VI SEMINÁRIO DO PROGRAMA DA PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA (PPGCS/UFRB)

GT 01 - CULTURA POPULAR, FESTEJOS E RITUAIS

PERCURSOS DO FORRÓ PÉ DE SERRA: TRÂNSITOS CULTURAIS DE PROCESSOS MIGRATÓRIOS

CIRANILIA CARDOSO DA SILVA

UFRB 2016

1

PERCURSOS DO FORRÓ PÉ DE SERRA: TRÂNSITOS CULTURAIS DE PROCESSOS MIGRATÓRIOS*

Ciranilia Cardoso da Silva (UFRB)

RESUMO

O forró, ao longo de sua história, enquanto gênero musical e dança, sofreu uma série de variações e recriações de estilos estéticos. Entre as categorias mais representativas, destaca-se o forró pé de serra, o forró universitário e o forró eletrônico. Entendemos o forró pé de serra tradicional enquanto sonoridade baseada em instrumentos como sanfona, triângulo e zabumba, podendo incluir cavaquinho, pandeiro, rabeca e violão de sete cordas, sendo comum em suas temáticas o universo rural do sertão nordestino como faziam artistas como Luiz Gonzaga, Marinês, Jackson do Pandeiro, Gordurinha, Sivuca, e muitos outros. Este trabalho propõe uma abordagem sobre o forró pé de serra, apresentando-o como um fenômeno cultural, originário da região Nordeste e historicamente vinculado aos processos migratórios dos nordestinos para o Sudeste e outras regiões do Brasil, levando consigo memórias, costumes, modos de vida e saudades presentes nos forrós cantados pioneiramente por seu ícone Luiz Gonzaga, cujas obras tornaram-se sucesso no país, fazendo desse gênero musical um dos símbolos mais expressivos associados a sua cultura, sobrevivendo à contemporaneidade.

Palavras-chave: Forró pé de serra; migrações; cultura; contemporaneidade.

Histórico

O forró é uma das manifestações que integram a riqueza de costumes e tradições do Brasil sendo, amplamente difundido em todo pais, representativo ícone vinculado a cultura nordestina, se trata de gênero musical e dança provenientes de processos históricos de migrações dos povos nordestinos, para quem esses deslocamentos representavam fuga da exploração econômica e limitações referentes a falta de oportunidade em seus contextos locais e simultaneamente lhes acresciam expectativas e possibilidades de novos horizontes, ascensão econômica e melhores condições de vida, e assim esses nordestinos cheios de esperança ofertaram sua força de trabalho e disseminaram suas culturas em diferentes localidades.

2

Em 1930 o Brasil ainda se apropriava de referencias musicais estrangeiras, a partir desse período, iniciou-se uma busca de um som nacional que apresentasse aspectos de brasilidade. Neste período a rádio era o mais importante meio de comunicação, pois quase todos tinham acesso. Na década seguinte em 1940, Luiz Gonzaga ganha destaque com suas “músicas nordestinas” e torna-se conhecido ao obter nota máxima na Radio Nacional do programa de calouros de , alvo de grande audiência e notoriedade. Cuja biografia resume panoramicamente o autor:

“É na década de quarenta que surge Luiz Gonzaga como criador da “música nordestina”, notadamente do baião. Ele, depois de passar por São Paulo, onde compra uma sanfona que desejava havia muito tempo, chega ao em 1939, após dar baixa do exército, onde tinha sido corneteiro entre 1930 a 1938. Nascido na fazenda Caiçara, município de Exu, , em 1912, Gonzaga era filho de camponeses pobres; Januário, seu pai, era sanfoneiro, artesão que consertava sanfona e que animava bailes rurais nos fins de semana. Por isso para sobreviver no rio de janeiro, ele toca em cabarés, dancings e gafieiras do Mangue, zona de meretrício, onde executa tangos, valsas, boleros, polcas, mazurcas, toda uma série de sons dançantes de origem estrangeira. Gonzaga participa ainda como músico dos programas de calouros de Ary Barroso, o que lhe rende no máximo cinco tostões. É neste programa, na Rádio Nacional, que em 1940, após executar o forró Vira e Mexe , conquista a nota máxima e é contratado pela rádio, a mais importante do país e que congregava artistas de todos os lugares. (ALBUQUERQUE, 2011 p. 174)

Como podemos observar o próprio Luiz Gonzaga já estava inserido nesse processo migratório, tornando-se um representante musical e cultural do Nordeste, o artista criou uma indumentária típica que reunia a roupa do vaqueiro nordestino com o chapéu que costumavam usar os cangaceiros, representações que se aliavam ao seu sotaque e temáticas regionais para referenciar nuclearidades culturais do sertão nordestino, seu exemplo foi seguido pela maioria de seus contemporâneos e sucessores artistas que cantavam e tocavam forró, sendo o uso de indumentárias com essas características, um destaque, não apenas nos shows e apresentações, mas também nas capas dos discos de forró nessa época.

3

Figura. 1- Luiz Gonzaga

Figura. 2- Marinês

4

Figura. 3- Dominguinhos

Deste modo sua música passou a ser associada a uma identidade regional que era uma tônica desejada desde 1930. Assim, conforme Albuquerque (2011), a partir de uma elaboração oriunda de uma série de sons, ritmos e temas nordestinos, surge o baião influenciado pelo samba carioca e outros ritmos que Luiz Gonzaga tocava anteriormente, tornando se representativo enquanto “música do Nordeste”, por ter suas temáticas inspiradas no sertão dessa região. Elemento de composição do baião narrado na música “Braia Dengosa” de Zé Dantas e Luiz Gonzaga:

O maracatu dança negra E o fado tão português No Brasil se juntaram Não sei que ano ou mês Só sei que foi Pernambuco Quem fez essa braia dengosa Quem nos deu o baião Que é dança faceira e gostosa

Português cum fado e guitarra Cantava o amor E o negro ao som do batuque Chorava de dor Com mele, com gonguê Com zabumba, e cantando nagô Ôi, foi a melodia do branco E o batucado em zulú Tem no teu baião Que nasceu do fado e do maracatu (Braia dengosa: Compositor Zé Dantas e Luiz Gonzaga)

Tratando-se dessas especificidades arquetípicas regionais, o Nordeste é uma das principais referências quando se trata de uma região que possui atribuições de alegorias culturais associadas aos seus costumes, afinal o povo nordestino migrou para diversas regiões, sobretudo para os pólos de industrialização e desenvolvimento econômico, o Sudeste e o Centro Oeste, compartilhando sua força de trabalho enquanto espraiava sua cultura país adentro, motivando assim uma dinâmica de fortalecimento e resistência de algumas práticas, adaptação e ressignificação de outras (ABREU, 2007), mas, antes de tudo, a criação de um imaginário coletivo estereotipado em torno do Nordeste que o petrificou no tempo do mesmo

5 modo que o tornou fonte poética de toda produção referente a este lócus (ALBUQUERQUE, 2011).

Na composição deste Nordeste idealizado, variados costumes foram apropriados como referência da cultura local. A este exemplo, a culinária, a linguagem e o sotaque, as paisagens, as questões sociais, a poesia de cordel, as festividades e, obviamente, a música e a dança (ALBUQUERQUE, 2011). Quanto a estes últimos aspectos não é novidade que, quando se trata de música do Nordeste, um dos principais ícones das suas expressividades culturais é o forró. A construção de estereótipos é um conceito abordado por Lippmann (2008) como produto de intercâmbios que definem os indivíduos dentro de categorias sociais.

“a identidade e a diferença são estreitamente dependentes da representação. É por meio da representação, assim compreendida, que a identidade e a diferença adquirem sentido (...) e passam a existir. Representar significa, neste caso, dizer (...) ‘essa é a identidade’, identidade é isso”. (SILVA, 2000, p. 91).

No contexto da presente discussão, Jodelet (2001, p.22) assinala que as representações possuem uma relação com variados processos individuais e coletivos nas expressões dos grupos e em suas dinâmicas identitárias, afirmando que esta “contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”.

Não apenas a sonoridade dos ritmos do forró vai estabelecer uma representatividade discursiva de “nordestinidade” entre Luis Gonzaga e seus contemporâneos serão um conjunto de elementos visuais, lingüísticos e sonoros que contribuirão para fortalecer esses arquétipos que Albuquerque considera estereotipo generalizantes e preconceituosos

“Sua forma de cantar, as expressões locais que utiliza, os elementos culturais populares e, principalmente, rurais que agencia, a forma de vestir, de dar entrevistas, o sotaque, tudo vai “significar” o Nordeste. O sotaque a escuta da voz pode ser um som familiar que aproxima as pessoas ou provoca estranhamento , separação. Ele funciona como um dos primeiros índices de identificaçãoe também de estereotipia. (ALBUQUERQUE, 2011 p. 176)

O forró é uma sonoridade genuinamente brasileira que passou por transformações ao longo de sua trajetória, desmembrando-se em diferentes estilos, entre os principais estão o forró pé de 6 serra ou tradicional e o forró eletrônico ou estilizado, o qual, nesta abordagem, não será o foco da nossa discussão. O forro pé de serra, tratado como um dos expoentes dessa cultura nordestina é um gênero musical composto por ritmos como baião, xaxado, forró, arrasta pé, xote chorado, xote matuto e sonoridades genuinamente brasileiras de origem nordestina.

Lopes (2007), em sua abordagem sobre o forró pé de serra conceitua o forró enquanto gênero musical e dança, apresentando-o como um fenômeno cultural, originário da região Nordeste e historicamente vinculado aos processos migratórios dos nordestinos para as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, ao longo do processo de desenvolvimento industrial do Brasil. Os processos migratórios no Brasil representaram muito mais que deslocamentos populacionais de mãos de obra de pessoas que buscavam melhores oportunidades de trabalho, conforme Vainer (2000) e Pena (1998), estes tiveram enquanto sua principal Tônica uma dimensão cultural. De acordo com Silva (2003, p.76) “para compreender o forró é necessário compreender o imigrante e seu imaginário, sua relação com a cidade grande e as pessoas que moram nela, sua busca de identidade”, visando a necessidade de pensar o Nordeste e suas questões nos cabe ressaltar que ao migrar para essas regiões, este povo levou consigo suas memórias, costumes, modos de vida e saudades de sua terra. Conjunto de elementos que culminaram num contexto favorável e receptivo a sonoridades e temáticas que narravam suas nuclearidades culturais.

Luis Gonzaga e tornou aquele artista capaz de atender a necessidade do migrante de escutar coisas familiares, sons que lembravam sua terra, sua infância, sons que o levavam até eeste spaço da saudade em meio toda polifonia do meio urbano. Mas atribuição desta identidade regional a sua música foi possível por uma produção discussiva que a tomou como objeto. (ALBUQUERQUE, 2011 p. 177)

Dentro de uma perspectiva crítica acerca dessas “nodertinidades Albuquerque (2011) trata essa associação como conseqüência de uma construção generalizante e estereotipada de um “retrato” geográfico e temporal do sertão nordestino. Segundo o autor, esse contexto influenciou não só a obra de Gonzaga, mas de seus contemporâneos, pois se tornara uma fonte de imaginários para criações referentes a diferentes linguagens artísticas, gerando identificação do público, principalmente dos nordestinos e seus descendentes. Conforme Marcelo e Rodrigues (2012), ao longo de sua história na musicalidade brasileira, o forró passou por sucessões de declínios e apogeus. Inicialmente despontaram como pioneiros e referencias principais do forró, alem de Luiz Gonzaga, artistas como Marinês, Jackson do

7

Pandeiro, Gordurinha, Sivuca, Dominguinhos, Trio Nordestino, Anastácia, , Antonio Barros, Trio Mossoró, Messias Holanda e muitos outros que produziam um forró cuja sonoridade se baseava em instrumentos como sanfona, triângulo e zabumba, podendo incluir cavaquinho, pandeiro, rabeca e violão de sete cordas, apresentando em suas temáticas o universo rural do sertão nordestino e menções autobiográficas do próprio forró.

“Processo iniciado na segunda metade da década de 1970, quando o mercado fonográfico foi tomado por uma onda que reconfigurou o que o resto do país entendia como música do Nordeste. Esta passava a ser associada a nome como os de Elba, Fagner, Zé Ramalho, Amelinha e Alceu Valença. Em julho de 1978, o fenômeno tinha sido identificado e classificado pela Folha de S. Paulo como “a família transnordestina” (MARCELO E RODRIGUES, 2012. P. 308)

Apesar da formação universitária e presença marcante em festivais os artistas passaram a compor o cenário da MPB e a nomenclatura forró universitário, só se estabeleceu em sua segunda fase, a partir da década de 90. Este forró é uma fusão do forró pé de serra com a linguagem da música urbana, ou seja, utilizava como referência o forró pé de serra, porém inserindo temáticas urbanizadas somadas às sonoridades de instrumentos elétricos de cordas e baterias. Este som, de acordo com Silva (2003), foi protagonizado por bandas como Falamansa, Rastapé, Forroçacana entre outras, as quais conquistaram o público jovem e se tornou sucesso no país. Sonoridade modernizada, letras que retratam cenários cotidianos, urbanos e românticos, sua visualidade mais se aproximam dos temas litorâneos.

Figura 4 – Banda Falamansa

8

A dança nesse período também se modificou, ganhou influencia de outras modalidades da dança de salão, agregando passos com giros e coreografias modernas, o forró universitário se constituiu não apenas como sonoridade do forro , mas também como estilo de dança que se distanciou do passos básicos do forró tradicional passando a ter passos elaborados, sendo esta transformação resultante desse contexto migratório do forró pé de serra do nordeste para o Sudeste.

Figuras 5, 6 e 7- danças com giros no forró universitário e pé de serra.

Conforme Marcelo e Rodrigues (2012), até o aparecimento de suas diferentes modalidades, a nomenclatura forró era suficiente para identificar o gênero, sendo essa realidade transformada a partir da década de 1990, pois nesse período surgiram dois estilos contemporâneos denominados forró eletrônico e forró universitário, gerando assim a necessidade de agregar um elemento diferenciador, e o que antes se chamava apenas forró, passou a ser denominado pé de serra. Santos (2012) em sua abordagem contribui para nossa compreensão acerca desse contexto, através de seus estudos em torno das polarizações entre o forró pé de serra versus forró eletrônico e universitário, no que se refere às suas características, de acordo com o autor, as bipolarizações limitam as perspectivas, acerca da diversidade de vertentes e variações que podem ser consideradas desmembramentos do forró.

9

Retomada do forró pé de serra e o movimento Roots

Se, em sua origem, o Nordeste era o lócus do forró, com o deslocamento do circuito do forró pé de serra para o Sudeste, a região passa a exportar não apenas poéticas inspiradoras, mas também artistas e músicos forrozeiros em busca de público para o seu trabalho, como foi o caso dos famosos Trio Nordestino, Trio Virgulino, Trio Juriti e muitos outros, uma vez que na região nordestina o forró pé de serra é mais solicitado em períodos juninos, devido à perda de espaço para o forró eletrônico e outros gêneros. Contexto diferente do Sudeste, onde se tem uma programação de forró pé de serra indiscutivelmente mais intensa.

Como já fora dito, o forró é um gênero ícone de referência do povo nordestino brasileiro, no entanto esse forró pé de serra considerado por muitos como o autêntico em estilo e procedência se faz mais presente e dinâmico na região Sudeste e Centro-oeste, de modo que no próprio Nordeste não há mais tanta força, tendo em vista que lá o forró se transformou, produzindo sucesso com outros estilos como forró estilizado ou eletrônico. Neste sentido, percebemos uma prática paradoxal, a saber, um deslocamento cultural aliado a uma retomada da tradição.

Esse processo de retomada do forró pé de serra se iniciou com o nomeado universitário, conforme nos referimos anteriormente, se trata de um estilo mais modernizado agregador de novos instrumentos, além da sanfona, zabumba e triângulo e integraram letras com poéticas mais urbanas e mais desvinculadas das poéticas nordestinas. E esse movimento que conquistou um público jovem despertou neles o interesse em conhecer as raízes que inspiraram o forró universitário. Assim, os trios voltaram a ser valorizados, os jovens retomaram os precursores do forró pé de serra buscando reconhecer as suas obras e essa dinâmica passa a ter a nomenclatura de estilo roots, o qual se trata de uma produção do pé de serra contemporâneo baseada nos clássicos, não só produzindo novidades também fazendo uso da discotecagem com o resgate dos vinis mais antigos.

De acordo com Passmozer e Angeli (2012), o Roots é uma categoria proveniente da dissidência com o forró universitário, de modo que parte do público do universitário, ao conhecer suas influências referenciais tradicionais entrou em desacordo com seu estilo, devido aos seus traços de modernidade e influências do pop e rock e sonoridades com instrumentos elétricos e bateria, e assim foi se organizando para retomar a valorização dos

10 trios que se fortaleceram, iniciando então um movimento voltado para o resgate e a valorização das “raízes” do forró. Os autores afirmam ainda que

Foi nesse momento que surgiu a palavra “roots”, cuja tradução do inglês significa “raiz”. Para um grupo de forrozeiros que começou a curtir os trios de forró em um evento denominado , “Rootstock”, que teve a primeira edição em 2000, os trios de forró eram a representação fiel do forró tradicional de Luiz Gonzaga , já que faziam shows apenas ao som do trio de instrumentos: triângulo, Zabumba e sanfona. A partir desse encontro a idéia foi se concretizando entre o movimento de forró pé de serra no Brasil, de modo que aqueles que se identificavam mais com os trios passaram a se autodenominar roots”, criando portanto um novo movimento de forró. (PASSMOZER; ANGELI, 2012, p.55)

Portanto, é do público de forró universitário que emergem inúmeros forrozeiros interessados em conhecer as fontes de referências desta vertente, os quais passam a valorizar, a partir de então o formato de forró pé de serra tradicional, retomando a formação de trios e elaborando composições que buscam se assemelhar às referências primeiras do forró pé de serra, adotando como exemplo a obra de Luiz Gonzaga e seus contemporâneos (Passmozer; Angeli, 2012), com o propósito de resgatar a memória de um passado para compor suas experiências no presente, compondo revitalizando o cenário de forró pé de serra na contemporaneidade. Além dos referidos trios, ressaltamos a importância dos DJ’s do forró Roots que, ao pesquisar os vinis mais antigos através de suas discotecagens, têm oportunizado ao público partícipe especialmente de shows, eventos e particulinos, o contato com as mais raras e antigas obras que datam décadas passadas do forró-pé de serra.

11

Figura 8 – DJ de Forró

A virada do século XXI pode ser considerada um marco no início da história do Roots no forró pé de serra contemporâneo, pois, desde o ano 2000, passaram a se mobilizar e organizar eventos com edições anuais em diferentes localidades do circuito, cujo eixo inclui predominantemente o Sul, Sudeste e Centro-Oeste em formato de festivais (Rotstoock-SP, Fenfit-ES, Minas Roots-MG, Nata Forrozeira-SP, MaxucaRoots-SC, Forró dos Sonhos-SP, Forró na Ilha Bela-SP, Aldeia Roots-RJ, Forró de Gente Fina-ES, Brasil Roots-ES, etc.) e particulinos, sendo este último, geralmente, festas com um público pequeno e sem fins lucrativos, organizadas pelos forrozeiros em espaços particulares com o objetivo de reunir o grupo para ouvir e dançar forró. Malluci (1999) denomina como “rede” esses grupos que partilham coletivamente identidades referentes a uma cultura, e a ideia de circuitos culturais discutido por Herschmamnn (2001) como lócus de atuações e práticas culturais. Ainda sob este prima, esses eventos corroboram com a formação do que Haesbaert (2004, p.35) chama de território simbólico que são os “espaços de referência para construção de identidades”.

12

Tendo em vista esse contexto de reproduções e repetições de práticas culturais é que se construiu a imagem do que seria o grupo de caracteres que permeiam a tradição nordestina e o forró como expressão significante de sua cultura, interessa-nos discutir o conceito de tradição que é tratado por Thompson ( 2008, p.164) como “um conjunto de pressuposições, crenças e padrões de comportamentos trazidos do passado e que podem servir como princípio orientador para as ações e as crenças do presente”, pois será justamente a raiz desse forró denominado pé de serra em sua sonoridade mais tradicional que o movimento Roots vai reivindicar, vivenciando através do resgate das referências primeiras do forró o que Tompson (2008) apresenta como “a nova ancoragem da tradição”, no sentido do uso de elementos mediadores para ter acesso a um passado não vivido, se apropriando dessas referências para agregá-las às experiências do presente. como explica Thompson ao inferir que:

“a tradição se libertou das limitações da interação face a face (...) para que se expandissem, se renovassem, se enxertassem em novos contextos e se ancorassem em unidades espaciais muito além dos limites das interações face a face”. (THOMPSON , 2008, p.160)

É o discurso de relação com a tradição que irá fundamentar a composição da identidade dos forrozeiros, sendo a compreensão dessa relação fundamental para entendermos seus modos de representação. Tomamos como parâmetro teórico para pensar o conceito de identidade, o posicionamento de Hall (2005) ao afirmar que as identidades são projetadas a partir de identificações que são “móveis”, se fazem representar e se afirmam, sobretudo diante de sistemas culturais específicos nos quais se agregam sentidos. Relacionamos o movimento de forró Roots com a conceituação explorada por Tourane (2003), a qual define os movimentos culturais como grupos cujas intenções e atuações se preocupam com afirmação de pertencimento a um dado sistema cultural. A reflexão acerca do conceito de tradição torna-se fundamental para a compreensão do movimento Roots, na medida em que este, no seu discurso evidencia a importância da valorização da tradição, a qual segundo o mesmo autor “pode em certas circunstâncias, servir como fonte de apoio para o exercício do poder e da autoridade”. (THOMPSON, 2008). Nesta perspectiva, averiguamos que o referido conceito contribui para a legitimação do grupo e a fundamentação dos seus sentidos de pertença relacionados à memória, uma vez que a valorização da tradição está intimamente vinculada a retomadas e criações de práticas que se tornam constitutivas das representações de memória do grupo. Acerca dessa questão, Le Goff afirma que

13

“A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças as quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas ou que ele representa como passadas”. (LE GOFF , 2003, p. 419)

Considerações Finais

O resultado destas misturas provocadas pelo deslocamento cultural permitiu ao forró além de sua dimensão, vinculada a cultura nordestina, representar a musicalidade do povo brasileiro, não sendo apenas entendido como uma música ou dança, mas passa a ser a identidade das pessoas que o aderem, pois ele representa um estilo de vida, é uma experiência da cultura brasileira, inclusive para quem não é nordestino. As linguagens dos retirantes nordestinos que construíram Brasília, São Paulo e demais espaços do Sudeste e até mesmo Sul, se estabeleceram no imaginário coletivo, fazendo-se presente inclusive na cultura daqueles que não são seus descendentes.

O movimento do forró Roots trata-se de uma reinvenção do forró pé de serra tradicional nordestino através de recriações e representações de seus diversos aspectos culturais. O forró pé de serra que, durante muitas décadas, era considerado uma experiência regional associada aos nordestinos e seus descendentes ao se reterritorializar estendeu-se à dimensão de uma experiência da cultura brasileira na contemporaneidade. Portanto, esse movimento resulta dos processos migratórios dos nordestinos para as regiões Sudeste, Sul e Centro Oeste do Brasil, contexto este cujas implicações abrangem aspectos como deslocamentos geográficos, conflitos de pertencimento, representações, expressões de identidades e invenções de tradições. Devemos lembrar que o referido movimento, embora carregue uma importância histórica para a cultura e musicalidade brasileira e agregue um público numericamente expressivo, se fazendo presente e lotando os espaços onde os eventos são promovidos, é considerado alternativo ao circuito comercial da grande mídia sendo, portanto, pouco conhecido por pessoas que não têm um contato com este gênero.

Referências

14

ALBUQUERQUE Jr., D. M. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. São Paulo: Cortez, 2011. ABREU, Cristina. Como surgiu a Rádio Atual e o CTN- Centro de Tradições Nordestinas. In: CTN – Centro de Tradições Nordestinas, Um pedaço do Nordeste em São Paulo. São Paulo: MZN Comunicações, 2007. Cap.1, p.36. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa, Edições 70, 1977. BARTH, Frederick. Grupos étnicos e suas fronteiras. In Poutignat, Philippe, Streiff-Fenart, Joceline. Teorias da etnicidade, seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Frederick Barth. Tradução de Écio Fernandes: SP. UNES. 1998. CERTEAU, M. A Escrita da História. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. CHARTIER, Roger. A história cultural:entre práticas e representações. Lisboa. Rio de Janeiro.DIFEL/Bertrand Brasil,1990. CHAUVEAU, Agnès; TÉTART, Philippe (Org.). Questões para a história do presente. São Paulo: EDUSC, 1999. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10 Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. HERSCHMANN, Micael. “Cenas, circuitos e territorialidades sônio-musicias” In: JANOTTI JR, Jeder e SÁ, Simone Pereira de (orgs.). Cenas musicais. Guararema/SP: Ed. Anadarco, 2013. HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. HOBSBAWN, Eric. O Presente como História. IN: HOBSBAWN, Eric. SobreHistória. São Paulo: Companhia das Letras. 1998. JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão In: As representações sociais. Denise Jodelet (org). tradução Lilian Ulup – Rio de janeiro: EdUERJ. 2001. LE GOFF, Jaques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão. 5ª edição- Campinas-SP. Editora da UNICAMP. 2003. LEVI, Giovanni. “Três histórias de família: os núcleos parentais”. In: ____. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, 87-130.

15

LIPPMANN, Walter. Opinião Pública.Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. LOPES, Ibratina Guedes de Carvalho. Forró Pé de Serra: descompasso entre letra e música. Monografia. Programa de pós-graduação em Letras - Latu senso. FAFIRE. Pernambuco. 2007. MARCELO & RODRIGUES, Carlos e Rosualdo. Eu vou mostrar pra vocês/ Tem de tudo na feira. In: O fole roncou! Uma história do forró. Rio de Janeiro, 2012. MELUCCI, Alberto. Accióncolectiva, vida cotidiana y democracia. El Colégio de México, 1999. PASSMOZER, Michelli de S. ANGELI Rafael.Compassos do Forró - uma narrativa jornalística multimídia sobre o forró. TCC. UFES. Departamento de Comunicação Social. Vitória-ES. 2012. PENNA, Maura. Relatos de migrantes: questionando as noções de perda de identidade e desenraizamento. In: Língua (gem) e identidade. Organização: Inês Signorini. Campinas, SP: Mercado de letras; São Paulo: FAPESP, 1998. PIMENTEL, A. O método da análise documental: seu uso numa pesquisa histórica. Cadernos de Pesquisa, n.114, p.179-195, nov, 2001. SANTOS, Climério de Oliveira. Forro desordeiro: para além da bipolarização “pé de serra versus Eletrônico”. In; SIMPOM. Etnografia das práticas musicais. 2012. SARQUIS, Joana. Forró sem fronteiras - o movimento em Portugal. Dissertação de mestrado em performance artística. Faculdade de Motricidade Humana. Universidade Técnica de Lisboa. 2013. SILVA, Expedito Leandro. Forró no asfalto: mercado e identidade sócio-cultural. São Paulo: annablume. 2003 SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença : a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu da Silva (org), Stuart Hall, Kathryn Woodward – Petrópolis: Vozes. 2000. SILVA, André Luiz da. A descaracterização do forró influenciada pela indústria cultural através das bandas de forró. Revista eletrônica Temática. Ano VI, n.10, Outubro. THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Tradução Wagner de O. Brandão. Leonardo Avritizer. 10 ed. Petrópolis: Vozes. 2008. THOMPSON, Paul. A voz do Passado – História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. TOURAINE, Alain. Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes. Petrópolis: Vozes, 2003. TRIVIÑOS. Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

16

TROTTA, Felipe. O forró eletrônico no Nordeste: um estudo de caso. Revista InTexto. Porto Alegre: UFRGS, 2009 VAINER, C. B. Estado e migrações no Brasil – anotações para uma história das políticas migratórias. In:Travessia, n. 36, p.15-32, jan-abr. 2000.

17