A ALIMENTAÇÃO COMO ELEMENTO DA CULTURA ITALIANA EM ARVOREZINHA/RS1 Samara Camilotto2 Dalila Rosa Hallal3

Resumo: Este trabalho pretende explorar a dimensão da alimentação enquanto aspecto característico da “cultura italiana” em Arvorezinha/RS, a partir do ponto de vista da comunidade local. A alimentação possui diversos significados, desde o contexto cultural e social até as vivências individuais, o que permite conhecer e reconhecer a cultura de um determinado grupo. O consumo de doce ou salgado é condicionado pelo momento e pelas condições presentes em que desde a comida, a bebida, a fartura ou a restrição alimentar são carregadas de significados culturalmente determinados. A subjetividade existente nas práticas alimentares, desde as maneiras relacionadas à preparação do alimento até o consumo de fato, vincula identidade cultural, condição social, religião, memória familiar e época. Dessa forma, a alimentação apresenta uma gama de informações sobre o sujeito e o grupo social no qual se insere. A natureza da pesquisa é do tipo qualitativo. A técnica de coleta utilizada para obtenção das informações foi a entrevista, realizada com nove moradores locais. A partir dos resultados, percebe-se que a polenta é a principal comida típica italiana em Arvorezinha. A alimentação é percebida pela comunidade local como um aspecto muito importante e preservada na “cultura italiana” no município, sendo um elo entre as gerações de imigrantes e de descendentes.

Palavras-chave: Cultura italiana, Alimentação, Arvorezinha/RS.

INTRODUÇÃO

A imigração italiana iniciou no no ano de 1875, nas colônias de Fundos de Nova Palmira, Conde d’Eu e Dona Isabel (atuais municípios de , Garibaldi e Bento Gonçalves). Porém, foi somente no início dos anos 1900 que os primeiros imigrantes italianos chegaram à região onde hoje é o município de Arvorezinha. Vindos de outras regiões do Estado, esses imigrantes procuravam lugares mais favoráveis para morar e trabalhar na agricultura (LOPES, 2012). Arvorezinha fica localizada no nordeste do Rio Grande do Sul, fazendo parte da região do Vale do (LOPES, 2012). Segundo censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2015) no ano de 2010, o município possuía pouco mais de

1 GT 01: Gastronomia e Turismo 2 Mestranda – Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected]. 3 Docente – Universidade Federal de . E-mail: [email protected].

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270 km² e cerca de 10 mil habitantes, sendo que, de acordo com o site da Prefeitura Municipal, a formação étnica da população é predominantemente italiana (PREFEITURA MUNICIPAL DE ARVOREZINHA, 2016). Consideramos que a alimentação possui diversos significados, desde o contexto cultural e social até as vivências individuais, o que nos permite conhecer e reconhecer a cultura de um determinado grupo. Nessa perspectiva, este trabalho busca explorar a dimensão da alimentação enquanto aspecto característico da “cultura italiana4” em Arvorezinha/RS, a partir do ponto de vista da comunidade local. Partindo de uma pesquisa mais ampla para um trabalho de conclusão de curso na Graduação em Turismo, em abril de 2015 realizamos entrevistas com nove moradores locais de Arvorezinha em que foram abordadas, dentre outras, suas percepções sobre a alimentação o que, dessa forma, permitiu uma análise sobre esse aspecto. O Quadro 01 apresenta o perfil dos entrevistados.

Quadro 01 – Perfil dos moradores entrevistados Morador Sexo Idade Tempo de residência em Arvorezinha Morador 01 Feminino 76 anos Sempre residiu em Arvorezinha, na zona urbana e no mesmo endereço. Morador 02 Feminino 48 anos Sempre residiu em Arvorezinha, sendo que até os 23 anos foi no interior e após isso foi morar na cidade. Morador 03 Masculino 87 anos Sempre residiu na zona urbana. Morador 04 Feminino 87 anos Residiu sempre na zona rural do município. Morador 05 Masculino 44 anos Até os 30 anos residiu na zona rural do município. Após isso foi morar na cidade. Morador 06 Feminino 63 anos Natural de outro município, aos três anos passou a residir em Arvorezinha. Morador 07 Feminino 47 anos Quando criança morou no interior de Arvorezinha. Aos 10 anos passou a morar na zona urbana. Durante certo espaço de tempo foi morar em outros municípios. Aos 14 anos voltou para Arvorezinha, residindo até hoje na zona urbana. Morador 08 Feminino 59 anos Natural do município, moradora da zona urbana, residiu, na juventude, cerca de sete anos em

4 “Cultura italiana” está entre aspas, pois compreendemos como uma cultura que desencadeou-se a partir do contato entre os imigrantes italianos e o Brasil e hoje em dia, conforme Pozenato (2000), configura-se como uma cultura de raízes italianas e, dessa maneira, uma cultura brasileira diferente.

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outros municípios e após regressou à Arvorezinha. Morador 09 Feminino 73 anos Sempre residiu no município, inicialmente na zona rural e aos 44 anos passou a residir na cidade. Fonte: Elaborado pelas autoras

Sobre as entrevistas, essas seguiram um roteiro semiestruturado. Esse tipo de entrevista, conforme Triviños (1987, p. 146), “ao mesmo tempo que valoriza a presença do investigador, oferece todas as perspectivas possíveis para que o informante alcance a liberdade e a espontaneidade necessárias, enriquecendo a investigação”. Por tratar-se de uma pesquisa qualitativa não houve um número delimitado a priori de entrevistas a serem realizadas. A partir do momento que as informações começaram a se repetir, decidimos que já se havia chegado a um ponto de saturação. Duarte (2002, p. 143) explica que:

Numa metodologia de base qualitativa o número de sujeitos que virão a compor o quadro das entrevistas dificilmente pode ser determinado a priori [...]. Enquanto estiverem aparecendo “dados” originais ou pistas que possam indicar novas perspectivas à investigação em curso as entrevistas precisam continuar sendo feitas. [...] Quando já é possível identificar padrões simbólicos, práticas, sistemas classificatórios, categorias de análise da realidade e visões de mundo do universo em questão, e as recorrências atingem o que se convencionou chamar de “ponto de saturação”, dá-se por finalizado o trabalho de campo [...] [Grifos da autora].

Estruturamos o presente trabalho em quatro capítulos. Na sequência desse, introdutório, faremos uma abordagem sobre a alimentação do contexto da colonização italiana no Rio Grande do Sul após o processo de migração nas últimas décadas do século XIX. Após, analisaremos as entrevistas com os moradores de Arvorezinha, especificamente os relatos que abordam a alimentação no âmbito da “cultura italiana” e, por fim, as considerações finais.

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A ALIMENTAÇÃO NO CONTEXTO DA COLONIZAÇÃO ITALIANA

Quando no Rio Grande do Sul, os imigrantes italianos tiveram, nas construções de suas residências, cuidado especial com a parte destinada ao preparo e armazenamento dos alimentos. A casa geralmente era dividida em subterrâneo, térreo e sótão. O subterrâneo, mais conhecido como porão, era feito de pedras. Como as pedras forneciam certo isolamento, fazendo as temperaturas ficarem mais baixas, utilizava-se o porão para guardar bebidas (vinho, cachaça, graspa, vinagre, sucos, etc.) e conservar alimentos (salame, costelinhas de porco, leite, queijo, nata, ovos, mel, etc.) (BONETTI et al., 2007). O sótão, piso superior e abaixo do telhado, era o local mais quente da casa, por isso lá se guardavam os alimentos que deveriam ser conservados secos (BONETTI et al., 2007). Milano (2010, p. 67) destaca que, inicialmente, nas construções de madeira, a cozinha era construída separadamente da casa pelo fato de que, para cozinhar, era utilizado um instrumento com alto risco de propagar chamas, chamado focolaro:

[...] que consistia em uma caixa retangular revestida de madeira. Na parte interna era colocada terra batida com leve inclinação para o centro onde era aceso o fogo. Para o preparo do alimento, a panela era pendurada por uma corrente, a qual era regulada em altura de acordo com o tamanho da labareda. [Grifo da autora].

Sendo assim, havia risco iminente de incêndio. A cozinha passou a ser integrada ao restante da casa somente após o surgimento do fogão de chapa5 (MILANO, 2010). Sobre o cultivo de alimentos, De Boni e Costa (1984, p. 86) afirmam que os imigrantes italianos não foram os responsáveis por inserir o trigo e o milho no Rio Grande do Sul, afinal, esses alimentos já eram cultivados “desde os tempos das reduções jesuíticas, mas não em tais escalas”. O milho era o alimento base das famílias italianas. Com ele poderia ser feita a polenta, alimentar os animais e da sua palha poderiam ser feitos cigarros e colchões (ZANETTI, 2010).

5 Fogão de chapa: Construção de uma canaleta de alvenaria de tijolos fechada na parte superior por uma chapa de ferro fundido provida de argolas. Como o fogo desembocava numa chaminé, era considerado seguro (MILANO, 2010, p. 67-68).

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A polenta era considerada uma comida forte. Conforme Woortmann (1985, 2004, s/p apud ZANETTI, 2010, p. 60), “o consumo de comida forte está atrelado à resistência e à força para o trabalho. Além disso, entre os indivíduos de um grupo social, a comida forte pode relacionar-se à sensação de sustança”. E é exatamente isso que uma entrevistada por Zanetti, no município de Ilópolis, afirma: “A polenta era sagrada [...] Polenta se comia todos os dias [...] era o prato do dia porque ela tinha bastante sustância (sic). E outra coisa, a gente produzia o milho” (ZANETTI, 2010, p. 59). A polenta, inclusive, virou música. Os colonos criaram a música “La Bella Polenta” que, segundo Gomes e Laroque (2010, p. 38), “relata, de certa forma, todo o processo, desde o plantio do milho até a preparação do prato”. A uva, que também já era cultivada no Rio Grande do Sul antes da chegada dos imigrantes italianos, tomou proporções maiores após a vinda desses, por causa da fabricação do vinho. Até na construção das casas o vinho tinha lugar importante nos “porões de pedra [...] que serviam como cantina/adega para o armazenamento do vinho” (MICHELIN, 2008, p. 41). Gomes e Laroque (2010) discutem sobre a polenta e o vinho. Para os autores, esses são os principais traços da alimentação dos imigrantes, afinal, quando se fala em polenta o que vem a cabeça é a figura do italiano. Eles afirmam que “a polenta lembra quase que de imediato o italiano e é, para ele, um bem que lhe pertence, tanto quanto a uva e o vinho” (GOMES; LAROQUE, 2010, p. 38). Quando aborda, em sua dissertação, o consumo de carne pelos imigrantes italianos, Zanetti explica que:

Antigamente a carne era um alimento escasso nas refeições, principalmente nas famílias menos abastadas. As carnes mais consumidas, outrora, eram de galinha e de porco, além da carne em forma de embutidos, como salame e copa. A carne de gado [...] essa sim era rara, geralmente era consumida em festas comunitárias ou em casamentos. As principais causas [...] apontados: a difícil conservação desse alimento e o direcionamento desses animais aos trabalhos rurais, a vaca possibilitava o leite e consequentemente derivados, assim também como esses animais eram de suma importância no cultivo, arando a terra, ajudando no plantio, além do transporte, em suma o boi era um animal de trabalho. (ZANETTI, 2010, p. 67).

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Havia, também, uma grande variedade de massas. Molon (2001, s/p apud GOMES; LAROQUE 2010, p. 38) mostra que eram elas “o tortéi, a taiadella, o agnolini6, o bigoli e o espaguete”. Ao abordar doces, os mais apreciados eram “a cuca, os biscoitos e os grostolis7, além do sagu”. O dia era mais ou menos assim:

[...] o café da manhã era composto pela polenta brustolada8, queijo, salame, nata, melado9, chimias10, leite com café preto ou, na falta desse, tomavam leite com chá de erva mate. Durante a manhã, costumavam lanchar na roça, levavam consigo a comida ou então algum filho ou filha, que ficava em casa, levava o lanche para a família. No lanche havia, em geral, pão, salame e queijo, ou então, na falta de pão, polenta. E para beber, vinho ou água. Ao retornar para casa, ao meio dia, geralmente no almoço estavam presentes alguns dos seguintes itens: polenta, massas, arroz, aipim, batata, batata doce, fortaia11, saladas, entre a mais consumida, radicci e esporadicamente carne de frango ou suíno com molho. Para beber, tinham o vinho, e as crianças bebiam água pura ou, em alguns casos, água misturada com um pouquinho de vinho [...]. À tarde, geralmente, o lanche na roça se repetia. À noite, em casa, a refeição compreendia a polenta – que era preparada para consumir à noite e em quantidade suficiente para que no dia seguinte fosse “sapecada” para o café da manhã –, além de queijo, salame, fortaia, sopa de feijão com arroz ou massa (a minestra12). Para beber, vinho para os adultos e leite para as crianças. (ZANETTI, 2010, p. 54) [Grifo da autora].

Além de a comida ser forte, ela deveria ser em grande quantidade. Santos e Zanini (2008) destacam que a comida é um diferencial étnico para os italianos no Rio Grande do Sul por ser farta e forte e deve ser servida à mesa simbolizando abundância e trabalho produtivo. Na atualidade, Contreras Hernández e Gracia Arnaiz (2004, s/p apud ZANETTI, 2010, p. 14) afirmam que conhecer os alimentos, desde o seu modo de obtenção até a maneira de prepará-lo possibilita “uma gama de informações importantes sobre a organização de um

6 Agnolini: Retângulos de massa recheada com carne (SANTOS; ZANINI, 2008, p. 268). Também conhecido como capeletti, geralmente é consumido com sopa. 7 Grostoli: Também conhecido como Cueca Virada. 8 Polenta Brustolada: Polenta, geralmente feita no dia anterior, cortada em fatias e assada na chapa do fogão à lenha (ZANETTI, 2010, p. 54). 9 Melado: Líquido espesso, obtido a partir da fervura do caldo da cana-de-açúcar (ZANETTI, 2010, p. 54). 10 Chimia: Espécie de geleia mais grossa, um doce de forma pastosa, produzido a partir de cascas, frutos ou outras combinações (ZANETTI, 2010, p. 54). 11 Fortaia: Omelete feita com bastante queijo e salame (SANTOS; ZANINI, 2008, p. 278). 12 Minestra: Sopa de feijão com arroz ou massa, em que pode ser adicionada farinha de trigo, de modo a deixá-la mais encorpada, assim como também podem ser misturadas sobras da comida do meio dia (ZANETTI, 2010, p. 54).

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grupo social”. Afinal, a alimentação é marca da “[...] história, geografia, clima, organização social e crenças religiosas” de um grupo (FRANCO, 2010, p 25). O gosto por determinados alimentos é considerado, para Franco (2010, p. 25), como “moldado culturalmente e socialmente controlado” e, por isso, mesmo medíocres, alguns prato são preferidos pela população de uma determinada região, ou seja, é pela sua incorporação em determinado contexto cultural e social que esses se transformam em hábito de consumo de uma comunidade. Apesar disso, é preciso compreender que a alimentação dos imigrantes italianos e seus descendentes no Brasil não era e não é exatamente da mesma forma que na Itália. Os primeiros imigrantes precisaram reelaborar pratos e redimensionar técnicas, sabores e aromas (ZANINI, 2007). Afinal, estavam em condições climáticas e geográficas diferentes. Dessa forma, Zanini (2007, p. 168) salienta que:

O que hoje é localmente e regionalmente reconhecido como comida italiana em muitas circunstâncias não são pratos conhecidos na Itália. Enfim, trata-se de reelaborações que, ao longo de mais de um século de convívio, foram introduzidas e reapropriadas como pertencentes ao grupo. Seria o caso do galeto, da polenta frita ou das massas com carnes.

Entretanto, ao abordar a relação entre alimentação e identidade, Franco (2010, p. 25) afirma que “os hábitos alimentares têm raízes profundas na identidade social dos indivíduos. São, por isso, os hábitos mais persistentes no processo de aculturação dos imigrantes”. Foi o que os imigrantes fizeram, adaptaram-se ao novo clima e à nova terra, porém, na medida do possível mantiveram alguns dos elementos que os caracterizavam.

ALIMENTAÇÃO “ITALIANA” EM ARVOREZINHA

Ao relatarem suas trajetórias de vida, os moradores expuseram marcas sobre a alimentação. Nas lembranças sobre o passado, Tedesco e Rossetto (2007) explicam que o saudosismo e a nostalgia representam atos e fatos que já não estão mais presentes nas nossas vidas, mas que em algum momento foram assim e, por isso, alimentam nossa memória. Nas entrevistas, as rememorações mostraram o cotidiano através dos hábitos e costumes, por vezes vinculados à alimentação da comunidade arvorezinhense.

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Consideramos que a memória está relacionada às construções sociais e culturais dos indivíduos e, portanto, ligada a uma coletividade. Mesmo que individual, o relato dos moradores em Arvorezinha remeteu a vivências similares que os aproximam e os auxiliam na constituição de grupo. Como o município de Arvorezinha, nos seus primeiros anos, era essencialmente agrícola, com pequeno comércio e indústria, os moradores plantavam o seu próprio alimento e pouco compravam nos mercados. Um dos entrevistados ressaltou que, quando criança, seus pais compravam no mercado apenas sal, açúcar e café. Com o tempo, sua família deixou de plantar trigo e arroz, então passaram a comprá-los, sendo o trigo em forma de farinha. Como morava no interior e sua família era agricultora, as compras limitavam-se ao período da safra:

Ali por mês de março o pai comprava. Quase sempre em março que era a época que lidava com fumo e daí tinha dinheiro do fumo assim, daí fazia compras quase que pro ano inteiro. Não é que nem agora que todo o mês, todo o dia se compra, era uma vez, duas por ano que se comprava. (Morador 02).

Outro morador afirmou que sua família teve uma vida muito difícil, mas, felizmente, saudável “porque tudo o que a gente plantava e colhia a gente utilizava pro nosso sustento” (Morador 09). Percebemos que o principal objetivo na escolha dos cultivos era garantir o consumo familiar. Santos e Zanini (2008) discorrem que essa escolha era muito valorizada pelos imigrantes e tornava-se motivo de orgulho entre os mesmos. Verificamos, assim, que esse costume foi sendo repassado para os descendentes e esteve bastante presente no município, ao menos enquanto a economia de Arvorezinha foi, basicamente, agrícola. Em relação ao consumo de carne, um entrevistado explicou que, como antigamente não havia energia elétrica, comprava-se por quilo no açougue ou matava-se um animal da propriedade. Assim como ressalta o estudo de Zanetti (2010), as carnes mais consumidas eram de porco e galinha: “Nós tinha bastante comida, tinha carne de porco, tinha galinha [...]” (Morador 01). “Naquela época a gente tinha carne de frango que a gente... Final de semana quando a falecida mãe carneava, mas depois durante a semana mais era queijo,

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salame, essas coisas ali, ovos” (Morador 09). Um dos moradores explicou que com a carne de gado era feito o charque. Já outro, afirmou que essa não era uma carne muito consumida:

A carne se criava, que nem porco tu matava um porco daí tu guardava a carne pra ter pra um tempo. [...] E carne de gado não se matava muita criação eu acho uma vez e carne de galinha, quando queriam, matava, se criava bastante galinha e se matava galinha pra comer. (Morador 02).

Zanetti (2010) aponta que as principais causas para o pouco consumo de gado entre os imigrantes italianos eram o direcionamento desses animais aos trabalhos rurais e a difícil conservação desse tipo de carne. Percebemos que fazer charque tornou-se, em Arvorezinha, uma das maneiras de conservar o alimento. Ademais, conforme Zanetti (2010) explica, a vaca possibilitava o leite e, dessa maneira, seus derivados. Nos relatos, podemos identificar que o radicci era a principal salada na alimentação dos descendentes de italianos em Arvorezinha, pois foi citado por um terço dos entrevistados (Moradores 05, 06 e 09). Os moradores falaram também sobre as massas, principalmente em forma de sopas: “Capeletti, sopa de capeletti, muitos dizem agnolini, que agnolini é italiano assim” (Morador 02). Um dos entrevistados explicou que hoje em dia nos almoços em família é servido churrasco, mas antigamente eram “os tortéi, os nhoque, as sopas” (Morador 06). Outros moradores relataram que a principal sopa consumida era a de massa com feijão: “De noite às vez era sopa de feijão, assim né... com batatinha, pra fazer mais fácil” (Morador 04). “A gente fazia, a falecida mãe fazia aquelas taiadeli [...] Espichava a massa e cortava bem fininha. O feijão também a gente comia, mas se fazia muita sopa de feijão com essa massa” (Morador 09). Os doces lembrados pelos entrevistados foram o grostoli (Morador 02), as rapaduras (Morador 02), a cuca (Morador 06) as tortas (Morador 08), as bolachas caseiras (Morador 08) e a batata-doce (Morador 08). A alimentação também era importante nos momentos de partilha, em que demonstrava a solidariedade entre vizinhos, conhecidos e amigos. Um dos moradores contou que antigamente quando matavam algum animal, as pessoas que viviam no interior do município, tinham o costume de dar um pedaço da carne para o vizinho. Brincadeiras, inclusive, eram feitas:

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Essas atitudes deles, de levar essa amizade com os vizinhos, levar um pedacinho de carne, as brincadeiras... muitos mandavam o rabo, achavam que levavam um pedaço de carne, um pedaço de costela e de repente o rabo do porco tava lá, todo camuflado. Aí depois vinha uma... daí eram crianças que levavam, daí ia um outro atrás, uns quinze minutos depois, pra levar o pedaço de costela lá pro vizinho (Morador 05).

Outro momento onde a alimentação e sociabilidade estavam relacionadas era no filó – encontro noturno entre vizinhos, amigos e/ou familiares para conversar, beber e comer (GOMES; LAROQUE, 2010). O filó, segundo os entrevistados, era uma atividade realizada mais no interior que na cidade. Um dos moradores explicou que apesar de morar na cidade tinha muito contato com o interior, pois seu pai, caminhoneiro, visitava os colonos por causa dos fretes. Por isso, acompanhava-o e ia fazer filó. Explicou ainda que: “[...] por isso que eu valorizo muito isso, o filó, aí tu comia pinhão, tu comia batata-doce, tomava mate, chimarrão, então era bem legal” (Morador 08). Com o passar do tempo, a alimentação foi se adaptando às mudanças nas tecnologias de processo e armazenagem. Além do capeletti, o vinho e a polenta com seus complementos ainda aparecem no cotidiano dos entrevistados, cada qual à sua maneira. Sobre o vinho, um entrevistado destacou que “é uma bebida mais de italiano” (Morador 02), porém não possui o hábito de tomá-lo. Apesar de não consumi-lo, explicou que, no município “o vinho geralmente é fabricado, a maioria tem pareral, quem não tem, compra uva e faz. Porque o vinho, o vinho de colônia mesmo tem que ser o feito né, que daí não botam mistura nenhuma, puro vinho” (Morador 02). Outro morador afirmou que sempre tem vinho em casa “porque tem os guri que traz, mas não se toma por causa da diabete, colesterol” (Morador 04). A polenta e o vinho são considerados por Gomes e Laroque (2010) como os principais traços dos imigrantes italianos. Entretanto, a uva e o vinho apareceram com pouca frequência nas entrevistas com os arvorezinhenses. Apesar disso, foi dito que há produção artesanal da bebida no município. Uma possível explicação seria a de que há sim o consumo de vinho em Arvorezinha, porém não é explicitado devido a influência da religião católica na vida dos moradores, principalmente em relação à moralidade, ao certo e errado.

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Já a polenta foi abordada pela grande maioria dos entrevistados. Eles evidenciaram que a polenta sempre teve uma grande importância na alimentação. Um dos moradores explicou que ela é característica da “cultura italiana”, pois “[...] muita gente que não come, que não gostam de polenta. E daí eles já dizem: ‘Polenta é de italiano’” (Morador 02). Em Arvorezinha, predominam duas formas de consumir a comida. A primeira, cozida na água, é a polenta recém-feita. A segunda, brustolada, é feita com as sobras da polenta cozida, sendo que ela é sapecada em uma chapa quente:

Polenta uma vez por semana, geralmente, sempre se faz. Polenta a gente faz, que daí se faz ela, se come pena feita, e daí se ela sobra daí é feita... muitos dizem sapecar ela, se bota na chapa, aí se come, dá pra aproveitar, fazer... comer pena feita e comer sapecada. Isso aí é coisa que sempre, a gente se criou comendo e se come até hoje. (Morador 02).

Ao relembrar a polenta, os moradores expuseram, também, comidas que servem de acompanhamento para a mesma: “A polenta com a fortaia, com o radicci, com algumas coisas que são do Brasil e foram incorporadas, mas dando um toque do italiano sabe, juntando e misturando os biscoitos” (Morador 06). “Quando você faz um tipo de comida, o que mais caracteriza os italianos, tipo, se você fizer uma polenta, você vai fazer uma fortaia pra combinar com a polenta, isso aí é uma coisa que a gente aprendeu com as nossas mães” (Morador 07). Em alguns relatos, os moradores consideram a polenta como uma comida “pesada” e por isso não a consomem em grande quantidade, atualmente: “Antigamente se fazia até duas vez por dia, porque a família era grande. Agora faço a polenta dalvez uma vez por mês. Porque se eu faço polenta eu gosto muito, daí eu como muita polenta... Daí faço menos pra comer menos” (Morador 04). Inclusive, um dos entrevistados afirmou que se consumisse da mesma maneira que antigamente, certamente ficaria doente e iria para o hospital:

Oh, de meio-dia era polenta brustolada, sapecada na chapa, com tudo o que tinha direito. Era toresmo, era carne de porco, era de galinha, o que... era, era tudo. Era recheios de abóbrinha, pomba recheada, meu Deus! Um horor de comida no almoço! E à noite, polenta! Polenta mas daí aquela feita no tachinho né, caliera13, que nem diz os italian, na caliera, e daí era mole, daí cortavam com a linha, passavam embaixo e... pesada que um

13 Caliera: Panela com fundo arredondado para fazer polenta.

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horor né! Se eu comesse uma fatia hoje eu vou pro hospital. [...] Polenta fresca, ovo frito, pensa! (Morador 05).

Essas narrativas podem relacionar-se com a ideia de comida forte e sustança apresentada por Zanetti (2010). Porém, questiona-se se o fato de ser “pesada” refere-se somente à polenta ou inclui os acompanhamentos, afinal, citou-se comidas como fortaia, salame (frito ou não), ovo frito e queijo que são bastante calóricos e, dessa forma, “pesados”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através das análises podemos considerar a polenta é a principal comida na gastronomia “típica italiana” em Arvorezinha. Ela demonstra ruralidade e passado, pois foi a comida base das primeiras famílias imigrantes. Dessa forma, transforma-se em forte união e elo entre as gerações de imigrantes e de descendentes. Percebemos que, no passar do tempo, os hábitos gastronômicos foram mudando. Nos relatos, frases e expressões como “naquela época”, “antigamente/agora”, “a gente se criou comendo e se come até hoje” reafirmam uma história, legitimam um passado, mas demonstram as similaridades e as diferenças que as mudanças de espaço e tempo proporcionaram: novas vivências, novas apropriações, novos cotidianos – a tradição no almoço de domingo antigamente era as massas, agora é o churrasco. Mesmo com essas mudanças, a comida comprova a importância da família, do estar juntos compartilhando as refeições. A valorização da produção do próprio alimento e a alimentação farta demonstram o controle sobre a procedência do que era consumido e o orgulho da subsistência. A preocupação com a saúde é um indício de nostalgia: “não se toma por causa da diabete, colesterol”, “se eu comesse uma fatia hoje eu vou pro hospital”. Mesmo que exista um impedimento para o consumo, as lembranças dos entrevistados que fizeram esses relatos demonstram que eles percebem e incluem o vinho e a polenta na “gastronomia italiana”. Dessa forma, acreditamos que podemos caracterizar a polenta, o vinho, as massas, os doces, as saladas (radicci), as carnes de porco e galinha, os queijos, ovos e salames (que, juntos e misturados, formam a fortaia) e as sopas de capeletti e de feijão como expressão da “cultura italiana” dessa comunidade. Independente de ainda serem consumidos – ou não –

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esses alimentos e bebidas fazem parte da história dos moradores e estão registrados na sua memória, conferindo-lhes uma identidade cultural “italiana”.

REFERÊNCIAS

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