse um homem. A situação finaliza com a Odete perguntando ao marido o que ele quer, de modo que ele responde “tangerina”. Aqui, temos o retorno ao ponto de partida (BERGSON, 2001), ou seja, depois de toda a confusão, a vida segue, e isso gera o cômico, pois, apesar de Odete propor algo grandioso nos seus desejos sexuais, retornam ao jantar rotineiro de casal. Após a vinheta do programa, temos a personagem Odete olhando para a câmera, como se falasse com o público, e dizendo algo semelhante ao que disse para o marido. Nesse ponto, vemos uma das características do humor feito pelos comediantes stand-up comedy e pelos palhaços, que é o olhar para o público, como se fosse a quebra da quarta parede113, mostrando que o personagem sabe que está sendo assistido. Odete: Sabe o que eu vou fazer com que se inscrever aqui, Carlos Alberto114? Eu vou chamuscar a buça todinha na cara dele que nem eu fiz com o Ian SBF. Sabe o que mais? Depois que ele se inscrever, Carlos Alberto, ele vai poder entrar no meu canal na hora que ele quiser. Eu quero que o Gustavo Chagas acabe comigo. Eu quero que o meu reto passe a se chamar torto, depois que ele e o João Paulo se embrenharem nele. E eu prometo, se o Antônio Tabet favoritar esse vídeo, eu, a Nataly Mega e a Marília Tapajós

112 O aumento gradativo da situação cômica. 113 Quando o ator olha para o público, e não fica a ilusão que estamos diante de uma janela que mostra um outro mundo. O ator reconhece que o público o assisti e interage com esse. 114 Aqui a personagem passa a chamar o marido, que antes era Mario Alberto de Carlos Alberto. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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vamos fazer uma ménage a quatre com ele. Sabe o que é quatre, Carlos Alberto? A Luanne Araújo com certeza sabe... Enfim, é isso que eu quero, Carlos Alberto.

Ocorre uma quebra no raciocínio lógico, pois pensa-se que será uma discussão de casal normal, mas com a Odete falando dos seus desejos sexuais, transgride-se com a imagem da dona de casa subserviente ao marido quando ele chega em casa, após um dia de trabalho. Um outro ponto de transgressão é a naturalidade com que a personagem fala, como se aquilo que ela diz fosse normal. Em contraponto, temos o olhar dela de ironia e sarcasmo. Como se a própria personagem risse disso tudo. O humor também vem da comparação que a personagem faz com figuras públicas, como por exemplo, o nadador “Michael Phelps”, quando ela diz “Eu quero ficar tão larga que o Phelps vai enfiar o cotovelo assim, dobrado dentro de mim, e eu não vou nem sentir, porque eu vou tá o que... Extasiada, entendeu?”. Da personagem também falar de querer “foder” com o time da Nigéria, o exército de Israel, o Malvino Salvador, o porteiro Toinho e muitos outros, arrematando que seria com todos ao mesmo tempo, levando o público a imaginar uma situação extremamente absurda, longe da realidade. Isso produz o riso em virtude de se imaginar o quão ridícula pode ser a cena sugerida pela personagem. Quando a personagem fala: “E depois eu vou querer dar o troco, passar recibo. Eu vou querer que me chame de putinha, de vaca, de vadia, de cachorra, e depois de putinha de novo. E, por fim, para terminar com tudo isso, eu vou esmerilhar a chapeleta de geral para limpar a bagunça. E, no dia seguinte, eu vou acordar puída, assada que nem um fantoche velho”, remetemo-nos à questão da mulher que sofre preconceito ao sair com vários homens e ser tachada dos apelidos citados por Odete. Aqui, temos uma crítica, pelo viés humorístico, ao machismo presente na sociedade. Enquanto o homem pode tudo, a mulher é cerceada por várias regras comportamentais desde criança. Dessa forma, o humor é construído a partir de um ato cotidiano, que é o jantar em família, uma conversa de casal. A partir do inconformismo da mulher em relação à sua função no casal e ao seu relacionamento com o marido, ela diz o que realmente quer. Quando o marido reclama da sobremesa e pergunta o que ela quer, a mulher vê uma chance de se expressar. Estabelece-se, assim, um humor por contradição, pois o homem estava se referindo a uma sobremesa, e a mulher entende como referente o que ela quer para a vida.

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Academia115 O vídeo foi postado em 3 de maio de 2014 e tem por elenco Antônio Tabet, Julia Rabello e Letícia Lima. A cena se passa em uma academia. Um casal chega à academia com o objetivo de ver o preço da matrícula e fala com uma atendente: Atendente: Olá! Bem-vindos à BaryClub, posso ajudar? Homem: Pode. A gente queria ver preço de matrícula... Mensalidades, essas coisas. Atendente: Ah, tá. Temos todos os planos aqui. Homem: Ah, que ótimo. Na verdade, eu tô querendo treinar segunda... quarta... Atendente: Desculpa... Desculpa, o senhor disse treinar... O senhor não vai treinar, vai, no máximo, malhar, né? Porque é até meio ridículo falar treinar no seu caso. Ninguém acorda gordinho ansioso num dia e, só porque se inscreveu numa academia, virou centroavante do Vasco. Homem: Gente?! Atendente: É true fitness, na verdade, sem enrolação. Mulher: É, eu tô vendo que você tem aqui uns pacotes só pra mulheres. Atendente: Temos, temos sim. Temos o plano cavala, cavala plus e cavala premium. Mulher: Eu só posso fazer cavala? Atendente: Só pode fazer a cavala, porque o cadelona acabou no verão. Homem: E como é esse cavala? Atendente: Então, o plano cavala, ele trabalha série de quê? De cu... O plano cavala plus trabalha série de cu, mais virilha sarada/torneada. O prêmio cavala premium trabalha série de cu, mais virilha sarada e tem um bônus do hormoniozinho da voz da Panicat. Mulher: Como é que é essa voz de Panicat? Atendente: É voz de pato. Essa voz de traveco, fórmula 1... Mulher: Ah, tá.

Nesse ponto temos uma grande carga crítica ao parodiar os planos que geralmente as academias apresentam para os clientes. O fato de o nome do plano ser “cavala” já desperta um estranhamento grotesco. Depois, a atendente conta que, no verão passado, havia um plano que se chamava cadelona. Temos uma crítica aqui à figura feminina, em como a mulher é vista pelo homem, na comparação com animais; e a comparação com animais é um dos pontos que levam ao riso, como aponta Bergson (1987) e Propp (1992). A questão do uso da palavra “cu” também gera risos, pois vamos para o “fantástico” (PROPP, 1992), que já foi evidenciado no vídeo Sobre a mesa, visto que “malhar cu” é uma situação esdrúxula, que leva à comicidade. Eis um deboche aos diversos exercícios para partes específicas do corpo.

115 Disponível em: . Acesso em: 5 set. 2016. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Homem: Você tem personal trainer? Porque a Mariana é meio preguiçosa e, se não tiver alguém incentivando, ela vai fazer seis meses de matrícula e vai vir um mês só, sabe? Atendente: Danadinha, né? Temos sim. Temos quatro tipos pra vocês escolherem: Temos o personal puxa-saco, que é aquele que se faz de amigão, mas só quer o seu dinheiro, como todos os outros, na real; Temos o personal lover, que vai comer sua senhora. Delícia, né? Temos o personal lover camuflagem... Quê que é o camuflagem? Ele vai fingir que é gay na frente do seu marido e, por trás, vai te comer, delícia. Igual o outro; E temos o personal papo-merda, que é aquele cara burro, nada inteligente, que fica fazendo piadinha de pavê... “Pavê ou pra comer”. Pra comer sua senhora, inclusive. Temos esses quatro tipos. Homem: E aí, amor? Mulher: (Sem jeito) Não, não gostei não. Tá, brigada, tá, querida? A gente vai dar uma pensada, qualquer coisa a gente volta. Atendente: Ah, vocês querem dar uma pensada. É a academia do lado, por favor.

O nome dos tipos de personal trainers ironiza essa profissão que, no séc. XXI, está cada vez mais em evidência. A ridicularização das profissões aparece discutida tanto em Bergson (2001) como Propp (1992); ambos apontam que eram uma forma de comicidade muito utilizada tanto por Moliére como Shakespeare e outros dramaturgos. Entrando nisso a forma de falar, ou seja, o jargão das profissões, como já é evidenciado nos pacotes da academia, além do fato de relacionar com a possibilidade de as clientes terem casos com os “personais”, fato que já é uma piada no cotidiano dos maridos cujas esposas fazem academia. O que chama a atenção é a atuação dos atores. Está explícita no rosto deles a ironia com que abordam o tema da grande procura por academia. Há um ar de deboche, de ironia na interpretação. Além de a crítica estar nos diálogos, está muito forte na interpretação do elenco: é extremamente visível no olhar da atriz Julia Rabello, que faz a mulher, e da Letícia Lima, a atendente. É quase como se fosse um distanciamento de “Brecht”116, como se o ator estivesse olhando de fora para o personagem e dizendo “como você é idiota, ridículo”. A interpretação deixa transparecer que o próprio ator critica seu personagem. (Vinheta do canal. Na sequência, temos uma mulher malhando com a supervisão de um personal trainer). Personal: Gata, cadê o gominho dessa virilha sorrindo pra mim, hein? Cadê o gominho aparecendo ali, dando tchauzinho pra mim? Faz vozinha de pato pra mim. Fala assim: “Eu sou o Felipe Massa”. Vai lá. Mulher: (Voz de pato) Eu sou o Felipe Massa. Personal: Não tá nasalado, vai lá. “Eu sou o Felipe Massa”. Mulher: (Voz de pato) Eu sou o Felipe Massa. Personal: (Grita) Gata, cadê essa virilha? Vai lá! Canta pra mim, virilha! Vamo lá! Cadê o gominho sorrindo, hein? Eu não tô vendo nada aqui, cadê? Tomou Whey? Tomou Deca? Tomou Stroll? Tomou vitamina C? É bom porque cura gripe.

116 O ator faz uma crítica da situação ao representar a mesma. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Para completar a primeira cena, no desfecho, temos a situação que a atendente já tinha antecipado, agora vemos o personal trainer dando instrução/motivação para a moça que malha. Na cena 1, há a criação do contexto e na 2, a exemplificação, o que deixa o vídeo mais cômico ainda. Aqui fica mais evidente a ridicularização das profissões, observadas por Propp (1992) e Bergson (2001), na figura do personal trainer. Soma-se a isso a comparação da voz de quem malha com a das Panicats117 e dos pilotos de fórmula 1: acrescenta-se o ridículo físico ao ridículo profissional (BERGSON, 2001). Ao final, uma fala do personal trainer gera uma quebra: após uma série de questionamentos sobre o consumo de produtos comuns aos clientes de academia, a continuidade no assunto é comprometida quando, ele questiona se ela tomou vitamina C. Isso rompe com o contínuo da cena e leva ao riso. A reta transversal de Bergson (2001), que corta a horizontal, ou seja, o inesperado de Propp (1992), que gera a comicidade. O trabalho do Porta dos Fundos tem uma carga extremamente crítica aos fatos presentes no nosso cotidiano. Através do deboche, o grupo critica os mais diversos comportamentos, seja o machismo, a vaidade, os vícios nas redes sociais, a questão das olímpiadas, a política e a si próprio, como no caso do vídeo Delação 118em que a equipe rebate críticas que recebe sobre o uso da Lei Rouanet e um possível apoio ao governo Dilma Rousseff (2011-2016), fatores que teriam facilitado o sucesso do canal. Vemos, assim, um despudor ao extremo, despido do medo de ser sarcásticos com o próximo e fazer ironia de si mesmos. Ao mesmo tempo que expõe as fraquezas dos outros, também expõe as suas, o que torna o grupo mais forte contra as críticas. O Porta dos Fundos empreende um humor transgressor por não ter medo de tocar em temas tabus, sagrados, e se propor a fazer chacota de qualquer figura, ser, personagem etc, como nos vídeos em que retrata os pastores evangélicos nas pregações. Um humor que olha para o tema retratado como se dissesse “não vamos ter medo de falar de você, pois sabemos o quanto você e seu comportamento são ridículos e absurdos”. Mostra o quanto de cômico há na seriedade, por exemplo, das figuras dos pastores.

Xuxa Meneghel119

117 Assistentes de palco do programa Pânico na Band. 118 Disponível em: . Acesso em: 5 set. 2016. 119 Disponível em: . Acesso em: 5 set. 2016. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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O vídeo foi publicado em 7 de maio de 2016 e tem no elenco a apresentadora brasileira Xuxa Meneghel e os autores Thati Lopes, Rafael Portugal e Vera Monteiro. Tematiza Xuxa fazendo uma visita à casa de uma suposta fã, situação pitoresca de um quadro do programa televisivo dessa apresentadora. Xuxa: Vem, gente. Olha, é aqui. Vamos ver como é que ela vai me receber, hein? (Bate na Porta.) Mulher: (Voz em off, grita.) Já Vai! (Xuxa bate de novo). Já vai, caralho, porra! Tá com pressa, enfia essa mão no cu! (Abre a porta) Quem é?

Aqui já observamos uma quebra de expectativa, pois, geralmente, nos programas televisivos, as pessoas são gentis com os apresentadores. A mulher, por sua vez, fala palavrão e é mal educada com a Xuxa. Temos, assim, uma quebra de expectativa. Xuxa: Oi, tudo bem? Mulher: Tem pão velho aqui não. Xuxa: Não, não, não. (Tira a peruca loira) Sou eu. Xuxa. Mulher: (Desanimada) Sou eu, Jéssica. Xuxa: Oi, Jéssica. Tudo bem? Mulher: Tava tudo meio médio, agora tá tudo meio merda, né? Quem é essa gente toda aqui? Xuxa: Essa é minha equipe, Jéssica. Você tá no meu programa. Programa Xuxa Meneghel! Mulher: (Arruma o cabelo) É a Globo? Xuxa: Não, é a Record, Jéssica. Mulher: Aaah, tá. Xuxa: Jéssica, eu posso entrar? Posso falar com você? Mulher: Mas... mas, pra que é? É com quem que você quer falar? Xuxa: Você tem filho, Jéssica? Mulher: Eu nasci sem útero.

A personagem mulher sempre está com má vontade com a Xuxa.Ao pensar que a apresentadora pertencia à Rede Globo, emissora de maior prestígio popular, ela fica um pouco mais alegre, mas, ao saber que se trata da Record, desanima-se. Nesse ponto, pode se inferir uma crítica à questão da audiência e dos estereótipos das emissoras.

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Recentemente, o canal Porta dos Fundos fez um vídeo sobre a Record intitulado Record 120, motivado pelo fato de Fábio Porchat ter inaugurado um talk show neste canal televisivo. No vídeo, Porchat avisa a mãe da atriz Paloma Bernardi, contratada da Record, que a atriz está viva e bem, e que eles podem encerrar as buscas. Conta também que já avisou às famílias do Floriano Peixoto, da Babi Xavier, da Gisele Itié121. Observa-se, com isso,um deboche sobre a questão da audiência assentado no fato de que, quando os atores não trabalham na Globo, é como se estivessem desaparecidos ou mortos. Nas vinhetas de chamadas do seu talk show, Porchat aparecia expressando o desejo de divulgar seu programa nos programas de repertório da Globo Fátima Bernardes, Vídeo Show, Jornal Nacional etc. É, então, avisado de que seu programa faz parte da Record, situação à qual responde assustado: “Não fala isso nem brincando!”. Ao final, o ator conclui ser essa a razão de o apresentador Rodrigo Faro, contratado da Record, não parar de contatá-lo no Facebook. Em outra vinheta, Porchat era lembrado de ter assinado um contrato com a Record. Assim, vemos que o deboche, que é marca do canal, migra para a televisão com a entrada dos membros do grupo na mesma. No vídeo Xuxa Meneghel, a situação de Jéssica ter nascido sem útero é mais uma quebra de expectativas. A alegação deixa a apresentadora sem graça tanto quanto a opinião da mulher sobre o fato de não poder ter filhos ser bom, haja vista não gostar de crianças, fato que entra em contradição com a figura da própria Xuxa, que tem sua história ligada ao público infantil. A energia das personagens também se contrapõe, pois Jéssica está sempre em uma atmosfera de desânimo, de preguiça, pouca vontade, e Xuxa está radiante, muito contente e feliz. Isso, o contraste, é outro elemento que leva ao cômico (BERGSON, 2001). Xuxa: Ai, Jéssica, desculpa. Nossa! Mulher: Não, pra mim é tranquilo. Eu acho criança meio tipo pombo, né? Eu não gosto, não. Xuxa: Bem, Jéssica... É que eu queria, sabe, na realidade... Eu queria que você participasse do meu programa, sabe? E aí, eu... Mulher: Aaah... É tipo aquele programa que reforma a casa do pobre? Porque isso aqui tá que é cupim puro. Xuxa: Não, não, Jéssica. Não é.

120 Disponível em: . Acesso em: 5 set. 2016. 121 Atores contratados da Record. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Mulher: Vai me dá um carro ou uma maquininha de fazer fralda? Xuxa: Não. Mulher: Um rack legal do Magazine Luiza? Xuxa: Não, Jéssica. Não é isso, não. Mulher: Não, não é! Porque eu já sei o que é que é. Isso daí é coisa do programa do Luciano Huck. É o Luciano aqui, não é? (Tenta tirar a máscara do rosto da Xuxa) Xuxa: Não, não, Jéssica, não. Não é. Mulher: Dá pra ver o Luciano... Xuxa: Não, não, Jéssica, não. Mulher: Eu amo o Luciano. Angélica, manda um beijo pra Angélica. Xuxa: Jess... Não é! Mulher: Eu sou louca pela Angélica, acho ela a coisa mais linda. Xuxa: Olha, presta atenção, presta atenção. Não! Não é. Mulher: É do Celso Portiolli? Xuxa: Xuxa Meneghel. Programa Xuxa Meneghel.

Ao pensar que era outro programa, como o do Luciano Huck ou o do Celso Portiolli, apresentadores de emissoras de maiores audiências, o comportamento da personagem Jéssica toca a questão da pouca audiência que Xuxa obteve nos últimos anos, fato que a levou a sair da Globo. A comicidade pretendida na cena advém do modo como Xuxa lida com a situação, falando disso com bom humor, rindo de si mesma, da sua história, das suas características, celebração do fracasso em público. Bergson (2001) aponta como um dos princípios cômicos a degradação, ou seja, a apresentação de uma coisa que era respeitada e cultuada, agora como medíocre e sem graça. Assim, temos a “eterna rainha dos baixinhos”, que teve um enorme sucesso no passado, na sua época de Globo, agora em outra emissora, reconhecendo sua fase de baixa audiência e de certa rejeição pelo público. Alia-se a isso a transgressão das normas salientada por Propp (1992). Ao debochar de si mesma, Xuxa quebra com sua construída imagem de sucesso, mostrando que ela também possui fracassos. Isso a tira do patamar dos deuses, associada aos famosos, e a iguala aos humanos. A esse respeito, Reis (2013) evidencia que o homem quer ter a perfeição dos deuses, mas seus fracassos o lembram de que é humano. Mulher: Eu não conheço. Eu não sei, não assisto seu show. Xuxa: Eu... eu posso entrar, Jéssica, pra gente conversar?

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Mulher: Não. Xuxa: Sabe, é que eu queria saber, na realidade, sabe, as tuas histórias. Homem: Jéssica, oh, Jéssica. Mulher: Já vai, Guilherme! Que saco! Tô falando com a mulher aqui. Xuxa: Tudo bem... Tudo bem Jéssica. Tá, pode ir... Jéssica: Fala. Xuxa: Pode ir, pode ir, pode ir. Eu não quero também mais falar. Tudo bem, acabou. Vamos embora gente. Vamos embora. Tudo bem. Jéssica: Porra, me tirou da cama à toa, viado (Xuxa encontra um rapaz). Rapaz: Meu Deus, não acredito! Xuxa: Ufa! Rapaz: Gisele, corre aqui! A Eliana tá aqui.

Quando a apresentadora Xuxa pensa ser reconhecida, o rapaz a confunde com Eliana, outra apresentadora brasileira. Mais uma vez, quebra-se o esperado do roteiro e produz-se a comicidade. Trata-se do inesperado gerador da comicidade (PROPP, 1992). Ainda, brinca-se também com o fato de o público confundir os apresentadores de televisão. (Vinheta do canal). (Xuxa mexendo no celular. Chega uma senhora idosa). Senhora: Gente!!! Xuxa: Oi. Senhora: É a Xuxa! Xuxa: Tudo bem? Senhora: Ai, eu era tão sua fã. Assistia você desde que eu era pequenininha. Você ainda tá na Manchete? Xuxa: Ai, meu Deus! Para “coroar” o encerramento do vídeo, há o fato de a personagem senhora dizer que assistia a ela desde a infância. Aqui temos uma questão etária, haja vista a senhora aparentar ser mais velha que Xuxa. Essa comparação produz riso, ao se relacionar as idades da Xuxa e da senhora, quem ainda pergunta se a apresentadora está na Manchete, emissora extinta. Tudo converge para ironizar o pouco sucesso de Xuxa atualmente.

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Ao longo do vídeo, temos a constante repetição das pessoas que não reconhecem a apresentadora Xuxa, um dos elementos cômicos evidenciados por Bergson (2001), ou seja, a repetição de determinada situação a torna mais engraçada ainda. Xuxa, ao participar desse vídeo, permite-se rir de si mesma, coisa que os palhaços, os comediantes de stand-up e os próprios vídeos do Porta dos Fundos fazem. Trata-se de assumir o fracasso em público e rir disso, auto ironizar-se. “O riso é uma arma de destruição: ele destrói a falsa autoridade e a falsa grandeza daqueles que são submetidos ao escárnio” (PROPP, 1992, p. 46). Xuxa já havia sido citada em outro vídeo do canal intitulado Xuxuxu Xaxaxa 122, no qual o esposo relata para a esposa que se encontrou com a Xuxa, única pessoa com a qual a mulher consentia que o homem transasse fora do casamento. Em seguida, o marido conta que a apresentadora aceitou a proposta de transa, fato que deixa a mulher sem reação, de boca aberta. O vídeo termina mostrando uma bota branca, símbolo da Xuxa, e o cenário não explícito em que o homem faz sexo com, supostamente, a Xuxa. Foi a partir desse vídeo que a apresentadora decidiu participar do intitulado Xuxa Meneghel. Em virtude de os vídeos do Porta terem milhões de visualizações e contarem com alta popularidade na atualidade, a parceria é benéfica para a imagem da Xuxa, que mudou de emissora e está começando um novo programa. É uma forma de divulgação para ambos, pois a Xuxa é uma celebridade conhecida mundialmente. Segundo a atriz Karina Ramil, o Porta dos Fundos tem um humor sagaz, com grande carga política, pautado em observações do cotidiano, não tendo medo de propor uma maneira diferente de olhar para o nosso dia-a-dia. O objetivo é tirar o melhor de cada situação, sem ter que usar um tom agressivo, mas sim, a partir de outro ponto de vista. Cita o exemplo do vídeo Fashion Week123, que aborda o mundo da moda, a partir da entrevista de um estilista contando que usa trabalho escravo e infantil. “Quantas roupas não compramos e programas de moda não vemos sem fazer uma reflexão de como esse mercado funciona?”, diz sobre o assunto. Salienta que nem todas as marcas estão envolvidas com escravidão, mas que muitas estão e que, a partir d o vídeo, começou a pensar sobre seus hábitos de compra. Enfoca que nos acostumamos a fechar os olhos e tornar banal fatos surreais e afirma: “[...] esse vídeo está aí por isso, pra cutucar

122 Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2016. 123 Disponível em https://youtu.be/CH0p6L3Sc-s . Acesso em: 22 jun. 2017. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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a ferida, te tirar da zona de conforto. E quem sabe, assim eu espero começarmos a mudar esse sistema doente”.124

CONSIDERAÇÕES FINAIS A comédia, em todos os tempos, tem como ponto-chave a questão da crítica ao comportamento da sociedade daquele período. Ao retratar os temas do cotidiano no palco e nos variados tipos de telas, como tv, computador e outros espaços; a comédia pode dar alguns tons a mais ao assunto tematizado para evidenciar seu lado cômico ou apenas mostrar o fato. Mesmo que a crítica não seja explícita, basta um olhar mais atento para ver. Esclarece-se que a crítica não é só aos sistemas políticos, às grandes personalidades e às religiões; pode também tanger ao comportamento humano mais simples, como o acessar uma rede social ou fazer compras em um supermercado. O humor tem o poder de mostrar o quanto o comportamento humano pode ser ridículo, sem sentido e absurdo. O canal de humor Porta dos Fundos faz uma crítica aberta ao comportamento humano nos mais diversos espaços e temas, através de um olhar crítico debochado, evidenciando o quanto o cotidiano é cômico e os comportamentos, vícios e desejos humanos, risíveis. Com isso, o Porta representa fatos da contemporaneidade pelo viés cômico, como Moliére na França, ao retratar os absurdos da burguesia, como Aristófanes na Grécia, ao retratar os vícios humanos e Martins Pena no Brasil, ao trazer os tipos nacionais para o palco, e muitos outros autores que escreveram textos cômicos mundo afora e assim trouxeram para a comédia observações críticas relacionadas ao cotidiano de uma sociedade. Ao criar suas propostas de vídeos, o Porta dos Fundos propõe um olhar sobre determinado tema. A partir disso, as pessoas que visualizam os vídeos podem refletir sobre o mesmo. A reflexão é perceptível nos milhares de comentários que o público faz no Youtube, abaixo dos vídeos, que podem concordar ou discordar do seu conteúdo. Com isso, é gerada uma discussão sobre o tema, colocando as pessoas para refletirem. A internet deu voz ao público, a partir disso foi possível um diálogo entre quem produz e quem assiste. Ainda, o grande sucesso do canal Porta dos Fundos evidenciou possibilidade de trabalho para diversos atores no país. Mostrou que, além do teatro tradicional, do cinema e da televisão, a internet também é um caminho profissional. Soma-se a isso a questão da liberdade, que o grupo Porta dos Fundos evidencia nas suas falas, que permite quem produz conteúdo na internet

124 Entrevista concedida ao pesquisador em 20 de junho de 2017. ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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fazer o que gosta e se identifica, o que em outras plataformas muitas vezes não é possível. Em tempo, o grupo até tentou a televisão, mas não conseguiu abertura, por isso, lançaram o projeto na internet. Dessa forma, a internet abre uma grande possibilidade para as pessoas realizarem seus trabalhos e mostrá-los ao público. Possibilita que, em qualquer região do mundo, alguém publique seus vídeos, como o autor da presente pesquisa fez e também o grupo Porta dos Fundos. Internautas do mundo inteiro poderão ter acesso a tal conteúdo, propiciando oportunidades profissionais, como evidenciado pelo grupo. Ao estudar o canal, foi possível entender a construção do humor através da exposição das contradições da sociedade, mostrando que os assuntos do cotidiano podem ser e são cômicos. Este trabalho sobre o Porta dos Fundos me inspirou e trouxe mais certeza ainda de seguir essa área, no campo audiovisual, seja na TV ou na internet. Também serviu como forma de agregar conhecimento para minha formação, além de ser prazeroso, tanto na criação de meus próprios vídeos como na apreciação desse estilo. A imposição do tema politicamente correto às TVs abertas abre a possibilidade de transgressão nas redes sociais. Assim, o programa Porta dos Fundos inicia na internet uma forma diferenciada de humor que transgrediu o humor politicamente correto da TV. Estudar sobre o Porta dos Fundos é ter uma referência de como é a organização de um grupo que produz vídeos de humor para serem publicados no YouTube, quais são seus ideais e de onde partem para produzir os vídeos. Com isso, entende-se como o grupo sobrevive na internet já há alguns anos e gera receita com o seu conteúdo. O estudo do tema comédia e humor na graduação de teatro da UFU, trouxe grande contribuição a minha formação no que concerne à ampliação do ponto de vista transgressivo sobre o universo teórico-prático relacionado à temática comicidade. Nele, o ator também se torna um ser mais flexível e aberto à forma de ver o mundo e o espectador a sua volta.

REFERÊNCIAS ALVES, José Cláudio Rodrigues. Liberdade de expressão e programas humorísticos. Revista Direito e Liberdade – RDL – ESMARN – v. 17, n. 1, p. 131-171, jan./abr. 2015. BERGSON, Henri. O Riso: Ensaio sobre a significação da comicidade. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2001. CARVALHO, Lauzemir Augusto Rodrigues. Porta dos Fundos: Uma experiência multiplataforma na cultura da convergência. Viçosa: 2014.

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FERREIRA, Andre Luiz Rodrigues. Transgressão na máscara do palhaço. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2016. GUIMARÃES, Bruno Menezes Andrade. “Porta dos Fundos” e a (des)construção da religiosidade em vídeos de humor na internet. 10º Interprogramas de Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Libero. 2015. Disponível em https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2015/01/Bruno-Menezes-UFMG.pdf . Acesso em: 1 set. 2016. PORTA DOS FUNDOS. Academia. Disponível em: . Acesso em: 5 set. 2016. ______. Sobre a Mesa. Disponível em . Acesso em: 1 set. 2016. ______. Xuxa Meneghel. Disponível em: . Acesso em: 5 set. 2016. PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. Tradução Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Ed. Ática, 1992. REIS, D.M. Caçadores de Risos: o maravilhoso mundo da palhaçaria. Salvador, EDUFBA, 2013. UOL. CODIGOFONTE. Disponível em: . Acesso em: 1 set. 2016. VALE, Rony Petterson Gomes do. Humor, humoristas e problemas de topia discursiva. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 15, n. 2, p. 267-283, maio/ago. 2015. WEBER, Ana Claudia. A utilização do humor na publicidade: Um estudo sobre o canal Porta dos Fundos. Disponível em: . Acesso em: 11 ago. 2016.

RECEBIDO EM: 04/10/2017 | APROVADO EM: 29/10/2017

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A ESTILÍSTICA LÉXICA: UM RETRATO DA EXPRESSIVIDADE LINGUÍSTICA NA CANÇÃO SANGRANDO DE GONZAGUINHA

Airton Santos de Sousa Júnior Universidade Federal do Acre – UFAC

RESUMO: Este estudo tem por objetivo a realização de uma análise estilística em torno da canção “Sangrando”, de autoria do músico e compositor Gonzaguinha. Para isso, fundamentamo-nos nos aportes teórico-metodológicos da estilística léxica, entendida na perspectiva de Martins (2008), por estudar os aspectos expressivos das palavras, ligados aos seus componentes semânticos e morfológicos. Com isso, procura-se, por meio da análise estilística, encontrar aspectos e marcas que apontem para o estilo do compositor, entendendo estilo, nessa abordagem como as escolhas realizadas pelos usuários da língua dentro do sistema linguístico, considerando ainda, com base em Coseriu (1978), que quanto maior for o conhecimento acerca do sistema da língua, maiores serão as possibilidades de uso do usuário. Desta forma, a partir da canção “Sangrando”, apresentaremos quais foram as escolhas realizadas dentro do sistema linguístico que contribuíram para uma expressividade mais realçada no limite do léxico, evidenciando, assim, o estilo do autor e compositor Gonzaguinha. PALAVRAS-CHAVE: Estilística Léxica. Estilo. Expressividade. Canção.

Lexical stylistics: a picture of the expressiveness in Sangrando, song by Gonzaguinha

ABSTRACT: This study aims to perform a stylistic analysis around the song "Sangrando", by the musician and composer Gonzaguinha. For this, we base ourselves on the theoretical- methodological contributions of lexical stylistics, understood in the perspective of Martins (2008), for studying the expressive aspects of words, linked to their semantic and morphological components. With this, we seek, through stylistic analysis, to find aspects and marks that point to the style of the composer, understanding style, in this approach as the choices made by the users of the language within the linguistic system, considering also, based on Coseriu (1978), that the greater the knowledge about the language system, the greater the possibilities of user use. In this way, from the song "Sangrando", we will present what were the choices made within the linguistic system that contributed to a more expressive expression in the limit of the lexicon, thus evidencing the style of the author and composer Gonzaguinha. KEYWORDS: Lexical stylistics. Style. Expressiveness. Song.

INTRODUÇÃO O presente estudo tem por objetivo realizar uma análise com base nos postulados da estilística léxica, em torno da canção “Sangrando”, de autoria do cantor e compositor Gonzaguinha. Com base em Martins (2008), compreendemos que a estilística léxica, ou da palavra, analisa os aspectos expressivos das palavras ligados aos seus componentes semânticos

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e morfológicos, os quais como ressalta a autora, não podem ser completamente segregados dos aspectos sintáticos e contextuais. A estilística, na perspectiva de Bally (1951), enquanto ramo de estudos voltado para língua, nesse sentido, compreendida também como estilística da língua, apresenta algumas ramificações em outras subáreas como a estilística fonética, léxica, da enunciação e dentre outras. Esse ramo dos estudos linguísticos, assim como outros, possui um objeto especifico de estudo, a saber, o estilo. Todavia, torna-se necessário que se delimitem esse objeto, levando em consideração que a palavra estilo possui várias significações que, por sua vez, ultrapassam até mesmo o aspecto linguístico, como por exemplo, na oração: João possui estilo ao se vestir. Percebemos aqui que a palavra estilo, não designa um aspecto estritamente ligado à língua, ao contrário, ultrapassa esse referente linguístico por se referir ao modo como João se veste. Partindo disso, buscamos ressaltar que para a estilística, o que irá interessar será a acepção de estilo referente aos valores ligados intimamente à língua. Seja na canção, poesia ou qualquer outra produção artística cuja matéria prima seja o léxico, as escolhas das palavras adequadas são de fundamental importância no momento da produção para se obter o efeito expressivo desejado. A seleção das palavras, das figuras de linguagem, de expressões que denotem um sentido conotativo ou denotativo, tudo isso faz parte do processo de produção de um texto cuja matéria seja a língua. E são essas escolhas dentro do sistema da língua, que irão particularizar o estilo do escritor e/ou compositor e etc. Partindo deste pressuposto, entendemos estilo, enquanto as escolhas que o usuário da língua realiza dentro do sistema linguístico, escolhas estas, que podem ser compreendidas como um desvio, pois podem ir de encontro a uma norma. Assim sendo, buscaremos estudar aqui, por meio da estilística da palavra, quais foram as escolhas feitas pelo cantor e compositor Gonzaguinha, dentro do sistema da língua, no processo de produção da música “Sangrando”, a fim de identificar quais os efeitos expressivos que tais escolhas agregam a canção.

BIOGRAFIA No que concerne à biografia de Gonzaguinha, optamos por citar o estudo feito por Tatiana Rocha (2017), considerando a pertinência das informações prestadas, que trazem elementos não somente estritos a vida dele, mas também ao próprio estilo do compositor e cantor. Gonzaguinha é filho do conhecido cantor e compositor, Luiz Gonzaga e nasceu no dia 22 de setembro de 1945, no Rio de Janeiro. Herdou do pai o

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nome, Luiz Gonzaga Nascimento Filho e, como o pai, tinha o talento para a música. Sua mãe, Odiléia, era uma cantora e dançarina que morreu de tuberculose, ainda muito moça, com apenas 22 anos de idade, deixando Gonzaguinha órfão aos dois anos (...) Durante seu período universitário entrou em contato com outros músicos novos como ele. Fez parte do grupo MAU (Movimento Artístico Universitário) junto com Ivan Lins, Dominguinhos, Aldir Blanc e César Costa Filho. Participava de festivais e já começava a despontar pelas suas letras sempre com forte teor social. Aliás, essa era uma marca em sua carreira. Suas letras eram provocativas e, em virtude do regime militar, estava sempre tendo que driblar a censura. Em 73 se apresentou no programa de Flávio Cavalcante e causou grande espanto pelo teor de suas músicas. Gonzaguinha era agressivo e irônico. Recebeu uma advertência da censura e muitas críticas, mas teve um lado positivo. Seu compacto que estava encalhado nas prateleiras foi rapidamente vendido. Começou aí a carreira de Gonzaguinha. Era um sucesso na Rádio Tamoio e logo veio a gravar seu primeiro long-play. Com o passar do tempo percebeu que suas letras não alcançavam o público que ele queria tocar. Assim deu uma guinada na carreira e começou a ser mais leve. De certa forma, os tempos haviam mudado e o discurso foi se adaptando às circunstâncias. No ano de 1976 lançou o disco “Começaria Tudo Outra Vez” onde conseguiu o sucesso entre as massas. A partir daí se consolidou como compositor sendo gravado por cantoras como Elis Regina, Simone e Maria Bethânia. No dia 9 de abril de 1991 Gonzaguinha morre em um acidente de carro em uma estrada do sul do Paraná. E o Brasil perdia mais um grande compositor. (ROCHA. 2017, p. 01)

A seguir apresentamos com base em Rocha (2017), alguns dos principais discos que marcaram a carreira do compositor Gonzaguinha, bem como também algumas canções que fizeram parte de sua história enquanto cantor e compositor. Luiz Gonzaga Jr. [1973]; Plano de Vôo [1975]; Moleque Gonzaguinha [1977]; Recado [1978]; Gonzaguinha da Vida [1979]; De Volta ao Começo [1980]; Gonzagão& Gonzaguinha Juntos [1980]; Coisa Mais Maior de Grande - Pessoa [1981]; A Vida do Viajante [1981]; Caminhos do Coração [1982]; Alô, Alô Brasil [1983]; Grávido [1984]; Olho de Lince / Trabalho de Parto [1985]; Cavaleiro Solitário [1993] (ROCHA, 2017, p, 02).

ALGUMAS CANÇÕES: “A marcha do povo doido; Caminhos do coração; Começaria tudo outra vez; Diga lá, coração; Espere por mim, morena; Explode coração; Gás néon; Grito de alerta; Infinito desejo; Ponto de interrogação; Sangrando; Sete faces”. (ROCHA, 2017, p, 02).

A ORIGEM DA ESTILÍSTICA A palavra estilística já era usada desde o século XIX, no entanto é tão somente a partir do século XX que ela passa a designar uma nova disciplina ligada à linguística. Tomando o lugar deixado pela retórica, a estilística surge nas primeiras décadas do século XX, graças, sobretudo, a dois precursores que lideram duas correntes de grande importância: Charles Bally

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(1865-1947), doutrinador da estilística da língua, e Leo Spitzer (1887-1960), da estilística literária. Na perspectiva de Bally, a estilística da língua irá estudar os valores expressivos do sistema linguístico: vocabulário, classes de palavras, construções sintáticas e etc. dentro desta concepção, a língua passa a ser vista como um vasto sistema de possibilidades de usos disponíveis aos usuários, que o utilizarão segundo suas necessidades. Sendo que quanto maior for o conhecimento do sistema linguístico, maiores serão as possibilidades expressivas de usá- lo. Como destaca Coseriu (1978): Em sua atividade linguística, o individuo conhece ou não conhece a norma e tem maior ou menor consciência do sistema. Ao não conhecer a norma, orienta-se pelo sistema, podendo estar ou não de acordo com a norma (criação analógica); conhecendo-a pode repeti-la dentro de limites mais ou menos modestos de expressividade ou rechaçá-la deliberadamente e ultrapassá-la, aproveitando as possibilidades que o sistema põe a sua disposição. Os grandes criadores de língua como Dante, Quevedo, Cervantes, Gôngora, Shakespeare, Pusbkin rompem conscientemente a norma (que é algo como “o gosto da época” na arte) e, sobretudo, realizam no grau mais alto as possibilidades do sistema: não é um paradoxo, nem uma frase feita, dizer que um grande poeta “utilizou todas as possibilidades que a língua lhe oferecia”. (COSERIU, 1978, p. 74 apud DUARTE, 1996, p. 50)

Em Spitzer (1955) temos a referida estilística literária, também conhecida como estilística idealista, psicológica ou genética. E em contraste com a estilística da língua, a estilística literária volta-se especificamente para a produção literária, enfatizando o exame de como uma obra literária é constituída, e quais os valores estéticos que ela provoca no leitor. Para Mattoso Câmara Jr (1952) a concepção de estilo irá apoiar-se em duas premissas, a primeira advinda da dicotomia Saussuriana de Língua e Fala, e a segunda embasada nas três funções atribuídas à linguagem por Karl Buhler: representação, expressão e apelo. A representação correspondendo à linguagem intelectiva, a expressão aferindo-se a manifestação psíquica, e o apelo à atuação sobre o outro. Em síntese, a estilística é um ramo dos estudos linguísticos que tem por objeto específico de estudo, o estilo. Objeto este carregado de múltiplas significações, que extrapolam até mesmo o contexto linguístico. Entretanto, como já foi discutido aqui, o que interessa para esse ramo dos estudos linguísticos é o estilo enquanto aspecto linguístico. Partindo dessa perspectiva, teremos tal objeto enquanto a realização que os usuários da língua fazem dentro do sistema linguístico, realização esta que pode ir de encontro a uma dada norma. E ao mesmo tempo, estilo enquanto as escolhas que o usuário realiza dentro do sistema da língua.

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A ESTILÍSTICA LÉXICA A estilística léxica ou da palavra estuda os aspectos expressivos das palavras ligados aos seus componentes semânticos e morfológicos, os quais, entretanto, não podem ser completamente separados dos aspectos sintáticos e contextuais. (MARTINS, 2008, p. 97)

Como podemos observar na citação acima, a estilística léxica ocupa-se por estudar os aspectos expressivos das palavras, ligados as suas significações (semântica) e estrutura interna (morfologia). Todavia, vemos algo interessante quando a autora afirma que esses aspectos considerados pela estilística léxica não podem ser separados dos aspectos sintáticos e contextuais. Não há como realizar uma separação definitiva, e diante disso trabalhar de uma forma isolada. Segundo Martins (2008), os processos de fala são resultantes da combinação de palavras correspondente às regras da língua. Apenas do ponto de vista teórico é que se procura segregar léxico, entendido aqui como palavra, e gramática, correspondendo às regras. Nesse sentido, destacamos que mesmo as palavras que possuem um significado extralinguístico, dentro do enunciado só irão funcionar através da agregação de um componente gramatical. Assim como na maioria dos estudos da linguagem, é difícil precisar um conceito homogêneo para o léxico. Da mesma forma como existem divergências entre os teóricos na conceituação do objeto da estilística, também não existe um consenso com relação ao conceito de léxico. Todavia, entendemos o léxico conforme acepção nos apresentada por Martins: Conjunto de palavras de uma língua. Este é o conceito tradicional, que tem como imagem o dicionário. É insatisfatório pela imprecisão do que se deve considerar palavra. (A definição mais geralmente aceita é a de forma livre que não pode ser dividida em formas livres menores; uma forma livre mínima é capaz de atuar como uma elocução completa). Este conceito de léxico implica a divisão das palavras em lexicais e gramaticais, encontráveis nos dicionários, mas é discutível se as formas livres gramaticais são realmente palavras visto que muitas delas não podem atuar como elocuções completas. (MARTINS, 2008, p. 98)

Como podemos observar, para esta acepção de léxico dividem-se as palavras em lexicais e gramaticais. Na perspectiva de Martins (2008), as palavras gramaticais também conhecidas como morfemas, gramemas e até mesmo palavras vazias são aquelas cuja significação só é apreendida no contexto linguístico, diferentemente das palavras lexicais que possuem significação extralinguística.

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Ainda de acordo com Martins (2008) é possível perceber que as palavras gramaticais apesar de serem pouco numerosas, desempenham função de grande relevância dentro do contexto linguístico, podendo estar relacionadas ao próprio ato de enunciação, organização do texto, e estrutura interna da frase. Servem para relacionar o enunciado com a situação de enunciação como, por exemplo, os dêiticos eu, tu e suas variantes aqui, ai, agora. Podem ainda, substituir ou referir algum elemento contido no enunciado, atualizar os nomes, estabelecer relações entre palavras no sintagma, a exemplo das preposições. Como podemos constatar, o emprego das palavras gramaticais concerne intimamente à sintaxe e a organização textual, seguindo desta forma regras mais ou menos fixas e preestabelecidas. Já as palavras lexicais, ou plenas como podem também ser denominadas, para Martins (2008), são aquelas que mesmo isoladamente e fora da frase, conseguem despertar em nossa mente uma representação concreta ou abstrata. Partindo disso, podemos entendê-las como extralinguísticas, pois remetem a algo que está fora da língua podendo fazer parte do mundo físico, psíquico ou social. Possuem uma possibilidade constante de renovação, e por conta disso são numericamente indetermináveis, pois constantemente novas palavras vão surgindo na língua, através de empréstimos de outras línguas, processos de composição, derivação etc. São palavras lexicais os substantivos, os adjetivos e advérbios deles correspondentes, e os verbos que exprimem ação e processo mental. Embora tenhamos destacado que as palavras lexicais são de natureza extralinguística, é necessário que se compreenda que dentro de um enunciado, tais palavras não ganham sentido por si próprias, mas relacionadas com palavras gramaticais, e desta forma é que o sentido é construído no enunciado. No que diz respeito aos sentidos das palavras, é relevante percebermos as diferenças entre a denotação e a conotação. De acordo com Tufano (2013), o sentido denotativo, ou denotação, ocorre quando uma palavra ou expressão é empregada em seu sentido referencial, usual, que geralmente vem explicado no dicionário. O sentido conotativo, ou figurado, acontece quando uma determinada palavra é utilizada num sentido especial, e só poderá ser esclarecido pelo contexto, ou seja, pelos outros elementos do texto. Num texto artístico, seja uma poesia ou canção, certamente o escritor irá trabalhar com essas noções de sentido, e são também essas escolhas entre o denotativo e o conotativo que possibilitarão ao escritor obter uma expressividade de maior realce e que atenda aos seus anseios. A seguir, apresentamos o Quadro I, o qual apresenta três figuras de palavras e/ou

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semânticas bastantes usuais, e empregadas em diversos textos. Inclusive, duas delas aparecem na canção “Sangrando”, a qual está sendo o objeto deste estudo.

FIGURA DE PALAVRA DEFINIÇÃO EXEMPLO É o uso de uma palavra com Teu sorriso é uma aurora METÁFORA sentido transferido de outra. (Castro Alves)

Consiste no emprego de uma Desde jovem, ganho a vida METONÍMIA palavra no lugar de outra por com meu suor haver uma relação de sentido entre elas. É a associação de sensações Amargo som da sua voz. SINESTESIA por órgãos de sentidos diferentes. Quadro I. Figuras de Palavras. Fonte: SOUZA JUNIOR. Elaboração Própria. 2017.

METODOLOGIA Para análise da canção “Sangrando”, este estudo utiliza como metodologia os princípios da Estilística Léxica, a qual, diferentemente de uma abordagem que se volta para o texto em busca de um valor estético, buscará explorar os recursos linguísticos utilizados para/na construção do texto. Assim sendo, tem-se neste modelo de análise uma perspectiva imanentista, a qual partirá unicamente da materialidade textual para realização de considerações sobre o texto. Nesse sentido, Parente (2008) apresenta que como método de análise, a estilística léxica se voltará para o texto a fim de explorar a seleção vocabular, juntamente com os fenômenos de conotação e polissemia, desvelando com isso novamente o caráter fortemente estrutural desse modelo de abordagem do texto. Segundo Parente (2008), a metodologia empregada pela estilística da palavra se propõe a: [...] exploração do vocabulário, o emprego de diminutivos e aumentativos afetivos, o emprego de diminutivos pejorativos ou maliciosos, a exploração da polissemia, da sinonímia e da paronímia, mais a exploração do antagonismo entre determinados campos semânticos. Somem-se ainda a coesão semântica obtida a partir da seleção vocabular, os fenômenos de denotação e conotação, a monossemia ou monossignificação versus a polissemia ou plurissignificação, as figuras de linguagem tais como as comparações, as metáforas e metonímias, as hipérboles e as sinestesias, os neologismos (criação estilística de novas palavras) e a adequação vocabular. (PARENTE, 2008, p, 91).

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Desta forma, a partir dos materiais e métodos oferecidos pela Estilística Léxica, buscaremos explorar os recursos linguísticos empregados na canção “Sangrando”, a fim de verificar como a escolha do vocabulário, os efeitos conativo e denotativo, bem como o uso das figuras de linguagem, contribuíram para uma expressividade de maior realce, que evidencie não somente o cuidado de Gonzaguinha ao construir a canção, mas também o próprio estilo do artista.

ANÁLISE ESTILÍSTICA De acordo com o que nos apresenta a estrutura morfossintática da língua, dentro da tríade forma, função e sentido, analisaremos a música “Sangrando”, numa perspectiva da estilística lexical. No que diz respeito ao gênero textual da análise, a música, faz-se necessário um conhecimento extralinguístico para uma construção coerente de sentido, pois os valores expressivos de cada vocábulo atuam em acordo com uma época e um contexto social que são indissociáveis e merecem a devida atenção. Macambira (1997, p. 17), nos diz que “as palavras existentes em qualquer língua, distribuem-se em várias classes, conforme as formas que assumem ou as funções que desempenham, e para alguns autores conforme o sentido que expressam”, portanto, para uma análise lexical é preciso conhecer o objeto em questão de acordo com suas estruturas formais. Não somente literária, mas, sobretudo linguística. Um passeio pela teoria da literatura, normatividade da língua e estilística. O autor considera ainda, que a combinação de forma e sentido são inseparáveis. Em se tratando de uma obra carregada de significados, observemos que não somente o sentido concreto, literal nos interessa, mas também as concepções de natureza figurada da palavra, como traz Brandão (1989, p.7), quando afirma que “forma aberta a duas ou mais interpretações, o sentido figurado parece que projeta nas razões de sua estrutura a polivalência que caracteriza seu efeito no receptor”. Ratificando o que nos diz os teóricos da língua, numa perspectiva filosófica da escrita, Schopenhauer (2008, p. 145), coloca que “a palavra dos homens é o material mais duradouro. Se um poeta deu corpo à sua sensação passageira com as palavras mais apropriadas, aquela sensação vive através de séculos nessas palavras e é despertada novamente em cada leitor receptivo”. Partindo dessas afirmações, analisaremos a música “Sangrando”, a qual visita e é

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visitada por todos esses aspectos abordados anteriormente. A seguir, apresenta-se a música em questão, do disco “De Volta Ao Começo” (1980), composta e interpretada por Gonzaguinha: Sangrando

Quando eu soltar a minha voz Por favor, entenda Que palavra por palavra Eis aqui uma pessoa se entregando

Coração na boca Peito aberto Vou sangrando São as lutas dessa nossa vida Que eu estou cantando

Quando eu abrir minha garganta Essa força tanta Tudo que você ouvir Esteja certa Que estarei vivendo

Veja o brilho dos meus olhos E o tremor nas minhas mãos E o meu corpo tão suado Transbordando toda raça e emoção

E se eu chorar E o sal molhar o meu sorriso Não se espante, cante Que o teu canto é a minha força Pra cantar

Quando eu soltar a minha voz Por favor, entenda É apenas o meu jeito de viver O que é amar. (GONZAGUINHA, 1980).

A priori, e especialmente antes de qualquer análise, o estudioso precisa conhecer a profundidade do seu objeto de estudo. No caso da música, o primeiro passo para essa análise foi ouvi-la. Perceber o ritmo, a sonoridade, a emoção expressa pela voz. Num segundo momento, foi necessária leitura da letra em suas minúcias para compreender a lógica dos sentidos figurados. O título “Sangrando” leva a uma interpretação de que a letra deve conter palavras desse campo semântico, seja literalmente ou em seu sentido figurativo. E isso é comprovado por todas as estrofes em que aparecem vocábulos que referenciam o corpo humano (observado o

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qualificativo de sangramento) como em “coração”, “corpo”, “peito” etc. Na primeira estrofe, observamos ainda uma metáfora quando há a afirmação de que a voz será solta, vejamos: Quando eu soltar a minha voz Por favor entenda Que palavra por palavra Eis aqui uma pessoa se entregando [...] Aqui compreendemos o “soltar a voz” como uma clara metáfora de cantar, mas também que o soltar a voz tem um valor expressivo tal que leva o leitor/ouvinte a uma sensação de necessidade de uma liberdade, que desvela a coragem do eu lírico ao revelar suas emoções, fato este ratificado nos versos “Por favor entenda, Que palavra por palavra, Eis aqui uma pessoa se entregando”, ou seja, não por acaso ele usou esse termo, não foi uma escolha caprichosa e arbitrária, mas sim um recurso logicamente pensado. Vale observar também que o primeiro verso está em primeira pessoa, enquanto o último verso dessa estrofe se configura em terceira pessoa, mas se referindo ao próprio eu-lírico (“Eis aqui”, como não é possível identificar o elemento dêitico sugerido pelo vocábulo “aqui”, inferimos que a estrofe recupera o elemento “eu” do primeiro verso e que, portanto, a “pessoa se entregando” se refere a esse “eu”). A partir disso, podemos inferir que esse distanciamento sugerido pela projeção de si mesmo numa terceira pessoa pode indicar um receio do que está porvir. E que observamos na estrofe seguinte: [...] Coração na boca Peito aberto Vou sangrando São as lutas dessa nossa vida Que eu estou cantando

Essa estrofe começa com outra clara metáfora de cantar a partir do termo “coração na boca” (aqui entendendo coração como uma metáfora de romance, amor, paixão, como se esse termo exprimisse uma ideia de aceleramento convergindo com certo medo como veremos mais abaixo), isto é, falam-se de coisas do coração, coisas de um apaixonado. E o peito aberto fazendo referência à receptividade de alguém, que estava disposto a “encarar de frente” qualquer situação nas últimas consequências para cantar suas coisas do coração, o que é ratificado pelo verso seguinte “vou sangrando”. O sangue aqui está muito relacionado ao fazer amar, ao sentido de amor como algo doloroso. O sangue, vermelho, bem como o coração, representam a cor canônica do amor e deduzimos que todo sangramento provém de uma ferida, logo este amor cantado é também doloroso.

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Nos dois últimos versos ele corrobora com essa hipótese ao afirmar que canta as lutas dessa vida. Observamos um certo paralelismo que se apresenta nos primeiros versos das três primeiras estrofes. Nesses três casos há uma repetição do sentido de cantar implícito em metáforas. Entre a primeira e a terceira estrofe é possível falar em paralelismo sintático, pois há repetição na estrutura. Os vocábulos se organizam de tal forma que passam essa ideia de repetição. A aproximação da segunda estrofe, aparentemente se dá por um caminho semântico. Observemos a terceira estrofe: [...] Quando eu abrir minha garganta Essa força tanta Tudo que você ouvir Esteja certa Que estarei vivendo Em linhas gerais, encontramos também sinestesia, que consiste na apresentação de termos representativos dos sentidos humanos (tato, olfato, visão, audição, paladar). Observamos “boca”, “olhos”, “ouvir”, “mãos”. Essa figura parece estar ligada ao sentimento de que nada parece palpável além da dor. Os sentidos humanos fisiológicos são aparentemente secundários aquilo que realmente importa que, ao que tudo indica seria esse doloroso amor cantado. Na quarta e na quinta estrofe, percebemos uma relação desse eu-lírico influenciado por reações incompreendidas. Vejamos: [...] Veja o brilho dos meus olhos E o tremor nas minhas mãos E o meu corpo tão suado Transbordando toda raça e emoção E se eu chorar E o sal molhar o meu sorriso Não se espante, cante Que o teu canto é a minha força Pra cantar [...] Nessas estrofes podemos perceber uma sensação de incompreensão e mesmo insegurança por parte do eu-lírico, fato este, ratificado nos versos “E o tremor nas minhas mãos/ E o meu corpo tão suado/ Transbordando toda raça e emoção/ E se eu chorar”. Por fim, na sexta e última estrofe, temos a confirmação da hipótese apresentada a partir dessas figuras (metáfora, metonímia, sinestesia e anáfora). Um amor doloroso, mas cantado com poesia e lirismo quando ratificada a ideia de que mesmo assim esse é o “jeito de viver/ O que é amar”. Notemos ainda que uma anáfora se apresenta em relação à primeira estrofe: [...]

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Quando eu soltar a minha voz Por favor, entenda É apenas o meu jeito de viver O que é amar Os versos se repetem recuperando a primeira estrofe e levando o leitor/ouvinte a uma percepção de um ciclo que volta ao ponto inicial. O que nos permite conceber essa ideia de continuidade, haja vista que o álbum no qual a música está inserida foi intitulado “De volta ao começo”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante das questões abordadas até aqui, e realizando um apanhado do que foi até então discutido, abordamos alguns aspectos relacionados à origem da estilística que, enquanto disciplina ligada a linguística, surge somente no século XX, tendo por objeto especifico de estudo o estilo, o qual é carregado de variados sentidos. Entendemos estilo como sendo as escolhas que os usuários da língua fazem dentro do sistema linguístico. Escolhas estas que podem ir de encontro a uma norma e, desta forma, teremos estilo enquanto desvio que por sua vez, denota a particularidade dos usos linguísticos de cada indivíduo. Tratamos também acerca da estilística lexical, compreendida ainda como estilística da palavra, a qual estuda os aspectos expressivos das palavras ligados aos seus componentes semânticos e morfológicos, os quais, entretanto, não podem ser completamente segregados dos aspectos sintáticos e contextuais. Percebemos que em toda composição artística, produzida a partir dos recursos da língua, seja poesia, contos, músicas etc. Sempre o escritor ou compositor no caso da canção “Sangrando”, fará escolhas dentro do sistema linguístico a fim de obter uma expressividade desejada. Diante disso, percebemos que neste campo artístico de trabalhar a língua nada ocorre por acaso, arbitrariamente. E é exatamente isso que pudemos observar através da análise da música “Sangrando” de Gonzaguinha, em que todas as palavras foram cuidadosamente pensadas e trabalhadas. Desde a escolha do título, até as palavras que compõem a canção, sendo que algumas fazem parte do mesmo campo semântico. Por meio dos postulados da estilística lexical, fomos capazes de perceber alguns aspectos que demarcam o estilo de Gonzaguinha, ligado a um aspecto voltado a uma crítica social, como vimos em sua biografia. E embora, na canção “Sangrando” não apareçam fortes indícios ligados a uma denuncia social, ao contrário, temos a presença de um lirismo aflorado,

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um amor doloroso, mas cantado com poesia e lirismo quando ratificada a ideia de que mesmo assim esse é o “jeito de viver/ O que é amar”. Ainda dentro desta canção, podemos perceber esses aspectos voltados para denuncia, os quais fazem parte do estilo de Gonzaguinha, entretanto, essa denúncia presente em “Sangrando” não é mais social, mas sim lírica resultante de um amor doloroso, mas cantado com poesia.

REFERÊNCIAS BRANDÃO, Roberto de Oliveira. As figuras de linguagem. São Paulo: Ática, 1989. BALLY, Charles. Traité de stylistique française. 3. ed. Paris: Klincksieck, 1951. BUHLER, Karl. Teoria del Lenguage. Madrid: Revista do Ocidente, 1967. CAMARA JR, J.M. Contribuição para uma Estilística da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, 1952. COSERIU, Eugênio. Teoria da linguagem e Linguística Geral. São Paulo: Presença/Edusp, 1978. DUARTE, P. Fato de estilo: uma questão em aberto. In: Rev. de Letras- Vol. 18- n°. 2 – jul./dez 1996. MACAMBIRA, José Rebouças. A estrutura morfo-sintática do português. 8ª ed. São Paulo: Pioneira, 1997. MARTINS, Nilce Sant’ Anna. Introdução à Estilística: a expressividade da língua portuguesa. 4° ed. São Paulo: Edusp, 2008. PARENTE, Maria Cláudia Martins. O Domínio Da Estilística: Num Convite A Pesquisas E Criações Autônomas. Caderno Discente do Instituto Superior de Educação – Ano 2, n. 2 – Aparecida de Goiânia – 2008. ROCHA, Tatiana. Disponível em: “" Acessado em 11 de mar de 2017. SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Trad. Pedro Süssekind. Porto Alegre: L&Mpocket, 2008. SPITZER, Leo. Lingüística e historia literária. Madrid: Gredos, 1955. TUFANO, Douglas. Gramática Fundamental. 2 ed. São Paulo: Moderna, 2013.

RECEBIDO EM: 13/10/2017 | APROVADO EM: 27/11/2017

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AS QUESTÕES DE ADSTRATOS EM REGIÕES DE FRONTEIRA DE LÍNGUA PORTUGUESA E ESPANHOLA NA AMÉRICA DO SUL

Bianca Rodrigues Cabral Universidade Federal de Uberlândia - UFU

RESUMO: Por questões geográficas e bélicas, a língua e a cultura do Império Romano foi levada para a Europa. Por certo tempo, a cada nova região conquistada pelos romanos, o bilinguismo permanecia em uma situação linguística na qual os falantes são levados a utilizarem alternadamente duas línguas diferentes, dependendo dos meios ou situações. Essa situação de bilinguismo foi dando espaço, aos poucos, à relação de substrato, em que o latim foi gradativamente se sobrepondo às línguas faladas nas regiões antes da dominação romana. A pressão linguística-cultural exercida pelo latim contribuiu para a construção das línguas neolatinas modernas, como o português, o francês, o italiano, o espanhol, dentre outras. Atualmente, as línguas neolatinas, embora provenientes de uma origem comum, o latim, são bem distintas uma das outras devido a fatores culturais, geográficos e sociais. A relação entre o português e o espanhol, foco neste estudo, não é diferente. Elas foram línguas em contato na Península Ibérica e na América do Sul, o que motivou o surgimento de empréstimos vocabulares, principalmente nas regiões de fronteira. O que chamamos de empréstimos vocabulares de línguas em contato, pode ser incorporado aos dicionários de ambas as línguas, sem que haja a sobreposição de uma delas. Sendo assim, os vocabulários passam a fazer parte do acervo lexical de ambas, formando os adstratos. PALAVRAS-CHAVE: Bilinguismo. Adstrato. Variedade linguística. Empréstimo linguístico.

Strates between portuguese and spanish language border regions in South America

ABSTRACT: For geographical and warlike reasons, the language and culture of the Roman Empire was taken to Europe. For a time, with each new region conquered by the Romans, bilingualism remained in a linguistic situation in which the speakers are led to use alternately two different languages, depending on the situations. This situation of bilingualism gradually gave space to the substrate relationship, in which Latin was gradually overlapping the languages spoken in the regions before Roman domination. The linguistic-cultural pressure exerted by Latin contributed to the construction of modern Neolatine languages, such as Portuguese, French, Italian, Spanish, among others. Nowadays, the Neolatine languages, although originating from a common origin, Latin, are very distinct from each other due to cultural, geographic and social factors. The relationship between Portuguese and Spanish, the focus of this study, is no different. They were languages in contact in the Iberian Peninsula and in South America, which motivated the emergence of vocabulary loans, mainly in the border regions. What we call loans, in contact languages, can be incorporated into the dictionaries of both languages, without the overlap of one of them. Thus, the vocabularies become part of the lexical collection of both, forming the strates. KEYWORDS: Bilingualism. Strates. Language variety. Language loan.

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CONTEXTO HISTÓRICO DA LÍNGUA PORTUGUESA E DA LÍNGUA ESPANHOLA A história das línguas portuguesa e espanhola começa com o Latim, em Roma, quando o idioma passa ser utilizado também na literatura e assume duas novas vertentes, sendo elas o Clássico e o Vulgar. Essas eram da mesma língua, portanto, não assumiam o caráter de dois idiomas distintos, mas sim, duas formas diferentes de realização do mesmo idioma. Assim, atualmente considera-se que o Latim Clássico era a variante de prestígio, usada pela elite, escritores e estudiosos importantes; e que o Latim Vulgar era a variante popular, usado pela grande massa não possuidora de bens ou de escolarização. Depois da grande derrota do Império Romano em 476 d.C, com as invasões bárbaras, protagonizadas pelos povos germânicos que habitavam a região a leste das fronteiras do Império, a variação que se expandiu livremente pelos domínios das hordas bárbaras foi o Latim Vulgar. Naquele momento, o Latim Vulgar foi adotado como idioma comum de povos diversos, que não se viam mais como uma grande nação, mas ainda compartilhavam meios de produção e comércio. Dessa relação, surgiram os romances, que é uma situação intermediária de língua, uma situação linguística que não é mais a língua latina em si, pois esta já se modificou muito e continuará se modificando, para mais tarde, se tornar outras línguas (as línguas neolatinas). O romance é, então, uma mistura de línguas e de novas palavras inventadas pela população, de acordo com as necessidades que surgiam, não só de criar uma nova identidade, mas também de comunicação entre seu povo. Esses povos, que se viam agora cada vez mais separados e independentes, contribuindo para as variações linguísticas regionais do Latim, permitiram a formação das línguas neolatinas, que são todas aquelas originadas do Latim. As línguas que conservaram em seu vocabulário, morfologia e sintaxe, vestígios de filiação ao Latim, são chamadas línguas Românicas, sendo elas: o português, o espanhol, o catalão, o francês, o italiano, o reto-romano, o dalmático, o romeno e o sardo. Como sabemos, não existem línguas puras ou estáticas, já que todas elas recebem influências e estão em constantes mudanças. A Língua Portuguesa, por exemplo, veio do Latim Vulgar, introduzido na Lusitânia pelos romanos, região localizada ao ocidente da Península Ibérica. Antes de ser a língua que conhecemos hoje, sofreu influências da germânica, por exemplo, visto que esses povos invadiram a Península, em 409 d.C, bem como das árabes, quando em 711 d.C a Península foi invadida novamente. A dinastia de origem árabe Omíada comandou por muito tempo, sendo derrubada em 1031, o que em 1117 resultou na invasão dos Almohadas. Em

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seguida os Mouros foram sendo expulsos aos poucos para o Sul da Península, possibilitando a formação de Portugal (séc. VII), Aragão e Castela até 1492. Quando Castela derrotou o último estado árabe, se juntou com Aragão e formou a Espanha (FERNANDES, et all. , 2015, p. 7)

Mesmo datando de tempos remotos, verificamos que essa dinastia árabe foi muito influente no português, tanto que carregamos suas influências até hoje no nosso vocabulário. As palavras de origem árabe, no português, são marcadas pelo artigo invariável, quer inalterado ou reduzido a a, quando antes de x, z, c e d, como em arroz, açougue, azeite e aduana. Alguns exemplos de palavras que utilizamos e que vieram do árabe são: algodão, alfafa, açafrão, alaúde, alicate, algema, alfaiate, aldeia, álcool, xarope, quintal, arroba, dentre muitas outras. Foram criadas línguas peninsulares em um dos tantos processos de invasão que ocorreram a essa área da Península, entre elas o Galego-Português, que foi utilizado no território português desde o início do séc. XII, em sua consolidação, quando se isolou do reino de Leão e Galícia. Depois de consolidado, o reino português expandiu sua cultura e língua a vários outros reinos com as grandes navegações, que resultou (também) na colonização do Brasil, aonde instauraram sua língua, que desde então sofre influências e variações até chegarmos à língua que temos hoje, a variação brasileira do português. A história da língua espanhola possui muitos pontos comuns se compararmos com a história da língua portuguesa. A reconquista do território ocorreu depois da última invasão estrangeira, que foi a dos árabes, na península, em 711 d.C, ficando no topo do poder até 1492. La reconquisa empezó en el norte, en el território del dialecto romance castellano. En el proceso de retomar España, los catellanos diseminaron por casi toda España tanto su idioma castellano como su influencia militar, desplazando a otros dialectos romances como el asturiano e el mozarabe. (RESNICK, 1981, p. 6 apud FERNANDES, 2015, p.11)

Depois da restrição da presença árabe, da expulsão dos muçulmanos e da tomada do reino de Granada, em 1492, o reino, que já se via unificado e fortalecido, começou a desenvolver o comércio marítimo. Com a expansão marítima, os espanhóis conseguiram alcançar novos mercados lucrativos, que os tornaram ainda mais fortes. A partir disso, colonizaram vários países da América, que hoje são muito influentes na manutenção e divulgação da língua espanhola, cada um com as suas variações. Um fator de semelhança que podemos verificar no português e espanhol da América, é que ambos sofreram muitas influências de línguas indígenas. Nesse processo de línguas em contato (as indígenas e a do colonizador), muitas línguas indígenas, tanto na América

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espanhola, quanto na portuguesa, sofreram o processo de substrato. No entanto, influenciaram de forma significativa a língua dominadora, ou seja, o espanhol e o português.

INFLUÊNCIAS FRONTEIRIÇAS ENTRE O ESPANHOL E O PORTUGUÊS NA AMÉRICA As influências da língua espanhola na língua portuguesa estão nos adstratos, principalmente por questões de fronteira. O contato entre as duas línguas se dá por questões comerciais, políticas e histórias muito intensas, exatamente por estarem lado a lado na América do Sul. “A problemática do contato lingustico tem que ser sempre considerada no contexto amplo do contato cultural: as línguas, é sabido, fazem parte das culturas, e é impensável um contato só linguístico” como afirma Elizaincín (2008, p.181 apud LAFIN, 2011, p.11). Pela razão explicitada acima, quando se fala em língua em contato, é inevitável pensar logo em fronteira, já que nelas, as culturas estão sempre em confluência. É claro que nem todo contato entre línguas se dá em regiões de fronteira, mas é um fenômeno que inevitavelmente ocorre neste lugar. Os limites geográficos-políticos do Brasil de hoje é característica do século XIV, início da chamada Era dos Descobrimentos, quando as monarquias ibéricas mostravam-se pioneiras nas grandes navegações. Nossas fronteiras foram definidas com base nas características naturais da paisagem, como rios e lagos, ou em acidentes topográficos, como montanhas, serras e picos elevados. Nos lugares em que não havia possibilidade de se aplicar esse recurso demarcatório, foram utilizadas as linhas geodésicas, que correspondem às linhas traçadas no terreno tendo como referências as coordenadas geográficas: paralelos e meridianos, no entanto essas últimas foram pouco utilizadas no Brasil. Para entendermos melhor essas duas separações, podemos articular os conceitos de fronteira e de limite. Limite é uma noção artificial criada, sendo a delimitação entre territórios através de uma linha tracejada (mostrada em mapas), chamadas linhas geodésicas, citadas acima, que separa (ou pretende separar) povos, culturas e línguas. Por sua vez, fronteira é todo o espaço que envolve o limite, pode ser vista como “um portal que muda o status das pessoas e das coisas. Uma zona de transição. Com este poder quase mágico, uma fronteira pode libertar ou aprisionar. Pode antagonizar. Mas pode também integrar” (GARCIA, 2010 apud LAFIN, 2011, p.10).

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Por se tratar de nossa realidade, nos atentaremos às questões linguísticas nas fronteiras que o Brasil faz com os países hispano hablantes, já que o português brasileiro recebeu, e ainda recebe, muita influência da língua espanhola, por ser o único falante português em meio aos falantes de espanhol. A delimitação de uma variante específica, onde um determinado uso deixa de ser somente espanhol e começa a ser também português, nem sempre obedece a critérios objetivos, pois vem da percepção dos próprios falantes. Lafin nos faz questionamentos interessantes sobre alguns conceitos que permeiam as fronteiras “será que é possível falar de uma “variedade própria fronteiriça”? Em outras palavras, seria aceitável – ou reconhecida – uma variedade cuja área de uso fosse o espaço de contato entre os dois países?” (LAFIN, 2011, p.15). A autora discorre um pouco sobre o termo “Portunhol”, que para os brasileiros é uma mistura sem unidade e uniformidade das línguas espanhola e portuguesa, seria uma variedade sem prestígio algum, que está na boca do povo, mas que não é de utilização frequente dos habitantes de fronteira. Apesar de entenderem o conceito, o termo “Portunhol” é pouco utilizado, sobretudo pelos hispano hablantes. É preciso entender que o português e o espanhol, usados nas áreas de fronteiras, são também variações dos idiomas, e, tem em suas peculiaridades, diferentes significações para as palavras, expressões que são faladas apenas nesses lugares, como, por exemplo, “estraga- idioma/rompe-idioma”. Na região de fronteira entre o Uruguai e o Rio Grande de Sul, há a expressão estraga-idioma e/ou rompe-idioma, ela faz referência justamente à variedade utilizada nas fronteiras, com uma conotação negativa já expressa na própria denominação, reforçando a falta de prestígio nas variações linguísticas de fronteira. Vejamos um exemplo de uso dessa expressão: E: Como se chama a língua que fala? I1: Bueno, no sé se português o [incompr.] estraga-idioma [incompr.] I2: Para nosotros é português na fronteira I1: É (GbGII,apud LAFIN, 2011, p.22)

Outro exemplo de mudanças que as variações fronteiriças fazem em relação às línguas, é o uso variável dos verbos tener/ter e haber/haver no espanhol e português. Tanto em português, quanto em espanhol, o verbo que expressa impessoalidade é o haver/haber, por exemplo: “Há muitas pessoas aqui”/“Hay muchas personas aquí”. Porém, no português, há a opção de uso da terceira pessoa do singular do verbo ter para expressar impessoalidade. A

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distribuição entre os verbos a seguir, pode ser observada na variante fronteiriça entre o Rio Grande do Sul e o norte do Uruguai: Base portuguesa: Hoje não tem pão. Base espanhola: ¿Tiene pan? Sí, tiene. Percebemos então a transferência de características de uma língua à outra, estabelecidas pelo contato.

ADSTRATOS DO ESPANHOL NA LÍNGUA PORTUGUESA Primeiramente devemos nos ater às definições de adstrato, e também de bilinguismo, que são muito confundidas quando referidas às regiões de fronteira. É importante salientar que não há total consonância entre os autores sobre o que seriam os termos adstratos e bilinguismo, mesmo que muitos proponham conceitos aproximados. Sobre o adstrato, Silva (2010), por exemplo, defende a ideia de que ele desempenha a função facilitador de contato entre as línguas, sem que haja, porém, a sobreposição de uma sobre outra. Câmara Jr. (1974), por sua vez, destaca a importância da existência de uma região de fronteira para que ocorra a situação de adstrato, enfatizando que essa relação serve como fonte de empréstimos, ponto com o qual assente Basseto (2010) [...] Percebe-se também que Bagno (2007) desenvolve o conceito de adstrato a partir de uma relação pacífica entre duas línguas, o que não é mencionado pelos demais autores estudados. Já Garcia (2002) distancia-se dos demais teóricos alegando que o adstrato está relacionado a línguas que convivem em um estado de bilinguismo, tomando ambos os termos como sinônimos. Chagas (2003), no entanto, mantém sua linha conceitual de acordo com Basseto (2010), motivo pelo qual não se apresentam aqui outras delongas explicativas. (MENDES, et all.,s.d, p.5)

Já o bilinguismo não foi objeto de estudo de muitos desses autores, como Silva (2010), Bagno (2007), Garcia (2002) e Chagas (2003), mas Basseto (2010) discorre um pouco sobre o termo, ele compreende o bilinguismo como uma “fase em que dominados e dominadores fazem uso de sua língua própria por tempo indeterminado, dependendo da intenção do dominador impor sua língua ou não”. O que podemos afirmar, com certeza, é que esses conceitos, de bilinguismo e adstrato, para o filólogo, não são interpretados como sinônimos, mas sim como pré-estrato e estrato linguístico, respectivamente. Mendes, et all, (s.d) ainda ressalta que, mesmo com tantas definições para os fenômenos de bilinguismo e adstrato, se deve analisar sempre o contexto no qual serão empregados tais termos, para assim decidir a concepção que mais se encaixa.

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Os adstratos podem vir e ir de várias formas para outras línguas. Podem influenciar, por exemplo, na regência de verbos, como o uso variável dos verbos tener/ter e haber/haver no espanhol e português, vistos anteriormente. Por ser um ramo de estudos com maiores exemplos disponíveis, provavelmente por ter evidências mais claras e perceptíveis, nos atentaremos aos adstratos do espanhol no português ao nível léxico-semântico. Línguas que estão muito próximas e em constante contato, tornam difícil, muitas vezes, a identificação de a qual delas determinada palavra pertence, como é o caso do português e espanhol, que têm séculos de relação. “É o léxico o único domínio da língua que constitui um sistema aberto, diversamente dos demais, que constituem sistemas fechados”, e talvez, seja por isso que o “léxico é o nível linguístico que melhor expressa a mobilidade das estruturas sociais, a maneira como a sociedade vê e representa o mundo” (BIRDMAN, M. T., 1998, p.13 apud LAFIN, 2011, p.38)

O processo de empréstimo linguístico ocorre quando um elemento estrangeiro passa a ser utilizado em uma dada língua e a ser codificado por ela. Para entendermos isso, é necessário fazer a distinção entre estrangeirismo e empréstimo. Nomes próprios, patronímicos, termos que exprimem realidade sem correspondência na língua receptora, seriam estrangeirismos. Já os empréstimos, são os elementos já integrados pelo sistema linguístico da língua receptora. Alguns autores ainda dizem haver o “peregrinismo”, que é o período de tempo em que o elemento estrangeiro leva para ser adotado pelo idioma receptor, ou não. A adoção dos elementos estrangeiros deve obedecer a alguns critérios, sendo eles morfossintáticos, semânticos e fonológicos. Para obedecer ao critério morfossintático, o lexema estrangeiro constitui a base de uma derivação ou de uma composição de acordo com a morfossintaxe de uma língua, ele está se integrando ao léxico desse sistema. Assim, podemos afirmar que um termo emprestado faz parte de uma comunidade linguística desde que seja susceptível de derivação e de composição, tal como os elementos autóctones. (ALVES, 1984, p.121, apud FERNANDES, 2015, p.15).

O termo, para ser integrante do sistema linguístico da língua adotada deve, portanto, ser suscetível à derivação ou composição da língua, assim como seus elementos naturais. Para o critério Semântico, “a instalação do termo estrangeiro ocorre quando tal elemento introduzido na língua receptora com um único significado torna-se polissêmico.” (ALVES, 1984, p.123, apud FERNANDES, 2015, p.15). Portanto, o elemento estrangeiro obtém apenas um sentido quando é incorporado, e pode assumir outros com o passar do tempo.

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Para o critério fonológico, “um termo estrangeiro começa a fazer parte do léxico de uma língua à medida que se integra fonologicamente a ele. Na verdade, o elemento estrangeiro tende a adaptar-se ao sistema fonemático da língua receptora” (ALVES, 1984, p.124 apud FERNANDES, 2015, p.15). Então, a pronúncia do empréstimo será de acordo com o sistema fonológico do idioma adotante. Mesmo com todos os critérios, a inserção de uma palavra ao acervo lexical de uma dada língua, dependerá da aceitação que essa palavra terá pelos falantes, que pode ser identificada pelo seu uso. Além disso, os lexicógrafos ainda fazem estudos para decidirem se tal palavra pode ou não ser incorporada ao idioma, analisando exatamente a relação de aceitação e uso à palavra por parte dos falantes. Quando a palavra passa a constar no dicionário da língua adotante, há a consagração da inserção da palavra no idioma. Vejamos alguns exemplos de vocábulos e seus significados que, em algum momento, entenderam-se pertencentes também da língua portuguesa, e não somente do espanhol, nossos vizinhos, devido ao uso na sociedade brasileira.

Verbo Significado Abarrotar [esp. abarrotar.] V. t. d. Encher de barrotes. Encher em demasia. Apanhar [esp. apañar.] V. t. d. Colher, recolher; tomar; segurar. Roubar, furtar. Contrair doença. Levar pancada; perder em luta. Arranhar [esp. arañar.] V. t. d. Raspar de leve. Ferir de leve. Conhecer pouco uma língua. Tocar mal um instrumento. Ferir alguém com as unhas. Atochar [esp. atochar.] V. t. d. e int. Fazer entrar com força; encher com excesso; atulhar. Empurrar [esp. empujar.] V. t. d. impelir com violência; empuxar. ; impingir. Desarrolhar [esp. desarrollar.] V. t. d. Bras. RS. Espalhar o gado que se acha arrolhado. Machucar [esp. machucar.] V. t. d. Esmagar, triturar, esmigalhar. Amarrotar; Amarfanhar; Melindrar; Ofender; Ferir. Regozijar [esp. regocijar.] V. t. d. e int. Causar regozijo a; alegrar; alegrar-se; congratular-se. Resvalar [esp. resbalar.] V. t. d. e ind. Escorregar; fazer escorregar ou cair.

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Revisar [esp. revisar.] V. t. d. Visar novamente. Fazer inspeção ou revisão. Tip. Ler prova tipográfica. Fonte: FERNANDES, 2015: A influência de adstratos do espanhol no léxico da língua portuguesa

Usamos dez exemplos a fim de ilustrar que realmente o espanhol influencia o português, como mostramos no exemplo dos verbos tener/ter e haber/haver, que o inverso também acontece, e é claro que, como esses, são muitos os casos, inclusive com palavras que não são verbos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Depois de conhecermos melhor a história da língua portuguesa e da língua espanhola, podemos perceber que não é por acaso que os dois idiomas são tão próximos. Esta história data de tempos remotos, desde que a língua mãe, Latim, ainda circulava no Império Romano. Percebemos que as regiões de fronteira são propícias às influências linguísticas mútuas entre as línguas. Vimos que muitas dessas influências são acrescentadas à língua adotante, motivadas pelas necessidades dos falantes. Se eles precisam nomear novas realidades, situações ou objetos e não encontram acervo em sua língua materna, buscarão empréstimos de um termo em outras línguas que encaixe no contexto. Constatamos que para um termo estrangeiro entrar no léxico de outra língua, precisa satisfazer critérios morfossintáticos, semânticos e fonológicos e, mesmo depois desses critérios satisfeitos, a aceitação dos falantes é um ponto decisivo, que levará os lexicógrafos a decidirem se tal palavra pode ou não ser incorporada ao dicionário da língua. Depois de observarmos alguns exemplos, pudemos compreender o quão fundamental são os empréstimos linguísticos entre as línguas e o quão rico é o campo de estudo dos adstratos espanhóis na língua portuguesa.

REFERÊNCIAS FERNANDES, Patrícia, et al. A influência de adstratos do espanhol no léxico da língua portuguesa. In: Web Revista Sociodialeto. UEMS. Campo Grange. ISSN:2178-1486. v. 6, n. 16, julho, 2015. LAFIN, Gabrielle. O contato linguístico português-espanhol na fronteira entre Brasil e Uruguai: estado da pesquisa e perspectivas futuras. Trabalho de conclusão de curso. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2011. MENDES, Camilla, et al. Discutindo os conceitos de bilingüismo e adstrato a partir de pressupostos histórico-gramaticais. . Núcleo de Estudos Culturais, Estéticos e de Linguagens (NECEL) do Instituto Federal Fluminense, Brasil. S.d.

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RECEBIDO EM: 18/10/2017 | APROVADO EM: 22/11/2017

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A HOMÍLIA SOB A PERSPECTIVA DOS GÊNEROS DISCURSIVOS

Lindomar Castilho Teodoro Profª. Drª. Marilúcia dos Santos Domingos Striquer (orientadora) Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP

RESUMO: Todo gênero reflete a esfera social da qual participa, sendo formado por características sociais, funcionais e estruturais próprias. Nesse sentido, interessamo-nos em investigar como se configura o gênero discursivo homilia, a fim de compreender as características sócio-comunicativa, discursivas e linguísticas que formam esse gênero que participa de uma situação comunicativa muito específica. Para tanto, pautamo-nos nos preceitos de Bakhtin (1997) e de autores especialistas no referido gênero. Os resultados apontam que o gênero participa da esfera social religiosa, mais especificamente, da religião católica; é proferido apenas por padres; só acontece na missa; tem como conteúdo temático interpretar os textos sagrados, a fim de propor reflexões sobre as práticas na vida cotidiana atual das pessoas tomando como ponto de partida os referidos textos sagrados; é um texto oral, faz uso de uma linguagem mais formal; existe há muitos séculos. PALAVRAS-CHAVE: Gênero discursivo. Homilia. Esfera social religiosa.

Homilia in the discursive genre perspective

ABSTRACT: Every textual genre reflects the social sphere in which it participates, being formed by its own social, functional and structural characteristics. In this sense, we are interested in investigating how the discursive homily genre is configured in order to understand the socio-communicative, discursive and linguistic characteristics that form this genre that participates in a very specific communicative situation. For this, we are guided by the precepts of Bakhtin (1997) and by specialists in this genre. The results indicate that the gender participates in the religious social sphere, more specifically, the Catholic religion; is given only by parents; only happens at Mass; has the thematic content to interpret the sacred texts in order to propose reflections on the practices in the current daily life of the people taking as a starting point the said sacred texts; is an oral text, makes use of a more formal language; existed for many centuries KEYWORDS: Discursive genre. Homily. Religious social sphere.

INTRODUÇÃO Todo e qualquer gênero discursivo é fruto dos meios culturais, cognitivos e da situação social da qual participam os indivíduos. Para Marcuschi (2008), por assim se configurarem, os gêneros são eventos comunicativos que se concretizam em textos. Ou seja, os gêneros são textos materializados e produzidos em nosso cotidiano. De acordo com Bakhtin (1997) “falamos apenas através de determinados gêneros do discurso, isto é, todos os nossos enunciados

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possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo” (p. 282 - grifos do autor). Assim, os gêneros são, de acordo com Marcuschi (2008), formas construtivas de participação das pessoas nas infinitas situações comunicativas existentes na sociedade. Fazemos uso de inúmeros gêneros, os quais, por sua vez, possuem características sociais, funcionais e estruturais próprias, como aponta Bakhtin (1997). Nesse sentido, interessamo-nos em investigar como se configura o gênero discursivo homilia, a fim de compreender como esse gênero, que participa de uma situação comunicativa ou prática social muito específica, é formado por elementos socio-comunicativos, discursivos e linguísticos. Para tanto, tomamos o dispositivo didático elaborado por Barros (2012), com as devidas adaptações que se fizeram necessárias diante de nosso objetivo de pesquisa, e analisamos dois exemplares do gênero homilia publicados em páginas especializadas na divulgação de eventos católicos.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Para Bakthin (1997), a utilização da língua é algo indispensável para que a interação entre as pessoas aconteça, a qual se faz de forma diversificada. Segundo o autor, a língua acontece através de formas orais ou escritas e se alicerça em esferas comunicativas, uma vez que, Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua. A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana (BAKHTIN, 1997, p.279).

Portanto, os gêneros fazem parte do cotidiano das pessoas, seja em situações de mais informalidade até as que requerem mais formalidade, dependendo do objetivo da interação, do ambiente em que a interação acontece, e outros muitos fatores que cercam a interação humana. E ainda, de acordo com Bakhtin (1997), a utilização da língua acontece através de enunciados que se estruturam em construção composicional, estilo verbal e conteúdo temático. Dessa forma, a língua gera tipos relativamente estáveis de textos (BAKHTIN, 1997). Para o referido autor, O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua — recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais —, mas também, e sobretudo, por sua construção

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composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso (BAKHTIN, 1997, p.279).

O tema, então, é, inicialmente, o assunto tratado em um texto, mas não se limita a isso. Nas palavras de Saito e Nascimento (2010): Bakhtin (1992) representa como sendo a primeira característica o tema, que dá unidade de sentido ao texto, que por sua vez é individual, não é reiterável, porque expressa uma situação histórica concreta (a origem do texto), é determinado pelas formas linguísticas (palavras, formas morfossintáticas, sons, entonação) e pelos elementos não-verbais da situação e do contexto sócio histórico mais amplo que envolvem (p.37).

Para Bakthin (1997), o tema, ou conteúdo temático, é, portanto, o elemento mais importante na formação da unidade de um texto. Para que o leitor possa compreender o tema de um texto é necessário analisa as valorações que o gênero recebe de seu autor e do leitor; o momento histórico e o lugar em que o texto foi produzido; o objetivo da interação proposta. Sendo assim, Rojo e Barbosa (2015) afirmam: E o que vem a ser tema na abordagem de Bakthin? Para o Círculo de Bakthin, ele é mais que meramente o conteúdo, assunto ou tópico principal de um texto (ou conteúdo temático). O tema e o conteúdo inferido com base na apreciação de valor, na avaliação, no acento valorativo que o locutor (falante ou autor) lhe dá. E o elemento mais importante do texto ou do enunciado: um texto é todo construído (composto e estilizado) para fazer ecoar um tema (p.87).

Bakthin (1997) apresenta dois sentidos em se tratando de conteúdo temático: o tema do signo e o tema do enunciado/enunciação. O primeiro está ligado ao sentido que damos aos enunciados, ou seja, ao ler um texto vamos atribuindo significados às palavras, em outras palavras, o valor ideológico do enunciado pode se alterar, transformar. O segundo não está atrelado somente às estruturas das palavras, mas também aos elementos não verbais na comunicação. De acordo com Bakthin (1997), O tema da enunciação é determinado não só pelas formas linguísticas que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entonações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação. Se perdermos de vista os elementos da situação, estaremos tão pouco aptos a compreender a enunciação como se perdêssemos suas palavras mais importantes. O tema da enunciação é concreto, tão concreto como o instante histórico ao qual pertence. Somente a enunciação tomada em toda a sua amplitude concreta, como fenômeno histórico, possui tema (p.133).

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Sobre a estrutura composicional, esta refere-se à maneira de organização do texto, suas partes, ou propriamente dizendo, sua estrutura formal. Conforme apontam Saito e Nascimento (2010, p. 37), “a construção composicional – é a estrutura e organização do texto de um determinado gênero, que é resultante de vários fatores: as necessidades da situação de interação e da tradição, pois os gêneros nos são dados pelas gerações anteriores que dele se utilizaram”. A forma de composição, portanto, trata da organização e do acabamento do enunciado, como afirmam Rojo e Barbosa (2015), E a organização e o acabamento do todo do enunciado, do texto como um todo está relacionada ao que a teoria textual chama de “(macro/super) estrutura” do texto, a progressão temática, a coerência e coesão do texto. [...] O acabamento e dado pelos pronomes interrogativos, pela entonação ascendente, na modalidade oral e, na escrita, pelo ponto de interrogação. Em gêneros mais complexos e padronizados, como as fábulas e os contos da tradição oral posteriormente transcritos, o acabamento pode ser dado por fórmulas (“E foram felizes para sempre”) ou pela moral (p.94).

Por fim, o estilo verbal que é formado por recursos linguísticos, entre eles os lexicais, os fraseológicos e os gramaticais que unidos aos demais elementos tornam o enunciado real. Para Saito e Nascimento (2010, p. 37), “é a escolha do agente produtor por formas da língua – as seleções lexicais, as formas gramaticais, a organização dos enunciados – que darão o acabamento ao enunciado/gênero”. No mesmo sentido, Rojo e Barbosa (2015) defendem que o estilo são “escolhas linguísticas que fazemos para dizer o que queremos dizer (vontade enunciativa), para gerar o sentido desejado” (p.96). Desta forma, pode-se compreender que para Bakthin (1997) o gênero trata-se de um fenômeno organizado e estruturado textualmente. Por assim ser, o gênero acaba por se constituir de características comuns. Assim, para conhecer de forma mais específica um gênero, os estudiosos do Interacionismo Sociodiscursivo elaboraram um procedimento de análise de textos, o qual foi didatizado por Barros (2012), em um quadro de preguntas-chave, denominado de Dispositivo didático, o qual é a ferramenta norteadora de nossas análises. A seguir reproduzimos o dispositivo com as adaptações que se fizeram necessárias de acordo com nosso objetivo de pesquisa: Quadro 1: Dispositivo didático elaborado por Barros (2012) •A qual prática social o gênero está vinculado? •É um gênero oral ou escrito? •A qual esfera de comunicação pertence (jornalística, religiosa, publicitária, etc.)? •Quem produz esse gênero (emissor)? •Para quem se dirige (destinatário)? •Qual o papel discursivo do emissor?

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•Qual o papel discursivo do destinatário? •Sobre o que (tema) os textos desse gênero tratam? •Qual o meio de circulação (onde o gênero circula)? •Qual o tipo de discurso? Do expor? Do narrar? •É um expor interativo (escrito em primeira pessoa, se reporta explicitamente ao interlocutor, tenta manter um diálogo mais próximo com o interlocutor, explica o tempo/espaço da produção)? •Como é a estrutura geral do texto? Qual a sua cara? Como ele se configura? É dividido em partes? Tem título/subtítulo? É assinado? Qual a sua extensão aproximada? Acompanha fotos/figuras? Quais as características gerais? •Qual o tipo de sequência predominante? Sequência narrativa? Descritiva? Explicativa? Argumentativa? Dialogal? Injuntiva? •Qual a variedade linguística privilegiada? Mais formal? Mais informal? Coloquial? Estereotipada? Respeita a norma culta da língua? Usa gírias? Como se verifica isso no texto? Pelo vocabulário empregado? Pela sintaxe? •Qual o tom do texto? Mais descontraído? Humorístico? Objetivo? Poético? Coloquial? Sisudo? Familiar? Moralista? De poder? •Que vozes são frequentes no texto? Do autor? Sociais? De personagens? •De que instâncias advêm essas vozes? Do poder público? Do senso comum? Fonte: adaptado de Barros (2012).

A HOMILIA Os dois exemplares do gênero homilia reunidos como corpus foram retirados da internet, um deles é uma homilia realizada pelo padre Reginaldo Manzotti, no dia 03/05/2017, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dH_ZBfH8K9s e o segundo é de um padre (nome não identificado no vídeo), no dia 20/03/2016, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Rx5TYQecgVw&t=136s. Iniciamos nossas análises realizando uma abordagem aos fatores históricos que constituíram o gênero. A palavra “homilia” provém do grego “homilein” e significa “conversa” (MOURÃO, 2010, p.78). De acordo com Gonçalves (2012), a homilia surgiu na Mesopotâmia há três mil anos, sendo utilizada pelos sacerdotes com o objetivo de convencer seus discípulos da existência e manifestação dos deuses naquele momento cultuados. Além disso, servia para “auxiliar a necessidade que os sacerdotes tinham de prestar contas das receitas e gastos das corporações a que pertenciam e faziam suas prédicas em defesa da existência miraculosa dos deuses do paganismo” (GONÇALVES, 2012, p. 33). Contudo, de acordo com os estudos de Costa e Pinto (2014), o primeiro registro documental a respeito da homilia afirma que o gênero em questão tem a seguinte origem: [...] dentro dos domínios da sinagoga de Nazaré, e tem como pregador e protagonista a personagem histórica fundadora da prática religiosa sob análise, o próprio Jesus (LUCAS 4, 16-30). O discurso sobre o pão da vida relatado em João 6- 59 também se deu em uma sinagoga e se constituiria como homilia, pois nele há um longo comentário de diversos textos do Antigo

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Testamento que foi aplicado ao momento presente dos ouvintes que ali se encontravam (COSTA E PINTO, 2014, p. 2).

Assim, os estudos de Costa e Pinto (2014) demonstram que com o passar do tempo, com o estabelecimento do cristianismo, a homilia passou a ser considerada uma espécie de conversa realizada pelos pastores com os fiéis, dentro das sinagogas, após o término da leitura do texto bíblico. No século III d.C., conforme Gonçalves (2012), foram realizadas homilias eloquentes que versavam sobre capítulos bíblicos ou esclarecimentos pastorais que estimulavam a perseverança diante das ameaças e perseguições aos cristãos do primeiro século. E, por volta dos séculos IV, V e VI, os textos receberam o caráter de doutrinação e a oratória passou a ser valorizada devido a estética proposta à pregação. Surgiram no referido período, célebres pregadores, tais como: Pedro de Alexandria, Hilário de Poitiers, Atanásio de Alexandria, Pseudo-Atanásio, Efrém, Basílio de Cesaréia, Cirilo de Jerusalém, Ambrósio de Milão e João Crisóstomo. Na Idade Média, os homiliastas, pessoas encarregadas de pregar a homilia, tinham como objetivo a racionalização da fé. Naquele momento, a igreja estava voltada mais à arte sacra e aos ritualismos litúrgicos do que à própria pregação bíblica. Assim, de acordo com Gonçalves (2012), a homilia ganhou notoriedade por estar atrelada à filosofia de Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino, Boaventura, Alberto Magno, dentre outros, deixando assim de ser um discurso simples, se voltando mais para um discurso filosófico-teológico. Floresceu também a utilização de histórias, lendas e fábulas como formas de conduzir a moralidade dos fiéis. Ainda na Idade Média, os fiéis leigos eram proibidos de executarem as pregações sem aval do bispo. Caso houvessem leigos que pregassem, deveriam seguir rígidas normas para que se evitassem abusos em suas oratórias. Nesse interim, a leitura da Bíblia Sagrada por parte da população católica também era vedada. Sendo assim, a pregação homilética foi perdendo a sua força e poucos eram os pregadores nas igrejas que a realizavam. Entretanto, o discurso católico manteve-se graças a figura de Francisco de Assis, fundador da Ordem Franciscana e que realizava suas pregações nas praças públicas (GONÇALVES, 2012). Logo, a partir do modelo de vida franciscana, surgiram pregadores místicos que em suas homilias buscavam inspiração na natureza, davam ênfase à humildade e à pobreza evangélica vividas por Jesus Cristo, e buscavam orientar moralmente as condutas de seus ouvintes (GONÇALVES, 2012, p.39).

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No período da Idade Moderna, a pregação homilética católica pouco diferenciou-se do período anterior, entretanto, com florescimento da Revolução Protestante, passou por importantes transformações. Para Martinho Lutero, o meio mais eficaz para se chegar a Deus era o conhecimento das palavras que constituem as pregações. Clareza, organização, boa memória, bom timbre de voz e conhecimentos sólidos eram características de um bom homiliasta daquele período. Conforme Gonçalves (2012): Os protestantes deram enorme importância à pregação e ao ensino das escrituras a partir do púlpito. A pregação é “o mais excelente meio pelo qual a graça de Deus é conferida aos homens”. Os sermões de Lutero e Calvino eram caracterizados por uma doutrina evangélica e uma metodologia de exposição bíblica. Segundo Lutero um bom pregador deveria seguir o roteiro: clareza na exposição; ordem dos argumentos; exercitar a memória; possuir voz bem dotada; aptidão para o estudo – para saber o que diz. Lutero afirma ainda que o pregador deveria ter disposição para morrer pela mensagem pregada, abrir mão dos seus bens e adotar uma vida simples. Tornou a Bíblia Sagrada o centro da pregação (p. 40-41).

Assim, a igreja protestante valorizava cada vez mais a leitura e estudo da palavra de Deus e a pregação dos sacramentos conferindo a qualquer fiel protestante autoridade para ser um ministro da palavra (GONÇALVES, 2012, p.41). Na década da 1960, de acordo com Souza (2014), o mundo conheceu um dos maiores eventos da cristandade: o Concílio Ecumênico Vaticano II, o qual teve por objetivo a evangelização do mundo atual. O papa João XXIII deu abertura ao Concílio, mas faleceu nas primeiras sessões, restando ao papa Paulo VI a condução do evento religioso. Estabeleceu-se naquele momento, no Sacrosanctum Concilium, documento elaborado no concílio, entre muitos outros pontos, uma regulamentação para a homilia. O Sacrosanctum Concilium (2007) (SC), conforme Gonçalves (2012) é um documento formado por dois capítulos e tem como objetivo reforçar a ideia de que a Liturgia tem sua expressão máxima nas Sagradas Escrituras, as quais devem ser esclarecidas através da pregação, ou seja, no momento de realização da homilia. Orienta-se que nos livros e folhetos litúrgicos indique-se o momento adequado para se proferir a homilia, evitando proferi-la nas celebrações, nos ritos de matrimônio, deixando-a exclusiva à celebração da missa. Diante desses aspectos, compreendemos que alguns dos elementos que formam a construção composicional (BAKHTIN, 1997; SAITO, NASCIMENTO, 2010) do gênero é, segundo os preceitos de Costa e Pinto (2014), ser inerentemente intertextual, uma vez que, Antes de qualquer coisa, é construída sobre as bases firmes da Primeira Leitura, da Segunda Leitura e do Evangelho. A partir do Concílio Ecumênico Vaticano II, sobretudo com as determinações da Constituição Sacrosanctum ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, v. 13, ago-dez. 2017

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Concilium, a homilia passa, obrigatoriamente, a ter de se referir às leituras bíblicas propostas pela liturgia porque está a serviço “do texto sagrado” (SC, 2007, n. 52) e a partir dele são apresentados aos fiéis os mistérios da fé e as normas da vida cristã (SC, 2007).

Assim, a homilia é até hoje realizada durante a missa, onde é vista como pregação, ou seja, uma prática oratória. Portanto, respondendo à pergunta estabelecida no dispositivo didático de Barros (2012) sobre a qual esfera a homilia pertence, esse gênero pertence e reflete a esfera religiosa, de forma mais específica, a esfera religiosa da igreja católica. Assim, seguindo as questões do dispositivo, a homilía é um gênero oral, tendo a missa como meio de circulação; e prática social refletida pelo gênero é, conforme estudos de Gonçalves (2012), o de pregar e explicar as Sagradas Escrituras, propondo reflexões sobre os acontecimentos da vida cotidiana das pessoas, ou melhor, dos fiéis católicos. Segundo Costa e Pinto (2014): A homilia, atualmente, é compreendida como uma pregação cristã que ocorre no âmbito de uma celebração litúrgica, e, como tal, abarca duas características: a de ser pregação e a de ser pregação litúrgica. Como pregação, deve corresponder às características fundamentais da tarefa pastoral da Igreja, posto que “a fé [...] vem da pregação, e a pregação é feita por mandato de Cristo”, de modo que a sua “proclamação verbal permanece sempre como algo indispensável” (EN, 2006, n. 42). Como pregação litúrgica, deve reunir e refletir os traços e os elementos essenciais de toda a liturgia. O termo pregação encerra em si três outras características que lhe conferem significado mais amplo: apregoar ou proclamar, anunciar e ensinar (p.3).

Tem-se nas referidas palavras a configuração do conteúdo temático tratado no gênero (BAKHTIN, 1997; ROJO, BARBOSA, 2012). Na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis, publicada em 2007, pelo Papa Bento XVI, afirma-se: os ministros ordenados devem «preparar cuidadosamente a homilia, baseando-se num adequado conhecimento da Sagrada Escritura». Evitem-se homilias genéricas ou abstratas; de modo particular, peço aos ministros para fazerem com que a homilia coloque a palavra de Deus proclamada em estreita relação com a celebração sacramental e com a vida da comunidade, de tal modo que a palavra de Deus seja realmente apoio e vida da Igreja. Tenha-se presente, a finalidade catequética e exortativa da homilia (SACRAMENTUM CARITATIS, 2007, n. 46).

Os ministros ordenados que se refere à citação, são os padres, os únicos produtores legitimados como autores do gênero, ou seja, apenas os padres têm autoridade (como papel discursivo) para proclamar a homilia. Nos exemplares analisados, uma das homilias é proclamada pelo padre Reginaldo Manzotti, durante uma missa do dia 03/05/2017, e a outra é

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por um outro padre que não tem o nome anunciado no vídeo, acontece em uma missa do dia 20/03/2016. No dia 24 de novembro de 2013, o Papa Francisco publicou a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. Nessa exortação, o papa discorre acerca da preparação e dos recursos pedagógicos utilizados para a exposição, e a maneira de como deve ser exposta pelos padres aos fiéis. Afirma o Papa Francisco: A homilia é o ponto de comparação para avaliar a proximidade e a capacidade de encontro de um pastor com o seu povo. De fato, sabemos que os fiéis lhe dão muita importância [...] A homilia pode ser, realmente, uma experiência intensa e feliz do Espírito, um encontro consolador com a Palavra, uma fonte constante de renovação e crescimento (EVANGELII GAUDIUM, 2013, p.82, n.135).

O pregador torna-se canal entre Deus e o povo, o qual é formado, então, pelos fiéis católicos, sendo estes os destinatários do gênero, respondendo nesse sentido mais uma das questões do dispositivo de Barros (2012). O líder católico ainda reforça que a homilia deve ser levada a sério, e deve ser preparada com carinho pelo homiliasta, não se tornando numa palestra, onde fala-se delongamente e nada é transmitido. Pelo contrário, a estrutura geral da homilia (BARROS, 2012) deve ser breve, harmônica. A homilia do padre Reginaldo Manzotti tem duração de 18 minutos e a do segundo padre, 14 minutos. Não há um tempo determinado e restrito para proferir a homilia, mas compreendemos que o tempo de duração deve ser coerente com o tempo de celebração de uma missa que aproximadamente é de 60 a 75 minutos. Logo a homilia pode ser realizada dentro de uns 15 a 20 minutos. Conforme a questão do dispositivo didático: qual o tipo de discurso que configura o gênero? O discurso é organizado na homilia por um expor interativo, o padre se apresenta como o representante da igreja e a autoridade em apresentar e explicar as palavras sagradas e envolve os fiéis presentes na missa, buscando assim a construção de um diálogo mais próximo entre os interlocutores, para que o objetivo de interpretar a palavra de Deus e aproximá-la da realidade das pessoas aconteça. Exemplos: na homilia do Padre Manzotti, por exemplo, o discurso interativo é construído pelo uso de recursos linguísticos como a primeira pessoa do discurso, no singular e no plural. Exemplos: “... nós estamos tomando posse daquilo que Deus nos deu...”; “...isso nós sabemos pela vida, esse mês de maio é o mês de Maria...”; “... nós podemos sentir acolhidos por nossa senhora...”. E na homilia do segundo padre os exemplos do emprego da primeira pessoa do discurso marcando a interação pode ser visto em: “...eu gostaria de ressaltar

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aqui dois pontos principais, Lucas é o único evangelista que...”; “...assim como nós que ao celebrarmos...”. Sobre o tipo de sequência predominante do gênero, considerando a caracterização dada por Maldonado (2002), supracitado, da homilia ser uma pregação que deve proclamar, anunciar e ensinar o que dizem as liturgias, as sequências explicativas e argumentativas se entrelaçam. Ao padre cabe durante sua fala explicar o evangelho do dia e argumentar sobre a importância das reflexões que podem ser feitas sobre as palavras sagradas e o que vivem hoje os fiéis católicos. Por exemplo: A narrativa da paixão de Lucas tem vários pontos interessantes e típicos do próprio Lucas, mas eu gostaria de ressaltar aqui somente dois pontos principais. Em primeiro lugar, Lucas é o único evangelista que relata que Jesus ao ser crucificado, enquanto ele estava sendo pregado na Cruz, ele ia dizendo: “Pai, perdoa, eles não sabem o que fazem”. Vejam essa prece de Jesus, essa manifestação de Jesus. É como Jesus estivesse ali celebrando a santa missa, e toda missa começa com um pedido de perdão. [...] Nós podemos aqui colher o fruto dessa realidade quando em nossas orações vamos sabendo que Ele vai pedindo perdão por nós... (segundo padre/sem identificação de nome).

Logo, a homilia é a experiência humana de aproximar-se e conversar com Deus à luz de sua Palavra; sua função não está apenas em fazer um relato das passagens bíblicas, mas, principalmente, refletir sobre os textos sagrados a fim de torná-los mais claros àqueles que constituem o público alvo, isto é, os fiéis. Sobre a variedade linguística empregada, considerando a fala do papa Francisco, “a homilia não pode ser um espetáculo de divertimento, não corresponde à lógica dos recursos midiáticos, mas deve dar fervor e significado à celebração” (EVANGELII GAUDIUM , 2013, p.84, n.138), portanto, o tom deve ser mais formal, mais moralista, e a linguagem a ser utilizada deve ser conciliada ao público da missa, levando-se em consideração a região, a cultura do local, a idade dos fiéis, já que é um hábito as missas serem direcionadas conforme o horário em que elas acontecem, por exemplo: a missa realizada aos domingos, no período da manhã, é geralmente elaborada para as crianças. Como um exemplo de que a variante empregada pelo padre busca adequar-se ao público participante da missa é o que ocorre na missa do padre Reginaldo Manzotti. Pela reprodução da imagem do vídeo, figura 1, é visível que o público é formado por pessoas adultas, assim, ao perceber que empregou uma palavra de forma inadequada à gramatica normativa, o padre faz a correção: “Esses dias nós falávamos sobre as mulheres nas sagradas escrituras e um personagem.... uma personagem muitas vezes é.....” (padre Reginaldo Manzotti).

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Figura 1:

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=dH_ZBfH8K9s

Uma outra característica da linguagem a ser destacada é o fato de que os exemplares que formam nosso corpus são homilias realizadas em missas transmitidas por emissoras de televisão, por esse motivo, considera-se também os telespectadores, e no caso do Reginaldo Manzotti, a missa é toda reproduzida na língua de sinais. Como pode ser comprovado pela reprodução da imagem: Figura 2:

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=dH_ZBfH8K9s

Sobre as vozes frequentes no gênero, nos dois exemplares, a homilia é formada pela voz do padre que a proclama; também pela voz dos evangelizadores, como no caso de São Lucas, na homilia do segundo padre, como já mencionado; e pela a voz de Jesus, de Maria presente em muitas citações diretas realizadas pelos padres, e ainda outras vozes que se julgue necessário

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para que a explicação e a argumentação se estabelece na organização do conteúdo temático, como é o caso do padre Reginaldo Manzotti que diz: ...quem assistiu o filme “300”, fala Rodrigo Santoro, inclusive brasileira que faz o papel de Gerdis que é o rei da Pérsia, o grande imperador da Pérsia, nesse contexto Ester vai pedir: “olhe para o meu povo” e é impressionante como em um primeiro momento o rei diz: “quem é capaz de colocar a tua vida em jogo...” (sic.) (padre Reginaldo Manzotti).

No exemplo é possível verificar as vozes de personagens bíbliocos, como Gerdis, Ester. Tais vozes conferem autoridade ao discurso do padre, pois são pessoas/personagens que têm autoridade religiosa para legitimar o tema tratado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o objetivo de investigar como se configura o gênero discursivo homilia, a fim de compreender os elementos que o caracterizam, após nossas análises, a constatação é a de que esse gênero participa da esfera social religiosa, mais especificamente, da religião católica; é proferido apenas por padres, os quais são os únicos que têm, dentro dos preceitos católicos, autorização da igreja para realizar a homilia; só acontece na missa, em outras celebrações esse gênero não é produzido; tem como conteúdo temático interpretar os textos sagrados, a fim de propor reflexões sobre as práticas na vida cotidiana atual das pessoas tomando como ponto de partida os referidos textos sagrados; é um texto oral; faz uso de uma linguagem mais formal, o que pode variar diante dos interlocutores diretos; existe há muitos séculos.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Gêneros do Discurso. In: ______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BARROS, Eliana Merlin Deganutti. Transposição didática externa: a modelização do gênero na pesquisa colaborativa. Raído, v. 6, n. 11, p 11-35, 2012. COSTA, Alexandre Ferreira; PINTO, Juliana de Sousa. A prática discursiva homilética: dialogia, gênero e intertextualidade. Revista Colineares: UERN, Janeiro/junho,2014. Evangelii Gaudium: a alegria do Evangelho; sobre o anuncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus; Loyola, 2013. GONÇALVES, Duarte Manuel Caldas. Homilia e Ministério da Palavra. 2012. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Faculdade de Teologia, Universidade Católica Portuguesa, Braga, 2012. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade.Org: DIONISIO, A.P.; MACHADO, A.R.; BEZERRA, M.A. Gêneros textuais ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2008. MOURÃO, Jose Augusto. A homilia como gênero literário: Mestre Eckhart e a palavra nova. Didaskalia: Universidade Nova de Lisboa, 2010.

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ROJO, Roxane; BARBOSA, Jaqueline P. Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros discursivos. São Paulo: Parábola, 2015. Sacramentum Caritatis: sobre a Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2007. SAITO; NASCIMENTO, E. L. Os gêneros como instrumentos para o ensino e aprendizagem da leitura e da escrita. In: Renilson José Menegassi; Annie Rose dos Santos; Lilian Cristina Buzato Ritter. (Org.). Escrita e ensino. 2. ed. Maringá: Editora da Universidade estadual de Maringá, 2010, p. 25-59. SOUZA, Jose Peixoto Coelho de. A canção na ótica dos gêneros discursivos: Uma constelação de gêneros. Cadernos do IL: Porto Alegre, junho de 2010. YOUTUBE. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dH_ZBfH8K9s. Acesso em: 29/12/2017. ______. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dH_ZBfH8K9s. Acesso em: 29/12/2017.

RECEBIDO EM: 26/08/2017 | APROVADO EM: 04/11/2017

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VAZIO

Thais B Ribeiro Universidade Federal de Uberlândia - UFU

de noite ele vem imenso, amargo como é que cabe calado nessa parte de mim que desconheço? como é que consegue o silêncio por tanto tempo? como é que, de súbito, sai do silêncio e escancara a boca e aos gritos quase me sufoca? como é que os dentes dessa imensa boca me mastigam por dentro em silêncio, quase indecentes? como é que se opera o ofício desse monstro que me devora as vísceras? que coragem é essa de escolher me consumir pelo avesso, pelo imaterial? quando poderia estar a fazer perecer a carne fresca que me forma? que monstro é esse?

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RECEBIDO EM: 26/10/2017 | APROVADO EM: 28/12/2017

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MEIA SAUDADE

Larissa Ferreira da Silva Universidade Federal de Uberlândia - UFU

Ser saudosista é para poucos. Pensando bem, uma pessoa pode ganhar essa característica por passar muito tempo sozinha... ou não! Mas a intensidade, uma característica emocional como essa, realmente é para poucos. Catarina é uma mulher séria, da casca dura, que foi mudando seu jeito com o tempo. Está mais forte, resistente e anestesiada pelas tristezas dolorosas da vida. Acostumou-se com a tristeza até se tornar seca. Hoje, mora sozinha na capital de São Paulo. Família, amigos, parentes, amores que vieram e foram estão bem longe. De ano em ano, como de costume e por motivo peculiar, faz faxina em seu armário de roupas. Atrás dos vinte cabides, encontra uma caixa verde. Não é uma simples caixa verde. É aquela caixa verde. Aquela em que ela organizou, em ordem cronológica, seu passado. – Esta caixa... – ela sussurra. A escolha da cor foi simples. Verde é a sua cor predileta e sempre pareceu uma cor muito forte. Mas por que não escolhera uma preta? Talvez lembrasse o luto, ao contrário do verde, a cor da esperança, uma cor viva. Joga todos os vinte cabides com suas camisas em cima da cama. Puxa a caixa para perto. – Nossa, até parece mais pesada! – pensa alto. Leva para a cama. Busca na cozinha o cappuccino que esqueceu em cima da americana. Parecia morno, quase a ponto de esfriar. Volta para o quarto. Abre a caixa. Encontra cartas feitas à mão, envelopes, cartões, fitas. Bilhetes, post-its... Tem coisas de pessoas queridas, coisas feitas por ela, que fizeram para ela e sobre ela. Lê a primeira carta à sua frente. É de um antigo amor, que foi embora para outro país e nunca mais voltou. Catarina aperta a garganta. – Tem muita coisa ainda! Olha!? – exclama e indaga consigo mesma. Encontra o bilhete do amigo que partiu repentinamente por conta de um acidente de carro em Curitiba, há quatro anos. Ele dizia: “Querida amiga, receba estes chocolates como mimos por ser tão especial. Por ser

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236 uma pessoa inesquecível e admirável. Abraços de seu amigo Hugo!” Aperta a garganta. Um cartão de natal do ano de 2002, que a família lhe enviou, está no meio de vários outros cartões, meio amarelado, e, com o tempo, a tinta da caneta fica cada vez mais escura. Tem a letra da mãe, do pai e dos irmãos. Ela sente tanta saudade que os olhos brilham com a lágrima prestes a vazar. Segura o choro e aperta a garganta. Vê a ponta de uma fotografia por baixo de um envelope azul. Puxa curiosa como se fosse a primeira vez que estava tendo acesso à caixa. Na foto, tem uma galera da faculdade de psicologia reunida em um rancho. Ao seu lado, apoiada em seu ombro, está Rita, a parceira inseparável da época de faculdade, que não vê há tempos. Aperta a garganta. A caixa está quase vazia. No fundo, bem no fundinho, está aquele envelope. O envelope que tem a carta do seu primeiro amor. Mesmo não se lembrando mais com tanta frequência como antigamente, nesse momento sente saudade. Saudade de ficar colada no telefone dando boas risadas, dos suspiros de adolescente apaixonada, dos ciúmes bobos, do perfume único, do cabelo escuro, quase preto jabuticaba, dos olhos amendoados e das mãos com os dedos grossos. Segura o choro e aperta a garganta. Por fim, a caixa está praticamente vazia e com uma meia branca sem par. De quem seria essa meia? Agora Catarina chora. Chora tudo o que não chorou. Chora tudo o que segurou. Chora pelo antigo amor que foi embora e nunca mais voltou. Chora pelo amigo que partiu sem se despedir. Chora de saudade da família que precisa visitar. Chora de saudade da parceira inseparável da faculdade. Chora pelo fim do primeiro amor. E chora ao encontrar aquela meia branca sem par. Passa minutos em silêncio, guarda tudo de volta na caixa em ordem, como estava, e fecha. Coloca no mesmo canto. Termina de organizar o armário e pendura seus vinte cabides. As lágrimas ainda escorrem. O peito e a garganta ainda apertam. Apenas uma coisa a consola. Saber que está viva. Por mais que a saudade doa, ela é a certeza de que Catarina não está vazia. E o cappuccino esfriou!

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RECEBIDO EM: 03/10/2017 | APROVADO EM: 05/12/2017

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RETRATO DE FAMÍLIA

Helvécio Ferreira Furtado Junior Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

- Todo homem da sua idade, mesmo que seja “de ferro” como dizem que tu é, já sofreu uma... Chanfrada. Eu vou achar a sua, e pode ter certeza que vai ser nela que eu vou sentar meu machado - o policial ameaçava enquanto conduzia a viatura. Seu companheiro não falava, mas olhava para trás de tempos em tempos, certificando-se que Neander continuava quieto. O bandido era uma cobra, diziam seus opositores. Um instante de descuido e ele poderia causar um pandemônio. Felizmente chegaram à delegacia sem incidentes. Mesmo assim, nem Pacheco nem Bonfim ousaram desgrudar os olhos dele enquanto escoltavam-no para dentro do edifício. Outros vinte homens da lei faziam o mesmo, bem como um exército de jornalistas armados até os dentes. Tudo estava de acordo com os planos. A sala de interrogatório era vazia como esperado. Os homens que escoltaram-no encontravam-se debruçados de frente para ele, com as mangas arregaçadas e os olhos cansados. Neander não se abriria daquela maneira; era inteligente demais para se impressionar com aquele teatro hollywoodiano. Contava com a estupidez dos policiais para manter as engrenagens rodando por tanto tempo quanto fosse necessário. Enquanto eles tentavam tirar dele qualquer coisa que fosse, o castelo de cartas de alguém estava ruindo em seu nome. Toda retórica e tautologia que os porcos empregavam não conseguiam dele mais que becos sem saída. - Dá vontade de enfiar uma tomada no cú desse viado e ligar no duzentos e vinte - Pacheco rosnou. - Calma, ele não é idiota. Vai acabar entendendo a posição em que está. Aí ele coopera. Escuta, Neander... Policial bom e policial mau, pensou o homem. Sorriu, e isso enfureceu mais ainda aquele que fazia papel de mau. Pacheco aproximou seu rosto do dele e levantou o punho, sendo impedido de atacar por Bonfim. Os lábios de Neander se esticaram ainda mais. - Se cês me machucarem, muita gente vai ficar chateada. Lembrem-se que, mesmo que eu “supostamente” seja o chefe do narcotráfico brasileiro, também já fui senador dessa bosta. E esse joguete de vocês tá realmente me fazendo questionar se é saudável o

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239 emprego de clichês no cinema popular. Eu não vou falar, porque eu sou o mais esperto da sala. Não tem como cês entrarem na minha cabeça com essa porcaria ensaiada. A polícia diz ter capturado um cidadão que foi de presidente de partido a comandante de milícia, e tudo o que podem fazer quando finalmente estão amparados pela lei para lidar com ele como criminoso, e não como político, é jogar Máquina Mortífera? Pacheco e Bonfim foram surpreendidos pela fala dele. Trocaram olhares cheios de perguntas. Neander deixou que pensassem; tempo era o que ele queria. Em breve os heróis ficariam de mãos abanando, e ele estaria livre e com seu império duplicado. Nada podia dar errado; o destino estava tão ao seu favor que enviara aqueles dois mocorongos para conduzirem o caso. O traficante só precisava enrolar. - Escuta, Neander. Escuta a minha proposta, cara. Pra quê irritar o Pacheco desse jeito? A gente vai te oferecer um bom acordo. Temos informações que você pode querer - Bonfim aproximou-se, contornando a mesa. - Ah, vá a puta que pariu. Não falo mais nada. Vai buscar alguém com mais leitura, vai. Aquilo pareceu ter atingido profundamente o policial. Ele coçou o bigode e encarou Neander. Tirou um smartphone do bolso, abriu o álbum de fotos e jogou-o por cima da mesa. Com um muxoxo de desdém, Neander pegou o celular e examinou seu conteúdo. - Eu não ia te contar isso, mas você é um filha da puta desalmado, então eu quero ver você chorar - disse Bonfim - Os investigadores me mandaram essas fotos. Vão pro acervo da internet. Neander observou algumas das imagens, impassivo. Sorriu com o canto da boca numa ou outra. Pacheco posicionou-se atrás dele, selecionando uma com o dedo. - Nessa aqui, pela cara dela... Tenho certeza que era anal - gargalhou. - Quem diria, hein, Neander? E com o Celso, seu braço direito... Quem tá cuidando da sua casa enquanto a gente conversa? - completou Bonfim. - Nossa - desdenhou Neander - Isso é a informação que cês trouxeram? Como é que isso me atinge? Eles olharam um para o outro, intrigados. - Teu braço direito tá comendo a tua esposa e você pergunta como isso te atinge? - É. Isso me atinge como? Quero dizer, eles estão transando, mas e daí? Isso não significa que abandonaram meu lado.

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- Como assim, não significa? - Somos liberais. - Mas você era de um partido de direita! - Surpresa. Eles estavam começando a duvidar da própria estratégia. Os agentes podiam até ter outras cartas na manga, mas aquilo havia desarmado-os de tal forma que tudo o que falaram dali em diante era pura baboseira, e mal entrava nos ouvidos de Neander. Sua mente acelerava em outra direção. Aqueles filhos da puta realmente estavam trepando pelas costas dele. Havia desconfiado. Descobrir naquela situação... Fora um cálice amargo de engolir na frente daqueles idiotas, mas ele conseguira. As fotos mudavam a perspectiva de tudo, é claro. A vagabunda... E ele ainda havia posto bens em seu nome. E Celso, desgraçado. Será que ele havia sido completamente traído ou aquilo fora somente uma foda? De qualquer forma eles pagariam por terem desperdiçado a confiança de Neander. O homem não abandonara a vida política em detrimento da criminal porquê gostava de conversar. Entretanto, apesar de saber que era grande demais para cair, ele também entendia que era sustentado por pilares, sendo Celso um deles. Não deveria martelar forte demais a menos que estivesse disposto a trocá-lo, caso contrário um efeito dominó poderia fazer tudo ruir. Precisava descobrir qual era a situação: se a traição fosse recorrente e passional, teria de eliminar os dois. Se fosse só sexo, enviaria Celso para o Nordeste e traria de lá o Maracanã. Com Lígia, seria outra história. Neander sentia vontade de furar os próprios olhos quando as imagens da mulher com outro homem voltavam-lhe à mente, fustigando-o de dentro para fora; mas mantinha o rosto completamente neutro, e até sorria de leve enquanto os agentes continuavam sua peça. Desejava ardentemente matar a esposa e o capanga, mas sabia que não podia. Celso era importante, estava difícil arrumar outro com as mesmas capacidades. Também, aquela vez no colégio, o filho da puta havia comido sua namorada, é verdade, mas foi quem sumiu com o corpo da puta, no mesmo dia. Ou seja, talvez pra ele fosse só isso. Apesar da fúria assassina que revolvia em Neander, sua mente lembrava-o que o companheiro era um libertino confesso e que desde o início ele sabia que o desgraçado não podia ver um buraco. Celso era um risco calculado, sempre fora. Neander talvez pudesse tolerar essa ofensa se eles mantivessem distância um do outro dali pra frente. Claro, se Lígia e o correligionário estivessem de caso fixo, então era de se assumir que talvez planejassem

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241 traí-lo num outro nível. Se fosse esse o caso, a opção de abrir o bico deveria ser considerada. Também tinha de pensar na esposa. Não poderia destituí-la de sua dignidade como exigia o brio sem perder o respeito de muita gente, mas ela sofreria, com certeza. Fossem quais fossem as circunstâncias, ele iria espancá-la para que ela aprendesse as consequências do adultério. Se tivesse dado por ser puta, ele a castigaria com o cinto. Se fosse por amor, iria esterilizá-la e então divorciar-se. A mulher detinha, legalmente, boa parte da riqueza de Neander; eventualmente seus próprios tenentes iriam chegar à conclusão de que Lígia deveria morrer, mas não como punição por adultério. Já eram tempos modernos, pegava mal. A crueldade que aquelas fotos permitiam a Neander entretia-no. Quando saísse dali... Mas naquele momento ele deveria pensar. Como descobrir se era amor ou sexo? E isso realmente importava? Será que Celso, que sempre havia visto mais a xota que o cérebro que a utilizava, havia caído num ardil de Lígia? Ou será que os dois estavam apenas se divertindo? - ... E além dos vinte anos por tráfico, você pode pegar mais oito pela ordem de assassinato do Coronel Augusto dos Anjos - falava Bonfim. - Mas se você cooperar com a gente, contar o que nós queremos saber... - Foda-se essa merda, cara. Cês são tão ruins que estão há horas tentando me convencer a falar e nem me disseram o que querem saber - Neander havia tido uma ideia - e eu não vou te ensinar a fazer seu serviço outra vez - concluiu em tom de rancor, apontando para o policial. Pacheco, que estava escorado no canto escuro da sala, veio para a luz com o rosto em processo de avermelhamento. - Tô te falando, Bonfim, esse cara nem ouviu o que a gente tava dizendo. Se brincar, nem olhou todas as fotos. - Não mesmo. Não tenho obrigação de ficar encarando isso - Neander baixou o semblante. Os policiais se entreolharam brevemente. - Deve doer, imagino - disse Bonfim, sarcasticamente compreensivo. - Parece que tá caindo na real, né? O melhor amigo e a esposa... O quê você falou mais cedo sobre clichés? - riu Pacheco. - Olha as fotos, Neander. Vê aí a tua esposa sendo enrabada por um alemão.

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O aparelho foi novamente entregue a Neander. Passar por aquilo outra vez não só refrescaria a recordação da obscenidade como adicionaria novos detalhes que sua memória excepcional não deixaria de vomitar. Tenso, passou os dedos pelas fotos, tentando evitar o casal, olhando para as bordas e para os detalhes. Haviam sido tiradas de um ângulo superior, através da sacada aberta. Os amantes estavam no seu quarto, nas paredes que ele erguera do pó. Eram dois limitados, não compreendiam a extensão das ações de Neander, o alcance de sua mão. Podia destruí-los por sua leviandade. Celso e Lígia não sabiam o quanto ele era mau; estavam perto demais para ver. Observava os dois, posição à posição, hora dentro do quarto, hora na própria sacada. Neander viu a cama no fundo da imagem: o lençol rosa, presente de casamento de sua mãe, ia se tornando cada vez mais bagunçado a cada fotografia. A esposa usava o mesmo adorno em todas as fotos; uma gargantilha preta, que também servia de coleira quando Lígia e Neander trepavam. Na última foto, Celso segurava uma corrente que desenrolava-se da mão para o pescoço da mulher, conduzindo-a, ajoelhada, pela coleira, em direção a si. O lençol espalhava-se quase completamente pelo chão. Neander havia descoberto o que precisava; sabia o que fazer quando saísse dali. - Já faz doze horas que estou aqui. Eu vou ligar para o meu advogado e sair pela porta da frente porque cês não têm capacidade de tirar nada de mim, nem tem provas. Aqueles que talvez pudessem me atingir estão no meu bolso e acima de vocês, então não farão isso. Amanhã cês vão descobrir que foram meus seguranças particulares por um tempo. Não se preocupem, eu vou mandar um cheque com o valor das diárias. Neander empurrou o celular de volta para o lado dos policiais. - Pode ficar com as fotos. Só espera minha saída pra começar a punhetagem.

RECEBIDO EM: 12/10/2017 | APROVADO EM: 15/12/2017

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O CANTO DA SEREIA

Kathleen Loureiro Universidade Federal de Uberlândia - UFU

Fui bem-aventurado em desvendar teus mares, Submerso pelo teu gosto molhado. Entre tuas ilhas flutuantes, Escuto as, os, us... Vem baixinho, S U B I N D O aos poucos.

Se não me cuido, Essas ondas subidas

A F U N D A M

F N M f U M M

F U U A M U N A M

F N A M A N U A F M o meu pequeno barco.

Se não me cuido, Esses pequenos gemidos Me encantam, Me afogam, Me afogam em ti.

Mas diferente do mar, Morena, Tu tens cabelos Onde eu posso agarrar, Livrando meu pobre coração p u l s a n t e

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Do fim certo, que é tua r e s s a c a.

RECEBIDO EM: 10/09/2017 | APROVADO EM: 17/12/2017

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DUAS MATÉRIAS

Leidijane Rolim da Silva Universidade Federal de Rondônia – UNIR

Meus trabalhos até então eram pinturas, sempre remetendo nelas um aspecto aquático e de autorretratação, transformando um instante em pintura. E nestas a tentativa de trazer tanto em quantidade espessa, quanto em movimentos das pinceladas foram critérios para sugerir emersão. Em dado momento, a pintura tem necessidade de se projetar para além da tela, o que se revela na elaboração destas peças. O núcleo, então, é produto da fusão desses sentimentos e pensamentos recorrentes na vida. Uma maneira de expulsar o peso do ser. Sendo uma metaforização da vida em arte. Seu material resinado provém da intenção de trazer o brilho e plasticidade da pintura a óleo, não apenas despertar o olho, mas também o sensorial de quem entra em contato. Os fios trazem fluidez, um desenho livre no espaço disposto de acordo com a casualidade das mãos que passarem ali, podendo os gestos serem suaves ou truculentos, são fios contaminadores do ser que extrapola o limite do corpo. Um corpo que vai de encontro a algo ou alguém, e dos encontros, impactos.

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Contraste de materiais, o embate, os fios delicados fixos numa superfície grotesca, robusta e, “sem equilíbrio”, uma esfera de superfície irregular e movimentação instável. O Nódulo surge da impressão que se tem em sentir “nós” no peito em situações por si pesadas, situações que despertam tal sensação. O material traz questões vitais sobre o enfrentamento no cotidiano.

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Transpele. A caixa insinua um corpo, aparentemente delicado e de aparência suave. As linhas que avançam dela despertam a curiosidade convidando o toque a levantar a aba de abertura do corpo. Um convite de entrada no interior da mesma e a revirar as pedras (nódulos) em resina que estão presas nos laços, e a saída destas requer certo esforço já que estão todas amarradas, destas pedras emanam as linhas, extensões do conteúdo interior que avançam os poros da superfície da caixa.

RECEBIDO EM: 13/10/2017 | APROVADO EM: 04/12/2017

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