En V* 1st' a UM ARTISTA DO POVO Gianfrancesco Guarnieri, dramaturgo e ator de teatro, cinema e televisão, sinônimo de trabalho na divulgação da cultura popular brasileira

Parafraseando o refrão da Revista Comunicação e Educa- música de sua última peça - A ção: Eu queria que você contasse canastra de Macário - pode-se como é que o teatro aconteceu na afirmar que Gianfrancesco Guar- sua vida. nieri encarna a trajetória do Gianfrancesco Guarnieri: Por artista brasileiro. Um verdadeiro parte da minha geração não tinha contador de histórias, desde a nada disso, de quero ser artista. O década de 50, criando, produzin- que nós queríamos era atuar. O tea- do e dando voz à cultura popular: tro surgiu naturalmente, sem Para ele não há tabus: escreve, nenhuma grande preparação e sur- interpreta e dirige no teatro, no presa. Eu me sentia apto para cinema e na televisão. Algumas enfrentar qualquer coisa, o negócio das músicas que compôs com ilus- era descobrir o que mais nos agra- tres parceiros fazem parte do can- dava, mas nada do que a gente fos- cioneiro popular e nem nos demos se fazer nos assustava. Tínhamos conta disso. uma grande necessidade de ação 'Em 1995, mesmo com proble- prática. Eu me lembro de um bom mas de saúde, fez teatro, escreveu, exemplo: eu tinha um amigo que atuou e dirigiu a peça A canastra adorava a Doris Day e, então, de Macário; televisão, interpretou resolvemos fundar um fã-clube. Eu o Eliseu da novela A próxima víti- era o secretário-geral, não sabia ma que foi ao ar no horário nobre quem era a Doris Day, nunca tinha na Rede Globo; e cinema, com a visto filme dela; mas a gente se participação no filme O Quatrilho, dedicava a isso de corpo e alma, de Fábio Barreto no qual interpre- até vir a satisfação. tou o padre Giobbi. Aos 62 anos, tem novos pla- RCE: E por que você não seguiu nos de trabalho, sonhos e esperan- seus pais, por que você também ças de um futuro melhol: Confira, não foi um músico? lendo nas páginas seguintes o ins- Guarnieri: Meu pai era maestro e tigante encontro da revista minha mãe concertista. Na Itália Comunicação & Educaqão com ele tinha um quarteto, era violon- Guamieri. celista. Eles não me obrigavam. Por: Roseli Fígaro Eles achavam que a profissão era Comunicação e Educacão, , (51: 62 a 77, .ian./abr. 1996 63 muito ingrata. Não proibiam, mas Estudante acabou estreando neste também não estimulavam. Eu quis recém fundado Teatro de Arena. E estudar piano, agora claro que eu começou uma mútua simpatia, eles sentava ao piano e não queria tocar também eram jovens. Eram da pri- Chopin, Bach. Eu queria tocar o meira turma de formandos da que me vinha. Eu queria o instru- Escola de Arte Dramática (EAD). mento para mim, ficava meia hora Então, houve uma aproximação lá, queria voar... natural e em 56 houve uma fusão do Teatro Paulista do Estudante RCE: O teatro de Arena foifunda- com o Teatro de Arena. do em 1952 pelo José Renato. Como foi a sua união com o Arena? Guarnieri: Em 52 eles fundaram o grupo, mas era um grupo itine- rante, eles não tinham teatro, eles encenavam as peças em qualquer lugar, principalmente em casas, em palacetes, em clubes. E em 55 con- seguiram uma garagenzinha na rua Teodoro Baima, reformaram e fizeram o primeiro teatro circular permanente da América Latina. O Vianninha (Oduvaldo Vianna

Filho) morava no fim da Teodoro Cianfrancesco Guarnieri Baima, então nós passávamos muito por ali e achávamos uma RCE: O Vianninha era seu compa- graça o teatro. Foi justamente nheiro na política, como é que nesse período que as entidades vocês ficaram juntos também no estudantis resolveram formar um teatro? grupo de teatro, isso em razão da Guarnieri: Quando nós defende- grande revolução do teatro, que mos esta proposta da formação do chegava às ruas ...O Teatro teatro estudantil, a escolha de Brasileiro de Comédia (TBC)' foi quem se dedicaria mais a este tipo o grande importador dessa boa no- de trabalho foi meio estranha. O va no teatro brasileiro. critério era o seguinte, vamos ver Foi considerado que o teatro seria quem tem no ambiente, na família, genial como possibilidade de orga- maior ligação com o teatro. Eu ti- nização estudantil. Assim, nesse nha o trabalho do meu pai e da ano, resolvemos que íamos formar minha mãe no Teatro Municipal. E o TPE. O Teatro Paulista do o Vianninha era filho da Maria

1. O Teatro Brasileiro de ComCdia foi organizado em 1948 por Franco Zampan. Durante quase 12 anos de existência encenou mais de 70 peças. (N.E.) 64 Comunicação e Educação, São Paulo, (5):62 a 77, jan./abr. 1996

Alice e do Oduvaldo Vianna, Companhia ) fi- escritor de teatro e depois de tele- cou contente com a idéia. E nós novelas... Foi mais ou menos assim estávamos muito felizes porque ele que as pessoas se tomaram res- também tinha nos ajudado a conse- ponsáveis por essa tarefa. Quem guir a assinatura de adesão da vai ser da fração da UJ2 (União da Marta Rocha4, ao nosso Encontro, Juventude) para formar o grupo de "a miss vai à festa". Nós consegui- teatro? As pessoas foram escolhi- mos a adesão da Marta Rocha e das nesta base. Deu sorte para nós, depois ela disse que não sabia o porque aí descobrimos o caminho. que era aquilo, se era coisa de A gente não se deteve para anali- comunista...( risos). E ainda mais sar, o que nós queríamos mesmo ela, uma senhora imponente, nos era ser militante profissional, atendeu de négligé. Imagine, nós, revolucionário, no fundo era essa a naquela idade, vermos a Marta idéia. Mas quando o teatro veio até Rocha assinando a adesão ao nosso nós foi um impacto, virou uma Encontro de négligé... Depois disso paixão. só morrer...( risos). Bom, consegui- mos os ingressos, e o Sandro disse RCE: Comofoi aquele episódio de que o espetáculo ia começar e nos vocês assistirem à peça O canto da convidou para assistir. Logo no iní- cotovia3? cio de O canto da cotovia, eu Guarnieri: Assisti a muita ópera disse "é isso que eu vou fazer", não no Municipal, mas essas compa- tinha jeito, era aquilo mesmo, foi nhias de teatro popular modemo eu assim que tive certeza que queria ainda não tinha visto. Eu fui apre- fazer teatro. sentado ao TBC, e a primeira peça que vi foi Dama das Camélias. Eu RCE: O Augusto Boa1 foi muito achei ótima. importante para o Arena? Então, em nosso trabalho político Como é que foi a entrada dele para nós estávamos organizando o o grupo? Encontro da Juventude pela Paz e Guarnieri: Aí tem um pouquinho pela Amizade, o Brasil seria a sede de história também. Fizemos a e, já que estávamos naquela de for- fusão entre o TPE e o Arena por- mar um teatro amador, começamos que não tínhamos as mínimas con- a visitar as companhias para ver se dições de produção, de fazer o tra- conseguíamos alguns ingressos balho que a gente queria com o para oferecer aos jovens que TPE, de se apresentar em escolas, viriam ao Encontro. O Sandro em fábricas, em sindicatos, em Polloni (Teatro Popular de Arte - salas, até em teatro de rua. Nós não

2. União da Juventude tem sido historicamente a organização política dos Partidos Comunistas entre os jovens. 3. Peça de Anouilh, dirigida por Gianni Ratto, 1954, com Maria Della Costa no papel principal. 4. Marta Rocha, Miss Brasil no ano de 1954, tomou-se símbolo da beleza da mulher brasileira. Comunicação e Educação, São Paulo, (5):62 a 77, jan./abr. 1996 65 tínhamos dinheiro. As campanhas Houve, então, necessidade de que de arrecadação de fundos que fize- alguém trabalhasse com o Zé mos não deram certo. Então, o Zé Renato no Teatro de Arena. O Boal Renato, que era o diretor do Arena, foi apresentado ao Zé pelo Sábato nos fez a seguinte proposta: nós Magaldi ... Foi uma revolta terrível seríamos o segundo elenco do entre nós. Era um cara, um sujeito Teatro, o suporting cast, não rece- dos Estados Unidos, que se charna- beríamos nada e ele daria o mate- va (August Boal). rial para o TPE fazer os seus espe- Ficamos com aquela desconfiança, táculos. Aceitamos, mas aquilo era aquela reserva, a gente ficava com ilusão. Trabalhando no Arena não o pé atrás... A primeira vez que vi o dava tempo para organizar nada no Boal - ele era alto, desengonçado TPE. Começamos a achar que não - estava com uma camisa que dava para continuar e exercemos trouxe de lá dos States, xadrez, uma certa pressão sobre o Zé. aquela calça, aquele jeito de cow- Mudamos também a cara do TPE, boy. Mas ele falava português ... tomando mais iniciativa. Poxa, ele era carioca... Aí eu come- Queríamos um teatro de participa- cei a reconsiderar, saí da opinião ção, de luta, preocupado com o que radical para ver do que se tratava. se passava. Começamos a ler e a E de fato: quando o Boal percebeu, ver que o teatro podia exercer esse logo começou a nos dar toda a tipo de papel. Começamos a nos força. Ele foi para os EUA estudar preocupar muito com o modo bra- Química, sobrevivia traduzindo sileiro de teatro, que não deveria para a Revista X-9. Ele teve conta- ser cópia, não deveria ser epígono to com o pessoal melhor, do nosso de teatro nenhum, deveria desco- ponto de vista, do teatro norte- brir a sua própria identidade. americano. Ele nos deu uma boa Buscar o homem brasileiro médio. base teórica, coisas da representa- Montamos a peça Está lá fora um ção, entrávamos pela noite, em inspetor, de J.B. Priestley. longas tertúlias. Foi uma coinci- Ganhamos um festival de teatro dência de interesses. Montamos amador, eu ganhei o prêmio de Ratos e homens, de John melhor ator. O TPE apareceu no Steinbeck. Aí fizemos uma come- cenário, o que aumentou nossa dinha, que ficou pouquíssimo tem- força. Aí nós ficamos lotando tea- po em cartaz; quando então, eu, em tro e nossos planos de fazer teatro 56, empolgado com aquele clima, nas escolas ficou prejudicado. Foi quis escrever uma peça, era sempre essa contradição, até que Black-tie. chegamos à conclusão de que tínhamos que cumprir nossos obje- RCE: Eles não usam black-tie tivos com o teatro profissional. A vai aparecer num momento de Beatriz Sega1 e o Silnei Siqueira crise do Arena. Como é que se dá ficaram para tocar o TPE. todo aquele boom... ? 66 Comunicação e Educação, São Paulo, (SI:62 a 77, jan./abr. 1996

Guarnieri: Deu tudo certinho. O mais condição de sustentá-lo em público de boca aberta ... esperando São Paulo. Tinha surgido uma que aparecesse algo novo, com no- atriz, misteriosa, chamada Lélia vas propostas. Abramo. Ela simpatizava com o movimento e notava que todo RCE: Então até aí o Arena não mundo estava querendo trabalhar. tinha conseguido ser o que havia O Eugênio Kusnet, quando viu se proposto? aquela garotada querendo coisas Guarnieri: Não, porque essa pro- novas, topou montar Black-tie. posta era recente, essa proposta Mas aquele sotaque do Kusnet não mesmo foi do final de 55,56... Eles ficava bem. Eu resolvi o problema, faziam o teatro, mas a novidade era coloquei um: "Cala a boca ale- ser circular, e eles montavam mão", já justifica, chamou de ale- Pirandello, Uma mulher e três mão, já estava tudo bem. E a Lélia, palhaços, de Marcel Achard, o que podia perfeitamente ser paulis- máximo que eles chegaram a mon- ta, embora a história se passasse no tar foi A margem da vida, de Rio. Mas olha, ninguém acreditava Tennessee Williams. Tinha sido que fosse dar certo. E foi aquele dado um sinal com o Ratos e boom, o público estava querendo homens, o público ficou na expec- que acontecesse alguma coisa. O tativa. Dali tinha que sair alguma mais importante de Black-tie foi coisa. Foi quando houve o que nós que ela catalisou energias. Tinha chamamos da recuo, de fazer aque- gente que estava desanimada, co- las comedinhas...para puro diverti- mo o Jorge Andrade. Quando ele mento. Não é que seja inaceitável, viu a peça, disse: "Oh, rapaz, ago- mas não estava de acordo com a ra você me deu forças para conti- expectativa que tinha sido criada. nuar, nós vamos continuar..." Daí Era preciso falar da realidade, do surgiu o Seminário de Dramaturgia dia-a-dia, procurar a identificação com todos os seus erros, a sua radi- com o espectador. Mas ali o negó- calização... cio era profissional. Tinha que dar lucro. E como não dava, o Renato RCE: Quando foi isso, em 1958 resolveu fechar. Só que antes deci- mesmo? diu montar um texto de um autor Guarnieri: Em 58 ele foi propos- nacional. Até então, não tínhamos to. Em fevereiro estreou, em montado autor nacional. Leram abril, maio eu acho que já estava Black-tie e resolveram montá-la. com um pessoalzinho. Aí partici- Naquela altura muitos já tinham param atores e autores paulistas, e saído. O Boa1 teve que se virar, foi deu uma safra boa. A gente só trabalhar. O Vianninha não aguen- montava peças de autores nacio- tou a questão financeira, porque nais. Em 62 o Zé Renato saiu do quem bancava a gente eram os nos- teatro e nós conseguimos uma no- sos pais ...e os dele não tinham va direção. Comunicação e Educação, São Paulo, (51: 62 a 77, jan./abr. 1996 67

RCE: Da safra de autores que saí- pelo TBC? Não ficou meio ruim ram do Seminário de Dramatur- com o pessoal do Arena, como é gia, quais foram as principais que foi? peças que o Arena montou? Guarnieri: Houve, no início, uma Guarnieri: Vianninha fazia ques- reação do pessoal do Arena, mas tão de dizer que sua peça eles acabaram concordando. Eu já Chapetuba Futebol Clube era fru- tinha uma experiência de alguns to do Seminário, embora ela tives- anos do Teatro de Arena e queria se sido escrita antes. Ele pegou a experimentar o palco tradicional. peça e levou para o Seminário, quase estragaram o trabalho dele. RCE: Conta essa história de expe- Não conseguiram porque ele tinha rimentar o palco tradicional, eram personalidade. O Seminário era raizes de ópera aflorando? perigoso. Seminário não é uma ofi- Guarnieri: Mas é evidente que cina, não é Workshop. Seminário é entrou isso, tanto que o Gimba é seminário, deveria ter a função de um libreto de ópera. Eu era aman- discutir problemas interessantes, te de palco, coxia, cenário, queria correntes novas. Ter a presença de mexer com isso. Essas contribui- um sujeito bem mais informado, ções mais efetivas do teatro popu- preparado, que pudesse orientar, e lar. O nosso palco de arena era não uma parceria para escrever co- limitado, encontrou um gênio que mo queriam alguns. Teve um des- inventava coisas incríveis, o vio realmente violento, que acabou Flávio Império. Ele inventava coi- afastando as pessoas. Mas no perío- sas formidáveis. Mas eu queria do em que o Seminário conseguiu experimentar o outro lado. O atuar foi importante. O próprio Gimba tem escola de samba, ope- rários; no meio dos trabalhadores, Boa1 fez para o Seminário a peça dez policiais Revolução na América do Sul. O ... Roberto Freire (o psicanalista, não RCE: Foi o Flávio Range1 que o Senador) fez Gente como a dirigiiu ? gente, nós a montamos com o Guaiinieri: E Zle era !profissio nal, . . 0. Antunes. O próprio Jorge Andrade ele tinna reito uma peça an.,,,tPC participou, mas foi o primeiro a Chapéu cheio de chuva, no palco sair. O Chico de Assis também. do 11 de Agosto, da Faculdade do Todo mundo acabou escrevendo Largo São Francisco. E eu vi esse peça ali. O Flávio Migliaccio tem espetáculo, adorei. O Flávio Ran- uma peça gostosíssima, chamada gel nasceu no mesmo dia, na mes- Pintado de alegre, que saiu do ma hora e no mesmo ano que Seminário eu ...a gente brincava com isso. Ele era uma pessoa de personalidade RCE: Por que é que logo depois muito forte também, foi uma expe- do. sucesso do Black-tie você riência muito rica trabalhar com o escreve Gimba para ser montada Flávio. 68 Comunicacão e Educacão, São Paulo. 151: 62 a 77, ian./abr. 1996

RCE: E vocês foram para a Europa Guarnieri: Não, no teatro São com Gimba, não foram? Ganharam Pedro foi com a Fernanda um prêmio em Paris... Montenegro, em 69. Porque ali foi Guarnieri: Nós fomos para o seguinte, eu fiz Gimba, de 59 até Portugal.0 Sandro estava querendo 61. Em 59 foi ainda um pouco ir para o Festival Internacional de Black-tie, ficou dois anos, aí o Paris. E Gimba também foi um Vianninha me substituiu e eu fui fenômeno, um sucesso de público fazer Gimba, também como ator. extraordinário. A crítica como sem- Em 60 nós fomos para Portugal, pre, no segundo trabalho, vem em Itália e França. Sucesso extraordi- cima, dizendo que eu romantizei o nário. Em Roma, no Teatro marginal. Na época o marginal era Quinno, fizemos a peça em portu- romântico mesmo, e hoje a gente guês. O Brasil tinha tudo para fa- tem todo o material que comprova zer mil coisas, mas. .. Em 61 eu isso. E uma coisa que me dá uma estreei A semente, com toda essa grande satisfação é que eu tinha um minha gana de palco. prólogo mostrando o marginal seguinte, o de hoje, que é o drogado, RCE: Foi também junto com o que ataca os próprios companheiros, Flávio Rangel, não foi? isso em 59. E Gimba não, ele estava Guarnieri: Também. Fiz Gimba com toda a mitologia do morro na que me matou essa vontade de cabeça. espetáculo, aí eu quis falar de um cara que merecia ser falado, o RCE: Você também trabalhou, Partido Comunista, eu escrevi uma depois dessa fase, com o Othon peça sobre a atuação do Partido. Bastos e a Martha Overback. Foi no teatro São Pedro que vocês tra- RCE: Mas ela não foi encenada balharamjuntos? fora de São Paulo, foi? Guarnieri: Não, foi proibida. Foi o Virgílio Lopes da Silva, Secretário de Segurança que proi- biu. Eles tentaram proibir na vés- pera da estréia. Os caras tinham um relatório do censor, diziam que a peça era imoral, porque tinha um personagem que ouvia o filho se mexendo na barriga da gestante, para eles isso era obsceno. Claro que essa desculpa não enganou ninguém, todo mundo estava sabendo que era por motivos polí- ticos. Nós ficamos assustados, -- Guarnieri e Francisco de Assis na montagem- de Eles Não porque deu o maior rebu, todo Usam btack-tie, 1958. mundo querendo saber que peça Comunicação e Educação, São Paulo, (51: 62 a 77, jan./abr. 1996 69 era aquela... Conseguimos a libera- soal universitário da Faculdade de ção só para o TBC, ficando proi- Medicina da USP e começaram a bida para todo o território nacio- me pressionar: como é que eu po- nal. A liberação se deu graças à dia fazer uma peça assim, se eu atuação de uma comissão de inte- achava que o camponês era um lectuais da qual participaram a imbecil etc. Um imbecil não, mas Igreja, a ABI e outras entidades. desinformado, supersticioso, com Aí, claro, lotou, superlotou. O uma concepção de mundo informa- TBC tentou colocar outra peça, As da no que há de pior da Igreja. Não, Almas Mortas, de Nikolai Gogol. eles diziam, "o camponês está aí Não ia ninguém, colocaram nova- fora lutando, organizado" ...Eu ti- mente A semente e voltou a nha estado em vários Estados con- lotar ...Depois retornamos ao versando com os lavradores; estive Teatro de Arena, foi uma fase em congressos de trabalhadores e bonita. Em 62, fizemos A pude ouvir muitas histórias pareci- Mandrágora, de Maquiavel, era das com a da peça. O filho do cão um espetáculo lindo. conta como um jovem latifundiário se vestia de negro, com uma enor- RCE: Foi um conjunto de atores me capa e saía aproveitando-se das que comprou o Arena, não foi? moças do lugar. Apresentava-se Guarnieri: É, pessoas que já como "Cão", o Diabo, e aterroriza- tinham feito parte do Arena, o va as donzelas. Ele engravida duas Boal, eu, o Paulo José, que tinha moças e nossa, é aquela confusão. chegado, o Juca de Oliveira que eu Mas eis que surge um Santo levei para lá e o Flávio Império. O Homem, desses santos homens do Brasil deve muito a esse cara, o Nordeste, com uma menininha, um Flávio Império, ele era incrível. De cordeirinho, um cajado enorme, uma criatividade, um grilo falante, que sentencia: "Se nascer com orientava todo mundo, uma cabe- defeito é filho do Cão, se nascer ça, um caráter. O Paulo Cotrim com o pé torto está mais que con- também fez parte do grupo de firmado, é filho do Cão mesmo". E compradores, foi ele que pagou o ele fica por ali, comendo pirão, Zé Renato. E aí foi bonito, foi jerimum (abóbora), aguardando o muito bom, uma produtivida- nascimento. É claro que o fazen- de ...de 62 a 63. deiro, o rapaz, se recolhe. O Cão se recolhe para não chamar atenção. RCE: Vocês montaram que peças? Aí, uma das crianças nasce com o Guarnieri: Montamos A pé torto - como é muito comum Mandrágora, depois O Noviço, de em regiões tão pobres e sem assis- Martins Pena, montamos O filho tência. Estava provado que era fi- do cão, outra peça minha. É uma lho do Cão, e a recomendação do história muito engraçada, a dessa Santo é para matar a criança. Eles peça. No dia do golpe estávamos matam. A notícia corre o vilarejo e discutindo o espetáculo com o pes- o fazendeiro, que era o Cão, chama 70 Comunicação e Educaçao, São Paulo, (51: 62 a 77, jan./abr. 1996

a família da moça que matou a RCE: Em 68 o Arena promoveu a criança e diz para eles fugirem, Feira Paulista de Opinião. Como pois a lei não perdoa, eles não foi essa experiência? podiam permanecer ali. Deu en- Guarnieri: Foi a idéia de reunir tão a eles umas moedas, ao que alguns artistas de diferentes áreas, agradecem muito e fogem, aban- como músicos, dramaturgos que donando tudo. Esta é mais ou se expressassem a respeito do menos a história e o pessoal tema "O que você acha do brasilei- achou que eu estava sendo derro- ro?' A formulação da pergunta já tista. Diziam que o teatro que a era provocativa. Tivemos uns cin- gente tinha que fazer era o que co ou seis dramaturgos. Os com- mostrava que a revolução estava positores acabaram fazendo as ati- ali. Aí veio a notícia: deram o vidades paralelas e se integrando golpe ... Por isso que eu quis ir lá ao espetáculo, os artistas plásticos para o Nordeste, ver os campone- também. Mas nós não colocamos ses, as Ligas5 e cheguei à conclu- em prática essa participação do são de que se dependesse de uma artista plástico, porque não tínha- resistência.. . mos como utilizar a produção cenográfica desses artistas. Não RCE: Qual foi a pega em que você tínhamos recursos. também teve uma outra iniciativa Bem, o mundo estava passando ... semelhante a esta, ao tratar do na França os acontecimentos de 68 assassinato de um estudante e, já estavam se anunciando. Quer depois, em 1968, o fato realmente dizer, o sabor do tempo motivou ocorre quando a polícia mata o essa idéia de fazer a Feira Paulista. jovem Édson Luís? Com toda a ebulição política da Guarnieri: Foi Animália. Re- época, os estudantes, o regime sultado da Feira Paulista de militar. Por um engano a Feira não Opinião. Porque fazer ficção não foi atacada. Eles atacaram Roda dá, por mais que você invente, a Viva. Mas o ataque era para a realidade está ali. Imaginar que Feira. A gente soube por um trai- iam matar um estudante? Agora, dor, que mandou tomar cuidado para mim, era a lógica, iam aca- nos dois espetáculos, mas quem ia bar matando.. .Infelizmente acon- ser atacado era a Feira ... teceu. Mas aí não tinha jeito ...era só ver.onde ia dar aquilo, aquele RCE: Como é que foi essa história momento de conflito, ficando ca- do sistema coringa, foi coisa do da vez mais tenso, mais agressi- Boal, não foi? vo, eles já não estavam ligando Guarnieri: Não. A teorização pos- para mais nada ... terior foi e é nisso que eu discordo

5. Ligas Camponesas - organização de lavradores pobres do Nordeste brasileiro, especialmente Pemambuco, que, no inicio da década de 60, lutavam pela posse da terra. Seu principal líder foi Francisco Julião. Comunicação e Educação, São Paulo, (5):62 a 77, jan./abr. 1996 7 1

do Boal. Acho que tomar isso uma cionavam. Mas no conjunto achei estética, não dá certo. Quer dizer, que não era proveitoso. só dá certo com a dramaturgia apropriada, dá para se contar uma RCE: No espetáculo Arena conta história, mas precisa ser um épico. Tiradentes não foi bem, mas no O coringa nada mais é do que a Arena conta Zumbi (1965) o siste- existência de um narrador central, ma coringa deu muito certo... que traz para você todo o contexto Guarnieri: Deu muito certo, mas da história através de um grupo de não se pensava em teoria nenhuma. atores, que pode ser de 4, 5 ou 8, Era uma coisa muito concreta e dependendo da peça. Mas cada muito simples: contar a história do qual faz todos os personagens. Esta Zumbi dos Palmares. Como tinha solução é possível enquanto você muitos figurantes, tinha que ser um não tem uma caracterização psico- relato duro, quase estatístico, lógica. breve, para não cansar, mas dife- rente do que já havia sido feito. E RCE: Como é que fica a empatia foi assim que a gente fez, a cena fi- do ator com o público, se todos cou mais rica. Nós achávamos que fazem todos os personagens? o surgimento dos quilombos era Guarnieri: A empatia é do con- um tipo de desenvolvimento. Para junto, é isso que nós consegui- contar isso tinha que ser um tipo de mos. É uma espécie de recital. nanativa que permitisse mostrar Tem muita música, agora não todo o movimento dos negros. pode ter caracterização psicológi- Desenvolver essa narrativa até fa- ca, não está baseado no perfil do zer uma espécie de Carmina personagem, são mais arquétipos. Burana6, mas o sistema coringa Agora querer colocar esse mesmo não pode ser empregado a qual- esquema em todas as peças, "sis- quer tipo de peça. tema" como o Boal chamava, atrapalha. Arena conta RCE: O Arena jogou um papel Tiradentes (1967) pelo fato de ter fundamental no desenvolvimento sido no sistema coringa ficou pre- de uma dramaturgia brasileira, judicada, porque o público ficava não foi? preocupado em saber quem era Guarnieri: O Arena deu uma mão- quem, quem estava falando o quê. forte, ele tentava estimular. Eu me Quando entrava o Tiradentes, orgulho de ter participado. Ele deu interpretado por um só ator - o frutos. Você vê o pessoal na Bahia, Danilo José - durante toda a o pessoal no Amazonas, no Rio peça, eu sentia quase que um sus- Grande do Sul. Tem gente que diz: piro do público. Essas cenas fun- "não, mas olha, com o Arena nós

6. Carmina Burana, cantata cênica (ópera tomada grande espetáculo de massa, segundo o entendi- mento de Wagner) composta pelo músico alemão Carl Orff (1895-1982). em 1937, como obra de arte total. (N.E.) 72 Comunicacáo e Fxlucacão, São Paulo, 151: 62 a 77, jan./abr. 1996

fizemos um grupo aqui, não sei caminhos suspeitos, terríveis... é quê". Teve essa atividade mobili- uma coisa dura. Eu tenho visto os zadora. Depois tem todo o outro la- escritores preocupados com o que do de como ele era entendido, das acontece no mundo. Uma inquieta- grandes discussões, o teatro mili- ção. Mas não os vejo amargos. O tante, a confusão da gente próprio José Saramago, por exemplo, ele com a arte... escreve, ele fala sobre a realidade, mas sempre vê lá adiante. Não RCE: Mas mesmo essas discus- querendo me comparar, longe dis- sões, essa polêmica toda, creio que so. Mas a gente vê tudo o que trouxe, não só para vocês artistas, acontece no país e sofre, porque mas para toda a sociedade, uma sabe que tem solução. Dentro da experiência importante. própria Carta Magna há possibili- Guarnieri: Eu quero escrever so- dades, é só ter vontade política. Eu bre isso, assim como eu escrevi duvido e, cada vez duvido mais, Black-tie, por vontade de escrever, que alianças espúrias possam sem pensar em ser montado. resolver alguma coisa. Isso para Agora, depois de muitas peças, eu mim é cair num conto do vigário, e estou me colocando esse problema. enorme. Tomar o poder e não Pensei que não ia dar, com o cora- poder exercer esse poder em nome ção, você sabe... mas agora espero de quem tem que ser exercido. O que dê. Esse negócio da democra- poder fazendo média em nome da cia tem me preocupado. A defini- classe dominante. Isso para mim ção do que é uma democracia bur- está ficando cada dia mais claro. guesa, que não é democracia por- que tem um restritivo. Democracia RCE: Por que nós não temos mais é democracia, quando você come- grupos de teatro, festivais ...Você ça a ter que colocar democracia acha que é falta de engajamento burguesa ...enfim, aquilo que esta- artístico dos grupos políticos? O mos vendo nos jornais todo dia. É que está faltando hoje para uma preciso descobrir o que é que moti- atividade cultural mais ampla? vava a gente, que diabo de fermen- Guarnieri: Um incentivo à mili- to social existia? Era uma coisa tância, à participação política. Por que eu comparo, mal comparando exemplo, o movimento estudantil, - mas é o que eu consigo fazer - em nível universitário, é indiscutí- com uma gincana ...Você tem deter- vel que ele foi o criador de políti- minados objetivos, determinados cos, talvez da melhor safra de polí- sonhos em comum, então luta para ticos, independentemente da sua chegar até eles, para conquistá-los. ideologia, das suas plataformas, de Isso, olha, era uma certeza que a serem chamados de "esquerda" ou gente tinha, e eu não tenho vergo- de "direita". Eles passaram pela nha de dizer, ainda tenho essa cer- militância, ali eles aprenderam a teza. Só que essa está uma ginca- conviver inclusive nas suas dife- nona, está velha demais, passa por renças. Era importante o movimen- Comunicacáo e Educacão, São Paulo, (51: 62 a 77, .ian./abr. 1996 73 to, apesar de ser uma coisa restri- rior desse Brasil. Essas distâncias, ta, claro que gostaríamos que essa hipocrisia, correspondem a tivesse sido um movimento abran- um lixo atômico. É isso que dá um gente, que todos os estudantes certo mal-estar. participassem. Mas, o que havia já era importante. A pancada que RCE: Guarnieri, agora mudando veio em cima arrefeceu tudo isso. um pouco do teatro para o seu tra- Essa coisa associativa parece que balho na televisão. Quando é que mudou de caráter. Agora se anali- você começou a escrever e a traba- sam interesses próprios, indivi- lhar na televisão? duais. Aí é que é preciso distin- Guarnieri: Eu comecei em televi- ção, o indivíduo é a coisa mais são também por causa do TPE, em importante que tem: às vezes a 55. Estávamos precisando de gente se expressa mal ...acham que dinheiro e existia um programa a gente é coletivista. Mas quem chamado Chance na TV, progra- manda no coletivo é cada qual, ca- ma idealizado pela Cacilda Becker. da um, quer dizer, o que mais tem Era um casal de atores fazendo tre- que ser respeitado na vida é a chos de peças. O prêmio era em individualidade. No entanto, essa dinheiro. Aquele que conseguisse a individualidade tem que chegar à média dez, teria o contrato com os compreensão de que ela só é, cada teatros às segundas-feiras. Era a vez de uma forma mais integral, Cacilda que fazia e depois a no coletivo; se ela inverte isso, começou a faz com que a sua individualidade fazer também. Segunda-feira era se perca no individualismo, aí é dia de folga, e nós passávamos os uma cegueira ... Esse processo to- dias de folga fazendo teleteatro do e esta, sem dúvida nenhuma, para televisão. grande campanha mundial que prega não a defesa do indivíduo, RCE: Você chegou a escrever mas do individualismo, que esti- para telenovela? mula toda essa coisa competitiva, Guarnieri: Eu cheguei, e nunca e que esconde todo esse fetiche de mais. É um esforço... Depois, aí mercado, só nos empobreceu. As sim, eu sou individual demais, diferenças são cada vez maiores, escrever é para expressar. Não gos- porque eles não resolvem o pro- to de escrever por profissão, por- blema fundamental das distâncias que sou obrigado a escrever. Como sociais, muito pelo contrário. Em ator, faço telenovela com a maior alguns países essa distância foi tranqüilidade. Não me enche a aprofundada de uma forma tem'- cabeça em nada, a gente comparti- vel, absurda, com a morte mesmo, menta o trabalho e eu gosto de fa- oficializada. É o caso dos nossos zer. Vai dizer que é uma contradi- grandes centros: a mistura da ção, mas eu gosto daquela parafer- guerra não declarada com o puro nália. Eu acho linda essa câmera genocídio que se faz aí pelo inte- que pega pelo ar, entra pelas casas 74 Comunicação e Educacão, São Paulo, (51: 62 a 77, ian./abr. 1996

e o que se descobre ali também é eu não vou querer, melhor escrever um modo de trabalhar. minissérie, novela não. E todos eles se infartaram, não aguentam ... RCE: Quais foram os seus textos para TV e em quantas novelas você RCE: Você também escreveu com já atuou, como ator? a equipe de Carga Pesada, seriado Guarnieri: Inúmeras, eu não sei da TV Globo veiculado na década dizer a quantidade não. Mas, nove- de 80, não é? la eu comecei a fazer mais tarde, Guarnieri: Dois a três anos. Era em 67, 68, antes eu só fazia espe- legalzinho, não era exatamente o ciais, o que hoje se chama "espe- que a gente queria, mas era legal. cial", o antigo teleteatro. A A idéia era muito boa, a idéia era a Excelsior fazia peças integrais; seguinte: você retrataria o Brasil, Eles não usam black-tie foi feita porque os personagens centrais na íntegra; As colunas do tempo Pedro e Bino (respectivamente de Jorge de Andrade, também, e Antônio Fagundes e Stênio originais, que a gente escrevia para Garcia) eram caminhoneiros, per- esses especiais, isso eu fiz bastante. correriam todo o território nacio- Novela eu escrevi uma, chamada nal ... e tem histórias fantásticas Sublime Amor (apresentada de neste Interior. Era para ser gravado novembro de 67 a fevereiro de 68). nos diferentes Estados, com os O Cassiano Gabus Mendes era o atores do lugar. Mas para ir até diretor de TV e me apoiava muito. eles a produção precisaria ter uma Essa novela ia ao ar pela TV dianteira muito grande e tempo. Excelsior e, naquela disputa de Só que os produtores quiseram audiência com a Thpi, quem me lançar logo a série e a idéia inicial dava estímulo e força era ele. Mas não pôde ser executada. Eu dizia o difícil naquela época - hoje es- brincando que quem ia ganhar to- tão escrevendo em quatro, o autor é dos os prêmios era a estrada, pois um tipo de superintendente - era os trechos do Amapá ou do Rio escrever a novela toda sozinho e, Grande do Sul que apareciam no como eu, faziam todos eles: a Ivani, vídeo, eram, na verdade, a mesma a Janete, o Lauro César, cada autor estrada no Rio de Janeiro. Mas eu escrevia a sua novela sozinho, com achava legal, gostei de fazer. um papel carbono na máquina. O telefone, onde estivéssemos, não RCE: Depois de Um Grito Parado parava de tocar. Os atores ligavam no Ar, em 73, quais pegas você o dia todo, reclamando disso, recla- escreveu ? mando daquilo. Terminei de escre- Guarnieri: Eu fiz Um Grito... e O ver, mas nunca mais, a não ser que Botequim no mesmo ano, foi haja uma catástrofe absoluta e isso quando eu comecei a fazer o traba- surja como único meio de sobrevi- lho de dramaturgia na Globo; em ver, de não ficar no lixo. Mas não, 75 fiz Ponto de Partida. Comunicaçao e Educação, São Paulo, (5):62 a 77, jan./abr. 1996 75

RCE: Mas você também fez cine- idéia do Roberto. Eu e ele enchía- ma, não é Guarnieri? Vocêfez Eles mos a cara juntos. Naqueles papos não Usam Black-Tie, muito reco- que entravam pela madrugada, nhecido pelo público, tem Gaijin e aprendi muito. Ele gostava de quais outros? transmitir as coisas. Um dia o Guarnieri: Eu comecei também lá Roberto me disse: "Guarniquinha, atrás, com o Grande Momento, você quer dirigir um filme?'. - O de Roberto Santos7, em 58. Ganha- quê? Eu?. "É, você mesmo. Eu es- mos um prêmio de roteiro com tou falando sério. É o seguinte: eu Gimba - esse prêmio foi inédito vou fazer um filme sobre o me- -, um roteiro que não foi utiliza- do...", e começou a me contar a do. Ele dá de 40 a zero na peça. O idéia dele. Era o filme Vozes do que eu queria fazer no teatro, apa- Medo. Ele queria fazer com os alu- receu a oportunidade de fazer no nos dele, e que eu dirigisse, ele se- filme. Saiu a produção, mas saiu ria o coordenador."Faz de conta por esforço do Flávio Range1 e ele que você é aluno...", disse o quis dirigir. Mas quando ele viu o Roberto. Uma semana depois, ele roteiro: exterior, noite aqui, indica- ia começar, já estava com os nega- ções, as propostas de veiculação tivos. Pediu para eu fazer o roteiro etc, o Flávio disse: "a peça é muito sobre um tema que ele gostaria de boa, nós vamos fazer a peça". Falei ver tratado, o dia 10 de cada mês, com o Roberto que o Flávio não não é que dava mesmo! Eu escrevi estava querendo fazer o roteiro, uns diálogos e o filme acabou com estava querendo filmar a peça. O 25 minutos. Eu estava nervoso. Roberto achou que o que era Mas o Roberto sabia o que fazia. importante era fazer o filme. Mas o Foram anos me falando coisas, Roberto ia lá dar uma espiada. E conversando sobre cinema. De erro voltava dizendo: "olha, eles fize- mesmo eu só cometi um, que nin- ram 70 planos hoje". Eu pergunta- guém percebe. No corte, no movi- va, é e aí quantos você faz? Ele mento, aproximei a câmera com o dizia: "ah ... quando tudo está óti- ator já abaixado. São coisas assim. mo, faço cinco". Bom, o resultado Para fazer o trabalho limpo precisa foi muito ruim. Mas ficou por isso. saber destas coisas... Claro que o Um dia, o John Evens chegou negativo era ruim, a luz também dizendo que eu e o Roberto íamos não era das melhores. Foi uma receber o prêmio Governador do experiência muito legal. Ficou Estado, de roteiro, com o roteiro de proibido um tempão. Depois con- Gimba. seguiram a liberação e ganhou o Vozes do Medo também ganhou o prêmio Governador do Estado pela prêmio Governador do Estado. Foi idéia. O Roberto Santos tinha um

7. Roberto Santos (1929-1987) cineasta e professor de cinema e roteiro na Escola de Comunicações e Artes da USP, dirigiu entre outros O grande momento (1958). A hora e a vez de Augusto Matraga (1965). Vozes do medo (1975). 76 Comunicação e Educação, São Paulo, (5):62 a 77, jan./abr. 1996

grande amor pelo cinema. Ele era Tinha uma musiquinha só do de uma generosidade, de um des- Adoniran. No filme, funciona que pojamento, queria gente nova. é uma beleza. Foi o Radamés Gnattali que fez os arranjos. RCE: O cinema nacional, como diz a , depois de RCE: Você está falando do Bhck- morto, está renascendo. O que Tie ? você está achando das últimas pro- Guarnieri: É... (canta) "Nosso duções? amor é mais gostoso/Nossa sauda- Guarnieri: O cinema está ressurgin- de dura maisAVosso abraço mais do sim. Eu mesmo fiz o Quatrilho, apertadornós não usa black-tie. num papel delicioso, de um padre. A música é do Adoniran Barbosa. Foi para Gramado e agora está em Foi em cinco minutos. Ele tirou na circuito nacional. É uma história caixinha de fósforo. Depois tem a bonita de uma colônia de gaúchos, se música de Gimba. Só que é do passa no século passado. Jorge Costa, um maestro da 'Iiipi. Agora tem uma com o Carlinhos RCE: Você não pára. Lira. (canta) "Feio... não é boni- Guarnieri: O pior é que eu fiz o to" ... Com ele nós fizemos outras filme com a aorta dilatada. Fiquei coisas também, que não são liga- sabendo quando já estava gravan- das à peça de teatro, como por do. Mas era pouco, eram só quatro exemplo a música O Bloco que seqüências, é uma participação foi para um Festival. Depois, fiz mesmo. várias músicas com o , Também fui convidado pelo para a peça Arena conta Zumbi Barretão (Bruno Barreto), que vol- - Upa Neguinho, Upa! é uma tou a toda, para filmar O que é is- delas. Trabalhei em outras, com o so companheiros. Eu quero fazer Caetano, para Arena conta o Toledo. Tiradentes. Com o Edu Lobo Outro filme cujos diálogos eu fiz também fiz um show. Depois fiz foi A hora e a vez de Augusto as músicas da peça Marta Saré. Matraga, com o Roberto Santos. Aí veio a fase , as músi- Fiz do João Batista a Próxima cas para as peças: Castro Alves Vítima, exatamente o mesmo pede passagem, Botequim e Um nome da novela. Com o Roberto, grito parado no ar. Depois fiz fiz, ainda, um louquérrimo, O com o Sérgio Ricardo, aliás caçador. Este ele também fez com Ponto de partida, que deu nome o pessoal da Universidade. à peça, são letra e música do Sérgio Ricardo. É muito bonita! RCE: Você também fez músicas? Depois nós temos as outras músi- Guarnieri: Por causa do Teatro. cas da peça.

8. O que é isso companheiro livro de Femando Gabeira. Toledo (Joaquim Câmara Ferreira), joma- lista, revolucionário brasileiro. Foi militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e, depois, da ALN (Aliança de Libertação Nacional). Preso, foi morto na tortura. Comunicação e Educação, São Paulo, (5):62 a 77,.jan./abr. 1996 77

RCE: Você precisa reunir todo eventualmente possa perturbar esse trabalho. este processo. Fico pensando: será Guarnieri: Eu fiz um show aqui que neste país existe realmente a em São Paulo, dois dias, e no Rio liberdade de expressão? Ou esta de Janeiro, foram 15 dias. liberdade acontece porque se tem certeza de que a expressão pode RCE: Quando foi isso? ser livre, já que não há expressão Guarnieri: Foi o ano passado para ser expressa. Chegamos a (1994), em um projeto da Solange esse ponto! O que quer a censura? Kifouri, chama-se O poeta mos- A sua sublimação. A grande glória tra a sua cara. É o lado do letris- do censor era conseguir isso. E ta, porque muitas vezes o público preocupado com essas coisas eu não conhece o letrista. Então o po- fico pensando: se eu pego um eta leva os músicos e mostra seu computador, chamo as pessoas, trabalho. É uma espécie de come- bato um papo, entro em computa- moração. dores etc ..., é porque eles estão muito seguros de que as coisas es- RCE: Você acha que este trabalho tão sob controle. Os subjugados e todo, principalmente dos anos 60 e oprimidos estão quietos no seu 70, deixou herdeiros para estes canto, não têm acesso a computa- anos 90? dores. Quem tem, está do lado de- Guarnieri: Vamos ver, não sei, me les, não tem problema nenhum. parecia que sim. Pelas dificuldades Mas, talvez não seja assim. Talvez destes anos todos. Fora estes pro- eles estejam equivocados. Agora, blemas da ditadura, da censura, obstáculos eles colocam e vão teve um esvaziamento sério na colocar: pedras, pregos no cami- década de 80. Muita gente partiu nhos, evitando que o artista possa para outro tipo de interesse. Acho se preocupar. No entanto, como que a publicidade pegou muita aconteceu no decorrer da história, gente boa. mesmo o artista pintando Madonas, RCE: Você acha que nós ainda episódios da Via Sacra, santos e an- temos espaço para um teatro com jos, ele colocava o que estava ven- temática social ou isso é saudo- do. O artista não deixa de reagir ao sismo? mundo. É difícil a alienação total. Gaurnieri: Acho que se procura Ou então ele escolhe outro carni- impor essa impossibilidade. Acho nho ... Não falo de um complô, não que se procura usar a contraposi- se faz um manual disso. São inte- ção modemo-antigo e em nome resses do próprio Sistema que se disso tem muita sacanagem. impõem, daí vem a pressão ideoló- Monta-se esse discurso para alijar gica, mas isso é um assunto para se qualquer tipo de preocupação que discutir em outra hora.