“RESPONSABILIDADE SOCIAL” EM TEMPOS DE CRISE: NOVO OFICIALISMO DO JORNAL NACIONAL? Venício A. de Lima (UnB) e Liziane Guazina (UFRGS)

Seminário Temático 09 “Democracia, Comunicação Política e Eleições”, XXVIII Encontro Anual da ANPOCS, 26-30/10/ 2004, Caxambu, M.G. 2

“RESPONSABILIDADE SOCIAL” EM TEMPOS DE CRISE: NOVO OFICIALISMO DO JORNAL NACIONAL?1 Venício A. de Lima (UnB) e Liziane Guazina (UFRGS) [email protected] [email protected]

"O JN é produto da Central Globo de Jornalismo que é uma divisão, um núcleo de trabalho, de produção, da Rede Globo de Televisão, que é uma empresa com grande percepção de sua responsabilidade social. Hoje (...) enxerga-se a Rede Globo de Televisão como uma empresa verdadeiramente engajada em produtos que contenham utilidade social e isso flui naturalmente porque este conceito de responsabilidade está entranhado nos ossos dos profissionais da Globo, sobretudo na área do Jornalismo, que é uma área de utilidade pública por excelência". William Bonner (15/10/2003)

Principal telejornal brasileiro, com 43 pontos no Ibope (entre janeiro e agosto de 2004), 31 milhões de espectadores por minuto, 68% dos aparelhos de televisão ligados, faturamento de 65 milhões de reais por mês e 780 milhões por ano em veiculação de anúncios2, o Jornal Nacional da Rede Globo (JN) também detém a marca de telejornal mais estudado por críticos de televisão e pesquisadores acadêmicos. E não é apenas por seus números impressionantes, mas por seu papel de protagonista histórico da vida política brasileira, em 35 anos de existência. É consenso na literatura disponível que o JN tem demonstrado, desde sua estréia em 1969, uma tendência de apresentação do ponto de vista oficial (mais explicitamente do governo federal) no conjunto de sua cobertura, a tal ponto que seu jornalismo chegou a ser apelidado de ‘jornalismo chapa-branca’ nos anos 70/80. Lembremos da polêmica omissão de cobertura dos comícios das “Diretas Já” em e São Paulo (Lima, 2001, cap. 6; Bucci e Kehl, 2004, cap. 12), ainda que tal tema seja objeto de uma tentativa de revisão histórica, por parte da própria emissora, como mostra o livro “Jornal Nacional - A Notícia faz História”, recentemente lançado.

1 Paper apresentado no Seminário Temático 09 “Democracia, Comunicação Política e Eleições” no XXVIII Encontro Anual da ANPOCS, 26-30 de outubro de 2004, Caxambu, M.G.

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JN, política e eleições Vários pesquisadores têm se dedicado a estudar o telejornal da Globo ao longo da história política brasileira, do período de autoritarismo, ao impeachment de Collor, da eleição de Fernando Henrique Cardoso, à era do Real, à reeleição, etc. Do pioneiro Muito Além do Jardim Botânico (Lins da Silva, 1985), passando por Fabrício (1997); Fausto Neto (1997); Porto (1997); Figueiredo (1997), Moraes (2000), Cavalcante e Teixeira (2000), dentre outros. Na campanha eleitoral de 1994, Albuquerque investigou se a cobertura do JN havia privilegiado a candidatura de Fernando Henrique Cardoso com um enquadramento associado ao ‘consenso’, enquanto a de Lula estaria associada ao ‘dissenso’. A cobertura política do JN nas eleições de 1998 também foi analisada por Lima e Guazina (1998, 2001), Colling (2000) e Porto (2001). Mais recentemente, Rubim (2004), Porto et alli (2004), Colling (2004) e Miguel (2004) analisaram as mudanças na cobertura das eleições presidenciais de 2002, vis-a-vis os dados relativos às eleições de 1998, e levantaram algumas prováveis razões que teriam levado o JN a conceder maior equilíbrio nos espaços dedicados aos candidatos e atenção ao processo eleitoral em si. Ainda durante a campanha presidencial de 2002, inúmeras matérias e artigos publicados na imprensa chamaram a atenção para uma possível mudança neste padrão oficialista de cobertura da política no Jornal Nacional (JN), dado o destaque que o tema das eleições ganhou no conjunto de edições do telejornal, por meio de amplas reportagens, concessão de tempos semelhantes aos candidatos3, pelo uso do recurso até então inédito de uma série de entrevistas ao vivo com os principais presidenciáveis e do tratamento, geralmente equilibrado, recebido pelo candidato de oposição, Luiz Inácio Lula da Silva, notadamente no segundo turno da campanha. Lula teria recebido um ‘enquadramento’4 positivo, ao

2 Veja, edição1869, 1º/09/04, p.100-108. 3 Segundo dados de Porto et alli (2004), Lula recebeu, durante a cobertura do primeiro turno, 25,3% do tempo total dedicado aos candidatos (seguido por Ciro Gomes, com 24,8%; Garotinho, com 24,4% e Serra, com 23%). 4 A noção de enquadramento envolve basicamente a seleção e a saliência, sendo que esta última consiste em tornar uma informação mais “noticiável, significativa ou memorável para a audiência”.

4 contrário das eleições anteriores5, em especial, na cobertura realizada quatro anos antes, durante as eleições de 1998. Vale lembrar que, em 1998, ocorreu uma diminuição da cobertura explícita da política e uma opção deliberada pela banalização do noticiário6, dentro da tendência contemporânea de jornalismo de entretenimento (The Economist, n. 8075/1998; Hallin, 1996a e 1996b; Bourdieu, 1997)7. Porém, mesmo a reduzida cobertura política do JN daquele momento caracterizou-se como enquadramento oficialista, que privilegiou o ponto de vista do governo federal, uma vez que não foi necessária a defesa explícita do governo Fernando Henrique para que ocorresse um alinhamento do telejornal da Globo com a candidatura oficial, bastando a omissão permanente, em plena campanha eleitoral, de instituições, acontecimentos e atores políticos relevantes (Lima e Guazina, 2001; Guazina, 2001).

A cobertura das eleições presidenciais de 2002 Com tais características em retrospecto, a cobertura realizada pelo JN durante a campanha presidencial de 2002 tornou-se ainda mais intrigante para os estudiosos do telejornal. Para Xico Sá, existem evidências de que a cobertura realmente se opôs ao padrão de jornalismo chapa branca. Os programas jornalísticos da emissora da família Marinho, como Globo Repórter, Jornal da

Desta forma, “enquadrar é selecionar certos aspectos da realidade percebida e torná-los mais salientes no texto da comunicação de tal forma a promover a definição particular de um problema, de uma interpretação causal, de uma avaliação moral, e/ou a recomendação de tratamento para o tema descrito. Enquadramentos, tipicamente, diagnosticam, avaliam e prescrevem". Além disso, “o enquadramento determina se a maioria das pessoas percebe e como elas compreendem e lembram de um problema, da mesma forma que determina a maneira que avaliam e escolhem a forma de agir sobre ele”. (Entman, 1993, p. 52-54, passim). 5 Ainda de acordo com Porto et alli (2004), os quatro principais candidatos foram alvo de matérias positivas em grande parte da cobertura: 58,7% para Lula; 63,4% para José Serra; 60,7% para Anthony Garotinho; 48,6% para Ciro Gomes. 6 Características que ficaram claras, por exemplo, na ênfase dada às matérias sobre o nascimento da filha da Xuxa, em detrimento ao maior acontecimento político-econômico do período, as privatizações das telecomunicações. Ou ainda, na escolha de critérios de noticiabilidade vinculados ao espetáculo, interesse humano, ou show business. É importante ressaltar que a opção de diluição dos temas políticos em uma cobertura voltada para a variedade/entretenimento revelou-se recurso objetivo de manutenção do padrão de prática jornalística oficial do JN naquele momento. 7 Fato, aliás, reconhecido pela própria Rede Globo como um erro de avaliação em busca pela audiência, conforme matéria da revista Veja, edição 1869, 1º/09/2004.

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Globo, Fantástico e, em especial o Jornal Nacional, teriam indicado que "a Globo desceu ao purgatório na tentativa de queimar dos seus arquivos, em uma espécie de incêndio cívico proposital, um passado cuja traquinagem mais emblemática (...) foi a edição do debate entre Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva, em 89" (Sá, Folha de S. Paulo, 30/10/02, p. E1). A emissora, por meio de seu principal telejornal, teria liderado uma mudança de comportamento da chamada grande imprensa brasileira em busca de um 'equilíbrio' de cobertura eleitoral. À exceção da revista Veja e do jornal O Estado de S. Paulo, claramente identificados com o candidato Serra, e da revista Carta Capital que se posicionou publicamente em apoio a Lula, "alguns veículos operaram inflexões significativas de comportamento" (...). A TV Globo, caso mais notório, abriu-se para entrevistas e debates, surpreendendo, às vezes com o grau incisivo de questionamentos aos candidatos (...) favorecendo Lula, como para pagar a dívida de 1989" (Ajzenberg, Folha de S.Paulo, 27/10/02, p. A6). O próprio candidato do PT afirmou que "essa campanha está tendo uma coisa muito gratificante, que foi a abertura dos meios de comunicação para as eleições. Não sei se é porque o candidato do governo não está em primeiro lugar, desta vez as coisas foram facilitadas em todos os meios de comunicação" (Zero Hora, 22/09/02, Jornal da Eleição, p. 8) As evidências sobre a mudança no jornalismo praticado no JN durante a campanha eleitoral tornaram-se mais contundentes após duas entrevistas exclusivas de Lula, uma logo após o resultado do segundo turno da eleição (26/10/02), no Fantástico, e outra, histórica, de uma hora e quinze minutos no Jornal Nacional no dia seguinte à realização do segundo turno (28/10/02)8. O jornal Folha de S. Paulo atacou, em editorial (30/10/02, p. A2), o súbito relacionamento ‘preferencial’ de Lula "com uma emissora de televisão", classificando de "reprovável" a atitude de "um futuro chefe de Estado submeter-se dessa forma a uma concessionária de TV, desconsiderando os outros veículos de comunicação".

8 Que alcançou audiência média de 42 pontos no Ibope e pico de 49. (Mattos, Folha de S. Paulo, 30/10/02, p. E1).

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Porém, a opinião da Folha e outros críticos do JN não foi consensual. O mérito do trabalho da equipe de telejornalismo do JN em sua opção pela cobertura política explícita e pela busca da chamada isenção foi reconhecido por importantes analistas. Para Alberto Dines, a realização das entrevistas ao vivo no primeiro turno bastou para se constituir um marco do telejornalismo brasileiro. "Pela primeira vez vemos a TV retribuindo ostensivamente, com competência e seriedade, os régios benefícios oferecidos pela sociedade na concessão de canais. (...) Foi também uma exibição da capacidade de isenção do jornalismo brasileiro. Num panorama onde primam a ferocidade, o engajamento e o patrulhamento, a série de entrevistas mostrou que o jornalismo político pode ser conduzido sem veemências, a serviço do esclarecimento" (Observatório da Imprensa, 17/07/02). A primeira rodada de entrevistas com os presidenciáveis teria funcionado como uma "verdadeira abertura da campanha sucessória" (grifo nosso) e seu impacto foi maior porque, na verdade, não se acreditava, no meio jornalístico, que o apresentador William Bonner fizesse perguntas 'para valer', a tal ponto de o cronista Luis Fernando Veríssimo registrar o espanto geral em uma coluna intitulada "Bonner para presidente" (Weiss, Observatório da Imprensa, 17/07/02). Até José Serra, candidato do governo, teria ficado ‘perplexo’ com a agressividade dos apresentadores durante sua primeira entrevista: “ao fim de sua entrevista, frustrado em não ter recebido tratamento diferenciado, acostumado ao conforto luxuoso do status quo que antes irmanava a claque política e a elite jornalística, José Serra esbravejou com William Bonner. Aquilo lá  reclamou  já não é como nos velhos tempos9” (Beirão, Carta Capital, 07/08/02, p. 18). Em artigo na Folha de S. Paulo, o diretor da Central Globo de Jornalismo, Carlos Henrique Schroder, defendeu o novo comportamento editorial do JN e de todo o jornalismo praticado pela emissora, definindo que o padrão de qualidade global é entendido como "informação correta, isenta e oferecida em primeira mão" e garantindo, em nome de seus colegas jornalistas e subordinados, que "decisões

9 William Bonner não confirmou publicamente se o candidato Serra realmente reclamou do tratamento dado no JN durante a primeira entrevista. (Teixeira, Zero Hora, TV+ Especial, 22/09/02, p. 6)

7 empresariais do grupo não interferem de nenhum modo em nossas decisões editorais" (02/11/02, p. E7). Schroder também salientou o bom nível de audiência que as entrevistas do primeiro turno renderam ao telejornal10. O então vice-presidente das Organizações Globo, João Roberto Marinho, afirmou que a TV Globo pôde fazer uma "cobertura mais abrangente do que a realizada em anos anteriores com entrevistas em seus telejornais e reportagens especiais amplas e esclarecedoras" devido à liberalização da legislação eleitoral (Folha de S. Paulo, 27/09/02, p. A3). Para o apresentador e editor-chefe William Bonner, toda a cobertura das eleições de 2002 do Jornal Nacional serviu “como uma espécie de cala-boca” aos habituais críticos do chamado oficialismo do telejornal, demonstrando o profissionalismo da equipe e a ‘nova autonomia’ (grifo nosso) do jornalismo praticado no JN (Teixeira, Zero Hora, 22/09/02, TV+Especial, p. 6)11.

Mudança editorial no padrão “oficialista” Entre as variadas interpretações sobre o novo comportamento editorial do JN, é importante registrar que houve um ponto de consenso no debate público: para todos os analistas realmente ocorreu uma mudança do padrão oficialista de cobertura da política, principalmente se comparado com o praticado em 1998, com mais tempo dedicado à política explícita e enquadramentos favoráveis ao candidato da oposição e presidente eleito. Alguns aspectos da cobertura política ao longo do processo eleitoral denotaram a diferença editorial em relação a 1998. Poderíamos citar o aumento do volume de matérias relativas à própria campanha eleitoral; realização de

10 De acordo com o IBOPE, a entrevista com Ciro Gomes, realizada na segunda-feira, 08/07/02, alcançou 38 pontos; a de Anthony Garotinho (09/07/02), 37; a de José Serra (10/07/02), 36 e a de Luiz Inácio Lula da Silva (11/07/02), 40 (em certos momentos atingindo o pico de 41) (Dines, Observatório da Imprensa, 17/07/02; Folha de S. Paulo, 12/07/02, p. A7). 11 Em 2001, Bonner já comemorava o fato de que o JN teria conseguido alcançar seu objetivo de mostrar ao telespectador "aquilo que de mais importante aconteceu no Brasil e no mundo". Para o apresentador, a opção editorial pelas matérias de comportamento era equivocada e acabou quando ele assumiu como editor-chefe em setembro de 1999 (Teixeira, Zero Hora, 02/09/01, ZH Donna, p. 17). Deve-se ressaltar, entre outras ponderações, no entanto, que o jornalismo praticado por afiliadas da Globo, como a RBS, não está incluído nesta avaliação.

8 reportagens especiais dedicadas a grandes temas nacionais, como o meio ambiente, a importância do voto, os problemas das grandes cidades etc, focadas na cidadania e na participação dos eleitores no processo de votação; a participação, no primeiro turno, dos quatro principais candidatos à presidência da República  Luiz Inácio Lula da Silva, José Serra, Anthony Garotinho e Ciro Gomes  em entrevistas ao vivo de dez minutos aos apresentadores William Bonner e Fátima Bernardes durante o telejornal, e, no segundo turno, dos candidatos Lula e Serra; a entrevista realizada na edição de segunda-feira, dia 28/10/02, logo após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva se confirmar com cerca de 53 milhões de votos. Durante uma hora e quinze minutos, o presidente eleito conversou com os apresentadores sobre a campanha, o novo governo, as alianças partidárias e fatos de sua vida privada, chegando a comentar o que ‘sentiu’ quando foi divulgada a vitória pela televisão (fato acompanhado por uma câmera de vídeo amadora e exibido no JN). A conversa, em tom intimista, privilegiou o 'perfil' do novo presidente e foi secundada por matérias que saudavam a eleição de Lula como "uma conquista histórica", além de homenagens em forma de videoclipe mostrando comícios, bandeiras vermelhas e pessoas emocionadas. William Bonner recebeu o presidente expressando a ‘honra’ da equipe do JN pelo momento. Bucci chamou a noite da entrevista da vitória de 'noite de núpcias' entre o presidente eleito e o Jornal Nacional, dado o grau de absorção da figura de Lula dentro da lógica do telejornal e a evidente satisfação do novo presidente com a situação: "Na viagem que leva ao poder, o Jornal Nacional é escala obrigatória (grifo nosso), como se sabe. Para Lula, foi uma escala prazerosa. (...) certos signos, como uma bandeira vermelha, que antes tinham uma carga negativa, passam a ser identificadas com virtudes heróicas: determinação, coragem, sede de justiça. Agora são 'do bem'. A simbologia ganha nova iconografia. As velhas imagens se vão, como os anéis que abandonam os dedos". Porém, salienta Bucci, se isto significou o aprimoramento do telejornalismo global ou um instinto bajulatório da empresa com o novo poder, não se sabe (Folha de S. Paulo, 03/11/02, Ilustrada, p. 2).

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Razões para a mudança Quais seriam as razões que levaram a Rede Globo a optar explicitamente por um comportamento editorial diferente de sua tradição histórica, dando destaque às questões políticas e eleitorais, em contradição imediata com seu comportamento jornalístico anterior durante a campanha presidencial de 1998? Para Miguel (2004), por exemplo, a economia cumpriu papel fundamental para a compreensão da mudança significativa na cobertura do JN: "a vinculação estrita que a imprensa fez entre eleição e a crise econômica, com a subida dos candidatos de oposição nas pesquisas correspondendo à desvalorização do real e à queda nas bolsas, contribuiu menos para alavancar o candidato do governo, José Serra, e mais para extrair dos candidatos da oposição compromissos cada vez mais abrangentes com a continuidade da política econômica liberal". Além disso, ressalta o autor, o principal candidato da oposição também alterou sua estratégia, optando "por não remar contra a maré, adaptando-se ao modelo discursivo dominante" (p.104). Colling (2004) levanta algumas hipóteses sobre as razões da mudança editorial, que vão desde a "necessidade do JN recuperar a sua imagem perante os telespectadores e anunciantes", passando por uma nova interpretação da lei eleitoral, uma suposta superexposição que beneficiaria a candidatura Serra, até pelas simples circunstâncias inéditas do fato de um ex-metalúrgico ter chances reais de se tornar presidente da República pela primeira vez na história brasileira. (p.64-65). O principal argumento que queremos avançar neste paper é de que três razões são prioritárias para explicar a mudança ocorrida na cobertura das eleições de 2002: (a) uma de ordem econômica, a crise financeira da mídia; (b) uma de ordem política, as negociações realizadas pela equipe de Lula com a mídia; e (c) de ordem jornalístico-editorial, a “responsabilidade social” como política empresarial da Rede Globo e, em particular, do seu jornalismo. Outra questão

10 importante é saber se essa mudança persistiu após as eleições. Embora não possamos respondê-la neste trabalho, faremos algumas indicações neste sentido.

(a) crise financeira da mídia A campanha eleitoral de 2002 se desenrolou num período inédito de crise financeira da mídia brasileira. A holding das Organizações Globo– a Globopar – enfrentava uma dívida acumulada de 6,1 bilhões de reais, em números de setembro de 2002, 17% a mais do que a empresa acumulava no mesmo mês de 2001. Na verdade, de janeiro a setembro de 2002, os prejuízos da Globopar cresceram cerca de 140%. Esse endividamento ocorreu apesar da injeção de mais de 500 milhões de reais em recursos públicos já realizados na empresa, através do BNDES12 (Varga, FSP 9/1/03; Fernandes, CC n 181, 20/3/02 e Dias, CC n. 214, 6/11/02). A crise atingiu ainda as empresas jornalísticas que assistiram ao número de assinantes dos 22 maiores jornais do país recuar 12% no primeiro semestre de 2002 (Salvo, Agência Carta Maior, 13/9/02); as agências de publicidade que experimentaram estagnação e queda depois de dez anos consecutivos de crescimento e só em 2003 apresentam alguns sinais de recuperação (Barufi, GZM, 26/02/2001 e Baraldi, GZM, 05/02/2003); e, também, provedores de Internet, como a UOL (dos grupos Abril e Folha), que teve um prejuízo de 317 milhões de reais em 2002 (D’Ercole, O Globo, 24/06/2003). Alguns analistas relacionaram a mudança na cobertura do JN à crise, uma vez que a Globo tornava-se “vulnerável” na medida em que buscava saídas para saldar suas dívidas, seja por meio de um acordo com o governo (via empréstimos do BNDES), seja via entrada de capital estrangeiro, possibilitado pela Emenda Constitucional n. 36, regulamentada por Medida Provisória às vésperas do

12 O continuado suporte financeiro do Estado às Organizações Globo e as negociações para aprovação da Emenda Constitucional que permite a entrada do capital estrangeiro na radiodifusão estão na raiz de uma inédita cisão entre as empresas brasileiras de radiodifusão reunidas, desde 1962, na ABERT, Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão. Três das quatro principais redes – Band, SBT e Record - criaram a UneTV, União de Redes e Emissoras de

11 primeiro turno das eleições, e depois por lei sancionada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso pouco antes de deixar o governo (Brasil, Observatório da Imprensa, 20/03/02; Dias, Carta Capital, 06/11/02, p. 26-31; Gaspari, Folha de S.Paulo, 03/11/02, p. A16). O endividamento da Globo teria deixado o seu departamento de jornalismo "pisando em ovos", pronto a se adaptar à nova conjuntura política e se antecipar às demandas do novo bloco de poder, fosse qual fosse o presidente eleito (Caroni Filho, Observatório da Imprensa, 31/07/02).

(b) as negociações entre Lula e a mídia Uma das estratégicas do projeto de levar Lula à Presidência da República, em 2002, passava pelo estabelecimento de novas relações entre o candidato e a mídia brasileira. Há informações de que esse processo começou a ser articulado muito antes do início da campanha. E, claro, existem rumores de encontros não divulgados que ocorreram depois do primeiro turno das eleições. Houve pelo menos três encontros entre Lula e o comando das Organizações Globo desde o início de 2001, o primeiro deles por iniciativa da própria família Marinho. Além disso, “outros empresários de comunicação seguiriam o exemplo. Gente como Silvio Santos (SBT), os membros da família Saad (Bandeirantes) e da família Sirotsky (RBS), entre inúmeros outros donos de jornais, emissoras de tevê e rádio. Da parte do PT, havia o interesse de evitar que o filme de outras eleições, como a de 1989, fosse reprisado. Era preciso evitar que a maior parte da mídia jogasse seu peso contra Lula. E o recado do petista, dado na primeira reunião com os homens fortes da Globo, foi o mesmo aos demais. "Não queremos que vocês nos apóiem, mas sim um tratamento ético, equilibrado. Mas quem der golpes abaixo da cintura vai ser tratado da mesma forma. Em caso de vitória ou derrota" (Faria, Fórum n. 8). Os sinais da mudança do tratamento a Lula no jornalismo da Globo, como já vimos, logo apareceram. Dois exemplos lembrados por Faria (Fórum n. 8) ocorreram ainda no início da campanha de 2002: “no lançamento do programa

Televisão em abril de 2002. Posteriormente (julho de 2002) a Rede Record, que havia se desligado

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Fome Zero, o Instituto Cidadania pediu à Rede Globo autorização para usar trechos de uma série de reportagens sobre a fome exibida no Jornal Nacional. Contrariando o comportamento padrão, a emissora cedeu, além de ter dado ampla cobertura ao lançamento do programa em seus telejornais. Outro momento emblemático foi o da visita de Lula ao então candidato do Partido Socialista francês à presidência, Lionel Jospin. A Globo mandou seu correspondente de Londres para Paris e o petista ganhou quase 5 minutos no Jornal Nacional”. No segundo turno, uma declaração de Lula em entrevista a Carta Capital (n. 212, 23/10/2002, p. 27) mostrava não só segurança com relação à vitória eleitoral, mas mandava também um claro recado à mídia. Dizia ele: "O povo admite, entende, que um jornal, um canal de televisão, uma revista, editorialmente diga 'apóio fulano de tal'. Mas na cobertura tem de haver honestidade (...) A imprensa sabe que se fizer um jogo errado pode perder, e perder muito. Acho que a imprensa vai dar, ainda mais nesta reta final, a cobertura mais saudável que já deu em qualquer outro momento da história política brasileira”.

(c) Responsabilidade social A grande novidade, todavia, em termos da cobertura que o JN fez durante as eleições presidenciais de 2002 pode ser encontrada na sua adesão ao que William Bonner chama de conceito de “responsabilidade social”. Bonner identifica um “papel pedagógico” para o jornalismo da Globo, mesclado de coberturas didáticas e de incentivo à construção da cidadania. A epígrafe que inicia esse texto ilustra o pensamento de Bonner sobre o tema e pode ser complementada com essa citação retirada da mesma entrevista concedida ao jornalista Paulino Motter em outubro de 2003: “Não se pode abstrair o aprofundamento da Rede Globo de Televisão nas questões de relevância social – eu digo aprofundamento porque desde o nascimento, o jornal O Globo já tinha iniciativas inacreditáveis, que agente nem sabe, de importância social – mas o aprofundamento do conceito de responsabilidade social nas Organizações Globo ocorre ao mesmo tempo em que há um amadurecimento de algo muito maior do

em 1999, voltou a filiar-se à ABERT (Lobato, FSP, 01/03/2002 e Mattos, FSP, 18/07/2002).

13 que isso, chamado democracia brasileira. E a democracia brasileira é mensurável no comportamento dos consumidores, dos eleitores, dos cidadãos brasileiros que também amadureceram. Nós jornalistas estamos no mesmo contexto. A empresa, como um todo, faz parte desse sistema. Acho que tudo isso são apenas sinais de que estamos num país que, em si, amadureceu também nos últimos anos, desde que ele passou a viver a democracia em sua plenitude. Cidadãos, empresas, instituições públicas, a sociedade civil, todos vivem um momento diferente. Então, todo assunto de grande relevância que ganhe mais importância, que ganhe mais espaço hoje na mídia é porque a mídia também está mais amadurecida. Acho que é por aí.” Os três melhores exemplos da repercussão dessa postura de “responsabilidade social” durante a cobertura das eleições de 2002, são indicados pelo próprio Bonner. Ao longo de nove semanas, o JN produziu séries de reportagens especiais sobre: [1] Os principais problemas brasileiros, destinadas, nas palavras de Bonner, a "trazer retratos atualizados dos maiores problemas brasileiros", a fim de ajudar o eleitor a avaliar se as propostas dos candidatos poderiam levar a soluções. Esta série teve várias sequências de matérias - uma delas “O Poder do Cidadão” – e começou a ser veiculada no início da campanha, em 05/08/2002 e se prolongou em todas as edições durante os meses de setembro e início de outubro. Um bom exemplo dessa série é a matéria abaixo exibida no JN de 05/08/02: Fátima Bernardes: Esta primeira semana de reportagens especiais nós vamos dedicar a uma espécie de vacina contra a maior parte dos problemas nacionais. Você vai ver como todos os cidadãos têm sim um poder nas mãos que não se esgota na escolha do candidato na hora do voto. O repórter Edney Silvestre vai mostrar que você pode e deve exercer seu direito de eleitor por completo mesmo depois das eleições. Edney Silvestre (repórter/off): Quatro empresários num escritório no centro de São Paulo. Todos bem sucedidos. todos foram meninos pobres em Ribeirão Bonito. Daqui saíram para o sucesso. E decidiram retribuir junto com um quinto amigo também nascido na cidade. Formaram uma associação, financiaram a reforma desta capela, destes jardins, e planejavam fazer mais quando começaram a receber denúncias. A prefeitura pagava por uma tonelada de carne por mês para esta creche, mas as 65 crianças passavam fome. Rubens Gayoso Júnior (empresário): Nós fomos na creche, chegamos lá na geladeira tinha uma mortadela e um pouco de salsicha. Para uma criança de um ano, isso é impossível. Edney Silvestre (off): Um empreiteiro confessou que recebia mensalmente do prefeito Antônio Buzzá mais de sete mil reais por obras que não fazia. O prefeito tinha

14 comprado 117 mil litros de gasolina num posto a 120 km de Ribeirão Bonito quando havia este posto a poucos metros da prefeitura com preço menor. (passagem do repórter): O rombo no orçamento da prefeitura era de um milhão e 700 reais. O dinheiro, segundo as denúncias, ia parar no bolso do prefeito. Era mais um caso de político corrupto em que os eleitores não podiam fazer nada, certo? Errado. Edney Silvestre (off): Os cinco amigos mais os cidadãos honestos na cidade decidiram pôr um fim naquela roubalheira. Esta cozinha nos fundos de uma loja virou QG dos moradores rebeldes. Funcionários da prefeitura trabalhavam como agentes secretos trazendo informações. Os cinco amigos contrataram investigadores. Foram surgindo provas, notas fiscais falsas, endereços fictícios, largas quantias pagas a empresas que não existiam. Entre as falcatruas, uma descoberta: parentes dos cidadãs honestos também estavam envolvidos na corrupção. As famílias enfrentaram discussões dolorosas. Antônio Chizzotti (empresário): Mesmo gostando, amando as pessoas, a gente tem que dizer para elas o lado em que está. Seríamos omissos, moralmente omissos, se não tomássemos uma decisão. Edney Silvestre (off): Mesmo quem votou no prefeito decidiu pedir a saída dele. Cíntia Maria Bessa (dentista): Cheguei na frente do clube, eu e a minha irmã, foi quando o pessoal começou a juntar em volta da gente, e eu comecei a instigá-los: vamos, gente, como que vocês vão ficar aí de braços cruzados, não é justo que as nossas crianças passem fome na escola, vamos, gente, vamos, e o pessoal começou a se juntar a nós e, realmente, fizemos esse panelaço. Iniciamos em duas e terminamos em trezentas e poucas pessoas. Edney Silvestre (off): Os amigos patrocinaram uma ação contra o prefeito. A Câmara de Vereadores criou uma comissão de investigação. O prefeito tentou evitar o impeachment renunciando. Não adiantou. Em 12 de junho desse ano, Buzzá teve os direitos políticos cassados e a prisão decretada. Os honesto venceram. Josmar Verillo (empresário): Hoje, até as pessoas na cidade estão com outra dignidade, andando de cabeça erguida. Antoninho Marmo Trevisan (empresário): quando as pessoas querem fazer alguma coisa em prol da sua comunidade, por mais complicado que isso possa parecer, nós provamos que isso é possível.

[2] o "Brasil Bonito", com reportagens sobre ações de inclusão social e desenvolvimento sustentável que deram certo, também iniciada no mês de agosto de 2002. Essa série "Brasil Bonito" surgiu, segundo Bonner13, "de uma conversa com um educador, que vem a ser meu cunhado. Estávamos filosofando sobre o fato de morarmos num país pobre, com tanta gente rica, mas com a população predominantemente pobre, a culpa meio católica que isso produz, e a sensação de desamparo que os cidadãos que têm boas condições vivem, essa sensação que eles experimentam de impotência". Iniciada em agosto de 2002, na verdade, continuou a ir ao ar nos anos seguintes. O objetivo, para Bonner, era "mostrar que há na elite brasileira pessoas que têm o dinheiro (claro, porque são da elite), que

15 têm tempo e estão fazendo alguma coisa". O próprio editor sugeriu a vinheta, com o uso da bandeira nacional, e do nome14. As matérias veiculadas durante a campanha eleitoral de 2002 abordaram temas como o das crianças que "não sabem mas ajudam a modelar o que os especialistas chamam de desenvolvimento sustentável" (de acordo com o repórter William Wack) sobre as crianças da periferia de São Paulo que produzem peças de artesanato (17/10), ou sobre as ações de voluntários contra o desperdício de alimentos (18/10) ou ainda o menino-professor do Paraná, que ensina os colegas em um esforço voluntário (21/10). Um exemplo dessa série é a matéria exibida no JN de 17/10/02: William Bonner: Por decreto da ONU, dia 17 de outubro é dia internacional da pobreza em homenagem aos esforços das organizações não-governamentais dedicadas à erradicação da miséria. Um dos exemplos vem da periferia pobre da zona sul de São Paulo. William Wack (repórter/off): Mãos dispostas a trabalhar, máquinas simples, pedaços de madeira do lixo e a criatividade que está em cada um de nós fazem não só objetos artísticos que já foram parar até em museu. Criam a possibilidade de se virar a vida com as próprias mãos. Aluna da oficina: Eu nem acredito que fui eu que fiz. William Wack: Por que não? Aluna da oficina: Não sei, nunca imaginei que fosse capaz de fazer coisas assim tão bonitas, peças lindas, que, de repente, a gente se sente valorizada, né? William Wack (off): A oficina na periferia pobre e violenta da zona sul de São Paulo é parte de um projeto para dar às comunidades carentes a chance de integrar pessoas na economia de mercado produzindo objetos de arte. (passagem do repórter): As máquinas dessa oficina não vieram parar aqui por obra de caridade. Elas são um empréstimo a custo baixo, um tipo de investimento que pode ser pago com a renda que vai sair daqui. Representante da organização: Na medida em que as pessoas comecem a produzir seus produtos e, principalmente, atinjam o mercado consumidor desse próprios produtos, elas também se inserem no mercado consumidor brasileiro gerando mais renda. William Wack (off): As crianças não sabem, mas ajudam a modelar o que os especialistas chamam de desenvolvimento sustentável. As peças criadas por mãos que trabalham brincando são transformadas em vendáveis objetos de bronze. O professor e o caminho até a exibição são uma contribuição da ONU. Lá estão também exemplos do que a ex-faxineira Regiane aprendeu a fazer no curso de costura no mesmo projeto de geração de renda na periferia. Hoje, ela não só se sustenta vendendo para grifes famosas. Descobriu a si mesma. Regiane: Aos 53 anos, eu não aprendia nada, eu achava que não. Só que estou super feliz com a descoberta disso comigo mesma, aprendi muita coisa gostosa, muita coisa, digamos assim, tipo estimulante.

13 Informações também concedidas em entrevista exclusiva ao pesquisador Paulino Motter. Os A. agradecem o material cedido. 14 A série ganhou o prêmio Embratel de jornalismo na categoria Responsabilidade Social.

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[3] "O Poder do Presidente", veiculada na última semana da campanha eleitoral, entre os dias 21/10 e 25/10/2002, em que o repórter Marcelo Canelas mostra quais as atribuições e limitações que esperavam o novo presidente. Nessa série, o JN mostrou, de forma didática, quais são as atribuições de um presidente e como o novo mandatário deveria se portar frente aos poderes e limitações do cargo. A série foi veiculada durante cinco dias e abordou desde as facilidades na vida do chefe do Executivo (valor do salário, a 'casa' onde ele mora, quem paga suas despesas domésticas"), o quanto ele pode resolver dos problemas brasileiros apenas com sua assinatura, qual o poder do cargo definido pela Constituição ("Seja quem for, o próximo brasileiro que sentar aqui terá de ser criativo e negociador para mudar o país dentro dos limites da lei", afirma o repórter, ao final de uma reportagem), a relação entre o presidente e o Congresso (e a necessidade de um perfil negociador), os problemas em sua atuação (as reformas que não saíram do papel) e as responsabilidades que detém na condução da política econômica. Um bom exemplo dessa série é matéria abaixo, exibida no JN de 24/10/2002: Marcelo Canelas (repórter/off): Sempre que houve democracia, foi assim que funcionou. Aprovar uma lei, só com metade mais um, mexer na Constituição, só com três quintos dos votos. Mesmo que queira, sozinho, nenhum presidente consegue governar para avançar com seu programa de governo. O presidente precisa aprovar leis. No mínimo, ele precisa aprovar um orçamento que contemple as suas prioridades. Para isso, não há outra saída a não ser negociar a formação de uma maioria no Congresso Nacional. O Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar destrincha projetos de lei e de emendas à Constituição desde 1984. A entidade é paga pelos sindicatos para acompanhar o trabalho do Congresso Nacional. Só nos últimos dois anos, o governo conseguiu mexer na Constituição 14 vezes, mas não foi fácil. Representante do DIAP: O presidente Fernando Henrique Cardoso que tinha apoio consistente de 296 deputados, apoio condicionado de 115 e uma oposição de apenas 102 parlamentares, mesmo assim, teve muita dificuldade para aprovar matérias em nível constitucional. Imagine os candidatos que estão chegando que não terão sequer maioria absoluta. Marcelo Canelas (off): O próximo presidente vai receber de herança as reformas que não foram adiante: reforma tributária, reforma da previdência, do setor público e muitas outras. De todos os instrumentos de que vai dispor, nenhum será maior do que a capacidade de negociação. Representante do DIAP: Tem o poder de veto, tem a possibilidade de medida provisória, tem o pedido de urgência para que o projeto possa tramitar rapidamente no Congresso e, além disso, tem a liderança lá dentro. De modo que há uma série de

17 prerrogativas que facilitam a ação do presidente no Congresso, mas é preciso disposição para o diálogo.

Observações finais A combinação dos fatores econômico, político e jornalístico-editorial citados anteriormente (crise financeira da mídia; as negociações realizadas pela equipe de Lula com a mídia; e a “responsabilidade social” como decisão editorial dos responsáveis pela emissora) explica a mudança ocorrida na cobertura do Jornal Nacional sobre as eleições presidenciais de 2002. Não há como estabelecer uma hierarquia entre os fatores. Porém, a adesão empresarial da Rede Globo ao conceito de "responsabildade social" provoca repercussões até então não- identificadas na postura editorial do Jornal Nacional, constituindo-se, portanto, no elemento inédito de nossa pesquisa. Por outro lado, durante a realização desse trabalho e contrariamente a várias de nossas pesquisas anteriores, tornou-se claro que a análise da cobertura política do JN deve necessariamente ser combinada com análises semelhantes de outros veículos das Organizações Globo. A ausência/ineficácia da legislação permite que grupos brasileiros possuam propriedade cruzada de veículos de mídia, vale dizer, controlem ao mesmo tempo e no mesmo mercado, a mídia impressa (jornais, revistas) e a mídia eletrônica (rádio, televisão). Além disso, em alguns grupos de mídia, os mesmos jornalistas/colunistas estão presentes em diferentes veículos: jornais, revistas, TV aberta e paga, rádio e sites na Internet.15 Esses fatos poderiam sugerir que a cobertura política de diferentes veículos de um mesmo grupo (por exemplo: jornal, televisão e revista), necessariamente seguiria a mesma orientação [enquadramento]. No entanto, nem sempre isso acontece. Ao contrário, um grupo empresarial pode exercer, de forma estratégica, seu poder de barganha com o Estado, orientando (ou omitindo) de forma

15 Uma discussão atualizada sobre a questão da concentração da propriedade da mídia no Brasil pode ser encontrada em Conselho de Comunicação Social (2004).

18 diferenciada, dentro dos limites de seu interesse, a cobertura política em seus diversos veículos de comunicação. No episódio do “Caso Waldomiro”, por exemplo, as coberturas políticas da revista Época, do jornal O Globo e do “Jornal Nacional” da Rede Globo - todos veículos das Organizações Globo - obedeceram a orientações [enquadramentos] distintos (ainda que isso não signifique pluralidade de posições, pois ocorre dentro de limites estruturalmente pré-estabelecidos para o noticiário político)16. Dessa forma, a diferença no padrão de cobertura do JN em 2002 não significou necessariamente um ‘desvio’ do seu histórico comportamento editorial ‘oficialista’, que voltou a se manifestar explicitamente desde a posse do novo governo. Isso não significa ausência de contradições (exemplos recentes seriam a forte oposição do JN a propostas e projetos do governo como a ANCINAV e o Conselho Federal de Jornalismo). A compreensão dessas contradições deve ser buscada no amplo contexto das negociações para solução da crise financeira da Globo e nos interesses econômicos de médio e longo prazos de um grupo de mídia que controla vários veículos em propriedade cruzada e que sempre soube exercer seu poder de barganha com o Estado. Verificar e analisar esse complexo quadro é tarefa para nossa próxima pesquisa.

16 O jornalista Fábio Koleski realiza pesquisa comparativa sobre o tema analisando o período que vai de 13 de fevereiro, data da publicação da denúncia na revista Época, a 30 de março de 2004, quando o Jornal Nacional da Rede Globo divulgou gravação de conversa incriminatória entre procuradores e o próprio pivô da crise (Carlinhos Cachoeira), realizada dentro da Procuradoria Geral da República, em Brasília.

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